4 esgotamento linguagem esgotamento site oficial vingança sv web

Transcrição

4 esgotamento linguagem esgotamento site oficial vingança sv web
JURISPRUDÊNCIA DA
CORTE INTERAMERICANA
DE DIREITOS HUMANOS
DIREITOS ECONÔMICOS,
SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO
• Cinco Aposentados Vs. Peru
• Crianças Yean e Bosico Vs. República
Dominicana
• Ximenes Lopes Vs. Brasil
• Acevedo Buendía e Outros Vs. Peru
• González e Outras (“Campo Algodoeiro”)
Vs. México
• Comunidade Indígena Xákmok Kásek
Vs. Paraguai
• Atala Riffo e Crianças Vs. Chile
• Fornerón e Filha Vs. Argentina
• Furlan e Familiares Vs. Argentina
• Artavia Murillo e Outros Vs. Costa Rica
JURISPRUDÊNCIA DA
CORTE INTERAMERICANA
DE DIREITOS HUMANOS
DIREITOS ECONÔMICOS,
SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO
EXPEDIENTE
PRESIDENTA DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
Dilma Rousseff
MINISTRO DA JUSTIÇA
José Eduardo Cardozo
SECRETÁRIO EXECUTIVO DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA
Marivaldo de Castro Pereira
SECRETÁRIO NACIONAL DE JUSTIÇA E PRESIDENTE
DA COMISSÃO DE ANISTIA
Paulo Abrão
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Humberto Antonio Sierra Porto, Presidente
Roberto F. Caldas, Vice-Presidente
Manuel E. Ventura Robles, Juiz
Diego García Sayán, Juiz
Alberto Pérez Pérez, Juiz
Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot, Juiz
Pablo Saavedra Alessandri, Secretário
Emilia Segares Rodríguez, Secretária Adjunta
DIRETORA DA COMISSÃO DE ANISTIA
Amarilis Busch Tavares
DIRETOR DO DEPARTAMENTO DE ESTRANGEIROS
João Guilherme Granja
DIRETOR DO DEPARTAMENTO DE RECUPERAÇÃO
DE ATIVOS E COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL
Ricardo Andrade Saadi
DIRETORA DO DEPARTAMENTO DE JUSTIÇA,
CLASSIFICAÇÃO, TÍTULOS E QUALIFICAÇÃO
Fernanda Alves dos Anjos
GABINETE DA COMISSÃO DE ANISTIA
Larissa Nacif Fonseca, Chefe de Gabinete
Marleide Ferreira Rocha, Assessora
GABINETE DA SECRETARIA NACIONAL DE JUSTIÇA
Frederico de Morais Andrade Coutinho, Chefe de Gabinete
Cristina Timponi Cambiaghi, Assessora
341.27
J95c Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos / Secretaria
Nacional de Justiça, Comissão de Anistia, Corte Interamericana de
Direitos Humanos. Tradução da Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Brasília : Ministério da Justiça, 2014.
7 v.
ISBN : 978-85-85820-81-7
1. Direitos humanos. 2. Direitos indígenas. 3. Direitos e garantias
individuais. 5. Liberdade de expressão 6. Migração. I. Brasil Ministério
da Justiça. II. Corte Interamericana de Direitos Humanos.
CDD
Ficha elaborada pela Biblioteca do Ministério da Justiça
Capa e Projeto Gráfico: Alex Furini
Tradução: Secretaria da Corte Interamericana
de Direitos Humanos
Revisão: Núcleo de Direitos Humanos do
Departamento de Direito da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Tiragem: 2.000 exemplares
Impresso por: Prol Editora Gráfica Ltda
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
5
CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
7
CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
69
CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
135
CASO ACEVEDO BUENDÍA E OUTROS VS. PERU
215
CASO GONZÁLEZ E OUTRAS (“CAMPO ALGODOEIRO”) VS. MÉXICO
255
CASO DA COMUNIDADE INDÍGENA XÁKMOK KÁSEK VS. PARAGUAI
371
CASO ATALA RIFFO E CRIANÇAS VS. CHILE
439
CASO FORNERÓN E FILHA VS. ARGENTINA
511
CASO CASO FURLAN E FAMILIARES VS. ARGENTINA
555
CASO ARTAVIA MURILLO E OUTROS VS. COSTA RICA
633
APRESENTAÇÃO
A publicação desta Coleção inédita em língua portuguesa contendo decisões da Corte
Interamericana de Direitos Humanos supre uma lacuna histórica para a formação do
pensamento jurídico e da jurisprudência brasileira.
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), composto pela Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos (CorteIDH) surgiu no contexto da evolução pós-guerra do direito internacional
e em complementaridade lógica, temporal e jurídica à construção do Sistema Universal
de proteção que começou a ser erguido com a Declaração da ONU de 1948. Tanto
em escala mundial quanto continental esse novo sistema representou uma reação
normativa, jurídica, política, ética e moral aos conflitos e extermínios produzidos na
Segunda Guerra.
O SIDH constituiu-se como sistema regional de proteção e defesa dos direitos humanos,
contribuindo para a difusão regional da ideia de que o Estado não é o único sujeito de
direito internacional, passando-se a aceitar o indivíduo como pleiteador de seus direitos
em escala internacional. Tal movimento deu início à revisão do conceito de soberania
estatal pós-Westphalia, admitindo-se um certo grau de intervenção internacional no
contexto interno, em nome da garantia e do respeito aos direitos humanos.
A Comissão já completava dez anos de existência quando veio à luz o instrumento
normativo que lhe garantiu estrutura institucional abrangente, a Convenção Americana
sobre Direitos Humanos, em vigência desde 1978. Desde essa data, passou a contar
com seu ramo jurisdicional, a Corte Interamericana dos Direitos Humanos, sediada em
São José da Costa Rica.
Apesar de o Brasil ter ratificado a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pato
de San José da Costa Rica) em 25 de setembro de 1992, apenas seis anos depois, em
10 de dezembro de 1998, reconheceu a jurisdição contenciosa da Corte Interamericana
de Direitos Humanos.
Antes disso, a Constituição Federal de 1988, a Constituição Cidadã, já previa no art.7º
dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias que “O Brasil propugnará pela
formação de um tribunal internacional dos direitos humanos.”
É preciso reconhecer que, seja por desconhecimento ou dificuldades de acesso, os
operadores do direito e administradores públicos nos três poderes do Estado brasileiro
ainda fundamentam muito pouco as suas ações, demandas ou decisões judiciais
na jurisprudência internacional, a despeito do longo acervo de Tratados e Acordos
firmados pelo Brasil.
Mas este cenário está em mudança. Quase duas décadas depois de reconhecida a
competência da Corte, pode-se afirmar que os Tribunais brasileiros, em especial o
Supremo Tribunal Federal, vêm ampliando as citações à Convenção Americana sobre
Direitos Humanos em suas decisões, a exemplo do caso sobre prisão do depositário
infiel, do duplo grau de jurisdição, do uso de algemas, da individualização da pena, da
presunção de inocência, do direito de recorrer em liberdade e da razoável duração do
processo. Afinal, são mais de 160 sentenças já emitidas pela CorteIDH em distintos
casos e cuja aplicabilidade vincula a todos os países aderentes da Convenção.
Assim, impulsionada pela sua missão institucional de promover e construir direitos e
políticas de justiça voltadas à garantia e ao desenvolvimento dos Direitos Humanos e da
Cidadania, por meio de ações conjuntas do poder público e da sociedade, a Secretaria
Nacional de Justiça (SNJ/MJ) e a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça vem
estreitando laços institucionais com a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
As primeiras iniciativas ocorreram por ocasião da realização no Brasil do “Curso sobre
Controle de Convencionalidade e Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos
Humanos”, quando durante uma semana membros da Corte e operadores judiciais de
diversos países e estados brasileiros se reuniram para discutir sobre a jurisprudência
do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Posteriormente foi firmado convênio com a Corte para o fortalecimento da difusão de
sua jurisprudência em língua portuguesa para os operadores jurídicos brasileiros e
cujo resultado mais concreto está na presente obra.
Como produto foram selecionadas, editadas, sistematizadas e traduzidas as sentenças
paradigmáticas e mais relevantes da Corte de maneira a tornar acessível seus critérios
jurisprudenciais a todos os brasileiros, sejam agentes do Estado, sejam vítimas de
violações, e disponibilizando, assim, mais uma ferramenta de ampliação da efetividade
da justiça que poderá ser aplicada de maneira que influencie nas normas, decisões,
práticas e políticas públicas internas.
A presente obra é distribuída em 7 volumes que correspondem a diferentes temas
de direitos protegidos pela Convenção Americana de Direitos Humanos, a saber:
Volume 1: Direito à vida (execuções extrajudiciais e desaparecimentos forçados),
Anistias e Direito à Verdade; Volume 2: Direitos dos Povos Indígenas; Volume 3:
Direitos Econômicos Sociais e Culturais (DESC) e Discriminação; Volume 4: Direito à
Integridade Pessoal; Volume 5: Direito à Liberdade Pessoal; Volume 6: Liberdade de
Expressão; e Volume 7: Migração, Refúgio e Apátridas.
É com muita satisfação que esta obra é trazida aos operadores de direito de todo o
Brasil, à sociedade civil, aos estudantes, professores e acadêmicos, e aos advogados e
defensores dos direitos humanos, esperando que essa iniciativa possa contribuir para
a difusão e a ampliação do acesso a mais um instrumento da tutela efetiva dos direitos
humanos, para o fortalecimento do interesse em sua aplicabilidade cotidiana e para a
aproximação de sistemas jurídicos com mais profundo diálogo técnico e humano entre
as nações e povos do continente.
José Eduardo Cardozo
Ministro da Justiça
Humberto Sierra Porto
Presidente
Corte Interamericana de
Direitos Humanos
Paulo Abrão
Secretário Nacional de Justiça
Presidente da Comissão de Anistia
Roberto F. Caldas
Vice-Presidente
Corte Interamericana de
Direitos Humanos
***
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
SENTENÇA DE 28 DE FEVEREIRO DE 2003
(Mérito, Reparações e Custas)
No caso “Cinco Aposentados”,
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “a Corte”, “a Corte Interamericana”
ou “o Tribunal”), integrada pelos seguintes juízes:*
Antônio A. Cançado Trindade, Presidente;
Sergio García Ramírez, Vice-Presidente;
Hernán Salgado Pesantes, Juiz;
Oliver Jackman, Juiz;
Alirio Abreu Burelli, Juiz;
Carlos Vicente de Roux Rengifo, Juiz; e
Javier de Belaunde López de Romaña, Juiz ad hoc;
presentes, ademais,
Manuel E. Ventura Robles, Secretário, e
Pablo Saavedra Alessandri, Secretário Adjunto,
em conformidade com os artigos 29, 55, 56 e 57 do Regulamento da Corte (doravante denominado “o
Regulamento”)** e com o artigo 63.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante
denominada “a Convenção” ou “a Convenção Americana”), profere a presente Sentença.
I
Introdução da Causa
1. Em 4 de dezembro de 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “a
Comissão” ou “a Comissão Interamericana”) submeteu à Corte uma demanda contra o Estado do Peru (doravante
denominado “o Estado” ou “o Peru”), a qual teve origem na denúncia nº 12.034, recebida na Secretaria da
Comissão em 1º de fevereiro de 1998.
2. A Comissão apresentou a demanda com base no artigo 51 da Convenção Americana, com o fim de que a
Corte decidisse se o Estado violou os artigos 21 (Direito à Propriedade Privada), 25 (Proteção Judicial) e 26
(Desenvolvimento Progressivo) da Convenção Americana, em relação às obrigações estabelecidas nos artigos
1.1 (Obrigação de Respeitar os Direitos) e 2 (Dever de Adotar Disposições de Direito Interno) deste tratado,
devido à modificação no regime de pensões que os senhores Carlos Torres Benvenuto, Javier Mujica RuizHuidobro, Guillermo Álvarez Hernández, Reymert Bartra Vásquez e Maximiliano Gamarra Ferreyra (doravante
denominados “as supostas vítimas”, “os cinco aposentados” ou “os aposentados”) vinham desfrutando
conforme a legislação peruana até 1992, e pelo descumprimento das sentenças da Corte Suprema de Justiça e
do Tribunal Constitucional do Peru “que ordenaram aos órgãos do Estado peruano pagar aos aposentados uma
pensão calculada da maneira estabelecida na legislação vigente no momento em que eles começaram a desfrutar
de um determinado regime de aposentadoria”.
3. Além disso, a Comissão solicitou à Corte que ordenasse ao Estado a concessão de uma compensação pelo dano
moral causado às supostas vítimas, e que cumprisse o disposto nas sentenças da Corte Suprema de Justiça do
* O Juiz Máximo Pacheco Gómez informou à Corte que, por motivos de força maior, não poderia estar presente no LVIII Período Ordinário de
Sessões do Tribunal, de maneira que não participou na deliberação e assinatura da presente Sentença.
**De acordo com a Resolução da Corte de 13 de março de 2001, sobre Disposições Transitórias ao Regulamento da Corte adotado por meio
da Resolução de 24 de novembro de 2000, a presente Sentença é proferida nos termos do Regulamento de 2000, o qual entrou em vigor em
1º de junho de 2001.
7
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Peru de 2 de maio, 28 de junho, 1º e 19 de setembro, e 10 de outubro, todas de 1994, e também as proferidas
pelo Tribunal Constitucional do Peru em 9 de julho de 1998, 3 de agosto e 21 de dezembro, ambas de 2000, de
maneira que as supostas vítimas e seus familiares recebessem as diferenças que foram deixadas de pagar no
valor de suas aposentadorias a partir de novembro de 1992 e acrescidos dos respectivos juros, bem como que
o Estado continuasse pagando um montante nivelado de suas aposentadorias. Ademais, a Comissão solicitou
à Corte que ordenasse ao Estado que derrogue e faça cessar, de maneira retroativa, os efeitos do artigo 5 do
Decreto-Lei nº 25.792, de 23 de outubro de 1992. Finalmente, a Comissão solicitou à Corte que ordenasse ao
Estado que investigue os fatos, estabeleça as responsabilidades pela violação dos direitos humanos cometida no
presente caso, e condene o Estado a pagar as custas e os gastos produzidos na tramitação do caso na jurisdição
interna e perante o Sistema Interamericano.
II
Competência
4. O Peru é Estado Parte na Convenção Americana desde 28 de julho de 1978 e reconheceu a competência
contenciosa da Corte em 21 de janeiro de 1981. Portanto, a Corte é competente para conhecer do presente caso,
nos termos dos artigos 62 e 63.1 da Convenção.
III
Procedimento perante a Comissão
5. Em 1º de fevereiro de 1998, os senhores Carlos Torres Benvenuto, Javier Mujica Ruiz-Huidobro, Guillermo
Álvarez Hernández, Reymert Bartra Vásquez, e Sara Castro, viúva do senhor Gamarra, bem como o Programa de
Direitos Humanos do Centro de Assessoria Laboral do Peru (doravante denominado “CEDAL”) e a Associação
Pró Direitos Humanos (doravante denominada “APRODEH”), apresentaram uma denúncia perante a Comissão
Interamericana. Esta denúncia foi ampliada em 3 de junho de 1998 por estas últimas duas organizações.
6. Em 16 de julho de 1998, a Comissão procedeu a abrir o caso sob o nº 12.034.
7. Em 27 de setembro de 1999, a Comissão aprovou o Relatório nº 89/99, mediante o qual declarou admissível o
caso e, em 18 de outubro de 1999, colocou-se à disposição das partes com o objetivo de alcançar uma solução
amistosa.
8. Em 5 de março de 2001, a Comissão, de acordo com o artigo 50 da Convenção, aprovou o Relatório nº 23/01,
mediante o qual recomendou ao Estado:
1. Reparar adequadamente os senhores Torres Benvenuto, Mujica Ruiz-Huidobro, Álvarez Hernández,
Bartra Vásquez, e os familiares do senhor Gamarra Ferreyra, nos termos do artigo 63 da Convenção
Americana, incluindo tanto o aspecto moral como o material, pelas violações de seus direitos
humanos e, em particular,
2. Pagar imediatamente aos senhores Torres Benvenuto, Mujica Ruiz-Huidobro, Álvarez Hernández,
Bartra Vásquez, e aos familiares do senhor Gamarra Ferreyra, a diferença no valor das aposentadorias
niveladas que foram deixadas de pagar a partir de novembro de 1992 até a presente data. Para
calcular esta diferença o Estado deverá tomar em conta o valor das aposentadorias que havia pago,
em comparação com o valor das aposentadorias que lhes deveria pagar, com base, como explicado
anteriormente, no direito adquirido das vítimas a receber uma pensão de aposentadoria nivelada
progressivamente à remuneração do titular em atividade da Superintendência de Bancos e Seguros
que tenha ocupado o mesmo posto, ou função análoga, à que desempenhavam os mencionados
senhores na data de sua aposentadoria.
3. Em seguida, pagar aos senhores Torres Benvenuto, Mujica Ruiz-Huidobro, Álvarez Hernández, Bartra
Vásquez, e aos familiares do senhor Gamarra Ferreyra uma aposentadoria nivelada, calculada de
acordo com os parâmetros com os quais vinha fazendo até agosto de 1992, isto é, de maneira nivelada
progressivamente à remuneração do titular em atividade da Superintendência de Bancos e Seguros
que tenha ocupado o mesmo posto, ou função análoga, à que desempenhavam os mencionados
senhores na data de sua aposentadoria.
4. Derrogar e fazer cessar, de maneira retroativa, os efeitos do artigo 5º do Decreto Lei nº 25.792, de 23
de outubro de 1992.
8
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
5. Realizar uma investigação completa, imparcial e efetiva dos fatos com o objetivo de estabelecer as
responsabilidades pelo descumprimento das mencionadas sentenças proferidas em 1994 pela Corte
Suprema de Justiça do Peru e em julho de 1998 pelo Tribunal Constitucional, e que pela via dos
processos penais, administrativos e de outra índole que venham a ser realizados, sejam aplicadas
aos responsáveis as sanções pertinentes, adequadas à gravidade das violações mencionadas.
9. Em 9 de março de 2001, a Comissão transmitiu o relatório anteriormente indicado ao Estado e concedeu um
prazo de dois meses para cumprir as recomendações realizadas. Em 31 de maio de 2001, o Estado solicitou
uma prorrogação de prazo de quatro meses, contada a partir desse mesmo dia, com o objetivo de cumprir
as recomendações formuladas; esta foi concedida. Em 14 de maio e em 10 e 27 de setembro de 2001, o
Estado informou à Comissão sobre as ações que estava efetuando com o propósito de cumprir as referidas
recomendações.
10. Em 1º de outubro de 2001, o Estado solicitou à Comissão uma nova prorrogação de dois meses para cumprir as
recomendações, a qual foi concedida no dia seguinte, contada a partir de 1º de outubro de 2001.
11. Mediante escrito de 11 de outubro de 2001, o CEDAL afirmou que incorporava o Centro pela Justiça e o Direito
Internacional (doravante denominado “CEJIL”) como co-peticionário neste caso.
12. Em 3 de dezembro de 2001, a Comissão decidiu submeter o caso à jurisdição da Corte.
IV
Procedimento perante a Corte
13. A Comissão apresentou a demanda perante a Corte em 4 de dezembro de 2001.
14. De acordo com o artigo 22 do Regulamento, a Comissão designou como delegados os senhores Hélio Bicudo
e Santiago Cantón, e como assessores jurídicos os senhores Ignacio Álvarez e Ariel Dulitzky. Assim mesmo,
de acordo com o artigo 33 do Regulamento, a Comissão indicou o nome e o endereço das supostas vítimas e
informou que estas seriam representadas pelo senhor Javier Mujica Petit, do CEDAL, e pela senhora María Clara
Galvis, do CEJIL.
15. Em 11 de janeiro de 2002, a Secretaria da Corte (doravante denominada “a Secretaria”), seguindo instruções
do Presidente da Corte (doravante denominado “o Presidente”), e de acordo com o artigo 34 do Regulamento,
solicitou à Comissão que remetesse, no prazo de 20 dias, determinados anexos da demanda que se encontravam
incompletos ou ilegíveis. Em 4 de fevereiro de 2002, a Comissão apresentou os anexos indicados.
16. Em 17 de janeiro de 2002, a Secretaria, depois de um exame preliminar da demanda realizado pelo Presidente,
a notificou ao Estado juntamente com seus anexos, e lhe informou sobre os prazos para contestá-la e nomear
sua representação no processo. Ademais, nesse mesmo dia a Secretaria, seguindo instruções do Presidente e
de acordo com o disposto no artigo 18 do Regulamento e no artigo 10 do Estatuto da Corte, informou ao Estado
sobre seu direito a designar um juiz ad hoc para que participasse na consideração do presente caso. Igualmente,
nessa mesma data, de acordo com o disposto nos artigos 35.4 e 35.1.e) do Regulamento, a demanda foi
notificada aos representantes das supostas vítimas e seus familiares, CEDAL e CEJIL, nas pessoas de Javier
Mujica Petit e María Clara Galvis, respectivamente, para que apresentassem o escrito de petições, argumentos
e provas. Finalmente, de acordo com o artigo 35.1.d) do Regulamento, a demanda foi notificada ao primeiro
peticionário, senhor Francisco Soberón, Diretor Geral da Associação Pró Direitos Humanos (APRODEH).
17. Em 14 de fevereiro de 2002, o Estado apresentou uma comunicação, mediante a qual informou que havia
designado o senhor Javier de Belaunde López de Romaña como Juiz ad hoc e o senhor Fernando Elías Mantero
como Agente.
18. Em 14 de fevereiro de 2002, os representantes das supostas vítimas e seus familiares remeteram um escrito, no
qual solicitaram uma prorrogação de 20 dias para a apresentação do escrito de petições, argumentos e provas
(art. 35.4 do Regulamento). No dia seguinte, a Secretaria, seguindo instruções do Presidente, informou aos
representantes que a prorrogação de prazo havia sido concedida até 4 de março de 2002.
19. Em 1º de março de 2002, a Secretaria, seguindo instruções do Presidente, informou às partes que havia procedido
a mudar o nome do caso “Torres Benvenuto e outros” para “Cinco Aposentados”.
20. Em 5 de março de 2002, os representantes das supostas vítimas e seus familiares remeteram, via fax, o escrito
9
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
de petições, argumentos e provas. Do mesmo modo, no dia 8 de março do mesmo ano, apresentaram o escrito
original, ao qual incorporaram seus anexos, exceto o primeiro e o quinto.
21. Em 15 de março de 2002, o Peru apresentou seu escrito de contestação à demanda, e em 18 de abril de 2002
remeteu os anexos correspondentes a este escrito. Entretanto, algumas folhas dos anexos 8 e 9 da mencionada
contestação se encontravam ilegíveis.
22. Em 20 de março de 2002, a Secretaria transmitiu o escrito de petições, argumentos e provas ao Estado e à
Comissão e indicou que quando os anexos pendentes (par. 20 supra) fossem recebidos na Secretaria, seriam
então transmitidos às outras partes. Ademais, seguindo instruções do Presidente, foi concedido um prazo
improrrogável de 30 dias para que apresentassem as observações que considerassem pertinentes.
23. Em 18 de abril de 2002, a Secretaria remeteu a contestação da demanda à Comissão, aos representantes das
supostas vítimas e seus familiares e ao peticionário original, e lhes indicou que quando as folhas pendentes (par.
21 supra) fossem recebidas na Secretaria, lhes seriam transmitidas.
24. Em 22 de abril de 2002, o Estado apresentou suas observações ao escrito de petições, argumentos e provas
apresentado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares. Posteriormente, no dia 30 de abril de
2002, o Peru apresentou o escrito original com seus respectivos anexos.
25. Em 22 de abril de 2002, os representantes das supostas vítimas e seus familiares apresentaram cópia das
procurações no processo perante a Corte, outorgadas pelos senhores Carlos Torres Benvenuto, Javier Mujica
Ruiz-Huidobro, Guillermo Álvarez Hernández, Reymert Bartra Vásquez e Sara Castro, viúva do senhor Gamarra,
a favor de Viviana Krsticevic, Javier Mujica Petit e María Clara Galvis.
26. Em 22 de abril de 2002, a Comissão remeteu suas observações ao escrito de petições, argumentos e provas dos
representantes das supostas vítimas e seus familiares. Assim mesmo, a Comissão informou que a Comissária
Marta Altolaguirre também atuaria como delegada no presente caso, e assinalou que recebeu informação segundo
a qual o Estado havia “derrogado os efeitos do artigo 5º do Decreto Lei nº 25.792” e havia dado cumprimento
ao ordenado nas sentenças proferidas pela Corte Suprema de Justiça e pelo Tribunal Constitucional do Peru, e
acrescentou que “[e]ste cumprimento [era] um dos pontos fundamentais do objeto da […] demanda”.
27. Em 3 de maio de 2002, o CEDAL apresentou um escrito mediante o qual solicitou a substituição do testemunho
do senhor Jorge Santistevan de Noriega pela declaração testemunhal do senhor Walter Albán Peralta; remeteu
cópia do anexo quinto do escrito de petições, argumentos e provas, o qual havia sido solicitado pela Secretaria
por encontrar-se ilegível (par. 20 supra), e anexou as procurações originais outorgadas pelas supostas vítimas
a favor de Viviana Krsticevic, Javier Mujica Petit e María Clara Galvis (par. 25 supra). Seguindo instruções do
Presidente, em 6 de maio de 2002, a Secretaria informou ao Estado e à Comissão que lhes concedia um prazo até
24 de maio de 2002 para que formulassem as observações que considerassem pertinentes em relação ao pedido
de substituição da testemunha Jorge Santistevan de Noriega.
28. Em 21 de maio de 2002, a Comissão, de acordo com o artigo 36.4 do Regulamento, apresentou um escrito de
alegações “sobre a eventual exceção preliminar que poderia ser considerada como interposta pelo Ilustre Estado
do Peru […] em seu escrito de contestação à demanda”. Neste mesmo dia os representantes das supostas
vítimas e seus familiares apresentaram um escrito sobre esse mesmo assunto. Em 28 de maio de 2002, os
representantes das supostas vítimas e seus familiares remeteram o escrito original, ao qual incorporaram o
anexo indicado neste documento.
29. Em 22 de maio de 2002, o Estado apresentou suas observações sobre o pedido de substituição da testemunha
Jorge Santistevan de Noriega (par. 27 supra) e sobre as procurações apresentadas pelos representantes das
supostas vítimas e seus familiares (pars. 25 e 27 supra), nas quais afirmou certas irregularidades. Neste mesmo
dia o Peru apresentou outro escrito, por meio do qual se referiu à informação exposta pela Comissão (par. 26
supra) em relação ao cumprimento das sentenças proferidas pela Corte Suprema de Justiça e pelo Tribunal
Constitucional do Peru e a derrogação do artigo 5º do Decreto-Lei nº 25.792. Em 1º de julho de 2002, o Peru
apresentou as versões originais dos escritos anteriores.
30. Em 24 de maio de 2002, a Secretaria concedeu ao Estado um prazo de 30 dias para que, em atenção ao solicitado
pela Comissão em seu escrito de demanda, apresentasse informação sobre o valor da pensão mensal que
havia pago aos senhores Carlos Torres Benvenuto, Javier Mujica Ruiz-Huidobro, Guillermo Álvarez Hernández,
Reymert Bartra Vásquez e Maximiliano Gamarra Ferreyra, ou a seus familiares, a partir de novembro de 1992; e
o valor do salário recebido, a partir de novembro de 1992, pelas pessoas que ocupavam os seguintes cargos, ou
10
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
cargos com funções similares, na Superintendência de Bancos e Seguros (doravante denominada “a SBS” ou “a
Superintendência”):
a) Diretor Geral de Comunicações (último cargo ocupado na SBS pelo senhor Carlos Torres Benvenuto);
b) Gerente Geral de Créditos da Superintendência de Bancos e Seguros (último cargo ocupado na SBS
pelo senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro);
c) Assessor Administrativo da Alta Diretoria (último cargo ocupado na SBS pelo senhor Guillermo
Álvarez Hernández);
d) Assessor Técnico da Superintendência Adjunta de Entidades Especializadas em Seguros (último
cargo ocupado na SBS pelo senhor Reymert Bartra Vásquez); e
e) Superintendente de Bancos e Seguros (último cargo ocupado na SBS pelo senhor Maximiliano
Gamarra Ferreyra).
31. Em 24 de maio de 2002, a Secretaria, seguindo instruções do Presidente, solicitou aos representantes das
supostas vítimas e seus familiares que esclarecessem a informação do Estado em relação às procurações
outorgadas pelos senhores Javier Mujica Ruiz-Huidobro, Carlos Torres Benvenuto e Reymert Bartra Vásquez
perante o notário Alfredo Aparicio Valdez (pars. 25, 27 e 29 supra).
32. Em 3 de junho de 2002, o Estado apresentou os documentos correspondentes aos anexos 8 e 9 do escrito de
contestação à demanda (par. 21 supra).
33. Em 14 de junho de 2002, os representantes das supostas vítimas e seus familiares apresentaram um escrito
no qual informaram sobre a situação das procurações outorgadas pelos senhores Javier Mujica Ruiz-Huidobro,
Carlos Torres Benvenuto e Reymert Bartra Vásquez perante o notário Alfredo Aparicio Valdez (pars. 25, 27, 29
e 31 supra). Além disso, apresentaram as procurações originais de representação no processo perante a Corte
conferidas em 3 e 4 de junho de 2002 pelos senhores Javier Mujica Ruiz-Huidobro e Reymert Bartra Vásquez a
favor de Viviana Krsticevic, Javier Mujica Petit e María Clara Galvis.
34. Em 1º de julho de 2002, o Peru apresentou um escrito, mediante o qual remeteu parte da informação solicitada
pela Secretaria (par. 30 supra) em relação aos salários recebidos pelas pessoas que haviam ocupado cargos
ou funções similares aos ocupados pelas supostas vítimas na SBS. Posteriormente, em 17 de julho de 2002, o
Estado apresentou documentos relativos à informação solicitada pela Secretaria (par. 30 supra) em relação ao
valor da pensão mensal que havia pago às supostas vítimas ou a seus familiares a partir de novembro de 1992 e
em relação aos valores dos salários pagos às pessoas que haviam ocupado cargos ou funções similares aos que
as supostas vítimas ocuparam na SBS.
35. Em 2 de julho de 2002, o senhor Carlos Torres Benvenuto apresentou cópia da procuração no processo perante
a Corte, por ele conferida em 14 de junho de 2002 a favor de Viviana Krsticevic, Javier Mujica Petit e María Clara
Galvis.
36. Em 8 de julho de 2002, a Comissão remeteu a lista definitiva das testemunhas e peritos oferecidos para a
celebração da audiência pública sobre o mérito e as eventuais reparações neste caso. No dia seguinte os
representantes das supostas vítimas e seus familiares remeteram sua lista definitiva, e fizeram suas as provas
testemunhais e periciais oferecidas na demanda da Comissão.
37. Em 16 de julho de 2002, o Presidente emitiu uma Resolução mediante a qual rejeitou as objeções expostas pelo
Estado sobre a prova testemunhal e pericial e admitiu as declarações testemunhais e periciais oferecidas pela
Comissão e pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares. Além disso, convocou as partes a uma
audiência pública que seria celebrada na sede da Corte, a partir das 10:00 horas do dia 3 de setembro de 2002,
para receber seus argumentos sobre as eventuais exceções preliminares, o mérito e as eventuais reparações,
bem como as declarações das testemunhas e peritos propostos pela Comissão e pelos representantes das
supostas vítimas e seus familiares.
38. Em 22 de julho de 2002, os representantes das supostas vítimas e seus familiares apresentaram um escrito
informando sobre o “estado atual do caso”. Posteriormente, em 21 de agosto de 2002, remeteram os anexos
indicados neste escrito.
39. Em 1 e 5 de agosto de 2002, a Secretaria, seguindo instruções do Presidente e de acordo com o artigo 44
do Regulamento, solicitou aos representantes das supostas vítimas e seus familiares que apresentassem os
seguintes documentos: cópia da proposta de solução amistosa apresentada por eles à Secretaria Executiva do
11
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Conselho Nacional de Direitos Humanos do Ministério de Justiça do Peru; cópia da resolução da Defensoria do
Povo do Peru nº 026-97/DP, e cópia do amicus curiae apresentado pela Defensoria do Povo durante a tramitação
do caso perante a Comissão. Para a apresentação dos referidos documentos foi concedido um prazo até 16 de
agosto de 2002.
40. Em 9 de agosto de 2002, a senhora Delia Revoredo Marsano de Mur, convocada pelo Presidente da Corte para
apresentar um parecer pericial na audiência pública (par. 37 supra), informou que por motivos laborais não
poderia comparecer à mencionada audiência.
41. Em 21 de agosto de 2002, os representantes das supostas vítimas e seus familiares apresentaram um escrito
ao qual anexaram, inter alia, os documentos requeridos pela Secretaria em 1º e 5 de agosto de 2002 (par. 39
supra), e o documento intitulado “Constância” da 5ª Promotoria Provincial Penal de Lima, referente ao caso
506010105-2002-7-0, a qual indica como acusado o senhor Oscar Oitoa Rivera, pelo delito de falsificação
documental e como vítima o senhor Martín Gregorio Oré Guerrero, com o fim de provar que “perante esta
dependência se tramita uma investigação referente à falsificação das assinaturas” das procurações de três das
supostas vítimas.
42. Em 21 de agosto de 2002, os representantes das supostas vítimas e seus familiares enviaram um escrito,
mediante o qual solicitaram à Corte que autorizasse que o senhor Walter Albán Peralta participasse na audiência
pública na qualidade de perito e não de testemunha. A Secretaria, mediante nota de 22 de agosto de 2002,
requereu que apresentassem o curriculum vitae do senhor Walter Albán Peralta com o propósito de que a Corte
pudesse resolver o pedido apresentado. Em 23 de agosto de 2002, os representantes das supostas vítimas e
seus familiares apresentaram o curriculum vitae indicado.
43. Em 23 de agosto de 2002, a Secretaria, seguindo instruções do Presidente, concedeu prazo até 27 de agosto
de 2002 para que a Comissão e o Estado apresentassem suas observações ao pedido dos representantes das
supostas vítimas e seus familiares indicado no parágrafo anterior.
44. Em 27 de agosto de 2002, o Estado apresentou um escrito, mediante o qual formulou sua oposição ao pedido
dos representantes das supostas vítimas e seus familiares de considerar a declaração do senhor Walter Albán
Peralta como prova pericial e não como prova testemunhal. Nesse mesmo escrito, o Peru comunicou que, de
acordo com o disposto no artigo 21.1 do Regulamento, havia designado o senhor Mario Pasco Cosmópolis como
Agente Assistente no presente caso. No dia seguinte, a Comissão enviou um escrito através do qual comunicou
que não tinha objeção ao pedido dos representantes antes indicado.
45. Em 27 e 28 de agosto de 2002, os representantes das supostas vítimas e seus familiares informaram que o
senhor Walter Albán Peralta não poderia participar na audiência pública e, em seu lugar, solicitaram que fosse
convocado, na qualidade de perito, o senhor Daniel Soria Luján, para o que apresentaram seu curriculum vitae.
46. Em 29 de agosto de 2002, a Secretaria, seguindo instruções do Pleno da Corte, informou às partes que o Tribunal
havia rechaçado o pedido dos representantes das supostas vítimas e seus familiares de que o senhor Daniel Soria
Luján fosse convocado a prestar declaração pericial na audiência pública.
47. Em 30 de agosto de 2002, o senhor Carlos Rafael Urquilla Bonilla, representante da organização Direitos Humanos
nas Américas, apresentou um escrito em qualidade de amicus curiae.
48. Em 2 de setembro de 2002, o Estado apresentou um escrito no qual se referiu à alegação de falta de esgotamento
dos recursos internos exposta na contestação da demanda. A este respeito, afirmou que “no presente caso
qualquer questionamento à procedência da demanda por não ter sido esgotada a via indicada na jurisdição
interna do Peru deve ser resolvida conjuntamente com a sentença e com vista da totalidade dos elementos
probatórios apresentados pelas partes”.
49. Nesse mesmo dia o Peru apresentou um escrito no qual expôs suas considerações sobre a proposta de solução
amistosa apresentada pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares perante a Secretaria Executiva
do Conselho Nacional de Direitos Humanos do Ministério de Justiça do Peru e sobre o amicus curiae apresentado
pela Defensoria do Povo durante a tramitação do caso perante a Comissão (pars. 39 e 41 supra).
50. Nos dias 3 e 4 de setembro de 2002, a Corte recebeu, em audiência pública sobre o mérito e as eventuais
reparações, as declarações das testemunhas e o parecer do perito, propostos pela Comissão e pelos
representantes das supostas vítimas e seus familiares, respectivamente. A Corte também escutou as alegações
finais orais das partes.
12
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
Compareceram perante a Corte:
pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos:
Marta Altolaguirre, Delegada; e
Ignacio Álvarez, Assessor.
pelas supostas vítimas e seus familiares:
María Clara Galvis Patiño, Advogada do CEJIL; e
Javier Mujica Petit, Representante do CEDAL.
pelo Estado do Peru:
Fernando Elías Mantero, Agente; e
Mario Pasco Cosmópolis, Agente Assistente.
Testemunhas propostas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos:
Carlos Torres Benvenuto; e
Guillermo Álvarez Hernández.
Perito proposto pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares:
Máximo Jesús Atauje Montes.
51. Durante a audiência pública sobre o mérito e as eventuais reparações o Presidente concedeu às partes o prazo
de 30 dias para que apresentassem suas alegações finais escritas.
52. Em 3 de setembro 2002, durante a audiência pública sobre o mérito e as eventuais reparações, o senhor Máximo
Jesús Atauje Montes também apresentou seu relatório pericial por escrito.
53. Em 4 de setembro de 2002, durante a exposição das alegações finais das partes na audiência pública sobre o
mérito e as eventuais reparações, os representantes das supostas vítimas e seus familiares apresentaram um
documento intitulado “A previdência social e os sistemas de pensões no Peru”.
54. Em 5 de setembro de 2002, os representantes das supostas vítimas e seus familiares apresentaram alguns
documentos que haviam oferecido durante a audiência pública sobre o mérito e as eventuais reparações.
55. Em 2 de outubro de 2002, os representantes das supostas vítimas e seus familiares solicitaram uma prorrogação
de 30 dias para a apresentação de suas alegações finais escritas. Nesse mesmo dia a Secretaria informou às
partes que, seguindo instruções do Presidente, o prazo que havia sido concedido era improrrogável até 30 de
outubro de 2002 para que os representantes das supostas vítimas e seus familiares, a Comissão e o Estado
apresentassem suas alegações finais escritas.
56. Em 3 de outubro de 2002, o senhor Juan Álvarez Vita, proposto pela Comissão para prestar declaração pericial na
audiência pública sobre o mérito e as eventuais reparações,1 enviou uma comunicação eletrônica, mediante a qual
apresentou seu relatório pericial escrito sobre este caso. No dia seguinte, a Comissão enviou uma comunicação
à qual anexou cópia do relatório pericial escrito do senhor Álvarez Vita. Em 25 de outubro de 2002, o senhor
Álvarez Vita remeteu o original do referido relatório pericial escrito.
57. Em 25 de outubro de 2002, a Comissão apresentou suas alegações finais escritas.
58. Em 29 de outubro de 2002, o Peru remeteu suas alegações finais escritas, juntamente com seus anexos. Nesse
mesmo dia o Estado também apresentou um documento intitulado “Explicação dos regimes trabalhistas e de
aposentadoria que se aplicam na República do Peru e análise específica da situação de cada um dos aposentados”,
ao qual incorporou um anexo.
59. Em 30 de outubro de 2002, os representantes das supostas vítimas e seus familiares remeteram suas alegações
finais escritas. Em 6 de novembro de 2002 apresentaram os anexos a este escrito.
1. O senhor Juan Álvarez Vita não prestou declaração pericial na audiência pública celebrada nos dias 3 e 4 de setembro de 2002, devido a
que a Comissão Interamericana desistiu de apresentar de maneira oral a sua perícia. A Corte aprovou que, em seu lugar, fosse apresentado o
relatório deste perito de forma escrita.
13
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
60. Em 7 de novembro de 2002, o Estado remeteu um escrito no qual fez referência à perícia apresentada pelo senhor
Máximo Jesús Atauje Montes no caso.
61. Em 18 de novembro de 2002, os senhores Víctor Abramovich, Julieta Rossi, Andrea Pochak e Jimena Garrote,
todos eles do Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), e Christian Courtis, professor da Faculdade de Direito
da Universidade de Buenos Aires, apresentaram um escrito em qualidade de amicus curiae.
62. Em 24 de fevereiro de 2003, o Estado apresentou um escrito extemporaneamente.
V
A Prova
63. Antes do exame das provas recebidas, a Corte realizará, à luz do estabelecido nos artigos 43 e 44 do Regulamento,
algumas considerações aplicáveis ao caso específico, a maioria das quais foram desenvolvidas na própria
jurisprudência do Tribunal.
64. Em primeiro lugar, é importante indicar que em matéria probatória rege o princípio do contraditório, no qual se
respeita o direito de defesa das partes, sendo este princípio um dos fundamentos do artigo 43 do Regulamento,
no que se refere à oportunidade em que se deve oferecer a prova com o fim de que exista igualdade entre as
partes.2
65. Ademais, a Corte indicou anteriormente, quanto à recepção e à apreciação da prova, que os procedimentos
seguidos ante si não estão sujeitos às mesmas formalidades dos atos judiciais internos e que a incorporação de
determinados elementos ao acervo probatório deve ser efetuada prestando particular atenção às circunstâncias
do caso concreto, e tendo presentes os limites traçados pelo respeito à segurança jurídica e ao equilíbrio
processual das partes.3 Assim mesmo, a Corte teve em conta que a jurisprudência internacional, ao considerar
que os tribunais internacionais têm a possibilidade de apreciar e avaliar as provas segundo as regras da crítica
sã, sempre evitou adotar uma determinação rígida do quantum da prova necessária para fundamentar uma
decisão.4 Este critério é especialmente válido em relação aos tribunais internacionais de direitos humanos, os
quais dispõem, para efeitos da determinação da responsabilidade internacional de um Estado por violação de
direitos da pessoa, de uma ampla flexibilidade na apreciação da prova oferecida perante eles sobre os fatos
pertinentes, de acordo com as regras da lógica e com base na experiência.5
66. Com base nisso, a Corte procederá a examinar e avaliar o conjunto dos elementos que conformam o acervo
probatório deste caso, segundo a regra da crítica sã, dentro do marco jurídico em estudo.
A) Prova Documental
67. Ao apresentar seu escrito de demanda (pars. 1 e 13 supra), a Comissão incorporou como prova 69 anexos que
continham 87 documentos.6
68. Os representantes das supostas vítimas e seus familiares anexaram ao escrito de petições, argumentos e provas
(pars. 20, 25 e 27 supra) sete anexos que continham 13 documentos.7
69. O Estado, por sua vez, anexou como prova a seu escrito de contestação à demanda (pars. 21 e 32 supra) 60
documentos contidos em nove anexos.8
2. Cf. Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni. Sentença de 31 de agosto de 2001. Série C Nº 79, par. 86.
3. Cf. Caso Cantos. Sentença de 28 de novembro de 2002. Série C Nº 97, par. 27; Caso Las Palmeras. Reparações (art. 63.1 Convenção
Americana sobre Direitos Humanos). Sentença de 26 de novembro de 2002. Série C Nº 96, par. 18; e Caso do Caracazo. Reparações (art. 63.1
Convenção Americana sobre Direitos Humanos). Sentença de 29 de agosto de 2002. Série C Nº 95, par. 38.
4. Cf. Caso Cantos, nota 3 supra; Caso do Caracazo. Reparações, nota 3 supra; Caso Hilaire, Constantine e Benjamin e outros. Sentença de 21
de junho de 2002. Série C Nº 94, par. 65; e Caso Trujillo Oroza. Reparações (art. 63.1 Convenção Americana sobre Direitos Humanos). Sentença
de 27 de fevereiro de 2002. Série C Nº 92, par. 37.
5. Cf. Caso Cantos, nota 3 supra; Caso do Caracazo. Reparações, nota 3 supra, par. 39; e Caso Trujillo Oroza. Reparações, nota 4 supra, par. 38.
6. Cf. anexos 1 a 69 do escrito de demanda apresentado pela Comissão em 4 de dezembro de 2001 (folhas 1 a 356 do expediente de anexos
à demanda).
7. Cf. anexos 2 a 7 do escrito de 5 de março de 2002 de petições, argumentos e provas dos representantes das supostas vítimas e seus
familiares, apresentados em 8 de março de 2002 (folhas 216 a 255 do tomo I do expediente sobre o mérito e as eventuais reparações); anexo
1 do referido escrito apresentado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares em 22 de abril de 2002 (folhas 530 a 535 do
tomo III do expediente sobre o mérito e as eventuais reparações); e uma cópia mais legível do anexo 5 apresentada pelos representantes das
supostas vítimas e seus familiares em 3 de maio de 2002 (folio 576 bis do tomo III do expediente sobre o mérito e as eventuais reparações).
8. Cf. anexos 1 a 7 do escrito de contestação à demanda de 15 de março de 2002, apresentados pelo Estado em 18 de abril de 2002 (folhas
14
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
70. Ao apresentar suas observações ao escrito de petições, argumentos e provas dos representantes das supostas
vítimas e seus familiares (par. 24 supra) o Estado remeteu seis documentos.9
71. Os representantes das supostas vítimas e seus familiares anexaram ao escrito de alegações em relação a uma
eventual exceção preliminar apresentada pelo Estado na contestação à demanda (pars. 21 e 28), dois documentos
contidos em um anexo.10
72. Ao apresentar seu escrito de observações sobre as procurações apresentadas pelos representantes das
supostas vítimas e seus familiares (pars. 25, 27 e 29 supra) o Estado anexou dois documentos.11 Outrossim,
os representantes das supostas vítimas e seus familiares anexaram ao escrito de esclarecimento sobre as
procurações (par. 33 supra) dois anexos contendo 21 documentos.12 Em 2 de julho de 2002, o senhor Carlos
Torres Benvenuto remeteu cópia da procuração no processo perante a Corte.13
73. O Peru remeteu vários documentos (pars. 30 e 34 supra),14 como prova para melhor resolver, em relação aos
salários pagos às pessoas que haviam ocupado cargos ou funções similares aos que ocuparam as supostas
vítimas na SBS e sobre o valor da pensão mensal que havia pago às supostas vítimas ou seus familiares a partir
de novembro de 1992.
74. Os representantes das supostas vítimas e seus familiares apresentaram um escrito sobre o “estado atual do
caso” (par. 38 supra), ao qual anexaram 12 documentos contidos em seis anexos.15
75. Os representantes das supostas vítimas e seus familiares apresentaram como prova para melhor resolver (pars.
39 e 41 supra) três documentos16 e uma constância da Promotoria Provincial Penal de Lima com o objetivo de
provar que “perante esta dependência se tramita uma investigação referente à falsificação das assinaturas” das
procurações das supostas vítimas (par. 41 supra).17
76. Em 3 de setembro de 2002, durante a perícia oferecida na audiência pública (par. 52 supra), o perito Máximo
Jesús Atauje Montes também apresentou seu relatório pericial por escrito, o qual consta de 151 folhas, e ao qual
incorporou 10 documentos como anexos.18
77. Em 4 de setembro de 2002, durante a exposição das alegações finais das partes na audiência pública (par. 53
supra), os representantes das supostas vítimas e seus familiares apresentaram um documento intitulado “A
previdência social e os sistemas de aposentadorias no Peru”, o qual consta de 25 folhas.19
78. Os representantes das supostas vítimas e seus familiares apresentaram oito documentos, os quais haviam sido
oferecidos durante a audiência pública (par. 54 supra).20
79. O senhor Juan Álvarez Vita, proposto pela Comissão para prestar uma declaração pericial na audiência pública
sobre o mérito e as eventuais reparações (par. 56 supra), remeteu seu relatório pericial escrito sobre este caso.21
Outrossim, a Comissão remeteu, via fax, uma cópia do referido documento.22 Neste relatório se analisam os
direitos econômicos, sociais e culturais.
314 a 470 do tomo II do expediente sobre o mérito e as eventuais reparações) e anexos 8 e 9 do referido escrito apresentados em 3 de junho
de 2002 (folhas 649 a 667 do tomo III do expediente sobre o mérito e as eventuais reparações).
9. Cf. anexos 1 e 2 do escrito apresentado em 22 de abril de 2002 pelo Estado, em relação às suas observações ao escrito de petições,
argumentos e provas dos representantes das supostas vítimas e seus familiares, remetidos pelo Estado em 30 de abril de 2002 (folhas 558 a
571 do tomo III do expediente sobre o mérito e as eventuais reparações).
10. Cf. anexo 1 do escrito de 21 de maio de 2002 de alegações dos representantes das supostas vítimas e seus familiares em relação com uma
eventual exceção preliminar apresentada pelo Estado na contestação da demanda, apresentado em 28 de maio de 2002 (folhas 639 a 644 do
tomo III do expediente sobre o mérito e as eventuais reparações).
11. Cf. anexos 1 e 2 do escrito de 22 de maio de 2002 do Estado (folhas 614 e 615 do tomo III do expediente sobre o mérito e as eventuais
reparações).
12. Cf. anexos 1 e 2 do escrito apresentado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares em 14 de junho de 2002 (folhas 676
a 706 do tomo IV do expediente sobre o mérito e as eventuais reparações).
13. Cf. folhas 786 e 787 do tomo IV do expediente sobre o mérito e as eventuais reparações.
14. Cf. folhas 752 a 771 e 842 a 888 do tomo IV do expediente sobre o mérito e as eventuais reparações.
15. Cf. anexos 1 a 6 do escrito de 22 de julho de 2002 dos representantes das supostas vítimas e seus familiares, apresentados em 21 de
agosto de 2002 (folhas 959 a 995 do tomo IV do expediente sobre o mérito e as eventuais reparações).
16. Cf. folhas 936 a 956 do tomo IV do expediente sobre o mérito e as eventuais reparações.
17. Cf. folha 935 do tomo IV do expediente sobre o mérito e as eventuais reparações.
18. Cf. folhas 1108 a 1258 do tomo V do expediente sobre o mérito e as eventuais reparações.
19. Cf. folhas 1263 a 1287 do tomo V do expediente sobre o mérito e as eventuais reparações.
20. Cf. folhas 1292 a 1350 do tomo V do expediente sobre o mérito e as eventuais reparações.
21. Cf. folhas 1364 a 1406 do tomo VI do expediente sobre o mérito e as eventuais reparações.
22. Cf. folhas 1408 a 1449 do tomo VI do expediente sobre o mérito e as eventuais reparações.
15
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
80. Ao apresentar seu escrito de alegações finais (par. 58 supra) o Estado incorporou como prova dois anexos que
continham cinco documentos.23
81. O Estado apresentou (par. 58 supra) um documento intitulado “Explicação dos Regimes Trabalhistas e de
Aposentadoria que se aplicam na República do Peru e análise específica da situação de cada um dos aposentados”,
ao qual incorporou um anexo.24
82. Ao apresentarem seu escrito de alegações finais (par. 59 supra) os representantes das supostas vítimas e seus
familiares apresentaram como prova 11 anexos que continham 13 documentos.25
B) Prova Testemunhal e Pericial
83. Nos dias 3 e 4 de setembro de 2002, a Corte recebeu as declarações das testemunhas e o parecer do perito,
propostos, respectivamente, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pelos representantes das
supostas vítimas e seus familiares (par. 50 supra). A seguir, o Tribunal resume as partes relevantes destas
declarações.
a. Declaração de Carlos Torres Benvenuto, suposta vítima
Começou a trabalhar na SBS em janeiro de 1950 e deixou de trabalhar para esta instituição em 31 de dezembro
de 1986. Ocupava o cargo de Diretor Geral; no total, trabalhou 37 anos, 11 meses e 15 dias na SBS. Deixou
de trabalhar para a SBS porque tinha mais de 37 anos de serviço e por razões familiares.
Com sua pensão cobria os gastos de seu lar, a manutenção, alimentação, educação e saúde de toda sua família,
a qual está conformada por seus seis filhos, dos quais um deles ainda depende economicamente dele. Pensava
em continuar mantendo a sua família recebendo a pensão do regime do Decreto-Lei nº 20.530, o qual lhe
permite ter uma pensão conhecida no Peru como a “célula viva”, a qual consiste em receber o que ganha a
pessoa que desempenha esse cargo em atividade; isso significa uma aposentadoria nivelada. A testemunha
efetuou contribuições sobre seu salário para receber uma aposentadoria ao encerrar sua vida laboral. A SBS
criou um fundo de pensões no ano de 1943, com o qual eram cobertas as pensões dos trabalhadores dessa
instituição. Em 1982 a SBS mudou seu regime trabalhista, o qual naquele momento era público, e passou a um
regime privado. Entretanto, não houve modificação no regime trabalhista de todos os empregados; houve um
dispositivo que estipulava que os que quisessem aceitar a mudança, poderiam fazê-lo e os que não queriam
permaneceriam no regime vigente. Foi dada uma opção de mudar de regime ou de permanecer naquele do
Decreto-Lei nº 20.530. A testemunha permaneceu no regime antigo com um salário reduzido. Permanecer no
regime antigo significava conservar o direito de aposentadoria com a remuneração do pessoal ativo.
A SBS começou a realizar os pagamentos de sua pensão a partir do dia em que concluiu seu trabalho
na instituição, em 31 de dezembro de 1986. O valor que recebia variava a cada ano, de acordo com as
regulamentações feitas pela SBS. Os ajustes se realizavam quando aumentava o salário da pessoa que estava
em atividade no cargo que o funcionário exercia antes de se aposentar; este reajuste era feito uma ou duas
vezes por ano, segundo as necessidades econômicas que atravessava o país naqueles momentos. Essa
pensão era paga com o fundo de pensões da SBS. A pensão foi paga por seis anos e meio, até setembro de
1992, quando os pagamentos foram abruptamente cortados sem nenhum aviso, não houve comunicação
alguma a respeito, a SBS não realizou nenhum processo para diminuir as pensões, mas de forma abrupta
diminuiu a uma sexta parte a pensão que recebia. Ficou sabendo que a pensão havia diminuído quando foi
recebê-la em setembro de 1992; seu salário diminuiu a um valor bruto de S/. 504,00 (quinhentos e quatro
soles), menos os descontos do seguro e S/. 100,00 (cem soles) de serviços médicos, de maneira que o valor
líquido recebido era de S/. 308,00 (trezentos e oito soles), ao passo que em agosto daquele ano recebeu
S/. 2.450,00 (dois mil quatrocentos e cinquenta soles). Esta aposentadoria era sua principal e única renda.
Pensava que seu valor aumentaria já que, de acordo com seu regime de pensão, sua aposentadoria se
ajustaria a cada vez que fosse modificado o salário do funcionário ativo; jamais pensou que o valor recebido
de aposentadoria seria diminuído, já que isso “atropela” os direitos que os trabalhadores têm; não se pode
diminuir a aposentadoria.
23. Cf. anexos 1 e 2 do escrito de alegações finais do Estado apresentado em 29 de outubro de 2002 (folhas 1507 a 1530 do tomo VI do
expediente sobre o mérito e as eventuais reparações).
24. Cf. folhas 1552 a 1582 do tomo VI do expediente sobre o mérito e as eventuais reparações.
25. Cf. anexos 1 a 11 do escrito de 30 de outubro de 2002 dos representantes das supostas vítimas e seus familiares, apresentados em 6 de
novembro de 2002 (folhas 1643 a 1724 do tomo VI do expediente sobre o mérito e as eventuais reparações).
16
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
As consequências econômicas que lhe causou a redução de sua aposentadoria foram grandes, já que teve
de vender seu carro, pedir empréstimos a amigos e ao final teve até de vender sua casa e mudar-se a um
apartamento. Reduziu gastos, alimentos, medicamentos, colégio de seus filhos, foi uma situação catastrófica.
Com respeito aos colégios de seus filhos, nessa época, a aposentadoria que recebia era menor do que o valor
que pagava no Colégio San Agustín de Lima, Peru, que é o colégio onde se educaram seus filhos.
Esta situação não apenas o afetou economicamente, mas também nos aspectos psicológico e social.
Quanto às repercussões na saúde, a testemunha teve um infarto, e esteve internado dois meses e teve de
ser atendido em um hospital público do Peru porque o seguro médico que tinha havia sido cancelado pela
SBS. Nessa instituição ele contava com um seguro médico que pagava mensalmente um valor aproximado
de S/. 89,00 a S/. 100,00 (oitenta e nove a cem soles). Esse seguro deveria continuar enquanto recebesse a
aposentadoria, mas desgraçadamente foi impossibilitado disso também.
A partir da redução das pensões foram tentadas várias ações legais. Foram impetrados mandados de
segurança, os quais foram ganhos, mas a SBS não cumpriu o pagamento; foram interpostas ações penais,
devido a que a SBS emitiu resoluções que não cumpriu. Apelou-se ao Tribunal Constitucional, o qual decidiu a
seu favor; recorreu-se à Defensoria do Povo, a qual exigiu do Superintendente o cumprimento das sentenças,
mas este tampouco as cumpriu. Foi consultada a Ordem de Advogados se o que estava ocorrendo era
permitido e esta deu razão aos aposentados, inclusive o próprio Ministro de Economia e Finanças enviou uma
carta ao Superintendente, Dr. Porta Barrea, ordenando-o a cumprir as sentenças para evitar ações penais. A
testemunha falou diretamente com os diferentes Superintendentes, enviou cartas autenticadas para chegar
a um acordo, e ainda perdendo alguns direitos, mas tudo foi nulo. Também realizaram denúncias perante
a imprensa e fizeram manifestações ou “plantões” na entrada da SBS reclamando, mas não obtiveram
nenhuma resposta. Em 1992, iniciaram ações legais contra a SBS, a qual nesse momento era o organismo
encarregado do pagamento das aposentadorias. Poucos meses depois, em outubro de 1992, foi sancionado
o Decreto-Lei nº 25.792. A partir dessa data a SBS já não pagava as pensões. A testemunha e os demais
aposentados não “constavam” para o Tesouro Público, porque tinham seus ingressos provenientes do fundo
de pensões da SBS. Então, a partir de novembro de 1992, o Ministério de Economia e Finanças (doravante
“o MEF”) pagou as pensões até março do ano de 2002, quando foi derrogado o artigo quinto do mencionado
decreto-lei. As ações de garantia (ou mandados de segurança) foram propostas contra a SBS, que era a
entidade que devia pagar-lhes; o MEF não foi demandado no processo, já que houve um jogo entre este
Ministério e a SBS, pois a SBS dizia que de acordo com o artigo quinto do Decreto-Lei nº 25.792 o MEF devia
pagar-lhes a pensão, e este último alegava que o artigo quinto indicado não criava nenhuma obrigação de
pagamento em face dos aposentados da SBS, e que esta devia transferir os valores, com recursos próprios,
para atender o pagamento dos aposentados. A sentença do Tribunal Constitucional que resolveu a ação de
mandado de segurança e foi proferida com posterioridade ao ano de 1994, e a sentença da Corte Suprema de
Justiça, ordenaram que fossem restituídos os direitos dos aposentados pagando-lhes a pensão que vinham
recebendo de acordo com o Decreto-Lei nº 20.530. A testemunha nunca esteve incorporada ao regime da
iniciativa privada. Atualmente recebe uma aposentadoria nivelada aos salários de um trabalhador do regime
trabalhista privado.
Em março de 2002, a SBS emitiu resoluções nas quais anexou um pagamento, o qual os cinco aposentados
acataram, de modo que foram pagas as pensões devidas durante os 10 anos nos quais a SBS havia deixado
de pagar; com posterioridade a este fato a aposentadoria lhes foi paga mensalmente. Depois de uma luta de
dez anos, durante os quais houve tanta penúria, a testemunha afirmou que se sente um pouco confortado. O
valor que lhe foi pago como reembolso é de mais ou menos S/. 1.400.000,00 (um milhão e quatrocentos mil
soles), que convertendo em dólares seria de aproximadamente US$ 400.000,00 (quatrocentos mil dólares
dos Estados Unidos da América), quantia à qual não foram somados nenhum tipo de juros legais. Os salários
da SBS não aumentam os dos aposentados e, de acordo ao regime trabalhista do Decreto-Lei nº 20.530, a
testemunha deve receber o salário da pessoa que está em seu cargo, salário que chegaria a S/. 21.000,00
(vinte e um mil soles), o que representaria cerca de US$ 6.000,00 (seis mil dólares dos Estados Unidos da
América). Este pagamento está sujeito a uma condição que é mortificante para os aposentados, já que no
último parágrafo do artigo terceiro da resolução da SBS se diz que tudo isso está sujeito à decisão da Corte
Interamericana, o que quer dizer que ainda os estão ameaçando.
A testemunha pediu ao Tribunal que emitisse seu pronunciamento o mais rapidamente possível para poder
ter tranquilidade.
17
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
b. Declaração de Guillermo Álvarez Hernández, suposta vítima
Aposentou-se da SBS com 55 anos em 1984; o último cargo que ocupou foi o de Assessor Administrativo.
Até 1992, a SBS manteve o regime trabalhista público do Decreto nº 11.377 e do Decreto-Lei nº 20.530,
e então mudou de regime trabalhista, passando de um regime estatutário público a um regime de direito
trabalhista privado. Ao pessoal que vinha trabalhando sob o regime público foi dada a opção de permanecer
nesse regime, com suas remunerações e sua expectativa de aposentadoria, ou a opção de mudar de
regime trabalhista e passar ao regime privado. A testemunha e os demais aposentados supostas vítimas
permaneceram no regime do Decreto-Lei nº 20.530, o que significa que não mudaram de regime. Durante
os 36 anos trabalhados na SBS a testemunha contribuiu com o fundo de pensões. O percentual de salário
de contribuição variava entre 8%, 12% e 15% para os cargos mais altos da SBS. O cargo da testemunha
era um dos mais altos desta instituição. Enquanto ocupava seu cargo pensava que, quando se aposentasse,
se manteria com a pensão que lhe correspondia de acordo com a lei.
Desvinculou-se da SBS por razões de enfermidade e porque já tinha o tempo suficiente para se aposentar.
Depois da desvinculação da SBS, recebeu sua aposentadoria completa durante oito anos. Em 1984,
o valor aproximado de sua pensão era de S/. 2.400,00 (dois mil e quatrocentos soles) sem incluir as
gratificações, o que, em dólares, representava a quantia aproximada de US$ 1.400,00 (mil e quatrocentos
dólares dos Estados Unidos da América). Em setembro de 1992, ocorreu um corte bastante significativo,
o qual consistia em 80% da pensão. Este corte se efetuou de uma maneira arbitrária, sem que avisassem
nada aos aposentados e sem nenhuma base legal para fazê-lo. A testemunha tomou conhecimento da
redução quando foi retirar seu cheque e em lugar de receber os aproximadamente S/. 2.500,00 (dois
mil e quinhentos soles) que recebia, lhe entregaram um cheque de S/. 504,00 (quinhentos e quatro
soles). Em nenhum momento pensou que o valor destas pensões pudesse ser reduzido, já que na lei
de aposentadoria se estabelecia como deveriam ser niveladas. A Constituição Política estabelece que as
aposentadorias devem ser niveladas com os cargos que desempenham os funcionários de igual nível aos
aposentados e também há outras leis, tais como o Decreto-Lei nº 20.530 e a Lei 23.495 e seu regulamento,
que estabelecem as mesmas disposições a este respeito.
As ações legais interpostas para que o Estado efetivamente cumprisse o pagamento das pensões foram
várias: foi interposto um mandado de segurança (recurso de amparo) perante o Juízo de primeira instância,
que era um juízo de plantão naquele momento. Esta ação foi interposta contra a SBS e nunca se incorporou
o MEF, já que o Decreto-Lei nº 25.792 foi emitido com posterioridade à impetração do mandado de
segurança, e as leis posteriores não possuem caráter retroativo. Com este Decreto-Lei nº 25.792 começou
a receber sua pensão do MEF. Este mandado de segurança foi denegado, de maneira que apelaram à Corte
Superior onde deram a razão aos aposentados; posteriormente, a SBS apelou desta última decisão e a
Corte Suprema de Justiça, em 1994, lhes deu a razão e ordenou que a pensão devia ser paga integralmente
conforme a resolução que fixava essa soma, mas também assinalou que deviam nivelar as pensões; estas
sentenças não foram cumpridas. Foram realizadas outras ações através dos juizados provisórios, os quais
também lhes deram a razão. No ano 2000, o Tribunal Constitucional, ao resolver as ações de cumprimento,
deu razão aos aposentados e ordenou que fossem cumpridas as sentenças da Corte Suprema de Justiça
do Peru. O Estado não respondia em face do descumprimento das resoluções e os aposentados tentavam
buscar respostas, mas não as recebiam; mandaram cartas autenticadas ao Estado para tentar chegar a um
acordo, mas nunca conseguiram. Além destas ações, foram interpostas ações penais com o propósito de
que fossem cumpridas as sentenças da Corte Suprema de Justiça e, como consequência destas, a SBS
emitiu resoluções administrativas no caso dos cinco aposentados, ordenando que lhes reintegrassem a
pensão, mas estas resoluções em nenhum momento foram cumpridas.
Tudo isso causava à testemunha e à sua família um sentimento de impotência ao não poder obter resultado
algum. Seu grupo familiar se compõe de sua esposa e dois filhos, que atualmente possuem 40 e 32 anos.
Com a pensão, a testemunha efetuava os pagamentos de manutenção de sua casa, o estudo de seus
filhos, o seguro médico familiar e outros gastos e situações. Além da pensão, não tinha outra renda para
se manter porque na sua idade é difícil conseguir outra fonte de renda. A diminuição da pensão lhe trouxe
como consequência danos econômicos, psicológicos e morais. Sua família teve de reduzir o orçamento
mensal. Seu filho estudava na Universidade do Pacífico, que é uma universidade privada, e teve de mudar
para a Universidade Garcilazo de la Vega, que é uma universidade estatal. Ele e sua família sofreram
consequências emocionais por causa da diminuição na aposentadoria.
18
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
Diante das recomendações da Comissão e da derrogação do Decreto-Lei nº 25.792, o Estado chegou a pagar
aos cinco aposentados as quantias que lhes eram devidas pelos dez anos de redução da aposentadoria.
As sentenças não continham nenhum pagamento, este foi elaborado pela SBS. Os aposentados acataram
as quantias que lhes foram pagas, mas em um artigo das resoluções da SBS se diz que estes pagamentos
estão sujeitos à sentença da Corte Interamericana. Isto é uma ameaça de que poderia haver alguma
devolução dos valores.
O valor da pensão da testemunha, em dólares, atualmente é de aproximadamente US$ 3.500,00 (três
mil e quinhentos dólares dos Estados Unidos da América) sem incluir as gratificações, e recebeu como
reembolso pelos dez anos nos quais deixaram de lhe de pagar corretamente suas pensões e com as
nivelações correspondentes, aproximadamente US$ 350.000,00 (trezentos e cinquenta mil dólares dos
Estados Unidos da América) ou US$ 380.000,00 (trezentos e oitenta mil dólares dos Estados Unidos da
América). Esta pensão atualmente não está vinculada ao imposto de renda, mas está vinculada ao imposto
“previal”. O salário do funcionário ativo sim está vinculado ao imposto de renda.
Em uma entrevista recente na televisão, na qual lhe perguntaram se considerava justo que havendo tido
um salário de US$ 1.200,00 (mil e duzentos dólares dos Estados Unidos da América), sua pensão hoje
pudesse ser de US$ 3.600,00 (três mil e seiscentos dólares dos Estados Unidos da América) e que lhe
tivessem pago um reembolso de US$ 380.000,00 (trezentos e oitenta mil dólares dos Estados Unidos
da América), respondeu à entrevistadora que efetivamente “eram altas as pensões, eram altas as somas
recebidas, mas [que] lamentavelmente essa era a lei, o que estabelecia a lei”.
Agradeceria se o Tribunal se pronunciasse no sentido de eliminar o artigo que está incluído na resolução
administrativa da SBS de 2002 que se refere à decisão da Corte, para poder estar tranquilo.
c. Perícia de Máximo Jesús Atauje Montes, economista e perito judicial
O perito se referiu ao lucro cessante, ao dano emergente e aos juros legais que, em seu entender,
correspondem às supostas vítimas.
C) Apreciação da Prova
Apreciação de Prova Documental
84. Neste caso, como em outros,26 o Tribunal admite o valor probatório dos documentos apresentados pelas
partes em sua oportunidade processual ou como prova para melhor resolver, que não foram controvertidos
ou objetados, ou cuja autenticidade foi colocada em dúvida. Por outro lado, a Corte admite, de acordo com o
artigo 43 do Regulamento, a prova apresentada pelas partes em relação aos fatos supervenientes ocorridos
com posterioridade à apresentação da demanda.
Apreciação da Prova Testemunhal e Pericial
85. Em relação às declarações oferecidas por duas das supostas vítimas no presente caso (par. 50 supra), a
Corte as admite na medida em que concordem com o objeto do interrogatório proposto pela Comissão. A
esse respeito, este Tribunal considera que por tratar-se de supostas vítimas e terem um interesse direto neste
caso, suas manifestações não podem ser apreciadas isoladamente, mas dentro do conjunto das provas do
processo. Em matéria tanto de mérito como de reparações, as declarações das supostas vítimas são úteis na
medida em que podem proporcionar maior informação sobre as consequências das violações que podem ter
sido perpetradas.27
86. A respeito dos pareceres dos peritos oferecidos (pars. 50 e 56 supra), os quais não foram objetados nem
controvertidos, o Tribunal os admite e lhes concede valor probatório. Além disso, a Corte levou em conta as
observações formuladas pelo Estado, em 7 de novembro de 2002 (par. 60 supra), a respeito da perícia do
senhor Máximo Jesús Atauje Montes.
26. Cf. Caso Cantos, nota 3 supra, par. 41; Caso Las Palmeras. Reparações, nota 3 supra, par. 28; e Caso do Caracazo. Reparações, nota 3
supra, par. 57.
27. Cf. Caso Cantos, nota 3 supra, par. 42; Caso do Caracazo. Reparações, nota 3 supra, par. 59; e Caso Trujillo Oroza. Reparações, nota 4
supra, par. 52.
19
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
VI
Fatos Provados
87. Efetuado o exame dos documentos, das declarações das testemunhas, dos pareceres dos peritos, e das
manifestações da Comissão, dos representantes das supostas vítimas e seus familiares e do Estado, no
curso do presente processo, esta Corte considera provados os seguintes fatos:
88. Fatos Gerais
88.a) Em 26 de fevereiro de 1974, foi sancionado o Decreto-Lei nº 20.530, intitulado “Regime de Aposentadorias
e Compensações por Serviços Civis Prestados ao Estado não incluídos no Decreto-Lei 19.990”.28
88.b) As supostas vítimas trabalharam na SBS e se aposentaram depois de terem prestado mais de 20 anos
de serviços na Administração Pública.29 Os cinco aposentados começaram a trabalhar na Administração
Pública entre 1940 e 1964, e se aposentaram da SBS entre 1975 e 1990.30
88.c) Segundo estabelece a lei orgânica da SBS, emitida em 1981, esta entidade “é uma Instituição Pública
com personalidade jurídica de direito público, com autonomia funcional, administrativa e econômica”.
O pessoal da SBS se encontrava dentro de um regime trabalhista da atividade pública, até que nesta
lei orgânica de 1981 se dispôs que seu pessoal “se enc[ontraria] incluído no regime trabalhista
correspondente à atividade privada, exceto no caso dos trabalhadores incluídos no regime da Lei nº
11.377 e no de aposentadorias estabelecido pelo Decreto Lei 20.530, ou que, por sua própria escolha,
pod[iam] continuar neste regime”.31
88.d) As supostas vítimas escolheram continuar com o regime do Decreto-Lei nº 20.530.32 Conforme o referido
decreto-lei e suas normas conexas e complementares, o Estado reconheceu às supostas vítimas o
direito a uma aposentadoria nivelada progressivamente, de acordo com a remuneração “dos servidores
públicos em atividade nas respectivas categorias”, que ocuparam o mesmo posto ou função análoga à
que desempenhavam os aposentados no momento em que se aposentaram da SBS.33
88.e) As nivelações das aposentadorias das supostas vítimas se realizaram de maneira sucessiva e periódica,
“cada vez que se produzia um incremento por escala nas remunerações dos trabalhadores e funcionários
ativos da Superintendência de Bancos e Seguros”,34 desde o momento da aposentadoria de cada um
dos cinco aposentados até que, em abril de 1992, a SBS suspendeu o pagamento da pensão do senhor
Reymert Bartra Vásquez e, em setembro daquele mesmo ano, reduziu o valor da pensão dos senhores
28. Cf. Decreto-Lei nº 20.530 “Regime de Aposentadorias e Compensações por Serviços Civis Prestados ao Estado não Incluídos no DecretoLei nº 19.990” de 26 de fevereiro de 1974 (expediente de anexos à demanda, anexo 19, folhas 78 a 85).
29. Cf. resolução administrativa SBS nº 003-87 de 6 de janeiro de 1987, em relação ao senhor Carlos Torres Benvenuto (expediente de anexos
à demanda, anexo 10, folha 66); resolução administrativa SBS nº 376-83-EFC/97-10 de 2 de agosto de 1983, em relação ao senhor Javier
Mujica Ruiz-Huidobro (expediente de anexos à demanda, anexo 12, folha 68); resolução administrativa SBS nº 330-95 de 4 de maio de 1995,
em relação ao senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro (expediente de anexos à demanda, anexo 51, folhas 194 e 195); resolução administrativa
SBS nº 228-84 de 16 de agosto de 1984, em relação ao senhor Guillermo Álvarez Hernández (expediente de anexos à demanda, anexo 14,
folhas 70 e 71); resolução administrativa SBS nº 412-90 de 4 de julho de 1990, em relação ao senhor Reymert Bartra Vásquez (expediente de
anexos à demanda, anexo 16, folha 73); e resolução administrativa SBS nº 398-75-EF/97-10 de 21 de outubro de 1975, em relação ao senhor
Maximiliano Gamarra Ferreyra (expediente de anexos à demanda, anexo 18, folhas 76 e 77).
30. Cf. nota 29 supra.
31. Cf. Decreto Legislativo nº 197 “Lei Orgânica da Superintendência de Bancos e Seguros” de 12 de junho de 1981, publicado em julho de
1981 no Diário Oficial El Peruano, artigos 1 e 35 (expediente de anexos à demanda, anexo 9, folhas 60 a 65).
32. Cf. testemunho do senhor Carlos Torres Benvenuto prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; testemunho do senhor Guillermo
Álvarez Hernández prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; resolução administrativa SBS nº 003-87 de 6 de janeiro de 1987, em
relação ao senhor Carlos Torres Benvenuto (expediente de anexos à demanda, anexo 10, folha 66); resolução administrativa SBS nº 330-95
de 4 de maio de 1995, em relação ao senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro (expediente de anexos à demanda, anexo 51, folhas 194 e 195);
resolução administrativa SBS nº 228-84 de 16 de agosto de 1984, em relação ao senhor Guillermo Álvarez Hernández (expediente de anexos
à demanda, anexo 14, folhas 70 e 71); resolução administrativa SBS nº 412-90 de 4 de julho de 1990, em relação ao senhor Reymert Bartra
Vásquez (expediente de anexos à demanda, anexo 16, folha 73); e resolução administrativa SBS nº 398-75-EF/97-10 de 21 de outubro de 1975,
em relação ao senhor Maximiliano Gamarra Ferreyra (expediente de anexos à demanda, anexo 18, folhas 76 e 77).
33. Cf. Lei nº 23.495 “Nivelação Progressiva das Pensões dos Desempregados e dos Aposentados da Administração Pública não submetidos
ao Regime do Seguro Social ou a outros Regimes Especiais” de 19 de novembro de 1982 (expediente de anexos à demanda, anexo 21, folhas
133 e 134); e Decreto-Lei nº 20.530 “Regime de Aposentadorias e Compensações por Serviços Civis Prestados ao Estado não Incluídos no
Decreto-Lei nº 19.990” de 26 de fevereiro de 1974 (expediente de anexos à demanda, anexo 19, folhas 78 a 85).
34. Cf. resolução administrativa SBS nº 283-95 de 7 de abril de 1995, em relação ao senhor Carlos Torres Benvenuto (expediente de anexos
à demanda, anexo 50, folhas 192 e 193); resolução administrativa SBS nº 330-95 de 4 de maio de 1995, em relação ao senhor Javier Mujica
Ruiz-Huidobro (expediente de anexos à demanda, anexo 51, folhas 194 e 195); resolução administrativa SBS nº 331-95 de 4 de maio de 1995,
em relação ao senhor Guillermo Álvarez Hernández (expediente de anexos à demanda, anexo 52, folhas 196 a 198); resolução administrativa
SBS nº 332-95 de 4 de maio de 1995, em relação ao senhor Maximiliano Gamarra Ferreyra (expediente de anexos à demanda, anexo 53 folhas
199 a 201); e resolução administrativa SBS nº 254-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Reymert Bartra Vásquez (expediente
sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas
vítimas e seus familiares, folhas 991 a 994).
20
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
Carlos Torres Benvenuto, Javier Mujica Ruiz-Huidobro, Guillermo Álvarez Hernández e Maximiliano
Gamarra Ferreyra, em aproximadamente 78%, sem prévio aviso nem explicação alguma.35
88.f) Em 14 de outubro de 1992 foi promulgado o Decreto-Lei nº 25.792,36 o qual “Autoriza a Superintendência
de Bancos e Seguros-SBS a estabelecer um Programa de Incentivos para a Demissão Voluntária de
seus Funcionários” e, de acordo com o artigo 5º, “[t]ransfe[riu] ao Orçamento do Ministério de
Economia e Finanças a arrecadação das contribuições e a atenção das pensões, remunerações ou
similares que a Superintendência de Bancos e Seguros deveria pagar a seus aposentados, pensionistas
e desempregados incluídos no regime do Decreto Lei nº 20.530”. Outrossim, estipulou-se que “[e]stas
pensões, remunerações ou similares ter[iam] como referência, inclusive para sua homologação, as que
este Ministério paga a seus trabalhadores e funcionários, conforme o Decreto Legislativo No. 276” e,
acrescentou-se que “[e]m nenhum caso serão homologadas ou se referirão às remunerações pagas pela
Superintendência de Bancos e Seguros ao pessoal sujeito à atividade privada”.
88.g) A partir de novembro de 1992 e enquanto esteve vigente o Decreto-Lei nº 25.792, o MEF continuou
pagando às supostas vítimas uma pensão calculada nos termos desta norma.37
88.h) Cada uma das supostas vítimas interpôs um mandado de segurança contra a SBS e durante 1994 todos
foram declarados com mérito pela Sala de Direito Constitucional e Social da Corte Suprema de Justiça do
35. Cf. testemunho do senhor Carlos Torres Benvenuto prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; testemunho do senhor Guillermo
Álvarez Hernández prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; escrito do Diretor de Relações Trabalhistas da SBS de 20 de fevereiro
de 1992, mediante o qual se notifica ao senhor Carlos Torres Benvenuto a resolução administrativa SBS nº 050-92 (expediente de anexos à
demanda, anexo 23, folhas 138 e 139); planilha de pagamento da SBS de agosto a respeito do senhor Carlos Torres Benvenuto (expediente de
anexos à demanda, anexo 24, folha 140); planilha de pagamento da SBS de setembro de 1992, a respeito do senhor Carlos Torres Benvenuto
(expediente de anexos à demanda, anexo 32, folha 154); planilha de pagamento da SBS de outubro de 1992, a respeito do senhor Carlos Torres
Benvenuto (expediente de anexos à demanda, anexo 32, folha 155); escrito do Diretor Geral de Recursos Humanos da SBS de 10 de julho de
1990, mediante o qual se notifica ao senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro a resolução administrativa SBS nº 480-90 (expediente de anexos à
demanda, anexo 25, folhas 143 e 144); escrito do Diretor Geral de Recursos Humanos da SBS de 16 de agosto de 1990, mediante o qual se
notifica ao senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro a resolução administrativa SBS nº 583-90 (expediente de anexos à demanda, anexo 25, folha
144); escrito do Diretor Geral de Recursos Humanos da SBS de 14 de setembro de 1990, mediante o qual se notifica ao senhor Javier Mujica
Ruiz-Huidobro a resolução administrativa SBS nº 637-90 (expediente de anexos à demanda, anexo 25, folha 145); resolução administrativa
SBS nº 115-91 de 14 de março de 1991, em relação ao senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro (expediente de anexos à demanda, anexo 26, folhas
146 e 147); planilhas de pagamento da SBS de março e abril de 1992, a respeito do senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro (expediente de anexos
à demanda, anexo 25, folhas 141 e 142); planilha de pagamento da SBS de junho de 1992, a respeito do senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro
(expediente de anexos à demanda, anexo 27, folha 148); mandado de segurança de 6 de outubro de 1992 interposto pelo senhor Javier Mujica
Ruiz-Huidobro perante o Juiz de Primeira Instância Civil (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo II, anexo 8 do escrito de
contestação à demanda, folhas 343 a 358); escrito do Diretor de Relações Trabalhistas de 20 de fevereiro de 1992, mediante o qual se notifica
ao senhor Guillermo Álvarez Hernández a resolução administrativa SBS nº 050-92 (expediente de anexos à demanda, anexo 28, folhas 149 e
150); planilha de pagamento da SBS de junho de 1992, a respeito do senhor Guillermo Álvarez Hernández (expediente de anexos à demanda,
anexo 29, folha 151); planilha de pagamento da SBS de junho de 1992, a respeito do senhor Guillermo Álvarez Hernández (expediente de
anexos à demanda, anexo 29, folha 151); planilha de pagamento da SBS de julho de 1992, a respeito do senhor Guillermo Álvarez Hernández
(expediente de anexos à demanda, anexo 30, folha 152); planilha de pagamento da SBS de setembro de 1992, a respeito do senhor Guillermo
Álvarez Hernández (expediente de anexos à demanda, anexo 33, folha 156); mandado de segurança de 6 de outubro de 1992 interposto pelo
senhor Guillermo Álvarez Hernández perante o Juiz de Primeira Instância Civil (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo II,
anexo 8 do escrito de contestação à demanda, folhas 362 a 371); planilha de pagamento da SBS de fevereiro de 1992, a respeito do senhor
Reymert Bartra Vásquez (expediente de anexos à demanda, anexo 31, folha 153); mandado de segurança de 30 de junho de 1992 interposto
pelo senhor Reymert Bartra Vásquez em 1º de julho de 1992 ante o Vigésimo Sexto Juízo Civil (expediente de anexos à demanda, anexo 42,
folhas 173 a 175); planilha de pagamento do MEF de fevereiro de 1993, a respeito do senhor Reymert Bartra Vásquez (expediente de anexos
à demanda, anexo 34, folha 157); e mandado de segurança de 6 de outubro de 1992 interposto pelo senhor Maximiliano Gamarra Ferreyra
perante o Juiz de Primeira Instância Civil (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo II, anexo 8 do escrito de contestação à
demanda, folhas 372 a 381).
36. Cf. Decreto-Lei nº 25.792 “Autoriza a Superintendência de Bancos e Seguros-SBS- a estabelecer um Programa de Incentivos para a
Demissão Voluntária de seus Funcionários” de 14 de outubro de 1992 (expediente de anexos à demanda, anexo 35, folha 159).
37. Cf. testemunho do senhor Carlos Torres Benvenuto prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; testemunho do senhor Guillermo
Álvarez Hernández prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; planilha de pagamento do MEF de fevereiro de 1993, a respeito
do senhor Reymert Bartra Vásquez (expediente de anexos à demanda, anexo 34, folha 157); sentença do Tribunal Constitucional do Peru
emitida em 3 de agosto de 2000, em relação à ação de cumprimento interposta pelo senhor Carlos Torres Benvenuto (expediente de anexos
à demanda, anexo 54, folhas 202 a 205); resolução administrativa SBS nº 250-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Carlos
Torres Benvenuto (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos
representantes das supostas vítimas e seus familiares, folhas 975 a 978); resolução administrativa SBS nº 251-2002 de 12 de março de 2002,
em relação ao senhor Maximiliano Gamarra Ferreyra (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22
de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares, folhas 979 a 982); resolução administrativa SBS nº
252-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Guillermo Álvarez Hernández (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações,
tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares, folhas 983 a 986);
resolução administrativa SBS nº 253-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro (expediente sobre o
mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas
e seus familiares, folhas 987 a 990); e resolução administrativa SBS nº 254-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Reymert
Bartra Vásquez (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos
representantes das supostas vítimas e seus familiares, folhas 991 a 994).
21
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Peru por meio de sentenças definitivas.38 As sentenças foram publicadas no Diário Oficial El Peruano.39 Na
fase de execução de sentença os correspondentes Juízos Especializados Civis de Lima emitiram decisões
através das quais ordenaram à SBS e ao MEF que cumprissem o disposto nas sentenças definitivas que
declararam com mérito os mandados de segurança interpostos pelas supostas vítimas.40
88.i) A SBS apenas cumpriu a devolução às supostas vítimas das diferenças entre a pensão recebida e a que vinham
recebendo de forma nivelada, correspondente aos meses de abril a outubro de 1992 –no caso do senhor
Reymert Bartra Vásquez –e correspondente aos meses de setembro e outubro de 1992, no caso das outras
quatro supostas vítimas.41
88.j) Algumas das supostas vítimas apresentaram denúncias penais contra quem consideravam responsáveis pelo
descumprimento das sentenças.42
88.k) Em 1995, a SBS emitiu cinco resoluções com o propósito de que fosse cumprido o disposto nas sentenças
definitivas que decidiram os referidos mandados de segurança. Nestas resoluções, a SBS ordenou que fossem
niveladas as aposentadorias das supostas vítimas com base nas remunerações que recebiam os servidores
ativos da SBS da mesma categoria ou equivalente na oportunidade em que se deram os reajustes de salários,
bem como que fossem realizadas as devoluções correspondentes, de acordo com os cálculos dispostos nestas
resoluções.43 Outrossim, no artigo 2º destas resoluções se dispôs que as mesmas deveriam ser transmitidas
ao MEF “para os fins pertinentes”. Tais resoluções não foram cumpridas.44
38. Cf. sentença da Sala de Direito Constitucional e Social da Corte Suprema de Justiça emitida em 2 de maio de 1994, em relação ao mandado
de segurança interposto pelo senhor Carlos Torres Benvenuto contra a SBS (expediente de anexos à demanda, anexo 36, folha 160); sentença
da Sala de Direito Constitucional e Social da Corte Suprema de Justiça emitida em 1º de setembro de 1994, em relação ao mandado de
segurança interposto pelo senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro contra a SBS (expediente de anexos à demanda, anexo 38, folha 165); sentença
da Sala de Direito Constitucional e Social da Corte Suprema de Justiça emitida em 19 de setembro de 1994, publicada no Diário Oficial El
Peruano de 25 de julho de 1995, em relação ao mandado de segurança interposto pelo senhor Guillermo Álvarez Hernández (expediente de
anexos à demanda, anexo 41, folha 172), sentença da Sala de Direito Constitucional e Social da Corte Suprema de Justiça emitida em 28
de junho de 1994, publicada no Diário Oficial El Peruano de 14 de setembro de 1994, em relação ao mandado de segurança interposto pelo
senhor Reymert Bartra Vásquez (expediente de anexos à demanda, anexo 46, folhas 183 e 184); e sentença da Sala de Direito Constitucional e
Social da Corte Suprema de Justiça emitida em 10 de outubro de 1994, publicada no Diário Oficial El Peruano de 2 de dezembro de 1994, em
relação ao mandado de segurança interposto pelo senhor Maximiliano Gamarra Ferreyra (expediente de anexos à demanda, anexo 48, folhas
187 e 188).
39. Cf. sentença da Sala de Direito Constitucional e Social da Corte Suprema de Justiça emitida em 19 de setembro de 1994, publicada no
Diário Oficial El Peruano de 25 de julho de 1995, em relação ao mandado de segurança interposto pelo senhor Guillermo Álvarez Hernández
(expediente de anexos à demanda, anexo 41, folha 172); sentença da Sala de Direito Constitucional e Social da Corte Suprema de Justiça
emitida em 28 de junho de 1994, publicada no Diário Oficial El Peruano de 14 de setembro de 1994, em relação ao mandado de segurança
interposto pelo senhor Reymert Bartra Vásquez (expediente de anexos à demanda, anexo 46, folhas 183 e 184); e sentença da Sala de
Direito Constitucional e Social da Corte Suprema de Justiça emitida em 10 de outubro de 1994, publicada no Diário Oficial El Peruano de 2
de dezembro de 1994, em relação ao mandado de segurança interposto pelo senhor Maximiliano Gamarra Ferreyra (expediente de anexos à
demanda, anexo 48, folhas 187 e 188).
40. Cf. ofício nº 914-94-DNJCL/JNLA de 16 de janeiro de 1995 do Juiz Titular do 19º Juízo Especializado Civil de Lima dirigido ao Superintendente
de Bancos e Seguros, mediante o qual lhe solicita que dê cumprimento à resolução de 3 de novembro de 1994 emitida por este Juízo
(expediente de anexos à demanda, anexo 37, folhas 161 a 164); ofício de 19 de dezembro de 1994 do Juiz Titular do 19º Juízo Especializado
Civil de Lima dirigido ao Chefe da Superintendência de Bancos e Seguros, mediante o qual se refere à resolução de 22 de novembro de 1994
emitida por este Juízo (expediente de anexos à demanda, anexo 49, folha 190); resolução administrativa SBS nº 330-95 de 4 de maio de 1995,
em relação ao senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro (expediente de anexos à demanda, anexo 51, folhas 194 e 195); e resolução administrativa
SBS nº 331-95 de 4 de maio de 1995, em relação ao senhor Guillermo Álvarez Hernández (expediente de anexos à demanda, anexo 52, folhas
196 a 198).
41. Cf. escrito de demanda apresentado pela Comissão Interamericana (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo I, folha
21, par. 60); e escrito de petições, argumentos e provas apresentado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares (expediente
sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo I, folha 176).
42. Cf. resolução do Promotor Superior Penal do Ministério Público emitida em 2 de dezembro de 1996, a respeito da queixa nº 34-96
(expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo I, anexo 3 do escrito de petições, argumentos e provas, folha 228); resolução do
Promotor da Nação emitida em 27 de junho de 1997, a respeito do expediente nº 001-97-D-SBS (expediente sobre o mérito e as eventuais
reparações, tomo I, anexo 4 do escrito de petições, argumentos e provas, folhas 229 a 234); resolução do Juiz do Trigésimo Juízo Penal de Lima
emitida em 2 de fevereiro de 1996 (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo I, anexo 5 do escrito de petições, argumentos
e provas, folhas 235 a 237); denúncia de 4 de julho de 1995 interposto pelo senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro perante o Controlador Geral
da República (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo I, anexo 6 do escrito de petições, argumentos e provas, folhas 238 a
242); e testemunho do senhor Guillermo Álvarez Hernández prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002.
43. Cf. resolução administrativa SBS nº 283-95 de 7 de abril de 1995, em relação ao senhor Carlos Torres Benvenuto (expediente de anexos
à demanda, anexo 50, folhas 192 e 193); resolução administrativa SBS nº 330-95 de 4 de maio de 1995, em relação ao senhor Javier Mujica
Ruiz-Huidobro (expediente de anexos à demanda, anexo 51, folhas 194 e 195); resolução administrativa SBS nº 331-95 de 4 de maio de 1995,
em relação ao senhor Guillermo Álvarez Hernández (expediente de anexos à demanda, anexo 52, folhas 196 a 198); resolução administrativa
SBS nº 332-95 de 4 de maio de 1995, em relação ao senhor Maximiliano Gamarra Ferreyra (expediente de anexos à demanda, anexo 53, folhas
199 a 201); e resolução administrativa SBS nº 254-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Reymert Bartra Vásquez (expediente
sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas
vítimas e seus familiares, folhas 991 a 994).
44. Cf. resolução administrativa SBS nº 250-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Carlos Torres Benvenuto (expediente sobre o
mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas
e seus familiares, folhas 975 a 978); resolução administrativa SBS nº 251-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Maximiliano
Gamarra Ferreyra (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos
representantes das supostas vítimas e seus familiares, folhas 979 a 982); resolução administrativa SBS nº 252-2002 de 12 de março de 2002,
22
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
88.l) Três das supostas vítimas interpuseram ações de execução contra o Superintendente de Bancos e Seguros. Ao
pronunciar-se sobre tais ações nos anos 1998 e 2000, o Tribunal Constitucional do Peru resolveu que a SBS
devia cumprir o disposto em suas resoluções administrativas de 1995. As sentenças do Tribunal Constitucional
indicadas foram publicadas no Diário Oficial El Peruano.45
88.m) Em 21 de janeiro de 2002, o Congresso da República do Peru promulgou a Lei nº 27.650, mediante a qual
derrogou o artigo 5º do Decreto-Lei nº 25.792 e a segunda disposição transitória do Decreto Legislativo nº
680. A referida lei foi publicada no Diário Oficial El Peruano em 23 de janeiro de 2002.46
88.n) Em 12 de março de 2002, a SBS emitiu cinco resoluções na quais, inter alia, resolveu dar cumprimento às
resoluções da SBS expedidas em 1995, “deduzindo da soma a pagar a[os cinco aposentados] as quantias
que o Ministério de Economia e Finanças lhe[s tivesse] depositado, em aplicação do Art. 5º do Decreto Lei nº
25.792, entre 1º de novembro de 1992 e 23 de janeiro de 2002”. No artigo terceiro destas resoluções de 2002,
a SBS “[deixou] à salvo o direito […] de deduzir, de acordo à decisão que emita a Corte Interamericana de
Direitos Humanos […], o valor que possa resultar excessivo ao dar-se cumprimento às [resoluções de 1995],
caso no qual se terá em conta o previsto expressamente no Art. 53 do Decreto Lei nº 20.530, que autoriza a
penhorar o valor das pensões para pagar dívidas”.47
88.o) Em 18 de março de 2002, a SBS pagou aos cinco aposentados as quantias determinadas nas mencionadas
resoluções, correspondentes aos reembolsos dos valores das pensões niveláveis deixados de receber desde
novembro de 1992 até fevereiro de 2002, o que não incluía o pagamento de juros.48 Em março de 2002, as
pensões niveladas foram reestabelecidas e, a partir de abril de 2002, os senhores Carlos Torres Benvenuto,
Javier Mujica Ruiz-Huidobro, Guillermo Álvarez Hernández, Reymert Bartra Vásquez e a viúva de Maximiliano
Gamarra Ferreyra passaram a receber periodicamente o pagamento nivelado de suas pensões.49
88.p) As supostas vítimas e seus familiares sofreram danos materiais e imateriais pela dedução de suas pensões
e pela falta de cumprimento das sentenças a seu favor; a qualidade de vida das supostas vítimas se viu
diminuída.50
88.q) Os cinco aposentados realizaram gastos nos processos no âmbito interno e no âmbito internacional perante a
em relação ao senhor Guillermo Álvarez Hernández (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22
de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares, folhas 983 a 986); resolução administrativa SBS nº
253-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações,
tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares, folhas 987 a
990); e resolução administrativa SBS nº 254-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Reymert Bartra Vásquez (expediente sobre o
mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas
e seus familiares, folhas 991 a 994).
45. Cf. sentença do Tribunal Constitucional do Peru emitida em 3 de agosto de 2000, em relação à ação de cumprimento interposta pelo senhor
Carlos Torres Benvenuto (expediente de anexos à demanda, anexo 54, folhas 202 a 205); sentença do Tribunal Constitucional do Peru emitida
em 21 de dezembro de 2000, publicada no Diário Oficial El Peruano de 25 de abril de 2001, em relação à ação de cumprimento interposta pelo
senhor Guillermo Álvarez Hernández contra o Superintendente de Bancos e Seguros (expediente de anexos à demanda, anexo 58, folhas 214 e
215); e sentença do Tribunal Constitucional do Peru emitida em 9 de julho de 1998, publicada no Diário Oficial El Peruano de 16 de outubro de
1998, em relação à ação de cumprimento interposta pelo senhor Javier Mujica Petit (expediente de anexos à demanda, anexo 55, folhas 206 a
208 e expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo II, anexo 9 da contestação à demanda, folha 412).
46. Cf. Lei nº 27.650 de 21 de janeiro de 2002, publicada no Diário Oficial El Peruano de 23 de janeiro de 2002 (expediente sobre o mérito e as
eventuais reparações, tomo II, anexo 1 da contestação à demanda, folha 314).
47. Cf. resolução administrativa SBS nº 250-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Carlos Torres Benvenuto (expediente sobre o
mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas
e seus familiares, folhas 975 a 978); resolução administrativa SBS nº 251-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Maximiliano
Gamarra Ferreyra (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos
representantes das supostas vítimas e seus familiares, folhas 979 a 982); resolução administrativa SBS nº 252-2002 de 12 de março de 2002,
em relação ao senhor Guillermo Álvarez Hernández (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22
de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares, folhas 983 a 986); resolução administrativa SBS nº
253-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações,
tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares, folhas 987 a
990); e resolução administrativa SBS nº 254-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Reymert Bartra Vásquez (expediente sobre o
mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas
e seus familiares, folhas 991 a 994).
48. Cf. testemunho do senhor Carlos Torres Benvenuto prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; testemunho do senhor Guillermo
Álvarez Hernández prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; e escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das
supostas vítimas e seus familiares (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, folha 898).
49. Cf. testemunho do senhor Carlos Torres Benvenuto prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; testemunho do senhor Guillermo
Álvarez Hernández prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; e escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das
supostas vítimas e seus familiares (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, folha 899).
50. Cf. testemunho do senhor Carlos Torres Benvenuto prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; testemunho do senhor Guillermo
Álvarez Hernández prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; e perícia do senhor Máximo Jesús Atauje Montes prestada perante a
Corte em 3 de setembro de 2002.
23
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Comissão e a Corte.51 Além disso, os representantes das supostas vítimas e seus familiares, CEJIL e CEDAL,
realizaram diversos gastos na jurisdição interamericana.52
89. Fatos específicos em relação a cada aposentado
Carlos Torres Benvenuto
89.a) O senhor Torres Benvenuto começou a trabalhar na SBS em 1950, e em 29 de dezembro de 1986 parou de
trabalhar nesta instituição.53 O último cargo que ocupou na SBS foi o de Diretor Geral de Comunicações.54 No
momento de sua aposentadoria foram reconhecidos 36 anos, 11 meses e 13 dias de serviços prestados à
Administração Pública.55 Encontra-se submetido ao regime de pensões estabelecido no Decreto-Lei nº 20.530.56
89.b) Mediante resolução administrativa da SBS de 13 de fevereiro de 1992, a pensão de aposentadoria do senhor Torres
Benvenuto foi reajustada em um valor total de S/. 2.086,00 (dois mil e oitenta e seis soles), valor este que recebeu
mensalmente até agosto de 1992.57 A partir de setembro de 1992, a pensão foi reduzida em aproximadamente
75%, a um valor de S/. 504,00 (quinhentos e quatro soles), sem aviso prévio nem qualquer procedimento.58
89.c) Em 6 de outubro de 1992, o senhor Torres Benvenuto impetrou um mandado de segurança contra a SBS.59
Em 7 de janeiro de 1993, o 11º Juízo Civil de Lima declarou sem fundamento o mandado de segurança
impetrado.60 Em 22 de setembro de 1993, a Primeira Sala Civil da Corte Superior de Lima revogou a decisão
anterior e declarou com mérito a ação impetrada.61 Em 2 de maio de 1994, a Sala de Direito Constitucional e
Social da Corte Suprema de Justiça “declar[ou] ganho de causa à ação de mandado de segurança impetrada
pelo senhor Carlos Torres Benvenuto contra a Superintendência de Bancos e Seguros; em consequência,
[ordenou] que a Superintendência de Bancos e Seguros cumpr[isse] o pagamento ao autor a pensão que
vinha recebendo conforme a lei”.62 Na fase de Execução de sentença o 19º Juízo Especializado Civil de Lima
51. Cf. testemunho do senhor Carlos Torres Benvenuto prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; testemunho do senhor Guillermo
Álvarez Hernández prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; relatório pericial escrito apresentado pelo senhor Máximo Jesús Atauje
Montes (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo V, folha 1143); cópia do “documento de cobrança” de 9 de novembro de
2001 de um bilhete aéreo do senhor Javier Mujica (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo V, anexo do relatório pericial
escrito apresentado pelo senhor Máximo Jesús Atauje Montes, folha 1246); cópia de um bilhete aéreo do senhor Javier Mujica de 21 de
fevereiro de 2000 (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo V, anexo do relatório pericial escrito apresentado pelo senhor
Máximo Jesús Atauje Montes, folha 1249); e recibo do Hotel Confort Inn Gunston Corner do senhor Javier Mujica pelos dias 4 a 8 de março
de 2000 (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo V, anexo do relatório pericial escrito apresentado pelo senhor Máximo
Jesús Atauje Montes, folha 1250).
52. Cf. relatório pericial escrito apresentado pelo senhor Máximo Jesús Atauje Montes (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações,
tomo V, folhas 1143 a 1146); cópia do “documento de cobrança” de 9 de novembro de 2001 de um bilhete aéreo do senhor Javier Mujica
(expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo V, anexo do relatório pericial escrito apresentado pelo senhor Máximo Jesús Atauje
Montes, folha 1246); cópia de um bilhete aéreo do senhor Javier Mujica de 21 de fevereiro de 2000 (expediente sobre o mérito e as eventuais
reparações, tomo V, anexo do relatório pericial escrito apresentado pelo senhor Máximo Jesús Atauje Montes, folha 1249); recibo do Hotel
Confort Inn Gunston Corner do senhor Javier Mujica pelos dias 4 a 8 de março de 2000 (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações,
tomo V, anexo do relatório pericial escrito apresentado pelo senhor Máximo Jesús Atauje Montes, folha 1250); recibo de “Panorama Viagens/
Turismo S.A.” a respeito dos gastos de alojamento da senhora María C. Galvis pelos dias 21, 22 e de 24 a 27 de abril de 2002 (expediente sobre
o mérito e as eventuais reparações, tomo V, anexo do relatório pericial escrito apresentado pelo senhor Máximo Jesús Atauje Montes, folha
1251); e cópia de um bilhete aéreo da senhora María Clara Galvis de 8 de agosto de 2002 (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações,
tomo V, anexo do relatório pericial escrito apresentado pelo senhor Máximo Jesús Atauje Montes, folha 1252).
53. Cf. resolução administrativa SBS nº 003-87 de 6 de janeiro de 1987, em relação ao senhor Carlos Torres Benvenuto (expediente de anexos
à demanda, anexo 10, folha 66); e testemunho do senhor Carlos Torres Benvenuto prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002.
54. Cf. resolução administrativa SBS nº 003-87 de 6 de janeiro de 1987, em relação ao senhor Carlos Torres Benvenuto (expediente de anexos
à demanda, anexo 10, folha 66).
55. Cf. nota 54 supra.
56. Cf. sentença do Tribunal Constitucional do Peru emitida em 3 de agosto de 2000, em relação à ação de cumprimento interposta pelo senhor
Carlos Torres Benvenuto (expediente de anexos à demanda, anexo 54, folhas 202 a 205).
57. Cf. testemunho do senhor Carlos Torres Benvenuto prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; e escrito do Diretor de Relações
Trabalhistas da SBS de 20 de fevereiro de 1992, mediante o qual se notifica ao senhor Carlos Torres Benvenuto a resolução administrativa SBS
nº 050-92 (expediente de anexos à demanda, anexo 23, folhas 138 e 139).
58. Cf. testemunho do senhor Carlos Torres Benvenuto prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; planilha de pagamento da
SBS de agosto de 1992, a respeito do senhor Carlos Torres Benvenuto (expediente de anexos à demanda, anexo 24, folha 140); planilha
de pagamento da SBS de setembro de 1992, a respeito do senhor Carlos Torres Benvenuto (expediente de anexos à demanda, anexo 32,
folha 154); e planilha de pagamento da SBS de outubro de 1992, a respeito do senhor Carlos Torres Benvenuto (expediente de anexos à
demanda, anexo 32, folha 155).
59. Cf. mandado de segurança de 6 de outubro de 1992 interposto pelo senhor Carlos Torres Benvenuto perante o Juiz de Primeira Instância
Civil (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo II, anexo 8 do escrito de contestação à demanda, folhas 327 a 342).
60. Cf. decisão do 11 Juízo Civil de Lima emitida em 7 de janeiro de 1993, em relação ao mandado de segurança interposto pelo senhor Carlos
Torres Benvenuto contra a SBS (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo II, anexo 9 do escrito de contestação à demanda,
folhas 389 a 391).
61. Cf. sentença da Primeira Sala Civil da Corte Superior de Lima emitida em 22 de setembro de 1993, em relação ao mandado de segurança
interposto pelo senhor Carlos Torres Benvenuto contra a SBS (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo II, anexo 9 do escrito
de contestação à demanda, folhas 387 e 388).
62. Cf. sentença da Sala de Direito Constitucional e Social da Corte Suprema de Justiça emitida em 2 de maio de 1994, em relação ao mandado
24
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
emitiu uma resolução em 3 de novembro de 1994, na qual ordenou que “a Superintendência de Bancos e
Seguros exped[isse] a Resolução ou Resoluções Administrativas que [fossem] requeridas, dirigidas a restituir
o direito do demandante de receber as remunerações e reembolsos conforme a Ordem de Execução Suprema
antes referida e que o Ministério de Economia e Finanças através de seu Escritório Geral de Administração
cumpr[isse] a efetuar os pagamentos requeridos”.63
89.d) Em 7 de abril de 1995, a SBS, mediante resolução administrativa nº 283-95, resolveu “[n]ivelar, em
cumprimento ao disposto na Ordem de Execução Suprema de data 94.05.02, e em fase de execução de
sentença ao ordenado pelo Juiz do Décimo Nono Juízo Civil de Lima, mediante Resolução de data 94.11.03,
o valor de pensão que corresponde receber o senhor Carlos Torres Benvenuto com as remunerações que
recebiam os servidores ativos desta Superintendência da mesma categoria ou equivalente na oportunidade em
que se deram os reajustes de salários; bem como realizar os reembolsos correspondentes, na forma e modo
que se indica no anexo […] que forma parte integrante da […] Resolução”.64
89.e) O senhor Torres Benvenuto interpôs uma ação de execução contra o Superintendente de Bancos e Seguros e
o Superintendente Adjunto de Administração Geral da SBS.65 Em 10 de agosto de 1999, a Vara Empresarial
Transitória Especializada em Direito Público de Lima declarou com mérito a referida ação de cumprimento.66
Em 29 de fevereiro de 2000, a Vara Empresarial Transitória Especializada em Direito Público da Corte
Superior de Justiça de Lima revogou a decisão anterior e declarou improcedente a demanda de ação de
cumprimento.67 Por último, em 3 de agosto de 2000, o Tribunal Constitucional do Peru declarou com mérito
a ação de cumprimento “na parte que dispõe que o Superintendente de Bancos e Seguros cumpra o disposto
na Resolução SBS nº 283-95 de sete de abril de 1995; e improcedente no extremo referido ao pagamento das
devoluções e juros acumulados.”68
89.f) Em 12 de março de 2002, a SBS emitiu a resolução administrativa nº 250-2002, na qual, inter alia, resolveu
“[d]ar cumprimento à Resolução SBS nº 283-95, de 7 de abril de 1995, deduzindo-se da soma a pagar ao
senhor Carlos Torres Benvenuto, as quantias que o Ministério de Economia e Finanças lhe [tiver] depositado,
em aplicação do Art. 5º do Decreto Lei nº 25.792, entre 1º de novembro de 1992 e 23 de janeiro de 2002”.
No artigo terceiro desta resolução de 2002, a SBS “[deixou] a salvo o direito […] a deduzir, de acordo com
a decisão que venha a emitir a Corte Interamericana de Direitos Humanos […], o valor que possa resultar
excessivo ao dar-se cumprimento à Resolução SBS nº 283-95, de 7 de abril de 1995, caso no qual se terá
em conta o previsto expressamente no Art. 53 do Decreto Lei nº 20.530, que autoriza a penhorar o valor das
pensões para pagar dívidas.”69
89.g) Em 18 de março de 2002, a SBS pagou ao senhor Torres Benvenuto a quantia determinada na resolução
administrativa nº 250-2002, correspondente à devolução dos valores das pensões niveláveis deixados de
receber desde novembro de 1992 até fevereiro de 2002, o que não incluía o pagamento de juros.70 Em março
de 2002, a pensão nivelada foi restabelecida e, a partir de abril de 2002, o senhor Torres Benvenuto recebeu
o pagamento nivelado de suas pensões; atualmente recebe uma pensão mensal de aproximadamente S/.
22.552,80 (vinte e dois mil, quinhentos e cinquenta e dois soles e oitenta centavos).71
de segurança interposto pelo senhor Carlos Torres Benvenuto contra a SBS (expediente de anexos à demanda, anexo 36, folha 160).
63. Cf. ofício nº 914-94-DNJCL/JNLA de 16 de janeiro de 1995 do Juiz Titular do 19º Juízo Especializado Civil de Lima dirigido ao Superintendente
de Bancos e Seguros, mediante o qual lhe solicita que dê cumprimento à resolução de 3 de novembro de 1994 emitida por este Juízo
(expediente de anexos à demanda, anexo 37, folhas 161 a 164).
64. Cf. resolução administrativa SBS nº 283-95 de 7 de abril de 1995, em relação ao senhor Carlos Torres Benvenuto (expediente de anexos à
demanda, anexo 50, folhas 192 e 193).
65. Cf. nota 68 infra.
66. Cf. nota 68 infra.
67. Cf. nota 68 infra.
68. Cf. sentença do Tribunal Constitucional do Peru de 3 de agosto de 2000, em relação à ação de cumprimento interposta pelo senhor Carlos
Torres Benvenuto (expediente de anexos à demanda, anexo 54, folhas 202 a 205).
69. Cf. resolução administrativa SBS nº 250-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Carlos Torres Benvenuto (expediente sobre o
mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas
e seus familiares, folhas 975 a 978).
70. Cf. testemunho do senhor Carlos Torres Benvenuto prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; testemunho do senhor Guillermo
Álvarez Hernández prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; resolução administrativa SBS nº 250-2002 de 12 de março de 2002, em
relação ao senhor Carlos Torres Benvenuto (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de
2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares, folhas 975 a 978); e escrito de 22 de julho de 2002 apresentado
pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, folha 898).
71. Cf. testemunho do senhor Carlos Torres Benvenuto prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; testemunho do senhor Guillermo
Álvarez Hernández prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das
supostas vítimas e seus familiares (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, folha 899); e resolução administrativa SBS
25
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Javier Mujica Ruiz-Huidobro
89.h) O senhor Mujica Ruiz-Huidobro começou a trabalhar na SBS em 1940, e em 1º de agosto de 1983 parou de
trabalhar nesta instituição.72 O último cargo que ocupou na SBS foi o de Gerente Geral de Créditos da Área
Bancária.73 No momento de sua aposentadoria foram reconhecidos 43 anos e 15 dias de serviços prestados
à Administração Pública.74 Encontra-se submetido ao regime de pensões estabelecido no Decreto-Lei nº
20.530.75
89.i) O valor da pensão de aposentadoria que lhe foi pago em junho de 1992 foi de S/. 2.258,67 (dois mil
duzentos e cinquenta e oito soles e sessenta e sete centavos).76 A partir de setembro de 1992, a pensão foi
reduzida em aproximadamente 77%, a um valor de S/. 504,00 (quinhentos e quatro soles), sem aviso prévio
aviso ou qualquer procedimento.77
89.j) Em 6 de outubro de 1992, o senhor Mujica Ruiz-Huidobro interpôs um mandado de segurança contra a
SBS.78 Em 7 de janeiro de 1993, a ação de mandado de segurança impetrada foi rejeitada.79 Em 12 de
novembro de 1993, a Primeira Turma Civil da Corte Superior de Justiça de Lima revogou a sentença anterior
e declarou com mérito a ação interposta.80 Em 1º de setembro de 1994, a Sala de Direito Constitucional e
Social da Corte Suprema de Justiça “declar[ou] com mérito o mandado de segurança impetrado[…] pelo
senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro contra a Superintendência de Bancos e Seguros e, em consequência,
orden[ou] que a demandada devolve[sse] a pensão ao autor de acordo com o Decreto Lei 20.530”.81 Na fase
de execução de sentença o 19º Juízo Civil de Lima emitiu uma resolução em 3 de janeiro de 1995, na qual
“orden[ou] que a Superintendência de Bancos e Seguros bem como o Ministério de Economia e Finanças,
d[essem] cumprimento ao disposto na Ordem de Execução Suprema de data 94-09-01 e pag[assem] ao
aposentado senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro, sua renda mensal que recebia, bem como a devolução
correspondente ao que deixou de receber”.82
89.k) Em 4 de maio de 1995, a SBS, mediante resolução administrativa nº 330-95, resolveu “[n]ivelar, em
cumprimento ao disposto pela Ordem de Execução Suprema de 94.09.01, e em fase de execução de sentença
a ordem do juiz do Décimo Juízo Civil mediante Resolução nº 1, de data 95.01.03, o valor da pensão
que corresponde ser paga ao senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro com as remunerações que recebiam os
servidores ativos desta Superintendência da mesma categoria ou equivalente na oportunidade em que se
deram os reajustes de salários; bem como realizar as devoluções correspondentes, na forma e modo que se
indica no anexo […], o qual forma parte integrante da […] Resolução”.83
89.l) O senhor Javier Mujica Petit interpôs, em representação do senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro, uma
nº 250-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Carlos Torres Benvenuto (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações,
tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares, folhas 975 a 978).
72. Cf. escrito de 15 de julho de 1940, mediante o qual foi transmitida ao senhor Javier Mujica a Resolução da SBS nº 325 de 15 de julho de
1940 (expediente de anexos à demanda, anexo 11, folha 67); e resolução administrativa SBS nº 376-83-EFC/97-10 de 2 de agosto de 1983, em
relação ao senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro (expediente de anexos à demanda, anexo 12, folha 68).
73. Cf. resolução administrativa SBS nº 376-83-EFC/97-10 de 2 de agosto de 1983, em relação ao senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro
(expediente de anexos à demanda, anexo 12, folha 68).
74. Cf. resolução administrativa SBS nº 330-95 de 4 de maio de 1995, em relação ao senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro (expediente de anexos
à demanda, anexo 51, folhas 194 e 195).
75. Cf. resolução administrativa SBS nº 253-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro (expediente
sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas
vítimas e seus familiares, folhas 987 a 990).
76. Cf. planilha de pagamento da SBS de junho de 1992, a respeito do senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro (expediente de anexos à demanda,
anexo 27, folha 148).
77. Cf. nota 78 infra.
78. Cf. mandado de segurança de 6 de outubro de 1992 interposto pelo senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro perante o Juiz de Primeira
Instância Civil (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo II, anexo 8 do escrito de contestação à demanda, folhas 343 a 358).
79. Cf. sentença da Sala de Direito Constitucional e Social da Corte Suprema de Justiça emitida em 1º de setembro de 1994, em relação ao
mandado de segurança interposto pelo senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro contra a SBS (expediente de anexos à demanda, anexo 38, folha
165); escrito de demanda apresentado pela Comissão Interamericana (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo I, folha 19); e
escrito de petições, argumentos e provas apresentado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares (expediente sobre o mérito
e as eventuais reparações, tomo I, folha 173).
80. Cf. nota 79 supra.
81. Cf. sentença da Sala de Direito Constitucional e Social da Corte Suprema de Justiça emitida em 1º de setembro de 1994, em relação
ao mandado de segurança interposto pelo senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro contra a SBS (expediente de anexos à demanda, anexo 38,
folha 165).
82. Cf. nota 83 infra.
83. Cf. resolução administrativa SBS nº 330-95 de 4 de maio de 1995, em relação ao senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro (expediente de anexos
à demanda, anexo 51, folhas 194 e 195).
26
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
ação de execução contra o Superintendente de Bancos e Seguros da SBS.84 Em 13 de maio de 1997, o
Segundo Juízo Especializado em Direito Público de Lima declarou com mérito a ação de cumprimento.85
Foi apresentado um recurso de apelação contra a decisão anterior e, em 13 de outubro de 1997, a Vara
Empresarial Transitória Especializada em Direito Público da Corte Superior de Justiça de Lima “revogou a
[decisão] apelada e a reformou declarando-a improcedente”.86 Por último, em 9 de julho de 1998, o Tribunal
Constitucional do Peru revogou a resolução expedida pela mencionada Vara Empresarial e declarou com
mérito a ação de cumprimento, de maneira que dispôs “que o Superintendente de Bancos e Seguros cumpra
o disposto na Resolução SBS nº 330-95 de data quatro de maio de 1995”.87
89.m) Em 12 de março de 2002, a SBS emitiu a resolução administrativa nº 253-2002, na qual, inter alia, ordenou
“[d]ar cumprimento à Resolução SBS nº 330-95, de 4 de maio de 1995, deduzindo-se da soma a pagar
ao senhor Javier Mujica Ruiz Huidobro, as quantias que o Ministério de Economia e Finanças lhe tenha
depositado, em aplicação do Art. 5º do Decreto Lei nº 25.792, entre 1º de novembro de 1992 e 23 de janeiro
de 2002”. No artigo terceiro desta resolução de 2002, a SBS “[deixou] a salvo o direito […] de deduzir, de
acordo com a decisão que venha a emitir a Corte Interamericana de Direitos Humanos […], o valor que
possa resultar excessivo ao dar-se cumprimento à Resolução SBS nº 330-95, de 4 de maio de 1995, caso
no qual se terá em conta o previsto expressamente no Art. 53 do Decreto Lei nº 20.530, que autoriza a
penhorar o valor das pensões para pagar dívidas.”88
89.n) Em 18 de março de 2002, a SBS pagou ao senhor Mujica Ruiz-Huidobro a quantia determinada na resolução
administrativa nº 253-2002, correspondente à devolução dos valores das pensões niveláveis deixados de
receber desde novembro de 1992 até fevereiro de 2002, o que não incluía o pagamento de juros.89 Em março
de 2002, a pensão nivelada foi restabelecida e, a partir de abril de 2002, o senhor Mujica Ruiz-Huidobro
recebeu periodicamente o pagamento nivelado de suas pensões; atualmente recebe uma pensão mensal de
aproximadamente S/. 23.391,20 (vinte e três mil trezentos e noventa e um soles e vinte centavos).90
Guillermo Álvarez Hernández
89.o) O senhor Álvarez Hernández começou a trabalhar na Administração Pública em 1948 e parou de trabalhar
na SBS em 1º de agosto de 1984.91 O último cargo que ocupou em tal instituição foi o de Assessor
Administrativo da Alta Direção.92 No momento de sua aposentadoria, foram reconhecidos 36 anos e 4
meses de serviços prestados à Administração Pública.93 Encontra-se submetido ao regime de pensões
estabelecido no Decreto-Lei nº 20.530.94
89.p) Mediante resolução administrativa da SBS de 13 de fevereiro de 1992, foi reajustada a pensão de
aposentadoria do senhor Álvarez Hernández em um valor total de S/. 2.047,26 (dois mil e quarenta e sete
84. Cf. nota 87 infra.
85. Cf. sentença nº 10 do Segundo Juízo Especializado em Direito Público de Lima, emitida em 13 de maio de 1997, em relação à ação de
cumprimento interposta pelo senhor Javier Mujica Petit em representação do senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro (expediente sobre o mérito
e as eventuais reparações, tomo II, anexo 9 do escrito de contestação à demanda, folhas 464 a 467).
86. Cf. nota 87 infra.
87. Cf. sentença do Tribunal Constitucional do Peru emitida em 9 de julho de 1998, publicada no Diário Oficial El Peruano de 16 de outubro de
1998, em relação à ação de cumprimento interposta pelo senhor Javier Mujica Petit em representação do senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro
(expediente de anexos à demanda, anexo 55, folhas 206 a 208 e expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo II, anexo 9 da
contestação à demanda, folha 412).
88. Cf. resolução administrativa SBS nº 253-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro (expediente
sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas
vítimas e seus familiares, folhas 987 a 990).
89. Cf. testemunho do senhor Carlos Torres Benvenuto prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; testemunho do senhor Guillermo
Álvarez Hernández prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; e escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das
supostas vítimas e seus familiares (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, folha 898).
90. Cf. testemunho do senhor Carlos Torres Benvenuto prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; testemunho do senhor Guillermo
Álvarez Hernández prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das
supostas vítimas e seus familiares (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, folha 899); e resolução administrativa SBS
nº 253-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações,
tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares, folhas 987 a 990).
91. Cf. resolução administrativa SBS nº 228-84 de 16 de agosto de 1984, em relação ao senhor Guillermo Álvarez Hernández (expediente de
anexos à demanda, anexo 14, folhas 70 e 71).
92. Cf. nota 91 supra.
93. Cf. nota 91 supra.
94. Cf. testemunho do senhor Guillermo Álvarez Hernández prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; e resolução administrativa
SBS nº 252-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Guillermo Álvarez Hernández (expediente sobre o mérito e as eventuais
reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares,
folhas 983 a 986).
27
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
soles e vinte e seis centavos).95 Em 18 de junho de 1992 a SBS lhe pagou a título de pensão S/. 2.047,26
(dois mil e quarenta e sete soles e vinte e seis centavos).96 A partir de setembro de 1992, a pensão foi
reduzida em aproximadamente 75%, a um valor de S/. 504,00 (quinhentos e quatro soles), sem aviso prévio
aviso ou qualquer procedimento.97
89.q) Em 6 de outubro de 1992, o senhor Álvarez Hernández impetrou um mandado de segurança contra a
SBS.98 Em 6 de janeiro de 1993, o 11º Juízo Civil de Lima declarou sem fundamento a ação de mandado
de segurança impetrada.99 Em 12 de novembro de 1993, a Primeira Turma Civil da Corte Superior de
Lima revogou a decisão anterior e declarou com mérito a ação impetrada.100 Foi interposto um recurso de
nulidade contra a sentença anterior e, em 19 de setembro de 1994, a Sala de Direito Constitucional e Social
da Corte Suprema de Justiça resolveu que não havia nulidade na referida sentença e “declar[ou] com mérito
o mandado de segurança interposto pelo senhor Guillermo Álvarez Hernández contra a Superintendência de
Bancos e Seguros, e, em consequência, [ordenou] que a entidade demandada deposit[asse] ao ator o valor
integral de sua pensão estabelecida na Resolução Administrativa SBS nº 200-804”.101 Na fase de execução
de sentença o 19˚ Juízo Especializado Civil de Lima emitiu uma resolução em 19 de dezembro de 1994,
na qual “orden[ou] que a Superintendência de Bancos e Seguros, bem como o Ministério de Economia e
Finanças d[essem] cumprimento ao disposto na Ordem de Execução Suprema de 94.09.19 e pag[assem]
ao aposentado senhor Guillermo Álvarez Hernández sua aposentadoria mensal que recebia, bem como as
devoluções correspondentes aos meses deixados de receber”.102
89.r) Em 4 de maio de 1995, a SBS, mediante resolução administrativa nº 331-95, resolveu “[n]ivelar, em
cumprimento ao disposto na Ordem Executória Suprema de data 94.09.19 e, em fase de execução de
sentença, à ordem do Juiz do Décimo Nono Juízo Civil de Lima, mediante Resolução nº 1, de 94.12.19, o
valor da pensão que corresponde ser pago ao senhor Guillermo Álvarez Hernández com as remunerações
que recebiam os trabalhadores desta Superintendência da mesma categoria ou equivalente na oportunidade
em que se deram os reajustes de salários; bem como realizar as devoluções correspondentes, na forma e
modo que se indica no anexo […], o qual forma parte integrante da […] Resolução”.103
89.s) O senhor Álvarez Hernández interpôs uma ação de execução contra o Superintendente de Bancos e
Seguros.104 Em 22 de dezembro de 1999, a Primeira Vara Empresarial Transitória Especializada em Direito
Público de Lima declarou com mérito a ação de cumprimento.105 Foi interposta uma apelação contra a
sentença anterior e, em 8 de setembro de 2000, a Vara Empresarial Transitória Especializada em Direito
Público da Corte Superior de Justiça de Lima revogou a sentença apelada e declarou improcedente a
demanda.106 Em 21 de dezembro de 2000, o Tribunal Constitucional do Peru revogou a decisão expedida
95. Cf. escrito do Diretor de Relações Trabalhistas de 20 de fevereiro de 1992, mediante o qual se notifica ao senhor Guillermo Álvarez
Hernández a resolução administrativa SBS nº 050-92 (expediente de anexos à demanda, anexo 28, folhas 149 e 150).
96. Cf. planilha de pagamento da SBS de junho de 1992, a respeito do senhor Guillermo Álvarez Hernández (expediente de anexos à demanda,
anexo 29, folha 151).
97. Cf. testemunho do senhor Guillermo Álvarez Hernández prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; planilha de pagamento da
SBS de setembro de 1992, a respeito do senhor Guillermo Álvarez Hernández (expediente de anexos à demanda, anexo 33, folha 156); e
mandado de segurança de 6 de outubro de 1992 interposto pelo senhor Guillermo Álvarez Hernández perante o Juiz de Primeira Instância Civil
(expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo II, anexo 8 do escrito de contestação à demanda, folhas 362 a 371).
98. Cf. mandado de segurança de 6 de outubro de 1992 interposto pelo senhor Guillermo Álvarez Hernández perante o Juiz de Primeira
Instância Civil (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo II, anexo 8 do escrito de contestação à demanda, folhas 362 a 371).
99. Cf. sentença do 11º Juízo Civil de Lima emitida em 6 de janeiro de 1993, em relação ao mandado de segurança interposto pelo senhor
Guillermo Álvarez Hernández (expediente de anexos à demanda, anexo 39, folhas 166 a 168).
100. Cf. sentença da Primeira Sala Civil da Corte Superior de Lima emitida em 12 de novembro de 1993, em relação ao mandado de segurança
interposto pelo senhor Guillermo Álvarez Hernández (expediente de anexos à demanda, anexo 40, folhas 169 e 170).
101. Cf. sentença da Sala de Direito Constitucional e Social da Corte Suprema de Justiça emitida em 19 de setembro de 1994, publicada no
Diário Oficial El Peruano de 25 de julho de 1995, em relação ao mandado de segurança interposto pelo senhor Guillermo Álvarez Hernández
(expediente de anexos à demanda, anexo 41, folha 172).
102. Cf. nota 103 infra.
103. Cf. resolução administrativa SBS nº 331-95 de 4 de maio de 1995, em relação ao senhor Guillermo Álvarez Hernández (expediente de
anexos à demanda, anexo 52, folhas 196 a 198).
104. Cf. sentença do Tribunal Constitucional do Peru emitida em 21 de dezembro de 2000, publicada no Diário Oficial El Peruano de 25 de abril
de 2001, em relação à ação de cumprimento interposta pelo senhor Guillermo Álvarez Hernández (expediente de anexos à demanda, anexo
58, folhas 214 e 215).
105. Cf. sentença nº 27 do Primeira Vara Empresarial Transitória Especializada em Direito Público de Lima emitida em 22 de dezembro de
1999, em relação à ação de cumprimento interposta pelo senhor Guillermo Álvarez Hernández (expediente de anexos à demanda, anexo 56,
folhas 209 a 211).
