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0 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA Karina Galli Fraga da Silva “ESSA VAI PARA O MEU FACE”: A CONSTRUÇÃO DA FACHADA EM SITES DE REDES SOCIAIS Cuiabá-MT 2012 1 Karina Galli Fraga da Silva “ESSA VAI PARA O MEU FACE”: A CONSTRUÇÃO DA FACHADA EM SITES DE REDES SOCIAIS Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Estudos de Cultura Contemporânea como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea, na Área de Concentração Estudos Interdisciplinares de Cultura, Linha de Pesquisa Epistemes Contemporâneas. Orientadora: Profª Drª Icléia Rodrigues de Lima e Gomes. Cuiabá-MT 2012 2 Dados Internacionais de Catalogação na Fonte. G168e Galli Fraga da Silva, Karina. "Essa vai para o meu Face": A construção da fachada em sites de redes sociais / Karina Galli Fraga da Silva. -- 2012 158 f. : il. color. ; 30 cm. Orientadora: Icléia Rodrigues de Lima e Gomes. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Linguagens, Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea, Cuiabá, 2012. Inclui bibliografia. 1. (n) etnografia. 2. sites de redes sociais. 3. fotografias. 4. fachada. 5. internet. I. Título. Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a). Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte. 3 4 AGRADECIMENTOS A Deus, pela força e sabedoria concedidos durante a caminhada do mestrado. Aos meus sujeitos de pesquisa, pela confiança e empenho em me ajudar. À minha orientadora, pelos conselhos e direcionamentos da pesquisa. Aos meus pais, pelo carinho e amparo nas horas difíceis. Ao meu irmão, pelo bom humor e a presença constante durante o período da escritura deste trabalho. Ao meu companheiro, pela paciência e companhia, ainda que virtual, durante todo o processo de elaboração da dissertação. 5 “If you´re not prepared to be wrong, you´ll never come up with anything original.” Sir Ken Robinson 6 RESUMO Este trabalho descreve e caracteriza a fachada construída por homens e mulheres nos sites de redes sociais Orkut e Facebook a partir das fotografias publicadas em ambos os sites. As fotografias são aqui tomadas como recursos de apresentação pessoal: proporcionam visibilidade, permitindo a administração da aparência diante da rede de contatos. As dinâmicas de representação e interação dos sites são contextualizadas tendo como pano de fundo a perspectiva da pós-modernidade e a análise situa-se a partir de uma concepção hedonista e tribal sugerida por Michel Maffesoli e das noções de performance e fachada de Erving Goffman. A pesquisa, descritiva e de caráter (n)etnográfico, observa os perfis de cinquenta usuários do Orkut e do Facebook, sendo vinte e cinco de mulheres e vinte e cinco de homens, cujas idades variam entre 18 e 68 anos. Em relação às fotografias, constata-se que há um repertório de temáticas comuns entre os perfis observados: Família, Festas, Viagens/passeios, Eu, Amigos, Par, Memórias, Montagens. Para a apreciação dessa cultura de Facebook, além da observação, são analisadas também as falas de entrevistas on-line feitas com os sujeitos analisados. E o que as falas revelaram é uma vontade de transmitir, através das fotografias, a alegria e felicidade de suas vidas, representadas pela vida cotidiana, pelos momentos com a família, com os amigos, com os bichos de estimação, os momentos de descontração em festas, passeios e viagens. São esses “instantes eternos” que parecem conferir vida e que destacam o aspecto emotivo como característica marcante de nossa época. Palavras-chave: (n) etnografia, sites de redes sociais, fotografias, fachada, internet. 7 ABSTRACT This work describes and characterizes the front built by men and women on the social network sites Orkut and Facebook taking the photographies published on both websites. The photographies are considered to be resources of personal presentation: they provide visibility, allowing the management of impression in front of the contact network. The dynamics of presentation and interaction of the websites are contextualized having the perspective of post modernity as backdrop and the analysis is set in a hedonist and tribal conception suggested by Michel Maffesoli and the notions of performance and front of Erving Goffman. The research, descriptive and of an (n) ethnography kind observes the profiles of fifty users from both Orkut and Facebook, twenty-five from men and twenty-five from women, aged between 18 and 68 years old. Regarding the photographies, it is noticed that there is a common repertoire of themes: Family, Party, Trips, Me, Friends, Partner, Memories and Montages. For the appreciation of this Facebook culture, besides the observation, the speeches of the interviews carried out on-line with the observed subjetcs are analyzed as well. And what they reveal is a will to convey, through the photographies, the joy and happiness of their lives represented by the everyday life, the moments with the family, with the friends, with the pets, the relaxation moments at parties, trips. These “eternal moments” are the ones which seem to grant life and which highlight the emotional aspect as an outstanding feature of our time. Keywords: (n) ethnography, network sites, front, photographies, internet. 8 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 10 A O DESAFIO DA PESQUISA: APROFUNDANDO O LEAD .......................................... 16 1 A etnografia como método ................................................................................................. 18 2 Por que netnografia? ............................................................................................................ 22 3 A entrada no campo: perambulando on-line ........................................................................ 25 B A INTERNET ENQUANTO CAMPO DE INVESTIGAÇÃO: O COTIDIANO E O CONTEMPORÂNEO EM FOCO ............................................................................................ 30 1 Breve panorama da internet ................................................................................................. 34 2 Cibercultura no contexto da pós-modernidade .................................................................... 42 3 Os SRS em linhas gerais: estrutura e histórico .................................................................... 46 4 Os SRS e a socialidade mediada por computador ............................................................... 50 5 Maffesoli e Goffman: de tribos e de fachadas ..................................................................... 54 C AS FOTOS NO ORKUT E NO FACEBOOK: CONSTRUINDO UMA FACHADA VIRTUAL................................................................................................................................. 72 1 Orkut e Facebook: descrevendo o campo ............................................................................ 74 1.1 Orkut no Brasil: da invasão ao abandono do site ............................................................... 76 9 1.2 Facebook, mania mundial: curtiu? ..................................................................................... 84 2 Chegando aos dados............................................................................................................. 92 2.1 A Fachada virtual.............................................................................................................. 101 *A família ............................................................................................................................... 107 *As festas estão em mim ........................................................................................................ 111 *Por onde andei ...................................................................................................................... 114 *Aqui tem sempre um pedacinho meu ................................................................................... 117 *Amigo é coisa pra se guardar ............................................................................................... 122 *O par perfeito ........................................................................................................................ 127 *Com um pé no passado ......................................................................................................... 134 * A vida como obra de arte ..................................................................................................... 143 REFLEXÕES (IN) CONCLUSIVAS ..................................................................................... 148 BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 153 ANEXO I ................................................................................................................................ 158 ANEXO II .............................................................................................................................. 159 10 INTRODUÇÃO “Estamos condenados ao pensamento incerto.” Edgar Morin A ideia de fazer pesquisa na internet não é recente. Ainda na graduação decidi trabalhar neste ambiente. Naquela época, o foco de investigação era outro, mais voltado para a minha área de formação, o jornalismo. Estudava as novas ferramentas trazidas pela rede e os usos que o jornalismo faz delas, o chamado webjornalismo. De lá pra cá não consegui investir em outra área senão a internet, pois cada vez mais percebo que o número de pessoas conectadas e o tempo por elas despendido neste espaço é maior. Porém, diferente dos que acreditam que a internet está nos afastando, prefiro pensá-la enquanto um meio de aproximação das pessoas, cujo objetivo não é substituir o contato face a face, mas proporcioná-lo quando não há outra maneira de estar junto. Também me recuso a pensá-la enquanto um ambiente hiper-real e encantado, à parte do real. São as pessoas que fazem e reinventam a internet diariamente e elas carregam para o mundo on-line aquilo que são no mundo off-line. Dessa forma, o par real/virtual pode ser perigoso quando usado para diferenciar os dois ambientes: o que faço no mundo virtual é real porque acontece, aproxima, vincula. Muitos, no entanto, ainda enxergam a vida on-line como ficção. A expressão “mundo virtual” é empregada conotativamente em referência a um mundo mágico, de faz de contas e onde tudo é possível. É comum encontrar discursos de pessoas que acreditam que ao acessar a rede estão invisíveis e não deixarão rastros, internautas desencarnados que navegam e fazem de tudo on-line sem se preocupar, ao seu bel prazer. Essa não é uma visão exclusiva dos que desconhecem o funcionamento da rede, mas ecoa por todos os lados, inclusive vinda dos ditos “formadores de opinião”, os jornalistas. Posso dar um exemplo que ouvi quando escrevia este texto. Numa reportagem sobre as mudanças de hábitos provocadas pela tecnologia, o repórter faz a seguinte pergunta a um entrevistado: “E o mundo aqui fora, como é que fica, o mundo de verdade?”. Tal indagação esbarra numa perspectiva reducionista da relação entre sociedade e tecnologia, ou melhor, da 11 vida on e off-line. O que fazemos quando navegamos pela internet não é, em hipótese alguma, ilusório ou falso. É tudo produto da ação humana, que investida com um nick ou um nome de usuário produz e distribui conteúdo, se informa e se diverte, estuda e namora. Não são dois mundos à parte, apenas um, cujo aparato técnico auxilia e potencializa as relações sociais. A opinião do repórter ratifica a visão fantasmagórica do mundo “de mentira” proporcionado pela internet. O que espanta em tal afirmação é pensar que ele próprio, enquanto jornalista, utiliza diariamente as ferramentas digitais proporcionadas pela internet, seja em busca de informação ou mesmo para entrevistar pessoas. E não há nada de irreal nisso. Para evitar a confusão que os termos real/virtual causam quando da distinção entre os âmbitos on e off-line, utilizarei, no decorrer do trabalho, o termo físico para me referir a tudo que acontece sem a mediação de dispositivos eletrônico-digitais. Muitas pesquisas já identificaram a internet como potencializadora de um interesse ou afinidade anterior a ela, ou apenas como uma aliada diária nos afazeres domésticos e profissionais. Tudo isso desmente a suposição apocalíptica da substituição do contato físico pelo aparato digital. Assim, tomar a internet como um campo autônomo e autocontido, que existe independente de forças humanas é no mínimo uma tendência determinista. Somos seres tecnológicos porque precisamos sempre, ao contrário de outros animais, transformar o mundo externo. Mas, mais importante do que as transformações e os artefatos tecnológicos é o componente relacional, ou seja, o homem em relação a eles e em relação aos outros membros da sociedade. A partir daí, pode-se estabelecer não apenas os usos e os efeitos da tecnologia na vida de quem a utiliza, mas, acima de tudo, o vínculo social mantido e renovado por ela. Foi com essa visão que escolhi pesquisar os chamados sites de redes sociais, tendo em vista que o que eles fazem basicamente é estreitar os laços off-line, seja com quem mora longe, seja com o vizinho. E ao contrário de esconder o internauta numa vida de mentira, eles propõem exatamente o inverso: a aparição. Através de um perfil, os usuários desses sistemas são encorajados a mostrar à sua rede de contatos o que pensam, o que gostam e como são. Não que isso seja feito sem uma filtragem prévia e que não existam os perfis do tipo “fake” 1 que tentem ocultar a identidade real do usuário, o fato é que os sites de redes sociais, como o Orkut e o mais famoso no momento, o Facebook, são exemplos de como a comunicação em rede estrutura a vida social contemporânea. 1 No caso do Facebook, dos 955 milhões de usuários cadastrados, mais de 83 milhões correspondem a perfis falsos. Nesse quesito, aparecem os perfis duplicados (4,8% do total), aqueles mal categorizados como perfis de empresas ou de animais de estimação (2,4%) e os indesejáveis, que violam os termos de serviço e são usados, por exemplo, para enviar spams (1,5%). Disponível em: <http://tecnoblog.net/108742/facebook-perfis-falsos/>. Acesso em 08 ago. 2012. 12 Eles estão em alta no momento e se diferenciam de outros sites como blogs e fotologs por permitirem a conexão a uma rede de amigos, o compartilhamento e a postagem de fotografias, vídeos, mensagens e etc. Essa possibilidade dá vazão a um desejo de se expressar perante o outro, mostrando aquilo que se queira de maneira conveniente. Digo isso porque há formas de editoração do material publicado nos sites, sendo as fotografias a mais visível delas. Com elas, os usuários configuram suas vidas de modo a ressaltar as partes que consideram interessantes e importantes. No Facebook, por meio da linha do tempo - Timeline - você pode selecionar os eventos marcantes de sua vida e então construir a sua própria história. E são as fotografias que retratam as fases, as experiências e situações que desejamos compartilhar. Elas expressam o mundo de cada um, da maneira desejada. Tal exposição, sugiro, ao mesmo tempo em que revela, esconde. O fato de apresentarmos uma imagem “editada” de nós mesmos implica na criação de uma fachada de modo a regular a impressão que causamos no outro. Mesmo que não haja álbuns com fotografias, a própria imagem de perfil, trocada e retocada, exemplifica a necessidade de autocontrole da imagem frente à sociedade. Isso, porém, não é uma exclusividade do mundo digital. Nas interações face a face procuramos apresentar características e ações que definam a situação e nos legitimem perante os presentes. Assim, nas entrevistas de emprego, com os amigos, em casa, no trabalho, nos valemos de papéis diferentes em cada situação. Erving Goffman, autor referência para este trabalho, se vale deste termo do senso comum, a fachada, para designar o modo como nos representamos em sociedade, como moldamos a nossa imagem social de forma a dar a “melhor impressão”. Essa perspectiva, ao invés de negativa e pessimista, apenas constata a forma como a sociedade nos força a apresentar uma imagem de nós mesmos e como, através de manobras diárias, tentamos controlar a forma como os outros nos veem. Quando em presença imediata, além da fala, há a linguagem não verbal, os gestos, os olhares, que auxiliam na transmissão da impressão desejada. Uma vez mediado por um computador, apesar da ausência de outras formas de comunicação além do texto escrito e dos recursos audiovisuais, a preocupação do indivíduo em manter uma boa imagem permanece, às vezes consciente e intencionalmente, às vezes pouco consciente e de forma não intencional. Pode ser que ele esteja apenas expressando a tradição de seu grupo ou posição social, ou então que ele queira ser aceito. Os perfis dos sites de redes sociais podem ser vistos, então, como fachadas, cujas mensagens, fotografias, vídeos etc evidenciam a maneira de o usuário se representar on-line. Esse conteúdo, bem como as informações inseridas quando da feitura do perfil, ilustram outra 13 característica desses sistemas: a forma tribal de relacionamento e apresentação. O aspecto individualizante e até narcisista criticado por muitos é na verdade uma visão um tanto distorcida do modo de funcionamento dos sites. Isso porque tudo ali só adquire sentido na coletividade. Os gostos, as músicas, os livros, os estilos de vida expressos em cada postagem... Tudo gira em torno das tribos às quais pertencemos. E ao “curtir” alguma publicação ratificamos esse pertencimento. O grande número de usuários dos sites de redes sociais indica a potência da socialidade no tempo presente. Sem finalidade específica, as pessoas querem se conectar e saber umas das outras, fofocar, estar em relação. O laço que nos une agora tem uma dimensão afetual e não pode ser explicado à luz de concepções mutiladoras e doutrinadoras da vida em sociedade. O contrato que regulava as interações deu lugar ao pacto, que celebra de forma lúdica o estar junto para nada. A proxemia e a vida em bando recebem ajuda do desenvolvimento tecnológico, que potencializa os agrupamentos tribais e nos faz estar-junto virtualmente. Se antes a máquina era individualizada e fazia do computador pessoal um aliado na produção – seja acadêmica, seja militar - na contemporaneidade, o computador, para além da esfera produtiva, permite uma comunhão diária e coletiva que religiosamente e de forma ritualística promove discussões, reivindicações, festas, risos e conflitos. A atenção dada a esses aspectos anódinos e frívolos nos faz atentar para a fertilidade do componente social. E a aparência, nesse contexto, adquire relevância. O culto ao corpo, as dietas, as indumentárias, maquiagens e adornos dão notícia de uma tragicidade cotidiana que diz sim à vida ao mesmo tempo em que aceita a morte. A aparência, o exibicionismo, apesar de caracterizados como individualizados e individualizantes e serem por isso estigmatizados, atestam o fato de que é preciso ser visto para existir. O desejo de se diferenciar na multidão se confunde com a vontade de se assemelhar a ela. Tentamos ser diferentes para, no fim, sermos iguais. Esse jogo de reversibilidade ecoa pelos sites de redes sociais. No Orkut e no Facebook há um conformismo diante da exposição possibilitada e das formas de interação. Com maior ou menor intensidade, as pessoas concordam em expor suas intimidades e dar nas vistas alheias, bem como de receber “curtidas”, comentários e mensagens. No controle de suas vidas, contando e mostrando suas histórias, cada usuário é um ator-personagem da teatralidade que encena, e se vale de diferentes máscaras para mostrar todas as suas potencialidades. 14 Diante do exposto e levando em conta as estatísticas que comprovam a adesão em massa aos sites de redes sociais2, e que também confirmam a posição do Brasil como um dos países cuja população on-line tem presença marcante nesses sites3, não há como esconder de baixo do tapete a pertinência de um estudo de tais espaços. É a vida social que fala por meio das máquinas que merece atenção, a socialidade mundana que virtualmente marca a sua copresença por meio de imagens e palavras que precisa ser colocada em evidência. À maneira de Maffesoli, cuja perspectiva hedonista e tribal vê na contemporaneidade um vínculo social baseado na partilha de identificações e na busca pelo prazer, me limito a apresentar um fenômeno social assim como ele é, e não como deveria ser. Nesse sentido, o foco é a teatralidade social cotidianamente encenada por regras de conduta pouco levadas em conta, porque muito evidentes, como tudo o que é óbvio. É a partir dessa análise micro da interação que o termo fachada ganha sentido: ela é a materialização do trabalho de representação de que todos nos valemos, enquanto sujeitos sociais, para nos apresentar e nos valorizar. A fachada criada, então, se baseia em características socialmente aprovadas, em regras de conduta, com o intuito de manter a ordem social. Dito isso, o convite que ora faço ao leitor é o de me acompanhar na tentativa de compreender a maneira pela qual os usuários dos sites Orkut e Facebook, se apresentam, se relacionam e se envolvem numa arena que está longe de ser de mentira, mas que, ao contrário, proporciona uma forma pagã de o corpo natural e individual se constituir em corpo social. Essa (con)fusão permite que cada um, a partir do écran de seus computadores, esteja em correspondência com o outro e vibre junto, numa teatralidade que faz de cada perfil um mini palco. Na primeira parte da dissertação, o leitor encontrará o caminho trilhado para a obtenção dos dados da pesquisa. É esclarecido o motivo da escolha da metodologia utilizada, a etnografia, que desembocou numa netnografia, uma vez que a pesquisa foi conduzida online. Mesmo não tendo sido a do tipo clássica, a metodologia utilizada seguiu todos os preceitos da abordagem convencional, respeitando suas especificidades. 2 As redes sociais na internet já são a atividade on-line mais popular do mundo. Em outubro de 2011, de cada 5 minutos gastos na rede, um deles era dedicado aos sites de redes sociais. Informação disponível em: http://www.comscore.com/Press_Events/Presentations_Whitepapers/2011/it_is_a_social_world_top_10_needto-knows_about_social_networking>. Acesso em: 11 fev. 2012. 3 O Brasil ocupa atualmente a segunda posição no ranking dos países que mais utilizam o Facebook, segundo estatísticas do site Socialbakers, disponíveis em: http://www.socialbakers.com/facebook-statistics/. Acesso em 20 jul. 2012. Em relação ao Orkut, apesar de apresentar queda no número de usuários, ainda encontra no Brasil o seu maior mercado. Veja dados em: < http://pt.scribd.com/doc/48622322/ComScore-SOI-Brazil-Webinar-Feb2011>. Acesso em: 04 abr. 2011. 15 A segunda parte traz o referencial teórico sobre o qual toda a pesquisa está fundamentada. No primeiro momento é feita uma contextualização do surgimento da internet e das modificações sociais decorrentes do desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação, expressas pelo termo cibercultura. As redes sociais são então localizadas e sublinham um novo modo de estar-junto na contemporaneidade. Noções chave para a pesquisa como socialidade e fachada são aqui abordadas. Na terceira parte da dissertação, os sites pesquisados são apresentados ao leitor. O mais velho e o xodó do brasileiro por pelo menos cinco anos, o Orkut, e o mais recente, o Facebook, que tirou o reinado do seu antecessor e já é o site de rede social mais acessado no Brasil e no mundo. Além da apresentação do campo da pesquisa, o leitor terá contato com os dados coletados nos sites e com os depoimentos das entrevistas dos sujeitos pesquisados. A análise feita considera, basicamente, as fotografias publicadas nos perfis dos usuários analisados para compreender o modo como eles se representam, mas não se limita a elas. Descreve analiticamente os hábitos e também a relação estabelecida com os “amigos” e com a própria dinâmica dos sites. Pretende, assim, atualizar o laço social vivido virtualmente e mostrar que apesar dos riscos da exposição da vida privada na rede, as pessoas não deixam de se mostrar umas às outras e contar sobre suas vidas. 16 A O DESAFIO DA PESQUISA: APROFUNDANDO O LEAD “... é verdade que muitas investigações jornalísticas se parecem muito, afora alguns matizes, com pesquisas etnográficas”. Yves Winkin G eralmente um trabalho acadêmico inicia-se com um panorama geral das discussões sobre o objeto de estudo de modo a contextualizar as recentes e importantes visões e opiniões acerca dele e encaixá-lo numa vertente teórica. A partir daí, são escolhidos os autores que darão suporte à empreitada e depois de feito todo o percurso teórico começa a exposição do trabalho empírico: é aí que são combinados os achados da pesquisa com o que foi exposto anteriormente, na parte teórica. Não que todos os trabalhos apresentem essa organização, alguns são mais rizomáticos e não tem uma estrutura linear. Mas, na maioria das vezes, é a partir dessa configuração que se pautam os trabalhos acadêmicos: teoria, análise, conclusão. Não proponho uma revolução na sistematização dos trabalhos, pois não vou fugir muito dessa proposta. A ideia é mudar um pouco os rumos das coisas, tentar focar no que, no caso do meu trabalho, acredito ser o mais importante: o método. Dizendo de outra forma, depois de ter andado um pouco, feito minhas observações e minhas entrevistas, descido ao campo, de modo geral, entendo que o que foi destaque na minha pesquisa foi o modo como a conduzi. Para mim, foi um aprendizado e um novo olhar acerca das coisas, mais especificamente, das coisas na internet. Não deve ter sido a primeira vez que alguém faz isso, nada é original. Mas, tendo sido feito por mim, é a primeira vez que mergulho nessas águas profundas e que tenho a dimensão do que é um trabalho acadêmico, com todas as suas incompletudes e limitações. A ideia, então, é começar mostrando o caminho que percorri e as escolhas que fiz nesse percurso, como abordei as pessoas e fui por elas acolhida, ainda que não fisicamente. Os aceites e as recusas de participar da pesquisa e a maneira como, aos poucos, entendi que mesmo não sendo 17 presencial, os encontros e as conversas aconteceram e, em algumas situações, com pessoas das quais eu certamente nunca teria conhecido não fossem os sites de redes sociais, esses novos espaços de socialização proporcionados pela internet. A ênfase aqui é no respaldo de um grupo de pessoas que se comprometeram em me ajudar e que não faltaram nos nossos encontros virtuais. As conversas com colegas e orientador e as leituras que precederam a entrada no campo foram também, de certa forma, importantes no processo de preparação, mas foi, certamente, a intuição, o faro e a emoção que foram decisivas durante a pesquisa. Só sentindo os dados é que pude dar sentido a eles e assim construir, junto com os autores selecionados, uma maneira própria de ver as coisas. Dito isso, é necessário agora explicar o título que escolhi para esta primeira parte do trabalho. Jornalista por formação, comecei a enxergar muitas semelhanças nos trabalhos do pesquisador e do jornalista, porque o jornalista é um pesquisador. É preciso consultar documentos, interpretar tabelas numéricas, ler balanços, buscar um número de telefone, enfim, toda reportagem pressupõe investigação e interpretação. O jornalista investiga os fenômenos para deles extrair uma história, seja ela um escândalo ou uma bela história. Precisa enxergar para além dos fatos para escrever a sua reportagem. Como diz Juremir Machado 4, ele cobre para descobrir ou desencobrir, pois assim como para o pesquisador é – ou pelo menos deveria ser - tarefa do jornalista desvelar a realidade, tirar o véu daquilo que está coberto, pois de tão arraigado no nosso cotidiano não conseguimos vê-lo, nem fazemos uma reflexão acerca dele. É disso que se trata a pesquisa, “fazer vir à tona o que se encontra, muitas vezes, praticamente na superfície do vivido” 5. Esse processo, no entender de Machado, passa por três fases: o estranhamento, o entranhamento e o desentranhamento. O primeiro, por vezes afetado pelos óculos embaçados do dia a dia, é ver algo que quase ninguém vê, num processo antropológico de abstração de valores. O segundo é quando o pesquisador mergulha no universo do outro e deixa se contaminar por ele; e finalmente o terceiro é o processo de retomada de seus valores, que agora, afetado pelo outro precisa escrever o que viu. Colocando isso no dia a dia do jornalista, o estranhamento se inicia no recebimento da pauta – ou na própria proposta feita pelo jornalista -, o entranhamento é quando, in loco, ele busca ser tomado pelo outro, e o desentranhamento seria, quando depois do mergulho, ele volta à redação para organizar as ideias e escrever a sua reportagem. 4 MACHADO, Juremir. O que pesquisar quer dizer: como fazer textos acadêmicos sem medo da ABNT e da Capes. Porto Alegre: Editora Sulina, 2011. 5 Idem. p.15. 18 E é aí que vem o lead enquanto uma técnica jornalística que visa, em poucas linhas dar a notícia. Resume-se pelas cinco perguntas: o quê, quando, como, por que e onde. Normalmente é o que se vê nos textos jornalísticos, e a estória para por aí. Poucos tentam aprofundar o lead, dando uma visão mais completa e geral dos fatos. Normalmente, por falta de interesse e por questões ideológicas, deixam de informar quando se resumem a responder às cinco questões. Não conseguem dar meios para o interlocutor formar uma opinião a respeito do assunto tratado. E o pesquisador, da mesma forma, ao falar tudo que já foi dito e não propor nada novo faz o mesmo. Não contribui muito para fomentar as discussões acerca do fenômeno estudado. Compilando citações de autores e copiando as ideias de artigos e livros pesquisados, não consegue discutir e tratar do seu objeto. É essa a ideia do título. No meu caso, vi na etnografia uma metodologia fértil para a minha proposta de trabalho e, a seguir, apresento o porquê de tal escolha. 1 A etnografia como método Escrevi, em outro lugar6, que o trabalho do etnógrafo se parece muito com o do jornalista. Fazendo referência à Clifford Geertz7, apontei algumas semelhanças entre os ofícios, tais como: subjetividade, observação participante, análise microscópica. Em ambos os casos, a narrativa apresentada é sempre interpretativa e inesgotável. A descrição densa, o que fazem os etnógrafos, e a reportagem, o que fazem os jornalistas, apresentam um objetivo comum: uma tentativa de “alargamento do universo do discurso humano” 8, nas palavras de Geertz. Situando-se entre o grupo estudado, ambos os profissionais elegem o detalhe que revela muito daquela gente, assim como o fez Geertz com as brigas de galo balinesa. Nesse trabalho, o olhar e a escuta são fundamentais: é preciso saber ver e saber ouvir. Isso é muitas vezes difícil, devido à domesticação do olhar- vemos, mas não enxergamos - e à falta de hábito de ouvir as pessoas - temos a tendência de tentar encaixar nossas teses naquilo que estudamos. O ofício desses profissionais é, portanto, olhar uma cultura enquanto (con) texto, que precisa ser lida e interpretada, de modo que esta interpretação é sempre de segunda e terceira mão, pois como explica Geertz “o que inscrevemos (ou tentamos fazê-lo) não é o 6 O etnógrafo e o jornalista: o olhar e a escuta como ferramentas de trabalho. In: XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Recife-PE, 2 a 6 de setembro de 2011, Anais. 7 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1989. 8 Idem, p.10. 19 discurso social bruto ao qual não somos atores, não temos acesso direto a não ser marginalmente, mas apenas àquela pequena parte dele que os nossos informantes nos podem levam a compreender” 9. A objetividade jornalística preconizada nos manuais de redação perde espaço e a tal imparcialidade é desmitificada, uma vez que, ao adentrar o universo do outro, o repórter se modifica ao mesmo tempo que modifica o outro. É só sentindo que ele será capaz de ordenar o que vê e ouve e, dessa forma, escrever uma boa história. No caso do etnógrafo, que também se mistura ao estranho, o desafio é o de aproximar mundos, fundindo o seu com o de seus observados. É dessa forma que a pesquisa etnográfica é vista como uma experiência pessoal. Situar-nos, um negócio enervante que só é bem sucedido parcialmente, eis no que consiste a pesquisa etnográfica como experiência pessoal. [...] Não estamos procurando, pelo menos eu não estou, tornar-nos nativos ou copiálos. O que procuramos, no sentido mais amplo do termo, que compreende muito mais do que simplesmente falar, é conversar com eles, o que é muito mais difícil, e não apenas com estranhos, do que se reconhece habitualmente.