106. Cf. sentença da Vara Empresarial Transitória Especializada em Direito Público da Corte Superior de Justiça de Lima emitida em 8 de
setembro de 2000, em relação à ação de cumprimento interposta pelo senhor Guillermo Álvarez Hernández (expediente de anexos à demanda,
anexo 57, folhas 212 e 213).
28
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
pela mencionada Vara Empresarial e “declar[ou] com mérito a Ação de Cumprimento e, em consequência,
disp[ôs] que o Superintendente de Bancos e Seguros cumpr[isse] o ordenado pela resolução SBS nº 331-95
de 4 de maio de 1995, descontando os pagamentos que demonstre ter efetuado”.107 O Procurador Público
da SBS formulou uma oposição ao requerimento do Tribunal Constitucional. Por último, em 27 de dezembro
de 2001, o Segundo Juízo Especializado em Direito Público da Corte Superior de Justiça de Lima declarou
improcedente a oposição formulada e ordenou que, “encontrando-se a causa em estado de execução de
sentença, o acatamento da decisão constitucional é de obrigatório cumprimento por parte da entidade
demandada, que administrativamente realize a nivelação do valor da pensão que corresponde ser paga ao
demandante em relação àquela que recebem os trabalhadores da Superintendência de Bancos e Seguros
da mesma categoria ou equivalente na oportunidade em que se deram os reajustes de salários, bem como
realizar as devoluções correspondentes”.108
89.t) Em 12 de março de 2002, a SBS emitiu a resolução administrativa nº 252-2002, na qual, inter alia, ordenou
“[d]ar cumprimento à Resolução SBS nº 331-95, de 4 de maio de 1995, deduzindo-se da soma a pagar
ao senhor Guillermo Álvarez Hernández, as quantias que o Ministério de Economia e Finanças lhe tenha
depositado, em aplicação do Art. 5º do Decreto Lei nº 25.792, entre 1º de novembro de 1992 e 23 de janeiro
de 2002”. No artigo terceiro desta resolução de 2002, a SBS “[deixou] a salvo o direito […] de deduzir, de
acordo com a decisão que venha a emitir a Corte Interamericana de Direitos Humanos […], o valor que
possa resultar excessivo ao dar-se cumprimento à Resolução SBS nº 331-95, de 4 de maio de 1995, caso no
qual se terá em conta o previsto expressamente no Art. 53 do Decreto Lei nº 20.530, que autoriza a penhorar
o valor das pensões para pagar dívidas.”109
89.u) Em 18 de março de 2002, a SBS pagou ao senhor Álvarez Hernández a quantia determinada na resolução
administrativa nº 252-2002, correspondente à devolução dos valores das pensões niveláveis deixados de
receber desde novembro de 1992 até fevereiro de 2002, o que não incluía o pagamento de juros.110 Em
março de 2002, a pensão nivelada foi reestabelecida e, a partir de abril de 2002, o senhor Álvarez Hernández
recebeu o pagamento nivelado de suas pensões; atualmente recebe uma pensão mensal de aproximadamente
S/. 22.547,34 (vinte e dois mil quinhentos e quarenta e sete soles e trinta e quatro centavos).111
Maximiliano Gamarra Ferreyra
89.v) O senhor Gamarra Ferreyra começou a trabalhar na Administração Pública em 1954 e parou de trabalhar na
SBS em 18 de setembro de 1975.112 O último cargo que ocupou nesta instituição foi o de Superintendente de
Bancos e Seguros.113 No momento de sua aposentadoria foram reconhecidos 20 anos, 10 meses e 20 dias
de serviços prestados à Administração Pública.114 O senhor Gamarra Ferreyra se aposentou sob o regime de
pensões estabelecido no Decreto-Lei nº 20.530 e sua viúva se encontra submetida ao regime de pensão de
viuvez estabelecido neste decreto-lei.115
107. Cf. sentença do Tribunal Constitucional do Peru emitida em 21 de dezembro de 2000, publicada no Diário Oficial El Peruano de 25 de abril
de 2001, em relação à ação de cumprimento interposta pelo senhor Guillermo Álvarez Hernández (expediente de anexos à demanda, anexo
58, folhas 214 e 215).
108. Cf. sentença nº 14 do Segundo Juízo Especializado em Direito Público da Corte Superior de Justiça de Lima emitida em 27 de dezembro
de 2001, em relação à ação de cumprimento interposta pelo senhor Guillermo Álvarez Hernández (expediente sobre o mérito e as eventuais
reparações, tomo II, anexo 9 do escrito de contestação à demanda, folhas 422 e 423).
109. Cf. resolução administrativa SBS nº 252-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Guillermo Álvarez Hernández (expediente
sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas
vítimas e seus familiares, folhas 983 a 986).
110. Cf. testemunho do senhor Guillermo Álvarez Hernández prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; resolução administrativa SBS
nº 252-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Guillermo Álvarez Hernández (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações,
tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares, folhas 983 a
986); e escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares (expediente sobre o mérito e
as eventuais reparações, tomo IV, folha 898).
111. Cf. testemunho do senhor Guillermo Álvarez Hernández prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; escrito de 22 de julho de
2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo
IV, folha 899); e resolução administrativa SBS nº 252-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Guillermo Álvarez Hernández
(expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes
das supostas vítimas e seus familiares, folhas 983 a 986).
112. Cf. resolução administrativa SBS nº 398-75-EF/97-10 de 21 de outubro de 1975, em relação ao senhor Maximiliano Gamarra Ferreyra
(expediente de anexos à demanda, anexo 18, folhas 76 e 77).
113. Cf. nota 112 supra.
114. Cf. nota 112 supra.
115. Cf. resolução administrativa SBS nº 251-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Maximiliano Gamarra Ferreyra (expediente
sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas
vítimas e seus familiares, folhas 979 a 982); e Decreto-Lei nº 20.530 “Regime de Aposentadorias e Compensações por Serviços Civis Prestados
29
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
89.w) Em agosto de 1992, a SBS pagou a título de pensão de aposentadoria S/. 2.680,33 (dois mil, seiscentos
e oitenta soles e trinta e três centavos).116 A partir de setembro de 1992 a pensão foi reduzida em
aproximadamente 81%, a um valor de S/. 504,00 (quinhentos e quatro soles), sem aviso prévio aviso ou
qualquer procedimento.117
89.x) Em 6 de outubro de 1992, o senhor Gamarra Ferreyra impetrou um mandado de segurança contra a SBS.118
Em 6 de janeiro de 1993, o Juízo Civil de Lima declarou improcedente a ação de mandado de segurança
impetrada.119 Em 30 de dezembro de 1993, a Primeira Turma Civil da Corte Superior de Justiça de Lima
revogou a decisão anterior e declarou com mérito o mandado de segurança.120 Em 10 de outubro de 1994,
a Sala de Direito Constitucional e Social da Corte Suprema de Justiça declarou que não havia nulidade na
sentença emitida pela Primeira Turma Civil da Corte Superior de Justiça de Lima que declarou com mérito
o mandado de segurança impetrado; e “em consequência dispôs que a Superintendência de Bancos e
Seguros cumpr[isse] em pagar ao autor a pensão de aposentadoria no valor que vinha recebendo até o
mês de agosto de 1992”.121 Na fase de execução de sentença, em 19 de dezembro de 1994, o 19º Juízo
Especializado Civil de Lima remeteu à SBS a resolução adotada por este Juízo, na qual assinalou que “as
autoridades […] estão obrigadas a acatar e dar cumprimento às decisões judiciais, sem poder qualificar seu
conteúdo e seus fundamentos” e dispôs que “[fosse dado trâmite do] ofício à Superintendência de Bancos
e Seguros; bem como ao Ministério de Economia e Finanças, para que proced[essem] a dar cumprimento
ao ordenado na Ordem de Execução Suprema de dez de outubro de 1994 e cumpr[issem] em pagar ao
demandante sua aposentadoria mensal que recebia, bem como as devoluções correspondentes aos meses
deixados de receber a que tem direito”.122
89.y) Em 4 de maio de 1995, a SBS, mediante resolução administrativa nº 332-95, resolveu “[n]ivelar, em
cumprimento ao disposto na Ordem Executória Suprema de 94.10.10 e, em fase de execução de sentença,
à ordem do Juiz do Décimo Nono Juízo Civil de Lima, mediante Resolução nº 1, de 94.11.22, o valor da
pensão que corresponde ser paga ao senhor Maximiliano Gamarra Ferreyra com as remunerações que
recebiam os trabalhadores desta Superintendência da mesma categoria ou equivalente na oportunidade em
que se deram os reajustes de salários; bem como realizar as devoluções correspondentes, na forma e modo
que se indica no anexo […], o qual forma parte integrante da […] Resolução.123
89.z) O senhor Maximiliano Gamarra Ferreyra faleceu em 6 de agosto de 1997.124 Sua viúva é a senhora Sara Elena
Castro Remy125 e suas filhas são Patricia Elena e Sara Esther Gamarra Castro.126
89.aa) Em 12 de março de 2002, a SBS emitiu a resolução administrativa nº 251-2002, na qual, inter alia, ordenou
“[d]ar cumprimento à Resolução SBS nº 332-95, de 4 de maio de 1995, deduzindo-se da soma a pagar ao
senhor Maximiliano Gamarra Ferreyra, as quantias que o Ministério de Economia e Finanças lhe [tivesse]
depositado, em aplicação do Art. 5º do Decreto Lei nº 25.792, entre 1º de novembro de 1992 e 23 de janeiro
ao Estado não Incluídos no Decreto-Lei nº 19.990” de 26 de fevereiro de 1974 (expediente de anexos à demanda, anexo 19, folhas 78 a 85).
116. Cf. sentença nº 3023 da Primeira Sala Civil da Corte Superior de Justiça de Lima emitida em 30 de dezembro de 1993, em relação ao
mandado de segurança interposto pelo senhor Maximiliano Gamarra Ferreyra (expediente de anexos à demanda, anexo 47, folhas 185 e 186).
117. Cf. nota 116 supra.
118. Cf. mandado de segurança de 6 de outubro de 1992 interposto pelo senhor Maximiliano Gamarra Ferreyra perante o Juiz de Primeira
Instância Civil (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo II, anexo 8 da contestação à demanda, folhas 372 a 381).
119. Cf. nota 120 infra.
120. Cf. sentença da Primeira Sala Civil da Corte Superior de Lima emitida em 30 de dezembro de 1993, em relação ao mandado de segurança
interposto pelo senhor Maximiliano Gamarra Ferreyra (expediente de anexos à demanda, anexo 47, folhas 185 e 186).
121. Cf. sentença da Sala de Direito Constitucional e Social da Corte Suprema de Justiça emitida em 10 de outubro de 1994, publicada no Diário
Oficial El Peruano de 2 de dezembro de 1994, em relação ao mandado de segurança interposto pelo senhor Maximiliano Gamarra Ferreyra
(expediente de anexos à demanda, anexo 48, folhas 187 e 188).
122. Cf. ofício de 19 de dezembro de 1994 do Juiz Titular do 19º Juízo Especializado Civil de Lima dirigido ao Chefe da Superintendência de
Bancos e Seguros, mediante o qual profere a resolução de 22 de novembro de 1994 emitida por este Juízo (expediente de anexos à demanda,
anexo 49, folha 190).
123. Cf. resolução administrativa SBS nº 332-95 de 4 de maio de 1995, em relação ao senhor Maximiliano Gamarra Ferreyra (expediente de
anexos à demanda, anexo 53, folhas 199 a 201).
124. Cf. certidão de óbito emitida pelo Registro Nacional de Identificação e Estado Civil do Peru, a respeito do senhor Maximiliano Gamarra
Ferreyra (expediente de anexos à demanda, anexo 59, folha 216).
125. Cf. certidão de casamento nº 591 de 1º de setembro de 1962, celebrado entre o senhor Maximiliano Gamarra Ferreyra e a senhora Sara
Elena Castro Remy (expediente de anexos à demanda, anexo 60, folha 217).
126. Cf. certidão de nascimento nº 1752 de 1º de março de 1967, emitida pelo Conselho Provincial de Lima, Seção de Nascimentos do Registro
do Estado Civil, a respeito da senhora Patricia Elena Gamarra Castro (expediente de anexos à demanda, anexo 61, folha 218); e certidão de
nascimento nº 3927 de 26 de junho de 1963, emitida pelo Conselho Provincial de Lima, Seção de Nascimentos do Registro do Estado Civil, a
respeito da senhora Sara Esther Gamarra Castro (expediente de anexos à demanda, anexo 62, folha 219).
30
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
de 2002”. No artigo terceiro desta resolução de 2002, a SBS “[deixou] a salvo o direito […] de deduzir, de
acordo com a decisão que venha a emitir a Corte Interamericana de Direitos Humanos […], o valor que
possa resultar excessivo ao dar-se cumprimento à Resolução SBS nº 332-95, de 4 de maio de 1995, caso
no qual se terá em conta o previsto expressamente no Art. 53 do Decreto Lei nº 20.530, que autoriza a
penhorar o valor das pensões para pagar dívidas.”127
89.bb) Em 18 de março de 2002, a SBS pagou à viúva do senhor Gamarra Ferreyra a quantia determinada na
resolução administrativa nº 251-2002, correspondente aos valores das pensões de aposentadoria
niveláveis deixados de receber pelo senhor Gamarra Ferreyra desde novembro de 1992 até outubro de
1997, e aos valores das pensões de viuvez deixadas de receber pela senhora Sara Elena Castro Remy
desde novembro de 1997 até fevereiro de 2002, o que não incluía o pagamento de juros.128 Em março de
2002 a pensão nivelada foi reestabelecida e, a partir de abril de 2002, a viúva do senhor Gamarra Ferreyra
recebeu periodicamente o pagamento nivelado das pensões; atualmente recebe uma pensão mensal de
viuvez de aproximadamente S/. 25.762,50 (vinte e cinco mil setecentos e sessenta e dois soles e cinquenta
centavos).129
Reymert Bartra Vásquez
89.cc) O senhor Bartra Vásquez começou a trabalhar na Administração Pública em 1964 e em 13 de junho de
1990 parou de trabalhar na SBS.130 O último cargo que ocupou em tal instituição foi o de Assessor Técnico
da Superintendência Adjunta de Entidades Especializadas.131 No momento de sua aposentadoria lhe foram
reconhecidos 25 anos, 10 meses e 26 dias de serviços prestados à Administração Pública.132 Encontra-se
submetido ao regime de pensões estabelecido no Decreto-Lei nº 20.530.133
89.dd) O valor da pensão por aposentadoria que lhe foi pago em 21 de fevereiro de 1992 foi de S/. 2.700,74
(dois mil e setecentos soles e setenta e quatro centavos).134 De abril a outubro de 1992, foi suspenso o
pagamento a título de pensão, sem prévio aviso nem procedimento algum e, a partir de novembro daquele
ano, a pensão foi reduzida em aproximadamente 81%, a um valor de S/. 504,00 (quinhentos e quatro
soles).135
89.ee) Em 1º de julho de 1992, o senhor Bartra Vásquez impetrou um mandado de segurança contra a SBS.136
Em 7 de agosto de 1992, o 26º Juízo Civil de Lima ordenou, como medida cautelar que a SBS pagasse
a pensão de aposentadoria a que tinha direito o demandante.137 A decisão anterior foi apelada e, em 14
127. Cf. resolução administrativa SBS nº 251-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Maximiliano Gamarra Ferreyra (expediente
sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas
vítimas e seus familiares, folhas 979 a 982).
128. Cf. testemunho do senhor Carlos Torres Benvenuto prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; testemunho do senhor Guillermo
Álvarez Hernández prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das
supostas vítimas e seus familiares (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, folha 898); e resolução administrativa SBS nº
251-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Maximiliano Gamarra Ferreyra (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações,
tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares, folhas 979 a 982).
129. Cf. testemunho do senhor Carlos Torres Benvenuto prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; testemunho do senhor Guillermo
Álvarez Hernández prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das
supostas vítimas e seus familiares (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, folha 899); e resolução administrativa SBS nº
251-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Maximiliano Gamarra Ferreyra (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações,
tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares, folhas 979 a 982).
130. Cf. resolução administrativa SBS nº 412-90 de 4 de julho de 1990, em relação ao senhor Reymert Bartra Vásquez (expediente de anexos
à demanda, anexo 16, folha 73).
131. Cf. nota 130 supra.
132. Cf. nota 130 supra.
133. Cf. resolução administrativa SBS nº 254-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Reymert Bartra Vásquez (expediente sobre
o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas
e seus familiares, folhas 991 a 994).
134. Cf. planilha de pagamento da SBS de fevereiro de 1992, a respeito do senhor Reymert Bartra Vásquez (expediente de anexos à demanda,
anexo 31, folha 153).
135. Cf. mandado de segurança de 30 de junho de 1992 interposto pelo senhor Reymert Bartra Vásquez em 1º de julho de 1992 perante
o Vigésimo Sexto Juízo Civil (expediente de anexos à demanda, anexo 42, folhas 173 a 175); resolução do Juízo Civil de Lima de primeira
instância emitida em 7 de janeiro de 1993, em relação ao mandado de segurança interposto pelo senhor Reymert Bartra Vásquez (expediente
de anexos à demanda, anexo 44, folhas 178 a 180); planilha de pagamento do MEF de fevereiro de 1993, a respeito do senhor Reymert Bartra
Vásquez (expediente de anexos à demanda, anexo 34, folha 157); e resolução administrativa SBS nº 254-2002 de 12 de março de 2002, em
relação ao senhor Reymert Bartra Vásquez (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho
de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares, folhas 991 a 994).
136. Cf. mandado de segurança de 30 de junho de 1992 interposto pelo senhor Reymert Bartra Vásquez em 1º de julho de 1992 perante o
Vigésimo Sexto Juízo Civil (expediente de anexos à demanda, anexo 42, folhas 173 a 175).
137. Cf. escrito de demanda apresentado pela Comissão Interamericana (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo I, folha
31
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
de setembro de 1992, a Segunda Turma Civil da Corte Superior de Justiça de Lima confirmou a medida
cautelar ordenada.138 A SBS pagou ao senhor Bartra Vásquez as pensões correspondentes aos meses
em que havia suspendido os pagamentos, mas reduzindo o montante a S/. 504,00 (quinhentos e quatro
soles).139 Em 7 de janeiro de 1993, o Juízo Civil de Lima de primeira instância declarou com mérito
o mandado de segurança impetrado e ordenou à SBS que “cumpr[isse] em restituir ao demandante
Reymert Bartra Vásquez a pensão de aposentadoria que lhe corresponde legalmente”.140 A referida
sentença emitida pelo Juízo Civil de Lima de primeira instância foi apelada e, em 29 de outubro de
1993, a Segunda Turma Civil da Corte Superior de Justiça de Lima confirmou a decisão que declarou
com mérito o mandado de segurança.141 Em 28 de junho de 1994, a Sala de Direito Constitucional e
Social da Corte Suprema de Justiça declarou que não havia nulidade na sentença emitida pela Segunda
Sala Civil da Corte Superior de Lima, declarou com mérito o mandado de segurança impetrado e, em
consequência, ordenou que a SBS “cumpr[isse] em restituir ao autor a pensão de aposentadoria que lhe
correspond[ia] legalmente”.142
89.ff) Em 14 de junho de 1995, a SBS, mediante resolução administrativa nº 391-95, resolveu nivelar o valor da
pensão do senhor Bartra Vásquez, “tomando em conta para tanto as remunerações que se pagam aos
trabalhadores da Superintendência, ordenando pagar ao beneficiário as devoluções correspondentes, na
forma que se detalha no anexo que […] forma parte integrante do mesmo ato administrativo”.143
89.gg) Em 12 de março de 2002, a SBS emitiu a resolução administrativa nº 254-2002, na qual, inter alia, ordenou
“[d]ar cumprimento à Resolução SBS nº 391-95, de 14 de junho de 1995, deduzindo-se da soma a pagar
ao senhor Reymert Bartra Vásquez, as quantias que o Ministério de Economia e Finanças lhe tenha
depositado, em aplicação do Art. 5º do Decreto Lei nº 25.792, entre 1º de novembro de 1992 e 23 de janeiro
de 2002”. No artigo terceiro desta resolução de 2002, a SBS “[deixou] a salvo o direito […] de deduzir, de
acordo com a decisão que venha a emitir a Corte Interamericana de Direitos Humanos […], o valor que
possa resultar excessivo ao dar-se cumprimento à Resolução SBS nº 391-95, de 14 de junho de 1995,
caso no qual se terá em conta o previsto expressamente no Art. 53 do Decreto Lei nº 20.530, que autoriza
a penhorar o valor das pensões para pagar dívidas.”144
89.hh) Em 18 de março de 2002, a SBS pagou ao senhor Bartra Vásquez a quantia determinada na resolução
administrativa nº 254-2002, correspondente à devolução dos valores das pensões niveláveis deixados
de receber desde novembro de 1992 até fevereiro de 2002, o que não incluía o pagamento de juros.145
Em março de 2002, foi restabelecida a pensão nivelada e, a partir de abril de 2002, o senhor Bartra
Vásquez recebeu periodicamente o pagamento nivelado de suas pensões; atualmente recebe uma pensão
de aproximadamente S/. 13.281,24 (treze mil duzentos e oitenta e um soles e vinte e quatro centavos).146
20); e escrito de petições, argumentos e provas apresentado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares (expediente sobre o
mérito e as eventuais reparações, tomo I, folhas 170 e 174).
138. Cf. nota 137 supra.
139. Cf. nota 137 supra.
140. Cf. sentença do Juízo Civil de Lima de primeira instância emitida em 7 de janeiro de 1993, em relação ao mandado de segurança interposto
pelo senhor Reymert Bartra Vásquez (expediente de anexos à demanda, anexo 44, folhas 178 a 180).
141. Cf. sentença da Segunda Sala Civil da Corte Superior de Lima emitida em 29 de outubro de 1993, em relação ao mandado de segurança
interposto pelo senhor Reymert Bartra Vásquez (expediente de anexos à demanda, anexo 45, folhas 181 e 182).
142. Cf. sentença da Sala de Direito Constitucional e Social da Corte Suprema de Justiça emitida em 28 de junho de 1994, publicada no
Diário Oficial El Peruano de 14 de setembro de 1994, em relação ao mandado de segurança interposto pelo senhor Reymert Bartra Vásquez
(expediente de anexos à demanda, anexo 46, folhas 183 e 184).
143. Cf. nota 144 infra.
144. Cf. resolução administrativa SBS nº 254-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Reymert Bartra Vásquez (expediente sobre
o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas
e seus familiares, folhas 991 a 994).
145. Cf. testemunho do senhor Carlos Torres Benvenuto prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; testemunho do senhor Guillermo
Álvarez Hernández prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das
supostas vítimas e seus familiares (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, folha 898); e resolução administrativa SBS
nº 254-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Reymert Bartra Vásquez (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações,
tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares, folhas 991 a 994).
146. Cf. testemunho do senhor Carlos Torres Benvenuto prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; testemunho do senhor Guillermo
Álvarez Hernández prestado perante a Corte em 3 de setembro de 2002; escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das
supostas vítimas e seus familiares (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, folha 899); e resolução administrativa SBS
nº 254-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Reymert Bartra Vásquez (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações,
tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares, folhas 991 a 994).
32
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
VII
Violação do artigo 21
(Direito à Propriedade Privada)
Alegações da Comissão
90. Quanto ao artigo 21 da Convenção, a Comissão argumentou que:
a) o Estado violou esta norma ao diminuir, em detrimento das supostas vítimas, mediante uma lei, o valor
das pensões niveladas que recebiam como aposentadoria. No presente caso, o direito a receber uma
pensão por aposentadoria calculada de acordo com o Decreto-Lei nº 20.530 e suas normas conexas, é
um bem que ingressou ao patrimônio das supostas vítimas e por isso gozavam de todas as garantias
estabelecidas no artigo 21 da Convenção;
b) quando as supostas vítimas deixaram de trabalhar na SBS, optaram pelo regime de aposentadorias
previsto no Decreto-Lei nº 20.530, e a referida instituição reconheceu o direito a receberem uma
pensão de aposentadoria nivelada progressivamente com a remuneração do titular em atividade da
SBS que ocupasse o mesmo posto ou função análoga à que eles desempenhavam na data de sua
aposentadoria. Tal direito adquirido apenas podia ser modificado pelo Estado, em prejuízo dos cinco
aposentados, com respeito aos parâmetros estabelecidos no artigo 21 da Convenção. Segundo esta
norma, uma redução será violatória do direito à propriedade se for substancial, tal como ocorreu no
presente caso, no qual a redução foi de aproximadamente 80% do valor das pensões; e
c) para interpretar o alcance do conteúdo do direito à propriedade estabelecido no artigo 21 da Convenção,
é relevante tomar em consideração o que estabelece o artigo 29.b) deste tratado. A Primeira Disposição
Final e Transitória da Constituição Política do Peru de 1993 reconheceu o caráter de direito adquirido
às pensões dos trabalhadores públicos, e o Tribunal Constitucional estabeleceu que o direito a uma
pensão nivelável estabelecido no Decreto-Lei nº 20.530 constitui um direito adquirido.
Alegações dos representantes das supostas vítimas e seus familiares
91. Em relação ao artigo 21 da Convenção, os representantes das supostas vítimas e seus familiares afirmaram que:
a) as pensões das supostas vítimas foram niveladas de acordo com o regime do Decreto-Lei nº 20.530,
cada vez que se modificava a escala de remunerações de seus homólogos em atividade na SBS, até
que, em setembro de 1992, as supostas vítimas foram privadas de forma ilegal e inconstitucional dos
recursos econômicos que representavam suas pensões completas, niveladas. A redução das pensões
se realizou primeiro como uma “retenção de fato” e depois foi supostamente “legalizada” através da
aplicação retroativa de “limites máximos de aposentadorias”, estabelecidos em novembro de 1992
pelo Decreto-Lei nº 25.792, o que significou uma diminuição substantiva no patrimônio dos cinco
aposentados e teve “conotações de confisco”;
b) a redução das pensões não se baseou em uma decisão estatal fundamentada em razões de utilidade
pública ou de interesse social e, “ainda na hipótese negada de que assim houvesse sido, a decisão
estatal orientada a este fim não se tramitou conforme as formas estabelecidas na lei e nas regras do
devido processo legal”. Tampouco existe constância de que tal limitação tenha sido baseada em “algum
critério de razoabilidade”, isto é, que respondesse a um fim legítimo, “que representasse os interesses
da sociedade e não alterasse a substância dos direitos temporariamente lesados”. A afetação do direito
à propriedade privada se realizou fora do âmbito de permissividade contemplado na Convenção;
c) o Estado se obrigou a administrar adequadamente o Fundo de Pensões administrado pela SBS -ao qual
os cinco aposentados realizaram suas contribuições- e garantir o pagamento futuro de suas pensões
dentro do regime previdenciário regulamentado pelo Decreto-Lei nº 20.530. Ao se aposentarem
da SBS e optarem por usufruir da pensão nivelada, as supostas vítimas assumiram a condição de
credores do Estado, que -através da SBS- assumiu a condição de devedor destes, de modo que se
encontrava obrigado a pagar-lhes mensalmente uma pensão nivelada “com a remuneração de seus
homólogos em atividade, que desempenhassem a mesma ou análoga função à que tais aposentados
realizaram enquanto se encontravam em atividade”. A “redução unilateral” das pensões das supostas
vítimas “constituiu uma expropriação ilegítima e indevida de um patrimônio do qual eram credores e
legalmente era de sua propriedade”;
d) a Primeira Disposição Final e Transitória da Constituição Política do Peru de 1993 estabeleceu que os
33
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
direitos legalmente reconhecidos em matéria previdenciária são direitos adquiridos, não suscetíveis de
diminuição pelo estabelecimento de modificações adicionais nos regimes previdenciários, e o Tribunal
Constitucional afirmou que o direito a uma pensão nivelada, regulamentado no Decreto-Lei nº 20.530,
constitui um direito adquirido. Com base no critério estabelecido no artigo 29.b) da Convenção, o
caráter de direito adquirido das pensões dos trabalhadores sujeitos ao regime de pensões do DecretoLei nº 20.530 forma parte do conteúdo do direito à propriedade privada garantido pelo artigo 21 da
Convenção; e
e) “até 1990, e de acordo com o disposto em diversas normas que reabriram o regime de pensões
regulamentado pelo DL 20.530, bem como as disposições dos Tribunais Administrativos
correspondentes, [a] acumulação [de serviços prestados à administração estatal sob os regimes
trabalhistas dos setores público e privado] foi invariável e regularmente aplicada pela administração
estatal, incluindo a própria Superintendência de Bancos e Seguros”.
Alegações do Estado
92. Com respeito ao artigo 21 da Convenção, o Estado afirmou que na demanda se solicitou à Corte que declarasse
que o Peru é responsável pela violação deste artigo por ter diminuído o valor das pensões niveladas em prejuízo
dos cinco aposentados, “mediante lei, (aparentemente o Decreto Lei 25.792)”. A este respeito, o Peru afirmou
que o referido Decreto-Lei nº 25.792 foi derrogado por meio da Lei nº 27.650, publicada em 23 de janeiro de
2002, e acrescentou as seguintes alegações:
a) a derrogação da mencionada norma “não introduz maiores mudanças à situação dos aposentados[,]
salvo no referente a que o pagamento de suas pensões se dará por conta da Superintendência
de Bancos e Seguros mas sem que se produza uma alteração quanto ao valor recebido, já que a
mencionada derrogação lhes outorga um direito distinto ao que lhes corresponde[,] que é receber
sua pensão renovável em função de uma referência do sistema do Decreto Lei 20.530 e não a de um
trabalhador que estivesse sujeito ao regime trabalhista da atividade privada”;
b) é incorreto o afirmado na demanda, no sentido de que o Decreto-Lei nº 25.792 foi o argumento legal
do Estado para desconhecer o direito adquirido pelos cinco aposentados a receber uma pensão
vinculada à remuneração do titular em atividade que ocupava o mesmo posto ou função análoga à que
desempenhavam os aposentados no momento em que deixaram de trabalhar para a SBS. A referida
norma “é posterior à redução que se materializou por parte da Superintendência de Bancos e Seguros
e que foi regularizada com o pagamento das devoluções”;
c) as pensões concedidas às supostas vítimas “eram as que lhes correspondiam como aposentados do
regime do Decreto Lei 20.530”. Por outro lado, o Decreto-Lei nº 25.792 não impôs limites máximos
às pensões “já que os limites existiram desde antes desta norma legal”. A segunda parte do artigo 5º
da referida norma “não continha nenhum efeito limitador que não estivesse consignado em diversas
normas” e na Constituição Política; “não afetava os cinco aposentados pois não fazia nada além de
ratificar que suas pensões estavam relacionadas, para efeitos de sua homologação, ao pessoal do
regime de trabalhadores públicos”. Quando o Estado determinou limites máximos o fez através de
disposições legais claras e precisas, nas quais se afirmaram a pensão máxima que se podia conceder,
por exemplo, na Lei de Orçamento de 1991 e prorrogada no ano 1992;
d) não existia nenhum inconveniente legal ou constitucional para que, mediante o Decreto-Lei
nº 25.792, fosse ordenado que o pagamento das pensões fosse transferido ao MEF, “já que o
Estado se encontra facultado a indicar qu[al] dependência paga as pensões dos aposentados e
isso se [realizou] tendo em conta que a Superintendência de Bancos e Seguros tinha um regime
de pessoal próprio dos trabalhadores do setor privado e seus trabalhadores e funcionários não
estavam dentro dos alcances do regime previdenciário da Lei 20.530[,] como sim estavam os
aposentados por ser este o regime sob o qual trabalharam e contribuíram ao correspondente
fundo de pensões”. Ademais, não é certo o afirmado pela Comissão na demanda, no sentido de que
o Decreto-Lei nº 25.792 foi emitido como uma reação aos mandados de segurança interpostos,
já que com anterioridade à interposição destas ações foram emitidas outras normas similares
ao Decreto-Lei nº 25.792, com o objetivo de corrigir as distorções que se haviam produzido no
sistema previdenciário peruano;
e) “desde certa perspectiva, po[de]-se considerar que o fato de ter ocorrido um corte nas pensões dos
cinco aposentados é uma situação contrária à lógica previdenciária. Entretanto, é necessário destacar
34
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
f)
g)
h)
i)
j)
k)
que tais atos foram produzidos em aplicação de normas legais que foram inclusive consideradas como
Constitucionais –ainda que posteriormente teria sido possível realizar uma variação de critério”;
“a infração de uma norma legal não necessariamente deve ser qualificada como uma violação de direitos
humanos”; “para qualificar qualquer fato como violatório de direitos humanos, requer-se que este tenha
sido cometido com intencionalidade e existindo sem dúvida um animus nocendi. Estes requisitos não
ocorreram neste caso porquanto a existência de limites máximos, tanto nas remunerações como nas
pensões, foi considerada como válida desde o ponto de vista constitucional”. Somado a isso, “devese tomar em consideração para explicar certas situações, um estado de necessidade evidente que
pudesse ter conduzido à realização de um dos atos matéria de julgamento (imposição de limites às
pensões ou remunerações)[,] como seria uma crise orçamentária impossível de administrar de outra
forma[; …] toda legislação tem mecanismos de proteção diante de situações de crise como são a
força maior, caso fortuito, lesão e excessiva onerosidade na prestação[, os quais] permitem alterar o
cumprimento das obrigações em situações excepcionais”;
“o direito de propriedade não está em discussão em um caso como este, devendo-se ter presente
que tal direito pode ser subordinado pela lei ao interesse social”. A diminuição no valor da pensão
“se deveu ao indicado na Lei de Orçamento da República de 1991, prorrogada para 1992, à qual as
supostas vítimas não fizeram nenhuma referência”. Quando foi emitida esta lei, foi apresentado um
questionamento ao Tribunal de Garantias Constitucionais, o qual declarou que os limites máximos
eram constitucionalmente válidos. Naquele momento se encontrava vigente a Constituição Política de
1979, segundo a qual as pensões “são reajustadas periodicamente, tendo em conta o custo de vida e
as possibilidades da economia nacional, de acordo com a lei”;
“não foram devidamente esgotados os recursos da jurisdição interna”, em razão de que nem os cinco
aposentados nem qualquer outra autoridade estatal questionou os efeitos, constitucionalidade ou
aplicação do Decreto-Lei nº 25.792, “norma legal de cujo descumprimento se acusa ao Estado”;
devido a que não foi interposta nenhuma reclamação contra as ações de pagamento de pensões
realizadas pelo MEF, em aplicação do Decreto-Lei nº 25.792, “estas ações se tornaram definitivas.
A melhor prova disso é que a pensão que correspondia foi assumida pelo Ministério mencionado
até que se derrogou o dispositivo legal, passando-se novamente a responsabilidade de pagamento
à Superintendência de Bancos e Seguros”. Os cinco aposentados pretendem “projetar os efeitos de
sentenças cumpridas a uma nova situação que se apresentou posteriormente, por aplicação de uma
norma posterior”;
os cinco aposentados trabalharam dentro do regime trabalhista público e nenhum trabalhou sujeito
ao regime trabalhista da atividade privada. Por mandato legal e disposição constitucional os serviços
prestados em ambos os regimes não são acumuláveis. Os cinco aposentados pretendem “que seja
reconhecido um direito que não lhes corresponde”, que é a regulamentação ou atualização de suas
pensões tomando como referência o salário de um funcionário em atividade da SBS, que pertence a
um regime trabalhista e de pensões diferente; e
o Estado pagou aos cinco aposentados a reposição das pensões que reclamavam e decidiu “continuar
com este pagamento no valor que foi determinado, que não é o que lhes corresponde legalmente, na
medida em que não seja revertido por um Juiz Nacional”. “[O]s mandados de segurança impetrados
pelos aposentados dentro da jurisdição nacional apenas ordenaram a restituição das coisas ao estado
anterior à alegada infração, mas não se pronunciaram sobre a procedência do direito reclamado”.
Considerações da Corte
93. O artigo 21 da Convenção afirma que:
1. Toda pessoa tem direito ao uso e gozo dos seus bens. A lei pode subordinar esse uso e gozo ao
interesse social.
2. Nenhuma pessoa pode ser privada de seus bens, salvo mediante o pagamento de indenização justa,
por motivo de utilidade pública ou de interesse social e nos casos e na forma estabelecidos pela lei.
3. Tanto a usura como qualquer outra forma de exploração do homem pelo homem devem ser reprimidas
pela lei.
94. A Corte observa que no presente caso não existe controvérsia entre as partes sobre se as supostas vítimas têm
direito à pensão ou não. Todas estão de acordo em que os senhores Carlos Torres Benvenuto, Javier Mujica Ruiz-
35
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Huidobro, Guillermo Álvarez Hernández, Maximiliano Gamarra Ferreyra e Reymert Bartra Vásquez, ao terminarem
de trabalhar na SBS, obtiveram o direito à pensão por aposentadoria sob o regime estabelecido no Decreto-Lei
nº 20.530.147 A controvérsia entre as partes é a respeito de se os parâmetros utilizados pelo Estado, para reduzir
ou recalcular os valores das pensões das supostas vítimas a partir de 1992 configuram uma violação do direito
à propriedade delas.
95. Para dirimir a controvérsia entre as partes, a Corte analisará principalmente dois pontos, a saber: a) se o direito
à pensão pode ser considerado um direito adquirido e o que isso significa; e b) quais parâmetros devem ter-se
em conta para quantificar o direito à pensão, e se este direito pode ser objeto de limites.
96. a) Primeiro Ponto. No que se refere a se o direito à pensão é um direito adquirido ou não, esta controvérsia já foi
resolvida pela Constituição Política do Peru e pelo Tribunal Constitucional peruano.
97. A este respeito, a Constituição Política do Peru de 1993 afirma em sua primeira Disposição Final e Transitória que:
Os novos regimes sociais obrigatórios, que se estabeleçam sobre matéria de pensões dos trabalhadores
públicos, não afetam os direitos legalmente obtidos, em particular o correspondente aos regimes dos
Decretos Leis 19.990 e 20.530 e suas modificações.148
98. Ao se referir à anterior norma da Constituição Política, o Tribunal Constitucional do Peru assinalou que:
Uma correta interpretação de tal disposição não pode ser outra que a de consagrar, no âmbito
constitucional, os direitos adquiridos em matéria previdenciária pelos aposentados sujeitos aos regimes
dos Decretos Leis 19.990 e 20.530, entendendo-se como direitos adquiridos “aqueles que adentraram
nosso domínio, que fazem parte dele, e dos quais já não nos podem privar aquilo de quem os temos”.149
99. Além disso, o Tribunal Constitucional, mediante sentença proferida em 23 de abril de 1997, afirmou que uma
vez que se cumprem os requisitos indicados no Decreto-Lei nº 20.530 e suas normas complementares, para a
concessão da pensão, o trabalhador
[…] incorpora ao seu patrimônio um direito em virtude do mandato expresso da lei, que não está
limitado ao reconhecimento da administração, que não é a que de modo algum concede o direito,
o qual, como se recordou, nasce do cumprimento dos requisitos estabelecidos na lei. É assim que
aqueles que se encontravam sob o amparo do regime do Decreto Lei 20.530, que até antes da entrada
em vigência do Decreto Legislativo 817 já tivessem cumprido os requisitos indicados pela norma, isto
é, ter trabalhado 20 anos ou mais de serviços; têm direito a uma pensão nivelada, conforme dispôs, em
sua oportunidade, o Decreto Lei 20.530 e suas modificações.
100. De igual forma, o Tribunal Constitucional peruano assinalou, na sentença antes indicada, que:
Sendo o principal efeito da incorporação ao regime do Decreto Lei N° 20.530, 1) ter a qualidade de
aposentado do mesmo, 2) ter a faculdade de adquirir direito à pensão ao alcançar 15 anos de serviços o
homem e 12 e meio a mulher, as mesmas que se regulamentam conforme o estabelecido no artigo 5º do
mesmo, e 3) ter o direito a uma pensão nivelada, com os requisitos estabelecidos no Decreto Lei antes
referido, todos estes constituem, então, direitos adquiridos conforme estabelece a Primeira Disposição
Final e Transitória da Constituição vigente.
101. Há de se ter presente também o indicado no artigo 29.b) da Convenção Americana no sentido de que nenhuma
disposição desta pode ser interpretada para “limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que
possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados Partes…”.
102. Nesta ordem de ideias, o artigo 21 da Convenção protege o direito dos cinco aposentados a receber uma
pensão de aposentadoria nivelada de acordo com o Decreto-Lei nº 20.530, no sentido de que se trata de um
direito adquirido, de acordo com o disposto na normativa constitucional peruana, ou seja, de um direito que se
incorporou ao patrimônio das pessoas.
103. À luz do indicado na Constituição Política do Peru, do disposto pelo Tribunal Constitucional peruano,
de acordo com o artigo 29.b) da Convenção -o qual proíbe uma interpretação restritiva dos direitos-, e
mediante uma interpretação evolutiva dos instrumentos internacionais de proteção de direitos humanos,
esta Corte considera que, desde o momento em que os senhores Carlos Torres Benvenuto, Javier Mujica
Ruiz-Huidobro, Guillermo Álvarez Hernández, Maximiliano Gamarra Ferreyra e Reymert Bartra Vásquez
pagaram suas contribuições ao Fundo de Pensões regido pelo Decreto-Lei nº 20.530, deixaram de prestar
147. O mencionado Decreto-Lei N˚ 20.530, intitulado “Regime de Aposentadorias e Compensações por Serviços Civis prestados ao Estado
não incluídos no Decreto-Lei 19990”, dispõe que: Art.4º.-O trabalhador adquire direito à pensão ao alcançar quinze anos de serviços reais e
remunerados, se for homem; e doze e meio, se for mulher.
148. Constituição Política do Peru emitida em 29 de dezembro de 1993 (expediente de anexos à demanda, anexo 64, folhas 248 a 289).
149. Sentença do Tribunal Constitucional do Peru emitida em 23 de abril de 1997, a respeito do expediente nº 008-96-I/TC (expediente de
anexos à demanda, anexo 65, folhas 290 a 322).
36
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
serviços à SBS e optaram pelo regime de aposentadoria previsto neste decreto-lei, adquiriram o direito
a que suas pensões fossem regidas nos termos e condições previstas no mencionado decreto-lei e suas
normas conexas. Em outras palavras, os aposentados adquiriram um direito de propriedade sobre os efeitos
patrimoniais do direito à pensão, de acordo com o Decreto-Lei nº 20.530 e nos termos do artigo 21 da
Convenção Americana.150
104. b) Segundo Ponto. Conforme o indicado anteriormente, foi estabelecido que as supostas vítimas têm um
direito adquirido ao pagamento de uma pensão e, mais precisamente, a uma pensão cujo valor se nivele com
a remuneração recebida pelas pessoas que estejam desempenhando os mesmos ou similares trabalhos aos
que elas exerciam no momento de se aposentarem do cargo. Então, a controvérsia se refere a outro ponto. As
pessoas que desempenham trabalhos iguais ou similares aos que exerciam os cinco aposentados podem estar
submetidas a dois regimes distintos, o de atividade pública e o de atividade privada, e suas remunerações variam,
dependendo do regime a que estejam sujeitas, sendo notoriamente mais elevada a remuneração do segundo
regime que a do primeiro. Em consequência, a disposição do acordo segundo a qual os cinco aposentados
receberão uma pensão equivalente à remuneração do pessoal em atividade, possui uma ambiguidade que
precisa ser esclarecida para definir quais são o conteúdo e os alcances do direito adquirido à pensão.
105. A este respeito, é pertinente fazer referência à Lei nº 23.495, chamada “Nivelação Progressiva das Pensões dos
Desempregados e dos Aposentados da Administração Pública não submetidos ao Regime do Seguro Social ou
a outros Regimes Especiais”, a qual afirma em seu artigo primeiro que:
A nivelação progressiva das pensões dos aposentados com mais de 20 anos de serviços e dos
aposentados da Administração Pública não submetidos ao regime do Seguro Social ou a outros
regimes especiais, realizar-se-á com a remuneração dos servidores públicos das respectivas categorias
em atividade...
106. A Comissão e os representantes das supostas vítimas e seus familiares consideram que o cálculo do valor da
pensão a que têm direito os cinco aposentados deve ser feito com base no salário do funcionário ativo da SBS
que ocupe o mesmo cargo ou um equivalente ao que ocupava o aposentado no momento da aposentadoria. Por
sua vez, o Estado sustenta que este cálculo deve ser feito mediante uma nivelação com o salário de um servidor
em atividade da mesma categoria e regime trabalhista (público), que as supostas vítimas tinham no momento
de passarem à aposentadoria. O Estado sustenta que a nivelação de uma pensão com base nas remunerações
recebidas por trabalhadores sujeitos ao regime trabalhista da atividade privada, não está em concordância com
o disposto no Decreto-Lei nº 20.530.
107. Para a análise deste ponto a Corte considera conveniente distinguir duas etapas ou períodos diferentes:
1. Desde o fim das funções a março e agosto de 1992; e
2. Desde a redução das pensões até março de 2002.
a) Primeira Etapa
108. Está provado que a interpretação do Decreto-Lei N˚ 20.530 efetuada pelo Estado (através de resoluções
administrativas da SBS) para realizar o cálculo das pensões desde o término das funções das supostas vítimas
até agosto de 1992, com exceção do senhor Reymert Bartra, que foi desde o término de suas funções até março
de 1992, nivelou-se sobre a base do salário que recebia a pessoa que desempenhava o mesmo posto ocupado
por eles na SBS no momento de aposentar-se, sem importar que a partir de junho de 1981 os servidores desta
instituição eram regidos pelo regime trabalhista da atividade privada. É assim como os cinco aposentados
receberam uma pensão nivelada nestes termos, da seguinte maneira: o senhor Carlos Torres Benvenuto a
recebeu desde janeiro de 1987 até agosto de 1992; o senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro a recebeu desde
agosto de 1983 até agosto de 1992; o senhor Guillermo Álvarez Hernández a recebeu desde agosto de 1984 até
agosto de 1992; o senhor Maximiliano Gamarra Ferreyra a recebeu desde outubro de 1975 até agosto de 1992,
e o senhor Reymert Bartra Vásquez a recebeu desde julho de 1990 até março de 1992.
b) Segunda Etapa
109. Também está provado que a partir de abril (no caso do senhor Bartra Vásquez) e de setembro de 1992 (no
caso das demais supostas vítimas), aos cinco aposentados foi reduzido de fato o valor das pensões em
aproximadamente 78%. Esta redução foi arbitrária, já que quando as supostas vítimas se apresentaram a retirar
150. A Corte definiu os “bens” (Caso Ivcher Bronstein. Sentença de 6 de fevereiro de 2001. Série C Nº 74, par. 122) como “aquelas coisas
materiais apropriáveis, bem como todo direito que possa formar parte do patrimônio de uma pessoa; este conceito compreende todos os
móveis e imóveis, os elementos corporais e incorpóreos e qualquer outro objeto imaterial suscetível de valor”. Além disso, ver Tribunal
Europeu de Direitos Humanos, Caso Gaygusuz Vs. Áustria, Sentença de 16 de setembro de 1996, Mérito e reparações, pars. 39, 41.
37
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
suas pensões, receberam uma quantia de dinheiro muito menor à que vinham recebendo, sem que houvesse
sido emitida uma resolução ou ato jurídico que autorizasse tal redução. Ante esta situação, as supostas vítimas
interpuseram os recursos judiciais correspondentes (pars. 88.h) e 88.l) supra).
110. Antes do proferimento das sentenças que se pronunciariam sobre os mandados de segurança impetrados,
em outubro de 1992, foi emitido o Decreto-Lei nº 25.792, o qual “[a]utoriza a Superintendência de Bancos e
Seguros -SBS- a estabelecer um Programa de Incentivos para a Demissão Voluntária de seus Funcionários”.
No artigo 5 deste decreto-lei se afirmou o seguinte:
Transfira-se ao Orçamento do Ministério de Economia e Finanças a arrecadação das contribuições
e a atenção das pensões, remunerações ou similares que corresponderia pagar por parte da
Superintendência de Bancos e Seguros a seus aposentados e demitidos incluídos no regime do Decreto
Lei nº 20.530.
Estas pensões, remunerações ou similares terão como referência, inclusive para sua homologação, as
que este Ministério paga a seus trabalhadores e funcionários, conforme o Decreto Legislativo nº 276.
Em nenhum caso se homologarão ou se referirão às remunerações pagas pela Superintendência de
Bancos e Seguros ao pessoal sujeito à atividade privada.
111. A partir de novembro de 1992, à luz do artigo quinto do citado decreto-lei e das interpretações feitas do
Decreto-Lei nº 20.530, continuou-se pagando aos cinco aposentados uma pensão de aproximadamente 78%
inferior à que receberam nos meses de março a agosto de 1992.
112. Isto é, a partir dos meses de abril e setembro de 1992, e com posterioridade à emissão do Decreto-Lei nº 25.792,
o Estado modificou os parâmetros de determinação do valor da pensão nivelada, reduzindo consideravelmente
o valor dos pagamentos mensais que as supostas vítimas vinham recebendo.
113. Como resultado das ações de garantia interpostas pelos cinco aposentados (pars. 88.h) e 88.l), 89.c), 89.e),
89.j), 89.l), 89.q), 89.s), 89.x) e 89.ee) supra) foram proferidas cinco sentenças de mandado de segurança em
1994 e três sentenças de cumprimento, expedidas entre 1998 e 2000, que ordenavam continuar pagando a
pensão que vinham recebendo antes de ocorrer as reduções já indicadas.
114. A SBS pagou apenas as quantias devidas até outubro de 1992, para o que realizou os cálculos com base no
salário recebido por seus funcionários ativos. Entretanto, este foi o único pagamento de pensão nivelada que
os aposentados receberam com posterioridade à emissão das sentenças judiciais, até que em março de 2002
esta situação mudou, o que será analisado mais à frente (par. 119 infra). Em consequência, o Estado se absteve,
durante vários anos, de dar cabal aplicação a estas sentenças.
115. A Corte observa que, mesmo quando os trabalhadores da SBS passaram ao regime da atividade privada (1981)
a pensão nivelada podia ter sido determinada de acordo com o salário que recebia um funcionário sujeito ao
regime público de nível ou categoria similar ao das supostas vítimas, isto não foi interpretado assim pelas
autoridades do Estado. Além disso, foi o próprio Estado quem, desde que estes optaram pelo regime de pensão
do Decreto-Lei nº 20.530, lhes reconheceu, mediante atos administrativos, um valor de pensão nivelável de
acordo com o salário de um funcionário ativo da SBS. Adicionalmente, e mais importante ainda que isso,
ao resolver as ações de mandado de segurança impetradas pelos cinco aposentados, os tribunais internos
ordenaram continuar pagando as pensões mensais nos termos em que se vinha fazendo, isto é, nivelando-as
com a remuneração recebida pelos funcionários ativos da SBS, que pertencem ao regime de atividade privada.
Isto configurou, em benefício dos aposentados, um direito amparado pelas sentenças de segurança, que ao ser
desconhecido pelo Estado, os afetou patrimonialmente, violando o artigo 21 da Convenção.
116. Apesar de o direito à pensão nivelada ser um direito adquirido, de acordo com o artigo 21 da Convenção,
os Estados podem impor limitações ao gozo do direito de propriedade por razões de utilidade pública ou de
interesse social. No caso dos efeitos patrimoniais das pensões (valor das pensões), os Estados podem reduzilos unicamente pela via legal adequada e pelos motivos já indicados. Por sua vez, o artigo 5 do Protocolo
Adicional à Convenção Americana em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (doravante
denominado “Protocolo de San Salvador”) apenas permite aos Estados estabelecer limitações e restrições
ao gozo e exercício dos direitos econômicos, sociais e culturais, “mediante leis promulgadas com o objetivo
de preservar o bem-estar geral dentro de uma sociedade democrática, na medida em que não contrariem o
propósito e razão dos mesmos”. Em toda e qualquer circunstância, se a restrição ou limitação afeta o direito
à propriedade, esta deve realizar-se, ademais, de acordo com os parâmetros estabelecidos no artigo 21 da
Convenção Americana.
117. Do mesmo modo, ao invés de atuar arbitrariamente, se o Estado queria dar outra interpretação ao Decreto-Lei
nº 20.530 e suas normas conexas, aplicáveis aos cinco aposentados, deveria: a) realizar um procedimento
administrativo com pleno respeito às garantias adequadas, e b) respeitar, em todo caso, as determinações que
adotaram os tribunais de justiça em sobreposição às decisões da administração.
38
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
118. No presente caso, não se cumpriu nenhuma das duas condições antes mencionadas. A administração mudou,
sem esgotar um procedimento adequado, os termos de sua interpretação das normas que regulamentavam
a pensão das cinco supostas vítimas e, posteriormente, desconheceu as decisões judiciais às que se fez
referência.
119. Um fato significativo ocorrido no presente caso foi a emissão da Lei nº 27.650, publicada em 23 de janeiro de
2002 no Diário Oficial El Peruano, a qual derrogou o artigo 5 do Decreto-Lei nº 25.792. Posteriormente, a SBS
emitiu cinco resoluções que resolveram pagar às supostas vítimas a pensão que lhes correspondia de acordo
com o Decreto-Lei nº 20.530, deduzindo do cálculo os valores das pensões recebidas entre 1º de novembro
de 1992 e 23 de janeiro de 2002. O pagamento feito aos cinco aposentados em março de 2002, três meses
depois de apresentada a demanda à Corte, teve como base o salário dos servidores ativos da SBS. Outrossim,
as mencionadas resoluções deixaram a salvo o direito da SBS de deduzir contra os cinco aposentados o
montante que pudesse ser considerado excessivo, de acordo com a sentença que viesse a ser emitida pela
Corte Interamericana. À luz da presente Sentença, esta ressalva das resoluções da SBS não possui nenhum
efeito.
120. Este pagamento efetuado pelo Estado das pensões niveladas que correspondiam às supostas vítimas desde que
suas pensões haviam diminuído, implica que as pretensões da Comissão Interamericana e dos representantes
das supostas vítimas e seus familiares a este respeito já foram reconhecidas e cumpridas pelo Estado.
121. A Corte constata, com base em todo o anterior, que o Estado, ao ter mudado arbitrariamente o valor das pensões
que as supostas vítimas vinham recebendo e ao não ter dado cumprimento às sentenças judiciais emitidas
em razão das ações de mandado de segurança interpostas por estas (Capítulo VIII infra), violou o direito à
propriedade consagrado no artigo 21 da Convenção, em detrimento dos senhores Carlos Torres Benvenuto,
Javier Mujica Ruiz-Huidobro, Guillermo Álvarez Hernández, Maximiliano Gamarra Ferreyra e Reymert Bartra
Vásquez, na medida em que foram violados os direitos reconhecidos nestas sentenças.
VIII
Violação do Artigo 25
(Proteção Judicial)
Alegações da Comissão
122. Quanto ao artigo 25 da Convenção, a Comissão argumentou que:
a)
quando a SBS reduziu de fato as pensões que as supostas vítimas vinham recebendo, estas estudaram com
seus assessores jurídicos os diversos recursos que a legislação peruana oferecia e determinaram que o meio
idôneo para defender seus direitos era impetrar mandados de segurança contra a SBS, órgão estatal que violou
seus direitos. Em suas sentenças de 2 de maio, 28 de junho, 1º e 19 de setembro e 10 de outubro, todas de
1994, a Corte Suprema de Justiça do Peru ordenou que fossem pagas aos cinco aposentados pensões niveladas
à remuneração do titular em atividade que ocupava o mesmo posto, ou função análoga, à que desempenhavam
as supostas vítimas no momento em que deixaram de trabalhar para a SBS. “Isso corrobora que efetivamente
os mandados de segurança tentados pelas vítimas eram os recursos idôneos, dentro do sistema de direito
peruano, para proteger os direitos que haviam sido violados”. As supostas vítimas não tinham de esgotar
nenhum recurso interno contra o Decreto-Lei nº 25.792, emitido depois de que foram impetrados os mandados
de segurança. A Corte Suprema de Justiça resolveu os mandados de segurança quase dois anos depois da
entrada em vigência do Decreto-Lei nº 25.792 e, tendo pleno conhecimento da existência de um novo regime
previdenciário, considerou que no caso das supostas vítimas a SBS devia pagar as pensões niveladas;
b)
a SBS desconheceu as sentenças emitidas pela Corte Suprema de Justiça do Peru e apenas pagou parcialmente
a diferença no valor das pensões. Além disso, a partir de novembro de 1992, o MEF pagou às supostas vítimas
uma pensão substancialmente menor à que lhes correspondia. Ademais, a SBS não cumpriu as resoluções
administrativas que emitiu em 1995, mediante as quais decidiu acatar as referidas sentenças da Corte Suprema
de Justiça do Peru;
c)
diante do descumprimento das sentenças da Corte Suprema de Justiça do Peru, algumas das supostas vítimas
interpuseram ações de execução e nas correspondentes sentenças, proferidas em 9 de julho de 1998, 3 de
agosto de 2000 e 21 de dezembro de 2000, o Tribunal Constitucional ordenou que a SBS cumprisse o disposto
nas sentenças da Corte Suprema de Justiça;
d)
as supostas vítimas também tentaram ações penais, sem conseguir que fossem cumpridas as sentenças da
Corte Suprema de Justiça e do Tribunal Constitucional;
39
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
e)
o Estado violou o direito à tutela judicial efetiva ao descumprir o ordenado pelas referidas sentenças definitivas
da Corte Suprema de Justiça do Peru e do Tribunal Constitucional do Peru. O cumprimento das sentenças não
pode ficar ao arbítrio da parte que perdeu o litígio, muito menos quando quem perdeu o litígio é um órgão do
Estado;
f)
ainda que o Estado, em abril de 2002, tenha cumprido as sentenças favoráveis às supostas vítimas emitidas
em 1994, o fez condicionado ao que a Corte Interamericana viesse a decidir e se reservou o direito de ação
contra os aposentados no suposto de que a Corte Interamericana determine que o valor devido a eles é menor
ao valor que o Estado lhes pagou. Esta situação deixa as supostas vítimas em um “estado de total precariedade
e incerteza jurídica, perante a vontade declarada do Estado de não acatar de maneira definitiva as sentenças
proferidas por seus mais altos tribunais”;
g)
o Estado “não termina de acatar as sentenças proferidas contra si por seus mais altos tribunais. A diferença é
que ao invés de ignorar agora a existência destas sentenças, realizou um pagamento condicionado às vítimas e,
de acordo ao indicado na audiência oral no presente caso, pretende agora que [a] Corte determine que a Corte
Suprema de Justiça e seu Tribunal Constitucional se equivocaram ao sentenciar contra o Estado, e com isso o
Estado recuperar o que pagou às vítimas conforme o disposto nestas sentenças”;
h)
para que as supostas vítimas tenham segurança jurídica a respeito do cumprimento das sentenças proferidas
a seu favor no âmbito interno, é necessário que a Corte Interamericana determine que o Peru deve cumprir,
sem condição alguma, as sentenças definitivas passadas em julgado da Corte Suprema de Justiça e do Tribunal
Constitucional peruanos;
i)
não estando em discussão o caráter de coisa julgada das sentenças favoráveis às supostas vítimas emitidas
pelos tribunais internos, “nem havendo alegado a Comissão violações às garantias judiciais nos processos
através dos quais foram proferidas estas sentenças”, o objeto principal do presente caso é que a Corte
determine a responsabilidade internacional do Estado pelo descumprimento de sentenças transitadas em
julgado e executadas, favoráveis às supostas vítimas e proferidas pelos mais altos tribunais peruanos: a Corte
Suprema de Justiça do Peru e o Tribunal Constitucional peruano; e
j)
em relação ao alegado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares a respeito da ineficácia dos
recursos penais que alguns dos aposentados interpuseram para tentar o cumprimento das sentenças da Corte
Suprema de Justiça, o que violou o direito à tutela judicial efetiva consagrado nos artigos 8.1 e 25 da Convenção,
considera que “ainda que estas alegações tenham sido feitas pelos peticionários em sua petição original perante
a CIDH, a Comissão não determinou a existência de tais alegadas violações nem em seu Relatório de Mérito
nem em sua demanda perante a Corte. Entretanto, trata-se de qualificações jurídicas adicionais com respeito
aos mesmos fatos que, com base nas provas disponíveis, foram estabelecidos pela Comissão em seu Relatório
de Mérito e na demanda [. … A] Comissão considera que tais argumentos […] podem ser conhecidos pela
Honorável Corte em virtude do princípio iura novit curia”.
Alegações dos representantes das supostas vítimas e seus familiares
123. Em relação ao artigo 25 da Convenção, os representantes das supostas vítimas e seus familiares afirmaram
que:
a) depois de que em março e setembro de 1992 a SBS reduziu de fato as pensões que as supostas
vítimas vinham recebendo, estas impetraram mandados de segurança contra a SBS. Esta dedução
representou “uma medida de fato, fora de um processo regular no qual a vítima poderia ter exercido
seu direito de defesa”. A Sala de Direito Constitucional e Social da Corte Suprema de Justiça rejeitou
os argumentos da SBS e ordenou a esta que restituísse os direitos previdenciários do regime do
Decreto-Lei nº 20.530, os quais haviam sido retirados inconstitucionalmente das supostas vítimas.
A SBS devolveu a diferença nominal deixada de receber pelos cinco aposentados durante setembro e
outubro de 1992 e se negou a responder pelos valores posteriores, baseada em que, ao ser emitido
o Decreto-Lei nº 25.792, desapareceu sua responsabilidade de responder pelo pagamento de tais
pensões e o MEF passou a ser o encarregado de pagá-las. Por sua vez, o MEF argumentou que a
obrigação de pagar correspondia à SBS porque assim havia sido ordenado pela Corte Suprema e
que, supondo que fosse sua obrigação, a SBS não havia transferido as contribuições e recursos
necessários para que pudesse realizar tais pagamentos, como ordenava o Decreto-Lei nº 25.792;
b) os cinco aposentados denunciaram penalmente os agentes estatais responsáveis pelo descumprimento
40
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
c)
d)
e)
f)
g)
h)
das sentenças emitidas pela Corte Suprema de Justiça, com o objetivo de que fossem investigados
e punidos pelo descumprimento. Entretanto, “os recursos penais foram ineficazes para reparar o
direito dos aposentados a que fossem cumpridas as sentenças que os favoreciam, com o que se
violou o direito à tutela judicial efetiva consagrado nos artigos 8.1 e 25 da Convenção”;
posteriormente, “acabou, de maneira definitiva e infrutífera, o caminho processual da ação de
cumprimento, com o saldo de uma Sentença do Tribunal Constitucional igualmente inútil para
restituir aos peticionários o gozo dos direitos humanos de que haviam sido privados”. Ademais, em
17 de junho de 1997, o Defensor do Povo do Peru emitiu uma resolução por meio da qual requereu
à SBS e ao MEF que cumprissem as sentenças da Corte Suprema e do Tribunal Constitucional;
a reserva estipulada pela SBS nas cinco resoluções expedidas em 12 de março de 2002, segundo a
qual teria a faculdade de reaver dos aposentados os valores no caso de que a Corte Interamericana
ordenasse o pagamento de quantias menores às que foram pagas, gerou incerteza nas supostas
vítimas, já que não podem dispor com tranquilidade das quantias que lhes foram pagas;
o Estado descumpriu durante oito anos as sentenças definitivas proferidas pela Corte Suprema de
Justiça em 1994, e pelo Tribunal Constitucional entre 1998 e 2000, mediante as quais ordenou à SBS
que restituísse aos cinco aposentados seu direito a desfrutar de uma pensão que se nivelasse de
maneira progressiva segundo o regime de pensões regulamentado pelo Decreto-Lei nº 20.530, isto
é, reajustando-se conforme a remuneração do funcionário em atividade da SBS que desempenhasse
a mesma função, ou análoga à que ocupava o aposentado até sua aposentadoria;
os argumentos expostos pelo Estado se orientaram a justificar o descumprimento das sentenças
através da menção de suas discrepâncias com as decisões judiciais, já que, segundo o Estado,
reconhecem direitos de maneira indevida e contêm interpretações errôneas e contraditórias;
o descumprimento de sentenças neste caso é muito grave, devido a que “se trata de um desafio
à justiça por parte do Poder Executivo peruano, que fundamentado em suas discrepâncias e
desacordos com as decisões adotadas, desconheceu e desconhece sentenças definitivas, dos mais
altos tribunais do Peru”. As decisões dos juízes devem ser questionadas em espaços institucionais, e
não mediante vias de fato, tais como a desobediência e rebeldia por parte do próprio Poder Executivo;
e
é irrelevante se a violação do direito à tutela judicial efetiva se deve à ação ou omissão de uma
superintendência ou de um ministério. O Estado não pode impor aos cidadãos o ônus de dirigirse à entidade estatal adequada para cumprir as sentenças e conhecer as funções das distintas
entidades, muito menos quando o próprio Estado reconhece que suas entidades não possuem pleno
conhecimento do que fazem as outras.
Alegações do Estado
124. Com respeito ao artigo 25 da Convenção, o Estado argumentou que:
a) considera que a demanda é improcedente em virtude de que não é possível qualificar “como violação
de direitos humanos atos processuais não concluídos pela própria atividade dos aposentados na
jurisdição nacional antes da interposição da demanda”. No momento de recorrer à Comissão
Interamericana, os cinco aposentados “estavam atuando na via interna de maneira que não existia
negativa de cumprimento de resoluções judiciais”. “[Q]ualquer questionamento à procedência da
demanda por não ter sido esgotada a via indicada na jurisdição interna do Peru deve resolver-se
conjuntamente com a sentença e com vista da totalidade dos elementos probatórios apresentados
pelas partes”;
b) os mandados de segurança “foram impetrados contra a SBS, como consequência de uma retificação
de um erro de direito no pagamento da pensão”. As resoluções da SBS, nas quais se reconheceram
as pensões de aposentadoria, indicam que a aposentadoria era relativa a um grau e a um subgrau;
entretanto, “em algum momento se produziu um erro de interpretação e passou-se a vincular a
pensão ao que recebia um trabalhador do regime trabalhista da atividade privada [… e q]uando se
detectou o erro, foi aplicada a medida corretiva do caso”;
c) as sentenças da Corte Suprema de Justiça de 1994, emitidas em virtude dos mandados de segurança
impetrados em 1992 contra a SBS pela redução das pensões, foram cumpridas oportunamente
por esta dependência, a qual pagou as pensões até a data em que deixou de ser responsável pelas
41
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
d)
e)
f)
g)
h)
i)
j)
mesmas por mandato legal. Não se fez referência alguma ao Decreto-Lei nº 25.792 por ser posterior
aos fatos nos quais se sustentaram as demandas que motivaram as sentenças, e quando foram
proferidas as referidas sentenças, a responsabilidade de pagar as pensões havia sido trasladada
ao MEF por disposição do Decreto-Lei nº 25.792. Não era possível estender ao MEF as obrigações
que correspondiam à SBS até a data de entrada em vigência do referido decreto-lei, “sem ter sido
determinado expressamente em um processo judicial”. Quando se emitiu o Decreto-Lei nº 25.792
-depois da data de interposição dos mandados de segurança e antes de que fossem emitidas as
sentenças- “os autores não questionaram o disposto nesta norma nem solicitaram incorporar o
Ministério de Economia e Finanças ao processo anterior”. “Por isso não é possível afirmar que
existe uma negativa de cumprir estes pronunciamentos (porque já [foram] cumpridos por parte
da [SBS]) e não foi interposta nenhuma ação como consequência da Lei 25.792”. Não houve um
descumprimento de sentenças porque as sentenças “foram cumpridas na medida em que fossem
legalmente possíveis em razão de que não se demandou contra o Ministério de Economia e Finanças
como correspondia”;
“ainda que seja certo que a Superintendência de Bancos e Seguros pertence à estrutura estatal,
também integrada pelo Ministério de Economia e Finanças, cada uma delas tem sua própria
representação judicial autônoma, situação que obriga a demandá-las expressamente quando lhes
é atribuída qualquer conduta não conforme com a lei”. “Não seria aceitável afirmar que pelo fato
de ter-se interposto uma demanda contra a […] Superintendência, todo o Estado peruano tinha
conhecimento das reclamações interpostas”;
os cinco aposentados “impetraram mandados de segurança contra a Superintendência de Bancos
e Seguros, cujo efeito é restituir as coisas ao estado anterior à alegada violação de direitos. É neste
momento que se deu por cumprida a execução do ordenado não existindo sentença que ordene o
pagamento de soma líquida ou determinada”;
nas sentenças correspondentes aos senhores Carlos Torres Benvenuto, Reymert Bartra Vásquez e
Maximiliano Gamarra Ferreyra, não se determinaram os valores das pensões que lhes correspondiam,
de maneira que o que se produziu foi “uma diferença de interpretação sobre o valor da pensão,
tema que apenas pode ser discutido dentro da jurisdição interna e [n]o marco de um processo
judicial no qual podem fazer uso de meios probatórios e não em um mandado de segurança”. Se o
autor considerava que a pensão que lhe era paga não era a que lhe correspondia, deveria interpor a
respectiva ação judicial para que fosse determinado o valor exato da pensão;
as três sentenças foram proferidas pelo Tribunal Constitucional depois da denúncia apresentada
contra o Peru perante a Comissão Interamericana, e não foram interpostas contra o MEF. “Ao ter-se
interposto estas demandas contra quem não correspondia por mandato da lei [...] se impossibilitava
sua execução, o que se viu facilitado pela derrogação da Lei 25.792 –recém ocorrida [em 2002],
imediatamente depois da qual a [SBS] cumpriu a decisão apesar de que o direito não correspondia
aos demandantes”. Nas três ações de cumprimento a SBS foi apresentada como ré, e omitiu-se
de representar contra o MEF, “o que era impossível juridicamente já que não havia sido parte no
primeiro processo”;
como resultado de um erro jurídico cometido pela SBS -ao expedir uma resolução fora do âmbito de
sua competência-, com fundamento em uma ação de cumprimento e a requerimento de funcionários
desta dependência, produziu-se o pagamento das pensões tomando como referência o salário dos
trabalhadores da SBS que se encontravam dentro do regime da atividade privada. Entretanto, a SBS
se reservou “o direito de reaver os fundos, de acordo com a lei”, devido a que os cinco aposentados
ou seus herdeiros receberam valores milionários a título de devolução que não lhes correspondem,
devido a que, para reajustar sua pensão se aplicou uma referência remunerativa que não lhes
correspondia;
“como consequência dos pronunciamentos judiciais executados dentro dos mandados de segurança
[, …] os reclamantes estão recebendo uma pensão que não lhes corresponde, consideravelmente
superior à dos demais aposentados do país, tendo sido isso causado por terem recorrido a uma
via que não é a adequada, na qual não se emitiu um pronunciamento de mérito com respeito à
procedência ou não da pensão reclamada, mas apenas que ela devia continuar por ter sido alterada
por mandato de uma lei”;
quanto à existência de procedimentos que permitam a reclamação de direitos fundamentais, existem
42
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
seis ações de garantia regulamentadas na Constituição. Tais recursos apenas foram utilizados
eficientemente em fevereiro de 2002. Além disso, o Peru “garantiu o cumprimento das resoluções
criando mecanismos para fazê-las efetivas, não tendo sido demonstrado, como corresponderia de
acordo com os princípios do ônus da prova, que tenha interferido de alguma maneira na execução
dos referidos pronunciamentos”;
k) devido a que não foi iniciada nenhuma ação judicial contra o MEF nem outra dependência estatal pela
aplicação do Decreto-Lei nº 25.792, “é evidente que não foi cumprido o pressuposto fundamental
para iniciar uma ação perante a Honorável Corte, por não ter sido esgotada a jurisdição interna[, …]
o que implicava ter demandado o Ministério de Economia e Finanças através do Procurador Público
respectivo encarregado da defesa do Estado no que se refere às ações deste Ministério”. Diante da
falta de petição, o referido Ministério “atuou sob o convencimento de que o tratamento que dava às
pensões dos aposentados era o correto”;
l) as decisões judiciais emitidas nos mandados de segurança têm mecanismos especiais de execução,
tais como a sanção ao funcionário obrigado e a eventual responsabilidade civil do mesmo pelo
descumprimento. “O uso correto deste mecanismo processual teria assegurado, -como em efeito
depois assegurou-, o cumprimento da decisão. Decorre que não se pode acusar o Estado peruano de
descumprir sentenças judiciais se não se esgotaram a totalidade dos meios de execução existentes
regulamentados pela legislação interna”; e
m) “os aposentados iniciaram diversas ações, entre elas penais, que foram rejeitadas, o que não faz
mais do que demonstrar que não foram propostas oportunamente”.
Considerações da Corte
125. O artigo 25 da Convenção afirma que:
1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante
os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais
reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja
cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.
2. Os Estados Partes comprometem-se:
a. a assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema legal do Estado decida sobre os
direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso;
b. desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e
c. a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha
considerado procedente o recurso.
126. A Corte já afirmou que
[…] não basta a existência formal dos recursos, mas estes devem ser eficazes, isto é, devem dar
resultados ou respostas às violações de direitos contemplados na Convenção. Este Tribunal indicou que
não podem ser considerados efetivos aqueles recursos que, pelas condições gerais do país ou inclusive
pelas circunstâncias particulares de um caso dado, resultem ilusórios. Isso pode ocorrer, por exemplo,
quando sua inutilidade tenha sido demonstrada pela prática, porque o órgão jurisdicional careça da
independência necessária para decidir com imparcialidade ou porque faltem os meios para executar
suas decisões; por qualquer outra situação que configure um quadro de denegação de justiça, como
sucede quando se incorre em atraso injustificado na decisão.151
e que
a proteção da pessoa em face do exercício arbitrário do poder público é o objetivo primordial da
proteção internacional dos direitos humanos.152
127. A análise da suposta violação do artigo 25 da Convenção será realizada com base em três etapas distintas,
a saber: a) o pagamento das pensões de abril a outubro de 1992 (a respeito do senhor Bartra Vásquez) e de
setembro e outubro de 1992 (a respeito dos outros quatro aposentados); b) de novembro de 1992 a fevereiro
de 2002, e c) a que vai de março de 2002 até a atualidade.
151. Cf. Caso Las Palmeras. Sentença de 6 de dezembro de 2001. Série C Nº 90, par. 58; Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni,
nota 2 supra, pars. 111-113; e Caso do Tribunal Constitucional. Sentença de 31 de janeiro de 2001. Série C Nº 71, pars. 89, 90 e 93.
152. Cf. Caso do Tribunal Constitucional, nota 151 supra, par. 89; Caso Godínez Cruz. Sentença de 20 de janeiro de 1989. Série C Nº 5, par. 174;
e Caso Velásquez Rodríguez. Sentença de 29 de julho de 1988. Série C Nº 4, par. 165.
43
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
a) Primeira Etapa
128. No presente caso, foi estabelecido (pars. 88.h), 89.c), 89.j), 89.q), 89.x), e 89.ee) supra) que os cinco
aposentados interpuseram diversas ações perante diferentes instâncias judiciais do Peru, com a finalidade de
que lhes fossem pagas as pensões que, segundo eles, lhes correspondiam conforme o direito. Como resultado
destas demandas, foram proferidas diversas sentenças que ordenaram a SBS a pagar o valor integral da pensão
que as supostas vítimas vinham recebendo de acordo com a lei.
129. Por exemplo, nas sentenças foram utilizadas as frases “que a Superintendência de Bancos e Seguros cumpra
o pagamento ao autor da pensão que vinha recebendo conforme a lei”153 ou “que a demandada pague a pensão
ao autor de acordo com o Decreto Lei vinte mil quinhentos e trinta”154 ou “que a [Superintendência de Bancos
e Seguros] pague ao autor o valor integral de sua pensão estabelecida por Resolução…”155, entre outras
similares.
130. Posteriormente à emissão das sentenças, sucedeu a circunstância de que estas não eram cumpridas, não
havia disposição de pagar os valores correspondentes ao percentual de pensões devidas. A SBS atribuía a
responsabilidade ao MEF e vice-versa.
131. Entretanto, a SBS cumpriu as sentenças favoráveis aos cinco aposentados quando lhes pagou a diferença do
valor das pensões que lhes correspondia da seguinte maneira: aos senhores Torres Benvenuto, Mujica RuizHuidobro, Álvarez Hernández e Gamarra Ferreyra, apenas no que se refere aos meses de setembro e outubro
de 1992, enquanto que ao senhor Bartra Vásquez lhe pagou a diferença relativa aos meses de abril a outubro
de 1992. Estes pagamentos foram efetuados mediante a realização de depósitos judiciais a favor dos cinco
aposentados.
132. À luz do anteriormente exposto, este Tribunal considera que a primeira das fases não merece consideração
alguma, posto que neste período foram devolvidos os valores que correspondiam aos aposentados, de acordo
com as sentenças dos tribunais internos, a título de pensão nivelada.
b) Segunda Etapa
133. A segunda etapa é a que merece especial atenção, já que foi a partir de novembro de 1992 que a SBS atribuía a
responsabilidade pelo pagamento ao MEF e vice-versa. Ademais, o Estado diz que, em virtude da aplicação do
artigo 5 do Decreto-Lei nº 25.792, o qual encarregou o MEF da “arrecadação de contribuições e do pagamento
das pensões, remunerações ou similares que corresponderia serem pagos por parte da Superintendência de
Bancos e Seguros a seus aposentados, pensionistas e demitidos incluídos no regime do Decreto Lei nº 20.530”,
os cinco aposentados deveriam ter demandado não apenas contra a SBS mas também contra o MEF, e que, em
consequência as sentenças não foram descumpridas, posto que a parte demandada, isto é, a SBS, as cumpriu
no que lhe correspondia.
134. Em razão do anteriormente exposto, é importante indicar que, na fase de execução de sentença de mandado de
segurança, o 19º Juízo Especializado Civil de Lima, mediante decisão de 3 de novembro de 1994, ordenou, a
respeito do senhor Carlos Torres Benvenuto, que a SBS “exped[isse] a Resolução ou Resoluções Administrativas
que correspondessem dirigidas a restituir o direito que assist[ia] ao demandante em receber as remunerações
e devoluções conforme a Ordem de Execução Suprema […] e que o [MEF] através de seu Escritório Geral de
Administração cumpr[isse] em efetuar os pagamentos requeridos”. Além disso, nesta decisão o Juízo afirmou
que não teria havido boa fé, devido a que “ambas as entidades obrigadas, de forma simultânea e recíproca,
atribu[iam] mutuamente a responsabilidade de cumprir a decisão” sem contribuir com “solução alguma ao
cumprimento da mesma”.
135. No que se refere à posição do Estado de que o MEF deveria ter sido demandado, este Tribunal considera
este alegado improcedente e afirma que, quando a SBS, em 1995, emitiu as correspondentes resoluções
que resolviam nivelar as pensões reduzidas das supostas vítimas, no artigo segundo destas decisões dispôs:
153. Sentença da Sala de Direito Constitucional e Social da Corte Suprema de Justiça emitida em 2 de maio de 1994, em relação ao mandado
de segurança interposto pelo senhor Carlos Torres Benvenuto contra a SBS (expediente de anexos à demanda, anexo 36, folha 160).
154. Sentença da Sala de Direito Constitucional e Social da Corte Suprema de Justiça emitida em 1º de setembro de 1994, em relação ao
mandado de segurança interposto pelo senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro contra a SBS (expediente de anexos à demanda, anexo 38, folha
165).
155. Sentença da Sala de Direito Constitucional e Social da Corte Suprema de Justiça emitida em 19 de setembro de 1994, publicada no
Diário Oficial El Peruano de 25 de julho de 1995, em relação ao mandado de segurança interposto pelo senhor Guillermo Álvarez Hernández
(expediente de anexos à demanda, anexo 41, folha 172).
44
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
“Transcreva-se a presente Resolução e anexo ao Ministério de Economia e Finanças para os fins pertinentes”.
Mais ainda, as sentenças judiciais foram publicadas no Diário Oficial El Peruano, de modo que o MEF não podia
alegar desconhecimento das sentenças para justificar seu descumprimento.
136. É importante indicar que:
[…] a inexistência de um recurso efetivo contra as violações aos direitos reconhecidos pela Convenção
constitui uma transgressão da mesma pelo Estado Parte no qual semelhante situação tenha lugar.
Nesse sentido, deve-se sublinhar que, para que tal recurso exista, não basta que esteja previsto na
Constituição ou na lei ou que seja formalmente admissível, mas se requer que seja realmente idôneo
para estabelecer se ocorreu uma violação aos direitos humanos e prover o necessário para remediála. Não podem ser considerados efetivos aqueles recursos que, pelas condições gerais do país ou
inclusive pelas circunstâncias particulares de um dado caso, resultem ilusórios. Isso pode ocorrer, por
exemplo, quando sua inutilidade tenha sido demonstrada pela prática, porque o Poder Judiciário careça
da independência necessária para decidir com imparcialidade ou porque faltem os meios para executar
suas decisões; por qualquer outra situação que configure um quadro de denegação de justiça, como
sucede quando se incorre em atraso injustificado na decisão; ou, por qualquer causa, não se permita ao
suposto lesado o acesso ao recurso judicial.156
137. Ademais, o Defensor do Povo do Peru, no relatório intitulado “Descumprimento de Sentenças por parte da
Administração Estatal”, elaborado em outubro de 1998, afirmou que:
[…] se o cumprimento das sentenças fica condicionado à discricionariedade da Administração, violase a própria noção do Estado de Direito e se criam condições para um regime de arbitrariedade e
imprevisibilidade, contrário aos princípios constitucionais como a separação de poderes e a autonomia
do Poder Judiciário. Por sua vez, rompe-se notoriamente o direito de igualdade que deve assistir
às partes no processo, ao condicionar a execução da sentença judicial à vontade de uma destas,
paradoxalmente a parte derrotada.
138. Por todo o anteriormente exposto, a Corte considera que nesta etapa houve um claro descumprimento das
citadas sentenças proferidas pela Sala de Direito Constitucional e Social da Corte Suprema de Justiça em 2 de
maio, 28 de junho, 1º e 19 de setembro e 10 de outubro, todas de 1994, a favor dos cinco aposentados. Em
razão de que já existem sentenças emitidas em cumprimento de mandados de segurança, que dão amparo
ao status quo, o Estado não pode se afastar destas decisões, sob pena de incorrer em violações ao direito à
propriedade e à proteção judicial, sem prejuízo do indicado nos parágrafos 116 e 117 da presente Sentença.
c) Terceira Etapa
139. Nesta fase merece destacar-se que o Estado cumpriu as sentenças das autoridades judiciais internas. Em 18
de março de 2002, a SBS executou as resoluções administrativas nº 250-2002, nº 251-2002, nº 252-2002, nº
253-2002 e nº 254-2002, emitidas em 12 de março de 2002 por esta entidade, nas quais decidiu cumprir as
sentenças judiciais; isto é, decidiu pagar as pensões a que as supostas vítimas tinham direito de acordo com a
lei, deduzindo-se da soma a pagar as quantias que o MEF teria pago aos aposentados, em aplicação do artigo
5 do Decreto-Lei nº 25.792, entre 1º de novembro de 1992 e 23 de janeiro de 2002. Também foi estabelecido
que “[d]eixava a salvo o direito da SBS de deduzir, de acordo com a decisão que viesse a emitir a Corte
Interamericana de Direitos Humanos, […] o valor que pudesse resultar excessivo ao dar-se cumprimento […],
caso no qual se terá em conta o previsto expressamente no [artigo] 53 do Decreto Lei 20.530, que autoriza a
penhorar o valor das pensões para pagar dívidas.”157.
140. Em consequência, esta etapa não merece maior análise por parte do Tribunal, já que nela foram cumpridas as
sentenças emitidas a favor dos cinco aposentados.
156. Cf. Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni, nota 2 supra, par. 113; Caso Ivcher Bronstein, nota 150 supra, pars. 136 e 137; e
Garantias Judiciais em Estados de Emergência (arts. 27.2, 25 e 8 Convenção Americana sobre Direitos Humanos). Parecer Consultivo OC-9/87
do 6 de outubro de 1987. Série A Nº 9, par. 24.
157. Cf. resolução administrativa SBS nº 250-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Carlos Torres Benvenuto (expediente sobre
o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas
e seus familiares, folhas 975 a 978); resolução administrativa SBS nº 251-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Maximiliano
Gamarra Ferreyra (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos
representantes das supostas vítimas e seus familiares, folhas 979 a 982); resolução administrativa SBS nº 252-2002 de 12 de março de 2002,
em relação ao senhor Guillermo Álvarez Hernández (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22
de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares, folhas 983 a 986); resolução administrativa SBS nº
253-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Javier Mujica Ruiz-Huidobro (expediente sobre o mérito e as eventuais reparações,
tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares, folhas 987 a
990); e resolução administrativa SBS nº 254-2002 de 12 de março de 2002, em relação ao senhor Reymert Bartra Vásquez (expediente sobre o
mérito e as eventuais reparações, tomo IV, anexo 6 do escrito de 22 de julho de 2002 apresentado pelos representantes das supostas vítimas
e seus familiares, folhas 991 a 994).
45
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
***
141. De todo o anteriormente exposto, este Tribunal considera que o Estado violou o artigo 25 da Convenção
Americana, em detrimento dos senhores Carlos Torres Benvenuto, Javier Mujica Ruiz-Huidobro, Guillermo
Álvarez Hernández, Maximiliano Gamarra Ferreyra, e Reymert Bartra Vásquez, ao executar as sentenças
proferidas pela Sala de Direito Constitucional e Social da Corte Suprema de Justiça do Peru apenas depois de
quase oito anos de sua emissão.
IX
Artigo 26
(Desenvolvimento Progressivo dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais)
Alegações da Comissão
142. Em relação ao artigo 26 da Convenção, a Comissão argumentou que:
a) o Estado violou este artigo ao promulgar o Decreto-Lei nº 25.792, o qual “constituiu um retrocesso
não justificado com respeito ao grau de desenvolvimento do direito à previdência social que as
vítimas haviam alcançado conforme o Decreto Lei nº 20.530 e suas normas conexas”, de maneira
que se impôs um limite substancialmente inferior ao valor da pensão nivelada que as supostas
vítimas recebiam. A partir da entrada em vigência do Decreto-Lei nº 25.792, os cinco aposentados
passaram a receber aproximadamente uma quinta parte da pensão de aposentadoria que recebiam;
b) a obrigação estabelecida no artigo 26 da Convenção implica que os Estados não podem adotar
medidas regressivas com respeito ao grau de desenvolvimento alcançado, sem prejuízo de que em
casos excepcionais e por aplicação analógica do artigo 5 do Protocolo de San Salvador, possam
justificar-se leis que imponham restrições e limitações aos direitos econômicos, sociais e culturais,
sempre que tenham sido promulgadas com o objetivo de preservar o bem-estar geral dentro de uma
sociedade democrática, e que não contradigam o propósito e a razão de tais direitos”; e
c) o Estado não argumentou nem provou que o retrocesso representado pelo Decreto-Lei nº 25.792
tenha sido causado “com o objetivo de preservar o bem-estar geral dentro de uma sociedade
democrática”, “nem argumentou ou provou nenhuma outra circunstância a este respeito”.
Alegações dos representantes das supostas vítimas e seus familiares
143. Em relação ao artigo 26 da Convenção, os representantes das supostas vítimas e seus familiares afirmaram
que:
a) de acordo com o disposto neste artigo, o Estado tem o dever de caminhar progressivamente em
direção à plena efetividade do direito à previdência social. Esta obrigação implica a “correlativa
proibição de regressividade em matéria de reconhecimento do direito à previdência social, salvo em
circunstâncias absolutamente excepcionais, razoáveis e justificadas com base no bem comum”. A
adoção de políticas regressivas, que tenham por objeto ou efeito a diminuição do estado de gozo dos
direitos econômicos, sociais e culturais, viola o princípio de progressividade;
b) a determinação do alcance deste artigo deve ser feita tendo em conta a interpretação evolutiva dos
instrumentos internacionais e de acordo com o princípio pro homine estabelecido no artigo 29.b) da
Convenção;
c) o conteúdo essencial do direito à previdência social é assegurar a toda pessoa uma proteção contra
as consequências da velhice ou de qualquer outra contingência alheia à sua vontade que implique
uma privação dos meios de subsistência imprescindíveis, para que possa levar uma vida digna e
decorosa. O Peru violou o direito à previdência social ao privar os cinco aposentados dos meios de
vida que, na forma de uma pensão nivelada, lhes correspondiam no marco do regime previdenciário
ao qual se encontravam legalmente inscritos, e que lhes haviam permitido sufragar até março de
1992 -em um caso- e até setembro do mesmo ano -a respeito dos outros quatro-, a cobertura de
suas necessidades vitais mais imediatas e as de suas famílias;
d) a diminuição dos valores de aposentadoria das supostas vítimas “é uma medida regressiva que
não foi justificada pelo Estado no contexto do pleno aproveitamento dos direitos econômicos,
46
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
sociais e culturais”. Essa medida violou o princípio de progressividade estabelecido no artigo 26
da Convenção, o qual “não pode ser debilitado sob o pretexto da falta de recursos econômicos,
muito menos quando se trata de grupos vulneráveis da população como é o dos aposentados e
pensionistas”;
e) desde uma perspectiva integral, é claro que as ações adotadas pelo Estado implicaram uma grave
violação do direito humano à previdência social, posto que “estas ações –ainda se não tivessem
tido como objetivo explícito- tiveram como efeito concreto a imposição de uma situação que os
privou dos meios de subsistência que -em sua condição de aposentados e adultos idosos- eram
indispensáveis para levar uma vida digna e com decoro”; e
f) solicitam ao Tribunal que determine o conteúdo da cláusula de desenvolvimento progressivo dos
direitos econômicos, sociais e culturais e que estabeleça parâmetros e critérios que demonstrem aos
Estados a maneira de cumprir suas obrigações jurídicas e critérios para determinar a maneira em
que as medidas regressivas violam as obrigações convencionais. Outrossim, seria “muito útil” que
a Corte fixe critérios que permitam ao Estado adotar uma política integral em matéria de previdência
social.
Alegações do Estado
144. Com respeito ao artigo 26 da Convenção, o Estado argumentou que:
a) não violou o desenvolvimento progressivo da pensão de aposentadoria das supostas vítimas,
já que a pensão que estão recebendo, como consequência das ações judiciais interpostas, “é
consideravelmente superior à que lhes corresponderia legalmente se suas pensões tivessem sido
regulamentadas de acordo com o regime que lhes correspondia”, isto é, em função das remunerações
dos trabalhadores do regime trabalhista da atividade pública e não ao da atividade privada; e
b) este artigo contém uma declaração genérica, que não se pode interpretar com um critério tão
extensivo que pretenda sustentar que o pagamento das pensões dentro do regime previdenciário
peruano seja absoluto e não possa ser limitado por lei.
Considerações da Corte
45. O artigo 26 da Convenção expressa que:
Os Estados Partes comprometem-se a adotar providências, tanto no âmbito interno como mediante
cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a
plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência
e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de
Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados.
146. A Comissão Interamericana e os representantes das supostas vítimas e seus familiares alegaram o
descumprimento do artigo 26 da Convenção Americana, porque o Estado, ao ter reduzido o valor das pensões
das supostas vítimas, não cumpriu o dever de dar o desenvolvimento progressivo de seus direitos econômicos,
sociais e culturais, particularmente não lhes garantiu o desenvolvimento progressivo ao direito à pensão.
147. Os direitos econômicos, sociais e culturais têm uma dimensão tanto individual como coletiva. Seu
desenvolvimento progressivo, sobre o qual já se pronunciou o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais das Nações Unidas,158 se deve medir, no critério deste Tribunal, em função da crescente cobertura
dos direitos econômicos, sociais e culturais em geral, e do direito à previdência social e à aposentadoria
em particular, sobre o conjunto da população, tendo presentes os imperativos da equidade social, e não em
função das circunstâncias de um grupo muito limitado de aposentados não necessariamente representativos
da situação geral prevalecente.
148. É evidente que isto é o que ocorre no presente caso e por isso a Corte considera procedente rejeitar o pedido
de pronunciamento sobre o desenvolvimento progressivo dos direitos econômicos, sociais e culturais no Peru,
no âmbito deste caso.
158. U.N. Doc. E/1991/23, Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, Observação Geral nº 3: A natureza das
obrigações dos Estados Partes (parágrafo 1 do artigo 2 do Pacto), adotada no Quinto Período de Sessões, 1990, ponto 9.
47
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
X
artigo 8
(Garantias Judiciais)
Alegações dos representantes das supostas vítimas e seus familiares
149. No escrito de petições, argumentos e provas os representantes das supostas vítimas e seus familiares
alegaram que o Estado violou o artigo 8.1 da Convenção, o qual não foi incluído na demanda apresentada
pela Comissão Interamericana. A este respeito, alegaram que:
a) diante da violação de seus direitos, os cinco aposentados impetraram mandados de segurança
perante os juízes civis de plantão, os quais eram os únicos competentes para conhecer deste tipo
de demandas, de acordo com o estabelecido na Lei de Habeas Corpus e Amparo. Os referidos
juízes conheceram das demandas interpostas e proferiram as respectivas sentenças. Entretanto,
em 23 de abril de 1994 foi expedido o Decreto Legislativo nº 817, “Lei do regime previdenciário
a cargo do Estado”, no qual se estabeleceu que a partir dessa data todos os processos sobre o
regime de pensões dos servidores civis a serviço do Estado regulamentado pelo Decreto-Lei nº
20.530 -incluindo os que se encontravam em trâmite- seriam resolvidos exclusivamente pelas
Varas Empresariais Transitórias de Direito Público;
b) com a expedição do Decreto Legislativo nº 817, os juízes que vinham conhecendo dos processos
de execução das sentenças emitidas pela Corte Suprema de Justiça do Peru em relação aos
danos sofridos pelos cinco aposentados foram privados de competência, e essas causas foram
transferidas às duas únicas Varas Empresariais Transitórias de Direito Público da cidade de Lima.
Ambos os juízos se encontravam “sob responsabilidade de juízes provisórios […] a respeito dos
quais em sua oportunidade a própria Comissão Interamericana de Direitos Humanos afirmou
serem funcionários questionados por suas decisões antijurídicas”;
c) o Estado não podia designar o conhecimento das causas sobre o regime de pensões de
servidores estatais a juízes provisórios. “Por meio da mudança de competência a favor deste tipo
de juízes, controláveis pelo executivo (e, portanto, sem a independência exigida no artigo 8.1 da
Convenção), buscava-se assegurar decisões que desestimulassem a proposição de mandados
de segurança que se resolviam favoravelmente aos aposentados, como vinha sucedendo
em alguns casos. Os juízes transitórios de direito público […] mudaram a jurisprudência, e
afirmaram que as ações de cumprimento não eram a via idônea para o pagamento de somas de
dinheiro, pois as decisões tomadas neste tipo de processos não tinham efeitos condenatórios
mas apenas declarativos e que a execução tinha de ser feita por outra via”. Estas decisões dos
juízes transitórios desconheceram a natureza das ações de execução de serem recursos simples
e rápidos para amparar os cidadãos em face de violações de direitos fundamentais, e com isso
prejudicaram os cinco aposentados;
d) com as referidas atuações, o Peru violou o direito dos cinco aposentados a que juízes naturais
-juízes civis- determinassem seus direitos de maneira imparcial e independente, sem ingerências
do Poder Executivo. “[P]ara que se entenda que um tribunal respeita a garantia do juiz natural,
independente e imparcial, este tribunal deve não apenas ter sido estabelecido por uma lei, com
anterioridade, mas, além disso, deve ter sido estabelecido de tal maneira que sua capacidade para
conhecer do caso que se apresente se derive de que este caso seja um daqueles que de maneira
geral e abstrata estão previstos pela lei a serem julgados por esse tribunal”;
e) os cinco aposentados denunciaram penalmente os agentes estatais responsáveis pelo
descumprimento das sentenças emitidas pela Corte Suprema de Justiça, com o objetivo de que
fossem investigados e punidos pelo descumprimento. Entretanto, “os recursos penais foram
ineficazes para reparar o direito dos aposentados a que se cumprissem as sentenças que os
favoreciam, com o que se violou o direito à tutela judicial efetiva consagrada nos artigos 8.1 e 25
da Convenção”;
f) no escrito de 22 de setembro de 2000, apresentado pelo senhor Javier Mujica no procedimento
perante a Comissão, foi exposto na parte relativa à violação das garantias judiciais que a referida
mudança de competência “constituiu uma grosseira violação do princípio do juiz natural
e representou, ademais, uma forma encoberta de designar o caso a juízes que se sabia com
antecedência, favoreceriam a posição da SBS”. Em 26 do mesmo mês e ano, a Comissão transmitiu
48
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
ao Estado as partes pertinentes deste escrito, de maneira que este último teve a oportunidade de
exercer seu direito de defesa em relação a essa alegada violação;
g) os peticionários estão facultados a estender o marco fático apresentado pela Comissão na demanda
e incluir outros eventos que foram expostos durante o procedimento perante a Comissão mas que
não foram incluídos na demanda;
h) de acordo com o novo Regulamento da Corte, as verdadeiras partes no processo contencioso são
os indivíduos demandantes e o Estado e, apenas processualmente, a Comissão. Outrossim, as
vítimas têm direito a participar de maneira autônoma no processo internacional, de maneira que
podem incluir em sua demanda fatos que não foram incluídos na demanda da Comissão, “sempre
que ao Estado tenha sido dada a oportunidade de controvertê-los, fato que pode ocorrer perante a
Corte”. Caso seja negada tal possibilidade às supostas vítimas se violaria o princípio de igualdade
processual; e
i) nenhuma norma da Convenção estabelece que apenas a Comissão ou o Estado determinam o
sustento fático sobre o qual deve versar o processo perante a Corte. Uma vez apresentada a
demanda pela Comissão, as supostas vítimas e o Estado podem apresentar autonomamente as
questões de fato e de direito que considerem necessárias para que a Corte tenha maior claridade
para emitir a sentença.
Alegações da Comissão
150. Em relação à alegada violação do artigo 8.1 da Convenção, a Comissão assinalou que:
a) ratifica que o objeto do presente caso é que a Corte determine se o Peru é responsável pela violação
dos artigos 21, 25 e 26 da Convenção, em conexão com as obrigações gerais estabelecidas nos
artigos 1.1 e 2 deste tratado, pelos fatos expostos na demanda apresentada pela Comissão.
O petitório da demanda foi efetuado com base nos fatos estabelecidos no Relatório de Mérito
emitido pela Comissão de acordo com o artigo 50 da Convenção. O processo perante a Corte deve
circunscrever-se aos limites contidos no Relatório de Mérito e na demanda perante a Corte;
b) nem na petição de 1º de fevereiro de 1998 nem em sua ampliação de 25 de maio daquele mesmo
ano, os peticionários alegaram a violação ao artigo 8 da Convenção, em relação a que o Peru teria
mudado a designação de competência aos juízes empresariais transitórios de direito público,
para conhecer dos processos relacionados ao regime de pensões dos servidores civis a serviço
do Estado, regulamentado pelo Decreto-Lei nº 20.530. Em consequência, esta alegação não foi
parte do procedimento perante a Comissão Interamericana, de modo que o Estado não apresentou
argumentos a respeito nem a Comissão se pronunciou sobre este assunto;
c) do artigo 61 da Convenção se deriva o princípio de que a Comissão ou os Estados partes, ao
submeterem um caso perante a Corte, determinam o conteúdo jurídico do processo, isto é, os
fatos que devem ser provados pelas partes e analisados pelo Tribunal, bem como os direitos que
a Corte deve determinar se foram violados. “A Comissão ou eventualmente um Estado, são os que
fixam o objeto do processo perante a Corte e os limites dentro dos quais o tribunal deve decidir”;
d) o pressuposto fático e jurídico que permite um exercício eficaz do direito de defesa do Estado,
é que a demanda perante a Corte contenha substancialmente as mesmas conclusões jurídicas e
fáticas do Relatório que emita a Comissão, de acordo com o artigo 50 da Convenção. “Caso se
aceite que a jurisdição da Corte pode ir além dos fatos que foram objeto do procedimento perante
a CIDH e dos artigos que a Comissão encontrou violados em seu relatório artigo 50 e em sua
demanda, atentar-se-ia contra os termos de certeza jurídica, equidade processual e congruência”;
e) a prática da Corte tem consistido em indicar que o relatório da Comissão ou sua demanda são
os limites das pretensões do caso. Tais limites ao âmbito de decisão do Tribunal “não foram
alterados pelas recentes reformas regulamentares [que concedem] representação autônoma aos
peticionários”. O Regulamento da Corte dispõe claramente que o processo se inicia por meio da
interposição da demanda por parte da Comissão, a qual deve conter, inter alia, as pretensões, a
exposição dos fatos, os fundamentos de direito e as conclusões pertinentes. Isso significa que na
demanda apresentada pela Comissão são fixados os limites do objeto do processo;
f) o Regulamento da Corte estabelece que na contestação à demanda o Estado deve indicar se
aceita os fatos e as pretensões ou se os contradiz, e que a Corte poderá considerar como aceitos
49
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
aqueles fatos que não tenham sido expressamente negados e as pretensões que não tenham
sido controvertidas. “O anterior é outro elemento que indica que são a demanda da CIDH e a
contestação do Estado os escritos que determinam o objeto do processo contencioso perante a
Corte”;
g) com fundamento nas considerações anteriores, opina que os fatos que não foram alegados na
petição original perante a Comissão não devem formar parte do objeto do processo perante
a Corte salvo que, tendo sido alegados e provados com posterioridade, o Estado tenha tido a
oportunidade de se defender e que, ademais, tais fatos tenham sido aceitos expressamente como
relevantes para o processo por parte da Comissão;
h) sem prejuízo do anteriormente exposto, a Comissão reconhece que, em virtude do princípio iura
novit cúria, a Corte possui a faculdade e inclusive o dever de aplicar as disposições jurídicas
pertinentes em um caso, ainda quando as partes não as tenham invocado expressamente;
i) em relação à alegação dos representantes das supostas vítimas e seus familiares a respeito de que
os recursos penais que algumas das supostas vítimas interpuseram para tentar o cumprimento
das sentenças da Corte Suprema de Justiça, foram ineficazes, razão pela qual se violou o direito
à tutela judicial efetiva consagrada nos artigos 8.1 e 25 da Convenção, considera que “ainda que
estas alegações tenham sido efetuadas pelos peticionários em sua petição original perante a
CIDH, a Comissão não determinou a existência destas alegadas violações nem em seu Relatório
de Mérito nem em sua demanda perante a Honorável Corte. Entretanto, trata-se de qualificações
jurídicas adicionais com respeito aos mesmos fatos que, com base nas provas disponíveis,
foram estabelecidos pela Comissão em seu Relatório de Mérito e na demanda[. … A] Comissão
considera que tais argumentos […] podem ser conhecidos pela Honorável Corte em virtude do
princípio iura novit curia”.
Alegações do Estado
151. Em relação ao artigo 8.1 da Convenção, o Estado argumentou que:
a) não se violou o direito dos cinco aposentados de terem acesso a um juiz competente pelo fato de
ter sido alterada a competência por razão da matéria dos juízes civis aos juízes de direito público,
“já que a determinação da competência é faculdade do Estado para uma melhor distribuição da
carga processual, devendo significar que em ambos os casos subsistiu o sistema de impugnações
e que, ademais, os dois organismos pertencem ao Poder Judiciário e têm a mesma hierarquia
normativa”. Além disso, não se demonstrou que tal mudança tenha provocado uma situação de
vulnerabilidade ou prejuízo para as supostas vítimas. Este argumento não foi elaborado pelos
cinco aposentados dentro da jurisdição interna, e tampouco forma parte do objeto da demanda
apresentada pela Comissão; trata-se de “um argumento posterior à contestação da demanda por
parte do Estado peruano e que, portanto, não pode ser objeto de debate neste caso”; e
b) “os aposentados iniciaram diversas ações, entre elas penais, que foram rejeitadas, o que não faz
mais do que demonstrar que não foram propostas oportunamente”.
Considerações da Corte
152. Com motivo desta controvérsia surgida entre a Comissão e os representantes das supostas vítimas e seus
familiares, e por tratar-se do primeiro caso tramitado em sua totalidade com o Regulamento que entrou em
vigência em 1º de junho de 2001, este Tribunal acredita ser conveniente esclarecer a questão relacionada
com a possibilidade de que se aleguem outros fatos ou direitos que não estejam incluídos na demanda.
153. No que respeita aos fatos objeto do processo, este Tribunal considera que não é admissível alegar novos
fatos distintos dos arguidos na demanda, sem prejuízo de expor aqueles que permitam explicar, esclarecer
ou rejeitar os que foram mencionados na demanda, ou ainda, responder às pretensões do demandante.
154. Isso é distinto do caso dos fatos supervenientes. Estes se apresentam depois da apresentação de qualquer
um dos seguintes escritos: demanda; petições, argumentos e provas, e contestação da demanda. Em tal
hipótese, a informação poderá ser remetida ao Tribunal em qualquer estado do processo antes de proferir a
sentença.
155. No que se refere à incorporação de outros direitos distintos aos já incluídos na demanda apresentada pela
Comissão, a Corte considera que os peticionários podem invocar tais direitos. São eles os titulares de
todos os direitos consagrados na Convenção Americana, e não admiti-lo seria uma restrição indevida à sua
50
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
condição de sujeitos do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Entende-se que o anterior, relativo a
outros direitos, se atém aos fatos já contidos na demanda.
156. O Tribunal tem a faculdade de analisar a violação ou não de artigos da Convenção não incluídos nos escritos
de demanda; petições, argumentos e provas, e contestação da demanda, com base no princípio iura
novit curia, solidamente respaldado na jurisprudência internacional, e “do qual se valeu reiteradamente a
jurisprudência internacional [entendendo-o] no sentido de que o julgador possui a faculdade e inclusive o
dever de aplicar as disposições jurídicas pertinentes em uma causa, ainda quando as partes não as invoquem
expressamente”.159
157. Finalmente, a Corte considera que não corresponde emitir um pronunciamento sobre a alegada violação do
artigo 8 da Convenção, devido a que não há suficientes elementos probatórios nos autos sobre este assunto.
XI
Descumprimento dos artigos 1.1 e 2
(Obrigação de Respeitar os Direitos e Dever de Adotar Disposições de Direito Interno)
Alegações da Comissão
158. Quanto aos artigos 1.1 e 2 da Convenção, a Comissão argumentou que:
a) as violações dos artigos 21, 25 e 26 da Convenção cometidas pelo Peru em detrimento dos cinco
aposentados, implicam que este Estado não cumpriu o dever geral de respeitar os direitos e
liberdades e de garantir seu livre e pleno exercício; e
b) ao publicar e aplicar o artigo 5 do Decreto-Lei nº 25.792, o Estado violou os direitos consagrados
nos artigos 21 e 26 da Convenção. O Estado não tomou as medidas adequadas de direito interno
para fazer efetivos os direitos consagrados na Convenção, contravindo a obrigação geral estipulada
no artigo 2 deste tratado.
Alegações dos representantes das supostas vítimas e seus familiares
159. Quanto aos artigos 1.1 e 2 da Convenção, os representantes das supostas vítimas e seus familiares alegaram
que:
a) como consequência da violação dos direitos consagrados nos artigos 8.1, 21, 25 e 26 da
Convenção, o Estado violou a obrigação de respeitar os direitos e liberdades reconhecidos na
Convenção e o dever de garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa sujeita à sua jurisdição;
e
b) com a adoção do artigo 5º do Decreto-Lei nº 25.792 e enquanto esteve vigente, o Peru desconheceu
o dever de adequar sua legislação interna à Convenção, de acordo com o estabelecido no artigo 2
da mesma.
Alegações do Estado
160. O Estado não fez referência expressa ao alegado descumprimento dos artigos 1.1 e 2 da Convenção
Americana.
Considerações da Corte
161. O artigo 1.1 da Convenção estabelece que
[o]s Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela
reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição,
sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de
159. Cf. Caso Cantos, nota 3 supra, par. 58; Caso Hilaire, Constantine e Benjamin e outros, nota 4 supra, par. 107; Caso Durand e Ugarte.
Sentença de 16 de agosto de 2000. Série C Nº 68, par. 76; Tribunal Europeu de Direitos Humanos (T.E.D.H.), Guerra e outros Vs. Itália, Sentença
de 19 de fevereiro de 1998, Reports 1998-I, p.13, par. 44; T.E.D.H., Philis Vs. Grécia, Sentença de 27 de agosto de 1991, Séries A No. 209, p.
19, par. 56; T.E.D.H.., Powell e Rayner Vs. Reino Unido, Sentença de 21 de fevereiro de 1990, Séries A No. 172, p. 13, par. 29; e Tribunal de
Justiça das Comunidades Europeias, Sentença de 19 de novembro de 1998 no Assunto C-252/96 P, pág.7, par. 23, onde se estabelece que “[o]
princípio iura novit curia autoriza o Juiz civil a aplicar as normas jurídicas que considere convenientes, bem como a modificar o fundamento
jurídico em que se baseiam as pretensões das partes, sem alterar, não obstante isso, a causa de pedir nem modificar a natureza do problema
arguído.”
51
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra
condição social.
162. Por sua vez, o artigo 2 da Convenção determina que
[s]e o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda não estiver garantido por
disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes comprometem-se a adotar, de acordo
com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou
de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.
163. A Corte estabeleceu que
[o] artigo 1.1 é fundamental para determinar se uma violação dos direitos humanos reconhecidos pela
Convenção pode ser atribuída a um Estado Parte. Com efeito, este artigo põe a cargo dos Estados Partes
os deveres fundamentais de respeito e de garantia, de tal modo que todo prejuízo aos direitos humanos
reconhecidos na Convenção que possa ser atribuído, segundo as regras do Direito Internacional, à ação
ou omissão de qualquer autoridade pública, constitui um fato imputável ao Estado que compromete sua
responsabilidade nos termos previstos pela mesma Convenção.
Conforme o artigo 1.1, é ilícita toda forma de exercício do poder público que viole os direitos
reconhecidos pela Convenção. Nesse sentido, em toda circunstância na qual um órgão ou funcionário
do Estado ou de uma instituição de caráter público lese indevidamente um desses direitos, se está
perante uma situação de inobservância do dever de respeito consagrado nesse artigo.
Essa conclusão é independente de que o órgão ou funcionário tenha atuado em contravenção de
disposições do direito interno ou extrapolado os limites de sua própria competência, posto que é um
princípio de Direito Internacional que o Estado responde pelos atos de seus agentes realizados ao
amparo de seu caráter oficial e pelas omissões dos mesmos ainda quando atuem fora dos limites de
sua competência ou em violação do direito interno.160
164. Em relação ao artigo 2 da Convenção, a Corte afirmou que:
No direito das gentes, uma regra consuetudinária prescreve que um Estado que ratificou um tratado de
direitos humanos deve introduzir em seu direito interno as modificações necessárias para assegurar o fiel
cumprimento das obrigações assumidas. Esta regra é universalmente aceita, com respaldo jurisprudencial.
A Convenção Americana estabelece a obrigação geral de cada Estado Parte de adequar seu direito interno
às disposições desta Convenção para garantir os direitos nela consagrados. Este dever geral do Estado
Parte implica que as medidas de direito interno têm de ser efetivas (princípio do effet utile). Isto significa
que o Estado deve adotar todas as medidas para que o estabelecido na Convenção seja efetivamente
cumprido em seu ordenamento jurídico interno, tal como requer o artigo 2 da Convenção. Estas medidas
apenas são efetivas quando o Estado adapta sua atuação à normativa de proteção da Convenção.161
165. No mesmo sentido, o Tribunal manifestou que
[o] dever geral do artigo 2 da Convenção Americana implica a adoção de medidas em duas vertentes.
Por uma parte, a supressão das normas e práticas de qualquer natureza que impliquem violação às
garantias previstas na Convenção. Pela outra, a expedição de normas e o desenvolvimento de práticas
dirigidas à efetiva observância destas garantias.162
166. A Corte nota que, como já afirmou na presente Sentença, o Estado violou os direitos humanos consagrados
nos artigos 21 e 25 da Convenção, em detrimento dos senhores Carlos Torres Benvenuto, Javier Mujica
Ruiz-Huidobro, Guillermo Álvarez Hernández, Maximiliano Gamarra Ferreyra, e Reymert Bartra Vásquez,
razão pela qual descumpriu o dever geral, estabelecido no artigo 1.1 da Convenção, de respeitar os direitos
e liberdades consagrados na Convenção e de garantir seu livre e pleno exercício.
167. A Corte observa que o Estado, ao abster-se de adotar por um longo período de tempo o conjunto de medidas
necessárias para dar pleno cumprimento às sentenças de seus órgãos judiciais e consequentemente fazer
efetivos os direitos consagrados na Convenção Americana (artigos 21 e 25), descumpriu a obrigação
estipulada no artigo 2 deste tratado.
168. Em razão das considerações anteriores, a Corte conclui que o Estado descumpriu as obrigações gerais dos
artigos 1.1 e 2 da Convenção Americana.
160. Cf. Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni, nota 2 supra, par. 154; Caso Baena Ricardo e outros. Sentença de 2 de fevereiro
de 2001. Série C Nº 72, par. 178; e Caso Caballero Delgado e Santana. Sentença de 8 de dezembro de 1995. Série C Nº 22, par. 56.
161. Cf. Caso “A Última Tentação de Cristo” (Olmedo Bustos e outros). Sentença de 5 de fevereiro de 2001. Série C Nº 73, par. 87; Caso Baena
Ricardo e outros, nota 160 supra, par. 179; Caso Durand e Ugarte, nota 159 supra, par. 136; e Cf. também “principe allant de soi”; Echange des
populations grecques et turques, avis consultatif, 1925, C.P.J.I., Série B, no. 10, p. 20.
162. Cf. Caso Baena Ricardo e outros, nota 160 supra, par. 180; Caso Cantoral Benavides. Sentença de 18 de agosto de 2000. Série C Nº 69,
par. 178; e Caso Castillo Petruzzi e outros. Sentença de 30 de maio de 1999. Série C Nº 52, par. 207.
52
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
XII
Aplicação do artigo 63.1
Alegações da Comissão
169. A Comissão manifestou que corresponde aos representantes das supostas vítimas e seus familiares apresentar
a “concretude de suas pretensões” em matéria de reparações e custas. A este respeito, solicitou à Corte que:
a) disponha que se garanta às supostas vítimas e seus familiares o gozo de seus direitos violados,
mediante o cumprimento das sentenças emitidas pela Corte Suprema de Justiça do Peru em 2 de
maio, 28 de junho, 1º e 19 de setembro, e 10 de outubro, todas de 1994, e das proferidas pelo
Tribunal Constitucional do Peru em 9 de julho de 1998, 3 de agosto de 2000 e 21 de dezembro
de 2000. A este respeito, afirmou que “[o] cumprimento de tais sentenças implica que o [E]stado
peruano pague aos senhores Carlos Torres Benvenuto, Javier Mujica Ruiz-Huidobro, Guillermo
Álvarez Hernández e Reymert Bartra Vásquez e aos familiares do senhor Maximiliano Gamarra
Ferreyra a diferença que foi deixada de pagar no valor de suas pensões desde novembro de 1992,
acrescida dos respectivos juros, e que lhes pague igualmente suas pensões por um valor nivelado
no futuro”;
b) ordene ao Estado que compense os senhores Carlos Torres Benvenuto, Javier Mujica RuizHuidobro, Guillermo Álvarez Hernández e Reymert Bartra Vásquez e os familiares do senhor
Maximiliano Gamarra Ferreyra “por todo dano adicional que […] demonstrem devidamente e que
seja consequência das alegadas violações aos direitos humanos das vítimas, incluindo o dano moral
pelo sofrimento gerado pela diminuição no valor de suas pensões e pelo descumprimento, por
parte do Estado, das sentenças da Corte Suprema de Justiça do Peru e do Tribunal Constitucional”.
Com respeito aos titulares das medidas de reparação, a Comissão afirmou que a parte lesada são
os senhores Carlos Torres Benvenuto, Javier Mujica Ruiz-Huidobro, Guillermo Álvarez Hernández,
Reymert Bartra Vásquez e Maximiliano Gamarra Ferreyra, e que, como este último faleceu, “o
pagamento de suas pensões assim como as indenizações que disponha a Honorável Corte devem
ser pagas a suas herdeiras únicas e universais: sua cônjuge, senhora Sara Elena Castro Remy, e suas
filhas, senhoritas Sara Esther Gamarra Castro e Patricia Elena Gamarra Castro”;
c) com respeito a outras formas de reparação, ordene ao Estado que derrogue e faça cessar, de maneira
retroativa, os efeitos do artigo 5 do Decreto-Lei nº 25.792 de 23 de outubro de 1992, devido à sua
incompatibilidade com a Convenção Americana. Além disso, solicitou ao Tribunal que ordene ao Peru
que realize uma investigação completa, imparcial e efetiva dos fatos, com o objetivo de estabelecer
responsabilidades pelo descumprimento das mencionadas sentenças proferidas pela Corte Suprema
de Justiça e pelo Tribunal Constitucional, “e que pela via dos processos penais, administrativos e de
outro caráter que tenham lugar, se apliquem aos responsáveis as punições pertinentes, adequadas à
gravidade das violações mencionadas”; e
d) ordene ao Estado que pague as custas originadas na tramitação dos processos judiciais no âmbito
interno, bem como as originadas no âmbito internacional na tramitação do caso perante a Comissão
e a Corte.
Alegações dos representantes das supostas vítimas e seus familiares
170. Os representantes das supostas vítimas e seus familiares realizaram as seguintes considerações relativas às
reparações, custas e gastos:
a) quanto aos beneficiários das reparações, indicaram que “tanto os cinco aposentados como seus
familiares sofreram as consequências de não terem recebido, durante cerca de dez anos, os valores
que lhes correspondiam a título da pensão nivelada a que têm direito”. Além dos cinco aposentados,
os representantes das supostas vítimas e seus familiares indicaram o nome de seus familiares que
consideram que também são beneficiários das reparações;
b) o Estado deve restabelecer o direito dos cinco aposentados à pensão nivelada nos mesmos termos
e condições em que foi estabelecida no momento de sua aposentadoria, mediante a expedição de
resoluções administrativas da SBS, as quais devem ser publicadas no Diário Oficial El Peruano e em
outro jornal de ampla circulação nacional;
c) como segunda medida para alcançar o restabelecimento da situação anterior à violação, indicaram
que o Estado deve pagar as diferenças entre os valores de aposentadoria recebidos pelos cinco
53
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
d)
e)
f)
g)
h)
i)
j)
k)
aposentados e os que lhes correspondia receber a cada mês se suas pensões não tivessem sido
reduzidas arbitrariamente, acrescidos dos juros moratórios correspondentes. Acrescentaram que
tais cálculos devem ser realizados com base nas “somas pagas desde novembro de 1992, a título
de salário, às pessoas que ocuparam os cargos ou que desempenhavam funções similares às das
vítimas no momento de se aposentar”, e solicitaram que a Corte designasse o senhor Máximo
Jesús Atauje Montes como encarregado de realizar tais cálculos;
quanto à reparação do dano material, no escrito de petições, argumentos e provas solicitaram à Corte
que para estabelecer a quantia exata da indenização por danos e prejuízos “tenha em conta, em sua
oportunidade, a perícia contábil que, em seu momento, [a] Corte poderá ordenar”. Posteriormente,
em seu escrito de alegações finais esclareceram que o parecer pericial apresentado na audiência
pública “tem o objetivo de ilustrar a magnitude do dano patrimonial causado”, e não têm a pretensão
de que a Corte ordene ao Estado o reembolso das quantias indicadas em tal perícia, mas que a tome
como referência para fixar uma indenização a título de dano material;
quanto à indenização a título de dano moral, solicitaram ao Tribunal que, “de acordo com os
testemunhos de Carlos Torres e Guillermo Álvarez, determine, em equidade, o montante da reparação
pelo sofrimento que padeceram os cinco aposentados e suas famílias”. A este respeito, indicaram
que as supostas vítimas padeceram sofrimentos, angústias e preocupações derivadas da falta de
meios econômicos para satisfazer suas necessidades e as de suas famílias, “como consequência
da redução de suas pensões, há quase 10 anos, e a consequente denegação de justiça, durante oito
anos, nos quais investiram, incansavelmente, energias e esforços a fim de conseguir o cumprimento
das sentenças decididas a seu favor”;
os cinco aposentados manifestaram sua vontade de entregar à Coordenadora Nacional de Direitos
Humanos “qualquer soma” que a Corte ordene a seu favor, com o fim de que seja utilizada para a
proteção de vítimas de violações do direito à previdência social e do descumprimento de sentenças
por parte do Estado;
quanto às medidas de satisfação e garantias de não repetição, solicitaram à Corte que ordene ao
Estado que reconheça publicamente sua responsabilidade internacional “pela redução dos valores
da pensão nivelada a que os cinco aposentados têm direito, pela falta de pagamento durante estes
anos da diferença entre o valor devido e os valores realmente recebidos, bem como pela denegação
de justiça”, e que peça desculpas públicas pela ocorrência de tais fatos. Assim mesmo, solicitaram
que o Estado publique o reconhecimento de responsabilidade e o pedido desculpas, em dois jornais
de ampla circulação nacional;
como medida de satisfação e garantia de não repetição, indicaram que o Estado deve realizar
uma investigação imparcial e eficaz, através da qual sancione os funcionários da SBS e do MEF
responsáveis pelo prolongado descumprimento das sentenças. Acrescentaram que os processos
promovidos pelas supostas vítimas se encontram paralisados;
como garantia de não repetição, solicitaram que a Corte “ordene ao Estado peruano conformar
um Grupo de Estudo, do qual farão parte reconhecidos acadêmicos e especialistas internacionais
vinculados ao tema, da […] OIT, e do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais”. O Grupo
de Estudo deverá apresentar um relatório com recomendações sobre as modificações ou iniciativas
legislativas necessárias para ajustar integralmente a legislação peruana em matéria de previdência
social às obrigações internacionais do Peru;
solicitaram à Corte que ordene ao Estado que institua um “Dia Nacional da Dignidade do Aposentado”.
“[E]sta medida permitirá à sociedade peruana ter, ao menos uma vez por ano, a ocasião de refletir
sobre a importância para uma sociedade, o fato de garantir o direito à pensão daqueles que com seu
esforço e dedicação contribuíram a construir o Peru”; e
a respeito do reembolso das custas e gastos, solicitaram que a Corte ordene ao Estado o reembolso
dos gastos realizados pelos cinco aposentados no âmbito interno e perante a Comissão e a Corte,
e o reembolso dos gastos assumidos pelos representantes das supostas vítimas e seus familiares
no processo perante a Comissão e a Corte. Quanto ao montante dos gastos e custas assumidos
pelo CEJIL, indicaram que se remetiam ao parecer apresentado pelo perito Máximo Jesús Atauje
Montes. Ademais, o CEDAL manifestou que o montante que fixe a Corte a este título será destinado
à Coordenadora Nacional de Direitos Humanos.
171. No escrito de alegações finais, os representantes das supostas vítimas e seus familiares informaram que o
Estado havia cumprido algumas medidas de reparação. Em relação a este último aspecto indicaram que:
a) mediante a Lei nº 27.650 de 21 de janeiro de 2002 foi derrogado o artigo 5 do Decreto-Lei nº 25.792;
b) o Estado restabeleceu o direito dos cinco aposentados a uma pensão nivelada, através de resoluções
administrativas expedidas pela SBS em 12 de março de 2002 que ordenaram o cumprimento das
54
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
resoluções de 1995 nas quais se dispôs que fosse dado cumprimento às sentenças das autoridades
judiciais internas; e
c) o Estado pagou aos cinco aposentados os montantes das pensões deixados de receber desde
novembro de 1992. Entretanto, indicaram que não lhes pagou os juros sobre estes montantes e que
a SBS condicionou os pagamentos realizados ao que decidisse a Corte Interamericana. Ademais,
ressaltaram que, apesar de que os valores recebidos em março de 2002 constituem “quantias
elevadas e impactantes”, “não se deve perder de vista que estas cifras correspondem a somas
acumuladas durante 10 anos” e que “se explicam devido ao aumento exponencial das remunerações
dos titulares dos cargos da SBS que servem de referência para o reajuste das pensões”.
Alegações do Estado
172. Quanto às reparações, custas e gastos, o Estado afirmou o seguinte:
a) resulta “estranho” que as supostas vítimas “pretendam obter uma indenização não apenas para elas
mas para seus dependentes maiores de idade”, os quais têm independência econômica;
b) “[q]uanto à indenização que se reclama”, assinalou que “é improcedente porquanto, como se indicou,
a situação dos autores não foi responsabilidade do Estado”;
c) o Estado não tem que reconhecer publicamente responsabilidade alguma pelos fatos demandados
nem solicitar desculpas, “já que, como indicou reiteradamente, não possui responsabilidade alguma
pelos fatos nos quais não interveio”;
d) quanto à investigação pelo “descumprimento” das resoluções judiciais, “o Estado peruano não foi
objeto de nenhuma demanda judicial”;
e) considera “improcedentes” os pedidos relativos à adequação da legislação interna em matéria de
previdência social às obrigações internacionais do Peru “porque este é um tema de competência
parlamentar”, e o estabelecimento de um dia denominado Dia da Dignidade Nacional do Aposentado
“em razão de que não é um tema relacionado com a presente reclamação”; e
f) quanto ao reembolso de custas e gastos, assinalou que “tal pedido não é procedente porquanto o
Estado peruano não possui responsabilidade alguma pelos fatos que motivam a demanda”.
Considerações da Corte
173. De acordo com o exposto nos capítulos anteriores, a Corte decidiu que com ocasião dos fatos deste caso foram
violados os artigos 21 e 25 da Convenção Americana, tudo isso em relação aos artigos 1.1 e 2 da mesma, em
detrimento dos senhores Carlos Torres Benvenuto, Javier Mujica Ruiz-Huidobro, Guillermo Álvarez Hernández,
Maximiliano Gamarra Ferreyra, e Reymert Bartra Vásquez. Este Tribunal em sua jurisprudência constante
estabeleceu que é um princípio de Direito Internacional que toda violação de uma obrigação internacional que
tenha produzido um dano comporta o dever de repará-lo adequadamente.163 A tais efeitos, a Corte se baseou no
artigo 63.1 da Convenção Americana, segundo o qual,
[q]uando decidir que houve violação de um direito ou liberdade protegidos nesta Convenção, a Corte determinará que se
assegure ao prejudicado o gozo do seu direito ou liberdade violados. Determinará também, se isso for procedente, que
sejam reparadas as conseqüências da medida ou situação que haja configurado a violação desses direitos, bem como o
pagamento de indenização justa à parte lesada.
174. Tal como a Corte indicou, o artigo 63.1 da Convenção Americana contém uma norma consuetudinária que
constitui um dos princípios fundamentais do Direito Internacional contemporâneo sobre a responsabilidade
dos Estados. De acordo com este princípio, ao ocorrer um fato ilícito imputável a um Estado, surge de imediato
a responsabilidade deste pela violação da norma internacional em questão, com o consequente dever de
reparação e de fazer cessar as consequências da mencionada violação.164
175. A Corte observa que, com posterioridade à apresentação da demanda, o Estado peruano tomou uma série de
medidas dirigidas a dar cumprimento às pretensões da Comissão e dos representantes das vítimas e seus
familiares, a saber:
163. Cf. Caso Cantos, nota 3 supra, par. 66; Caso do Caracazo. Reparações, nota 3 supra, par. 76; e Caso Trujillo Oroza. Reparações, nota 4
supra, par. 60.
164. Cf. Caso Cantos, nota 3 supra, par. 67; Caso do Caracazo. Reparações, nota 3 supra, par. 76; e Caso Hilaire, Constantine e Benjamin e
outros, nota 4 supra, par. 202.
55
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
o restabelecimento do gozo ao direito a uma pensão nivelada com o salário do funcionário ativo da
SBS que desempenhe o mesmo posto ou similar ao desempenhado por cada um dos aposentados
no momento da aposentadoria;
b) o cumprimento das sentenças proferidas pela Sala de Direito Constitucional e Social da Corte
Suprema de Justiça e pelo Tribunal Constitucional, mediante o pagamento da parte das pensões
mensais que deixaram de pagar às vítimas desde novembro de 1992 a fevereiro de 2002; e
c) a derrogação do artigo 5 do Decreto-Lei nº 25.792.
a)
176. A Corte valora esta atitude do Estado peruano, por constituir uma contribuição positiva para a solução da
presente controvérsia.
177. Quanto à pretensão de que fosse derrogada e que se fizesse cessar “de maneira retroativa” os efeitos do
artigo 5 do Decreto-Lei nº 25.792, a Corte considera que esta pretensão já não forma parte da controvérsia no
presente caso, posto que este decreto já foi derrogado e, ademais, foram devolvidos os montantes das pensões
deixados de receber por parte das vítimas, nos termos que vinham recebendo com anterioridade a que fossem
realizadas as reduções arbitrárias.
178. Em relação às consequências patrimoniais que pudesse ter a violação ao direito à propriedade privada, este
Tribunal considera que as mesmas deverão ser estabelecidas, nos termos da legislação interna, pelos órgãos
nacionais competentes.
179. A pretensão de que se leve a cabo uma investigação de maneira imparcial e efetiva sobre o prolongado descumprimento
das sentenças judiciais é procedente, de maneira que a Corte ordena que o Estado realize as investigações
correspondentes e aplique as sanções pertinentes aos responsáveis pelo desacato das sentenças judiciais.
180. Em relação às demais pretensões,165 a Corte considera que a presente Sentença constitui per se uma forma de
reparação para os cinco aposentados.166 Entretanto, o Tribunal considera que os fatos ocorridos no presente
caso causaram sofrimentos aos aposentados, devido a que sua qualidade de vida foi prejudicada ao terem suas
pensões reduzidas substancialmente, de maneira arbitrária, e a que tenham sido descumpridas as sentenças
judiciais emitidas a seu favor. Por estas razões, a Corte considera que o dano imaterial ocasionado deve, além
disso, ser reparado, por via substitutiva, mediante uma indenização compensatória, conforme a equidade.167
Em consequência, a Corte considera que o Estado deve pagar a cada um dos cinco aposentados, a título de
reparação do dano imaterial e no prazo de um ano, a quantia de US$ 3.000,00 (três mil dólares dos Estados
Unidos da América). A quantia correspondente ao senhor Maximiliano Gamarra Ferreyra deverá ser paga à sua
viúva, senhora Sara Elena Castro Remy.
***
181. Quanto ao reembolso das custas e gastos, corresponde a este Tribunal apreciar prudentemente seu alcance,
que compreende os gastos gerados pelas ações interpostas pelos cinco aposentados perante as autoridades
da jurisdição interna, bem como os gerados no curso do processo perante o Sistema Interamericano. Esta
apreciação pode ser realizada com base no princípio de equidade.168
182. Para tanto, a Corte considera que é equitativo ordenar o pagamento da quantia total de US$ 13.000,00 (treze
mil dólares dos Estados Unidos da América) a título de gastos e a quantia total de US$ 3.500,00 (três mil
e quinhentos dólares dos Estados Unidos da América) a título de custas, nos quais incorreram os cinco
aposentados e seus representantes nos processos internos e no processo internacional perante o Sistema
Interamericano de Proteção. Para o cumprimento do anterior, o Estado deverá realizar o respectivo pagamento
em um prazo de seis meses, contado a partir da notificação desta Sentença. O pagamento correspondente
165. As demais pretensões da Comissão e dos representantes das vítimas e seus familiares são: o pagamento dos juros correspondentes
aos montantes das pensões deixadas de receber desde novembro de 1992; uma indenização pelo dano material; o reconhecimento público
de responsabilidade internacional e o pedido público de desculpas, bem como a publicação de ambos em dois jornais de ampla circulação
nacional; a conformação de um “Grupo de Estudo” sobre a adequação da legislação interna em matéria de previdência social às obrigações
internacionais do Peru, e o estabelecimento de um “Dia Nacional da Dignidade do Aposentado”.
166. Cf. Caso Trujillo Oroza. Reparações, nota 4 supra, par. 83; Caso “A Última Tentação de Cristo” (Olmedo Bustos e outros), nota 161 supra,
par. 99; e Caso do Tribunal Constitucional, nota 151 supra, par. 122.
167. Cf. Caso do Caracazo. Reparações, nota 3 supra, par. 94; Caso Bámaca Velásquez. Reparações (art. 63.1 Convenção Americana sobre
Direitos Humanos). Sentença de 22 de fevereiro de 2002. Série C Nº 91, par. 60; e Caso Trujillo Oroza. Reparações, nota 4 supra, par. 83.
168. Cf. Caso Hilaire, Constantine e Benjamin e outros, nota 4 supra, par. 218; Caso Cesti Hurtado. Reparações (art. 63.1 Convenção Americana
sobre Direitos Humanos). Sentença de 31 de maio de 2001. Série C Nº 78, par. 72; e Caso das “Crianças de Rua” (Villagrán Morales e outros).
Reparações (art. 63.1 Convenção Americana sobre Direitos Humanos). Sentença de 26 de maio de 2001. Série C Nº 77, par. 109.
56
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
aos gastos deverá ser distribuído da seguinte maneira: a) a quantia de US$ 3.000,00 (três mil dólares dos
Estados Unidos da América) a cada um dos senhores Carlos Torres Benvenuto, Javier Mujica Ruiz-Huidobro, e
Guillermo Álvarez Hernández, e b) a quantia de US$ 2.000,00 (dois mil dólares dos Estados Unidos da América)
ao senhor Reymert Bartra Vásquez e a quantia de US$ 2.000,00 (dois mil dólares dos Estados Unidos da
América) à senhora Sara Elena Castro Remy, viúva do senhor Maximiliano Gamarra Ferreyra. No que respeita
ao pagamento das custas, este deverá ser distribuído da seguinte maneira: a) a quantia de US$ 3.000,00 (três
mil dólares dos Estados Unidos da América) ao CEDAL, e b) a quantia de US$ 500,00 (quinhentos dólares dos
Estados Unidos da América) ao CEJIL.
***
183. O Estado pode cumprir suas obrigações mediante o pagamento em dólares dos Estados Unidos da América
ou em uma quantia equivalente em moeda peruana, utilizando para o cálculo respectivo o tipo de câmbio entre
ambas as moedas que esteja vigente na praça de Nova York, Estados Unidos da América, no dia anterior ao
pagamento.
184. Os pagamentos da indenização a título de dano imaterial e o das custas e gastos estabelecidos na presente
Sentença, não poderão ser objeto de imposto ou taxa atualmente existente ou que possa ser decretada no
futuro. O Estado deverá cumprir as medidas de reparação ordenadas dentro do prazo de um ano contado a
partir da notificação da presente Sentença. Ademais, em caso de que o Estado incorra em mora, deverá pagar
juros sobre a quantia devida, o qual corresponderá ao juro bancário moratório no Peru.
185. Em relação à frase das resoluções da SBS que afirmam “o direito da SBS a recuperar, de acordo com a decisão
que venha a emitir a Corte Interamericana de Direitos Humanos, o valor que possa resultar excessivo”, este
Tribunal considera que esta ressalva das resoluções da SBS não possui nenhum efeito (par. 119 supra).
186. Conforme a sua prática constante, a Corte se reserva a faculdade de supervisionar o cumprimento integral da
presente Sentença. O caso se dará por concluído uma vez que o Estado tenha dado cabal aplicação ao disposto
nela. Dentro do prazo de um ano contado a partir da notificação desta Sentença, o Estado deverá apresentar à
Corte um relatório sobre as medidas tomadas para dar cumprimento a esta Sentença.
XIII
Pontos Resolutivos
187. Portanto,
A CORTE,
por unanimidade,
1. declara que o Estado violou o direito à propriedade privada, consagrado no artigo 21 da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, em detrimento dos senhores Carlos Torres Benvenuto, Javier
Mujica Ruiz-Huidobro, Guillermo Álvarez Hernández, Maximiliano Gamarra Ferreyra, e Reymert
Bartra Vásquez, de acordo com o exposto nos parágrafos 93 a 121 da presente Sentença.
2. declara que o Estado violou o direito à proteção judicial, consagrado no artigo 25 da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, em detrimento dos senhores Carlos Torres Benvenuto, Javier
Mujica Ruiz-Huidobro, Guillermo Álvarez Hernández, Maximiliano Gamarra Ferreyra, e Reymert
Bartra Vásquez, de acordo com o exposto nos parágrafos 125 a 141 da presente Sentença.
3. declara que o Estado descumpriu as obrigações gerais dos artigos 1.1 e 2 da Convenção Americana
sobre Direitos Humanos, em conexão com as violações dos direitos substantivos indicadas nos
pontos resolutivos anteriores, de acordo com o exposto nos parágrafos 161 a 168 da presente
Sentença.
4. declara que a presente Sentença constitui per se uma forma de reparação para as vítimas, de acordo
com o exposto no parágrafo 180 da presente Sentença.
5. decide que as consequências patrimoniais que a violação ao direito à propriedade privada possa ter
ocasionado, deverão ser estabelecidas, nos termos da legislação interna, pelos órgãos nacionais
competentes.
57
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
6. decide que o Estado deve realizar as investigações correspondentes e aplicar as sanções pertinentes
aos responsáveis pelo desacato das sentenças judiciais proferidas pelos tribunais peruanos no
cumprimento das ações de garantia interpostas pelas vítimas.
7. decide, por equidade, que o Estado deve pagar, às quatro vítimas e à viúva do senhor Maximiliano
Gamarra Ferreyra, de acordo com o indicado no parágrafo 180 da presente Sentença, a quantia de
US$ 3.000,00 (três mil dólares dos Estados Unidos da América) a título de dano imaterial. O Estado
deverá proceder a cumprir o estabelecido no presente ponto resolutivo em um prazo máximo de um
ano contado a partir da notificação da presente Sentença.
8. decide que o Estado deverá pagar a quantia total de US$ 13.000,00 (treze mil dólares dos Estados
Unidos da América) a título de gastos e a quantia total de US$ 3.500,00 (três mil e quinhentos
dólares dos Estados Unidos da América) a título de custas, de acordo com o exposto no parágrafo
182 da presente Sentença.
9. declara que os pagamentos da indenização a título de dano imaterial e o das custas e gastos
estabelecidos na presente Sentença, não poderão ser objeto de imposto ou taxas atualmente
existentes ou que possam ser decretadas no futuro.
10. declara que o Estado deverá cumprir a presente Sentença dentro do prazo de um ano contado a partir
de sua notificação.
11. declara que, caso o Estado incorra em mora, deverá pagar juros sobre a quantia devida, que
corresponderá ao juro bancário moratório no Peru.
12. decide que supervisionará o cumprimento desta Sentença e dará por concluído o presente caso uma
vez que o Estado tenha dado cabal aplicação ao nela disposto. Dentro do prazo de um ano, contado
a partir da notificação desta Sentença, o Estado deverá apresentar à Corte um relatório sobre as
medidas tomadas para dar cumprimento a esta Sentença, de acordo com o exposto no parágrafo
186 da mesma.
O Juiz Cançado Trindade deu a conhecer à Corte seu Voto Concordante, o Juiz García Ramírez também
deu a conhecer à Corte seu Voto Concordante Fundamentado, e o Juiz de Roux Rengifo deu a conhecer
à Corte seu Voto Fundamentado, todos os quais acompanham esta Sentença.
Antônio A. Cançado Trindade
Presidente
Sergio García Ramírez
Oliver Jackman
Carlos Vicente de Roux Rengifo
Hernán Salgado Pesantes
Alirio Abreu Burelli
Javier Mario de Belaunde López de Romaña
Manuel E. Ventura Robles
Secretário
Comunique-se e execute-se,
Antônio A. Cançado Trindade
Presidente
Manuel E. Ventura Robles
Secretário
58
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
VOTO CONCORDANTE DO JUIZ A. A. CANÇADO TRINDADE
1. Voto a favor da adoção da presente Sentença sobre o mérito e as reparações no caso dos Cinco Aposentados
versus Peru, na qual a Corte Interamericana de Direitos Humanos, primeiramente, afirma o caráter de direito
adquirido do direito à pensão, incluído no direito à propriedade privada de acordo com o artigo 21 da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, e vinculado à perene, inescapável e irredutível função social do Estado. E,
em seguida, a Corte sustenta que o imediato cumprimento das sentenças judiciais–que não pode ficar à mercê
da discricionariedade da Administração–é um componente essencial do direito à proteção judicial consagrado no
artigo 25 da Convenção Americana.
2. Da presente Sentença da Corte decorre o amplo alcance do direito de acesso à justiça, nos planos tanto nacional
como internacional. Tal direito não se reduz ao acesso formal, stricto sensu, à instância judicial; o direito de
acesso à justiça, que se encontra implícito em diversas disposições da Convenção Americana (e de outros
tratados de direitos humanos) e que permeia o direito interno dos Estados Partes, significa, lato sensu, o direito
a obter justiça. Dotado de conteúdo jurídico próprio, configura-se como um direito autônomo à prestação
jurisdicional, ou seja, à própria realização da justiça.
3. Como revelam as circunstâncias do presente caso dos Cinco Aposentados versus Peru, as obrigações de
proteção judicial por parte do Estado não se cumprem somente com a emissão de sentenças judiciais, mas com
o efetivo cumprimento das mesmas (de acordo com o disposto no artigo 25(2)(c) da Convenção Americana). Do
ponto de vista dos indivíduos, pode-se aqui visualizar um verdadeiro direito ao Direito, ou seja, o direito a um
ordenamento jurídico–nos planos tanto nacional como internacional–que efetivamente salvaguarde os direitos
inerentes à pessoa humana1 (entre os quais se encontra o direito à pensão como direito adquirido).2
4. Meu propósito no presente Voto Concordante é sublinhar a importância, para a operação, em particular, do
mecanismo de proteção da Convenção Americana, do decidido pela Corte na presente Sentença em relação
especificamente aos distintos papeis dos indivíduos peticionários e da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos no procedimento perante a Corte. A questão tem incidência direta no tratamento do direito de acesso
à justiça, em seu sentido amplo ao qual acabo de me referir, e no âmbito da aplicação da Convenção Americana.
5. Na realidade, como indica a presente Sentença no caso dos Cinco Aposentados versus Peru, este é o primeiro
caso contencioso inteiramente tramitado sob o novo Regulamento da Corte, adotado em 24 de novembro de
2000, e em vigência a partir de 1º de junho de 2001 (par. 152). Ao adotar este histórico Regulamento, que
outorgou locus standi in judicio aos peticionários em todas as etapas do procedimento perante a Corte, esta
última teve presentes os imperativos e necessidades concomitantes de realização da justiça, e de preservação da
igualdade e segurança jurídico-processuais no procedimento sob a Convenção Americana.
6. Quanto aos papeis distintos dos indivíduos peticionários e da Comissão Interamericana no procedimento
perante a Corte, esta última teve presentes os enfoques tanto da tese de direito processual, com ênfase na
faculdade privativa dos Estados Partes e da Comissão de submeter um caso à Corte (artigo 61(1) da Convenção
Americana), e a tese de direito substantivo, com ênfase na condição dos indivíduos de titulares dos direitos
consagrados na Convenção. Da tensão inescapável entre as duas teses (que correspondem a duas correntes do
pensamento jurídico), resultou o entendimento de que a nova faculdade dos peticionários de apresentar de forma
autônoma suas alegações perante a Corte devia limitar-se aos elementos fáticos e jurídicos contidos na demanda
apresentada pela Comissão.3
7. No ano e meio de vigência do novo Regulamento da Corte, os peticionários reiteradamente se referiram a direitos,
diferentes dos contidos na demanda apresentada pela Comissão, que também consideravam terem sido violados, não
apenas no presente caso dos Cinco Aposentados versus Peru, mas também em outras ocasiões recentes,4 em casos
contenciosos que em sua oportunidade serão resolvidos pela Corte nas respectivas Sentenças. No presente caso,
a controvérsia surgida entre os representantes das supostas vítimas e seus familiares, por um lado, e a Comissão
Interamericana, de outro lado (pars. 149-150), requereu da Corte um pronunciamento sobre este ponto específico.
8. A Comissão se opôs a que os representantes das supostas vítimas e seus familiares acrescentassem,–em seu
1. A.A. Cançado Trindade, Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, tomo III, Porto Alegre/Brasil, S.A. Fabris Ed., 2003, pp. 523-524.
2. Que se incorporou ao patrimônio pessoal, como uma contra-prestação do poder público pelos anos de trabalho e contribuição social prestados
pelo indivíduo, e que não pode ser afetado por alterações legislativas (ou de outro caráter) subsequentes, com consequências confiscatórias.
3. Cf. Relatório..., op. cit. infra n. (7), pp. 28-30.
4. Casos Mirna Mack Chang versus Guatemala, Maritza Urrutia versus Guatemala, Centro de Reeducação do Menor versus Paraguai, Ricardo Canese
versus Paraguai, Juan Sánchez versus Honduras, e Gómez Paquiyauri versus Peru.
59
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
escrito de petições, argumentos e provas,–novos elementos fáticos e jurídicos (direitos adicionais) aos já contidos
na demanda interposta pela Comissão perante a Corte. Esta controvérsia, de certo modo, leva a Corte, na presente
Sentença no caso dos Cinco Aposentados versus Peru, a esclarecer, e situar na adequada perspectiva, os papeis
fundamentalmente distintos dos peticionários e da Comissão no procedimento perante o Tribunal.
9. Instada a pronunciar-se a respeito, a Corte teve presente a experiência–de um ano e meio até a presente data–
que começa a se acumular sobre a matéria em questão, sob seu novo Regulamento, assim como,–uma vez
mais, como sempre,–os imperativos concomitantes de realização da justiça, e de preservação da igualdade
e segurança jurídico-processuais no procedimento previsto na Convenção. Quanto aos elementos fáticos da
demanda apresentada pela Comissão (o objeto do processo), a Corte acolheu o argumento da Comissão,–com
exceção, naturalmente, dos fatos supervenientes,–nos seguintes termos (pars. 153-154):
“No que respeita aos fatos objeto do processo, este Tribunal considera que não é admissível alegar
novos fatos distintos dos arguidos na demanda, sem prejuízo de expor aqueles que permitam explicar,
esclarecer ou rejeitar os que foram mencionados na demanda, ou ainda, responder às pretensões do
demandante.
Isso é distinto do caso dos fatos supervenientes. Estes se apresentam depois da apresentação de
qualquer um dos seguintes escritos: demanda; petições, argumentos e provas, e contestação da
demanda. Em tal hipótese, a informação poderá ser remetida ao Tribunal em qualquer estado do
processo antes de proferir a sentença”.
10. Quanto aos elementos propriamente jurídicos da demanda, a Corte decidiu na presente Sentença, de forma
distinta, nos seguintes termos (par. 155):
“No que se refere à incorporação de outros direitos distintos aos já incluídos na demanda apresentada
pela Comissão, a Corte considera que os peticionários podem invocar tais direitos. São eles os titulares
de todos os direitos consagrados na Convenção Americana, e não admiti-lo seria uma restrição indevida
à sua condição de sujeitos do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Entende-se que o anterior,
relativo a outros direitos, se atém aos fatos já contidos na demanda”.
11. Desse modo, e com toda a prudência, a Corte deu um passo à frente neste tema, na direção reivindicada pelos
indivíduos peticionários. O fez sem prejuízo do direito de defesa do Estado demandado e sem prejudicar o
relevante papel da Comissão no curso do procedimento contencioso. Com efeito, em toda circunstância está
preservado o direito de defesa do Estado, porquanto este conta com um prazo de dois meses para contestar
a demanda submetida à Corte pela Comissão, bem como com um prazo prudencial para apresentar suas
observações ao escrito de petições, argumentos e provas dos representantes das supostas vítimas e seus
familiares. Em algumas ocasiões o prazo para apresentar a contestação da demanda e as observações ao escrito
dos representantes das supostas vítimas e seus familiares foi o mesmo, de modo que podem ser apresentadas
em um mesmo escrito as duas linhas de argumentos.
12. No presente caso dos Cinco Aposentados versus Peru, o Estado teve a oportunidade, e efetivamente tomou a
iniciativa, de apresentar vários escritos.5 Por conseguinte, preservou-se plenamente o princípio do contraditório.
O importante, neste particular, é que o Estado demandado sempre tem a ocasião de exercer amplamente seu
direito de defesa. Além disso, em todo caso, tal como esclareceu a Corte na presente Sentença, qualquer direito
adicionado pelos peticionários aos constantes na demanda interposta pela Comissão deve se limitar aos fatos já
contidos nesta demanda (par. 155).
13. Encontra-se igualmente preservado o papel da Comissão, como guardiã da Convenção, que auxilia a Corte no
contencioso sob a Convenção como defensora do interesse público. No presente caso, a discrepância entre a
Comissão e os peticionários não teve maiores consequências práticas, pois a Corte não encontrou nos autos
elementos probatórios que lhe permitissem pronunciar-se sobre uma eventual violação adicional da Convenção
(par. 157). Ademais, em virtude de um princípio de direito processual, amplamente respaldado na jurisprudência
5. Assim, o Estado demandado apresentou, no presente caso, os seguintes escritos sobre o mérito do assunto: escrito de 15.03.2002, de
contestação da demanda; escrito de 22.04.2002, de observações ao escrito de petições, argumentos e provas dos representantes das supostas
vítimas e seus familiares; escrito de 22.05.2002, mediante o qual se referiu à informação da Comissão relativa ao cumprimento das sentenças
proferidas pela Corte Suprema de Justiça e pelo Tribunal Constitucional do Peru e a derrogação do artigo 5 do Decreto-Lei n. 25.792; escrito de
02.09.2002, mediante o qual se referiu à alegação de falta de esgotamento dos recursos de direito interno exposto na contestação da demanda;
escrito de 2.09.2002, mediante o qual expôs suas considerações sobre a proposta de solução amistosa apresentada pelos representantes das
supostas vítimas e seus familiares perante a Secretaria Executiva da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Ministério de Justiça do Peru e
sobre o amicus curiae apresentado pela Defensoria do Povo durante a tramitação do caso perante a Comissão; escrito de 29.10.2002, mediante
o qual remeteu suas alegações finais escritas; escrito de 29.10.2002, mediante o qual apresentou um documento intitulado “Explicação dos
Regimes Trabalhistas e Previdenciários que se aplicam na República do Peru e Análise Específica da Situação de Cada um dos Aposentados”; e
escrito de 7.11.2002, mediante o qual fez referência à perícia apresentada perante a Corte pelo senhor Máximo Jesús Atauje Montes. Além destes
escritos, o Estado peruano apresentou outros escritos de mero trâmite, bem como de prova.
60
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
internacional, a Corte tem o poder inerente de examinar, sponte sua, qualquer violação adicional da Convenção,
ainda que não alegada na demanda apresentada pela Comissão (jura novit curia),–como indicado na presente
Sentença (par. 156) e como admitido expressa e acertadamente pela própria Comissão (par. 150(h)).
14. O princípio jura novit curia (que foi estudado no âmbito dos mais distintos ramos do Direito, inclusive o Direito
Internacional) inspira o exercício da função judicial, e dá expressão ao entendimento de que o Direito está por
cima do alegado pelas partes, devendo a autoridade jurisdicional captá-lo e aplicá-lo ao caso concreto, para o
que se encontra inteiramente livre. A autoridade jurisdicional não está, pois, limitada pelo que alegam as partes,
e tampouco há lugar para o non liquet. Autoridade jurisdicional deve dizer qual é o Direito (jurisdictio, jus dicere)
e dar-lhe aplicação, e para isto–em cumprimento de seu dever–tem plena liberdade.
15. Em realidade, a consideração do princípio de direito processual jura novit curia vem a acentuar o tratamento diferenciado
dispensado aos elementos fáticos e jurídicos, que orientou o critério adotado pela Corte Interamericana, na presente
Sentença, sobre a questão sob análise. Em virtude daquele princípio jura novit curia, a autoridade jurisdicional, ainda
que adscrita em sua decisão aos fatos e às provas submetidos no juízo, tem, por outro lado, quanto ao direito, a
faculdade e o dever de ir além das alegações das partes. Encontra-se, assim, facultada a qualificar autonomamente a
situação fática em questão, e a buscar as disposições pertinentes na ordem jurídica aplicável, ainda que não tenham
sido invocadas pelas partes; ou seja, a ela lhe está facultada a livre busca da normativa jurídica a aplicar.
16. De todo modo, é importante o passo à frente dado pela Corte na presente Sentença, inclinando-se, quanto
à posição dos indivíduos peticionários, a favor da tese de direito substantivo. A Corte sustenta corretamente
que a consideração que deve prevalecer é a da titularidade, dos indivíduos, de todos os direitos protegidos
pela Convenção, como verdadeira parte substantiva demandante, e como sujeitos do Direito Internacional dos
Direitos Humanos. A Corte se moveu conscientemente na direção correta, no exercício de uma faculdade que
lhe é inerente, e tomando tanto a Convenção Americana como sua interna corporis como instrumentos vivos,
que requerem uma interpretação evolutiva (como indicado em sua jurisprudencia constante),6 para atender às
necessidades em constante mudança de proteção do ser humano.
17. Este é um significativo passo à frente dado pela Corte, desde a adoção de seu atual Regulamento. Igualmente
de acordo com a mens legis do Regulamento vigente, no sentido de dar a maior participação possível, de
forma autônoma, às supostas vítimas, e seus representantes legais devidamente credenciados, no procedimento
perante a Corte, encontra-se a Resolução geral sobre medidas provisórias de proteção, emitida pela Corte em
29 de agosto de 2001. Mediante tal Resolução, a Corte, em sua sabedoria, decidiu que “receberá e conhecerá
de forma autônoma os pedidos, argumentos e provas dos beneficiários das medidas provisórias adotadas por
esta nos casos em que se apresente a demanda perante esta, sem que por isso fique exonerada a Comissão, no
âmbito de suas obrigações convencionais, de informar à Corte, quando esta o solicite” (ponto resolutivo nº 1).
18. Sendo assim, se as supostas vítimas e seus representantes legais podem apresentar diretamente à Corte um pedido de
medidas provisórias de proteção em casos que se encontram em conhecimento do Tribunal, com ainda maior força se
pode sustentar que eles podem, no procedimento de casos contenciosos perante a Corte, referir-se à suposta violação
de direitos adicionais aos que já se encontram alegados na demanda interposta pela Comissão. Aqui, uma vez mais,
os peticionários marcam presença como titulares dos direitos consagrados na Convenção Americana.
19. Sempre subsistirá uma diferença de enfoque entre os partidários desta tese–entre os quais me situo7–e os
adeptos da tese de direito processual. Penso, contudo, que, a partir do momento em que se afirma, de modo
inequívoco, a subjetividade jurídico-internacional da pessoa humana, há de se assumir as consequências jurídicas
que advém disso. São os próprios peticionários quem, melhor do que ninguém, podem avaliar quais direitos
foram presumivelmente violados. Pretender limitá-los nesta faculdade iria contra o direito de acesso à justiça de
acordo com a Convenção Americana.
6. Cf., neste sentido, os obiter dita in: Corte Interamericana de Direitos Humanos (CtIADH), Parecer Consultivo OC-10/89, sobre a Interpretação da
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem no Marco do Artigo 64 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 14.07.1989,
pars. 37-38; CtIADH, Parecer Consultivo OC-16/99, sobre o Direito à Informação sobre a Assistência Consular no Marco das Garantias do Devido
Processo Legal, de 1.10.1999, pars. 114-115, e Voto Concordante do Juiz A.A. Cançado Trindade, pars. 9-11; CtIADH, caso das “Crianças de Rua”
(Villagrán Morales e Outros versus Guatemala), Sentença (sobre o mérito) de 19.11.1999, pars. 193-194; CtIADH, caso Cantoral Benavides versus
Peru, Sentença (sobre o mérito) de 18.08.2000, pars. 99 e 102-103; CtIADH, caso Bámaca Velásquez versus Guatemala, Sentença (sobre o mérito)
de 25.11.2000, Voto Fundamentado do Juiz A.A. Cançado Trindade, pars. 34-38; CtIADH, caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni versus
Nicarágua, Sentença (sobre o mérito e reparações) de 31.08.2001, pars. 148-149; CtIADH, caso Bámaca Velásquez versus Guatemala, Sentença
(sobre reparações) de 22.02.2002, Voto Fundamentado do Juiz A.A. Cançado Trindade, par. 3.
7. Cf. Corte Interamericana de Direitos Humanos, Informe: Bases para un Proyecto de Protocolo a la Convención Americana sobre Derechos
Humanos, para Fortalecer Su Mecanismo de Protección (Relator: A.A. Cançado Trindade), San José de Costa Rica, CtIDH, 2001, pp. 1-64, esp. pp.
59, 23, 33, 40-44, 50-55 e 64; A.A. Cançado Trindade, El Acceso Directo Del Indivíduo a los Tribunales Internacionales de Derechos Humanos, Bilbao,
Universidade de Deusto, 2001, pp. 9-104.
61
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
20. O critério adotado a este respeito pela Corte na presente Sentença, que servirá de guia para seu procedimento de
agora em diante, contribui, assim, para o aperfeiçoamento do devido processo legal no plano internacional, sob a
Convenção Americana. Nem sempre a petição originalmente apresentada pelos peticionários perante a Comissão
(artigo 44 da Convenção) é necessariamente a mesma que a demanda posteriormente interposta pela Comissão
perante a Corte (artigo 61(1) da Convenção). Quando se exige dos Estados, de acordo com a Convenção (artigo
25), o respeito ao direito de acesso à justiça, com a preservação da faculdade dos indivíduos demandantes de
justificar suas ações legais perante os tribunais nacionais, como pretender negar-lhes esta mesma faculdade em
suas alegações perante um tribunal internacional como a Corte Interamericana?
21. O critério adotado pela Corte na presente Sentença no caso dos Cinco Aposentados versus Peru corretamente
considera que não se pode restringir o direito dos peticionários de acesso à justiça no plano internacional, que
encontra expressão em sua faculdade de indicar os direitos que consideram violados. O respeito ao exercício de
tal direito é exigido dos Estados Partes pela Convenção, no plano de seus respectivos ordenamentos jurídicos
internos,8 e não faria sentido se fosse negado no procedimento internacional sob a própria Convenção. O novo
critério da Corte confirma claramente o entendimento segundo o qual o processo não é um fim em si mesmo,
mas um meio de realização do direito e, em última instância, da justiça.
22. Se é certo que apenas os Estados Partes e a Comissão podem submeter um caso à Corte (artigo 61(1) da Convenção),
também é que, ao dispor sobre reparações, e referir-se à “parte lesada” (“the injured party / la parte lesionada / la partie
lésée”–artigo 63(1)), a Convenção se dirige às vítimas, e não à Comissão. O artificialismo da fórmula do artigo 61(1)
da Convenção,–que, ao ser adotada em 1969 deu expressão a um dogma do passado,–não resiste à esmagadora
realidade de que os peticionários são a verdadeira parte substantiva demandante perante a Corte, como sujeitos do
Direito Internacional dos Direitos Humanos e, em meu entender, também do Direito Internacional geral.9
23. Se, como já se indicou, perante os tribunais nacionais se assegura a faculdade dos indivíduos demandantes de
justificarem suas próprias alegações de violações de seus direitos, como justificar a denegação ou restrição desta
faculdade dos indivíduos peticionários perante os tribunais internacionais de direitos humanos? Trascorridos 34
anos desde a adoção da Convenção Americana, finalmente a realidade dos fatos está levando à superação da
insustentável capitis diminutio dos indivíduos, titulares de direitos, no procedimento sob a Convenção (artigo
61(1)),–sem prejuízo da segurança jurídica e da preservação do papel, distinto do dos peticionários, da Comissão.
A afirmação da personalidade e da capacidade jurídicas internacionais do ser humano atende a uma verdadeira
necessidade do ordenamento jurídico internacional contemporâneo.
24. Com efeito, a afirmação destas personalidade e capacidade jurídicas constitui o legado verdadeiramente
revolucionário da evolução da doutrina jurídica internacional na segunda metade do século XX. Chegou o
momento de superar as limitações clássicas da legitimatio ad causam no Direito Internacional, que tanto freiaram
seu desenvolvimento progressivo para a construção de um novo jus gentium. Um papel importante está aqui
sendo exercido pelo impacto da consagração dos direitos humanos no ordenamento jurídico internacional,
no sentido de humanizar este último: tais direitos foram proclamados como inerentes a todo ser humano,
independentemente de quaisquer circunstâncias.10 O indivíduo é sujeito jure suo do Direito Internacional, e ao
reconhecimento dos direitos que lhe são inerentes corresponde inescapavelmente a capacidade processual de
reivindicá-los, tanto nos planos nacional como internacional.
Antônio Augusto Cançado Trindade
Juiz
Manuel E. Ventura Robles
Secretário
8. A Convenção Americana impõe não apenas o acesso propriamente à justiça no plano do direito interno (artigo 25), mas a realização mesma da
justiça material. Para isto, a Convenção determina a observância das garantias jurídico-processuais (artigo 8), entendidas estas lato sensu, incluindo
o conjunto de requisitos processuais que devem ser observados para que todos os indivíduos possam se defender adequadamente de qualquer
ato emanado do poder estatal que possa afetar seus direitos. Cf., neste sentido (amplo alcance do devido processo): CtIADH, caso do Tribunal
Constitucional versus Peru, Sentença (sobre o mérito) de 31.01.2001, par. 69; CtIADH, caso Ivcher Bronstein versus Peru, Sentença (sobre o mérito)
do 6.02.2001, par. 102; CtIADH, caso Baena Ricardo e Outros versus Panamá, Sentença (sobre o mérito) do 2.02.2001, par. 125. Neste último
caso, a Corte Interamericana advertiu acertadamente que “em qualquer matéria, inclusive na trabalhista e na administrativa, a discricionariedade da
administração tem limites intransponíveis, sendo um deles o respeito dos direitos humanos. (...) a administração (...) não pode invocar a ordem
pública para reduzir discricionariamente as garantias dos administrados” (ibid., par. 126).
9. A.A. Cançado Trindade, “La Personalidad y Capacidad Jurídicas del Indivíduo como Sujeto del Derecho Internacional”, in Jornadas de Derecho
Internacional (Cidade do México, dezembro de 2001), Washington D.C., Subsecretaria de Assuntos Jurídicos da OEA, 2002, pp. 311-347.
10. CtIADH, Parecer Consultivo OC-17/02, sobre a Condição Jurídica e Direitos Humanos da Criança, de 28.08.2002, ponto resolutivo nº 1, e Voto
Concordante do Juiz A.A. Cançado Trindade, pars. 1-71.
62
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
VOTO CONCORDANTE FUNDAMENTADO DO JUIZ SERGIO GARCÍA RAMÍREZ
Coincido com meus colegas na emissão da Sentença correspondente ao Caso Cinco Aposentados
vs. Peru, sem prejuízo de expor as razões que tomei em conta para emitir meu voto concordante em
relação a diversos pontos analisados nessa decisão.
1. Fatos arguidos fora da demanda
A tendência que se observa claramente nos sucessivos Regulamentos da Corte —sobretudo no vigente, do
ano 2000— tem levado ao estabelecimento de crescentes direitos processuais da suposta vítima. Assim,
reivindica-se no processo a dignidade e a atividade do indivíduo afetado pela violação da norma. Com isso
se marca, em meu conceito, a melhor opção para o presente e o melhor caminho para o futuro do Sistema
Interamericano, ainda que se encontre distante o ponto de chegada.
Este reconhecimento de direitos processuais tem um limite, naturalmente: as normas da Convenção
Americana e outros tratados que a Corte pode aplicar. Neste marco se moveu o Tribunal ao regulamentar
o atual desempenho processual da suposta vítima, que é, sem dúvida, titular de bens jurídicos lesados e
dos correspondentes direitos violados. Esta titularidade converte à vítima em sujeito da relação material
controvertida; aquela é, em consequência, parte em sentido material. A Comissão, por outro lado, é
apenas parte em sentido formal, conforme a conhecida caracterização carnelutiana: se lhe atribui a
titularidade da ação processual para reclamar em juízo o pronunciamento da jurisdição internacional.
Por hora, a Convenção deposita esta última faculdade, que legitima o acesso direto à Corte, tanto na
Comissão como nos Estados que reconheceram a competência contenciosa da Corte, mas não havia
conferido —neste momento da evolução do sistema— aos indivíduos afetados pela violação de seus
direitos. Sugeriu-se em algumas oportunidades, de lege ferenda, a possibilidade de reconhecer esta
legitimação aos particulares, como ocorre já no sistema europeu. Obviamente, este reconhecimento
dependerá dos progressos e das capacidades do Sistema Interamericano, que se está desenvolvendo em
passos firmes.
A ação processual se manifesta no ato jurídico da demanda, com a qual se promove a atuação jurisdicional.
Aquela reveste importância crucial para definir o tema do processo. Na demanda, que apenas a Comissão
Interamericana pode apresentar —ou um Estado, como disse antes —, se reúnem os fatos examinados
na etapa prévia perante a Comissão Interamericana, e nela mesma se define a matéria do processo que
começa. A sentença deverá analisar e resolver sobre estes fatos, de forma congruente e integral. De tal
maneira, a defesa do Estado diante das pretensões que propõe a Comissão —e que se fazem valer por meio
da ação processual— se concentra nos fatos aduzidos na demanda (sem prejuízo do suposto excepcional
dos fatos supervenientes) por quem se encontra legitimado a formulá-los. Em suma, compete unicamente
à Comissão, em seu desempenho como demandante, alegar os fatos que constituirão o conteúdo fático
do processo e da sentença.
A título de Tribunal de conhecimento e sentença, a Corte Interamericana tem a faculdade de aplicar o direito
aos fatos controvertidos, precisando suas consequências jurídicas de maneira a chegar à responsabilidade
internacional do Estado. Para tal fim, a Corte escuta as alegações que se façam perante si, mas não está
limitada às mesmas. A Comissão pode e deve, em cumprimento de um dever funcional, expor seu ponto
de vista sobre a caracterização jurídica dos fatos violatórios. No entanto, se não o fizer ou este não for
persuasivo para a Corte, esta poderá e deverá suprir àquela com seu próprio critério.
Por outro lado, nada impede que a suposta vítima ou seus representantes chamem a atenção do tribunal
sobre a aplicação do direito aos fatos controvertidos no processo, ainda quando o parecer que expressem
neste caso seja diferente do sustentado pela Comissão Interamericana. Não poderiam, por outro lado
—como já indiquei—, trazer ao processo fatos diferentes dos contidos na demanda. Finalmente, será a
Corte quem decide o pertinente, considerando a apresentação dos fatos e os fundamentos jurídicos da
Comissão, arguidos com a legitimação que a Convenção reconhece ao demandante, e tomando em conta,
além disso, os pontos de vista que sobre este último extremo possam proporcionar-lhe a suposta vítima
ou seus representantes no exercício das faculdades processuais que lhes correspondem.
2. Violação do direito à propriedade
A Corte considerou, com o voto unânime de seus integrantes, que neste caso houve violação ao direito de
propriedade dos aposentados. No entanto, é preciso observar que o direito reclamado pelos queixosos foi
63
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
amparado por resoluções do Poder Judiciário do Peru, cumpridas com posterioridade à apresentação da
demanda, e portanto, depois de que se definiu a matéria do processo que culminaria na presente Sentença
da Corte Interamericana. Isto explica que no processo fosse tomada em conta uma violação que cessaria
posteriormente.
Ao definir a existência de uma violação, é preciso considerar a conduta do Estado em seu conjunto. Se
um de seus órgãos enfrenta e remedia adequada e oportunamente a violação cometida por outro, não
surgirá a responsabilidade internacional do Estado. É precisamente por isso que o acesso ao Sistema
Interamericano se encontra condicionado ao prévio esgotamento dos recursos internos. Espera-se que
estes resolvam o litígio, remediando a violação cometida, se for o caso. Apenas quando isso não ocorra,
ficará aberta a opção pela via internacional. Disso decorre a importância da jurisdição interna, que tem
caráter prioritário com respeito à internacional. Esta apenas atua de maneira subsidiária.
No caso a que se refere esta sentença, os tribunais peruanos emitiram as pertinentes resoluções de garantia
para assegurar os direitos dos queixosos até que ocorresse um pronunciamento de mérito. E mais, a
administração se absteve de dar cumprimento às resoluções judiciais. Esta situação de descumprimento
se prolongou durante um tempo sob qualquer critério excessivo. Em meu conceito, a violação ao artigo
21 da Convenção se encontra estreitamente associada, no presente caso, à violação do artigo 25 deste
tratado. Da prolongada e injustificada inobservância das resoluções jurisdicionais internas deriva, pois, a
violação do direito de propriedade, que não teria existido se essas resoluções tivessem sido acatadas pela
administração, de forma pronta e completa.
3. Progressividade dos direitos econômicos, sociais e culturais
Este tema é novo, ainda, para a jurisdição interamericana. Em diversos casos, a Corte examinou direitos
civis que tratam de questões econômicas, sociais e culturais, mas ainda não teve a oportunidade de entrar
de cheio nesta última matéria, por si mesma, e tampouco pôde pronunciar-se sobre o sentido que possui
a denominada progressividade dos direitos econômicos, sociais e culturais contemplada no artigo 26 da
Convenção e referida no Protocolo de San Salvador.
Cabe supor que a Corte poderá examinar esta relevante matéria no futuro. Haverá ocasião, pois, de sublinhar
novamente a hierarquia destes direitos, que não possuem menor categoria que os civis e políticos. A
rigor, ambas as categorias se complementam mutuamente e constituem, em seu conjunto, o “estatuto
básico” do ser humano na hora atual. O Estado, comprometido a observar sem condição nem demora
os direitos civis e políticos, deve aplicar o maior esforço à pronta e completa efetividade dos direitos
econômicos, sociais e culturais, dispondo para tanto dos recursos a seu alcance e evitando retrocessos
que prejudicariam esse “estatuto básico”.
Este caso não permitiu avançar em tema tão relevante, pelas razões mencionadas ao final do capítulo IX
da Sentença. Entretanto, nesta figuram algumas considerações, formuladas brevemente, que convém
destacar. Uma delas é a manifestação explícita feita pela Corte de que “os direitos econômicos, sociais
e culturais têm uma dimensão tanto individual como coletiva”. Entendo que essa dimensão individual
se traduz em uma titularidade também individual: de interesse jurídico e de um direito correspondente,
que pudessem ser compartilhadas, certamente, com outros membros de uma população ou de um de
seus setores.
A meu juízo, o tema não se resume à mera existência de um dever sob responsabilidade do Estado, que
deverá orientar suas tarefas no sentido que essa obrigação estabelece, tendo os indivíduos como simples
testemunhas à expectativa de que o Estado cumpra o dever atribuído pela Convenção. Esta constitui uma
normativa sobre direitos humanos, precisamente, não apenas sobre obrigações gerais dos Estados. A
existência de uma dimensão individual dos direitos sustenta a denominada “justiciabilidade” daqueles, que
avançou no plano nacional e tem um amplo horizonte no plano internacional.
Por outro lado, a Corte deixou afirmado na sentença a que corresponde este voto que a progressividade
dos direitos de referência —um tema amplamente debatido— se deve medir “em função da crescente
cobertura dos direitos econômicos, sociais e culturais em geral, e do direito à previdência social e à
pensão, em particular, sobre o conjunto da população, tendo presentes os imperativos da equidade social”.
Com base nessa ponderação o Tribunal apreciará o cumprimento do dever estatal e a existência do direito
individual, e poderá resolver o litígio específico que tenha à vista. Ao considerar que o presente caso
64
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
não sustentaria adequadamente uma ponderação deste caráter, levando em conta suas peculiaridades, o
tribunal manifestou, porém, o vínculo entre o movimento progressivo dos direitos mencionados, por um
lado, e sua projeção “sobre o conjunto da população” e, por outro, o ingrediente de “equidade social” que
deve caracterizar essa progressividade.
Tomando em consideração os limites que a própria Corte deu ao seu pronunciamento em função das
características do caso sub judice não considero procedente ir mais longe neste voto concordante. O
tema sugere, como é evidente, muitas considerações adicionais que o desenvolvimento da jurisprudência
interamericana trará consigo sobre uma das questões mais atuais e transcendentes no sistema dos direitos
humanos em nossa região.
5 de março de 2003
Sergio García Ramírez
Juiz
Manuel E. Ventura Robles
Secretário
65
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
VOTO FUNDAMENTADO DO JUIZ DE ROUX RENGIFO
A determinação de se os fatos deste caso violaram ou não o direito à propriedade consagrado no artigo 21
da Convenção Americana, oferecia certas dificuldades particulares. As supostas vítimas tinham, sem dúvida,
um direito adquirido a uma pensão, e esse direito, considerado em abstrato, formava parte de seu patrimônio.
Não obstante isso, a concretização desse direito em pagamentos mensais de uma quantia específica, devia
surgir de uma ponderação das normas constitucionais e legais internas, que permitisse esclarecer perguntas
como as seguintes:
De que maneira e até que ponto era relevante, para efeitos de aposentadoria, a existência de dois regimes, o
de atividade pública e o de atividade privada?
Era possível nivelar a pensão de pessoas submetidas ao regime de atividade pública, como as supostas
vítimas, com a remuneração recebida por pessoas em atividade submetida ao regime de atividade privada?
Como se devia proceder no caso de que todas as pessoas em atividade vinculadas à entidade pública em
questão estivessem já submetidas ao regime de atividade privada?
Era possível, neste último evento, realizar a nivelação das pensões com a remuneração recebida por pessoas
em atividade submetidas ao regime de atividade pública, mas vinculadas a entidades distintas daquela na qual
as supostas vítimas prestaram seus serviços?
O fato de que durante vários anos o Estado pagou as pensões mensais das supostas vítimas mediante o
artifício de nivelá-las com a remuneração do pessoal submetido ao regime de atividade privada, conduziu
a que se configurasse a favor das mesmas o direito a que sua pensão continuasse sendo objeto desse tipo
específico de nivelação?
A Corte atuou, como era preciso que o fizesse, ao abster-se de penetrar nessas questões substanciais -em
um ou dois parágrafos considerativos existem afirmações que parecem orientadas a resolvê-las em um
determinado sentido, mas em termos gerais o Tribunal se manteve afastado delas-.
É evidente que as controvérsias produzidas pelas questões enunciadas ou que cheguem a produzir-se, apenas
podem ser resolvidas pelos tribunais internos. À Corte Interamericana tão apenas compete observar que os
respectivos processos tramitem com respeito ao direito de acesso à justiça e, se for o caso, do direito a um
recurso efetivo de proteção.
Com esta referência ao recurso efetivo entramos na parte mais sólida do terreno em que se assenta a
Sentença. Está devidamente provado que no caso sob exame as vítimas interpuseram ações de garantia para
evitar que as pensões fossem reduzidas, que essas ações deram lugar a sentenças que ordenavam continuar
o pagamento das pensões mensais tal e como se vinha fazendo antes da correspondente redução (em outras
palavras, ordenavam manter o status quo), e que essas sentenças foram desacatadas pelo Estado. Isto
configurou uma violação evidente do citado artigo 25 da Convenção e assim a Corte declarou.
O Estado argumentou que as sentenças mencionadas continham uma ordem dirigida a uma entidade pública
-a Superintendência de Bancos e Seguros- distinta daquela a quem correspondia fazer os pagamentos, de
acordo com as normas legais então vigentes -o Ministério de Economia e Finanças-. E alegou que a última
destas entidades não foi vinculada aos processos nos quais se produziram os respectivos pronunciamentos
judiciais.
Gostaria de propor algumas das razões pelas quais, em meu modo de ver, a Corte acertou ao rejeitar estes
argumentos (trata-se de razões em parte adicionais, em parte diferentes, às aduzidas pelo Tribunal em suas
considerações):
• O artigo 25 da Convenção Americana se refere a um recurso “simples e rápido” e, em qualquer caso, a
um “recurso efetivo” que ampare às pessoas contra as violações dos direitos fundamentais reconhecidos
pelas normas internas ou pela própria Convenção.
• A atuação judicial correspondente não deve estar sujeita a formalismos ou ritualismos impróprios de um
recurso dirigido a salvaguardar, com rapidez, os direitos fundamentais das pessoas.
• Nada impede que a ordem jurídica interna adote previsões sobre a devida integração do contraditório
no respectivo trâmite, mas essas previsões não podem desconhecer a particular natureza do recurso
em questão.
66
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO “CINCO APOSENTADOS” VS. PERU
• Como dispuseram as legislações ou estabeleceu a jurisprudência de alguns países, o juiz do recurso
deve abster-se de proferir uma decisão inibitória quando não se tenha formado o litisconsórcio, e deve
proceder de ofício a realizar gestões para integrar o contraditório.
• Ao avaliar a alegação de que o demandante interpôs o recurso contra uma entidade que não correspondia,
deve-se ter em conta se aquele procedeu ou não de maneira razoável ao indicar a entidade demandada
(a este respeito deve-se recordar que as vítimas deste caso apresentaram suas demandas de mandado
de segurança contra a Superintendência de Bancos e Seguros antes de que o Decreto-Lei 25.792
transferisse ao Ministério de Economia e Finanças a obrigação de continuar pagando as respectivas
pensões).
• Dado o caráter rápido do recurso, é necessário ter em conta, além disso, se a entidade estatal que não
foi formalmente convocada ao processo, tomou conhecimento do mesmo, por qualquer via, ou nele
interveio de qualquer maneira e pôde, em consequência, apresentar-se em juízo para fazer valer sua
defesa (há provas, no caso, de que o Ministério de Economia e Finanças esteve a par dos mandados de
segurança e de seu cumprimento).
• Tratando-se de ações de garantia há de se ter presente o fato de que existem, em relação à matéria
submetida ao exame judicial, estreitas relações funcionais e operativas entre a entidade demanda e
aquela que deve concorrer a integrar o contraditório.
• O demandante nas ações de garantia não deve ser responsável, em matéria de recomposição do
contraditório, pelas restruturações internas do Estado e da redistribuição das competências e
responsabilidades entre os entes que o conformam.
Considero, também, um acerto, que a Corte tenha vinculado a violação do direito à propriedade (artigo 21) com
a do direito a um recurso efetivo (artigo 25). Dado que o Tribunal se absteve de resolver as questões propostas
no começo deste escrito, carecia, em princípio, de base, para declarar que os cinco aposentados haviam
sofrido uma perda patrimonial. Entretanto, as sentenças de garantia lhes proporcionaram reconhecimentos
que têm, sem dúvida, alcance patrimonial. Ao desacatá-las, o Estado violou o direito de propriedade dos
aposentados.
A Corte -uma vez mais, com razão- é amiga da linguagem sóbria e precisa. Não lhe aprecia, em consequência,
recorrer a expressões que façam ênfase conceitual, sobretudo se possuem amparo filosófico. Isso é bom,
quase sempre. Às vezes, porém, sente-se falta desta ênfase. Creio que isso acontece no presente caso.
A meu modo de ver, a Corte deveria ter deixado claro, nos correspondentes parágrafos de consideração,
que considerava violado o direito à propriedade dos aposentados, concebido nos termos das sentenças
de garantia, ou -e esta é outra maneira de dizê-lo- tanto e quanto esse direito havia resultado violado pelo
desacato às mencionadas sentenças. Ao prescindir do uso de expressões como as expostas, a Sentença à
que se refere este Voto Fundamentado pode dar a entender que a Corte considerou violado o artigo 21 da
Convenção sem conexão com uma violação do artigo 25, o que não corresponde ao caso.
***
Compartilho a decisão da Corte de abster-se de declarar violado o artigo 26 da Convenção Americana, mas as
razões que me levam a isso são distintas às propostas nos parágrafos considerativos da Sentença.
No presente caso e por motivos já expostos, a Corte não se pronunciou sobre o mérito da questão de quais
eram, dentro do marco do ordenamento jurídico interno, os direitos dos cinco aposentados, nem entrou
a determinar se a redução da pensão correspondeu a uma interpretação válida do verdadeiro alcance das
disposições legais preexistentes, ou a uma modificação (mais exatamente, a uma redução) dos padrões
normativos de reconhecimento e pagamento do direito à pensão. Nessas circunstâncias, a Corte carecia de
uma base sólida para declarar violado o artigo 26 e isso é o que deveria ter sido argumentado para atuar em
consequência.
O Tribunal fundamenta de uma maneira diferente. Afirma que o desenvolvimento progressivo dos direitos
econômicos, sociais e culturais se deve medir em função da crescente cobertura dos mesmos sobre o
conjunto da população, e não em função das circunstâncias de um grupo muito limitado de aposentados,
não necessariamente representativos da situação geral prevalecente.
67
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
A referência ao fato de que as cinco vítimas deste caso não são representativas do panorama que conformam
os aposentados do Peru é pertinente -não são nem por seu número, nem pelo valor das pensões que
receberam.
Entretanto, o fundamento segundo o qual apenas seria procedente submeter ao test do artigo 26 as atuações
dos Estados que afetam o conjunto da população, não parece ter base na Convenção, entre outras razões
porque a Corte Interamericana não pode exercer -à diferença do que ocorre com a Comissão- um trabalho de
monitoramento geral sobre a situação dos direitos humanos, sejam os civis e políticos, ou os econômicos,
sociais e culturais. O Tribunal apenas pode atuar em casos de violação de direitos humanos de pessoas
determinadas, sem que a Convenção exija que estas tenham de alcançar determinado número.
Carlos Vicente de Roux Rengifo
Juiz
Manuel E. Ventura Robles
Secretário
68
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
SENTENÇA DE 8 DE SETEMBRO DE 2005
No caso das Crianças Yean e Bosico,
a Corte Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “a Corte Interamericana”, “a
Corte” ou “o Tribunal”), integrada pelos seguintes juízes:
Sergio García Ramírez, Presidente;
Alirio Abreu Burelli, Vice-Presidente;
Oliver Jackman, Juiz;
Antônio A. Cançado Trindade, Juiz, e
Manuel E. Ventura Robles, Juiz;
presentes, ademais,
Pablo Saavedra Alessandri, Secretário, e
Emilia Segares Rodríguez, Secretária Adjunta,
em conformidade com os artigos 62.3 e 63.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos
(doravante denominada “a Convenção Americana” ou “a Convenção”) e com os artigos 29, 31, 37.6, 56
e 58 do Regulamento da Corte (doravante denominado “o Regulamento”), profere a presente Sentença.
I
Introdução da Causa
1. Em 11 de julho de 2003, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “a Comissão
Interamericana” ou “a Comissão”) submeteu à Corte uma demanda contra a República Dominicana (doravante
denominada “a República Dominicana” ou “o Estado”), a qual se originou da denúncia nº 12.189, recebida na
Secretaria da Comissão em 28 de outubro de 1998.
2. A Comissão apresentou a demanda com base no artigo 61 da Convenção Americana, com a finalidade de que
a Corte declarasse a responsabilidade internacional da República Dominicana pela suposta violação aos artigos
3º (Direito ao Reconhecimento da Personalidade Jurídica), 8º (Garantias Judiciais), 19 (Direitos da Criança),
20 (Direito à Nacionalidade), 24 (Igualdade perante a Lei) e 25 (Proteção Judicial) da Convenção Americana,
em conexão com os artigos 1.1 (Obrigação de Respeitar os Direitos) e 2º (Dever de Adotar Disposições de
Direito Interno) do mesmo instrumento convencional, em detrimento das crianças Dilcia Oliven Yean e Violeta
Bosico Cofi1 (doravante denominadas “as crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico”, “as crianças Yean e Bosico”,
“as crianças Dilcia e Violeta”, “as crianças” ou “as supostas vítimas”), em relação aos fatos ocorridos e aos
direitos violados desde 25 de março de 1999, data na qual a República Dominicana reconheceu a competência
contenciosa da Corte.
3. A Comissão argumentou em sua demanda que o Estado, por meio de suas autoridades do Registro Civil, negou
às crianças Yean e Bosico a emissão de suas certidões de nascimento, apesar de terem nascido no território do
Estado e de que a Constituição da República Dominicana (doravante denominada “a Constituição”) estabelece o
princípio do ius soli para determinar quem é cidadão dominicano. A Comissão afirmou que o Estado obrigou as
supostas vítimas a permanecerem em uma situação de contínua ilegalidade e vulnerabilidade social, violações
que adquirem uma dimensão mais grave quando se trata de menores, pois a República Dominicana negou
às crianças Yean e Bosico seu direito à nacionalidade dominicana e as manteve como apátridas até 25 de
setembro de 2001. Segundo a Comissão, a criança Violeta Bosico se viu impossibilitada de frequentar a escola
por um ano devido à falta de documentos de identidade. A inexistência de um mecanismo ou procedimento
1. Em 25 de março de 1999, data na qual o Estado reconheceu a competência contenciosa da Corte, Dilcia Yean tinha 2 anos de idade, e Violeta
Bosico tinha 14 anos de idade.
69
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
para que um indivíduo apele de uma decisão do Registro Civil perante o Juiz de Primeira Instância, bem como
as ações discriminatórias dos funcionários do Registro Civil, que não permitiram às supostas vítimas obterem
suas certidões de nascimento, são igualmente alegadas pela Comissão como violações a determinados direitos
consagrados na Convenção. Além disso, a Comissão solicitou à Corte que ordenasse ao Estado que conceda uma
reparação que represente uma plena satisfação pelas supostas violações de direitos ocorridas em detrimento
das crianças. Ademais, pediu que o Estado adote as medidas legislativas ou de outro caráter necessárias para
garantir o respeito aos direitos consagrados na Convenção e estabeleça diretrizes que contenham requisitos
razoáveis para o registro tardio de nascimento e não imponham requisitos excessivos nem discriminatórios,
com o objetivo de facilitar os registros das crianças dominicanas-haitianas. Finalmente, a Comissão requereu à
Corte que ordenasse ao Estado o pagamento das custas e gastos razoáveis resultantes da tramitação do caso na
jurisdição interna e perante os órgãos do sistema interamericano.
II
Competência
4. A Corte é competente, nos termos dos artigos 62 e 63.1 da Convenção, para conhecer das exceções preliminares
e eventuais mérito, reparações e custas no presente caso, porque a República Dominicana é Estado Parte na
Convenção Americana desde 19 de abril de 1978 e reconheceu a competência contenciosa da Corte em 25 de
março de 1999 (pars. 100 a 108 e 132 infra).
III
Procedimento perante a Comissão
5. Em 28 de outubro de 1998, as crianças Yean e Bosico, por meio do senhor Genaro Rincón Miesse2 e da senhora
Solain Pierre,3 coordenadora geral do Movimiento de Mujeres Domínico-Haitianas (doravante denominado
“MUDHA”), apresentaram uma denúncia perante a Comissão Interamericana baseada na “negação às [crianças
Yean e Bosico] de suas certidões de nascimento que lhes permit[iriam] ter uma nacionalidade e um nome; [e
que] restringe […] o direito à educação, já que, na República [Dominicana], sem a certidão de nascimento é
impossível frequentar a escola, entre outras coisas”.
6. Em 27 de abril de 1999, a Comissão recebeu uma denúncia enviada em inglês e um pedido de medidas cautelares,
apresentados pelo senhor Genaro Rincón Miesse, representante do MUDHA, pela senhora María Claudia Pulido,
representante do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (doravante denominado “CEJIL”), e pelas senhoras
Laurel Fletcher e Roxana Altholz, representantes da International Human Rights Law Clinic, School of Law (Boalt
Hall), University of California, Berkeley (doravante “Clínica de Direito Internacional dos Direitos Humanos”),
como representantes das peticionárias. Em 11 de junho de 1999, foi recebida a versão final em espanhol da
denúncia apresentada perante a Comissão Interamericana, na qual os representantes das peticionárias alegaram
a violação aos artigos 3º, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23 e 24 da Convenção Americana, bem como dos artigos VI, VII,
VIII, XII, XVII, XIX, XX e XXIII da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem (doravante denominada
“a Declaração Americana”), em função de que “negar-se a registrar as [crianças com] base [em] seu estado
legal e na origem de seus pais, constitui[u] uma violação a [seus] direitos [… e] exp[ôs] as [crianças] a perigos
imediatos e de longo prazo em termos de segurança pessoal e bem estar”.
7. Em 7 de julho de 1999, a Comissão abriu o caso, transmitiu ao Estado as partes pertinentes da denúncia, solicitou
informação a respeito dos fatos e, de acordo com o Regulamento da Comissão vigente naquele momento,
pediu que o Estado fornecesse “qualquer elemento de juízo que permit[isse] […] apreciar se […]ha[viam] sido
esgotados ou não os recursos da jurisdição interna no caso”.
8. Em 27 de agosto de 1999, a Comissão solicitou à República Dominicana a adoção de medidas cautelares em
favor das crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico, com a finalidade de “conceder imediatamente às [crianças] as
2. Este Tribunal nota que em seu passaporte o senhor Genaro aparece com os sobrenomes “Rincón Miesse”; entretanto, em diversos
documentos apresentados pelas partes, este senhor aparece com os sobrenomes “Rincón Martínez”, de modo que se considera que se trata
da mesma pessoa. Para efeitos da presente Sentença se usará o nome “Genaro Rincón Miesse”, como consta em seu passaporte.
3. Este Tribunal observa que na certidão de nascimento a senhora Solain aparece com o sobrenome “Pie”; entretanto, em diversos documentos
apresentados pelas partes, esta senhora aparece com o sobrenome “Pierre”, de modo que se considera que se trata da mesma pessoa. Para
efeitos da presente Sentença se usará o nome “Solain Pierre”, como esta senhora o utiliza ou é conhecida.
70
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
garantias necessárias dirigidas a evitar que pud[essem] ser expulsas do território dominicano e que Violeta
Bosica (sic) pud[esse] continuar frequentando normalmente a escola e recebendo a educação que se oferece às
demais crianças de nacionalidade dominicana”.
9. Em 30 de agosto de 1999, o Estado solicitou informação à Comissão Interamericana sobre “as razões que [a]
levaram a […] solicitar medidas cautelares nesta oportunidade e não em uma data anterior ou posterior”, bem
como sobre a ocorrência de novos fatos que justificassem este pedido. Em 2 de setembro de 1999, a Comissão
informou ao Estado que a solicitação de medidas cautelares se referia a uma situação que “reun[ia] os requisitos
de urgência e veracidade, e à necessidade de evitar que ocorressem danos irreparáveis às pessoas”.
10. Em 30 de setembro de 1999, depois da concessão de uma prorrogação de prazo, o Estado informou à Comissão
que “a Junta Central Eleitoral, organismo […] do qual dependem o Registro Civil e os Oficiais do Estado Civil[, fez]
constar que não ha[via] sido habilitada a tratar do caso em questão, de maneira que […] ainda não ha[viam] sido
esgotados os recursos de jurisdição interna no caso”, e anexou cópias de um ofício, emitido em 27 de setembro
de 1999, pelo Presidente da Junta Central Eleitoral, dirigido ao Embaixador Encarregado da Divisão de Estudos
Internacionais, a respeito de uma comunicação emitida em 20 de setembro de 1999 pela senhora Thelma Bienvenida
Reyes, Oficial do Estado Civil, dirigida ao Encarregado de Inspetoria da Junta Central Eleitoral, e também uma lista
elaborada pela Junta Central Eleitoral, na qual se indicam 11 requisitos para o registro tardio de nascimento.
11. No mesmo dia 30 de setembro de 1999, o Estado informou, a respeito da adoção de medidas cautelares, que
“não exist[ia] nenhuma possibilidade de que a República Dominicana repatri[asse] um cidadão haitiano que
esteja sob alguma condição de legalidade no país, como são: a residência legal, os refugiados, a permissão de
trabalho, [e] o visto vigente no país[,] ou sob alguma das condições de tolerância a imigrantes ilegais que [se]
estabeleceram[, tais como] cidadãos com um longo período de estadia ou com vínculos familiares com nacionais
dominicanos”, e que “a Direção Geral de Migração reiterou aos departamentos correspondentes as disposições
que havia estabelecido nos processos de repatriação, enfatizando […] que não procedessem a repatriar as
[crianças Yean e Bosico] até que seja concluído o processo de verificação da autenticidade de seus argumentos”.
12. Em 5 de outubro de 1999, a Comissão Interamericana realizou uma audiência sobre as medidas cautelares
adotadas no caso, na qual os representantes das peticionárias alegaram que “as ações do [Estado] ha[viam]
deixado as crianças Dilcia e Violeta sem nacionalidade e as ha[viam] exposto ao perigo de uma expulsão imediata
e arbitrária de seu país natal”. O Estado afirmou que “nunca violou a lei nem negou o registro de nascimento[,
mas que] não havia sido cumprido o procedimento estabelecido [na lei]” e acrescentou que “tinha dúvidas sobre
o esgotamento dos recursos internos”.
13. Em 1º de novembro de 1999, a Comissão informou que “se colocava à disposição das partes interessadas com
o objetivo de alcançar uma solução amistosa no caso”.
14. Em 1º de dezembro de 1999, o Estado comunicou à Comissão sua disposição de aceitar o mecanismo de solução
amistosa e fez constar que “ainda não ha[viam] sido esgotados os recursos internos”.
15. Em 2 de dezembro de 1999, os representantes das peticionárias alegaram que “ha[viam] esgotado os recursos
internos [e] ha[viam] cumprido as disposições da lei dominicana para recorrer da negação de registro […, já que
as crianças] apelaram da decisão perante o Promotor [, que a] rejeitou”. Do mesmo modo, os representantes
das peticionárias alegaram que a Junta Central Eleitoral “já ha[via] considerado e resolvido contra [o pedido de
registro das crianças] e, portanto, Dilcia e Violeta ha[viam] esgotado o discutível ‘processo de apelação’ perante
a [Junta Central Eleitoral]”.
16. Em 11 de janeiro de 2000, os representantes das peticionárias informaram que estavam de acordo em participar
no processo de solução amistosa promovida pela Comissão.
17. Em 1º de março de 2000, os representantes das peticionárias apresentaram uma proposta de solução amistosa
perante a Comissão, na qual solicitaram determinadas medidas de satisfação, tais como, o registro de nascimento
das crianças, a mudança de requisitos para o registro tardio de nascimento para assegurar os direitos das
crianças dominicanas de ascendência haitiana, a criação de um mecanismo interno de queixas por meio do
qual se resolvam as disputas de casos e a garantia do direito à educação sem distinção por nacionalidade. Além
disso, no que se refere às indenizações, solicitaram danos morais para as crianças e seus familiares, e danos
emergentes para os familiares das crianças.
18. Em 6 de março de 2000, durante seu 106º Período Ordinário de Sessões, a Comissão realizou uma audiência sobre
uma possível solução amistosa no caso. Naquela ocasião, os representantes das peticionárias reiteraram os pedidos
71
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
que haviam apresentado em sua proposta de solução amistosa e, ao final da audiência, solicitaram à Comissão dar por
concluído o referido procedimento de solução amistosa. O Estado, por sua vez, afirmou que os casos das crianças Yean
e Bosico não eram isolados e que os recursos internos não haviam sido esgotados. Além disso, o Estado manifestou
que os requisitos para o procedimento de registro impostos pela Lei nº 659 sobre atos do Estado Civil, de 17 de julho
de 1944 (doravante denominada “Lei nº 659”), não são discriminatórios e são de caráter geral, já que se trata de uma
lei nacional, e que aceitar o pedido das crianças implicaria a violação à legislação interna.
19. Em 6 de março de 2000, o Estado apresentou um escrito no qual se referiu ao manifestado na audiência perante
a Comissão e afirmou que: a) “é inaceitável para o [Estado] que as [crianças] pretendam obter a certidão de
nascimento de uma maneira ilegal […]; um registro tardio efetuado fora dos parâmetros d[a Lei nº 659] seria
de nulidade absoluta”; b) “os requisitos exigidos pe[la] Junta [Central Eleitoral] são obrigatórios para todas
as pessoas que se encontrem em território dominicano [e] a negação do registro efetuada pelo Promotor
[…] esteve baseada […] no fato de que não haviam sido cumpridos os requisitos legais obrigatórios”, e c)
“o procedimento esgotado pelas [crianças] foi concluído com a Decisão da Promotoria do Distrito de Monte
Plata”. A este respeito, o artigo 41 da Lei nº 659 estabelece que “[o] Oficial do Estado Civil que tenha recebido
um registro tardio de nascimento remeterá imediatamente cópia certificada da certidão ao Promotor do Distrito
Judicial correspondente, quem […] dará conhecimento ao Juízo de Primeira Instância[, o qual deverá] ratificar o
ato ou não, mediante sentença ou Certidão de registro tardio. […] Do anterior resulta óbvio o não esgotamento
dos recursos internos no presente caso”.
20. Em 2 de maio de 2000, os representantes das peticionárias expressaram que “ha[viam] esgotado os recursos
internos procedentes [e que] est[avam] isentas de esgotar qualquer outro recurso perante a Junta Central Eleitoral
ou qualquer instituição dominicana, já que estes recursos não são adequados nem efetivos”. Nesse sentido,
reiteraram que “não há procedimento estabelecido por meio do qual se pode interpor uma apelação perante a
Junta Central Eleitoral”, e mencionaram que o artigo 6º da Lei Eleitoral nº 275-97, de 21 de dezembro de 1997,
especifica que as decisões da Junta Central Eleitoral são inapeláveis, o que está confirmado na jurisprudência
da Suprema Corte de Justiça da República Dominicana (doravante denominada “Suprema Corte de Justiça”),
de modo que não há possibilidade de revisão judicial das decisões da Junta Central Eleitoral. A respeito do
cumprimento do artigo 41 da Lei nº 659, afirmaram, por um lado, que o recurso dirigido ao Promotor Público
foi o adequado diante da negativa do Oficial do Estado Civil em fornecer as certidões de nascimento e, por outro
lado, que “não há disposição legal que estabeleça a obrigação ou possibilidade” de apelar perante o Juízo de
Primeira Instância, já que é responsabilidade do Promotor a transmissão dos registros tardios ao referido juízo
e “não há disposições que autorizem as [crianças] a realizar essa apresentação por si mesmas”.
21. Em 19 de junho de 2000, o Estado afirmou que o “recurso […] ao Promotor [constituiu] um erro de procedimento,
quando o procedimento correto é o estabelecido pelo [a]rtigo 41 da [Lei No.] 659” e que, se os representantes
descartam a competência da Junta Central Eleitoral para conhecer do assunto, “deve[riam] então recorrer aos
Tribunais Ordinários”.
22. Em 22 de fevereiro de 2001, durante seu 110º Período Ordinário de Sessões, a Comissão aprovou o relatório nº
28/01, no qual declarou a admissibilidade do caso e decidiu proceder à consideração do mérito. A este respeito,
a Comissão afirmou que
os peticionários carecem de legitimação para iniciar um processo judicial, já que devem requerê-lo
ao Promotor, segundo o artigo 41 da Lei 659. Por outro lado, das alegações que constam nos autos
se demonstra que o Promotor não informou o juiz de primeira instância para que este iniciasse a
investigação dirigida a conceder a certidão tardia de nascimento das crianças Yean e Bosico, tal e como
estabelece o mesmo artigo 41 da Lei [No.] 659.
[…] No presente caso, o Estado não demonstrou de maneira precisa qual ou quais seriam os recursos
idôneos e eficazes que deveriam ter sido esgotados pelos peticionários.
[…] o Estado não demonstrou que as decisões administrativas emitidas pelo Promotor ou pela
Junta Central Eleitoral sejam suscetíveis de recurso idôneo dirigido a modificá-las; nem controverteu
a alegação dos peticionários quanto à falta de mecanismos que permitam aos demandantes apelar
diretamente.
[…] A Comissão consider[ou] que os peticionários esgotaram os recursos expressamente previstos na
normativa de direito interno vigente, tal e como estabelece a Convenção Americana em seu artigo 46(1).
Alternativamente, não existem recursos idôneos na jurisdição interna que devam ser esgotados antes
de recorrer à instância internacional, de modo que no presente caso se aplica a exceção ao esgotamento
dos recursos internos prevista no artigo 46(2)(a).
72
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
23. Em 17 de abril de 2001, os representantes indicaram que não tinham interesse em participar em uma solução
amistosa no caso e que desejavam que fosse celebrada uma audiência para discutir o mérito do assunto.
24. Em 24 de agosto de 2001, a Comissão celebrou uma reunião na República Dominicana com a participação dos
representantes e do Estado, com o propósito de alcançar uma solução amistosa. Em 27 de agosto de 2001, a
Comissão convocou uma audiência sobre o mérito do caso.
25. Em 1º de outubro de 2001, o Estado informou à Comissão que, “aceitando a solução amistosa proposta pela
Comissão, ha[via] resolvido conceder as certidões de nascimento às crianças” e anexou cópias dos extratos das
certidões de nascimento em nome das crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico. Ambas as certidões foram emitidas
em 25 de setembro de 2001.
26. Em 17 de outubro de 2001, os representantes informaram à Comissão que apesar de a emissão das certidões
de nascimento das crianças por parte do Estado ter sido um passo importante, consideravam que esta ação não
constituía uma solução amistosa no presente caso, já que durante a audiência de 6 de março de 2000 nenhum
dos pontos por eles propostos foram considerados pelo Estado.
27. Em 15 de novembro de 2001, durante seu 113º Período Ordinário de Sessões, a Comissão celebrou uma
audiência sobre o mérito do caso. O Estado afirmou que não existe uma política de discriminação por motivos
de raça ou de origem étnica na República Dominicana e reiterou que “os recursos internos não ha[viam] sido
esgotados” no presente caso. Ademais, o Estado expressou que “ha[via] cumprido o pedido dos peticionários
de proporcionar a Dilcia e a Violeta suas certidões de nascimento”, de modo que não mais subsiste a situação
que motivou a denúncia perante a Comissão. Por sua vez, os representantes das peticionárias afirmaram na
audiência que o dano causado às crianças como consequência do procedimento discriminatório de registro, bem
como por terem vivido como apátridas por mais de quatro anos, não será remediado pela entrega das certidões
de nascimento por parte do Estado e que esta atitude não representa um acordo amistoso, já que esta proposta
compreendia a adoção de outras medidas, tais como o reconhecimento público das violações, a indenização das
crianças pelos danos causados por sua situação de apátridas e a adoção de medidas de não repetição.
28. Em 31 de janeiro de 2002, depois da concessão de uma prorrogação de prazo, o Estado apresentou um escrito
no qual afirmou que, “no interesse de dar uma solução amistosa ao caso e satisfazer o requerimento fundamental
dos peticionários, concedeu às [crianças Yean e Bosico] as certidões de nascimento solicitadas […], apesar
de os peticionários […] não terem concluído o processo perante o Promotor […] nem terem recorrido a um
tribunal de primeira instância ou à Junta Central Eleitoral”. A este respeito, o Estado afirmou que “[n]ão existe
nenhuma disposição na legislação dominicana que impeça o acesso a estas instâncias [e que] o que a lei não
proíbe, está permitido”.
29. Em 6 de março de 2003, durante seu 117º Período Ordinário de Sessões, a Comissão aprovou o relatório nº
30/03 sobre o mérito do caso e recomendou ao Estado:
a) Estabelecer diretrizes que contenham requisitos razoáveis e não imponham sobrecargas excessivas
nem discriminatórias, a fim de facilitar o registro das crianças dominicanas-haitianas perante os
Cartórios do Registro Civil.
b) Estabelecer um procedimento que permita aplicar os requisitos da maneira como se afirma no inciso
a) para a obtenção de certidões tardias de nascimento das pessoas nascidas no território dominicano.
c) Criar um mecanismo jurídico que permita aos indivíduos, em caso de controvérsia, apresentar suas
denúncias diretamente perante a instância judicial, a fim de que suas queixas sejam revisadas por um
órgão judicial, independente e imparcial.
d) Que este mecanismo proveja um recurso simples, rápido e econômico às pessoas que carecem de
certidões de nascimento.
e) Adotar as medidas necessárias para que as crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico, bem como suas mães
Leonidas Yean e Tiramen Bosico Cofi, recebam reparação adequada e oportuna, e o reconhecimento
público pelas violações de seus direitos humanos, contidos nos artigos 1º, 2º, 3º, 8º, 19, 20, 24 e
25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e [no] artigo XII da Declaração Americana
dos Direitos e os Deveres do Homem. Ao fazer esta recomendação, a Comissão reconhe[ceu] que
o Estado realizou esforços para remediar a situação, porém algumas medidas ainda permanecem
pendentes.
f) Adotar as medidas necessárias para prevenir que estes fatos voltem a se repetir no futuro.
30. Em 11 de março de 2003, a Comissão transmitiu ao Estado o relatório anteriormente indicado e concedeu-
73
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
lhe um prazo de dois meses, contado a partir da data da transmissão da comunicação, para que informasse
sobre as medidas adotadas para cumprir as recomendações. Nesse mesmo dia, a Comissão comunicou aos
representantes das peticionárias a emissão do relatório nº 30/03 sobre o mérito do caso e solicitou-lhes que
apresentassem, no prazo de um mês, sua posição a respeito da pertinência de que o caso fosse submetido à
Corte Interamericana.
31. Em 21 de abril de 2003, os representantes das peticionárias, depois de uma prorrogação de prazo de quinze dias,
solicitaram à Comissão que submetesse o caso à Corte.
32. Em 5 de junho e 3 de julho de 2003, depois da concessão de uma prorrogação de prazo, o Estado apresentou
seu escrito sobre as medidas adotadas para dar cumprimento às recomendações estabelecidas no relatório nº
30/03 sobre o mérito do caso. O Estado afirmou que “não descumpriu as devidas garantias de que as crianças
tivessem uma nacionalidade, porque estas, ainda no caso de não serem dominicanas, seriam em todo caso de
nacionalidade haitiana”. Assinalou que as peticionárias “não apresentaram […] sua demanda perante o tribunal
competente ratione materiae, que […] era o Juízo de Primeira Instância […], o qual poderia ter conhecido de
uma ’ação de reclamação de estado civil’ e, que também conhece dos assuntos de nacionalidade […]”. Além do
mais, o Estado assinalou que as crianças não acudiram à “própria Junta Central Eleitoral, que é o órgão superior
hierárquico que tem sob sua responsabilidade os Cartórios do Estado Civil”. O Estado argumentou que “não
violou os direitos contidos nos artigos 1º, 2º, 3º, 8º, 19, 20, 24 e 25 da Convenção Americana [… nem] o direito
à educação, consagrado no artigo XII da Declaração Americana […].” Por último, informou a respeito dos atuais
requisitos para a obtenção da certidão tardia que “o passaporte p[oderia] ser um documento de identificação” e
anexou o projeto de lei que modificaria a Lei nº 659 e facilitaria o procedimento de registro civil.
IV
Procedimento perante a Corte
33. Em 11 de julho de 2003, a Comissão apresentou a demanda perante a Corte.
34. A Comissão designou como seus delegados Susana Villarán e Santiago Cantón e, como seus assessores
jurídicos, Bertha Santhoscoy e Ariel Dulitzky.4 Além disso, indicou os nomes dos denunciantes originais, a saber:
Viviana Krsticevic e Roxanna Altholz, representantes do CEJIL, e Laurel Fletcher, representante da Clínica de
Direito Internacional dos Direitos Humanos.
35. Em 12 de agosto de 2003, a Secretaria da Corte (doravante denominada “a Secretaria”), após o exame preliminar
da demanda realizado pelo Presidente da Corte (doravante denominado “o Presidente”), notificou-a ao Estado,
com seus anexos, e informou-lhe sobre os prazos para contestá-la e para designar sua representação no
processo. Igualmente, a Secretaria, seguindo instruções do Presidente, informou ao Estado sobre seu direito de
designar um juiz ad hoc.
36. Em 11 de agosto de 2003, segundo o disposto no artigo 35.1.d e 35.1.e do Regulamento, a Secretaria notificou
a demanda ao MUDHA, ao CEJIL, e à Clínica de Direito Internacional dos Direitos Humanos, em sua condição de
representantes das supostas vítimas e seus familiares5 (doravante denominados “os representantes”) e informoulhes sobre o prazo para a apresentação do escrito de petições, argumentos e provas (doravante denominado
“escrito de petições e argumentos”).
37. Em 5 de setembro de 2003, o Estado designou como Juíza ad hoc a Embaixadora Rhadys Abreu de Polanco e
afirmou que “[suas] funções não são incompatíveis com o cargo de juíza ad hoc”. Além disso, o Estado designou
como Agente o senhor José Marcos Iglesias Iñigo, Ministro Conselheiro, e como Agente Assistente a senhora
Anabella de Castro, Ministra Conselheira e Encarregada de Direitos Humanos.6
38. Em 13 de outubro de 2003, depois da concessão de uma prorrogação de prazo, os representantes apresentaram
seu escrito de petições e argumentos. Os representantes alegaram, além dos direitos indicados pela Comissão
Interamericana na demanda, que o Estado supostamente violou também os direitos consagrados nos artigos 17
(Proteção à Família), 18 (Direito ao Nome) e 26 (Desenvolvimento Progressivo) da Convenção Americana, em
relação aos artigos 1.1 (Obrigação de Respeitar os Direitos) e 2 (Dever de Adotar Disposições de Direito Interno)
4. Durante o trâmite do presente caso a Comissão realizou mudanças na designação de seus representantes perante a Corte.
5. Durante o trâmite do presente caso os representantes realizaram mudanças na designação de seus representantes perante a Corte.
6. Durante o trâmite do presente caso o Estado realizou mudanças na designação de seus representantes perante a Corte.
74
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
da mesma Convenção. Ademais, solicitaram que a Corte ordenasse ao Estado que adote determinadas medidas
de reparação e reembolse as custas e gastos. Posteriormente, nas alegações finais escritas apresentadas em 14
de abril de 2005, os representantes indicaram que o Estado violou os artigos 5º (Direito à Integridade Pessoal) e
12 (Liberdade de Consciência e de Religião) da Convenção Americana (par. 49 infra).
39. Em 13 de novembro de 2003, o Estado apresentou seu escrito de exceções preliminares, contestação da
demanda e observações ao escrito de petições e argumentos (doravante denominado “escrito de contestação da
demanda”), por meio do qual interpôs duas exceções preliminares, as quais denominou “[…] não esgotamento
dos recursos da jurisdição interna do Estado […]” e “[n]ão cumprimento [da] Solução Amistosa apresentada
pela Comissão e aceita pelo Estado […]”. Posteriormente, durante a audiência pública, o Estado argumentou a
exceção preliminar de falta de competência ratione temporis.
40. Em 19 de novembro de 2003, os representantes apresentaram um “pedido de impedimento da nomeação por
parte do Estado […] da Embaixadora Rhadys I. Abreu de Polanco, como Juíza ad hoc desta […] Corte”, e
afirmaram a existência de uma incompatibilidade e de conflito de interesses. Em 19 de dezembro de 2003, a
senhora Rhadys I. Abreu de Polanco apresentou uma nota na qual rejeitou o impedimento à sua nomeação como
Juíza ad hoc. Em 19 de dezembro de 2003, a Comissão enviou suas observações ao escrito de impedimento da
Juíza ad hoc e solicitou que a Corte “proced[esse] a resolver a incompatibilidade e o impedimento” da referida
senhora para o exercício do cargo de Juíza ad hoc.
41. Em 4 de maio de 2004, a Corte emitiu uma Resolução na qual resolveu que “a participação da senhora Rhadys
Iris Abreu de Polanco no procedimento perante a Comissão Interamericana em relação ao presente caso constitui
uma causa de impedimento para o exercício do cargo de Juíza ad hoc”, de maneira que convidou o Estado a
designar outro juiz ad hoc em um prazo de 30 dias, o que a República Dominicana não fez.
42. Em 21 de janeiro de 2004, depois da concessão de uma prorrogação de prazo, a Comissão e os representantes
apresentaram seus respectivos escritos de alegações sobre as exceções preliminares interpostas pela República
Dominicana, nos quais solicitaram à Corte que as rejeitasse e que continuasse com a tramitação do presente
caso em sua etapa de mérito.
43. Em 10 de janeiro de 2005, o Estado designou a Embaixadora Rhadys I. Abreu de Polanco como Agente Assistente
no presente caso.
44. Em 31 de janeiro de 2005, o Presidente emitiu uma Resolução mediante a qual requereu, de acordo com o artigo
47.3 do Regulamento, que as crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico, as senhoras Tiramen Bosico Cofi, Teresa
Tucent Mena (nota 45 infra) e Leonidas Oliven Yean, e o senhor Samuel Martínez, propostos pela Comissão
e pelos representantes, as primeiras cinco como testemunhas e o último como perito, apresentassem suas
declarações e parecer por meio de declarações prestadas perante agente dotado de fé pública (affidavits).
Além disso, concedeu um prazo improrrogável de sete dias, contado a partir da recepção dos affidavits, para
que o Estado apresentasse as observações que considerasse pertinentes. Por sua vez, o Presidente convocou
a Comissão, os representantes e o Estado para uma audiência pública que seria celebrada na sede da Corte,
a partir de 14 de março de 2005, para escutar suas alegações sobre as exceções preliminares e eventuais
mérito, reparações e custas, e receber os testemunhos do senhor Genaro Rincón Miesse e das senhoras
Amada Rodríguez Guante, Thelma Bienvenida Reyes, e as perícias do senhor Frederick John Packer e da
senhora Débora E. Soler Munczek, propostos pela Comissão, pelos representantes e pelo Estado, segundo o
caso. Ademais, informou-se às partes que contavam com um prazo até 14 de abril de 2005 para apresentar
suas alegações finais escritas.
45. Em 15 de fevereiro de 2005, os representantes apresentaram as declarações autenticadas prestadas pelas seis
pessoas indicadas no parágrafo anterior.
46. Em 23 de fevereiro de 2005, o Estado observou, a respeito das declarações apresentadas pelos representantes,
que “exist[iam] contradições entre os fatos expostos e as provas que constam perante [a Corte]”, e que o Estado
“se reserva[va] o direito de fazer um detalhamento dos mesmos na audiência pública a celebrar-se nos dias 14
e 15 de março [de 2005], [e afirmou…] que a ausência da[s supostas vítimas] romperia o equilíbrio processual,
desnaturalizando o procedimento contraditório da audiência pública”.
47. Nos dias 14 e 15 de março de 2005, a Corte recebeu em audiência pública as declarações das testemunhas e
os pareceres dos peritos propostos pelas partes, e escutou as alegações da Comissão, dos representantes e do
Estado, sobre as exceções preliminares e eventuais mérito, reparações e custas, da Comissão Interamericana,
75
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
dos representantes e do Estado. Compareceram perante a Corte: a) pela Comissão Interamericana: os senhores
Ariel Dulitzky e Juan Pablo Albán, e a senhora Lilly Ching, assessores jurídicos; b) pelos representantes: a
senhora Laurel Fletcher, da Clínica de Direito Internacional dos Direitos Humanos, a senhora Solain Pierre e o
senhor Moisés Medina Moreta, do MUDHA, e as senhoras Viviana Krsticevic, Roxanna Althoz e Alejandra Nuño,
do CEJIL, e c) pelo Estado: os senhores José Marcos Iglesias Iñigo, Agente, a senhora Rhadys I. Abreu de
Polanco, Agente Assistente, os senhores Julio César Castaños Guzmán e Adonai Medina, assessores, e o senhor
Rafael González, assistente. Além disso, compareceram como testemunhas: o senhor Genaro Rincón Miesse,
proposto pela Comissão e pelos representantes, e as senhoras Amada Rodríguez Guante e Thelma Bienvenida
Reyes, propostas pelo Estado, e compareceram como peritos: a senhora Débora E. Soler Munczek e o senhor
Frederick John Packer, propostos pela Comissão e pelos representantes.
48. Em 14 de março de 2005, os representantes apresentaram alguns documentos que indicaram como provas
supervenientes, de acordo com o artigo 43.3 (sic) do Regulamento.
49. Em 14 de abril de 2005, os representantes apresentaram suas alegações finais em inglês, juntamente com
seus respectivos anexos, e, em 28 de abril de 2005, remeteram a tradução ao espanhol do referido escrito. Em
14 de abril de 2005, o Estado remeteu suas alegações finais escritas e seus anexos. Em 15 de abril de 2005, a
Comissão apresentou suas alegações finais escritas.
50. Em 3 de agosto de 2005, a Secretaria, seguindo instruções do Presidente, requereu à Comissão, aos representantes
e ao Estado, de acordo com o artigo 45.1 do Regulamento, o envio dos seguintes documentos como prova para
melhor decidir: “a Resolução da Junta Central Eleitoral nº 5-88, de 8 de junho de 1988; a Lei nº 8-92, de 13
de abril de 1992, [e uma cópia d]os documentos juntados pelos senhores Genaro Rincón e Marcelino da Cruz
como anexos ao documento de ‘demanda com pedido de autorização de certidões tardias’, apresentado em 11
de setembro de 1997 perante o ‘Honorável Magistrado Procurador do Juízo de Primeira Instância do Distrito
Judicial de Monte Plata’”.
51. Em 16, 17 e 26 de agosto de 2005, o Estado, os representantes e a Comissão apresentaram alguns dos
documentos requeridos pela Secretaria como prova para melhor decidir.
52. Em 5 de setembro de 2005, o Estado apresentou um escrito de observações aos documentos enviados pelos
representantes em 17 de agosto de 2005, juntamente com alguns anexos, com “o fim de [ajudar a Corte a]
melhor decidir”.
***
53. Nos dias 31 de janeiro, 15 e 25 de fevereiro, 2, 14 e 25 de março, 1, 13 e 14 de abril, e 3 de junho de 2005, a
Corte recebeu diversos amici curiae das seguintes pessoas, organizações e instituições:
a) Centre on Housing Rights and Evictions (COHRE);
b) Associação Civil de Centros Comunitários de Aprendizagem (CECODAP);
c) Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM);
d) Minority Rights Group International (MRG);
e) Professora Katarina Tomasevski;
f) Secretaria Ampliada da Rede de Encontro Dominicano Haitiano Jacques Viau (RED), formada pelo
Centro Cultural Dominicano Haitiano (CCDH), o Movimento Sociocultural dos Trabalhadores Haitianos
(MOSCTHA), o Serviço Jesuíta de Refugiados e Migrantes (SRJM-RD), o Centro Dominicano de
Pesquisa Jurídica (CEDAIL) e a Associação Pró-Desenvolvimento da Mulher e do Meio Ambiente, Inc.
(APRODEMA);
g) Comparative International Education Society (CIES);
h) Themis Foundation, em cooperação com a University of Ottawa School of Law;
i) Open Society Justice Initiative, e
j) Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), Serviço de Apoio e Orientação a Imigrantes e Refugiados
(CAREF), Clínica Jurídica para os Direitos de Imigrantes e Refugiados (Faculdade de Direito da
Universidade de Buenos Aires, CELS e CAREF) e senhor Christian Courtis, Professor da Universidade
de Buenos Aires e do Instituto Tecnológico Autônomo do México.
76
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
54. Nos dias 4 e 15 de abril, e 7 de junho de 2005, a Secretaria transmitiu cópias dos referidos amici curiae à
Comissão, aos representantes, ao Estado e às pessoas, organizações ou instituições.
V
Exceções Preliminares
55. O Estado interpôs as seguintes exceções preliminares: o “[…] não esgotamento dos recursos da jurisdição
interna do Estado […]” e o “[n]ão cumprimento [da] Solução Amistosa apresentada pela Comissão e aceita
pelo Estado […]” no escrito de contestação da demanda. Posteriormente, na audiência pública celebrada nos
dias 14 e 15 de março de 2005 na sede da Corte, o Estado argumentou como exceção preliminar a “[f]alta de
competência ratione temporis” da Corte.
***
Primeira Exceção Preliminar
Não esgotamento dos recursos da jurisdição interna do Estado
Alegações do Estado
56. O Estado argumentou que:
a) Esta exceção preliminar foi interposta oportunamente perante a Comissão Interamericana nas primeiras
etapas do procedimento, como demonstram, entre outros, os “documentos e comunicações produzidas
pelo Estado[, tais como] a nota de 28 de setembro de 1999 [apresentada à Comissão em 30 de setembro
de 1999; a] ata d[a] audiência [celebrada em] 5 de outubro de 1999 […] na sede da [Comissão e a] nota
de 22 de novembro de 1999 [apresentada à Comissão em 1 de dezembro de 1999]”. Ainda que esta
exceção tenha sido rejeitada pela Comissão, a Corte tem competência para dela conhecer;
b) O recurso interno mais adequado no caso é o recurso hierárquico existente dentro do direito
administrativo, estabelecido no artigo 1º da Lei nº 1494, de 2 de agosto de 1947. Este recurso deve ser
apresentado perante a instância administrativa superior àquela que produziu a suposta violação, neste
caso, a Junta Central Eleitoral. Este recurso não foi interposto pelas supostas vítimas;
c) A participação do Promotor faz parte do processo de registro tardio e não constitui uma instância
perante a qual se deve apresentar um recurso. “Quando se realiza o processo perante o Oficial do
Estado Civil, este (não as partes) refere o expediente ao Promotor para que emita sua opinião e o
tribunal de primeira instância, mediante sentença, ratific[a] ou não essa certidão tardia”. A ação
apresentada pelos representantes em 11 de setembro de 1997 perante o Promotor do Distrito Judicial
da Província de Monte Plata não pressupõe a interposição de um recurso hierárquico. Esta ação possui
unicamente uma capacidade consultiva nestes processos, a fim de realizar uma recomendação ao juízo
de primeira instância que seja designado para o conhecimento do procedimento de registro tardio;
d) As supostas vítimas não esgotaram o recurso de reconsideração perante o Oficial do Estado Civil nem
levaram o assunto diretamente ao juízo de primeira instância, que tem competência para intervir em
tudo o que for relacionado com o direito das pessoas;
e) As supostas vítimas tampouco interpuseram uma ação de amparo, a qual existe na República
Dominicana desde 1978, em razão da ratificação pelo Estado da Convenção Americana. Em 1999 a
“Suprema Corte de Justiça, mediante sentença estabelec[eu] que o procedimento para os recursos
de amparo será o mesmo dos processos em matéria civil”; entretanto, com anterioridade a este
pronunciamento, vários tribunais já haviam conhecido de recursos de amparo;
f) As supostas vítimas não interpuseram o recurso de inconstitucionalidade contra a norma que lhes
negou o acesso ao reconhecimento de sua nacionalidade, e
g) A Corte deve se declarar incompetente para conhecer do presente caso, já que dentro do Estado
existem os mecanismos e as oportunidades idôneas para a resolução do presente conflito.
Alegações da Comissão
57. A Comissão Interamericana afirmou que:
77
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
a) Os artigos 46 e 47 da Convenção Americana dispõem que corresponde à Comissão, como órgão
principal do sistema, determinar a admissibilidade ou inadmissibilidade de uma petição;
b) Os argumentos apresentados pelo Estado em relação à falta de esgotamento dos recursos internos são
extemporâneos e infundados e buscam retroceder o procedimento à etapa prévia de admissibilidade
da petição, a qual está concluída, posto que a Comissão considerou, em estrito apego ao contraditório,
os argumentos de ambas as partes, a informação e a documentação contida nos autos, e decidiu
declarar o caso admissível pelos fundamentos contidos no Relatório de Admissibilidade;
c) A nova posição “proposta” sobre o esgotamento de recursos internos por parte do Estado, na qual
afirmou que os recursos hierárquicos, de amparo e de inconstitucionalidade, os quais não foram
indicados na etapa de admissibilidade perante a Comissão, são os recursos “existentes”, continua
sendo improcedente, já que é extemporânea. O Estado não proporcionou a prova da efetividade destes
recursos e limitou-se a mencionar sua existência;
d) A respeito do recurso hierárquico perante a Junta Central Eleitoral, de natureza administrativa, a
legislação dominicana não prevê a possibilidade de que as pessoas a quem seja negado o registro
tardio de nascimento possam apresentar um recurso de apelação ou de reconsideração perante
a Junta Central Eleitoral. Dado que não havia sido possível superar os requisitos de mérito para a
obtenção do registro tardio de nascimento, e em consideração de que a Junta Central Eleitoral não
considera pedidos de registro que não anexem a documentação exigida, um eventual recurso perante
este organismo não teria resultado eficaz;
e) No momento dos fatos deste caso, não existia na legislação uma disposição que permitisse a um
particular apelar a decisão do Promotor perante um juízo de primeira instância. Segundo a Lei nº 659,
o Promotor é o responsável por apresentar as certidões tardias perante o juízo de primeira instância e,
no presente caso, isso não ocorreu. O pedido de registro tardio foi rejeitado pelo Promotor em 20 de
julho de 1998, o que encerrou a possibilidade da resolução do problema, já que as supostas vítimas
não se encontravam legitimadas para iniciar um processo judicial dirigido a reverter a decisão da
autoridade administrativa;
f) Na época dos fatos, a lei dominicana não estabelecia um recurso de amparo. Em 24 de fevereiro de
1999, quase dois anos depois da rejeição do registro das supostas vítimas, a Corte Suprema de Justiça
criou o recurso de amparo, por via jurisprudencial, o qual pode ser interposto em um prazo de 15 dias
depois do suposto ato lesivo. Não se pode exigir o esgotamento de um recurso que não se encontra
expressamente previsto na legislação;
g) O recurso de inconstitucionalidade é de caráter extraordinário e, como regra geral, devem ser esgotados
unicamente os recursos idôneos para proteger a situação jurídica infringida. A procedência deste recurso
contra atos administrativos foi determinada pela Corte Suprema de Justiça em 8 de agosto de 1998;
h) Durante a audiência pública perante a Corte sobre o caso, o Estado invocou o não esgotamento do
recurso de reconsideração perante o Cartório do registro civil e do recurso direto, por “plenitude de
jurisdição”, perante um juízo de primeira instância. No entanto, em virtude do princípio do estoppel, o
Estado estava impedido de argumentar pela primeira vez sobre estes recursos na referida audiência, e
i) A discussão sobre se “dentro do Estado existem recursos efetivos e adequados que as partes se
abstiveram de interpor”, proposta pelo Estado como exceção preliminar, é um dos elementos da
controvérsia de mérito submetida à Corte, de modo que “a resolução desta matéria, não corresponde
à natureza de uma exceção preliminar”.
Alegações dos representantes
58. Os representantes alegaram que:
a) De acordo com os artigos 46 e 47 da Convenção Americana, a Comissão possui as faculdades para
determinar a admissibilidade ou não de uma petição e decidir a respeito do esgotamento dos recursos
internos. Uma vez que a Comissão adotou uma determinação sobre a admissibilidade do caso, mediante
prévia análise dos argumentos das partes, esta decisão é de caráter “definitivo” e “indivisível”;
b) A República Dominicana não argumentou a falta de esgotamento de recursos internos de forma clara
durante as primeiras etapas do procedimento perante a Comissão. A este respeito, cabe indicar que o
Estado ofereceu várias respostas durante a etapa de admissibilidade perante a Comissão, tais como a
de 30 de setembro de 1999, de 22 de novembro de 1999, apresentada à Comissão em 1 de dezembro
78
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
c)
d)
e)
f)
de 1999, e a de 7 de junho de 2000, apresentada à Comissão em 19 de junho de 2000, nas quais
sustentou que não haviam sido esgotados os recursos internos e que as crianças deveriam recorrer
à Junta Central Eleitoral e aos tribunais ordinários, e em nenhum momento mencionou o recurso de
amparo nem o recurso de inconstitucionalidade;
Os recursos hierárquicos existentes dentro do direito administrativo dominicano, de amparo e de
inconstitucionalidade, não eram adequados nem eficazes, e foram alegados extemporaneamente;
A Junta Central Eleitoral é a autoridade administrativa responsável por realizar os registros, uma
apelação informal perante este organismo não constitui um recurso efetivo, tendo em vista que é
um processo discricionário. A Junta Central Eleitoral é um órgão autônomo que profere decisões de
única instância, que não possui procedimentos formais e não publicou regulamentos ou promulgou
procedimentos mediante os quais os solicitantes possam pedir uma revisão das decisões adversas
dos Oficiais do Estado Civil. Além disso, a lei não concede poderes à Junta Central Eleitoral para
considerar casos individuais decididos pelos Oficiais do Estado Civil. O único recurso para apelar da
rejeição de um pedido de registro estabelecido pela lei vigente no momento em que ocorreram os fatos
era a apelação perante o Promotor;
Na República Dominicana o recurso de amparo não está expressamente regulamentado em nenhuma
lei. É parte do direito positivo a partir da sentença da Suprema Corte de Justiça de 24 de fevereiro de
1999. O Estado não demonstrou a eficácia deste recurso; e
O Estado não provou a efetividade do recurso de inconstitucionalidade, já que não está regulamentado.
Considerações da Corte
59. A Convenção Americana estabelece que a Corte exerça uma jurisdição plena sobre todas as questões relativas a
um caso sujeito a seu conhecimento, inclusive sobre os pressupostos processuais nos quais se fundamenta a
possibilidade de exercer sua competência.7
60. O artigo 46.1.a da Convenção dispõe que, para determinar a admissibilidade de uma petição ou comunicação
apresentada perante a Comissão Interamericana, de acordo com os artigos 44 ou 45 da Convenção, é necessário
que tenham sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna, segundo os princípios do Direito
Internacional geralmente reconhecidos.8 O anterior significa que estes recursos não apenas devem existir
formalmente, mas também devem ser adequados e efetivos, como se observa das exceções contempladas no
artigo 46.2 da Convenção.9
61. A Corte já estabeleceu critérios claros que devem ser cumpridos sobre a interposição da exceção de falta de
esgotamento dos recursos internos. Dos princípios do Direito Internacional geralmente reconhecidos, aos quais
se refere a regra do esgotamento dos recursos internos, decorre, em primeiro lugar, que o Estado demandado
pode renunciar de forma expressa ou tácita à invocação dessa regra. Em segundo lugar, para que seja considerada
oportuna, a exceção de não esgotamento de recursos internos deve ser proposta na etapa de admissibilidade do
procedimento perante a Comissão, ou seja, antes de qualquer consideração quanto ao mérito; se não for assim,
presume-se que o Estado renuncia tacitamente a valer-se dela. Em terceiro lugar, a Corte indicou que a falta de
esgotamento de recursos é uma questão de pura admissibilidade e que o Estado que a alega deve indicar os
recursos internos que se deve esgotar e demonstrar que estes recursos são adequados e efetivos.10
62. No presente caso, o Estado propôs três abordagens distintas em relação ao não esgotamento dos recursos
internos. Durante o procedimento de admissibilidade perante a Comissão, limitou-se a indicar que os recursos
internos não haviam sido esgotados porque “a Junta Central Eleitoral […] não ha[via] sido chamada a conhecer
do caso” e que os representantes ‘‘dever[iam] […] recorrer aos Tribunais Ordinários” (pars. 10 e 21 supra).
Durante o trâmite sobre o mérito do assunto perante a Comissão, em 31 de janeiro de 2002, o Estado afirmou
que as supostas vítimas “não concluíram o processo perante o Promotor […] nem recorreram a um tribunal de
primeira instância ou à Junta Central Eleitoral” (par. 28 supra). Finalmente, já no procedimento perante a Corte,
7. Cf. Caso das Irmãs Serrano Cruz. Exceções Preliminares. Sentença de 23 de novembro de 2004. Série C Nº 118, par. 133; Caso Tibi. Sentença
de 7 de setembro de 2004. Série C Nº 114, par. 47, e Caso Juan Humberto Sánchez. Sentença de 7 de junho de 2003. Série C Nº 99, par. 65.
8. Cf. Caso da Comunidade Moiwana. Sentença de 15 de junho de 2005. Série C Nº 124, par. 48; Caso Tibi, nota 7 supra, par. 48, e Caso Herrera
Ulloa. Sentença de 2 de julho de 2004. Série C Nº 107, par. 80.
9. Cf. Caso das Irmãs Serrano Cruz. Exceções Preliminares, nota 7 supra, par. 134; Caso Tibi, nota 7 supra, par. 50, e Caso da Comunidade
Mayagna (Sumo) Awas Tingni. Exceções Preliminares. Sentença de 1 de fevereiro de 2000. Série C Nº 66, par. 53.
10. Cf. Caso da Comunidade Moiwana, nota 8 supra, par. 49; Caso das Irmãs Serrano Cruz. Exceções Preliminares, nota 7 supra, par. 135, e
Caso Tibi, nota 7 supra, par. 49.
79
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
o Estado argumentou, em seu escrito de contestação da demanda, que não haviam sido esgotados os recursos
hierárquicos, de amparo e de inconstitucionalidade e, na audiência pública, afirmou que estava pendente de se
esgotar o recurso de reconsideração perante o Oficial do Estado Civil e perante o juízo de primeira instância.
63. A respeito do indicado pela República Dominicana, em seu relatório de Admissibilidade nº 28/01, emitido em
22 de fevereiro de 2001, a Comissão afirmou, por um lado, que “o Estado não demonstrou que as decisões
administrativas emitidas pelo Promotor ou pela Junta Central Eleitoral fossem suscetíveis de recurso idôneo
para modificá-las” e tampouco demonstrou a existência de mecanismos que permitam aos demandantes apelar
diretamente a estes órgãos. Consequentemente, assinalou que não existem na jurisdição interna recursos
idôneos relativos ao procedimento de registro tardio de nascimento que devam ser esgotados. Por outro lado,
a Comissão afirmou que, segundo a legislação dominicana, as supostas vítimas careciam de legitimação para
iniciar um processo judicial, já que é o Promotor quem deve requerê-lo, de acordo com o artigo 41 da Lei nº 659,
e que no presente caso o Promotor não se apresentou ao Juiz de Primeira Instância para que este iniciasse a
investigação dirigida a conceder a certidão tardia de nascimento às supostas vítimas.
64. De acordo com os critérios citados anteriormente (pars. 60 e 61 supra), a Corte considera que o Estado, ao não
indicar expressamente durante o procedimento de admissibilidade perante a Comissão Interamericana quais
seriam os recursos idôneos e efetivos que deveriam ter sido esgotados, renunciou implicitamente a um meio
de defesa que a Convenção Americana estabelece em seu favor e incorreu em admissão tácita da inexistência
destes recursos ou de seu oportuno esgotamento.11 Em função do anterior, o Estado estava impedido de alegar
o não esgotamento dos recursos hierárquicos, de amparo, de inconstitucionalidade, e de reconsideração perante
o Oficial do Estado Civil e perante o juízo de primeira instância, no procedimento perante a Corte.
65. Em razão do exposto acima, e em consideração à fundamentação da Comissão Interamericana, que é decorrente das
disposições relevantes da Convenção Americana, a Corte rejeita a primeira exceção preliminar interposta pelo Estado.
***
Segunda Exceção Preliminar
Não cumprimento da solução amistosa apresentada pela Comissão e aceita pelo Estado
Alegações do Estado
66. O Estado argumentou que:
a) Em 1 de novembro de 1999, a Comissão se colocou à disposição das partes para chegar a uma solução
amistosa, procedimento que foi aceito pela República Dominicana, e dentro deste marco os representantes
fizeram petições, que considerou “ultrapassa[rem] em demasia o objeto da solução amistosa”;
b) Em 24 de agosto de 2001, o Estado, a Comissão e os representantes se reuniram em Santo Domingo,
República Dominicana, na sede da Junta Central Eleitoral, com a finalidade de “chegar a uma solução
para este caso”, e
c) Em 25 de setembro de 2001, o Estado entregou as certidões de nascimento das crianças Dilcia Yean
e Violeta Bosico. Entretanto, os representantes não quiseram aceitar que a entrega das certidões
de nascimento fosse o resultado da solução amistosa. No presente caso, cabe aplicar o artigo 49
da Convenção Americana, com base na credibilidade que a Comissão inspira perante os Estados, e
rechaçar a demanda.
Alegações da Comissão
67. A Comissão argumentou que:
a) A partir de 1 de novembro de 1999, exortou as partes a iniciar um procedimento dirigido a alcançar
uma solução amistosa. Dada a postura dos representantes e do Estado, considerou concluídas as
negociações depois da reunião celebrada na República Dominicana, em 24 de agosto de 2001;
b) É inquestionável que, neste caso, apesar dos esforços das partes, não se chegou a um acordo de
solução amistosa tanto porque os representantes se retiraram quanto porque o Estado manifestou que
11. Cf. Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tigni. Exceções Preliminares, nota 9 supra, par. 56; Caso Castillo Petruzzi e outros.
Exceções Preliminares. Sentença de 4 de setembro de 1998. Série C Nº 41, par. 56, e Caso Loayza Tamayo. Exceções Preliminares. Sentença
de 31 de janeiro de 1996. Série C Nº 25, par. 43.
80
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
não o aceitaria. Consequentemente, é incompreensível que o Estado solicite a aplicação do artigo 49
da Convenção Americana para evitar que a Corte conheça do mérito do assunto;
c) Tendo em conta que as supostas vítimas são o objetivo fundamental do sistema interamericano, a
manifestação expressa dos representantes é determinante no sentido de que a concessão das certidões
de nascimento por parte do Estado não constituía uma solução amistosa. Esta medida foi importante
para o avanço do caso em referência, mas não é a única questão em discussão. Diante da expressão de
vontade de uma das partes no procedimento de não continuar com as negociações dirigidas a alcançar
a solução amistosa, a Comissão não teve alternativa senão proceder à análise do mérito do caso, de
acordo com o disposto no artigo 50.1 da Convenção;
d) Ainda que o Estado tenha dado certos passos, cujo valor foi oportunamente reconhecido pela Comissão,
no sentido de remediar ao menos em parte as violações cometidas em detrimento das supostas
vítimas, estas ações não constituíam uma reparação integral, adequada e, sobretudo, definitiva, e
e) Cumpriu suas obrigações convencionais, estatutárias e regulamentares em relação ao procedimento
de solução amistosa no presente caso, de modo que são improcedentes os argumentos do Estado
sobre esta matéria.
Alegações dos representantes
68. Os representantes manifestaram que:
a) O Estado, de maneira unilateral, concedeu às crianças as certidões de nascimento em setembro de 2001,
fora do âmbito de uma solução amistosa. As referidas certidões não resolvem este caso, já que o mesmo
não estará resolvido até que as alegadas violações dos direitos não sejam reconhecidas e totalmente
reparadas. Além da entrega das certidões de nascimento, a proposta de solução amistosa contemplava
os seguintes pontos: a indenização econômica, o reconhecimento público das violações supostamente
cometidas, a modificação dos requisitos para o registro tardio de nascimento e o estabelecimento de um
mecanismo judicial de resolução de queixas. No entanto, cada uma das tentativas fracassou por causa da
relutância do Estado em reparar de maneira integral as alegadas violações, e
b) A República Dominicana nunca reconheceu sua responsabilidade pelas violações supostamente
cometidas, negou-a no processo perante a Comissão e, agora, nega-a perante a Corte.
Considerações da Corte
69. A Corte observa que a Comissão afirmou que, em 1º de novembro de 1999, se colocou à disposição das partes
a fim de chegar a uma solução amistosa. Em 1 de dezembro de 1999 e em 11 de janeiro de 2000, o Estado
e os representantes, respectivamente, aceitaram valer-se deste procedimento. Em 1º de março de 2000, os
representantes apresentaram uma proposta de solução amistosa que continha diversas solicitações. Em 6 de
março de 2000, a Comissão celebrou uma audiência com o propósito de analisar a possibilidade de chegar a
uma solução amistosa. Nesta audiência, os representantes reiteraram sua proposta e o Estado afirmou que
não podia cumprir a proposta dos representantes, já que “a aceitação do pedido dos peticionários implica[ria]
violação à normativa interna”. Posteriormente, em 22 de fevereiro de 2001, a Comissão aprovou o Relatório de
Admissibilidade nº 28/01, no qual se colocou novamente à disposição das partes para chegar a uma solução
amistosa. Em 17 de abril de 2001, os representantes informaram à Comissão que não estavam interessados em
chegar a um acordo amistoso. Finalmente, em 24 de agosto de 2001, a Comissão realizou uma reunião em Santo
Domingo, República Dominicana, da qual participaram o Estado e os representantes, sem que fosse alcançado
um acordo amistoso.
70. Em 1º de outubro de 2001, o Estado informou à Comissão que, em 25 de setembro de 2001, havia entregado as
certidões de nascimento às crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico.
71. Em 17 de outubro de 2001, os representantes comunicaram à Comissão sobre a entrega das certidões de
nascimento às supostas vítimas por parte do Estado, mas indicaram que essa ação não constituía um acordo
amistoso, já que, durante a referida audiência de 6 de março de 2000, nenhum dos pontos propostos por eles foi
considerado pelo Estado.
72. A Corte considera que, para alcançar uma solução amistosa, é necessário que exista um consenso básico entre
as partes, no qual se possa constatar sua vontade de por fim à controvérsia, no que tange ao mérito do assunto
e às possíveis reparações, situação que não ocorreu no presente caso.
81
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
73. Este Tribunal observa que, no presente caso, a Comissão se colocou à disposição das partes para alcançar uma
solução amistosa e os representantes e o Estado aceitaram este procedimento. Os representantes fizeram uma
proposta de acordo amistoso durante esse procedimento. No entanto, o Estado não a aceitou e manifestou que
“as petições [dos representantes] ultrapassa[vam] em demasia o objeto da solução amistosa”. Igualmente, a
Comissão afirmou que considerou concluídas as negociações por não ter chegado a uma solução amistosa,
depois da reunião celebrada na República Dominicana, em 24 de agosto de 2001, da qual participaram
representantes do Estado, das crianças e da Comissão. Em 25 de setembro de 2001, o Estado concedeu as
certidões de nascimento às crianças. Porém, em 17 de outubro de 2001, os representantes indicaram que este
ato do Estado não constituía um acordo amistoso, já que sua proposta implicava a adoção de outras medidas, e
reiteraram que não se encontravam em um processo formal de solução amistosa.
74. Do anteriormente exposto decorre que o procedimento de solução amistosa não foi concluído com um acordo
expresso das partes para chegar ao término do assunto. Em consequência, a Corte considera improcedente a
segunda exceção preliminar interposta pelo Estado.
***
Terceira Exceção Preliminar
Falta de competência ratione temporis
Alegações do Estado
75. O Estado argumentou que:
a) A suposta violação aos direitos das crianças Yean e Bosico ocorreu em 5 de março de 1997 e o Estado
reconheceu a competência contenciosa da Corte em 25 de março de 1999, isto é, dois anos depois da
suposta violação;
b) A Corte estabeleceu que não pode exercer sua competência contenciosa para aplicar a Convenção
quando os fatos alegados são anteriores ao reconhecimento da competência do Tribunal; e
c) Apesar de o Estado não ter invocado oportunamente a presente exceção preliminar, a Comissão sim a
invocou, em seu devido momento, de modo que a Corte deve se pronunciar sobre a mesma.
Alegações da Comissão
76. A Comissão não se referiu à presente exceção preliminar.
Alegações dos representantes
77. Os representantes manifestaram, em suas alegações finais orais durante a audiência pública, que a tentativa do
Estado de interpor uma nova exceção preliminar é extemporânea.
Considerações da Corte
78. Com respeito ao argumento do Estado sobre a alegada falta de competência ratione temporis da Corte
Interamericana para conhecer dos fatos relacionados com este caso, ocorridos em 5 de março de 1997, com
anterioridade ao reconhecimento pelo Estado de sua competência contenciosa, a Corte reitera que, como todo
órgão com funções jurisdicionais, tem o poder inerente a suas atribuições de determinar o alcance de sua própria
competência, já que o reconhecimento da mesma pelo Estado pressupõe a aceitação do direito do Tribunal
de resolver qualquer controvérsia relativa à sua jurisdição,12 de acordo com o estabelecido no artigo 62.1 da
Convenção Americana. Em consequência, a Corte levará em consideração tanto a data de reconhecimento de sua
competência contenciosa por parte da República Dominicana, como o princípio de irretroatividade, estabelecido
no artigo 28 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, para determinar o alcance de sua
competência no presente caso (pars. 100 a 108 e 132 infra).
79. Em razão do exposto anteriormente, a Corte considera improcedente a terceira exceção preliminar interposta
pelo Estado.
12. Cf. Caso Baena Ricardo. Competência. Sentença de 28 de novembro de 2003. Série C Nº 104, par. 68; Caso do Tribunal Constitucional.
Competência. Sentença de 24 de setembro de 1999. Série C Nº 55, par. 33, e Caso Ivcher Bronstein. Competência. Sentença de 24 de setembro
de 1999. Série C Nº 54, par. 34.
82
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
VI
Prova
80. Antes de examinar as provas oferecidas, a Corte realizará, à luz do estabelecido nos artigos 44 e 45 do
Regulamento, algumas considerações desenvolvidas na jurisprudência do Tribunal e que são aplicáveis a este
caso.
81. Em matéria probatória rege o princípio do contraditório, que respeita o direito de defesa das partes. O artigo 44
do Regulamento contempla este princípio, no que se refere à oportunidade em que se deve oferecer a prova para
que haja igualdade entre as partes.13
82. Segundo a prática do Tribunal, ao início de cada etapa processual as partes devem indicar quais provas oferecerão
na primeira oportunidade concedida para se pronunciar por escrito. Ademais, em exercício dos poderes
discricionários contempladas no artigo 45 de seu regulamento, a Corte ou seu Presidente poderão solicitar às
partes elementos probatórios adicionais como prova para melhor decidir, sem que isso se traduza em uma nova
oportunidade para ampliar ou complementar as alegações, exceto se o Tribunal o permitir expressamente.14
83. A Corte indicou, quanto à recepção e apreciação da prova, que os procedimentos seguidos perante si não estão
sujeitos às mesmas formalidades das atuações judiciais internas e que a incorporação de determinados elementos
ao acervo probatório deve ser efetuada prestando particular atenção às circunstâncias do caso concreto e tendo
presentes os limites que impõe o respeito à segurança jurídica e ao equilíbrio processual das partes. Além disso,
a Corte levou em conta que a jurisprudência internacional, ao considerar que os tribunais internacionais têm a
possibilidade de apreciar e valorar as provas segundo as regras da crítica sã, não estabeleceu uma determinação
rígida do quantum da prova necessária para fundamentar uma decisão. Este critério é válido para os tribunais
internacionais de direitos humanos, que dispõem de amplas faculdades na apreciação da prova a eles oferecida
sobre os fatos pertinentes, de acordo com as regras da lógica e com base na experiência.15
84. Com fundamento no anterior, a Corte procederá a examinar e avaliar os elementos probatórios documentais
apresentados pela Comissão, pelos representantes e pelo Estado em diversas oportunidades processuais
ou como prova para melhor decidir que lhes foi solicitada pelo Tribunal e seu Presidente, bem como a prova
pericial e testemunhal apresentada perante a Corte durante a audiência pública, tudo o que conforma o acervo
probatório do presente caso. Para tanto, o Tribunal se aterá aos princípios da crítica sã, dentro do marco legal
correspondente.
A) Prova Documental
85. A Comissão e os representantes remeteram declarações e um parecer autenticados, em resposta ao disposto
pelo Presidente em sua Resolução de 31 de janeiro de 2005 (par. 44 supra). Estas declarações e o parecer se
resumem a seguir.
Declarações
a) Propostas pela Comissão Interamericana e pelos representantes
1) Violeta Bosico, suposta vítima
Nasceu em 13 de março de 1985, na Maternidade do Seguro, em Sabana Grande de Boyá, República
Dominicana. Sua mãe é Tiramen Bosico Cofi e seu pai é Delima Richard.
A testemunha vive com sua irmã Teresa Tucent Mena e sua família no Batey Palavé, em Manoguayabo.
Cursa o segundo ano do segundo grau no Colégio de Manoguayabo no turno noturno. Espera ser a primeira
de sua família a ir à universidade.
2) Tiramen Bosico Cofi, mãe da criança Violeta Bosico
Nasceu em 24 de outubro de 1956, no Batey Las Charcas, em Sabana Grande de Boyá, República
Dominicana. Tem seis filhos: Teresa, Daisy, Violeta, Heriberto, Rudelania e Esteban.
13. Cf. Caso Acosta Calderón. Sentença de 24 de junho de 2005. Série C Nº 129, par. 40; Caso Yatama. Sentença de 23 de junho de 2005. Série
C Nº 127, par. 106, e Caso Fermín Ramírez. Sentença de 20 de junho de 2005. Série C Nº 126, par. 43.
14. Cf. Caso Acosta Calderón, nota 13 supra, par. 41; Caso Yatama, nota 13 supra, par. 107, e Caso Fermín Ramírez, nota 13 supra, par. 44.
15. Cf. Caso Acosta Calderón, nota 13 supra, par. 42; Caso Yatama, nota 13 supra, par. 108, e Caso Fermín Ramírez, nota 13 supra, par. 45.
83
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
A testemunha deu esclarecimentos a respeito dos nomes de seus filhos. Referiu-se às dificuldades com o
registro de suas filhas Violeta e Daisy. Teve de conseguir um “papel” com o prefeito, dizendo que Violeta
havia nascido em sua casa, quando, na realidade, foi na Maternidade del Seguro de Sabana Grande de
Boyá. Indicou assim porque a maternidade ficava muito longe de sua casa e não tinha nem o dinheiro nem
o tempo para ir até este lugar conseguir a prova de que ela lá nascera.
A testemunha afirmou que para obter os documentos de seus filhos foi mais ou menos fácil para alguns
deles e mais difícil para outros. Assegurou que foi mais fácil registrar seus filhos Heriberto e Rudelania,
porque seu pai é da República Dominicana, tinha documento e ia com ela registrá-los. Com o registro
de Esteban teve os mesmos problemas que com Violeta e Daisy. Quando foi com as pessoas do MUDHA
registrar Violeta e Daisy, também queria fazer o mesmo com Esteban, mas não pôde.
Dois de seus filhos, Daisy e Esteban, continuam sem certidão de nascimento. Teme muito por Daisy estar
fora da casa e da comunidade pois não possui documentos, e pensa que a qualquer momento podem
prendê-la. Daisy parou de estudar porque sabia que na oitava série não poderia realizar as provas nacionais
por falta de documentos. Daisy tem dois filhos que não possuem documentos, já que ela tampouco os tem.
A testemunha não tentou registrar novamente seus filhos Daisy e Esteban porque não possui o dinheiro
nem pode deixar de trabalhar para fazer as viagens para conseguir todos os documentos exigidos, e não
sabe se os registrariam, mesmo tendo tudo arrumado.
Os funcionários de migração continuam detendo e deportando as pessoas por não terem documentos ou
“melhor dizendo, por ser moreno”. A testemunha afirmou que se a detivessem não entregaria sua cédula
de identidade, por medo de que a rasgassem e ficasse sem documentos, de maneira que preferiria ser
levada ao Haiti com os documentos para poder regressar à República Dominicana, e que teve bastante
temor de que algo lhes possa acontecer por estarem envolvidos neste caso.
Por último, a testemunha afirmou que não há nada que lhes possa recompensar por tudo o que passaram,
mas pelo menos espera que lhes recompensem por todo o tempo e os gastos que realizaram por causa
deste caso, e que seja concedida uma bolsa a Violeta para que possa continuar estudando na universidade.
3) Teresa Tucent Mena, irmã da criança Violeta Bosico
Nasceu em 7 de julho de 1974. É filha de Tiramen Bosico Cofi e irmã de Violeta Bosico, que continua vivendo
com a testemunha no Batey Palavé. Esclareceu que seu sobrenome correto é Tucent Mena, e não Tuseimena.
A testemunha acredita que para resolver este caso e para assegurar que os problemas de registro se
resolvam seria justo que as mães sem documentos pudessem declarar ou registrar seus filhos apenas
indo e se apresentando, e indicando algum documento de que seu filho nasceu na República Dominicana.
Espera que sua irmã Violeta possa ir à universidade, já que são pobres e seria bom que ela tivesse uma
bolsa de estudo para continuar estudando.
Às vezes tem medo quando algo relacionado com o presente caso é publicado no âmbito nacional, porque
sabe que há gente que diz que a testemunha e sua família estão denunciando a República Dominicana e que
estão causando problemas por este caso. Por isso tem medo que algo ruim lhes possa acontecer.
4) Dilcia Yean, suposta vítima
Sua mãe é Leonidas Oliven Yean. Tem 8 anos. Vive na casa de seu tio em Santo Domingo. Atualmente
estuda na primeira série da escola, mas vão passá-la para a segunda série antes de concluir o ano escolar,
porque está avançada no curso. Quando for maior, quer trabalhar em um escritório próximo de sua família
e ser advogada para ajudar as pessoas.
5) Leonidas Oliven Yean, mãe da criança Dilcia Yean
Nasceu em 24 de agosto de 1972, no Batey Enriquillo, Sabana Grande de Boyá, República Dominicana.
Desde o ano de 2001 vive em Santo Domingo, na casa de seu irmão Rufino.
Registrou sua filha, Magdalena, em outubro de 2004. Para tanto, pediram sua cédula de identidade e
eleitoral, testemunhas, o papel da igreja e o papel do prefeito. Para resolver os problemas de inscrição das
crianças, o Estado deve registrar as crianças na mesma escola.
84
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
Perícia
b) Proposta pelos representantes
1) Samuel Martínez, antropólogo
Os dominicanos-haitianos não apenas estão lutando pela cidadania legal, mas também pela cidadania cultural,
para que se dê um reconhecimento mais amplo de seu pertencimento à República Dominicana e para que
formem parte deste país legitimamente. A cidadania cultural é um termo amplo criado por estudiosos do
direito e por pesquisadores sociais para descrever estas suposições não declaradas sobre quem, em termos
de raça-etnia-classe, pertence totalmente à nação e define sua identidade fundamental. A exclusão da cidadania
cultural pode ter consequências sociais, econômicas e psicológicas negativas para as pessoas internamente
colonizadas ou para as minorias étnico-raciais desfavorecidas, que são relegadas a uma duradoura condição
de cidadãos de segunda classe, ou aos que tem a cidadania totalmente negada.
Destacados líderes de opinião na República Dominincana se opõem aos direitos dos imigrantes haitianos e
costumam falar dos haitianos como uma massa homogênea, sem distinguir entre dominicanos-haitianos e
cidadãos haitianos, sugerindo e afirmando, às vezes explicitamente, que os nascidos na República Dominicana
são tão haitianos quanto seus pais nascidos no Haiti. Por sua vez, as pesquisas sociais sugerem que os
dominicanos-haitianos são culturalmente dominicanos, que são leais à República Dominicana e buscam
obter a cidadania legal na terra que lhes viu nascer e o único país que conhecem.
O registro civil tardio é, com freqüência, a única via de que dispõem os dominicanos-haitianos para obter uma
certidão oficial. Muitos haitianos na República Dominicana decidem dar à luz a seus filhos em casa, ao invés
de ir a um centro médico, devido à escassez de recursos econômicos e à dificuldade de ter acesso a meios de
transporte adequados desde os remotos assentamentos rurais, ou devido ao temor de que o pessoal do hospital
ou os agentes de polícia os denunciem, já que muitos são residentes ilegais. Nos últimos anos, funcionários de
hospitais negaram a certidão de nascimento inclusive aos haitianos que nasceram em hospitais.
O recrutamento de haitianos é, frequentemente, permitido e inclusive apoiado pelos agentes dominicanos
encarregados de fazer cumprir a lei, já que relativamente poucos haitianos se atreveriam a se aventurar pela
primeira vez em um país onde não conhecem ninguém, não falam o idioma e não possuem garantias de
emprego.