(GEERTZ, 1989, p.10) Como metodologia de pesquisa, a etnografia foi escolhida não apenas por ser semelhante ao trabalho do jornalista, mas por envolver um processo complexo que parte do caos para a ordem, ou seja, para lançar luz num fenômeno social. Desde Malinowski até os dias de hoje ela é muito pertinente e particularmente adequada à investigação científica no campo das ciências ditas sociais e humanas. Embora tenha sido ancorada durante muito tempo a um contexto exótico e colonialista, que visava estudar grupos geograficamente e culturalmente distantes, a etnografia é hoje utilizada para que compreendamos os fenômenos da nossa própria sociedade. Yves Winkin10 diz que o trabalho etnográfico não é simples, mas não exige anos de formação. Aprende-se com os erros e com os relatos de antropólogos. É por isso que ele a considera, ao mesmo tempo, uma arte e uma disciplina científica. É preciso, no entanto, utilizá-la “com pleno conhecimento teórico de causa”. O fenômeno específico que estudei diz respeito aos sites de redes sociais11 e a maneira com que as pessoas ali se apresentam. É neste caos que mergulhei e dele trago alguns achados e apontamentos. 9 Ibid., p.14. WINKIN, Yves. A nova comunicação: da teoria ao trabalho de campo. Tradução Roberto Leal Ferreira. Campinas, SP: Papirus, 1998, p.132. 11 De agora em diante, utilizarei a abreviação SRS para me referir aos sites de redes sociais pesquisados, a saber, Orkut e Facebook. 10 20 Semelhante a um caçador, que foi o primeiro pesquisador, segui pistas, conclui hábitos, desvendei alguns mistérios a respeito da minha presa. E apesar de não poder utilizar do faro para sentir a caça, utilizei do golpe de visão para vasculhar por entre os vestígios. Esse modo de trabalho caracteriza um saber do tipo venatório, próprio dos caçadores, que, muito antes de nós, precisaram de astúcia e competência para se manter vivos. Eles partiam de dados pequenos, muitas vezes negligenciáveis por outros, para solucionar alguns enigmas relativos ao modo de vida de suas presas: a que horas o animal dormia, comia, que tipo de rastros e excreções deixava, que cheiro exalava etc. e em função disso tomava as suas decisões. Contrariamente à ciência positivista, calcada no emprego da matemática e do método experimental que exigem quantificação e repetibilidade dos fenômenos, o paradigma do caçador adota uma perspectiva individualizante, analisa as minúcias para desvendar um fato. É isso que relata Carlo Ginzburg em seu “Mitos, emblemas e sinais”. Esse paradigma “indiciário”, baseado na semiótica, começou a se firmar nas ciências humanas no final do século XIX, porém, “até agora não se prestou suficiente atenção a esse modelo epistemológico” 12. O paradigma indiciário influenciou Freud antes mesmo da descoberta da psicanálise. Ginzburg, se referindo a Freud, diz que a proposta de um método interpretativo centrado sobre os resíduos do comportamento, sobre os dados marginais, os pormenores normalmente considerados sem importância ou até triviais, baixos, forneceriam a chave para aceder aos produtos mais elevados do espírito humano. Giovani Morelli, pintor que utilizava a mesma técnica descrita por Ginzburg, sugeria a possibilidade de identificar o autor de um quadro pelo exame de características como os lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés das figuras retratadas. Essas são características menos influenciadas pela escola a que o pintor pertencia13. Da mesma forma, o criador de Sherlock Holmes, Arthur Conan Doyle, também se aproximou do paradigma venatório ao construir seu detetive Holmes. O detetive é comparável ao conhecedor de arte ao descobrir o autor do crime baseado em indícios imperceptíveis para a maioria. As pegadas na lama, as cinzas de cigarro, os lóbulos das orelhas, tudo é importante para Holmes. Nessa tripla analogia descrita por Ginzburg – Morelli, Freud, Doyle – pistas mínimas talvez possam captar uma realidade mais profunda, de outra forma inatingível. Essas 12 GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989 p.143. 13 Ibid., p.144. 21 pistas teriam uma nomenclatura distinta em cada caso: para Morelli, eram signos pictóricos; para Freud, sintomas; e para Holmes, indícios14. Essa forma mais humana e, portanto, falha e sensível de análise pode se relacionar com o pensamento complexo de Edgar Morin15. A complexidade de que se vale Morin vem de encontro ao paradigma da simplificação, pensamento que dominou a ciência desde o século XVII e que visa reduzir o real a dados quantificáveis, precisos, distintos e hierarquizados. Ao isolar e categorizar esse real, legitimando-o enquanto científico, mutilaram-se e reduziram-se todas as características do mesmo fenômeno. E ainda hoje, quatro séculos mais tarde, vemos esse mesmo paradigma rondar as ciências humanas, com análises e discursos que desconsideram o objeto de estudo como um todo, concebendo-o unilateralmente e desperdiçando todas as suas faces e polissemias. O pensamento complexo não substitui o pensamento simples, ele o integra. O pensamento complexo reage contra essa situação, sem ser, contudo, apenas o contrário do pensamento simples, e integra os modos de pensar simples e complexos numa concepção mais rica. Trata-se da « dialógica » do simples e do complexo, do separável e do não-separável, da ordem e da desordem, da « dialógica » entre a lógica clássica e a transgressão lógica quando esta se impõe, ou antes entre a lógica clássica e a racionalidade aberta.(MORIN, 2011, on-line) Uma pesquisadora que tem como referência Edgar Morin, Michel Maffesoli, Carlo Ginzburg, Clifford Geertz e Erving Goffman não pode ser simplista: precisa, ao contrário, abraçar os acasos, as inexatidões, a ambiguidade, a contradição, porque isso é próprio do pensamento humano. E a marca do cientificismo moderno foi exatamente o oposto: separar o pesquisador de sua subjetividade. Na perspectiva epistemológica da pós-modernidade, tudo vale, tudo é importante, tudo é caminho e conduz a algum lugar. É essa a proposta do conhecimento complexo, ele “implica o reconhecimento de um princípio de incompletude e de incerteza. Mas traz também em seu princípio o reconhecimento dos laços entre as entidades que nosso pensamento deve necessariamente distinguir, mas não isolar uma das outras” 16. Sobre a complexidade, Geertz afirma não ser necessário reduzir o complexo ao simples para explicar um fenômeno cientificamente, mas substituir uma complexidade menos inteligível por outra mais inteligível. Ele vai mais adiante ao dizer que “a explicação consiste, 14 Ibid., p.150. MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Tradução Eliane Lisboa. 4.ed. Porto Alegre : Sulina, 2011. 16 Ibid., p.7. 15 22 muitas vezes, em substituir quadros simples por outros complexos, enquanto se luta, de alguma forma, para conservar a clareza persuasiva que acompanha os quadros simples” 17. De minha parte, tentei, ao máximo, explorar o meu objeto de estudo e através da etnografia sistematizar alguns dos pontos mais destacados entre o que observei. Por ter a internet como campo de trabalho, escolhi a expressão netnografia para designar o método desta pesquisa e na sequência explico o motivo de tal escolha. 2 Por que netnografia? A pesquisa etnográfica que desenvolvi não foi do tipo “clássico”, já que não estive fisicamente com as pessoas pesquisadas. A conversa que tivemos foi mediada pelo computador. As entrevistas foram feitas via ferramentas de comunicação instantânea, como o MSN, Skype, Google Talk, e o chat do Facebook. Em cinco delas, consegui fazer a entrevista com áudio e então pude gravá-las. Dadas as devidas semelhanças e diferenças, preferi usar uma outra nomenclatura para designar o método que utilizei. Na bibliografia pesquisada, encontrei duas possibilidades de descrever essa metodologia: netnografia e etnografia virtual18. Decidi usar a primeira, uma vez que a perspectiva dicotômica real x virtual me parece um tanto confusa e perigosa quando se pesquisa a internet. A impressão causada é a de que o que acontece on-line é oposto ao que acontece off-line, enquanto o que acontece é muito mais um prolongamento, na rede, da vida fora dela. É essa a abordagem utilizada por Daniel Miller e Don Slater 19 ao investigar os cibercafés em Trinidad. Miller e Slater questionam a distinção on-line/off-line como o ponto de partida metodológico e analítico em pesquisa porque “a noção de ciberespaço como um lugar a parte da vida off-line nos conduziria a esperar observar um processo no qual os participantes estão absortos e distanciados das relações sociais locais e corporificadas” 20 (tradução livre). Nesse sentido, e por uma questão mais didática, utilizarei a expressão netnografia em referência ao método escolhido. 17 GEERTZ, op. cit., p.252. Há ainda outras possibilidades, como etnografia digital, webnografia e ciberantropologia. Porém, o foco do trabalho não consiste em problematizar tais diferenças. 19 MILLER, Daniel; SLATER, Don. The Internet: an ethnographic approach. Oxford: Berg, 2001. 20 The notion of cyberspace as a place apart from offline life would lead us to expect to observe a process in which participants are abstracted and distanced from local and embodied social relations. (MILLER e SLATER, 2000, p.7). 18 23 Conforme Adriana Braga21o neologismo “netnografia” (nethnography = net + ethnography) foi originalmente cunhado por um grupo de pesquisadores/as norte americanos/as em 1995, para descrever um desafio metodológico: preservar os detalhes ricos da observação em campo etnográfico usando o meio eletrônico para seguir os atores. O objetivo era ainda entender o uso tanto factual quanto virtual a partir de um número de pontos de vista, e em uma larga escala crescente. Sueli Fragoso, Raquel Recuero e Adriana Amaral 22 indicam Robert Kozinets como popularizador do termo. Segundo elas, Kozinets utilizava o método em suas pesquisas relacionadas ao marketing e às comunidades de consumo on-line na metade dos anos 9023. Por se tratar de uma metodologia recente, vale a pena discorrer um pouco mais sobre suas especificidades. Seria simplista a afirmação de que a netnografia consiste numa transposição do método etnográfico para a internet. Ela tem as suas características que, de forma geral, vão da perspectiva comunicacional entre sujeito observado e pesquisador, além da própria noção de tempo-espaço. Não se fala em não-lugar, como preconizou Augé24, mas em um território contínuo ao off-line, uma vez que as pessoas levam consigo suas circunstâncias off-line para junto de seu comportamento on-line. Dizendo de outra forma, podemos recorrer a Miller e Slater para quem “a etnografia não pode ser definida pela distinção off-line e on-line, mas ela certamente precisa ser empregada para que aquela possa ser estudada” 25. Há muitos pontos a favor e contrários à netnografia. Quando se está mediado por um computador, perde-se em gestual, em vestígios da comunicação não verbal que certamente enriquecem uma pesquisa. Quando se conversa com alguém via computador, o texto escrito substitui a fala, e como não há entonação, é comum se perder nas entrelinhas entre o dito e o não dito. No entanto, mesmo sem sair da frente do seu computador, é preciso e possível sair de sua casa para se juntar a um mundo estranho e se deixar invadir por ele. Também há vantagens. A facilidade de acesso a dados e pessoas, além do baixo investimento – tudo o que se necessita é de um computador e um bom serviço de conexão à internet – estão entre 21 BRAGA, Adriana. Usos e consumo de meios digitais entre participantes de weblogs: uma proposta metodológica. In: XVI Encontro da Compós, na UTP, 2007 Curitiba. Anais eletrônicos. Curitiba: UTP,2007. Disponível em <http://www.compos.org.br/pagina.php?menu=8&mmenu=0&fcodigo=162>2007. Acesso em: 14 dez. 2011. 22 FRAGOSO, Sueli; RECUERO, Raquel; AMARAL, Adriana. Métodos de Pesquisa para a internet. Porto Alegre: Sulina, 2011. P.173-174. 23 Segundo FRAGOSO, RECUERO E AMARAL, op. cit., os teóricos divergem quanto à data correta e à autoria desse neologismo, mas acredita-se que ele se tornou popular na década de 90. 24 AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. 25 MILLER e SLATER, op. cit., p.59. 24 algumas delas. Se considerarmos que as pessoas estão se organizando cada vez mais ao redor de emails, websites, telefones móveis, é preciso desenvolver práticas metodológicas que analisem e evidenciem isso, levando em conta cada possibilidade de alargamento da socialidade. Apesar das especificidades, é preciso lembrar que a netnografia derivou da etnografia, sendo assim as suas premissas básicas não devem ser deixadas de lado. É possível afirmar, com Sá26, que se deve manter, numa pesquisa netnográfica: a postura inicial de estranhamento do pesquisador em relação ao objeto; a subjetividade como elemento fundante; os dados obtidos como “nossas próprias construções sobre interpretações de outras pessoas”, portanto interpretações de segunda e terceira mão; o relato etnográfico como uma tradução cujo texto resultante está entretecido por textualidades múltiplas. A netnografia contribui para ampliar o leque epistemológico nas ciências sociais e humanas, uma vez que opera, a exemplo da etnografia, de forma microscópica, preocupada e atenta aos detalhes e à narrativa que dali será desenvolvida. A partir de negociações consigo próprio e com o pesquisado, o pesquisador se envolve em situações de troca e descobertas permeadas por sentimentos, afetos e incertezas cujo resultado evocará aspectos do grupo analisado de forma sistematizada. Para o exercício de alinhar a netnografia à etnografia, é preciso lembrar a matériaprima de que ambos os métodos se valem: os homens, as pessoas. Sobre isso, é importante citar aquele que foi o pai da etnografia e que foi buscar em ilhas longínquas e com território delimitado alguma semelhança conosco. Malinowski dizia que na etnografia embora as fontes sejam facilmente acessíveis, elas são dúbias e complexas e não se encontram materializadas em documentos fixos e concretos. Por isso a distância entre o material bruto coletado e a apresentação final dos resultados. Na etnografia, o autor é ao mesmo tempo, o seu próprio cronista e historiador; suas fontes de informação são, indubitavelmente, bastante acessíveis, mas também extremamente enganosas e complexas; não estão incorporadas a documentos materiais fixos, mas sim ao comportamento e memória de seres humanos. Na etnografia, é frequentemente imensa a distância entre a apresentação final dos resultados da pesquisa e o material bruto das informações coletadas pelo pesquisador através de suas próprias observações, das asserções dos nativos, do caleidoscópio da vida tribal (MALINOWSKI, 1976, p.22-23). 26 SÁ, Simone. Netnografias nas redes digitais.In: PRADO, J.L. Crítica das práticas midiáticas. São Paulo: Hacker Editores, 2002. p.159. 25 Semelhanças e diferenças à parte entre etnografia e netnografia, é preciso pontuar que se na primeira o pesquisador ao invés de estudar as aldeias, estuda nas aldeias, na segunda ele não estuda as redes, mas nas redes27. A minha presença na rede e o desenvolvimento da pesquisa serão explicitados no próximo tópico. 3 A entrada no campo: perambulando on-line Por realizar uma netnografia, com todas as características até aqui descritas, posso dizer que não fui a campo no sentido estrito do termo; na verdade, não consigo separar o antes e o depois do campo porque estive o tempo todo nele, muito antes de iniciar a pesquisa. Estar conectado à internet e aos sites de redes sociais é uma prática diária para mim. Tenho perfis no Orkut e no Facebook há algum tempo e os dois sites configuram nos meus favoritos. Foi daí que surgiram as indagações que resultaram na presente pesquisa. A principal delas era o motivo das fotografias no site. Percebia que praticamente todos os usuários apresentavam fotografias e o tipo delas era parecido. Alguns tinham muitas, outros o suficiente para ser vistos. De um jeito ou de outro, as pessoas despendiam certo tempo descarregando as fotografias no site, além do tempo arrumando, cortando, centralizando-as. Isso sem falar naquelas que faziam montagens e manipulavam as imagens utilizando o famoso photoshop. Tudo isso me parecia contrariar um pouco a ideia de que as pessoas estão cada vez mais sem tempo, que o corre-corre do dia a dia as impede de conversar com os outros. Ter tempo para se preocupar com as fotografias que publicam parecia não ser prioridade nesse contexto. A partir dessas constatações, iniciei a empreitada da pesquisa. Mas as observações assistemáticas já ocorriam há certo tempo. E apesar da linha tênue que separa a vida de pesquisadora e de usuária dos sites, posso descrever como e quando tudo começou. No inicio de 2012 comecei o processo de adicionar os prováveis sujeitos da pesquisa. Organizei-me no sentido de adicionar os contatos da minha orientadora, que eram estranhos a mim, e misturá-los com contatos meus, com os quais não tinha muita proximidade. Sempre que mandava os convites, explicava quem eu era e o motivo de querer adicionar a pessoa. O 27 Analogia ao que disse Clifford Geertz (1989, p.16) quanto ao trabalho do antropólogo ao se valer da etnografia: “Os antropólogos não estudam as aldeias (tribos, cidades, vizinhanças...), eles estudam nas aldeias. 26 fato de ter a minha orientadora como amiga em comum facilitava o processo, uma vez que, diferente do que muitos pensam, as pessoas têm critérios para selecionar seus contatos28. Nessa mesma mensagem do convite pedia o email da pessoa para que pudesse enviar os documentos e autorizações da pesquisa29, além de detalhar do que se tratava. Não demorava e as pessoas começavam a sinalizar, enviando mensagens de carinho e de compreensão, além dos respectivos e-mails para que aprofundasse a explicação. Nem todas aceitavam participar. Deparei-me com mensagens de pessoas que diziam: “peraí, então vc só me adicionou por causa da pesquisa?”, “Amor!! Só não espero que me queiras somente para ser objeto de estudo!! Quero tua amizade!!! Quero ser teu amigo e não estudo!!!”, “olá, sim pode me mandar via email, mas entenda eu ñ vou dar dados meus, perdão mas é assim que sou. Veja estou sendo sincera logo é minha maneira de ser ok! Beijos e me entenda”. Um deles se justificou: Desculpe, mas pelo que entendi você quer minha autorização para expor meus comentários depoimentos, entre outros, e ainda tenho que assinar um termo de autorização de meu material? Preciso conhecer vc melhor antes de fazer isso, se eu puder ajudar de outra maneira sem expor minha pagina, meus dep. e mensagens posso até ajudar mas assinar esse termo ai desculpe, mas no momento não30. Alguns se sentiram incomodados por expor o material que publicam nos sites, outros não queriam “apenas” ser sujeitos da pesquisa. Mas, no geral, posso dizer que fui muito bem acolhida. Mesmo sem me conhecer, as pessoas demonstravam carinho e vontade de ajudar. Escreviam dizendo: “seja sem vinda, amiga! Estou a postos para o que precisar”, “seja bem vinda, espero que minhas mensagens possam ajudá-la quando necessário. Deus abençoe”, “ficarei feliz em poder ajudar”, “ Gostei da iniciativa e aqui estarei sempre às ordens tentando colaborar como merecem; abraços”, “Onde eu puder ajudar, conte comigo”, “Fique à vontade, use-me e abuse-me, kkkk”, “Estou à disposição para contribuir com sua pesquisa”, “No que precisar pode contar comigo, é só falar”, “Que bom que posso te ajudar”, “Posso te ajudar sim...sem problemas!”, “Conte comigo. Grande beijo”, “espero que vc tenha sucesso na sua pesquisa!”, “será um prazer poder te ajudar”, “Boa sorte com seu trabalho. No que mais precisar, é só falar”. Um contato, na impossibilidade de participar, conversou com uma amiga e a indicou para ser sujeito da pesquisa. Disse que “não ia me deixar na mão”. Outra, mesmo em 28 Falarei mais sobre essa questão na terceira parte do trabalho. Ambos os documentos constam nos anexos. 30 Durante todo o trabalho, mantive a grafia original das transcrições dos meus informantes. 29 27 tratamento médico, aceitou participar da pesquisa. A entrevista foi agendada para um dia que ficaria em casa, de repouso, logo após um procedimento médico. Em relação àqueles que já eram meus contatos, nem todos se dispuseram a participar. Alguns não respondiam os e-mails e não encaminhavam as autorizações. E outros, mesmo aceitando, queriam saber um pouco mais sobre a pesquisa e perguntavam, na maioria dos casos, como se daria tal exposição: queriam saber se suas identidades seriam preservadas. No total, selecionei 50 sujeitos, sendo 25 mulheres e 25 homens, cujas idades variam entre 18 e 68 anos. Era uma preocupação inicial trabalhar com a heterogeneidade da internet, e mostrar que pessoas de várias idades se conectam todos os dias aos sites, não apenas os mais jovens. O número 50 representa a quantidade de pessoas que responderam as minhas solicitações e se disponibilizaram a participar da pesquisa dentro do prazo estipulado para o aceite. Selecionados os sujeitos, era hora de começar a selecionar o material para compor o corpus do trabalho. Os álbuns dos perfis foram escolhidos e, um a um, percorri todas as fotografias que compõem cada um deles. Essa perambulação levou em consideração o que disse Yves Winkin31 sobre o trabalho etnográfico e os três saberes que envolvem. Nessa fase, a competência que estava em questão era “saber ver”. Precisava procurar por entre os inúmeros dados aquilo que me interessava, ou seja, as fotos que falavam muito a respeito do grupo analisado e, mais do que isso, da nossa sociedade. Além de saber ver, Winkin relaciona outras duas habilidades que estão em jogo no trabalho etnográfico: Para mim, a etnografia é ao mesmo tempo uma arte e uma disciplina científica, que consiste em primeiro lugar em saber ver. É em seguida uma disciplina que exige saber estar com os outros e consigo mesmo, quando você se encontra perante outras pessoas. Enfim, é uma arte que exige que se saiba retraduzir para um público terceiro (terceiro em relação àquele que você estudou) e, portanto que se saiba escrever. Arte de ver, arte de ser, arte de escrever. São estas três competências que a etnografia convoca. (WINKIN, 1998, p.132) Como a maioria dos sujeitos tinham perfis tanto no Facebook quanto no Orkut o trabalho era dobrado: era preciso coletar as fotos em ambos os sites. Entre os homens, 21 deles tinham conta nos dois sites; três tinham conta apenas no Facebook e um deles só tinha Orkut. Com relação às mulheres, 23 tinham perfis nos dois sites e duas possuíam apenas o Facebook. Esse trabalho durou seis meses, além das observações assistemáticas. As mulheres possuem mais fotos: no Orkut, as 25 somaram um total de 24.173 fotos, e no Facebook 31 WINKIN, op. cit., pp 129-145. 28 10.915 fotos. Já os homens apresentaram 4.616 fotos no Orkut contra 3.067 no Facebook. É claro que de lá para cá todos eles publicaram mais fotos. O recorte foi feito no período de dois meses e a coleta de dados acontecia logo que eu recebia a autorização dos sujeitos por escrito. Depois de coletadas, era a hora de analisá-las. E de novo, aqui, era preciso não só saber ver, mas tentar ordenar o caos provocado pelo mar de dados. Com algumas informações e dados sobre as fotos, iniciei as entrevistas. As conversas com os cinquenta sujeitos foram feitas no período de meados de abril a meados de maio de 2012. Agendei os horários com cada um de acordo com sua disponibilidade e, no caso de pessoas que não moravam em Mato Grosso ou que no momento não estavam no Brasil32, me atentei à diferença de fuso horário. Em praticamente todos os casos, encontrava as pessoas on-line esperando por mim no horário combinado. Digo praticamente porque só tive dois sujeitos que não puderam me atender no dia e horário marcados e não avisaram também. No dia seguinte, depois de deixar mensagens em seus perfis eles me retornaram e combinamos um novo dia e horário. Em outra situação, uma entrevistada me mandou mensagens nos perfis do Orkut e do Facebook, pedindo desculpas por não poder realizar a entrevista naquele dia porque tinha que levar o filho enfermo para o hospital. Em todos os demais casos, tudo correu normalmente. Conversei com pessoas de manhã, à tarde e à noite, inclusive nos finais de semana. Além de prestativas, muitas se diziam gratas por ter sido escolhidas para participar da pesquisa. Mesmo mediadas por um computador e, às vezes, sem ao menos conhecer umas as outras, as pessoas se ajudam mutuamente. Praticam uma forma de solidariedade que destoa das falas carregadas de ódio em relação ao presente: aquelas que insistem em falar que a internet e o que ela oferece estão acabando com as relações humanas face a face, distanciando as pessoas, tornando-as mais individualistas e sozinhas. O que vi, tanto nas conversas quanto nas fotos e no perfil como um todo, foi uma necessidade de prolongar os vínculos afetivos off-line somado ao desejo de conhecer novas pessoas. Essas características evidenciam a “lei dos irmãos”33 que predomina na pósmodernidade, contra a “lei do pai”, que se manteve durante toda a modernidade. Ou seja, não há como negar o reaparecimento de um imaginário da fraternização, de altruísmos coletivos, que com mais ou menos força estão presentes no coração dos homens. Ao invés de um Pai 32 Entre os informantes, dois deles estavam fora do país durante a pesquisa: um na Inglaterra e o outro em Portugal. 33 Cf. MAFFESOLI, Michel. A leis dos irmãos. In: Revista Famecos, Porto Alegre, v.19, n.1, p.6-15, janeiro/abril 2012. Disponível em: < http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/11337>, p.6-15. Acesso em: 09 mai. 2012. 29 soberano que prove os filhos e os instrui, o que se vê são irmãos que colaboram e comungam entre si saberes, pensamentos, vivências. A relação não é mais vertical, mas se estabelece horizontalmente entre as pessoas, e é isso o que evidenciam os SRS. Parafraseando Maffesoli, assistimos ao “deslizamento atual da verticalidade do poder para a horizontalidade da fraternidade” 34. 34 Idem, 2011, p.45 30 B A INTERNET ENQUANTO CAMPO DE INVESTIGAÇÃO: O COTIDIANO E O CONTEMPORÂNEO EM FOCO “Por trás das técnicas agem e reagem ideias”. Pierre Lévy N ão foi à toa que escolhi a internet como locus desta pesquisa. A decisão levou em conta o fato de não ser mais possível analisar os fenômenos sociais contemporâneos e, portanto, urbanos, ignorando as tecnologias e a relação estabelecida entre elas e a sociedade. De minha parte, resolvi trabalhar com a internet35, “talvez o mais revolucionário meio tecnológico da Era da Informação” 36 , por perceber o quanto ela está presente em nosso dia a dia. Em qualquer esfera da vida social há a possibilidade e, às vezes, obrigação de estar conectado: as escolas já adotam atividades específicas para a internet; em casa, é difícil passar um dia sem, ao menos, checar e-mails; no trabalho, dependendo da profissão, não há como exercê-la sem um computador com acesso à internet; sem falar no lazer, que está cada vez mais eletrônico e virtual: games, chats, filmes, sites de redes sociais e etc divertem e promovem certa união entre os usuários. Nesse contexto, é possível afirmar que em muitos aspectos da vida cotidiana nos encontramos mediados por um computador. Essa nova estrutura social, marcada pela presença e pelo funcionamento de um sistema de redes interligadas é chamada de sociedade em rede por Manuel Castells. O fluxo incessante de informação auxiliado pelo aparato tecnológico constitui a chamada era da informação. Nela, “a lógica do funcionamento de redes, cujo símbolo é a Internet, tornou-se aplicável a todos os tipos de atividades, a todos os contextos e a todos os locais que pudessem ser conectados eletronicamente”37. Dessa forma, nenhum campo da atividade social resiste incólume, da economia às relações interpessoais. 35 A grafia de internet com letra minúscula segue o entendimento de que esta palavra é um substantivo comum, não um nome próprio. (MARKHAM e BAYM 2009, p.VII apud FRAGOSO; RECUERO; AMARAL, 2011, p.23). 36 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. A era da informação: Economia, Sociedade e Cultura; v.1 tradução: Roneide Venâncio Majer; 6. Ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p.82 37 Ibid., p.89. 31 A constatação de José Machado Pais38 quanto à velocidade da vida nas metrópoles parece não encaixar a internet na sua perspectiva. Ele afirma que vivemos o paradigma do encontrão decorrente do apressuramento da vida urbana e da nossa consequente falta de tempo. Nessa situação, tendemos a privilegiar o olhar em detrimento da escuta: “Hoje, com o apressuramento da vida, as orelhas moucas fogem dos contadores de histórias, não há tempo para as memorizar nem para as recriar nos confins da recordação”39. O encontrão, explica o autor, retrata o sentido de ir contra ou em contra alguém. A etimologia da palavra, derivada do latim incontra, remete para a descoberta, mas também para o choque. Esse comportamento seria visível em todas as esferas da sociedade: em casa, na rua, no trânsito, no trabalho. O que tenho presenciado, no entanto, é um elogio a lentidão, muitas vezes auxiliado e impulsionado pela tecnologia. A despeito da eterna falta de tempo anunciada, na internet sempre há tempo de conferir o último vídeo de sua banda favorita, de assistir a uma gravação inusitada de um bebê cantando ou de um bichano fazendo graça. Por mais afazeres que tenhamos, é difícil deixar de ver as imagens do casamento de uma conhecida ou mesmo de postar algumas fotografias no seu álbum num SRS. Para nada. Mesmo sem finalidade reconhecida, despendemos bastante tempo nessas ações. E elas dão notícia de uma inversão de paradigmas, característica da pós-modernidade: ao invés do encontrão proposto por Pais, retomamos, ainda que sob novos contornos, o paradigma da lentidão característico das sociedades arcaicas. A profusão de imagens e símbolos que percorrem a rede favorece não apenas o olhar, mas também a escuta. Ao invés do choque, estamos sempre buscando encontros com outros. E compartilhando histórias, experiências, dores, alegrias. A publicização do privado acirrouse com o advento das novas tecnologias da informação e da comunicação e passou a ser um vetor de agregação social, já que ser visto é também estar junto. Interligados por cabos de fibras óticas, os internautas apreciam cada instante: os games, os chats, os blogs, os vídeos, as fotos, tudo tem sentido nesse estar-junto para nada. Um nada que não é físico, mas como lembra Maffesoli40, “toca o outro”. Nesse contexto, o que se quer não é apenas “dar nas vistas”, como proposto por Pais enquanto lema do paradigma do encontrão. Além de ser vistos, os transeuntes do virtual querem ser escutados. As frases do perfil dos SRS, os vídeos postados, os blogs, todos querem compartilhar as 38 PAIS, José Machado. Lufa-lufa quotidiana: ensaios sob e a cidade, cultura e vida urbana. Lisboa. Imprensa de Ciências Sociais, 1ª Ed. 2010. 39 Ibid., p.40. 