Os haitianos e seus filhos nascidos na pobreza, nos bateyes, estão dispostos a trabalhar por salários inferiores
aos que aceitariam os dominicanos para um trabalho que exige um grande esforço ou perigo.
O desejo e a tendência de regressar a seus lares no Haiti foi especialmente forte entre os imigrantes haitianos.
A este respeito, nove entre cada dez homens que migram para a República Dominicana para cortar cana
voltam para casa em um prazo de dois anos. Os haitianos que permanecem na República Dominicana o fazem
porque formaram famílias nesse país.
Por outro lado, em relação ao mundo da globalização, onde o fluxo das transações econômicas e culturais
leva a uma demanda cada vez maior por viagens ao exterior, aumenta-se a marginalidade dos apátridas. A
capacidade de viajar ao exterior não é um luxo, mas uma necessidade para ter acesso a um melhor nível de
vida para centenas de milhares de dominicanos, uma oportunidade da qual estão excluídos os dominicanoshaitianos apátridas, por não contarem com a documentação requerida.
Igualmente, a falta de documentos expõe os dominicanos-haitianos à violação às suas garantias processuais,
dado que no momento da prisão são deportados ao Haiti sem nenhum tipo de revisão ou recurso judicial.
Com relação à educação, uma criança sem registro civil não pode se matricular nas escolas secundárias
nem na universidade. Para as crianças de origem haitiana de classe trabalhadora, a educação superior é
praticamente a única via confiável para ascender na escala social e econômica.
A pobreza, a falta de água potável segura, a infraestrutura de saneamento inadequada e as condições de
desmoronamento e superlotação nas residências expõem a população haitiana a um risco maior de doenças
e morte por conta de agentes patogênicos que contaminam a água e dos insetos.
Por último, a negação do registro civil nega também aos dominicanos-haitianos, quase inevitavelmente,
uma série de direitos humanos, fecha a porta à prosperidade econômica e à inclusão social, e frustra as
possibilidades de que alcancem todo seu potencial humano.
85
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
B) Prova Testemunhal e Pericial
86. Nos dias 14 e 15 de março de 2005, a Corte recebeu em audiência pública as declarações das testemunhas
propostas pela Comissão, pelos representantes e pelo Estado, e dos peritos propostos pela Comissão
Interamericana e pelos representantes (par. 47 supra). A seguir, o Tribunal resume as principais partes destas
declarações e perícias.
Testemunhas
a) Proposta pela Comissão e pelos representantes
1) Genaro Rincón Miesse, advogado
É de nacionalidade dominicana, residente na cidade de Santo Domingo e advogado de profissão. Trabalhou
na organização Movimiento de Mujeres Domínico-Haitianas (MUDHA) como assessor jurídico.
Os obstáculos para registrar uma criança de descendência haitiana são a quantidade de requisitos exigidos
e a falta de acesso dos pais “braceros” à identificação requerida pelo Oficial do Estado Civil, seja a cédula
de identidade e eleitoral ou o comprovante de residência, já que estes podem contar apenas com uma carta
emitida pelo Conselho Estatal do Açúcar.
A Junta Central Eleitoral estabelece os requisitos de registro civil, os quais, para crianças até 12 anos,
eram os seguintes em 1997: o comprovante de nascimento expedido por um hospital ou clínica, e
no caso de que a pessoa nasça fora do hospital ou clínica, se for na zona urbana, uma declaração
prestada pela parteira perante um notário, indicando o nascimento da criança, e se for na zona rural,
uma declaração do prefeito “pedáneo” (auxiliar), confirmada pela parteira; a documentação dos pais;
e a certidão de casamento, se os pais estiverem casados. Para o registro de crianças maiores de 12
anos, em 1997, eram exigidos os seguintes 11 requisitos: a constância de nascimento, como explicouse anteriormente; a documentação dos pais; a certidão de casamento; as certificações de todas as
repartições do registro civil na província indicando que a criança não havia sido registrada; certificado
escolar; certificado de batismo; declaração juramentada por três testemunhas maiores de 50 anos que
saibam ler e escrever; as cédulas de identidade e eleitoral das três testemunhas; duas fotografias da
pessoa; certidão que indicasse se a pessoa havia ou não recebido sua cédula de identidade; e carta
dirigida à Junta Central Eleitoral, solicitando a autorização para o registro tardio. Os oficiais de registro
não aplicam estes requisitos de maneira coerente. Nas repartições públicas onde vive a população
haitiana, a exigência dos requisitos não era constante, comparando-se com as repartições do registro
civil onde não existe população imigrante haitiana, as quais são mais flexíveis.
Em 5 de março de 1995, (sic) apresentou-se ao Cartório do Estado Civil de Sabana Grande de Boyá para
registrar 20 crianças, incluindo as crianças Yean e Bosico. A documentação apresentada no caso de Dilcia
Yean foi a cédula de identidade e eleitoral de sua mãe, e a constância de nascimento do hospital de Sabana
Grande de Boyá, e no caso de Violeta Bosico, a cédula de sua mãe, Tiramen Bosico, e a constância de
nascimento expedida pelo prefeito “pedáneo” de Sabana Grande de Boyá.
A licenciada Thelma Bienvenida Reyes, Oficial do Estado Civil, negou-se a aceitar a documentação porque
filhos de imigrantes haitianos não podiam ser registrados, já que seus pais são ilegais. Se os pais são
haitianos, as crianças também são haitianas, já que os pais estão em trânsito. A Oficial acrescentou que
estas eram ordens superiores, as quais tinha por escrito, apesar de ter se negado a mostrar o documento. E
procedeu a comentar sobre a natureza “estranha”, “africanizada” ou haitiana dos sobrenomes das crianças.
Finalmente, a Oficial dirigiu-os ao Departamento de Migração do Município de Cabecera da Província de
Monte Plata.
Nesse mesmo dia foi ao Departamento de Migração acompanhado da promotora do MUDHA. O inspetor
deste Departamento em Monte Plata respondeu-lhe de maneira similar à Oficial do Estado Civil. Dali se
dirigiu à Direção Geral de Migração em Santo Domingo, no Departamento de Assuntos Haitianos, onde
verificou que o Departamento de Migração tinha poder para realizar o registro de filhos de haitianos.
Recorreu ao Promotor Público porque a este funcionário compete garantir os direitos dos cidadãos e
também compete o processo de registro tardio, já que uma vez que o registro tardio é apresentado ao
Cartório do Estado Civil este é enviado para a consideração do Promotor Público para determinar se é
86
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
procedente. Comunicou-se seis vezes com o Promotor Público, quem lhe respondeu que estava esperando
a decisão de seu chefe, o licenciado Juan Serrano. Finalmente, o Promotor Público negou a petição por não
cumprir a exigência processual e remeteu-a novamente ao Cartório do Estado Civil.
Decidiu não apelar perante a Junta Central Eleitoral porque no passado este órgão não deu resposta às
petições postas à sua consideração. Existe uma apatia das autoridades responsáveis. Ademais, nessa
época não existia nenhum recurso de amparo para decisões administrativas.
A criança Violeta Bosico foi expulsa da escola pela diretora, já que não tinha a certidão de nascimento;
consequentemente, a criança foi registrada na escola noturna. Entretanto, ela voltou a estudar na escola
diurna uma vez que a Comissão emitiu as medidas cautelares (par. 8 supra). Além disso, a Junta Central
Eleitoral concedeu as certidões de nascimento, mas o fez em uma jurisdição diferente à que correspondia
e com a apresentação dos mesmos documentos antes indicados.
O caso da criança Violeta Bosico não é o único caso de crianças que não podem ter acesso à educação.
Casos semelhantes foram documentados pelas organizações não governamentais MUDHA e pelo Comitê
Dominicano de Direitos Humanos.
b) Propostas pelo Estado
2) Amada Rodríguez Guante, Diretora da Escola Básica de Palavé
É diretora da Escola Básica de Palavé, onde estudava a criança Violeta Bosico. A criança Violeta Bosico
completou a educação básica em oito cursos. Esta escola, como toda instituição, está regida por uma
lei e em vista disso possui um regulamento, o qual dispõe que a certidão de nascimento é um requisito
para a inscrição das crianças. Um dos requisitos consiste em solicitar à mãe a certidão de nascimento
quando esta vai inscrever suas crianças na escola. A criança Violeta Bosico decidiu sair da escola diurna
para o turno noturno, onde fez dois anos no período acadêmico de um ano. O turno noturno é apenas
para adultos, isto é, maiores de 18 anos, como ordena a lei, mas também podem cursá-lo pessoas que
não sejam adultas. Não poderia assegurar exatamente a idade da criança Violeta Bosico quando cursava
o turno noturno para adultos. Os pais têm o direito de decidir em qual centro podem estudar seus
filhos. A certidão de nascimento se requer para evitar que a criança venha com outro nome, ou com um
sobrenome diferente. A criança Violeta Bosico esteve registrada desde o início de seus estudos com o
sobrenome Richard e, posteriormente, na oitava série, quando apresentou o documento, apareceu com
o sobrenome Bosico.
3) Thelma Bienvenida Reyes, Oficial do Estado Civil de Sabana Grande de Boyá
Uma certidão oportuna é a que se registra até os 60 dias de nascimento. No entanto, pode haver
variações caso se resida na zona rural ou na zona urbana, 60 dias para declarar na zona urbana e 90
dias para declarar na zona rural. Os requisitos necessários para realizar um registro oportuno são
a certidão de nascimento do hospital ou clínica ou do prefeito “pedáneo” e a cédula de identidade e
eleitoral dos pais, e se forem casados, sua certidão de casamento. O registro pode ser feito pela mãe,
por seus pais, pela parteira, e qualquer pessoa pode servir como testemunha. Para o registro tardio
se requer a mesma certidão de nascimento, a cédula de identidade dos pais, um comprovante de
escolaridade se estiverem estudando ou não e uma certidão da igreja se forem batizados ou não. No
caso das crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico, não era possível o registro porque não apresentaram
a cédula de identidade e eleitoral, apenas apresentaram a certidão do prefeito e outra do hospital.
A idade das crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico quando compareceram era, respectivamente, de
aproximadamente um ano e de 11 a 12 anos. Existe uma comunicação do senhor Manuel Ramón
Morel Cerda, Presidente da Junta Central Eleitoral, referente aos atos realizados, na qual se admite
que a atuação está em conformidade com a lei. O Promotor Público não é competente para aplicar
requisitos para registros tardios; para apelar de uma decisão negativa no registro de nascimento existe
o tribunal hierárquico, que é a Junta Central Eleitoral, depois existe o procedimento do Promotor
Público, e também existe o processo de amparo. Quando o registro é tardio, é possível solicitar todos
os documentos de prova que se considerem necessários, ainda que não estejam contemplados como
requisitos nas resoluções da Junta Central Eleitoral.
87
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Perícias
c) Propostas pela Comissão e os representantes
1) Débora E. Soler Munczek, psicóloga
Entrevistou as crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico, bem como seus familiares, nos dias 1, 2 e 3 de fevereiro
de 2005. Constatou o ambiente de discriminação e estigma contra as pessoas de ascendência haitiana que
residem na República Dominicana, o qual permeia a estrutura psicológica não apenas das supostas vítimas e
de suas famílias, mas também da comunidade inteira. Ambas as crianças demonstram uma adaptação social
aceitável; entretanto, sua autoestima, autopercepção e a concepção de confiança, de segurança pessoal e do
mundo foram afetadas significativamente por causa deste ambiente de discriminação e estigma. As supostas
vítimas e suas famílias têm medo de represálias que podem sofrer pelo fato de defender seus direitos;
e ainda que as famílias estejam mais tranquilas pelo fato de terem recebido as certidões de nascimento
expedidas pelo Estado, seu temor de serem deportadas persiste. Ambas as famílias consideram a educação
das crianças Dilcia e Violeta como um elemento essencial para seu futuro socioeconômico, razão pela qual
fizeram grandes sacrifícios econômicos e jurídicos para preservar este direito.
2) Frederick John Packer, advogado e professor
Os assuntos relacionados com a nacionalidade eram, tradicionalmente, de foro estatal, mas princípios de
Direito Internacional, tais como o direito das pessoas a não serem apátridas e o dever dos Estados de
proteger os direitos humanos, limitaram este poder nos últimos anos. A nacionalidade como termo jurídico
se define tradicionalmente com base em dois princípios: o sanguíneo (a herança familiar) e o de lugar de
nascimento. No entanto, tratados internacionais – tais como a Convenção para a Redução dos Casos de
Apatridia das Nações Unidas e a Convenção Europeia sobre Nacionalidade – e tribunais internacionais – tais
como a Corte Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Internacional de Justiça – adotaram o princípio
de vínculo efetivo entre o indivíduo e o Estado para definir a nacionalidade. Esta mudança reflete o interesse
dos Estados em melhorar as relações entre si e seu desejo de proteger os direitos humanos, em particular de
pessoas vulneráveis como crianças e mulheres.
O vínculo efetivo entre o indivíduo e o Estado pode ser demonstrado por meio de diversos elementos tomados
em conjunto. Assim, qualquer fato ou ação por parte do indivíduo ou do Estado que demonstre uma união
real entre ambos serve para satisfazer este propósito: por exemplo, o lugar de nascimento e o lugar de
residência, ou a identificação do solicitante com as pessoas deste Estado.
Os Estados podem escolher o procedimento administrativo que desejem para conceder a nacionalidade às
pessoas que a solicitarem. No entanto, estes têm uma obrigação de fazer o processo simples e razoável,
especialmente quando os peticionários são pessoas que de outra forma se tornariam apátridas. Os dois
tratados internacionais mencionados anteriormente ordenam ao Estado conceder automaticamente a
nacionalidade a qualquer pessoa nascida em seu território e que de outra maneira ficaria apátrida. Em outros
casos se concede a nacionalidade mediante um pedido que se faz após um período de residência (seja de 3
ou 5 anos, dependendo do tratado).
Ainda que relacionados, os processos de nacionalidade e de registro civil são diferentes e servem para propósitos
diferentes. O processo de nacionalização serve para estabelecer formalmente o vínculo entre o indivíduo e o
Estado; assim, o indivíduo pode acudir à proteção do Estado. Por outro lado, o processo de registro civil serve
principalmente ao interesse do Estado de controlar a saúde, a segurança e a ordem pública.
É razoável para os Estados que optam por usar o sistema de registro como parte do processo de nacionalização
utilizar documentos que estabeleçam a identidade da pessoa, tais como a certidão de nascimento, a certidão
de batismo ou uma declaração da pessoa que atendeu o parto. Entretanto, não é razoável solicitar todos
estes documentos de uma vez, nem pedir documentos que demonstrem o status migratório legal do pai
ou da mãe do solicitante ou a existência de um vínculo matrimonial formal entre eles. Primeiro, solicitar
todos estes documentos de uma vez criaria uma sobrecarga financeira e de tempo inaceitável. Segundo,
solicitar documentos probatórios do vínculo matrimonial ou de um status migratório dos pais constitui
uma discriminação por origem e por pertencimento a um grupo social. Em terceiro lugar, documentos que
demonstrem a relação dos pais do solicitante com o Estado são irrelevantes, já que o vínculo a demonstrar é
o existente entre o solicitante e o Estado.
88
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
No caso das crianças Yean e Bosico está claro que sua conexão, a composição de sua vida e suas relações se
dão com a República Dominicana, de maneira que elas não poderiam ter a nacionalidade haitiana, pois não existe
vínculo real entre estas crianças e o Estado do Haiti. No procedimento administrativo da República Dominicana,
requerer uma lista de documentos de forma conjunta representa uma sobrecarga significativa para o solicitante,
além de ser redundante, já que apenas um dos documentos pode satisfazer o objetivo de documentar a
identidade do solicitante e o vínculo deste com o Estado. Nenhum procedimento de nacionalização, dos 55
países sobre os quais tem conhecimento a testemunha, requerem de maneira simultânea todos estes requisitos
ou documentos. O argumento de solicitar todos estes documentos para prevenir uma possível fraude eleitoral
não é sustentável, já que a República Dominicana pode alcançar este interesse por meio de procedimentos de
registro apropriados que não afetem o processo para obter a nacionalidade.
Finalmente, ainda que o Direito Internacional não defina o conceito de “pessoas em trânsito”, este não é
importante no momento de decidir se uma pessoa tem certa nacionalidade, já que o importante é a existência
do vínculo real entre o indivíduo e o Estado.
C) Apreciação da Prova
Apreciação da Prova Documental
87. Neste caso, como em outros,16 o Tribunal admite o valor probatório dos documentos apresentados pelas
partes em sua oportunidade processual, ou como prova para melhor decidir de acordo com o artigo 45 de seu
regulamento, que não foram controvertidos nem objetados, nem cuja autenticidade foi posta em dúvida.
88. A Corte agrega ao acervo probatório, de acordo com o artigo 45.1 do Regulamento, e por considerá-los úteis para
resolver este caso, os documentos apresentados pelos representantes, indicados como prova superveniente17
(par. 48 supra); os documentos juntados pelos representantes como anexos a suas alegações finais escritas18
(par. 49 supra); os documentos apresentados pela primeira vez pelo Estado como anexos a suas alegações
finais escritas19 (par. 49 supra), e os documentos apresentados pelo Estado em 10 de janeiro, 24 de maio e 5 de
setembro de 2005.20
89. Em aplicação do disposto no artigo 45.1 do Regulamento, a Corte incorpora ao acervo probatório do caso
os documentos apresentados pelo Estado, pela Comissão e pelos representantes que foram requeridos pelo
Tribunal como prova para melhor decidir (pars. 50 e 51 supra), a saber, uma cópia da Lei nº 8-92, de 13 de
abril de 1992, apresentada pelas três partes, e uma cópia da Resolução da Junta Central Eleitoral nº 5/88, de
8 de junho de 1988, apresentada pelo Estado e pelos representantes, já que os mesmos resultam úteis para
a resolução do presente caso. No que se refere à solicitação do Tribunal de que as partes apresentassem
como prova para melhor decidir os anexos à “demanda com pedido de autorização de registros tardios
[…]”, apresentada em 11 de setembro de 1997 perante o Promotor Público do Distrito Judicial de Monte
Plata, República Dominicana, a Corte toma nota do expressado pelo Estado21 e pela Comissão,22 os quais não
16. Cf. Caso Acosta Calderón, nota 13 supra, par. 45; Caso Yatama, nota 13 supra, par. 112, e Caso da Comunidade Indígena Yakye Axa.
Sentença de 17 de junho de 2005. Série C Nº 125, par. 40.
17. A saber: Código para o Sistema de Proteção e dos Direitos Fundamentais de Crianças e Adolescentes (Lei nº 136 – 03), promulgado em
7 de agosto de 2003; Lei nº 285 – 04 de Migração da República Dominicana, promulgada em 15 de agosto de 2004; lista dos requisitos para
registro tardio de nascimento de pessoas maiores de 16 anos, emitida pela Junta Central Eleitoral em 11 de dezembro de 2003; Resolução nº
07/2003, “Resolução sobre registros tardios de pessoas maiores de dezesseis anos de idade”, emitida pela Junta Central Eleitoral em 17 de
novembro de 2003, e o manual ou instrutivo para a aplicação da resolução nº 7/2003 de 17 de novembro de 2003 da Junta Central Eleitoral
relativo à instrumentalização de registros tardios de pessoas maiores de dezesseis anos de idade.
18. A saber: cópia da decisão de 6 de agosto de 1988 da Corte Suprema de Justiça “sobre a ação de inconstitucionalidade e nulidade, e das
resoluções emitidas pelo Senado e a Câmara de Deputados da República”, e vários comprovantes de gastos do CEJIL no caso das Crianças
Yean e Bosico.
19. A saber: certidão de nascimento da senhora Solain Pierre; certidão da Oficial do Estado Civil de Sabana Grande de Boyá de 6 de novembro
de 2003; ofício do Promotor Público do Distrito Nacional dirigido ao Presidente da Sala Civil e Comercial do Juízo de Primeira Instância do
Distrito Nacional, solicitando ratificar registros tardios de nascimento; Resolução da Suprema Corte de Justiça da República Dominicana de
24 de fevereiro de 1999; manuscrito do Estado intitulado “Reclamações dos peticionários durante a solução amistosa perante a [Comissão]”;
certidão da Diretora da Escola Básica Palavé de 6 de novembro de 2003; certidão da Associação Dominicana de Professores de 11 de março
de 2005; Diploma de Conclusão da Educação Básica da criança Violeta Bosico de 1 de julho de 2004; certidão da Sociedade de Pais e Amigos
da Escola Básica Palavé de 11 de março de 2005, e certidão da Junta de Vizinhos Las Mercedes de 11 de março de 2005.
20. A saber: documento intitulado The uses of Children: A Study of Trafficking in Haitian Children, USAID/Haiti Mission, Port-au-Prince, Haiti,
July 14, 2004, de Glenn R. Smucker e Gerald F. Murray; Resolução da Junta Central Eleitoral nº 11-89, de 22 de agosto de 1989, e certificado
emitido em 7 de março de 2005 pelo diretor do “subcentro de saúde” de Sabana Grande de Boyá, República Dominicana.
21. O Estado assinalou que “[t]odos os autos em questão foram devolvidos aos peticionários”.
22. A Comissão afirmou que espera que o Estado e os representantes “se encontrem em capacidade de juntar […] a documentação apresentada
no âmbito interno”.
89
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
enviaram os anexos alegando que não os tinham em seu poder, e os representantes unicamente enviaram
os anexos que já constavam nos autos do caso, e afirmaram que, “apesar de o pedido perante o Promotor
Público ter sido apresentado em favor de um grupo de crianças de ascendência haitiana, […] apresenta[vam]
unicamente os documentos correspondentes às crianças Yean e Bosico”. Tendo em vista o anterior, a Corte
faz notar que as partes devem prover todos os elementos probatórios requeridos de ofício, como prova para
melhor decidir ou à pedido de parte, já que o Tribunal deve contar com o maior número de elementos de juízo
para valorar e chegar a conclusões sobre os fatos.
90. Do mesmo modo, a Corte agrega os seguintes documentos ao acervo probatório, em aplicação do artigo 45.1
do Regulamento, por considerá-los úteis para a resolução deste caso: a) Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento, Escritório de Desenvolvimento Humano da República Dominicana, Relatório Nacional de
Desenvolvimento Humano 2005 – Em direção a uma inserção mundial inclusiva e renovada; b) Nações Unidas,
Comitê dos Direitos da Criança, Exame dos relatórios apresentados pelos Estados Partes de acordo com o
Artigo 44 da Convenção. Observações Finais do Comitê dos Direitos da Criança. República Dominicana. UN Doc.
CRC/C/15/Add.150, 21 de fevereiro de 2001; c) World Bank, Dominican Republic Poverty Assessment: Poverty
in a High-Growth Economy (1986 – 2000), 2 volumes, 2001; d) Bridget Wooding e Richard Moseley-Williams,
Imigrantes haitianos e dominicanos de ascendência haitiana na República Dominicana. Santo Domingo,
República Dominicana: Cooperação Internacional para o Desenvolvimento e Serviço Jesuíta a Refugiados
e Migrantes, 2004; e) Nações Unidas, Comitê de Direitos Humanos, Comentários do Governo da República
Dominicana às observações finais do Comitê dos Direitos Humanos, UN Doc. CCPR/CO/71/DOM/Add.1, 28
de maio de 2002; f) Organização dos Estados Americanos, Relatório Anual da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos 1991, OEA/Ser.L/V/II.81, doc. 6 rev. 1, de 14 de fevereiro de 1992; g) Organização dos
Estados Americanos, Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Relatório sobre a Situação dos Direitos
Humanos na República Dominicana, OEA/Ser.L/V/II.104, doc. 49 rev. 1, de 7 de outubro de 1999, e h) Nações
Unidas, Comissão de Direitos Humanos, “Os direitos humanos e a extrema pobreza”, relatório apresentado
pela especialista independente encarregada da questão dos direitos humanos e a extrema pobreza, Sra. A. M.
Lizin, de acordo com a resolução 2002/30 da Comissão de Direitos Humanos, Adendo: MISSÃO À REPÚBLICA
DOMINICANA. UN Doc. E/CN.4/2003/52/Add.1, 16 Janeiro de 2003.
91. A Corte admite as declarações autenticadas prestadas pelas crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico (pars. 85.a.4 e
85.a.1 supra), e pelas senhoras Tiramen Bosico Cofi, Leonidas Oliven Yean e Teresa Tucent Mena (pars. 85.a.2,
85.a.5 e 85.a.3 supra), na medida em que concordem com o objeto da declaração, e as aprecia com o conjunto
do acervo probatório. Este Tribunal considera que por se tratar das supostas vítimas e de seus familiares, e por
terem interesse direto neste caso, suas manifestações não podem ser apreciadas isoladamente, mas dentro
do conjunto das provas do processo. As manifestações das supostas vítimas têm um valor especial, assim
como as manifestações dos familiares, já que são eles quem podem proporcionar melhor informação sobre as
consequências das violações que podem ter sido perpetradas contra eles.23
92. Em relação ao parecer apresentado pelo senhor Samuel Martínez (par. 85.b.1 supra), o qual o Estado objetou por
considerar que o presente caso “não constitui uma class action que pretenda agrupar todas as crianças de origem
haitiana, nem se refere aos nacionais deste país, de maneira que seria totalmente irrelevante e improcedente que
[o senhor Martínez] se manifeste sobre aspectos de migração haitiana e discriminação”, este Tribunal o admite
por considerá-lo útil para resolver o presente caso; entretanto, toma em conta as objeções do Estado e as aprecia
com o conjunto do acervo probatório e conforme as regras da crítica sã.
93. A respeito das referidas declarações das crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico e das senhoras Tiramen Bosico
Cofi, Teresa Tucent Mena, e Leonidas Oliven Yean, bem como ao parecer do senhor Samuel Martínez, os quais
se encontram autenticados, mas não foram prestados perante agente dotado de fé pública, a Corte os admitiu
como o fez em outras ocasiões, posto que não se afeta a segurança jurídica nem o equilíbrio processual entre
as partes.24
94. Em relação às declarações prestadas pela senhora Leonidas Oliven Yean, em 9 de junho ou 25 de julho de 1999
e em 24 de julho de 2001; a declaração prestada pela senhora Tiramen Bosico Cofi em 11 de julho de 1999, e
a declaração prestada pelo senhor Genaro Rincón Miesse, em 9 de agosto de 1999, juntadas ao processo pela
23. Cf. Caso Yatama, nota 13 supra, par. 116; Caso da Comunidade Indígena Yakye Axa, nota 16 supra, par. 43, e Caso da Comunidade
Moiwana, nota 8 supra, par. 84.
24. Cf. Caso Yatama, nota 13 supra, par. 116, Caso das Irmãs Serrano Cruz. Sentença de 1 de março de 2005. Série C Nº 120, par. 39, e Caso
Lori Berenson Mejía. Sentença de 25 de novembro de 2004, Série C Nº 119, par. 82.
90
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
Comissão, pelos representantes e pelo Estado como prova documental, anexadas a seus respectivos escritos
de demanda, de petições e argumentos, e de contestação da demanda, o Estado assinalou que continham
contradições ou imprecisões. Em razão do anterior, a Corte as admite, levando em conta as objeções do Estado,
e as aprecia dentro do contexto do acervo probatório e não de forma isolada.
95. No que se refere à certidão de nascimento da criança Violeta Bosico, emitida em 3 de março de 1997 pelo prefeito
“pedáneo” da Segunda Circunscrição de Sabana Grande de Boyá, o Estado objetou a veracidade do lugar de
nascimento indicado na referida certidão, com fundamento no fato de a senhora Tiramen Bosico ter declarado
perante o referido prefeito que a criança nasceu em sua residência, e em que na declaração prestada por esta
senhora em 2 de fevereiro de 2005, autenticada pelo licenciado Marcelino da Cruz, esclareceu que a criança
“nasceu na Maternidad del Seguro de Sabana Grande de Boyá”. A Corte observa, por um lado, que a objeção
do Estado se refere ao lugar de nascimento da criança Violeta Bosico, no sentido de se esta nasceu na casa de
sua mãe ou em uma maternidade; ou seja, os demais elementos que constam da certidão, a saber, o nome da
criança, sua data de nascimento, o nome de sua mãe e o fato de que nasceu na República Dominicana, não
foram objetados nem controvertidos pelo Estado. Em consequência, este Tribunal considera que, por não ter
questionado o fato de que a criança Violeta Bosico nasceu na República Dominicana, o objeto da impugnação do
Estado não afeta a decisão da Corte a respeito da matéria do presente caso.
96. Quanto aos documentos de imprensa apresentados pelas partes, este Tribunal considerou que poderiam ser
apreciados quando reúnam fatos públicos e notórios ou declarações de funcionários do Estado, ou quando
corroborem aspectos relacionados com o caso.25
Apreciação da Prova Testemunhal e Pericial
97. A respeito do testemunho do senhor Genaro Rincón Miesse (par. 86.a.1 supra), e dos pareceres da senhora
Débora E. Soler Munczek e do senhor Frederick John Packer (pars. 86.c.1 e 86.c.2 supra), este Tribunal os
admite por considerá-los úteis para resolver o presente caso, mas também leva em conta as indicações do
Estado a respeito dos peritos, e os aprecia com o conjunto do acervo probatório, conforme as regras da
crítica sã.
98. No tocante ao testemunho da senhora Thelma Bienvenida Reyes (par. 86.b.3 supra), o qual não foi objetado
nem controvertido, o Tribunal o admite e lhe concede valor probatório. Quanto ao testemunho de Amada
Rodríguez Guante (par. 86.b.2 supra), faz-se notar que, durante a audiência pública, foi modificado o objeto de
seu testemunho e, em seu lugar, determinou-se que a referida senhora deveria declarar sobre a escolarização da
criança Violeta Bosico e os supostos danos morais sofridos por terem perdido um ano de escolaridade, o que
não foi objetado nem controvertido, de modo que a Corte o admite na medida em que concorde com o objeto do
interrogatório, e lhe concede valor probatório.
99. Nos termos do que foi mencionado acima, a Corte apreciará o valor probatório dos documentos, declarações
e perícias apresentados por escrito ou prestados perante si. As provas apresentadas durante o processo foram
integradas a um único acervo, que se considera como um todo.26
VII
Considerações previas
100. A Corte considera necessário fazer alguns esclarecimentos sobre sua competência no presente caso, antes de
analisar o mérito da controvérsia, em consideração de que a República Dominicana reconheceu a competência
contenciosa da Corte em 25 de março de 1999.
101. A Comissão, em sua demanda, afirmou que não pretende que a Corte estabeleça violações pelos fatos ocorridos
com anterioridade a 25 de março de 1999 e afirmou que os fatos ocorridos antes desta data “são apresentados
à […] Corte como antecedentes das violações imputáveis ao Estado a partir de sua aceitação da jurisdição
contenciosa da Corte”.
25. Cf. Caso Yatama, nota 13 supra, par. 119; Caso Fermín Ramírez, nota 13 supra, par. 51, e Caso da Comunidade Indígena Yakye Axa, nota
16 supra, par. 46.
26. Cf. Caso Acosta Calderón, nota 13 supra, par. 49; Caso da Comunidade Indígena Yakye Axa, nota 16 supra, par. 49, e Caso das Irmãs
Serrano Cruz, nota 24 supra, par. 46.
91
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
102. A este respeito, os representantes afirmaram que “a Corte tem plena competência para resolver casos nos
quais se alegam violações por parte do Estado [à] Convenção a partir de 25 de março de 1999” e informaram
que “reconhece[m] que a situação de desamparo das crianças também é resultado de fatos ocorridos com
anterioridade [a esta data, os quais a] Corte deveria considerar […] como antecedentes”.
103. Por sua vez, o Estado manifestou que “a competência temporal da Corte […] está limitada ao momento em que
o Estado aceitou esta competência”.
104. Ao determinar se tem ou não competência para conhecer de um caso, de acordo com o artigo 62.1 da Convenção
Americana, a Corte deve tomar em consideração tanto a data de reconhecimento da competência por parte do
Estado quanto o princípio de irretroatividade, disposto no artigo 28 da Convenção de Viena sobre o Direito
dos Tratados de 1969, o qual se aplica à vigência dos efeitos jurídicos do reconhecimento da competência do
Tribunal.27
105. Este princípio estabelece que a Corte não pode exercer sua competência contenciosa para aplicar a Convenção e
declarar uma violação a suas normas quando os fatos alegados ou a conduta do Estado demandado que possa
implicar responsabilidade internacional são anteriores ao reconhecimento da competência do Tribunal.
106. Deste modo, o Tribunal é competente para conhecer e declarar violações à Convenção em duas situações
distintas: quando os fatos violatórios são posteriores à data de reconhecimento de sua competência ou quando
se trata de uma violação contínua ou permanente que persiste depois do reconhecimento, ainda que seu início
seja anterior a este.28
107. Além disso, ao interpretar a Convenção conforme seu objeto e seu fim, a Corte deve atuar de maneira a
preservar a integridade do mecanismo previsto no artigo 62.1 da Convenção. Seria inadmissível subordinar
tal mecanismo a restrições que tornem inoperante o sistema protetivo dos direitos humanos, previsto na
Convenção e, consequentemente, a função jurisdicional da Corte.29
108. Em razão de tudo o que foi exposto, a Corte considera necessário estabelecer que, apesar de que os fatos
apresentados pela Comissão Interamericana como antecedentes terem tido lugar com anterioridade a 25
de março de 1999, alguns destes fatos poderiam persistir depois da data na qual o Estado reconheceu a
competência contenciosa da Corte Interamericana (par. 4 supra), situações que serão examinadas pelo Tribunal
no presente caso.
VIII
Fatos Provados
109. A Corte considera provados os fatos que formam parte dos antecedentes e do contexto do caso, os quais serão
abordados no exercício de sua competência e se detalham a seguir:
Antecedentes
Contexto social
109.1. As primeiras grandes migrações de haitianos para a República Dominicana ocorreram durante as primeiras
três décadas do século 20, quando ao redor de 100 mil pessoas se mudaram aos campos açucareiros
daquele país. Os engenhos dominicanos estiveram, em um primeiro momento, sob o controle de empresas
privadas e, posteriormente, em sua maioria, passaram ao controle do Conselho Estatal do Açúcar (CEA).
Muitos migrantes haitianos passaram a viver de forma permanente na República Dominicana, constituíram
família neste país e agora vivem com seus filhos e netos (segunda e terceira gerações de dominicanos de
ascendência haitiana), que nasceram e viveram na República Dominicana.30
27. Cf. Caso da Comunidade Moiwana, nota 8 supra, pars. 38 e 39; Caso Caesar. Sentença de 11 de março de 2005. Série C Nº 123, par. 108,
e Caso das Irmãs Serrano Cruz. Exceções Preliminares, nota 7 supra, pars. 64 e 65.
28. Cf. Caso da Comunidade Moiwana, nota 8 supra, pars. 38 e 39; Caso das Irmãs Serrano Cruz. Exceções Preliminares, nota 7 supra, pars.
64 e 65, e Caso Alfonso Martín del Campo Dodd. Exceções Preliminares. Sentença de 3 de setembro de 2004. Série C Nº 113, par. 79.
29. Cf. Caso das Irmãs Serrano Cruz. Exceções Preliminares, nota 7 supra, par. 68; Caso Baena Ricardo e outros. Competência, nota 12 supra,
par. 128, e Caso Hilaire, Constantine e Benjamin e outros. Sentença de 21 de junho de 2002. Série C Nº 94, par. 19.
30. Cf. National Coalition for Haitian Rights, Beyond de Bateyes – Haitian Immigrants in the Dominican Republic, 1996 (expediente de anexos
à demanda, anexo 9, folhas 819 a 821 e 829 a 831); Human Rights Watch, “Pessoas Ilegais”–Haitianos e Dominicanos-haitianos na República
Dominicana. Nova York: 2002 (expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 19, folhas 310 a 320); Marco Scuriatti,
92
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
109.2. A maioria dos haitianos e dominicanos de ascendência haitiana na República Dominicana vivem em condições
de pobreza em zonas conhecidas como bateyes, que consistem em assentamentos de trabalhadores agrícolas
que se localizam ao redor das plantações de cana de açúcar.31 Nestes lugares, os serviços públicos básicos
são escassos e as estradas estão em más condições, o que, durante a temporada de chuva pode chegar a
impedir a comunicação entre os bateyes e as cidades por vários dias.32
109.3. O Escritório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento na República Dominicana afirmou, no
ano de 2005, que
[o]s haitianos e haitianas vivem no país em condições muito precárias e de extrema pobreza. Além
disso, a maioria está indocumentada e tem de enfrentar uma atitude política e social geralmente hostil,
sem possibilidade de assistência jurídica e com limitado acesso a serviços sanitários, de saúde e de
educação, o que inclui os filhos dos haitianos nascidos no país. Cabe indicar que as limitações no acesso
aos serviços públicos e o problema da falta de documentação são generalizados entre os segmentos
mais pobres da população dominicana. […] Com respeito à imigração haitiana, as informações
demonstram as condições de incorporação em ramos de mercados laborais segmentados para este
grupo de imigrantes, […] caracterizados por baixos salários, péssimas condições laborais e baixa
tecnologia, definidas internacionalmente como ‘As três P‘, pesadas, perigosas e precárias (em inglês
“as três D”: dirty, dangerous, demanding). Como é óbvio, estas não são precisamente as condições que
se deveriam aceitar desde a perspectiva do desenvolvimento humano. […]33
109.4.
No relatório enviado às Nações Unidas na ocasião da apresentação dos “Comentários do Governo da
República Dominicana às observações finais do Comitê de Direitos Humanos”, o Estado afirmou que sua
maior preocupação é “combater a exclusão e a desigualdade social, buscando mecanismos para integrar a
sociedade em sua totalidade e deixar definitivamente no passado as velhas práticas anti-haitianas”.34
109.5. No referido relatório apresentado perante as Nações Unidas, o Estado assinalou que o Presidente da República
em exercício no ano de 2002, senhor Hipólito Mejía, pronunciou-se “a favor da dignificação d[os] batey[es]”
e afirmou que, “como apostamos no futuro, não podemos ficar de braços cruzados diante das situações mais
críticas de pobreza que ofendem nossa consciência humanitária; se nos perguntamos qual é o caso que melhor
simboliza este tipo de situações, creio que todos mencionaríamos as condições de vida nos bateyes”.35
Sobre as crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico
109.6. Dilcia Yean nasceu em 15 de abril de 1996, no “posto de saúde” localizado no município de Sabana Grande
de Boyá, Província de Monte Plata, República Dominicana.36 Cresceu neste município e, no ano de 2003,
Background Papers – A review of the Haitian Immigrant Population in the Dominican Republic. In: World Bank, Dominican Republic Poverty
Assessment: Poverty in a High-Growth Economy (1986 – 2000), volume II, 2001, págs. 81 a 83, e Bridget Wooding e Richard MoseleyWilliams, Imigrantes haitianos e dominicanos de ascendência haitiana na República Dominicana. Santo Domingo, República Dominicana:
Cooperação Internacional para o Desenvolvimento e o Serviço Jesuíta de Refugiados e Migrantes, 2004, págs. 1 a 103.
31. Cf. National Coalition for Haitian Rights, Beyond de Bateyes – Haitian Immigrants in the Dominican Republic, 1996 (expediente de anexos à
demanda, anexo 9, folha 820); Nações Unidas, Comitê de Direitos Humanos, Comentários do Governo da República Dominicana às observações
finais do Comitê dos Direitos Humanos, UN Doc. CCPR/CO/71/DOM/Add.1, 28 de maio de 2002, par. 42; Nações Unidas, Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento, Escritório de Desenvolvimento Humano da República Dominicana, Relatório Nacional de Desenvolvimento
Humano 2005 – Em direção a uma inserção mundial inclusiva e renovada, págs. 119 a 144, e Bridget Wooding e Richard Moseley-Williams,
Imigrantes haitianos e dominicanos de ascendência haitiana na República Dominicana, Cooperação Internacional para o Desenvolvimento e o
Serviço Jesuíta de Refugiados e Migrantes, Santo Domingo, República Dominicana, 2004, págs. 1 a 103.
32. Cf. National Coalition for Haitian Rights, Beyond de Bateyes – Haitian Immigrants in the Dominican Republic, 1996 (expediente de anexos
à demanda, anexo 9, folhas 852 a 861); World Bank, Dominican Republic Poverty Assessment: Poverty in a High-Growth Economy (1986 –
2000), volume I, 2001, págs. 44 a 55; Marco Scuriatti, Background Papers – A review of the Haitian Immigrant Population in the Dominican
Republic. In: World Bank, Dominican Republic Poverty Assessment: Poverty in a High-Growth Economy (1986 – 2000), volume II, 2001, págs.
84 a 85, e Nações Unidas, Comitê de Direitos Humanos, Comentários do Governo da República Dominicana às observações finais do Comitê
dos Direitos Humanos, UN Doc. CCPR/CO/71/DOM/Add.1, 28 de maio de 2002, par. 46.
33. Cf. Nações Unidas, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Escritório de Desenvolvimento Humano da República Dominicana,
Relatório Nacional de Desenvolvimento Humano 2005 – Em direção a uma inserção mundial inclusiva e renovada, págs. 121, 139, 141 e 143.
34. Cf. Nações Unidas, Comitê de Direitos Humanos, Comentários do Governo da República Dominicana às observações finais do Comitê dos
Direitos Humanos, UN Doc. CCPR/CO/71/DOM/Add.1, 28 de maio de 2002, par. 46.
35. Cf. Nações Unidas, Comitê de Direitos Humanos, Comentários do Governo da República Dominicana às observações finais do Comitê dos
Direitos Humanos, UN Doc. CCPR/CO/71/DOM/Add.1, 28 de maio de 2002, par. 46.
36. Cf. extrato da certidão de nascimento da criança Dilcia Oliven Yean, emitida em 25 de setembro de 2001 pela Junta Central Eleitoral,
Cartório do Estado Civil da Primeira Circunscrição do Distrito Nacional da República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo 14,
tomo IV, folha 2105); certidão de registro de nascimento da criança Dilcia Oliven Yean, emitida em 25 de setembro de 2001 pelo Cartório do
Estado Civil da Primeira Circunscrição do Distrito Nacional, Santo Domingo, República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo
14, tomo IV, folha 2113; expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 14, folha 90, e expediente de anexos à contestação
da demanda, anexo 18, folha 43), e declaração de nascimento da criança Dilcia Yean, emitida em 5 de março de 1997 pelo “subcentro de saúde”
de Sabana Grande de Boyá, Monte Plata, Secretaria de Estado de Saúde Pública e Assistência Social, República Dominicana (expediente de
anexos à demanda, anexo 3, folha 98; expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 7, folha 48, e expediente de anexos à
contestação da demanda, anexo 19, folha 45).
93
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
frequentava o Colégio Alegría Infantil.37 Sua mãe é a senhora Leonidas Oliven Yean, de nacionalidade
dominicana.38 Seu pai é de nacionalidade haitiana e não mantém comunicação com sua filha.39 Seus avós
maternos são o senhor Dos Oliven, de nacionalidade haitiana, e a senhora Anita Oliven Yean.40 Dilcia Yean
tem ascendência haitiana por parte de seu pai e de seu avô materno.
109.7. Violeta Bosico nasceu em 13 de março de 1985, na República Dominicana.41 Sua mãe é a senhora Tiramen
Bosico Cofi, de nacionalidade dominicana.42 Seu pai é Delima Richard, de nacionalidade haitiana, e não
mantém comunicação com sua filha.43 Seus avós maternos são o senhor Anol Bosico, que é haitiano, e a
senhora Juliana Cofi.44 Violeta Bosico tem ascendência haitiana por parte de seu pai e de seu avô materno.
109.8. Violeta Bosico viveu com sua mãe e seus irmãos no Batey Las Charcas, até 1992, quando se mudou para
viver com sua irmã Teresa Tucent Mena, no Batey Verde, também chamado Batey Enriquillo. No ano de 1993
se mudou junto com sua irmã para o Batey Palavé, o qual se encontra fora de Santo Domingo, e onde vive
atualmente. Violeta Bosico cresceu na República Dominicana, frequentou a Escola de Palavé e, no ano de
2005, frequenta a escola secundária.45
37. Cf. Relatório do MUDHA correspondente à visita feita às famílias das crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico em 9 de abril de 2003 (expediente
de anexos ao escrito de petições e argumentos, tomo I, folha 389).
38. Cf. extrato da certidão de nascimento da criança Dilcia Oliven Yean, emitida em 25 de setembro de 2001 pela Junta Central Eleitoral, Cartório
do Estado Civil da Primeira Circunscrição do Distrito Nacional da República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo 14, tomo IV,
folha 2105); certidão de nascimento da senhora Leonidas Oliven Yean, emitida em 9 de outubro de 1978 pela Junta Central Eleitoral, República
Dominicana (expediente de anexos ao escrito de contestação da demanda, anexo 1, folha 2), e Cédula de Identidade e Eleitoral, número 0900002085-0, da senhora Leonidas Oliven Yean, emitida em 29 de janeiro de 1994 pela Junta Central Eleitoral, República Dominicana (expediente
de anexos à demanda, anexo 3, folhas 102 e 103). Na declaração prestada pela senhora Leonidas Oliven Yean, autenticada em 3 de fevereiro
de 2005 pelo licenciado Marcelino da Cruz Nuñez, esclareceu que é conhecida como “Nany” (expediente de exceções preliminares e eventuais
mérito e reparações, tomo III, folha 905).
39. Cf. declaração da senhora Leonidas Oliven Yean, prestada em 25 de junho ou 9 de julho de 1999 à senhora Katherine A. Fleet, no Batey
Enriquillo, Sabana Grande de Boyá (expediente de anexos à demanda, anexo 14, tomo III, folhas 1752 a 1756; expediente de anexos ao
escrito de petições e argumentos, anexo 34, folhas 411 a 415, e expediente de anexos ao escrito de contestação da demanda, anexo 15,
folhas 31 e 32).
40. Cf. extrato da certidão de nascimento de Leonidas Oliven Yean, emitida em 10 de setembro de 2001 pela Junta Central Eleitoral, em Sabana
Grande de Boyá, República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo 9, folha 697, e expediente de anexos à contestação da
demanda, anexo 8, folha 17); certidão de nascimento da senhora Leonidas Oliven Yean, emitida em 9 de outubro de 1978 pela Junta Central
Eleitoral, República Dominicana (expediente de anexos ao escrito de contestação da demanda, anexo 1, folha 2); certidão de nascimento do
senhor Rufino Oliven Yean, emitida em 30 de novembro de 1974 pela Junta Central Eleitoral, República Dominicana (expediente de anexos ao
escrito de contestação à demanda, anexo 2, folha 4), e certidão de nascimento do senhor Julio Oliven Yean, emitida em 9 de outubro de 1978
pela Junta Central Eleitoral, República Dominicana (expediente de anexos ao escrito de contestação à demanda, anexo 3, folha 6).
41. Cf. extrato da certidão de nascimento da criança Violeta Bosico Cofi, emitida em 25 de setembro de 2001 pela Junta Central Eleitoral,
Cartório do Estado Civil da Primeira Circunscrição do Distrito Nacional da República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo
14, tomo IV, folha 2104); certidão de registro de nascimento da criança Violeta Bosico Cofi, emitida em 25 de setembro de 2001 pelo Cartório
do Estado Civil da Primeira Circunscrição do Distrito Nacional, Santo Domingo, República Dominicana (expediente de anexos à demanda,
anexo 14, tomo IV, folha 2112; expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 15, folha 91, e expediente de anexos à
contestação da demanda, anexo 35, folha 105), e declaração de nascimento de Violeta Bosico Cofi, emitida em 3 de março de 1997 pelo
Segundo Prefeito do Batey Las Charcas, Prefeitura Pedánea, Seção Juan Sánchez, Sabana Grande de Boyá, República Dominicana (expediente
de anexos à demanda, anexo 3, folha 94; expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 8, folha 49, e expediente de anexos
à contestação da demanda, anexo 24, folha 55).
42. Cf. extrato da certidão de nascimento da criança Violeta Bosico Cofi, emitida em 25 de setembro de 2001 pela Junta Central Eleitoral,
Cartório do Estado Civil da Primeira Circunscrição do Distrito Nacional da República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo 14,
tomo IV, folha 2104); certidão de nascimento da senhora Tiramen Bosico Cofi, emitida em 27 de outubro de 1956 pelo Cartório do Estado Civil
de Sabana Grande de Boyá, República Dominicana (expediente de anexos ao escrito de contestação da demanda, anexo 28, folha 69); Cédula
de Identidade e Eleitoral da senhora Tiramen Bosico Cofi, emitida pela Junta Central Eleitoral, República Dominicana (expediente de anexos à
demanda, anexo 3, folha 95), e Cédula de Identidade e Eleitoral número 090-0013606-0 da senhora Tiramen Bosico Cofi, emitida pela Junta
Central Eleitoral, República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo 9, folhas 620 e 621).
43. Cf. declaração adicional da criança Violeta Bosico Cofi, prestada em 31 de julho de 2001 à senhora Hillary Ronen no Batey Palavé, Santo
Domingo, República Dominicana (expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 27, folhas 393 a 396), e declaração da
senhora Tiramen Bosico Cofi, prestada em 11 de julho de 1999 à senhora Katherine A. Fleet, em Palavé, Manoguayabo, República Dominicana
(expediente de anexos à demanda, anexo 4, folhas 376 a 387; expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 4, folhas 28 a
39, e expediente de anexos ao escrito de contestação da demanda, anexo 25, folhas 57 a 60).
44. Cf. extrato da certidão de nascimento da senhora Tiramen Bosico Cofi, emitida em 10 de setembro de 2001 pelo Cartório do Estado Civil
de Sabana Grande de Boyá, República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo 9, folha 622, e expediente de anexos ao escrito
de alegações finais do Estado do Estado, anexo 13, folha 3873), e certidão de nascimento da senhora Tiramen Bosico Cofi, emitida em 27
de outubro de 1956 pelo Cartório do Estado Civil de Sabana Grande de Boyá, República Dominicana (expediente de anexos ao escrito de
contestação da demanda, anexo 28, folha 69).
45. Cf. declaração prestada pela criança Violeta Bosico Cofi, autenticada em 2 de fevereiro de 2005 pelo licenciado Marcelino da Cruz Nuñez
(expediente de exceções preliminares e eventuais mérito e reparações, folhas 892 a 893bis, e expediente de anexos ao escrito de alegações
finais do Estado, anexo 33, folhas 3944 e 3945); declaração da criança Violeta Bosico Cofi, prestada em 8 de agosto de 1999 à senhora
Katherine A. Fleet, no Batey Palavé, Manoguayabo, República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo 6, folhas 446 a 457, e
expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 24, folhas 370 a 381); declaração adicional da criança Violeta Bosico Cofi,
prestada em 31 de julho de 2001 à senhora Hillary Ronen no Batey Palavé, Santo Domingo, República Dominicana (expediente de anexos
ao escrito de petições e argumentos, anexo 27, folhas 393 a 396); declaração prestada pela senhora Teresa Tucent Mena, autenticada em 2
de fevereiro de 2005 pelo licenciado Marcelino da Cruz Nuñez (expediente de exceções preliminares e eventuais mérito e reparações, tomo
III, folhas 899 a 900); declaração da senhora Teresa Tucent Mena, prestada em 8 de agosto de 1999 à senhora Katherine A. Fleet, em Palavé,
Manoguayabo, República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo 4, folhas 358 a 367; expediente de anexos ao escrito de petições
e argumentos, anexo 25, folhas 382 a 388); declaração da senhora Tiramen Bosico Cofi, prestada em 11 de julho de 1999 à senhora Katherine
94
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
109.9 As crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico, em razão de sua ascendência haitiana, formam parte de um grupo
social vulnerável na República Dominicana.46
O Pedido de registro tardio de nascimento no registro civil realizado pelas crianças Dilcia Yean e
Violeta Bosico
109.10. Os haitianos e dominicanos de ascendência haitiana, em sua maioria, recorrem ao procedimento de registro
tardio de nascimento para registrar seus filhos nascidos na República Dominicana. As mães costumam dar
à luz a seus filhos em suas casas, em vista da dificuldade que têm para se locomover desde os bateyes
até os hospitais das cidades, da escassez de recursos econômicos e do temor de apresentar-se perante
os funcionários de um hospital, da polícia ou da prefeitura “pedánea” e serem deportados. A República
Dominicana realizou deportações de haitianos e de dominicanos de ascendência haitiana independentemente
do status migratório dessas pessoas no país. Nestes casos as decisões foram tomadas sem procedimento
de averiguação prévio. Em alguns casos, as deportações alcançaram dezenas de milhares de pessoas, como
ocorreu nos anos noventa.47
109.11. Na República Dominicana houve casos em que as autoridades públicas dificultaram a obtenção das certidões
de nascimento das crianças dominicanas de ascendência haitiana. Como consequência, as referidas crianças
tiveram dificuldade para obter a cédula de identidade e eleitoral, bem como o passaporte dominicano; estudar
em escolas públicas, e ter acesso a serviços de saúde e de assistência social.48
109.12. Na República Dominicana, está estabelecido constitucionalmente que são dominicanas todas as pessoas que
nascem em seu território. O Estado adota o princípio do ius soli para conceder a nacionalidade dominicana,
com exceção dos filhos dos estrangeiros residentes no país em representação diplomática ou dos filhos de
pessoas que estão em trânsito no país.49
A. Fleet, em Palavé, Manoguayabo, República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo 4, folhas 376 a 387; expediente de anexos
ao escrito de petições e argumentos, anexo 4, folhas 28 a 39, e expediente de anexos ao escrito de contestação da demanda, anexo 25, folhas
57 a 60); certidão emitida em 6 de novembro de 2003 pela senhora Amada Rodríguez Guante, diretora da Escola Básica Palavé (expediente de
anexos ao escrito de alegações finais do Estado, anexo 28, folha 3934), e Diploma de Conclusão da Educação Básica de Violeta Bosico, emitido
pelo Conselho Nacional de Educação em 1 de julho de 2004, República Dominicana (expediente de anexos ao escrito de alegações finais do
Estado, anexo 30, folha 3938). Em relação ao nome da senhora Teresa Tucent Mena, irmã da criança Violeta Bosico, se toma nota de que seu
sobrenome é “Tucent Mena” e não “Tuseimena”, de acordo com o indicado por esta senhora em sua declaração prestada em 2 de fevereiro de
2005 e autenticada pelo licenciado Marcelino da Cruz Nuñez. Para efeitos desta sentença se utilizará o sobrenome “Tucent Mena”, pese que as
partes, ou em diversos documentos, indiquem o sobrenome como “Tuseimena”, no entendimento de que se trata da mesma pessoa.
46. Cf. National Coalition for Haitian Rights, Beyond de Bateyes – Haitian Immigrants in the Dominican Republic, 1996 (expediente de anexos à
demanda, anexo 9, folhas 809 a 875); Human Rights Watch, “Pessoas Ilegais”–Haitianos e Dominicanos-haitianos na República Dominicana.
Nova York: 2002 (expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 19, folhas 310 a 320); Nações Unidas, Comitê dos
Direitos da Criança, Exame dos relatórios apresentados pelos Estados Partes de acordo com o Artigo 44 da Convenção. Observações Finais do
Comitê dos Direitos da Criança. República Dominicana. UN Doc. CRC/C/15/Add.150, de 21 de fevereiro de 2001, par. 22; Bridget Wooding e
Richard Moseley-Williams, Imigrantes haitianos e dominicanos de ascendência haitiana na República Dominicana. Santo Domingo, República
Dominicana: Cooperação Internacional para o Desenvolvimento e o Serviço Jesuíta de Refugiados e Migrantes, 2004, págs. 1 a 103; World
Bank, Dominican Republic Poverty Assessment: Poverty in a High-Growth Economy (1986 – 2000), volume I, 2001, pág. 50 a 53, e Marco
Scuriatti, Background Papers – A review of the Haitian Immigrant Population in the Dominican Republic; In: World Bank, Dominican Republic
Poverty Assessment: Poverty in a High-Growth Economy (1986 – 2000), volume II, 2001, págs. 84 e 85.
47. Cf. declaração prestada pelo senhor Samuel Martínez, autenticada em 14 de fevereiro de 2005 pelo notario público Richard J. Wolak
(expediente de exceções preliminares e eventuais mérito, reparações e custas, tomo III, folhas 908 a 933 e tomo IV, 976 a 1002); National
Coalition for Haitian Rights, Beyond de Bateyes – Haitian Immigrants in the Dominican Republic, 1996 (expediente de anexos à demanda,
anexo 9, folhas 809 a 875); Glenn R. Smucker and Gerald F. Murray, The Uses of Children: A Study of Trafficking in Haitian Children, Port-auPrince, Haiti: USAID/Haiti Mission, 2004, págs. 124 a 125 (expediente de anexos ao escrito do Estado de 10 de janeiro de 2005, folhas 3060 a
3223); Human Rights Watch, “Pessoas Ilegais”–Haitianos e Dominicanos-haitianos na República Dominicana. Nova York: 2002 (expediente de
anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 19, folhas 310 a 320); Bridget Wooding e Richard Moseley-Williams, Imigrantes haitianos
e dominicanos de ascendência haitiana na República Dominicana. Santo Domingo, República Dominicana: Cooperação Internacional para o
Desenvolvimento e o Serviço Jesuíta de Refugiados e Migrantes, 2004, págs. 1 a 103; Nações Unidas, Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento, Escritório de Desenvolvimento Humano da República Dominicana, Relatório Nacional de Desenvolvimento Humano 2005
– Em direção a uma inserção mundial inclusiva e renovada, pág. 128; Organização dos Estados Americanos, Relatório Anual da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos 1991, OEA/Ser.L/V/II.81, doc. 6 rev. 1, de 14 de fevereiro de 1992, e Organização dos Estados Americanos,
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos na República Dominicana, OEA/Ser.L/V/
II.104, doc. 49 rev. 1, de 7 de outubro de 1999.
48. Cf. entrevista do senhor Manuel Ramón Morel Cerda, Presidente da Junta Central Eleitoral, realizada pela senhora Katherine A. Fleet
em 8 de fevereiro de 2001 (expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 48, folhas 498 a 506); National Coalition for
Haitian Rights, Beyond de Bateyes – Haitian Immigrants in the Dominican Republic, 1996 (expediente de anexos à demanda, anexo 9, folhas
809 a 875); Nações Unidas, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Escritório de Desenvolvimento Humano da República
Dominicana, Relatório Nacional de Desenvolvimento Humano 2005 – Em direção a uma inserção mundial inclusiva e renovada, pág. 130);
Nações Unidas, Comitê dos Direitos da Criança,Exame dos relatórios apresentados pelos Estados Partes de acordo com o Artigo 44 da
Convenção. Observações Finais do Comitê dos Direitos da Criança. República Dominicana. UN Doc. CRC/C/15/Add.150, de 21 de fevereiro de
2001. pars. 22 e 26, e Bridget Wooding e Richard Moseley-Williams, Imigrantes haitianos e dominicanos de ascendência haitiana na República
Dominicana. Santo Domingo, República Dominicana: Cooperação Internacional para o Desenvolvimento e o Serviço Jesuíta de Refugiados e
Migrantes, 2004, págs. 1 a 103.
49. Cf. Constituição da República Dominicana promulgada em 14 de agosto de 1994, artigo 11 (expediente de anexos ao escrito de petições e
argumentos, anexo 20, folhas 332 a 360).
95
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
109.13. Para o registro tardio de nascimento na República Dominicana devem ser cumpridos uma série de requisitos
que variam de acordo com a idade dos solicitantes. Há diferentes requisitos para as crianças menores de 13
anos de idade e para as crianças maiores de 13 anos de idade, os quais se encontram indicados em listas
emitidas pela Junta Central Eleitoral ou por qualquer uma das diversas repartições do Cartório do Registro
Civil. Os requisitos podem variar de acordo com a localidade do Cartório ou do oficial que os aplica (pars.
109.18, 109.20 a 109.28 infra).50
109.14. Em 5 de março de 1997, quando Dilcia Yean tinha 10 meses de idade e Violeta Bosico tinha 12 anos de idade,
compareceram perante o Departamento de Registro Civil de Sabana Grande de Boyá o senhor Genaro Rincón
Miesse, que naquela época era advogado do MUDHA, a senhora Tiramen Bosico Cofi, que acompanhava a sua
filha Violeta Bosico,51 e a senhora Martha Remigio, prima da mãe de Dilcia Yean e que também acompanhava
esta criança,52 com a finalidade de requerer o registro tardio de nascimento de Dilcia Yean e Violeta Bosico,
entre outras crianças.
109.15. Os documentos apresentados pelos solicitantes no Departamento de Registro Civil de Sabana Grande de
Boyá foram a cédula de identidade e eleitoral das mães das crianças.53 No caso de Dilcia foi apresentada
também a declaração de seu nascimento emitida pelo “posto de saúde” de Sabana Grande de Boyá e, no
caso de Violeta a declaração de seu nascimento emitida pelo Prefeito “pedáneo” do Batey Las Charcas de
Sabana Grande de Boyá.54
109.16. No ano de 1997, os documentos que as crianças menores de 13 anos deviam apresentar para solicitar um
registro tardio de nascimento eram a constância (ou declaração) de nascimento; a cédula de identificação
50. Cf. escrito de observações do Estado de 5 de junho de 2003 ao relatório nº 30/03, emitido em 6 de março de 2003 pela Comissão
Interamericana (expediente de anexo à demanda, anexo 14, tomEm 7, folhas 2995 a 3014); testemunho do senhor Genaro Rincón Miesse,
prestado perante a Corte Interamericana durante a audiência pública celebrada em 14 de março de 2005; testemunho da senhora Thelma
Bienvenida Reyes, prestado perante a Corte Interamericana durante a audiência pública celebrada em 14 de março de 2005.
51. Cf. declaração prestada pela senhora Tiramen Bosico Cofi, autenticada em 2 de fevereiro de 2005 pelo licenciado Marcelino da Cruz Nuñez
(expediente de exceções preliminares e eventuais mérito e reparações, tomo III, folhas 895 a 897bis); declaração da senhora Tiramen Bosico
Cofi, prestada em 11 de julho de 1999 à senhora Katherine A. Fleet, em Palavé, Manoguayabo, República Dominicana (expediente de anexos
à demanda, anexo 9, folhas 612 a 619; expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 4, folhas 28 a 39, e expediente
de anexos à contestação da demanda, anexo 25, folhas 57 e 60); testemunho do senhor Genaro Rincón Miesse, prestado perante a Corte
Interamericana na audiência pública celebrada em 14 de março de 2005, e declaração do senhor Genaro Rincón Miesse, prestada em 9 de
agosto de 1999 à senhora Katherine A. Fleet, em Gazcue, Santo Domingo, República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo 4,
folhas 358 a 367; expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 2, folhas 16 a 25, e expediente de anexos ao escrito de
contestação da demanda, anexo 34, folhas 94 a 103).
52. Cf. declaração da senhora Leonidas Oliven Yean, prestada em 25 de junho ou 9 de julho de 1999 à senhora Katherine A. Fleet, no Batey
Enriquillo, Sabana Grande de Boyá (expediente de anexos à demanda, anexo 14, tomo III, folhas 1752 a 1756; expediente de anexos ao escrito
de petições e argumentos, anexo 34, folha 411 a 415, e expediente de anexos ao escrito de contestação da demanda, anexo 15, folhas 31 e
32); declaração prestada pela senhora Leonidas Oliven Yean, autenticada em 2 de fevereiro de 2005 pelo licenciado Marcelino da Cruz Nuñez
(expediente de exceções preliminares e eventuais mérito e reparações, tomo III, folhas 905 e 906), e declaração do senhor Genaro Rincón
Miesse, prestada em 9 de agosto de 1999 à senhora Katherine A. Fleet, em Gazcue, Santo Domingo, República Dominicana (expediente de
anexos à demanda, anexo 4, folhas 358 a 367; expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 2, folhas 16 a 25, e expediente
de anexos ao escrito de contestação da demanda, anexo 34, folhas 94 a 103).
53. Cf. Cédula de Identidade e Eleitoral da senhora Tiramen Bosico Cofi, emitida pela Junta Central Eleitoral, República Dominicana (expediente
de anexos à demanda, anexo 3, folha 95); cédula de Identidade e Eleitoral, número 090-0002085-0, da senhora Leonidas Oliven Yean, emitida
em 29 de janeiro de 1994 pela Junta Central Eleitoral, República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo 3, folhas 102 e
103); escrito do Estado intitulado “resposta […] da República Dominicana ao documento ‘memorando de apoio à audiência sobre mérito’
apresentado pelos peticionários […] na ocasião da audiência celebrada em 15 de novembro de 2001 [perante a Comissão Interamericana]”
(expediente de anexos à demanda, anexo 14, tomo VI, folhas 2547 a 2561); testemunho do senhor Genaro Rincón Miesse, prestado perante a
Corte Interamericana durante a audiência pública celebrada em 14 de março de 2005; declaração da senhora Leonidas Oliven Yean, prestada
em 25 de junho ou 9 de julho de 1999, à senhora Katherine A. Fleet, no Batey Enriquillo, Sabana Grande de Boyá, República Dominicana
(expediente de anexos à demanda, anexo 14, tomo III, folhas 1752 e 1756, e expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos,
anexo 34, folha 411); declaração da senhora Tiramen Bosico Cofi, prestada em 11 de julho de 1999 à senhora Katherine A. Fleet, em Palavé,
Manoguayabo, República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo 9, folhas 612 a 619; expediente de anexos ao escrito de
petições e argumentos, anexo 4, folhas 28 a 39, e expediente de anexos à contestação da demanda, anexo 25, folhas 57 e 60), e declaração
do senhor Genaro Rincón Miesse, prestada em 9 de agosto de 1999 à senhora Katherine A. Fleet, em Gazcue, Santo Domingo, República
Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo 4, folhas 358 a 367; expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo
2, folhas 16 a 25, e expediente de anexos ao escrito de contestação da demanda, anexo 34, folhas 94 a 103).
54. Cf. declaração de nascimento da criança Dilcia Yean, emitida em 5 de março de 1997 pela Secretaria de Estado de Saúde Pública e
Assistência Social, República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo 3, folha 98 e expediente de anexos ao escrito de petições
e argumentos, anexo 7, folha 48, e expediente de anexos à contestação da demanda, anexo 19, folha 45); declaração de nascimento de Violeta
Bosico Cofi, emitida em 3 de março de 1997 pelo Segundo Prefeito do Batey Las Charcas, Prefeitura Pedánea, Seção Juan Sánchez, Sabana
Grande de Boyá, República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo 3, folha 94); expediente de anexos ao escrito de petições e
argumentos, anexo 8, folha 49 e expediente de anexos à contestação da demanda, anexo 24, folha 55); escrito do Estado intitulado “resposta
[…] da República Dominicana ao documento ‘memorando de apoio à audiência sobre méritos’, apresentado pelos peticionários […] por
ocasião da audiência celebrada em 15 de novembro de 2001 [perante a Comissão Interamericana]” (expediente de anexos à demanda, anexo
14, tomo VI, folhas 2547 a 2555); testemunho do senhor Genaro Rincón Miesse prestado perante a Corte Interamericana durante a audiência
pública celebrada em 14 de março de 2005, e declaração do senhor Genaro Rincón Miesse, prestada em 9 de agosto de 1999 à senhora
Katherine A. Fleet, em Gazcue, Santo Domingo, República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo 4, folhas 358 a 367; expediente
de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 2, folhas 16 a 25, e expediente de anexos ao escrito de contestação da demanda, anexo
34, folhas 94 a 103).
96
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
dos pais e, se estes fossem casados, a certidão de casamento.55
109.17. No Departamento de Registro Civil de Sabana Grande de Boyá, a oficial civil encarregada dos registros de
nascimento, senhora Thelma Bienvenida Reyes, informou ao senhor Genaro Rincón Miesse que não era
possível registrar as crianças, porque os solicitantes não contavam com todos os documentos requeridos
pela Junta Central Eleitoral para este procedimento.56
109.18. Durante o trâmite do caso perante a Comissão, o Estado apresentou uma comunicação assinada pela senhora
Thelma Bienvenida Reyes, e anexou a seguinte lista emitida pela Junta Central Eleitoral, na qual constam os
11 requisitos requeridos para o registro tardio de nascimento:57
1. Declaração do Prefeito (se nasceu em zona rural) ou certidão da clínica ou hospital onde nasceu;
2. Certidão ou declaração da Igreja ou Paróquia se foi ou não batizado;
3. Certidão Escolar se estiver estudando;
4. Certidão de todos os cartórios do Registro Civil correspondentes ao lugar onde nasceu;
5. Cópias das Cédulas de Identidade e Eleitoral dos pais (no caso de os pais terem falecido, cópias das
certidões de óbito);
6. Se os pais forem casados, cópia da certidão de casamento;
7. Declaração juramentada (Form. OC-25) assinada por três testemunhas, maiores de 50 anos com
Cédula de Identidade e Eleitoral (cédula nova) e que saibam assinar;
8. Cópias das Cédulas de Identidade e Eleitoral das testemunhas.
9. Comunicação dirigida ao Presidente da JCE [s]olicitando o Registro Tardio de Nascimento.
10. Carta dirigida ao Presidente da Junta Central Eleitoral solicitando certidão se é portador de carteira
de identidade ou não; se for maior de 20 anos também certidão no Prédio O Huacalito: Distrito
Nacional […] se é ou não portador de carteira de identidade.
11. Duas (2) fotografias […].
109.19. Em 11 de setembro de 1997, o MUDHA e o Comitê Dominicano de Direitos Humanos (CDH), por meio
de seus advogados Genaro Rincón Miesse e Marcelino da Cruz Nuñez, interpuseram uma “demanda com
pedido de autorização e registros tardio[s]” perante o Promotor Público do Juízo de Primeira Instância do
Distrito Judicial da Província de Monte Plata, em favor de um grupo determinado de crianças, entre as quais
se encontravam as crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico.58
55. Cf. testemunho do senhor Genaro Rincón Miesse, prestado perante a Corte Interamericana durante a audiência pública celebrada em 14 de
março de 2005; escrito de alegações finais apresentado pelo Estado em 14 de abril de 2005 (expediente de exceções preliminares e eventuais
mérito e reparações, tomo V, folha 1224), e resolução nº 5/88, emitida pela Junta Central Eleitoral em 8 de junho de 1988 (expediente de
exceções preliminares e eventuais mérito e reparações, tomo VI, folha 1557).
56. Cf. escrito do Estado intitulado “resposta […] da República Dominicana ao documento ‘memorando de apoio à audiência sobre méritos’,
apresentado pelos peticionários […] por ocasião da audiência celebrada em 15 de novembro de 2001 [perante a Comissão Interamericana]”
(expediente de anexos à demanda, anexo 14, tomo VI, folhas 2547 a 2561); declaração do senhor Genaro Rincón Miesse, prestada em 9 de
agosto de 1999 à senhora Katherine A. Fleet, em Gazcue, Santo Domingo, República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo 4,
folhas 358 a 367; expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 2, folhas 16 a 25, e expediente de anexos ao escrito de
contestação da demanda, anexo 34, folhas 94 a 103), e declaração da senhora Leonidas Oliven Yean, prestada em 25 de junho ou 9 de julho de
1999 à senhora Katherine A. Fleet, no Batey Enriquillo, Sabana Grande de Boyá (expediente de anexos à demanda, anexo 14, tomo III, folhas
1752 a 1756; expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 34, folhas 411 a 415, e expediente de anexos ao escrito de
contestação da demanda, anexo 15, folhas 31 e 32).
57. Cf. escrito do Estado intitulado “resposta […] da República Dominicana ao documento ‘memorando de apoio à audiência sobre méritos’,
apresentado pelos peticionários […] por ocasião da audiência celebrada em 15 de novembro de 2001 [perante a Comissão Interamericana]”
(expediente de anexos à demanda, anexo 14, tomo VI, folhas 2547 a 2561); comunicação da Missão Permanente da República Dominicana
perante a Organização dos Estados Americanos dirigida à Comissão Interamericana em 30 de setembro de 1999 (expediente de anexos à
demanda anexo 14, tomo II, folhas 1411 a 1418, e expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 13, folhas 82 a 89), ofício
emitido em 20 de setembro de 1999 pela Oficial do Estado Civil, senhora Thelma Bienvenida Reyes, dirigido ao Encarregado de Inspetoria,
senhor Luis Felipe Gomez, anexado à comunicação do Estado dirigida à Comissão Interamericana em 30 de setembro de 1999 (expediente de
anexos à demanda anexo 14, tomo II, folha 1417, e expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 13, folha 88), e lista de
“requisitos para o registro tardio de nascimentos” emitida pela Junta Central Eleitoral, da República Dominicana, anexada à comunicação do
Estado dirigida à Comissão Interamericana em 30 de setembro de 1999 (expediente de anexos à demanda anexo 14, tomo II, folha 1418, e
expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 13, folha 89).
58. Cf. “protocolo da demanda com pedido de autorização de registros tardios”, interposto pelo Movimiento de Mujeres Domínico-Haitianas
(MUDHA) e o Comitê Dominicano dos Direitos Humanos (CDH), apresentada perante o Magistrado Promotor do Juízo de Primeira Instância do
Distrito Judicial da Província de Monte Plata, em 11 de setembro de 1997 (expediente de anexos à demanda, anexo 3, folhas 90 a 93); cédula
de Identidade e Eleitoral da senhora Tiramen Bosico Cofi, emitida pela Junta Central Eleitoral, República Dominicana (expediente de anexos à
demanda, anexo 3, folha 95); cédula de Identidade e Eleitoral, número 090-0002085-0, da senhora Leonidas Oliven Yean, emitida em 29 de
janeiro de 1994 pela Junta Central Eleitoral, República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo 3, folhas 102 e 103); declaração
de nascimento de Violeta Bosico Cofi, emitida em 3 de março de 1997 pelo Segundo Prefeito do Batey Las Charcas, Prefeitura Pedánea, Seção
Juan Sánchez, Sabana Grande de Boyá (expediente de anexos à demanda, anexo 3, folha 94), e declaração de nascimento da criança Dilcia
Yean, emitida em 5 de março de 1997 pela Secretaria de Estado de Saúde Pública e Assistência Social, República Dominicana (expediente de
97
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
109.20. Em 20 de julho de 1998, o Promotor Público do Distrito Judicial de Monte Plata, senhor Julio César Castro
Castro, decidiu “negar[…] o […] pedido de registro tardio de nascimento, por não estar amparado na
documentação e procedimento que rege a matéria, [e] [d]irigir os interessados ao oficial do Estado Civil de
Sabana Grande de Boyá, a fim de registrar o expediente conforme a norma ordinária”, com fundamento em
que para proceder a um registro tardio de nascimento é necessário cumprir os 12 requisitos seguintes:59
[…]
1. Declaração de nascimento (hospital, clínica, parteira).
2. Declaração da paróquia se foi ou não batizado.
3. Certidão escolar dos estudos que realizou ou realiza, até que série chegou.
4. Certidão dos cartórios do Registro Civil correspondentes ao lugar onde nasceu.
5. Cópia da cédula de identidade e eleitoral dos pais.
6. Em caso de ter falecido, certidão de óbito dos pai.
7. Declaração juramentada assinada por três testemunhas, maiores de 50 anos com cédula de identidade.
8. Cópia da cédula de identidade e eleitoral das testemunhas.
9. Comunicação dirigida ao Presidente [da] JCE, solicitando o registro tardio de nascimento.
10. Se tiver 20 anos, certidão da cédula anterior, se a retirou ou não.
11. Duas fotografias.
12. Ato de identificação perante sete testemunhas[.]
109.21. Mediante comunicação de 15 de novembro de 2001 dirigida à Comissão Interamericana, os representantes
anexaram um documento que contém sete requisitos necessários para “registros tardios e ratificação por
sentença”, exigidos pelo “Departamento de Estado Civil da 2ª Circ., [Distrito Nacional]”, para crianças
maiores de 13 anos, e indica três requisitos para as crianças menores de 13 anos, a saber:60
1. Declaração do hospital ou clínica onde nasceu.
2. Certidão expedida pela J.C.E. sobre a obtenção da carteira de identidade ou não da pessoa. (Isto é
para os maiores de 16 anos).
3. Cédulas dos pais (se for legítimo ou reconhecido. Caso contrário, da mãe apenas. Se não possuem
cédula, devem obter um formulário CIE, na J.C.E.). Se um dos pais for menor de 16 anos deve
apresentar sua certidão de nascimento.
4. Certidão de casamento dos pais (se for filho legítimo).
5. Certidão de não declaração expedida por todos os cartórios do Cartório do Registro Civil do Distrito
Nacional:
1ª: Circ.: Rua José Gabriel García esq. O Número, Cidade Nova
2ª: Rua Barahona esq. Abreu
3ª: Pedro Livio Cedeño próximo a Av. Duarte
4ª: Rua 17 nº 3, Ens. Ozama
5ª: Via Mella, em frente ao Parque
6ª: Rua Ramón Cáceres, quase esq. Pedro Livio Cedeño
7ª: La Victoria
8ª: Guerra
9ª: Boca Chica
anexos à demanda, anexo 3, folha 98 e expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 7, folha 48, e expediente de anexos
à contestação da demanda, anexo 19, folha 45).
59. Cf. decisão de denegação do pedido de registro tardio, emitida em 20 de julho de 1998 pelo Procurador Promotor do Distrito Judicial de
Monte Plata, senhor Julio César Castro Castro, em Monte Plata, República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo 14, tomo I,
folhas 1030 e 1031, e expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 3, folhas 26 e 27).
60. Cf. lista de “requisitos para registros tardios e ratificação por sentença”, emitida pelo Cartório do Estado Civil da Segunda Circunscrição,
Distrito Nacional, República Dominicana, anexada à comunicação que os representantes enviaram à Comissão Interamericana em 15
de novembro de 2001 (expediente de anexos à demanda anexo 14, tomo V, folha 2262, e expediente de anexos ao escrito de petições e
argumentos, anexo 6, folha 47).
98
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
6. Certidão de batismo. Certidão da escola ou cópia do boletim.
7. Declaração juramentada assinada por três testemunhas maiores de 50 anos no formulário DC-25,
fornecido peo Departamento de Registro Civil.
NOTA: Quando se tratar de menores de 13 anos, basta apresentar os documentos indicados nos
números 1, 3, e 4 (este último se o filho for legítimo).
Quando a pessoa já está registrada, o documento nº 1 pode ser substituído por ato de identificação, em
presença de notário, com sete testemunhas, registrado.
[…]
DEPARTAMENTO DE ESTADO CIVIL da 2ª CIRC., D.N.
Outras listas de requisitos para o registro tardio de nascimento no registro civil da República
Dominicana
109.22. A Resolução nº 5/88, emitida em 8 de junho de 1988 pela Junta Central Eleitoral, estabelece a seguinte lista
de seis requisitos para o registro tardio de nascimento de uma pessoa maior de 13 anos de idade:61
PRIMEIRO: Decide, a fim de estabelecer a veracidade de todo registro tardio de nascimento de uma
pessoa maior de 13 anos de idade, que a recepção do mesmo deverá ser precedida, além dos requisitos
exigidos pela lei, da apresentação ao Oficial do Estado Civil, por parte do declarante, dos seguintes
documentos:
1. Declaração do hospital ou clínica onde tenha ocorrido o nascimento, constando o sexo da criança,
a data de seu nascimento e o nome da mãe;
2. Certidão de batismo, expedida pela Paróquia do lugar de nascimento ou da residência dos pais da
pessoa cujo nascimento se deseja registrar; em caso de que a pessoa tenha uma religião não católica,
a certidão deverá ser expedida pela igreja do culto religioso que pratique;
3. Cédula de identificação da pessoa cujo nascimento se deseja declarar, se a mesma a recebeu
previamente;
4. Certidão da escola, pública ou privada, dando constando o último grau de estudo escolar da pessoa
cujo nascimento se deseja declarar;
5. Certidão do Cartório do Estado Civil da jurisdição onde ocorreu o nascimento, fazendo constar que
naquela dependência não está registrado o nascimento da pessoa que se deseja registrar tardiamente,
quando se pretenda realizar o trâmite fora do lugar onde ocorreu o nascimento, e
6. Declaração juramentada de três testemunhas com ao menos 50 anos de idade, que prestem
testemunho sobre a veracidade das afirmações fornecidas pela pessoa declarante.
SEGUNDO: A pessoa que se propõe a fazer o registro tardio de nascimento deve ter ao menos 18 anos
a mais que a pessoa cujo nascimento será registrado, exceto se o declarante for o pai ou a mãe. A
verificação deste requisito se comprovará com a informação contida na cédula de identificação pessoal
do declarante.
TERCEIRO: Com exceção da cédula de identificação da pessoa cujo nascimento seja registrado
tardiamente, os demais documentos indicados na presente Resolução, como prova da veracidade da
declaração, deverão ser arquivados pelo Oficial do Estado Civil atuante.
109.23. Na Resolução nº 5/99, emitida em 4 de agosto de 1999 pela Junta Central Eleitoral, relativa aos registros
tardios de nascimentos inscritos nos registros correspondentes desde o ano de 1965 até o ano de 1992, e
que não tenham sido ratificadas por sentença do Tribunal competente, se estabelece que os documentos a
serem apresentados pelos interessados são:62
1. Cópia das cédulas de identidade dos pais (ou dos que figurem na certidão), ou uma certidão das
mesmas ou de outro documento a partir do qual se possa estabelecer a identidade dessas pessoas;
2. [a] declaração juramentada que se encontra no formulário OC-25, a qual será assinada perante
o Oficial do Estado Civil, tanto pela pessoa interessada ou seu representante legal como pelas
testemunhas a que a mesma se refere, anexando cópia das respectivas cédulas destes últimos, e
3. [q]ualquer outro documento que o Oficial do Estado Civil considere pertinente.
61. Cf. resolução nº 5/88, emitida pela Junta Central Eleitoral em 8 de junho de 1988 (expediente de exceções preliminares, e eventuais mérito
e reparações, tomo VI, folha 1557).
62. Cf. resolução da Junta Central Eleitoral nº 5/99, de 4 de agosto de 1999 (expediente de anexos ao escrito de alegações finais do Estado,
anexo 19, folhas 3886 a 3890).
99
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
109.24. Em 3 de setembro de 2001, a Junta Central Eleitoral e a Secretaria de Estado de Educação assinaram um
Acordo de Colaboração mediante o qual a Junta Central Eleitoral realizaria operações nos centros escolares
que fossem dependentes da Secretaria de Educação “com a finalidade de facilitar os processos de registros
tardios de nascimento a todas as crianças dominicanas menores de 13 anos de idade que ingressem n[os]
grupos escolares sem o registro de nascimento”. Neste acordo foi estabelecido que seriam necessários os
seguintes cinco requisitos para o registro tardio de nascimento:63
1. Ser dominicano menor de 13 anos de idade.
2. Duas fotos de tamanho 2x2 do menor, atualizadas.
3. Declaração ou comprovante do nascimento da clínica ou hospital onde tenha nascido o menor, ou
em sua falta, uma declaração do Prefeito ‘pedáneo’ devidamente legalizada pela Prefeitura do lugar
de nascimento.
4. Fotocópias das Cédulas de Identidade ou Eleitoral dos pais, ou da mãe se for filho natural.
5. Certidão onde conste se foi batizado ou não.
109.25. Em 5 de junho de 2003, em seu escrito de observações ao Relatório de Mérito nº 30/03, emitido pela
Comissão Interamericana durante o trâmite do presente caso, o Estado assinalou que os requisitos para o
registro tardio de nascimento são:64
Quando se tratar de crianças até a idade de 12 anos:
1. Declaração de nascimento, constando o sexo da criança, a data de nascimento e o nome da mãe.
2. Identidade da mãe, se se trata de um filho natural e do pai, se este comparecer ao registro, e seu
reconhecimento por escrito.
3. Certidão de casamento dos pais se forem casados.
4. Comprovante de escolaridade, no caso de frequentar algum centro educativo.
Quando se tratar de registros a partir dos 13 anos:
1. Declaração de nascimento, constando o sexo da criança, a data de nascimento e o nome da mãe.
2. Certidão da escola pública ou privada, constando o último grau de estudo da pessoa cujo nascimento
se deseja registrar e sua condição, afirmando que não se apresentou até o momento ao registro de
nascimento.
3. Identidade da mãe, se se trata de um filho natural e do pai, se este comparecer ao registro, e seu
reconhecimento por escrito.
4. Certidão de casamento dos pais se forem casados.
5. Certidão de batismo expedida pela paróquia do lugar de nascimento; no caso de que professe alguma
religião não católica, a certidão será expedida pela igreja do culto que pratique.
6. Certidão de portador de carteira de identidade ou não da pessoa, cujo nascimento se deseja registrar.
7. Certidão do Cartório do Estado Civil da jurisdição onde ocorreu o nascimento, fazendo constar que
naquele cartório não está registrado o nascimento da pessoa que se deseja registrar tardiamente,
quando se pretenda fazê-lo fora do lugar onde ocorreu o nascimento, em caso de que exista mais de
um cartório do Registro Civil no lugar de nascimento, cada uma deles estará obrigado a expedir uma
certidão.
8. Declaração juramentada de três (3) testemunhas com ao menos cinquenta (50) anos de idade que
prestem testemunho sobre o nascimento. Para estes fins se utiliza o formulário OC-25, que deve ser
de uso exclusivo e zeloso do Oficial do Estado Civil.
109.26. Por meio do ofício de 3 de julho de 2003, dirigido pelo Estado à Comissão Interamericana, aquele informou
sobre as medidas adotadas pela República Dominicana para atender as recomendações incluídas no relatório
nº 30/03 da Comissão, e assinalou que os requisitos para o registro tardio de nascimento são os seguintes:65
63. Cf. acordo de colaboração assinado entre a Junta Central Eleitoral e a Secretaria de Estado de Educação em 3 de setembro de 2001
(expediente de anexos à demanda, anexo 14, tomo IV, folhas 2114 e 2115).
64. Cf. escrito de observações do Estado de 5 de junho de 2003 ao relatório nº 30/03 emitido em 6 de março de 2003 pela Comissão
Interamericana (expediente de anexo à demanda, anexo 14, tomEm 7, folhas 2995 a 3014).
65. Cf. ofício sobre as medidas adotadas em relação às recomendações incluídas no relatório nº 30/03 da Comissão Interamericana, dirigido à
Comissão em 3 de julho de 2003 pela Embaixadora Representante Permanente da República Dominicana perante a Organização dos Estados
Americanos, senhora Sofía Leonor Sánchez Baret (expediente de anexos à demanda, anexo 14, tomo VII, folhas 3038 a 3039).
100
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
1. Ser dominicano menor de 13 anos de idade.
2. Duas fotos tamanho 2x2 do menor, atualizadas.
3. Declaração ou comprovante do nascimento da clínica ou hospital onde tenha nascido o menor, ou
em sua falta, uma declaração do Prefeito ‘pedáneo’ devidamente legalizada pela Prefeitura do lugar
de nascimento.
4. Fotocópias das Cédulas de Identidade ou Eleitoral (ou Passaporte) dos pais, ou da mãe se for filho natural.
5. Certidão em que conste se foi batizado ou não.
109.27. A lista emitida em 17 de novembro de 2003 pela Junta Central Eleitoral, na qual se estabelecem seis requisitos
para o registro tardio de nascimento para pessoas maiores de 16 anos de idade:66
A) Constância de nascimento ou parto do futuro inscrito, expedida pelo médico, clínica ou hospital,
parteira ou Prefeito ‘pedáneo’;
B) Cédulas de Identidade vigentes dos pais do futuro inscrito, no caso de filiação legítima ou reconhecida,
ou da mãe em caso de filiação natural; ou do declarante previsto pela Lei (Art. 43 da Lei 659 sobre
atos do Estado Civil). No caso de que os pais ou um deles tenha falecido, deverá apresentar-se
Certidão de Óbito, expedida pelo Oficial do Estado Civil correspondente.
C) Certidão de casamento de recente expedição dos pais do futuro inscrito, se estes forem casados;
D) Certidão de não inscrição emitida pelo Departamento de Registro Civil do Município ou do Distrito
Nacional onde nasceu a pessoa a ser registrada, a qual se expedirá livre de impostos e de maneira
gratuita;
E) Constância de batismo com apresentação de certidão de nascimento;
F) Duas fotografias do futuro inscrito tamanho 2x2.
109.28. Em 14 de agosto de 2005, durante o trâmite do caso perante a Corte, o Estado enviou uma lista na qual
figuram os seguintes cinco requisitos para o pedido de registro tardio de nascimento para menores de 13
anos de idade:67
1. Ser dominicano menor de 13 anos de idade;
2. Duas fotos tamanho 2x2 do menor, atualizada (sic);
3. Declaração ou constância do parto da clínica ou hospital onde tenha nascido o menor, ou em sua falta,
uma certidão do Prefeito ‘pedáneo’ devidamente legalizada pela Prefeitura do lugar de nascimento;
4. Fotocópias das Cédulas de Identidade e Eleitoral dos pais, ou da mãe se for filho natural;
5. Certidão onde conste se foi batizado ou não.
Sobre a concessão das certidões de nascimento às crianças Yean e Bosico
109.29. Em 25 de março de 1999, quando a República Dominicana reconheceu a competência contenciosa da Corte
Interamericana, as crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico não tinham suas certidões de nascimento nem a
nacionalidade dominicana.68
109.30. Em 8 de setembro de 1999, em razão das medidas cautelares ordenadas pela Comissão Interamericana em
favor das crianças Dilcia e Violeta, o Estado ordenou à Direção Geral de Migração que emitisse, em favor das
supostas vítimas, “certidões temporárias de estadia no país até que fosse conhe[cido] e defin[ido] seu status
migratório na República Dominicana”.69
66. Cf. lista de requisitos para o registro tardio de nascimento de pessoas maiores de 16 anos, emitida em 11 de dezembro de 2003
pela Junta Central Eleitoral, República Dominicana (expediente de documentos apresentados pelos representantes Em 14 de março de
2005, anexo 3, folha 3236).
67. Cf. requisitos para fins de pedido de registro tardio de nascimento para pessoas menores de 13 anos de idade (expediente de anexos ao
escrito de alegações finais do Estado, anexo 2, folha 3752).
68. Cf. escrito do Encarregado de Facilidades da Direção Geral de Migração e do Embaixador Encarregado da Divisão de Estudos Internacionais
da República Dominicana dirigido à Comissão Interamericana em 30 de setembro de 1999 (expediente de anexos à demanda, anexo 14, tomo
II, folhas 1441 a 1444); extrato da certidão de nascimento da criança Dilcia Oliven Yean, emitida em 25 de setembro de 2001 pela Junta Central
Eleitoral, Cartório do Estado Civil da Primeira Circunscrição do Distrito Nacional da República Dominicana (expediente de anexos à demanda,
anexo 14, tomo IV, folha 2105), e extrato da certidão de nascimento da criança Violeta Bosico Cofi, emitida em 25 de setembro de 2001 pela
Junta Central Eleitoral, Cartório do Estado Civil da Primeira Circunscrição do Distrito Nacional da República Dominicana (expediente de anexos
à demanda, anexo 14, tomo IV, folha 2104).
69. Cf. escrito do Encarregado de Facilidades da Direção Geral de Migração e do Embaixador Encarregado da Divisão de Estudos
Internacionais da República Dominicana dirigido à Comissão Interamericana em 30 de setembro de 1999 (expediente de anexos à demanda,
anexo 14, tomo II, folha 1441 a 1444).
101
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
109.31. Em 21 de setembro de 2001, depois de se comunicar com funcionários da Secretaria de Relações Exteriores,
as senhoras Leonidas Oliven Yean e Tiramen Bosico Cofi, acompanhadas do senhor Genaro Rincón Miesse,
se dirigiram ao Cartório do Estado Civil da Primeira Circunscrição para realizar os registros de nascimento
de suas filhas Dilcia Yean e Violeta Bosico. No Cartório do Estado Civil não lhes foi solicitado o pagamento
de nenhum imposto, nem que assinassem documentos ou que prestassem uma declaração pública.70
109.32. Em 25 de setembro de 2001, o Estado concedeu à criança Dilcia Oliven Yean a certidão de nascimento emitida
pelo Cartório do Estado Civil da Primeira Circunscrição de Distrito Nacional da República Dominicana.71
109.33. Em 25 de setembro de 2001, o Estado concedeu à criança Violeta Bosico a certidão de nascimento emitida
pela Cartório do Estado Civil da Primeira Circunscrição de Distrito Nacional da República Dominicana.72
Sobre a educação da criança Violeta Bosico
109.34. Violeta Bosico foi admitida nos primeiros anos de escolarização sem a certidão de nascimento. Em 1991, no
Batey Las Charcas, Violeta ingressou na escola primária. Em 1994, depois de ter interrompido seus estudos,
reincorporou-se à escola e começou a frequentar a Escola Palavé, até a terceira série.73
109.35. Entre setembro e outubro de 1998, ao tentar realizar a matrícula para a quarta série, o Estado não permitiu
a inscrição de Violeta Bosico na escola diurna, porque a criança carecia de sua certidão de nascimento.74 A
criança teve de se inscrever durante o período escolar 1998–1999 na escola de adultos, na jornada noturna,
a qual é reservada a pessoas maiores de 18 anos. Ali estudou a quarta e a quinta séries.75
109.36. O principal objetivo da escola noturna é a alfabetização de adultos e nela se adota o ensino de tipo
“concentrado”, segundo o qual são feitos duas séries em um ano. Este método tem um nível de exigência
menor que o da escola diurna. A maioria das pessoas que freqüentam a jornada noturna tem idades entre 20
e 30 anos e excepcionalmente há estudantes adolescentes. As aulas neste horário têm uma duração menor,
em geral de duas horas e meia por dia, e não possuem intervalo.76
70. Cf. ofício do Movimiento de Mujeres Domínico-Hatianas dirigido à Comissão Interamericana em 28 de setembro de 2001 (expediente de
anexos à demanda, anexo 14, tomo IV, folhas 2110 a 2111).
71. Cf. extrato da certidão de nascimento da criança Dilcia Oliven Yean, emitida em 25 de setembro de 2001 pela Junta Central Eleitoral,
Cartório do Estado Civil da Primeira Circunscrição do Distrito Nacional da República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo 14,
tomo IV, folha 2105), e certidão de registro de nascimento da criança Dilcia Oliven Yean, emitida em 25 de setembro de 2001 pelo Cartório do
Estado Civil da Primeira Circunscrição do Distrito Nacional, Santo Domingo, República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo
14, tomo IV, folha 2113; expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 14, folha 90, e expediente de anexos à contestação
da demanda, anexo 18, folha 43).
72. Cf. extrato da certidão de nascimento da criança Violeta Bosico Cofi, emitida em 25 de setembro de 2001 pela Junta Central Eleitoral,
Cartório do Estado Civil da Primeira Circunscrição do Distrito Nacional da República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo 14,
tomo IV, folha 2104), e certidão de registro de nascimento da criança Violeta Bosico Cofi, emitida em 25 de setembro de 2001 pelo Cartório do
Estado Civil da Primeira Circunscrição do Distrito Nacional, Santo Domingo, República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo
14, tomo IV, folha 2112; expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 15, folha 91, e expediente de anexos à contestação
da demanda, anexo 35, folha 105).
73. Cf. declaração da criança Violeta Bosico Cofi, prestada em 8 de agosto de 1999 à senhora Katherine A. Fleet, no Batey Palavé, Manoguayabo,
República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo 6, folhas 446 a 457, e expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos,
anexo 24, folhas 370 a 381); declaração da senhora Tiramen Bosico Cofi, prestada em 11 de julho de 1999 à senhora Katherine A. Fleet, em
Palavé, Manoguayabo, República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo 9, folhas 612 a 619; expediente de anexos ao escrito
de petições e argumentos, anexo 4, folhas 28 a 39, e expediente de anexos à contestação da demanda, anexo 25, folhas 57 e 60), e testemunho
da senhora Amada Rodríguez Guante, prestado perante a Corte Interamericana durante a audiência pública celebrada em 14 de março de 2005.
74. Cf. declaração da criança Violeta Bosico Cofi, prestada em 8 de agosto de 1999 à senhora Katherine A. Fleet, no Batey Palavé, Manoguayabo,
República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo 6, folhas 446 a 457, e expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos,
anexo 24, folhas 370 a 381); declaração adicional da criança Violeta Bosico Cofi, prestada em 31 de julho de 2001 à senhora Hillary Ronen no
Batey Palavé, Santo Domingo, República Dominicana (expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 27, folhas 393 a 396),
e declaração da senhora Teresa Tucent Mena, prestada em 8 de agosto de 1999 à senhora Katherine A. Fleet (expediente de anexos à demanda,
anexo 4, folhas 358 a 367; expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 25, folhas 382 a 388).
75. Cf. declaração do senhor Genaro Rincón Miesse, prestada em 9 de agosto de 1999 à senhora Katherine A. Fleet, em Gazcue, Santo Domingo,
República Dominicana (expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 2, folha 18); declaração da senhora Amada Rodríguez
Guante, prestada perante a Corte Interamericana durante a audiência pública celebrada em 14 de março de 2005; certidão emitida em 6 de
novembro de 2003, pela senhora Amada Rodríguez Guante, diretora da Escola Básica Palavé (expediente de anexos ao escrito de alegações
finais do Estado, anexo 28, folha 3934); declaração adicional da criança Violeta Bosico Cofi, prestada em 31 de julho de 2001 à senhora Hillary
Ronen no Batey Palavé, Santo Domingo, República Dominicana (expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 27, folhas
393 a 396), e declaração da senhora Teresa Tucent Mena, prestada em 8 de agosto de 1999 à senhora Katherine A. Fleet (expediente de anexos
à demanda, anexo 4, folhas 358 a 367; expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 25, folhas 382 a 388).
76. Cf. declaração prestada pela criança Violeta Bosico Cofi, autenticada em 2 de fevereiro de 2005 pelo licenciado Marcelino da Cruz Nuñez
(expediente de exceções preliminares e eventuais mérito e reparações, tomo III, folhas 892 a 893, e expediente anexos ao escrito de alegações
finais do Estado, anexo 33, folha 370 s 381); declaração da criança Violeta Bosico Cofi, prestada em 8 de agosto de 1999 à senhora Katherine
A. Fleet, no Batey Palavé, Manoguayabo, República Dominicana (expediente de anexos à demanda, anexo 6, folhas 446 a 457, e expediente
de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 24, folhas 370 a 381); declaração do senhor Genaro Rincón Miesse, prestada em 9 de
agosto de 1999 à senhora Katherine A. Fleet, em Gazcue, Santo Domingo, República Dominicana (expediente de anexos ao escrito de petições
e argumentos, anexo 2, folha 18), e testemunho da senhora Amada Rodríguez Guante, prestado perante a Corte Interamericana durante a
audiência pública celebrada em 14 de março de 2005.
102
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
109.37. No ano de 2001 Violeta Bosico voltou a estudar no turno diurno, completou a sexta série e foi inscrita na
sétima série na escola diurna.77
Sobre os danos imateriais causados às crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico e a seus familiares
109.38. A criança Dilcia Yean e seus familiares sofreram danos imateriais78 (pars. 224 e 227 infra).
109.39. A criança Violeta Bosico e seus familiares sofreram danos imateriais79 (pars. 224, 225 e 227 infra).
Sobre a representação das supostas vítimas e seus familiares e os respectivos gastos
109.40. As crianças Yean e Bosico foram representadas80 nos trâmites perante o sistema interno, bem como nos
realizados perante a Comissão e a Corte, pelo Movimiento de Mujeres Domínico-Haitianas (MUDHA),81
pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL)82, e pela International Human Rights Law Clinic,
University of California, Berkeley, School of Law (Boalt Hall),83 os quais realizaram uma série de gastos
relacionados com estas gestões.
IX
Violação aos artigos 19, 20, 24, 3º e 18 da Convenção Americana em relação ao artigo 1.1
do mesmo instrumento
(Direitos da Criança, Direito à Nacionalidade, Igualdade perante a Lei, Direito ao Reconhecimento da
Personalidade Jurídica, Direito ao Nome, e Obrigação de Respeitar os Direitos)
Alegações da Comissão
110. Quanto ao artigo 19 da Convenção Americana, a Comissão afirmou que:
a) o Estado descumpriu suas obrigações internacionais por não adotar as medidas necessárias que
levem em consideração o interesse superior da criança e assegurem a proteção dos menores
dominicanos de origem haitiana, como as crianças Dilcia e Violeta;
b) o Estado desconheceu sua obrigação de proteger as crianças Dilcia e Violeta, de acordo com o artigo
19 da Convenção, ao mantê-las em uma condição de marginalidade e vulnerabilidade legal, social e
econômica e ao não garantir seu direito à nacionalidade, deixando as crianças expostas ao perigo de
serem expulsas da República Dominicana; e
c) o Estado faltou com seu dever de assegurar o direito à educação, tendo em vista que a criança Violeta
foi impedida de se matricular na escola diurna por carecer da certidão de nascimento.
77. Cf. declaração adicional da criança Violeta Bosico Cofi, prestada em 31 de julho de 2001 à senhora Hillary Ronen no Batey Palavé, Santo
Domingo, República Dominicana (expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 27, folhas 393 a 396), e Diploma de
Conclusão da Educação Básica de Violeta Bosico, expedido pelo Centro de Palavé em 1 julho de 2004 (expediente de anexos ao escrito de
alegações finais do Estado, anexo 30, folha 3938).
78. Cf. parecer da senhora Débora Munczek, apresentado à Corte Interamericana durante a audiência pública celebrada em 14 de março de
2005, e declaração da senhora Leonidas Oliven Yean, prestada em 25 de junho ou 9 de julho de 1999 à senhora Katherine A. Fleet, no Batey
Enriquillo, Sabana Grande de Boyá (expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 34, folha 411).
79. Cf. parecer da senhora Débora Munczek, apresentado à Corte Interamericana durante a audiência pública celebrada em 14 de março de
2005; declaração prestada pela senhora Teresa Tucent Mena, autenticada em 2 de fevereiro de 2005 pelo licenciado Marcelino da Cruz Nuñez
(expediente de exceções preliminares e eventuais mérito e reparações, folhas 899 a 900), e declaração da criança Violeta Bosico Cofi, prestada
em 8 de agosto de 1999 à senhora Katherine A. Fleet, no Batey Palavé, Manoguayabo, República Dominicana (expediente de anexos à demanda,
anexo 14, tomo III, folha 1758).
80. Cf. procuração de Leonidas Oliven Yean a favor de Genaro Rincón M., autenticada em 10 de outubro de 1998 e procuração de Tiramen Bosico
Cofi a favor de Genaro Rincón M., autenticada em 10 de outubro de 1998 (expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo
1, folhas 3748 a 3750); procuração de Tiramen Bosico Cofi a favor do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), da Universidade
de California, Berkeley, Boat Hall (School of Law), e do Movimiento de Mujeres Domínico-Haitianas (MUDHA), autenticada em 13 de junho de
2003 pelo licenciado Marcelino da Cruz Nuñez (expediente de exceções preliminares e eventuais mérito, reparações e custas, tomo I, folhas
76 e 77), e procuração de Leonidas Oliven Yean a favor do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), da Universidade de California,
Berkeley, Boat Hall (School of Law), e do Movimiento de Mujeres Domínico-Haitianas (MUDHA), autenticada em 13 de junho de 2003 pelo
licenciado Marcelino da Cruz Nuñez (expediente de exceções preliminares e eventuais mérito, reparações e custas, tomo I, folhas 78 e 79).
81. Cf. comprovantes de gastos do MUDHA no caso das crianças Yean e Bosico (expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos,
anexos 55 e 56, folhas 729 a 828).
82. Cf. comprovantes de gastos do CEJIL no caso das crianças Yean e Bosico (expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos,
anexo 54, folhas 537 a 728, e expediente de exceções preliminares e eventuais mérito e reparações, tomo V, folhas 1314 a 1319).
83. Cf. comprovantes de gastos da Clínica de Direito Internacional dos Direitos Humanos no caso das crianças Yean e Bosico (expediente de
anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 57, folhas 829 a 852).
103
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
111. Em relação ao artigo 20 da Convenção Americana, a Comissão argumentou que:
a) a Constituição estabeleceu o ius soli como princípio para adquirir a nacionalidade dominicana,
de modo que o direito à nacionalidade por ter nascido no território dominicano adquire proteção
convencional, sem importar a nacionalidade ou status legal dos pais. Qualquer restrição ao direito
à nacionalidade que não se baseie no lugar de nascimento das crianças contradiz diretamente este
princípio;
b) é inaceitável qualificar as supostas vítimas do presente caso como “estrangeiros em trânsito”, já
que as pessoas que vivem por 10, 15 ou mais anos em um país não podem ter a qualidade de
transeuntes;
c) a Junta Central Eleitoral exige a apresentação de uma série de documentos para proceder a um registro
tardio de nascimento. Estes requisitos não apenas contravêm os direitos contidos na Constituição
e outras leis derivadas, mas também violam os direitos contidos na Convenção Americana, uma
vez que são difíceis de cumprir, envolvem gastos e constituem obstáculos que impedem o gozo do
direito à nacionalidade à maioria de menores que se encontram na mesma situação das crianças
Dilcia e Violeta, ou seja, os dominicanos de ascendência haitiana;
d) os trâmites inconsistentes realizados por funcionários do Registro Civil não permitiram às crianças
Dilcia e Violeta obterem suas certidões de nascimento durante quatro anos e quatro meses, apesar
de terem cumprido os requisitos estabelecidos para os menores de 13 anos;
e) a entrega das certidões de nascimento às supostas vítimas neste caso foi resultado de uma decisão
do Estado, que eventualmente teria a possibilidade de negar sua validez em virtude da forma em que
foram concedidas; e
f) o Acordo de Colaboração assinado pelo Estado no fim de 2001, eliminou vários requisitos que
obstaculizavam o processo de registros tardios; entretanto, mantém o requisito principal da
apresentação da cédula de identidade e eleitoral dos pais, o que representa uma contradição com o
princípio do ius soli.
112. Quanto ao artigo 24 da Convenção Americana, a Comissão afirmou que:
a) os Estados podem estabelecer distinções no desfrute de certos benefícios entre seus cidadãos,
os estrangeiros com status regular e os estrangeiros em situação irregular; entretanto, para isso
se requer um exame detalhado do conteúdo e do alcance da norma, de suas consequências e
justificativas;
b) o tratamento que as supostas vítimas receberam se deveu a considerações sobre sua ascendência,
seu nome e o status migratório de seus pais. Estão proibidas não apenas as políticas e práticas
deliberadamente discriminatórias, mas também aquelas cujo impacto seja discriminatório contra
certas categorias de pessoas, ainda quando não se possa provar a intenção discriminatória;
c) a legislação secundária aplicável ao caso é aberta e permite que as autoridades da Junta Central
Eleitoral e do Registro Civil possam dispor e aplicar discricionariamente os requisitos para obter os
registros tardios de nascimento; e
d) o Estado, apesar de ter indicado que certos funcionários poderiam ter assumido atitudes
discriminatórias, não investigou nem puniu essas práticas.
113. Quanto ao artigo 3 da Convenção, a Comissão afirmou que:
a) o direito ao reconhecimento da personalidade jurídica é um requisito fundamental para o desfrute de
todas as liberdades básicas, em virtude de que este direito confere o reconhecimento do indivíduo
perante a lei;
b) a normativa interna da República Dominicana, por meio do Código para a Proteção das Crianças e
Adolescentes (Lei nº 14 – 94), reconhece a relação entre a identidade legal e a proteção dos direitos
fundamentais dos menores, e garante o direito fundamental à dignidade das crianças, o que inclui
o direito à identidade e, explicitamente, proíbe qualquer discriminação na concessão ou privação de
seus direitos fundamentais em virtude de sua raça ou nacionalidade; e
c) a negativa a inscrever as crianças Dilcia e Violeta no Registro Civil por parte de funcionários
dominicanos ocasionou sua exclusão da ordem jurídica e institucional do Estado, já que durante
mais de quatro anos nem Dilcia nem Violeta possuíam uma certidão de nascimento, documento legal
104
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
reconhecido pela República Dominicana como prova de sua identidade, e, por isso, não estavam
reconhecidas perante a lei, o que constituiu uma violação ao artigo 3 da Convenção Americana.
114. A Comissão não argumentou sobre a violação ao artigo 18 da Convenção.
Alegações dos representantes
115. Quanto ao artigo 19 da Convenção Americana, os representantes afirmaram que:
a) tendo em vista a incapacidade legal e a vulnerabilidade das crianças Dilcia e Violeta, o Estado tinha a
obrigação especial, que sua condição de menores requeria conforme o artigo 19 da Convenção, de
adotar medidas de proteção para garantir seus direitos à nacionalidade, à personalidade jurídica, à
educação, à família, e à proteção judicial. Os impedimentos arbitrários ou inconsistentes impostos
pelo Estado às crianças em seus esforços para obter a documentação constituem uma violação
direta aos direitos consagrados no artigo 19 da Convenção Americana, lido à luz do artigo 1.1 da
mesma; e
b) o artigo 19 da Convenção requer que sejam tomadas medidas especiais de proteção para garantir
o direito à educação das crianças, em razão de sua situação específica de vulnerabilidade e porque
não podem proteger seu direito sem assistência especial por parte de sua família, da sociedade e
do Estado. O direito à educação constitui um dos direitos protegidos pelo artigo 26 da Convenção
Americana.
116. Quanto ao artigo 20 da Convenção, os representantes alegaram que:
a) a República Dominicana violou o direito à nacionalidade das crianças Dilcia e Violeta ao negarlhes, com fundamento em sua raça e ascendência, a possibilidade de registrar seu nascimento no
território nacional conforme o princípio constitucional do ius soli;
b) a interpretação efetuada pelo Estado da exceção “em trânsito” e sua aplicação ao presente caso cria uma
restrição para a obtenção da nacionalidade que não está estabelecida na Constituição nem no Código Civil
da República Dominicana (doravante denominado “Código Civil”), e tampouco na Lei nº 659;
c) os requisitos para o registro tardio de nascimento impostos pelas diretrizes anunciadas pelo Cartório
do Estado Civil, e não pela lei, em sua maioria não possuem relação com a prova do nascimento
em território dominicano e por isso são desproporcionais e desnecessários. Isto é especialmente
pertinente com respeito às pessoas de ascendência haitiana que vivem nos bateyes. As restrições
para obter a nacionalidade devem cumprir certos requisitos para serem consideradas legítimas e
não arbitrárias: 1) ser previamente prescritas por lei; 2) não ser discriminatórias; 3) perseguir um
objetivo legítimo, e 4) respeitar estritamente os princípios de necessidade e de proporcionalidade; e
d) para demonstrar a identidade de uma criança, os Estados costumam pedir uma declaração
de nascimento ou de batismo ou de uma parteira ou hospital, sem a necessidade de que sejam
concordantes. Em um sistema de ius soli, tendo em vista que apenas se requer o fato de que uma
criança tenha nascido no território do Estado, a situação legal do progenitor é irrelevante e os pais
apenas devem demonstrar a relação com seus filhos mediante qualquer documento de identidade
comum, como cédula de identidade ou carteira de motorista.
117. No que se refere ao artigo 24 da Convenção Americana, os representantes alegaram que:
a) o Estado violou os artigos 24 e 1.1 da Convenção Americana, ao introduzir em seu ordenamento
jurídico regulamentações discriminatórias referentes à proteção da lei e ao aplicá-las às supostas
vítimas, tanto pela intencionalidade dos atos discriminatórios dos funcionários públicos ao se
negarem a conceder-lhes as certidões de nascimento, como pelos efeitos discriminatórios produzidos
ao aplicar as leis que regulamentam o registro. Para justificar uma distinção que afete principalmente
crianças, deve-se demonstrar claramente que a violação a seus direitos é absolutamente necessária
para alcançar o objetivo do interesse público, o que não foi provado pelo Estado;
b) não há relação entre a concessão da nacionalidade e a prevenção do tráfico de crianças ou da fraude
eleitoral e, ainda que estes sejam fins legítimos, os meios para alcançá-los são incompatíveis com a
proteção dos direitos humanos;
c) o Direito Internacional proíbe tanto a discriminação direta quanto a discriminação indireta ou o efeito
discriminatório; e
105
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
d) as regulamentações introduzidas no ordenamento jurídico da República Dominicana têm um efeito
discriminatório sobre os dominicanos de ascendência haitiana, que é o resultado da série de
requisitos exigidos por funcionários dominicanos para a concessão do registro tardio de nascimento
que impedem, na prática, a obtenção de sua nacionalidade.
118. Quanto ao artigo 3 da Convenção, os representantes afirmaram que:
a) o direito à personalidade jurídica é um direito protegido por vários instrumentos internacionais
e em nenhum caso pode ser suspenso. Na República Dominicana a certidão de nascimento é o
documento legal como prova oficial de nome e identidade e, portanto, é necessária para assegurar
uma identidade jurídica; e
b) as crianças se viram privadas do direito fundamental ao reconhecimento da personalidade jurídica
por mais de quatros anos. Durante este tempo, as crianças Dilcia e Violeta viveram em um estado
de ilegalidade no qual estiveram permanentemente expostas a uma expulsão forçada para o Haiti.
Sem a certidão de nascimento, as crianças não podiam obter títulos legais de propriedade, não
podiam obter uma cédula de identidade e não teriam sido autorizadas a votar quando alcançassem a
maioridade.
119. Quanto ao artigo 18 da Convenção, os representantes alegaram que:
a) o direito ao nome, assim como o direito à nacionalidade e à personalidade jurídica é um direito
fundamental e não pode, em nenhum caso, ser suspenso. O direito ao nome está intimamente ligado
à identidade de uma pessoa e está associado aos direitos à intimidade e à personalidade jurídica;
b) o Estado descumpriu sua obrigação de assegurar à Dilcia e à Violeta seu direito ao nome, ao se negar
a conceder a certidão de nascimento por mais de quatro anos. Sem nomes oficiais, as crianças Dilcia
e Violeta não contaram com nenhuma das proteções estatais decorrentes do seu registro; e
c) apesar de o Promotor Público e da Junta Central Eleitoral terem argumentado que as crianças não
cumpriram os requisitos, o Estado concedeu as certidões de nascimento de maneira ilegal ao não
cumprir os requisitos exigidos, de modo que essas certidões estão expostas à possibilidade de uma
revogação estatal. A violação, portanto, é continuada, já que seu direito ainda não foi garantido.
Alegações do Estado
120. Quanto ao artigo 19 de Convenção, o Estado afirmou que:
a) o fato de que Violeta teve problemas para se escolarizar não é responsabilidade do Estado, já que
as distintas causas que impediram a criança de estudar com continuidade foram provocadas por
sua família, dado que esta mudava de lugar de residência constantemente e teve de abandonar
abruptamente vários centros de estudo. Apesar da falta de apresentação da certidão de nascimento,
Violeta foi autorizada a estudar durante vários anos; e
b) apesar dos esforços dos órgãos públicos competentes para assegurar o direito à educação e facilitar
a inscrição de todas as crianças em idade escolar, existe um princípio de ordem pública insuperável
para a escolarização, que faz necessária a matrícula dos estudantes com sua certidão de nascimento.
121. Em relação ao artigo 20 da Convenção Americana, o Estado argumentou que:
a) o fato de as crianças serem de ascendência haitiana não teve relação com os motivos nos quais
se fundamentaram os oficiais do Estado Civil para não as registrar e reconhecer sua nacionalidade
dominicana. A decisão se baseou no descumprimento da apresentação dos requisitos necessários
para optar por esta nacionalidade. Não existe prova de que o Registro Civil se negou a registrá-las
por razões discriminatórias, já que este órgão não pode fazer exceções e seu trabalho se limita a
comprovar que os solicitantes demonstrem ter nascido no país;
b) não possui relevância o fato de os pais das crianças Yean e Bosico terem estado em trânsito no país,
já que ao nascer em território dominicano as crianças tinham direito a optar por esta nacionalidade
e nunca perderam este privilégio; entretanto, este assunto carece de interesse porque na atualidade
as crianças já gozam da nacionalidade dominicana;
c) as supostas vítimas tinham a possibilidade de optar pela nacionalidade haitiana em razão do
vínculo do ius sanguinis que as une com seus pais, de maneira que nunca estiveram em perigo de
serem apátridas;
106
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
d) a apresentação da cédula de identidade dos pais é um requisito para obter o registro tardio de
nascimento, para saber se são filhos legítimos dos estrangeiros residentes no país, em representação
diplomática ou em trânsito. No caso concreto, as mães das crianças são dominicanas, de modo
que não deveria haver problema para elas o cumprimento deste requisito. Os demais documentos
solicitados são necessários para que o mecanismo de registro possa operar de forma fidedigna e
para evitar a falsidade ideológica;
e) não é verdadeira a alegada situação contínua de ilegalidade das crianças, já que não existe nenhuma
política de deportação contra pessoas ilegais dentro do território dominicano; e
f) o Estado não é responsável por violar de maneira contínua o direito à nacionalidade, já que o atraso
em sua concessão se deu em função da negligência das mães que não buscaram oportunamente
registrar os nascimentos das crianças e na tentativa de registro tardio não juntaram as provas e
documentos necessários para realizar este procedimento.
122. No que se refere ao artigo 24 da Convenção Americana, o Estado argumentou que:
a) a situação particular de registro tardio de nascimento das crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico
supõe que se lhes isente do regime geral para o resto dos dominicanos que são registrados
ao nascer e lhes aplique a normativa vigente para todos aqueles que, ao nascer, não tivessem
sido inscritos no Registro Civil, isto é, o trâmite do registro tardio. Este procedimento deve ser
realizado de acordo com uma série de requisitos e trâmites necessários para demonstrar de uma
forma veraz e adequada ao direito que as pessoas solicitantes ostentam um verdadeiro direito à
nacionalidade dominicana; e
b) não foi provado e não corresponde à verdade que os oficiais do Estado Civil da República Dominicana
tenham recebido instruções de seus superiores para impedir o registro e a expedição de certidões
de nascimento de crianças de origem haitiana. Os oficiais do Registro Civil envolvidos neste caso
simplesmente se encontravam cumprindo sua obrigação de analisar os requisitos, exigidos tanto
aos dominicanos quanto aos estrangeiros e sem nenhum tipo de distinção, para os registros tardios
de nascimento.
123. Quanto ao artigo 3 da Convenção, o Estado argumentou que não violou o direito ao reconhecimento da
personalidade jurídica, já que em nenhum momento impediu o registro das crianças.
124. O Estado não apresentou alegações específicas sobre o artigo 18 da Convenção.
Considerações da Corte
125. O artigo 20 da Convenção Americana determina que:
1. Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade.
2. Toda pessoa tem direito à nacionalidade do Estado em cujo território houver nascido, se não tiver
direito a outra.
3. A ninguém se deve privar arbitrariamente de sua nacionalidade nem do direito de mudá-la.
126. O artigo 24 da Convenção Americana dispõe que:
[t]odas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação, a igual
proteção da lei.
127. O artigo 19 da Convenção Americana dispõe que:
[t]oda criança tem direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer por parte da sua
família, da sociedade e do Estado.
128. O artigo 3 da Convenção Americana estabelece que:
[t]oda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica.
129. O artigo 18 da Convenção Americana dispõe que:
[t]oda pessoa tem direito a um nome e aos sobrenomes de seus pais ou ao de um destes. A lei deve
regular a forma de assegurar a todos esse direito, mediante nomes fictícios, se for necessário.
130. O artigo 1.1 da Convenção Americana estabelece que:
107
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
[o]s Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela
reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição,
sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de
qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra
condição social.
131. O Tribunal terá em conta sua competência ratione temporis (pars. 4 e 100 a 108 supra) e os fatos do caso sub
judice para determinar se a República Dominicana é responsável pela suposta violação aos referidos artigos da
Convenção Americana, os quais são considerados neste capítulo de forma conjunta.
132. A Corte considera necessário ressaltar que, apesar de a denegação do pedido de registro tardio de nascimento no
registro civil das crianças ter ocorrido em 5 de março de 1997 e da decisão do Promotor Público que confirmou
esta denegação ter sido emitida em 20 de julho de 1998, ambos os fatos determinaram que as crianças Dilcia
Yean e Violeta Bosico permanecessem sem nacionalidade até 25 de setembro de 2001. Consequentemente,
esta denegação persistiu depois de 25 de março de 1999, data de reconhecimento da competência contenciosa
da Corte pela República Dominicana, razão pela qual este Tribunal afirma sua competência para conhecer desta
denegação (pars. 4 e 100 a 108 supra).
133. A Corte observa que no momento em que o Estado reconheceu a competência contenciosa da Corte, Dilcia Yean
e Violeta Bosico eram crianças,84 que nesta condição tinham direitos especiais aos quais correspondem deveres
específicos por parte da família, da sociedade e do Estado e exigem uma proteção especial que é devida por este
último e que deve ser entendida como um direito adicional e complementar.85
134. Este Tribunal indicou que os casos em que as vítimas de violações de direitos humanos são crianças se revestem
de especial gravidade.86 A prevalência do interesse superior da criança deve ser entendida como a necessidade
de satisfação de todos os direitos dos menores, o que obriga o Estado e irradia efeitos na interpretação de todos
os demais direitos da Convenção quando o caso se refira a menores de idade.87 Além disso, o Estado deve
prestar especial atenção às necessidades e aos direitos das supostas vítimas em consideração à sua condição
de crianças, como mulheres que pertencem a um grupo em uma situação vulnerável.88
135. Em consideração ao indicado nos parágrafos anteriores, a Corte não se pronunciará sobre a suposta violação
isolada do artigo 19 da Convenção Americana, mas incluirá sua decisão a respeito juntamente da análise dos
demais artigos pertinentes a este caso.
***
136. Com relação ao direito consagrado no artigo 20 da Convenção, a Corte entende que a nacionalidade é a
expressão jurídica de um fato social de conexão de um indivíduo com um Estado.89 A nacionalidade é um
direito fundamental da pessoa humana que está consagrado na Convenção Americana, bem como em outros
instrumentos internacionais,90 e é inderrogável de acordo com o artigo 27 da Convenção.
137. A importância da nacionalidade reside no fato de que ela, como vínculo jurídico político que liga uma pessoa
a um Estado determinado,91 permite que o indivíduo adquira e exerça os direitos e responsabilidades próprias
84. A Corte observa que no momento de proferir a presente Sentença, Dilcia Yean tem 9 anos de idade e Violeta Bosico tem 20 anos de idade;
entretanto, dado que em 25 de março de 1999 Dilcia e Violeta tinham, respectivamente, 2 e 14 anos de idade, a Corte se referirá às supostas
vítimas como crianças, cf. Condição Jurídica e Direitos Humanos da Criança. Parecer Consultivo OC-17/02 de 28 de agosto de 2002. Série A
Nº 17, par. 42.
85. Cf. Condição Jurídica e Direitos Humanos da Criança, nota 84 supra, pars. 53, 54 e 60, e Caso dos Irmãos Gómez Paquiyauri. Sentença de
8 de julho de 2004, Série C Nº 110, par. 164.
86. Cf. Caso das “Crianças de Rua” (Villagrán Morales). Sentença de 19 de novembro de 1999. Sentença de 19 de novembro de 1999. Série
C Nº 64 par. 146; Caso dos Irmãos Gómez Paquiyauri, nota 85 supra, par. 162, e Caso Bulacio. Sentença de 18 de setembro de 2003. Série C
Nº 100, par. 133.
87. Cf. Condição Jurídica e Direitos Humanos da Criança, nota 84 supra, pars. 56, 57 e 60.
88. Cf. Nações Unidas, Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, Recomendação Geral nº 24, aprovada
durante o 20° período de sessões, 1999, sobre a aplicação do artigo 12 da Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação
contra a mulher.
89. Cf. Caso Nottebohm (Liechtenstein vs. Guatemala), segunda fase. Sentença de 6 de abril de 1955. Corte Internacional de Justiça, ICJ
Reports 1955, pág. 23.
90. Cf., entre outros, Declaração Americana de Direitos Humanos, artigo XIX; Declaração Universal de Direitos Humanos, artigo 15; Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, artigo 24.3; Convenção sobre os Direitos da Criança, artigo 7.1; Convenção Internacional sobre
a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de Suas Famílias, artigo 29, e Convenção para Redução dos Casos
de Apatridia, artigo 1.1.
91. Cf. Proposta de Modificação à Constituição Política da Costa Rica Relacionada à Naturalização. Parecer Consultivo OC-4/84 de 19 de janeiro
de 1984. Série A Nº4, par. 35.
108
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
de ser membro de uma comunidade política. Como tal, a nacionalidade é um pré-requisito para o exercício de
determinados direitos.
138. A Corte estabeleceu que
[a] nacionalidade, conforme se aceita majoritariamente, deve ser considerada como um estado natural
do ser humano. Tal estado não é apenas o próprio fundamento de sua capacidade política mas também
de parte de sua capacidade civil. Daí que, não obstante o fato de que tradicionalmente se aceitou que a
determinação e regulamentação da nacionalidade são competência de cada Estado, a evolução ocorrida
nesta matéria nos demonstra que o Direito Internacional impõe certos limites à discricionariedade
dos Estados e que, em seu estado atual, na regulamentação da nacionalidade não apenas concorrem
competências dos Estados mas também as exigências da proteção integral dos direitos humanos. […]
com efeito, a perspectiva doutrinária clássica em que a nacionalidade podia ser concebida como um
atributo que o Estado concedia a seus súditos, foi evoluindo para um conceito de nacionalidade no qual,
em conjunto a ser competência do Estado, se reveste do caráter de um direito da pessoa humana.92
139. A Convenção Americana acolhe o direito à nacionalidade em um sentido duplo: o direito a ter uma nacionalidade
desde a perspectiva de dotar o indivíduo de um mínimo de amparo jurídico no conjunto de suas relações, ao
estabelecer sua vinculação com um Estado determinado, e o de proteger o indivíduo contra a privação de sua
nacionalidade de forma arbitrária, porque desse modo estaria sendo privado da totalidade de seus direitos
políticos e daqueles direitos civis que se sustentam na nacionalidade do indivíduo.93
140. A determinação de quem são nacionais continua sendo competência interna dos Estados. Entretanto, sua
discricionariedade nessa matéria sofre um constante processo de restrição conforme a evolução do Direito
Internacional, com vistas a uma maior proteção da pessoa diante da arbitrariedade dos Estados. Assim, na
atual etapa de desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos, esta faculdade dos Estados está
limitada, por um lado, por seu dever de oferecer aos indivíduos uma proteção igualitária e efetiva da lei e sem
discriminação e, por outro lado, por seu dever de prevenir, evitar e reduzir a apatridia.94
141. A Corte considera que o princípio de direito imperativo de proteção igualitária e efetiva da lei e de não
discriminação determina que os Estados, ao regulamentarem os mecanismos de concessão da nacionalidade,
devem se abster de produzir regulamentações discriminatórias ou que tenham efeitos discriminatórios nos
diferentes grupos de uma população no momento de exercerem seus direitos.95 Do mesmo modo, os Estados
devem combater as práticas discriminatórias em todos os seus níveis, em especial nos órgãos públicos e,
finalmente, devem adotar as medidas afirmativas necessárias para assegurar uma efetiva igualdade perante a
lei de todas as pessoas.
142. Os Estados têm a obrigação de não adotar práticas ou legislação, em relação à concessão da nacionalidade,
cuja aplicação favoreça o incremento do número de pessoas apátridas, condição que é derivada da falta
de nacionalidade, quando um indivíduo não se qualifica sob as leis de um Estado para recebê-la, como
consequência de sua privação arbitrária, ou ainda pela concessão de uma nacionalidade que não é efetiva na
prática. A apatridia tem como consequência impossibilitar o gozo dos direitos civis e políticos de uma pessoa
e produzir uma condição de extrema vulnerabilidade.
143. Por sua vez, a Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia, que foi assinada pela República Dominicana
em 5 de dezembro de 1961, ratificada por 26 Estados e que entrou em vigor em 13 de dezembro de 1975,
em seu artigo 1º determina que os Estados devem conceder sua nacionalidade à pessoa nascida em seu
território, que de outro modo ficaria em condição de ser apátrida. Esta Convenção afirma que a nacionalidade
será concedida de pleno direito no momento do nascimento, ou ainda mediante pedido apresentado perante
a autoridade competente pelo interessado ou em seu nome, conforme prescrito na legislação do Estado em
questão, e que o referido pedido não poderá ser rechaçado, a menos que o interessado não cumpra a seguinte
lista de condições às quais o Estado poderá subordinar a concessão de sua nacionalidade:
(a) que o requerimento seja apresentado dentro de um período fixado pelo Estado Contratante, que
deverá começar não depois da idade de dezoito anos e terminar não antes da idade de vinte e um
92. Cf. Proposta de Modificação à Constituição Política da Costa Rica Relacionada à Naturalização, nota 91 supra, pars. 32 e 33.
93. Cf. Proposta de Modificação à Constituição Política da Costa Rica Relacionada à Naturalização, nota 91 supra, par. 34.
94. Cf., entre outros, Convenção para Redução dos Casos de Apatridia, artigo 1.1; Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos
de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de Suas Famílias, artigo 29, e Convenção sobre os Direitos da Criança, artigo 7.1, e Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, artigo 24.3.
95. Cf. Caso Yatama, nota 13 supra, par. 185; Condição Jurídica e Direitos dos Migrantes Indocumentados. Parecer Consultivo OC-18/03 de 17
de setembro de 2003, Série A Nº18, par. 88, e Condição Jurídica e Direitos Humanos da Criança, nota 84 supra, par. 44.
109
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
anos, de modo que o interessado disponha de um ano, no mínimo, durante o qual possa apresentar
o requerimento sem ter de obter autorização judicial para fazê-lo;
(b) que o interessado tenha residido habitualmente no território do Estado Contratante por período,
fixado por este Estado, não superior a cinco anos imediatamente anteriores à apresentação do
requerimento nem a dez anos ao todo;
(c) que o interessado não tenha sido condenado por crime contra a segurança nacional nem tenha sido
condenado em virtude de processo criminal, a cinco anos ou mais de prisão;
(d) que o interessado sempre tenha sido apátrida.
***
144. De acordo com os fatos do presente caso, as crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico nasceram na República
Dominicana em 15 de abril de 1996 e em 13 de março de 1985, respectivamente, e ali viveram e cresceram.
Igualmente, suas mães, as senhoras Leonidas Oliven Yean e Tiramen Bosico Cofi, são de nacionalidade
dominicana e viveram na República Dominicana, e os pais das crianças são haitianos (pars. 109.6 e 109.7
supra).
145. Em 5 de março de 1997, quando Dilcia Yean tinha 10 meses de idade e Violeta Bosico tinha 12 anos de idade,
as crianças solicitaram o registro tardio de seu nascimento perante o Cartório do Estado Civil de Sabana
Grande de Boyá. Este pedido de registro tardio foi rechaçado pela Oficial do Estado Civil, que considerou que
os documentos apresentados pelas crianças eram insuficientes para proceder com o registro tardio, conforme
uma lista de 11 requisitos (pars. 109.14, 109.17 e 109.18 supra). Em 11 de setembro de 1997, as crianças
recorreram ao Promotor Público do Distrito Judicial de Monte Plata, que em 20 de julho de 1998 confirmou
a decisão da Oficial do Estado Civil e denegou a demanda por “não estar amparada na documentação e no
procedimento que rege a matéria”, com base em uma lista que contém 12 requisitos para o registro tardio de
nascimento (pars. 109.19 e 109.20 supra).
146. Para proceder à inscrição no registro civil de nascimento das crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico, foramlhes exigidos os 11 documentos que constam no anexo à comunicação do Estado dirigida à Comissão
Interamericana em 30 de setembro de 1999, ou ainda os 12 documentos indicados na Resolução emitida pelo
Promotor Público do Distrito Judicial de Monte Plata em 20 de julho de 1998 (pars. 109.18 e 109.20 supra).
Ou seja, as certidões de nascimento não foram concedidas pelo descumprimento por parte das crianças da
apresentação dos 11 ou 12 documentos exigidos pelos funcionários do Estado antes mencionados. Entretanto,
em suas alegações finais escritas, o Estado afirmou que os documentos que deveriam ser apresentados perante
o Cartório do Estado Civil em 5 de março de 1997 eram três, que elas deveriam cumprir e não o fizeram (par.
109.16 supra). A partir do anteriormente exposto, conclui-se que o Estado adotou diferentes posturas durante o
trâmite do caso perante o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, em relação aos requisitos
que as crianças deveriam ter cumprido. Esta situação reflete o fato de que na República Dominicana não existe
um critério uniforme para a exigência e aplicação dos requisitos para o registro tardio de nascimento dos
menores de 13 anos de idade.
147. Depois da reunião celebrada pela Comissão em 24 de agosto de 2001, na República Dominicana, no exercício
de suas faculdades, o Estado comunicou às senhoras Leonidas Oliven Yean e Tiramen Bosico Cofi que havia
realizado o registro de nascimento de suas filhas e, em 25 de setembro de 2001, a República Dominicana
entregou as certidões de nascimento às crianças Yean e Bosico e, em consequência, nesta data concedeu-lhes
a nacionalidade dominicana (pars. 109.32 e 109.33 supra).
***
148. A nacionalidade na República Dominicana se encontra regulamentada na Constituição, promulgada em 14 de
agosto de 1994, e vigente no momento dos fatos. O artigo 11 da Constituição consagra que são dominicanos:
[t]odas as pessoas que nascerem no território da República, com exceção dos filhos legítimos dos
estrangeiros residentes no país em representação diplomática ou dos que nele estão em trânsito.
[…]
149. Igualmente, o Código Civil em seu artigo 9º dispõe que
[s]ão dominicanos:
110
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
Primeiro – Todas as pessoas que tenham nascido ou nascerem no território da República, qualquer que
seja a nacionalidade de seus pais.
Para os efeitos desta disposição não se considerarão como nascidos no território da República os filhos
legítimos dos estrangeiros que residam nela em representação ou a serviço de sua pátria.
[…]
150. Como decorre da leitura do artigo 11 da Constituição, a República Dominicana estabelece o princípio do ius
soli para determinar quem são os titulares da nacionalidade. Entretanto, para adquirir esta nacionalidade por
nascimento, é preciso que a criança não se inclua em uma das exceções constitucionais, que se referem aos
filhos de pessoas em representação diplomática ou em trânsito no país.
151. A Corte não analisará a aplicação da primeira exceção referente aos filhos de diplomatas, já que os fatos do
presente caso não se relacionam a ela.
152. A respeito da exceção relacionada aos estrangeiros que se encontram em trânsito, tanto a Comissão como os
representantes alegaram que as autoridades do Estado teriam tomado a posição, e a teriam tornado efetiva na
prática, de que as crianças de ascendência haitiana nascidas na República Dominicana, como são as crianças
Dilcia e Violeta, não seriam nacionais dominicanas, devido a seus pais serem trabalhadores migratórios
haitianos e considerados em trânsito.
153. A Comissão Interamericana, em seu Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos da República Dominicana
no ano de 1999, em relação à interpretação que as autoridades dominicanas fazem da condição de pessoa em
trânsito, observou que
[…] na República Dominicana residem ao redor de 500.000 trabalhadores haitianos indocumentados.
Em numerosos casos se trata de pessoas que residiram por 20 ou 40 anos e muitas delas nasceram
em território dominicano. A maioria enfrenta uma situação de ilegalidade permanente que transmitem
a seus filhos, que não podem obter a nacionalidade dominicana, porque de acordo com a interpretação
restritiva feitas pelas autoridades dominicanas do artigo 11 da Constituição, são filhos de ‘estrangeiros
em trânsito’. Não é possível considerar em trânsito pessoas que residiram por numerosos anos em um
país onde desenvolveram inúmeros vínculos de todo tipo.96
154. A sentença nº 453 da Câmara Civil da Corte de Apelação do Distrito Nacional proferida em 16 de outubro de
2003, referente à inscrição no registro civil de dois menores cujos pais são haitianos e vivem na República
Dominicana, estabeleceu que:
[…] não se pode assimilar à condição de ilegalidade do estrangeiro o conceito de trânsito, por se
tratarem de figuras distintas e, ademais, nem no regulamento para a aplicação da lei sobre Migração
nem no relatório elaborado pela Comissão [Interamericana de] [D]ireitos [H]umanos [sobre a Situação
dos Direitos Humanos na República Dominicana no ano de 1999], se estabelece a condição de legalidade
como requisito para ter direito à nacionalidade do lugar de nascimento; […] que na espécie não há
possibilidade de que se possa considerar em trânsito os pais dos menores que reclamam o registro de
seu nascimento, em razão de que [d]os documentos depositados nos autos decorre que há vários anos
vivem no país[…, e] que, por outro lado, apesar de ser correto que os pais do menor vivem no país em
um estado de ilegalidade, não é menos certo que este estado de ilegalidade não pode, de modo algum,
afetar os menores, que podem se beneficiar da nacionalidade dominicana apenas demonstrando que
nasceram no território dominicano e que seus pais não estão cumprindo função diplomática no país
nem estão em trânsito nele […].97
155. A Corte considera necessário indicar que o dever de respeitar e garantir o princípio da igualdade perante a lei e
de não discriminação é independente do status migratório de uma pessoa em um Estado. Isto é, os Estados têm
a obrigação de garantir este princípio fundamental a seus cidadãos e a toda pessoa estrangeira que se encontre
em seu território, sem discriminação alguma em razão de sua estadia regular ou irregular, sua nacionalidade,
raça, gênero ou qualquer outra causa.98
156. De acordo com o indicado acima, e levando consideração o direito à nacionalidade dos filhos de pessoas
migrantes na República Dominicana em relação à norma constitucional pertinente e aos princípios internacionais
de proteção dos migrantes, a Corte considera que:
96. Cf. Organização dos Estados Americanos, Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos
na República Dominicana, OEA/Ser.L/V/II.104, doc.49, rev. 1, de 7 de outubro de 1999, par. 363.
97. Cf. sentença nº 453 da Câmara Civil da Corte de Apelação do Distrito Nacional proferida em 16 de outubro de 2003 (expediente de exceções
preliminares e eventuais mérito, reparações e custas, tomo II, folhas 586 a 612).
98. Cf. Condição Jurídica e Direitos dos Migrantes Indocumentados, nota 95 supra, par. 118.
111
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
a) o status migratório de uma pessoa não pode ser condição para a concessão da nacionalidade por
parte do Estado, já que sua qualidade migratória não pode constituir, de nenhuma forma, uma
justificativa para privá-la do direito à nacionalidade nem do gozo e do exercício de seus direitos;99
b) o status migratório de uma pessoa não se transmite a seus filhos; e
c) a condição do nascimento no território do Estado é a única a ser demonstrada para a aquisição
da nacionalidade, no que se refere a pessoas que não teriam direito a outra nacionalidade, se não
adquirem a nacionalidade do Estado onde nasceram.
157. Além do indicado anteriormente, o Tribunal considera oportuno referir-se à Seção V do Regulamento de
Migração da República Dominicana nº 279, de 12 de maio de 1939, vigente no momento do pedido de registro
tardio de nascimento no presente caso, a qual é clara ao estabelecer que o transeunte tem apenas a finalidade
de passar pelo território, para o que é fixado um limite temporal de não mais de dez dias.100 A Corte observa
que, para considerar uma pessoa como transeunte ou em trânsito, independentemente da classificação que se
utilize, o Estado deve respeitar um limite temporal razoável e ser coerente com o fato de que um estrangeiro que
desenvolve vínculos em um Estado não pode ser equiparado a um transeunte ou a uma pessoa em trânsito.
158. Este Tribunal considera que não caberia, sob nenhuma circunstância, a possibilidade de que o Estado tivesse
aplicado às crianças Yean e Bosico a exceção referente aos filhos de uma pessoa em trânsito, já que as mães
das supostas vítimas são dominicanas e as crianças nasceram na República Dominicana, esta última sendo a
condição estabelecida no artigo 11 da Constituição para a concessão da nacionalidade dominicana.
***
159. A Corte passa a analisar a aplicação dos requisitos para o registro tardio de nascimento na República Dominicana
e seus efeitos nas crianças Yean e Bosico no presente caso.
160. Na República Dominicana, o trâmite do registro de nascimento se encontra regulamentado por meio da Lei
nº 659 Sobre atos do Estado Civil, de 17 de julho de 1944, nos artigos 39, 40 e 41.101 Esta lei determina que
99. Cf. Condição Jurídica e Direitos dos Migrantes Indocumentados, nota 95 supra, par. 134.
100. A Seção V do Regulamento de Migração nº 279 de 12 de maio de 1939 define que “[a]os estrangeiros que tratem de entrar à República
com o propósito principal de prosseguir através do país com destino ao exterior se lhes concederá privilégios de transeuntes. Estes privilégios
serão concedidos ainda que o estrangeiro não seja admissível como imigrante se sua entrada não fosse contrária à saúde e à ordem pública.
Ao estrangeiro será requerido declarar seu destino, os meios que tenha escolhido para seu transporte e a data e o lugar de saída da República.
Um período de 10 dias se considerará ordinariamente suficiente para poder passar através da República[; e] [a] um estrangeiro admitido com
o propósito de prosseguir através do país, será concedida uma Permissão de Desembarque, válida por 10 dias […]” (expediente de anexos ao
escrito de petições e argumentos, anexo 21, folhas 364 e 365).
101. A Lei nº 659 Sobre atos do Estado Civil de 17 de julho de 1944, estabelece:
Art. 39 – A certidão de nascimento será feita perante o Oficial do Estado Civil do lugar em que se verifique o parto, dentro dos trinta (30)
dias que se sigam a este. Se no lugar do parto não houver, a certidão se fará dentro de sessenta (60) dias perante o Oficial do Estado
Civil que corresponda à sua jurisdição.
Se o oficial do Estado Civil tiver alguma dúvida sobre a existência da criança cujo nascimento se declara, exigirá sua apresentação
imediata, no caso em que tiver verificado o parto na mesma população, e se tiver ocorrido fora dela, bastará a declaração do (Prefeito),
hoje Juiz de Paz, da Seção.
Art. 40–(Mod. pela Lei 90 de data 23/12/65, G.O. Nº 8963) se o registro de nascimento foi tardio, o Oficial do Estado Civil poderá,
mediante prévia investigação sobre a veracidade de tal registro, inscrevê-lo ou não no registro correspondente, segundo o [artigo] 38
desta Lei, mas não expedirá cópia ao interessado até que a [c]ertidão produzida seja ratificada pelo Tribunal competente, de acordo
com o [artigo] 41 desta mesma lei. Entretanto, não serão admitidos registros tardios até que seja apresentada pelo interessado uma
certidão expedida [pel]o Oficial do Estado Civil da Jurisdição onde se presume ter nascido o declarado, na qual se fará constar que
a pessoa em questão não foi registrada em tal jurisdição com anterioridade, requisito este que se anotará à margem da certidão que
será realizada para esse efeito. Apenas cumprindo este formalismo poderá receber a informação testemunhal ou certidão juramentada
para tais fins. No caso de o nascimento ter ocorrido a partir de 1o de janeiro do ano de 1945, e que haja mais de um Cartório do Estado
Civil no Município onde se presume ter nascido o declarado, a certidão poderá ser expedida pelo Diretor do Escritório Central do
Estado Civil, mediante prévia revisão dos registros sob seu cuidado, e o registro tardio receberá o Oficial do Estado Civil da jurisdição
a que corresponda. Tal certidão não será necessária quando o registro se faça no Cartório do Estado Civil correspondente ao lugar de
nascimento do declarado quando existe uma única dependência, mediante prévia investigação de registros por parte deste funcionário,
fazendo constar nesta certidão, a respeito da qual será responsável em caso de inobservância desta formalidade. Os documentos
comprobatórios de que o beneficiário não foi registrado no lugar de nascimento, incluindo cópia certificada da sentença de ratificação,
devem ser protocolizados e arquivados cuidadosamente pelo Oficial atuante.
Os funcionários encarregados de receber atos de informação testemunhal juramentados para suprir atos do Estado Civil deverão, assim
mesmo, exigir a apresentação da certidão do Oficial do Estado Civil correspondente que indique que o interessado não se encontra
inscrito nos registros de sua responsabilidade.
Art. 41 – (Mod. pela Lei 90 de data 23/12/[65], G.O. Nº 8963) O Oficial do Estado Civil que tenha recebido um registro tardio de
nascimento remeterá imediatamente cópia certificada da certidão ao Promotor Público do Distrito Judicial correspondente, que
mediante prévia investigação de lugar informará o Juízo de Primeira Instância, podendo este tomar todas as medidas de prova, inclusive
consultar livros, documentos dos pais, mesmo falecidos, ouvir testemunhas e intimar as partes interessadas a fim de ratificar ou não
112
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
se o registro de nascimento for tardio, o Oficial do Estado Civil poderá, mediante prévia investigação sobre a
veracidade de tal registro, inscrevê-lo ou não no registro correspondente. A prova de sua veracidade é feita
por meio da apresentação de uma série de documentos que são considerados requisitos para o registro
tardio de nascimento e que, segundo se infere do artigo 9º da Lei nº 659,102 devem ser estabelecidos pela
Junta Central Eleitoral.
161. Na República Dominicana as listas de requisitos se distinguiram de acordo com a idade do menor a ser
registrado, mas também se diferenciaram sem seguir um critério objetivo, de acordo com cada autoridade
competente que a aplica, quanto ao número e ao tipo de requisitos exigidos para uma mesma idade.
162. De acordo com os fatos do presente caso, no momento do pedido de registro tardio foram apresentadas
tanto as declarações de nascimento das crianças, a saber: para Dilcia Yean, a declaração de seu nascimento
emitida pelo “subcentro de saúde” de Sabana Grande de Boyá e, no caso de Violeta Bosico, a declaração de
seu nascimento emitida pelo Prefeito “pedáneo” do Batey Las Charcas de Sabana Grande de Boyá; bem como
as cédulas de identidade de cada uma das mães das crianças (par. 109.15 supra).
163. A Corte considera que ao se apresentar perante o Cartório do Estado Civil e realizar o pedido de registro
tardio, as crianças fizeram exigível seu direito à nacionalidade, apresentaram a declaração de nascimento e a
cédula de identidade de suas mães, que eram os dois requisitos que deveriam ser aplicados a elas, conforme
a legislação interna pertinente e de acordo com suas idades (par. 109.16 supra). Em que pese o anterior,
o Estado rejeitou o requerimento e negou a nacionalidade dominicana às supostas vítimas (pars. 109.17,
109.18, e 109.20 supra).
164. Este Tribunal observa que o requerimento de registro tardio de nascimento foi negado com fundamento no
descumprimento da exigência de apresentação de 11 ou 12 documentos, os quais não eram exigíveis às
crianças menores de 13 anos de idade, e que foram exigidos das crianças, apesar de que no momento do
requerimento Dilcia Yean tinha 10 meses de idade e Violeta Bosico tinha 12 anos de idade (pars. 109.14,
109.17, 109.18 e 109.20 supra).
165. Deve-se fazer notar que a idade é o critério legal utilizado na República Dominicana para diferenciar a
aplicação de requisitos para o pedido de registro tardio de nascimento. De acordo com a legislação aplicável,
as crianças Yean e Bosico não apresentavam nenhuma condição que as diferenciasse das demais crianças
dominicanas menores de 13 anos de idade que pudesse justificar o agravamento das exigências para o
registro de seu nascimento. A aplicação às supostas vítimas dos requisitos que não lhes correspondiam
como menores de 13 anos de idade foi violatória da regulamentação interna sobre a matéria e lhes impôs um
ônus de prova desproporcional e indevido.
166. A Corte considera que ao ter aplicado às crianças outros requisitos distintos aos exigidos para os menores
de 13 anos de idade para obter a nacionalidade, o Estado atuou de forma arbitrária, sem critérios razoáveis
ou objetivos, e de forma contrária ao interesse superior da criança, o que constituiu um tratamento
discriminatório em detrimento das crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico. Essa condição determinou que
elas estivessem à margem do ordenamento jurídico do Estado e fossem mantidas como apátridas, o que as
colocou em uma situação de extrema vulnerabilidade quanto ao exercício e gozo de seus direitos.103
167. Em atenção à condição de crianças das supostas vítimas, a Corte considera que a vulnerabilidade derivada
da apatridia comprometeu o livre desenvolvimento de sua personalidade, já que o acesso aos direitos e à
proteção especial de que são titulares se viu impossibilitado.
168. Ademais, este Tribunal considera que o tratamento discriminatório imposto pelo Estado às crianças Yean
e Bosico se enquadra dentro da condição vulnerável da população haitiana e dominicana de ascendência
haitiana na República Dominicana, à qual pertencem as supostas vítimas (par. 109.9 supra).
169. Nesse sentido, o Comitê dos Direitos da Criança das Nações Unidas expressou sua preocupação “pela
mediante sentença a certidão de registro tardio. O Promotor Público remeterá ao Oficial do Estado Civil cópia da sentença que seja
emitida, devendo este Oficial fazer menção da mesma à margem da certidão de nascimento correspondente, com as objeções que
forem necessárias, podendo então expedir cópia dessa certidão (expediente de anexos ao escrito de petições e argumentos, anexo 1,
folhas 11 a 12).
102. A Lei nº 659 Sobre atos do Estado Civil de 17 de julho de 1944, estabelece em seu artigo 9º, o seguinte: “[O]s oficiais do Estado Civil
deverão se conformar às instruções que recebam da Junta Central Eleitoral e do Escritório Central do Estado Civil e estarão sob a imediata e
direta vigilância dos Promotores Públicos”.
103. Cf. Condição Jurídica e Direitos Humanos da Criança, nota 84 supra, par. 56.
113
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
discriminação das crianças de origem haitiana nascidas no território [da República Dominicana] ou filhos de
famílias haitianas migrantes, em especial [por] seu limitado acesso a moradia, educação e serviços de saúde,
e observ[ou], em particular, a falta de medidas específicas para resolver este problema”. O mesmo Comitê,
especificamente em relação à inscrição no registro civil, afirmou que lhe “preocupa, em particular, a situação
das crianças de origem haitiana ou de famílias haitianas migrantes cujo direito à inscrição no registro civil
foi negado no Estado [… e que, como] consequência desta política, não puderam gozar plenamente de seus
direitos, como o de acesso à atenção à saúde e à educação”.104
170. A Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, por meio de uma especialista independente, publicou
um relatório intitulado “[o]s direitos humanos e a extrema pobreza”, no qual se refere à situação dos haitianos
na República Dominicana nos seguintes termos:
A questão do racismo […] às vezes se manifesta entre os próprios dominicanos, mas sobretudo é
patente diante dos haitianos ou pessoas de origem haitiana cuja[s] familia[s] algumas vezes estão
estabelecida[s] há várias gerações e que continuam circulando. […] Raros são os haitianos, inclusive os
que residem na República Dominicana desde 1957, […] que obtêm sua naturalização. É a discriminação
mais forte que a especialista independente encontrou ao longo da missão. As autoridades são muito
conscientes deste problema […]. O fato de que os haitianos não tenham existência legal na República
Dominicana se baseia em um fenômeno muito profundo de ausência de reconhecimento […].105
171. Em consideração ao dever do Estado de conceder a nacionalidade aos que nasceram em seu território, a
República Dominicana deveria adotar todas as medidas positivas necessárias para garantir que Dilcia Yean e
Violeta Bosico, como crianças dominicanas de ascendência haitiana, pudessem acudir ao procedimento de
registro tardio em condições de igualdade e sem discriminação e exercer e gozar plenamente seu direito à
nacionalidade dominicana. Os requisitos exigidos para provar o nascimento no território devem ser razoáveis
e não podem representar um obstáculo para se ter acesso ao direito à nacionalidade.
172. Este Tribunal conclui que, em razão do tratamento discriminatório aplicado às crianças, o Estado lhes
negou sua nacionalidade e as deixou apátridas, o que, por sua vez, lhes impôs uma situação de contínua
vulnerabilidade que perdurou até 25 do setembro de 2001, isto é, depois da data de reconhecimento da
competência contenciosa da Corte pela República Dominicana.
173. A Corte considera que a situação de extrema vulnerabilidade em que o Estado colocou as crianças Yean
e Bosico, em razão da negação de seu direito à nacionalidade por razões discriminatórias, bem como da
impossibilidade de receber proteção do Estado e de ter acesso aos benefícios dos quais eram titulares, e
finalmente por viverem sob o temor fundado de que seriam expulsas do Estado do qual eram nacionais e
serem separadas de sua família pela falta da certidão de nascimento, a República Dominicana descumpriu
sua obrigação de garantir os direitos consagrados na Convenção Americana, que implica não apenas
que o Estado deve respeitá-los (obrigação negativa), mas que, além disso, deve adotar todas as medidas
apropriadas para garanti-los (obrigação positiva).106
174. A Corte conclui que, por razões discriminatórias e contrárias à normativa interna pertinente, o Estado deixou
de conceder a nacionalidade às crianças, o que constituiu uma privação arbitrária de sua nacionalidade, e
as deixou apátridas por mais de quatro anos e quatro meses, em violação aos artigos 20 e 24 da Convenção
Americana, em relação ao artigo 19 da mesma, e também em relação ao artigo 1.1 deste instrumento, em
detrimento das crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico.
***
175. A situação de extrema vulnerabilidade em que se encontravam as crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico, pela
falta de nacionalidade e pela condição de apátridas, teve consequências relacionadas com seus direitos ao
reconhecimento da personalidade jurídica e ao nome.
104. Cf. Nações Unidas, Comitê dos Direitos da Criança, Exame dos relatórios apresentados pelos Estados Partes de acordo com o Artigo 44
da Convenção. Observações Finais do Comitê dos Direitos da Criança. República Dominicana. UN Doc. CRC/C/15/Add.150, de 21 de fevereiro
de 2001, pars. 22 e 26.
105. Cf. Nações Unidas, Comissão de Direitos Humanos, “Os direitos humanos e a extrema pobreza”, relatório apresentado pela especialista
independente encarregada da questão dos direitos humanos e a extrema pobreza, Sra. A. M. Lizin, de acordo com a resolução 2002/30 da
Comissão de Direitos Humanos. Adição: MISSÃO À REPÚBLICA DOMINICANA. UN Doc. E/CN.4/2003/52/Add.1, pars. 8 a 13.
106. Cf. Caso Instituto de Reeducação do Menor. Sentença de 2 de setembro de 2004. Série C Nº 112, par. 158; Caso dos Irmãos Gómez
Paquiyauri, nota 85 supra, par. 129, e Caso 19 Comerciantes. Sentença de 5 de julho de 2004. Série C Nº 109, par. 153.
114
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
176. O artigo 3 da Convenção Americana, bem como outros instrumentos internacionais,107 consagram o direito
ao reconhecimento da personalidade jurídica, a respeito do qual a Corte Interamericana afirmou que
toda pessoa tem direito a que se reconheça em qualquer parte como sujeito de direitos e de obrigações,
e a gozar dos direitos civis fundamentais. O direito ao reconhecimento da personalidade jurídica
implica a capacidade de ser titular de direitos (capacidade e gozo) e de deveres; a violação àquele
reconhecimento supõe desconhecer em termos absolutos a possibilidade de ser titular destes direitos
e deveres.108
177. A respeito do exercício da titularidade de direitos humanos, a Corte indicou que
[a] maioridade implica a possibilidade do exercício pleno dos direitos, também conhecida como capacidade
de atuar. Isso significa que a pessoa pode exercer de forma pessoal e direta seus direitos subjetivos, bem
como assumir plenamente obrigações jurídicas e realizar outros atos de natureza pessoal ou patrimonial.
Nem todos possuem esta capacidade: dela carecem, em grande medida, as crianças. Os incapazes se
encontram sujeitos à autoridade parental ou, em sua falta, à tutela ou representação. Mas todos são
sujeitos de direitos, titulares de direitos inalienáveis e inerentes à pessoa humana.109
178. Uma pessoa apátrida, ex definitione, não possui personalidade jurídica reconhecida, já que não estabeleceu
um vínculo jurídico político com nenhum Estado, motivo pelo qual a nacionalidade é um pré-requisito para o
reconhecimento da personalidade jurídica.
179. A Corte considera que a falta do reconhecimento da personalidade jurídica fere a dignidade humana, já que
nega de forma absoluta sua condição de sujeito de direitos e torna o indivíduo vulnerável face à inobservância
de seus direitos por parte do Estado ou de particulares.
180. No caso concreto, o Estado manteve as crianças Yean e Bosico em um limbo jurídico no qual, ainda que as
crianças existissem e se encontrassem inseridas em um determinado contexto social, sua própria existência
não estava juridicamente reconhecida, isto é, não tinham personalidade jurídica.
181. No que se refere à suposta violação ao direito ao nome, estabelecido no artigo 18 da Convenção Americana,
é necessário indicar que, por mais que a Comissão Interamericana não a tenha alegado, a Corte estabeleceu
que as supostas vítimas, seus familiares ou seus representantes, podem invocar direitos distintos dos
incluídos na demanda da Comissão, sobre a base dos fatos apresentados por esta.110
182. Agora, o direito ao nome, consagrado no artigo 18 da Convenção Americana, constitui um elemento básico
e indispensável da identidade de cada pessoa, sem o qual não pode ser reconhecida pela sociedade nem
registrada perante o Estado. Este direito também se estabelece em diversos instrumentos internacionais.111
183. Os Estados, no âmbito do artigo 18 da Convenção, têm a obrigação não apenas de proteger o direito ao
nome, mas também de oferecer as medidas necessárias para facilitar o registro da pessoa, imediatamente
após seu nascimento.
184. Igualmente, os Estados devem garantir que a pessoa seja registrada com o nome escolhido por ela ou por
seus pais, segundo seja o momento do registro, sem nenhum tipo de restrição ao direito nem interferência
na decisão de escolher o nome. Uma vez registrada a pessoa, deve-se garantir a possibilidade de preservar
e reestabelecer seu nome e seu sobrenome. O nome e os sobrenomes são essenciais para estabelecer
formalmente o vínculo existente entre os diferentes membros da família com a sociedade e com o Estado, o
que não foi garantido às crianças Yean e Bosico pela República Dominicana.
185. Além do anteriormente exposto, a Corte considera que a vulnerabilidade a que foram expostas as crianças,
como consequência da carência de nacionalidade e de personalidade jurídica, para a criança Violeta Bosico
também se refletiu no fato de que foi impedida de estudar durante o período escolar 1998-1999 no turno
107. Cf., entre outros, Declaração Universal de Direitos Humanos, artigo 6º; Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, artigo 16;
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, artigo XVII, e Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos, artigo 5.
108. Cf. Caso Bámaca Velásquez. Sentença de 25 de Novembro de 2000, Série C Nº 70, par. 179.
109. Cf. Condição Jurídica e Direitos Humanos da Criança, nota 84 supra, par. 41.
110. Cf. Caso Yatama, nota 13 supra, par. 183; Caso de La Cruz Flores. Sentença de 18 de novembro de 2004. Série C Nº 115, par. 122, e Caso
“Instituto de Reeducação do Menor”, nota 106 supra, par. 125.
111. Cf., entre outros, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, artigo 24.2; Convenção sobre os Direitos da Criança, artigo
7.1; African Charter on the Rights and Welfare of the Child, artigo 6.1, e Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os
Trabalhadores Migrantes e Membros de Suas Famílias, artigo 29. O Tribunal Europeu afirmou que o direito ao nome se encontra protegido
pelo artigo 8 da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, ainda que este não esteja
especificamente mencionado, cf. Stjerna v. Finland, judgment of 25 November 1994, Series A, nº 299-B, p. 60, par. 37, e Burghartz v.
Switzerland, judgment of 22 February 1994, Series A nº 280-B, p. 28, par. 24.
115
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
diurno da Escola de Palavé. Precisamente por não contar com a certidão de nascimento, viu-se forçada a
estudar durante esse período na escola noturna, para maiores de 18 anos. Este fato, por sua vez, agravou
sua situação de vulnerabilidade, já que ela não recebeu a proteção especial que requeria como criança, de
estudar no horário que lhe seria adequado, em companhia de crianças de sua idade, e não com pessoas
adultas (pars. 109.34, 109.35 e 109.36 supra). Faz-se necessário ressaltar que, em conformidade com o
dever de proteção especial das crianças consagrado no artigo 19 da Convenção Americana, interpretado à
luz da Convenção dos Direitos da Criança e do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos
Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em relação ao dever de desenvolvimento
progressivo contido no artigo 26 da Convenção, o Estado deve prover educação primária gratuita a todos os
menores, em um ambiente e em condições propícias para seu pleno desenvolvimento intelectual.
186. A Corte observa que a violação ao direito à nacionalidade das crianças Yean e Bosico, a condição de
apátridas na qual foram mantidas, e o não reconhecimento de sua personalidade jurídica nem de seu nome,
desnaturalizou e negou a projeção externa ou social de sua personalidade.
187. Em função do exposto acima, esta Corte considera que a privação de sua nacionalidade às crianças teve como
consequência que a República Dominicana violou os direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica e ao
nome consagrados nos artigos 3º e 18 da Convenção Americana, em relação ao artigo 19 da mesma, e também
em relação ao artigo 1.1 deste instrumento, em detrimento das crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico.
***
188. Os representantes e a Comissão alegaram que a aplicação das leis internas da República Dominicana sobre
a inscrição no registro civil e a concessão da nacionalidade ocorre de forma discricionária e produz efeitos
discriminatórios em relação às crianças de ascendência haitiana, como as crianças Yean e Bosico.
189. O Estado, por sua vez, argumentou que tanto a Constituição quanto os estatutos de migração e de registro
civil oferecem as garantias requeridas para proteger os direitos consagrados na Convenção Americana.
190. A este respeito, a Corte considera que a normativa interna que determina os requisitos para o registro tardio
de nascimento deve ser coerente com o fundamento do direito à nacionalidade na República Dominicana, e
com os termos da Convenção Americana e de outros instrumentos internacionais,112 isto é, devem determinar
que a pessoa nasceu no território desse Estado.
191. De acordo com a obrigação derivada do artigo 2 da Convenção Americana, a Corte considera que os requisitos
para obter a nacionalidade devem ser estabelecidos com anterioridade, de forma objetiva e clara pela autoridade
competente. No mesmo sentido, a lei não deve conceder uma discricionariedade ampla ao funcionário do
Estado que a aplica, porque neste caso se criaria espaço para o surgimento de atos discriminatórios.
192. Os requisitos para o registro tardio de nascimento não podem representar um obstáculo para o gozo do
direito à nacionalidade, em particular para os dominicanos de ascendência haitiana, que pertencem a um
setor da população vulnerável na República Dominicana.
X
Artigo 17 da Convenção Americana
(Proteção da Família)
Alegações dos representantes
193. Quanto à suposta violação ao direito à proteção da família, consagrado no artigo 17 da Convenção Americana,
os representantes alegaram que:
a) o Estado tem a obrigação de adotar medidas essenciais para proteger a unidade familiar. No
presente caso, o Estado não realizou as medidas necessárias para garantir os direitos da criança,
sobretudo quanto ao direito a não serem separadas forçadamente de sua família e de assegurar o
112. Cf., entre outros, Declaração Americana de Direitos Humanos, artigo 19; Declaração Universal dos Direitos do Homem, artigo 15; Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, artigo 24.3; Convenção sobre os Direitos da Criança, artigo 7.1; Convenção Internacional sobre
a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de Suas Famílias, artigo 29, e Convenção para Redução dos Casos
de Apatridia, artigo 1.1.
116
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
direito a residir no país. O Estado violou o direito à família das crianças Dilcia e Violeta, ao se negar
a conceder as certidões de nascimento às crianças de ascendência haitiana; e
b) apesar de a República Dominicana não ter tentado separar as crianças Dilcia e Violeta de suas
famílias, a ameaça de uma separação é real, dado que o Estado realiza sistematicamente expulsões
coletivas de haitianos e de dominicanos de ascendência haitiana.
Alegações da Comissão
194. A Comissão não apresentou argumentos sobre o artigo 17 da Convenção Americana.
Alegações do Estado
195. Quanto à suposta violação ao artigo 17 da Convenção Americana, o Estado afirmou que não pode ser acusado
de uma violação ao direito à família quando não existe tal violação. Do mesmo modo, o Estado afirmou que
a falta de registro das crianças Yean e Bosico foi responsabilidade de sua família.
Considerações da Corte
196. O artigo 17.1 da Convenção Americana dispõe:
1. A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo
Estado.
[…]
197. A este respeito, este Tribunal considera que os fatos alegados sobre a suposta violação a este artigo, já foram
examinados em relação à condição de vulnerabilidade das crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico (pars. 172 e
173 supra).
XI
Artigos 8 e 25 da Convenção Americana
(Garantias Judiciais e Proteção Judicial)
Alegações da Comissão
198. Quanto à suposta violação aos artigos 8 e 25 da Convenção, a Comissão argumentou que:
a) as mães das crianças solicitaram diretamente ao Promotor Público do Distrito de Monte Plata que
ordenasse a inscrição dos nascimentos de suas filhas no Registro Civil, já que o promotor é quem
deve supervisionar e informar sobre erros cometidos pelos oficiais do Registro Civil. O Promotor
Público descartou a “medida” promovida e ordenou que o processo regressasse ao Cartório do
Registro Civil;
b) a legislação do Estado estabelece duas vias processuais para a revisão das resoluções do Registro
Civil sobre pedidos de registros tardios, a saber: a via administrativa que cabe ao Promotor Público
e também pode ser revisada pela Junta Central Eleitoral; e a do juízo de primeira instância. Estas
vias não oferecem um recurso de apelação contra uma decisão negativa do Registro Civil. A Junta
Central Eleitoral não é uma autoridade judicial, nem é parte do sistema judicial de acordo com
a legislação dominicana, e suas decisões tampouco podem ser apeladas, motivo pelo qual não
se pode considerar que o recurso hierárquico constitua um recurso efetivo. As supostas vítimas
careciam de legitimação para iniciar um processo judicial e seus pedidos nunca foram resolvidos
por um tribunal competente;
c) o recurso de amparo não existia legalmente no momento dos fatos e o recurso de
inconstitucionalidade não seria procedente contra atos administrativos até o ano de 1998; e
d) o Estado não investigou, puniu ou reparou as supostas violações cometidas por seus agentes no
presente caso.
Alegações dos representantes
199. Quanto à suposta violação aos artigos 8 e 25 da Convenção os representantes afirmaram que:
117
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
a) o Estado não estabeleceu um mecanismo ou procedimento que permita apelar de uma decisão
de não registrar um indivíduo perante um juiz ou tribunal competente. A decisão desfavorável do
Oficial do Estado Civil, apesar de várias tentativas razoáveis por parte das mães das crianças Dilcia
e Violeta, nunca foi revisada por um tribunal competente e independente;
b) existem duas vias para a revisão de decisões do Oficial do Estado Civil: 1) a revisão estabelecida
pela Lei nº 659, e 2) a revisão pela autoridade administrativa responsável por realizar os registros,
neste caso a Junta Central Eleitoral. A Junta Central Eleitoral não está regulamentada por
procedimentos formais e não publicou regulamentos ou promulgou procedimentos mediante
os quais os solicitantes possam pedir a revisão das decisões adversas dos Oficiais do Estado
Civil. Deste modo, o Estado não oferece um recurso efetivo pelo qual as crianças Dilcia e Violeta
possam impugnar a negativa do Oficial do Estado Civil;
c) a resolução dos recursos de amparo e de inconstitucionalidade pode levar até dois anos, de forma
que não existe na República Dominicana um recurso simples, o que constitui uma violação ao
artigo 25 da Convenção, e
d) o Estado privou as crianças das garantias processuais, consagradas no artigo 8 da Convenção,
ao não lhes conceder o direito a serem ouvidas em um procedimento judicial pela negação das
certidões de nascimento. De acordo com a antiga legislação e a nova Resolução da Junta Central
Eleitoral, quando um oficial do registro civil nega uma certidão de nascimento, este funcionário
deve imediatamente solicitar à Junta Central Eleitoral que revise o caso, sem entregar nenhum
papel aos solicitantes.
Alegações do Estado
200. O Estado argumentou que não pode haver uma violação à proteção judicial quando as supostas vítimas
nem sequer fizeram uso destes mecanismos. As crianças tinham à sua disposição uma série de garantias
administrativas e judiciais que se omitiram de utilizar, alegando desconhecer seu funcionamento e
existência, de modo que as supostas vítimas são responsáveis por não fazer uso destes recursos, o que
não é atribuível ao Estado.
Considerações da Corte
201. Este Tribunal não se referirá às alegadas violações dos artigos 8 e 25 da Convenção Americana, devido a que
carece de competência para se pronunciar sobre possíveis violações ocorridas em relação aos fatos ou atos
sucedidos antes de 25 de março de 1999, data na qual a República Dominicana reconheceu a competência
contenciosa da Corte Interamericana.
XII
Artigos 5 e 12 da Convenção Americana
(Direito à Integridade Pessoal e Liberdade de Consciência e de Religião)
202. Na conclusão de suas alegações finais escritas, os representantes indicaram que o Estado havia violado, entre
outros, os artigos 5 (Direito à Integridade Pessoal) e 12 (Liberdade de Consciência e Religião) da Convenção,
a respeito dos quais não apresentaram alegações que fundamentassem estas supostas violações.
Considerações da Corte
203. A respeito das alegadas violações aos artigos 5º e 12 da Convenção Americana, indicadas pelos representantes
unicamente na conclusão do escrito de alegações finais, e que não foram incluídas no escrito de petições
e argumentos, este Tribunal considera que estas alegações são extemporâneas; entretanto, não possui
impedimento para analisá-las, de acordo com o princípio iura novit curia.113
204. No presente caso, a Corte reconheceu a situação de vulnerabilidade em que se encontraram as crianças Yean
e Bosico ao não obterem a nacionalidade dominicana. Além disso, a criança Violeta Bosico, ao carecer da
certidão de nascimento não pôde se matricular na escola diurna, e se viu obrigada a se matricular na escola
113. Cf. Caso Durand e Ugarte. Sentença de 16 de agosto de 2000. Série C Nº 68, par. 76; Caso Castillo Petruzzi e Outros. Sentença de 30 de
maio de 1999. Série C Nº 52, par. 166, e Caso Blake. Sentença de 24 de janeiro de 1998. Série C Nº 36, par. 112.
118
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
noturna, durante o período escolar 1998-1999. Isso lhe produziu sofrimento e insegurança, motivo pelo qual
este Tribunal avaliará essas circunstâncias ao fixar as reparações pertinentes, e não se referirá à suposta
violação ao artigo 5 da Convenção Americana em detrimento das crianças.
205. No que se refere aos familiares das crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico, a Corte, com base na Convenção
Americana e à luz do referido princípio iura novit curia, considera que a situação de vulnerabilidade que o
Estado impôs às crianças Yean e Bosico causou incerteza e insegurança às senhoras Leonidas Oliven Yean e
Tiramen Bosico Cofi, mães das crianças, e à senhora Teresa Tucent Mena, irmã da criança Violeta, em virtude
do temor fundado de que seriam expulsas da República Dominicana, da qual eram nacionais, em razão da
falta das certidões de nascimento e das diversas dificuldades que enfrentaram para obtê-las.
206. A partir do anteriormente exposto, a Corte considera que o Estado violou o direito à integridade pessoal,
consagrado no artigo 5 da Convenção Americana, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, em
detrimento das senhoras Leonidas Oliven Yean, Tiramen Bosico Cofi e Teresa Tucent Mena.
207. No que se refere ao artigo 12 da Convenção Americana, a Corte considera que os fatos do presente caso não
se referem ao mesmo, motivo pelo qual a Corte não se pronunciará sobre o tema.
XIII
Reparações
Aplicação do artigo 63.1
Obrigação de reparar
208. De acordo com o exposto nos capítulos anteriores, o Estado é responsável pela violação aos direitos
consagrados nos artigos 3, 18, 20 e 24 da Convenção Americana, em relação ao artigo 19 da mesma,
e também em relação ao artigo 1.1 deste instrumento, em detrimento das crianças Dilcia Yean e Violeta
Bosico. Igualmente, o Estado é responsável pela violação ao direito consagrado no artigo 5 da Convenção,
em relação ao artigo 1.1 deste tratado, em detrimento das senhoras Leonidas Oliven Yean e Tiramen Bosico
Cofi, mães das vítimas, e da senhora Teresa Tucent Mena, irmã da criança Violeta Bosico. O artigo 63.1 da
Convenção Americana prevê que:
[q]uando decidir que houve violação de um direito ou liberdade protegidos nesta Convenção, a Corte
determinará que se assegure ao prejudicado o gozo do seu direito ou liberdade violados. Determinará
também, se isso for procedente, que sejam reparadas as conseqüências da medida ou situação que haja
configurado a violação desses direitos, bem como o pagamento de indenização justa à parte lesada.
209. Este preceito reflete uma norma consuetudinária que constitui um dos princípios fundamentais do Direito
Internacional contemporâneo sobre a responsabilidade dos Estados. Ao produzir-se um fato ilícito imputável
a um Estado, surge imediatamente sua responsabilidade internacional pela violação à norma internacional
em questão, com o consequente dever de reparar e fazer cessar as consequências da violação.114
210. A reparação do dano requer, sempre que seja possível, a plena restituição (restitutio in integrum), que
consiste no restabelecimento da situação anterior. Caso não seja possível, como no presente caso, o tribunal
internacional deve determinar as medidas que garantam os direitos violados, evitem novas violações e
reparem as consequências produzidas pelas violações, bem como estabelecer a indenização que compense
os danos ocasionados. O Estado obrigado não pode invocar disposições de direito interno para modificar ou
descumprir a obrigação de reparar. Esta está sujeita, em todos seus aspectos (alcance, natureza, modalidades
e determinação dos beneficiários), ao Direito Internacional.115
211. Por meio das reparações, busca-se que cessem os efeitos das violações perpetradas. Sua natureza e seu
montante dependem das características das violações cometidas, do bem jurídico afetado e dos danos
material e imaterial ocasionados. Não devem implicar o enriquecimento ou o empobrecimento para a vítima
ou seus sucessores.116
114. Cf. Caso Acosta Calderón, nota 13 supra, par. 146; Caso Yatama, nota 13 supra, par. 231, e Caso da Comunidade Indígena Yakye Axa,
nota 16 supra, par. 180.
115. Cf. Caso Acosta Calderón, nota 13 supra, par. 147; Caso Yatama, nota 13 supra, par. 232, e Caso Fermín Ramírez, nota 13 supra, par. 123.
116. Cf. Caso Acosta Calderón, nota 13 supra, par. 148; Caso Yatama, nota 13 supra, par. 233, e Caso Fermín Ramírez, nota 13 supra, par. 124.
119
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
212. De acordo com os elementos probatórios recolhidos durante o processo e à luz dos critérios anteriores, a
Corte analisará as pretensões das partes em matéria de reparações e determinará as medidas que considere
pertinentes.
A) Beneficiários
Alegações da Comissão
213. A Comissão argumentou que, em atenção à natureza do presente caso, e sem prejuízo do que os representantes
pudessem determinar a respeito das supostas vítimas em sua devida oportunidade, as beneficiárias das
reparações que a Corte venha a ordenar são: Dilcia Yean e Violeta Bosico, e suas mães, as senhoras Leonidas
Yean e Tiramen Bosico Cofi.
Alegações dos representantes
214. Os representantes afirmaram que a República Dominicana deve reparar as crianças Dilcia e Violeta e seus
familiares pelos danos sofridos pelas supostas violações cometidas em seu prejuízo.
Alegações do Estado
215. O Estado não realizou alegações a respeito.
Considerações da Corte
216. A Corte considera como “parte lesada” as crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico, em seu caráter de vítimas das
violações dos direitos consagrados nos artigos 3, 18, 20 e 24 da Convenção Americana, em relação ao artigo
19 da mesma, e também em relação ao artigo 1.1 deste instrumento, de maneira que serão beneficiárias das
reparações determinadas pelo Tribunal a título de dano imaterial.
217. Além disso, as senhoras Leonidas Oliven Yean e Tiramen Bosico Cofi, mães das vítimas, e a senhora Teresa
Tucent Mena, irmã da criança Violeta Bosico, em seu caráter de vítimas da violação ao direito consagrado no
artigo 5 da Convenção Americana, em relação ao artigo 1.1 deste tratado, também são consideradas “parte
lesada” no presente caso.
B) Danos Material e Imaterial
Alegações da Comissão
218. A Comissão não se referiu ao dano material e, quanto à indenização a título de dano imaterial, afirmou que:
a) as reparações necessárias para que o Estado cumpra sua responsabilidade internacional incluem
o pagamento de uma justa indenização para compensar os “danos morais ocasionados”;
b) a incerteza das crianças sobre seu destino provocou angústia e temor nelas e em seus familiares.
A preocupação de duas mães solteiras, com limitados recursos econômicos, de que suas filhas
de 11 meses e 12 anos, respectivamente, fossem expulsas e enviadas ao Haiti, tem um valor que
ultrapassa a reparação material; e
c) no caso de Violeta Bosico, sua mãe experimentou um sentimento de frustração ao ver que,
mediante a imposição de um requisito com o qual não podia contar, não por falta de direito
mas pela aplicação discriminatória da lei por parte de vários funcionários estatais, os esforços
realizados para que sua sua filha estudasse e se superasse foram obstaculizados e suspensos por
um ano.
Alegações dos representantes
219. Os representantes não se referiram ao dano material e, quanto ao dano imaterial, afirmaram que:
a) a sentença da Corte por si mesma é insuficiente para assegurar que as violações cometidas no
presente caso não voltem a se repetir ou que se restitua às supostas vítimas o estado anterior;
b) as violações cometidas pela República Dominicana submeteram as crianças Dilcia e Violeta a
danos graves e irreparáveis que incluem consequências psicológicas negativas;
c) as mães das crianças Dilcia e Violeta sofreram um dano quando o Estado negou às suas
120
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
filhas seus direitos à personalidade jurídica, à nacionalidade e ao nome, já que temiam que
suas filhas fossem expulsas da República Dominicana. Ademais, tiveram que enfrentar a
possibilidade de que suas filhas jamais fossem reconhecidas pelo Estado como pessoas e
como dominicanas; e
d) o medo e a incerteza causadas pelas passadas e contínuas violações do Estado criaram sentimentos
de angústia e de incerteza para as crianças Dilcia e Violeta e para suas famílias. Por isso, solicitaram
à Corte que ordene ao Estado a título de dano imaterial o pagamento de US$8.000,00 (oito mil
dólares dos Estados Unidos da América) para cada criança; US$4.000,00 (quatro mil dólares dos
Estados Unidos da América) para suas mães, e US$2.000,00 (dois mil dólares dos Estados Unidos
da América) para Teresa Tucent Mena, irmã de Violeta.
Alegações do Estado
220. O Estado argumentou que:
a) não procede o pagamento de nenhum tipo de indenização no presente caso, já que não se
demonstrou uma relação causal entre o dano efetivo às supostas vítimas e as supostas condutas
e omissões do Estado. Ao contrário, as mães das crianças foram quem deixaram de realizar as
gestões e de utilizar os instrumentos jurídicos que o Estado põe à sua disposição para cumprir a
obrigação de todo dominicano de registrar seus filhos, e
b) existe uma impossibilidade econômica para cobrir estes gastos e, caso seja concedida a um
solicitante, o Estado, com base no princípio de não discriminação, deveria restituir economicamente
a todos os demais cidadãos que tenham realizado trâmites similares, o que constituiria um sério
atentado à reserva patrimonial da República Dominicana.
Considerações da Corte
221. Este Tribunal não realizará um pronunciamento a título de dano material em favor das vítimas ou de
seus familiares, dado que nem a Comissão nem os representantes solicitaram uma indenização por este
quesito.
222. Por sua vez, o dano imaterial pode compreender tanto os sofrimentos e as aflições causados às vítimas e a
seus familiares, incluindo a deterioração de valores significativos para estas pessoas, como alterações de
caráter não pecuniário nas condições de existência das vítimas ou de sua família.117
223. A jurisprudência internacional estabeleceu reiteradamente que a sentença constitui per se uma forma de
reparação. Não obstante isso, tomando em conta as circunstâncias do presente caso, o sofrimento que
os fatos causaram às crianças, a suas mães e à irmã da criança Violeta Bosico, esta Corte avaliará se é
pertinente ordenar o pagamento de uma compensação a título de dano imaterial, conforme o princípio de
equidade.118
224. Ao fixar a compensação a título de dano imaterial no caso sub judice, deve-se considerar que o Estado
reconheceu a nacionalidade dominicana das crianças Dilcia e Violeta em 25 de setembro de 2001, isto é,
mais de quatro anos e quatro meses depois de que estas solicitaram o registro tardio de seu nascimento.
Ao não conceder às crianças a nacionalidade dominicana, o Estado lhes impôs uma situação de extrema
vulnerabilidade e violou seu direito à nacionalidade por razões discriminatórias, bem como outros direitos,
a saber: o direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, ao nome e à igualdade perante a lei, todos
em relação aos direitos da criança. O Estado tampouco ofereceu a proteção especial que lhes era devida,
impediu seu acesso aos benefícios dos quais eram titulares e causou o fato de que elas vivessem sob o
temor fundado de serem expulsas do Estado do qual eram nacionais, e de serem separadas de sua família.
As crianças Dilcia e Violeta não contaram com a proteção que a República Dominicana deveria lhes oferecer,
de acordo com as obrigações internacionais assumidas convencionalmente.
225. Do mesmo modo, durante parte do período escolar 1998-1999, a criança Violeta Bosico frequentou a jornada
noturna da escola, em virtude da falta da certidão de nascimento (pars. 109.34 e 109.35 supra). Por isso, o
Estado impediu a criança de se matricular na escola diurna, a qual deveria ter frequentado de acordo com sua
117. Cf. Caso Acosta Calderón, nota 13 supra, par. 158; Caso Yatama, nota 13 supra, par. 243, e Caso Fermín Ramírez, nota 13 supra, par. 129.
118. Cf. Caso Acosta Calderón, nota 13 supra, par. 159; Caso da Comunidade Indígena Yakye Axa. nota 16 supra, par. 200, e Caso da
Comunidade Moiwana, nota 8 supra, par. 192.
121
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
idade, aptidões e segundo os programas escolares e a exigência adequados, juntamente com companheiros
de sua idade. Esta situação causou incerteza e insegurança à criança.
226. Em função do exposto acima, este Tribunal considera que deve determinar o pagamento de uma
compensação para as crianças. Para tanto, em consideração ao indicado pelos representantes (par. 219.d
supra), fixa com base na equidade a quantia de US$ 8.000.00 (oito mil dólares dos Estados Unidos da
América), que deve ser paga à criança Dilcia Yean a título de dano imaterial, e a quantia de US$ 8.000.00
(oito mil dólares dos Estados Unidos da América), que deve ser paga à criança Violeta Bosico por esse
mesmo conceito.
227. Ademais, a situação de vulnerabilidade que o Estado impôs às crianças Yean e Bosico causou incerteza e
insegurança aos familiares das vítimas, bem como um temor fundado de que seriam expulsas de seu país,
em razão da falta das certidões de nascimento e pelas diversas dificuldades que enfrentaram para obtêlas. Assim expressou a senhora Leonidas Oliven Yean, mãe de Dilcia, em sua declaração prestada em 24
de julho de 1999, quando assinalou que “tinha medo de que Dilcia [fosse] expulsa ao Haiti [...,] já que na
Sabana Grande de Boyá conheceu muitas pessoas de ascendência haitiana que não tinham as certidões de
nascimento e pelo fato de não as terem, foram expulsas pela imigração”. Igualmente, Teresa Tucent Mena,
irmã da criança Violeta Bosico, com quem esta viveu, sofreu pelo fato de que sua irmã poderia ser expulsa
pela falta da certidão de nascimento, bem como de que não poderia concluir sua educação pelo mesmo
motivo.
228. Em razão do anterior, a situação das crianças Dilcia e Violeta produziu angústia e insegurança em suas mães
e na irmã de Violeta Bosico.
229. No que se refere ao dano imaterial sofrido pelas senhoras Leonidas Oliven Yean, Tiramen Bosico Cofi
e Teresa Tucent Mena, esta Corte considera que a sentença per se constitui uma forma de reparação,
como já se afirmou (par. 223 supra), como também as diversas medidas de satisfação e as garantias de
não repetição estabelecidas na presente Sentença (pars. 234, 235 e 239 a 242 infra), as quais têm uma
repercussão pública.
C) Outras Formas de Reparação
(Medidas de Satisfação e Garantias de não repetição)
230. A Corte passa a considerar outros efeitos lesivos dos fatos, que não possuem caráter econômico ou
patrimonial, e que poderiam ser reparados mediante a realização de atos do poder público.
Alegações da Comissão
231. A Comissão argumentou que:
a) é necessário que neste caso seja concedida uma reparação integral do dano causado às crianças
que garanta a não repetição desse tipo de situações. Não se pode imaginar que com a entrega
de documentos à margem da lei dominicana se repare uma violação que teve fortes efeitos nas
vítimas, especialmente suscetíveis, que requeriam uma especial proteção estatal;
e solicitou que:
b) o Estado efetue um reconhecimento público das violações cometidas em detrimento das crianças
e ofereça uma desculpa pública;
c) o Estado modifique o sistema de registro para assegurar que não se negue o direito a uma certidão
de nascimento às crianças dominicanas de ascendência haitiana, seja por lei ou por sua aplicação
discricionária por parte de funcionários estatais;
d) o Estado modifique a legislação para adequá-la à Convenção Americana, o que implica não apenas
a eliminação de requisitos que são arbitrários e discriminatórios, mas também em relação à
existência de um recurso idôneo e efetivo que permita às pessoas recorrerem a órgãos adequados
nos casos em que seja necessário; e
e) o Estado inicie uma investigação séria e exaustiva sobre a atuação dos oficiais dominicanos do
Registro Civil e da Promotoria Pública que violaram os direitos fundamentais das crianças Dilcia
e Violeta.
122
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
Alegações dos representantes
232. Os representantes solicitaram que a Corte ordene ao Estado:
a) reconhecer as violações aos direitos humanos das crianças Dilcia e Violeta e que lhes ofereça uma
desculpa pública, a qual deverá ser realizada pelo Presidente da República. O reconhecimento
público constituiria um indicativo para os Cartórios do Estado Civil na República Dominicana de
que a discriminação não será tolerada. Este reconhecimento público é necessário para prevenir
futuras violações;
b) aplicar e difundir a sentença, utilizando dos meios de comunicação;
c) modificar ou derrogar todas as leis, práticas ou procedimentos que sejam contrários às normas
estabelecidas pela Convenção Americana e a Constituição;
d) estabelecer leis e procedimentos que protejam e assegurem os direitos das crianças dominicanas
de ascendência haitiana. Nesse sentido, o Estado deve oferecer assistência adicional às
comunidades dominicanos-haitianas para reparar o dano causado pela prática de não registrar as
crianças dominicanas de ascendência haitiana e por em funcionamento campanhas de registro e
outros programas;
e) implementar uma campanha e uma política para que se garanta o direito das crianças ao registro
imediato de seu nascimento;
f) aceitar a apresentação de outros documentos de identificação dos pais, distintos à cédula de
identidade e eleitoral, para o registro das crianças;
g) enviar oficiais do Estado Civil para registrar as crianças nas comunidades em que vivem;
h) reduzir os custos do registro civil;
i) eliminar o requisito de apresentar as certidões de nascimento para a matrícula nas escolas, e
todos os demais obstáculos que impeçam as crianças de exercerem seu direito à educação; e
j) que estabeleça uma bolsa com fundos para que as crianças Dilcia e Violeta paguem o custo de seus
estudos e os gastos de manutenção durante seus estudos primário, secundário e superior. Estes
fundos permitiriam a Dilcia e a Violeta completar sua educação apesar do grave dano causado a
seus planos de vida. O Estado também deve pagar os gastos com tutores para que as crianças
possam obter o nível de educação adequado para sua idade e poder obter confiança em si mesmas
e acreditar nas possibilidades de êxito educativo.
Alegações do Estado
233. O Estado afirmou que as petições efetuadas pela Comissão e pelos representantes de ordenar a adequação
e simplificação dos requisitos legais para o acesso ao procedimento do registro tardio são improcedentes
e desnecessárias. Ademais, assinalou, no momento de apresentação da contestação da demanda, que o
Congresso da República estava conhecendo de um projeto de lei que agiliza este procedimento, criando
Cartórios do Registro Civil em clínicas, hospitais, farmácias rurais e outras agências comunitárias, para o
registro de toda pessoa nascida em solo dominicano.
Considerações da Corte
a) Publicação das partes pertinentes da Sentença da Corte
234. A Corte considera, como o fez em outras oportunidades,119 que o Estado deve publicar, como medida de
satisfação, dentro de um prazo de seis meses contado a partir da notificação da presente Sentença, no Diário
Oficial e em outro jornal de circulação nacional na República Dominicana, ao menos uma vez, tanto a Seção
denominada “Fatos Provados” quanto os Pontos Resolutivos da presente Sentença, sem as notas de rodapé
correspondentes.
b) Ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional e em desagravo às crianças
Dilcia Yean e Violeta Bosico e seus familiares
235. No que se refere ao ato de desculpas públicas solicitado pelos representantes das vítimas e a Comissão,
119. Cf. Caso Acosta Calderón, nota 13 supra, par. 164; Caso Yatama, nota 13 supra, par. 252, e Caso da Comunidade Indígena Yakye Axa,
nota 16 supra, par. 227.
123
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
e como consequência das violações estabelecidas nesta Sentença, a Corte considera que o Estado deve
realizar um ato público de reconhecimento de sua responsabilidade internacional pelos fatos a que se
refere a presente decisão e de pedido de desculpas às crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico, e às senhoras
Leonidas Oliven Yean, Tiramen Bosico Cofi e Teresa Tucent Mena, no prazo de seis meses, contado a partir
da notificação da presente Sentença. Este ato deve contar com a participação das autoridades, das vítimas
e de seus familiares, bem como dos representantes das vítimas, e deve contar com difusão nos meios de
comunicação (rádio, imprensa e televisão). O referido ato terá efeitos de satisfação e servirá como garantia
de não repetição.
c) Sobre a normativa referente ao registro tardio de nascimento de uma pessoa no registro civil
236. Os Estados devem adotar “as medidas legislativas ou de outro caráter que forem necessárias para fazer
efetivos” os direitos reconhecidos pela Convenção Americana. Esta é uma obrigação que o Estado deve
cumprir pelo fato de ter ratificado este instrumento legal.120
237. Dadas as particularidades do presente caso, esta Corte considera necessário referir-se ao contexto referente
ao registro tardio de nascimento na República Dominicana. A este respeito, o Comitê dos Direitos da Criança
das Nações Unidas recomendou que a República Dominicana
[…] fortaleça e aumente suas medidas para assegurar o registro imediato do nascimento de todas
as crianças. Deve ser dada especial ênfase ao registro das crianças que pertencem aos grupos mais
vulneráveis, entre eles as crianças de origem haitiana ou dos filhos de famílias haitianas migrantes.121
238. A Corte toma nota de que a República Dominicana efetuou modificações em sua legislação e, em particular,
na normativa aplicável ao registro tardio de nascimento, durante o tempo em que o presente caso esteve sob
o conhecimento dos órgãos do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos.
239. Esta Corte considera que a República Dominicana deve adotar em seu direito interno, dentro de um prazo
razoável, e de acordo com o artigo 2 da Convenção Americana, as medidas legislativas, administrativas e de
qualquer outro caráter que sejam necessárias para regulamentar o procedimento e os requisitos exigidos
para adquirir a nacionalidade dominicana, mediante o registro tardio de nascimento. Este procedimento
deve ser simples, acessível e razoável, em consideração de que, de outra forma, os solicitantes poderiam
permanecer na condição de apátridas. Além disso, deve existir um recurso efetivo para os casos em que o
requerimento seja negado.
240. Este Tribunal considera que o Estado, ao determinar os requisitos para o registro tardio de nascimento,
deverá tomar em conta a situação especialmente vulnerável das crianças dominicanas de ascendência
haitiana. Os requisitos exigidos não devem constituir um obstáculo para obter a nacionalidade dominicana
e devem ser apenas aqueles indispensáveis para estabelecer que o nascimento ocorreu na República
Dominicana. A este respeito, a identificação do pai ou da mãe da criança não pode estar limitada à
apresentação da cédula de identidade e eleitoral, mas o Estado deve aceitar, para tal fim, outro documento
público apropriado, já que a referida cédula é exclusiva dos cidadãos dominicanos. Ademais, os requisitos
devem estar claramente determinados, ser uniformes e não deixar sua aplicação sujeita à discricionariedade
dos funcionários do Estado, garantindo assim a segurança jurídica das pessoas que recorram a este
procedimento e uma efetiva garantia dos direitos consagrados na Convenção Americana, de acordo com
o artigo 1.1 da Convenção.
241. Assim mesmo, o Estado deve adotar as medidas necessárias e permanentes que facilitem o registro
antecipado e oportuno dos menores, independentemente de sua ascendência ou origem, com o propósito de
reduzir o número de pessoas que recorrem ao trâmite de registro tardio de nascimento.
242. A Corte também considera necessário que o Estado implemente, em um prazo razoável, um programa
para a formação e capacitação em direitos humanos dos funcionários estatais encarregados do registro
de nascimento, com especial ênfase ao princípio de igualdade perante a lei e não discriminação, por meio
do qual sejam instruídos sobre a especial situação dos menores de idade e seja promovida a cultura de
tolerância e não discriminação.
120. Cf. Caso Yatama, nota 13 supra, par. 254; Caso Fermín Ramírez, nota 13 supra, par. 130.d, e Caso da Comunidade Indígena Yakye Axa,
nota 16 supra, par. 225.
121. Cf. Nações Unidas, Comitê dos Direitos da Criança, Exame dos relatórios apresentados pelos Estados Partes de acordo com o Artigo 44
da Convenção. Observações Finais do Comitê dos Direitos da Criança. República Dominicana. UN Doc. CRC/C/15/Add.150, de 21 de fevereiro
de 2001, par. 27.
124
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
***
243. A Comissão e os representantes alegaram que a nacionalidade das crianças não está assegurada porque
o Estado emitiu seus documentos de registro violando a regulamentação interna dessa matéria e poderia
revogá-los a qualquer momento. Por sua vez, o Estado afirmou que as certidões de nascimento das crianças
têm um caráter permanente, porque foram emitidas pela autoridade competente. A República Dominicana,
no exercício de suas faculdades, em 25 de setembro de 2001, entregou as certidões de nascimento às
crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico e, nessa data, concedeu-lhes a nacionalidade dominicana (pars.
109.32, 109.33 e 147 supra). Nesse sentido, a Corte considera a concessão da nacionalidade dominicana às
crianças como uma contribuição positiva, mediante a qual passou a garantir seus direitos à nacionalidade,
ao reconhecimento da personalidade jurídica e ao nome.
d) Sobre a educação
244. O Estado deve cumprir sua obrigação de garantir o acesso à educação primária e gratuita a todas as crianças,
independentemente de sua ascendência ou origem, o que se deriva da especial proteção que se deve oferecer
às crianças.
D) Custas e Gastos
Alegações da Comissão
245. A Comissão afirmou que, uma vez ouvidos os representantes, a Corte deve ordenar ao Estado o pagamento
das custas originadas no âmbito nacional na tramitação dos processos judiciais seguidos pelas supostas
vítimas, bem como as originadas na tramitação internacional do caso perante a Comissão e a Corte, e que
sejam devidamente provadas pelos representantes.
Alegações dos representantes
246. Os representantes afirmaram que:
a) têm direito ao reembolso dos gastos incorridos com diárias, custos de tradução, honorários de
especialistas ou peritos, chamadas telefônicas, cópias, bem como honorários jurídicos;
b) o MUDHA trabalhou neste caso desde 1997 e incorreu em gastos de US$4.513,13 (quatro mil
quinhentos e treze dólares dos Estados Unidos da América e treze centavos);
c) o CEJIL trabalhou neste caso desde 1999 e realizou gastos de US$37.995,94 (trinta e sete mil
novecentos e noventa e cinco dólares dos Estados Unidos da América e noventa e quatro centavos);
d) a Clínica de Direito Internacional dos Direitos Humanos dedicou a este caso cinco anos do tempo
de seu pessoal e alunos, motivo pelo qual solicitou o reembolso de US$50.000,00 (cinquenta mil
dólares dos Estados Unidos da América) como uma quantidade simbólica pelos gastos realizados; e
e) a quantia detalhada pelos gastos das diferentes organizações não inclui aqueles que seriam
realizados no restante do trâmite perante a Corte.
Alegações do Estado
247. O Estado solicitou à Corte que condene os “demandantes” ao pagamento de custas e honorários profissionais
que surjam deste processo, em razão da improcedência de seu reclamo.
Considerações da Corte
248. A Corte indicou que as custas e os gastos estão incluídos no conceito de reparação, consagrado no artigo
63.1 da Convenção Americana, em vista de que a atividade realizada pelas vítimas, seus sucessores ou
seus representantes para terem acesso à justiça internacional implica gastos e compromissos de caráter
econômico que devem ser compensados.122 Quanto ao reembolso, corresponde ao Tribunal apreciar
prudentemente o seu alcance, que inclui os gastos gerados perante as autoridades da jurisdição interna
e aqueles realizados no curso do processo perante o sistema interamericano, tendo em conta a prova dos
gastos feitos, as circunstâncias do caso concreto e a natureza da jurisdição internacional de proteção dos
122. Cf. Caso Yatama, nota 13 supra, par. 264; Caso da Comunidade Indígena Yakye Axa, nota 16 supra, par. 231, e Caso da Comunidade
Moiwana, nota 8 supra, par. 222.
125
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
direitos humanos. A estimativa se pode fazer com base no princípio de equidade e apreciando os gastos
comprovados pelas partes, sempre que seu quantum seja razoável.123
249. As custas compreendem tanto a etapa de acesso à justiça nacional, como o procedimento internacional
perante a Comissão e a Corte.124
250. O MUDHA incorreu em gastos pelas gestões efetuadas em representação das vítimas no âmbito interno.
Ademais, MUDHA, CEJIL e Clínica de Direito Internacional dos Direitos Humanos realizaram gastos ao
representarem as vítimas no processo internacional. Por isso, o Tribunal considera equitativo ordenar
ao Estado que reembolse a quantia de US$6.000,00 (seis mil dólares dos Estados Unidos da América)
ou seu equivalente em moeda da República Dominicana às senhoras Leonidas Oliven Yean e Tiramen
Bosico Cofi a título de custas e gastos, que realizarão os pagamentos ao MUDHA, ao CEJIL e à Clínica
de Direito Internacional dos Direitos Humanos para compensar os gastos realizados por eles.
E) Modalidade de Cumprimento
251. O Estado deverá pagar as indenizações e reembolsar as custas e gastos (par. 226 e 250 supra) dentro de um
ano, contado a partir da notificação desta Sentença. No caso das outras reparações ordenadas, deverá dar
cumprimento às medidas em um prazo razoável (pars. 239 a 241 e 242 supra) ou no prazo indicado nesta
Sentença (pars. 234 e 235 supra).
252. O pagamento das indenizações estabelecidas em favor das vítimas será feito diretamente a elas. Se alguma
delas vier a falecer, o pagamento será feito a seus herdeiros.
253. No que se refere à indenização ordenada em favor da criança Dilcia Yean, o Estado deverá depositá-la em uma
instituição dominicana solvente. O depósito será feito dentro do prazo de um ano, nas condições financeiras
mais favoráveis que permitam a legislação e a prática bancárias, enquanto a beneficiária seja menor de
idade. Poderá ser retirada por ela quando alcançar a maioridade, se for o caso, ou antes, se isso convier ao
interesse superior da criança, quando estabelecido por determinação de uma autoridade judicial competente.
Caso a indenização não seja reclamada, uma vez transcorridos dez anos contados a partir da maioridade, a
soma será devolvida ao Estado, com os juros acumulados.
254. Se por causas atribuíveis às beneficiárias da indenização não for possível que estas a recebam dentro do
prazo indicado de um ano, o Estado depositará estes montantes em favor delas em uma conta ou certificado
de depósito em uma instituição bancária dominicana solvente e nas condições financeiras mais favoráveis
que permitam a legislação e a prática bancárias. Se a indenização não for reclamada ao cabo de dez anos, a
soma correspondente será devolvida ao Estado, com os juros acumulados.
255. Os pagamentos destinados a cobrir as custas e gastos dos representantes nos procedimentos interno e
internacional serão feitos às senhoras Leonidas Oliven Yean e Tiramen Bosico Cofi (par. 250 supra), que
então realizarão os pagamentos correspondentes.
256. O Estado deve cumprir as obrigações econômicas indicadas nesta Sentença mediante o pagamento em
moeda nacional da República Dominicana ou seu equivalente em dólares dos Estados Unidos da América.
257. Os montantes indicados na presente Sentença a título de indenizações, gastos e custas não poderão ser
afetados, reduzidos ou condicionados por motivos fiscais atuais ou futuros. Consequentemente, deverão ser
entregues aos beneficiários de forma íntegra conforme o estabelecido na Sentença.
258. Caso o Estado incorra em mora, pagará juros sobre o montante da dívida, correspondente ao juro bancário
moratório na República Dominicana.
259. Como determinou e praticou em todos os casos sujeitos a seu conhecimento, a Corte supervisionará o
cumprimento da presente Sentença em todos os seus aspectos, supervisão inerente às atribuições
jurisdicionais do Tribunal e necessária para a devida observação, por parte da própria Corte, do artigo 65 da
Convenção. O caso se dará por concluído uma vez que o Estado tenha dado cabal cumprimento ao disposto
na decisão. Dentro de um ano, contado a partir da notificação desta Sentença, o Estado apresentará à Corte
um primeiro relatório sobre as medidas adotadas para seu cumprimento.
123. Cf. Caso da Comunidade Indígena Yakye Axa, nota 16 supra, par. 231; Caso da Comunidade Moiwana, nota 8 supra, par. 222, e Caso dos
Irmãos Gómez Paquiyauri, nota 85 supra, par. 242.
124. Cf. Caso Acosta Calderón, nota 13 supra, par. 168; Caso da Comunidade Indígena Yakye Axa, nota 16 supra, par. 231, e Caso Molina
Theissen. Reparações (art. 63.1 Convenção Americana sobre Direitos Humanos). Sentença de 3 de julho de 2004. Série C Nº 108, par. 96.
126
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
XIV
Pontos Resolutivos
260. Portanto,
A CORTE,
DECIDE:
Por unanimidade,
1. Rejeitar as três exceções preliminares interpostas pelo Estado, de acordo com os parágrafos 59 a
65, 69 a 74, e 78 e 79 da presente Sentença.
DECLARA:
Por unanimidade, que:
2. O Estado violou os direitos à nacionalidade e à igualdade perante a lei, consagrados, respectivamente,
nos artigos 20 e 24 da Convenção Americana, em relação ao artigo 19 da mesma, e também em
relação ao artigo 1.1 deste instrumento, em detrimento das crianças Dilcia Yean e Violeta Bosico,
nos termos dos parágrafos 131 a 174 da presente Sentença.
3. O Estado violou os direitos ao nome e ao reconhecimento da personalidade jurídica, consagrados,
respectivamente, nos artigos 3 e 18 da Convenção Americana, em relação ao artigo 19 da mesma,
e também em relação ao artigo 1.1 deste instrumento, em detrimento das crianças Dilcia Yean e
Violeta Bosico, nos termos dos parágrafos 131 a 135 e 175 a 187 da presente Sentença.
4. O Estado violou o direito à integridade pessoal, consagrado no artigo 5 da Convenção Americana,
em relação ao artigo 1.1 da mesma, em detrimento das senhoras Leonidas Oliven Yean, Tiramen
Bosico Cofi e Teresa Tucent Mena, nos termos dos parágrafos 205 a 206 da presente Sentença.
5. Esta Sentença constitui per se uma forma de reparação, nos termos do parágrafo 223 da mesma.
E DISPÕE:
Por unanimidade, que:
6. O Estado deve publicar, no prazo de seis meses, contado a partir da notificação da presente
Sentença, no Diário Oficial e em outro jornal de circulação nacional na República Dominicana,
ao menos uma vez, tanto a Seção denominada “Fatos Provados” quanto os Pontos Resolutivos
da presente Sentença, sem as notas de rodapé correspondentes, nos termos do parágrafo 234
da mesma.
7. O Estado deve realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional e de
pedido de desculpas às vítimas Dilcia Yean e Violeta Bosico, e a Leonidas Oliven Yean, Tiramen
Bosico Cofi e Teresa Tucent Mena, em um prazo de seis meses, com a participação de autoridades
estatais, das vítimas e de seus familiares, bem como dos representantes e com difusão nos meios
de comunicação (rádio, imprensa e televisão). O referido ato terá efeitos de satisfação e servirá
como garantia de não repetição, nos termos do parágrafo 235 da presente Sentença.
8. O Estado deve adotar em seu direito interno, dentro de um prazo razoável, de acordo com o artigo
2 da Convenção Americana, as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outro caráter
que sejam necessárias para regulamentar o procedimento e os requisitos exigidos para adquirir a
nacionalidade dominicana, mediante o registro tardio de nascimento. Este procedimento deve ser
simples, acessível e razoável, em consideração de que, de outra forma, os solicitantes poderiam
permanecer na condição de apátridas. Ademais, deve existir um recurso efetivo para os casos
em que seja negado o requerimento, nos termos da Convenção Americana, de acordo com os
parágrafos 239 a 241 da presente Sentença.
9. O Estado deve pagar, a título de indenização por dano imaterial, a quantia fixada no parágrafo 226
da presente Sentença, à criança Dilcia Yean, e a quantia fixada no mesmo parágrafo à criança
Violeta Bosico.
10. O Estado deve pagar, a título de custas e gastos gerados nos âmbitos interno e internacional
perante o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, a quantia fixada no parágrafo
250 da presente sentença às senhoras Leonidas Oliven Yean e Tiramen Bosico Cofi, que então
realizarão os pagamentos ao Movimiento de Mujeres Domínico-Haitianas (MUDHA), ao Centro
127
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), e à International Human Rights Law Clinic, School of
Law (Boalt Hall), University of California, Berkeley para compensar os gastos por eles realizados.
11. A Corte supervisionará o cumprimento íntegro desta Sentença e dará por concluído o presente
caso uma vez que o Estado tenha dado cabal cumprimento ao ordenado na mesma. Dentro do
prazo de um ano, contado a partir da notificação desta Sentença, o Estado deverá apresentar à
Corte um relatório sobre as medidas adotadas para dar-lhe cumprimento, nos termos do parágrafo
259 da presente Sentença.
O Juiz Cançado Trindade deu a conhecer à Corte seu Voto Fundamentado, o qual acompanha esta
Sentença.
Redigida em espanhol e em inglês, fazendo fé o texto em espanhol, em San José, Costa Rica, em 8 de
setembro de 2005.
Sergio García Ramírez
Presidente
Alirio Abreu Burelli
Antônio A. Cançado Trindade
Oliver Jackman
Manuel E. Ventura Robles
Pablo Saavedra Alessandri
Secretário
Comunique-se e execute-se,
Sergio García Ramírez
Presidente
Pablo Saavedra Alessandri
Secretário
128
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
VOTO FUNDAMENTADO DO JUIZ A.A. CANÇADO TRINDADE
1. Ao votar a favor da adoção da presente Sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso
das Crianças Yean e Bosico versus República Dominicana, com a qual estou basicamente de acordo, vejome na obrigação de agregar, no presente Voto Fundamentado, algumas breves reflexões pessoais sobre o
tema central do cas d’espèce, porquanto esta é a primeira vez em sua história que a Corte Interamericana se
pronuncia, na resolução de um caso contencioso, sobre o direito à nacionalidade de acordo com a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos. Permito-me, pois, abordar no presente Voto três pontos centrais,–aos
quais atribuo particular relevância,–da matéria em questão, a saber: a) os avanços normativos em matéria
de nacionalidade e a preocupante persistência das causas da apatridia; b) a reação do Direito à alarmante
diversificação das manifestações da apatridia; e c) o amplo alcance dos deveres gerais de proteção (artigos
1(1) e 2º) da Convenção Americana.
I. Os avanços Normativos em Matéria de Nacionalidade e a Preocupante Persistência das Causas
da Apatridia
2. Ao longo das três últimas décadas, vim afirmando que não existe matéria que, por sua intrínseca natureza,
pertença ao domínio reservado do Estado, ou à sua competência nacional exclusiva. O locus classicus para
o exame da questão continua residindo no célebre obiter dictum da antiga Corte Permanente de Justiça
Internacional em seu Parecer Consultivo sobre os Decretos de Nacionalidade na Tunísia e no Marrocos (1923),
segundo o qual a determinação de se um assunto recai unicamente ou não na jurisdição de um Estado
é uma questão relativa, que depende do desenvolvimento das relações internacionais.1 Em realidade, este
desenvolvimento, em matéria do direito à nacionalidade, efetivamente subtraiu a matéria da competência
nacional exclusiva e a alçou há muito tempo ao plano da ordem jurídica internacional.
3. Definitivamente, o tema da nacionalidade não pode ser considerado através da simples ótica da pura
discricionariedade estatal, pois sobre ele incidem princípios gerais do Direito Internacional, bem como deveres
que emanam diretamente do Direito Internacional, como, v.g., o dever de proteção. Encontram-se, pois, a
meu juízo, inteiramente superadas certas construções em matéria de nacionalidade (original ou adquirida) da
doutrina tradicional e estatocêntrica, tais como, v.g., a da possibilidade estatal ilimitada, a da vontade estatal
exclusiva, a do interesse único do Estado, bem como a teoria contratualista (uma variante do voluntarismo).
Para esta superação contribuíram decisivamente o aparecimento e o impacto do Direito Internacional dos
Direitos Humanos.
4. Ainda no plano do direito interno, a aquisição de nacionalidade é uma questão de ordre public, que condiciona
e regulamenta as relações entre os indivíduos e o Estado, mediante o reconhecimento e a observância de
direitos e deveres recíprocos. A atribuição de nacionalidade, matéria de ordem pública, tem sempre presentes,
no plano do direito interno, princípios e deveres emanados do Direito Internacional, como testemunho da
interação ou interpenetração dos ordenamentos jurídicos nacional e internacional.
5. Há mais de um quarto de século antes da adoção da Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia (1961),
afirmou-se (ainda que em atenção apenas à necessidade de avanços no Direito Internacional convencional e
deixando de tomar em conta também o Direito Internacional geral) que era urgente abordar o problema
dos apátridas (tanto os sempre destituídos de nacionalidade como os que a tinham e a perderam) tendo
presente que a própria organização da comunidade internacional pressupunha que a condição normal de
todos os indivíduos era ter uma nacionalidade, e que a apatridia representava, portanto, uma anomalia com
consequências desastrosas para os que se encontravam nesta situação.2
6. Ao fim e ao cabo, o Direito Internacional, o jus gentium, desde os escritos de seus “fundadores”, foi concebido
como inclusivo não apenas dos Estados mas também dos indivíduos (titulares de direitos e portadores de
obrigações emanados diretamente do direito de gentes), e já no Direito Internacional clássico o regime da
nacionalidade passou a reger-se pelos princípios básicos do jus soli e do jus sanguinis3 (às vezes combinados
1. A.A. Cançado Trindade, O Direito Internacional em um Mundo em Transformação, Rio de Janeiro, Edit. Renovar, 2002, pp. 413 e 475; e
cf., para um estudo geral, A.A. Cançado Trindade, “The Domestic Jurisdiction of States in the Practice of the United Nations and Regional
Organisations”, 25 International and Comparative Law Quarterly–Londres (1976) pp. 713-765.
2. Advertiu-se, também, para a tendência perversa (daquela época) de desnacionalização e desnaturalização (inclusive como pena),
violatória aos “princípios fundamentais da organização da comunidade internacional”, e para a necessidade de enfrentar a apatridia
mediante a supressão de suas próprias causas; J.-P.-A. François, “Le problème des apatrides”, 53 Recueil des Cours de l’Académie de Droit
International da Haye (1935) pp. 371-372.
3. Ibid., pp. 315 e 288.
129
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
de vários modos, sem excluir-se um ao outro). Este regime passou a proporcionar aos indivíduos um
importante meio para proteger os direitos que lhes são inerentes, ao menos no âmbito do direito interno;
trata-se de direitos de cada indivíduo (que é o dominus litis ao buscar sua proteção) e não do Estado, cuja
raison d’être encontra-se em certos princípios básicos, como o da inviolabilidade da pessoa humana.4
7. Entretanto, com o passar do tempo, tornou-se evidente que o regime de nacionalidade nem sempre era
suficiente a fim de proteger todas e quaisquer circunstâncias (como demonstrado, v.g., pela situação dos
apátridas). Ao longo da segunda metade do século XX, e até a presente data, o Direito Internacional dos Direitos
Humanos buscou remediar essa insuficiência ou lacuna, ao desnacionalizar a proteção (e incluir assim todo os
seres humanos, inclusive os apátridas): como sinalizei há mais de duas décadas, a nacionalidade deixou aqui
de ser o vinculum juris (distintamente da proteção diplomática), o qual passa a ser constituído pela condição
de vítima das alegadas violações de direitos (no contexto fundamentalmente distinto da proteção internacional
dos direitos humanos).5
8. O direito à nacionalidade é, efetivamente, um direito inerente à pessoa humana, consagrado como direito
inderrogável de acordo com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (artigos 20 e 27), como
ressaltado na presente Sentença (par. 136). Encontra-se, também, protegido no Pacto sobre Direitos Civis
e Políticos de Nações Unidas de 1966 (artigo 24(3)), na Convenção das Nações Unidas sobre Direitos da
Criança de 1989 (artigo 7º), e na Convenção sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores
Migratórios e de Seus familiares de 1990 (artigo 29), e também está consagrado nas Declarações Universal
(artigo 15) e Americana (artigo 19) de Direitos Humanos de 1948. Igualmente, a Convenção sobre o Estatuto
dos Apátridas (1954) e a Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia (1961) parecem retomar ainda
maior relevância em nossos dias, dada a preocupante persistência das causas de perda de nacionalidade e
de apatridia.
9. A primeira destas Convenções, de 1954, buscou precisamente proteger os apátridas, sem que com isso
pretenda figurar como substituto para a atribuição e aquisição de nacionalidade. A segunda destas Convenções,
de 1961, busca precisamente a atribuição e aquisição ou a retenção de nacionalidade, para reduzir ou evitar a
apatridia; esta Convenção incorpora princípios gerais do Direito Internacional sobre a matéria, que serviram
de fonte de inspiração tanto para novos instrumentos internacionais (como a Convenção Europeia sobre
Nacionalidade de 1997) como para novas legislações nacionais em matéria de nacionalidade. Ao determinar,
v.g., em seu artigo 1(1), que “todo Estado Contratante concederá sua nacionalidade à pessoa nascida em seu
território que de outro modo seria apátrida”, a referida Convenção de 1961 enuncia, a meu juízo, um daqueles
princípios gerais, que é de Direito Internacional tanto convencional como geral.
II. A Reação do Direito à Alarmante Diversificação das Manifestações da Apatridia
10. Apesar dos avanços normativos nesse domínio, lamentavelmente persistem as causas de apatridia, talvez
agravadas em nossos dias, na medida em que se mostram às vezes misturadas com os deslocamentos de
população da atualidade (próprios do mundo assim chamado “globalizado” e, certamente, brutalizado em
que vivemos). Entre as causas de apatridia, figuram hoje em dia situações e práticas como as reveladas no
presente caso das Crianças Yean e Bosico versus República Dominicana (no qual as crianças Dilcia Yean e
Violeta Bosico, cujas mães são dominicanas e cujos pais são haitianos, foram privadas de nacionalidade e
permaneceram apátridas por mais de quatro anos e quatro meses), além de outras causas, como conflitos
de leis em matéria de nacionalidade, leis sobre o matrimônio (particularmente em relação à mulher casada),
situação de crianças não registradas e abandonados, práticas administrativas discriminatórias, entre outras.6
11. A persistência das causas de apatridia conforma um quadro preocupante, porquanto a posse de nacionalidade
figura como um pré-requisito básico para o exercício de outros direitos individuais, como, v.g., os direitos
políticos, o direito de acesso à educação e aos cuidados de saúde, entre tantos outros. Hoje em dia, aos
apátridas de jure se somam os apátridas de facto, i.e., os incapazes de demonstrar sua nacionalidade, e os
desprovidos de uma nacionalidade efetiva (para os efeitos de proteção). Os apátridas de facto–que muitas
vezes têm seus documentos de registro confiscados ou destruídos pelos que os controlam e exploram–se
4. Ibid., pp. 316 e 318. e, para um estudo geral subsequente, cf., v. g., P. Weis, Nationality and Statelessness in International Law,
London, Stevens, 1956, pp. 3ss.
5. A.A. Cançado Trindade, The Application of the Rule of Exhaustion of Local Remedies in International Law, Cambridge, University
Press, 1983, pp. 16-17, 19-20, 33, 35-36, 301 e 311-312.
6. V.g., transferências de território (em casos, v.g., de dissolução ou sucessão de Estados, e de alterações fronteiriças), perda de
nacionalidade por desnacionalização, perda de nacionalidade por renúncia sem prévia aquisição de outra nacionalidade.
130
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
multiplicam atualmente, com a barbárie contemporânea do tráfico “invisível” de seres humanos (sobretudo de
crianças e de mulheres) em escala mundial.7 Essa é uma tragédia contemporânea de amplas proporções.
12. Em realidade, a proteção internacional dos direitos humanos (imperativa) e a proteção diplomática
(discricionária), operando de formas e em contextos fundamentalmente distintos, continuam coexistindo em
nossos dias, mitigando assim a extrema vulnerabilidade de numerosas pessoas. A proteção diplomática está
condicionada pela nacionalidade (efetiva) como vinculum juris, enquanto a proteção internacional dos direitos
humanos realça a obrigação geral dos Estados Partes em tratados de direitos humanos como a Convenção
Americana, de respeitar e assegurar o respeito dos direitos protegidos, em benefício de todos os indivíduos
sob suas respectivas jurisdições, independentemente do vínculo de nacionalidade.
13. A este respeito, a presente Sentença da Corte constitui uma oportuna advertência para a proibição,–tendo
presentes os deveres gerais dos Estados Partes na Convenção Americana estipulados nos artigos 1(1) e 2º da
mesma,–de práticas administrativas e medidas legislativas discriminatórias em matéria de nacionalidade (a
começar por sua atribuição e aquisição–pars. 141-142). A Sentença tem o cuidado de ressaltar a condição de
crianças de Dilcia Yean e Violeta Bosico, a qual agravou sua vulnerabilidade, comprometendo o desenvolvimento
de sua personalidade, além de ter impossibilitado a proteção especial devida a seus direitos (par. 167); a este
respeito, a Corte acertadamente resgatou o importante legado de seu próprio Parecer Consultivo nº 17 (sobre
a Condição Jurídica e Direitos Humanos da Criança, 2002) quanto à intangibilidade da titularidade de direitos
inalienáveis, que lhes são inerentes (par. 177).
14. No presente caso das Crianças Yean e Bosico, a Corte concluiu que a violação ao direito à nacionalidade e dos direitos
da criança acarretou, igualmente, a lesão aos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, ao nome e
à igualdade perante a lei, sob a Convenção Americana (pars. 174-175, 179-180 e 186-187). Significativamente,
a Corte, na mesma linha de raciocínio lúcido–à altura dos desafios de nosso tempo–inaugurado em seu Parecer
Consultivo nº 18, sobre a Condição Jurídica e Direitos dos Migrantes Indocumentados (2003), de transcendência
histórica, ponderou, esta vez no marco de um caso contencioso, que
“(...) o dever de respeitar e garantir o princípio da igualdade perante a lei e de não discriminação é
independente do status migratório de uma pessoa em um Estado. Isto é, os Estados têm a obrigação de
garantir este princípio fundamental a seus cidadãos e a toda pessoa estrangeira que se encontre em seu
território, sem discriminação alguma em razão de sua estadia regular ou irregular, sua nacionalidade,
raça, gênero ou qualquer outra causa.
De acordo com o indicado, (...) a Corte considera que:
a) O status migratório de uma pessoa não pode ser condição para a concessão da nacionalidade por
parte do Estado, já que sua qualidade migratória não pode constituir, de nenhuma forma, uma
justificativa para privá-la do direito à nacionalidade nem do gozo e exercício de seus direitos;
b) O status migratório de uma pessoa não se transmite a seus filhos; e
c) A condição do nascimento no território do Estado é a única a ser demonstrada para a aquisição
da nacionalidade, no que se refere a pessoas que não teriam direito a outra nacionalidade, se não
adquirem a do Estado onde nasceram” (pars. 155-156).
III. O Amplo Alcance dos Deveres Gerais de Proteção (Artigos 1(1) e 2º) da Convenção Americana
15. Assim, o dever de respeitar e assegurar o respeito aos direitos protegidos (artigo 1(1) da Convenção Americana)
reveste-se de caráter contínuo e permanente; se todas as medidas positivas de garantia não são tomadas pelo
Estado, novas vítimas podem surgir, gerando per se (em função da própria inação estatal) violações adicionais,
sem que seja necessário relacioná-las aos direitos originalmente violados. Meu entendimento discrepa, pois,
inteiramente do argumento segundo o qual não poderia ocorrer uma violação ao artigo 1(1) da Convenção não
acompanhada de uma violação paralela e concomitante de algum dos direitos protegidos pela mesma.
16. Este argumento, para mim inaceitável, corresponde a uma visão restritiva, atomizada e desagregadora de
um dever geral de garantia sob a Convenção como um todo. Equivaleria – permitindo-me a metáfora–a ver
apenas a árvore mais próxima, perdendo de vista a floresta que a circunda. Minha hermenêutica do artigo
1(1)–bem como do artigo 2–da Convenção é e sempre foi de muito mais amplitude, e certamente agregadora,
maximizando a proteção sob a Convenção. A expus com claridade, no seio desta Corte, há mais de oito anos,
em meu Voto Dissidente no caso Caballero Delgado e Santana versus Colômbia (Reparações, Sentença de
7. Cf., v.g., R. Piotrowicz, “Victims of Trafficking and De Facto Statelessness”, 21 Refugee Survey Quarterly–UNHCR/Geneva (2002) pp.
50-59.
131
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
29.01.1997), e permito-me aqui recapitulá-la resumidamente, como última linha de reflexão do presente Voto
Fundamentado.
17. Ao destacar, naquele Voto Dissidente, o “amplo alcance” do dever geral dos Estados estipulado no artigo 1(1)
da Convenção Americana, sinalizei que o cumprimento deste dever requer uma série de providências dos
Estados Partes na Convenção
“No sentido de capacitar os indivíduos sob sua jurisdição ao exercício pleno de todos os direitos
protegidos. Tais providências incluem a adoção de medidas legislativas e administrativas, no sentido
de eliminar obstáculos ou lacunas e aperfeiçoar as condições de exercício dos direitos protegidos”
(par. 3).
Desse modo,–acrescentei,–negar o “amplo alcance” do artigo 1(1) da Convenção significaria privá-la de seus
efeitos, porque o artigo 1(1) “alcança todos os direitos” por ela protegidos (par. 4).
18. Em seguida, no mesmo Voto Dissidente no caso Caballero Delgado e Santana, busquei demonstrar que as
duas obrigações gerais incluídas na Convenção Americana–artigos 1(1) e 2º – mostram-se “inexoravelmente
interligadas” e me referi a situações hipotéticas para ilustrá-lo (par. 9). Mais adiante, acrescentei:
“Em meu entendimento, ainda que se afirme que não houve violação ao artigo 2 da Convenção, a
constatação do descumprimento da obrigação geral do artigo 1.1 é per se suficiente para determinar
ao Estado Parte a tomada de providências, inclusive de caráter legislativo, a fim de garantir a todas
as pessoas sob sua jurisdição o pleno exercício de todos os direitos protegidos pela Convenção
Americana” (par. 19).
19. Pouco depois surgiram casos nos quais a própria Corte Interamericana se posicionou a respeito. No caso dos
Cinco Pensionistas versus Peru (Sentença de 28.02.2003), a Corte concluiu que o Estado demandado havia
cometido uma violação autônoma do dever geral consagrado no artigo 2 da Convenção (de harmonização
do direito interno com a normativa convencional), em conexão com o dever geral do artigo 1(1) da mesma
(pars. 164-168). Anteriormente, na mesma linha de pensamento, no caso Castillo Petruzzi e outros versus
Peru (Sentença de 30.05.1999), a Corte determinou, em separado, a ocorrência de uma violação aos artigos
1(1) e 2 da Convenção (pars. 204-208). Também no caso Baena Ricardo e outros versus Panamá (Sentença
de 02.02.2001), a Corte determinou o descumprimento, por parte do Estado demandado, das obrigações
gerais dos artigos 1(1) e (2) da Convenção, ao qual dedicou um capítulo inteiro (n. XIII) da Sentença (pars.
176-184).
20. A este respeito, no memorável caso Suárez Rosero versus Equador (Sentença de 12.11.1997), a Corte, pela
primeira vez em sua história, determinou expressamente que uma norma de direito interno (do Código Penal
equatoriano) violava per se o artigo 2 da Convenção Americana, “independentemente de que tenha sido
aplicada no presente caso” (pars. 93-99, esp. par. 98). A mencionada Sentença da Corte no caso Suárez Rosero
significativamente dedicou também um capítulo inteiro (n. XIV) ao estabelecimento da violação autônoma ao
dever geral do artigo 2 da Convenção Americana.8
21. De acordo com esta mesma orientação, no caso Hilaire, Constantine e Benjamin e outros versus Trinidad e
Tobago (Mérito, Sentença de 21.06.2002), a Corte, invocando o princípio jura novit curia, considerou que o
Estado demandado havia incorrido em uma violação autônoma ao artigo 2 da Convenção Americana, pela
simples existência de sua “Lei de Delitos contra a Pessoa”, independentemente de sua aplicação (pars. 110118). Enfim, no presente caso das Crianças Yean e Bosico versus República Dominicana, a Corte, ao decidir
sobre as reparações na Sentença que acaba de adotar, sublinhou o amplo alcance dos deveres gerais dos
artigos 2º e 1(1) da Convenção, ao considerar que
“(...) A República Dominicana deve adotar em seu direito interno, dentro de um prazo razoável, de
acordo com o artigo 2 da Convenção Americana, as medidas legislativas, administrativas e de qualquer
outro caráter que sejam necessárias para regulamentar o procedimento e os requisitos exigidos para
adquirir a nacionalidade dominicana, mediante o registro tardio de nascimento. Este procedimento deve
ser simples, acessível e razoável, em consideração de que, de outra forma, os solicitantes poderiam
permanecer na condição de apátridas. Ademais, deve existir um recurso efetivo para os casos em que
seja negado o requerimento.
(...) O Estado, ao determinar os requisitos para o registro tardio de nascimento, deverá tomar em conta
a situação especialmente vulnerável das crianças dominicanas de ascendência haitiana. Os requisitos
8. Pouco depois (em 24.12.1997), a Corte Suprema do Equador decidiu declarar a inconstitucionalidade da norma em questão; esta foi a
primeira vez que uma disposição de direito interno (de exceção) foi prontamente modificada em consequência de uma decisão da Corte
Interamericana.
132
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO VS. REPÚBLICA DOMINICANA
exigidos não devem constituir um obstáculo para obter a nacionalidade dominicana e devem ser apenas
aqueles indispensáveis para estabelecer que o nascimento ocorreu na República Dominicana. (...) Além
disso, os requisitos devem estar claramente determinados, ser uniformes e não deixar sua aplicação
sujeita à discricionariedade dos funcionários do Estado, garantindo assim a segurança jurídica das
pessoas que recorram a este procedimento e para efetiva garantia dos direitos consagrados na
Convenção Americana, de acordo com o artigo 1.1 da Convenção.
Ademais, o Estado deve tomar as medidas necessárias e permanentes que facilitem o registro antecipado
e oportuno dos menores, independentemente de sua ascendência ou origem, com o propósito de reduzir
o número de pessoas que recorram ao trâmite de registro tardio de nascimento” (pars. 239-241).
22. A Corte, em suma, preservou na presente Sentença os padrões de proteção consagrados em sua jurisprudence
constante. Utilizou-se da valiosa contribuição de seu Parecer Consultivo nº 18, sobre a Condição Jurídica e
Direitos dos Migrantes Indocumentados (2003), bem como do relevante legado de seu Parecer Consultivo nº
17 (sobre a Condição Jurídica e Direitos Humanos da Criança, 2002); relacionou os direitos violados entre si
(direito à nacionalidade e direitos da criança, direitos ao nome e ao reconhecimento da personalidade jurídica
e à igualdade perante a lei, e direito à integridade pessoal),9 em lugar de tratá-los de modo indevidamente
compartimentalizado;10 e sublinhou o amplo alcance dos deveres gerais dos artigos 1(1) e 2 da Convenção
Americana. Daria-me muita pena se, no futuro (tempus fugit), a Corte se afastasse dessa jurisprudência, que
é aquela que maximiza a proteção dos direitos humanos de acordo com a Convenção Americana.
Antônio Augusto Cançado Trindade
Juiz
Pablo Saavedra Alessandri
Secretário
9. No caso concreto, este último, em relação aos familiares.
10. Em meu recente Voto Fundamentado no caso Acosta Calderón versus Equador (Sentença de 24.06.2005), permiti-me reiterar meu
entendimento de sempre, no sentido de que “a melhor hermenêutica em matéria de proteção dos direitos humanos é a que relaciona
os direitos protegidos entre si, indivisíveis como são,–e não a que busca inadequadamente desagregá-los um do outro, fragilizando
indevidamente as bases de proteção” (par. 16).
133
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
SENTENÇA DE 4 DE JULHO DE 2006
No caso Ximenes Lopes,
a Corte Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “Corte Interamericana”, “Corte”
ou “Tribunal”), integrada pelos seguintes juízes*:
Sergio García Ramírez, Presidente;
Alirio Abreu Burelli, Vice-Presidente;
Antônio Augusto Cançado Trindade, Juiz;
Cecilia Medina Quiroga, Juíza;
Manuel E. Ventura Robles, Juiz; e
Diego García-Sayán; Juiz;
presentes, ademais,
Pablo Saavedra Alessandri, Secretário, e
Emilia Segares Rodríguez, Secretária Adjunta,
de acordo com os artigos 62.3 e 63.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante
denominada “Convenção Americana” ou “Convenção”) e com os artigos 29, 31, 53.2, 56 e 58 do
Regulamento da Corte (doravante denominado “Regulamento ”), profere a seguinte Sentença.
I
Introdução da Causa
1. Em 1º de outubro de 2004, em conformidade com o disposto nos artigos 50 e 61 da Convenção Americana,
a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “Comissão Interamericana” ou
“Comissão”) submeteu à Corte uma demanda contra a República Federativo do Brasil (doravante denominado
“Estado” ou “Brasil”), a qual se originou na denúncia nº 12.237, recebida na Secretaria da Comissão em 22 de
novembro de 1999.
2. A Comissão apresentou a demanda neste caso com o objetivo de que a Corte decidisse se o Estado era
responsável pela violação dos direitos consagrados nos artigos 4 (Direito à Vida), 5 (Direito à Integridade
Pessoal), 8 (Garantias Judiciais) e 25 (Proteção Judicial) da Convenção Americana, com relação à obrigação
estabelecida no artigo 1.1 (Obrigação de respeitar os direitos) do mesmo instrumento, em detrimento do senhor
Damião Ximenes Lopes (doravante denominado “senhor Damião Ximenes Lopes”, “senhor Ximenes Lopes” ou
“suposta vítima”), portador de deficiência mental, pelas supostas condições desumanas e degradantes da sua
hospitalização; pelos alegados golpes e ataques contra a integridade pessoal de que se alega ter sido vítima por
parte dos funcionários da Casa de Repouso Guararapes (doravante denominada “Casa de Repouso Guararapes”
ou “hospital”); por sua morte enquanto se encontrava ali submetido a tratamento psiquiátrico; bem como pela
suposta falta de investigação e garantias judiciais que caracterizam seu caso e o mantém na impunidade. A
suposta vítima foi internada em 1º de outubro de 1999 para receber tratamento psiquiátrico na Casa de Repouso
Guararapes, um centro de atendimento psiquiátrico privado, que operava no âmbito do sistema público de saúde
do Brasil, chamado Sistema Único de Saúde (doravante denominado “Sistema Único de Saúde” ou “SUS”), no
Município de Sobral, Estado do Ceará. O senhor Damião Ximenes Lopes faleceu em 4 de outubro de 1999 na
Casa de Repouso Guararapes, após três dias de internação.
3. Acrescentou a Comissão que os fatos deste caso se vêem agravados pela situação de vulnerabilidade
em que se encontram as pessoas portadoras de deficiência mental, bem como pela especial obrigação
*O Juiz Oliver Jackman informou à Corte que, por motivo de força maior, não poderia estar presente na deliberação e assinatura desta Sentença.
135
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
do Estado de oferecer proteção às pessoas que se encontram sob o cuidado de centros de saúde que
integram o Sistema Único de Saúde do Estado. A Comissão, por conseguinte, solicitou à Corte que
ordene ao Estado a adoção de determinadas medidas de reparação citadas na demanda e o ressarcimento
das custas e gastos.
II
Competência
4. A Corte é competente, nos termos do artigo 62.3 da Convenção, para conhecer deste caso, em virtude de que
Brasil é Estado Parte na Convenção Americana desde 25 de setembro de 1992 e reconheceu a competência
contenciosa da Corte em 10 de dezembro de 1998.
III
Procedimento perante a Comissão
5. Em 22 de novembro de 1999, Irene Ximenes Lopes Miranda (doravante denominada “peticionária”) apresentou
petição à Comissão Interamericana contra o Brasil, em que denunciou os fatos ocorridos em detrimento de seu
irmão Senhor Damião Ximenes Lopes.
6. Em 14 de dezembro de 1999, a Comissão iniciou a tramitação da petição sob o nº 12.237 e solicitou que o Estado
informasse sobre “qualquer elemento de juízo que permit[isse] à Comissão verificar se, no caso, foram ou não
esgotados os recursos da jurisdição interna, para o que a Comissão concedeu ao Estado um prazo de 90 dias”.
7. Em 9 de outubro de 2002, no decorrer de seu Centésimo Décimo Sexto Período Ordinário de Sessões, a Comissão,
considerando a posição da peticionária e a falta de resposta do Estado, aprovou o Relatório de Admissibilidade nº
38/02, encaminhado à peticionária e ao Estado em 25 de outubro de 2002.
8. Em 8 de maio de 2003, a Comissão se colocou à disposição das partes para o procedimento de solução amistosa.
9. Em 17 de outubro de 2003, a Comissão recebeu comunicação da peticionária em que solicitava que se
considerasse o Centro de Justiça Global como co-peticionário no caso (doravante denominados “peticionários”).
10. Em 8 de outubro de 2003, por ocasião de seu Centésimo Décimo Oitavo Período Ordinário de Sessões, a
Comissão aprovou o Relatório de Mérito nº 43/03, mediante o qual concluiu, inter alia, que o Estado era
responsável pela violação dos direitos consagrados nos artigos 5 (Direito à integridade pessoal), 4 (Direito à
vida), 25 (Proteção judicial) e 8 (Garantias judiciais) da Convenção Americana, em conexão com o artigo 1.1
do mesmo instrumento, no que se refere à hospitalização de senhor Damião Ximenes Lopes em condições
desumanas e degradantes, às violações a sua integridade pessoal e ao seu assassinato, bem como às
violações da obrigação de investigar, do direito a um recurso efetivo e das garantias judiciais relacionadas
com a investigação dos fatos. A Comissão recomendou ao Estado a adoção de uma série de medidas para
reparar as mencionadas violações.
11. Em 31 de dezembro de 2003, a Comissão Interamericana encaminhou o Relatório de Mérito nº 43/03 ao Estado
e fixou o prazo de dois meses para que informasse sobre as medidas adotadas com vistas ao cumprimento das
recomendações nele formuladas. Nesse mesmo dia a Comissão deu ciência aos peticionários da aprovação do
relatório e seu encaminhamento ao Estado e solicitou-lhes que informassem sua posição quanto a que fosse o
caso submetido à Corte Interamericana.
12. Em 8 de março de 2004, a Comissão recebeu comunicação dos peticionários, em que declararam que era
“extremamente importante o envio do caso à Corte Interamericana[…] uma vez que o Estado, apesar de poucas
e eventuais ações pertinentes ao caso, não cumpriu as três recomendações dessa Egrégia Comissão, no relatório
dirigido ao Estado em 31 de dezembro de 2003”.
13. Em 17 de março e 18 de junho de 2004, o Estado solicitou à Comissão a concessão de prorrogações para
“implementar as recomendações” do Relatório de Mérito nº 43/03. As prorrogações foram concedidas. Em ambas
as ocasiões o Estado aceitou de forma expressa e irrevogável que a concessão das prorrogações suspendia o
prazo fixado no artigo 51.1 da Convenção para a apresentação de casos à Corte.
136
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
14. Em 23 de setembro de 2004 o Estado apresentou um relatório parcial sobre a implementação das recomendações
da Comissão e, no dia 29 de setembro seguinte, doze dias depois de vencido o prazo concedido, o Estado
apresentou outra comunicação de que constava a contestação ao Relatório de Mérito expedido pela Comissão.
15. Em 30 de setembro de 2004, a Comissão decidiu submeter este caso à Corte.
IV
Procedimento perante a Corte
16. Em 1º de outubro de 2004, a Comissão apresentou a demanda à Corte, anexou prova documental e ofereceu
prova testemunhal e pericial. A Comissão designou como delegados José Zalaquett e Santiago A. Canton e como
assessores jurídicos Ignacio Álvarez, Ariel Dulitzky, Víctor Madrigal Borloz e Lillly Ching.1 Em 29 de outubro de
2004, a Comissão encaminhou a demanda no idioma português.
17. Em 3 de novembro de 2004, a Secretaria da Corte (doravante denominada “Secretaria”), depois de o Presidente
da Corte (doravante denominado “Presidente”) ter realizado o exame preliminar da demanda, notificou-a,
juntamente com seus anexos, ao Estado, informando-o sobre os prazos para contestá-la e designar sua
representação no processo.
18. Em 3 de novembro de 2004, em conformidade com o disposto no artigo 35.1.e do Regulamento, a Secretaria
notificou a demanda ao Centro de Justiça Global, designado na demanda como representante da suposta vítima
e seus familiares2 (doravante denominados “representantes”), ao qual informou que dispunha de um prazo de
dois meses para apresentar seu escrito de solicitações, argumentos e provas (doravante denominado “escrito de
solicitações e argumentos”).
19. Em 3 de dezembro de 2004, o Estado comunicou a designação de Virgínia Charpinel Junger Cestari como
Agente e salientou que se reservava a prerrogativa de indicar oportunamente outros representantes para atuar
no referido caso.3
20. Em 14 de janeiro de 2005, os representantes apresentaram seu escrito de solicitações e argumentos, ao qual
anexaram prova documental e ofereceram prova testemunhal e pericial. Os representantes salientaram que o
Estado não cumprira as obrigações relativas à garantia dos direitos tutelados nos artigos 4 (Direito à vida) e
5 (Direito à integridade e pessoal), com relação ao artigo 1.1 (Obrigação de respeitar os direitos) do mesmo
instrumento, em detrimento do senhor Damião Ximenes Lopes. Salientaram também que o Estado havia violado
os direitos consagrados nos artigos 8 (Garantias judiciais) e 25 (Proteção judicial) da Convenção e a obrigação
disposta no artigo 1.1 (Obrigação de respeitar os direitos) desse tratado, em detrimento do senhor Damião
Ximenes Lopes e seus familiares. Solicitaram ademais à Corte que ordenasse o pagamento de danos materiais e
imateriais, que ordenasse medidas de não-repetição e o reembolso das custas e gastos.
21. Em 8 de março de 2005, o Estado apresentou o escrito mediante o qual interpôs uma exceção preliminar, a
contestação da demanda e suas observações sobre o escrito de solicitações e argumentos (doravante denominado
“escrito de contestação da demanda”), ao qual anexou prova documental e ofereceu prova testemunhal e pericial.
22. Em 29 de março de 2005, o Estado designou aos senhores Murilo Vieira Komniski, Renata Lúcia de Toledo
Pelizón, Carolina Campos de Melo e Cristina Timponi Cambiaghi como Agentes Assistentes.
23. Em 6 de maio de 2005, os representantes e a Comissão apresentaram suas alegações escritas à exceção
preliminar interposta pelo Estado. Os representantes ressaltaram que a exceção interposta pelo Estado era
absolutamente extemporânea e dela não devia conhecer a Corte. Por sua vez, a Comissão destacou que “[…]
não existe razão alguma para reabrir a questão da admissibilidade e [que a Corte] rejeite expressamente
a exceção interposta pelo Estado; ou alternativamente, […] que a decisão sobre a admissibilidade emitida
pela Comissão neste caso é conforme com as normas convencionais pertinentes e, por conseguinte, não é
admissível a exceção reivindicada pelo Estado”.
24. Em 22 de setembro de 2005, o Presidente expediu uma resolução mediante a qual solicitou que o senhor Milton
Freire Pereira, proposto como testemunha pelos representantes, e os senhores José Jackson Coelho Sampaio,
1. Durante a tramitação do caso a Comissão realizou mudanças na designação de seus representantes perante a Corte.
2. Durante a tramitação do caso realizaram-se mudanças na designação dos representantes da suposta vítima e seus familiares perante a Corte.
3. Durante a tramitação do caso o Estado realizou mudanças na designação de seus representantes perante a Corte.
137
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Pedro Gabriel Godinho Delgado, Braz Geraldo Peixoto, Jurandir Freire Costa, Domingos Sávio do Nascimento
Alves, Benilton Bezerra Júnior e Luís Fernando Farah Tófoli, propostos como testemunhas pelo Estado,
oferecessem seu depoimento mediante declarações prestadas perante notário público (affidavift). Requereu
também que os senhores Eric Rosenthal e João Baptista Breda, propostos como peritos pela Comissão, e o
senhor Dalmo de Abreu Dallari, proposto como perito pelos representantes, apresentassem seus pareceres
por meio de declarações prestadas perante notário público (affidavift). O Presidente concedeu às partes prazo
até 24 de outubro de 2005 para a apresentação de todas as declarações prestadas perante notário público
(affidavift). Na referida Resolução, ademais, o Presidente convocou a Comissão, os representantes e o Estado
para uma audiência pública que se realizaria na sede da Corte Interamericana a partir de 30 de novembro
de 2005, para ouvir suas alegações finais orais sobre a exceção preliminar e eventuais mérito, reparações
e custas, bem como os depoimentos da senhora Irene Ximenes Lopes Miranda e do senhor Francisco das
Chagas Melo, propostos pela Comissão, do senhor João Alfredo Teles, proposto pelos representantes, e dos
senhores Luiz Odorico Monteiro de Andrade e Emílio de Medeiros Viana, propostos pelo Estado, bem como
o laudo da perita Lídia Dias Costa, proposta pelos representantes. Por último, a Corte informou às partes que
dispunham de um prazo improrrogável até 9 de janeiro de 2006 para apresentar suas alegações finais escritas
com relação à exceção preliminar e eventuais mérito, reparações e custas.
25. Em 13 de outubro de 2005, o Estado comunicou que designava o senhor Milton Nunes Toledo Junior como
novo Agente, em substituição à senhora Virgínia Charpinel Junger Cestari.
26. Em 24 de outubro de 2005, a Comissão apresentou o laudo rendido perante notário público pelo senhor Eric
Rosenthal. Em 27 de outubro de 2005 a Comissão informou que desistia da apresentação do laudo que seria
apresentado pelo senhor João Batista Breda.
27. Em 27 de outubro de 2005 o Estado enviou as declarações com firma autenticada por notário público dos
senhores José Jackson Coelho de Sampaio, Braz Geraldo Peixoto, Domingos Sávio do Nascimento Alves e
Luís Fernando Farah de Tófoli. Informou, ademais, que o senhor Emílio de Medeiros Viana estava impedido
legalmente de prestar depoimento, uma vez que a legislação interna brasileira “proíbe aos magistrados
emitirem opinião sobre o processo que esteja sob sua responsabilidade” e enviou uma declaração prestada pelo
referido senhor, com firma autenticada por notário público. O Estado solicitou, por conseguinte, a substituição
do senhor Emílio de Medeiros Viana pelo senhor Gabriel Godinho Delgado, para que o último comparecesse
como testemunha na mencionada audiência pública. Finalmente, o Estado informou que desistia de apresentar
as declarações dos senhores Jurandir Freire Costa e Benilton Bezerra Júnior.
28. Em 28 de outubro de 2005, os representantes apresentaram a declaração com firma autenticada por notário
público prestada pelo senhor Milton Freire Pereira.
29. Em 9 de novembro de 2005, a Comissão apresentou suas observações sobre as declarações das testemunhas
e os laudos dos peritos encaminhados pelo Estado e pelos representantes, bem como sobre a solicitação de
substituição de uma testemunha pelo Estado. A Comissão observou que a declaração do senhor José Jackson
Coelho Sampaio “não é na realidade um depoimento […], mas equivale na realidade a um relatório pericial”
e que “ele não foi convocado como perito pelo Tribunal”. A Comissão estimou, portanto, que as conclusões
ou opiniões do senhor Coelho Sampaio não devem ser consideradas como prova e que o Tribunal não deve
considerar os demais elementos de sua declaração como prova suficiente para, por si só, conferir credibilidade
a fato algum no processo. No que se refere à substituição da testemunha proposta pelo Estado, a Comissão
considerou que, mesmo que a testemunha, Emílio de Medeiros Viana, não comparecesse à audiência, o Estado
já havia apresentado sua declaração por escrito, de modo que “o que houve foi uma mudança na modalidade
de declaração da testemunha […], motivo por que não procederia substituí-la”. Não apresentou observações
quanto às declarações dos senhores Braz Geraldo Peixoto, Domingos Sávio do Nascimento Alves, Luís
Fernando Farah Tófoli e Milton Freire Pereira, mas mencionou que se reservava o direito de fazer observações
em oportunidades processuais futuras.
30. Em 9 de novembro de 2005 os representantes apresentaram suas observações sobre as declarações das
testemunhas e os laudos dos peritos enviados pela Comissão e pelo Estado. Os representantes declararam,
quanto à solicitação do Estado de que a Corte admitisse como prova a declaração do senhor Emílio de
Medeiros Viana, que ela não devia ser acolhida, uma vez que este senhor se encontrava impedido pelas
normas do direito interno de prestar depoimento sobre o caso. Os representantes também fizeram objeções
à substituição da testemunha Medeiros Viana por Pedro Gabriel Godinho Delgado, proposta pelo Estado,
por considerar que não se justificava e provocava um desequilíbrio processual entre as partes, que lhes
138
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
poderia causar prejuízos. Os representantes fizeram algumas observações sobre as declarações prestadas
pelos senhores José Jackson Coelho Sampaio, Domingos Sávio do Nascimento, Alves Braz Geraldo Peixoto
e Luís Fernando Farah de Tófoli. Em 11 de novembro de 2005, os representantes apresentaram o parecer do
senhor Dalmo de Abreu Dallari.
31. Em 18 de novembro de 2005, o Estado designou o senhor Sérgio Ramos de Matos Brito como Agente
Assistente e solicitou que a Corte se pronunciasse na audiência pública sobre a exceção preliminar de não
esgotamento dos recursos internos interposta pelo Estado (par. 21 supra).
32. Em 24 de novembro de 2005, a Corte emitiu uma Resolução, mediante a qual convocou o senhor Pedro
Gabriel Godinho Delgado, proposto pelo Estado, para que comparecesse como testemunha à audiência pública
marcada para 30 de novembro de 2005 (par. 24 supra).
33. Em 29 de novembro de 2005, a Corte emitiu uma Resolução, mediante a qual resolveu determinar que seu
Presidente, Juiz Sergio García Ramírez, seu Vice-Presidente, Juiz Alirio Abreu Burelli, o Juiz Antônio Augusto
Cançado Trindade, a Juíza Cecilia Medina Quiroga e o Juiz Manuel E. Ventura Robles comparecessem à
audiência pública convocada no presente caso (par. 24 supra).
34. Nos dias 30 de novembro e 1º de dezembro de 2005, foi celebrada a audiência pública à qual compareceram:
a) pela Comissão Interamericana: os senhores Florentín Meléndez, Ignacio J. Álvarez, Víctor Madrigal Borlotz,
Leonardo Jun Ferreira Hidaka e a senhora Lilly Ching; b) pelos representantes: os senhores James Louis
Cavallaro e Fernando Delgado e as senhoras Renata Verônica Côrtes de Lira e Deborah Popowski; c) pelo
Estado: os senhores Milton Nunes de Toledo Junior, Francisco Soares Alvim Neto, Christiano Sávio Barros
Figuerôa, Alfredo Schechtmann e Alexandre Pinto Moreira e as senhoras Maria Luiza Ribeiro Viotti, Carolina
Campos de Melo, Renata Lucia de Toledo Pelizon e Márcia Adorno Ramos. A audiência pública dividiu-se em
duas partes. Na primeira parte o Estado, a Comissão e os representantes se referiram à exceção preliminar
interposta pelo Estado.
35. Nesse mesmo dia, 30 de novembro de 2005, a Corte proferiu Sentença sobre a exceção preliminar, na qual
resolveu:
1. Desestimar a exceção preliminar de não-esgotamento dos recursos internos interposta pelo Estado.
2. Continuar com a celebração da audiência pública convocada mediante Resolução da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, de 22 de setembro de 2005, assim como [com] os demais atos
processuais relativos ao mérito e eventuais reparações e custas no presente caso.
[…]
36. A Sentença sobre a Exceção Preliminar foi notificada às partes e passou-se à realização da segunda parte da
audiência pública. O Estado manifestou inicialmente seu reconhecimento de responsabilidade internacional
pela violação dos artigos 4 e 5 da Convenção Americana neste caso (par. 63 e 66 infra). A esse respeito, tanto
a Comissão quanto os representantes se referiram ao reconhecimento do Estado (par. 64 e 65 infra). A Corte
decidiu em seguida dar continuidade à audiência pública, a fim de ouvir os depoimentos e laudos periciais das
pessoas que haviam sido convocadas a comparecer perante o Tribunal e as alegações finais relacionadas com o
mérito e as eventuais reparações e custas, levando em conta o reconhecimento de responsabilidade declarado
pelo Estado. A testemunha João Alfredo Teles Melo apresentou alguns documentos ao prestar sua declaração.
Durante a audiência pública também os representantes e o Estado apresentaram alguns documentos.
37. Em 23 de dezembro de 2005, a Comissão apresentou suas alegações finais escritas. Em 4 de janeiro de
2006, a Comissão enviou os anexos dessas alegações e salientou que se referiam a documentos preparados
posteriormente à apresentação da demanda e que, por conseguinte, constituíam prova superveniente, em
conformidade com o artigo 44.3 do Regulamento.
38. Em 9 de janeiro de 2006, os representantes e o Estado enviaram suas alegações finais escritas.
39. Em 13 de junho de 2006, a Secretaria solicitou à Comissão, aos representantes e ao Estado, obedecendo a
instruções do Presidente, de acordo com o artigo 45 do Regulamento, diversos documentos como prova para
melhor resolver.
40. Em 22 e 26 de junho de 2006, a Comissão e os representantes, respectivamente, remeteram parte da prova para
melhor resolver. Em 26 e 28 de junho de 2006, o Estado apresentou parte da prova para melhor resolver.
139
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
V
Prova
41. Antes de examinar as provas oferecidas, a Corte realizará, à luz do disposto nos artigos 44 e 45 do Regulamento,
algumas considerações constantes da própria jurisprudência do Tribunal e pertinentes a este caso.
42. Em matéria probatória rege o princípio do contraditório, que respeita o direito de defesa das partes. Este princípio
figura no artigo 44 do Regulamento, no que concerne à oportunidade em que deve ser oferecida a prova para que
haja igualdade entre as partes.4
43. Segundo a prática do Tribunal, no início de cada etapa processual as partes devem declarar que provas
oferecerão na primeira oportunidade que lhes seja concedida para se pronunciar por escrito. Ademais, no
exercício dos poderes discricionários contemplados no artigo 45 de seu Regulamento, a Corte ou seu Presidente
poderão solicitar às partes elementos probatórios adicionais como prova para melhor resolver, sem que isso se
traduza em nova oportunidade para ampliar ou complementar as alegações, a não ser que o Tribunal o permita
expressamente.5
44. A Corte salientou, quanto ao recebimento e valoração da prova, que os procedimentos seguidos perante ela não
estão sujeitos às mesmas formalidades que as atuações judiciais internas e que a incorporação de determinados
elementos ao acervo probatório deve ser efetuada dispensando-se especial atenção às circunstâncias do caso
concreto e tendo presentes os limites que impõe o respeito à segurança jurídica e ao equilíbrio processual das
partes. A Corte tem considerado, ademais, que a jurisprudência internacional, ao considerar que os tribunais
internacionais têm o poder de apreciar e avaliar as provas segundo as normas da crítica sã, não fixou de maneira
rígida o quantum da prova necessária para fundamentar uma sentença. Este critério é especialmente válido
com relação aos tribunais internacionais de direitos humanos, os quais dispõem, para efeitos da determinação
da responsabilidade internacional de um Estado pela violação de direitos da pessoa, de ampla flexibilidade na
avaliação da prova a eles apresentada sobre os fatos pertinentes, de acordo com as regras da lógica e com base
na experiência.6
45. Com fundamento no acima exposto, a Corte procederá a examinar e valorar os elementos probatórios documentais
enviados pela Comissão, pelos representantes e pelo Estado, em diversas oportunidades processuais ou
como prova para melhor resolver, a eles solicitados pelo Presidente, que constituem em seu todo o acervo
probatório deste caso. Para essa finalidade, o Tribunal se aterá aos princípios da crítica sã, dentro do marco legal
correspondente.
A) Prova Documental
46. Os representantes encaminharam uma declaração testemunhal, o Estado remeteu quatro declarações testemunhais
e a Comissão enviou um laudo pericial, todos apresentados mediante declarações com firma autenticada, exceto
o laudo do perito proposto pela Comissão, que foi rendido perante notário público, em atendimento ao disposto
pelo Presidente em sua resolução de 22 de setembro de 2005 (par. 24 supra). Essas declarações e o parecer são
resumidos abaixo.
1. Declaração proposta pelos representantes:
a) Milton Freire Pereira, ex-paciente de instituições psiquiátricas
Durante dez anos foi paciente de instituições psiquiátricas e atualmente é diretor do Instituto Franco Basaglia
e membro do “Movimento Antimanicomial”. Tem ainda fortes lembranças dos quartos de hospitais em que
esteve internado e dos eletro-choques que recebeu. Sua reabilitação ocorreu fora dos hospitais.
Causou-lhe grande tristeza a degradante e humilhante morte do senhor Damião Ximenes Lopes. Sua morte se
circunscreve na cultura de mortificação existente com relação às pessoas que padecem de doenças mentais.