40 MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Petrópolis: Vozes, 1996. p.161 32 alegrias, tristezas, emoções, só para se sentirem vivos e comungarem do mesmo divino. São essas práticas, que parecem desprovidas de sentido, que fazem com que o tempo se imobilize para os participantes da festa virtual. A lentidão marcante de um tempo arcaico retoma vigorante e “hoje vemos despontar um elogio da lentidão, incluindo a ociosidade; a vida não é mais que uma concatenação de instantes imóveis, de instantes eternos, dos quais se pode tirar o máximo de gozo. 41” A tecnologia, criticada por promover um isolamento, pode estar nos ligando cada vez mais. Eis a pertinência de estudar tal fenômeno. Como objeto de pesquisa, a internet aparece, cada vez mais, em diferentes áreas do conhecimento, caracterizando, assim, o caráter interdisciplinar e multifacetado do novo meio. O fato de a sociedade estar em rede muda a maneira como se produz, consome, e distribui informação e parece estar aí o trunfo da internet enquanto campo de investigação. Apesar da popularidade nas universidades, ainda é cedo para caracterizar os estudos sobre a internet como uma disciplina. No entender de Nancy Baym42, para ser considerada uma disciplina é preciso que haja uma forma organizacional clara, com uma estrutura física que contemple departamentos, centros de pesquisa, secretaria, além de servir de apoio às associações acadêmicas, periódicos e conferências. Disciplinas também compartilham temas centrais e utilizam termos comuns, sem contar no consenso acerca de metodologias e quadros teóricos, bem como critérios para avaliação. Por esses motivos, fala-se em internet enquanto um campo e não uma disciplina, que “oferece o potencial para preencher as lacunas entre as disciplinas”43. É nítida a participação da internet na vida das pessoas, porém é necessário atentar para um risco quando se pesquisa esse ambiente. Para Fragoso, Recuero e Amaral44, ao especificar a internet como universo de observação implicitamente damos abrigo à ideia de uma ruptura entre o que está ou acontece “dentro” da rede e o mundo “fora” dela. O “real” e o “virtual” são, nesse caso, tidos como instâncias dicotômicas e é preciso corrigir esse mal entendido ressaltando que não existe oposição entre esses pólos, apenas uma outra forma de existência, que não é física, mas nem por isso é menos real. Essa falácia reduz as perspectivas de compreender qualquer fenômeno social mediado por um suporte técnico, uma vez que a 41 MAFFESOLI, Michel. O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. São Paulo: Zouk 2003. Trad. Rogério de Almeida, Alexandre Dias. p.8. 42 BAYM, Nancy K. Internet Research as it isn´t, is, could be and should be. In: The Information Society, 21. On-line. p.229-234. 43 Ibid. p.231. 44 FRAGOSO, Sueli; RECUERO, Raquel; AMARAL, Adriana. Métodos de Pesquisa para a internet. Porto Alegre: Sulina, 2011. p.54. 33 tendência é a de analisá-lo de forma hiperreal e encantada ignorando, assim, as formas de socialidade, subjetividade e de vinculação social que o novo meio proporciona. Invocando Geertz, procedendo assim estaríamos reduzindo as possibilidades de significação que as teias – cultura (s) – do tecido social apresenta. A interdisciplinaridade da internet enquanto universo de observação mostra que o que acontece na rede não pode ser entendido como uma redução de signos sociais, como uma cultura autossuficiente e alienante, mas, como local onde as fronteiras entre on-line e off-line interagem. Nesse sentido, os âmbitos não podem ser isolados, mas precisam se integrar de modo a conferir à pesquisa a fidedignidade dos fenômenos sociais que se prolongam na internet, afinal, “o mundo constituído por essa rede de redes não existe lá fora, independentemente da nossa própria experiência individual dele; nem é a internet ‘o mundo’, mas sim um mundo online para o qual nós todos levamos as particularidades do nosso lugar na sociedade off-line” 45 . Dessa forma, a abordagem desse trabalho vem ao encontro do que propuseram Daniel Miller e Don Slater46: não buscar os “usos” ou os “efeitos” deste novo meio. Antes, se preocupar em olhar como os membros de uma determinada cultura se percebem e interagem nesse meio comunicativo em transformação. Também não falarei sobre os “impactos” das novas tecnologias digitais na sociedade, pois compreendo, com Lévy, que a tecnologia não pode ser comparável a um projétil (pedra, míssil, obus) e a cultura ou sociedade a um alvo vivo, como se uma viesse de encontro à outra. A metáfora bélica só faz reduzir a complexidade da relação homem-máquina. Pela literatura já existente sobre o assunto, acredito ser dispensável incluir um histórico sobre a internet. Relatos completos foram já escritos e seria desnecessário compilar informação que está em todo lugar, inclusive na própria internet. Vou, no entanto, fazer uma breve referência às primeiras fases do desenvolvimento da rede de redes, já que este é o início da explosão telemática que assistimos desde o século passado. 45 HART, Keith. Notes towards an anthropology of the Internet. In: Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 15-40, jan./jun. 2004, p.16. 46 T4fMILLER e SLATER, op. cit., p.1. 34 1 Breve panorama da internet Os computadores nasceram como consequência da 2ª Guerra Mundial, na Califórnia, em 1946. De lá pra cá, a revolução tecnológica difundiu-se de maneira natural, em um período histórico de reestruturação global do capitalismo, para o qual a tecnologia foi uma ferramenta básica. Uma revolução tecnológica concentrada nas tecnologias da informação começou a remodelar a base material da sociedade em ritmo acelerado. Economias por todo o mundo passaram a manter interdependência global, apresentando uma nova forma de relação entre a economia, o Estado e a sociedade em um sistema de geometria variável. (CASTELLS, 2008, p. 39). A internet, espinha dorsal da CMC – Comunicação Mediada por Computador – foi criada no ano de 1969 com o nome de ARPANET, a rede projetada pela Agência de Projetos de Pesquisa do Departamento de Defesa dos EUA, cujo objetivo era criar um sistema de transmissão de informações militares estratégicas que resistisse aos ataques nucleares no contexto da Guerra Fria. Ao final dos anos 80 existiam muitos computadores conectados, mas principalmente computadores acadêmicos instalados em laboratórios e centros de pesquisa. Foi só nos anos 1990, com um novo salto tecnológico, que a internet foi difundida na sociedade em geral: a criação de um novo aplicativo, a teia mundial (world wide web – WWW), que interligava mundialmente todos os computadores, organizava o teor dos sítios da internet por informação e não por localização, e oferecia aos usuários um sistema fácil de pesquisa. Pela primeira vez, a rede ganhava uma interface gráfica amigável, baseada em hipertexto e multimídia, que permitia aos usuários acessarem qualquer informação com um simples clique do mouse. Já não era mais preciso aprender uma série de comandos complicados para navegar na internet. Desta forma, ela se tornou muito mais interessante e fácil de acessar, atraindo um grande número de internautas. A invenção aconteceu no Centro Européen poour Recherche Nucleaire (CERN), em Genebra em 1990, e só foi possível graças ao trabalho de um grupo de pesquisadores do CERN chefiado por Tim Berners-Lee. O CERN distribuiu o software WWW gratuitamente pela internet, e os primeiros sites da web foram criados por grandes centros de pesquisa científicas espalhados pelo mundo. 1994 é considerado o ano de nascimento da internet, tal 35 como o público a conhece atualmente47. A partir desta data, surgiram novos navegadores e “o mundo inteiro abraçou a internet, criando uma verdadeira teia mundial” 48 . Do campo da investigação militar, os computadores e as redes logo invadiram o dia a dia acadêmico, mais tarde as empresas, e finalmente os cidadãos. No desenvolvimento da rede internet, como observa Sá49, dois impulsos estavam em jogo: por um lado, a instituição militar e suas estratégias de defesa; por outro, a contracultura computacional utópica e libertária, representada por jovens interessados nesta nova tecnologia de comunicação cujas descobertas eram divulgadas gratuitamente, impulsionando o desenvolvimento do computador pessoal como ferramenta amigável, a ser utilizada por pessoas sem domínios de programação. Castells relata que esse outro lado da história, o da contracultura, nasceu nos EUA com os efeitos dos movimentos da década de 60 em sua versão mais libertária/utópica. Os “hackers”, pioneiros dessa contracultura e assim batizados antes da conotação negativa que teriam mais tarde, foram os que inventaram o modem, importante descoberta tecnológica criada por dois estudantes de Chicago em 1978. Assim, pode-se contextualizar o advento da internet como uma contribuição da cultura dos hackers da década de 70 aliada a um projeto de cunho político-científico. Em “Hackers – heroes of the computer revolution”, o jornalista americano Steven Levy reúne um histórico dos verdadeiros inventores da tecnologia que nos proporciona, desde a década de 60, vivenciar uma nova experiência com a técnica. Apesar da carga pejorativa que o termo adquiriu com o passar do tempo, os hackers “eram aventureiros, visionários, aqueles que se arriscavam, artistas, e os que mais viram claramente por que o computador era uma ferramenta verdadeiramente revolucionária”50. Por meio de entrevistas, o autor recolheu informações para apresentar e contar as estórias dos hackers das décadas de 50 e 60, 70 e 80 até os últimos remanescentes. Eles são protagonistas, ainda que oficialmente excluídos, da revolução provocada pelos computadores e nos apresentaram um novo estilo de vida. São, por isso, chamados de “heróis” por Levy. Da mesma forma, em Rheingold51 é possível observar a adaptação da rede e a importância dos chamados hackers para uma mudança na sua concepção. O autor lembra que “as alterações tecnológicas mais profundas vieram da periferia e das subculturas, e não da 47 RÜDIGER, Francisco. As teorias da cibercultura: perspectivas, questões e autores. Porto Alegre: Sulina, 2011, p.17. 48 CASTELLS, op. cit. p.89. 49 SÁ, op. cit. p.150. 50 LEVY, Steve. Hackers: heroes of the computer revolution. Califórnia:O’Reilly, 2010. Prefácio. 51 RHEINGOLD, Howard. A comunidade virtual. Tradução Helder Aranha. 1.ed. Lisboa: Gradiva, 1996. 36 ortodoxia da indústria informática e dos meios acadêmicos das ciências da computação” 52. Ele atribui aos hackers o sucesso e a popularização da informática e do computador ao afirmar que “sem eles, a investigação no âmbito do projeto ARPA, do Departamento de Defesa, nunca teria tido sucesso na criação da computação gráfica, das comunicações por computador e dos antecedentes da informática pessoal” 53. As empresas e instituições foram as principais protagonistas do processo de ocupação do ciberespaço, o novo campo de comunicação da sociedade. De acordo com Rüdger, esse termo foi elaborado pioneiramente pelo livro Neuromancer (1984), de William Gibson, pelo filme Tron (1982), de Steven Lisberger, e pelo álbum Cumputer world (1981), do conjunto alemão Kraftwerk. O termo ciberespaço é um “espaço criado artificialmente pela convergência entre o mundo on-line gerado pelas redes telemáticas e as projeções digitais e imaginárias dos sujeitos que, direta ou indiretamente, interagem por seu intermédio”54. Depois de 2000, foram as redes sociais que apareceram com força na internet, mas o embrião desses sistemas havia surgido muito antes com as primeiras comunidades virtuais que visavam ajudar as pessoas de diversas formas. Aspen, Santa Mônica ou WELL (Whole Earth ‘Lectronic Link) descrita por Rheingold em seu livro “A comunidade virtual” são alguns exemplos. É só com o microcomputador que a internet começa a se disseminar a partir desse tipo de ferramenta de socialização, como também das listas de discussão e das primeiras BBS (Bulletin Board System). No início da década de 80, antes de os primeiros computadores pessoais se popularizarem, Howard Rheingold, em seu livro “Tools for thought”, já adiantava: Antes dos alunos da primeira série de hoje se graduarem no ensino médio, centenas de milhões de pessoas em várias partes do mundo se juntarão para criar novos tipos de comunidades humanas, fazendo uso de uma ferramenta que um número pequeno de pensadores sonhavam ao longo do século passado55. (tradução livre) A profecia se concretizou e a internet tem sido responsável por uma verdadeira revolução no campo da comunicação e das relações sociais. Em 1993 o número de computadores conectados ao redor do mundo era de 1,7 milhão. Em 1997, este número saltou para 20 milhões. Em 2010, um estudo divulgado pela União Internacional de Telecomunicações (ITU, em inglês), apontou que o número de internautas no mundo superava 52 Ibid., p.20. Ibid., p.68. 54 RÜDIGER, op. cit., p.291. 55 Before today's first-graders graduate from high school, hundreds of millions of people around the world will join together to create new kinds of human communities, making use of a tool that a small number of thinkers and tinkerers dreamed into being over the past century.” (RHEINGOLD, 1985, on-line) 53 37 os dois bilhões56·. Só no Brasil, segundo estudo do Yankee Group57, eram 42,3 milhões de usuários de internet em 2006, quase o triplo do número existente no final de 2001. Hoje, segundo pesquisa Ibope, contabiliza-se 83,4 milhões de pessoas com acesso à internet de qualquer ambiente, como domicílio, trabalho, escola, lan houses e outros. Todos esses números sugerem uma mudança expressiva no modo como a sociedade se informa e comunica. As novas tecnologias digitais passaram a exercer o papel de informar e entreter antes restritos às mídias clássicas. O gráfico a seguir dá uma dimensão do crescimento do número de pessoas com acesso à internet, de 2009 a 2012. Gráfico 1 - Evolução do número de pessoas com acesso a internet em qualquer ambiente, de 2009 a 2012. Fonte: IBOPE Nielsen Online No dizer de Fernando Villela58, a internet é a responsável pelo fenômeno da “revolucionária anarquia” no processo das mídias. O modelo clássico de comunicação “um muitos” torna-se obsoleto, uma vez que a rede é por natureza um veículo de expressão “muitos-muitos”. O que Palacios considera como revolucionário em relação às novas tecnologias digitais é que, pela primeira vez, há a junção entre comunicação massiva e interatividade, pois no tocante às outras mídias, como telefone, televisão, rádio, mídias impressas, a dissociação entre massivo e interativo era clara: ou uma coisa, ou outra. Mas, “a comunicação telemática é 56 Disponível em: <http://economia.uol.com.br/ultimas-noticias/valor/2010/10/19/numero-de-internautas-nomundo-supera-2-bilhoes-em-2010.jhtm> Acesso em: 14 fev. 2012. 57 Pesquisa batizada de “The second wave: the Brazilian Internet user forecast”. Informação retirada do livro Jornalismo Digital, de Pollyana Ferrari (2008). 58 VILLELA, Fernando. In: CALDAS (Org.). Deu no Jornal. 2. Ed-Rio de janiero: PUC Rio, 2002. p.173. 38 massiva e interativa”59. Interatividade, memória, multimídia, hipertextualidade, personalização, essas características fazem com que as novas tecnologias se tornem vetores de agregação social e possibilitem recombinações de informações nos mais variados formatos. Em relação às críticas quanto ao alcance massivo da internet, vale pensar nas milhares de lan houses espalhadas pelo país. Elas estão promovendo a inclusão digital prometida pelo governo. Estamos vivendo, como escreveu Lemos60, “um rito de passagem da era industrial à pós-industrial, da modernidade dos átomos à pós-modernidade dos bits”. Diante deste cenário, há apenas uma assertiva: já não somos como antes. Melhor, já não nos relacionamos como antes. As práticas, atitudes, modos de pensamento e valores estão, cada vez mais, sendo condicionados pelo novo espaço de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores: o ciberespaço. E isso para o bem e para o mal. Pierre Lévy61 diz que a internet é um espaço de comunicação propriamente surrealista, do qual nada é excluído, nem o bem, nem o mal, nem suas múltiplas definições, nem a discussão que tende a separá-los sem jamais conseguir. A internet encarna a presença da humanidade a ela própria, já que todas as culturas, todas as disciplinas, todas as paixões, aí se entrelaçam. Ela manifesta a conexão do homem com a sua própria essência que é a aspiração à liberdade. O foco então, quando se estuda a (e na) internet não é simplesmente se posicionar contra ou a favor da nova mídia digital, como num julgamento entre apocalípticos e integrados, mas reconhecer as mudanças qualitativas na cultura e sondar o que está acontecendo. Aos tecnofóbicos e aos que se opõe à internet, fiquem tranquilos: A mente humana não será substituída por uma máquina, pelo menos não num futuro previsível. Mas, há pouca dúvida, que a eficácia mundial dos amplificadores de fantasia, kit de ferramentas intelectuais e comunidades interativas eletrônicas mudarão a maneira que as pessoas pensam, aprendem e comunicam62. (tradução livre) De forma rizomática, a internet atua como um suporte técnico para discursos não lineares, apropriação de imagens, espaço de jogos e, acima de tudo, de criação de relações 59 PALACIOS, Marcos. Cotidiano e sociabilidade no cyberspaço: apontamentos para discussão. In: Encontro nacional da Compós. Rio de Janeiro, 1995, on-line. Disponível em: <http://www.comunidadesvirtuais.pro.br/hipertexto/biblioteca/palacios.pdf >. Acesso em: 08 fev. 2012. 60 LEMOS, André. Cibercultura: Tecnologia e vida social na cultura contemporânea. -5. Ed. - Porto Alegre: Sulina, 2010. 61 LÉVY, Pierre. Uma perspectiva vitalista sobre a cibercultura. In: LEMOS, André. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea. 5ª edição. Porto Alegre: Sulina, 2010 p.12. 62 The human mind is not going to be replaced by a machine, at least not in the foreseeable future, but there is little doubt that the worldwide availability of fantasy amplifiers, intellectual toolkits, and interactive electronic communities will change the way people think, learn, and communicate. (RHEINGOLD, 1985, on-line.) 39 afetivas. Sendo um produto social, a internet e as demais tecnologias digitais de comunicação e informação apontam caminhos para entender o tempo presente sob o ponto de vista da contemporaneidade enquanto território plural. Elas ratificam um rompimento com os paradigmas da modernidade e não se estabelecem em um nível político, mas da ordem da fusão63. Esta é a proposta da cibercultura. A cibercultura é a palavra criada para dar conta dos fenômenos que nasceram a partir das novas tecnologias de comunicação que, no dizer de um dos precursores no assunto, Pierre Lévy64, representa o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço. Ela nasceu nos anos 50 com a informática e a cibernética, começou a se tornar popular na década de 70 com o surgimento do microcomputador e se estabeleceu completamente nos anos 80 e 90, com a informática de massa e com as redes telemáticas, principalmente com o boom da internet. Nesse sentido, em estrito senso, podemos afirmar que os computadores e a internet já são efeito do que se pode chamar de cibercultura65. Pode-se afirmar, a partir de Lemos66, que a cibercultura consiste na conjunção do ciberespaço, enquanto uma tecnologia retribalizante, com a sociabilidade contemporânea. Ela formou-se com a microinformática e atingiu consistência na metade dos anos 80, com a popularização do ciberespaço e sua inserção na cultura contemporânea. Sua dinâmica e definição foram explorados por Lévy. Para ele, “longe de ser uma subcultura dos fanáticos pela rede, a cibercultura expressa uma mutação fundamental da própria essência da cultura” . O que a cibercultura promove, diz o autor, é a “universalidade sem totalidade”, ou seja, ela 67 não é universal porque está em toda a parte, mas porque a sua forma ou sua ideia implicam de direito o conjunto dos seres humanos. Dizendo de outra forma, a interconexão mundial de computadores forma a grande rede, mas cada nó dela é fonte de heterogeneidade e diversidade de assuntos, abordagens e discussões, em permanente renovação. Algo novo se comparado às sociedades orais e escritas, mas não como uma negação destas formas de linguagem e sim como prolongamento delas, pois “a cada etapa da evolução da linguagem, a cultura humana torna-se mais potente, mais criativa, mais rápida”68. Em seu livro, Francisco Rüdger sugere a ideia de cibercultura como 63 Ver MAFFESOLI Michel, 1998. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. 2 ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998. 64 LÉVY, Pierre. Cibercultura; tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34, 1999, p.17. 65 Cf. RÜDIGER,2011. 66 LEMOS, 2010. 67 Ibid. p.247. 68 LÉVY, Pierre, 2010. p.12. 40 a exploração do pensamento cibernético e de suas circunstâncias, de acordo com o projeto que se vai criando historicamente mas que, como tal, vai incorporando inúmeras ordens de outros fatores, levando sua ideia central, a de cultivo, a perder a sua conexão originária com aquele pensamento e seus desenvolvimentos especializados, a projetar-se de um modo cada vez mais cotidiano e profano, em que só de forma muito mediada, estranha para o seu sujeito, está em jogo a cibernética (RÜDGER,2011, p.10) Compilando as diversas teorias da cibercultura, o autor contextualiza o surgimento da expressão durante a segunda metade do século XX, tendo como criadora a engenheira e empresária norte-americana Alice Hilton. Fundadora do Instituto de Pesquisas Ciberculturais (1964), ela foi a pioneira a utilizar a expressão com sentido enfático, referindo-se a uma exigência ética da nova era da automação e das máquinas inteligentes. A cibercultura é vista aqui como um novo ethos social, uma nova forma de a sociedade se relacionar com a técnica, reconhecendo-a no campo da cultura. É uma maneira de a sociedade falar através de um aparato maquínico. Ela incorpora um saber coletivo e compartilha diferentes visões de mundo, consumindo, e acima de tudo, produzindo conteúdo de interesse. É essa nova relação entre o social e a técnica que caracteriza a cibercultura, pois o fato de a sociedade lidar com aparatos técnicos não é, em si, algo novo. “O mundo humano é ao mesmo tempo, técnico” 69. Mas a forma como isso se dá, atualmente, se mostra peculiar por não estar baseada numa racionalidade estrita (é claro que também a utilizamos de forma racional, principalmente em certas áreas como economia), mas na ênfase do lúdico e do emocional. Na cibercultura, novas formas de solidariedade social surgem e são instrumentos de uma cooperação mútua operando a partir de valores presenteístas e hedonistas, como mostra Maffesoli. A técnica não surge como um processo à parte; ela é, antes, inerente à forma humana: (...) o fenômeno técnico nasce com a aparição do homem, depois será enquadrado pelo discurso filosófico e a noção de tekhné (a arte, os saberes práticos) para, enfim, entrar no processo de cientifização com o surgimento da tecnociência, ou o que chamamos hoje de tecnologia. O surgimento da cibercultura não é só fruto de um projeto técnico, mas de uma relação estreita com a sociedade e a cultura contemporâneas. (LEMOS, 2010, p.26) Lemos70 também chama atenção para o fato de que a cibercultura não pode ser associada à ficção científica ou a uma ideia futurista, mas ela é o que estamos vivenciando hoje. A cibercultura ou cultura digital é a nossa nova relação com os objetos técnicos, pois, pela primeira vez, temos a dimensão técnica, o digital, colado à dimensão da comunicação. 69 LÉVY, 1999, p.22. LEMOS, André. Cultura digital.br. Organização Rodrigo Savazoni, Sérgio Cohn. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009, p.136. 70 41 Com a cibercultura, o que está se configurando, conforme Castells, é uma nova sociedade, a sociedade em rede, trazendo consigo tantas possibilidades quanto problemas novos. O que não se pode negar é a maneira pela qual ela está estimulando a iniciativa e ação comunicativa dos seus sujeitos, despertando uma audiência criativa que produz, consome e transforma as mensagens que nela circulam “com seus próprios códigos e projetos de comunicação” 71. Essa cultura digital, que explora as possibilidades das mídias criadas há 18 anos, como observa Ronaldo Lemos72, fez surgir muitas oportunidades e relações sociais antes impossíveis. Ele compara o que estamos vivendo com uma cidade rural, onde a estrada de ferro acabou de chegar, mudando o modo como as pessoas vivem: O que a gente está vendo hoje é um novo tipo de estradas virtuais, novos caminhos e novas formas das pessoas se conectarem, que estão reestruturando completamente a forma de como a cultura é feita. Essas novas mídias estão mudando de forma transversal todas as organizações de relacionamento, com impacto em todas as esferas: a cultura, a política, a ciência, o direito, a economia. (LEMOS, 2009, p.97). Não há como falar em mídia totalmente democrática uma vez que o serviço de banda larga é privado e sabemos que nem toda a população tem internet em casa, ainda que tenham acesso à rede via lan house, trabalho, escola. O que é sabido é que há uma apropriação de um objeto técnico, o computador e uma apropriação cujo objetivo final é mais social que individual. É dentro desse contexto que Lemos73 situa a cibercultura ao dizer que ela é radical por possibilitar a produção coletiva, colaborativa e distributiva da informação. E isso é inédito. No fim, o que nos chama a atenção diante da expressão cibercultura não é o desenvolvimento tecnológico, mas a vida social contemporânea que molda e é moldada pela técnica. Como Rüdiger escreveu, só compreendemos a cibercultura “quando a vemos como uma relação entre nossas capacidades criadoras e sua materialização tecnológica em operações e maquinismos, mas também em mundos sociais e históricos” 74. Retomando Rheingold, é possível dizer que “os limites dessa tecnologia não estão dentro do hardware, mas dentro de nossas mentes”75. (tradução livre). 71 CASTELLS, 1999, apud RÜDIGER, 2001, p.131. LEMOS, Ronado. Cultura digital.br. Organização Rodrigo Savazoni, Sérgio Cohn. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. 73 LEMOS, André, 2009, p.137. 74 RÜDIGER, op, cit. p.114-115. 75 As we shall see, the future limits of this technology are not in the hardware but in our minds. (RHEINGOLD, 2000, online). 72 42 Se entendermos que o que existe são culturas, é possível afirmar que a cibercultura se estabelece como um tipo de cultura contemporânea. Nesse sentido, é necessário inseri-la no contexto do tempo presente, cujo expoente de maior vulto é a pós-modernidade. 2 Cibercultura no contexto da pós-modernidade A maneira pela qual a sociedade negocia com a técnica contemporaneamente requer um novo prisma temporal. Sem saber ao certo o nome dele, aprecio a noção de pósmodernidade de Maffesoli: “Sinergia do arcaísmo e do desenvolvimento tecnológico. É a única definição que me permite dar conta da pós-modernidade”.76 Mesmo provisoriamente, a designação parece pertinente ao que estamos vivendo. O avanço tecnológico aliado à retomada de alguns elementos pré-modernos configuram um cenário cujas bases estão no vínculo social. Gianni Vattimo relaciona o termo pós-moderno ao fato de a sociedade em que vivemos ser uma sociedade de comunicação generalizada, a dos mass media, e que estes tem um papel determinante nessa nova sociedade. Concorda sobre o uso do termo porque “consideramos que, em alguns dos seus aspectos essenciais, a modernidade acabou” 77. Ao se referir ao pós-moderno, Omar Calabrese afirma que sua difusão está relacionada com três campos: literatura e cinema, filosofia e arquitetura. No primeiro momento, o termo pós-moderno significa antiexperimentalismo; em filosofia quer dizer pôr em dúvida uma cultura baseada em narrativas que se tornam prescrições; e em arquitetura seria um projeto que regressa às citações do passado, à decoração, à superfície do objeto projetado contra a sua estrutura e sua função78. Calabrese não adere ao time dos teóricos da pós-modernidade. Ele prefere outra etiqueta, a do neobarroco. Escrevendo acerca de fenômenos da cultura de nosso tempo, mais especificamente filmes, jogos, vídeos, músicas, moda, publicidade, o autor utiliza o termo porque vê nesses exemplos marcas de uma forma interna específica que pode remeter ao 76 MAFFESOLI, 2003, p.10. VATTIMO, Gianni. A sociedade transparente. Tradução Hossein Shooja e Isabel Santos. Relógio D’Água, 1992. p.7. 78 CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Tradução de Carmen Maria de Carvalho e Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 1987. pp 24-25. 77 43 barroco. Mas sua hipótese não é a de uma retomada daquele período e sim a de que pode haver barroco em qualquer época da civilização. Para Bauman, pós-modernidade significa uma sociedade ou um tipo de condição humana, enquanto "pós-modernismo" refere-se a uma visão de mundo que pode surgir, mas não necessariamente, da condição pós-moderna. Ele prefere falar em pós-modernidade, pois acredita que pós-modernismo carrega uma carga valorativa e ideológica demasiada grande. Em quaisquer perspectivas, os autores da pós-modernidade tomam como ponto de partida o enfraquecimento ou mesmo o abandono dos valores da modernidade, a saber, história, indivíduo, progresso, futuro, ciência, razão. Esses ideais aparecem agora de forma rearranjada, com novas perspectivas e outros direcionamentos não hierarquizados. Ainda assim, é impossível nomear com precisão o que vivemos. A esse respeito, Maffesoli lembra que quando alguma coisa está em vias de atingir o termo de seu desenvolvimento é que se pode legitimamente atribuir-lhe um nome. Apenas tardiamente falou-se em modernidade. “... desde o século XIX, os valores da época moderna começam a saturar-se e é por isso que se pode falar em modernidade” 79. Um dos primeiros a proclamar o fim da modernidade foi Jean-François Lyotard e ele o fez munido de um pensamento chave para a compreensão da pós-modernidade: o fim das grandes narrativas ou metanarrativas, como trata em “A condição Pós-Moderna”. As metanarrativas são aquelas que marcaram a modernidade: emancipação progressiva da razão e da liberdade, emancipação progressiva ou catastrófica do trabalho (fonte de valor alienado no capitalismo), enriquecimento da humanidade inteira através dos progressos da tecnociência capitalista, e até se considerando o próprio cristianismo na modernidade (opondo-se, neste caso, ao classicismo antigo), salvação das criaturas através da conversão das almas à narrativa crística do amor mártir. (LYOTARD, 1999, p.31). Para Lyotard, essas representações ideológicas tem uma função legitimante e por serem universais orientam todas as realidades humanas. O declínio dessas narrativas de referência aponta para uma pluralidade de pequenas ideologias, que constituirão a trama da vida cotidiana. Essa crise das grandes narrativas abriu espaço para o cotidiano e suas micronarrativas. Nele, a vida “sem qualidade” e os vínculos sociais começam a fazer sentido e ser aceitos enquanto estilo de vida. O destino, o caos, são incorporados e dão vez a uma “tragicidade” nietzschiana própria do aqui e agora, que valoriza o presente como fonte de prazer. Segundo essa concepção, há uma integração da morte, um viver a morte todos os dias. 79 MAFFESOLI, Michel. Quem é Michel Maffesoli: entrevistas com Christophe Bourseille. Tradução Guilherme João de Freitas Teixeira com a colaboração de Jaime A. Clasen. Petrópolis: De Petrus et Alii, 2011. p.67. 44 Se o ideal moderno preconizava o domínio da natureza e da técnica como forma de explicar, cientificamente, qualquer fenômeno, na pós-modernidade natureza e técnica são aliadas e parceiras do homem para compreender e empreender a vida em sociedade. A sede pelo progresso e o olhar estendido para o futuro dão lugar a valores mais presenteístas. O carpe diem é a expressão de ordem da geração jovem que, despretensiosamente, quer gozar cada instante: as festas, os jogos, as paixões. É isso que juventude da década de 60 reivindicava. Tribos de hippies e rockeiros queriam viver os excessos de uma vida alternativa regada a sexo, álcool e drogas porque eram através dessas explosões orgiásticas que eles poderiam viver a vida em toda a sua plenitude. E hoje, com as festas rave, na batida do techno, ou nos bailes de forró, nos estádios de futebol, nos shows e porque não no consumo, que não é mais simples, mas envolve uma intensa consumação, vemos que “o dispêndio improdutivo tende a substituir o progressismo ‘energético’”80. O berço da cibercultura é a pós-modernidade e é nessa mesma lógica passional que ela confere vida ao corpo social que se arranja em torno da rede. Munidos de um computador pessoal, cada internauta navega só, mas nunca isolado. Essa nova forma de estar junto promove pequenas efervescências a todo o tempo: rimos juntos com o novo viral da internet, com os emails de corrente, a cada acesso aos SRS e as postagens dos amigos, sejam fotografias, vídeos, textos ou mensagens. Isso sem falar na criação e distribuição de conteúdos, pois agora gravamos o próprio CD, editamos as próprias imagens, divulgamos a nossa marca, produto ou serviço. E podemos juntos promover movimentos pró ou contra alguma medida governamental, espalhar causas humanitárias, apelos e reivindicações os mais diversos. Não é simplesmente a técnica, mas o potencial comunitário, associativo e agregador dessa nova tecnologia que merece atenção. O conteúdo, muitas vezes, é zero, mas o que importa é o laço que ele promove, a coesão social que provoca, e a possibilidade de reunir, num só lugar, diversos grupos, as tribos de que Maffesoli trata. Lemos81afirma que a cibercultura é pós-moderna, por estar veiculada a um processo de libertação em relação o estágio anterior, o da modernidade, quando a tecnologia era apropriada de forma autônoma e instrumental, sendo, na maioria das vezes, associada a projetos políticos tecnocráticos futuristas e totalitários. A tecnologia, em tempos de cibercultura, estaria sendo libertária, cotidiana e expressiva, convertendo-se num suporte criador de relações sociais lúdicas e presenteístas. Se na modernidade houve uma apropriação 80 81 Idem, 1985, p.33. LEMOS, 2010. 