Existe una crença de que não se pode curar a doença mental, o que é conseqüência da segregação, clausura,
violência e ausência de vínculos sociais a que são submetidas aquelas pessoas.
4. Cf. Caso Baldeón García. Sentença de 6 de abril de 2006. Série C, nº 147, par. 60; Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa. Sentença de 29
de março de 2006. Série C, nº 146, par. 30; e Caso Acevedo Jaramillo e outros. Sentença de 7 de fevereiro de 2006. Série C, nº 144, par. 183.
5. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 61; Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, nota 4 supra, par. 31; e Caso Acevedo Jaramillo
e outros, nota 4 supra, par. 184.
6. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 62; Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, nota 4 supra, par. 32; e Caso Acevedo Jaramillo
e outros, nota 4 supra, par. 185.
140
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
A atenção de saúde mental no Estado mudou muito com implementação dos serviços substitutivos do
modelo do hospital psiquiátrico. No atual modelo existe participação multidisciplinar de profissionais como
psicólogos, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais. Entretanto, a hegemonia do modelo manicomial
centrado nos hospitais ainda permanece. Esse modelo continua matando, escravizando e evitando para
sempre, às pessoas que necessitam de atenção de saúde mental, a participação no seu próprio tratamento,
sem possibilidade de reabilitar-se.
2. Declarações propostas pelo Estado:
a) José Jackson Coelho Sampaio, médico psiquiatra
Desde o ano 1962 até o ano 1991 a assistência psiquiátrica se dava mediante a internação em hospitais
privados, método iniciado durante a ditadura militar. No estado do Ceará havia seis hospitais privados,
todos associados às administração pública, inclusive a Casa de Repouso Guararapes, em Sobral. Houve um
movimento de reforma psiquiátrica que resultou na criação dos Centros de Atenção Psicossocial (doravante
denominado “Centro de Atenção Psicossocial” ou “CAPS”) na cidade de Iguatu e a emissão da Lei “Mário
Mamede”. Entre os anos 1991 e 1998, foram criados vários outros Centros de Atenção Psicossocial e entre
os anos 1999 e 2000, esse modelo de atenção foi ampliado. Entre os anos 2001 e 2005 o estado do Ceará
impulsionou o crescimento da rede de Centros de Atenção Psicossocial e incluiu a cidade de Sobral.
A Casa de Repouso Guararapes atendia uma região de quase um milhão de habitantes, mas esse hospital
tinha apenas cento e dez leitos de internação. A assistência ambulatorial era precária.
A atenção de saúde mental mudou muito depois que a Casa de Repouso Guararapes foi fechada em julho de
2001. Essa data marca o processo de transição de um modelo de assistência enfocado na atenção médicohospitalar e de manicômios, para uma abordagem descentralizada, regionalizada, com novos equipamentos
e que propunha a reabilitação e reintegração social das pessoas com doenças mentais.
b) Domingos Sávio do Nascimento Alves, médico e ex-Coordenador de Saúde Mental do Ministério da
Saúde do Brasil
O Instituto Franco Basaglia tem como objetivo principal desenvolver ações para a formulação de políticas
públicas que promovam e protejam os direitos dos usuários do serviço de saúde mental.
No ano 1992 criou-se um projeto inovador chamado “SOS Direitos do Paciente Psiquiátrico”, que recebe
denúncias de usuários do sistema de saúde mental, seus familiares, médicos, entre outros. No início do
projeto eram mais freqüentes as denúncias sobre maus-tratos e tratamentos abusivos, mas atualmente as
denúncias têm-se modificado e referem-se ao exercício da cidadania e às dificuldades de acesso à justiça das
pessoas com doenças mentais. Essa mudança demonstra os avanços em relação com as queixas sobre os
serviços e os profissionais.
A partir do ano 1990 o Ministério da Saúde emitiu diversas normas que regulam a prática dos hospitales
psiquiátricos no marco do Sistema Único de Saúde; promoveu o novo registro nacional das unidades do
Sistema e criou o grupo de assistência psiquiátrica hospitalar, que realiza visitas de monitoramento.
Entre os anos 1993 e 1994 foram fechadas nove mil leitos hospitalares e a taxa de mortes em hospitais
psiquiátricos se reduziu em 12%. Os hospitais têm sido substituídos por uma rede de serviços comunitários,
na qual se incluem os diversos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e de assistência na rede básica de
saúde. Nos últimos anos, o Ministério da Saúde, através do Programa Nacional de Avaliação de Serviços
Hospitalares Psiquiátricos, interveio em diversas instituições e reestruturou a assistência psiquiátrica.
A política de saúde mental no Estado tem-se enfocado na humanização da atenção e na defesa dos direitos
das pessoas com doenças mentais.
c) Luís Fernando Farah de Tófoli, médico psiquiatra da Secretaria de Desenvolvimento Social de
Saúde do Município de Sobral
A influência do caso Ximenes Lopes na reorganização da atenção da saúde mental no município de Sobral
é um fato inegável. O dia 10 de julho de 2000, dia do descredenciamento da Casa de Repouso Guararapes
do Sistema Único de Saúde, é simbolicamente considerado pelos profissionais de saúde mental de Sobral
141
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
como a data de início do funcionamento da Rede de Atenção Integral à Saúde Mental de Sobral. Essa rede
está composta por um Centro de Atenção Psicossocial General, uma residência terapêutica, uma unidade
de internação psiquiátrica em hospital geral e por ações de supervisão e educação sobre o programa de
saúde familiar. Esse modelo de atenção recebeu diversos prêmios nacionais de experiência exitosa em
saúde mental.
No ano de 1998, foi instalado o Centro de Atenção Psicossocial Geral, o qual funcionou de forma modesta
até o fechamento da Casa de Repouso Guararapes, quando sua responsabilidade aumentou, assim como o
número de atendimentos. Também criou-se uma unidade ambulatorial macro-regional de psiquiatria para dar
atenção ambulatorial a pessoas que vivem em outros municípios e para evitar sua internação, e o primeiro
serviço público residencial terapêutico no nordeste do Brasil, a “Residência Terapêutica Lar Renascer”.
Nem sempre é possível evitar a internação psiquiátrica. Para casos de maior risco, foi criada uma enfermaria
e para outros casos, reservou-se leitos em uma enfermaria de clínica regular. Os resultados obtidos têm
sido positivos, especialmente na redução no número total de dias internados de cada paciente e no custo
médio das internações, sem aumentar o número de internações. Os familiares têm sido incentivados a
acompanhar seus parentes internados, para manter o vínculo com eles durante a internação, a qual deve
ser a mais breve possível.
A rede de Sobral é única e exemplar e oferece um serviço de alta qualidade técnica para os moradores de
Sobral e suas adjacências. A morte do senhor Damião Ximenes Lopes levou à reformulação da política de
saúde mental e uma resposta adequada diante das condições insustentáveis de funcionamento da Casa de
Repouso Guararapes.
d) Braz Geraldo Peixoto, familiar de usuário do sistema de saúde mental, eleito representante de
familiares perante a Comissão Nacional de Reforma Psiquiátrica do Ministério da Saúde e perante
a Comissão Estadual da Secretaria de Saúde do estado de São Paulo
Os fatos do caso do senhor Damião Ximenes Lopes foram conseqüência do antigo e obsoleto tratamento
psiquiátrico, que diminuiu de forma significativa em razão da nova política de saúde mental que começou a ser
implementada a partir dos anos 70. No entanto, foi a partir da II Conferencia Nacional de Saúde Mental, que
contou com a participação maciça de usuários, familiares e profissionais da área de saúde, realizada no ano
de 1992, que uma reorientação no modelo assistencial foi implementada, no marco da reforma psiquiátrica
no Estado. Nesse contexto, novos conceitos foram desenvolvidos, a partir de recursos humanos formados
com uma visão dirigida à reorientação do modelo assistencial e capacitados para atuar na área com essa
finalidade. Igualmente, os familiares e os usuários do sistema de saúde mental passaram a exercer um papel
fundamental na determinação da política de saúde mental. Mediante a aprovação da Lei No. 10.216, de 2001,
se lograram grandes avanços, embora essa lei não tenha alcançado todos os objetivos perseguidos pelos
familiares e pelo usuários do sistema de saúde mental. Na Conferencia Brasileira sobre Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS), realizada em junho de 2004, com a participação de familiares, usuários e trabalhadores
do sistema de saúde mental, se analisaram amplamente diversos aspectos da legislação sobre a matéria.
Es louvável o esforço realizado pelo Ministério de Saúde a respeito da reforma da atenção de saúde mental.
3. Peritagem proposta pela Comissão:
a) Eric Rosenthal, experto internacional na matéria de direitos humanos das pessoas com deficiências
mentais.
As pessoas com deficiência mental estão sujeitas a discriminação e fortes estigmas, constituindo um grupo
vulnerável a violações de direitos humanos a nível global. Quatro relatores das Nações Unidas constataram
que as pessoas com deficiências mentais sofrem as mais perversas formas de discriminação, assim como
difíceis condições de vida, se comparados a qualquer outro grupo vulnerável da sociedade. As práticas
violatórias dos direitos de pessoas com deficiências mentais seguem padrões similares em todo o mundo.
Essas pessoas são arbitraria e desnecessariamente segregadas da sociedade em instituições psiquiátricas,
onde se encontram sujeitas a tratamento desumano e degradante ou a tortura.
Esta demonstrado que a vasta maioria das pessoas portadoras de deficiência mental podem receber
tratamento de maneira segura e digna na sua comunidade e decidir de forma responsável sobre seu próprio
tratamento. Freqüentemente, leis paternalistas com o propósito declarado de proteger pessoas portadoras
142
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
de deficiência mental podem causar-lhes danos, se negarem ]as pessoas a capacidade de fazer escolhas
importantes sobre suas vidas. A falta de uma linguagem concernente especificamente às pessoas portadoras
de deficiência mental nos instrumentos internacionais de direitos humanos dificulta a aplicação dessas
normas a tais pessoas.
Como resultado de sua marginalização, as pessoas com deficiências mentais não contam com os recursos
nem com o reconhecimento necessários, para formar organizações que defendam seus direitos nacional e
internacionalmente.
A Convenção Interamericana sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas
Portadoras de Deficiência (doravante denominada “Convenção Interamericana sobre as Pessoas Portadoras
de Deficiência”) é o primeiro instrumento internacional de direitos humanos especificamente dedicado a
pessoas portadoras de deficiência e representa um inestimável compromisso dos Estados Americanos para
assegurar que as pessoas portadoras de deficiência gozem dos mesmos direitos que os demais cidadãos. Os
Princípios para a Proteção das Pessoas Acometidas de Transtorno Mental e para a Melhoria da Assistência
a Saúde Mental são as normas mais abrangentes de direitos humanos com relação à assistência para o
tratamento de doenças mentais. Esses Princípios são particularmente úteis como guia para a interpretação
dos direitos dispostos nos tratados de direitos humanos.
O direito internacional dos direitos humanos reconhece que indivíduos com deficiências mentais confinados
em instituição psiquiátrica, como estava o senhor Damião Ximenes Lopes, têm direito ao consentimento
informado e, em conseqüência, o direito de recusar tratamento. De maneira excepcional, o tratamento
forçado pode ser justificado em uma situação de emergência, quando o tratamento seja considerado por
autoridade médica necessário para evitar dano iminente para a pessoa ou terceiros. Em casos de ausência de
emergência, justifica-se somente sob a revisão de uma autoridade medica independente. No caso do senhor
Ximenes Lopes não há indicação de que existisse um risco iminente ou imediato e tampouco há informação
a respeito de uma decisão emitida por autoridade médica independente. Na ausência dessas garantias, o
senhor Damião Ximenes Lopes tinha o direito de recusar o tratamento e qualquer tentativa de tratamento
forçado violaria o direito internacional dos direitos humanos.
Dada a natureza potencialmente perigosa e dolorosa das medicações psicotrópicas que produzem os efeitos
colaterais das medicações psiquiatras, o uso injustificado e forçado dessa medicação, em contravenção
aos padrões internacionais, deve ser considerado uma forma de tratamento desumano e degradante e uma
violação do artigo 5.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos.
A contenção7 física em tratamentos psiquiátricos, quando utilizada de maneira adequada, tem o objetivo de
prevenir danos que o paciente possa ocasionar a si mesmo ou a terceiros. Causar danos ao paciente sob
a desculpa de controlar suas emoções constitui um sinal inequívoco da falta de adequada capacitação do
pessoal da instituição para o emprego de métodos corretos para a contenção.
No caso do senhor Ximenes Lopes, não há evidências de que ele representasse perigo iminente para ele
mesmo ou para terceiros. Tampouco há evidência de que quaisquer tentativas menos restritivas para controlar
um possível episodio de violência seu. Assim sendo, o uso de qualquer forma de contenção física neste caso
foi ilegal. Uma vez contido, com as mãos amarradas por trás das costas, competia ao Estado o supremo
dever de proteger o senhor Damião Ximenes Lopes, devido a sua condição de extrema vulnerabilidade. O
uso de força física e o espancamento constituíram uma violação de seu direito a uma acedência humana.
Há outras alternativas que podem ser utilizadas antes de fazer uso da força ou decidir o isolamento de um
paciente. Os programas de saúde mental deveriam se empenhar em manter um ambiente e uma cultura de
cuidado que minimize a utilização de tais métodos. O uso injustificado e excessivo da forca neste caso viola
o artigo 5.2 da Convenção Americana e constitui prática desumana e tratamento degradante.
Quando o isolamento ou a contenção são usados como punição, coerção ou por objetivos impróprios, a
violação dos direitos humanos é ainda mais grave. Nos casos em que o uso da contenção tenha provocado
dor ou sofrimento físico ou mental extremos, sua utilização imprópria para objetivo impróprios, poderá
constituir tortura. Jamais é necessário espancar um paciente psiquiátrico ou a ele causar qualquer tipo de
dano ou sofrimento. O fato de que o senhor Damião Ximenes Lopes estivesse desarmado e sob a custódia do
7. A contenção é uma forma de sujeição, entendida esta como “qualquer palavra ou ação que interfira na capacidade de um paciente de tomar
decisões ou que restrinja sua liberdade de movimento”. Para efeitos desta sentença a Corte utilizará o termo “contenção” para designar a
sujeição física a que o senhor Damião Ximenes Lopes foi submetido.
143
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Estado demonstra que uma ação dessa natureza não seria desproporcional à eventual ameaça que ele possa
ter representado. Dada a grande vulnerabilidade de uma pessoa em crise psiquiátrica, cabe às autoridades
do Estado em grau maior de responsabilidade na proteção a esses indivíduos. O espancamento do senhor
Damião Ximenes Lopes- e sua posterior morte- poderiam ter sido evitados se o Estado tivesse cumprido
suas obrigações de proporcionar-lhe uma instituição com funcionários capacitados para assisti-lo em sua
deficiência mental.
B) Prova Testemunhal e Pericial
47. Em 30 de novembro e 1º de dezembro de 2005, a Corte recebeu em audiência pública as declarações das
testemunhas propostas pela Comissão Interamericana, pelos representantes e pelo Estado e o laudo do
perito proposto pelos representantes (par. 24 supra). O Tribunal resume a seguir as partes relevantes dessas
declarações.
1. Testemunhas propostas pela Comissão
a) Irene Ximenes Lopes Miranda, irmã do senhor Damião Ximenes Lopes
O senhor Damião Ximenes Lopes tinha sido internado no ano de 1995 e outra vez no ano de 1998. Nesta
última internação, a testemunha encontrou cortes, feridas nos tornozelos e no joelho do senhor Damião,
razão pela qual pediu explicação ao funcionário da Casa de Repouso Guararapes, quem lhe disse que os
ferimentos eram conseqüência de uma tentativa de fuga. A testemunha acreditou nessa versão.
No dia 4 de outubro de 1999, quando a mãe da testemunha encontrou o senhor Damião Ximenes Lopes
ele estava agonizando, e ela pediu socorro ao médico Francisco Ivo de Vasconcelos, porque acreditava que
seu filho ia morrer devido às condições em que estava. No entanto, o médico não atendeu seus pedidos. O
senhor Damião Ximenes Lopes morreu nesse mesmo dia. Seu cadáver apresentava marcas de tortura; seus
punhos estavam dilacerados e totalmente roxos, e suas mãos também estavam perfuradas, com sinais de
unhas e uma parte do seu nariz estava machucada. A causa da morte foi dada pelos médicos como “morte
natural, parada cardio-respiratória” e nada mais. O corpo do senhor Damião Ximenes Lopes foi então levado
para Fortaleza para que fosse realizada uma necropsia, a qual também concluiu que se tratava de “morte
indeterminada”. A família não acreditou nesse laudo e acredita que houve manipulação e omissão da verdade.
A raiz do seu envolvimento com o caso do seu irmão, encontrou muitas pessoas que sofreram maus-tratos
ou que tiveram parentes espancados dentro da Casa de Repouso Guararapes, mas as famílias e as vítimas
não tinham interesse em denunciar, porque tinham medo de enfrentar a polícia e o hospital.
A testemunha indicou que dentre os diversos familiares que tinha o senhor Damião Ximenes Lopes, sua mãe
e seu pai, assim como ela e seu irmão Cosme Ximenes Lopes eram as pessoas afetivamente mais ligadas a
ele. A testemunha sofreu muito e sacrificou-se a si e a sua família com a morte do senhor Damião, porque
iniciou uma luta para obter justiça. Na época dos fatos tinha uma filha recém nascida, e devido ao abalo
emocional que sofreu, deixou de produzir o leite materno e não pôde seguir amamentando sua filha. Padeceu
de depressão por três anos e perdeu a motivação para trabalhar. Perdeu seu emprego na Prefeitura vinte
e seis dias após a morte do senhor Damião Ximenes Lopes. Clamou por justiça pelo morte do seu irmão,
porque jurou que sua alma não descansaria enquanto não houvesse justiça.
O senhor Cosme Ximenes Lopes se identificava muito com o Damião Ximenes Lopes pelo fato de ser gêmeos
e de que eram muito próximos, e quando este faleceu, Cosme entrou em estado de choque, precisou de
ajuda médica, padeceu de depressão e perdeu o emprego. A testemunha teve que ajudar a sustentar a família
do seu irmão por algum tempo, enquanto ele estava recompondo. O pai da testemunha, embora estivesse
separado da mãe da suposta vítima, nunca interrompeu os laços familiares com seu filho, senhor Damião
Ximenes Lopes, e sofreu pela sua morte. Dizia que “não [era] fácil perder um filho [que ainda era] jovem”. Ele
foi por muito tempo tomado por um desejo de vingança.
Sua mãe ainda sofre os efeitos da morte do senhor Damião. Ficou com a vida completamente arruinada, até
hoje padece de depressão e diz que tem desejo de morrer. Ela perdeu o gosto pela vida, teve gastrite nervosa
e em conseqüência uma ulcera duodenal que foi tratada com dificuldade porque ela desenvolveu um medo
enorme de hospitais. Ela parece sofrer também de uma certa “psicose de defesa da vida”, porque ela não quer
tocar em nada vivo, como animais, insetos ou plantas, porque não quer matá-los. Tudo lhe traz a lembrança
da morte de seu filho, Damião Ximenes Lopes.
144
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
No dia da morte do seu irmão apresentaram uma queixa na Delegacia de Polícia da Sétima Região de Sobral
(doravante denominada “Delegacia de Polícia de Sobral”) mas, como esta não se interessou pelo caso,
denunciaram perante a Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa. A morte do senhor Damião
ainda continua impune em todas as instâncias. O processo tem demorado muito.
Em relação com o processo penal, indicou que faltaram diligências no expediente do processo,
principalmente declarações como as dos senhores Francisco Ivo de Vasconcelos, João Alves da Silva e
Sebastião Vieira Filho, depoimentos considerados importantes pela testemunha, que comprometiam tanto
o hospital como o Estado.
A mãe da testemunha, assim como toda família, recusa-se a receber a pensão vitalícia oferecida pelo
Estado por considerar que se trata de uma pensão e que é muito inferior ao que poderia reparar os danos
causados. Consideram a proposta do Estado humilhante. Estima positiva a designação do Centro de Atenção
Psicossocial (CAPS) com o nome do seu irmão, mas não considera que isso significa justiça, senão que
representa o mínimo que se poderia fazer.
b) Francisco das Chagas Melo, ex-paciente da Casa de Repouso Guararapes
Na época em que esteve internado na Casa de Repouso Guararapes foi vítima de atos de violência e não
denunciou os fatos à polícia. Soube de outros casos de violência e morte dentro da Casa de Repouso
Guararapes, sem que tenham existido investigações a respeito. Identificou a pessoas que cometeram atos
de violência com os nomes de Eliésio, Cosmo, Carlão e Nonato. Ouviu falar que Carlão era muito violento e
viu Cosmo praticando atos de violência e masturbando-se ao olhar as mulheres nuas. A Casa de Repouso
Guararapes era um lugar de violência, de abuso de poder e sem nenhum cuidado para com os pacientes.
2. Testemunhas propostas pelos representantes
a) João Alfredo Teles Melo, na época dos fatos era deputado da Assembléia Legislativa do estado do
Ceará, onde presidia a Comissão de Direitos Humanos e Cidadania. Atualmente é deputado federal.
A Comissão de Direitos Humanos e Cidadania funciona como um balcão onde a população pode apresentar
demandas, queixas e reclamações e, em seguida, a Comissão faz o encaminhamento das mesmas aos órgãos
responsáveis. Ela tem a função de acompanhar o seguimento das queixas, seja cobrando providências
ou realizando audiências públicas em matéria de direitos humanos. No caso do senhor Damião Ximenes
Lopes, convidou-se a sua irmã e sua mãe e outros pacientes que estiveram na Casa de Repouso Guararapes
para prestarem depoimento, foram dirigidos ofícios e aprovadas moções que foram dirigidas a distintas
autoridades solicitando a adoção de medidas, tanto no âmbito administrativo e disciplinar -para o Conselho
de Medicina, para a Prefeitura de Sobral, através da Secretaria de Saúde, para a Secretaria de Saúde do
Estado-, como também para autoridades policiais e judiciais.
Na visita que realizou à Casa de Repouso Guararapes, a mesma se encontrava em péssimas condições de
higiene, os pacientes estavam em más condições, sem um responsável da área médica ou administrativa
presente. O Estado no fiscalizou a adequadamente a Casa de Repouso Guararapes.
A demora de mais de cinco anos no processo que investiga a morte do senhor Damião Ximenes Lopes
mostra que a justiça brasileira é lenta e parcial. A pressão do poder político e econômico influencia muito a
justiça. Muita vezes há cumplicidade entre esses poderes, eles são muito fortes e podem determinar ou não
um julgamento.
No caso do senhor Damião Ximenes Lopes, recebeu relatórios sobre as apurações realizadas pelo Conselho
Regional de Medicina, entre outros. No entanto, nunca se respondeu sobre a investigação disciplinar do
delegado de polícia que teria feito desaparecer provas, ou sobre o fato de que o inquérito foi instalado
apenas no dia 7 ou 8 de novembro de 1999 quando o óbito se deu em 4 de outubro de 1999. O Ministério
Público demorou três anos para aditar a denúncia. Houve uma demora injustificada. A testemunha considera
um absurdo que um caso que teve tanta repercussão e que contém a quantidade de provas como no do
senhor Damião Ximenes Lopes, possa demorar tanto, e suspeita de que possa estar encaminhando-se para
a impunidade, com a prescrição do delito.
Depois da morte do senhor Damião Ximenes Lopes, houve avanços na atenção de saúde mental em Sobral,
mas ainda esta longe de se alcançar a concepção ideal de reforma psiquiátrica.
145
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
3. Testemunhas propostas pelo Estado
a) Luiz Odorico Monteiro de Andrade, na época da morte do senhor Damião Ximenes Lopes
era Secretário do Desenvolvimento Social e Saúde do Município de Sobral. Atualmente é
Secretário Municipal de Saúde de Fortaleza.
O hospital no qual morreu o senhor Damião Ximenes Lopes já havia sofrido várias admoestações e se estava
criando um sistema de saúde mental com o objetivo de desativar o hospital. No entanto, devido ao fato de
ser um hospital com caráter regional era difícil fechá-lo imediatamente em função de sua importância para a
região. Assim que tomaram conhecimento da morte do Damião Ximenes Lopes, criou-se uma comissão de
inquérito, a qual registrou uma série de problemas do hospital e em seguida foi realizada uma intervenção para
ter controle dos pacientes internados. Essa comissão de inquérito fez um diagnóstico completo da situação
de deficiência mental de cada paciente e começaram gradualmente a processar altas para os pacientes do
Município de Sobral e sua vinculação ao Programa Saúde da Família, com apoio domiciliar e comunitário.
Posteriormente o hospital foi fechado.
A partir do dia 1 de janeiro de 1997, começaram uma série de reestruturações administrativas no âmbito do
Município para ajustar as políticas do Sistema Único de Saúde em varias áreas. No final de 1998, já havia um
Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), que brinda atendimento ambulatorial e atenção diária a pacientes com
deficiências mentais. Esse sistema evoluiu e hoje já existe o tratamento de intra-pacientes com deficiências
mentais agudas na área de saúde mental em hospital geral. Existe também um CAPS para transtornos na área
geral e um para pessoas com problemas na área de alcoolismo e drogadição. Recentemente inaugurou-se um
CAPS com o nome do senhor Damião Ximenes Lopes para homenageá-lo.
Atualmente a qualidade no atendimento é muito melhor que no ano de 1999. A partir da descentralização houve
um intenso processo em que se diminuiu o número de hospitais e manicômios e se humanizou a assistência
psiquiátrica nas cidades brasileiras. O Município de Sobral é considerado uma das experiências exitosas
nessa área, não só do ponto de vista local, mas também nacional e internacional. Esse município ganhou
vários prêmios, entre eles o do glorioso sanitarista David Capistrano e outros prêmios de reconhecimento
de inclusão social. O Estado tem sido uma referência na diminuição dos hospitais psiquiátricos e no avanço
contra os manicômios nas Américas.
A partir dos CAPS, estabeleceu-se uma estrutura com uma equipe interdisciplinar de médicos, assistentes
sociais, psicólogos, farmacêuticos, terapeutas. Os pacientes realizam trabalhos para inserir-se economicamente
na sociedade, quando antes estavam totalmente destinados a viver em manicômios.
b) Pedro Gabriel Godinho Delgado, Coordenador Nacional do Programa de Saúde Mental do Ministério
da Saúde
Desde a morte do senhor Damião Ximenes, houve no Estado uma redução de 19.000 leitos psiquiátricos em
instituições semelhantes a Casa de Repouso Guararapes. Além disso, entre os anos de 1999 a 2005, foram
criados de quinhentos a seiscentos serviços extra-hospitalares, capazes de atender a situações graves de
saúde mental, sem a necessidade de hospitalizar o paciente. Foram também criados outros tipos de serviço,
como as residências terapêuticas capazes de receber pacientes menos graves. Foi um período em que o país
inteiro enfrentou um debate significativo sobre as condições de vida dos pacientes do sistema psiquiátrico
Em 2001, aprovou-se a Lei n° 10.216, cuja base é a defesa dos direitos do paciente mental, a mudança
do modelo de assistência em instituições como a Casa de Repouso Guararapes por uma rede de cuidados
aberta e localizada na comunidade e o controle externo da internação psiquiátrica involuntária, nos termos
propostos pela Declaração de Direitos do Paciente Mental da ONU de 1991.
Em 1999, cerca de 90% dos recursos financeiros que a saúde pública destinava ao campo da assistência
psiquiátrica e saúde mental eram destinados ao Modelo Hospitalar Cêntrico e a rede externa recebia apenas
10% dos recursos. Hoje os recursos para a saúde mental no Brasil aumentaram globalmente e 63% dos
recursos são ainda destinados a hospitais com equipamento caro, mas de 37 a 40% dos recursos já são
destinados ao serviço extra-hospitalar. Portanto, hoje, no Brasil, vive-se um processo de transição para um
modelo de atenção psiquiátrica baseada nos direitos do paciente, na atenção integral, no respeito aos seus
direitos individuais e na participação dos familiares no tratamento.
A avaliação dos hospitais é feita por um Programa de Avaliação Anual ao qual todos são submetidos e no qual
146
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
participa também a sociedade por meio de associações de familiares, de usuários, conselhos municipais e
conselhos estaduais de saúde. O processo de mudança da política consiste em reduzir os hospitais de grande
porte para hospitais menores, que tendem a preservar e respeitar mais os direitos dos pacientes.
O documento chamado “Princípios de Brasília”, que contém a avaliação da Declaração de Caracas, reafirma
que houve avanços em diversos países e cita expressamente o Brasil como exemplo de país com experiência
relevante.
Em 1999, já estava em curso um processo de modernização da assistência em saúde mental. O
monitoramento do Sistema Único de Saúde não se baseia em denúncias, mas na supervisão regular
dos serviços. Nesse sentido, o procedimento diminui o risco de desrespeito aos direitos humanos.
As denúncias referentes à situação de pacientes mentais são prontamente investigadas. As violações
aos direitos humanos de pacientes no Brasil têm diminuído porque os hospitais são menores as
instituições que estão substituindo o antigo modelo são mais abertas e contam com maior participação
dos familiares e maior controle social.
4. Peritagem proposta pelos representantes
a) Lídia Dias Costa, médica psiquiatra
Acompanhou o caso do senhor Damião Ximenes Lopes desde novembro de 1999. Esteve presente na
exumação do corpo do senhor Damião Ximenes Lopes quando o mesmo já se encontrava em um processo
de decomposição e só existia a parte esquelética. Na exumação pôde perceber que o cérebro do cadáver
tinha sido aberto como tradicionalmente se faz em toda necropsia, embora não constasse a descrição do
cérebro na primeira necropsia realizada em 1999. Esse é um procedimento de rotina e não há motivos para
não indicá-lo ou não descrever o que tinha sido examinado. Se poderia formular um diagnóstico com base
na evolução clínica do paciente de morte violenta causada por traumatismo crânio-encefálico. O médico que
atestou o óbito do senhor Damião Ximenes Lopes não atestou que havia lesões no corpo.
Existem padrões nacionais e internacionais sobre as formas apropriadas de tratamento de pessoas com
deficiências mentais, que são os “princípios de tratamento de pessoas com problemas mentais e de melhoria
da assistência à saúde”, publicada pela ONU em 1991. Esses princípios foram aceitos pelo Brasil na sua
Resolução Federal n° 1.407.
A testemunha visitou a Casa de Repouso Guararapes em maio de 2000, período em que a instituição estava
sob intervenção e encontrou lá trabalhando pessoas que já haviam sido indiciadas no processo penal. A Casa
de Repouso Guararapes não tinha condições de funcionamento.
A contenção feita na Casa de Repouso Guararapes não pode ser considerada um procedimento médico,
já que os pacientes eram convidados para fazer contenção em outros pacientes quando os mesmos se
agitavam. A contenção era feita de uma forma violenta. Essa situação foi descrita pelos próprios profissionais
da Casa de Repouso Guararapes, inclusive o médico Francisco Ivo de Vasconcelos, que manifestou que
muitas vezes, quando chegava ao hospital, os pacientes tinham sido amarrados pelos profissionais auxiliares
e ele mandava desamarrá-los. Essa é uma das situações que faziam parte da rotina daquele hospital, além de
outras atos de violência.
É possível fazer contenções sem que resultem hematomas, utilizando procedimentos técnicos para que isso
não ocorra. Infelizmente, no sistema de saúde brasileiro muitas pessoas ainda sofrem procedimentos de
contenção dessa forma, o que constitui um tratamento cruel e desumano.
As pessoas que têm problemas similares ao do senhor Damião Ximenes Lopes podem, atualmente, dependendo
dos cuidados que recebam, ter acesso à convivência com outras pessoas, à moradia, à alimentação e podem
viver por muito tempo. Não é a deficiência mental que dificulta sua convivência, mas as condições de vida da
pessoa, como ocorre com todos os seres humanos de modo geral.
Pode-se concluir que o senhor Damião Ximenes Lopes teve uma morte violenta causada por agentes
externos, pelas lesões traumáticas que tinha no corpo. Hoje, está a disposição dos médicos o Protocolo de
Istambul que orienta sobre como caracterizar lesões que se encontram nos corpos de pessoas com mortes
suspeitas. As lesões encontradas no corpo do senhor Damião Ximenes Lopes são lesões consideradas
pelo Protocolo de Istambul como lesões típicas de traumas que são costumeiramente vistos em corpos de
147
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
pessoas que foram torturadas. Segundo a avaliação dos legistas da cidade de Fortaleza, depois da insistência
do promotor do caso, a morte do senhor Damião Ximenes Lopes foi causada por lesões traumáticas, que
poderiam ser definidas, segunda a perita, como socos, pedradas ou pontapés. A necropsia realizada pelo
Instituto Médico Legal indicava que o corpo apresentava equimoses, escoriações e hematomas, as quais são
lesões sugestivas de traumatismo no corpo, e que foram posteriormente, esclarecidas como causadas por
objetos contundentes.
C) Valoração da Prova
Valoração da prova documental
48. A Corte admite neste caso, como em outros,8 o valor probatório dos documentos apresentados pelas partes em
sua devida oportunidade processual ou como prova para melhor resolver, que não tenham sido questionados ou
objetados, nem cuja autenticidade tenha sido posta em dúvida.
49. A Corte acrescenta ao acervo probatório, em conformidade com o artigo 45.1 do Regulamento e por julgálos úteis para a solução deste caso, os documentos apresentados pelos representantes,9 pelo Estado10 e pela
testemunha João Alfredo Teles Melo,11 no decorrer da audiência pública realizada em 30 de novembro e 1º de
dezembro de 2005, documentos que conheceram todas as partes presentes à referida audiência, bem como os
documentos anexados pela Comissão a suas alegações finais escritas12 (par. 36 e 37 supra).
50. Em aplicação do disposto no artigo 45.1 do Regulamento, a Corte incorpora ao acervo probatório os documentos
apresentados como parte da prova para melhor resolver requerida pelo Tribunal, pela Comissão,13 pelos
representantes14 e pelo Estado15 (par. 40 supra).
51. A Corte também acrescenta os seguintes documentos ao acervo probatório, em aplicação do artigo 45.1 do
Regulamento, por considerá-los úteis para a solução deste caso: Princípios para a Proteção dos Doentes Mentais
e para a Melhoria do Atendimento de Saúde Mental, aprovados pela Assembléia Geral das Nações Unidas mediante
a Resolução nº 46/119, de 17 de dezembro de 1991; Normas Uniformes sobre Igualdade de Oportunidades
para as Pessoas Portadoras de Deficiência, aprovadas pela Assembléia Geral das Nações Unidas mediante a
resolução nº 48/96, de 20 de dezembro de 1993; Organização Pan-Americana da Saúde, Declaração de Caracas,
8. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 65; Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, nota 4 supra, par. 36; e Caso Acevedo Jaramillo
e outros, nota 4 supra, par. 189.
9. A saber: cópia da “Recomendação de Aditamento da Denúncia”, de 27 de março de 2001; ofício nº 155/05 JG/RJ, dirigido pela Justiça Global
ao Coordenador do Programa de Saúde Mental do Ministério da Saúde, de 18 de novembro de 2005; ofício nº 154/05 JG/RJ, dirigido pela
Justiça Global ao Vice-Presidente do Conselho Federal de Psicologia, de 18 de novembro de 2005; ofício nº 08/2000, Recomendação do Centro
de Apoio Operacional dos Grupos Socialmente Discriminados da Procuradoria-Geral da Justiça ao responsável pela administração da Casa de
Repouso Guararapes, de 25 de maio de 2000; e termo aditivo nº 013/99 ao contrato nº 053007/98, celebrado entre o Município de Sobral e a
Casa de Repouso Guararapes, de 26 de dezembro de 1999.
10. A saber: folheto intitulado “Como encaminhar demandas de saúde mental em Sobral. Orientações ao Programa Saúde da Família”,
SOBRAL–Secretaria de Desenvolvimento Social e Saúde; e folheto intitulado “CAPS–Centro de Atenção Psicossocial Damião Ximenes Lopes”,
SOBRAL, Secretaria de Saúde e Ação Social.
11. A saber: livro intitulado “Relatório da cidadania, Atividades da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembléia Legislativa do
Ceará–Ano 1999”.
12. A saber: declaração de Francisco das Chagas Melo prestada perante a Comarca de Ipueiras em 2 de março de 2005; declaração de Albertina
Viana Lopes prestada perante a Comarca Vinculada de Varjota em 5 de abril de 2005; e carta de intimação expedida pela Comarca de Sobral
para a audiência marcada para 17 de novembro de 2005.
13. A saber: Portaria do Ministério da Saúde nº 224/92, de 29 de janeiro de 1992; Portaria do Ministério da Saúde nº 407/92, de 30 de junho
de 1992; Portaria do Ministério da Saúde/SASS nº 147/94, de 25 de agosto de 1994; Portaria do Ministério da Saúde nº 145/94, de 29 agosto
de 1994; Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1407/94, de 30 de setembro de 1957; Resolução do Conselho Federal de Medicina
nº 1.408/94, de 8 de junho de 1994 sobre os Princípios para a Proteção de Pessoas Acometidas de Transtorno Mental e para a Melhoria da
Assistência à Saúde Mental; e Código de Ética Médica.
14. A saber: Portaria SNAS nº 224/92, de 29 de janeiro de 1992; Portaria/SAS nº 147/94, de 25 de agosto de 1994; Portaria/SAS nº 145/94,
do Ministério da Saúde, de 25 de agosto de 1994; Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1407/94, de 30 de setembro de 1957;
Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.408/94, de 8 de junho de 1994 sobre os Princípios para a Proteção de Pessoas Acometidas
de Transtorno Mental e para a Melhoria da Assistência à Saúde Mental; Código de Ética Médica; comprovantes relacionados com a pensão da
Senhora Albertina Viana Lopes; e relação de atualização processual do processo criminal e civil relacionados com a morte do senhor Damião
Ximenes Lopes, proveniente da página do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará na Web.
15. A saber: documento intitulado “Legislação em Saúde Mental 1990-2004”, publicação do Ministério da Saúde do Brasil, de que constam,
entre outras, Portaria SNAS nº 224/92, de 24 de janeiro de 1992; Portaria/SAS nº 147/94, de 25 de agosto de 1994; Portaria SAS nº 145/94, de
25 de agosto de 1994; termo da inspeção realizada pela Vigilância Sanitária da Secretaria de Saúde e Assistência Social na Casa de Repouso
Guararapes, em 21 de outubro de 1999; termo de início do processo nº 002/99, expedida pela Coordenação de Controle e Avaliação, em 20
de outubro de 1999; termo de audiência da Terceira Vara da Comarca de Sobral, realizada em 17 de novembro de 2005; termo de audiência
da Terceira Vara da Comarca de Sobral, realizada em 1º de dezembro de 2005; “comprovantes de pagamento” da pensão vitalícia de que se
beneficiaria Albertina Viana Lopes, emitidos pelo Estado do Ceará, impressos da Internet em 21 de junho de 2006; e Lei nº 13.491 de 16 de
junho de 2004.
148
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
aprovada pela Conferência Regional para a Reestruturação da Atenção Psiquiátrica na América Latina, em 14
de novembro de 1990; Associação Psiquiátrica Mundial (APM), Declaração de Madri sobre Normas Éticas para
a Prática Psiquiátrica, aprovada pela Assembléia Geral da APM, em 25 de agosto de 1996, revisada em 26 de
agosto de 2002; Organização Mundial da Saúde, Divisão de Saúde Mental e Prevenção do Abuso de Substâncias.
Dez Princípios Básicos das Normas para a Atenção da Saúde Mental, 1996; Comitê de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, Comentário Geral nº 5, “Pessoas portadoras de deficiência”; Declaração dos Direitos do
Retardado Mental, aprovada mediante a resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas, Documento A/8429,
de 1971; Programa de Ação Mundial para os Impedidos, Resolução nº 37/52, da Assembléia Geral das Nações
Unidas, Documento A/37/51 (1982); Normas do Comitê Europeu para a Prevenção da Tortura e das Penas
ou Tratamentos Desumanos ou Degradantes, CPT/Inf/E (2002) 1 – Rev. 2004; World Psychiatric Association
(WPA), Declaration of Hawaii/II, adopted by the WPA General Assembly on 10th July 1983; American Hospital
Association/National Association of Psychiatric Health Systems, Guiding Principles on Restraint and Seclusion
for Behavioral Health Services, 25 February 1999; American Geriatrics Society Position Statement: Guidelines
For Restraint Use, Last Updated January 1, 1997, e American Medical Association, Guidelines for the Use of
Restraints in Long-Term Care Facilities, June 1989.
52. Com relação às declarações testemunhais com firma autenticada por notário público e que não foram prestadas
perante notário público pelos senhores Milton Freire Pereira (par. 46.1.a supra), José Jackson Coelho Sampaio,
Domingos Sávio do Nascimento Alves, Luís Fernando Farah Tófoli e Braz Geraldo Peixoto (par 46.2.a, 46.2.b,
46.2.c e 46.2.d supra), este Tribunal as admite enquanto estejam de acordo com o objeto descrito na Resolução
de 22 de setembro de 2005 (par. 24 supra) e as aprecia no conjunto do acervo probatório, aplicando as normas
da crítica sã. A esse respeito, a Corte levou em conta as observações apresentadas pela Comissão com relação
à declaração prestada pelo senhor José Jackson Coelho Sampaio (par. 29 supra). O Tribunal admitiu em outras
ocasiões declarações juramentadas que não foram prestadas perante notário público, quando não se afeta a
segurança jurídica e o equilíbrio processual entre as partes.16
53. Relativamente ao parecer lavrado pelo senhor Eric Rosenthal (par. 46.3.a supra), a Corte o admite na medida
em que concorde com o objeto descrito na Resolução de 22 de setembro de 2005 (par. 24 supra) e o aprecia no
conjunto do acervo probatório, aplicando as normas da crítica sã. A Corte admitiu em determinadas ocasiões
pareceres não apresentados perante notário público, quando não são afetados a segurança jurídica e o equilíbrio
processual entre as partes.17
54. No que se refere à declaração firma autenticada por notário público prestada pelo senhor Emílio de Medeiros
Viana, considerando-se o que declararam o referido senhor e o Estado, ou seja, que havia impedimento para
que prestasse depoimento de acordo com a legislação brasileira, esta Corte não admite a declaração que foi
apresentada para essa finalidade pelo Estado (par. 27 supra) como parte do acervo probatório do caso. Quanto
ao parecer do senhor Dalmo de Abreu Dallari, foi apresentado extemporaneamente, em 11 de novembro de 2005,
quatorze dias depois do prazo fixado para fazê-lo, motivo por que este Tribunal não o considerará parte do acervo
probatório do caso (par. 30 supra).
55. Sobre os documentos de imprensa apresentados pelos representantes, este Tribunal considera que poderiam ser
apreciados quando deles constem atos públicos e notórios ou declarações de funcionários do Estado ou quando
corroborem aspectos relacionados com o caso.18
Valoração da prova testemunhal e pericial
56. O Tribunal também admite o depoimento prestado perante a Corte pela senhora Irene Ximenes Lopes Miranda
(par. 47.1.a supra), na medida em que esteja de acordo com o objetivo da declaração, e o valora no conjunto
do acervo probatório. A Corte estima que, por se tratar de um familiar da suposta vítima e ter interesse direto
neste caso, suas manifestações não podem ser valoradas de maneira isolada, mas no conjunto das provas do
processo. As declarações dos familiares das supostas vítimas são úteis na medida em que proporcionem mais
informações sobre as conseqüências das supostas violações perpetradas.19
16. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 66; Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, nota 4 supra, par. 42; e Caso Acevedo Jaramillo
e outros, nota 4 supra, par. 191.
17. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 67; Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, nota 4 supra, par. 42; e Caso Acevedo Jaramillo
e outros, nota 4 supra, par. 192.
18. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 70; Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, nota 4 supra, par. 45; e Caso Acevedo Jaramillo
e outros, nota 4 supra, par. 199.
19. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 66; Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, nota 4 supra, par. 37; e Caso Acevedo Jaramillo
149
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
57. Os depoimentos dos senhores Francisco das Chagas Melo (par. 47.1.b supra), João Alfredo Teles Melo (par. 47.2.a
supra), Luiz Odorico Monteiro de Andrade (par. 47.3.a supra), Pedro Gabriel Godinho Delgado (par. 47.3.b supra),
bem como ao laudo pericial da senhora Lídia Dias Costa (supra par. 47.4.a), este Tribunal os admite por julgar que
são úteis para solucionar este caso e os incorpora ao acervo probatório aplicando as normas da crítica sã.
58. Pelo exposto, a Corte apreciará neste caso o valor probatório dos documentos, declarações e laudos periciais
apresentados pelas partes. Ademais, a prova apresentada em todas as etapas do processo foi integrada a um
mesmo acervo probatório que se considera como um todo.
VI
Considerações Prévias
59. A Corte passará em seguida a se pronunciar sobre: a) os alcances do reconhecimento de responsabilidade
internacional declarado pelo Estado; b) os fundamentos das obrigações do Estado no âmbito da responsabilidade
estatal gerada por violações à Convenção Americana; e c) a especial atenção que os Estados devem às pessoas
acometidas por deficiências mentais, em virtude de sua particular vulnerabilidade.
a) Alcance do reconhecimento de responsabilidade internacional efetuado pelo Estado
60. O artigo 53.2 do Regulamento dispõe que
[s]e o demandado comunicar à Corte seu acatamento às pretensões da parte demandante e às dos
representantes das supostas vítimas, seus familiares ou representantes, a Corte, ouvido o parecer das
partes no caso, resolverá sobre a procedência do acatamento e seus efeitos jurídicos. Neste caso, a
Corte determinará, se for o caso, as reparações e custas correspondentes.
61. A Corte Interamericana, no exercício de sua função contenciosa, aplica e interpreta a Convenção Americana e,
quando um caso é submetido a sua jurisdição, tem a faculdade de declarar a responsabilidade internacional de
um Estado Parte na Convenção por violação de suas disposições.20
62. A Corte, no exercício de seus poderes de tutela judicial internacional dos direitos humanos, poderá determinar
se um reconhecimento de responsabilidade internacional efetuado por um Estado demandado oferece base
suficiente, nos termos da Convenção Americana, para dar continuidade ou não ao conhecimento do mérito e à
determinação das eventuais reparações e custas. Para esses efeitos, o Tribunal analisará a situação exposta em
cada caso concreto.21
63. No decorrer da audiência pública realizada em 30 de novembro de 2005 (par. 34 e 36 supra) o Estado declarou
que:
a) reconhece a procedência da petição da Comissão Interamericana no que se refere à violação dos
artigos 4 (Direito à vida) e 5 (Direito à integridade pessoal) da Convenção Americana;
b) reconhece os fatos da demanda relacionados com a morte do senhor Damião Ximenes Lopes e a falta
de prevenção para superar as condições que possibilitaram que ocorresse tal incidente, uma vez que
naquele momento era precário o sistema de atendimento mental no Estado, o que constituiu uma
violação do artigo 4 da Convenção;
c) reconhece os fatos da demanda relacionados com os maus-tratos a que foi submetido o senhor
Damião Ximenes Lopes antes de sua morte, o que levou à violação do artigo 5 da Convenção;
d) solicita que seja cessada a controvérsia sobre os citados artigos e que se prossiga com as demais
questões pertinentes;
e) não reconhece a solicitação de reparações decorrentes da violação dos artigos 4 e 5 da Convenção,
que permanece aberta a debate; e
f) não reconhece a violação dos direitos consagrados nos artigos 8 e 25 da Convenção.
64. A Comissão Interamericana salientou, por sua vez, na mesma audiência pública, que reconhecia “a atitude
e outros, nota 4 supra, par. 203.
20. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 37; Caso Blanco Romero e outros. Sentença de 28 de novembro de 2005. Série C, nº 138, par.
54; e Caso García Asto e Ramírez Rojas. Sentença de 25 de novembro de 2005. Série C, nº 137, par. 173.
21. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 38; Caso Gómez Palomino. Sentença de 22 de novembro de 2005. Série C, nº 136, par. 28; e
Caso do Massacre de Mapiripán. Sentença de 15 de setembro de 2005. Série C, nº 134, par. 65.
150
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
positiva, ética, responsável e construtiva do [… Estado] manifestada na declaração em que reconhece a
responsabilidade pela violação dos artigos 4 e 5 [da Convenção]”. A Comissão ressaltou, ademais, que “[u]ma
atitude desta natureza contribui para solucionar o caso presente, mas também contribui para estabelecer um
precedente muito importante no Brasil e na região de como os Estados devem atuar responsavelmente quando
os fatos são inquestionáveis e quando também é inquestionável a responsabilidade do Estado em matéria de
direitos humanos no âmbito do sistema interamericano”. A Comissão destacou, finalmente, que entendia que já
havia cessado a controvérsia sobre os fatos e o direito com relação aos artigos 4 e 5 da Convenção.
65. Os representantes, por sua vez, declararam na audiência pública, que reconheciam a importância da declaração
efetuada pelo Estado a respeito do reconhecimento de sua responsabilidade pela violação dos artigos 4 e 5 da
Convenção Americana.
66. Posteriormente, em suas alegações finais o Estado expôs que, numa evidente demonstração de seu efetivo
compromisso com a tutela dos direitos humanos, optou eticamente por admitir as falhas no dever de fiscalizar a
Casa de Repouso Guararapes no período de internação do senhor Damião Ximenes Lopes. Em virtude da morte
e dos maus-tratos de que foi objeto esse paciente, o Estado reconheceu sua responsabilidade internacional pela
violação dos artigos 4 e 5 da Convenção (par. 36 e 63 supra).
67. Em suas alegações finais, a Comissão expôs que, em conformidade com o reconhecimento de responsabilidade
do Estado, não há controvérsia com relação aos fatos descritos na demanda, relacionados com a morte do
senhor Damião Ximenes Lopes, nos quais se incluem os parágrafos 38 a 88, bem como os parágrafos 147 a
168, referentes aos fundamentos de direito constantes da demanda. A Comissão agregou que foi confirmada a
veracidade dos fatos sobre a morte do senhor Ximenes Lopes e também daqueles relacionados com as condições
de hospitalização desumanas e degradantes na época dos fatos, pela falta de fiscalização e prevenção por parte
do Estado, tal como foi alegado na demanda (par. 2, 16 e 37 supra).
68. Os representantes expuseram, por sua vez, em suas alegações finais, que entendem que a Corte aceitou a
responsabilidade do Estado conforme os termos estabelecidos na demanda da Comissão Interamericana
(par. 38 supra).
1. Quanto aos fatos
69. Em atenção ao reconhecimento de responsabilidade efetuado pelo Estado, o Tribunal considera que cessou a
controvérsia quanto aos fatos estabelecidos entre os parágrafos 38 a 88 da demanda interposta pela Comissão
Interamericana neste caso e, por outro lado, que o Estado não se opôs aos fatos expostos na demanda,
relacionados com o dever do Estado de investigar, identificar e sancionar os responsáveis pela morte do senhor
Damião Ximenes Lopes, alegados pela Comissão e pelos representantes.
70. A esse respeito, a Corte considera pertinente abrir um capítulo acerca dos fatos do presente caso, que abranja
tanto os reconhecidos pelo Estado quanto os que sejam provados com base no conjunto de elementos constantes
do expediente (par. 112 a 112.71 infra).
2. Quanto às pretensões de direito
71. Em atenção ao reconhecimento parcial de responsabilidade internacional efetuado pelo Estado, a Corte
considerou estabelecidos os fatos a que se referem os parágrafos 112 a 112.71 desta Sentença e, com base neles
e ponderando as circunstâncias do caso, passa a especificar as diferentes violações aos direitos consagrados
nos artigos alegados.
72. A Corte considera que é pertinente admitir o reconhecimento de responsabilidade internacional efetuado pelo
Estado pela violação dos direitos consagrados nos artigos 4 (Direito à vida) e 5 (Direito à integridade pessoal) da
Convenção Americana, em conexão com o artigo 1.1 (Obrigação de respeitar os direitos) do mesmo instrumento,
em detrimento do senhor Damião Ximenes Lopes.
73. O Tribunal observa que o Estado não apresentou objeção aos fatos expostos na demanda, relacionados com seu
dever de investigar, identificar e sancionar os supostos responsáveis, mas a sua qualificação, motivo por que o Estado
considera que não é responsável pela suposta violação dos direitos consagrados nos artigos 8 (Garantias judiciais) e
25 (Proteção judicial) da Convenção Americana, em relação com o artigo 1.1 (Obrigação de respeitar os direitos) desse
instrumento, em detrimento dos familiares do senhor Ximenes Lopes, alegada pela Comissão e pelos representantes.
151
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
3. Quanto às pretensões sobre reparações
74. Esta Corte considera que o Estado não acatou nenhuma das pretensões sobre reparações e custas reivindicadas
pela Comissão ou pelos representantes.
4. Extensão da controvérsia subsistente
75. O artigo 38.2 do Regulamento dispõe que
[o] demandado deverá declarar em sua contestação se aceita os fatos e os pedidos ou se os contradiz, e
a Corte poderá considerar como aceitados aqueles fatos que não tenham sido expressamente negados
e os pedidos que não tenham sido expressamente controvertidos.
76. O Estado expressamente salientou na audiência pública que não reconhecia responsabilidade internacional
pela suposta violação dos artigos 8 (Garantias judiciais) e 25 (Proteção judicial) da Convenção Americana, em
detrimento dos familiares do senhor Damião Ximenes Lopes. Nas alegações finais escritas, o Estado ressaltou
que não violou o direito à proteção e às garantias judiciais, uma vez que respeitou os princípios do devido
processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Segundo o Estado, sua seriedade em busca de justiça foi
devidamente demonstrada na tramitação do caso na jurisdição interna, bem como nos argumentos apresentados
à Corte na contestação da demanda, em que se fez uma descrição histórica de todas as medidas por ele adotadas
com a finalidade de investigar as circunstâncias do falecimento do senhor Damião Ximenes Lopes e sancionar os
responsáveis pelos maus-tratos a ele infringidos e por sua morte na Casa de Repouso Guararapes.
77. A Comissão, ao apresentar suas alegações finais orais na audiência pública, declarou que reiterava à Corte a
solicitação apresentada na demanda no sentido de que o Estado fosse condenado pela violação dos artigos 8 e 25
da Convenção em relação com o artigo 1.1 desse tratado, já que o Estado não cumpriu os deveres que se inferem
dos citados artigos. Nas alegações finais escritas a Comissão salientou também que toda a matéria relacionada
com a investigação policial e o processo penal violou os referidos artigos, em detrimento dos familiares do
senhor Damião Ximenes Lopes.
78. Os representantes, por sua vez, na audiência pública e nas alegações finais, solicitaram à Corte que declarasse a
violação dos artigos 8 e 25 da Convenção, em detrimento do senhor Damião Ximenes Lopes e seus familiares.
Os representantes ressaltaram que, transcorridos mais de seis anos da morte do senhor Damião Ximenes Lopes,
o procedimento judicial contra os responsáveis por sua morte ainda não foi concluído, em conseqüência dos
atrasos indevidos, atribuídos exclusivamente ao Estado. Também solicitaram em suas alegações finais que a
Corte declare que o Estado violou o artigo 5 da Convenção, em detrimento dos familiares do senhor Damião
Ximenes Lopes.
79. De acordo com os termos em que se expressaram as partes, a Corte considera que subsiste a controvérsia
quanto:
a) à alegada violação dos direitos consagrados nos artigos 8 (Garantias judiciais) e 25 (Proteção judicial
) da Convenção, em relação com seu artigo 1.1, em detrimento dos familiares do senhor Damião
Ximenes Lopes, com respeito ao dever do Estado de realizar uma investigação efetiva num prazo
razoável, à luz dos citados artigos;
b) à alegada violação do direito consagrado no artigo 5 (Direito à integridade pessoal) da Convenção,
em relação com o artigo 1.1 do mesmo instrumento, em detrimento dos familiares do senhor Damião
Ximenes Lopes; e
c) ao que diz respeito à determinação das reparações, custas e gastos.
***
80. A Corte considera que o reconhecimento de responsabilidade internacional do Estado constitui uma contribuição
positiva para o desenvolvimento deste processo e para a vigência dos princípios que inspiram a Convenção
Americana22 no Brasil.
81. Levando em conta, no entanto, as responsabilidades que lhe cabem de proteger os direitos humanos, e dada a
natureza deste caso, o Tribunal julga que proferir uma sentença em que se determine a verdade dos fatos e os
22. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 55; Caso García Asto e Ramírez Rojas, nota 20 supra, par. 60; e Caso Gutiérrez Soler. Sentença
de 12 de setembro de 2005. Série C, nº 132, par. 59.
152
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
elementos do mérito do assunto, bem como as respectivas conseqüências, constitui uma forma de reparação
para o senhor Damião Ximenes Lopes e seus familiares e, ao mesmo tempo, uma maneira de contribuir para
evitar que se repitam fatos similares.23
b) Fundamentos das obrigações do Estado no âmbito da responsabilidade estatal gerada por violações à
Convenção Americana
82. Uma vez determinado o alcance do reconhecimento parcial de responsabilidade efetuado pelo Estado, este
Tribunal considera necessário, de acordo com os fatos deste caso, as provas apresentadas e as alegações das
partes, determinar os fundamentos das obrigações do Estado, no âmbito da responsabilidade estatal gerada
pelas violações dos direitos consagrados na Convenção Americana.
83. No âmbito da referida Convenção, as obrigações constantes dos artigos 1.1 e 2 constituem a base para a
determinação de responsabilidade internacional de um Estado. O artigo 1.1 da Convenção atribui aos Estados
Partes os deveres fundamentais de respeitar e de garantir os direitos, de tal modo que todo menoscabo aos direitos
humanos reconhecidos na Convenção que possa ser atribuído, segundo as normas do direito internacional,
à ação ou omissão de qualquer autoridade pública, constitui fato imputável ao Estado, que compromete sua
responsabilidade nos termos dispostos na mesma Convenção. Por sua vez, o dever geral do artigo 2 da
Convenção Americana implica a adoção de medidas em duas vertentes. Por um lado, a supressão das normas
e práticas de qualquer natureza que impliquem violação das garantias previstas na Convenção e, por outro, a
expedição de normas e o desenvolvimento de práticas que levem à efetiva observância dessas garantias.24
84. É ilícita toda forma de exercício do poder público que viole os direitos reconhecidos pela Convenção. Nesse
sentido, em toda circunstância em que um órgão ou funcionário do Estado ou de uma instituição de caráter
público lese indevidamente, por ação ou omissão,25 um desses direitos, está-se diante de uma suposição de
inobservância do dever de respeito consagrado no artigo 1.1 da Convenção.
85. A Corte, ademais, dispôs que a responsabilidade estatal também pode ser gerada por atos de particulares em
principio não atribuíveis ao Estado. As obrigações erga omnes que têm os Estados de respeitar e garantir as
normas de proteção e de assegurar a efetividade dos direitos projetam seus efeitos para além da relação entre
seus agentes e as pessoas submetidas a sua jurisdição, porquanto se manifestam na obrigação positiva do
Estado de adotar as medidas necessárias para assegurar a efetiva proteção dos direitos humanos nas relações
interindividuais.26
86. As hipóteses de responsabilidade estatal por violação dos direitos consagrados na Convenção podem ser
tanto as ações ou omissões atribuíveis a órgãos ou funcionários do Estado quanto a omissão do Estado em
evitar que terceiros violem os bens jurídicos que protegem os direitos humanos. Entre esses dois extremos de
responsabilidade, no entanto, se encontra a conduta descrita na resolução da Comissão de Direito Internacional,27
de uma pessoa ou entidade que, embora não seja órgão estatal, está autorizada pela legislação do Estado a exercer
atribuições de autoridade governamental. Essa conduta, seja de pessoa física ou jurídica, deve ser considerada
um ato do Estado, desde que praticada em tal capacidade.
87. Isso significa que a ação de toda entidade, pública ou privada, que esteja autorizada a atuar com capacidade
estatal, se enquadra na hipótese de responsabilidade por fatos diretamente imputáveis ao Estado, tal como
ocorre quando se prestam serviços em nome do Estado.
88. A Corte determinou, ademais, que das obrigações gerais de respeitar e garantir os direitos decorrem deveres
especiais, determináveis em função das necessidades particulares de proteção do sujeito de direito, seja por sua
condição pessoal, seja pela situação específica em que se encontre.28
23. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 56; e Caso do Massacre de Mapiripán, nota 21 supra, par. 69.
24. Cf. Caso Gómez Palomino, nota 21 supra, par. 91; Caso do Massacre de Mapiripán, nota 21 supra, par. 109; e Caso Lori Berenson Mejía.
Sentença de 25 de novembro de 2004. Série C, nº 119, par. 219.
25. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 81; Caso do Massacre de Pueblo Bello. Sentença de 31 de janeiro de 2006. Série C, nº 140, par.
111 e 112; e Caso do Massacre de Mapiripán, nota 21 supra, par. 110.
26. Cf. Caso do Massacre de Pueblo Bello, nota 25 supra, par. 113; Caso do Massacre de Mapiripán, nota 21 supra, par. 111; e Condição
Jurídica e Direitos dos Migrantes Indocumentados. Parecer consultivo OC-18/03, de 17 de setembro de 2003. Série A, nº 18, par. 140.
27. Cf. Responsabilidade do Estado por atos internacionalmente ilícitos. Comissão de Direito Internacional, 53ª sessão, 2001. Documento da
ONU A/56/10. Texto introduzido no anexo da Resolução 56/83, de 28 de janeiro de 2002, da Assembléia Geral das Nações Unidas.
28. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 81; Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, nota 4 supra, par. 154; e Caso do Massacre de
Pueblo Bello, nota 25 supra, par. 111.
153
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
89. Com relação a pessoas que estejam recebendo atendimento médico, e considerando que a saúde é um bem
público cuja proteção está a cargo dos Estados, cabe a estes a obrigação de prevenir que terceiros interfiram
indevidamente no gozo dos direitos à vida e à integridade pessoal, particularmente vulneráveis quando uma
pessoa se encontra em tratamento de saúde. A Corte considera que os Estados têm o dever de regulamentar e
fiscalizar toda a assistência de saúde prestada às pessoas sob sua jurisdição, como dever especial de proteção
à vida e à integridade pessoal, independentemente de ser a entidade que presta esses serviços de caráter
público ou privado.
90. A falta do dever de regular e fiscalizar gera responsabilidade internacional em razão de serem os Estados
responsáveis tanto pelos atos das entidades públicas quanto privadas que prestam atendimento de saúde, uma
vez que, de acordo com a Convenção Americana, as hipóteses de responsabilidade internacional compreendem
os atos das entidades privadas que estejam desempenhando função estatal, bem como atos de terceiros, quando
o Estado falha em seu dever de regular-los e fiscalizá-los. A obrigação dos Estados de regular não se esgota, por
conseguinte, nos hospitais que prestam serviços públicos, mas abrange toda e qualquer instituição de saúde.
***
91. No Estado, “[a] saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas
que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e
serviços para sua promoção, proteção e recuperação”, segundo o disposto no artigo 196 da sua Constituição.
Ademais, segundo o artigo 197 da Constituição, cabe “ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua
regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e,
também, por pessoa física ou jurídica de direito privado”.
92. O artigo 199 da Constituição dispõe que “[a] assistência à saúde é livre à iniciativa privada”, ou seja, empresas
privadas podem prestar atendimento privado de saúde, o qual será totalmente pago pelos usuários. No entanto,
o parágrafo primeiro do mesmo artigo 199 determina que “[a]s instituições privadas poderão participar de forma
complementar do [S]istema [Ú]nico de [S]aúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público
ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos”. A iniciativa privada também
pode prestar serviços ao sistema público de saúde, caso em que o atendimento que presta será financiado pelo
Estado e terá caráter público.
93. A Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, é a que “regula, em todo o território nacional, as ações e serviços
de saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual, por pessoas naturais ou
jurídicas de direito público ou privado”. Em seu artigo 4° estabelece que o Sistema Único de Saúde corresponde
ao “conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais*e
municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público”, e corrobora o
dispositivo constitucional ao estabelecer que “[a] iniciativa privada poderá participar do Sistema Único de Saúde
(SUS), em caráter complementar”.
94. Deduz-se do acima exposto que no Estado a prestação de serviços de saúde pode ser pública ou privada; neste
último caso, a prestação de serviços é privada e financiada pelo próprio paciente, mas o Estado conserva seu
dever de supervisioná-la.
95. Quando o atendimento de saúde é público, é o Estado que presta o serviço diretamente à população, mediante
seu Sistema Único de Saúde. O serviço público de saúde do SUS é oferecido primariamente pelos hospitais
públicos; no entanto, a iniciativa privada, de forma complementar, e mediante a assinatura de convênios ou
contratos, quando em determinada região do país não haja hospitais públicos suficientes para atender à demanda
de pacientes,29 também presta serviços de saúde sob os auspícios do SUS. Em ambas as situações, esteja o
paciente internado num hospital público ou num hospital privado que tenha convênio ou contrato com o SUS, a
pessoa se encontra sob os cuidados do serviço público de saúde brasileiro, ou seja, do Estado.
96. A prestação de serviços públicos implica a proteção de bens públicos, que é uma das finalidades dos Estados.
Embora os Estados possam delegar sua prestação através da chamada terceirização, mantêm a titularidade
da obrigação de prestar os serviços públicos e de proteger o bem público respectivo. A delegação à iniciativa
29. Cf. artigo 24 da Lei nº 8.080/1990.
*A palavra “estaduais” se refere a “estados”, que são as unidades da federação brasileira.
154
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
privada de prestar esses serviços exige como elemento fundamental a responsabilidade dos Estados de fiscalizar
sua execução, a fim de garantir uma efetiva proteção dos direitos humanos das pessoas sob sua jurisdição e para
que os serviços públicos sejam prestados à coletividade sem qualquer tipo de discriminação e da forma mais
efetiva possível.
97. Os Estados são obrigados a respeitar os direitos reconhecidos na Convenção e a organizar o poder público
para garantir às pessoas sob sua jurisdição o livre e pleno exercício dos direitos humanos30, estendendo-se
essa obrigação a todos os níveis da administração, bem como a outras instituições a que os Estados deleguem
autoridade.
98. Os Estados devem, segundo o artigo 2 da Convenção Americana, criar um quadro normativo adequado para
fixar os parâmetros de tratamento e internação a serem observados pelas instituições de assistência de saúde.
Os Estados têm a obrigação de consagrar e adotar em seu ordenamento jurídico interno todas as medidas
necessárias para que o disposto na Convenção seja cumprido e colocado em prática31 e para que essa legislação
não se transforme em mera formalidade, distanciada da realidade.
99. Por todas as considerações anteriores, a Corte julga que os Estados são responsáveis por regulamentar e
fiscalizar em caráter permanente a prestação dos serviços e a execução dos programas nacionais relativos à
consecução de uma prestação de serviços de saúde pública de qualidade, de tal maneira que dissuada qualquer
ameaça ao direito à vida e à integridade física das pessoas submetidas a tratamento de saúde. Devem, inter alia,
criar mecanismos adequados para inspecionar as instituições psiquiátricas, apresentar, investigar e solucionar
queixas e estabelecer procedimentos disciplinares ou judiciais apropriados para casos de conduta profissional
indevida ou de violação dos direitos dos pacientes.32
100. Neste caso, a Casa de Repouso Guararapes, onde faleceu Damião Ximenes Lopes, era um hospital privado
de saúde contratado pelo Estado para prestar serviços de atendimento psiquiátrico sob a direção do Sistema
Único de Saúde e atuava como unidade pública de saúde em nome e por conta do Estado (par. 112.55 infra).
O Estado, por conseguinte, é responsável pela conduta do pessoal da Casa de Repouso Guararapes, que
exercia elementos de autoridade estatal ao prestar o serviço público de saúde sob a direção do Sistema Único
de Saúde.
c) A atenção especial às pessoas acometidas de deficiências mentais em virtude de sua particular
vulnerabilidade
101. Para os efeitos deste caso, cuja suposta vítima, o senhor Damião Ximenes Lopes, sofria de deficiência mental e
faleceu enquanto recebia tratamento em um hospital psiquiátrico, o Tribunal não pode deixar de se pronunciar
sobre a especial atenção que os Estados devem às pessoas acometidas de deficiências mentais, em razão de
sua particular vulnerabilidade.
102. Nesse sentido, a Corte Européia declarou que
em especial com respeito a pessoas que necessitam de tratamento psiquiátrico, a Corte observa que o
Estado tem a obrigação de assegurar a seus cidadãos seu direito à integridade física, de acordo com
o artigo 8 da Convenção. Com essa finalidade, há hospitais administrados pelo Estado, que coexistem
com hospitais privados. O Estado não pode se absolver completamente de sua responsabilidade
delegando suas obrigações nessa esfera a organismos ou indivíduos privados. […] A Corte constata
que [...] neste caso o Estado mantinha o dever de exercer a supervisão e o controle sobre instituições
psiquiátricas privadas. Tais instituições […] necessitam não só de uma licença, mas também de uma
supervisão competente e de forma regular, a fim de averiguar se o confinamento e o tratamento médico
se justificam.33
30. Cf. Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, nota 4 supra, par. 142; Caso Comunidade Indígena Yakye Axa. Sentença de 17 de junho de
2005. Série C, nº 125, par. 153; e Caso Juan Humberto Sánchez. Sentença de 7 de junho de 2003. Série C, nº 99, par. 142.
31. Cf. Caso Comunidade Indígena Sawhomaxa, nota 4 supra, par. 110; Caso Gómez Palomino, nota 21 supra, par. 90 e 91; e Caso Palamara
Iribarne. Sentença de 22 de novembro de 2005. Série C, nº 135, par. 89.
32. Cf. Princípios para a Proteção dos Doentes Mentais e para a Melhoria do Atendimento de Saúde Mental, Resolução da Assembléia Geral
das Nações Unidas 46/119.46, p.189, ONU Documento A/46/49 (1991), princípio 22.
33. Cf. European Court of Human Rights, Case of Storck v. Germany, Application No. 61603/00, judgment of 16 June, 2005, p. 103. O texto
original em inglês é o seguinte: “With regard to persons in need of psychiatric treatment in particular, the Court observes that the State is under
an obligation to secure to its citizens their right to physical integrity under Article 8 of the Convention. For this purpose there are hospitals run
by the State which coexist with private hospitals. The State cannot completely absolve itself of its responsibility by delegating its obligations in
this sphere to private bodies or individuals. [...] The Court finds that, similarly, in the present case the State remained under a duty to exercise
supervision and control over private psychiatric institutions. Such institutions, […] need not only a license, but also competent supervision on
a regular basis of whether the confinement and medical treatment is justified.”
155
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
103. A Corte Interamericana considera que toda pessoa que se encontre em situação de vulnerabilidade é titular de
uma proteção especial, em virtude dos deveres especiais cujo cumprimento por parte do Estado é necessário
para atender às obrigações gerais de respeito e garantia dos direitos humanos. A Corte reitera que não basta
que os Estados se abstenham de violar os direitos, mas que é imperativa a adoção de medidas positivas,
determináveis em função das necessidades particulares de proteção do sujeito de direito, seja por sua condição
pessoal, seja pela situação específica em que se encontre,34 como a deficiência.
104. Nesse sentido, os Estados devem levar em conta que os grupos de indivíduos que vivem em circunstâncias
adversas e com menos recursos, tais como as pessoas em condição de extrema pobreza, as crianças e
adolescentes em situação de risco e as populações indígenas, enfrentam um aumento do risco de padecer
de deficiências mentais, como era o caso do senhor Damião Ximenes Lopes. É direto e significativo o vínculo
existente entre a deficiência, por um lado, e a pobreza e a exclusão social, por outro. Entre as medidas positivas
a cargo dos Estados encontram-se, pelas razões expostas, as necessárias para evitar todas as formas de
deficiência que possam ser prevenidas e estender às pessoas que padeçam de deficiências mentais o tratamento
preferencial apropriado a sua condição.35
105. As pessoas portadoras de deficiência são muitas vezes objeto de discriminação em virtude de sua condição,
motivo por que os Estados devem adotar as medidas de caráter legislativo, social, educativo, trabalhista ou de
qualquer outra natureza, necessárias para eliminar toda discriminação relacionada com as deficiências mentais
e propiciar a plena integração dessas pessoas à sociedade.36
106. Com relação à salvaguarda da vida e da integridade pessoal, é necessário considerar que as pessoas portadoras
de deficiência que vivem em instituições psiquiátricas ou nelas são submetidas a tratamento são especialmente
vulneráveis a tortura ou a outras formas de tratamento cruel, desumano ou degradante. A vulnerabilidade
intrínseca das pessoas portadoras de deficiência mental é agravada pelo alto grau de intimidade que caracteriza
o tratamento das doenças psiquiátricas, que torna essas pessoas mais suscetíveis a tratamentos abusivos
quando submetidas a internação (par. 129 infra).
107. Nos ambientes institucionais, em hospitais públicos ou privados, o pessoal médico encarregado do cuidado
dos pacientes exerce forte controle ou domínio sobre as pessoas que se encontram sujeitas a sua custódia.
Este desequilíbrio intrínseco de poder entre uma pessoa internada e as pessoas que detêm a autoridade se
multiplica muitas vezes nas instituições psiquiátricas. A tortura e outras formas de tratamento cruel, desumano
ou degradante, quando infligidas a essas pessoas, afetam sua integridade psíquica, física e moral, supõem
uma afronta a sua dignidade e restringem gravemente sua autonomia, o que poderia ter como conseqüência o
agravamento da doença.
108. Todas as circunstâncias acima citadas exigem que se exerça uma estrita vigilância sobre esses estabelecimentos.
Os Estados têm o dever de supervisionar e garantir que em toda instituição psiquiátrica, pública ou privada,
seja preservado o direito dos pacientes de receberem tratamento digno, humano e profissional e de serem
protegidos contra a exploração, o abuso e a degradação.
109. O atendimento de saúde mental deve estar disponível para toda pessoa que dele necessite. Todo tratamento
de pessoas acometidas de deficiência mental deve se destinar ao melhor interesse do paciente, deve ter por
objetivo preservar sua dignidade e sua autonomia, reduzir o impacto da doença e melhorar sua qualidade de
vida37 (par. 135, 138 e 139 infra).
110. Ao analisar as violações à vida e à integridade pessoal em detrimento do senhor Damião Ximenes Lopes, a
Corte invocará a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra
as Pessoas Portadoras de Deficiência, instrumento que faz parte do marco normativo de proteção dos direitos
humanos no sistema interamericano, e que foi ratificado pelo Estado em 15 de agosto de 2001, como fonte de
interpretação para determinar as obrigações do Estado relacionadas com a Convenção Americana neste caso.
34. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 81; Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, nota 4 supra, par. 154; e Caso do Massacre de
Pueblo Bello, nota 25 supra, par. 111.
35. Cf. Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência,
aprovada na Cidade da Guatemala, Guatemala, em 7 de junho de 1999, artigo III.2; e Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
Comentário Geral nº 5, “Pessoas portadoras de deficiência”. Nações Unidas, Documento E/1995/22 (1994), par. 9.
36. Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, nota 35
supra, Preâmbulo e artigo III.1.
37. Cf. Organização Mundial da Saúde. Divisão de Saúde Mental e Prevenção do Abuso de Substâncias. Dez Princípios Básicos das Normas
para o Atendimento da Saúde Mental (1996), princípios 2, 4 e 5.
156
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
111. Também no âmbito da Organização Mundial da Saúde e da Organização Pan-Americana da Saúde foram fixadas
as principais normas pertinentes ao tratamento de saúde mental. A Corte considera que esses instrumentos, tais
como os Princípios para a Proteção dos Doentes Mentais e para a Melhoria do Atendimento de Saúde Mental,
das Nações Unidas, as Normas Uniformes sobre Igualdade de Oportunidades para as Pessoas Portadoras de
Deficiência, bem como as normas técnicas dispostas na Declaração de Caracas e na Declaração de Madri, são
especialmente importantes para a análise e o escrutínio da conformidade da assistência prestada ao senhor
Damião Ximenes Lopes às normas internacionais sobre a matéria. Este Tribunal considerará especialmente
esses instrumentos no capítulo sobre a violação dos artigos 4 e 5 da Convenção Americana neste caso.
VII
Fatos provados
112. Efetuado o exame dos elementos probatórios constantes do expediente deste caso, as manifestações das
partes, bem como o reconhecimento parcial de responsabilidade internacional do Estado, a Corte considera
provados os fatos a seguir relatados. Constam deste capítulo fatos que este Tribunal tem por estabelecidos
com base no reconhecimento de responsabilidade parcial do Estado e que correspondem aos fatos expostos na
demanda apresentada pela Comissão Interamericana. Além disso, a Corte estabeleceu como provados outros
fatos, especialmente os relativos à investigação policial e aos procedimentos judiciais, em conformidade com
as provas proporcionadas pela Comissão, pelos representantes e pelo Estado.
A) História clínica do senhor Damião Ximenes Lopes
112.1. O senhor Damião Ximenes Lopes nasceu em 25 de junho de 1969, filho de Albertina Viana Lopes e Francisco
Leopoldino Lopes. Dois de seus irmãos são Irene Ximenes Lopes Miranda e Cosme Ximenes Lopes. O
senhor Damião Ximenes Lopes foi um jovem criativo, que gostava de música e de artes e desejava adquirir
melhores condições financeiras.38
112.2. Na juventude do senhor Damião Ximenes Lopes desenvolveu uma deficiência mental de origem orgânica,
proveniente de alterações no funcionamento do cérebro. Apresentava esporadicamente dificuldades e
necessidades específicas vinculadas a sua circunstância particular. Na época dos fatos, tinha 30 anos de
idade e vivia com sua mãe na cidade de Varjota, situada a aproximadamente uma hora da cidade de Sobral,
sede da Casa de Repouso Guararapes.
112.3. O senhor Damião Ximenes Lopes foi internado pela primeira vez em 1995 na Casa de Repouso Guararapes,
por um período de dois meses. Ao regressar a sua casa, encontrava-se em melhor estado, mas apresentava
feridas nos joelhos e nos tornozelos, que justificou declarando que havia sido vítima de violência. Seus
familiares acreditaram na versão de um funcionário da Casa de Repouso Guararapes, que afirmou, quando
questionado sobre a causa das feridas, que o paciente as havia infligido a si mesmo ao tentar fugir.
112.4. Anteriormente ao dia 1º de outubro de 1999, Damião Ximenes Lopes teve “problemas de nervos, ele não
queria comer nem dormir, [devia tomar remédios], mas no momento não estava tomando”. Na sexta-feira,
1º de outubro, Albertina Viana Lopes decidiu internar seu filho na Casa de Repouso Guararapes. Enquanto
esperava para ser admitida, a suposta vítima perguntava à mãe “com muita calma […] se ele iria ali ficar ou
[se] iria voltar para casa com ela”.
112.5. O senhor Damião Ximenes Lopes foi admitido na Casa de Repouso Guararapes, como paciente do Sistema
Único de Saúde (SUS), em perfeito estado físico, em 1º de outubro de 1999. No momento de sua entrada
não apresentava sinais de agressividade nem lesões corporais externas.
112.6. No histórico médico do senhor Damião Ximenes Lopes na Casa de Repouso Guararapes de 2 de outubro de
1999 consta uma única observação em que se indica que o paciente se encontrava “calmo, desorientado,
[…] confuso”. Medicação alguma lhe foi prescrita nesse dia.39
38. Cf. certidão de nascimento do senhor Damião Ximenes Lopes (expediente de anexos à demanda, anexo 21, folha 160); depoimento de Irene
Ximenes Lopes Miranda, prestado na audiência pública realizada perante a Corte Interamericana em 30 de novembro de 2005; e relatório da psiquiatra
Lídia Dias Costa, apresentado a pedido de Irene Ximenes Lopes Miranda em 14 de dezembro de 2002 (expediente de anexos à demanda, anexo 22,
folhas 161 a 164). No que se refere a Cosme Ximenes Lopes, nos documentos apresentados pelas partes aparece indistintamente o nome Cosme ou
Cosmo Ximenes Lopes. Esta Corte entende que se trata da mesma pessoa e utilizará na presente Sentença o nome Cosme Ximenes Lopes.
39. Cf. livro de evolução clínica do paciente Damião Ximenes Lopes (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo I, folha
1736).
157
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
112.7. Em 3 de outubro de 1999, o senhor Damião Ximenes Lopes teve uma crise de agressividade e estava
desorientado. A suposta vítima entrou num banheiro na Casa de Repouso Guararapes e se negava a sair
dali, motivo por que foi dominado e retirado à força por um auxiliar de enfermagem, senhor Elias Gomes
Coimbra, e por outros dois pacientes que, segundo o referido auxiliar, podiam ajudá-lo a retirar o senhor
Ximenes Lopes do banheiro porque eram “orientados e que eram de um certo porte físico avantajado”.
No momento em que foi dominado por um dos pacientes e retirado do banheiro, a suposta vítima sofreu
uma lesão no rosto, na altura do supercílio. Em seguida, o senhor Damião Ximenes Lopes foi submetido a
contenção física e o médico presente na Casa de Repouso Guararapes determinou que lhe fossem aplicados
“haldol [e] fernagan intramuscular”.40
112.8. Na noite do mesmo dia, a suposta vítima teve um novo episódio de agressividade e voltou a ser submetida
a contenção física, a que esteve submetido entre a noite do domingo e a manhã da segunda-feira.41
B) Maus-tratos e morte do senhor Damião Ximenes Lopes
112.9. Em 4 de outubro de 1999, aproximadamente às 9h, a mãe do senhor Damião Ximenes Lopes chegou à Casa
de Repouso Guararapes para visitá-lo e o encontrou sangrando, com hematomas, com a roupa rasgada, sujo
e cheirando a excremento, com as mãos amarradas para trás, com dificuldade para respirar, agonizante e
gritando e pedindo socorro à polícia. Continuava submetido à contenção física que lhe havia sido aplicada
desde a noite anterior, já apresentava escoriações e feridas e pôde caminhar sem a adequada supervisão.
Posteriormente, um auxiliar de enfermagem o deitou em uma cama, da qual caiu. Então o deitaram num
colchonete no chão.42
112.10. A senhora Albertina Ximenes Lopes solicitou aos funcionários da Casa de Repouso Guararapes que
banhassem seu filho e procurou um médico que o atendesse. Encontrou Francisco Ivo de Vasconcelos,
Diretor Clínico e médico da Casa de Repouso Guararapes, que, sem realizar exames físicos em Damião
Ximenes Lopes, receitou-lhe alguns remédios e em seguida se retirou do hospital. Nenhum médico ficou a
cargo da instituição nesse momento.43
112.11. O senhor Damião Ximenes Lopes faleceu em 4 de outubro de 1999, às 11h30, na Casa de Repouso
Guararapes, em circunstâncias violentas, aproximadamente duas horas depois de haver sido medicado
pelo Diretor Clínico do hospital, sem ser assistido por médico algum no momento de sua morte, já que a
unidade pública de saúde em que se encontrava internado para receber cuidados psiquiátricos não dispunha
de nenhum médico naquele momento. Não se prestou ao senhor Damião Ximenes Lopes a assistência
adequada e o paciente se encontrava, em virtude da falta de cuidados, à mercê de todo tipo de agressão e
acidentes que poderiam colocar em risco sua vida.44
112.12. Posteriormente à morte do senhor Damião Ximenes Lopes, o médico Francisco Ivo de Vasconcelos foi chamado
e regressou à Casa de Repouso Guararapes. Examinou o corpo da suposta vítima, declarou sua morte e fez
constar que o cadáver não apresentava lesões externas e que a causa da morte havia sido uma “parada cardiorespiratória”.45 O médico não ordenou a realização de necropsia no corpo do senhor Damião Ximenes Lopes.
Albertina Viana Lopes se inteirou da morte de seu filho ao chegar a sua casa, no Município de Varjota.
40. Cf. declaração de Elias Gomes Coimbra prestada à Delegacia Regional de Sobral em 26 de novembro de 1999 (expediente de anexos à
demanda, anexo 29, folhas 179 a 180).
41. Cf. declaração de Carlos Alberto Rodrigues dos Santos prestada à Terceira Vara da Comarca de Sobral em 24 de abril de 2000 (expediente
de anexos à demanda, anexo 12, folhas 108 a 110).
42. Cf. declaração de Carlos Alberto Rodrigues dos Santos prestada perante a Terceira Vara da Comarca de Sobral em 24 de abril de 2000, nota
41 supra; declaração de André Tavares do Nascimento prestada na Delegacia Regional de Sobral em 26 de novembro de 1999 (expediente de
anexos à demanda, anexo 29, folha 180); e declaração de Albertina Viana Lopes prestada na Delegacia Regional de Sobral em 7 de dezembro
de 1999 (expediente de anexos à demanda, anexo 32, folhas 213 e 214).
43. Cf. declaração de Francisco Ivo de Vasconcelos prestada à Coordenação Municipal de Controle, Avaliação e Auditoria em 5 de novembro
de 1999 (expediente de anexos à demanda, anexo 14, folhas 112 e 113); declaração de Albertina Viana Lopes prestada na Delegacia Regional
de Sobral em 7 de dezembro de 1999, nota 42 supra; e relatório de sindicância elaborado a pedido da Coordenação Municipal de Controle,
Avaliação e Auditoria da Secretaria de Saúde e Assistência Social, emitido em 18 de fevereiro de 2000 (expediente de anexos à demanda ,
anexo 31, folhas 185 a 212).
44. Cf. declaração de Francisco Ivo de Vasconcelos prestada à Coordenação Municipal de Controle, Avaliação e Auditoria em 5 de novembro de
1999, nota 43 supra; declaração de Maria Salete Morais Melo de Mesquita prestada à Coordenação Municipal de Controle, Avaliação e Auditoria
em 5 de novembro de 1999 (expediente de anexos à demanda, anexo 14, folhas 113 e 114); relatório de sindicância elaborado a pedido da
Coordenação Municipal de Controle, Avaliação e Auditoria da Secretaria de Saúde e Assistência Social, emitido em 18 de fevereiro de 2000,
nota 43 supra; e auto de exame de corpo de delito – cadavérico – realizado em Damião Ximenes Lopes no Instituto Médico Legal Dr. Walter
Porto, em 4 de outubro de 1999 (expediente de anexos à demanda, anexo 41, folha 246).
45. Cf. declaração de Francisco Ivo de Vasconcelos prestada à Coordenação Municipal de Controle, Avaliação e Auditoria em 5 de novembro
de 1999, nota 43 supra.
158
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
112.13. No mesmo dia de sua morte os familiares do senhor Damião Ximenes Lopes solicitaram a realização de uma
necropsia e, para essa finalidade, seu corpo foi trasladado da cidade de Sobral para a cidade de Fortaleza,
onde se realizaria a necropsia. Durante o trajeto, o cadáver apresentou um intenso sangramento, de forma
que o lençol que o cobria estava encharcado de sangue quando chegaram ao destino.
112.14. Em 4 de outubro de 1999, o Instituto Médico Legal Dr. Walter Porto, onde Francisco Ivo de Vasconcelos
também era médico, realizou a necropsia no cadáver do senhor Damião Ximenes Lopes. O relatório do
exame salientou o seguinte:
Às 22:40 do dia 4 [de outubro de] 1999 deu entrada no necrotério do [Instituto Médico Legal] o corpo
de um homem acompanhado da guia policial nº 796/99, da Delegacia Regional de Sobral – [Ceará],
informando que “o mesmo se encontrava internado no hospital Guararapes [para] doente[s] menta[is]
há 03 dias e hoje pela manhã sua mãe foi visitá-lo [e o encontrou] em crise nervosa, com [o] nariz
sangrando e com sinais de espancamento, tendo falecido às 11:30 horas de hoje no referido hospital
em Sobral – [Ceará]”. Trata-se de um corpo do sexo masculino, cor parda, cabelos negros, bigode
cultivado, barba por fazer, envolto em lençol branco. Apresenta rigidez cadavérica generalizada, pupilas
dilatadas, hipóstases de decúbito dorsal e ausência de quaisquer manifestações vitais. Exame externo:
escoriações localizadas na região nasal, ombro direito, face anterior dos joelhos e pé esquerdo,
equimoses localizadas na região orbitário esquerda, ombro homolateral e punhos (compatível com
contenção). Exame interno: não observamos sinais de lesões de natureza traumática internamente;
apresenta tem pulmonar e congestão, sem outras alterações macroscópicas de interesse médico legal
nos demais órgãos dessas cavidades. Enviamos fragmentos de pulmão, coração, estômago, fígado
e rim para o exame histopatológico, que concluiu [que se tratava de] edema e congestão pulmonar
moderado, hemorragia pulmonar e discreta esteatose hepática moderada. CONCLUSÃO: […] inferimos
tratar-se de morte real de causa indeterminada.
Resposta aos quesitos:
1-[PRIMEIRO – Houve morte?]; sim.
2-[SEGUNDO–Qual a causa da morte?]; indeterminada.
3-[TERCEIRO–Qual foi o instrumento ou meio que produziu a morte?]; sem elementos para responder.
4-[QUARTO – Foi produzida por meio de veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura ou por outro meio
insidioso ou cruel?]; sem elementos para responder.
E nada mais havendo, mandou a autoridade encerrar [o] laudo que, depois de lido e achado conforme,
[foi] devidamente assinado.46
112.15. Posteriormente, em 17 de fevereiro de 2000, em resposta à solicitação do Ministério Público, para que os
médicos que realizaram a necropsia “defin[issem] se as lesões [encontradas no cadáver] p[oderiam] ter sido
[conseqüência] de espancamento ou de tombos sofridos [pelo senhor Damião Ximenes Lopes]”, o Instituto
Médico Legal ampliou o conteúdo de suas conclusões e informou que “[a]s lesões descritas [no laudo do
exame cadavérico] foram provocadas por ação de instrumento contundente (ou por espancamento ou por
tombos), não [...] sendo possível afirmar o modo específico”.47
112.16. Em 2002 a Quinta Vara Cível da Comarca de Sobral (doravante denominada “Quinta Vara Cível”), no decorrer
da tramitação do processo civil instaurado pela morte do senhor Damião Ximenes Lopes, ordenou que fosse
feita a exumação do corpo da suposta vítima para o esclarecimento das causas de sua morte (par. 112.52
e 112.54 infra). A exumação foi feita em 6 de abril de 2002 pelo Instituto Médico Legal Dr. Walter Porto. O
relatório do exame pós-exumático descreveu o seguinte:
Exumamos e necropsiamos às 10:10 horas do dia 6 [de abril de] 2002 no Município de Varjota,
Ceará, no Cemitério São Raimundo, o cadáver [do senhor] Damião Ximenes Lopes, por solicitação
da juíza de Direito da Comarca de Sobral, Dra. Maria Valdenisa de Sousa Bernardo, conforme ofício
nº 372/2001. […] Após a identificação do local onde fora inumada a vítima, a sepultura em gaveta foi
aberta, observando-se um caixão de madeira em estado precário de conservação, contendo os restos
mortais da vítima em avançado processo de decomposição cadavérica, ou seja, verificamos a presença
apenas dos ossos deste corpo. Após minucioso exame pericial, osso por osso, constatamos que o
crânio apresentava craniotomia transversal (resultado de exame pericial anterior) e neste seguimento
corporal não foram envidenciad[as] fraturas, ou seja, o crânio apresentava integridade de todos os
seus ossos. Os demais ossos deste corpo também não apresentavam fraturas. Conclusão: Pelo exposto
46. Cf. laudo de exame de corpo de delito – cadavérico – realizado em Damião Ximenes Lopes no Instituto Médico Legal Dr. Walter Porto em
4 de outubro de 1999, nota 44 supra.
47. Cf. ofício nº 173/2000, do Instituto Médico Legal Dr. Walter Porto, de 17 de fevereiro de 2000 (expediente de anexos à demanda, anexo
44, folha 251).
159
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
e na ausência de outros achados necroscópicos em virtude do avançado estado de decomposição
cadavérico do corpo, concluímos tratar-se de um caso de morte real, de causa indeterminada.
Resposta às perguntas:
1-[PRIMEIRO–Houve morte?]; sim.
2-[SEGUNDO–Qual a causa da morte?]; indeterminada.
3-[TERCEIRO–Qual o instrumento ou o meio que produziu a morte?]; sem elementos para responder.
4-[QUARTO – Foi produzida por meio de veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura ou por outro meio
insidioso ou cruel?]; sem elementos para responder.
E nada mais havendo, mandou a autoridade encerrar [o] laudo que, depois de lido e achado conforme,
[foi] devidamente assinado.48
C) Investigação policial sobre a morte do senhor Damião Ximenes Lopes
112.17. Em 13 de outubro de 1999, a senhora Albertina Viana Lopes apresentou denúncia à Coordenação Municipal
de Controle e Avaliação da Secretaria de Saúde e Assistência Social sobre a morte de seu filho Damião
Ximenes Lopes. Em outubro de 1999, a senhora Irene Ximenes Lopes Miranda, irmã do senhor Ximenes
Lopes, apresentou denúncia à Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do
Estado do Ceará, em que pedia justiça e a punição dos responsáveis pela morte de seu irmão.49
112.18. Em 8 de novembro de 1999, o promotor do Ministério Público, Alexandre de Oliveira Alcântara, solicitou a
instauração de uma investigação policial para esclarecer a morte do senhor Damião Ximenes Lopes ocorrida
em 4 de outubro de 1999 nas instalações da Casa de Repouso Guararapes. Em 9 de novembro de 1999, 36
dias depois da morte do senhor Damião Ximenes Lopes, a Delegacia de Polícia da Sétima Região de Sobral,
mediante a Resolução Administrativa nº 172/99, instruiu investigação sobre a morte do senhor Damião
Ximenes Lopes.50
112.19. Em 11 de novembro de 1999, a Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembléia Legislativa
do Estado do Ceará enviou ao Delegado de Polícia de Sobral um documento em que solicitou celeridade no
caso do senhor Damião Ximenes Lopes, a fim de que os responsáveis fossem punidos.51
112.20. Em 26 de novembro de 1999, os senhores Antônio Vitorino de Sousa Rufino, Elias Gomes Coimbra, André
Tavares do Nascimento, Carlos Alberto Rodrigues dos Santos, Maria Verônica Miranda Bezerra, Francisco
Alexandro Paiva Mesquita e Sérgio Antunes Ferreira Gomes prestaram declaração na Delegacia Regional de
Sobral.52
112.21. Em 3, 4, 7, 9, 15, 16 e 20 de dezembro de 1999, os senhores Francisco Ivo de Vasconcelos, Marcelo Messias
Barros, Maria Salete Morais Melo de Mesquita, Albertina Viana Lopes, Antônio Airton Miranda, Irene Ximenes
Lopes Miranda, João Alves da Silva, Francisco das Chagas Melo, Mairton Paiva de Oliveira, Sebastião Vieira
Filho, Francisco Magalhães de Aquino, Maria Claudenice Silva Porfírio, Maria Gorete Marques, André Tavares
do Nascimento, Carlos Alberto Rodrigues dos Santos, José Eliezer Silva Procópio, Francisco Raimundo
Alves e Evaldo Castilho Aragão Oliveira prestaram declaração na Delegacia Regional de Sobral.53
48. Cf. laudo de exame cadavérico (pós-exumático) expedido pelo Instituto Médico Legal Dr. Walter Porto em 6 de abril de 2002 (expediente
de anexos à contestação da demanda, anexo II, folha 2549).
49. Cf. denúncia de Albertina Viana Lopes apresentada à Coordenação Municipal de Controle, Avaliação e Auditoria da Secretaria de Saúde
e Assistência Social em 13 de outubro de 1999 (expediente de anexos à demanda, anexo 25, folhas 174 e 175); e relatório de sindicância
elaborado a pedido da Coordenação Municipal de Controle e Avaliação da Secretaria de Saúde e Assistência Social, emitido em 18 de fevereiro
de 2000, nota 43 supra.
50. Cf. escrito do promotor do Ministério Público apresentado à Terceira Vara da Comarca de Sobral em 8 de novembro de 1999 (expediente
de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo I, folha 1537); e auto do Delegado de Polícia de Sobral, expedidos em 9 de novembro de
1999 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo I, folhas 1535 e 1536).
51. Cf. escrito da Assembléia Legislativa do Estado do Ceará dirigido ao Delegado de Polícia de Sobral em 11 de novembro de 1999 (expediente
de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo I, folhas 1544 a 1546).
52. Cf. declarações de Antônio Vitorino de Sousa Rufino, Elias Gomes Coimbra, André Tavares do Nascimento, Carlos Alberto Rodrigues
dos Santos, Maria Verônica Miranda Bezerra, Francisco Alexandro Paiva Mesquita e Sérgio Antunes Ferreira Gomes prestadas na Delegacia
Regional de Sobral em 26 de novembro de 1999 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo I, folhas 1540 a 1543).
53. Cf. declaração de Francisco Ivo de Vasconcelos prestada à Delegacia Regional de Sobral em 3 de dezembro de 1999 (expediente de
anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo I, folhas 1572 a 1574); declarações de Marcelo Messias Barros e Maria Salete Morais Melo
de Mesquita prestadas na Delegacia Regional de Sobral em 4 de dezembro de 1999 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo
I, tomo I, folhas 1577 a 1580); declarações de Albertina Viana Lopes, Antônio Airton Miranda e Irene Ximenes Lopes Miranda prestadas na
Delegacia Regional de Sobral em 7 de dezembro de 1999 (expediente de anexos a à contestação da demanda, anexo I, tomo I, folhas 1582
a 1586); declarações de João Alves da Silva, Francisco das Chagas Melo, Mairton Paiva de Oliveira e Sebastião Vieira Filho prestadas na
Delegacia Regional de Sobral em 9 de dezembro de 1999 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo I, folhas 1671
160
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
112.22. Em 8 de dezembro de 1999, o Delegado de Polícia da Sétima Região de Sobral remeteu ao Ministério Público
seu Relatório Conclusivo a respeito da denúncia nº 404/99, no qual indicou “a provável responsabilidade
[da Casa de Repouso Guararapes] e de pessoas que estejam vinculadas com os maus-tratos, torturas e
homicídio denunciados pela família do enfermo Damião Ximenes Lopes”.54
112.23. Posteriormente a esta data, em 8, 11 e 15 de fevereiro de 2000, foi realizada na Delegacia Regional de Sobral
a acareação das testemunhas Sebastião Alves Costa Filho, André Tavares do Nascimento, Francisco Ivo de
Vasconcelos e Albertina Viana Lopes. Também foram recebidas as declarações de Sebastião Alves Costa
Filho, Cândida Martins Vieira, João Paulo Melo, Maria Gorete Silva e Maria Expedita Sousa Lira.55
112.24. Em 25 de fevereiro de 2000, a Delegacia Regional de Sobral enviou ao Juiz Titular de Sobral os autos do
inquérito policial seguido em razão da denúncia nº 404/99.56
D) Processo penal sobre maus-tratos e morte do senhor Damião Ximenes Lopes
112.25. Em 27 de março de 2000, o representante do Ministério Público apresentou à Terceira Vara da Comarca
de Sobral acusação criminal contra Sérgio Antunes Ferreira Gomes, Carlos Alberto Rodrigues dos Santos,
André Tavares do Nascimento e Maria Salete Moraes de Mesquita, como incursos no delito de maus-tratos
seguidos de morte, tipificado no artigo 136, parágrafo segundo, do Código Penal Brasileiro, em detrimento
do senhor Damião Ximenes Lopes.57
112.26. Em 10 de abril de 2000, a Terceira Vara da Comarca de Sobral citou os acusados a fim de interrogá-los, sob
pena de serem declarados revéis. Em 24 de abril de 2000, perante a Terceira Vara da Comarca de Sobral
prestaram declaração os acusados Maria Salete Moraes Melo de Mesquita, Sérgio Antunes Ferreira Gomes e
Carlos Alberto Rodrigues dos Santos e, em 26 de abril de 2000, prestou declaração o senhor André Tavares
do Nascimento.58
112.27. Em 27 de abril e 17 e 24 de maio de 2000, os acusados Maria Salete Moraes Melo de Mesquita, Sérgio
Antunes Ferreira Gomes, André Tavares do Nascimento e Carlos Alberto Rodrigues dos Santos contestaram
a acusação do Ministério Público, negando os fatos a eles imputados, reservando-se o direito de apresentar
defesa nas alegações finais e oferecendo novas testemunhas.59
112.28. Em 10 de agosto de 2000, a senhora Albertina Viana Lopes, mãe do senhor Damião Ximenes Lopes, solicitou
sua admissão como assistente do Ministério Público na ação penal. Em 26 de janeiro de 2001, o Ministério
Público manifestou sua conformidade com o pedido e, em 1º de março de 2001, a Terceira Vara da Comarca
de Sobral admitiu a senhora Albertina Viana Lopes como assistente do Ministério Público na ação penal.60
a 1680); declarações de Francisco Magalhães de Aquino, Maria Claudenice Silva Porfírio e Maria Gorete Marques prestadas na Delegacia
Regional de Sobral em 15 de dezembro de 1999 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo I, folhas 1599 a 1601 e
1608); declarações de André Tavares do Nascimento, Carlos Alberto Rodrigues dos Santos e José Eliezer Silva Procópio prestadas na Delegacia
Regional de Sobral em 16 de dezembro de 1999 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo I, folhas 1609 a 1611); e
declarações de Francisco Raimundo Alves e Evaldo Castilho Aragão Oliveira prestadas na Delegacia Regional de Sobral em 20 de dezembro de
1999 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo I, folhas 1618 e 1619).
54. Cf. relatório conclusivo da Delegacia Regional de Sobral na causa nº 404/99, emitido em 8 de dezembro de 1999 (expediente de anexos à
contestação da demanda, anexo I, tomo I, folhas 1588 a 1593).
55. Cf. termo de acareação de testemunhas perante a Delegacia Regional de Sobral em 8 de fevereiro de 2000 (expediente de anexos à
contestação da demanda, anexo I, tomo I, folhas 1694 e 1695); declaração de Sebastião Alves Costa Filho prestada na Delegacia Regional de
Sobral em 8 de fevereiro 2000 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo I, folhas 1692 e 1693); declarações de Cândida
Martins Vieira e João Paulo Melo prestadas na Delegacia Regional de Sobral em 11 de janeiro de 2000 (expediente de anexos à contestação
da demanda, anexo I, tomo I, folhas 1766 e 1767); e declarações de Maria Gorete Silva e Maria Expedita Sousa Lira prestadas na Delegacia
Regional de Sobral em 15 de fevereiro de 2000 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomos I e II, folhas 1789 a 1795).
56. Cf. ofício nº 365/2000, do Delegado de Polícia de Sobral dirigido ao Juiz Titular de Sobral, em 25 de fevereiro de 2000 (expediente de anexos
à contestação da demanda, anexo I, tomo I, folha 1416).
57. Cf. escrito do promotor do Ministério Público apresentado à Terceira Vara da Comarca de Sobral em 27 de março 2000 (expediente de
anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo I, folhas 1409 a 1414).
58. Cf. auto da Terceira Vara da Comarca de Sobral, expedidos em 10 de abril de 2000 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo
I, tomo II, folha 1842); declarações de Maria Salete Morais Melo de Mesquita, Sérgio Antunes Ferreira Gomes e Carlos Alberto Rodrigues dos
Santos prestadas perante a Terceira Vara da Comarca de Sobral em 24 de abril de 2000 (expediente de anexos à contestação da demanda,
anexo I, tomo I, folhas 1844 a 1851); e declaração de André Tavares do Nascimento prestada perante a Terceira Vara da Comarca de Sobral em
26 de abril de 2000 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo I, folhas 1853 e 1854).
59. Cf. escrito de Maria Salete Morais Melo de Mesquita apresentado à Terceira Vara da Comarca de Sobral em 27 de abril de 2000 (expediente
de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo II, folha 1856); escrito de Sérgio Antunes Ferreira Gomes apresentado à Terceira Vara da
Comarca de Sobral em 17 de maio de 2000 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo II, folha 1860); escrito de André
Tavares do Nascimento apresentado à Terceira Vara da Comarca de Sobral em 24 de maio de 2000 (expediente de anexos à contestação da
demanda, anexo I, tomo II, folha 1863); e escrito de Carlos Alberto Rodrigues dos Santos apresentado à Terceira Vara da Comarca de Sobral
em 24 de maio de 2000 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo II, folha 1864).
60. Cf. escrito de Albertina Viana Lopes apresentado à Terceira Vara da Comarca de Sobral em 10 de agosto de 2000 (expediente de anexos à
161
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
112.29. A partir de 24 de maio de 2000 e por cerca de dois anos, a Terceira Vara da Comarca de Sobral limitou-se a
realizar audiências, muitas delas adiadas por diferentes motivos, realizando-se dias ou meses depois da data
original, como se detalha a seguir:
a) a audiência marcada para 16 de agosto de 2000 foi suspensa em virtude da “impossibilidade de
comparecimento da juíza” responsável pela Terceira Vara da Comarca de Sobral, realizando-se
em 11 de outubro de 2000, data em que prestaram declaração as testemunhas Francisco Ivo de
Vasconcelos, José Cláudio Aguiar e Elias Gomes Coimbra. A audiência foi interrompida “dado o
avançado da hora;”61
b) a audiência de 9 de fevereiro de 2001 não foi realizada pela Terceira Vara da Comarca de Sobral “em
virtude de força maior” e foi adiada para 16 de fevereiro de 2001, data em que prestou declaração a
testemunha Francisco das Chagas Melo;62
c) em 13 e 14 de março de 2001, prestaram declaração Antônio Vitorino de Sousa Rufino, Maria Gorete
Silva, Maria Claudenice Silva Porfírio e Marcelo Messias Barros e, em 15 e 21 de maio de 2002,
declararam Idelson Pinto Batista e João Arnóbio B. de Mesquita;63
d) na audiência de 29 de novembro de 2001, a defesa solicitou sua suspensão alegando que se deveria
ouvir antes a mãe da suposta vítima e, considerando que não houve oposição do Ministério Público,
a Terceira Vara da Comarca de Sobral resolveu suspender a audiência, dispor que a senhora Albertina
Viana Lopes fosse ouvida e marcar nova audiência para 8 de março de 2002. Em 7 de março de
2002, a Diretora de Secretaria da referida Comarca informou que faltavam as cartas de intimação
das testemunhas para a audiência fixada para o dia seguinte, motivo por que se designou o dia
12 de abril de 2002 para que fossem ouvidas as senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes
Lopes Miranda, como informantes, e as testemunhas da defesa José Vilson Barreto Araújo, Olinda
Alexandre de Sousa, Ângela Maria Carvalho Parente e Maria Verônica Miranda Bezerra;64 e
e) a audiência marcada na Comarca de Ipueiras para 24 de abril de 2002, com a finalidade de ouvir
uma testemunha que não residia no âmbito da jurisdição de Sobral, não foi realizada por falta de
notificação com a devida antecedência. Foi marcada nova audiência para 8 de maio de 2002 e
novamente faltou a intimação ao acusado e a seu defensor, razão pela qual se marcou uma terceira
data, 19 de junho de 2002, em que se tomou a declaração da testemunha Antonio Airton Miranda.65
112.30. Em 9 de dezembro de 2002 a Terceira Vara da Comarca de Sobral declarou concluída a etapa de instrução do
processo e determinou que fossem intimadas as partes, a fim de que apresentassem suas alegações finais,
em conformidade com o artigo 499 do Código de Processo Penal Brasileiro.66
contestação da demanda, anexo I, tomo II, folha 1929); manifestação do Ministério Público, de 26 de janeiro de 2001 (expediente de anexos à
contestação da demanda, anexo I, tomo II, folha 1933); e auto da Terceira Vara da Comarca de Sobral, de 1º de março de 2001 (expediente de
anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo II, folha 1934).
61. Cf. auto da Terceira Vara da Comarca de Sobral, expedidos em 24 de maio de 2000 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo
I, tomo II, folha 1866); certificado da Terceira Vara da Comarca de Sobral, de 16 de agosto de 2000 (expediente de anexos à contestação da
demanda, anexo I, tomo II, folha 1873); e declarações de Francisco Ivo de Vasconcelos, José Cláudio Aguiar e Elias Gomes Coimbra prestadas
perante a Terceira Vara da Comarca de Sobral em 11 de outubro de 2000 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo II,
folhas 1879 a 1892).
62. Cf. certificado da Terceira Vara da Comarca de Sobral, de 9 de fevereiro de 2001 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo
I, tomo II, folha 1947); e declaração de Francisco das Chagas Melo prestada à Terceira Vara da Comarca de Sobral em 16 de fevereiro de 2001
(expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo II, folhas 1949 a 1952).
63. Cf. declarações de Antônio Vitorino de Sousa Rufino, Maria Gorete Silva e Maria Claudenice Silva Porfírio prestadas à Terceira Vara da
Comarca de Sobral em 14 de março 2001 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo II, folhas 1962 a 1966); declaração
de Marcelo Messias Barros prestada à Segunda Vara Criminal da Comarca de Fortaleza em 13 de março de 2001 (expediente de anexos à
contestação da demanda, anexo I, tomo II, folhas 1980 a 1982); declaração de Idelson Pinto Batista prestada à Terceira Vara da Comarca
de Sobral em 15 de maio de 2002 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo II, folhas 2094 a 2096); e declaração de
João Arnóbio B. de Mesquita prestada à Terceira Vara da Comarca de Sobral em 21 de maio de 2002 (expediente de anexos à contestação da
demanda, anexo I, tomo II, folhas 2113 a 2116).
64. Cf. auto da Juíza Auxiliar da Sétima Zona Judicial, expedidos em 6 de junho de 2001 (expediente de anexos à contestação da demanda,
anexo I, tomo II, folha 1986); termo de audiência realizada na Terceira Vara da Comarca de Sobral em 29 de novembro de 2001 (expediente
de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo II, folhas 1993 e 1994); auto da Terceira Vara da Comarca de Sobral, expedido em 7 de
março de 2002 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo II, folha 2024); declaração de Albertina Viana Lopes prestada
perante a Comarca Vinculada de Varjota em 10 de abril de 2002 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo II, folhas
2036 a 2038); e declarações de Irene Ximenes Lopes Miranda, José Vilson Barreto Araújo, Olinda Alexandre de Sousa, Ângela Maria Carvalho
Parente e Maria Verônica Miranda Bezerra prestadas à Terceira Vara da Comarca de Sobral em 12 de abril de 2002 (expediente de anexos à
contestação da demanda, anexo I, tomo II, folhas 2044 a 2056).
65. Cf. termo de audiência criminal da Comarca de Ipueiras, realizada em 24 de abril de 2002 (expediente de anexos à contestação da demanda,
anexo I, tomo II, folha 2127); termo de audiência criminal da Comarca de Ipueiras realizada em 8 de maio de 2002 (expediente de anexos à
contestação da demanda, anexo I, tomo II, folha 2132); e declaração de Antônio Airton Miranda prestada perante a Comarca de Ipueiras em 19
de junho de 2002 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo II, folhas 2143 a 2146).
66. Cf. auto da Terceira Vara da Comarca de Sobral, expedido em 9 de dezembro de 2002 (expediente de anexos à contestação da demanda,
162
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
D.1)Aditamento da denúncia e situação atual do processo
112.31. Em 25 de maio de 2000, promotores do Centro de Apoio Operacional dos Grupos Socialmente Discriminados
da Procuradoria-Geral de Justiça enviaram ofício ao promotor do Ministério Público de Sobral responsável
pela acusação criminal na causa referente à morte do senhor Damião Ximenes Lopes, em que declararam
que “restou cabalmente demonstrado, consoante [se infere] dos depoimentos colhidos e das informações
constantes dos relatórios [produzidos no caso do senhor Damião Ximenes Lopes, a] conduta criminosa
[de] Francisco Ivo [de] Vasconcelos e [de] Marcelo Messias Barros[;] da enfermeira Maria Verônica Miranda
Bezerra e [do] empregado José Eliezer Silva Procópio”, razão pela qual salientaram que o aditamento da
denúncia penal para investigar a relação dessas pessoas com a morte do senhor Damião Ximenes Lopes
constituía uma “imposição institucional e legal”.67
112.32. Em 12 de dezembro de 2000, a senhora Irene Ximenes Lopes Miranda solicitou ao Presidente da Comissão
de Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado do Ceará que requeresse ao Juiz da
Terceira Vara de Sobral o aditamento da denúncia contra as pessoas mencionadas no ofício dos promotores
do Centro de Apoio Operacional dos Grupos Socialmente Discriminados da Procuradoria-Geral de Justiça.68
112.33. Em 22 de setembro de 2003, a promotora do Ministério Público apresentou suas alegações finais no
processo penal pela morte do senhor Damião Ximenes Lopes, bem como a solicitação de aditamento da
denúncia com relação a Francisco Ivo de Vasconcelos e Elias Gomes Coimbra, por haver incorrido na prática
de maus-tratos seguidos de morte, conduta tipificada no artigo 136, parágrafo segundo, do Código Penal
Brasileiro, em detrimento do senhor Damião Ximenes Lopes.69
112.34. Em 17 de junho de 2004, o Juiz da Terceira Vara de Sobral, depois de salientar que os trabalhos na Comarca
se encontravam atrasados em virtude do volume de serviço e de que ele próprio houvesse passado 90 dias
afastado de suas funções (30 dias de férias em janeiro, mais 60 dias de licença médica entre fevereiro e abril
de 2004), recebeu o aditamento da denúncia e determinou a citação dos novos réus, bem como sua intimação
para que prestassem declaração. Sem prejuízo do acima exposto, o juiz reiterou a intimação à assistente
do Ministério Público e os advogados de defesa para que “com a máxima urgência” apresentassem suas
alegações finais.70
112.35. Em 30 de agosto de 2004, não foi possível realizar interrogatório dos novos acusados pela falta de notificação
do advogado da assistente do Ministério Público e de alguns dos advogados de defesa, motivo por que o
juiz da Terceira Vara da Comarca de Sobral, “em razão da celeridade que o caso requer”, fixou uma nova
audiência para 9 de setembro de 2004.71
112.36. Em 22 de outubro de 2004, a defesa de Elias Gomes Coimbra sustentou sua inocência e ofereceu testemunhas
para serem ouvidas em audiência. Nesse mesmo dia o senhor Francisco Ivo de Vasconcelos apresentou sua
defesa prévia, sustentou a insuficiência fática e jurídica das alegações do Ministério Público, negou a autoria
dos fatos que lhe eram imputados e ofereceu prova testemunhal.72
112.37. Em 3 e 16 de dezembro de 2004, prestaram declaração os senhores José Cláudio Aguiar, Maria Gorete Silva
e Maria Verônica Miranda Bezerra.73
anexo I, tomo II, folha 2148).
67. Cf. ofício nº 56/2000, de promotores do Centro de Apoio Operacional dos Grupos Socialmente Discriminados, da Procuradoria-Geral de
Justiça, enviado ao promotor do Ministério Público de Sobral em 25 de maio de 2000 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo
I, tomo II, folhas 1911 a 1925).
68. Cf. comunicação de Irene Ximenes Lopes Miranda enviada ao Presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia
Legislativa do Estado do Ceará em 12 de dezembro de 2000 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo II, folha 1908).
69. Cf. escrito de alegações finais do promotor do Ministério Público apresentado à Terceira Vara da Comarca de Sobral em 22 de setembro
de 2003 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo II, folhas 2166 a 2172); e escrito de aditamento da denúncia do
Ministério Público apresentado à Terceira Vara da Comarca de Sobral em 22 de setembro de 2003 (expediente de anexos à contestação da
demanda, anexo I, tomo II, folhas 2174 a 2178).
70. Cf. auto da Terceira Vara da Comarca de Sobral expedido em 17 de junho de 2004 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo
I, tomo II, folha 2180); e mandado de citação dos acusados Francisco Ivo de Vasconcelos e Elias Gomes Coimbra, expedido pela Secretaria da
Terceira Vara de Sobral em 25 de agosto de 2004 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo II, folha 2189).
71. Cf. termo de audiência da Terceira Vara da Comarca de Sobral realizada em 30 de agosto de 2004 (expediente de anexos à contestação da
demanda, anexo I, tomo II, folha 2235).
72. Cf. defesa prévia de Elias Gomes Coimbra apresentada à Terceira Vara da Comarca de Sobral em 22 de outubro de 2004 (expediente de
anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo II, folhas 2277 e 2278); e defesa prévia de Francisco Ivo de Vasconcelos apresentada à
Terceira Vara da Comarca de Sobral em 22 de outubro de 2004 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo II, folhas
2272 a 2275).
73. Cf. declarações de José Cláudio Aguiar e Maria Gorete Silva prestadas à Terceira Vara da Comarca de Sobral em 3 de dezembro de 2004 (expediente
de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo II, folhas 2283 a 2288); e declaração de Maria Verônica Miranda Bezerra prestada à Terceira Vara
163
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
112.38. Após a abertura da audiência de 9 de setembro de 2004, marcada com a finalidade de ouvir os novos acusados,
o Juiz da Terceira Vara da Comarca de Sobral salientou que “a complexidade dos fatos, o elevado número de
acusados e, sobretudo, as sucessivas manifestações nos autos de entidades ligadas aos direitos humanos têm
retardado a solução da controvérsia”. Salientou, ademais, que os “expedientes necessários à correta tramitação
do processo não foram realizados como deveriam” e que a ausência de advogados para representar três dos
acusados impedia que se efetuasse o interrogatório previsto, motivo por que designou o dia 19 de outubro de
2004 para sua realização e reiterou a intimação à assistente do Ministério Público na ação penal, bem como aos
advogados de defesa dos acusados originais para que apresentassem alegações finais.74
112.39. Em seguida, na mesma audiência, a defesa de Sérgio Antunes Ferreira Gomes, acusado na denúncia
original, solicitou a “suspensão [do requerimento] da apresentação das alegações finais”, argumentando
que a produção de novas provas no processo, conseqüência necessária da inclusão de novos acusados,
poderia beneficiar, ou então prejudicar, os acusados originais e que seu julgamento antes do final da etapa
de instrução do processo contra os que foram posteriormente acusados, poderia acarretar uma contradição
entre a primeira e a segunda sentenças a serem emitidas pela Comarca. Em razão dessa solicitação, o
juiz determinou que, posteriormente à audiência fixada para 19 de outubro de 2004, os autos lhe fossem
enviados, para que decidisse sobre o pedido.75
112.40. Em 19 de outubro de 2004, foi realizado o interrogatório dos acusados Francisco Ivo de Vasconcelos e Elias
Gomes Coimbra.76
112.41. A audiência marcada para 26 de janeiro de 2005 para ouvir a testemunha Francisco das Chagas Melo não foi
realizada por falta de intimação do acusado Carlos Alberto Rodrigues dos Santos e teve lugar em 2 de março
de 2005.77
112.42. Em 14 de fevereiro de 2005, a Secretaria da Terceira Vara da Comarca de Sobral remeteu os autos conclusos
ao juiz, para que decidisse sobre a solicitação de suspensão da apresentação das alegações finais. Desde
essa data, a Comarca procedeu à realização das audiências para ouvir Francisco das Chagas Melo e Albertina
Viana Lopes e para citar as testemunhas da parte acusada no aditamento da denúncia. O processo penal pela
morte do senhor Damião Ximenes Lopes está à espera da emissão de um auto interlocutório que resolva a
solicitação de suspensão da apresentação de alegações finais.78
112.43. O procedimento penal teve início em 27 de março de 2000 com a interposição da denúncia pelo Ministério
Público e até a data da emissão desta Sentença ainda não foi proferida sentença em primeira instância.
E) Ação civil de reparação de danos*
112.44. Em 6 de julho de 2000, Albertina Viana Lopes promoveu ação de indenização perante a Quinta Vara Cível
por danos morais contra a Casa de Repouso Guararapes, Sérgio Antunes Ferreira Gomes e Francisco Ivo de
Vasconcelos, em decorrência da “dor, tristeza, sofrimento e humilhação que [...] passou e passará pelo resto
de sua vida” pela morte de seu filho Damião Ximenes Lopes.79
112.45. Em 2 de outubro de 2000 os representantes da Casa de Repouso Guararapes e os demandados Sérgio
Antunes Ferreira Gomes e Francisco Ivo de Vasconcelos contestaram a demanda de indenização contra eles
da Comarca de Sobral em 16 de dezembro de 2004 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo II, folhas 2296 a 2300).
74. Cf. termo de audiência da Terceira Vara da Comarca de Sobral, realizada em 9 de setembro de 2004 (expediente de anexos à contestação
da demanda, anexo I, tomo II, folhas 2254 e 2255).
75. Cf. termo de audiência da Terceira Vara da Comarca de Sobral, realizada em 9 de setembro de 2004, nota 74 supra.
76. Cf. declarações de Francisco Ivo de Vasconcelos e Elias Gomes Coimbra prestadas à Terceira Vara da Comarca de Sobral em 19 de outubro
de 2004 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo II, folhas 2260 a 2268).
77. Cf. termo de audiência da Comarca de Ipueiras realizada em 26 de janeiro de 2005 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo
I, tomo II, folha 2326); e termo de audiência da Comarca de Ipueiras realizada em 2 de março de 2005 (expediente de mérito, tomo IV, folhas
701 a 710).
78. Cf. auto da Terceira Vara da Comarca de Sobral expedido em 14 de fevereiro de 2005 (expediente de anexos à contestação da demanda,
anexo I, tomo II, folha 2327); termo de audiência da Comarca de Varjota, realizada em 5 de abril 2005 (expediente de mérito, tomo IV, folhas
712 e 713); e carta de intimação da Terceira Vara da Comarca de Sobral expedida em 17 de novembro de 2005 (expediente de mérito, tomo
IV, folha 715).
79. Cf. escrito de Albertina Viana Lopes apresentado à Quinta Vara Cível em 6 de julho de 2000 (expediente de anexos à contestação da
demanda, anexo II, folhas 2329 a 2343).
*Na versão em espanhol desta Sentença, entenda-se como ação civil de reparação de danos, “acción civil de resarcimiento”.
164
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
formulada pela senhora Albertina Viana Lopes.80
112.46. Em 17 de novembro de 2000, a senhora Albertina Viana Lopes apresentou a réplica à contestação da demanda
da Casa de Repouso Guararapes e de Sérgio Antunes Ferreira Gomes e Francisco Ivo de Vasconcelos.81
112.47. Em 6 de dezembro de 2000, a Quinta Vara Cível marcou audiência de conciliação para 1º de março de 2001.
Nessa data a Quinta Vara Cível, sem apresentar justificação, transferiu a audiência para 15 de março de 2001,
dia em que esta teve lugar, sem que houvesse ânimo conciliatório.82
112.48. Em 15 de agosto de 2003, a Quinta Vara Cível solicitou à Terceira Vara da Comarca de Sobral informação
pormenorizada sobre a ação penal que tramitava nessa instância sobre a morte do senhor Damião Ximenes
Lopes e a situação processual em que se encontrava. Em 19 de agosto de 2003, o juiz da Terceira Vara de
Sobral informou que o processo se encontrava na fase do artigo 499 do Código de Processo Penal, ou
seja, na apresentação de alegações finais pelas partes. Em 29 de agosto do mesmo ano, a Quinta Vara Cível
resolveu suspender o processo civil pelo prazo máximo de um ano para esperar a resolução da ação penal.83
112.49. Em 15 de outubro de 2004, a Quinta Vara Cível solicitou à Terceira Vara da Comarca de Sobral que informasse
se havia sido proferida sentença no caso do senhor Damião Ximenes Lopes e, se fosse o caso, que remetesse
cópia da decisão. Em 21 de outubro de 2004, a Terceira Vara de Sobral informou que em 24 de setembro
desse mesmo ano havia sido aditada a denúncia, nela incluindo Elias Gomes Coimbra e Francisco Ivo de
Vasconcelos, a quem se havia interrogado em 19 de outubro de 2004, e que, com relação aos demais
acusados, o processo se encontrava concluso para decisão com respeito ao pedido de um dos advogados
de defesa sobre a suspensão do prazo para a apresentação de alegações finais 84 (par. 112.42 supra). À data
da emissão da presente Sentença, não foi proferida sentença de primeira instância na ação civil de reparação
de danos.
F) Exumação do corpo do senhor Damião Ximenes Lopes
112.50. Em 15 de março de 2001, a Quinta Vara Cível decidiu acolher o pedido da realização da prova pericial
de exumação do cadáver do senhor Damião Ximenes Lopes, solicitado pelos representantes da Casa de
Repouso Guararapes, e dispôs que o Diretor do Departamento Técnico de Perícia deveria nomear dois
peritos para realizar a referida prova.85
112.51. Em 25 e 27 de março de 2001, o demandado Francisco Ivo de Vasconcelos e a senhora Albertina Viana Lopes
apresentaram os quesitos a serem analisados na exumação do corpo do senhor Damião Ximenes Lopes.86
112.52. Em 26 de março de 2001, o representante da Casa de Repouso Guararapes desistiu do pedido de exumação.
Em 19 de junho do mesmo ano, a senhora Albertina Viana Lopes manifestou-se a favor da realização da
prova pericial, como condição para o esclarecimento da verdade. Em 20 de junho de 2001, a Quinta Vara
Cível decidiu manter a realização da exumação.87
80. Cf. escrito dos representantes da Casa de Repouso Guararapes, apresentado à Quinta Vara Cível em 2 de outubro de 2000 (expediente
de anexos à contestação da demanda, anexo II, folhas 2403 a 2411); escrito de Sérgio Antunes Ferreira Gomes apresentado à Quinta Vara
Cível em 2 de outubro de 2000 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo II, folhas 2413 a 2422); e escrito de Francisco Ivo
de Vasconcelos apresentado à Quinta Vara Cível em 2 de outubro de 2000 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo II, folhas
2424 a 2429).
81. Cf. escrito de Albertina Viana Lopes apresentado à Quinta Vara Cível em 17 de novembro de 2000 (expediente de anexos à contestação da
demanda, anexo II, folhas 2446 a 2448).
82. Cf. auto da Quinta Vara Cível expedido em 6 de dezembro de 2000 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo II, folha 2450);
auto da Quinta Vara Cível expedido em 1º de março de 2001 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo II, folhas 2463 e 2464); e
termo de audiência da Quinta Vara Cível realizada em 15 de março de 2001 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo II, folhas
2466 e 2467).
83. Cf. auto da Quinta Vara Cível expedidos em 15 de agosto de 2003 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo II, folha 2576);
ofício nº 521/03, da Terceira Vara da Comarca de Sobral, expedido em 19 de agosto de 2003 (expediente de anexos à contestação da demanda,
anexo II, folha 2580); e auto da Quinta Vara Cível expedido em 29 de agosto de 2003 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo
II, folha 2582).
84. Cf. auto da Quinta Vara Cível expedido em 15 de outubro de 2004 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo II, folha 2633);
e ofício nº 1545/04, da Terceira Vara da Comarca de Sobral, expedido em 21 de outubro de 2004 (expediente de anexos à contestação da
demanda, anexo II, folha 2636).
85. Cf. termo de audiência da Quinta Vara Cível realizada em 15 de março de 2001 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo
II, folhas 2466 e 2467).
86. Cf. escrito de Francisco Ivo de Vasconcelos apresentado à Quinta Vara Cível em 25 de março de 2001 (expediente de anexos à contestação
da demanda, anexo II, folhas 2468 e 2469); e escrito de Albertina Viana Lopes apresentado à Quinta Vara Cível em 27 de março de 2001
(expediente de anexos à contestação da demanda, anexo II, folhas 2470 e 2471).
87. Cf. escrito de Francisco Ivo de Vasconcelos apresentado à Quinta Vara Cível em 26 de março de 2001 (expediente de anexos à contestação
da demanda, anexo II, folhas 2473 e 2474); escrito de Albertina Viana Lopes apresentado à Quinta Vara Cível em 19 de junho de 2001
165
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
112.53. Em 24 de setembro de 2001, a Quinta Vara Cível solicitou pela segunda vez ao Diretor do Departamento
Técnico de Perícia do Instituto Médico Legal, que nomeasse dois peritos para a realização da exumação. Essa
solicitação foi reiterada em 30 de outubro de 2001.88
112.54. Em 21 de fevereiro de 2002, a Direção Técnico-Científica do Instituto Médico Legal Dr. Walter Porto
marcou para o dia 6 de abril de 2002 às 8h a realização da exumação do corpo do senhor Damião Ximenes
Lopes e designou dois peritos para essa finalidade. Em 6 de abril de 2002, foi realizada a perícia, que
concluiu que o caso do senhor Damião Ximenes Lopes tratou-se de morte real “de causa indeterminada”
(par. 112.16 supra).89
G) Casa de Repouso Guararapes
112.55. A Casa de Repouso Guararapes, hospital privado de saúde, de propriedade de Sérgio Antunes Ferreira
Gomes, a qual foi contratada pelo Estado para prestar serviços de atendimento psiquiátrico, sob a direção
do Sistema Único de Saúde e atuava como unidade pública de saúde em nome e por conta do Estado.
No mês de outubro de 1999, cerca de 54 leitos de internação do hospital achavam-se vinculados ao SUS
e as pessoas que os ocupavam eram pacientes do sistema público de saúde. Era a única instituição de
internação ou de serviços ambulatoriais ou abertos, seja de caráter público ou privado, para pessoas
portadoras de deficiência mental de toda a região de Sobral, cidade localizada a 200 Km de Fortaleza,
capital do Estado do Ceará.90
112.56. Na Casa de Repouso Guararapes havia um contexto de violência, agressões e maus-tratos, em que
diversos internos freqüentemente apresentavam lesões nos membros superiores e inferiores, causadas
pelos empregados do hospital; os auxiliares de enfermagem e vigilância utilizavam pacientes para conter
outros; aplicavam a “gravata” (manobra que implica possibilidade de asfixia) em alguns pacientes, os quais
pensavam que essa prática “era a lei” ou que era “para manter a ordem”; determinavam a contenção física
de forma indiscriminada, independentemente de este procedimento ter ou não sido indicado pelo médico
responsável, e incentivavam enfrentamentos físicos entre os pacientes.91
112.57. As condições de confinamento na Casa de Repouso Guararapes eram desumanas e degradantes, a atenção
médica aos pacientes era freqüentemente prestada na recepção, inclusive em presença de visitantes, já que
por muito tempo o hospital não dispôs de um consultório médico, e freqüentemente faltava a medicação
adequada aos pacientes. O hospital não oferecia as condições necessárias e era incompatível com o exercício
ético-profissional da medicina.92
112.58. No contexto de violência contra os pacientes, e anteriormente à morte do senhor Damião Ximenes Lopes,
ocorreram na Casa de Repouso Guararapes pelo menos duas mortes em circunstâncias violentas, que
teriam incluído golpes na cabeça com objetos contundentes e em que os pacientes ingressavam na Casa
(expediente de anexos à contestação da demanda, anexo II, folhas 2500 e 2501); e auto da Quinta Vara Cível expedido em 20 de junho de 2001
(expediente de anexos à contestação da demanda, anexo II, folhas 2502 e 2503).
88. Cf. auto da Quinta Vara Cível expedido em 11 de setembro de 2001 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo II, folhas 2512
e 2513); ofício nº 372/2001 da Quinta Vara Cível, expedido em 24 de setembro de 2001 (expediente de anexos à contestação da demanda,
anexo II, folha 2514); e ofício nº 468-M/2001, da Quinta Vara Cível, expedido em 30 de outubro de 2001 (expediente de anexos à contestação
da demanda, anexo II, folha 2522).
89. Cf. ofício nº 170/200-CPD-02, da Direção Técnico-Científica do Instituto Médico Legal Dr. Walter Porto, expedido em 21 de fevereiro de
2002 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo II, folha 2525); ofício nº 795/2002 da Delegacia Regional de Sobral expedido em
2 de maio de 2002 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo II, folhas 2548 e 2549); e laudo do exame cadavérico (exumação)
realizado pelo Instituto Médico Legal Dr. Walter Porto no cadáver do senhor Damião Ximenes Lopes em 6 de abril de 2002, nota 48 supra.
90. Cf. Portaria nº 026 expedida pela Secretaria de Saúde e Assistência Social do Município de Sobral em 2 de março de 2000 (expediente de
anexos à demanda, anexo 2, folhas 76 a 81); Portaria nº 113 expedida pela Secretaria de Saúde e Assistência Social do Município de Sobral
em 10 de julho de 2000 (expediente de anexos à demanda, anexo 3, folhas 82 e 83); declaração de Francisco Ivo de Vasconcelos prestada à
Terceira Vara da Comarca de Sobral em 16 de agosto de 2000 (expediente de anexos à demanda, anexo 4, folhas 84 a 89); e escrito de Sérgio
Antunes Ferreira Gomes apresentado à Terceira Vara da Comarca de Sobral em 26 de março de 2001 (expediente de anexos à demanda, anexo
7, folhas 95 e 96).
91. Cf. relatório do Grupo de Acompanhamento e Avaliação da Assistência Psiquiátrica Hospitalar, emitido em 5 de novembro de 1999
(expediente de anexos à demanda, anexo 18, folhas 118 a 146); relatório de sindicância elaborado a pedido da Coordenação Municipal de
Controle, Avaliação e Auditoria da Secretaria de Saúde e Assistência Social emitido em 18 de fevereiro de 2000, nota 43 supra; declaração de
Francisco das Chagas Melo prestada à Terceira Vara da Comarca de Sobral em 16 de fevereiro de 2001, nota 62 supra; declaração de Carlos
Alberto Rodrigues dos Santos prestada à Terceira Vara da Comarca de Sobral em 24 de abril de 2000 (expediente de anexos à demanda, anexo
12, folhas 108 a 110); e registro do livro de ocorrências diárias da Casa de Repouso Guararapes de 29 de dezembro de 1999 (expediente de
anexos à demanda, anexo 13, folha 111).
92. Cf. relatório do Grupo de Acompanhamento e Avaliação da Assistência Psiquiátrica Hospitalar emitido em 5 de novembro de 1999, nota
91 supra; relatório de sindicância elaborado a pedido da Coordenação Municipal de Controle, Avaliação e Auditoria da Secretaria de Saúde e
Assistência Social, emitido em 18 de fevereiro de 2000, nota 43 supra; e declaração de Francisco Ivo de Vasconcelos prestada à Terceira Vara
da Comarca de Sobral em 16 de agosto de 2000, nota 90 supra.
166
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
de Repouso em boas condições físicas e faleciam durante o período de internação.93 A senhora Raimunda
Ferreira de Sousa morreu na Casa de Repouso Guararapes em outubro de 1987 e o senhor Gerardo Alves da
Silva também ali faleceu em fevereiro de 1991.
112.59. As denúncias sobre maus-tratos e delitos praticados contra os pacientes, tais como uma acusação de estupro
e outra de que um auxiliar de enfermagem teria quebrado o braço de um paciente, não eram investigadas
pela direção da Casa de Repouso Guararapes, cujo diretor presidente, o senhor Sérgio Antunes Ferreira
Gomes, não visitava a instituição nem mantinha contato algum com o pessoal médico ou de enfermagem e
tampouco com os familiares dos pacientes internados.94
H) Intervenção na Casa de Repouso Guararapes
112.60. Em 13 de outubro de 1999, a senhora Albertina Viana Lopes apresentou denúncia à Coordenação Municipal
de Controle, Avaliação e Auditoria da Secretaria de Saúde e Assistência Social contra a Casa de Repouso
Guararapes, em que relatou as circunstâncias que cercaram a morte de seu filho, Damião Ximenes Lopes,
ocorrida em 4 de outubro de 1999.95
112.61. Em 18 de outubro de 1999, a Coordenação Municipal de Controle, Avaliação e Auditoria da Secretaria de
Saúde e Assistência Social, por ordem do Secretário Municipal de Saúde e Assistência Social do Município de
Sobral, expediu a Portaria* nº 001/CCAA, mediante a qual resolveu instituir uma Comissão de Sindicância**
para investigar os fatos denunciados pela senhora Albertina Viana Lopes. Em 18 de fevereiro de 2000, a
Comissão de Sindicância, depois de realizar duas visitas de supervisão à Casa de Repouso Guararapes, ouvir
dezenove pessoas e analisar diferentes documentos, apresentou seu relatório final, em que concluiu que a
Casa de Repouso Guararapes “não oferec[ia] as condições exigíveis [e era] incompatível com o exercício
ético-profissional da medicina” 96.
112.62. A última inspeção realizada na Casa de Repouso Guararapes havia sido em 15 de maio de 1996, pelo
Grupo de Acompanhamento de Assistência Psiquiátrica do Ministério da Saúde (GAP), na qual se havia
recomendado o fechamento de duas enfermarias que funcionavam no local conhecido como “porão”, pela
falta de condições de funcionamento, infiltração e outras irregularidades. A inspeção também constatou
a existência de um número de pessoas superior ao número de camas hospitalares, o que comprovou a
existência dos chamados “leitos-chão”, situação em que os pacientes dormiam no piso.97
112.63. Em 21 de outubro de 1999, o Departamento de Vigilância Sanitária da Secretaria de Saúde e Assistência
Social realizou uma inspeção na Casa de Repouso Guararapes, em que concluiu que:
do ponto de vista da vigilância sanitária[,...] o conjunto das ações e serviços referentes à Casa de
Repouso Guararapes, encontram-se fora das normas de identidade e qualidade aceitáveis[. Ademais,]
pode-se afirmar que:
• a unidade hospitalar não oferece a seus empregados aparelhos de proteção individual; […]
• os empregados não são vacinados contra tétano nem contra hepatite B;
93. Cf. declaração de Maria Expedita Sousa Lira prestada à Terceira Vara da Comarca de Sobral em 15 de fevereiro de 2000, nota 55 supra; e
declaração de Maria Gorete Silva prestada à Terceira Vara da Comarca de Sobral em 15 de fevereiro de 2000, nota 55 supra.
94. Cf. relatório de sindicância elaborado a pedido da Coordenação Municipal de Controle, Avaliação e Auditoria da Secretaria de Saúde e
Assistência Social, emitido em 18 de fevereiro de 2000, nota 43 supra; relatório do Grupo de Acompanhamento e Avaliação da Assistência
Psiquiátrica Hospitalar, emitido em 5 de novembro de 1999, nota 91 supra; declaração de Francisco das Chagas Melo prestada à Terceira Vara
da Comarca de Sobral em 16 de fevereiro de 2001, nota 62 supra; declaração de Carlos Alberto Rodrigues dos Santos prestada à Terceira Vara
da Comarca de Sobral em 24 de abril de 2000, nota 41 supra; registro do livro de ocorrências diárias da Casa de Repouso Guararapes, de 29
de dezembro de 1999, nota 91 supra; e declaração de Francisco Ivo de Vasconcelos prestada à Terceira Vara da Comarca de Sobral em 16 de
agosto de 2000, nota 90 supra.
95. Cf. relatório de sindicância, elaborado a pedido da Coordenação Municipal de Controle, Avaliação e Auditoria da Secretaria de Saúde e
Assistência Social, emitido em 18 de fevereiro de 2000, nota 43 supra; e denúncia de Albertina Viana Lopes apresentada à Coordenação
Municipal de Controle, Avaliação e Auditoria da Secretaria de Saúde e Assistência Social em 13 de outubro de 1999, nota 49 supra.
96. Cf. Portaria nº 001/CCAA, expedida pela Coordenação Municipal de Controle, Avaliação e Auditoria em 18 de outubro de 1999 (anexos da
contestação à demanda, anexo 1, tomo I, folha 1548); e relatório de sindicância elaborado a pedido da Coordenação Municipal de Controle,
Avaliação e Auditoria da Secretaria de Saúde e Assistência Social emitido em 18 de fevereiro de 2000, nota 43 supra.
97. Cf. relatório do Grupo de Acompanhamento e Avaliação da Assistência Psiquiátrica Hospitalar emitido em 5 de novembro de 1999, nota 91
supra; e declaração de Lídia Dias Costa, prestada em 31 de julho de 2003 (expediente de anexos às solicitações, argumentos e provas, anexo
1, folhas 897 a 903).
*Na versão em espanhol desta Sentença entenda-se como Portaria, decisión administrativa.
**Na versão em español desta Sentença entenda-se como Comissão de Sindicância, Comisión de Investigación Administrativa.
167
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
• nas áreas livres de convivência os pacientes não têm atividades de lazer;
• o isolamento dos pacientes é realizado em lugar não adequado, sem estrutura [nem] higienização;
• o armazenamento de alimentos é inadequado provocando [sua] putrefação;
• o uso do freezer é inadequado;
• as mesas do refeitório são cobertas com plásticos fixos com pregos e de difícil higienização;
• o quadro de distribuição de energia encontra-se danificado podendo provocar acidentes;
• as condições higiênicas do hospital são precárias (teto, paredes e piso necessitando de limpeza); [, e]
• as condições sanitárias são precárias (banheiros [se encontram] danificados [e] sem chuveiros, sem
lavatórios, sem lixeira, e o aparelho sanitário [se encontra] sem cobertura [nem] higienização).
[Por conseguinte,] os resultados encontrados evidenciam a necessidade de manutenção e de [a adoção
de] diferentes ações voltadas para a promoção da saúde e qualidade de vida […] na Casa de Repouso
Guararapes.98
112.64. Em 4 de novembro de 1999, a Secretaria de Saúde e Assistência Social dirigiu ofício à Direção Administrativa
da Casa de Repouso Guararapes, em que se referiu a uma visita realizada pela Coordenação de Controle,
Avaliação e Auditoria e pelo médico do Sistema Municipal de Auditoria, em que haviam sido ressaltadas as
seguintes irregularidades na Casa de Repouso Guararapes:
a) ausência de médico plantonista;
b) não há oxigênio, “aspirador de secreção”, vaporizador e outros instrumentos médicos, na sala de
emergência;
c) não existe sala de recuperação nem “carro de curativo”;
d) os lugares destinados aos aparelhos mencionados nos itens b e c se encontram em precário
estado de higiene; e
e) não constam dos prontuários médicos a evolução ou os relatórios circunstanciados de
acompanhamento a serem preparados pelos profissionais de assistência social, psicologia,
terapia ocupacional e enfermagem (nível superior), “os quais são de fundamental importância
aos cuidados de saúde mental”.
Em virtude dessas constatações, a Secretaria de Saúde e Assistência Social concedeu à Casa de
Repouso Guararapes um prazo de 15 dias para que as irregularidades fossem corrigidas e informou
que, caso persistissem, seria suspensa em caráter definitivo a emissão de autorizações de internação
hospitalar.99
112.65. Em 5 de novembro de 1999, órgãos da Secretaria de Saúde e Assistência Social realizaram uma inspeção
conjunta na Casa de Repouso Guararapes, mediante a qual concluíram que:
a) desprende-se das entrevistas realizadas com pacientes que existem maus-tratos, especialmente
contra pacientes do sexo masculino, e que esse trato começa quando os pacientes são levados à
Casa de Repouso Guararapes por policiais;
b) causa estranheza que a Coordenação de Controle, Avaliação e Auditoria da Secretaria de Saúde e
Assistência Social não haja desativado a Unidade Ulisses Pernambucano. Essa Unidade já havia
sido denunciada em relatório anterior, datado de 15 de maio de 1996;
c) as unidades Alice Ferreira Gomes e Ulisses Pernambucano devem ser desativadas; e
d) é evidente a falta de administração da Casa de Repouso Guararapes. As pessoas que na prática
assumem essa função não têm poder decisório e o proprietário não se encontra presente de
maneira assídua.
A inspeção concluiu que a Casa de Repouso Guararapes não apresentava condições de
funcionamento e sugeriu a intervenção por parte do Município de Sobral, em conjunto com a
Secretaria de Saúde e Assistência Social, e mudanças na administração, ou então que fosse
cassada sua autorização para prestar serviços no âmbito do Sistema Único de Saúde. A respeito da
98. Cf. inspeção da Vigilância Sanitária da Secretaria de Saúde e Assistência Social realizada na Casa de Repouso Guararapes em 21 de outubro
de 1999 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo I, folhas 1551 a 1553).
99. Cf. ofício nº 1024/99, da Secretaria de Saúde e Assistência Social, dirigido à Direção Administrativa da Casa de Repouso Guararapes em 4
de novembro de 1999 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo I, folha 1549).
168
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
morte do senhor Damião Ximenes Lopes, concluiu que se evidenciaram no caso uma assistência
médica precária e maus-tratos.100
112.66. Em 29 de fevereiro de 2000, o Conselho Municipal de Saúde, com base nas conclusões do relatório da
Comissão de Sindicância, determinou, mediante a Resolução/CMSS nº 001/2000, a intervenção na Casa
de Repouso Guararapes por parte de um órgão municipal de saúde. Em 2 de março de 2000, o Secretário
Municipal de Saúde e Assistência Social resolveu instituir uma junta interventora na Casa de Repouso
Guararapes, pelo prazo de noventa dias, o qual foi prorrogado por mais trinta dias, com a finalidade de
organizá-la técnica e administrativamente, controlando os recursos transferidos para o referido hospital
pelo Sistema Único de Saúde.101
112.67. Ao cabo de uma intervenção de cento e vinte dias, em 10 de julho de 2000, a Secretaria de Saúde e
Assistência Social, mediante a Portaria nº 113, decidiu “descredenciar a Casa de Repouso Guararapes
como instituição contratada para prestar serviços ao [Sistema Único de Saúde] na área de assistência
hospitalar em psiquiatria”.102
I)
Pensões
112.68. O senhor Damião Ximenes Lopes recebia do Instituto Nacional do Seguro Social uma pensão do Estado por
incapacidade. Em conseqüência de sua morte, e em conformidade com o artigo 3° da Lei nº 8.212, legislação
geral aplicável a todo o território nacional, que dispõe que “[a] previdência social tem por fim assegurar aos
seus beneficiários meios indispensáveis de manutenção, por motivo de incapacidade […] e reclusão ou
morte daqueles de quem dependiam economicamente”, a senhora Albertina Viana Lopes passou a receber
um benefício social a título de pensão por morte, por ser ela a única dependente econômica do senhor
Damião Ximenes Lopes. A pensão do Instituto Nacional do Seguro Social de que se tornou beneficiária a
senhora Albertina Viana Lopes alcança, na data desta sentença, a soma de R$350,00 (trezentos e cinqüenta
reais).103 Esta pensão é concedida independentemente da causa e circunstâncias da morte.
112.69. Em 16 de junho de 2004, por decisão unilateral de sua Assembléia Legislativa, o Estado do Ceará aprovou
a Lei nº 13.491, que concedeu “em favor da [s]enhora Albertina Viana Lopes, genitora do [s]enhor Damião
Ximenes Lopes, falecido na Casa de Repouso Guararapes, na cidade de Sobral, Estado do Ceará, em 4 de
outubro de 1999”, uma pensão mensal e vitalícia, que corresponde ao salário mínimo do Estado do Ceará,
reajustável pelo índice de revisão geral anual aplicado aos servidores públicos estaduais, que para o mês de
maio de 2006 alcançava a soma de R$323,40 (trezentos e vinte e três reais e quarenta centavos).104
J) Os familiares do senhor Damião Ximenes Lopes
112.70. As senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda, mãe e irmã, respectivamente, do senhor
Damião Ximenes Lopes, sofreram seqüelas físicas e psicológicas em conseqüência da morte da suposta
vítima. A senhora Albertina Viana Lopes sofreu depressões e problemas de saúde, tais como uma gastrite
nervosa e uma úlcera duodenal. A senhora Irene Ximenes Lopes Miranda sofreu depressão por mais de
três anos. Após a morte de seu irmão deixou de amamentar sua filha recém-nascida. Deixou de trabalhar e
não concluiu seu contrato de trabalho que se encerrava em 31 de dezembro de 2004. Na busca por justiça
que empreendeu junto aos órgãos judiciais e de direitos humanos, em virtude dos fatos deste caso, sofreu
e reviveu de maneira constante as circunstâncias da morte do senhor Damião Ximenes Lopes e teve de
separar-se de sua família por longos períodos.105
100. Cf. auditoria conjunta da Secretaria de Saúde e Assistência Social realizada na Casa de Repouso Guararapes em 5 de novembro de 1999
(expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo I, folhas 1625 a 1637).
101. Cf. Portaria nº 026 do Secretário de Saúde e Assistência Social, expedida em 2 de março de 2000, nota 90 supra; e ofício nº 232/2000/
SSAS, do Secretário de Saúde e Assistência Social, dirigido ao representante do Ministério Público no processo penal pela morte do senhor
Damião Ximenes Lopes em 3 de março de 2000 (expediente de anexos à contestação da demanda, anexo I, tomo I, folhas 1419 e 1420).
102. Cf. Portaria nº 113 expedida pela Secretaria de Saúde e Assistência Social do Município de Sobral em 10 de julho de 2000, nota 90 supra.
103. Cf. carta de concessão de benefício do Instituto Nacional de Previdência Social a Albertina Viana Lopes, de 21 de novembro de 1999
(expediente de anexos à contestação da demanda, anexo II, folhas 2348 e 2349).
104. Cf. Lei nº 13.491, de 16 de junho de 2004 (expediente do procedimento perante a Comissão, tomo I, folha 359); e extratos de pagamento
da pensão vitalícia de Albertina Viana Lopes, emitidos pelo Estado do Ceará – impressos da Internet – em 21 de junho de 2006 (expediente
de prova para melhor resolver, folhas 3706 a 3721). No “extrato de pagamento” mais atualizado que apresentou o Estado, referente a maio de
2006, consta que o valor da pensão é de R$323,40 (trezentos e vinte e três reais e quarenta centavos) e que o valor total a receber alcança a
soma de R$416,00 (quatrocentos e dezesseis reais), porquanto inclui um “complemento remuneratório” de R$92,60 (noventa e dois reais e
sessenta centavos).
105. Cf. depoimento de Irene Ximenes Lopes Miranda prestado na audiência pública realizada na Corte Interamericana em 30 de novembro de
169
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
112.71. Os senhores Francisco Leopoldino Lopes e Cosme Ximenes Lopes, pai e irmão, respectivamente, do
senhor Damião Ximenes Lopes, sofreram em conseqüência da morte da suposta vítima. O senhor
Francisco Leopoldino Lopes mantinha laços familiares com o filho Damião Ximenes Lopes e sofreu com
seu falecimento. O senhor Cosme Ximenes Lopes, irmão gêmeo da suposta vítima, que também esteve
internado em instituições psiquiátricas, mantinha um vínculo afetivo e uma relação de identificação com
o senhor Damião Ximenes Lopes. Ao receber a notícia da morte do irmão, entrou em estado de choque;
posteriormente, sofreu depressão e deixou de trabalhar por algum tempo.106
VIII
Violação dos Artigos 4.1 e 5.1 e 5.2 da Convenção Americana,
em relação com o Artigo 1.1 do mesmo tratado
(Direito à vida, à integridade pessoal e Obrigação de respeitar os direitos)
Alegações da Comissão
113. A Comissão alegou, inter alia, o seguinte:
a) Com relação à violação do direito à vida:
i. o Estado não cumpriu sua obrigação de proteger e preservar a vida do senhor Damião Ximenes Lopes.
Esta violação pode ser percebida não somente porque seus agentes causaram sua morte, mas porque
o Estado não exerceu devidamente a fiscalização da Casa de Repouso Guararapes; e
ii. a falta de investigação séria e punição dos responsáveis pela morte de Ximenes Lopes constitui uma
violação por parte do Estado de sua obrigação de garantir o direito à vida.
b) Com relação à violação do direito à integridade pessoal:
i. as condições de hospitalização na Casa de Repouso Guararapes eram per se incompatíveis com o respeito
à dignidade da pessoa humana; pelo simples fato de haver sido internado nessa instituição como paciente
do SUS, o senhor Damião Ximenes Lopes foi submetido a tratamento desumano ou degradante; e
ii. a contenção física aplicada ao senhor Damião Ximenes Lopes não levou em conta as normas
internacionais sobre a matéria. A suposta vítima não foi mantida em condições dignas, nem sob o
cuidado e a supervisão imediata e regular de pessoal qualificado em saúde mental.
c) Com relação ao reconhecimento de responsabilidade internacional, está de acordo com o
reconhecimento declarado pelo Estado, não há controvérsia a respeito dos fatos que antecederam a
morte do senhor Damião Ximenes Lopes, os quais são descritos na demanda.
Alegações dos representantes
114. Os representantes salientaram, inter alia, o seguinte:
a) Com relação à violação do direito à vida:
i. o Estado falhou em sua obrigação de preservar e proteger a vida do senhor Damião Ximenes Lopes,
já que não adotou medidas de prevenção para impedir sua morte, não fiscalizou nem monitorou o
funcionamento da Casa de Repouso Guararapes; e
ii. a falta de investigação séria e efetiva e de sanção dos responsáveis pela morte da suposta vítima
constitui violação do Estado de sua obrigação de garantir o direito à vida.
b) Com relação à violação do direito à integridade pessoal, o senhor Damião Ximenes Lopes foi
submetido a tratamentos cruéis, desumanos e degradantes na Casa de Repouso Guararapes. As
agressões foram perpetradas pelos indivíduos que detinham a custódia do senhor Damião Ximenes
Lopes e que deviam dele cuidar e resguardar sua saúde e sua integridade pessoal. As condições de
internação e os cuidados oferecidos por esse hospital autorizado pelo Sistema Único de Saúde eram,
2005, nota 38 supra; denúncia de Albertina Viana Lopes apresentada à Coordenação Municipal de Controle, Avaliação e Auditoria da Secretaria
de Saúde e Assistência Social em 13 de outubro de 1999, nota 49 supra; relatório da psiquiatra Lídia Dias Costa apresentado a pedido de Irene
Ximenes Lopes Miranda em 14 de dezembro de 2002, nota 38 supra; e relatório de sindicância elaborado a pedido da Coordenação Municipal
de Controle, Avaliação e Auditoria da Secretaria de Saúde e Assistência Social, emitido em 18 de fevereiro de 2000, nota 38 supra.
106. Cf. depoimento de Irene Ximenes Lopes Miranda prestado na audiência pública realizada na Corte Interamericana em 30 de novembro de
2005, nota 38 supra; e relatório da psiquiatra Lídia Dias Costa apresentado a pedido de Irene Ximenes Lopes Miranda, em 14 de dezembro de
2002, nota 38 supra.
170
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
per se, atentatórios ao direito à integridade pessoal.
c) Com relação ao reconhecimento de responsabilidade internacional, o Estado violou quatro de seus
deveres com relação aos pacientes da Casa de Repouso Guararapes: a) prevenir danos não naturais;
b) investigar e se manter informado sobre as condições do hospital; c) de monitorar e controlar
os funcionários; e d) não causar, de forma negligente ou intencional, a morte de pacientes que se
encontrassem sob sua custódia.
Alegações do Estado
115. O Estado manifestou, inter alia, que reconhece sua responsabilidade internacional pela violação dos artigos 4 e
5 da Convenção Americana, em demonstração de seu compromisso com a proteção dos direitos humanos.
Considerações da Corte
116. O artigo 1.1 da Convenção Americana estabelece que:
Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela
reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição,
sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de
qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra
condição social.
117. O parágrafo 1 do artigo 4 da Convenção dispõe que:
[t]oda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em
geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.
118. O artigo 5 da Convenção Americana estabelece que:
1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.
2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes.
Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser
humano.
[…]
119. A Corte reitera que o reconhecimento de responsabilidade efetuado pelo Estado pela violação dos artigos 4 e
5 da Convenção, em detrimento do senhor Damião Ximenes Lopes, constitui uma contribuição positiva para
o desenvolvimento desse processo e reveste fundamental importância para a vigência dos princípios que
inspiram a Convenção Americana107 no Estado.
120. O Tribunal tem por estabelecido que na Casa de Repouso Guararapes existia um contexto de violência
contra as pessoas ali internadas, que estavam sob a ameaça constante de serem agredidas diretamente
pelos funcionários do hospital ou de que estes não impedissem as agressões entre os pacientes, uma vez
que era freqüente que os funcionários não fossem capacitados para trabalhar com pessoas portadoras de
deficiência mental. Os doentes se encontravam sujeitos a violência também quando seu estado de saúde
se tornava crítico, já que a contenção física e o controle de pacientes que entravam em crise eram muitas
vezes realizados com a ajuda de outros pacientes. A violência, no entanto, não era o único obstáculo para
a recuperação dos pacientes da Casa de Repouso Guararapes, mas também as precárias condições de
manutenção, conservação e higiene, bem como da assistência médica, igualmente constituíam uma afronta
à dignidade das pessoas ali internadas. Na Casa de Repouso Guararapes o armazenamento dos alimentos
era inadequado; as condições higiênicas e sanitárias eram precárias, os banheiros se achavam danificados,
sem chuveiro, lavatório ou cesta de lixo, e o serviço sanitário se encontrava sem cobertura nem higiene; não
havia médico de plantão, o atendimento médico aos pacientes era freqüentemente prestado na recepção do
hospital e algumas vezes não havia medicação; faltavam aparelhos essenciais na sala de emergência, tais
como tubos de oxigênio, “aspirador de secreção” e vaporizador; os prontuários médicos não registravam a
evolução dos pacientes nem os relatórios circunstanciados de acompanhamento que deviam apresentar os
profissionais de assistência social, psicologia, terapia ocupacional e enfermagem; o proprietário do hospital
não se encontrava presente de maneira assídua, motivo por que era evidente a falta de administração. Em
resumo, e conforme salientou a Comissão de Sindicância instaurada posteriormente à morte do senhor
107. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 55; Caso Blanco Romero, nota 20 supra, par. 100; e Caso García Asto e Ramírez Rojas, nota
20 supra, par. 60.
171
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Damião Ximenes Lopes, a Casa de Repouso Guararapes “não oferec[ia] as condições exigíveis e [era]
incompatível com o exercício ético-profissional da medicina” (par. 112.56, 112.57, 112.61, 112.63, 112.64 e
112.65 supra).
121. A Corte considerou provado que no momento da visita de Albertina Viana Lopes à Casa de Repouso Guararapes,
em 4 de outubro de 1999, o senhor Damião Ximenes Lopes se encontrava sangrando, apresentava hematomas,
tinha a roupa rasgada, estava sujo e cheirando a excremento, com as mãos amarradas para trás, com dificuldade
para respirar, agonizante, gritando e pedindo socorro à polícia. Posteriormente a esse encontro, deram-lhe
um banho ao senhor Damião Ximenes Lopes e este, ainda com as mãos atadas, caiu da cama. A suposta
vítima permaneceu no solo, foi medicada e posteriormente faleceu, sem a presença ou supervisão de médico
algum. A necropsia realizada ressaltou que o corpo apresentava escoriações localizadas na região nasal, ombro
direito, parte anterior dos joelhos e do pé esquerdo, equimoses localizadas na região do olho esquerdo, ombro
homolateral e punhos, motivo por que esta Corte considerou provado que a morte se deu em circunstâncias
violentas (par. 112.9, 112.10, 112.11 e 112.14 supra).
122. No reconhecimento parcial de responsabilidade internacional, o Estado reconheceu os fatos da demanda
relacionados com o falecimento do senhor Damião Ximenes Lopes e a falta de prevenção para superar as
condições que permitiram que tal incidente ocorresse, bem como a precariedade do sistema de assistência
mental a que a suposta vítima foi submetida, no momento dos fatos, o que constituiu uma violação do artigo 4
da Convenção. O Estado, ademais, reconheceu os maus-tratos de que o senhor Ximenes Lopes foi vítima antes
de sua morte, em violação do artigo 5 da Convenção (par. 36, 63 e 66 supra).
123. Não obstante, a Corte considera pertinente analisar certos aspectos relativos à violação dos direitos consagrados
nos artigos 4 e 5 da Convenção neste caso, já que esta é a primeira vez que o Tribunal tem a oportunidade de
se pronunciar sobre a violação dos direitos de uma pessoa portadora de deficiência mental. A Corte analisará
o tema sob duas perspectivas: A) os direitos das pessoas portadoras de deficiência mental; e B) os deveres do
Estado com relação a essas pessoas.
A) Os direitos das pessoas portadoras de deficiência mental
1. O direito à vida e à integridade pessoal
124. Esta Corte reiteradamente afirmou que o direito à vida é um direito humano fundamental, cujo gozo constitui
um pré-requisito para o desfrute de todos os demais direitos humanos. Em razão do caráter fundamental do
direito à vida, não são admissíveis enfoques restritivos a tal direito.108
125. Em virtude deste papel fundamental que se atribui ao direito à vida na Convenção, a Corte tem afirmados em sua
jurisprudência constante que os Estados têm a obrigação de garantir a criação das condições necessárias para
que não se produzam violações a esse direito inalienável e, em particular, o dever de impedir que seus agentes
atentem contra ele.109 O artigo 4 da Convenção garante em essência não somente o direito de todo ser humano
de não ser privado da vida arbitrariamente, mas também o dever dos Estados de adotar as medidas necessárias
para criar um marco normativo adequado que dissuada qualquer ameaça ao direito à vida; estabelecer um
sistema de justiça efetivo, capaz de investigar, castigar e reparar toda privação da vida por parte de agentes
estatais ou particulares; e salvaguardar o direito de que não se impeça o acesso a condições que assegurem
uma vida digna, o que inclui a adoção de medidas positivas para prevenir a violação desse direito.110
108. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 82 e 83; Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, nota 4 supra, par. 150, 151 e 152; Caso do
Massacre de Pueblo Bello, nota 25 supra, par. 119 e 120; Caso do Massacre de Mapiripán, nota 21 supra, par. 232; Caso Comunidade Indígena
Yakye Axa, nota 30 supra, par. 161 e 162; Caso Huilca Tecse. Sentença de 3 de março de 2005. Série C, nº 121, par. 65 e 66; Caso “Instituto de
Reeducação do Menor”. Sentença de 2 de setembro de 2004. Série C, nº 112, par. 156 e 158; Caso dos Irmãos Gómez Paquiyauri. Sentença
de 8 de julho de 2004. Série C, nº 110, par. 128 e 129; Caso 19 Comerciantes. Sentença de 5 de julho de 2004. Série C, nº 109, par. 153; Caso
Myrna Mack Chang. Sentença de 25 de novembro de 2003. Série C, nº 101, par. 152 e 153; Caso Juan Humberto Sánchez, nota 30 supra, par.
110; e Caso dos “Meninos de Rua” (Villagrán Morales e outros). Sentença de 19 de novembro de 1999. Série C, nº 63, par. 144.
109. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 83; Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, nota 4 supra, par. 151; Caso do Massacre de
Pueblo Bello, nota 25 supra, par. 120; Caso Huilca Tecse, nota 108 supra, par. 65; Caso “Instituto de Reeducação do Menor”, nota 108 supra,
par. 156; Caso dos Irmãos Gómez Paquiyauri, nota 108 supra, par. 128; Caso 19 Comerciantes, nota 108 supra, par. 153; Caso Myrna Mack
Chang, nota 108 supra, par. 152; Caso Juan Humberto Sánchez, nota 30 supra, par. 110; e Caso dos “Meninos de Rua” (Villagrán Morales e
outros), nota 108 supra, par. 144.
110. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 85; Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, nota 4 supra, par. 153; Caso do Massacre de
Pueblo Bello, nota 25 supra, par. 120; Caso do Massacre de Mapiripán, nota 21 supra, par. 232; Caso Comunidade Indígena Yakye Axa, nota
30 supra, par. 162; Caso Huilca Tecse, nota 108 supra, par. 66; Caso “Instituto de Reeducação do Menor”, nota 108 supra, par. 158; Caso dos
Irmãos Gómez Paquiyauri, nota 108 supra, par. 129; Caso 19 Comerciantes, nota 108 supra, par. 153; Caso Myrna Mack Chang, nota 108
supra, par. 153; Caso Juan Humberto Sánchez, nota 30 supra, par. 110; e Caso dos “Meninos de Rua” (Villagrán Morales e outros), nota 108
supra, par. 144.
172
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
126. A Convenção Americana, por sua vez, reconhece expressamente o direito à integridade pessoal, bem jurídico
cuja proteção encerra a finalidade principal da proibição imperativa da tortura e penas ou tratamentos cruéis,
desumanos ou degradantes. Este Tribunal considerou de maneira constante em sua jurisprudência que essa
proibição pertence hoje ao domínio do jus cogens.111 O direito à integridade pessoal não pode ser suspenso em
circunstância alguma.112
127. A Corte já estabeleceu que “[a] infração do direito à integridade física e psíquica das pessoas é uma espécie de
violação que apresenta diversas conotações de grau e que abrange desde a tortura até outro tipo de vexames
ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes cujas seqüelas físicas e psíquicas variam de intensidade
segundo os fatores endógenos e exógenos que deverão ser demonstrados em cada situação concreta”,113
ou seja, as características pessoais de uma presunta vítima de tortura ou tratamentos cruéis, desumanos ou
degradantes devem ser levadas em conta no momento de determinar se a integridade pessoal foi violada, já
que essas características podem mudar a percepção da realidade do indivíduo e, por conseguinte, aumentar o
sofrimento e o sentido de humilhação quando são submetidas a certos tratamentos.
2. O direito ao respeito à dignidade e à autonomia das pessoas portadoras de deficiência mental e a um
atendimento médico eficaz
128. Os Estados têm o dever de assegurar atendimento médico eficaz às pessoas portadoras de deficiência mental.114
Essa obrigação se traduz no dever estatal de assegurar seu acesso a serviços de saúde básicos; à promoção da
saúde mental; à prestação de serviços dessa natureza que sejam o menos restritivos possível; e à prevenção
das deficiências mentais.115
129. Em virtude de sua condição psíquica e emocional, as pessoas portadoras de deficiência mental são particularmente
vulneráveis a qualquer tratamento de saúde e essa vulnerabilidade se vê aumentada quando essas pessoas
ingressam em instituições de tratamento psiquiátrico. Essa vulnerabilidade aumentada se verifica em razão do
desequilíbrio de poder existente entre os pacientes e o pessoal médico responsável por seu tratamento e pelo
alto grau de intimidade que caracteriza os tratamentos das doenças psiquiátricas.116
130. A Corte considera que todo tratamento de saúde dirigido a pessoas portadoras de deficiência mental deve
ter como finalidade principal o bem-estar do paciente e o respeito a sua dignidade como ser humano, que se
traduz no dever de adotar como princípios orientadores do tratamento psiquiátrico o respeito à intimidade
e à autonomia das pessoas. O Tribunal reconhece que este último princípio não é absoluto, já que a própria
necessidade do paciente pode exigir algumas vezes a adoção de medidas sem seu consentimento. A deficiência
mental, entretanto, não deve ser entendida como uma incapacidade para que a pessoa de determine e deve
ser aplicada a presunção de que as pessoas portadoras desse tipo de deficiências são capazes de expressar
sua vontade, a qual deve ser respeitada pelo pessoal médico e pelas autoridades. Quando seja comprovada a
impossibilidade do doente para consentir, caberá aos seus familiares, representantes legais ou à autoridade
competente emitir seu consentimento quanto ao tratamento a ser empregado.117
111. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 117; Caso García Asto e Ramírez Rojas, nota 20 supra, par. 222; Caso Fermín Ramírez.
Sentença de 20 de junho de 2005. Série C, nº 126, par. 117; Caso Caesar. Sentença de 11 de março de 2005. Série C, nº 123, par. 59; Caso
Lori Berenson Mejía, nota 24 supra, par. 100; Caso De la Cruz Flores. Sentença de 18 de novembro de 2004. Série C, nº 115, par. 125; Caso
Tibi. Sentença de 7 de setembro de 2004. Série C, nº 114, par. 143; Caso dos Irmãos Gómez Paquiyauri, nota 108 supra, par. 111 e 112; Caso
Maritza Urrutia. Sentença de 27 de novembro de 2003. Série C, nº 103, par. 89 e 92; Caso Bámaca Velásquez. Sentença de 25 de novembro de
2000. Série C, nº 70, par. 154; e Caso Cantoral Benavides. Sentença de 18 de agosto de 2000. Série C, nº 69, par. 95.
112. Cf. artigos 5 e 27 da Convenção Americana. Ver nesse sentido Caso do Massacre de Pueblo Bello, nota 25 supra, par. 119; e Caso
“Instituto de Reeducação do Menor”, nota 108 supra, par. 157.
113. Cf. Caso Caesar, nota 111 supra, par. 69; e Caso Loayza Tamayo. Sentença de 17 de setembro de 1997. Série C, nº 33, par. 57.
114. Cf. Princípios para a Proteção dos Doentes Mentais e para a Melhoria do Atendimento de Saúde Mental, nota 32 supra, princípio 1;
Organização Mundial da Saúde. Divisão de Saúde Mental e Prevenção do Abuso de Substâncias. Dez Princípios Básicos das Normas para o
Atendimento da Saúde Mental, nota 37 supra, princípio 2; Normas Uniformes sobre Igualdade de Oportunidades para as Pessoas Portadoras
de Deficiência. Resolução nº 48/96 da Assembléia Geral da ONU, Documento A/48/49 (1993), art. 2; Declaração dos Direitos do Retardado
Mental. Resolução da Assembléia Geral da ONU, Documento A/8429 (1971), art. 2; e Programa de Ação Mundial para os Impedidos. Resolução
nº 37/52 da Assembléia Geral da ONU, Documento A/37/51 (1982), par. 95 a 107.
115. Cf. Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, nota
35 supra, artigo III.2; e Organização Mundial da Saúde. Divisão de Saúde Mental e Prevenção do Abuso de Substâncias. Dez Princípios Básicos
das Normas para o Atendimento da Saúde Mental, nota 37 supra, princípios 1, 2 e 4.
116. Cf. Normas Uniformes sobre Igualdade de Oportunidades para as Pessoas Portadoras de Deficiência, nota 114 supra, art. 9.4; Comitê
de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Comentário Geral nº 5, “Pessoas portadoras de deficiência”, nota 35 supra, par. 9; e Normas do
Comitê Europeu para a Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos ou Degradantes, CPT/Inf/E (2002) 1 – Rev. 2004, par. 51.
Nesse sentido, Cf. European Court of Human Rights, Keenan v. United Kingdom, Application no. 27229/95, judgment of 3 April 2001, p. 111, e
European Court of Human Rights, Herczegfalvy v. Austria, Application no. 10533/83, judgment of 24 September 1992, p. 82.
117. Cf. Princípios para a Proteção dos Doentes Mentais e para a Melhoria do Atendimento de Saúde Mental, nota 32 supra, princípios 9.4 e
11; Organização Mundial da Saúde. Divisão de Saúde Mental e Prevenção do Abuso de Substâncias. Dez Princípios Básicos das Normas para
173
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
i)
Cuidados mínimos e condições de internação dignas
131. Os Princípios para a Proteção dos Doentes Mentais e para a Melhoria do Atendimento de Saúde Mental,
das Nações Unidas, oferecem um guia útil para determinar se o atendimento médico observou os cuidados
mínimos com vistas à preservação da dignidade do paciente. Os princípios 1, 8 e 9 estabelecem as liberdades
fundamentais e os direitos básicos e as normas de atendimento médico e do tratamento a ser prestado às
pessoas portadoras de deficiência mental. Ademais, o lugar e as condições físicas em que se desenvolve o
tratamento devem estar de acordo com o respeito à dignidade da pessoa, de acordo com o princípio 13.
132. A Corte considera que as precárias condições de funcionamento da Casa de Repouso Guararapes, tanto as
condições gerais do lugar quanto o atendimento médico, se distanciavam de forma significativa das adequadas
à prestação de um tratamento de saúde digno, particularmente em razão de que afetavam pessoas de grande
vulnerabilidade por sua deficiência mental, e eram per se incompatíveis com uma proteção adequada da
integridade pessoal e da vida.
ii) O uso da sujeição
133. Entende-se sujeição como qualquer ação que interfira na capacidade do paciente de tomar decisões ou que
restrinja sua liberdade de movimento. A Corte observa que o uso da sujeição apresenta um alto risco de
ocasionar danos ao paciente ou sua morte, e que as quedas e lesões são comuns durante esse procedimento.118
134. O Tribunal considera que a sujeição é uma das medidas mais agressivas a que pode ser submetido um paciente
em tratamento psiquiátrico. Para que esteja de acordo com o respeito à integridade psíquica, física e moral da
pessoa, segundo os parâmetros exigidos pelo artigo 5 da Convenção Americana, deve ser empregada como
medida de último recurso e unicamente com a finalidade de proteger o paciente, ou o pessoal médico e terceiros,
quando o comportamento da pessoa em questão seja tal que esta represente uma ameaça à segurança daqueles.
A sujeição não pode ter outro motivo senão este e somente deve ser executada por pessoal qualificado e não
pelos pacientes.119
135. Ademais, considerando que todo tratamento deve ser escolhido com base no melhor interesse do paciente e
em respeito a sua autonomia, o pessoal médico deve aplicar o método de sujeição que seja menos restritivo,
depois de uma avaliação de sua necessidade, pelo período que seja absolutamente necessário, e em condições
que respeitem a dignidade do paciente e que minimizem os riscos de deterioração de sua saúde.120
136. O senhor Damião Ximenes Lopes foi submetido a sujeição com as mãos amarradas para trás entre a noite
do domingo e a manhã da segunda-feira, sem uma reavaliação da necessidade de prolongar a contenção, e
se permitiu que caminhara sem a adequada supervisão. Esta forma de sujeição física a que foi submetida a
suposta vítima não atende à necessidade de proporcionar ao paciente um tratamento digno nem a proteção de
sua integridade psíquica, física ou moral.
B) Os deveres do Estado com relação às pessoas portadoras de deficiência mental
137. A Corte já salientou que da obrigação geral de garantia dos direitos à vida e à integridade física nascem deveres
especiais de proteção e prevenção, os quais, neste caso, se traduzem em deveres de cuidar e de regular.
1. O dever de cuidar
138. Com a finalidade de determinar as obrigações do Estado com relação às pessoas portadoras de deficiência
o Atendimento da Saúde Mental, nota 37 supra, princípios 5, 6 e 9; Organização Pan-Americana da Saúde, Declaração de Caracas, aprovada
pela Conferência Regional para a Reestruturação da Atenção Psiquiátrica na América Latina, em 14 de novembro 1990, art. 3; Associação
Psiquiátrica Mundial (APM), Declaração de Madri sobre Normas Éticas para a Prática Psiquiátrica, aprovada pela Assembléia Geral da APM em
25 de agosto de 1996, revisada em 26 de agosto de 2002, preâmbulo e par. 4; e World Psychiatric Association (WPA), Declaration of Hawaii/
II, adopted by the WPA General Assembly on 10th July 1983, p. 2 e 5.
118. Cf. Normas do Comitê Europeu para a Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos ou Degradantes, CPT/Inf/E (2002)
1 – Rev. 2004. Extraído do 8º Relatório Geral CPT/INF(98) 12, par. 47 a 49; American Hospital Association/National Association of Psychiatric
Health Systems, Guiding Principles on Restraint and Seclusion for Behavioral Health Services, 25 February 1999; American Geriatrics Society
Position Statement: Guidelines For Restraint Use, Last Updated January 1st, 1997; e American Medical Association, Guidelines for the Use of
Restraints in Long-Term Care Facilities, June 1989, p. 5.
119. Cf. Princípios para a Proteção dos Doentes Mentais e para a Melhoria do Atendimento de Saúde Mental, nota 32 supra, principio 11.11.
120. Cf. Princípios para a Proteção dos Doentes Mentais e para a Melhoria do Atendimento de Saúde Mental, nota 32 supra, princípio 11.11;
Declaração de Madri sobre Normas Éticas para a Prática Psiquiátrica, nota 117 supra, preâmbulo; Organização Mundial da Saúde. Divisão de
Saúde Mental e Prevenção do Abuso de Substâncias. Dez Princípios Básicos das Normas para o Atendimento da Saúde Mental, nota 117 supra,
princípio 4.3; e Declaration of Hawaii/II, adopted by the WPA General Assembly on 10th July 1983, nota 37 supra, p. 1.
174
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
mental, a Corte julga necessário levar em conta, em primeiro lugar, a posição especial de garante que assume o
Estado a respeito das pessoas que se encontram sob sua guarda ou cuidado, a quem o Estado tem a obrigação
positiva de proporcionar condições necessárias para desenvolver uma vida digna.121
139. Em segundo lugar, o Tribunal considera que o acima exposto se aplica de maneira especial às pessoas que
se encontrem recebendo atendimento médico, uma vez que a finalidade última da prestação de serviços de
saúde é a melhoria da condição da saúde física ou mental do paciente, o que aumenta significativamente as
obrigações do Estado e dele exige a adoção das medidas disponíveis e necessárias para impedir a deterioração
da condição do paciente e otimizar sua saúde.
140. Finalmente, os cuidados de que são titulares todas as pessoas que estejam recebendo assistência médica
alcançam sua máxima exigência quando se referem a pacientes com deficiência mental, dada sua particular
vulnerabilidade quando se encontram em instituições psiquiátricas.
2. O dever de regular e fiscalizar
141. O Tribunal dispôs que o dever dos Estados de regular e fiscalizar as instituições que prestam serviço de saúde,
como medida necessária para a devida proteção da vida e integridade das pessoas sob sua jurisdição, abrange
tanto as entidades públicas e privadas que prestam serviços públicos de saúde quanto aquelas instituições
que prestam exclusivamente serviços privados de saúde (par. 89 e 90 supra). Especialmente com relação às
instituições que prestam serviço público de saúde, como fazia a Casa de Repouso Guararapes, o Estado não
somente deve regular-las e fiscalizá-las, mas tem, ademais, o especial dever de cuidado com relação às pessoas
ali internadas.
142. Neste caso a Casa de Repouso Guararapes funcionava no âmbito do sistema público de saúde e o Estado estava
obrigado a regulamentá-la e fiscalizá-la, não somente em virtude de suas obrigações decorrentes da Convenção
Americana, mas também em razão de sua normativa interna. Segundo o disposto no artigo 197 da Constituição,
“são de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei,
sobre sua regulamentação, fiscalização e controle [...]”. Igualmente, o artigo 200 da Constituição ressalta que
“[a]o [S]istema [Ú]nico de [S]aúde compete […] controlar e fiscalizar procedimentos [.. e] executar as ações
de vigilância sanitária [...]”. Por sua vez, o artigo 6° da Lei nº 8.080, de 1990, dispõe que “[e]stão incluídas
ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS), [inter alia,] a execução de ações […tanto] de
vigilância sanitária, [a qual] se entende por um conjunto de ações capaz de eliminar, diminuir ou prevenir riscos
à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes […] da prestação de serviços de interesse da saúde,
[bem como] o controle e a fiscalização de serviços, produtos e substâncias de interesse para a saúde [...].”
143. O Tribunal observa que o Estado conhecia as condições de internação que a Casa de Repouso Guararapes
oferecia na época dos fatos. A violência contra os pacientes já havia sido o contexto da morte de duas
pessoas internadas no referido hospital (par. 112.58 supra). Além disso, em 15 de maio de 1996, o Grupo de
Acompanhamento de Assistência Psiquiátrica do Ministério da Saúde (GAP) havia emitido um relatório sobre
o resultado da inspeção realizada na Casa de Repouso Guararapes, em que se recomendava o fechamento de
duas enfermarias do hospital, por falta de condições de funcionamento, infiltração e outras irregularidades (par.
112.62 supra).
144. A Corte observa que foi até 21 de outubro de 1999 que os funcionários do Departamento de Vigilância Sanitária
da Secretaria de Saúde e Assistência Social realizaram uma inspeção na Casa de Repouso Guararapes para
averiguar se o hospital obedecia às especificações da normativa pertinente. Ademais, até 4 de novembro de
1999, a Coordenação de Controle, Avaliação e Auditoria e o Médico Auditor do Sistema Municipal de Auditoria
visitaram a Casa de Repouso Guararapes. Coincidentemente, os três órgãos concluíram que o hospital
não cumpria as exigências das normas pertinentes e recomendaram que fossem sanadas de imediato as
irregularidades (par. 112.63 e 112.64 supra).
145. Apesar de a competência contenciosa da Corte ter sido reconhecida pelo Estado em 10 de dezembro de 1998,
o Tribunal considera que o lapso de 10 meses e 11 dias desta data até 21 de outubro de 1999, período em que
121. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 120; Caso López Álvarez. Sentença de 1º de fevereiro de 2006. Série C, nº 141, par. 104 a 106;
Caso García Asto e Ramírez Rojas, nota 20 supra, par. 221; Caso Comunidade Indígena Yakye Axa, nota 30 supra, par. 162, Caso Lori Berenson
Mejía, nota 24 supra, par. 102; Caso Tibi, nota 111 supra, par. 150; Caso “Instituto de Reeducação do Menor”, nota 108 supra, par. 152; Caso
dos Irmãos Gómez Paquiyauri, nota 108 supra, par. 98; Caso Bulacio. Sentença de 18 de setembro de 2003. Série C, nº 100, par. 138; e Caso
Juan Humberto Sánchez, nota 30 supra, par. 111. No mesmo sentido, Caso da Penitenciária Urso Branco. Medidas Provisórias. Resolução da
Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 21 de setembro de 2005, sexto considerando, e Caso dos Irmãos Gómez Paquiyauri. Medidas
Provisórias. Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 7 de maio de 2004, décimo terceiro considerando.
175
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
medida alguma foi adotada para melhorar as precárias condições de atendimento de saúde na Casa de Repouso
Guararapes, não é compatível com o dever do Estado de regulamentar o atendimento de saúde prestado às
pessoas sob sua jurisdição, em razão de que já havia uma situação irregular desde 15 de maio de 1996.
146. O Estado tem responsabilidade internacional por descumprir, neste caso, seu dever de cuidar e de prevenir a
vulneração da vida e da integridade pessoal, bem como seu dever de regulamentar e fiscalizar o atendimento
médico de saúde, os quais constituem deveres especiais decorrentes da obrigação de garantir os direitos
consagrados nos artigos 4 e 5 da Convenção Americana.
3. O dever de investigar
147. A obrigação de garantir os direitos humanos consagrados na Convenção não se esgota na existência de uma
ordem normativa destinada a tornar possível o cumprimento desta obrigação, mas compreende a necessidade
de uma conduta governamental que assegure a existência, na realidade, de uma eficaz garantia do livre e
pleno exercício dos direitos humanos.122 Nesse sentido, uma dessas condições para garantir efetivamente
o direito à vida e à integridade pessoal é o cumprimento do dever de investigar as afetações a eles, o
que decorre do artigo 1.1 da Convenção em conjunto com o direito substantivo que deve ser amparado,
protegido ou garantido.123
148. Em virtude do acima exposto, o Estado tem o dever de iniciar ex officio e sem demora uma investigação séria,
imparcial e efetiva, que não se empreenda como uma mera formalidade condenada de antemão a ser infrutífera.124
Esta investigação deve ser realizada por todos os meios legais disponíveis e orientada à determinação da
verdade e à investigação, ajuizamento e punição de todos os responsáveis pelos fatos, especialmente quando
estejam ou possam estar implicados agentes estatais.125
149. Para determinar se a obrigação de proteger os direitos à vida e à integridade pessoal mediante uma investigação
séria do ocorrido foi cumprida cabalmente, é preciso examinar os procedimentos abertos internamente,
destinados a elucidar os fatos, o que se efetuará no Capítulo X desta Sentença.
***
150. As anteriores considerações levam a Corte a concluir que, por haver faltado com seus deveres de respeito,
prevenção e proteção, com relação à morte e os tratos cruéis, desumanos e degradantes sofridos pelo senhor
Damião Ximenes Lopes, o Estado tem responsabilidade pela violação dos direitos à vida e à integridade pessoal
consagrados nos artigos 4.1 e 5.1 e 5.2 da Convenção Americana, em relação com o artigo 1.1 desse mesmo
tratado, em detrimento do senhor Damião Ximenes Lopes.
IX
Violação do Artigo 5 da Convenção Americana
em relação com o Artigo 1.1 do mesmo tratado
(Direito à integridade pessoal e Obrigação de respeitar os direitos)
151. Os representantes alegaram no escrito de alegações finais que os familiares do senhor Damião Ximenes Lopes
são supostas vítimas da violação do artigo 5 da Convenção Americana, em relação com o artigo 1.1 desse
instrumento, com base nos fatos descritos na demanda sobre a morte do senhor Ximenes Lopes e aceitos pelo
Estado em seu reconhecimento de responsabilidade. Consideram, por conseguinte, que o Estado deve reparar
devidamente os familiares do senhor Damião Ximenes Lopes por essa violação.
152. Nem a Comissão nem o Estado apresentaram alegações acerca da referida violação do artigo 5 da Convenção,
com respeito aos familiares da suposta vítima.
122. Cf. Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, nota 4 supra, par. 167; e Caso do Massacre de Puerto Bello, nota 25 supra, par. 142.
123. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 92; Caso do Massacre de Puerto Bello, nota 25 supra, par. 142; e Caso do Massacre de
Mapiripán, nota 21 supra, par. 233.
124. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 92 e 93; Caso do Massacre de Puerto Bello, nota 25 supra, par. 143; e Caso do Massacre de
Mapiripán, nota 21 supra, par. 219 e 223.
125. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 94; Caso do Massacre de Puerto Bello, nota 25 supra, par. 143; e Caso da Comunidade
Moiwana. Sentença de 15 de junho de 2005. Série C, nº 124, par. 203.
176
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
Considerações da Corte
153. O artigo 1.1 da Convenção Americana estabelece que:
Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela
reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição,
sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de
qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra
condição social.
154. O artigo 5 da Convenção Americana dispõe que:
1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.
[…]
155. Com respeito à alegada violação do artigo 5 da Convenção Americana, mencionada somente pelos representantes
em suas alegações finais, que não consta do escrito de solicitações e argumentos, este Tribunal considera que
esta alegação é extemporânea; não teria impedimento, no entanto, para analisá-la em conformidade com o
princípio iuria novit curia.126
156. Esta Corte salientou, em reiteradas oportunidades,127 que os familiares das vítimas de violações dos direitos
humanos podem ser, por sua vez, vítimas. O Tribunal considerou violado o direito à integridade psíquica e
moral de alguns familiares das vítimas em virtude do sofrimento adicional por que passaram, em conseqüência
das circunstâncias especiais das violações praticadas contra seus seres queridos e das posteriores ações ou
omissões das autoridades estatais frente aos fatos.128
157. Analisadas as circunstâncias do caso, com base na Convenção Americana, e à luz do princípio iura novit curia,
a Corte considera provado o sofrimento da senhora de Albertina Viana Lopes, mãe do senhor Damião Ximenes
Lopes, pelo tratamento a ele dado pelo Estado, que culminou com sua morte. Foi ela quem entregou o filho
à guarda da Casa de Repouso Guararapes, por encontrar-se enfermo, à espera de sua recuperação. Três dias
depois da internação, no entanto, o encontrou em condições deploráveis e nada pôde fazer por ele. Ela tomou
conhecimento do falecimento do filho ao chegar a sua casa depois de havê-lo deixado no hospital. Tudo isso
lhe causou grande dor e tristeza. Depois da morte do filho sofreu grandes depressões e problemas de saúde. A
esse respeito, sua filha, Irene Ximenes Lopes Miranda, na audiência pública perante esta Corte, declarou que:
[sua mãe] ficou com a vida completamente arruinada, até hoje sofre de depressão e diz que tem vontade
de morrer, perdeu o gosto pela vida, também teve uma gastrite nervosa e em conseqüência uma úlcera
duodenal que [...] foi tratada com muita dificuldade […].
158. Igualmente, de acordo com as particularidades do caso, este Tribunal estima necessário considerar a situação
do senhor Francisco Leopoldino Lopes, pai do senhor Damião Ximenes Lopes, da senhora Irene Ximenes Lopes
Miranda e do senhor Cosme Ximenes Lopes, estes últimos irmãos da suposta vítima, já que, segundo o alegado
pelos representantes e manifestado pela senhora Irene Ximenes Lopes Miranda, entre os diversos familiares do
senhor Damião Ximenes Lopes, eram sua mãe e seu pai, bem como os mencionados irmãos em particular, as
pessoas afetivamente mais próximas dele.
159. A Corte considerou provado o sofrimento e angústia do pai da suposta vítima, senhor Francisco Leopoldino
Lopes, que, embora estivesse separado da mãe do senhor Damião Ximenes Lopes, não havia rompido os laços
familiares com o filho (par. 111.71 supra). O senhor Francisco Leopoldino Lopes sofreu com o falecimento
do filho, que era tão jovem quando morreu, e viveu por muito tempo com um desejo de vingança, segundo
declarou a senhora Irene Ximenes Lopes Miranda perante a Corte.
160. A irmã do senhor Damião Ximenes Lopes, ademais do sofrimento e tristeza que lhe causou a morte do irmão,
sofreu seqüelas psicológicas, como uma depressão que durou mais de três anos, o que afetou suas relações
familiares e a fez perder a capacidade de amamentar sua filha recém-nascida. Tendo um contrato de trabalho
que se estenderia até 31 de dezembro de 2004, abandonou-o. Sofreu e reviveu de maneira constante as
126. Cf. Caso das Meninas Yean e Bosico. Sentença de 8 de setembro de 2005. Série C, nº 130, par. 204; Caso Cantos. Sentença de 28 de
novembro de 2002. Série C, nº 97, par. 58; e Caso Hilaire, Constantine e Benjamin e outros. Sentença de 21 de junho de 2002. Série C, nº 94,
par. 107.
127. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 128; Caso López Álvarez, nota 121 supra, par. 119; e Caso do Massacre de Pueblo Bello, nota
25 supra, par. 154.
128. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 128; Caso López Álvarez, nota 121 supra, par. 119; e Caso do Massacre de Pueblo Bello, nota
25 supra, par. 154.
177
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
circunstâncias da morte do irmão, Damião Ximenes Lopes, perante os órgãos judiciais e de direitos humanos,
uma vez que se dedicou à busca da verdade e da justiça com relação a esses acontecimentos, para o que
participou ativamente do processo judicial interno e dos trâmites seguidos perante a Comissão e agora perante
esta Corte. Em virtude disso, separou-se da família por longos períodos.
161. A angústia que sofreu a irmã do senhor Damião Ximenes Lopes se observa na declaração prestada na audiência
pública perante a Corte, quando manifestou que:
no dia do enterro [do] irmão no cemitério [ela] se ajoelhou sobre o caixão dele e jur[ou] que [sua] alma
não sossega[ria] enquanto não houvesse justiça no caso [de Damião Ximenes Lopes], e [faz] seis anos
que [ela] busca justiça […].
162. O senhor Cosme Ximenes Lopes, que também esteve internado em instituições psiquiátricas, em razão do
vínculo afetivo e da identificação que havia entre os dois irmãos pelo fato de serem gêmeos, sofreu com a perda
do senhor Damião Ximenes Lopes. Logo que recebeu a notícia da morte do irmão, entrou em estado de choque;
em seguida, entrou em depressão e deixou de trabalhar.
163. A Corte considera, com base no acima exposto, que o Estado tem responsabilidade pela violação do direito à
integridade pessoal consagrado no artigo 5 da Convenção Americana, em relação com o artigo 1.1 do mesmo
tratado, em detrimento das senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda e dos senhores
Francisco Leopoldino Lopes e Cosme Ximenes Lopes.
X
Violação dos Artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana
em relação com o Artigo 1.1 do mesmo tratado
(Direito às Garantias judiciais, à Proteção judicial e Obrigação de respeitar os direitos)
Alegações da Comissão
164. Com relação à suposta violação dos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção, em detrimento dos familiares do senhor
Damião Ximenes Lopes, a Comissão Interamericana alegou, inter alia, que:
a) no caso sub judice a falta de efetividade do processo interno pode ser demonstrada de duas maneiras:
pelas omissões das autoridades que deixaram de realizar ações e investigações fundamentais para
recolher todas as provas possíveis a fim de determinar a verdade dos fatos e pelas deficiências e
falhas nas ações efetuadas;
b) os erros na investigação mostram que as autoridades do Estado não procuraram efetivamente
elucidar a verdade sobre a morte da suposta vítima por meio de uma investigação imediata, séria e
exaustiva;
c) a notitia criminis sobre a morte da suposta vítima chegou ao conhecimento das autoridades policiais
no mesmo dia, por intermédio de sua família. O Delegado de Polícia de Sobral, no entanto, não
instaurou imediatamente a investigação policial, mas somente 35 dias depois, em 9 de novembro de
1999. Segundo a Comissão essa demora afetou de maneira crucial a eficácia da investigação;
d) em 27 de março de 2000, o Ministério Público apresentou a denúncia, na que tipificou a morte do
senhor Damião Ximenes Lopes por agressão como uma morte por omissão ou privação de cuidados
indispensáveis e alternativamente concluiu que, se a morte tivesse sido causada por agressão, o
artigo 136 do Código Penal continuaria a ser a tipificação adequada;
e) neste caso a atividade processual dos familiares da suposta vítima não é relevante para a análise do
prazo razoável. Por conseguinte, as alegações do Estado de que as deficiências da investigação e da
produção de prova poderiam ter sido supridas pela mãe do senhor Damião Ximenes Lopes, como
assistente do Ministério Público na ação penal nº 674/00, carecem de fundamento;
f) este caso não pode ser considerado complexo, como alegou o Estado, pelo suposto grande número
de depoimentos. A conduta negligente e injustificada das autoridades estatais levou à demora do
processo interno, uma vez que tardaram a iniciar as investigações, a realizar e comparecer às
audiências, a expedir as intimações, notificações e cartas precatórias necessárias. As autoridades
dedicaram-se a emitir meros autos interlocutórios sem motivação e por meses não se procedeu à
execução de nenhuma diligência ou decisão. O volume de trabalho da Terceira Vara da Comarca da
178
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
Secretaria de Sobral não pode servir de desculpa para a demora e os lapsos de inércia estatal; e
g) a inexistência de uma sentença de primeira instância depois de seis anos da morte violenta do senhor
Damião Ximenes Lopes e a situação atual do processo penal interno, ainda na fase de instrução,
mostram que os familiares da suposta vítima se encontram em situação de denegação de justiça por
parte das autoridades estatais.
Alegações dos representantes
165. Com relação à suposta violação dos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em detrimento dos familiares
do senhor Damião Ximenes Lopes indicaram, inter alia, que:
a) a investigação policial apresenta uma série de irregularidades que comprometem a elucidação da
morte do senhor Damião Ximenes Lopes. As autoridades competentes ignoraram evidência material
e testemunhas oculares que corroboram que a morte do senhor Ximenes Lopes foi resultado de
golpes. Dentre as falhas salientam-se: a indicação de que a morte ocorreu por “causa indeterminada”;
a deficiência do laudo de necropsia, que levanta suspeitas sobre a independência da investigação, e o
desaparecimento de provas importantes contra os responsáveis pela Casa de Repouso Guararapes;
b) transcorridos seis anos da morte do senhor Damião Ximenes Lopes nenhuma pessoa ou instituição
foi responsabilizada, já que até esta data não se proferiu decisão judicial alguma;
c) enquanto dure a inércia no processo judicial para punir os responsáveis pela morte do senhor
Damião Ximenes Lopes, o Estado estará descumprindo sua obrigação de punir de maneira efetiva e
em prazo razoável as violações de direitos humanos;
d) este caso não apresenta particularidade alguma que o torne especialmente complexo. Cumpre
salientar que os fatos foram objeto de investigação por vários órgãos e por particulares, gerando
abundantes provas documentais e testemunhais; tanto as testemunhas quanto os acusados
se encontram vivos e localizados e não há nenhum obstáculo, a não ser a falta de empenho das
autoridades por essas ações no julgamento dos responsáveis;
e) quanto à atividade processual dos interessados, a família do senhor Damião Ximenes Lopes
fez tudo que estava a seu alcance para cooperar com os investigadores do Estado e promover
o desenvolvimento do caso, para o que realizou inumeráveis diligências e ações com relação à
investigação policial e ao processo penal pela morte da suposta vítima;
f) a possibilidade prevista na lei brasileira de que os familiares participem ativamente e colaborem na
condução do caso, como assistente do Ministério Público na ação penal, não pode ser interpretada
como substituição da responsabilidade do Estado de realizar uma investigação completa, imparcial,
dentro de um prazo razoável, como parte da garantia do remédio legal;
g) as ações dos agentes estatais obstruíram o processo contra os responsáveis pelos fatos;
h) o Código de Processo Penal especifica que as ações criminais devem ser iniciadas e encerradas num
período de 81 dias. Este caso se estende por mais de 2.200 dias, mais de vinte e oito vezes a duração
estipulada no referido código; e
i) os familiares da suposta vítima, em especial sua irmã Irene Ximenes Lopes Miranda, envidaram
esforços extraordinários para cooperar e fazer avançar os procedimentos. Em conseqüência desses
atrasos indevidos, que são atribuídos exclusivamente ao Estado, ao senhor “Damião [Ximenes
Lopes] e a sua família [foram] negados seus direitos de acordo com os artigos 8 e 25 da Convenção
Americana”.
Alegações do Estado
166. Com relação à suposta violação dos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção, em detrimento dos familiares do senhor
Damião Ximenes Lopes, o Estado salientou, inter alia, que:
a)
a seriedade do Estado na busca da justiça foi devidamente demonstrada na instrução do caso e na exposição
dos fatos e argumentos apresentados na contestação da demanda, em que se faz uma descrição de todas as
medidas adotadas pelo Estado para investigar as circunstâncias do falecimento do senhor Damião Ximenes
Lopes e sancionar os responsáveis pelos maus-tratos e a morte desse paciente da Casa de Repouso Guararapes;
b)
o Estado adotou todas as medidas necessárias para sancionar na esfera penal os responsáveis pela morte do
179
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
senhor Damião Ximenes Lopes. No entanto, não se pode esquecer que no processo penal também devem ser
observadas as garantias fundamentais dos acusados;
c)
no que se refere à investigação efetiva, não há que falar de violação por parte do Estado. As funções investigativas,
acusadoras, de defesa e decisória são exercidas por órgãos diferentes e independentes. A eventual omissão
de provas no âmbito da investigação policial não acarretou prejuízo algum, uma vez que estas poderiam ter
sido supridas em juízo. Neste caso as provas produzidas foram aptas para demonstrar ao Ministério Público a
materialidade do delito e indícios de uma autoria;
d)
já está concluída neste caso a fase de instrução da ação penal, devendo ser proferida a sentença nos primeiros
meses de 2006; e
e)
o Estado não violou os artigos 8 e 25 da Convenção, já que as investigações sobre a morte do senhor Damião
Ximenes Lopes obedeceram a decisões legais, respeitando-se os princípios do devido processo legal, do
contraditório e da ampla defesa. A demora do processo penal é razoável, dado que se baseia na busca da
verdade real, na complexidade da causa e nas peculiaridades do processo penal brasileiro.
Considerações da Corte
167. O artigo 1.1 da Convenção Americana dispõe que:
Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela
reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição,
sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de
qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra
condição social.
168. O artigo 8.1 da Convenção Americana estabelece que:
[t]oda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por
um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na
apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos
ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
[…]
169. O artigo 25 da Convenção dispõe que:
1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante
os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais
reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja
cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.
[…]
170. A Comissão e os representantes alegaram neste caso a violação dos artigos 8 (Garantias judiciais ) e 25 (Proteção
judicial ) da Convenção Americana, em relação com o artigo 1.1 desse tratado, em detrimento dos familiares da
suposta vítima, com fundamento em que o processo penal que se iniciou para investigar, identificar e sancionar
os responsáveis pelos maus-tratos e pela morte do senhor Damião Ximenes Lopes ainda se encontra pendente,
transcorridos mais de seis anos dos fatos, sem que até esta data se tenha proferido sentença de primeira
instância (par. 112.43 supra). A ação civil de reparação, que busca uma compensação pelos danos, tampouco
foi solucionada (par. 112.49 supra). A Corte julga necessário, por conseguinte, examinar as diversas diligências
relacionadas com a investigação policial e o processo penal e a ação civil de reparação de danos que tramitam
atualmente no âmbito interno. Esse exame deverá ser feito de acordo com o disposto nos artigos 8 e 25 da
Convenção Americana, com relação aos familiares da suposta vítima.
171. O Tribunal deve determinar se os procedimentos foram desenvolvidos com respeito às garantias judiciais,
em um prazo razoável, e se ofereceram um recurso efetivo para assegurar os direitos de acesso à justiça, de
conhecimento da verdade dos fatos e de reparação aos familiares.
172. A Corte considera pertinente recordar que é um princípio básico do direito da responsabilidade internacional
do Estado, amparado no Direito Internacional dos Direitos Humanos, que todo Estado é internacionalmente
responsável por atos ou omissões de quaisquer de seus poderes ou órgãos em violação dos direitos
internacionalmente consagrados, segundo o artigo 1.1 da Convenção Americana.129
129. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 140; Caso do Massacre de Puerto Bello, nota 25 supra, par. 111 e 112; e Caso do Massacre
180
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
173. Os artigos 8 e 25 da Convenção consolidam, com referência às ações e omissões dos órgãos judiciais internos,
o alcance do mencionado princípio de geração de responsabilidade pelos atos de qualquer dos órgãos do
Estado. 130
174. Em casos similares, esta Corte determinou que o esclarecimento de supostas violações por parte de um Estado
de suas obrigações internacionais por meio da atuação de seus órgãos judiciais pode levar o Tribunal a examinar
os respectivos processos internos. Isto posto, os procedimentos internos devem ser considerados como um
todo, uma vez que a função do tribunal internacional é determinar se a integralidade dos procedimentos esteve
conforme com as disposições internacionais.131
175. Para a realização dessa análise, a Corte considera que, de acordo com a Convenção Americana, os Estados
Partes estão obrigados a proporcionar recursos judiciais efetivos às vítimas de violações dos direitos humanos
(artigo 25), os quais devem ser substanciados em conformidade com as regras do devido processo legal
(artigo 8.1), tudo isso compreendido na obrigação geral, a cargo dos próprios Estados, de garantir o livre e
pleno exercício dos direitos reconhecidos pela Convenção a toda pessoa que se encontre sob sua jurisdição
(artigo 1.1).132
176. Da análise dos fatos do presente caso deduz-se que foram as senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes
Lopes Miranda as que iniciaram e acompanharam as gestões, e nelas intervieram, para averiguar o que havia
acontecido com o senhor Damião Ximemes Lopes, motivo por que o Tribunal passará a analisar se o Estado
lhes proporcionou um recurso efetivo.
A) Investigação policial e diligências relacionadas com a morte do senhor Damião Ximenes Lopes
177. Os Estados têm o dever de investigar as afetações aos direitos à vida e à integridade pessoal como condição
para garantir esses direitos, conforme se desprende do artigo 1.1 da Convenção Americana. Neste caso,
a Corte estabeleceu que o Estado falhou em seus deveres de respeito, prevenção e proteção e que é, por
conseguinte, responsável pela violação do direito à vida e à integridade pessoal do senhor Damião Ximenes
Lopes (par. 150 supra).
178. Em conseqüência dos fatos, o Estado iniciou uma investigação policial e realizou diversas diligências relacionadas
com a morte do senhor Damião Ximenes Lopes. A Corte analisará se aquelas foram sérias, imparciais e efetivas
e se não foram empreendidas como simples formalidade.133
179. Considerando as circunstâncias violentas em que se deu a morte do senhor Damião Ximenes Lopes (par.
112.11 supra), este Tribunal julga que é necessário para a investigação de toda morte violenta observar regras
similares às que constam do Manual para a Prevenção e Investigação Efetiva de Execuções Extrajudiciais,
Arbitrárias e Sumárias das Nações Unidas. As autoridades estatais que conduzem uma investigação devem,
inter alia: a) identificar a vítima; b) recuperar e preservar o material probatório relacionado com sua morte, a
fim de colaborar em qualquer investigação; c) identificar possíveis testemunhas e obter suas declarações com
relação à morte que se investiga; d) determinar a causa, forma, lugar e momento da morte, bem como qualquer
procedimento ou prática que possa tê-la provocado; e e) distinguir entre morte natural, morte acidental, suicídio
e homicídio. É necessário, ademais, investigar exaustivamente a cena do crime e se devem ser realizadas
necropsias e análise dos restos humanos, de maneira rigorosa, por profissionais competentes e mediante o uso
dos procedimentos mais adequados.134
180. Inicialmente, apesar da evidência de que se havia praticado violência contra Damião Ximenes Lopes, o médico
Francisco Ivo de Vasconcelos, da Casa de Repouso Guararapes, que examinou a suposta vítima logo após sua
morte, diagnosticou a causa da morte como “parada cardio-respiratória” (par. 112.12 supra).
de Mapiripán, nota 21 supra, par. 108.
130. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 141; Caso López Álvarez, nota 121 supra, par. 28; e Caso Herrera Ulloa. Sentença de 2 de julho
de 2004. Série C, nº 107, par. 109.
131. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 142; Caso Lori Berenson Mejía, nota 24 supra, par. 133; e Caso Juan Humberto Sánchez, nota
30 supra, par. 120.
132. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 143; Caso López Álvarez, nota 121 supra, par. 147; e Caso do Massacre de Puerto Bello, nota
25 supra, par. 169.
133. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 92 e 93; Caso do Massacre de Puerto Bello, nota 25 supra, par. 143 e 144; e Caso Gómez
Palomino, nota 21 supra, par. 77.
134. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 96; Caso do Massacre de Puerto Bello, nota 25 supra, par. 177; e Caso do Massacre de
Mapiripán, nota 21 supra, par. 224. Ver também Manual para a Prevenção e Investigação Efetiva de Execuções Extrajudiciais, Sumárias e
Arbitrárias, das Nações Unidas, Doc. E/ST/CSDHA/12 (1991).
181
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
181. Com relação ao mencionado exame, o médico Francisco Ivo de Vasconcelos declarou, em 11 de janeiro de
2000, perante a Coordenação Municipal de Controle, Avaliação e Auditoria da Secretaria de Saúde e Assistência
Social, que o cadáver do paciente “estava no chão, onde f[ez] o primeiro exame para tentar ver a causa de [sua]
morte […]”. Declarou também, em 11 de outubro de 2000, perante a Terceira Vara da Comarca de Sobral, que
“passou a investigar a possível causa da morte e não percebeu nenhum tipo de objeto que pudesse ter asfixiado
o paciente, não havia sinais de estrangulamento ou traumatismo, não havia tampouco sangramento externo,
motivo por que [o declarante] atestou no certificado de óbito ‘parada cardio-respiratória’ [. O paciente] não
apresentava nenhuma lesão externa, nenhuma escoriação, o sangramento havia desaparecido, não apresentava
nenhum hematoma no nível do couro cabeludo, não apresentava sinais de estrangulamento, abri[u] a cavidade
bucal para ver se encontrav[a] algum objeto e então pedi[u] à enfermeira que avisasse a família do paciente
sobre sua morte e que preparasse toda a documentação[…]”.
182. Esta Corte considera que o referido médico Francisco Ivo de Vasconcelos, ao examinar o corpo da suposta
vítima, não adotou as medidas adequadas, uma vez que, como salientou em sua declaração, examinou o
cadáver e não informou que o corpo apresentava lesões externas, que foram descritas posteriormente no laudo
da necropsia, embora conhecesse as circunstâncias de violência na Casa de Repouso Guararapes, bem como
as condições especiais da suposta vítima (par. 112.9 e 112.56 supra). Das referidas declarações desprendese que em seu exame o médico descartou possíveis causas da morte, mas não fundamentou seu diagnóstico
de morte por parada cardiorespiratória e ignorou a existência de lesões e deveria então ter determinado a
realização de necropsia, a fim de proceder a um estudo exaustivo do cadáver da suposta vítima.
183. Ante a falta de clareza com relação às circunstâncias que cercaram a morte do senhor Ximenes Lopes, seus
familiares levaram o corpo para o Instituto Médico Legal da cidade de Fortaleza, capital do Estado do Ceará,
para a realização da necropsia.
184. O Instituto Médico Legal realizou a necropsia do senhor Damião Ximenes Lopes, concluindo que se tratava
de “morte real de causa indeterminada” e deixando registrada a existência de diversas lesões, embora não
mencionasse como teriam sido provocadas. Tampouco descreveu o exame do cérebro da suposta vítima, o
que motivou o Ministério Público a pedir ao Delegado de Polícia que solicitasse ao Instituto Médico Legal
esclarecimentos sobre o conteúdo da necropsia referente às lesões nela descritas. Após duas reiterações do
Delegado de Polícia, o Instituto esclareceu que “[a]s lesões descritas [no laudo do exame cadavérico] foram
provocadas por ação de instrumento contundente (ou por espancamento ou por tombos)” (par. 112.14 e 112.15
supra). Cumpre salientar que não foram tiradas fotografias do corpo do senhor Damião Ximenes Lopes.
185. Em 20 de junho de 2001, a Quinta Vara Cível, em que tramita a ação civil de reparação de danos, ordenou,
como prova pericial, a realização da exumação do cadáver da suposta vítima. O relatório conclusivo mencionou
novamente que a morte do senhor Ximenes Lopes era uma “morte real de causa indeterminada” (par. 112.16 e
112.54 supra).
186. A esse respeito, a senhora Lídia Dias Costa, na peritagem apresentada na audiência pública perante a Corte,
declarou que na exumação do cadáver do senhor Damião Ximenes Lopes se pôde constatar que seu cérebro
havia sido aberto como se faz nas necropsias, mas que não encontrava motivos justificados para que isso
não fosse expresso ou descrito no laudo da necropsia realizada em 1999. Segundo a perita, trata-se de um
procedimento de rotina e não há justificativa para não examinar o cérebro ou não descrever o que foi examinado.
Declarou também que se poderia formular um diagnóstico, com base na evolução clínica do paciente, de morte
violenta causada por traumatismo cranioencefálico (par. 47.4.a supra). O relatório do exame pos-exumático
confirma que o crânio apresentava uma “craniotomia transversal”, resultado de exame pericial anterior (par.
112.16 supra).
187. Esta Corte considera que o protocolo da necropsia realizada ao senhor Damião Ximenes Lopes em 4 de outubro
de 1999 não cumpriu as diretrizes internacionais reconhecidas para as investigações forenses, já que não
apresentou, entre outros elementos, uma descrição completa das lesões externas e do instrumento que as teria
provocado, da abertura e descrição das três cavidades corporais (cabeça, tórax e abdômen), referindo-se na
conclusão à “causa indeterminada” da morte e, por conseguinte, tampouco mencionou o instrumento que as
teria provocado. Por sua vez, a Direção Técnico-Científica do Instituto Médico Legal que realizou a exumação
também concluiu que se tratava “de um caso de morte real de causa indeterminada”. Este Tribunal estima
que os Estados, em atendimento a suas obrigações de investigar os delitos, devem designar uma autoridade
competente para a realização das investigações forenses, entre as quais se inclui a necropsia, em observância
das normativas interna e internacional. Neste caso está claro que o Instituto de Medicina Legal não realizou
182
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
as investigações nem documentou os achados encontrados no decorrer da necropsia, conforme dispõem as
normas e práticas forenses.
188. Por outro lado, no que se refere à investigação policial sobre a morte do senhor Damião Ximenes Lopes, está
demonstrado que foi iniciada pela Delegacia Regional de Sobral em 9 de novembro de 1999, 36 dias depois do
ocorrido na Casa de Repouso Guararapes (par. 112.18 supra).
189. Houve uma falha das autoridades estatais quanto à devida diligência, ao não iniciarem imediatamente a
investigação dos fatos, o que impediu inclusive a oportuna preservação e coleta da prova e a identificação de
testemunhas oculares. Os funcionários estatais tampouco preservaram ou inspecionaram a Casa de Repouso
Guararapes ou procederam a uma reconstrução dos fatos para explicar as circunstâncias em que morreu o
senhor Ximenes Lopes.
190. Em virtude dessa falta de investigação, os familiares da suposta vítima denunciaram perante diversos
organismos os fatos relacionados com a morte de Ximenes Lopes e reivindicaram justiça no caso. A senhora
Albertina Viana Lopes, mãe da suposta vítima, recorreu à Coordenação Municipal de Controle e Avaliação da
Secretaria de Saúde e Assistência Social, e a senhora Irene Ximenes Lopes Miranda, irmã da suposta vítima,
recorreu à Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado do Ceará (par.
112.17 supra).
191. Todas as falências mencionadas demonstram a negligência das autoridades encarregadas de examinar as
circunstâncias da morte do senhor Damião Ximenes Lopes e constituem graves faltas do dever de investigar
os fatos.135
B) Processo penal
192. O artigo 25.1 da Convenção dispõe a obrigação dos Estados de garantir a todas as pessoas sob sua jurisdição
um recurso judicial efetivo contra atos que violem seus direitos fundamentais.136 Não basta a existência formal
dos recursos, mas é necessário que eles sejam efetivos, ou seja, devem ser capazes de produzir resultados
ou respostas às violações de direitos contemplados na Convenção.137 A existência desta garantia constitui um
dos pilares básicos, não só da Convenção Americana, mas do próprio Estado de Direito em uma sociedade
democrática, no sentido da Convenção.138
193. O recurso efetivo do artigo 25 da Convenção deve tramitar-se conforme as normas do devido processo
estabelecidas no artigo 8 desse tratado, do qual se depreende que as vítimas das violações dos direitos
humanos, ou seus familiares, devem dispor de amplas possibilidades de ser ouvidos e de atuar nos
respectivos processos, tanto na tentativa de esclarecer os fatos e punir os responsáveis, quanto na busca de
uma devida reparação.139
194. Em resposta aos tratamentos cruéis, desumanos e degradantes a que foi submetido o senhor Damião Ximenes
Lopes, e a sua posterior morte, o primeiro recurso que cabia ao Estado ter proporcionado era uma investigação
efetiva e um processo judicial realizado de acordo com os requisitos do artigo 8 da Convenção, com vistas ao
esclarecimento dos fatos, à punição dos responsáveis e à concessão de compensação adequada.
195. O artigo 8.1 da Convenção dispõe, como um dos elementos do devido processo, que os tribunais decidam os
casos submetidos ao seu conhecimento em prazo razoável. A razoabilidade do prazo deve ser apreciada em
135. Cf. Caso do Massacre de Puerto Bello, nota 25 supra, par. 178; e Caso do Massacre de Mapiripán, nota 21 supra, par. 228.
136. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 144; Caso Acevedo Jaramillo e outros, nota 4 supra, par. 214; e Caso López Álvarez, nota 121
supra, par. 137.
137. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 144; Caso Acevedo Jaramillo e outros, nota 4 supra, par. 213; e Caso López Álvarez, nota 121
supra, par. 137.
138. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 144; Caso López Álvarez, nota 121 supra, par. 138; Caso Palamara Iribarne, nota 31 supra, par.
184; Caso Acosta Calderón. Sentença de 24 de junho de 2005. Série C, nº 129, par. 93; Caso Yatama. Sentença de 23 de junho de 2005. Série C,
nº 127, par. 169; Caso das Irmãs Serrano Cruz. Sentença de 1º de março de 2005. Série C, nº 120, par. 75; Caso Tibi, nota 111 supra, par. 131;
Caso 19 Comerciantes, nota 108 supra, par. 193; Caso Maritza Urrutia, nota 111 supra, par. 117; Caso Juan Humberto Sánchez, nota 30 supra,
par. 121; Caso Cantos, nota 126 supra, par. 52; Caso Hilaire, Constantine e Benjamin e outros, nota 126 supra, par. 150; Caso da Comunidade
Mayagna (Sumo) Awas Tingni. Sentença de 31 de agosto de 2001. Série C, nº 79, par. 112; Caso Ivcher Bronstein. Sentença de 6 de fevereiro
de 2001. Série C, nº 74, par. 135; Caso do Tribunal Constitucional. Sentença de 31 de janeiro de 2001. Série C, nº 71, par. 90; Caso Bámaca
Velásquez, nota 111 supra, par. 191; Caso Cantoral Benavides, nota 111 supra, par. 163; Caso Durand y Ugarte. Sentença de 16 de agosto de
2000. Série C, nº 68, par. 101; e Caso dos “Meninos de Rua” (Villagrán Morales e outros), nota 108 supra, par. 234.
139. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 93 e 146; Caso do Massacre de Puerto Bello, nota 25 supra, par. 144; Caso do Massacre de
Mapiripán, nota 21 supra, par. 219; Caso da Comunidade Moiwana, nota 125 supra, par. 147; Caso das Irmãs Serrano Cruz, nota 138 supra,
par. 63; Caso 19 Comerciantes, nota 108 supra, par. 186; Caso Las Palmeras. Sentença de 6 de dezembro de 2001. Série C, nº 90, par. 59; Caso
Durand y Ugarte, nota 138 supra, par. 129; e Caso dos “Meninos de Rua” (Villagrán Morales e outros), nota 108 supra, par. 227.
183
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
relação com a duração total do processo penal. Em matéria penal este prazo começa quando se apresenta o
primeiro ato de procedimento contra determinada pessoa como provável responsável por certo delito e termina
quando se profere sentença definitiva e firme.140
196. Para examinar se neste processo o prazo foi razoável, nos termos do artigo 8.1 da Convenção, a Corte levará
em consideração três elementos: a) a complexidade do assunto; b) a atividade processual do interessado; e c)
a conduta das autoridades judiciais.141
197. Com fundamento no exposto no capítulo sobre fatos provados, bem como nas alegações da Comissão, dos
representantes e do Estado, este Tribunal considera que este caso não é complexo. Existe uma única vítima,
que está claramente identificada e que morreu em uma instituição hospitalar, o que possibilita que o processo
penal contra supostos responsáveis, que estão identificados e localizados, seja simples.
198. Ademais, do acervo probatório se desprende que a família do senhor Damião Ximenes Lopes cooperou na
tramitação da investigação policial e dos procedimentos penal e civil, com a finalidade dar andamento ao
procedimento, conhecer a verdade do ocorrido e estabelecer as respectivas responsabilidades. A senhora
Albertina Viana Lopes é assistente do Ministério Público no processo penal, o que possibilitou que a família da
suposta vítima participe do processo e fiscalize seu desenvolvimento. Nesse ponto cabe recordar que embora
as vítimas de violações de direitos humanos, ou seus familiares, devem dispor de amplas oportunidades de
participar e ser ouvidos durante o processo de investigação e o trâmite judicial (par. 193 supra), a investigação
deve ter um sentido e ser assumida pelo Estado como um dever jurídico próprio e não como uma simples
gestão de interesses particulares, que dependa da iniciativa processual das vítimas ou de seus familiares ou da
contribuição privada de elementos probatórios, sem que a autoridade pública busque efetivamente a verdade.142
199. A demora do processo se deveu unicamente à conduta das autoridades judiciais. Em 27 de março de 2000, o
Ministério Público apresentou a denúncia penal contra os supostos responsáveis pelos fatos e, transcorridos
mais de seis anos do início do processo, ainda não se proferiu sentença de primeira instância. As autoridades
competentes se limitaram a diligenciar o recebimento de provas testemunhais. Está provado que a Terceira Vara
da Comarca de Sobral demorou mais de dois anos para realizar as audiências destinadas a ouvir as declarações
de testemunhas e informantes e, em alguns períodos, não realizou atividade alguma com vistas à conclusão do
processo (par. 112.29 supra). A esse respeito, esta Corte estima que não procede o argumento do Estado de
que o atraso se deva, entre outros aspectos, ao grande número de declarações que teve de receber ou a ter tido
de delegar a outras repartições judiciais o recebimento das declarações de testemunhas que não residiam em
Sobral, ou ao volume de trabalho da repartição judicial que conhece da causa.
200. O Estado também alegou que o atraso no procedimento penal se deveu a que o Ministério Público, em 22 de
setembro de 2003, aditou a acusação para incluir outras duas pessoas. Neste ponto é importante ressaltar
que o Ministério Público é um órgão do Estado, motivo por que suas ações e omissões podem comprometer
a responsabilidade internacional desse mesmo Estado. Esse Ministério tardou mais de três anos para aditar
a denúncia para incluir os senhores Francisco Ivo de Vasconcelos, Diretor Clínico, e Elias Gomes Coimbra,
auxiliar de enfermagem, ambos da Casa de Repouso Guararapes, apesar de ter sido o senhor Francisco Ivo de
Vasconcelos o médico que atendeu o senhor Ximenes Lopes no dia de sua morte e o senhor Gomes Coimbra o
enfermeiro que havia atendido a suposta vítima no decorrer de sua internação. O Centro de Apoio Operacional
dos Grupos Socialmente Discriminados da Procuradoria-Geral de Justiça, do Ministério Público, em 25 de
maio de 2000, dois meses após o início do processo penal, declarou ao promotor encarregado da causa
referente à morte do senhor Damião Ximenes Lopes que, de acordo com o acervo probatório recolhido para
essa finalidade, a denúncia deveria ser aditada, já que isso “constitu[ía] uma imposição institucional e legal”. A
Corte considera que a referida alegação do Estado não é procedente para justificar a demora no procedimento
penal.
201. Finalmente, após mais de dois anos do aditamento da acusação, o caso não progrediu de maneira significativa.
202. O Tribunal faz notar que o Estado informou em suas alegações finais que “já está concluída neste caso a fase
de instrução da ação penal, devendo ser proferida a sentença nos primeiros meses de 2006”. No entanto, ficou
140. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par.150; Caso López Álvarez, nota 121 supra, par. 129; e Caso Tibi, nota 111 supra, par. 169.
141. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 151; Caso López Álvarez, nota 121 supra, par. 132; e Caso do Massacre de Puerto Bello, nota
25 supra, par. 171.
142. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 93; Caso do Massacre de Puerto Bello, nota 25 supra, par. 144; e Caso Gómez Palomino, nota
21 supra, par. 79.
184
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
demonstrado pela prova aportada pelas partes à Corte que o processo se encontra à espera de uma decisão
interlocutória sobre o pedido de suspensão da apresentação das alegações finais por parte de um dos acusados
originalmente e não está pronto para que o juiz profira sentença definitiva no caso (supra par. 112.42).
203. O prazo em que se desenvolveu o procedimento penal no caso sub judice não é razoável, uma vez que, após
mais de seis anos, ou 75 meses de iniciado, ainda não se proferiu sentença de primeira instância e não foram
apresentadas razões que possam justificar esta demora. Este Tribunal considera que este período excede em
muito aquele a que se refere o princípio de prazo razoável consagrado na Convenção Americana e constitui uma
violação do devido processo.143
204. Por outro lado, a falta de conclusão do processo penal teve repercussões particulares para as familiares do
senhor Damião Ximenes Lopes, já que, na legislação do Estado, a reparação civil pelos danos ocasionados por
um ato ilícito tipificado penalmente pode estar sujeita ao estabelecimento do delito em um processo de natureza
criminal. Por este motivo na ação civil de reparação de danos tampouco se proferiu sentença de primeira
instância, ou seja, a falta de justiça na ordem penal impediu que as familiares de Ximenes Lopes, em especial
sua mãe, obtivessem compensação civil pelos fatos deste caso.
205. Pelo exposto, a Corte considera que o Estado não dispôs de um recurso efetivo para garantir, em um prazo
razoável, o direito de acesso a justiça das senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda, mãe
e irmã, respectivamente, do senhor Damião Ximenes Lopes, com plena observância das garantias judiciais.
***
206. A Corte conclui que o Estado não proporcionou às familiares de Ximenes Lopes um recurso efetivo para garantir
o acesso à justiça, a determinação da verdade dos fatos, a investigação, identificação, o processo e, se for o caso,
a punição dos responsáveis e a reparação das conseqüências das violações. O Estado tem, por conseguinte,
responsabilidade pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial consagrados nos artigos
8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em relação com o artigo 1.1 desse mesmo tratado, em detrimento das
senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda.
XI
Reparações
Aplicação do artigo 63.1
Obrigação de Reparar
207. Em conformidade com a análise realizada nos capítulos precedentes, a Corte declarou, com base no
reconhecimento parcial de responsabilidade do Estado, a violação dos artigos 4.1 e 5.1 e 5.2 da Convenção
Americana, em relação com o artigo 1.1 do mesmo instrumento, em detrimento do senhor Damião Ximenes
Lopes; com base nos fatos do caso e na prova apresentada a este Tribunal, a violação do artigo 5 da Convenção,
em relação com o artigo 1.1 desse tratado, em detrimento das senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes
Lopes Miranda e dos senhores Francisco Leopoldino Lopes e Cosme Ximenes Lopes, bem como a violação
dos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção, em relação com o artigo 1.1 desse instrumento, em detrimento das
senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda. A Corte estabeleceu, em várias ocasiões,
que toda violação de uma obrigação internacional que tenha provocado dano implica o dever de repará-lo
adequadamente.144 Para esses efeitos, o artigo 63.1 da Convenção Americana dispõe que:
[q]uando decidir que houve violação de um direito ou liberdade protegidos nesta Convenção, a Corte
determinará que se assegure ao prejudicado o gozo do seu direito ou liberdade violados. Determinará
também, se isso for procedente, que sejam reparadas as conseqüências da medida ou situação que haja
configurado a violação desses direitos, bem como o pagamento de indenização justa à parte lesada.
208. Tal como salientou a Corte, o artigo 63.1 da Convenção Americana reflete uma norma consuetudinária que
constitui um dos princípios fundamentais do direito internacional contemporâneo sobre a responsabilidade dos
Estados. Desta maneira, ao ocorrer um fato ilícito imputável a um Estado, surge de imediato a responsabilidade
143. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 153; Caso García Asto e Ramírez Rojas, nota 20 supra, par. 167 a 172; e Caso Gómez Palomino,
nota 21 supra, par. 85.
144. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 174; Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, nota 4 supra, par. 195; e Caso Acevedo
Jaramillo e outros, nota 4 supra, par. 294.
185
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
internacional deste pela violação da norma internacional de que se trata, com o conseqüente dever de
reparação e de fazer cessar as conseqüências da violação.145 Essa responsabilidade internacional é diferente da
responsabilidade no direito interno.146
209. A reparação do dano ocasionado pela infração de uma obrigação internacional requer, sempre que seja possível,
a plena restituição (restitutio in integrum), que consiste no restabelecimento da situação anterior à violação.
Caso isso não seja possível, cabe ao Tribunal internacional determinar uma série de medidas para que, além
de garantir o respeito dos direitos infringidos, sejam reparadas as conseqüências das infrações e estabelecido
o pagamento de uma indenização como compensação pelos danos ocasionados147 ou outras modalidades de
satisfação. A obrigação de reparar, que se regulamenta em todos os aspectos (alcance, natureza, modalidades
e determinação dos beneficiários) pelo direito internacional, não pode ser modificada ou descumprida pelo
Estado obrigado, mediante a invocação de disposições de seu direito interno.148
210. As reparações, como indica o termo, consistem nas medidas destinadas a fazer desaparecer os efeitos das
violações cometidas. Sua natureza e seu montante dependem do dano provocado nos planos tanto material
quanto imaterial. As reparações não podem implicar o enriquecimento nem o empobrecimento da vítima ou
seus sucessores.149
211. Em conformidade com os elementos probatórios recolhidos durante o processo, e à luz dos critérios anteriores,
a Corte procede à análise das pretensões apresentadas pela Comissão e pelos representantes, bem como das
considerações do Estado a respeito das reparações, com o objetivo de, em primeiro lugar, determinar quem são
os beneficiários das reparações e em seguida dispor as medidas de reparação dos danos materiais e imateriais,
as medidas de satisfação e de não-repetição e, por último, o relativo a custas e gastos.
212. A Corte resume a seguir os argumentos da Comissão Interamericana, dos representantes e do Estado sobre as
reparações.
Alegações da Comissão
213. Com relação às reparações a Comissão alegou, inter alia, que:
a) os beneficiários das reparações são os senhores Albertina Viana Lopes, mãe; Francisco Leopoldino
Lopes, pai; Irene Ximenes Lopes Miranda, irmã, e Cosme Ximenes Lopes, irmão gêmeo.
b) Com relação ao dano material:
i. solicitou à Corte que fixe com eqüidade o montante da indenização correspondente ao dano emergente
e lucro cessante; e
ii. com respeito ao lucro cessante, a Comissão observou que não houve perda de receita quanto à pensão
por invalidez do Instituto Nacional do Seguro Social que a vítima recebia antes de sua morte. Salientou,
entretanto, que a vítima poderia no futuro realizar atividades produtivas que aumentassem sua renda.
c) Com relação ao dano imaterial:
i. a Corte deve fixar com eqüidade o pagamento de uma compensação a título de dano imaterial, em
razão da intensidade dos padecimentos a danos pessoais causados aos familiares do senhor Damião
Ximenes Lopes em conseqüência de sua morte e da busca de justiça no caso; e
ii. a pensão mensal e vitalícia concedida à senhora Albertina Viana Lopes é insuficiente como reparação
por dano imaterial, já que o Estado não considerou todos os aspectos do conceito de dano material
e imaterial e não respeitou os padrões internacionais de compensação por violação dos direitos
humanos.
d) Com relação a outras formas de reparação, solicitou à Corte que ordene a Estado que:
145. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 175; Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, nota 4 supra, par. 196; e Caso Acevedo
Jaramillo e outros, nota 4 supra, par. 295.
146. Cf. Caso do Massacre de Mapiripán, nota 21 supra, par. 211; Caso das Irmãs Serrano Cruz, nota 138 supra, par. 56; Caso dos Irmãos
Gómez Paquiyauri, nota 108 supra, par. 73; e Caso Cesti Hurtado. Exceções Preliminares. Sentença de 26 de janeiro de 1999. Série C, nº 49,
par. 47.
147. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 176; Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, nota 4 supra, par. 197; e Caso Acevedo
Jaramillo e outros, nota 4 supra, par. 296.
148. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 175; Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, nota 4 supra, par. 197; e Caso Acevedo
Jaramillo e outros, nota 4 supra, par. 296.
149. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 177; Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, nota 4 supra, par. 198; e Caso Acevedo
Jaramillo e outros, nota 4 supra, par. 297.
186
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
i.
adote as medidas necessárias para dar efetividade a sua obrigação de supervisionar as condições de
hospitalização ou internação das pessoas portadoras de deficiência mental nos centros hospitalares,
inclusive adequados sistemas de inspeção e controle judicial;
ii. adote as medidas necessárias para evitar a utilização de tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes
nos centros de saúde, inclusive programas de treinamento e capacitação, ademais da efetiva proibição
e punição desse tipo de ação;
iii. implemente padrões mínimos para a elaboração de relatórios médicos, como os estabelecidos no
Protocolo de Istambul;
iv. faça cessar de imediato a denegação de justiça a que continuam submetidos os familiares do senhor
Ximenes Lopes no que diz respeito a sua morte;
v. leve o reconhecimento de responsabilidade parcial do Estado ao conhecimento da opinião pública de
maneira oficial; e
vi. crie mecanismos de inspeção, denúncia e documentação de mortes, torturas ou tratamentos cruéis,
desumanos ou degradantes de pessoas portadoras de deficiência mental.
e) Com relação às custas e gastos, ressaltou que a Corte deve ordenar ao Estado o pagamento daquelas
em que incorreram os familiares do senhor Damião Ximenes Lopes na tramitação do caso no âmbito
nacional, caso existam, bem como na tramitação do caso perante o sistema interamericano de
proteção dos direitos humanos.
Alegações dos representantes
214. Com relação às reparações mencionaram, inter alia, que:
a) os beneficiários das reparações são os senhores Albertina Viana Lopes, mãe; Francisco Leopoldino
Lopes, pai; Irene Ximenes Lopes Miranda, irmã; e Cosme Ximenes Lopes, irmão gêmeo.
b) Com relação ao dano material:
i. relativamente ao dano emergente salientaram que os familiares incorreram em despesas que abrangem
transporte entre os municípios de Sobral e Fortaleza para reunir documentos; sepultamento do senhor
Damião Ximenes Lopes; traslado do corpo da vítima entre Sobral e Fortaleza para a realização da
necropsia e medicamentos para os pais do senhor Ximenes Lopes. Solicitaram, por conseguinte, à
Corte que fixe com eqüidade a quantia de US$10.000,00 (dez mil dólares dos Estados Unidos da
América). Incluem-se nesta rubrica despesas em instâncias nacionais e internacionais;
ii. com respeito ao lucro cessante, alegaram que uma pessoa portadora de deficiência mental pode chegar
a ter uma vida produtiva. Considerando, portanto, a expectativa de vida da vítima e o salário mínimo
do Estado, solicitaram que a Corte fixe com eqüidade a quantia de US$67.550,00 (sessenta e sete mil
e quinhentos e cinqüenta dólares dos Estados Unidos da América) a favor do senhor Damião Ximenes
Lopes. Igualmente, a senhora Irene Ximenes Lopes Miranda passou três anos sem motivação para
trabalhar e perdeu seu emprego após a morte de seu irmão. Solicitaram à Corte que fixe com eqüidade
a quantia de US$41.850,00 (quarenta e um mil e oitocentos e cinqüenta dólares dos Estados Unidos
da América) a seu favor; e
iii. consideraram que a pensão concedida pela Lei nº 13.491 em favor da senhora Albertina Viana Lopes.
Essa senhora recebe a pensão por invalidez que antes cabia ao senhor Damião Ximenes Lopes.
c) Com relação ao dano imaterial:
i. pelos sofrimentos experimentados pelo senhor Damião Ximenes Lopes, solicitaram à Corte que fixe
com eqüidade a quantia de US$80.000,00 (oitenta mil dólares dos Estados Unidos da América) a seu
favor;
ii. com respeito à senhora Albertina Viana Lopes, mãe da vítima, salientaram que passou a sofrer de
depressão com a morte do filho, que atualmente é vítima de alguns distúrbios emocionais e que
a pensão vitalícia estabelecida pelo Estado não pode ser considerada uma reparação para ela, nem
para os demais familiares. Solicitaram, por conseguinte, à Corte que fixe com eqüidade a quantia
de US$50.000,00 (cinqüenta mil dólares dos Estados Unidos da América) a seu favor. Salientaram
também que a referida senhora foi vítima direta dos abusos e maus-tratos sofridos pelo filho, já que
presenciou os suplícios a que o submeteram e foi, ademais, tratada de maneira desrespeitosa pelo
diretor da Casa de Repouso Guararapes. Por esse motivo, solicitaram à Corte que aumente a quantia a
187
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
ela destinada em US$25.000,00 (vinte e cinco mil dólares dos Estados Unidos da América);
iii. relativamente ao senhor Francisco Leopoldino Lopes, pai do senhor Damião Ximenes Lopes,
ressaltaram que sofreu de depressão por um longo período e crê que nunca se fará justiça no caso
de seu filho. Hoje freqüenta a igreja em busca de consolo espiritual. Solicitaram, por conseguinte, à
Corte que fixe com eqüidade a quantia de US$50.000,00 (cinqüenta mil dólares dos Estados Unidos da
América) a seu favor;
iv. quanto à senhora Irene Ximenes Lopes Miranda, irmã do senhor Damião Ximenes Lopes, a morte da
vítima lhe trouxe sofrimento físico e psicológico; perdeu o emprego 26 dias depois dos fatos do caso
e por três anos sofreu de depressão, a que lhe deixou sem motivação para trabalhar. Sofreu desgaste
mental e emocional na busca de justiça, em virtude das inumeráveis reuniões e audiências a que
compareceu perante órgãos vinculados às áreas de saúde e direitos humanos e ao Poder Judiciário, e
sentiu “humilhação por mendigar justiça”. Por sua vez, para o senhor Cosme Ximenes Lopes, irmão
gêmeo do senhor Damião Ximenes Lopes, a morte da vítima trouxe desespero, uma vez que poderia
eventualmente ser vítima do que ocorrera ao irmão, no caso de voltar a necessitar de serviços psíquicohospitalares. Sofreu seis anos de frustração pela impunidade dos responsáveis e constante amargura
pela perda de seu irmão gêmeo. Em vista do exposto, solicitaram à Corte que fixe com eqüidade a
quantia de US$15.000,00 (quinze mil dólares dos Estados Unidos da América) para cada um deles.
d) Com relação a outras formas de reparação, mencionaram que:
i. reconhecem as iniciativas do Estado para melhorar as condições do atendimento psiquiátrico;
ii. as denúncias de graves violações de direitos humanos cometidas em instituições de saúde mental
devem ser eficazmente investigadas e todas as pessoas envolvidas devem ser responsabilizadas;
iii. os órgãos de fiscalização devem estabelecer procedimentos de supervisão do funcionamento das
unidades de saúde;
iv. o Estado deve ordenar o fechamento das unidades psiquiátricas reprovadas pelo Programa Nacional
de Avaliação dos Hospitais Psiquiátricos, que ainda estejam funcionando;
v. o Estado deve aprovar e implementar o Projeto de Lei nº 429/2003, que estabelece o “Estatuto das
Pessoas Portadoras de Deficiências”; e
vi. o Estado deve adotar as medidas cabíveis para erradicar a prática de tratamentos cruéis, desumanos
ou degradantes; adequar as instituições psiquiátricas às condições exigidas pelos instrumentos
internacionais que regulamentam a matéria e estabelecer a definitiva proibição e punição dessas
práticas.
e) Quanto às custas e despesas, alegaram que:
i. a família Ximenes Lopes incorreu em uma série de despesas relacionadas com diligências
administrativas e processuais posteriormente à morte da vítima, motivo por que solicitaram à Corte
que fixe com eqüidade a quantia de US$10.000,00 (dez mil dólares dos Estados Unidos da América); e
ii. a Justiça Global incorreu em despesas para a prestação de serviços jurídicos no litígio internacional.
Solicitaram, portanto, que a Corte fixe com eqüidade a quantia de US$20.000,00 (vinte mil dólares dos
Estados Unidos da América) a seu favor. Além disso, os representantes indicaram as despesas em
que incorreram a título de honorários de seus advogados no decorrer dos anos de tramitação do caso
perante o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e solicitaram à Corte que fixe com
eqüidade a quantia de US$25.000,00 (vinte e cinco mil dólares dos Estados Unidos da América) a seu
favor.
Alegações do Estado
215. Relativamente às reparações alegou, inter alia, que:
a) quanto aos beneficiários, não existe dano que reparar com relação aos senhores Francisco Leopoldino
Lopes, Irene Ximenes Lopes Miranda e Cosme Ximenes Lopes e, com relação a senhora Albertina
Viana Lopes, o dano moral por ela sofrido já foi reparado, tanto civil quanto simbolicamente.
b) Com respeito ao dano material:
i. a senhora Albertina Viana Lopes não sofreu perda patrimonial nem lucro cessante, já que percebe
uma pensão mensal e vitalícia por morte do Instituto Nacional do Seguro Social. A pensão por
188
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
morte só é destinada a pessoas que dependam financeiramente do falecido. Não cabe, por
conseguinte, o pagamento de pensão por morte e lucro cessante aos demais familiares da vítima,
uma vez que estes tinham renda própria e não dependiam economicamente do senhor Damião
Ximenes Lopes;
ii. não há dano emergente, já que o processo penal foi promovido pelo Ministério Público;
iii. na ação civil de reparação de danos, a senhora Albertina Viana Lopes litigou gratuitamente;
iv. os gastos em que incorreram os familiares do senhor Damião Ximenes Lopes foram efetuados
voluntariamente, motivo por que não compete ao Estado indenizá-los; e
v. o Estado do Ceará concedeu à senhora Albertina Viana Lopes uma pensão mensal e vitalícia no montante
de R$308,00 (trezentos e oito reais). Essa pensão correspondente ao salário mínimo do Estado do
Ceará, ajustável pelo mesmo índice de revisão geral aplicado aos servidores públicos estaduais. Essa
pensão contribui para o orçamento familiar e é perfeitamente adequada à compensação pelo dano
sofrido, sem que se configure o enriquecimento sem causa.
c) Quanto ao dano imaterial:
i. a senhora Albertina Viana Lopes promoveu uma ação civil de reparação por “danos morais” contra
particulares e não contra o Estado. Esse processo foi suspenso à espera do resultado da ação penal.
Existe a possibilidade de que ocorra bis in idem neste caso, na hipótese de que na ação civil de
reparação de danos se condene e se efetue o pagamento de uma indenização e que a Corte, por sua
vez, decida condenar o Estado a pagar uma indenização “por danos morais” à senhora Albertina Viana
Lopes. O mesmo dano estaria neste caso sendo duplamente reparado;
ii. o senhor Cosme Ximenes Lopes não tomou conhecimento da morte de seu irmão, não havendo,
portanto, dano moral com base no desconhecido;
iii. a senhora Irene Ximenes Lopes Miranda não pode ser considerada parte diretamente lesada, já que não
mantinha relação próxima com o senhor Damião Ximenes Lopes;
iv. o pai do senhor Damião Ximenes Lopes não mantinha relação familiar com o filho, motivo por que não
pode ser beneficiário de indenização alguma por dano imaterial;
v. o senhor Damião Ximenes Lopes tinha nove irmãos. Em consideração à noção de “justiça justa”, não
se pode conceber o pagamento de indenização por danos morais apenas a dois irmãos. Não há como
medir a dor familiar que decorre da morte de um parente, de modo que os mesmos critérios para a
reparação da dor moral sofrida por um irmão devam ser utilizados para reparação do dano psíquico de
todos os demais; e
vi. reconheceu “os danos morais” e seu dever de indenizar materialmente a mãe do senhor Damião
Ximenes Lopes, razão pela qual efetuou o pagamento de uma justa indenização no âmbito interno,
mediante a pensão vitalícia estadual, acumulada com a pensão federal e vitalícia por morte a favor
da senhora Albertina Viana Lopes, as quais devem ser consideradas pela Corte. À senhora Albertina
Viana Lopes já foram reparados o “dano moral” e o dano civil ocasionados. Os demais familiares da
vítima indicados pela Comissão e pelos representantes são naturalmente alcançados pelas outras
formas de reparação.
d) Com relação às outras formas de reparação, o Estado alegou que adotou todas as providências que
se esperam de um Estado democrático de direito para evitar a repetição de eventos similares ao
que atingiu o senhor Damião Ximenes Lopes. Adotou numerosas medidas no Município de Sobral,
entre as quais estão as unidades especializadas no tratamento de pessoas portadoras de diversas
doenças. Adotou também, entre outras, medidas no âmbito nacional, tais como a aprovação, em
2001, da Lei nº 10.216 conhecida como “Lei de Reforma Psiquiátrica”; realizou um seminário
sobre “Direito à Saúde Mental – Regulamentação e Aplicação da Lei nº 10.216”; e implementou
diversos programas relacionados com os serviços de saúde. Por último, o Estado informou que
efetuou reparações simbólicas, ao dar ao Centro de Atenção Psicossocial de Sobral (CAPS), em
homenagem à vítima, o nome de “Centro de Atenção Psicossocial Damião Ximenes Lopes”, ao
realizar a Terceira Conferência Nacional de Saúde Mental na denominada Sala Damião Ximenes
Lopes; e ao declarar publicamente na audiência realizada perante a Corte o reconhecimento parcial
de sua responsabilidade internacional pela violação dos direitos consagrados nos artigos 4 e 5 da
Convenção Americana.
189
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
e) Com relação às custas e despesas, alegou que nada há a ser ressarcido aos familiares do senhor
Damião Ximenes Lopes no âmbito interno e que tampouco efetuaram despesas com a tramitação
deste caso, seja perante a Comissão, ou perante este Tribunal e, caso isso tenha ocorrido, não foram
elas comprovadas.
Considerações da Corte
A) BENEFICIÁRIOS
216. A Corte considera como “parte lesada” o senhor Damião Ximenes Lopes, na qualidade de vítima das violações
dos direitos consagrados nos artigos 4.1 e 5.1 e 5.2 da Convenção Americana, em relação com o artigo 1.1 do
mesmo instrumento, motivo por que será credor das reparações que fixe o Tribunal a título de dano material e
imaterial.
217. Este Tribunal considera, ademais, como “parte lesada” as senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes
Lopes Miranda, familiares do senhor Damião Ximenes Lopes, na qualidade de vítimas da violação dos direitos
consagrados nos artigos 5, 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em relação com seu artigo 1.1 (par. 163
e 206 supra). Esta Corte considera ainda como “parte lesada” os senhores Francisco Leopoldino Lopes e
Cosme Ximenes Lopes, também familiares de Ximenes Lopes, na qualidade de vítimas da violação do direito
consagrado no artigo 5 da Convenção Americana, em relação com o artigo 1.1 desse instrumento (par. 163
supra). A Corte considera essas pessoas, por conseguinte, credoras das reparações que venha a fixar a esse
respeito.
218. As senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda e os senhores Francisco Leopoldino Lopes
e Cosme Ximenes Lopes, ademais, serão credores das reparações que o Tribunal fixe como conseqüência das
violações cometidas em detrimento do senhor Damião Ximenes Lopes, as quais serão distribuídas da seguinte
maneira:
a) oitenta por cento (80%) da indenização respectiva deverá ser dividida em partes iguais entre as
senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda; e
b) vinte por cento (20%) da indenização respectiva deverá ser dividida em partes iguais entre os
senhores Francisco Leopoldino Lopes e Cosme Ximenes Lopes.
219. Caso os familiares credores das indenizações que sejam fixadas nesta sentença venham a falecer antes que
lhes seja entregue a indenização de que se trata, o montante a eles devido será distribuído conforme o direito
interno.150
B) DANO MATERIAL
220. Esta Corte passa a determinar o dano material, que supõe a perda ou depreciação da renda da vítima e, quando
cabível, de seus familiares, e as despesas efetuadas em conseqüência dos fatos no caso sub judice.151 A esse
respeito, fixará um montante indenizatório que procure compensar as conseqüências patrimoniais das violações
declaradas na presente sentença. Para resolver sobre o dano material, serão considerados os argumentos das
partes, o acervo probatório e a jurisprudência do próprio Tribunal.
B.1. Perda de ingressos
221. Os representantes e a Comissão solicitaram à Corte que determine uma indenização a título de perda de
ingressos em favor do senhor Damião Ximenes Lopes.
222. Está provado que a única renda do senhor Damião Ximenes Lopes no momento de sua morte era a pensão por
incapacidade que recebia do Instituto Nacional do Seguro Social. De acordo com o artigo 3 da Lei nº 8.212/91,
como conseqüência da morte do beneficiário da pensão, surgiu o direito de seu dependente de passar a recebêla. Neste caso, e em virtude de lei, o Estado mantém integralmente a pensão por morte a favor da senhora
Albertina Viana Lopes, considerada dependente do senhor Damião Ximenes Lopes (par. 112.68 supra)
223. Do acima exposto, e dada a natureza da referida pensão, não ocorreu uma redução do percebido a esse título,
150. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 192; Caso López Álvarez, nota 121 supra, par. 203; e Caso Gómez Palomino, nota 21 supra,
par. 123.
151. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 183; Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, nota 4 supra, par. 216; e Caso Acevedo
Jaramillo e outros, nota 4 supra, par. 301.
190
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
motivo por que esta Corte considera que não procede a fixação de indenização por perda de ingressos a favor
do senhor Damião Ximenes Lopes.
224. Por outro lado, os representantes alegaram que a senhora Irene Ximenes Lopes Miranda, irmã da vítima, deixou
seu emprego na Municipalidade de Ipueiras em conseqüência da morte do irmão e solicitaram à Corte que fixe
a quantia de US$41.850 (quarenta e um mil e oitocentos e cinqüenta dólares dos Estados Unidos da América)
a favor da referida senhora, a título de perda de ingressos.
225. Em vista das alegações dos representantes, esta Corte considera que há elementos para concluir que a senhora
Irene Ximenes Lopes Miranda deixou de perceber seus ingressos por algum tempo ao não poder trabalhar,
em virtude da morte de seu irmão. Este Tribunal considera, por conseguinte, procedente fixar com eqüidade a
quantia de US$10.000,00 (dez mil dólares dos Estados Unidos da América) como indenização a título de dano
material a favor da referida senhora, a qual lhe deverá ser entregue.
B.2) Dano emergente
226. Analisada a informação recebida pelas partes, os fatos do caso e sua jurisprudência, o Tribunal observa que,
apesar de não terem sido aportados os comprovantes de despesas, é de presumir que os familiares do senhor
Damião Ximenes Lopes incorreram em diversos gastos funerários,152 bem como em outros gastos relacionados
com o traslado do corpo da vítima da cidade de Sobral até a cidade de Fortaleza para a realização da necropsia.
A Corte estima pertinente, portanto, fixar, com eqüidade, a quantia de US$1.500,00 (mil e quinhentos dólares
dos Estados Unidos da América) como indenização a título de dano emergente, a qual deverá ser entregue a
senhora Albertina Viana Lopes.
C) DANO IMATERIAL
227. O dano imaterial pode abranger os sofrimentos e as aflições, o menoscabo de valores muito significativos para
as pessoas e as alterações, de caráter não-pecuniário, nas condições de existência das vítimas. Não sendo
possível atribuir ao dano imaterial um equivalente monetário preciso, a reparação integral às vítimas só pode
ser objeto de compensação de duas maneiras. Em primeiro lugar, mediante o pagamento de uma quantia em
dinheiro ou a entrega de bens ou serviços apreciáveis em dinheiro, que o Tribunal determine em aplicação
razoável do arbítrio judicial e em termos de eqüidade. Em segundo lugar, mediante a realização de atos ou obras
de alcance ou repercussão públicos, que tenham como efeito, entre outros, reconhecer a dignidade da vítima e
evitar a repetição das violações.153
228. No caso sub judice, este Tribunal declarou que o Estado é responsável pela violação de direitos consagrados
nos artigos 4.1 e 5.1 e 5.2 da Convenção Americana, em detrimento do senhor Damião Ximenes Lopes; no
artigo 5 da Convenção, em detrimento das senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes e dos
senhores Francisco Leopoldino Lopes e Cosme Ximenes Lopes; e nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção, em
detrimento das senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes, todos em relação com o artigo 1.1
desse instrumento. O Estado deve, por conseguinte, reparar Damião Ximenes Lopes e seus familiares pelo
dano causado.
229. Antes de passar a determinar as reparações cabíveis no presente caso, esta Corte estima oportuno referir-se
à ação civil de reparação de danos interposta pela senhora Albertina Viana Lopes na jurisdição interna e à
pensão vitalícia constituída pelo Estado do Ceará, mediante a Lei nº 13.491, a favor da referida senhora (par.
112.69 supra).
230. Com relação à ação civil de reparação de danos, o Estado alegou que a Corte deve evitar um bis in idem que
ocorreria na suposição de que, por um lado, a ação civil de reparação de danos fosse declarada procedente na
tramitação perante a jurisdição interna, com o conseqüente pagamento de uma indenização e, por outro, que a
Corte decidisse condenar o Estado a pagar uma in+denização por danos imateriais a favor da senhora Albertina
Viana Lopes. Segundo o Estado o mesmo dano estaria sendo em conseqüência duplamente reparado. Aduziu,
por sua vez, que o pedido da ação civil de reparação de danos havia sido interposto contra particulares e não
contra o Estado.
231. A esse respeito, a Corte considera que as vítimas ou seus familiares mantêm o direito a que fazem jus de
152. Cf. Caso dos Irmãos Gómez Paquiyauri, nota 108 supra, par. 207.
153. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 188; Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, nota 4 supra, par. 219; e Caso Acevedo
Jaramillo e outros, nota 4 supra, par. 308.
191
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
reclamar perante a jurisdição interna uma indenização dos particulares que pudessem ser responsabilizados
pelo dano. Neste caso, Albertina Viana Lopes exerceu esse direito ao interpor a ação civil de reparação de
danos, que ainda se encontra pendente de solução.
232. Em virtude da responsabilidade internacional em que incorreu o Estado, nasce para esse mesmo Estado uma
relação jurídica nova que consiste na obrigação de reparar,154 distinta da reparação que os familiares da vítima
pudessem obter de outras pessoas físicas ou jurídicas. Por conseguinte, o fato de que tramite uma ação civil de
reparação de danos contra particulares no foro interno não impede que a Corte ordene uma reparação econômica
a favor da senhora Albertina Viana Lopes, pelas violações da Convenção Americana. Caberá ao Estado, na sua
jurisdição, resolver as conseqüências que possam eventualmente advir da ação civil de reparação de danos que
a senhora Albertina Viana Lopes interpôs na jurisdição interna.
233. O Estado também solicitou à Corte que declare que efetuou o pagamento de uma justa indenização no âmbito
interno, por meio da pensão vitalícia estadual, como compensação do “dano moral”. A esse respeito, está
demonstrado que o Estado do Ceará expediu a Lei nº 13.491, que determinou uma pensão mensal vitalícia a
favor da senhora Albertina Viana Lopes, que atualmente alcança o valor de R$323.40 (trezentos e vinte e três
reais e quarenta centavos), desde 16 de junho de 2004, depois de mais de quatro anos da morte da vítima (par.
112.69 supra).
234. A Corte reconhece o fato de que o Estado do Ceará estipulou motu proprio a referida pensão em benefício da
senhora Albertina Viana Lopes. No entanto, em virtude das considerações expostas acima, este Tribunal estima
procedente fixar uma indenização por dano imaterial a favor da mãe do senhor Damião Ximenes Lopes, ou de
seus familiares, se for o caso, pelas violações de seus direitos humanos consagrados na Convenção Americana
declaradas nesta Sentença (par. 163 e 206 supra), sem deixar de observar que a referida pensão constitui um
benefício legal vitalício concedido à senhora Albertina Viana Lopes, que a Corte valoriza, independentemente
das reparações que fixe a título de dano imaterial (par. 237.b e 238.b infra).
***
235. No caso sub judice, em consideração aos sofrimentos causados ao senhor Damião Ximenes Lopes, e que
também produziram sofrimentos a alguns de seus familiares, mudança de suas condições de existência e a
outras conseqüências de ordem não pecuniária, a Corte estima pertinente determinar o pagamento de uma
compensação, fixada eqüitativamente, a título de danos imateriais.155
236. Este Tribunal reconhece que às senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda, familiares do
senhor Damião Ximenes Lopes, foi causado um dano imaterial pela falta de uma investigação séria, diligente e
efetiva por parte das autoridades estatais para determinar o ocorrido à vítima e, quando cabível, para identificar
e punir os responsáveis. A Corte estima que neste caso não é pertinente ordenar o pagamento de compensação
econômica a título de dano imaterial pela violação dos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, levando em
conta que esta sentença constitui, per se, uma forma de reparação156 e considerando que os atos ou obras de
alcance ou repercussão públicos especificados nos seguintes parágrafos significam uma devida reparação nos
termos do artigo 63.1 da Convenção.
237. Em consideração aos diferentes aspectos do dano aduzidos pela Comissão e pelos representantes, a Corte
considera os seguintes aspectos:
a) no que se refere ao senhor Damião Ximenes Lopes, este Tribunal leva em conta para a determinação
da indenização a título de dano imaterial que está provado que este não recebeu assistência médica
nem tratamento adequados como paciente portador de deficiência mental, que por sua condição era
especialmente vulnerável e foi submetido a tratamentos cruéis desumanos e degradantes enquanto
esteve hospitalizado na Casa de Repouso Guararapes, situação que se viu agravada com sua morte
(par. 112.7, 112.8, 112.9, 112.11, 112.12, 112.56 e 112.57 supra);
b) na determinação da indenização a título de dano imaterial que cabe à senhora Albertina Viana Lopes,
154. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 175; Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, nota 4 supra, par. 196; e Caso Baena Ricardo
e outros. Competência. Sentença de 28 de novembro de 2003. Série C, nº 104, par. 65.
155. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 189; Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, nota 4 supra, par. 220; e Caso López Álvarez,
nota 121 supra, par. 200.
156. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 189; Caso Acevedo Jaramillo e outros, nota 4 supra, par. 309; e Caso López Álvarez, nota 121
supra, par. 200.