45 técnica do social, o que se vê agora é uma aproapriação social da técnica, ou seja, na sociedade contemporânea a técnica e o social caminham lado a lado, potencializando situações lúdicas, comunitárias e imaginárias da vida social. Para maior compreensão dos fenômenos técnicos, o autor esquematiza três fases que acredita representar os conteúdos simbólicos com os quais a cultura se associa ao longo de nossa história. Na etapa primitiva é a magia. Na fase antiga, é o mítico. Na modernidade, trata-se da tecnocultura, entendida por ele como razão científica aplicada. Atualmente, no contexto da chamada era pós-moderna, aparece uma nova forma de sociabilidade: a cibercultura, que é a prática social ou conteúdo significativo da tecnologia82. De máquinas racionais, objetivas e individuais, os computadores passam a ser coletivos e unir os internautas em torno de seus gostos e preferências. Agregam e promovem um estar junto. É a transformação do PC – computador pessoal em CC – computador coletivo/conectado e mais atualmente em CCM – a computação coletiva móvel, que são os laptops, os netbooks e os telefones celulares. Essas três fases do desenvolvimento da microinformática propostas por Lemos83 ilustra o fato de a computação pessoal estar cada vez mais deixando de ser individual e só tendo sentido na coletividade. Bebendo em Maffesoli, Lemos afirma que as máquinas apolíneas se transformam em máquinas dionisíacas. A internet e o desenvolvimento tecnológico nada mais fazem senão dar suporte ao transbordamento festivo da nossa época, e abrem espaço a toda e qualquer manifestação de preferências, gostos, e ideias. Essas difusões de gostos, odores e humores, portanto, esses particularismos tribais, recebem a ajuda do desenvolvimento tecnológico (...). E é interessante observar que, atualmente, graças à internet, MySpace, Facebook e Twitter, os gostos mais estranhos e mais estrangeiros encontram uma inegável difusão e, assim, traduzem o fato de que o vínculo social apoia-se em um processo de ajustamento, de ajuntamento e de acordança a posteriori.(MAFFESOLI, 2011, p.73-74) A sombra de Dioniso paira sobre nossa época e essa contaminação se dá em todos os setores da vida social. O que prevalece, nesse caso, é menos o objetivo que se deseja atingir do que o fato de estar junto. O que importa é o sentimento de filiação e a emoção que a proximidade suscita, independente da forma utilizada para se estar perto. 82 83 Ibid., p.56. Idem, 2009, p.137-138 46 3 Os SRS em linhas gerais: estrutura e histórico Desde o primeiro SRS, o SixDegrees.com84, lançado em 1997, cuja criação foi inspirada na teoria de Frigyes Karinthy de 1929 que diz que qualquer pessoa na terra pode se conectar a qualquer outra através de uma cadeia de seis conhecidos, é possível criar um perfil, listar os seus amigos e navegar pelas listas dos amigos deles. De maneira geral, segundo Boyd e Ellison85 depois de se tornar usuário de um SRS, é preciso preencher formulários com uma série de questões. O perfil é gerado a partir das respostas dessas questões, que geralmente incluem descrições como idade, localização, interesses além de uma seção “sobre mim”, onde o usuário se autodescreve através de texto, vídeo, trecho de música, poesia, enfim, o que a imaginação permitir. A maioria dos sites também disponibiliza a opção de fazer o upload86 de uma fotografia para o perfil. É possível também adicionar conteúdo multimídia ao perfil, como vídeos e trocar a aparência da página – configurações como cor, plano de fundo etc. No caso do Orkut e do Facebook é possível adicionar aplicativos ao perfil. O usuário também precisa identificar aqueles com quem se relaciona nos sites, e isso pode variar, sendo os termos mais comuns “Contatos”, “Amigos” ou “Fãs”. A maior parte dos SRS também disponibiliza um mecanismo para os usuários deixarem mensagens nos perfis de seus Amigos. Esse recurso pode ser identificado como mensagem, depoimento, ou outras nomenclaturas, sendo que alguns deles são privados, ou seja, apenas o destinatário pode visualizar. A questão da privacidade, aliás, também varia dependendo do site, sendo que muitos adotam as configurações “público”, “somente amigos” ou “Amigos de amigos”. Em alguns deles, o usuário pode selecionar quem pode ver o quê, deixando, por exemplo, as informações do perfil públicas, porém as fotografias fechadas somente para amigos. Um elemento crucial desse tipo de site é a exposição pública de conexões. Através de links, o usuário é conduzido aos perfis de seus amigos. Apesar das especificidades de cada site, Boyd e Ellison dizem que a espinha dorsal deles é sempre a mesma: “perfis visíveis que 84 Este é considerado o primeiro SRS baseado em relações off-line preexistentes. Ryan (2008) menciona o Craiglist e o Match.com, como anteriores ao SixDegrees.com, ambos lançados em 1995. Aquele sendo um sistema de anúncios e este um site de namoro on-line. 85 BOYD, Danah e ELLISON. Nicole. Social network sites: Definition, History and Scholarship.2007, online. Disponível em: <http://jcmc.indiana.edu/vol13/issue1/boyd.ellison.html> Acesso em: 09 abr. 2011. 86 Upload é um termo de origem inglesa cujo significado é a ação de enviar dados de um computador local para um computador ou servidor remoto, geralmente através da internet. Um exemplo disso pode ser visto nos próprios SRS quando publicamos uma foto. Precisamos, para que ela apareça enviá-la ao servidor do site 47 expõem uma lista articulada de amigos que também são usuários do sistema” 87 (tradução livre). De 1997 pra cá, muitos SRS foram criados e também extintos, muitos dos quais conectavam pessoas tanto pessoal quanto profissionalmente, como Ryze.com, Tribe.net, LinkedIn e Friendster. A partir de 2003 o mercado dos SRS foi ganhando popularidade e surgiram sites com vários propósitos: Dogster, uma rede social e também fórum para discussão de tópicos caninos; Care2 promove encontro de ativistas, Couchsurfing conecta viajantes, Mychurch reúne igrejas cristãs e seus membros. Boyd e Ellison também citam sites que se tornaram SRS: Além disso, como o fenômeno da mídia social e de conteúdos gerados pelo usuário cresceram, os web sites focados no compartilhamento de mídia começaram a implementar características de SRS e se tornar SRS. Exemplos incluem Flickr (compartilhamento de fotos), Last.FM (hábitos musicais) e YouTube (compartilhamento de vídeo)88. (tradução livre) O Ryze.com foi lançado em 2011 nos Estados Unidos e pretendia ser um site para alavancar as redes de negócios de seus usuários. Acabou nunca adquirindo popularidade massiva e foi complementado por outro SRS, o Friendster, que foi o primeiro desses sites a ganhar popularidade, em 2003. A proposta era criar um site para competir com serviços de encontro de casais. Para tanto, e segundo Jennifer Ryan89, o SRS era voltado para a temática romance e os usuários publicavam depoimentos nos perfis de seus amigos, o que ajudava a estabelecer sua confiança e reputação para futuros interesses amorosos. Através do boca a boca, o site logo atingiu a marca dos 300.000 usuários (O´SHEA, 2003, apud BOYD e ELLISON, 2007). Mas foi em função desse crescimento que o site começou a sinalizar falhas. Com muita gente on-line, os problemas técnicos envolvendo servidores e outros equipamentos foram ficando comuns. Outros problemas que acarretaram o desligamento de muitos usuários foram: conflitos sociais, uma vez que era possível encontrar contatos profissionais junto com os amigos mais próximos, e uma ruptura de confiança entre os usuários e o site, uma vez que a prática de criar 87 visible profiles that display an articulated list of Friends who are also users of the system (Boyd e Ellison, 2007, online). 88 Furthermore, as the social media and user generated content phenomena grew, websites focused on media sharing began implementing SNS features and becoming SNSs themselves. Examples include Flickr (photo sharing), Last.FM (music listening habits), and YouTube (video sharing). (BOYD e ELLISON, 2007, p.5). 89 RYAN, Jennifer Anne. The virtual campfire: an Ethnography of Online Social Networking.2008 200f. Dissertação (Mestrado em Antropologia). Universidade de Wesleyan, Middletown, Connecticut. 2008. Disponível em: < http://thevirtualcampfire.org/> Acesso em: 12 abr. 2012. 48 perfis falsos, os chamados “Fakesters”, que em sua maioria representavam personagens fictícios, era cada vez mais comum. O que aconteceu foi que “esses Fakesters indignaram a empresa, que baniu perfis falsos e eliminou o recurso mais popular” 90. O ocorrido foi “uma das maiores decepções na história da internet” 91 (tradução livre). Descrito por Boyd e Ellison como o SRS que cresceu para agradar um nicho de usuários, Tribe é um site cuja forma mais comum de se envolver é se juntando a grupos denominados “tribos” e também participando dos fóruns de mensagens que são a principal fonte de formação de comunidade no site. Como explicitado por Ryan, é comum encontrar no site perfis individuais criados a partir de conteúdo original na forma de posts de blog, exposição de atividade recente no site, poesias, imagens, vídeos e listas descritivas de interesses esotéricos. Ao enfatizar as redes locais, o Tribe permite aos usuários comprar e vender itens, classificar restaurantes e outros estabelecimentos além de vasculhar anúncios de emprego e de habitação. Tópicos mais transgressivos como o uso de drogas e nudismo também aparecem no site. Para a autora, “a falta de censura no site é uma das características mais valorizadas” 92 (tradução livre). Outro SRS mencionado pelos autores como uma importante referência foi o Myspace93, criado em 2003, mas amplamente conhecido em 2005. O grande diferencial desse site é a possibilidade de conhecer os gostos musicais dos usuários logo no primeiro acesso ao seu perfil. Ryan o descreve como “uma plataforma universal para promover música e se conectar aos fãs” 94 (tradução livre). Foram as bandas, com seus respectivos fãs que impulsionaram a popularização do Myspace. Boyd e Elisson afirmam que a dinâmica “bandas e fãs” foi mutuamente benéfica, pois as bandas queriam estar em contato com os fãs, enquanto os fãs desejavam atenção das suas bandas favoritas. Em 2004, os adolescentes começaram a se juntar em massa ao site. Ao invés de rejeitar o acesso aos menores de idade, o Myspace alterou sua política de uso para permitir a sua entrada. Isso acarretou sérias complicações judiciais, uma vez que o site foi envolvido em escândalos sexuais entre adultos e menores de idade. Raquel Recuero95 afirma que o MySpace era o SRS mais popular dos Estados Unidos, mas foi superado (em número de visitantes) pelo Facebook no início de 2008. 90 BOYD e ELLISON, op. cit., p.5. One of the biggest disappointments in internet history.(CHAFKIN, 2007, p.1, apud BOYD e ELLISON, 2007, on-line) 92 Tribe´s lack of censorship is one of its most cherished values (RYAN, 2008, p.18). 93 http://www.myspace.com 94 MySpace is commonly viewed as the universal platform for promoting music and connecting to Fans (RYAN, op. cit., p.14). 95 RECUERO, Raquel. Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2010. p.173. 91 49 Para melhor visualização das datas de lançamento dos principais SRS no mundo, apresento a seguir um gráfico que esboça a linha do tempo com essas informações, além das datas de sites que foram relançados com características de SRS. Figura 1 - Linha do tempo com as datas de lançamento dos principais SRS Fonte: Boyd e Ellison (2007) Descrevi, rapidamente, o início da fase dos SRS no mundo com alguns exemplos dos primeiros e mais importantes sítios. Para não me prolongar, optei por deixar alguns sites de fora, dado o grande número de exemplares e o espaço reduzido. Saliento que a proposta desse 50 trabalho não é compilar todos os SRS e seus respectivos históricos e formatos, mas destacar dois dos mais populares SRS no Brasil, cujas características apresentam consideráveis maneiras de representação e de estar-junto. Estou falando do Orkut e do Facebook, que serão apresentados na terceira parte do trabalho. 4 Os SRS e a socialidade mediada por computador Michelle, uma estudante de direito de 18 anos, acessa diariamente o Facebook. Para ela, o hábito virou um vício: “Nossa, não vou negar que isso vicia e muito. Às vezes tenho prova, alguma coisa importante e no intervalo de estudo eu corro dar uma olhadinha no Facebook, qualquer oportunidade eu estou no Facebook”. Priscila, auxiliar de enfermagem aposentada por motivos de doença, utiliza o Orkut e atualmente mais o Facebook para entrar em contato com pessoas portadoras ou não da artrite reumatoide, além de comunicação com amigos e familiares. Através do site, ela, juntamente com pessoas que vivenciam a doença, participa de um grupo de discussão que criaram para atualizar informações sobre a artrite reumatoide, legislação e eventos. Ela está sempre on-line: “só quando estou dormindo estou off, mas praticamente todo o dia estamos on-line”. Bruno, jornalista e fotógrafo, que na época da entrevista e coleta de dados para essa pesquisa estava em Londres para uma temporada de estudos, perde as contas de quantas vezes acessa o Facebook diariamente. Apesar de ainda ter uma conta no Orkut, não a utiliza mais: “Nossa, eu não sei nem quantificar pra você porque eu acesso o Facebook o dia inteiro, (risos). São aquelas acessadas rápidas. Acesso, fico um minuto, saio, daqui a meia hora acesso de novo”. Esses três exemplos, de um universo de cinquenta, ilustram a forma como as pessoas estão se relacionando e se comunicando atualmente. As práticas midiáticas estão cada dia mais se movendo para o campo digital, tendo a internet como aliada. De casa, do trabalho, da lan house, as pessoas se conectam diariamente a esses sites, como num ritual, onde os meios de comunicação, no caso a internet, são os novos totens que nos permitem estar sempre 51 juntos. Não há como ignorar essa nova configuração social cuja característica marcante é viver a proxemia, mesmo de uma maneira virtual. É isso o que os SRS nos possibilitam. As redes sociais precedem e prescindem a internet. Para Boyd e Ellison a novidade delas em relação ao formato off-line não é permitir encontros com estranhos, mas permitir aos usuários articular e tornar visíveis sua rede social. Elas definem estes sites enquanto serviços baseados na web que permitem aos usuários (1) construir um perfil publico ou semi-público dentro de um sistema limitado, (2) articular uma lista de outros usuários com os quais eles partilham uma conexão, e (3) ver e cruzar suas listas de conexões com as feitas por outros dentro do sistema96.(tradução livre) Recuero sugere uma rede social enquanto um conjunto de dois elementos: atores, as pessoas envolvidas, representados pelos nós e suas conexões, constituídas pelas interações ou laços sociais. Atores são aqui identificados pela autora por serem uma representação performática dos indivíduos, o que questiono não ser distintivo dos usuários de sites de redes sociais, uma vez que estamos sempre nos representando em sociedade. Ela diz que “a rede é uma metáfora para observar os padrões de conexão de um grupo social, a partir das conexões estabelecidas entre os diversos atores” 97. Falamos em SRS para referir aos espaços utilizados para a expressão das redes sociais na internet. Uma ressalva feita por Recuero é que os sites não são em si redes sociais, apenas sistemas. E embora eles possam apresentá-las e auxiliar a percebê-las, são somente os atores sociais que utilizam essas redes que as constituem. Nesse sentido, segundo ela, “sites de redes sociais são aqueles que compreendem a categoria dos sistemas focados em expor e publicar as redes sociais dos atores. São sites cujo foco principal está na exposição pública das redes conectadas aos atores” 98. É banal falar em redes hoje em dia. Em várias áreas do saber, o substantivo aparece para explicar e exemplificar o modo de funcionamento de um sistema. E apesar de parecer contemporâneo, o uso da metáfora remete a 1736, quando o matemático Leonard Euler a utilizou numa abordagem científica99. Tudo isso para falar que estudar a sociedade a partir de uma concepção de rede é considerar, antes da dimensão comunicacional, a ligação e a 96 We define social network sites as web‐based services that allow individuals to (1) construct a public or semi‐public profile within a bounded system, (2) articulate a list of other users with whom they share a connection, and (3) view and traverse their list of connections and those made by others within the system. (BOYD e ELLISON,2007, on-line). 97 RECUERO, op. cit., p.24. 98 Ibid., p.104. 99 Ibid., p.19. 52 interdependência entre as pessoas. No caso da internet – a rede de redes – a possibilidade não é apenas estudar as redes, mas estudar nas redes. E quando se estuda nas redes, por também participar daquele agrupamento, é possível estar com as pessoas, vê-las e ouvi-las. Ao vivenciar essa experiência em um SRS, é possível afirmar que a construção do perfil pode ser vista como forma de o usuário expressar elementos de sua personalidade ou individualidade. Os sites Orkut e Facebook trabalham na perspectiva da “construção de si” e da “narração do eu”, ainda que estejamos falando de um eu que só existe enquanto participante de uma coletividade, uma vez que tudo ali só adquire sentido na perspectiva grupal. Essa prática contemporânea também pode ser vista como uma experiência estética, tanto no sentido de arte, do belo, como no sentido de comunhão de que fala Maffesoli. O autor aposta numa abordagem dinâmica, partindo da origem etimológica da palavra: aisthesis, capacidade de experimentar emoções comuns. Com isso, o autor pretende devolver à palavra estética seu sentido pleno: Um momento em que, de certa maneira, alguém vai “vibrar” com o outro. Sejam elas vibrações musicais, religiosas, e, até mesmo, consumistas. A esse respeito, há uma multiplicidade de ocasiões, sejam públicas, privadas, tribais: tudo é conveniente para fazer a festa. (MAFFESOLI, 2011, p.69-70). A festa de que me ocuparei neste trabalho, que faz com que as pessoas vibrem juntas, trata-se de um aspecto do cotidiano e do contemporâneo que tem provocado mudanças no modo como as pessoas interagem e se relacionam em sociedade: o advento dos SRS e de forma específica, do Orkut e do Facebook. O que destaco aqui não é o que muitos autores apocalípticos têm enfatizado: a desumanização que o aparato tecnológico provoca, tendo como consequência o afastamento das pessoas, nem a crítica às novas tecnologias de comunicação cuja falta das características fundamentais da presença como gestos, troca de olhares e linguagem corporal não permitem a formação de laços mais íntimos. Antes, a proposta empreendida é a de mostrar que as pessoas usam essas ferramentas de forma a se aproximar do outro, de ampliar as possibilidades convencionais de contato, a saber, encontros presenciais, telefone, além daquelas que procuram conhecer e fazer novas amizades a partir desse meio. É consenso que a exposição ou o uso abusivo de qualquer ferramenta digital pode acarretar problemas de saúde, além dos relacionados à socialização, mas não é o intuito deste trabalho focar apenas nesses casos. Como sugeriu Ryan, o envolvimento diário que temos com os SRS pode ser representando metaforicamente por uma “fogueira virtual”, no sentido de que uma fogueira reúne pessoas para fora de suas casas para contar suas estórias e conversar umas com as 53 outras. No caso desses sites, “os usuários compartilham suas estórias com os amigos através da criação de um perfil, atualizando as mensagens do status, escrevendo posts, fazendo o upload100 de fotografias, músicas e vídeos” 101 (tradução livre). As estórias promovidas por cada usuário, a interação através dos comentários, das mensagens escritas, da formação de grupos, dos convites para eventos, das “cutucadas” 102 , reúnem as pessoas em torno de interesses comuns, de suas “fogueiras” juntamente com seu círculo de amigos. Essa imagem da fogueira virtual abriga, a meu ver, muito mais coesão do que alheamento social. A fogueira sugere uma das mais primitivas e importantes atividades sociais, a interação, e o desenvolvimento tecnológico a potencializa. É nesse sentido que argumento serem os SRS importantes ferramentas na atualidade por permitirem aos seus usuários compartilhar estórias e interagir. São por isso os novos centros de atenção social, assumindo um lugar estratégico para a divulgação de produtos, para pesquisas de mercado e como canal de comunicação entre empresas e consumidores. Uma sociedade conectada significa mais informações sendo transmitidas e novas ideias circulando independente das mídias de massa tradicionais. Isso, contudo, não quer dizer que estamos nos informando melhor, até porque o excesso de informação pode produzir um efeito contrário. O fato é que os encontros sociais estão acontecendo, cada vez mais, nesses espaços, onde as pessoas se representam e se (re) conhecem de forma peculiar. Se comparados com outras formas de comunicação mediada por computador, os SRS são diferentes devido ao “modo como permitem a visibilidade e a articulação das redes sociais” 103 . Eles lidam essencialmente com questões relacionadas a três eixos: visibilidade, aparência e redes de contatos. Antes de tornar algo público e visível, os usuários se preocupam com a aparência das fotografias, por exemplo, uma vez que toda a sua rede de contato poderá ter acesso a esse material, a menos que o usuário tenha configurado seu perfil de modo a mostrar determinadas fotos para determinados usuários, apenas. Sem dúvida, como observa Recuero104, os sistemas que suportam os SRS permitem um controle maior das impressões que cada usuário emite e dá aos outros, o que auxilia na construção de valores como a reputação e a popularidade. As informações sobre quem sou e o que penso certamente influenciarão os demais usuários a construir uma impressão sobre mim, 101 Engaged members of online social networks share their stories with Friends through creating individual Profiles, updating their Status messages, writing blog posts, and uploading photographs, music, and videos.(RYAN, 2008, p.9). 102 Do inglês pokes. 103 RECUERO, 2010, p.102 104 RECUERO, 2010. 54 tendo como foco o que escrevo e o material que incorporo ao meu perfil, sejam os vídeos, os sites ou as fotografias. Na próxima seção deste trabalho, trago dois importantes autores à discussão sobre os SRS. Ainda que não falem especificamente deles, ambos resumem com precisão a sua dinâmica: tribos e fachadas. 5 Maffesoli e Goffman: de tribos e de fachadas A socialidade vivida virtualmente nos SRS só pode ser compreendida se tais momentos forem analisados como momentos carregados da intensidade que vivemos juntamente com os outros e que cada um, à sua maneira, vai atualizar, realizar, a partir do écran de seus computadores. Isso conduz a um entendimento de que, enquanto usuário, tendo construído um perfil, toda e qualquer ação só vai ter sentido por estar inserida num cenário maior, com milhares de outros usuários, todos publicando e compartilhando material por saber que outros também o fazem. Assim sendo, entendo que a socialidade105 de que fala Maffesoli, tem sido alargada pelos diversos dispositivos eletrônicos e digitais. Essa socialidade, no dizer do autor, é “uma maneira mais holística de estar-junto, ou seja, que integra parâmetros humanos que haviam sido deixados de lado pela modernidade” 106 . Fazem parte desses parâmetros a tríade lúdico, onírico e imaginário e são esses elementos que conferem dinamicidade e sentido à existência humana. Não é preciso ir longe para buscar exemplos: todas as formas de lazer, os jogos, as competições, os shows, as danças, a música, tudo isso provoca gozo e prazer. A sociedade não se caracteriza mais pelo aspecto produtivo, mas pelo consumo, pela destruição e despesa que o reencantamento do mundo que ora assistimos nos convoca a participar. A noção de tribo é, então, invocada, porém não na acepção clássica do termo, relacionada à visão antropológica. “Contrariamente à estabilidade induzida pelo tribalismo clássico, o neotribalismo é caracterizado pela fluidez, as reuniões pontuais e a dispersão” 107 . Diferentemente do que prevaleceu nos anos 70, diz o autor, trata-se menos de se agregar a um grupo, a uma família, ou a uma comunidade do que o ir e vir de um grupo a outro. Ao contrário da estrutura mecânica da sociedade moderna, onde a organização dos indivíduos se 105 Maffesoli distingue a sociabilidade simples, relativa à polidez, aos rituais, civilidade, vizinhaças à socialidade mais complexa relativa à memória coletiva, simbólica, ao imaginário (1996, p.160). 106 MAFFESOLI, 2011, p. 46. 107 Idem, 1998, prefácio. 55 dava a partir da função de cada um e as classes se apoiavam numa lógica de identidade, a metáfora da tribo empregada por Maffesoli trata do processo de desindividualização, da saturação da função e da valorização do papel que cada pessoa (persona) representa dentro de uma estrutura orgânica, onde tribos afetuais e não grupos contratuais interagem. O neotribalismo pratica uma solidariedade orgânica que vai de encontro à solidariedade mecânica racional. Se antes a identidade era fixa e condicionava o sujeito a ser uma coisa ou outra, na pós-modernidade é possível ser uma coisa e outra. O princípio da disjunção abre espaço para o da conjunção. Isso possibilita a dinâmica de entrada e saída das tribos sem nenhum prejuízo. Fala-se menos em identidade e mais nos processos de identificação. Neste sentido, o princípio da individualização está superado. Contrariamente à ideia da individualização, Maffesoli vê na contemporaneidade a criação de uma alma coletiva, na qual as atitudes, as identidades e as individualidades se apagam. Ele diz que toda vida individual é limitada e é essa limitação que permite existir no grupo. Não há como existir isolado, uma vez que nos encontramos, sempre, e de alguma forma, ligados, seja pela cultura, pela comunicação, pela moda, a uma comunidade. Esta pode não ser a mesma da Idade Média, os tempos são outros. Ainda assim, não deixa de ser uma comunidade. Partindo do termo proxêmica cunhado pelo antropólogo Edward Hall para designar o uso que o homem faz do espaço como uma elaboração especializada da cultura, Maffesoli propõe a proxemia para dizer do estar-junto. Na pós-modernidade o estar-junto é uma proxemia porque volta a uma vida da tribo ou do bando. As tribos urbanas, cada qual à sua maneira, espalham suas ideologias vividas no dia-a-dia que tem por base valores de proximidade. “Nesse sentido, levar em conta a proxemia pode ser a maneira certa de superar nossa habitual atitude de suspeita, para apreciar os intensos investimentos pessoais e interpessoais que se exprimem no trágico cotidiano” 108. É a partir do território de origem que se organiza a vida social e nisso somos semelhantes aos animais. Hall se valeu do trabalho de vários etólogos para compreender o comportamento humano e à luz do conhecimento gerado por esses cientistas ele concluiu que assim como os outros animais, o ser humano também é influenciado pelo espaço que ocupa e o seu comportamento varia de acordo com ele. O homem e seu ambiente participam na moldagem um do outro109. 108 Ibid., p.175. HALL, Edward T. A dimensão oculta. Tradução Valéria Barcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.5 109 56 A territorialidade, um conceito básico no estudo do comportamento animal, também pode dizer muito a respeito do comportamento humano. Ela é geralmente definida como um comportamento por meio do qual um organismo caracteristicamente reivindica a posse de uma área e a defende de membros de sua própria espécie110. Outras funções importantes expressas na noção de territorialidade são: garantia da propagação da espécie, fornecimento de limites – para aprender, brincar, se esconder, proteção contra os predadores e exposição dos inaptos à predação. Segundo Hall, a territorialidade humana também está condicionada ao modo como a pessoa sente o entorno e a alteridade - o outro, os outros - e isso dirá de sua proximidade, das distâncias que guarda, da evitação, do contato, da comunhão, enfim, da vida em grupo. Cada cultura organiza o espaço de maneira diferente, a partir de um substrato animal idêntico, o território. O estudo da territorialidade não se restringe ao espaço físico. Hoje em dia, é possível estudar também a territorialidade virtual, uma vez que estamos cada vez mais conectados: a sociedade em rede nos possibilita entender, para além das fronteiras geográficas, as necessidades do homem em termos da proxêmica. A proxemia diz respeito a um estar-junto que pode ou não ser físico: de qualquer forma, ele toca. Para além das fronteiras físicas e geográficas, ainda assim podemos nos unir ao outro. A internet com os SRS é um exemplo da proxemia virtual, que agrupa milhões de pessoas ao redor do mundo. Nesses sites, o objetivo é aproximar. Portanto, tudo que vincula, que liga e que remete a um lugar, um ambiente, a uma comunidade, deve ser ressaltado, pois são eles que nos identificam. As tribos que lá existem operam a partir dessa prerrogativa: a sua entrada nelas depende de uma atração pelo que é comum. Não há, no entanto, exclusividade: é possível ir e vir por entre os agrupamentos, tantos forem os motivos da comunhão. A possibilidade de escolha está relacionada à socialidade eletiva de Maffesoli. Isso quer dizer que os processos de atração e repulsa são feitos por escolha. O que prevalece, nesse caso, é menos o objetivo que se deseja atingir do que o fato de estar junto. O que importa é o sentimento de filiação e a emoção que a proximidade suscita. Simplesmente, o cavaleiro da Idade Média ou o protagonista da Guerra de Troia estão armados com um raio laser ou suscitam uma nova guerra nas estrelas. É neste sentido, relembro, que os arcaísmos – ou seja, as pulsões primevas, fundamentais, o confronto com o misterioso e o divino – encontram a ajuda do desenvolvimento tecnológico; em meu entender, a 110 Segundo Hall, esse conceito é recente e foi descrito pela primeira vez pelo ornitólogo inglês H.E. Howard em Territory in Bird Life (O território na vida das aves) Cf. HALL, p.10 57 dimensão planetária da técnica limita-se a representar, de novo, o paganismo da Antiguidade.