192
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
esta Corte toma em conta o fato de que é a mãe do falecido. Considera, ademais, que foi constatado
o profundo sofrimento e angústia que lhe causou ver a situação deplorável em que se encontrava
seu filho na Casa de Repouso Guararapes e seu conseqüente falecimento; e as seqüelas físicas e
psicológicas posteriormente produzidas (par. 112.70 e 157);
c) com respeito ao senhor Francisco Leopoldino Lopes, com a finalidade de determinar a indenização
por danos imateriais, o Tribunal considera o fato de que era o pai do senhor Damião Ximenes Lopes,
mantinha vínculo afetivo com ele e sofreu em conseqüência da morte do filho (par. 112.71 e 159
supra);
d) no que se refere à senhora Irene Ximenes Lopes Miranda, irmã do senhor Damião Ximenes Lopes,
o Tribunal, para a determinação da indenização a título de dano imaterial, considera o sofrimento
causado pela morte de seu irmão, com quem mantinha um laço afetivo estreito, o que lhe causou
sofrimentos e seqüelas psicológicas posteriores. A senhora Irene Ximenes Lopes Miranda, ademais,
ainda em detrimento do bem-estar de suas filhas, procurou justiça a partir da morte do irmão, para
o que recorreu a diversos órgãos na jurisdição interna e internacional, o que a fez sofrer e reviver de
maneira constante as circunstâncias da morte do irmão (par. 112.70, 160 e 161 supra); e
e) na determinação da indenização a título de dano imaterial que cabe ao senhor Cosme Ximenes Lopes,
que também esteve internado em instituições psiquiátricas, a Corte considera o vínculo afetivo e a
identificação que havia entre os dois irmãos e o fato de que o falecimento de seu irmão lhe causou
dor e sofrimento, que esteve em estado de choque, sofreu depressão e deixou de trabalhar em
conseqüência da morte do senhor Damião Ximenes Lopes (par. 112.71 e 162 supra).
238. Em consideração ao exposto, a Corte fixa com eqüidade o valor das compensações a esse título, nos seguintes
termos :
a) para o senhor Damião Ximenes Lopes a quantia de US$50.000,00 (cinqüenta mil dólares dos Estados
Unidos da América), que deverá ser distribuída entre as senhoras Albertina Viana Lopes e Irene
Ximenes Lopes Miranda e os senhores Francisco Leopoldino Lopes e Cosme Ximenes Lopes;
b) para a senhora Albertina Viana Lopes a quantia de US$30.000,00 (trinta mil dólares dos Estados
Unidos da América);
c) para o senhor Francisco Leopoldino Lopes a quantia de US$10.000,00 (dez mil dólares dos Estados
Unidos da América) ;
d) para a senhora Irene Ximenes Lopes Miranda, a quantia de US$25.000,00 (vinte e cinco mil dólares
dos Estados Unidos da América); e
e) para o senhor Cosme Ximenes Lopes a quantia de US$10.000,00 (dez mil dólares dos Estados
Unidos da América).
239. A compensação determinada a favor do senhor Damião Ximenes Lopes será entregue em conformidade com o
parágrafo 218 da presente Sentença e a compensação determinada a favor das senhoras Albertina Viana Lopes
e Irene Ximenes Lopes Miranda e dos senhores Francisco Leopoldino Lopes e Cosme Ximenes Lopes será
entregue a cada um deles.
D) OUTRAS FORMAS DE REPARAÇÃO
(Medidas de Satisfação e Garantias de Não-Repetição)
240. Nos seguintes parágrafos o Tribunal determinará as medidas de satisfação que procuram reparar o dano
imaterial, que não têm alcance pecuniário, bem como disporá medidas de alcance ou repercussão públicos.157
241. Para efeitos de uma desculpa pública aos familiares da vítima, a Corte acata e aprecia o reconhecimento parcial
de responsabilidade internacional realizado pelo Estado na audiência pública realizada em 30 de novembro de
2005, com relação ao presente caso (par. 36 e 63 supra). Nessa oportunidade, o Estado manifestou que:
reconhece a procedência da petição da Comissão Interamericana no que se refere à violação dos artigos
4 (Direito à vida) e 5 (Direito à integridade pessoal) da Convenção Americana.
242. Ademais, este Tribunal destaca o fato de que em 3 de novembro de 2005 o Estado deu ao Centro de Atenção
Psicossocial de Sobral (CAPS), instalado na cidade de Sobral no âmbito da criação da Rede de Atenção Integral
157. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 193; Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, nota 4 supra, par. 228; e Caso do Massacre
de Puerto Bello, nota 25 supra, par. 264.
193
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
à Saúde Mental, o nome de “Centro de Atenção Psicossocial Damião Ximenes Lopes”. O Estado também deu à
sala em que se realizou a Terceira Conferência de Saúde Mental o nome do senhor Damião Ximenes Lopes. Isso
contribui para conscientizar quanto à não-repetição de fatos lesivos como os ocorridos neste caso e manter
viva a memória da vítima.158
243. A Corte também reconhece que o Estado adotou internamente uma série de medidas para melhorar as
condições da atenção psiquiátrica nas diversas instituições do Sistema Único de Saúde (SUS). Algumas
dessas medidas foram adotadas pelo Município de Sobral, a saber: foi constituída uma comissão para
investigar a responsabilidade da Casa de Repouso Guararapes em relação com a morte do senhor Damião
Ximenes Lopes; foi implementada a Rede de Atenção Integral à Saúde Mental de Sobral; foi assinado
no ano 2000 um convênio entre o Programa Saúde na Família e a Equipe de Saúde Mental do Município
de Sobral; e foram criados uma Unidade de Internação Psiquiátrica no Hospital Dr. Estevão da Ponte do
Município de Sobral; um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) especializado no tratamento de pessoas
portadoras de psicose e neurose; um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) especializado no tratamento
de pessoas dependentes de álcool e outras substâncias psicotrópicas; o Serviço Residencial Terapêutico;
e uma unidade ambulatorial de psiquiatria regionalizada no Centro de Especialidades Médicas e equipes do
Programa Saúde na Família. O Estado também adotou várias medidas no âmbito nacional, entre as quais
estão a aprovação da Lei nº 10.216, em 2001, conhecida como “Lei de Reforma Psiquiátrica”; a realização
do seminário sobre “Direito à Saúde Mental – Regulamentação e aplicação da Lei nº 10.216”, em 23 de
novembro de 2001; a realização da Terceira Conferência Nacional de Saúde Mental em dezembro de 2001;
a criação a partir de 2002 do Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares Psiquiátricos;
a implementação em 2004 do Programa de Reestruturação Hospitalar do Sistema Único de Saúde; a
implementação do “Programa de Volta para Casa”; e a consolidação em 2004 do Fórum de Coordenadores
de Saúde Mental.
244. Este Tribunal valoriza que o Estado adotou as referidas medidas, cuja eficaz aplicação possibilitará o
melhoramento do atendimento de saúde e sua regulamentação e fiscalização no âmbito do Sistema Único
de Saúde.
a) Obrigação de investigar os fatos que geraram as violações no presente caso
245. Os familiares de vítimas de violações de direitos humanos têm o direito a um recurso efetivo. O conhecimento
da verdade dos fatos em violações de direitos humanos como as deste caso é um direito inalienável e um
meio importante de reparação para a suposta vítima e, quando cabível, para seus familiares, além de constituir
uma forma de esclarecimento fundamental para que a sociedade possa desenvolver mecanismos próprios de
desaprovação e prevenção de violações como essas no futuro.159
246. Em conseqüência, os familiares das vítimas têm o direito, e os Estados têm a correspondente obrigação, a
que o ocorrido seja efetivamente investigado pelas autoridades estatais, a que se inicie um processo contra os
supostos responsáveis por esses ilícitos e, se for o caso, de que lhes sejam impostas as sanções pertinentes
(par. 170 a 206 supra).160
247. Neste caso a Corte estabeleceu que, transcorridos mais de seis anos dos fatos, os autores dos tratamentos
cruéis, desumanos e degradantes, bem como da morte do senhor Damião Ximenes Lopes, não foram
responsabilizados, prevalecendo a impunidade (par. 170 a 206 supra).
248. A Corte adverte que o Estado deve garantir que em um prazo razoável o processo interno destinado a investigar
e sancionar os responsáveis pelos fatos deste caso surta seus devidos efeitos, conferindo aplicabilidade direta
no direito interno às normas de proteção da Convenção Americana.
158. Cf. Caso dos Irmãos Gómez Paquiyauri, nota 108 supra, par. 236; Caso Myrna Mack Chang, nota 108 supra, par. 286; e Caso Trujillo
Oroza. Reparações (art. 63.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos). Sentença de 27 de fevereiro de 2002. Série C, nº 92, par. 122.
159. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 196; Caso do Massacre de Puerto Bello, nota 25 supra, par. 266; e Caso Gómez Palomino,
nota 21 supra, par. 78.
160. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 197; Caso do Massacre de Puerto Bello, nota 25 supra, par. 219; e Caso Blanco Romero, nota
20 supra, par. 62 e 96.
194
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
b) Publicação da sentença
249. Conforme o disposto em outros casos,161 como medida de satisfação, o Estado deverá publicar no Diário Oficial
e em outro jornal de ampla circulação nacional, uma só vez, o Capítulo VII, relativo aos fatos provados desta
sentença, sem as respectivas notas de pé de página e, ademais, sua parte resolutiva. Para essas publicações
fixa-se o prazo de seis meses, a partir da notificação da presente Sentença.
c) Estabelecimento de programas de capacitação
250. Ficou provado neste caso que no momento dos fatos não se dispensava adequada atenção ao tratamento
e internação de pessoas portadoras de deficiência mental, como no caso da Casa de Repouso Guararapes,
instituição que oferecia esse serviço no Sistema Único de Saúde. Embora se destaque o fato de que o Estado
adotou diversas medidas destinadas a melhorar esse atendimento, este Tribunal considera que o Estado deve
continuar a desenvolver um programa de formação e capacitação para o pessoal médico, de psiquiatria e
psicologia, de enfermagem e auxiliares de enfermagem, bem como para todas as pessoas vinculadas ao
atendimento de saúde mental, em especial sobre os princípios que devem reger o tratamento a ser oferecido
às pessoas portadoras de deficiência mental, de acordo com as normas internacionais sobre a matéria e as
dispostas nesta Sentença (par. 130 a 135).
***
251. A presente Sentença constitui per se uma forma de reparação e satisfação para as senhoras Albertina Viana
Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda e os senhores Francisco Leopoldino Lopes e Cosme Ximenes Lopes.
E) CUSTAS E GASTOS
252. As custas e gastos estão compreendidas no conceito de reparação consagrado no artigo 63.1 da Convenção
Americana. Compete ao Tribunal apreciar prudentemente e com base na eqüidade, seu alcance, considerando os
gastos gerados nas jurisdições interna e interamericana e levando em conta sua comprovação, as circunstâncias
do caso concreto e a natureza da jurisdição internacional de proteção dos direitos humanos.162
253. A esse respeito, o Tribunal considera eqüitativo ordenar ao Estado que reembolse a quantia de US$10.000.00
(dez mil dólares dos Estados Unidos da América) ou seu equivalente em moeda do Brasil, que deverá ser
entregue à senhora Albertina Viana Lopes para que, por um lado, compense as despesas em que incorreram
os familiares do senhor Damião Ximenes Lopes e, por outro, entregue ao Centro de Justiça Global uma quantia
que julgue pertinente, para compensar as realizadas por essa organização.
F) MODALIDADE DE CUMPRIMENTO
254. O Estado deverá pagar em dinheiro as indenizações e reembolsar as custas e gastos (par. 225, 226, 238 e 253
supra) em um ano, contado a partir da notificação desta sentença. No caso das outras reparações ordenadas
deverá dar cumprimento às medidas em tempo razoável (par. 248 supra) ou naquele que esta sentença disponha
especificamente (par. 249 supra).
255. O pagamento das indenizações estabelecidas a favor das vítimas será efetuado diretamente a elas. Se alguma
delas vier a falecer, o pagamento será feito a seus herdeiros.
256. Se por causas atribuíveis aos beneficiários da indenização não lhes for possível recebê-la no prazo mencionado
de um ano, o Estado consignará essas quantias a favor daqueles em uma conta ou certificado de depósito
em uma instituição bancária brasileira solvente e nas condições financeiras mais favoráveis que permitam a
legislação e a prática bancárias. Se a indenização não for reclamada ao cabo de dez anos, a soma respectiva
será devolvida ao Estado, com os juros gerados.
257. O montante destinado à liquidação das custas e gastos gerados pelas gestões realizadas pelos familiares e pelos
representantes nos procedimentos interno e internacional, conforme seja o caso, será transferido a senhora
Albertina Viana Lopes (par. 253 supra), que efetuará os respectivos pagamentos.
161. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 194; Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, nota 4 supra, par. 236; e Caso Acevedo
Jaramillo e outros, nota 4 supra, par. 313.
162. Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 208; Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, nota 4 supra, par. 237; e Caso Acevedo
Jaramillo e outros, nota 4 supra, par. 315.
195
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
258. O Estado deve cumprir as obrigações econômicas determinadas nesta Sentença mediante o pagamento em
dólares dos Estados Unidos da América ou seu equivalente na moeda nacional do Brasil.
259. Os montantes fixados na presente Sentença a título de indenização, gastos e custas deverão ser entregues
integralmente aos beneficiários, conforme o que se dispõe na Sentença. Não poderão, por conseguinte, ser
afetados, reduzidos ou condicionados por motivos fiscais atuais ou futuros.
260. No caso de que o Estado incorra em mora, pagará juros sobre o montante devido, correspondente aos juros de
mora bancários no Brasil.
261. Conforme determinou e praticou em todos os casos submetidos ao seu conhecimento, a Corte supervisionará
o cumprimento da presente sentença em todos os seus aspectos. Esta supervisão é inerente às atribuições
jurisdicionais do Tribunal e necessária para que este possa cumprir a obrigação a ele designada pelo artigo 65
da Convenção. O caso se dará por concluído uma vez que tenha o Estado dado cabal cumprimento ao disposto
na Sentença. No prazo de um ano, contado a partir da notificação desta Sentença, o Estado apresentará à Corte
um primeiro relatório sobre as medidas adotadas para o cumprimento desta Sentença.
XII
Pontos Resolutivos
262. Portanto,
A CORTE,
DECIDE,
Por unanimidade,
1. Admitir o reconhecimento parcial de responsabilidade internacional efetuado pelo Estado pela violação
dos direitos à vida e à integridade pessoal consagrados nos artigos 4.1 e 5.1 e 5.2 da Convenção
Americana, em relação com a obrigação geral de respeitar e garantir os direitos estabelecida no artigo
1.1 desse tratado, em detrimento do senhor Damião Ximenes Lopes, nos termos dos parágrafos 61
a 81 da presente Sentença.
DECLARA,
Por unanimidade, que
2. O Estado violou, em detrimento do senhor Damião Ximenes Lopes, tal como o reconheceu, os direitos
à vida e à integridade pessoal consagrados nos artigos 4.1 e 5.1 e 5.2 da Convenção Americana, em
relação com a obrigação geral de respeitar e garantir os direitos estabelecida no artigo 1.1 desse
tratado, nos termos dos parágrafos 119 a 150 da presente Sentença.
3. O Estado violou, em detrimento das senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda
e dos senhores Francisco Leopoldino Lopes e Cosme Ximenes Lopes, familiares do senhor Damião
Ximenes Lopes, o direito à integridade pessoal consagrado no artigo 5 da Convenção Americana,
em relação com a obrigação geral de respeitar e garantir os direitos estabelecida no artigo 1.1 desse
tratado, nos termos dos parágrafos 155 a 163 da presente Sentença.
4. O Estado violou, em detrimento das senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda,
familiares do senhor Damião Ximenes Lopes, os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial
consagrados nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em relação com a obrigação geral de
respeitar e garantir os direitos estabelecida no artigo 1.1 desse tratado, nos termos dos parágrafos
170 a 206 da presente Sentença.
5. Esta Sentença constitui per se uma forma de reparação, nos termos do parágrafo 251 dessa mesma
Sentença.
E DISPÕE,
Por unanimidade, que:
6. O Estado deve garantir, em um prazo razoável, que o processo interno destinado a investigar e
sancionar os responsáveis pelos fatos deste caso surta seus devidos efeitos, nos termos dos
parágrafos 245 a 248 da presente Sentença.
196
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
7. O Estado deve publicar, no prazo de seis meses, no Diário Oficial e em outro jornal de ampla circulação
nacional, uma só vez, o Capítulo VII relativo aos fatos provados desta Sentença, sem as respectivas notas
de pé de página, bem como sua parte resolutiva, nos termos do parágrafo 249 da presente Sentença.
8. O Estado deve continuar a desenvolver um programa de formação e capacitação para o pessoal
médico, de psiquiatria e psicologia, de enfermagem e auxiliares de enfermagem e para todas as
pessoas vinculadas ao atendimento de saúde mental, em especial sobre os princípios que devem
reger o trato das pessoas portadoras de deficiência mental, conforme os padrões internacionais
sobre a matéria e aqueles dispostos nesta Sentença, nos termos do parágrafo 250 da presente
Sentença.
9. O Estado deve pagar em dinheiro para as senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes
Miranda, no prazo de um ano, a título de indenização por dano material, a quantia fixada nos
parágrafos 225 e 226, nos termos dos parágrafos 224 a 226 da presente Sentença.
10. O Estado deve pagar em dinheiro para as senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes
Miranda e para os senhores Francisco Leopoldino Lopes e Cosme Ximenes Lopes, no prazo de um
ano, a título de indenização por dano imaterial, a quantia fixada no parágrafo 238, nos termos dos
parágrafos 237 a 239 da presente Sentença.
11. O Estado deve pagar em dinheiro, no prazo de um ano, a título de custas e gastos gerados no âmbito
interno e no processo internacional perante o sistema interamericano de proteção dos direitos
humanos, a quantia fixada no parágrafo 253, a qual deverá ser entregue à senhora Albertina Viana
Lopes, nos termos dos parágrafos 252 e 253 da presente Sentença.
12. Supervisionará o cumprimento íntegro desta Sentença e dará por concluído este caso uma vez que o
Estado tenha dado cabal cumprimento ao disposto nesta Sentença. No prazo de um ano, contado a
partir da notificação desta Sentença, o Estado deverá apresentar à Corte relatório sobre as medidas
adotadas para o seu cumprimento.
O Juiz Sergio García Ramírez deu a conhecer à Corte seu Voto Fundamentado e o Juiz Antônio Augusto
Cançado Trindade deu a conhecer à Corte seu Voto Separado, os que acompanham a presente Sentença.
Redigida em espanhol e português, fazendo fé o texto em espanhol, em San José, Costa Rica, em 4 de
julho de 2006.
Sergio García Ramírez
Presidente
Alirio Abreu Burelli
Cecilia Medina Quiroga
Antônio A. Cançado Trindade
Manuel E. Ventura Robles
Diego García-Sayán
Pablo Saavedra Alessandri
Secretario
Comunique-se e execute-se,
Sergio García Ramírez
Presidente
Pablo Saavedra Alessandri
Secretario
197
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
VOTO SEPARADO DO JUIZ A.A. CANÇADO TRINDADE
1. Venho de contribuir com meu voto à adoção, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, da presente
Sentença no caso Ximenes Lopes versus Brasil. Dada a particular relevância da matéria examinada pela
Corte, vejo-me da obrigação de deixar consignadas, neste Voto Separado, minhas reflexões pessoais sobre o
tratado pela Corte nesta Sentença, como fundamento de minha posição a respeito. Faço-o, como de costume
nesta Corte, sob a pressão impiedosa do tempo, não tendo disposto de mais do que algumas horas para a
elaboração e apresentação deste Voto. No propósito assinalado, abordarei, no presente Voto Separado, os
seguintes pontos: a) a centralidade do sofrimento das vítimas no Direito Internacional dos Direitos Humanos;
b) o reconhecimento de responsabilidade internacional pelo Estado demandado; c) o direito de acesso à
justiça lato sensu na indissociabilidade entre os artigos 25 e 8 da Convenção Americana; d) o direito de acesso
à justiça como direito à pronta prestação jurisdicional; e) a aplicabilidade direta da Convenção Americana no
direito interno e as garantias de não-repetição dos fatos lesivos; e f) a necessidade de ampliação do conteúdo
material do jus cogens.
I. A Centralidade do Sofrimento das Vítimas no Direito Internacional dos Direitos Humanos.
2. Há casos de violações de direitos humanos que evocam tragédias, revelando a perene atualidade destas
últimas, como próprias da condição humana. Para recordar dois antecedentes, em meu Voto Separado no
caso Bámaca Velásquez versus Guatemala (mérito, Sentença de 25.11.2000) perante esta Corte, assaltou-me
a mente a célebre tragedia de Antígona de Sófocles (parágrafos 8-9). Em meu Voto Separado no caso Bulacio
versus Argentina (mérito e reparações, Sentença de 18.09.2003) permiti-me referir-me ao Ajax e ao Filoctetes
de Sófocles (parágrafos 8 e 16), ao desespero de Hécuba de Eurípides (parágrafo 22), ao Agamenon de
Ésquilo (parágrafos 26), e às Eumênides (a última obra da trilogía Orestíada) de Ésquilo (parágrafo 32).
3. O presente caso Ximenes Lopes versus Brasil é outro que contém ingredientes trágicos que me trazem
de imediato à mente as imperecíveis e tão atuais tragédias gregas. É o que me trouxe à mente, e.g., a
declaração testemunhal da irmã da vítima (Sra. Irene Ximenes Lopes Miranda), no transcorrer da audiência
pública sobre o cas d’espèce perante esta Corte de 30 de novembro e 01 de dezembro de 2005. A referida
e comovente declaração de Irene trouxe-me à mente a personagem Electra, tanto de Sófocles como de
Eurípides. A Electra de Eurípides estava muito mais inclinada à justiça privada tão somente163, ao passo que
a Electra de Sófocles se deixa abater, previamente e em muito maior grau, pela dor ante o anúncio (ainda
que falso) da morte do irmão.
4. A Electra de Sófocles se descompôs ao ver na urna as cinzas que pensava ser de seu irmão Orestes (não
o eram), e recordou em desespero seu afeto por ele (sem saber que estava vivo), antes de buscar a justiça
privada, como era de praxe em seu tempo. Ao tocar as referidas cinzas, lamentou em prantos:
“(...) Ahora nada es lo que tengo entre mis manos, mientras que radiante en salud, oh hijo, te envié yo
fuera de esta casa! Ojalá hubiera dejado yo la vida antes que te enviara a tierra extraña, ocultándote con
mis manos y librándote de la muerte! (...) Ahora fuera del hogar y en otra tierra (...) mal acabaste lejos
de tu hermana (...). Cuidado por manos extrañas, reducido vuelves a cenizas en reducida vasija! Ay de
mí, desdichada, por todos mis inútiles cuidados de antes, que en torno tuyo prodigué con dulce fatiga!
(...) Yo era quien te criaba, yo por tí siempre llamada `hermana’. Pero ahora, contigo muerto, se acaba
esto en un sólo día, porque todo lo has arrebatado de golpe, como vendaval, al marcharte (...).
(...) Muerte me has dado de seguro, oh hermano! Por ello recíbeme tú en esta tu morada, a mí que nada
soy tú que no eres nada, para que contigo habite bajo tierra en lo sucesivo, porque también, cuando
estabas en la tierra, contigo participaba de las mismas cosas; por eso ahora deseo morir y no dejar tu
tumba, pues no veo que los muertos sufran”164.
5. Irene, irmã de Damião Ximenes Lopes, que teve pior sorte que Electra: também se descompôs, ao tomar
conhecimento que seu irmão, saído de sua casa e entregue aos cuidados da “previdência” social em uma casa
de “repouso”, aí foi morto, e igualmente recordou seu afeto por ele:
“(...) Como irmã mais velha, eu cuidava de certa forma dele, (...) o acompanhava, o levava para minha
casa, o visitava. (...) A minha relação com ele era a melhor possível, mais do que irmã, um pouco mãe
também.
(...) Eu o vi já no caixão, pronto para o sepultamento. (...) Pude observar várias marcas de tortura. (...)
163. Euripides, Electra and Other Plays, London, Penguin, 2004 [reed.], pp. 131-174.
164. Sófocles, Electra, Madrid, Ed. Clásicas, 1995 [reed.], pp. 69-70.
198
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
Ele havia sido espancado. (...)
[Tudo isto] me deixou chocada, me deixou aterrorizada, eu tive muitas e muitas noites de pesadelos
(...). Fiquei aterrorizada (...). Eu sentia dor no peito, mas não era dor que lacerava o coração, mas a
minha alma. (...)
[O ocorrido] ainda hoje tem efeito, (...) são seis anos de desespero por justiça. (...) Entrei em uma
grande luta por justiça (...). Eu tive três anos de depressão, (...) viajei muito em busca de justiça (...)”165.
6. Irene pronta e efetivamente decidiu, à beira do túmulo de seu irmão querido, partir com determinação em
busca da justiça pública, como é a praxis em seu tempo, em nosso tempo, que até hoje, com a adoção da
presente Sentença da Corte Interamericana, não havia encontrado. Como o relatou perante esta Corte,
“(...) No dia do enterro de meu irmão no cemitério, eu me ajoelhei sobre o caixão dele e jurei que minha
alma não sossegava enqüanto não houvesse justiça, e são seis anos em que eu busco justiça. (...)
Deixei agora minha alma sossegar, não deixei a morte de meu irmão impune, eu clamo por justiça”166.
A presente Sentença da Corte Interamericana, a ser devidamente cumprida pelo Estado brasileiro, vem
reivindicar seu sofrimento e saciar sua sede de justiça. Revela, ademais, a relevância da jurisdição internacional
em nossos dias.
7. A história de Electra e a de Irene são inteiramente distintas, passadas em épocas separadas por séculos. Não
obstante, apresentam em comum a tragédia da condição humana, ante a persistência da indiferença e crueldade
realçado no trato dos mais vulneráveis, assim como a busca desesperada e desesperadora da justiça (outrora
privada, hoje pública). Desvendam a insondável presença da tragédia nos mistérios que circundam a vida,
que alguns têm buscado simplificar caracterizando-a como destino. O sofrimento humano continua sendo
irremediavelmente uma triste marca da condição humana ao longo dos séculos. Com particular clarividência,
Sófocles advertia, já no século V a.C., em seu Édipo Rei167, que jamais há que dizer que alguém é feliz até o
momento em que tenha transpassado o limite extremo da vida livre da dor.
8. E a evolução da justiça privada (dos antigos gregos) à justiça pública (dos “modernos” e “pós-modernos”)
parece prosseguir inacabada, revestindo-se de um cunho sobretudo ritualista, contaminada pela erosão e
“terceirização” dos serviços públicos e por uma justiça meramente formalista. Ao que se agrega a lamentável
transformação de bens públicos como a saúde e a educação em mercadorias. Damião Ximenes Lopes teve
morte violenta ao ser confiado à “previdência” social pública e ao ser confinado em uma casa de “repouso”, a
de Guararapes.
9. A morte violenta do indefeso Damião, que buscava tratamento médico, teve um efeito devastador na vida não
só de sua irmã Irene, mas nas de todos os familiares imediatos. Conforme o relato de Irene perante a Corte,
o irmão gêmeo de Damião, Cosme, dada a proximidade com o irmão vitimado, “entrou em estado de choque”
ao tomar conhecimento do falecimento de Damião. Mas,–agregou Irene,–“até hoje o Cosme não sabe os
detalhes da tortura e da violência; nós omitimos porque isto ia causar muito sofrimento para ele e queríamos
preservar a saúde dele”168. Em outras palavras, ele foi devidamente preservado da verdade, o que se mostra
em determinadas circunstâncias necessário, pois a tragédia do conhecimento da condição humana pode
afigurar-se por vezes insuportável, sobretudo aos mais vulneráveis ou sensíveis.
10. A vida da mãe foi “completamente arruinada”, está sempre a recordar-se da morte do filho Damião, “até
hoje ela tem depressão e declara que tem desejo de morrer”169. Mãe e pai já se encontravam separados,
mas haviam preservado os laços familiares de afeto com os filhos; o pai, tomado por “grande sofrimento”
e “desejo de vingança” pela morte de Damião, buscou “ajuda espiritual” em uma igreja evangélica, o que
“o amenizou”170. O sofrimento humano tem, ademais, uma dimensão intergeneracional, passando de pais a
filhos,–como advertido já no livro do Gênesis, que prognostica que serão todos os humanos conhecedores do
bem e do mal (3,5).
11. As sombras da existência humana são retomadas pelo livro de Jó, em que os opressores dão aos oprimidos
165. Corte Interamericana de Direitos Humanos [CtIADH], Transcrição da Audiência Pública de 30.11.2005 e 01.12.2005 no Caso Ximenes Lopes
versus Brasil, pp. 23 e 27-28.
166. Ibid., p. 28, e sobre a responsabilidade do Estado, cf. p. 32.
167. Na penetrante frase final–versos 1529-1530.
168. [CtIADH], Transcrição da Audiência Pública..., op. cit. supra n. (3), p. 27.
169. Ibid., p. 28.
170. Ibid., pp. 28.
199
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
suas ordens, marcadas pela violência (24.2-4.9 e 24.5-8.10-12ab). Na época da morte de Damião, a irmã Irene
tinha uma filha recém-nascida, que, em conseqüêcia do ocorrido, deixou de ser amamentada; como assinalou
Irene perante esta Corte, “devido ao abalo emocional, eu fiquei semanas sem alimentá-la, e minhas mamas não
produziram leite; minha filha ficou sem alimento natural, teve que tomar alimento artificial”171. O sofrimento
humano passa de geração a geração, desde o início ao fim da vida. Como já o advertia o Eclesiastes,
“as lágrimas dos oprimidos não há quem as console; ninguém os apoia contra a violência de seus
opressores” (4,1).
12. Sófocles bem o intuiu, nos coros tanto de Antígona como de Édipo Rei: o primeiro asseverou que
“Thrice happy are they who have
never known disaster!
Once a house is shaken of heaven, disaster
Never leaves it, from generation to generation. (...)
Then pray no more; from suffering that has been
Decreed no man will ever find escape”172.
E o segundo indagou:
“Has any man won for himself
More than the shadow of happiness,
A shadow that swiftly fades away?”173
13. Como, no século XX, assinalou Edgar Morin, a própria história da cultura humana ergue-se sobre atos de
crueldade, não havendo um só testemunho da cultura que não o seja igualmente de atos de barbárie174. O que
o levou a acrescentar que
“Como la propia vida, el hombre se desenvuelve en el azar, contiene el azar en si mismo, está hecho
para encontrarse con el azar, combatirlo, domesticarlo, escapar a él, fecundarlo, jugar con él, correr el
riesgo que supone, aprovechar las oportunidades..
(...) La vida está siempre al borde del desastre. La muerte está en el universo físico-químico en el que
la vida corre constantemente el riesgo de perecer, pero en el que se ha formado, tejido, desarrollado.
La muerte está en la indeterminación micro-física, pero indeterminación que al mismo tiempo está en
la fuente de las mutaciones y las creaciones, de toda creación. La mutación, fuente de la muerte, es
también fuente de la vida. Lo desordenado, ese caos subterráneo y permanente, es a la vez lo que crea
y lo que destruye.
(...) La muerte, para el hombre, está en el tejido del mundo, de su ser, de su espíritu, de su pasado, de
su futuro”.
14. Não obstante, ainda que privado da felicidade, e abandonado ao acaso (como, no presente caso perante
esta Corte, o Sr. Damião Ximenes Lopes, que, confiado à “previdência” social em uma casa de “repouso”,
aí encontrou a morte violenta), o ser humano não pode abandonar a luta pela justiça, enquanto mantiver a
capacidade de indignação. De outro modo, estará privado não só da felicidade, mas igualmente da busca
do sentido da vida, ainda que tão breve e efêmera. Outra lição que pode ser extraída de Electra (e também,
acrescento, da reação de Irene Ximenes Lopes), é que “a vida é muito mais cômoda quando se se submete
às piores injustiças e se se esquece de que são injustiças”175. Mais cômoda, sim, se torna, mas também
inteiramente sem sentido. Daí a inevitabilidade do sofrimento ante a crueldade humana.
15. Em meu Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, permito-me destacar precisamente a projeção
do sofrimento humano no tempo e a centralidade das vítimas no Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Como aí pondero, inter alia, a esse respeito,
“O Direito Internacional dos Direitos Humanos, ao orientar-se essencialmente à condição das vítimas,
tem em muito contribuído a restituir-lhes a posição central que hoje ocupam no mundo do Direito,–o
171. Ibid., p. [9].
172. Versos 584-587 y 1335-1337.
173. Versos 1189-1191.–Textos in: Sophocles, Antigone–Oedipus the King, Electra, Oxford, University Press, 1998 [reed. Oxford World’s Classics].
174. E. Morin, El Hombre y la Muerte (1970), 4a. ed., Barcelona, Ed. Kairós, 2003 [reed.], p. 53.
175. Simone Weil, La Fuente Griega, Madrid, Ed. Trotta, 2005 [reed.], p. 66.
200
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
que tem sua razão de ser. A centralidade das vítimas no universo conceitual do Direito Internacional dos
Direitos Humanos, insuficientemente analisada pela doutrina jurídica contemporânea até o presente, é
da maior relevância e acarreta conseqüências práticas. Na verdade, é da própria essência do Direito
Internacional dos Direitos Humanos, porquanto é na proteção estendida às vítimas que este alcança sua
plenitude. Mas o rationale de sua normativa de proteção não se esgota no amparo estendido a pessoas
já vitimadas. O Direito Internacional dos Direitos Humanos, por sua própria existência, universalmente
reconhecida em nossos dias, protege os seres humanos também por meio da prevenção da vitimização.
O alcance de seu corpus juris deve ser, pois, apreciado também sob esse prisma. (...)
O Direito Internacional dos Direitos Humanos contribui, assim, decisivamente, ao processo de
humanização do Direito Internacional176. O tratamento dispensado aos seres humanos pelo poder público
não é mais algo estranho ao Direito Internacional. Muito ao contrário, é algo que lhe diz respeito, porque
os direitos de que são titulares todos os seres humanos emanam diretamente do Direito Internacional.
Os indivíduos são, efetivamente, sujeitos do direito tanto interno como internacional. E ocupam posição
central no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, sejam ou não vítimas de violações de
seus direitos internacionalmente consagrados”177.
II. O Reconhecimento de Responsabilidade Internacional pelo Estado Demandado.
16. No tocante às considerações prévias da presente Sentença sobre o caso Ximenes Lopes, não há que passar
despercebido que a Corte Interamericana valorou o reconhecimento de responsabilidade internacional
efetuado pelo Estado demandado como “uma contribuição positiva ao desenvolvimento deste processo e à
vigência dos princípios que inspiram a Convenção Americana no Brasil” (par. 80), em particular no tocante ao
reconhecimento da violação dos artigos 4 e 5 da Convenção (pars. 119 e 122). Com isto cessou a controvérsia
em quanto a determinados fatos do caso concreto, embora a Corte naturalmente não tivesse se eximido de
proceder, como cabia, a sua própria valoração dos fatos.
17. Ademais, como se depreende da audiência pública perante esta Corte de 30 de novembro e 01 de dezembro de
2005, as partes intervenientes demonstraram um espírito construtivo e de cooperação processual, ademais do
zelo e profissionalismo no envio de documentação à Corte e na apresentação de seus respectivos argumentos
orais. Isto possibilitou à Corte cumprir o dever de prestação jurisdicional efetiva dentro de um prazo razoável
sob a Convenção Americana,–em contraste com o ocorrido no plano do direito interno,–o que vem ressaltar a
relevância da jurisdição intrnacional.
18. Em quanto à correta resolução por esta Corte da questão da exceção preliminar interposta pelo Estado
demandado, não vejo necessidade de aqui reiterar integralmente meu Voto Concordante na anterior Sentença
de 30.11.2005 no presente caso Ximenes Lopes, mas tão somente seu último parágrafo, em que afirmei,
quanto à necessidade de maior reflexão acerca do aperfeiçoamento dos procedimentos sob a Convenção
Americana, e de melhor esclarecimento do papel reservado à Comissão sob a Convenção:
“Minha posição a respeito é claríssima, registrada que se encontra no Projeto de Protocolo à Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, que me permiti apresentar, em nome da Corte Interamericana, aos
órgãos competentes da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 2001178, que consagra o acesso
direto da pessoa humana à justiça internacional, a jurisdição automaticamente obrigatória da Corte
Interamericana, a jurisdicionalização do sistema interamericano de proteção, e a retenção, no âmbito
deste último, na atualidade, do papel de fiscal da Comissão Interamericana” (par. 3).
III. O Direito de Acesso à Justiça Lato Sensu na Indissociabilidade entre os Artigos 25 e 8 da
Convenção Americana.
19. Permito-me, a seguir, retomar aqui uma das questões centrais examinadas pela Corte na presente Sentença
no caso Ximenes Lopes (e tratada em sua jurisprudence constante, e em numerosos Votos que tenho emitido
em casos contenciosos submetidos ao conhecimento deste Tribunal), qual seja, a do acesso à justiça lato
sensu, consubstanciado na indissociabilidade–que há anos sustento no seio desta Corte–entre os artigos
25 e 8 da Convenção Americana. A respeito, em meu recente e extenso Voto Separado no caso do Massacre
176. Como temos reiteradamente assinalado em nossos Votos Separados em Sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como,
inter alia, nos casos dos “Meninos de Rua” (Villagrán Morales e Outros versus Guatemala (Reparaçoes, 2001), de Blake versus Guatemala (Mérito,
1998, e Reparações, 1999), de Bámaca Velásquez versus Guatemala (Mérito, 2000, e Reparações, 2002), assim como em nosso Voto Concordante
no Parecer da Corte Interamericana sobre o Direito à Informação sobre a Assistência Consular no Âmbito das Garantias do Devido Processo Legal
(1999).
177. A.A. Cançado Trindade, Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, tomo III, Porto Alegre, S.A. Fabris Ed., 2003, pp. 434-436,
parágrafos 48 e 50.
178. A.A. Cançado Trindade, Bases para un Proyecto de Protocolo a la Convención Americana sobre Derechos Humanos, para Fortalecer Su
Mecanismo de Protección, vol. II, 2a. ed., San José de Costa Rica, Corte Interamericana de Derechos Humanos, 2003, pp. 1-1015.
201
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
de Pueblo Bello versus Colômbia (Sentença de 31.01.2006), abordei, em seqüência lógica, o amplo alcance
do dever geral de garantia (artigo 1(1) da Convenção Americana) e as obrigações erga omnes de proteção
(pars. 2-13), a gênese, ontologia e hermenêutica dos artigos 25 e 8 da Convenção Americana (pars. 14-21),
a irrelevância da alegação de dificuldades de direito interno (pars. 22-23), o direito a um recurso efetivo na
construção jurisprudencial da Corte Interamericana (pars. 24-27); em seguida, examinei a indissociabilidade
entre o acesso à justiça (direito a um recurso efetivo) e as garantias do devido processo legal (artigos 25 e
8 da Convenção Americana) (pars. 28-34), e concluí que tal indissociabilidade, consagrada na jurisprudence
constante da Corte até o presente (pars. 35-43), constitui “um patrimônio jurídico do sistema interamericano
de proteção e dos povos de nossa região”, razão pela qual “me oponho firmemente a qualquer tentativa de
desconstruí-lo” (par. 33).
20. No mesmo Voto Separado no caso do Massacre de Pueblo Bello, sustentei a referida indissociabilidade entre
os artigos 25 e 8 da Convenção Americana como um “avanço jurisprudencial intangível” (pars. 44-52)179. A
seguir, abordei o direito de acesso à justiça lato sensu, observando que
“En los Informes que presenté, como entonces Presidente de la Corte Interamericana, a los órganos
competentes de la Organización de los Estados Americanos (OEA), e.g., los días 19.04.2002
y 16.10.2002, sostuve mi entendimiento en el sentido del amplio alcance del derecho de acceso a
la justicia a nivel internacional, del derecho de acceso a la justicia lato sensu180. Tal derecho no se
reduce al acceso formal, stricto sensu, a la instancia judicial (tanto interna como internacional), sino
comprende, además, el derecho a la prestación jurisdiccional, y encuéntrase subyacente a disposiciones
interrelacionadas de la Convención Americana (como los artículos 25 y 8), además de permear el
derecho interno de los Estados Partes181. El derecho de acceso a la justicia, dotado de contenido jurídico
propio, significa, lato sensu, el derecho a obtener justicia. Configúrase, así, en suma, como el derecho
a la propia realización de la justicia.
Uno de los componentes principales de ese derecho es precisamente el acceso directo a un tribunal
competente, mediante un recurso efectivo y rápido, y el derecho a ser prontamente oído por dicho
tribunal, independiente e imparcial, a niveles tanto nacional como internacional (artículos 25 y 8 de
la Convención Americana). Como me permití señalar en una obra reciente, podemos aqui visualizar
un verdadero derecho al Derecho, o sea, el derecho a un ordenamiento jurídico–a niveles tanto
nacional como internacional–que efectivamente salvaguarde los derechos fundamentales de la persona
humana182” (párrs. 61-62).
21. Enfim, no mesmo Voto Separado no caso do Massacre de Pueblo Bello, permiti-me reiterar meu entendimento
no sentido de que o direito ao Direito constitui um “imperativo do jus cogens”:
“La indisociabilidad que sostengo entre los artículos 25 y 8 de la Convención Americana (supra)
conlleva a caracterizar como siendo del dominio del jus cogens el acceso a la justicia entendido como
la plena realización de la misma, o sea, como siendo del dominio del jus cogens la intangibilidad de
todas las garantías judiciales en el sentido de los artículos 25 y 8 tomados conjuntamente. No puede
haber duda de que las garantías fundamentales, comunes al Derecho Internacional de los Derechos
Humanos y al Derecho Internacional Humanitario183, tienen una vocación universal al aplicarse en
todas y cualesquiera circunstancias, conforman un derecho imperativo (perteneciendo al jus cogens),
y acarrean obligaciones erga omnes de protección184.
Posteriormente a su histórica Opinión Consultiva n. 18, sobre la Condición Jurídica y Derechos de los
Migrantes Indocumentados, de 2003, la Corte ya podía y debía haber dado este otro salto cualitativo
adelante en su jurisprudencia. Me atrevo a alimentar la esperanza de que la Corte lo hará lo más pronto
posible, si realmente sigue adelante en su jurisprudencia de vanguardia,–en lugar de intentar frenarla,–y
amplíe el avance logrado con fundamentación y coraje por su referida Opinión Consultiva n. 18 en la
línea de la contínua expansión del contenido material del jus cogens” (párrs. 64-65).
179. En el mismo Voto Razonado, también me referí a la superación de las vicisitudes en cuanto al derecho a un recurso efectivo en la construcción
jurisprudencial de la Corte Europea de Derechos Humanos (párrs. 53-59).
180. Cf. también A.A. Cançado Trindade, “El Derecho de Acceso a la Justicia Internacional y las Condiciones para Su Realización en el Sistema
Interamericano de Protección de los Derechos Humanos”, 37 Revista del Instituto Interamericano de Derechos Humanos (2003) pp. 53-83; A.A.
Cançado Trindade, “Hacia la Consolidación de la Capacidad Jurídica Internacional de los Peticionarios en el Sistema Interamericano de Protección de
los Derechos Humanos”, 37 Revista del Instituto Interamericano de Derechos Humanos (2003) pp. 13-52.
181. En ese sentido, cf. E.A. Alkema, “Access to Justice under the ECHR and Judicial Policy–A Netherlands View”, in Afmaelisrit pór Vilhjálmsson,
Reykjavík, Bókaútgafa Orators, 2000, pp. 21-37.
182. A.A. Cançado Trindade, Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, tomo III, Porto Alegre/Brasil, S.A. Fabris Ed., 2002, cap. XX, p.
524, párr. 187.
183. E.g., artículo 75 del Protocolo I (de 1977) a las Convenciones de Ginebra (de 1949) sobre Derecho Internacional Humanitario.
184. Cf., también en ese sentido, e.g., M. El Kouhene, Les garanties fondamentales de la personne en Droit humanitaire et droits de l’homme,
Dordrecht, Nijhoff, 1986, pp. 97, 145, 148, 161 y 241.
202
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
22. Para minha particular satisfação, a Corte Interamericana, na presente Sentença sobre o caso Ximenes Lopes,
se manteve fiel, por unanimidade, a sua melhor jurisprudence constante a respeito, reiterando com a maior
clareza seu entendimento da inelutável indissociabilidade entre os artigos 25 e 8 da Convenção Americana,
tal como se depreende inequivocamente do parágrafo 191 da presente Sentença, ao assinalar que “o recurso
efetivo do artigo 25 deve tramitar-se conforme as normas do devido processo legal estabelecidas no artigo
8 da Convenção”. A Corte ademais recordou que a responsabilidade internacional do Estado pela violação de
normas internacionais é distinta de sua responsabilidade no direito interno (par. 193).
23. A par da posição assumida pela Corte a respeito, não posso deixar de aqui registrar que, em resposta a
perguntas que lhes formulei na audiência pública perante a Corte de 30 de novembro e 01 de dezembro de
2005, tanto a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) como os representantes da vítima e
seus familiares expressaram que a melhor hermenêutica dos artigos 8(1) e 25 da Convenção Americana é a
que efetiva e necessariamente os vincula. A CIDH pronunciou-se em defesa do “conjunto integrado do devido
processo e tutela judicial efetiva do artigo 8(1) e do artigo 25” da Convenção185, e os referidos representantes
afirmaram no mesmo sentido que “a leitura mais clara dessa normativa dentro do sistema interamericano
seria a de que os dois artigos deveriam ser analisados em conjunto, até porque a maioria da jurisprudência
dessa Honorável Corte faz precisamente isso”186.
IV. O Direito de Acesso à Justiça como Direito à Pronta Prestação Jurisdicional.
24. O direito de acesso à justiça lato sensu pressupõe o entendimento de que se trata de direito à pronta prestação
jurisdicional. Sua fiel observância não se constatou no presente caso Ximenes Lopes, como se depreende
claramente dos próprios fatos. Por ejemplo, aos 27.03.2000 o representante do Ministério Público apresentou
denúncia criminal na Comarca de Sobral contra quatro pessoas supostamente incursas nas penas do
Código Penal brasileiro (artigo 136(2)) por crime de maus-tratos resultando na morte da vítima (Sr. Damião
Ximenes Lopes). Dois meses depois, os promotores do Centro de Apoio Operacional dos Grupos Socialmente
Discriminados da Procuradoria Geral de Justiça manifestava ao Promotor de Justiça que atuava na causa que
a ampliação da denúncia constituía uma “imposição institucional e legal”; pese ao anterior, foi somente aos
22.09.2003 que, ao apresentar suas alegações finais, a Promotoria ampliou a denúncia para incluir a duas
outras pessoas.
25. A morosidade na tramitação tão só do aditamento da denúncia se prolongou ainda mais, porquanto somente
aos 17.06.2004 o Juiz de Direito da Comarca de Sobral o recebeu. Ao fazê-lo, buscou justificar seu próprio
atraso pelo “volume de serviço próprio da 3a. Vara da Comarca de Sobral”, ademais do gozo de “30 dias de
férias”, somados a “60 dias de licença médica”. Ou seja, o aditamento da denúncia só foi recebido 8 meses
e 25 dias depois de ter sido este apresentado. Na ocasião, o referido Juiz de Direito designou a citação
dos novos acusados e determinou a intimação “com a máxima urgência” do assistente de acusação e dos
advogados de defesa para apresentar suas alegações finais. Ou seja, a assim-chamada “máxima urgência” era
para os demais, não para si próprio, conformando um retrato do ritual da “justiça” do direito interno não só
do Estado demandado ante esta Corte, mas também de tantos outros Estados em distintas latitudes. Naquele
momento, o processo penal no cas d’espèce completava mais de 4 anos e 2 meses sem que tivesse sido
emitida sequer a setença de primeira instância.
26. Na audiência pública de 30 de novembro e 01 de dezembro perante esta Corte Interamericana sobre o
presente caso, recordei às partes intervenientes o dever estatal de “prestação jurisdicional efetiva e dentro
de um prazo razoável” sob a Convenção Americana, e assinalei a premente necessidade–como problema
não só brasileiro mas de todos os países–de “capacitação dos juízes nacionais em matéria de direitos
humanos, que ficou patente neste caso, tanto nesta audiência como no exame do experiente do mesmo”187.
Permito-me aqui recordar uma advertência, na mesma linha de pensamento, formulada há uma década
e meia em um Seminário histórico e pioneiro, de mobilização nacional em torno da adesão do Brasil à
Convenção Americana e aos dois Pactos de Direitos Humanos das Nações Unidas; na ocasião, o emérito
Professor Washington Peluso Albino de Souza, ao referir-se à “sistemática de organização do poder
judiciário” orientada à “carreira” e ao tipo de “formação” oferecida pelas Faculdades de Direito, ponderou
com particular lucidez no decorrer dos debates:
185. CtIADH, Transcrição da Audiência Pública..., op. cit. supra n. (3), p. 125.
186. Ibid., p. 126.
187. CtIADH, Transcrição da Audiência Pública..., op. cit. supra n. (3), pp. 123-124.
203
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
“Raramente se infunde a necessidade de penetração da realidade para o conhecimento do Direito.
Pratica-se o método dogmático formando juízes legalistas por convicção. Ora, se a lei é alienada da
realidade, a sentença decorrente não pode deixar de sê-lo. Concretiza-se desta forma, com plena
segurança profissional, a injustiça em nome do Direito. Daí a descrença do cidadão na justiça em nosso
país, com adágios correntes, como o de que `é melhor um mau acordo do que uma boa demanda’”188.
V. A Aplicabilidade Direta da Convenção Americana no Direito Interno e as Garantias de NãoRepetição dos Fatos Lesivos.
27. Felizmente hoje os justiciáveis no Estado demandado contam também com a jurisdição internacional, para a
vindicação de seus direitos. Tal como assinalei em meu discurso de abertura do ano judiciário da Corte Européia
de Direitos Humanos de 2004,–como convidado desta última para a referida cerimônia em Estrasburgo,–os
dois tribunais internacionais de direitos humanos têm realizado notáveis avanços na realização da justiça
internacional, da perspectiva correta, a saber, a dos justiciáveis189. Ambos contribuíram decisivamente à
emancipação do ser humano vis-à-vis seu próprio Estado, ao estabelecimento de um novo paradigma no
presente domínio de proteção internacional, e à humanização do Direito Internacional190.
28. Em um parágrafo lapidar da presente Sentença, acerca das medidas de satisfação aos vitimados e das garantias
de não-repetição dos fatos lesivos (como medidas de reparação não-pecuniária), adverte a Corte que
“o Estado deve garantir que em um prazo razoável o processo interno tendente a investigar e sancionar
os responsáveis pelos fatos deste caso surta seus devidos efeitos, dando aplicabilidade direta no direito
interno à normativa de proteção da Convenção Americana” (parágrafo 244).
29. Na supracitada audiência pública, no presente caso, de 30 de novembro e 01 de dezembro perante esta Corte,
em resposta a uma das perguntas que me permiti formular sobre as atuais perspectivas gerais a respeito,
uma das testemunhas expressou que “os constitucionalistas mais justos são extremamente pessimistas com
relação ao resultado do que possa ocorrer do ponto do engessamento do judiciário brasileiro”191. Minha
pergunta tinha em mente o novo parágrafo 3 do artigo 5 da Constituição Federal brasileira192. Não é meu
propósito aqui examinar este dispositivo (tampouco o merece), senão a ele referir-me da perspectiva da
Convenção Americana, como direito aplicável no cas d’espèce.
30. Esta nova disposição busca outorgar, de forma bisonha, status constitucional, no âmbito do direito interno
brasileiro, tão só aos tratados de direitos humanos que sejam aprovados por maioria de 3/5 dos membros
tanto da Câmara dos Deputados como do Senado Federal (passando assim a ser equivalentes a emendas
constitucionais). Mal concebido, mal redigido e mal formulado, representa um lamentável retrocesso em
relação ao modelo aberto consagrado pelo parágrafo 2 do artigo 5 da Constituição Federal de 1988, que
resultou de uma proposta de minha autoria à Assembléia Nacional Constituinte, como historicamente
documentado193. No tocante aos tratados anteriormente aprovados, cria um imbroglio tão a gosto de
publicistas estatocêntricos, insensíveis às necessidades de proteção do ser humano; em relação aos
tratados a aprovar, cria a possibilidade de uma diferenciação tão a gosto de publicistas autistas e míopes,
tão pouco familiarizados,–assim como os parlamentares que lhes dão ouvidos,–com as conquistas do
Direito Internacional dos Direitos Humanos.
31. Este retrocesso provinciano põe em risco a interrelação ou indivisibilidade dos direitos protegidos no Estado
demandado (previstos nos tratados que o vinculam), ameaçando-os de fragmentação ou atomização, em
188. Cit. in: A.A. Cançado Trindade, A Proteção dos Direitos Humanos nos Planos Nacional e Internacional: Perspectivas Brasileiras (Atas do
Seminário de Brasília de 1991), Brasília/San José de Costa Rica, IIDH/F.-Naumann-Stiftung, 1992, p. 170 (intervenção do Prof. Washington P. Albino
de Souza).
189. A.A. Cançado Trindade, “Le développement du Droit international des droits de l’homme à travers l’activité et la jurisprudence des Cours
européenne et interaméricaine des droits de l’homme”, 16 Revue universelle des droits de l’homme (2004) n. 5-8, pp. 177-180; A.A. Cançado Trindade,
“The Development of International Human Rights Law by the Operation and the Case-Law of the European and Inter-American Courts of Human
Rights”, 25 Human Rights Law Journal (2004) n. 5-8, pp. 157-160. E, para um estudo mais amplo, cf. A.A. Cançado Trindade, “Approximations and
Convergences in the Case-Law of the European and Inter-American Courts of Human Rights”, in Le rayonnement international de la jurisprudence de
la Cour européenne des droits de l’homme (eds. G. Cohen-Jonathan e J.-F. Flauss), Bruxelles, Nemesis/Bruylant, 2005, pp. 101-138.
190. A.A. Cançado Trindade, A Humanização do Direito Internacional, Belo Horizonte, Edit. Del Rey, 2006, pp. 3-409.
191. CtIADH, Transcrição da Audiência Pública..., op. cit. supra n. (3), p. 98 (declaração do Sr. João Alfredo Teles Melo).
192. Consoante a emenda constitucional n. 45, de 08.12.2004.
193. Para um histórico circunstanciado do parágrafo 2 do artigo 5 da Constituição Federal brasileira, com as referências devidas às fontes
documentológicas, cf. A.A. Cançado Trindade, Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, vol. III, Porto Alegre, S.A. Fabris Ed., 2003,
pp. 597-643; A.A. Cançado Trindade, A Proteção Internacional dos Direitos Humanos e o Brasil (1948-1997): As Primeiras Cinco Décadas, 2a. ed.,
Brasília, Edit. Universidade de Brasília (Ed. Humanidades), 2000, pp. 1-214; G.R. Bandeira Galindo, Tratados Internacionais de Direitos Humanos
e Constituição Brasileira, Belo Horizonte, Edit. Del Rey, 2002; Sílvia M. da Silveira Loureiro, Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos na
Constituição, Belo Horizonte, Edit. Del Rey, 2005.
204
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
favor dos excessos de um formalismo e hermetismo jurídicos eivados de obscurantismo. A nova disposição
é vista com complacência e simpatia pelos assim-chamados “constitucionalistas internacionalistas”, que se
arvoram em jusinternacionalistas sem chegar nem de longe a sê-lo, porquanto só conseguem vislumbrar
o sistema jurídico internacional através da ótica da Constituição nacional. Não está sequer demonstrada a
constitucionalidade do lamentável parágrafo 3 do artigo 5, sem que seja minha intenção pronunciar-me aqui a
respeito; o que sim, afirmo no presente Voto,–tal como o afirmei em conferência que ministrei em 31.03.2006
no auditório repleto do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em Brasília, ao final de audiências públicas perante
esta Corte que tiveram lugar na histórica Sessão Externa da mesma recentemente realizada no Brasil,–é que,
na medida em que o novo parágrafo 3 do artigo 5 da Constituição Federal brasileira abre a possibilidade
de restrições indevidas na aplicabilidade direta da normativa de proteção de determinados tratados de
direitos humanos no direito interno brasileiro (podendo inclusive inviabilizá-la), mostra-se manifestamente
incompatível com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (artigos 1(1), 2 e 29).
32. Do prisma do Direito International dos Direitos Humanos em geral, e da normativa da Convenção Americana
em particular, o novo parágrafo 3 do artigo 5 da Constitução Federal brasileira não passa de uma lamentável
aberração jurídica. O grave retrocesso que representa vem a revelar, uma vez mais, que a luta pela salvaguarda
dos direitos humanos nos planos a um tempo nacional e internacional não tem fim, como no perene recomeçar,
imortalizado pelo mito do Sísifo. Ao descer a montanha para voltar a empurrar a rocha para cima, toma-se
consciência da condição humana, e da tragédia que a circunda (como ilustrado pelas histórias de Electra, e de
Irene Ximenes Lopes Miranda).
33. Mas há que continuar lutando, inclusive para que a justiça pública reaja imediatamente e ex officio à comissão
do ilícito e à vitimização, e não movida a aparente contragosto e a duras penas pelos familiares das vítimas.
Há que continuar lutando, pois, na verdade, não há outra alternativa:
“Sisyphe, revenant vers son rocher, contemple cette suite d’actions sans lien qui devient son destin,
créé par lui, uni sous le regard de sa mémoire et bientôt scellé par sa mort. (...) Sisyphe enseigne la
fidélité supérieure qui (...) soulève les rochers. (...) La lutte elle-même vers les sommets suffit à remplir
un coeur d’homme. Il faut imaginer Sisyphe heureux”194.
34. Os triunfalistas da recente inserção do parágrafo 3 no artigo 5 da Constituição Federal brasileira, reféns
de um direito formalista e esquecidos do Direito material, não parecem se dar conta de que, do prisma do
Direito Internacional, um tratado como a Convenção Americana ratificado por um Estado o vincula ipso jure,
aplicando-se de imediato e diretamente, quer tenha ele previamente obtido aprovação parlamentar por maioria
simples ou qualificada. Tais providências de ordem interna,–ou, ainda menos, de interna corporis,–são simples
fatos do ponto de vista do ordenamento jurídico internacional, ou seja, são, do prisma jurídico-internacional e
da responsabilidade internacional do Estado, inteiramente irrelevantes.
35. A responsabilidade internacional do Estado por violações comprovadas de direitos humanas permanece
intangível, independentemente dos malabarismos pseudo-jurídicos de certos publicistas (como a criação
de distintas modalidades de prévia aprovação parlamentar de determinados tratados com pretendidas
conseqüências jurídicas, a previsão de pré-requisitos para a aplicabilidade direta de tratados humanitários
no direito interno, dentre outros), que nada mais fazem do que oferecer subterfúgios vazios aos Estados para
tentar evadir-se de seus compromissos de proteção do ser humano no âmbito do contencioso internacional
dos direitos humanos. Em definitivo, a proteção internacional dos direitos humanos constitui uma conquista
humana irreversível, e não se deixará abalar por melancólicos acidentes de percurso do gênero.
36. Como vivemos em um mundo surrealista, se não irracional, já me permitira, no Memorial que apresentei no
painel inaugural da III Conferência Nacional de Direitos Humanos no Congresso Nacional em Brasília em maio
de 1998, formular uma advertência contra eventuais e futuras emendas constitucionais restritivas. Decorrida
mais de meia-década, foi exata e lamentavelmente o que vem de ocorrer. O formalismo jurídico vazio primou
sobre a identidade de propósito entre o direito público interno e o direito internacional no tocante à proteção
integral dos direitos inerentes à pessoa humana. Em minha premonição de 1998, assim adverti para os riscos
de futuras restrições ao disposto no artigo 5(2) da Constituição Federal de 1988:
“Modificá-lo, para adaptá-lo–melhor dizendo, aprisioná-lo–à tese hermética e positivista da
‘constitucionalização’ dos tratados, implicaria a meu ver um retrocesso conceitual em nosso país neste
particular. Há que ir mais além da `constitucionalização’ estática dos tratados de direitos humanos.
Aqui, novamente, se impõe uma mudança fundamental de mentalidade, uma melhor compreensão da
194. A. Camus, Le mythe de Sisyphe, Paris, Gallimard, 1942, p. 168.
205
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
matéria. Não se pode continuar pensando dentro de categorias e esquemas jurídicos construídos há
várias décadas, ante a realidade de um mundo que já não existe”195.
37. A garantia da não-repetição de violações dos direitos humanos, determinada pela presente Sentença da
Corte Interamericana no caso Ximenes Lopes (parágrafo 246, supra), passa necessariamente pela educação
e capacitação em direitos humanos. Em minha referida intervenção de 1998 no Congresso Nacional em
Brasília, acrescentei que a “nova mentalidade” que propugnava “haverá de manifestar-se, com maior vigor,”–
enfatizei,–“no seio de uma sociedade mais integrada e imbuída de um forte sentimento de solidariedade
humana, sem a qual pouco logra avançar o Direito”196. Daí a relevância da educação, formal e não-formal, em
direitos humanos; neste propósito, tornam-se essenciais a difusão e o melhor conhecimento da jurisprudência
protetora dos direitos da pessoa humana da Corte Interamericana, cuja aplicabilidade direta se impõe no
direito interno dos Estados Partes.
VI. A Necessidade de Ampliação do Conteúdo Material do Jus Cogens.
38. Na presente Sentença no caso Ximenes Lopes versus Brasil, a Corte Interamericana advertiu que o direito à
integridade pessoal, consagrado na Convenção Americana, tem por “finalidade principal” a “prohibição imperativa
da tortura e penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degrandantes”, não admitindo, pois, suspensão em
“circunstância alguma” (par. 126). A Corte já o havia advertido em sua Sentença (de 18.08.2000) no caso Cantoral
Benavides versus Peru (pars. 95-96). Em outras palavras, a referida proibição recai no domínio do jus cogens.
39. O fato de ser a vítima direta do presente caso uma pessoa portadora de deficiência mental (o primeiro caso
do gênero perante a Corte) reveste-o de circunstância agravante. Na presente Sentença, a Corte reconhece a
“proteção especial” que requerem as pessoas particularmente vulneráveis, portadoras de deficiência mental,–
como o Sr. Damião Ximenes Lopes, vítima fatal no cas d’espèce (pars. 103-105),–e adverte que
“(...) A vulnerabilidade intrínseca das pessoas com deficiências mentais é agravada pelo alto grau de
intimidade que caracteriza os tratamentos das enfermidades psiquiátricas, que torna essas pessoas
mais suscetíveis a tratamentos abusivos quando são submetidas a internação” (par. 106).
40. As obrigações de proteção,–ainda mais em uma situação de alta vulnerabilidade da vítima como a presente,–
revestem-se de caráter erga omnes (par. 85), abarcando também as relações interindividuais, tendo presente
o dever do Estado de prevenção e de devida diligência, sobretudo em relação a pessoas que se encontram
sobre seus cuidados. A saúde pública é um bem público, não uma mercadoria. Em meus numerosos escritos
e Votos no seio desta Corte, venho expressando há tantos anos meu entendimento no sentido de que todas
as obrigações convencionais de proteção revestem-se de um caráter erga omnes. É-me particularmente difícil
escapar da impressão que me assalta no sentido de que em todo esse tempo talvez tenha eu escrito e continue
escrevendo para os pássaros..
41. Teria apreciado se a Corte tivesse se esmerado mais na fundamentação de seus próprios obiter dicta a respeito,
mas não houve tempo para tal, em razão do ritmo desnecessariamente quase frenético que ultimamente tem
imposto a si mesma–contra meu parecer–para tomar decisões em tempo récorde. Como tenho reiteradamente
manifestado à maioria da Corte, oponho-me a sacrificar a fundamentação completa e cabal de suas sentenças
à produtividade. Aqui reitero meu entender de que não me considero “agente de produção” (nem tampouco
“recurso humano”), e não posso aceitar que o valor maior de um Tribunal internacional venha a ser a
produtividade, em razão das deficiências crônicas da Organização dos Estados Americanos (OEA) na alocação
de recursos à Corte e à Comissão Interamericanas de Direitos Humanos.
42. A Corte poderia e deveria ter dedicado mais tempo à fundamentação da supracitada proibição de jus cogens,
tal como o vinha fazendo até a emissão de seu transcendental Parecer n. 18, de 2003 (cf. infra). Tratando-se
do primeiro caso ante esta Corte sobre portadores de deficiências mentais (par. 123), poderia e deveria ter
se aprofundado mais a respeito. Recorde-se que um grande legado da II Conferência Mundial de Direitos
Humanos (Viena, 1993),–da qual participei do primeiro ao último minuto, e inclusive de seu processo
preparatório,–residiu no reconhecimento da legitimidade da preocupação de toda a comunidade internacional
com as condições de vida da população em todas partes, e em especial de seus segmentos mais vulneráveis197.
195. A.A. Cançado Trindade, “Memorial em Prol de uma Nova Mentalidade quanto à Proteção dos Direitos Humanos nos Planos Internacional e
Nacional”, 51 Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional (1998) pp. 90-91.
196. Ibid., p. 94.
197. A.A. Cançado Trindade, Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, vol. I, 2a. ed., Porto Alegre, S.A. Fabris Ed., 2003, pp. 39, 91-100
e 242-251.
206
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
43. Ora, as pessoas portadoras de deficiências (mais de 600 milhões de pessoas, ou seja, aproximadamente 10%
da população mundial) integram estes segmentos mais vulneráveis da população, e em relação a elas assume
transcendental importância o princípio básico da igualdade e não-discriminação198. A Convenção Interamericana
para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Pessoas Portadoras de Deficiências de 1999
atribui capital relevância a este princípio, reiteradamente invocado tanto em seu preâmbulo199 como em sua
parte operativa (artigos I(2)(a) e (b), II, III(1), IV(1), V(2) e VI(1) e (5)). No entanto, na presente Sentença, a
Corte refere-se a ele de modo, a meu ver, tão só oblíquo e insatisfatório (par. 105), quando, em sua própria
jurisprudência, há elementos preciosos que poderia ter fortalecido sua fundamentação.
44. Assim, em seu pioneiro e histórico Parecer Consultivo n. 18 sobre a Condição Jurídica e Direitos dos Migrantes
Indocumentados (de 17.09.2003), internacionalmente aclamada e à frente de seu tempo, a Corte afirma com
acerto que o mencionado princípio da igualdade e não-discriminação
“impregna toda actuación del poder del Estado, en cualquiera de sus manifestaciones, relacionada
con el respeto y garantía de los derechos humanos. Dicho principio puede considerarse efectivamente
como imperativo del derecho internacional general, en cuanto es aplicable a todo Estado,
independientemente de que sea parte o no en determinado tratado internacional, y genera efectos con
respecto a terceros, inclusive a particulares.
(...) Este Tribunal considera que el principio de igualdad (...) y no-discriminación pertenece al jus cogens
(...). Hoy día no se admite ningún acto jurídico que entre en conflicto con dicho principio fundamental,
no se admiten tratos discriminatorios en perjuicio de ninguna persona (...).
(...) El incumplimiento de estas obligaciones genera la responsabilidad internacional del Estado, y ésta
es tanto más grave en la medida en que ese incumplimiento viola normas perentorias del Derecho
Internacional de los Derechos Humanos” (pars. 100-101 e 106).
45. Sobre este ponto, dei-me ao trabalho de emitir no supracitado Parecer Consultivo n. 18 um extenso Voto
Concordante (pars. 1-89), em defesa da ampliação do conteúdo material do jus cogens e do amplo alcance
das correspondentes obrigações erga omnes de proteção. Esta tem sido invariavelmente minha posição no
seio desta Corte, como evidenciado por meus Votos Separados nos casos Massacre de Mapiripán versus
Colômbia (Sentença de 15.09.2005, pars. 25-29 do Voto), Acosta Calderón versus Equador (Sentença
de 24.06.2005, par. 7 do Voto), Yatama versus Nicarágua (Sentença de 23.06.2005, pars. 6-8 do Voto),
Comunidade Moiwana versus Suriname (Sentença de 15.06.2005, par. 30 do Voto), Caesar versus Trinidad
e Tobago (Sentença de 11.03.2005, pars. 85-92 do Voto), Massacre de Plan de Sánchez versus Guatemala
(mérito, Sentença de 29.04.2004, pars. 29-33 do Voto; e reparações, Sentença de 19.11.2004, pars. 5-6 do
Voto), Tibi versus Equador (Sentença de 07.09.2004, pars. 26-35 do Voto), Irmãos Gómez Paquiyauri versus
Peru (Sentença de 08.07.2004, pars. 37-44 do Voto), Myrna Mack Chang versus Guatemala (Sentença de
25.11.2003, par. 29 do Voto), Hilaire, Constantine e Benjamin e Outros versus Trinidad e Tobago (exceções
preliminares, Sentenças de 01.09.2001, par. 38 dos Votos; e mérito, Sentença de 21.06.2002, par. 16 do
Voto), Trujillo Oroza versus Bolívia (Sentença de 27.02.2002, par. 18 do Voto), “Meninos de Rua” (Villagrán
Morales e Outros) versus Guatemala (reparações, Sentença de 26.05.2001, par. 36 do Voto), Bámaca
Velásquez versus Guatemala (Sentença de 25.11.2000, par. 27 do Voto), Las Palmeras versus Colômbia
(exceções preliminares, Sentença de 04.02.2000, par. 6 do Voto); e Blake versus Guatemala (exceções
preliminares, Sentença de 02.07.1996, pars. 11 e 14 do Voto; e mérito, Sentença de 24.01.1998, pars. 2330 do Voto; e reparações, Sentença de 22.01.1999, par. 39-42 do Voto); e, além disso, como corroborado
em meus Votos Concordantes nos casos Maritza Urrutia versus Guatemala (Sentença de 27.11.2003, par.
5-10 do Voto), Barrios Altos versus Peru (Sentença de 14.03.2001, par. 11 do Voto), assim como por
meu Voto Dissidente no caso Irmãs Serrano Cruz versus El Salvador (exceções preliminares, Sentença de
23.11.2004, pars. 32 e 39-43), acrescidos de numerosos outros Votos meus em medidas provisórias de
proteção ordenadas por esta Corte200.
198. Cf., e.g., G. Quinn e T. Degener et alii, Derechos Humanos y Discapacidad–Uso Actual y Posibilidades Futuras de los Instrumentos de Derechos
Humanos de las Naciones Unidas en el Contexto de la Discapacidad, N.Y./Ginebra, Naciones Unidas (doc. HR/PUB/02/1), 2002, pp. 1-202.
199. Consideranda 1, 3 y 5.
200. Casos Crianças e Adolescentes Privados de Liberdade no Complexo do Tatuapé da FEBEM versus Brasil (de 30.11.2005, pars. 24-26 do meu
Voto Concordante); Prisões de Mendoza versus Argentina (de 18.06.2005, pars. 7-20 de meu Voto Concordante); Povo Indígena de Sarayaku versus
Equador (de 06.07.2004, par. 8 de meu Voto Concordante; e de 17.06.2005, pars. 20-26 de meu Voto Concordante); Comunidades do Jiguamiandó
e do Curbaradó versus Colômbia (de 15.03.2005, pars. 8-10 de meu Voto Concordante); Comunidade de Paz de San José de Apartadó versus
Colômbia (de 15.03.2005, pars. 8-10 de meu Voto Concordante); Emissora de Televisão `Globovisión’ versus Venezuela (de 04.09.2004, par. 13 de
meu Voto Concordante; Prisão de Urso Branco versus Brasil (de 07.07.2004, par. 8 de meu Voto Concordante); e Povo Indígena Kankuamo versus
Colômbia (de 05.07.2004, par. 10 de meu Voto Concordante).
207
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
46. Penso, pois, que a Corte podia e devia ter se respaldado em sua jurisprudência mais avançada sobre a
matéria em apreço na presente Sentença no caso Ximenes Lopes. Talvez o tivesse feito se tivesse concedido
a si mesma mais tempo para deliberar. Como reza o conhecido adágio, a pressa é inimiga da perfeição. Mais
do que isto, até início de 2004 a Corte Interamericana vinha sendo, reconhecidamente, um dos tribunais
internacionais contemporâneos que mais vinha contribuindo para a evolução do conteúdo material do jus
cogens, seguida pelo Tribunal Penal Internacional ad hoc para a Ex-Iugoslávia. Por alguma razão que escapa
a minha compreensão, ultimamente parece ter se refreado em sua construção doutrinário-jurisprudencial a
respeito.
47. No meu entender, na presente Sentença no caso Ximenes Lopes, ao determinar as violações não só dos artigos
4 e 5 da Convenção (reconhecidas pelo próprio Estado), mas também dos artigos 8(1) e 25 da Convenção,
deveria ter ido mais além quanto a estes últimos, estendendo o domínio do jus cogens também ao direito de
acesso à justiça lato sensu, aí compreendidas as garantias do devido processo legal. Nesse sentido tenho me
pronunciado no seio desta Corte nos dois últimos anos, a exemplo, inter alia, do sustentado em meus Votos
Separados nos casos López Álvarez versus Honduras (Sentença 01.02.2006, pars. 53-55 do Voto), Massacre
de Pueblo Bello versus Colômbia (Sentença de 31.01.2006, pars. 63-65 do Voto), Baldeón García versus Perú
(Sentença de 06.04.2006, par. 10 do Voto), e Comunidade Indígena Sawhoyamaxa versus Paraguai (Sentença
de 29.03.2006, par. 36 do Voto). Espero tenha a Corte o valor de vir em breve a dar este novo salto qualitativo
em sua construção jurisprudencial, já que não o fêz na presente Sentença no caso Ximenes Lopes. A partir
do dia em que o fizer–espero que muito em breve–estará contribuindo a tornar mais difícil que se repitam
histórias como as de Electra e Irene em meio à impunidade.
Antônio Augusto Cançado Trindade
Juiz
Pablo Saavedra Alessandri
Secretário
208
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
VOTO FUNDAMENTADO DO JUIZ SERGIO GARCÍA RAMÍREZ
COM RELAÇÃO À SENTENÇA DA
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
NO CASO XIMENES LOPES VERSUS BRASIL,
PROFERIDA EM 4 DE JULHO DE 2006
1. DIREITOS GERAIS E ESPECIAIS
1. No espaço da sua jurisprudência, cada vez mais abundante e compreensiva, a Corte Interamericana se ocupou do
exame e da precisão dos direitos e liberdades de indivíduos e membros de grupos, conjuntos ou comunidades, bem
como das respectivas obrigações e funções do Estado em determinadas hipóteses específicas. A referência a estas
últimas contribuiu para enriquecer consideravelmente a jurisprudência da Corte a serviço dos direitos das pessoas,
no âmbito de sua realidade estrita, que encerra diversas circunstâncias e múltiplas necessidades e expectativas.
2. Os direitos e as garantias universais, que têm caráter básico e foram “pensados” para a generalidade das pessoas,
devem ser complementados, afinados, precisados com direitos e garantias que operam junto a indivíduos
pertencentes a grupos, setores ou comunidades específicos, isto é, que adquirem sentido para a particularidade
de algumas ou muitas pessoas, mas não todas. Isto permite ver, por detrás do desenho genérico do ser humano,
membro de uma sociedade uniforme – que pode alçar-se na abstração a partir de sujeitos homogêneos –, o
“caso” ou os “casos” de seres humanos de carne e osso, com perfil característico e exigências diferenciadas.
3. Certamente é tarefa do Estado – e isto se acha em sua origem e justificação – preservar os direitos de todas
as pessoas sujeitas a sua jurisdição, conceito de amplo alcance, que naturalmente transcende as conotações
territoriais, observando para isso as condutas ativas ou omissivas que melhor correspondam a essa tutela para
favorecer o gozo e exercício dos direitos. Nesse sentido, o Estado deve evitar escrupulosamente a desigualdade e
a discriminação e proporcionar o amparo universal das pessoas que se encontrem sob sua jurisdição, sem mirar
para condições individuais ou de grupo que possam subtrair-las da proteção geral ou impor-lhes – de jure ou de
facto – ônus adicionais ou desproteções específicas.
2. MEIOS DE COMPENSAÇÃO
4. É igualmente certo, por outro lado, que incumbe ao Estado, quando a desigualdade de fato coloca o titular
de direitos em situação difícil – que pudesse levar ao absoluto inexercício dos direitos e das liberdades –,
proporcionar os meios de correção, igualação, compensação ou equilíbrio que possibilitem ao sujeito o acesso
a esses direitos, mesmo em condições relativas, condicionadas e imperfeitas, que a tutela do Estado procura
aliviar. Esses meios constituem outras tantas “proteções” razoáveis, pertinentes, eficientes, que se destinam a
estender as oportunidades e melhorar o destino, justamente para alcançar a expansão natural da pessoa, não
para reduzi-la ou evitá-la sob o pretexto de assistência e proteção.
5. Os fatores de (vantagem ou) desvantagem são muito numerosos. Alguns decorrem de condições próprias do
sujeito – a saúde, a idade ou o sexo, entre elas -; outras, de circunstâncias sociais – a condição de indígena,
estrangeiro, detido, por exemplo. É obrigação do Estado, manifestada em tratados e convenções de natureza
diversa, enfrentar essas desigualdades, eliminar a fonte das discriminações e acompanhar com eficácia – do
“berço ao túmulo”, se for necessário, como rezava o lema do Estado de bem-estar – o acidentado curso da
existência, procurando prevenir, moderar e remediar suas contingências.
3. ESTADO “GARANTE”
6. Com respeito a estas questões analisa-se o papel de garante que cabe ao poder público. Dispõe o artigo 1 da
Convenção Americana que o Estado deve (reconhecer), respeitar e garantir os direitos e liberdades consagrados
no Pacto de San José. E sustenta o artigo 2 que, pelo mesmo motivo, deve ele remover os obstáculos que se
oponham ao curso dessas faculdades e adotar medidas de natureza diversa para colocá-las efetivamente ao
alcance de todas as pessoas.
7. O exercício de alguns poderes, por conseguinte, que constituem a jurisdição do Estado sob o qual se coloca o
indivíduo – a título de nacional, cidadão, residente, refugiado et cetera –, leva ao estabelecimento da qualidade de
garante que o próprio Estado tem frente às pessoas sobre as quais exerce essa jurisdição e à definição do alcance
e das características do cuidado e da proteção específicos que essa qualidade implica e que deve ser examinada
frente às possibilidades reais de autoridade e proteção.
209
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
8. Aquele que atua como garante de algo ou de alguém, ou seja, aquele que assume a função de garantir a proteção
de certos bens a favor de determinadas pessoas, assume o dever de oferecer cuidados a esses bens e pessoas,
compatíveis com a tarefa que assume, proveniente da lei, de um acordo de vontades ou de outras fontes do
dever de garantia. O Estado é garante, em geral, dos que se acham sob sua jurisdição. O dever de cuidado que
lhe cabe transita, conforme as circunstâncias, pelas mais diversas situações: desde a garantia geral de paz
e segurança, até o preciso dever de cuidado que a ele concerne no manejo de serviços públicos de primeira
ordem e na atenção a sujeitos que não possam valer-se por si mesmos ou tenham severamente limitada sua
capacidade de fazê-lo. O dever de cuidado do Estado garante varia, pois, em qualidade e intensidade, conforme
as características do bem garantido e dos titulares desse bem. Nesta ordem, dificilmente poderia haver maior
exigência que a que se apresenta na prestação de serviços médicos, matéria da sentença a que anexo este Voto.
9. O Estado atua como garante dos direitos e liberdades dos que se acham sob sua jurisdição porque assim
dispõem as normas fundamentais internas – especialmente a Constituição Política – e assim o decidem as
disposições internacionais que amparam os direitos humanos. Ser garante não implica relevar o sujeito em
suas decisões e atuações, mas proporcionar os meios para que possa decidir e atuar do melhor modo possível,
desenvolver suas potencialidades e cumprir seu destino. Garante-se o gozo e exercício do direito e da liberdade
por meio de abstenções e prestações. A função garantista do Estado, que abriu caminho por meio dos direitos de
primeira geração e sua conseqüente observância pelo Estado – em geral uma observância negativa –, avançou
consideravelmente por meio dos direitos de segunda geração que com eles trouxeram a exigência de promoções
e prestações públicas.
4. AUTONOMIA PESSOAL
10. Naturalmente o desenvolvimento do ser humano não se sujeita às iniciativas e cuidados do poder público.
Numa perspectiva geral, aquele possui, mantém e desenvolve, em termos mais ou menos amplos, a capacidade
de conduzir sua vida, resolver sobre a melhor forma de fazê-lo, valer-se de meios e instrumentos para esta
finalidade, escolhidos e utilizados com autonomia – que é virtude da maturidade e condição de liberdade – e
inclusive recusar ou rechaçar de forma legítima a ingerência indevida e as agressões a ele dirigidas. Isso exalta a
idéia de autonomia e descarta tentações opressoras, que possam ocultar-se sob um suposto desejo de beneficiar
o sujeito, estabelecer sua conveniência e antecipar ou iluminar suas decisões.
5. HIPÓTESES ESPECÍFICAS DE PROTEÇÃO
11. Por outro lado, numa perspectiva especial, o Estado assume obrigações particulares, características – que
se identificam com garantias setoriais, específicas ou individuais, ao lado das universais ou genéricas antes
mencionadas –, com relação a determinados grupos de pessoas – ou, melhor dito, com pessoas integrantes
de certos grupos identificados conforme hipóteses de vida, necessidade ou expectativa que lhes são próprias.
Nessas hipóteses, a condição de garante que tem o Estado frente às pessoas sob sua jurisdição adota traços
peculiares, inescapáveis para o poder público e geradores de direitos para o indivíduo.
12. Essas peculiaridades do papel garantidor do Estado ou, dito de outro modo, de sua condição de garante do
efetivo acesso a direitos e liberdades, pode manifestar-se ao amparo de decisões políticas de caráter geral que
pretendem avançar no equilíbrio entre os integrantes da sociedade e ganhar espaços para a justiça social. Isso
ocorre, por exemplo, quando a função garantidora especial se exerce a favor de setores menos dotados de força
econômica ou política, como os trabalhadores e os camponeses, os indígenas, as crianças e adolescentes, com
as respectivas variantes, muito pronunciadas.
13. A condição especial de garante do Estado pode, por sua vez, ser considerada em hipóteses específicas decorrentes
de uma situação jurídica ou uma determinação biopsicológica que põe nas mãos do poder público – por si ou
por meios descentralizados e subsidiários – uma carga maior de deveres de condução e/ou proteção de caráter
direto e em correspondência determinam no indivíduo uma certa redução de sua essencial autonomia, que abre
zonas propícias–e exigentes–para a atuação imediata do Estado. A esta categoria heterogênea correspondem as
hipóteses de privação de liberdade, que restringem este e outros direitos – não obstante as proclamações em
sentido diferente –, com finalidades de salvaguarda ou punição (presos), terapêuticas (enfermos) ou educativas
(educandos internos). Nesses casos variam as características e a intensidade da intervenção legítima do Estado
e, por conseguinte, o grau de responsabilidade e autoridade deste, de forma paralela à redução – em virtude
de elementos naturais ou de mandamentos de autoridade – da liberdade e capacidade do indivíduo de definir,
organizar e conduzir sua própria vida.
210
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
6. DOENÇA MENTAL, AUTONOMIA E DESVALIMENTO
14. Parece evidente que a redução mais intensa do autogoverno pessoal se apresenta nos doentes mentais –
há, naturalmente, diversas categorias de doença, das quais decorrem diferentes situações pessoais -,
freqüentemente excluídos, quando se acham em regime de internação determinado por doenças graves, das
mais elementares decisões e confiados – no seio de uma instituição dotada dos regulamentos e sujeições
mais intensos – à autoridade quase absoluta de seus tratantes e custódios. Não sucede o mesmo, apesar da
existência de notáveis fatores de redução, em outras hipóteses: nem sequer no que diz respeito aos infratores,
que mantêm grau diverso de autonomia, mais ou menos elementar, em função da lucidez que preservam e do
espaço – às vezes muito reduzido física, social e institucionalmente – em que podem exercê-la. Contudo, a
história da autonomia – ou melhor, da heteronomia – e da sujeição nas prisões corre paralelamente à história
desses mesmos fenômenos nas instituições para doentes mentais, personagens do universo dos excluídos.
Dão-se as mãos, nessa crônica sombria, o criminoso e o “possesso”.
15. O doente mental internado em instituição do Estado sói ser, por conseguinte, o sujeito mais mal atendido, o
mais desvalido, o duplamente marginalizado – pela exclusão social em que é tido e pela estranheza que traz
consigo a doença que o acomete -, o menos competente para exercer uma rareada autonomia – que às vezes
carece de rumo e sentido e pode naufragar em circunstâncias de dano e perigo -, e por tudo isso suscita uma
acrescentada condição de garante a cargo do Estado, que se estende até as funções mais elementares.
16. A Corte Interamericana examinou a intensidade especial da qualidade de garante do Estado com respeito aos
povoadores de instituições em que se aplica um minucioso regime de vida, imposto à ultrança, que pretende
abarcar todo o tempo e quase todos os acontecimentos da existência, como acontece nas prisões e nos
estabelecimentos de reclusão para crianças e adolescentes. No Caso Ximenes Lopes, o Tribunal examina pela
primeira vez a situação do doente mental internado, que se encontra sob a garantia – preservação e relativo
exercício de direitos inderrogáveis – do Estado: seja direta, seja por meio da sub-rogação de um serviço, que
em todo caso substitui as mãos que o prestam, mas não cancela a responsabilidade pública pela prestação
eficaz e respeitosa da lex artis respectiva – que marca os deveres de cuidado no atendimento psiquiátrico –,
da ética específica pertinente ao tratamento dos pacientes em geral e dos pacientes psiquiátricos em particular
e da assunção de ônus e respostas em virtude do desempenho e dos resultados do serviço.
17. Se o doente mental sofre o mais radical abatimento da autonomia – no duplo plano do discernimento
crítico e da capacidade de condução – e se acha na maior dependência imaginável com respeito ao sujeito
responsável por seu atendimento – o agente do Estado, direto ou indireto, principal ou sub-rogado –,
torna-se o indivíduo mais carente de atenção entre quantos se achem sujeitos à jurisdição do Estado, e este
assume uma posição de garante ainda mais imperiosa e intensa, comprometedora e completa que a que
exerce em quaisquer outras funções.
7. O “ENCONTRO” ENTRE O DOENTE MENTAL E O ESTADO
18. Em consideração de que existe uma responsabilidade mais ampla, que solicita uma resposta mais completa–
integral, absoluta -, cabe esperar do Estado que atende ao paciente psiquiátrico uma garantia mais extensa,
profunda e constante dos direitos do indivíduo privado das condições que lhe permitiriam exercê-los por si
mesmo: vida, alimento, saúde, relação, por exemplo. Esta garantia se projeta em todas as direções naturalmente
praticáveis: tanto em abstenções–v.g., respeito à integridade, abstenção de experimentos ilícitos, maus-tratos
– como em ações ou prestações – a aplicação de satisfatores que moderem a desgraça e favoreçam, quando
possível, a recuperação da saúde ou a supressão da dor e da angústia.
19. Junto à deplorável condição das prisões, considerada e salientada uma e outra vez pela Corte Interamericana,
surge agora a péssima condição de algumas–quantas? – instituições de tratamento de doentes mentais.
A resistência dos afetados, naqueles casos, sói ser qualificada como motim – certamente não como
inconformidade democrática – e reprimida com severidade. O protesto, se o há, por parte dos doentes mentais,
vencendo as brumas da ausência ou da estranheza, pode desembocar em um destino acaso pior: a absoluta
indiferença ou a aplicação de corretivos “terapêuticos” que constituem, no fundo, castigos muito severos ou
intimidações sem sentido. A reação do prisioneiro é conseqüência da “má índole”; a do doente mental, da
“loucura”: esta é, por definição, irracional e inatendível.
20. Salientei que o encontro entre o suposto ou provável delinqüente e o Estado julgador e executor expõe a região
mais nebulosa para o império dos direitos humanos: enfrentam-se o “crime” e a “lei”; é previsível o destino do
211
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
enfrentamento. No entanto, talvez seja mais densa a penumbra, a propósito desse império, no encontro entre
o Estado terapeuta e o doente mental: chocam-se a razão e a ausência de razão, a cordura e a loucura. O final
do lance também é previsível.
21. Entre o ser humano privado de razão e o Estado dotado de poder – não apenas a força física do guardião, mas a
força científica do tratante–só existe a linha divisória dos direitos humanos e a disposição do Estado de cumprir
o encargo de garante que lhe atribui a Constituição. A Sentença se referiu a alguns aspectos desta questão ao
mencionar o “desequilíbrio intrínseco de poder entre uma pessoa internada e as pessoas que detêm a autoridade
(que) se multiplica muitas vezes nas instituições psiquiátricas”.
22. Cabe supor–embora não seja necessário fazê-lo: o tema se acha extensamente estudado e documentado, há
tempos, em muitos meios–as características do encontro entre o doente mental e aqueles que o cercam, como
custódios, tratantes e autoridades, quando aquele se acha em uma instituição que se adapta às características
das instituições totais, minuciosamente reguladas, e assume a maior autoridade – técnica, com suas implicações
fáticas – do tratante e a menor autonomia do tratado, que por definição carece das condições de apreciação,
deliberação e previsão em que se fundamenta, razoavelmente, o exercício da autonomia pessoal. Daí a peremptória
necessidade de que o regime em tais instituições – e, em geral, no trato entre a instituição, o facultativo e o
paciente – se ache sujeita a supervisões e corretivos que devem operar com fluidez, competência, constância e
responsabilidade.
8. PRINCÍPIO DE LEGALIDADE
23. No âmbito do tratamento psiquiátrico–especialmente o tratamento institucional, mas também o doméstico ou
ambulatorial, de que constituem parte importante os que se acham próximos do doente – adquirem significado
especial o princípio de legalidade que deve projetar-se sobre toda forma de detenção e o direito à segurança.
Hoje – e desde muito -, a lei detalha as condições para a detenção das pessoas com base numa hipótese de crime
ou infração e estabelece os limites e condições da reclusão. Isso faz parte da legalidade penal, freqüentemente
evadida ou distraída.
24. Menos cuidadoso é o regime destinado à legitimação da internação de doentes mentais – ainda que se tenham
multiplicado as regras, princípios e declarações sobre a matéria -, como se a liberdade ou o cativeiro destes,
justificados pelo tratamento – noção que se discute no caso dos presos, mas campeia no dos doentes -,
merecessem menos a proteção do direito à liberdade pessoal. Pelo contrário, este só poderia decair quando
houvesse justificação bastante que o autorizasse, ancorada precisamente na lei e não somente na opinião ou no
arbítrio do tratante, do familiar ou da autoridade administrativa.
25. Por sua condição humana e a despeito de sua enfermidade, o doente mental conserva direitos que só é
legítimo afetar por meio de medidas legalmente previstas e rigorosamente acreditadas, conseqüentes com
as características do padecimento e as necessidades do tratamento, razoáveis e moderadas na maior medida
possível, que evitem o sofrimento e preservem o bem-estar. A evolução do delinqüente ou do menor de idade,
que finalmente saíram do império da força – ou da pura benevolência, no melhor dos casos – para ingressar no
do direito e da razão, investidos de faculdades exigíveis e garantias acessíveis, não se apresentou com a mesma
diligência, se acaso alguma, e intensidade, seja esta a que for, no âmbito dos pacientes psiquiátricos, muito mais
expostos que aqueles ao império do custódio e da decisão do profissional.
9. DELEGAÇÃO DE SERVIÇOS E RESPONSABILIDADE ESTATAL
26. Os fatos em que o senhor Damião Ximenes Lopes perdeu a vida ocorreram enquanto se achava submetido a medidas
terapêuticas numa instituição médica privada que atuava, no caso, por delegação do Estado. A observância do
direito universal à proteção da saúde, que ganhou amplo terreno em textos nacionais e internacionais, constitui
o marco organizacional do sistema de saúde, em que intervêm agentes públicos e privados sobre os quais se
exerce, em grau diverso, a supervisão do Estado. A partir daqui constroem-se diversos modelos de tratamento
que atravessam diversos espaços da ordem administrativa: desde a centralização pública estrita até a prestação
livre de serviços profissionais.
27. Não é meu propósito – nem foi o da Corte na Sentença a que anexo este Voto–examinar esses modelos e analisar
suas vantagens e desvantagens. É preciso destacar, no entanto, como o fez a Sentença, que quando o Estado
resolve trasladar a outras mãos a prestação de um serviço que naturalmente lhe cabe – porque faz parte do
acervo de direitos sociais aos quais correspondem deveres estatais -, não fica desvinculado em absoluto – ou
212
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
seja, “excluído de sua responsabilidade estrita” – da atenção que se oferece à pessoa cujo cuidado confia a um
terceiro. O encargo é público e a relação entre o Estado que delega e o tratante delegado existe no âmbito da
ordem pública. O tratante privado só é o braço do Estado para levar adiante uma ação que cabe a este e pela qual
o próprio Estado mantém responsabilidade integral; ou seja, “responde por ela”, sem prejuízo de que a entidade
ou o sujeito delegados também respondam perante o Estado.
28. É possível distinguir entre a mera supervisão – que não é, no entanto, distância total e indiferença institucional–
por parte do Estado com respeito aos entes privados, tanto facultativos quanto empresas médicas, que atuam
sobre os usuários do serviço (pacientes) com apoio numa relação de direito privado, embora revista interesse
público ou social, e a responsabilidade material que conserva o Estado quando intervém, por acordo deste e
com ele, um ente privado que opera em uma relação de direito público com o Estado de que recebe seu encargo,
relação que transcende para o usuário do serviço convertido em beneficiário dessa relação.
10. RECONHECIMENTO DE RESPONSABILIDADE
29. No Caso Ximenes Lopes, o Estado demandado reconheceu sob diversos títulos os fatos que lhe foram atribuídos
e as características destes, e o fez mediante explícitas admissões de fatos e formulou reconhecimento parcial de
responsabilidade internacional. Esta atitude do Estado – que tem repercussões substantivas e processuais – foi
apreciada pela Corte e faz parte de uma crescente corrente de entendimento que favorece a composição entre
as partes. As dimensões éticas e jurídicas deste comportamento processual merecem reflexão. Fenômenos
semelhantes, que a Corte tem valorizado, se observaram no mesmo período de sessões em que se proferiu a
resolução sobre este litígio, naquilo que respeita aos outros dois casos examinados em julho de 2006: Caso dos
Massacres de Ituango (Colômbia) e Caso Montero Aranguren (Venezuela).
Esta é uma tradução ao português do Voto original em espanhol.
Sergio García Ramírez
Juiz
Pablo Saavedra Alessandri
Secretário
213
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
CASO ACEVEDO BUENDÍA E OUTROS
(“DEMITIDOS E APOSENTADOS DA CONTROLADORIA”) VS. PERU
SENTENÇA DE 1° DE JULHO DE 2009
(Exceção Preliminar, Mérito, Reparações e Custas)
No caso Acevedo Buendía e outros (“Demitidos e Aposentados da Controladoria”),1
a Corte Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “a Corte”, “a Corte Interamericana”
ou “o Tribunal”), integrada pelos seguintes juízes:2
Cecilia Medina Quiroga, Presidenta;
Sergio García Ramírez, Juiz;
Manuel E. Ventura Robles, Juiz;
Leonardo A. Franco, Juiz;
Margarette May Macaulay, Juíza;
Rhadys Abreu Blondet, Juíza, e
Víctor Oscar Shiyín García Toma, Juiz ad hoc;
presentes, ademais,
Pablo Saavedra Alessandri, Secretário, e
Emilia Segares Rodríguez, Secretária Adjunta;
em conformidade com os artigos 62.3 e 63.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos
(doravante denominada “a Convenção” ou “a Convenção Americana”) e com os artigos 29, 31, 37.6, 56
e 58 do Regulamento da Corte3 (doravante denominado “o Regulamento”), profere a presente Sentença.
I
Introdução da Causa e Objeto da Controvérsia
1. Em 1° de abril de 2008, em conformidade com os artigos 51 e 61 da Convenção Americana, a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “a Comissão” ou “a Comissão Interamericana”)
apresentou à Corte uma demanda contra a República do Peru (doravante denominado “o Estado” ou “o Peru”).
Esta demanda foi originada na denúncia nº 12.357 enviada à Secretaria da Comissão em 12 de novembro de
1998 pelos integrantes da Associação de Demitidos e Aposentados da Controladoria Geral da República do
Peru (doravante denominada “a Associação” ou “a Associação de Demitidos e Aposentados”) e ampliada em
24 de janeiro de 2000, data em que designaram como representante legal, inter alia, o Centro de Assessoria
Laboral (doravante denominado “CEDAL”). Em 9 de outubro de 2002, a Comissão aprovou o Relatório de
Admissibilidade nº 47/02, por meio do qual declarou admissível a petição. Posteriormente, em 27 de outubro
de 2006, a Comissão aprovou o Relatório de Mérito nº 125/06, nos termos do artigo 50 da Convenção, o qual
1. Durante o procedimento deste caso perante a Corte e, anteriormente, durante o procedimento da petição perante a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos, foi utilizado o nome “Integrantes da Associação de Demitidos e Aposentados da Controladoria Geral da República Vs.
Peru” para se referir a este caso. Entretanto, doravante a Corte utilizará o nome “Acevedo Buendía e outros (“Demitidos e Aposentados da
Controladoria”) Vs. Peru”.
2. O Juiz Diego García-Sayán, de nacionalidade peruana, escusou-se de conhecer sobre o presente caso, em conformidade com os artigos
19.2 do Estatuto e 19 do Regulamento da Corte, em razão de que, em sua condição de Ministro da Justiça do Peru no ano de 2001, recebeu
da Associação informação geral sobre as gestões que vinham realizando perante o Ministério de Economia e Finanças do Peru e perante a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Embora o conhecimento dessa informação não afete sua independência e imparcialidade para
conhecer do caso, considerou prudente se escusar.
3. Em conformidade com o disposto no artigo 72.2 do Regulamento da Corte Interamericana que entrou em vigor em 24 de março de 2009,
“[o]s casos em curso continuarão tramitando conforme este Regulamento, com a exceção daqueles casos em que se tenha convocado a
audiência no momento de entrada em vigor do presente Regulamento, os quais seguirão tramitando conforme as disposições do Regulamento
anterior”. Desse modo, o Regulamento da Corte mencionado na presente Sentença corresponde ao instrumento aprovado pelo Tribunal em
seu XLIX Período Ordinário de Sessões realizado de 16 a 25 de novembro de 2000 e reformado parcialmente pela Corte em seu LXI Período
Ordinário de Sessões, realizado de 20 de novembro a 4 de dezembro de 2003.
215
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
contém determinadas recomendações para o Estado.4 Em 1° de abril de 2008, a Comissão decidiu, nos termos
dos artigos 51.1 da Convenção e 44 de seu Regulamento, apresentar o presente caso à jurisdição da Corte,
considerando que “o Estado não havia cumprido as recomendações” indicadas no Relatório de Mérito n° 125/06.
A Comissão designou como Delegados o senhor Paolo Carozza, Comissário, e o senhor Santiago A. Canton,
Secretário Executivo, e como assessoras jurídicas as senhoras Elizabeth Abi-Mershed, Secretária Executiva
Adjunta, Norma Colledani e Manuela Cruz Rodríguez, especialistas da Secretaria Executiva da Comissão.
2. Na demanda, a Comissão se referiu ao suposto descumprimento das sentenças judiciais do Tribunal Constitucional
do Peru de 21 de outubro de 1997 e 26 de janeiro de 2001 que ordenam “que a Controladoria Geral da República
cumpra o pagamento aos integrantes da Associação demandante das remunerações, gratificações e bonificações
que recebem os servidores em atividade da citada Controladoria que desempenhem cargos idênticos, similares
ou equivalentes aos que tiveram os demitidos ou aposentados”, em relação aos duzentos e setenta e três
(273) integrantes da Associação de Demitidos e Aposentados da Controladoria Geral da República (doravante
denominadas “as supostas vítimas” ou “os 273 integrantes da CGR”).5 A Comissão afirmou que “[embora]
4. No Relatório de Mérito a Comissão concluiu que “o Estado peruano é responsável pela violação dos direitos à proteção judicial e à propriedade
consagrados nos artigos 25 e 21 da Convenção Americana, em detrimento dos demitidos e aposentados da Controladoria Geral da República.
O anterior constituiu também violação por parte do Estado peruano à obrigação genérica de respeito e garantia que lhe impõe o artigo 1(1)
deste instrumento internacional”. Posteriormente, a Comissão recomendou ao Estado “[t]omar as medidas necessárias para dar cumprimento
de forma eficiente às sentenças do Tribunal Constitucional d[o] Peru proferidas em 21 de outubro de 1997 e [em] 26 de janeiro de 2001”.
5. As 273 supostas vítimas no presente caso são: Acevedo Buendía, Alejandro; Acevedo Castro, Apolonio; Acevedo León de Dávila, Isabel Zoila;
Acosta Arandia, Asunção Graciela; Acosta Trujillo, Marcial; Agüero Ayala, Zóismo; Aguilar Arévalo, Augusto Marcos; Aguilar Serrano, Miguel
Tulio; Aguirre Calderon, Emilio Fernando; Alarcón Coronado De Pérez, Nilda René; Alayo Fajardo, Félix Agustín; Alcalá Contreras, Carmen
Alejandra; Alcóser Gutiérrez, Moisés Ernesto; Almenara Valdez De Hemmerde, Luisa; Almeyda Flores, Gerardo; Álvarez Postigo, Víctor Augusto;
Alza Ahumada, Carlos Eugenio; Amico Ramos Viúva de Errea, Leticia; Ampuero Pasten, Alejandro Augusto; Anaya Viúva De Faura, María
Cristina; Aparicio Sifuentes, José Melchor; Aquije Alvarez, Luis Alberto; Arana Pozo, Iraida Eumelia; Arancivia De Valdez, Jaqueline Tania
Silvana; Aranda De Los Ríos, María Rosa; Arce Meza, Fernando Aníbal; Arce Viúva De Hipólito, Carmen Julia; Arevalo Dávila Viúva de Pujazón,
Martha Leticia; Arroyo Montes, Carmen Liliana; Arroyo Villa Viúva de Arriola, Hilda Teresa; Asencios Ramírez De Cuneo, María Emma;
Bacigalupo Hurtado De Salgado, María Cristina; Balabarca Morales, Rosa Elvira; Banda De Palacios, Josefa Eusebia; Barandiarán Ibáñez,
Germán Julio César; Barreda Espinoza, Gerardo Adán; Beaumont Callirgos, Fortunata Raquel; Becerra Quiroz, Delia; Becerra Quiroz, Julia
Auristela; Begazo Mansisidor, Roberto Isidoro; Beltrán Paz De Vega, Ana María Vicente; Berríos Berríos, Martha María Antonieta; Berrocal Soto,
Vladimiro Jesús; Blas Moreno, Carmen; Blotte Adams, Manuel Edmundo; Bojorquez Gonzáles, Dalton Jesús; Borrero Briceño, Julio Cesar;
Bravo Torres, Enrique; Cabrera Jurado, Leoncio Ruperto; Cadenillas Gálvez, Luis Francisco; Cahua Bernales, Juan Antonio; Calderón Escala,
Francisco Armando; Campos Sotelo, Héctor Ciro; Candela Vasallo, Héctor Oswaldo; Cárdenas Abarca, Saúl Edmundo; Carmelino Del Carpio
Deli, Liliana; Carpio Valdivia, Carmen Jacinto; Carranza Espinoza, Pedro Víctor; Carranza Guerra, Jaime Leoncio; Carrasco Valencia, Reneé
Javier; Carrillo Salinas, Enrique; Carrión Martínez, Pedro Antonio; Castagneto Vélez, Juan Antonio; Castañeda Acevedo, Manuel Segundo;
Castilla Meza, Jorge Clímaco; Castro Contreras, Jaime Raúl; Castro Zapata, Norberto; Cavassa Urquiaga, Juana María; Celis Cairo, César
Manuel; Centurión Marchena De Ramírez, Carmen Isabel; Céspedes Romero, Manuel; Chamorro Díaz De Bezir, María Del Carmen; Chapoñán
Prada, Ricardo; Chávez Del Carpio, Genaro Remigio; Chicoma Mendoza, Juan Vicente; Choza Nosiglia, Fernando; Chumpitaz Huapaya, José
Hugo Félix; Chura Quisocala, Germán Amadeo; Collantes Sora, César Daniel; Cortes De Durand, Sofía; Cuadros Valdivia, Gregorio Hipólito;
Cubas Castillo, Martha; Cuiro Jaimes, Mariano; Dávila Ramos, Pablo; Dawson Vásquez, Harry; De La Cruz Arteta, José Enrique; Defilippi Viúva
de Queirolo, Adela; Delgado Gorvenia, Frida Eriberta; Delgado Vega, Roberto Alfredo; Dextre Dextre, Víctor Manuel; Dueñas Aristizábal, Antonio
Pelagio; Egúsquiza Flores, José Wilfredo; Escobar Salas, José Santiago; Escudero De Beraun, Nelly; Espejo Vivanco, María Luz; Espinoza
Zazzali, Moisés Ernesto; Falcón Carbajal, Guillermo; Falconi Delboy, Mercedes Gabriela; Faustino Tataje, Fermín; Ferreccio Alejos, Elsa Mirtha;
Ferrel Ayma, Claudio; Figueroa Guerrero, Elmer Enrique; Figueroa Pozo, Doris María Flora; Flores Konja, Julio Vicente; Flores Ojeda De Pérez,
Blanca Nélida; Gala Conislla, Roque; Galvez Martínez De Talledo, Mirella Teresa; García Flores, César Augusto; García Mendoza, Rafael Francisco;
García Salvatecci, Carmen Rosa; García y García De Gómez, Nélida; Gómez Córdova, Juan Aníbal; Gonzáles Miranda, Luis; Gotuzzo Romero,
Mario Bartolomé; Gutiérrez García, Darío Alejandro; Guzmán Rodríguez, Jorge Segundo; Hernández Cotrina, Amado; Hernández Fernandini,
Constanza; Hernando Galvez, José Antonio; Herrera Meza, José Santos; Huamán Effio De Revilla, Mirtha Luz; Huamán Huillca, Valerio Francisco;
Ibarra Márquez, Juan Amador; Icochea Arroyo, José Félix; Ishiyama Cervantes Miguel; Iturregui Santoyo, Pedro Gonzalo; Iturrizaga Arredondo,
Rafael; Jiménez Lumbreras, Mauro Esteban; Lam Sánchez De Torres, Consuelo; Lamas Vargas, Julia Elvira; Lazarte Terry, Máximo Ernesto;
Lazo Loayza, Dante Eusebio; Lazo Zegarra, Nora Ruth; Leau Caballero De Herrera, Betty Eudocia; Libaque Villanueva, Manuel Isaac; Linares
Ruiz, María Ilmer; López Rubiños De Rivero, Nelly Esperanza; López Solórzano Viúva de Sunico, Rosa Judith; López Rubiños, Jorge Percy; Lora
Cortinez, Juan; Lucero Álvarez, Manuel Gerónimo; Lucero Palomares, Abraham; Luna Heredia De Rodríguez, María Maruja Elvira; Macchiavello
Leon Viúva de León, Teresa Yolanda; Manyari Palacios, Guido Alberto; Marin Gil, Juan; Martínez Marin, Alicia; Martínez Estremadoyro, Juan
Bautista; Martínez Hubner, Fernando Marcos; Martínez Torres, Raúl Domingo; Matos Huanes, Carlos Alberto; Medina Morán, Juan José; Mejía
Montes, Félix Espimaco; Meléndez Meléndez, Rita; Meléndez Hidalgo De Bojorquez, Nora Angelina; Meléndez Romani, Jesús; Melgar Medina,
Jesús M.; Menéndez Butrón, Judith Damiana; Mercado, Luis Fernando; Merino Sánchez, Eduardo; Mesías Sandoval, Vidal Hernán; Meza
Gamarra, Arturo Higinio; Meza Ingar, Patricia Edelmira; Miranda Roldán, Rosa Luz; Miyasato Higa Viúva de Kamisato, Victoria Alejandrina;
Mondragón Roncal, Fernando Eleuterio; Monsante Ramírez, César; Montero Garavito, Guillermina; Montero Vargas, Edgardo Demetrio;
Montoya Villalobos, Carlos Alejandro; Morales Chavarría, Samuel Enrique; Morales Martínez, Ángel; Moreno Dorado, Blanca Frida; Mostajo
Colzani, Manuel Fernando; Mueras Orcon, Lucio; Muñoz Pardo, Edgardo; Navarro Quispe De Morales, Julia Ricardina; Negri Cabrera, Otto
Alberto; Neyra Castro, Luis Mauro; Neyra Ríos, Marina; Niño García, Víctor Raúl; Ochoa Ochoa, Pedro; Odría Bastas, Víctor Manuel; Odría
Torres Víctor; Ojeda Sánchez, Luis Octavio; Olaechea Granda, Luis Adolfo; Ormeño Wilson, Julio Eduardo; Oropeza Guía, Leonardo; Padilla
Gonzáles De Gordillo, Irene; Paredes Tapia, Eugenia Martha; Peña Ugarte, Juan Manuel; Peñaranda Portugal, Percy; Pérez Gallegos, Gabriel;
Pérez Rosales, José Manuel; Pérez Ugarte, Urbana Eugenia; Portugal Vizcarra, José Antonio; Pozo Calva, Gabino Ulises; Pozo Vega, Luis Daniel;
Quinde Villacrez, Edgardo; Quiroz Arata, Juan; Ramírez Gandini, César Manuel; Reátegui Noriega, Nancy; Ríos Nash De Reátegui, María Teresa;
Rivera Dávalos, Julio César; Robles Freyre Viúva de Kajatt, María Victoria; Rodríguez Balbuena, Edilberto; Rodríguez Vildosola Viúva de
Cussianovich, María Zulema; Rodríguez Yépez, Laura Angélica; Rodríguez Zarzosa, Pablo Víctor; Romero Maceda, Ricardo Héctor; Romero
Pacora, Jesús; Romero Vivanco, Judith María Del Rosario; Rosario Chirinos, Marcos; Ruiz Botto, José Guillermo; Saenz Arana, Luz Aurea;
Salas Luna, Ulderico; Salazar Souza Ferreyra, César Enrique; Salinas De Córdova, Elsa Luisa; San Román Viúva de Riquelme, Luz; Sánchez
Canelo, José Edmundo; Sánchez Huarcaya, Luisa Flora; Sánchez Quiñónez, Juan Zenobio; Sanez Gárate, Betty Soledad; Santamaría Vidaurre,
César Augusto; Santayana Valdivia, Atilio; Seperack G. De Caro, Rosa; Serrano Mendieta, Valerio Humberto; Sevilla Aspillaga, Guillermo
Eduardo; Sifuentes Del Águila, Leoncio Oswaldo; Sigarrostegui Bindels De Gonzáles, Norma; Solis Romero, Jaime Juan; Sosa Castillo, Julio
Edmundo; Soto Bautista, Emilio Felipe; Taboada Morales, César Hugo; Tapia Campos, Antero Santiago; Taquia Vila, Víctor; Tavara Ocaña De
Ruiz, Herminia Beatriz; Terán Suárez, Félix Enrique; Tolentino Zagal, Rossana; Tompson Ortega, Andrés Avelino; Torres Rodríguez, Mario
216
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO ACEVEDO BUENDÍA E OUTROS VS. PERU
o Estado tenha dado cumprimento parcial a uma parte da sentença [do Tribunal Constitucional] ao nivelar as
pensões das [supostas] vítimas a partir de novembro de 2002, não cumpriu a devolução dos valores de pensão
retidos a partir do mês de abril do ano de 1993 até outubro de 2002”.
3. Em função do anterior, a Comissão solicitou à Corte que declarasse que o Estado é responsável pela violação
dos direitos reconhecidos nos artigos 21 (Direito à Propriedade Privada) e 25 (Proteção Judicial) da Convenção
Americana, em relação ao artigo 1.1 (Obrigação de Respeitar os Direitos) da mesma, em detrimento das 273
supostas vítimas. Como consequência do anteriormente exposto, a Comissão solicitou à Corte, em conformidade
com o artigo 63.1 (Obrigação de Reparar) da Convenção, que ordene ao Estado a adoção “das medidas necessárias
para dar cumprimento de forma eficiente às sentenças do Tribunal Constitucional d[o] Peru proferidas em 21
de outubro de 1997 e [em] 26 de janeiro de 2001”, bem como o pagamento “das custas e gastos legais em que
tenham incorrido as [supostas] vítimas na tramitação do caso no âmbito nacional [e] perante o [S]istema [I]
nteramericano”.
4. Em 7 de julho de 2008, o senhor Javier Mujica Petit, advogado encarregado do Programa de Direitos Humanos do
CEDAL (doravante denominado “o representante”), e a senhora Isabel Acevedo León, presidente da Associação
de Demitidos e Aposentados, apresentaram o escrito de petições, argumentos e provas (doravante denominado
“escrito de petições e argumentos”) nos termos do artigo 23 do Regulamento. Neste escrito foi pedido à Corte
que declarasse que o Estado havia realizado as mesmas violações de direitos invocadas pela Comissão e,
adicionalmente, foi alegado que o Estado era responsável pelo descumprimento do artigo 26 (Desenvolvimento
Progressivo dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais) da Convenção, em relação ao artigo 1.1 (Obrigação
de Respeitar os Direitos) da mesma. Também foi pedido que a Corte ordenasse ao Estado a adoção de certas
medidas de reparação e o reembolso das custas e gastos. No mesmo escrito foi indicado que o CEDAL “representa
248 demitidos ou aposentados dos 273 integrantes da Associação mencionados na demanda” e que as “25
[supostas] vítimas ou seus familiares que não estão representadas pelo [CEDAL], serão representadas pela
Comissão, segundo o artigo 33.3 do Regulamento da Corte”. Entretanto, as procurações e atas apresentadas
como anexos à demanda e ao escrito de petições e argumentos permitem a este Tribunal concluir que o senhor
Mujica Petit representa 251 supostas vítimas e que, portanto, são 22 as representadas pela Comissão.6
5. Em 5 de setembro de 2008, o Estado, representado pela Agente Delia Muñoz Muñoz, apresentou seu escrito
de contestação da demanda e de observações ao escrito de petições e argumentos (doravante denominada
“contestação da demanda”), no qual objetou a competência da Corte ratione materiae, indicando que esta “carece
de competência para conhecer, em sede jurisdicional, de direitos de natureza econômica[,] social ou cultural”.
Em seu escrito de alegações finais, o Estado esclareceu que a exceção preliminar está baseada “na falta de
competência em razão da matéria da Corte para se pronunciar sobre a suposta violação ao direito à previdência
social, devendo unicamente analisar e eventualmente declarar a responsabilidade internacional do Estado em
relação ao direito de proteção judicial e ao direito de propriedade contemplados na Convenção”. Além disso, o
Estado afirmou que não é responsável pelas violações alegadas “já que desde o a[n]o de 2002 […] vem pagando
as pensões às supostas vítimas[,] a totalidade das mesmas[,] em conformidade com o mandato das sentenças
invocadas”, rejeitando “a obrigação do pagamento de juros acumulados de pensões, por não estar contida […]
na decisão das [s]entenças do Tribunal Constitucional”. Posteriormente, o Estado solicitou declarar improcedente
e infundado o pedido de reparações e de reembolso de custas e gastos. Em conformidade com o artigo 37.4 do
Regulamento, em 10 e 21 de outubro de 2008, o representante e a Comissão, respectivamente, apresentaram
suas alegações sobre a exceção preliminar interposta pelo Estado, solicitando que a Corte a rejeitasse.
Simón; Trujillo Rodríguez, Raquel; Ubillus Martino, Mario Pastor; Ugarte Alarcón, Alberto Walter; Urrelo Moreno De Cardich, Rosa; Valencia
Amador, Elizabeth Milagro; Valencia Pacheco De Cárdenas, Blanca Concepción; Valverde Bernal, Adolfo; Vargas Calvo, Alberto; Vargas Giles,
Juan Augusto; Vargas Prieto Viúva de Barcelli, María Esther; Vargas Salas, Cosme Marino; Vargas Salazar, Enrique Eduardo; Vargas Salinas,
Eileen G.; Vásquez Del Castillo, Elena; Vega Alarcón, César Augusto; Vela Lazo De Peralta, Consuelo Emperatriz; Velarde Falcón, Amelia Juana;
Velásquez Del Carpio, César; Vicuña Arias De Valdez, Edelmira; Villalobos Rodríguez, Marcos; Villanueva Ipanaque, Carmen Isabel; Vitkovic
Trujiilo, José Baltasar; Vizcaya Jáuregui, Nicolás Ramiro; Yap Cruz, José Leoncio; Yarasca Montano, Pedro Lucio; Yong Flores, Raúl; Zapata
Barrientos, Pedro Sigifredo; Zapata Benites, Alberto; Zavala Rivera, Víctor Manuel; Zavala Torres, Dora Jasmine; Zevallos Alzamora, Olga
Cecilia, e Zuloeta Camacho, Ángel.
6. As 22 supostas vítimas que não concederam procuração de representação ao senhor Javier Mujica Petit são: Agüero Ayala, Zósimo; Aguilar
Arévalo, Augusto Marcos; Banda De Palacios, Josefa Eusebia; Berríos Berríos, Martha María Antonieta; Blas Moreno, Carmen; Cárdenas
Abarca, Saúl Edmundo; Chapoñan Prada, Ricardo; Defilippi Viúva de Queirolo, Adela; Falconi Delboy, Mercedes Gabriela; García Mendoza,
Rafael Francisco; Iturrizaga Arredondo, Rafael; Jiménez Lumbreras, Mauro Esteban; Lora Cortínez, Juan; Marín Gil, Juan; Montero Garabito,
Guillermina; Morales Martínez, Ángel; Moreno Dorado, Blanca Frida; Odría Torres, Víctor Manuel; Ormeño Wilson, Julio Eduardo; Pérez Ugarte,
Urbana Eugenia; Sigarrostegui Bindels de González, Norma, e Vargas Prieto Viúva de Barcelli, María Esther.
217
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
II
Procedimento Perante A Corte
6. Em 5 de maio de 2008, a Secretaria da Corte (doravante denominada “a Secretaria”), após o exame preliminar
realizado pela Presidente da Corte, e em conformidade com os artigos 34 e 35.1 do Regulamento, notificou a
demanda via fac-símile ao Estado7 e ao representante. Em 6 de junho de 2008, o Estado designou o senhor Víctor
Oscar Shiyin García Toma como Juiz ad hoc.
7. Em 5 de dezembro de 2008, a Presidente da Corte emitiu uma Resolução, na qual ordenou a apresentação, através
de declarações prestadas perante agente dotado de fé pública (affidavit), de um testemunho, uma declaração
a título informativo e uma perícia propostos pelo representante e pela Comissão. Além disso, admitiu quatro
declarações prestadas perante agente dotado de fé pública (affidavit) apresentadas pelo representante em 13 de
novembro de 2008, apesar de seu envio prematuro no processo. As partes tiveram oportunidade de apresentar
observações sobre todas as declarações requeridas e admitidas. Ao mesmo tempo, a Presidente convocou a
Comissão, o representante e o Estado a uma audiência pública para receber as declarações de duas testemunhas
propostas pelo representante, bem como as alegações finais orais sobre a exceção preliminar e os eventuais
mérito, reparações e custas.8
8. Em 5 de janeiro de 2009, o representante apresentou o testemunho da senhora Dicha Laura Arias Laureano
de Pozo, prestado perante agente dotado de fé pública e, em 6 de janeiro de 2009, a Comissão apresentou a
declaração a título informativo e o parecer pericial dos senhores Javier Cabanillas Reyes e Flavia Marco Navarro,
respectivamente, ambos prestados perante agente dotado de fé pública. Em 16 de janeiro de 2009, o Estado
apresentou observações ao testemunho de Dicha Laura Arias Laureano de Pozo, bem como à declaração a título
informativo e ao parecer pericial apresentados pelos senhores Javier Cabanillas Reyes e Flavia Marco Navarro.
Nesse dia, o representante apresentou observações a estas duas últimas declarações.
9. Em 21 de janeiro de 2009 foi realizada a audiência pública, durante o LXXXII Período Ordinário de Sessões da
Corte.9
10. Em 23 de fevereiro de 2009, a Comissão, o Estado e o representante apresentaram, respectivamente, suas
alegações finais escritas sobre a exceção preliminar e os eventuais mérito, reparações e custas. Já que o Estado
e o representante enviaram prova documental com seus escritos de alegações finais, a Corte solicitou às partes
observações a estes anexos através de nota de 11 de março de 2009. Em 20 de março de 2009, a Comissão
afirmou que “não t[inha] observações a formular” sobre a prova apresentada pelo Estado e pelo representante
com suas respectivas alegações finais escritas. O Estado e o representante não apresentaram observações a esse
respeito.
11. Em 30 de março de 2009, foi pedido ao representante que enviasse ao Tribunal os recibos e prova relacionados
com as custas e gastos, indicados no anexo 5 do escrito de petições e argumentos no presente caso. Em 20 de
abril de 2009, o representante solicitou uma extensão de prazo de 30 dias para a apresentação desta prova, a
qual foi concedida pela Presidenta da Corte. Em 28 de maio de 2009, o representante solicitou “uma extensão
do prazo de 30 dias adicionais” para a apresentação da referida prova. A esse respeito, a Presidenta do Tribunal
concedeu ao representante um novo prazo até 12 de junho de 2009 para a apresentação da documentação
referida. Em 17 de junho de 2009, o representante afirmou que havia enviado uma “relação de gastos” através
de correio postal, e em 22 e 23 de junho de 2009 apresentou via correio eletrônico os anexos indicados nesta
comunicação. Foi concedido ao Estado e à Comissão um prazo até 29 de junho de 2009 para a apresentação de
observações a esse respeito. Em 30 de junho de 2009, o Estado apresentou suas respectivas observações. Até a
data de emissão da presente Sentença, as observações da Comissão não haviam sido recebidas neste Tribunal.
7. No momento da notificação da demanda ao Estado, informou-se que podia designar um juiz ad hoc para que participasse na consideração
do presente caso.
8. Resolução emitida pela Presidenta da Corte Interamericana em 5 de dezembro de 2008.
9. As seguintes pessoas estiveram presentes na audiência pública: a) pela Comissão Interamericana: Elizabeth Abi-Mershed, Secretária Adjunta;
Juan Pablo Albán A., assessor; Lilly Ching Soto, especialista da Secretaria Executiva, e Silvia Serrano, especialista da Secretaria Executiva;
b) pelas supostas vítimas e pelo representante: Javier Mujica Petit, representante das supostas vítimas; Isabel Zoila Acevedo León, suposta
vítima e Presidenta da Associação Nacional de Demitidos e Aposentados da Controladoria Geral da República; Luis Adolfo Olaechea Granda,
suposta vítima e Vice-Presidente da Associação Nacional de Demitidos e Aposentados da Controladoria Geral da República, e María Cristina
Bacigalupo de Salgado, suposta vítima e Assessora da Direção da Associação Nacional de Demitidos e Aposentados da Controladoria Geral da
República, e c) pelo Estado: Delia Muñoz Muñoz, Procuradora Pública Especializada Supranacional do Sistema de Defesa Jurídica do Estado;
Rosa María Silva Hurtado, Secretária Técnica do Conselho de Defesa Jurídica do Estado; Edgar Alarcón Tejada, Gerente Geral do Conselho de
Defesa Jurídica do Estado, e Héctor Maldonado Montalvo, Procurador Adjunto da Controladoria Geral da República.
218
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS E DISCRIMINAÇÃO - CASO ACEVEDO BUENDÍA E OUTROS VS. PERU
III
Exceção Preliminar Ratione Materiae
12. Em seu escrito de contestação da demanda, o Estado argumentou que a Corte carece de competência ratione
materiae para conhecer do presente caso. Em seu escrito de alegações finais, o Estado esclareceu que a exceção
preliminar se baseia “na falta de competência em razão da matéria da Corte para se pronunciar sobre a suposta
violação ao direito à previdência social, devendo unicamente analisar e eventualmente declarar a responsabilidade
internacional do Estado em relação ao direito de proteção judicial e ao direito de propriedade contemplados
na Convenção”. A esse respeito, o Estado alegou que o direito à previdência social fica fora do alcance da
competência da Corte em razão da matéria, já que este não está contemplado na Convenção Americana nem é
um dos dois direitos (direitos sindicais e direito à educação) que excepcionalmente seriam protegidos perante o
Sistema Interamericano, em conformidade com o indicado no artigo 19.6 do Protocolo de San Salvador.
13. A esse respeito, a Comissão considerou que “a exceção preliminar apresentada por parte do Estado deve ser
rejeitada por carecer de fundamento jurídico”. Primeiro, afirmou que o Estado “não levantou nenhuma objeção ao
cumprimento dos requisitos de admissibilidade” durante o trâmite perante a mesma, razão pela qual sua exceção
“é inadmissível em virtude do princípio de estoppel”. Além disso, indicou que “o objeto da demanda apresentada
pela Comissão não se centra em estabelecer se os integrantes da Associação […] têm ou não um direito à
previdência social, e se esse direito foi ou não respeitado, garantido ou cumprido pelo Estado peruano. Esse direito
já foi reconhecido como tal pelas sentenças do Tribunal Constitucional d[o] Peru de 21 de outubro de 1997 e 26
de janeiro de 2001. Seu conteúdo não está em discussão perante a Corte […]. O que está em discussão […] é o
descumprimento destas sentenças, e as consequências que esse descumprimento tem no direito [à] propriedade
das vítimas sobre suas pensões”. Por outro lado, a Comissão afirmou que, embora o alegado descumprimento
do artigo 26 da Convenção “não forma parte do caso apresentado por [ela,] a jurisprudência do [S]istema
confirma que a Corte tem competência material para se pronunciar sobre u[m] alegad[o descumprimento] desta
norma”. Em todo caso, afirmou que “a discussão sobre se o Estado incorreu ou não em u[m descumprimento]
do artigo 26 da Convenção pertence ao mérito do presente assunto”. Posteriormente, destacou que “nem a
Comissão nem [o] representant[e] das [supostas] vítimas alegaram a violação de disposições do [Protocolo de
San Salvador]”, de modo que é “desnecessário que a Corte se pronuncie sobre sua competência material em
relação a este tratado”.
14. Por sua vez, o representante também solicitou que a Corte rejeitasse a exceção preliminar apresentada pelo
Estado. Alegou que a Corte é competente “para interpretar e fixar o alcance das obrigações gerais de respeito e
garantia, e de adequação normativa, em relação aos direitos que se derivam das normas econômicas, sociais e
sobre educação, ciência e cultura, contidas na Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo
Protocolo de Buenos Aires, a que faz referência o artigo 26” da Convenção. Além disso, afirmou que a Convenção
Americana “não exclui [da competência da Corte] a interpretação e aplicação [de] nenhum direito ou disposição
[deste instrumento]. Portanto, deve-se entender que todos os seus artigos […] são suscetíveis de serem
interpretados pela Corte ao exercer sua competência contenciosa”. Igualmente, afirmou que embora “a matéria
objeto de controvérsia neste caso consiste em estabelecer se o Estado peruano incorreu em responsabilidade
internacional ao descumprir duas sentenças judiciais, […] o direito à proteção judicial implica necessariamente
a proteção indireta dos direitos amparados por [estas] sentenças judiciais, […] incl

Documentos relacionados