(MAFFESOLI, 2011, p.84-85) Ao contrário do que é postulado sobre a internet e as novas tecnologias da comunicação e informação, a virtualização do ambiente digital não está promovendo uma desterritorialização, mas uma reterritorialização. Sobre o assunto, Rogério Haesbaert defende que a desterritorialização é um mito e que ao invés da perda ou do desaparecimento de territórios estamos assistindo a um processo complexo de (re) territorialização. Ele propõe, então, a multiterritorialidade, que não chega a ser, necessariamente, algo novo: (...) a existência do que estamos denominando multiterritorialidade, pelo menos no sentido de experimentar vários territórios ao mesmo tempo e de, a partir daí, formular uma territorialização efetivamente múltipla, não é exatamente uma novidade, pelo simples fato de que, se o processo de territorialização parte do nível individual ou de pequenos grupos, toda relação social implica uma interação territorial, um entrecruzamento de diferentes territórios. Em certo sentido, teríamos vivido sempre uma “multiterritorialidade”. (HAESBAERT, 2004, p. 344 apud HAESBAERT 2004, on-line) O elemento novo constitutivo dessa era pós-moderna é o fato de que, com a compressão espaço-temporal, é agora possível uma identificação territorial por meio de contatos locais e globais. Dessa maneira, a multiterritorialidade é a possibilidade de combinação de vivências e intervenção de uma enorme gama de territórios. Mesmo conectados à rede não deixamos de estar territorializados, de nos reconhecer e de nos apresentar a partir de um território. O que temos, a partir da internet é uma infinidade de territórios possíveis, de conexões que possibilitam melhor conhecer e ratificar nosso pertencimento. Além da importância do que é próximo, Maffesoli cita uma série de características, típicas de sociedades pré-modernas, que reaparecem com força neste tempo atual: o mito, o nomadismo, o hedonismo, a ênfase nas emoções, o destino, o trágico. E é no cotidiano que essas características tomam forma e podem ser vislumbradas, é no presente que podemos observá-las. Daí aparece um outro termo maffesoliniano, o presenteísmo. Para um observador atento, diz o autor, “só o presente é a fonte fecunda do pensamento” 111 , porque é nele e para ele que nos organizamos. Essa ideia é fundamentada no retorno do destino como forma de (des) orientação, como entendia Nietzsche. Ou ainda, na força de Dioniso que opera uma transfiguração na vida social e faz com que o simples social racional da modernidade dê espaço à socialidade, própria da pós-modernidade. 111 MAFFESOLI, 1996, p.9 58 A aceitação do destino está ligada ao fato de que não mais se vive em função do futuro; não há um projeto de vida a ser seguido: goza-se o presente, sem se preocupar com o amanhã. A fruição do presente a tudo esgota no próprio ato. Eis mais um dos paradoxos modernidade versus pós-modernidade: do drama que regia a modernidade, ao trágico, próprio da pós-modernidade. Ora o destino recorda que o ser é acontecimento, até mesmo advento. Para retomar a oposição modernidade/ pós-modernidade, podemos dizer que, na primeira, a história se desenrola, enquanto que na segunda o acontecimento advém. Ele se intromete. Ele força e violenta. Daí o aspecto brutal, inesperado, sempre surpreendente que não deixa de ter. Aí também reencontramos a diferença de tonalidade entre o drama, ou a dialética, que postula uma solução ou uma síntese possível, e o trágico, que é aporético por construção. (MAFFESOLI, 2003, p.26). A tragédia cotidiana é aquilo que não podemos mudar, por isso o carpe diem é o lema de nossa época. É preciso desfrutar de cada momento e aceitar o presente como única fonte de prazer. Há uma dose de conformismo nisso, mas também uma aceitação de que não é preciso adiar a felicidade e o prazer. Sobre isso, Maffesoli propõe a comunidade de destino, “uma acomodação ao meio ambiente natural e social” 112 , pois ao não apostar numa vida perfeita, num paraíso celeste ou terrestre, nos acomodamos com aquilo que temos. A ênfase no cotidiano mostra que o senso comum, o estar-junto, a profundidade da aparência são todos vetores que implicam de significado o momento que estamos vivendo. Esse novo ethos sugere que o que é vivido aqui e agora e compartilhado com os outros é o que realmente importa. As práticas sociais estão todas carregadas de uma “ética da estética”. Em sua proposição, o termo estética não é concebido de maneira estática, designando apenas o objeto que suscita emoção, seja ele uma estátua, um templo ou uma peça musical, mas na sua dinamicidade: a capacidade de experimentar emoções comuns, de vibrar com o outro. E vibramos juntos em várias ocasiões, da música ao consumo, passando pelo lazer. Hoje em dia, com o desenvolvimento tecnológico, vibramos via celular, televisão, computador; em qualquer lugar, em qualquer ocasião, há sempre uma desculpa para a festa. O orgiasmo típico de nossa época e a urgência do sensual e do sensível expressam uma forma que “permite compreender uma multiplicidade de situações que, por estarem menos delimitadas, escapam em grande parte à injunção moral” 113 . É a ética e não a moral que prevalece em nossa sociedade, pois aquela é particular, limitada a determinado grupo e pode ser, ela mesma, imoral, sem deixar de ter uma ética. As práticas contemporâneas, 112 Idem, 1998, p.174. Idem, 1985. p.24 113 59 inclusive aquelas auxiliadas pelo aparato tecnológico, como os SRS destacados neste trabalho, apresentam éticas particulares cuja ambição é sempre a mesma: aproximar. Tal aproximação vai acontecer conforme os interesses do momento, conforme gostos e humores e isso irá conduzir a tal ou qual grupo. Não há como falar em unidade dentro dessa perspectiva, mas em unicidade ou união em pontilhado. Ao invés de uma completa adesão sem conflitos e questionamentos, assiste-se a fenômenos de atração e repulsa, adesão e afastamento que dizem respeito à dialética massa-tribo, “sendo a massa o polo englobante, e a tribo o polo da cristalização particular, toda a vida social se organiza em torno desses dois polos num movimento sem fim”114. O sentimento de filiação e a partilha de um gosto faz de cada um de nós membros de tantas tribos quantas forem as identificações. A partir de então, é possível argumentar que o sujeito pós-moderno não possui uma identidade única e fixa, mas compactua com outros uma multiplicidade de identificações. Stuart Hall fala de identidades múltiplas ao caracterizar esse sujeito, em oposição àquele da modernidade cuja concepção essencialista fragmentou-se e agora é composto não de uma única, mas de várias identidades. As identidades da pós-modernidade são, portanto, múltiplas. (...) O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. (...) à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente.( HALL, 2005, p.13). Alargando o contexto das tribos e das múltiplas identificações, interessa pensar o indivíduo enquanto ator social, de acordo com a noção de performance desenvolvida pelo sociólogo canadense Erving Goffman115. Seríamos atores por estarmos, sempre, engajados em representações performáticas, uma vez que a análise proposta por Goffman concebe a sociedade enquanto um teatro. Essa analogia advém do fato de que enquanto atores sociais “encenamos” diversos papéis dependendo da situação em que nos encontramos. Assim, através de técnicas de encenação, evitamos o embaraço e o constrangimento do olhar alheio. Da mesma forma, a encenação tem a função de guiar a impressão do outro para os aspectos da nossa personalidade que queremos destacar, uma vez que a ideia da representação é 114 Idem, 1998, p.176. GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana; tradução de Maria Célia Santos Raposo. Petrópolis, Vozes, 1985. 115 60 apresentar padrões ideais e por isso é necessário abandonar ou esconder ações que não sejam compatíveis com eles. Para manter a impressão desejada durante a representação nos valemos de fachadas, “o equipamento expressivo de tipo padronizado intencional ou inconscientemente empregado pelo indivíduo durante a sua representação” 116. Da mesma forma que em casas e construções, a fachada pessoal é aquilo que apresentamos ao exterior, a parte de fora, a casca, o invólucro que é visto e cuja visão é limitada àquilo que queremos mostrar. Durante a representação, a fachada consiste no equipamento utilizado pelo indivíduo para caracterizá-lo, cujas partes incluem vestuário, sexo, idade, características raciais, altura, aparência, expressões faciais, gestos corporais, distintivos da função ou da categoria, entre outros. Na perspectiva da representação teatral, os elementos de uma interação são: os atorespersonagens - as projeções feitas por cada um dos interagentes, a plateia, constituída pelo(s) próprio(s) interlocutor (es) que são, concomitantemente atores, e o cenário, “compreendendo a mobília, a decoração, a disposição física e outros elementos do pano de fundo que vão constituir o cenário e os suportes do palco para o desenrolar da ação humana executada diante, dentro ou acima dele”117. É na região de fachada que a representação de cada ator social é executada e tudo aquilo que não deve aparecer fica na região denominada região de fundo ou bastidores. Toda a dramaturgia apresentada e encenada exemplifica os rituais de interação de que nos valemos sempre que entramos em presença imediata de outras pessoas. O que é destaque aqui são as normas e regras de conduta que regem o comportamento pessoal em qualquer interação, inclusive as diferentes fachadas utilizadas em diferentes situações. Vem daí a famosa assertiva do sociólogo canadense de que não se estudam “os homens e seus momentos; antes, os momentos e seus homens” 118. Apesar de normalmente situarmos o ator-personagem encenando um papel em termos pessoais, Goffman afirma ser essa uma concepção limitada, pois muitas vezes o que ocorre é uma representação de equipe ou grupo. Dessa forma, a representação pessoal pode contribuir para uma encenação de maior alcance. É o caso de profissionais da mesma classe ou até de uma família ou ainda, “qualquer grupo de indivíduos que cooperem na encenação de uma 116 Ibid.,p.29. Ibid., p.29. 118 GOFFMAN, Erving. Interaction Ritual. Essays on face-to-face behavior. New York: Pantheon Books, 1982, p.3. 117 61 rotina particular” 119 . Um exemplo dado pelo autor entre marido e mulher situa esse tipo de representação: Em nossa sociedade, quando o marido e a mulher aparecem diante de novos amigos para uma noite social, a esposa costuma demonstrar uma submissão mais respeitosa aos desejos e opiniões do marido do que a que se preocupa em mostrar quando sozinha com ele ou em companhia de velhos amigos. Quando ela assume um papel respeitoso, ele pode assumir um papel dominante, e quando cada membro da equipe do casamento representa seu papel especial, a unidade conjugal, enquanto unidade, pode manter a impressão que as novas plateias esperam dela. (GOFFMAN, 1985, p.77) Goffman diferencia a fachada pessoal em aparência e maneira. A aparência se refere aos estímulos que revelam o status social do ator e também o estado ritual temporário, ou seja, o tipo de atividade que ele está desempenhando no momento. A maneira, por outro lado, diz respeito aos estímulos que informam sobre o papel de interação que o ator irá desempenhar, a saber, uma maneira arrogante ou humilde de se apresentar. Falamos em fachada social quando indivíduos situados num dado grupo podem ou são obrigados a manter a mesma representação, que se torna coletiva e institucionalizada dadas as expectativas estereotipadas. Enquadram-se nesse caso, no argumento do autor, os papéis dos lutadores, cirurgiões, violinistas e policiais, cujas “atividades permitem uma auto-expressão tão dramática, que os profissionais exemplares – reais ou falsos – se tornam famosos e ocupam lugar de destaque nas fantasias comercialmente organizadas da nação”120. Yves Winkin121 destrinchando o trabalho de Goffman, diz que se estamos num lugar que não sozinhos em nosso banheiro, quando estamos em co-presença física sob o olhar possível de alguém, ou se pensarmos estar sob o olhar físico de alguém, sentimo-nos na obrigação de nos projetar no espaço constituído pela pessoa e por nós mesmos. E esse envolvimento vai fazer com que não tenhamos certos comportamentos de ordem privada e que tenhamos outros, julgados admissíveis em público. A maneira de andar, certa postura dos ombros, certa posição dos pés, das mãos, enfim, o objetivo é manter a fachada. Assim, o que interessava ao autor era entender como o comportamento humano, pessoal, era influenciado pela interação com outras pessoas, como o estar-junto modelava o comportamento individual, que seria, então, social, de modo que todos lançariam mão de atitudes semelhantes para se apresentar e interagir em sociedade. Isso acontece, segundo o autor, porque “a sociedade está organizada tendo por base o princípio de que qualquer 119 Ibid.,p.78. Ibid., p.37. 121 WINKIN, Yves, op. cit., p.135. 120 62 indivíduo que possua certas características sociais tem o direito moral de esperar que os outros o valorizem e o tratem de maneira adequada” 122 . O trabalho de Goffman trata, então, das técnicas utilizadas pelas pessoas para manter tais impressões, tendo como foco o deslize, as gafes, os passos em falso, entre os atores que todos somos para chegar às regras constitutivas da interação social adequada. Dessa forma, é possível compreender, com Goffman, que o comportamento apresentado aos outros será sempre baseado em atributos sociais aprovados já que a representação apresenta uma concepção idealizada da situação. A representação de desempenhos adequados implica, inclusive, a aspiração de ascender às mais elevadas posições sociais. A hipótese de Goffman é a de que o ator emprega esforços expressivos para reivindicar para si uma posição de classe superior à que lhe seria concedida. Por isso, “talvez a peça mais importante do equipamento de sinais associado à classe social consista nos símbolos do status, mediante os quais se exprime a riqueza material” 123. Greg Smith124, em sua biografia sobre Goffman, escreve que ele não era um sociólogo ambicioso, uma vez que ele não estava preocupado com as grandes questões sobre a natureza e o desenvolvimento da sociedade. O que o movia, ao contrário, eram as minúcias da interação face a face, as falas, atitudes, gestos, olhares e atividades comuns que se desenrolam toda vez que estamos em co-presença física do outro. Essas formas de comunicação eram chamadas pelo autor de “expressões emitidas”, aquelas de natureza não verbal e presumivelmente não intencional, cujas características são mais teatrais e contextuais. O que Goffman enfatiza é que, ao contrário do que costumamos supor, as regras de decoro que prevalecem em recintos sagrados, como igrejas, não são muito diferentes das encontradas em lugares comuns, frequentados diariamente, tais como trabalho, escola, hospital. Independente do lugar, uma vez na presença física do outro tendemos, inconscientemente, a ajustar nosso comportamento de modo a transmitir informação social apropriada à situação. Assim, de acordo com o autor, “quando uma pessoa chega à presença de outras, existe, em geral, alguma razão que a leva a atuar de forma a transmitir a elas a impressão que lhe interessa transmitir” 125 . Essas seriam as performances de que lançamos mão em toda a interação. 122 GOFFMAN, 1985. p. 21. Ibid.,p.42. 124 SMITH, Greg. Instantâneos ‘sub specie aeternitatis’ Simmel, Goffman e a sociologia formal. In: GASTALDO, Édison (org.). Erving Goffman, desbravador do cotidiano. Porto Alegre:Tomo Editorial, 2004. pp.47-80. 125 GOFFMAN, 1985, p.13-14. 123 63 Outros termos importantes no trabalho do autor são “linha e “face”, que expressam como as interações humanas se caracterizam e o valor social atribuído a elas. A linha consiste no “padrão de atos verbais e não verbais pelos quais a pessoa expressa a sua visão da situação e através disso sua avaliação dos participantes, especialmente de si mesmo”126. (tradução livre). O termo face, segundo Goffman, pode ser definido como: O valor social positivo que uma pessoa efetivamente atribui a si pela linha que os outros supõem que ela tomou durante um contato particular. Ou seja, face é uma imagem de si delineada em termos de atributos sociais aprovados127. (tradução livre). O sentir-se bem numa interação ocorre quando estamos “em face”. Nessa condição, tipicamente respondemos com sentimentos de confidência e confiança, uma vez que “firme na linha que assume, a pessoa sente que pode erguer a cabeça e apresentar-se abertamente aos outros. Sente certa segurança e alívio”128(tradução livre). O desconforto, porém, assola quando ela se encontra “fora de face” ou “em face errada”. Se ele sentir que está em face errada ou fora da face é provável que ele se sinta envergonhado e inferior devido ao que aconteceu e pelo que pode acontecer a sua reputação enquanto participante. Além disso, ele pode se sentir mal porque ele confiou ao encontro apoiar uma imagem de si a qual ele se ligou emocionalmente e que agora ele sente ameaçada129. (tradução livre) A linha e a face são, dessa forma, o script pelo qual estabelecemos a “cara certa” que precisamos manter em determinada situação. Uma vez “firmes no script”, atuamos de modo a não deixar dúvidas a respeito de nosso comportamento e de nossas intenções. Assim como nas sociedades indígenas – para citar apenas um exemplo – há ritualizações que diferenciam grupos e indivíduos, também em nossa sociedade é possível vislumbrar aspectos, ritos, que promovem um processo de distinção dos grupos. A fala, a postura, o modo de se vestir ou de se apresentar em público configuram aspectos desses ritos. Em se tratando de rituais, vejo em Goffman que as relações sociais envolvem uma constante dialética entre rituais de dois tipos: apresentação e evitação. Eles representam os dois 126 (...) a pattern of verbal and nonverbal acts by which he expresses his view of the situation and through this his evaluation of the participants, especially himself. (GOFFMAN, 1982, p.5). 127 The term face may be defined as the positive social value a person effectively claims for himself by the line others assume he has taken during a particular contact. Face is an image of self delineated in terms of approved social attributes. (GOFFMAN, 1982, p.5). 128 Firm in the line he is taking, he feels that he can hold his head up and openly present himself to others. He feels some security and some relief. (GOFFMAN, 1982, p.8). 129 Should he sense that he is in wrong face or out of face, he is likely to feel ashamed and inferior because of what has happened to the activity on his account and because of what may happen to his reputation as a participant. Further, he may feel bad because he had relied upon the encounter to support an image of self to which he has become emotionally attached and which he now finds threatened. (GOFFMAN, 1982, p.8). 64 principais tipos de deferência. Através dos rituais de apresentação, o indivíduo retrata concretamente a sua simpatia pelo outro; os rituais de evitação têm a forma de interdições, proscrições, tabus, e sugerem atos que o indivíduo deve evitar para que ele não viole o direito do outro de mantê-lo à distância130. Goffman considera a interação como um processo fundamental de identificação e de diferenciação dos indivíduos e grupos, uma vez que estes não existem isoladamente: só existem e procuram uma posição de diferença pela afirmação, na medida em que, justamente, são valorizados por outros. O papel social de cada um está intrinsecamente ligado ao modo como cada indivíduo constrói sua imagem e a mantém em sociedade. A gestão desses minibalés que todos nós realizamos em nossas interações é uma ordem assim como são a ordem econômica e a ordem social. Assim sendo, toda infração da ordem interacional, toda ruptura das regras que regem a interação são igualmente rupturas da ordem social. A ordem interacional é também uma das modalidades da ordem social. Um dos objetivos do trabalho de Goffman é justamente desvelar a ordem normativa que se estabelece toda vez que as pessoas se encontram em presença uma das outras. Em suas palavras: (...) revelar a ordem normativa prevalecente dentro e entre essas unidades, ou seja, a ordem comportamental encontrada em todos os locais povoados, sejam eles públicos, semi-públicos ou privados, e quer subordinado aos auspícios de uma ocasião social organizada ou das restrições lisonjeadores de um mero cenário social rotinizado131. (tradução livre) Assim como Goffman, Norbert Elias132 sonda o comportamento social que o processo dito “civilizador” nos enquadrou. Nossas ações e comportamento não são naturais, mas seguem padrões, certas etiquetas que nos acompanham desde os primórdios e que guiam a vida em sociedade. Elas não são as mesmas de outras épocas, mas cumprem o papel de estabelecer uma dinâmica social coesa. Em sua obra, Elias retoma alguns manuais de etiqueta e mostra como no curso de séculos o padrão de comportamento humano muda, gradualmente, em uma direção específica. O que antes era tido como uma atitude normal frente à sociedade, hoje pode ser espantoso e configurar um desrespeito com o próximo. Muda o padrão do que a sociedade exige e proíbe. As práticas analisadas pelo autor vão do hábito de escarrar até questões de sexualidade e da educação de crianças. Em todas elas, o autor percebe que a motivação para a adoção de tantas 130 GOFFMAN, 1982, p.73. (...) to uncover the normative order prevailing within and between these units, that is, the behavioral order found in all peopled places, whether public, semi-public, or private, and whether under the auspices of an organized social occasion or the flatter constraints of merely a routinized social setting. (GOFFMAN, 1982, p.2). 132 ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Tradução Ruy Jungman - 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. 131 65 práticas “higiênicas” não está relacionada ao medo do contágio de doenças ou ao nojo que tais práticas causam, mas à vergonha e ao embaraço frente ao outro. É necessário, portanto, ocultar certas práticas a fim de manter a ordem social. (...) Cada vez mais, as pessoas mantêm as próprias funções, e tudo o que as lembra, ocultas uma das outras. Nos casos em que isto não é possível - como no casamento, por exemplo -, a vergonha, o embaraço, o medo e todas as demais emoções associadas a essas forças motivadoras da vida humana são dominados por um ritual social precisamente regulado e por certas fórmulas de ocultamento, a fim de preservar o padrão de vergonha. Em outras palavras, com o avanço da civilização a vida dos seres humanos fica ·cada·vez mais dividida entre uma esfera intima e uma publica, entre comportamento secreto e público. E esta divisão é aceita como tão natural, torna-se um hábito tão compulsivo, que mal é percebida pela consciência. (ELIAS, 1994, p.188). Essa constatação passa despercebida pelas pessoas uma vez que, como disse Elias, os diversos rituais estão tão arraigados e são sobremaneira automáticos no nosso dia a dia que são aceitos como naturais e acabamos por não elaborar uma reflexão sobre eles. Eles se tornaram uma “segunda natureza”. Uma leitura aproximada dessa dialética comportamento pessoal versus social foi proposta por Roberto Da Matta133 quando da análise da sociedade brasileira. A casa e a rua134 são, como ele sugere, instâncias sociológicas que não designam simplesmente espaços geográficos ou coisas físicas mensuráveis, mas acima de tudo entidades morais, esferas de ação social, províncias éticas dotadas de positividade, domínios culturais institucionalizados e, por causa disso, capazes de despertar emoções. Enquanto esferas de significação, a casa e a rua apresentam regras de conduta próprias de modo que “não se pode misturar o espaço da rua com o da casa sem criar alguma forma de grave confusão ou até mesmo conflito. Sabemos e aprendemos muito cedo que certas coisas só podem ser feitas em casa e, mesmo assim, dentro de alguns dos seus espaços” 135 . Há condutas e regras específicas de acordo com o espaço ocupado e é por isso que não dormimos na rua, não fazemos amor nas varandas, não comemos com comensais desconhecidos, não ficamos nus em público, não rezamos fora das igrejas etc. O discurso de Da Matta se diferencia por destacar a casa e a rua como categorias que não apenas separam contextos e diferenciam atitudes, mas que contem visões de mundos e 133 MATTA, Roberto da. A casa e a rua. 5. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. O autor acrescenta a essas duas instâncias o “outro mundo”, categoria sociológica que desperta curiosidade por tratar de religião, vida após a morte etc. 135 Ibid., p.50. 134 66 éticas particulares. Afasta-se, portanto, das máscaras e cenários propostos por Goffman ao afirmar que Não se trata de cenários ou de máscaras que um sujeito usa ou desusa de acordo com suas estratégias diante da “realidade”, mas de esferas de sentido que constituem a própria realidade e que permitem normalizar e moralizar o comportamento por meio de perspectivas próprias. (DA MATTA, 1997, p.47-48). Ainda assim, o comportamento esperado nessas esferas não é o mesmo, variando de atitudes, gestos, roupas, assuntos, papéis sociais e quadro de avaliação da existência em todos os membros de nossa sociedade. Apesar de utilizar termos que o situem na tradição do interacionismo simbólico como o self, a análise goffmaniana não pode ser reduzida a mera psicologia dos indivíduos, pois ela considera que a interação tem regras próprias que são exteriores a eles. Resta-lhes apenas obedecê-las, se quiserem ser considerados pessoas normais. Resulta disso o fato de, uma vez reunidos pela interação, ser possível e necessário que o ator disfarce certos aspectos da performance alheia ou até finja uma postura que certamente destoa da sua. Tudo para a manutenção do equilíbrio social. A abordagem do autor, que trata basicamente do gerenciamento da impressão, fala em atores, personagens, máscaras. O termo indivíduo perde eficácia linguística nesse contexto dando lugar à pessoa. Para Goffman, “uma pessoa é um indivíduo que se torna envolvido num valor de algum tipo – um papel, um status, um relacionamento, uma ideologia – e então faz uma reivindicação pública que ele deve ser definido e tratado como alguém que possui o valor ou propriedade em questão” 136 . A transição indivíduo-pessoa é indicada por Goffman em citação de Park: Em certo sentido, e na medida em que esta máscara representa a concepção que formamos de nós mesmos – o papel que nos esforçamos por chegar a viver – esta máscara é o nosso mais verdadeiro eu, aquilo que gostaríamos de ser. Ao final a concepção que temos de nosso papel torna-se uma segunda natureza e parte integral de nossa personalidade. Entramos no mundo como indivíduos, adquirimos um caráter e nos tornamos pessoas.(PARK, 1950, p.250, apud GOFFMAN, 1985, P.27) A pessoa, conforme Maffesoli, é toda exterioridade e enquanto arquétipo vive e repete os instintos criadores coletivos. Enquanto máscara, ela coloca em cena ou participa da encenação dos tipos gerais. O autor argumenta que se na modernidade existiam indivíduos 136 GOFFMAN, 1952, p.461, apud SMITH, 2006, p.20 67 autônomos e senhores de suas ações, com uma identidade única, na pós-modernidade entram em cena pessoas de máscaras variáveis, que são tributárias do ou dos sistemas emblemáticos com que se identificam. Logo, ela “poderá ser um herói, uma estrela, um santo, um jornal, um guru, um fantasma ou um território, o objeto tem pouca importância, o que é essencial é o ambiente mágico que ele segrega, a adesão que suscita” 137. Diferente da lógica individualista, a pessoa (persona) só existe na relação com o outro. Numa passagem que lembra Goffman, Maffesoli diz: Na teatralidade geral, cada um, em graus diferentes, e em função das situações particulares, desempenha um papel (papéis) que o integra(m) ao conjunto societal. É isso que funda a dialética corpo-corpo social, tão pouco levada em conta pelas ciências sociais. (MAFFESOLI, 1996, p.172). Podemos, por conseguinte e sem prejuízo, ler a obra de Goffman como os “eus” sendo representados na vida cotidiana, já que não há como reduzir a complexidade de ser dos atores deste palco social que é a sociedade. Muito menos quando a sociedade em questão passa por diversas mudanças de cunho político-ideológico, econômico e social, fazendo com que o sujeito racional e senhor de si seja substituído por outro fragmentado, composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. É, pois, nesse encontro de pessoas e atores que a sociedade se faz. Seja em termos de interação face a face ou daquelas mediadas ou virtualizadas, como a que me ocupo neste trabalho, o que merece destaque é o fato de que a sociedade vive e se organiza através dos encontros, das situações, das experiências no seio dos diversos grupos a que cada um de nós pertence. E é dentro do mais insignificante desses fenômenos que aprendemos e descobrimos os mais profundos ensinamentos: aqueles que nos mostram a nós mesmos. Inserir os sites de redes sociais nesse debate é entender que eles são importantes espaços de interação e socialização na contemporaneidade porque o próprio fato de estarmos em rede sugere uma (re) união. Um ajuntamento virtual, por certo, mas ainda assim uma forma de estar-junto. Mesmo podendo nos comunicar com aqueles que escolhemos – e que como já exposto corresponde geralmente aos contatos com quem já temos um vínculo físico off-line - é importante dizer que “essa ‘panelinha’, tal como ocorre nas redes sociais, não significa o fim do estar-junto, mas simplesmente que este foi investido em outra parte que não as formas reconhecidas pela legalidade institucional”138. Há uma vontade de ser/estar com o outro que ultrapassa o contato físico, ainda que a forma, não seja aquela de uma interação 137 138 MAFFESOLI, 1996, p.18 -19. Idem, 1998, p.136. 68 tradicional. O telefone, o telégrafo, a carta, de forma semelhante, ligam as pessoas, propõe uma aproximação. A inovação, agora, com a convergência das mídias em um único aparelho, é que podemos bater-papo, escrever, ver o interlocutor... Tudo ao alcance de alguns cliques. É somente na e pela interação que os diversos atos adquirem sentido nesses sites. Embora o conteúdo muitas vezes seja nulo, o continente é o que interessa, o fator agregador é que desperta atenção. É notável uma desconstrução da perspectiva individualizante, pois tudo ali só adquire sentido por fazer parte de um todo maior. Ao criar um avatar, um perfil, há o desejo da partilha: dos gostos, da privacidade, das histórias pessoais. Tudo gira em torno da emoção ou da apatia que eu crio no outro. O valor pessoal só adquire valor no coletivo. Eis a eficácia da metáfora da tribo empregada por Maffesoli. No caso dos SRS, ela pode ser visualizada no simples preenchimento do formulário que validará a existência do usuário no site, em que ele é questionado sobre o seu pertencimento a grupos variados: Em que instituição de ensino estudou? Quais são suas referências musicais, literárias, cinematográficas, televisivas? Qual sua cidade? A empresa onde trabalha? Ainda há as comunidades e os grupos com os quais ele se identifica: as preferências gastronômicas, de vestuário, as marcas favoritas, os lugares que gosta de frequentar, além de tornar públicos os eventos em que vai estar e as fotografias pessoais, elementos simbólicos que comunicam e que tocam os usuários. Em se tratando de representação, é possível analisar os perfis enquanto fachadas dos usuários, onde estes encenam diferentes papéis. Ainda que nunca tenha citado a internet ou a interação mediada por computador, a perspectiva dramatúrgica utilizada por Goffman se encaixa nesse contexto, uma vez que on-line o desejo de criar e manter uma boa impressão permanece. Além disso, sendo esse perfil público, os usuários estão constantemente sob o foco de olhares desconhecidos, o que significa uma preocupação maior com a fachada. Certamente nem tudo é exposto. E isso pode ser entendido, com Maffesoli, e sua “temática do véu”139, uma vez que o véu deixa ver e mascara, ao mesmo tempo. O perfil, de forma geral, pode ser visto como um texto da vida do usuário. Texto esse que é configurado a partir da maneira pela qual o usuário quer ser visto pelos outros, mas que segue um padrão estabelecido pelo editor ajudante, que podemos chamar de espelho. Espelho porque é preciso se “espelhar” no modelo proposto e criar o seu perfil a partir dele. Há, então, uma repetição de perfis, todos construídos a partir da mesma matriz. Ele é escrito com palavras, mas também com fotografias, vídeos. E são as fotografias os elementos não verbais 139 MAFFESOLI, 1996, p.176. 69 que melhor caracterizam a fachada criada, pois cada vez mais a vida privada transborda a cercania da vida domiciliar e ocupa, em massa, a praça pública. Isso não pode ser visto como uma atividade desprezível que culmina em narcisismo e vaidade extremista, uma vez que a cada dia mais pessoas de várias idades, etnias, classes sociais, se arranjam e determinam sua participação nos sites a partir dos perfis e, de forma mais específica, das imagens. Se o usuário precisa se “espelhar” num roteiro pré-estabelecido para construir sua fachada, ele também olha para o seu perfil, em especial para suas fotografias e, como num espelho, apaixona-se pelo seu melhor sorriso. Essa passagem pode lembrar o mito de Narciso, que se enamorou pela imagem de si no espelho formado pela água, mas será mais bem entendida se tal aproximação não focar a perspectiva individualizante, mas compreender o corpo que se mostra como um corpo coletivo. Se existe narcisismo, ele é de grupo. ... ao contrário do que continua a ser dito sobre a ligação existente entre a prevalência do corpo e o individualismo contemporâneo, os diversos conformismos da aparência, o body-building, os momentos em que se observam “os corpos em cacho” (concerto, esporte, consumo nos grandes magazines), tudo isso nos deveria incitar a falar de narcisismo de grupo. (MAFFESOLI, 1996, p.183) O corpo, por sinal, está presente nos SRS, ainda que não fisicamente. As fotografias dos usuários mostram um corpo que se pavoneia, um corpo festivo que se mostra ao outro e que não proclama o seu fim com o desenvolvimento tecnológico, mas aparece como uma forma a mais de ser visto, de ser lembrado, de ser tocado. A eliminação do corpo no ciberespaço, como descrito por Le Breton140 em “Adeus ao Corpo”, onde este é visto como excesso e onde a presença carnal do outro é dispensada, pode não ser uma eliminação corporal stricto sensu. Não obstante os inúmeros exemplos da não corporeidade do espaço cibernético como a multiplicação de identidades e o sexo virtual, o corpo que se despede em Breton é na realidade um corpo apolíneo, estritamente racional e mecanicista. O corpo que é visto no ciberespaço, sobretudo nos SRS, é um corpo que rompe com os dogmatismos e cuja ênfase está no aspecto emocional da vida cotidiana. Daí a importância da aparência e a forte carga simbólica investida em cada aparição pública: as indumentárias, os estilos, o linguajar. O ambiente comunicacional é pano de fundo para uma exacerbação da aparência que não tem nada de frívola. Apenas dá vazão a um corpo dionisíaco, afetual, um corpo que se epifaniza e que estabelece uma relação com o outro, ainda que este outro esteja 140 LE BRETON, David. Adeus ao corpo:antropologia e sociedade. Campinas, SP: Papirus, 2003. 70 lhe vendo através do écran do seu computador. Esse corpo atualizará sentimentos de empatia e proximidade dentro de uma lógica da identificação. Por isso, convém falar em narcisismo de grupo. Não há, portanto, desaparecimento do corpo no ciberespaço. O que as novas tecnologias digitais da comunicação possibilitam é uma transfiguração do corpo: de apolíneo, ele se transforma em dionisíaco e sinaliza uma nova maneira de estar-junto. Falar em SRS pelas lentes de autores como Maffesoli e Goffman tem pertinência. Eles evidenciaram, cada qual a seu modo, as múltiplas interações como constituintes da realidade inter-humana e a importância da aparência no imaginário social. Ainda que o reino das aparências tenha uma dimensão alienante, lembrando a sociedade do espetáculo de Guy Debord, ele “pode permitir a expansão da astúcia, da duplicidade, que fazem com que cada um, e o conjunto social em seu todo, avancem mascarados, e resistam, por isso, às diversas injunções de todos os poderes, quaisquer que sejam: políticos, religiosos, morais, intelectuais” 141 . As imagens invadem o mundo contemporâneo e dão tom a um reencantamento do mundo, em contraposição ao desencantamento provocado pelo excesso de racionalização e cientificismo moderno. A teatralidade da vida cotidiana pode ser vista na criação e partilha de imagens. No caso de Goffman, por exemplo, cujas análises da interação face a face foram feitas em espaços físicos bem delimitados, como hospitais, prédios, fábricas, o escopo do trabalho foi muito maior: do confinamento de quatro paredes a um estudo geral da sociedade angloamericana. Eu uso esses dados sobre o pressuposto de que um lugar lógico para aprender sobre propriedades pessoais está entre as pessoas que foram presas por não conseguir mantê-las. Suas infrações de decoro ocorrem nos confins de uma ala, mas as regras quebradas são bastante gerais, nos conduzindo para fora da ala para um estudo geral da nossa sociedade AngloAmericana142. (tradução livre) Esse trabalho propõe, da mesma forma, partir de achados em sites de redes sociais, no que diz respeito ao manejo da impressão, para falar da forma como os atores de nossa sociedade constroem uma imagem de si. Para isso, debruço-me sobre meu computador e observo com atenção as imagens lá publicadas. As fotografias chamam atenção, pois a meu ver, elas “funcionam regularmente e de forma geral e fixa com o fim de definir a situação para 141 MAFFESOLI, 1996, p.174. I use this data on the assumption that a logical place to learn about personal proprieties is among persons who have been locked up for spectacularly failing to maintain them. Their infractions of propriety occur in the confines of a ward, but the rules broken are quite general ones, leading us outward from the ward to a general study of our Anglo-American society. (GOFFMAN, 1982, p.48) 142 71 os que observam a representação” 143. Consistem, então, em fachadas construídas por cada um dos usuários do Orkut e do Facebook. 143 GOFFMAN, 1985, p.29. 72 C AS FOTOS NO ORKUT E NO FACEBOOK: CONSTRUINDO UMA FACHADA VIRTUAL “(...) as primeiras impressões são importantes”. Erving Goffman C omo discutido anteriormente, é sabido que existem fotografias aos milhares nos SRS Orkut e Facebook, uma vez que cada usuário pode ter, no caso do Orkut até 10.000 fotografias, ou até 100 álbuns de 100, e no Facebook até 1.000 por álbum. Mas, o que realmente intriga é o tipo delas, ou seja, a forma como as pessoas ali se apresentam ou, melhor, representam. Posso concordar com a maioria e dizer que as pessoas estão cada vez mais expondo suas vidas e deixando a vida privada escancarada em praça pública. Contudo, pergunto-me se é realmente tudo que elas estão mostrando. Há uma dinâmica em ambos os sites que me parece padronizar os perfis, e, portanto, os álbuns dos usuários. E é claro, há certo consentimento em torno disso, uma vez que as pessoas constroem as suas fachadas tendo em vista a fachada alheia. De qualquer maneira, se existem interação e correspondência, é sinal que as imagens também unem. Apesar de serem alvos de críticas que ressoam em várias pesquisas, e que tem como mote o exibicionismo, a vaidade excessiva, o narcisismo, as fotografias me parecem funcionar como o corpo a corpo entre os usuários desses sites. Carregadas de valor simbólico e comunicacional, elas operam por afetos e são a materialização dos amigos da rede. Se as postagens verbais provocam algum sentimento de identificação, as fotografias agregam e fazem vibrar. A linguagem não verbal dessas imagens é entendida instantaneamente e elas são logo comentadas ou “curtidas”, tão intensas as emoções que elas evocam. São elas a melhor forma de saber como os amigos, parentes distantes ou mesmo os amigos virtuais estão e são. O corpo que aparece na tela do computador toda vez que abrimos o álbum de alguém é, como 73 pontuou Maffesoli, um corpo que “engendra comunicação, porque está presente, ocupa espaço, é visto, favorece o tátil” 144. As fotografias são uma maneira que encontramos de tocar os outros e sermos por eles tocados. A questão da aparência, assim, não pode ser vista como frívola, uma vez que as imagens remetem a uma temática da corporeidade e o desenvolvimento tecnológico só faz ajudá-la. Voltamos a viver num mundo encantado pelo que é, cuja eficácia imagética pode ser vista nos cinemas, nos meios de comunicação incluindo a internet, na publicidade, na moda etc. Por meio das imagens publicadas, nos representamos e apresentamos um pouco de nossa vida aos outros: de onde viemos, a família, a casa, o trabalho, enfim, aquilo com os quais nos reconhecemos. E a partir de então somos reconhecidos pelos outros. É incrível como as pessoas querem e pedem por fotografias e parecem assim proceder a fim de conhecer o mundo de cada um. Através do compartilhamento dessas banalidades, dos aspectos comuns da vida de todos os dias, suportamos melhor nossa existência. A publicização do que antes era íntimo e apenas privado diz respeito a isso. Lemos confirma ao dizer que “revelar a privacidade parece ser um exercício que visa instituir a conexão, tocar o outro, comunicar. No fundo, estamos sempre lutando contra a solidão, contra o desencontro e o estranhamento” 145. Se pensarmos as fotografias enquanto símbolos dotados de significação, enquanto elementos proxêmicos, fica mais fácil entender a profusão de imagens pelos sites, e as diárias e constantes atualizações. São através delas, e de outros elementos textuais como as mensagens, legendas, comentários etc, que nos aproximamos do outro. Embora sem finalidade, “o fato de conhecer o outro com exatidão, de saber sempre alguma coisa sobre ele, traz consequências notáveis para os modos de vida quotidianos” 146. Sempre dizemos algo de nós mesmos pelas imagens postadas, mas revelamos muito mais a partir do que não é mostrado. E isso varia de acordo com a idade e com os padrões sociais impostos. É dessa forma que à medida que mostramos também escondemos. Isso é próprio do véu, como pontuou Maffesoli. As fotografias dos SRS analisados funcionam a partir dessa dialética do velar-desvelamento: “para os que fazem parte da mesma comunidade, ele acentua o que merece ser visto; ao mesmo tempo, protege contra a indiscrição do olhar exterior”147. 144 MAFFESOLI,1996, p.134. LEMOS, André. Aspectos da cibercultura: vida social nas redes telemáticas. In: PRADO, J.L. Crítica das práticas midiáticas. São Paulo: Hacker Editores, 2002. p.115. 146 MAFFESOLI, 1998, p.175. 147 Idem, 1996, p.176. 145 74 Como defendido por Goffman, uma vez expostos ao olhar alheio estamos sempre tentando gerenciar a impressão que causamos no outro. É na região conhecida como fachada que conduzimos as performances idealizadas de nós mesmos. E isso acontece tanto on quanto off-line. O que apresento a seguir pode sinalizar algo para aqueles que acreditam que todo mundo é feliz e não tem problemas nos SRS. Parece-me que na vida física não deixamos de ser atores sociais, mas quando on-line temos recursos os mais variados para controlar a imagem que queremos transmitir, às vezes omitindo ou mesmo forjando ser quem não somos. Isso pode ter sérias consequências na vida dos usuários. Imagine pessoas cruzando oceanos para conhecer um provável parceiro com quem se relacionava via SRS e se deparar com alguém diferente daquele (a) que via nas fotografias? O encontro que consumaria o relacionamento acaba em desilusão e dor de cabeça. Uma reportagem recente que li enquanto escrevia este trabalho trata exatamente disso. Nela, um indiano conhece uma brasileira pelo Facebook e decide viajar até Belo Horizonte para encontrá-la, tal encantamento que suas imagens provocaram-lhe. Resultado: ela não era nenhuma Giovanna Antonelli como mostravam as fotografias e ele, segundo a mulher, divorciada e mãe de dois filhos, não era o “príncipe indiano” que ela via na tela do seu computador148. A fachada virtual construída por ambos não era condizente com aquela da vida física. A construção e caracterização dessa fachada virtual será mais bem esmiuçada na exposição analítica dos dados. Esta será precedida de uma introdução aos SRS de que me ocupei nesta pesquisa. De forma rápida, descrevo na sequência, o campo por onde estive. 1 Orkut e Facebook: descrevendo o campo A escolha dos SRS analisados não foi casual, mas se deu por uma questão de relação pessoal com eles. Sou usuária do Orkut há pelo menos cinco anos, apesar de a frequência de acesso ter sido reduzida nos últimos dois; no Facebook, estou há menos tempo, dois anos. Foi esse contato que me despertou o interesse em estudar a vida social que fala através das máquinas, a interação interpessoal que se tornou coletiva, dado o número de usuários desses sites. De acordo com a ComScore, empresa que mede o mundo digital, as redes sociais são a atividade on-line mais popular no mundo, sendo responsáveis por 1 em cada 5 minutos gastos 148 NISZ, Charles. Foto de Giovanna Antonelli em rede social faz indiano vir até BH. Blog Vi na internet, ago. 2012. Disponível em: http://br.noticias.yahoo.com/blogs/vi-na-internet/foto-giovana-antonelli-em-rede-socialfaz-indiano-191127537.html. Acesso em: 02 ago. 2012 75 on-line. Além disso, essa atividade alcança 82% da população mundial da internet, representando 1,2 bilhão de usuários ao redor do globo149. Compilando mais dados, encontrei números expressivos que mostram o sucesso dos sites de redes sociais no Brasil, entre os quais Orkut e Facebook liderando a lista dos mais acessados. Os dados da tabela abaixo mostram os números comparativos entre os meses de dezembro de 2010 e dezembro de 2011 com o total de visitantes e o crescimento substancial do Facebook no Brasil. Mesmo com o número de usuários em queda, o Orkut cresceu 5% em um ano, porcentagem baixa se comparada aos 192% de crescimento do Facebook. É importante lembrar que a ComScore não inclui o tráfego originado em computadores públicos, como em internet cafés, ou acesso em celulares ou computadores de mão (PDAs), o que significa que os dados são, certamente, ainda maiores. As estatísticas a seguir se referem a visitantes a partir de seis anos de idade, que acessam os sites de casa ou do trabalho. Tabela 1 - Número de visitantes dos principais sites de redes sociais no Brasil entre 2010 e 2011 Fonte: ComScore (2012) 149 As estatísticas foram feitas tendo por base os dados de outubro de 2011. Cf. http://www.comscore.com/Press_Events/Presentations_Whitepapers/2011/it_is_a_social_world_top_10_needto-knows_about_social_networking Acesso em: 04 abr. 2012. 76 1.1 Orkut no Brasil: da invasão ao abandono do site Criado em 2004 por Orkut Büyükkökten, engenheiro turco do Google, o Orkut150 foi desenvolvido nas horas de folga de seu fundador151e inspirado num trabalho anterior de Büyükkökten, o Club Nexus, projetado enquanto ainda era estudante da Stanford University, em 2001. O sucesso do site no Brasil começou logo após o seu lançamento e foi considerado por Suely Fragoso152 como o Brazilian Internet Phenomenon, “quando o numero de usuários brasileiros de um serviço on-line ultrapassa largamente o número de usuários da nacionalidade original do serviço”153. Nesse caso, o país em questão eram os Estados Unidos e a data histórica foi 23 de junho de 2004154, quando o Brasil desbancou os usuários estadunidenses e se tornou o país com maior número de usuários no Orkut. Fragoso afirma que passados dois anos do seu lançamento, quando escrevera o artigo, o site não dava sinais de enfraquecimento, mantendo os altos índices, porém agora nem tanto por usuários brasileiros, mas pela entrada de países como a Índia e o Paquistão. Um dos motivos que influenciaram a tomada do Orkut pelos brasileiros foi o fato de, no início, ser preciso de convite feito por outro usuário que já estivesse cadastrado para se tornar membro do site. Conforme Recuero155 “essa característica do convite acabou valorizando a entrada de atores, inclusive com a venda de convites via E-bay”. Diferente de usuários de outros países, os brasileiros mandavam convites com facilidade, convidando qualquer um para se conectar. Isso era motivo de irritação por parte de usuários de outras nacionalidades, “que consideravam o caráter de clube privativo uma parte importante do charme inicial do Orkut” 156 150 . http://www.orkut.com Essa versão oficial do Google é contestada por alguns. Na época, Hempell (2004, online) disse que os fundadores do rafer.net alegavam que o Orkut era “a rede social mais cheia de recursos que já existiu” e que não poderia ser o trabalho de um homem apenas. 152 FRAGOSO, Sueli. Eu odeio quem odeia...Considerações sobre o comportamento dos usuários brasileiros na ‘tomada’ do Orkut. In: XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2006, Brasília. Anais... Brasília, 2006. Disponível em: < http://galaxy.intercom.org.br:8180/dspace/bitstream/1904/20258/1/Suely%2BDadalti%2BFragoso.pdf> Acesso em: 27 jun.2012. 153 FRAGOSO, op. cit., p.2. 154 RECUERO, Raquel. Recuperando a história do Orkut no Brasil. 2008, on-line. Disponível em: http://www.pontomidia.com.br/raquel/arquivos/recuperando_a_historia_do_orkut_no_brasil.html>. Acesso em: 02 jun. 2012. 155 Idem, 2010, p.166 156 FRAGOSO, op. cit., p.8 151 77 Outro importante elemento observado por Recuero157 foram as classificações dos amigos: os corações, estrelinhas, cubinhos de gelo e o “top ten” que existia, pois “todos queriam saber como os amigos os classificavam e assim, era interessante convidá-los”. O criador do site aponta uma combinação de fatores para o sucesso entre o público brasileiro: o primeiro seriam os próprios brasileiros, por serem simpáticos e acolhedores, um povo bonito, e usarem bastante a internet, outro foi o fato de o Orkut ser o primeiro SRS bem-sucedido no país, pois alguns usuários influenciaram seus amigos a se cadastrar no site, os quais convidaram mais amigos; um terceiro fator seria a interface do usuário do Orkut, pois era fácil de usar mesmo para quem não dominava a língua inglesa. E, finalmente, o nacionalismo contribuiu muito para o crescimento do site, uma vez que os brasileiros queriam ser o país com o maior número de usuários então espalhavam a notícia para seus amigos. Dessa forma, houve um crescimento exponencial no país, três meses depois de o site ter sido lançado; em 2007, mais de 50% dos usuários estavam no Brasil158. Como os SRS que o antecederam, no Orkut o usuário é solicitado a preencher algumas informações para ativar o seu perfil, que é dividido em três partes: Social, Profissional e Pessoal. No perfil social ou geral, a pessoa pode falar um pouco de si mesma, além de características como gostos, livros preferidos, músicas, programas de TVs, filmes, entre outros. No profissional, ela mostra a sua profissão, e também informações sobre seu grau de instrução e carreira. A função do perfil pessoal é a de apresentar as características do usuário de forma a facilitar as relações interpessoais. Apresenta informações físicas – cor do cabelo, cor dos olhos, tipo físico etc - e sobre o tipo de pessoa que ela gostaria de se relacionar ou até mesmo namorar/casar. A possibilidade de criar conexões com outros usuários é baseada em links feitos, chamados de “amigos”. No Orkut o número de amigos pode chegar a, no máximo, 1.000 pessoas. Eles podem classificados como: desconhecido, conhecido, amigo, bom amigo e melhor amigo. Os usuários tem também a possibilidade de publicar fotos, para isso são disponibilizados “álbuns”. Recursos populares e amplamente usados no site, as fotografias e também os recados, os famosos scraps, são motivo de alguns recordes do Orkut. De acordo com o blog oficial do site, na véspera do Natal de 2010, os usuários compartilharam 93 157 RECUERO, 2008, on-line. Entrevista de Orkut Büyükkökten a Globo News, em 2007. Disponível em: http://dicasdainternet.wordpress.com/2008/05/09/conhea-o-criador-do-orkut-orkut-bykkokten/. Acesso em: 17 out. 2011. 158 78 milhões de scraps. Depois do ano novo, no dia 3 de janeiro, foram publicadas 1,6 bilhão de fotos159. O que chama a atenção no site, entre outras coisas, são as comunidades. Elas existem aos milhares e atendem a todo o tipo de gosto. Ao fazer um perfil, você pode adicionar comunidades que dizem um pouco sobre você e as suas preferências podem atrair novos contatos. Em algumas delas, é preciso ser “aprovado” pelo moderador, em outras basta adicioná-las para fazer parte daquela tribo. De qualquer forma, é possível ter tantas comunidades quantas forem os seus interesses – o máximo permitido é de mil comunidades -, havendo a possibilidade, inclusive, de criar a sua própria e então atrair adeptos. Os aplicativos e os jogos também são recursos de destaque no site. Jogos como Mini Fazenda, Colheita Feliz e Café Mania são febre entre os usuários chegando a atingir a marca dos 17 milhões de adeptos no caso da Mini Fazenda e 13 milhões, no caso do Café Mania160. Fragoso lembra que logo após o lançamento do Orkut os brasileiros começaram a criar comunidades, sendo a primeira delas “Eu ando com meus pés”. A mais antiga comunidade brasileira e uma das mais ativas contabilizando 549.842 membros em 2006 é a “Brasil”. Esse caráter nacionalista das comunidades continuaria e se tornaria fator decisivo para os usuários brasileiros “tomarem” o Orkut dos estadunidenses. A comunidade que ilustra essa ambição, criada em 2005 é a “Brazilians own Orkut” 161. Em 2010, quase 90% das páginas do Orkut foram consumidas no Brasil, totalizando quase 32 milhões de usuários brasileiros. Apesar de números expressivos, o site está com o índice de crescimento em queda e se não fosse o Brasil seria muito provável que esta rede social deixasse de existir em 2011162. A tabela a seguir ilustra a popularidade do site no país entre os anos de 2009 e 2010, se comparada ao concorrente Facebook, mas indica como em termos mundiais, ele já esboçava baixos índices de alcance. 159 Dados do blog oficial do Orkut. Disponível em: <http://blog.orkut.com/2011/01/o-orkut-continua-crescendodepois-de-7.html> Acesso em: 28 jun. 2012. 160 Ibid. 161 “Brasil é dono do Orkut” (FRAGOSO, 2006, p.7). 162 Dados da ComScore de fevereiro de 2011. Disponível em: < http://pt.scribd.com/doc/48622322/ComScoreSOI-Brazil-Webinar-Feb-2011>. Acesso em: 04 abr. 2011. 79 Tabela 2 - Número de visitantes únicos do Orkut e Facebook entre 2009 e 2010 Fonte: ComScore Media Metrix, dezembro de 2009 e dezembro de 2010 Para não perder terreno para os recém-criados SRS, várias reformulações tem sido feitas no site: já é possível bater papo no Orkut, inclusive por vídeo; ao invés de apenas ler as novidades dos contatos através da visualização das suas atualizações, agora o usuário também pode deixar comentários ao lado das mensagens de status deles ou de suas fotografias e vídeos. As fotografias, aliás, agora podem ser visualizadas em tela cheia e é possível medir a popularidade delas através de um contador que mede as visualizações. Na seção “Quem sou eu”, se as palavras não forem suficientes, é possível adicionar um vídeo, imagem ou aplicativos. Além disso, é possível também ouvir música e compartilhá-la com amigos. Em relação aos recados, eles agora podem ser privados, ou seja, não há mais necessidade de mandar depoimentos quando você só quer que o destinatário veja a mensagem. Embora o site esteja passando por modificações, ele também tem sido alvo de críticas por parte dos seus usuários, basicamente relacionadas com a maneira pela qual as pessoas vem utilizando-o: ao invés de escrever as mensagens, se limitam a copiar imagens com frases prontas, os famosos gifs animados e dessa forma “poluem” o site. Isso somado ao descaso que a equipe do Google vem demonstrando em relação a esse uso tem feito vários usuários deixar o SRS mais famoso do Brasil. Durante o período da pesquisa, testemunhei alguns desabafos de usuários que se diziam indignados e ameaçavam deixar o sistema. Um deles escreveu: Bom dia, Dos poucos sobreviventes do Orkut, são mais poucos ainda os que ainda vem aqui e escreve algumas palavras, o pouco que resta é só aquela lengalenga de sempre, tudo copiado, colado e enviado...Mas esta meia dúzia de pessoas fazem a diferença, por isto ainda não exclui de vez a página que já teve seus dias de glória.. E o mais estranho é que os donos do Orkut 80 parecem que estão satisfeitíssimos com o grande feito do ano...Acabar com tudo e todos...Mando meu abraço (54 anos, Rio Grande do Sul) Percebi, entre os meus informantes, que a euforia dos idos de 2004, quando os brasileiros promoveram a invasão do Orkut, se transformou em insatisfação e estaria levando muitos dos usuários a abandoná-lo. Muitos reclamam da poluição visual, das propagandas e de algumas modificações do site, o que tem causado certos problemas. De forma geral, com a novidade de outro SRS, o Facebook, muitos usuários migraram do Orkut para lá, apesar de na maioria dos casos, as contas não terem sido desativadas. “eu comecei a perceber, de um certo tempo pra cá, que o Orkut tinha virado uma verdadeira bagunça: era foto, aquelas imagens animadas, não tava mais servindo para uma rede de comunicação. Era muita propaganda.”(jornalista, 24 anos, Mato Grosso) “o orkut está meio defasado”( contadora, 24 anos, Mato Grosso) “todo mundo acabou migrando do orkut para o face e muitos abandonaram o Orkut” (artesã, 48 anos, São Paulo) “O Orkut estava ficando às moscas; a maioria dos meus amigos e familiares estão no facebook (radialista, 27 anos, São Paulo). “Meus círculos de amizade migraram para ele. O orkut ficou meio sem graça por isso” (publicitário, 25 anos, Mato Grosso) “Todos os meus amigos e familiares também não utilizam mais e como o intuito é manter contato diário com eles, permaneço apenas no Facebook” (administrador, 24 anos, Paraná) A princípio era a menina dos meus olhos, mas fui tendo que escolher entre ele e o face. E, como meus alunos utilizam mais o face e os amigos vão chegando aos poucos, estou mais assídua nele” (pedagoga, 32 anos, Goiás) Dos 50 entrevistados, 33 disseram preferir o Facebook e usar raramente o Orkut, sendo que alguns nem lembram a última vez que entraram no site e outros já desativaram a conta. Mas, também há os que, mesmo usando os dois sites, preferem o Orkut. Percebi uma aproximação maior e um senso comunitário mais aguçado no Orkut, se comparado ao Facebook. Usuários ativos do Orkut disseram que: “No Orkut o contato é muito mais pessoal. Fiz grandes e preciosos amigos nesse site de relacionamento. Além de poder relacionar-me 81 com pessoas que pensam a vida e os acontecimentos de uma maneira mais séria e profunda”. (professora, 68 anos, Minas Gerais). “embora muitos o vejam como ultrapassado acredito em uma proximidade maior com as pessoas com as quais se relacionam” (bombeiro, 46 anos, Distrito Federal). Dos que preferem o Orkut, alguns argumentam a questão do tempo de uso e da praticidade, mencionam que é “mais fácil mexer”. A identificação com o site também ocorre devido às fotografias, comunidades e os jogos. São esses dois últimos que mantém muitos usuários no site, como relatado: “O Orkut eu mantenho por causa de alguma comunidade que faço parte referente à artesanato, mas já não mantenho contato com mais ninguém por lá”.( artesã, 48 anos, São Paulo) Eu tenho dois orkuts, o Orkut que é o que você está adicionada, eu só mantenho ele assim porque ele é muito antigo, de quando eu entrei para a internet que eu fiz. Então tem muitas pessoas ali que são amigos, que são de outras cidades que eu morei, conhecidos, parentes, tal. Então eu gosto dele por causa das fotos, pelas fotos, e também comunidades (...). Gostoso participar de comunidades. Eu não sou uma participante ativa de comunidades, eu sou mais uma observadora, gosto de aprender, ler alguma coisa e tal ( ...).Mas, então, e o outro Orkut eu mantenho ele pra jogar mini fazenda, que também já tô enjoada, mas... (professora, 59 anos, Mato Grosso). “prefiro o Orkut em função das comunidades” (empresário, 48 anos, Espírito Santo). “Na verdade, o Orkut teve alguns anos atrás que eu usava bastante, recebia muitas mensagens e também retribuía, mandava muitas mensagens. Só que depois, com o tempo, foi ficando difícil pra eu usar, falta de tempo mesmo, né. Então, aí chegou num determinado momento que nem sequer responder as que eu recebia eu respondia. Então ultimamente o Orkut o que eu entro realmente é mais por causa dos joguinhos lá que eu gosto.” (secretária, 53 anos, Paraná) A questão de o laço ser mais forte entre os usuários do Orkut também foi explicado pelo fato de lá as pessoas serem mais “simples” que no Facebook, além de estarem envolvidas numa relação de amizade mais “profunda”. Segundo alguns usuários dos dois sites: “as pessoas do face são ou pensam que são mais inteligentes.Um exemplo, no face alguns fazem questão de dizer: hoje vou jantar no restaurante mais caro da cidade.Lá (no Orkut) as pessoas são bem 82 mais simples. Pena que falo pras paredes quando peço para pararem de me enviar scraps gigantes, sem play e tirados de comunidades, piscando um monte” ( motofretista,54 anos,Rio Grande do Sul) “Não gosto muito do Facebook. É muito pueril e a comunicação é muito superficial. Gosto de relacionamentos mais profundos”. (68, Minas Gerais) “eu acho que o Facebook expõe muito, muito”. (59, Mato Grosso) “vejo o face como modismo onde postam coisas que muitas vezes não tem a ver. Não me simpatizo com a forma como muitos utilizam, postam coisas do tipo: “estou saindo agora pra trabalhar, acabei de chegar do trabalho muito cansado... não me interessa pra onde você vai o que fez, o que vais fazer. E no Orkut te desejo um bom dia, uma boa semana um bom feriado coisas do tipo que você recebe também. (46, Distrito Federal) Conhecer pessoas de outros locais e travar uma amizade virtual é comum entre os usuários do Orkut e os laços afetivos criados a partir daí são fortalecidos quando acontece um encontro físico, o que me foi relatado nas entrevistadas, sobretudo dos homens. Quase todos os meus informantes do sexo masculino já conheceram fisicamente quem apenas conheciam virtualmente. No total, 21, dentre os 25, responderam que marcaram de se encontrar ou então acabaram conhecendo a pessoa acidentalmente. Às vezes eram pessoas de outras cidades, e eles programaram de se ver, em outras eles mesmo viajaram e acabaram marcando de se encontrar. Uns dizem que fazem questão de conhecer ao vivo os amigos virtuais, e vários se mostram cuidadosos: conversam muito antes, às vezes até pela webcam, e só depois marcam de se encontrar. Em alguns casos, o encontro foi sexual. E a maioria ainda mantém contato com essas pessoas, alguns viraram amigos, tem um que foi até no casamento de uma “amiga virtual”. Trago aqui alguns comentários feitos: “sempre que vou a uma cidade que tenho amigos virtual que queiram me conhecer procuro para conhecer pessoalmente ou mesmo em minha cidade” (54 anos, Mato Grosso do Sul). “várias pessoas, numa viagem ao Rio, recente, foi um exemplo, nos encontramos no aeroporto, e também conheci várias pessoas aqui na cidade onde moro, alguns de encontros casuais na rua mesmo sem combinar seguidamente encontro algumas nas ruas ainda” (54 anos, Rio Grande do Sul). 83 “nos encontramos em um shopping logo depois aconteceu, ficamos( tivemos relação sexual)” (26 anos,Portugal). “Desde a época de colégio...alguém que sabia que existia, mas não tinha um contato mais próximo, e a ferramenta da internet acabou auxiliando. Já também de se encontrar em festa.. ou até mesmo acabar se encontrando sem marcar, por ser amigo em comum, e dai acabar conhecendo pessoalmente” (26, Mato Grosso do Sul). “marcamos e nos encontramos, foi muito bom tanto pra mim quanto pra outra pessoa. Em outras oportunidades ficou só na amizade mesmo” (46, Distrito Federal). “uma amiga de Fortaleza veio a BH para me conhecer e tivemos grande prazer em nos conhecermos pessoalmente, sempre lembrando 'os olhos são as janelas da alma', como diz 'Leonardo da Vince', nos encontramos numa praça de alimentação de um shopping central e por lá começamos os passeios e trocas de lembranças” (68, Minas Gerais). “aham, a pessoa veio aqui em Cuiabá e eu fui pra São Paulo também” (29, Mato Grosso). “Já, várias pessoas; Quando morava no interior, era mais fácil encontrar na rua, sem precisar combinar. Aqui em Curitiba, conheci algumas pessoas combinando” (24, Paraná). “eu não sou de marcar assim, procuro sempre entender as ocasiões, eu tive a oportunidade de conhece uma pessoa que mora em São Paulo aqui em Recife, até hoje somos amigos” (44, Pernambuco). “assim, nada romântico não, era um amigo que eu fiz pela internet. conversávamos bastante por cerca de 1 ano, 1 e meio... aí bem por acaso eu mudei para a cidade dele, acabei chamando ele pra ir tomar um café e conhecer o cara... foi bem legal, hoje moramos longe de novo, mas somos muito mais amigos”(25, Mato Grosso) “sim, marcamos por telefone... só serviu pra fortalecer a amizade e se tornar real...” (58, Rio de Janeiro) “bem, tenho 5 experiências, 2 vieram conhecer eu e minha família em casa 1 fomos a casa dela eu e minha família e 2 foram relacionamento digamos sexuais somente eu né, rsssrsrs..isso no passado viu, todos só ocorreram depois que nos vimos pela web e depois de muitos diálogos” (36, Bahia) Entre as mulheres, apenas nove conhecerem fisicamente algum amigo feito pelo Orkut. O que observei é que há muito cuidado e preocupação em relação a estranhos, às vezes 84 até medo. “Nunca fui disso”, revelou uma delas. Outras disseram não usar o site para conhecer pessoas novas, apenas para contato com amigos e familiares. Das que já passaram pela experiência, uma faz parte de um grupo de portadores de doenças reumáticas, cujo nome veio dessa vontade do encontro físico: “ENcontrAR”, encontro de pessoas com artrite reumatoide. “todo mês depois de dois anos nas redes sociais resolvemos se encontrar pessoalmente, daí surgiu o nome. As redes sociais nos impediram de ficar no isolamento e servem de autoajuda pela possibilidade de rapidamente conhecer alguém como a gente”. (31, São Paulo) Outra informante, cujos filhos sofrem de uma doença genética, também disse que os SRS a ajudaram a encontrar pessoas que estão na mesma situação e outras que, apesar de não ter nada a ver com a doença, foram solidárias e hoje são amigas. “Assim que eu soube da doença deles, aqui eu encontrei muitos amigos com a mesma situação. Muitos eu já conheci pessoalmente, mas muitos ainda não. E através disso ali eu conheci muita gente que não tinha nada a ver com a doença, mas que viraram amigos verdadeiros”. (46, Santa Catarina). Em relação à faixa etária dos que preferem o Orkut, constatei, através da netnografia conduzida, que, se comparados aos que preferem o Facebook, de forma geral, eles são mais velhos. Muitos dos que já desativaram ou não usam mais o primeiro SRS que fez sucesso no Brasil estão na faixa dos 20 anos, enquanto os outros têm entre 40 e 60 anos. Outra característica interessante é que os usuários do Orkut, mesmo aqueles que não o utilizam mais, tem mais fotografias por lá se comparado ao número das publicadas no Facebook. 1.2 Facebook, mania mundial: curtiu? O Facebook163 nasceu em 4 de fevereiro de 2004, na Califórnia, tendo como criador Mark Zuckeberg e seus colegas de quarto da época de faculdade Dustin Moskovitz, Chris Hughes e o brasileiro Eduardo Saverin. Hoje é o SRS mais popular do mundo, com um bilhão 163 www.facebook.com 85 de usuários164. Em relação a um elemento importante do site, as fotografias, elas já são 219 bilhões. Se fosse um país, o Facebook seria o terceiro maior do mundo165. Apesar de ter sido lançado no mesmo ano do Orkut, o Facebook não obteve sucesso tão rapidamente no Brasil. Na verdade, o ano de 2004 marca a criação do site somente para os estudantes de Harvard, e naquela época ainda se chamava “TheFacebook”. Ele virou hit entre os universitários, que podiam visualizar o status de relacionamento dos usuários. Ainda em 2004, atingiu a marca de um milhão de usuários166. Foi só em setembro de 2005, segundo Boyd e Ellison, que o site passou a aceitar usuários de fora do universo universitário. E apenas em 2008 que ganhou uma versão em português. Entre os anos de 2009 e 2010, o Facebook atingiu um crescimento de 295%, enquanto o Orkut, apesar de ainda liderar o ranking das SRS no Brasil, crescia apenas 28%. Os gráficos abaixo sinalizam o crescimento dos sites no Brasil e no mundo entre 2009 e 2010, com grande ênfase para o sistema de Zuckerberg. Gráfico 2 - Percentuais de crescimento do Orkut e do Facebook no Brasil e no mundo, de 2009 a 2010 Fonte: ComScore Media Metrix, dezembro de 2009 e dezembro de 2010 Atualmente, segundo dados do site de pesquisas “Social Bakers”167, o Brasil é o segundo país em número de usuários do Facebook, com mais de 53 milhões de pessoas que 164 Galileu. O tamanho do Facebook. Disponível em: <http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI321188-17770,00INFOGRAFICO+O+TAMANHO+DO+FACEBOOK.html> 165 Technology review. What Facebook knows. Disponível em: <http://www.technologyreview.com/featuredstory/428150/what-facebook-knows/> Acesso em: 30 jul. 2012. 166 Globo.com. O perfil do Facebook. Disponível em: <http://g 1.globo.com/platb/o-perfil-do-facebook/#a2004.> Acesso em : 03 jun. 2012. 167 Disponível em: < http://www.socialbakers.com/facebook-statistics/brazil> Acesso em: 31 jun. 2012. 86 usam a rede social ativamente. Em relação à penetração no país, o número de usuários representa 25,45% da população. Há pouco tempo, o Brasil ultrapassou a Índia. Abaixo, a lista dos 10 países mais populosos no Facebook e na sequência os dados relativos ao Brasil. Tabela 3 - Relação dos 10 primeiros países em número de usuários no Facebook Fonte: Social Bakers Tabela 4 - O Brasil no Facebook Fonte: Social Bakers Em relação à faixa etária dos usuários do Facebook, a maioria é jovem, com idades entre 18 e 24 anos. O gráfico a seguir mostra as porcentagens das idades no site no Brasil. 87 Gráfico 3 - Distribuição de usuários do Facebook no Brasil por idade Fonte: Social Bakers O Facebook funciona através de perfis e comunidades e também aceita o acréscimo de aplicativos – jogos, ferramentas. Esse é um recurso que o diferencia dos demais SRS, “a habilidade de desenvolvedores de fora de construir aplicativos que permitem aos usuários a personalização dos perfis, além do desempenho de outras tarefas tais como comparar preferências de filmes e mapear histórias de viagens”168. Por ser originalmente dirigido a universitários, um requisito importante na hora de configurar o perfil é o nome da instituição educacional de origem. É isso o que acompanha o nome do usuário quando procurado no sistema, bem como o nome da empresa onde trabalha. Isso certamente influencia o tipo de público, bem como o conteúdo por ele publicado no site. Um dos aspectos que me pareceu revelador entre os dois sites é o comportamento dos usuários quanto às suas publicações. Se no Orkut eu recebia scraps e montagens com alguma mensagem a todo momento, o que fez meus recados aumentarem de cerca de 200 no início da pesquisa, para mais de mil no momento em que escrevo essas linhas, no Facebook dificilmente recebo alguma coisa dos sujeitos analisados. O que as pessoas fazem mais frequentemente é escrever em seus murais algo relacionado ao seu dia, como num diário, ou fazer referência a alguma matéria jornalística, música, blog e afins. Os recados parecem só ser 168 BOYD e ELLISON, op. cit., p.7 88 enviados aos que se conhece bem, àqueles com quem se tem algum relacionamento fora do site. E isso também é possível visualizar, uma vez que toda vez que contatos da mesma rede trocam mensagens, elas automaticamente aparecem na listagem das atualizações. Conforme Recuero169,o Facebook é visto como mais privado que os outros SRS, pois apenas os usuários que fazem parte da mesma rede podem ver o perfil uns dos outros. Entre os meus informantes também percebi isso. Um deles, uma jovem de 18 anos que atualmente tem conta apenas no Facebook, me explicou o porquê da decisão: “acho o facebook mais privado, quando eu tinha orkut tinha gente que pegava minhas fotos e abria outro orkut com nomes diferentes”.(18 anos, Mato Grosso) A ênfase dada ao Facebook é para as relações off-line, portanto já existentes. Ele seria uma extensão on-line para contato com essas pessoas. Isso fica claro em um slogan da empresa: “No Facebook, você pode se conectar e compartilhar o que quiser com quem é importante em sua vida”. Sobre isso, Boyd e Elisson e também Ryan concordam. Elas dizem, respectivamente, que: Ellison, Steinfield, and Lampe (2007) sugerem que o Facebook é usado para manter relações offline existentes ou solidifcar conexões offline, e não para encontrar pessoas novas. Essas relações podem ser do tipo “laço fraco”, mas há algum elemento offline comum entre os indivíduos que adicionam um à lista do outro, como por exemplo, a mesma sala de aula na escola170. (tradução livre) Aqueles com quem um usuário tipicamente interage no Facebook são naturalmente pessoas que ele vê e interage de forma regular offline, na escola, no trabalho, ou em comunidades geográficas. Uma vez que os perfis das pessoas são, de forma padrão, somente visíveis dentro dessas redes articuladas, o site instaura uma sensação de privacidade e confiança171. (tradução livre) 169 RECUERO, 2010, p.172. Ellison, Steinfield, and Lampe (2007) suggest that Facebook is used to maintain existing offline relationships or solidify offline connections, as opposed to meeting new people. These relationships may be weak ties, but typically there is some common offline element among individuals who friend one another, such as a shared class at school. (BOYD e ELLISON, 2007, p.10). 171 Those with whom one typically interacts on Facebook are usually people one also sees and interacts with on a regular basis offline in her school, workplace, or geographic communities. Because people’s Profiles are by default only visible to those within these articulated networks,the site instills a sense of privacy and trust. (RYAN, 2008, p.16). 170 89 O fato de os usuários desse site se relacionarem com contatos já conhecidos fica evidente nas respostas obtidas durante a pesquisa. Muitos revelam, inclusive, que é esse o motivo de manter o site e também de publicar fotos. “Apenas entrei no Facebook porque encontrei meus parentes da Grécia procurando pelo sobrenome no Google.” (27, Mato Grosso). “Para que os parentes distantes ou amigos acompanhem minhas novidades.” (27, São Paulo). “ter mais contato com quem conheço mesmo e acabamos perdendo contato.” (48, São Paulo) “Reencontrar pessoas da infância, fácil acesso à minha família que mora longe, resolver coisas da faculdade pelo bate-papo.” (24, Mato Grosso) “para manter contato com familiares e também com o povo da faculdade já que a forma mais rápida de saber as notícias como prova, trabalhos.” (24, Mato Grosso) “mais para acompanhar o que meus amigos tem feito, o que tem pensado, e para fazer o mesmo, compartilhar de ideias, pensamentos, comunicar-se com pessoas, encontrar pessoas, manter contato.” (26,Mato Grosso do Sul) “para fazer visitas, pelo menos virtual, manter contatos.” (61, Rio de Janeiro) “é a forma que eu achei mais fácil de se compartilhar fotos e situações felizes com pessoas queridas que não podem estar perto, como amigos e familiares que moram longe, e ao mesmo tempo compartilhar minha vida com meus amigos que estão por perto pois acredito que esse meio me permite ser sociável e criar contatos para relacionamentos sociais e profissionais.” (20, Mato Grosso) Há também os que utilizam o site para reencontrar pessoas que há anos não veem. Um exemplo disso foi o que me relatou um estudante que atualmente mora em Mato Grosso do Sul: “Encontrei amigos da época de colégio de quando eu morava em Juína, até a quinta série, ‘amiguinhos’ próximos, que sem dúvida foi 90 algo muito interessante, hoje compartilhamos de historias de tempos atrás”. Apesar de a grande maioria falar em contato com amigos e familiares, ou seja, com pessoas com quem já tem um envolvimento off-line, me deparei com sujeitos cujo motivo maior em manter as contas nos sites é o de conhecer pessoas novas, fazer novas amizades. Um gaúcho espontâneo que conheci via Orkut, mas que também mantém um perfil no Facebook, me deu a seguinte explicação: Eu: então costuma adicionar estranhos? Jorge: sempre adiciono Eu: tem algum critério para aceitar o convite de um estranho? Jorge: só para amigos e parentes não preciso de uma rede social, entende? Como no Orkut, há várias formas de interação. Além das fotografias, existe uma ferramenta muito utilizada no site: o botão “curtir”. Do inglês “like”, ele foi criado em 2009 para que os usuários “curtam” as publicações uns dos outros. Ele atua como um vetor de identificação, uma vez que clicando-o você assume que pensa como aquela pessoa, que tem interesses semelhantes e isso te aproxima. Também há a possibilidade de compartilhar aquilo que alguém publicou e cujo conteúdo te agrada. As possibilidades de interação ainda incluem os recados escritos no Mural de seus contatos, o chat e as mensagens, que tem a mesma função dos depoimentos no Orkut: são opções privadas de enviar recados. Enfim, o que as pessoas querem mesmo é estar em correspondência, falar umas com as outras através de seus teclados ou celular. Além dos exemplos citados anteriormente, os comentários aparecem como importantes ferramentas de interação. No bate-papo que tive com os usuários, percebi o quanto eles são importantes e desejados. Algumas declarações mostram essa necessidade e ressaltam que os usuários, por vezes, publicam material movidos pela possibilidade de receber comentários. Um dos homens entrevistados foi irônico ao destacar a importância dos comentários: Eu: E gosta de receber comentários? Bruno: Ah, quem não gosta né? (risos) porque que a gente posta? Foto, vídeo, etc? pra receber comentário, (risos). 91 Uma artesã que utiliza os sites de redes sociais para contato com amigos e familiares e também para divulgar seus produtos, revelou o motivo pelo qual publica conteúdos nos sites: Eu: Quando publica algo – foto, vídeo, texto... – o faz pensando em quem? Márcia: em quem vai ver, ou seja todos do meu grupo de amigos Eu: sim, então se preocupa com eles, com o que vão achar, pensar... Márcia: coloco sempre achando que todos vão curtir e comentar A preocupação com os outros é clara na fala de outra entrevistada, uma estagiária: Eu: Quando publica algo – foto, vídeo, texto... – o faz pensando em quem? Ana Caroline: se os meus amigos vão gostar, curtir... Eu: aham, então pensa neles antes de publicar algo Ana Caroline: sim!!! Se vão gostar Os comentários são um feedback importante para os usuários dos sites. Um deles, um aposentado de 63 anos, usuário apenas do Orkut, afirmou que os comentários dão visibilidade à pessoa que publicou algo: Eu: Gosta de receber comentários? Armando: Com esse Orkut, correndo além da minha velocidade, estou tendo dificuldades em vê-los, rsrs. Eu: rs! Mas gosta? Armando: Sim. Significa que não estou invisível. E apesar da preferência por comentários elogiosos, alguns afirmam que qualquer manifestação é válida, como essa enfermeira, usuária dos dois SRS pesquisados: Eu: E gosta de receber comentários? Iraci: Gosto muito, mesmo que sejam críticos, dependendo de quem for a crítica/elogio, sei o que devo melhorar, e de que forma as pessoas estão me vendo, muitas vezes eu não passo a mensagem que quero, isso porque dependo do olhar da outra pessoa. Enfim, as conversas geradas pelos comentários são pertinentes porque cumprem com a noção de interagir e de “falar” com o outro, ainda que virtualmente. Isso, aliás, foi o que motivou os criadores do Orkut e do Facebook a lançar um sistema onde o foco é a interação. Para o engenheiro turco do Google cujo site que criou leva o seu nome, Orkut Büyükkökten, 92 “costumamos conhecer pessoas através de amigos e da rede de amigos deles. Foi assim que tive a ideia de uma rede social na internet” 172 . Mark Zuckerberg, do Facebook, diz que “as pessoas querem compartilhar e ficar conectadas com seus amigos e as pessoas ao seu redor.” 173 . Mesmo em outra dimensão da realidade, é possível estar em comunhão com o outro. Em frente ao écran dos seus computadores, os usuários trocam informações, colaborações, jogam conversa fora e vivenciam a experiência on-line da socialidade. Agora estamos pegando a bagagem que havíamos deixado no meio da estrada: o jogo, a festa, o lúdico, o imaginário retomam vigorosos e se apresentam com força nos SRS. A propósito da importância dos sites, uma professora aposentada disse: “as redes sociais são muito importantes. Como animais gregários, temos necessidade de pertencer a grupos”. 2 Chegando aos dados Se me fosse necessário sintetizar o que vi dentre os perfis, diria uma repetição na feitura e configuração dos mesmos. Em relação às fotografias, o usuário se mostra nas repetições de tórax nus, decotes abertos, cochas, cabeleiras. Esconde partes do corpo para se desvelar noutras, com óculos escuros, com chapéus, com sombra e luz de photoshop. Emolduram-se com flores, com bichos, com arabescos, em slideshows, em capas de revistas, em outdoor. Trazem fotografias antigas, de quando eram crianças e lembranças dos já falecidos. Trazem tomadas com seus carros, suas casas, suas motos, seus barcos, suas bicicletas. E seus saxofones, suas teleobjetivas, seus computadores, seus pianos, suas violas. Seus enquadramentos de viagens, de formaturas, de casamentos, de baladas, de almoços e ceias de festa. Abraçam-se com o companheiro, o compadrio, a parentela, os filhos, os sobrinhos, os bebês. Cercam-se de amigos, de colegas, de autoridades, de notoriedades. A partir deste cenário, algumas categorias emergem: Família, Amigos, Viagens/passeios, Festas, Eu, Montagens. Não que existam fotografias de cada tipo nos 172 Entrevista disponível em: < http://dicasdainternet.wordpress.com/2008/05/09/conhea-o-criador-do-orkutorkut-bykkokten/>. Acesso em: 17 out. 2011. 173 “People want to share and stay connected with their friends and the people around them.” Cf. em The Facebook Blog. Disponível em: <http://www.facebook.com/blog.php?post=391922327130>. Acesso em: 13 mar. 2012. 93 álbuns de todos os observados, mas essas categorias são as que mais se repetem quando analisados todas as imagens. E há algumas peculiaridades de acordo com o site analisado. Em geral, homens e mulheres têm mais fotografias no Orkut – como citado anteriormente. E uma das temáticas mais comuns por lá é a montagem. Há fotografias de outros tipos também, mas as montagens aparecem copiosamente. Não apenas nas fotografias. Eu mesma recebo diariamente mensagens automáticas feitas a partir de montagens. Algumas delas trazem uma foto do remetente, além de figuras e desenhos. De certa forma, os álbuns aparecem mesclados. Há fotografias de viagens, e aí aparecem paisagens, a natureza juntamente com imagens pessoais, diante daquele cenário. Noutras aparecem a família em momento de descontração, os filhos, o par, os amigos, o trabalho. São os álbuns intitulados “Diversas”, “Fotos variadas”, “De tudo um pouco”, “Tudo junto e misturado”. Às vezes, logo no Quem Sou Eu do perfil a linguagem verbal perde espaço para o texto não verbal das fotografias. São imagens que apresentam o usuário logo na capa dos seus perfis. Com elas, os usuários miram e se deixam mirar, tanto ou mais do que nas palavras. A fachada apresentada, de forma geral, transmite um cuidado com a aparência, onde as pessoas aparecem sempre bem arrumadas, penteadas, vestidas, maquiadas, num cenário que também é previamente escolhido. As figuras 2, 3, 4 e 5 a seguir exemplificam o uso de fotografias logo na descrição do usuário. 94 Figuras 2, 3, 4 e 5 - Páginas principais do Orkut 95 Apesar de muito se falar nos perigos da internet e dos SRS no que tange a apresentação de informações, as pessoas não deixam de publicá-las. Ao criar um perfil, elas disponibilizam dados pessoais, revelam gostos e visões de mundo e se mostram aos demais usuários através dos álbuns publicados. Mas há um cuidado anterior a exposição, uma 96 espécie de ritual que precede a interação, uma vez que antes de adicionar alguém sempre buscamos referências a partir do que é mostrado. Em relação à imagem de perfil, também há cuidado. Talvez até mais do que nas fotografias dos álbuns, pois é ela quem vai localizar o usuário quando de uma busca no site. Ela está sempre visível, é pública, diferente das imagens dos álbuns, que podem ser configuradas de modo a eleger quem poderá visualizá-las. Se, como confirma Goffman, “na vida cotidiana, por certo, há uma clara compreensão de que as primeiras impressões são importantes”, diria, sem rodeios, que as primeiras impressões são ainda mais importantes na internet e nos sites analisados, pois, diferente do contato físico, que engendra diferentes elementos interacionais, como a fala e os gestos, nos SRS o contato comunicacional é precedido de uma avaliação da imagem do usuário. O cuidado com a “cara”, portanto, é importante. Quando perguntados sobre a relevância da aparência nos sites, as respostas dos informantes foram parecidas: (...) nesses sites de relacionamento diria que é primordial ter uma boa aparência pois ninguém estará interessado em parar para conversar contigo e desfazer a má impressão q teve com vc. (21 anos, estudante). “Temos que estar bem na foto, se nos sentimos feia a foto já não vai. Acho que a grande maioria se preocupa em ter uma aparência boa”. (26 anos, fisioterapeuta). “eu acredito que sim! Tanto que quando você está com uma fotinha bonitinha aparece um monte de gente, se coloca uma foto meio estragadinha não aparece ninguém!” (23 anos, jornalista). “Se eu me achar feia em uma foto jamais postaria”. (25 anos, administradora). “contribui muito quem esta vendo, então deve-se ter um boa aparência.” (44 anos, eletricista). A próxima página traz uma sequência de fotografias de perfil de alguns dos sujeitos analisados, tanto do Orkut quanto do Facebook. Elas são elementos da fachada apresentada por cada um e por isso o cuidado em escolhê-las. Os usuários aparecem sempre bem vestidos, geralmente sorrindo, num cenário previamente escolhido. 97 1- Fotografia de perfil 2- Fotografia de perfil 3- Fotografia de perfil 4- Fotografia de perfil 5- Fotografia de perfil 6- Fotografia de perfil 7- Fotografia de perfil 8- Fotografia de perfil 9-Fotografia de perfil 10- Fotografia de perfil 11- Fotografia de perfil 12-Fotografia de perfil 98 Dentre todas as maneiras de autorrepresentação fornecidas pelos sites – dados do perfil, mensagens, vídeos, comentários... – as fotografias parecem melhor ilustrar a questão da fachada criada. A imagem de perfil, por exemplo, é quase sempre retocada, cortada, de modo a tirar de cena o que não pode ser visto, ressaltando o que deve melhor aparecer: o usuário, em seu mais perfeito close-up. Alguns me confessaram já ter utilizado uma fotografia falsa como imagem de perfil. Um deles, um motofretista, explicou que isso aconteceu apenas uma vez, logo que criou a conta no Orkut, e que o fez por vergonha de sua própria fisionomia, colocando uma foto de outra pessoa parecida com ele: “até os conhecidos pensavam que era eu, mas deixei a foto só uma semana, depois encarei a real; agora não me envergonho mais”. Um servidor público disse que já colocou uma foto de um ator norte-americano que se parecia com ele na sua foto de perfil, mas “só por diversão”. Logo foi desmascarado por seus contatos, que não acharam semelhança entre os dois. Além deles, uma artesã também admitiu já ter utilizado uma fotografia forjada na imagem de perfil. No caso, a foto era dela, mas numa montagem em que “vc só encaixa o rosto e fica perfeita, kkk”. Ela conta que ninguém notou e que também fez só por diversão. A ideia de colocar uma imagem falsa no perfil ratifica o desejo, já exposto por Goffman, de tentar parecer melhor do que somos. Nesse esforço de produção, moldamos uma imagem social a fim de dar a “melhor impressão”, apresentando-nos sob uma luz favorável. A fachada apresentada é fruto do desempenho do participante, o que para Goffman equivale a toda a atividade que sirva para influenciar, de algum modo, os outros participantes. Nesse sentido, a fachada não é somente a “cara”, em sentido estrito. Ela é algo difuso e diz respeito à linguagem de uma forma geral. Assim, ao observar os perfis de alguns usuários, percebi que o cuidado com a fachada era visível não só nas fotografias, mas nas postagens escritas, na escolha das palavras e no português correto. Alguns perfis eram de professores, pedagogos, jornalistas, advogados, o que implica uma expectativa maior, por parte dos demais usuários, em relação à fachada exibida. Nessas situações, há uma institucionalização da representação, uma “representação coletiva”, à maneira de Goffman. O que significa que a fachada precede o papel assumido pelo ator. Isso acontece, segundo o autor, porque quando projetamos uma definição da situação, ou seja, quando apresentamos uma fachada, nós exigimos que os demais nos valorizem e nos tratem da maneira que aquele tipo de pessoa tem o direito de esperar. Esse princípio está ligado a outro que diz que “um indivíduo que implícita ou explicitamente dê a entender que 99 possui certas características sociais deve de fato ser o que pretende que é” 174. É aí que acontecem as surpresas desagradáveis como a do indiano e da mineira relatada anteriormente. Ao encontrar um amigo virtual fisicamente espera-se que o seu desempenho seja compatível com a fachada apresentada em seu perfil. Alguns relatos que obtive dos sujeitos analisados confirmam essa perspectiva. No caso abaixo a falsa representação de um usuário fez com que a relação de amizade terminasse. Karina: Você já conheceu fisicamente alguém que só conhecia virtualmente? Ronaldo:Sim Karina: como aconteceu? marcaram de se encontrar? Ronaldo: Sim Karina: e foi como o esperado? Ronaldo: Sim com uns, não com outros Karina: por quê? mentiram? Ronaldo: Sim e não Karina: como assim? Ronaldo: Alguns foram legais, outros não e sim ocorreram algumas mentiras. Karina:e ainda conversa com eles? Ronaldo: Com quem não mentiu sim Em outro caso, apesar de a fachada virtual não ser a mesma da física, a amizade ficou mais forte depois do encontro: Izilda: essa Izilda, pelas fotos, pelas queixas de família, ela, porque tem pessoas que coloca tudo né, a vida exposta né, Karina: sim Izilda: eu tenho amiga que coloca tudo, tudo, tudo, ela o relacionamento com o marido dela, ela sempre colocou tudo no Orkut, né, coisa que jamais eu faria também né, imagina! rs.... Karina: risos Izilda: coisa tão íntima. Aí tudo ela ia lá e colocava. Então né eu tinha uma impressão de que ela era uma pessoa muito sofredora Karina: entendi Izilda: a impressão quando eu conheci ela era de outra pessoa, ela tinha um rosto alegre, sabe, ela tem aquele jeito doce, aquela cara, aquele contato macio gostoso, aquele contato bom Karina: aham Izilda: eu fazia uma ideia totalmente diferente né...gostei, eu gostei muito, mais ao vivo Karina: legal! E vcs até hj mantém contato? 174 GOFFMAN, 1985, p.21. 100 Izilda:sim, mantemos contato. Ficou de ela vir pra minha casa passear né, mas aqui é longe... Mesmo que o usuário adicione um estranho e nem chegue a conhecê-lo fisicamente, ele vai procurar se informar acerca de sua fachada. É o que fica claro na conversa com uma mãe cujos filhos têm uma doença genética, a fibrose cística. Ela utiliza o Orkut e o Facebook para conhecer e manter contato com outros portadores da doença, ou com gente que não tenha qualquer ligação com ela, mas com cujo desempenho ela se identifique. Karina: e aí, como é que foi assim, que você adicionou? Porque se a pessoa é estranha à você, teve algum critério pra adicionar no seu perfil? Rita: alguns eu peguei, eu fui numa comunidade de fibrose cística e escolhi alguns e adicionei. Karina: e aí, mais ou menos, como que você escolheu, teve algum critério? Rita: Não, eu fui... a hora que o coração bateu na foto, falei na hora: esse vai. Karina: mas, você deu uma andada assim, pelos álbuns? Rita: Sim, olhei, o álbum, olhei o que estava escrito, olhei os recados pra ver se era....teve alguns que eu olhei e não adicionei, não gostei. O fato de ela não ter adicionado alguns contatos por não ter gostado do que viu pode estar relacionado com a ideia de que o ator em questão não cuidou bem da sua cara e expôs uma fachada que, em geral, não foi compatível com as expectativas. Nesse caso, e como sugeriu Goffman, a partir da conduta e aparência do indivíduo, o observador pode obter “indicações que lhes permitam utilizar a experiência anterior que tenham tido com indivíduos aproximadamente parecidos ou, o que é mais importante, aplicar-lhes estereótipos não comprovados”175. Os problemas relativos à falsa representação não acontecem apenas quando pessoas estranhas que se conheciam apenas através dos SRS se encontram fisicamente. Muitas vezes, mesmo ao manter contato com amigos ou contatos com os quais já se tem um relacionamento off-line há desconfiança diante da fachada apresentada. Isso em relação aos outros porque dificilmente alguém suspeita de sua própria representação on-line. 175 Ibid., p.11 101 2.1 A Fachada virtual Dentre todas as pessoas com as quais conversei e cujos perfis nos SRS Orkut e Facebook eu xeretei, apenas dois homens acreditam que seus perfis não correspondem à maneira pela qual se enxergam. Um deles falou que o perfil é apenas uma visão idealizada de si, tal como Goffman preconiza. (...) acredito que, quando nos descrevemos em redes sociais, tentamos apresentar ao máximo - mas de uma maneira insuspeitável - nossa visão idealizada de nós mesmos. Eu, por exemplo, quem dera fosse apenas um jovem jornalista que tem uma bela namorada, amigos fantásticos e curte altas viagens à Europa. Eu não coloco meus problemas e meus defeitos ali. Acredito que ninguém faça isso conscientemente. (...) meu perfil está muito longe de quem eu sou na vida real. Há um filtro muito seletivo que gerou aquele perfil, mas isso não vale só pra mim. O outro, um jovem de 27 anos, diz que o perfil o mostra parcialmente, representando seus gostos e costumes, o que corresponde a um recorte da realidade, apenas uma parte dela. Todos os demais 48 sujeitos analisados acreditam que o seu perfil é um a expressão daquilo que são e fazem e o que publicam diariamente ali é verdadeiro, porém algumas declarações mostram um claro desejo de melhorar a aparência nos sites. Uma das entrevistadas fala em marketing pessoal. “Meu perfil é autêntico, mas, uso atributos com objetivo de aperfeiçoar meu marketing pessoal”. Outro confirma ser o perfil uma extensão do que é, mostrando ali fotografias do trabalho. No entanto, em seus álbuns o que se vê são imagens em rodeios e montarias, mostrando uma atividade que gosta, mas que não corresponde à sua profissão de metalúrgico. Em outro caso, um homossexual garante que não esconde nada em seu perfil, nem mesmo sua opção sexual. Porém numa passeada por seus ábuns não encontrei nenhuma imagem em que ele esteja acompanhado de alguém, de mãos dadas ou mesmo aos beijos. Mesmo sem me relatarem isso, percebo que há certo pudor naquilo que tornam público. Um dos usuários analisados disse que o seu perfil corresponde ao modo como ele se enxerga, mas que em relação aos outros percebe uma brecha entre aquilo que são, de fato, e o que publicam nos sites. Ele percebe um gerenciamento da impressão representado pelas fotografias alheias ao afirmar que as pessoas publicam apenas o “melhor” de si, mas parece não identificar esse comportamento em relação a ele próprio. 102 Eu: o seu perfil, nos dois sites, representa o modo como você se enxerga? Luis Antônio: O modo que eu me enxergo, mas muitas vezes não o modo com que eu vejo as pessoas, principalmente aquelas que conheço bem. Eu: Como assim?Você diz do modo que você vê as pessoas ao olhar o perfil delas? Luis Antônio: Sim, as pessoas tem a opção de apresentar aos demais muitas vezes o que elas acham “de melhor”... Eu: não reconhece as pessoas, seria isso? Luis Antônio: Não é isso, apenas a forma de que alguns se expõe na rede social Eu: entendi...então você acredita que as pessoas se escondem mais do que se revelam nesses sites? Luis Antônio: e difícil falar isso, mas sem dúvida que expõe apenas o que ela acha que a sociedade (rede social, grupos de amigos) vai aceitar melhor. De forma semelhante, uma informante acredita que as pessoas se escondem mais nesses sites: Eu acho que tem muita gente que passa uma imagem do que não é. É felicidade demais, alegria demais, tá sempre tudo bem né, então eu acredito que a grande maioria é isso. O fato de as pessoas apresentarem somente o “melhor” de si ou “passar uma imagem do que não é”, como apontaram os sujeitos analisados, se aproxima da perspectiva goffmaniana de que, à medida que a representação é socializada, há uma tendência, por parte dos atores, a oferecer a quem os observa uma impressão idealizada de si. Uma imagem “moldada e modificada para se ajustar à compreensão e às expectativas da sociedade em que é apresentada.”176 Uma apresentação idealizada da situação também pode ser uma tentativa de garantir um emprego. Isso pode fazer com que alguns usuários tomem cuidado com o material publicado. Obtive como resposta de um dos homens entrevistados que a forma como a pessoa se expõe nos sites deve ser “criteriosa”. Creio que tem que ser de forma criteriosa, até mesmo porque já existem empresas que na seleção de recursos humanos investigam de 176 Ibid., p.40 103 alguma forma atraves das redes sociais, seu comportamento, atitudes, forma de pensar... mas nao só isso, acho que cada um deve promover e tem essa opção, de promover o bem. Nesse caso, é preciso tomar cuidado para não publicar nada que comprometa a face: vídeos, mensagens, fotografias, enfim, é preciso manter a fachada. Outra informante, uma dentista, também mostra a mesma preocupação. Em seu perfil, ela afirma colocar apenas o que a representa: “se não concordo com algo não curto e não coloco no face pq não quero que demonstre algo que não sou”. A essa preocupação visível com a manutenção da face é possível inferir que o indivíduo age assim em virtude da garantia de tratamento respeitoso. Para tanto, no dizer de Goffman, “ele deve, por exemplo, ser capaz de ocultar dos outros aspectos dele mesmo que o tornaria indigno aos olhos deles e ocultar quando ele estiver num estado não digno seja de vestimenta, mente, postura ou ação.”177 Em outro depoimento, uma mulher sugere como o perfil pode ser uma fachada e guiar a impressão de quem o vê, de acordo com a noção de performance de Goffman. Eu: O seu perfil representa o modo como você se enxerga? Emanuelli: Sim, mas tbm é o modo como eu quero que os outros me enxerguem. Nesse caso, fica claro o esforço de encenação por parte da usuária, uma vez que se preocupa em apresentar uma fachada que conduza a plateia a enxergá-la da maneira como quer. A questão da aparência é, portanto, relevante. Mais da metade dos homens e mulheres entrevistados disseram que selecionam as fotografias antes de publicá-las. E isso tem muito a ver com a preocupação do olhar estrangeiro, pois as fotografias vão apresentar o usuário a quem ele ainda não conhece, ou então manter a imagem que os conhecidos têm dele. As fotografias são as vitrines das pessoas nos sites. E por isso a necessidade de guiar o outro para aquilo que se deseja transmitir. Eis o papel da fachada, função desempenhada pelo perfil nos SRS analisados, sobretudo pelas imagens. As manobras dramatúrgicas também podem ser encontradas em outras falas: “Eu sei como eu sou de verdade, mas uma pessoa que não me conhece direito pode interpretar uma foto de maneira errada por isso é melhor se mostrar tomando cuidado com a aparência”. 177 Idem., 1982, p.83 104 “eu gosto de mostrar fotos onde eu esteja bonita, mesmo no meu álbum Faces da Solidão as fotos são selecionadas, posso estar triste, mas tenho que estar bonita aos meus olhos, trabalhando meu marketing pessoal, quero que as pessoas captem o melhor de mim”. “Tipo assim, todos me veem e por isso tenho que cuidar da minha imagem”. “tem que se ter uma postura”. A vergonha e o embaraço frente ao olhar alheio são fatores levados em conta na hora da publicação de fotografias e as pessoas relatam isso com certa preocupação. São elas que nos mostram ao outro e, portanto, falam muito de nós. São a prova de como somos ou queremos ser. Alguns depoimentos de usuários dos sites comprovam essa constatação. “Eu não coloco foto minha em situação de exposição assim, nossa, eu morro de vergonha, eu acho que você pode estar assim simples, mas vc tem que estar composta”. “acho importante sim. Eu sei que isso acaba fazendo com que a gente crie um personagem baseado no que a gente queira ser, só com nossas coisas boas. Mas acho essa preocupação importante. A pessoa mostra que não tem desleixo com ela mesma”. “ninguém posta foto desabonadora da imagem de si porque as redes sociais são uma espécie de vitrine das pessoas. Gordinhas postam fotos em ângulos em que não parecem tão gordinhas, por exemplo. Ninguém quer ser conhecido por seus defeitos”. “coloco sempre as (fotos) que mais gostei e me achei mais bonita”. “é muito importante para mim, eu sempre sei o que posso add que não denigre minha imagem” ... as pessoas sempre querem preservar sua imagem ou projetar o ego que acreditam que sejam. Filtram o que elas não gostariam que as pessoas vissem; às vezes não para poder parecer ser algo que não é, mas para evitar constrangimento. Para evitar constrangimento é necessário, então, manter a fachada. Isso vai evitar que o ator fique, no dizer de Goffman, “fora de face” ou “em face errada”, pois se isso ocorrer ele pode se sentir “envergonhado e inferior devido ao que aconteceu e pelo que pode acontecer à sua reputação enquanto participante”178. 178 Idem, 1982, p.8. 105 No caso dos indivíduos que precisam dar expressão a padrões ideais na representação, como professores e militares, é preciso abandonar ou esconder ações que não sejam compatíveis com tais funções. Os exemplos de profissionais foram dados uma vez que eles estiveram presentes na pesquisa. No caso de militares, por exemplo, foram cinco, e a representação nos SRS de todos é semelhante: as temáticas das fotografias são parecidas, senão iguais, e eles mostram a profissão escolhida por meio de imagens no quartel, em alto mar, algumas das quais recordando as lembranças da época de farda. Apenas um deles utiliza, além das imagens comuns aos demais, fotografias de mulheres seminuas, com camisetas de time ou apenas de biquíni. Isso apesar de afirmar, durante a entrevista, que jamais publicaria fotos pornográficas em seu perfil. Esse comportamento, batizado por Goffman de “consumo secreto”, quando mesmo sendo imprópria a conduta é satisfatória, tende a não ser tão secreta nos SRS. Ainda que ele configure seu perfil de modo que apenas determinados contatos possam visualizar tais imagens, ainda assim o que ele publica está vinculado à figura de militar. O que vemos nos álbuns, então, é uma mistura de revelação e recato, de exibicionismo e de segredo. Este segredo pode ser escancarado por outrem por uma ferramenta do Facebook. Com a opção de marcar os rostos de amigos da rede, os usuários podem colocar a face de alguém em risco ao expor um local, pessoas ou a própria aparência do usuário em discordância com a fachada que o seu perfil visa apresentar, uma vez que a fotografia marcada é vinculada ao perfil da pessoa. Por isso, são comuns as reclamações das marcações dos amigos. E as “caras” são logo desmarcadas. Diante das cenas e personagens que as fachadas apresentam, as fotografias pessoais revelam identidades diversas: mostram a mulher mãe, dona de casa, trabalhadora, baladeira, amiga, voluntária, viajante. O homem esportista, o pai, o aventureiro, o cowboy, o protetor dos animais, o executivo. Elas mostram a multiplicidade de que somos feitos, as identidades múltiplas próprias da pós-modernidade de que fala Stuart Hall. Somos essas personas e não os indivíduos. Uma professora diz que usa o Facebook exatamente para mostrar suas diversas fachadas aos seus alunos. Segundo ela “é uma forma das pessoas em geral, principalmente meus alunos, conhecerem a Dayanna que não enxergam muito na sala de aula”. Aqui, a professora apresenta suas diferentes facetas, nas fotografias 13, 14, 15 e 16: 106 Fotografia 13 - a professora em sala Fotografia 15 - A professora no espelho Fotografia 14 - A professora mãe Fotografia 16 - A professora e seu cowboy 107 As principais temáticas presentes nas fotografias analisadas serão expostas a seguir. Elas correspondem às múltiplas fachadas criadas pelos usuários nos sites e podem ser vistas como uma forma do neotribalismo proposto por Maffesoli, pois funcionam como a “cola” que liga as pessoas. *A família Os usuários do Orkut e do Facebook analisados mostram, em suas fotos, de onde vieram. O território de origem é destaque por vinculá-los a uma região, uma comunidade, uma tribo. Quando se fala em internet enquanto um ambiente desterritorializado, é preciso atentar para o fato de que se há desterritorialização, o que ela promove é uma reterritorialização. Ninguém é alguém sozinho, mas sempre em relação a um ambiente, a um grupo. É a partir de uma raiz que nos tornamos quem somos. Isso nos atenta para o componente relacional da vida social, “o homem em relação”. Não apenas a relação interindividual, mas também a que me liga a um território, a uma cidade, a um ambiente partilhado. Na contemporaneidade, as pequenas histórias do dia-a-dia substituem a grande História, há uma nova relação espaço-tempo. A ênfase é colocada no que é próximo e no afetual, aquilo que nos une a um lugar, lugar que é vivido em conjunto com outros. As fotografias analisadas ratificam isso. O destaque é para a família. Imagens com mãe, pai, avós, irmãos e demais parentes são maioria nos álbuns de muitos dos sujeitos analisados. Também há fotografias com os filhos, álbuns inteiros mostrando os primeiros passos do bebê ou ainda a família nuclear: apenas o pai, a mãe e os filhos nas situações mais diversas: em casa, num passeio, numa festa, sempre mostrando e ressaltando a família e os seus valores. Se estiverem distantes, então se lê “saudades” na legenda. Perto ou longe, sempre há um “Te amo” como legenda. As fotografias em grupo, com toda família reunida, à mesa para um almoço ou em outra situação de descontração ilustram a importância dos valores familiares em nossa sociedade. Se pensarmos nos álbuns dos sites, no caso das mulheres, a temática Família fica em primeiro lugar tanto no Orkut quando no Facebook. Alguns álbuns criados única e exclusivamente para a família são: “família”, “família amo muito”, “Pais, filhos, netos”, “Tal pai, tal filha, tal neta”, “as bagunças da família Nunes”, “Caminhada da família”, “Amigos e minha família”, “Família Goiana”, “Minha família”, “Laços de amor”, 108 “Eu em família”, “Em família e alegre sempre”, “Família, amo muito”, “Familiares Ira” “Mamis, Papis, mana”, “Esses são os Torres”, “Família Torres 2010. Álbuns dedicados aos filhos: “Maria Clara a mais nova princesa”, “Ana Julia andando”, “Juju 2 anos e meio e Cacá 9 meses”, “Primeiro dia de aula Ana Julia”, “Mannu cantando no Quiosque Tropical” Esses exemplos foram tirados do Orkut, onde os álbuns femininos que contêm a temática família contabilizam 142. No Facebook, isso se repete. São 73 álbuns com referências à família. Alguns títulos de álbuns analisados são: “Família”, “Minha família”, “Família 2011”, “Esses são os Torres...e agregados”, “Família 2010”, “Eu amo tudo isso”, “Pesque pague em Araguari com a família”, “Vou ser mamãe novamente”, “Razões do meu sorriso”, “Minhas pequenas”, entre outras. Alguns títulos dos álbuns de família dos homens pesquisados em ambos os sites são: “Meu caçula Arthur”, “Num rancho fundo, los Castro!”, “Na casa da minha irmã”, “Meus pais”, “Minha sobrinha”, “Família Gomes”, “Filhotes”, “Hoje, amanhã e sempre”, “Raissa dia de família”, “Os Andrade”, “Jeovane, Cléia, Jeovana e Raissa”, “Casa da minha mãe”, “Visita do meu pai”, “Álbum da família linda”, “Os parentes”, “Álbum da princesinha Giovana”, “Sobrinhos queridos”, “Vovô e Cia”, “Família, tradições”, “Família Leite todos”. Quando perguntados sobre a possibilidade de publicar apenas uma fotografia nos sites, muitos dos entrevistados disseram que escolheriam uma da família. Entre as 25 mulheres, 17 optariam por uma assim. No caso dos homens, onze. E cinco disseram que o que ressaltam nas suas fotografias é justamente a família: “Minha esposa e minha família”, “o que eu admiro no objeto da foto, minha filha, mulher, parentes”, “Família”, “sempre minha família”, “a família, que na busca pelo pão nem sempre dei valor às relações familiares”, “Momentos alegres junto com amigos e parentes talvez”. A fala de uma das mulheres entrevistadas ilustra muito bem a fachada ideal de que fala Goffman. Se lhe fosse necessário escolher uma foto para publicar, ela elegeria uma foto que representasse, em suas palavras, “Uma família unida e feliz”. Os valores proxêmicos são muito valorizados nos sites e são eles que ditam a maneira pela qual as pessoas se representam, através das imagens. Tudo que é próximo e que remete a um ambiente de origem são retratados nelas, porque são a partir desses valores que as pessoas se reconhecem. Não só a família, mas a casa, o trabalho, a vizinhança, os amigos. Essas fotografias revelam o território de origem de cada usuário e apresentam aos outros aqueles 109 com os quais se importa: os seus. Uma entrevistada afirmou que quem não retrata a família em seu perfil pode estar tentando esconder algo. Isso daria uma má impressão do usuário: Se você não coloca nada, dá a impressão que você é uma pessoa ou que não liga pra família, ou que é, sei lá, quer omitir alguma coisa né, então eu acho interessante colocar fotos da família. O território de origem e a partilha afetual desse espaço são considerados, como pontuou Maffesoli, a aura da qual todos nós participamos. E é ela que assegura a existência social. É a sedimentação de um lugar comum que faz rastros e une as pessoas. Ao ser um elemento comum das fachadas apresentadas nos sites, o tema família produz identificação, uma identificação que é emocional e coletiva. Pode ser este o argumento que leva a entrevistada a contestar o perfil daqueles que não apresentam a sua origem, a sua família. Os discursos sobre o fim da família e dos valores santificados dessa instituição não estão presentes nas fachadas analisadas. Ao contrário, é com entusiasmo, alegria e satisfação que os usuários apresentam suas famílias via fotografias. Além delas, eles também podem listar quem da sua rede pertence à sua família: primos, sobrinhos, tios, pais, irmãos, são agrupados no perfil segundo tal pertencimento. Mesmo sem ter conta nos SRS pesquisados, muitos membros da família são homenageados através de fotografias. Tudo isso são índices do orgulho dos usuários de mostrar e saber que tem uma origem. As fotografias que seguem são exemplares que encontrei nos perfis de usuários e mostram, à sua maneira, um pouco sobre as suas histórias. Em cada uma delas, é possível compreender que se trata de fotografias em família. 110 Fotografia 17 – Família Fotografia 19 - Família Fotografia 21 -Família Fotografia 18 – Família Fotografia 20 – Família Fotografia 22 - Família 111 *As festas estão em mim O título deste tópico foi retirado de um dos álbuns do Facebook de uma das mulheres observadas e resume com precisão outra temática das fotografias: as festas. Nos álbuns das mulheres, essa temática só perde para a família, que vem em primeiro lugar. Entre as fotografias dos homens, o motivo festa fica em 4º lugar no Facebook e em 5º no Orkut. Esse tipo de fotografia mostra um cenário de descontração, diversão e gente bonita. A questão da aparência, nesse caso, também pesa. As mulheres e os homens estão sempre elegantes, as mulheres maquiadas, e este é um bom momento para tirar fotos para depois publicá-las. Não só pela aparência, mas pelo que se está vivendo no momento. Um casamento, um aniversário, uma formatura ou simplesmente uma festa da empresa onde trabalha: tudo reúne e deixa as pessoas mais próximas, num ambiente de contaminação, efervescência e prazer que nada tem a ver com a monotonia da esfera do trabalho. Muitas fotografias, sobretudo das mulheres, são de momentos anteriores às festas. Nelas, há uma exibição de roupas, sapatos, maquiagem, penteados, joias. Os homens não ficam para trás. Aparecem em ternos, engravatados, ou mais despojados, com roupas casuais num churrasco de final de semana ou na festa de aniversário do amigo. Muitos já com uma bebida à mão, em evidente aquecimento para a festança. A questão das festas aparece em muitas falas como um incentivador para a publicação de fotografias. A frequência, para muitos homens e mulheres, varia de acordo com a ocorrência deste tipo de evento. Se há algo novo, uma festa, uma comemoração com os amigos, há atualização dos álbuns. Algumas falas confirmam isso: “Posto mais quando vou a formaturas, aniversários, casamentos, etc”, “uma vez por mês, mais ou menos, quando tenho um evento importante ou quando me reúno com pessoas especiais, cada momento é um flash”. Umas das entrevistadas lamentou o fato de ainda não poder publicar as fotografias simultaneamente ao evento e falou que anda atrasando as postagens: “meu sonho é publicá-las em tempo real; Sempre publiquei com um dia de atraso, o evento acontece hoje, já publico amanhã, mas com a falta de tempo, ando levando de 2 a 3 dias”. Alguns títulos de álbuns que envolvem a temática festa são: 112 “Festinhas por aí”, “Aniversário da Maria Clara 2 aninhos”, “Noivado Reysser e Ana Paula”, “Fest praia 2011”, “Natal e Reveillon 2011 2012”, “Bodas de 50 anos”, “Comemoração da 1ª Eucaristia”, “White Label”, “Niver 24 anos”, “Aniversário do melhor menor aprendiz do mundo”, “Skol Sensation”, “As festas estão em mim”, “Casamento Pri e Nilo”, “Formatura”, “Aniversário da Cleidinha”, “Dias de festa”, “É dia de festa, quadrilha da Manu”, “Carnaval e niver mamis”, “Festa dos 300 dias”, “niver de pessoas especiais”, “Festa das Nações 2011”, “Niver do pai”, Meu aniversário 2011”, “Pizzas, comemoração niver vovô”, “Camarote Brahma Expoagro”, “Casamento Regiane e Roginaldo”, “Chá de Mulheres da IPRD”, “Um pouquinho de folia”, “aniver da Jady filhota”, “Num belo casório”, “Meu casamento”, “Niver da minha mãe”, “Ano novo no Rancho das rosas”, “Natal 2009 em grande estilo”, “Niver da nona”, “Aniversário Hugo e Liz”, “Sessão night” As festas são os instantes eternos em que podemos celebrar a vida, a família, os amigos, tudo o que nos faz bem. São momentos de transbordamento e histeria coletiva. O aspecto dionisíaco das vidas ordinárias é representado nas fotografias dos usuários dos dois sites pelas festas, com certo destaque. O corpo que se pavoneia, que dança e que brinda a vida nesses momentos de efervescência diz muito do dispêndio improdutivo próprio de nossa época e do orgiasmo de que fala Maffesoli. São nesses rituais que vivemos a vida com intensidade e são eles que representam o aspecto emotivo das “vagabundagens” pós-modernas. A despeito da falta de utilidade, as fotografias mostram que tudo é motivo para as reuniões festivas, pois são através delas que acontecem os agrupamentos de tribos diversas e que a vida é celebrada na sua forma mais sublime. Os momentos festivos ilustrados com as imagens destacam o trágico como característica de nosso tempo. Ao contrário do drama próprio da modernidade, projetivo, que adiava os momentos de prazer para a eternidade no paraíso, o trágico é a aceitação do destino, um viver a morte diariamente. Eis o presenteísmo de Maffesoli, o gozo do presente e do aqui e agora como fonte de prazer. A seguir, uma amostra das inúmeras fotografias de momentos festivos encontradas nos sites. 113 Fotografia 23 - Festa Fotografia 24 - Festa Fotografia 25- Festa Fotografia 26- Festa Fotografia 27- Festa Fotografia 28- Festa 114 *Por onde andei Outro aspecto que salta aos olhos é a temática das viagens e passeios. No geral, as pessoas mostram em seus álbuns os lugares por onde viajaram, passearam e conheceram, tornando públicos os momentos especiais que passaram em cada local. Há muitas cidades como título dos álbuns: “Lavras 2009”, “Zuação em Chapada”, “Petrolina”, “Pirinópolis”, “Chile – janeiro de 2010”, “Nossa Senhora do Livramento”, “Passeio a nova Petrópolis”, “Algumas fotinhas do passeio ao RJ”, “Caldas Novas”, “Cidade Maravilhosa”, “Peruíbe”, “Campos do Jordão”, “Férias Jaraguá”, “Sampa”, “Chapada”, “Cidades Rep, Dominicana”, “Ilha Saona”, “Praia Macao”, “Praia Boca Chica”, “TGA/Cuiabá”, “Imperatriz – MA”, “Viagem a Belém”, “Lua de mel – Maceió”, “Ctiba”, “Cáceres”, “Viagens e passeios pelo RS”, “Passeios pelo Pantanal”, “Blumenau”, “Catanduvas e Canoinhas”, “Passeio Cuiabá”, “Passeando em Sapezal”, “Treze Tilhas-SC”, “Sorriso-MT”, “New York”, “Boston”, “Natal/RN”, “Férias nos EUA”, “Arraial do Cabo”, “Jurerê 2012”, “Gramado- RS”, “Mergulho Punta Cana”, “Polônia”, “Ano novo nos Pirineus”, “Londres”, “Amsterdã”, “Nova Xavantina”, ”Suiça”. Mas há também aqueles onde se lê simplesmente “viagens” ou “Andanças noturnas”, “Passeios”, “Lugares por onde andei”, “Fui andar”, “Férias”, “Passeios”, “Mochilada”, “Playcenter”, “Hard Rock Café”, “Alguns passeios em família”, “Morro de Santo Antônio”. As viagens e os passeios valem ser lembrados e por isso as fotografias, uma vez que rompem com a rotina diária de trabalho, estudo, tarefas. Ao saber onde o seu amigo foi, também estamos conhecendo um pouco dos lugares com as fotografias. Isso pode ajudar no caso de uma futura viagem, pois as imagens dão uma ideia do que esperar. Ou então, serve para saber por onde aquele amigo andou, o que ele fez por lá, o que visitou. Dá para saber mais da vida daquela pessoa e dá também, como me disse uma das entrevistadas, para apreciar o lugar através das fotografias dos amigos. É uma forma de identificação com aquele local: Por exemplo, eu vou num passeio, eu normalmente eu gosto de fotografar o rio, árvores, essas coisas (...), pq assim...o que me faz bem eu coloco (...) quem gostar, vai se identificar comigo... Não é? Então, quer dizer, se gostar, vai apreciar, sempre tem quem gosta também (...) e normalmente forma-se grupos assim (...) eu aprecio muito ver fotos dos amigos, das viagens deles, então to sempre à par. Assim como as festas, as viagens são motivadoras para a publicação de fotos nos sites, segundo os meus informantes. A frequência das postagens varia de acordo com as novidades: 115 “Se eu passeio mais e tô inspirada pra tirar foto, aí eu publico”, “a cada festa que vou ou viagem acho que umas 2 vezes por mês eu coloco algumas fotos” “Ainda não publiquei a das últimas férias, em janeiro deste ano”, “fotos pessoais só quando viajo, festas, etc”, “ah, depende, quando saio e é algo importante, algo do dia a dia”. “Olha, eu não tenho uma frequência, quando acho que tem alguma coisa especial que vale ser publicada, um evento, uma viagem.... As respostas dos homens foram semelhantes. A frequência não é fixa e também depende de algo novo: “não tenho frequência, apenas quando tem uma novidade”, “sempre que tem novidades”, “só posto no face quando faço algum passeio legal”, “fotos é raro, mais por ocasião mesmo”, “não há uma frequência, porque só publico fotos das viagens”, “quando viajo e participo de algum evento ou encontro”, “sempre quando tem algo novo”. Os fotografias do tipo viagens e passeios são símbolos de status. Quem viaja e passeia deve ter como bancar essas despesas. Isso está relacionado com a hipótese goffmaniana de que os símbolos do status são a peça mais importante do equipamento de sinais relacionado à classe social. Logo, a fachada apresentada pelos lugares conhecidos mostra uma posição social cujas características exigem uma valorização e um tratamento adequado. Esse cenário é uma importante parte cênica representada nas fotos, conferindo símbolo de status. Se pensarmos nossa sociedade de orientação ascendente, podemos supor que muitos dos esforços da representação tendem a reivindicar uma posição de classe superior àquela em que o ator se encontra. Este cenário é tão valorizado que às vezes uma imagem que não seria publicada em outra ocasião é, nesse contexto, exaltada. Em um dos relatos de uma informante, ela afirmou jamais publicar fotografias do seu corpo inteiro de biquíni. Contudo, verifiquei, em uma de suas atualizações, que havia fotografias nessa situação. O provável motivo da contradição parece ter sido o fato de ela estar numa praia e, logo, de biquíni. O momento não poderia deixar de ser registrado, o cenário era peça chave na fachada encenada. Aqui, algumas fotografias cuja temática é viagem e passeios. Destinos nacionais e internacionais, praias, parques, praças etc são cenários escolhidos para o clique. 116 Fotografia 28 – Viagem Fotografia 29 – Viagem Fotografia 30 – Viagem Fotografia 31- Viagem Fotografia 32 - Viagem Fotografia 33 - Viagem 117 A próxima temática abordada será a das fotografias individuais, aquelas em que só o dono do perfil aparece. Pode parecer narcisismo, mas essa prática estabelece correspondências entre as pessoas. Os símbolos de status também podem ser visualizados neste tipo de fotografia, uma vez que em várias delas temos pessoas em seus carros, motos, celulares, computadores, e outros elementos que conferem riqueza material. *Aqui tem sempre um pedacinho meu É muito comum, também, encontrar fotos individuais nos sites. Nelas, as pessoas aparecem em lugares tais como festas, passeios, no trabalho, na própria casa, em frente ao espelho, fazendo biquinho, em visível aquecimento para as festas, nos banheiros de lanchonetes, casas noturnas, apenas para citar alguns exemplos. Algumas gostam de ressaltar o olhar, as expressões, certas partes do corpo como mãos, pés, a tatuagem, a barriga, no caso de mulheres grávidas. “Aqui sempre tem um pedacinho meu” é, também, título de um dos vários álbuns que analisei. Decidi utilizá-lo em referência às imagens que trazem apenas os usuários. Esse tipo de fotografias costuma ser o alvo principal de críticas, em virtude da superexposição do “eu”. No entanto, nos referidos SRS, o que parece haver é um consenso em torno de fotografias desse tipo. Se não todos, um número grande de usuários apresenta, em seus álbuns, imagens assim. Às vezes o que se vê são álbuns inteiros dedicados à exibição de si, cujas imagens projetadas possibilitam uma apresentação ao outro. E não só as mulheres. Muitos homens também publicam fotografias close-ups, com máquinas de fotografar em punho mirando o próprio rosto, o corpo sarado ou destacando sua mais nova aquisição. Mulheres e homens se apresentam em trajes de banho na piscina, em praias ou com o corpo cheio de roupas, no inverno rigoroso da cidade visitada. Diante da tela do computador, os usuários analisam as fotografias uns dos outros e a partir daí criam expectativas em relação à personalidade do amigo. Isso é ainda mais comum e pertinente quando os amigos não se conhecem fisicamente, são apenas amigos virtuais. Enquanto vestígios pessoais, as imagens permitem projetar e anteceder certas características 118 do amigo, que nem sempre são exatas. São apenas representações e na maioria delas, idealizadas. Outra observação interessante pontuada por alguns usuários a respeito da publicação de fotografias pessoais é a cobrança por parte dos amigos. Muitos me disseram que o grande motivador são os amigos, uma vez que as fotografias aproximam e permitem saber como a pessoa é e está. Perguntados sobre o motivo de manter e atualizar fotografias nos sites, alguns me responderam que os amigos são os grandes motivadores: “porque os amigos pedem”, “as pessoas, amigos em geral cobram isso e axo legal”. As palavras podem dizer sobre o momento em que a pessoa está vivendo, mas as fotografias retratam esse momento, elas são a materialização da existência do usuário. De forma geral, os álbuns com fotos individuais apresentam títulos semelhantes. Agrupando-os, encontramos álbuns com o nome do usuário, tais como: “Ira 2012 4.9”, “Juliana Teixeira”, “Pri”, “Laiza”, “Gleicy Cunha”, “Fotos Iraci Espínola”, “Jeovane”, “Jorge Luiz”, “Edinaldo cowboy”, “Cezar na academia”, “Dilson César”, “Luis Antônio”. Há os álbuns pessoais que marcam um período importante: “Curtindo a barriguinha”, “O crescimento do meu bebê”, “Minha gravidez”, “Mulher de 30”,“Eu...antigamente”, “Somente eu em épocas diferentes”. Outros ainda com títulos mais poéticos que definem quem é o dono do perfil: “Pedaços de mim”, “Autobiografia”, “As que mais gosto”, “Me”, “Eu sou um pedaço de cada um que conheço”, “Eu que não sei nada do mar, descobri que não sei nada de mim”, “Um pouco do que sinto”, “Meu verdadeiro eu”, “Sempre em alto estilo”, “Inevitavelmente feliz”, “Sejamos nós, pedras vivas”, “Meus costumes: ser feliz e espalhar felicidade”, “Eu”, “Minhas fotos”, “Just like me”, “Eu...uma pecinha rara”, , “Eu em família”, “Quem sabe eu ainda sou uma garotinha”, “Simplesmente eu”, “Tudo aquilo que sou e que amo”. Outros destacam características físicas e também da personalidade do usuário: “Mais fotos de eu, rapei o cabelo”, “Meu jeito simplis”, “Sou do tipo fora da estrada”, “Minha tatoo”, “Cowboy”. Isso sem contar as fotografias que mostram a casa, o carro, os gostos, a faculdade, o trabalho e que apresentam elementos constitutivos das preferências e identificações dos usuários. Mostram, indiretamente, quem são as pessoas. Vários exemplos podem ser vistos nos álbuns dos meus informantes, tais como: 119 “Momentos escola JK”, “Arte é amor”, “Natureza”, “Mark Ryden”, “Construção da casa, começando”, “Faculdade”, “Moro ao lado do Paraíso”, “Turma de arquitetura”, “A vida de campo”, “truco”, “Administração”, “Minhas artes”, “Seminário Atibaia”, “Gremio”, “Casa da minha mãe”, “Casa nova”, “Ser bombeiro”, “Fluminense”, “Desenhos animados”, “Aeronaves militares”, “Meu trabalho”, “Meu RS”, “Minha casa”, “Minhas plantinhas”, “Batizado no fotojornalismo”, “Timão Palmeiras”, “Pescaria”, “Moto”, “Flamengo”, “Meu carro”, “Minha vida animal”, “Aikido, um caminho para toda a vida”, “Eventos, reuniões, ações”. Podemos dizer, a partir desses álbuns, que essa é uma maneira de expressar o tribalismo proposto por Maffesoli. As difusões de gostos, preferências, humores são formas de as pessoas se reunirem em torno de suas identificações. Elas podem ser o time do coração, os carros preferidos, os desenhos, os filmes, os programas, as músicas, os ídolos, enfim, em vários álbuns as pessoas expressam seus particularismos. Além das fotos, podemos listar as comunidades do Orkut e os grupos do Facebook como as tribos virtuais presentes nos sites. E há espaço para todos os gostos, de tipo de dança aos títulos de livros, de raças de animais às marcas de roupa, de comida, de bebida. Cada usuário expressa sua preferência em relação aos mais diversos temas. É possível, então, falar em um nomadismo pós-moderno existente nos sites, um ir e vir de uma tribo a outra. Tudo estampado no perfil de cada usuário. Posso gostar de axé e música clássica, fazer parte de um grupo que discute religião e me identificar com uma etiqueta política de esquerda. O indivíduo indivisível, cujas raízes estabeleciam os gostos e a identidade que levaria durante a vida toda, são transmutados em identificações das mais variadas. E as tribos são os círculos por onde elas transitam. No caso dos sites, o tribalismo virtual parece ser a dinâmica encontrada pelos usuários para saber de cada um. É uma forma, também, de construir sua fachada. Apesar de parecer uma frivolidade sem nenhuma importância, os usuários dizem que se preocupam em se apresentar bem. É por isso que não publicam qualquer fotografia. Há uma seleção quanto à qualidade e aparência e, mais do que isso, um cuidado em relação à imagem que as fotografias vão passar. No caso das mulheres, por exemplo, das 25, 18 disseram jamais publicar fotos que comprometam a sua imagem. Nesse quesito entram fotografias de biquíni, sensuais, íntimas, obscenas, pornográficas, indecentes, muito pessoal, de beijos, de relacionamento, nua, extravagantes, sem noção, ousadas, desagradáveis, feias, fotografias que exponham, que possam comprometer de alguma maneira o usuário ou alguém 120 que esteja na imagem, fotografias que invadam a privacidade, que denigram a imagem do dono do perfil ou de sua família. Os homens demonstram a mesma preocupação. Nas nossas conversas, 17 deles disseram que não publicariam fotografias que expusessem o corpo. Entre as respostas, estão nudez, pornografia, fotos íntimas, libidinosas, com conteúdo sexual, fotos constrangedoras, fotos negativas, fotos que não motivam a elevação espiritual, moral e intelectual, fotos muito pessoais. A preocupação com a face pessoal é estendida à face alheia. Como observou Goffman, além do respeito próprio e do cuidado em se apresentar bem, espera-se que o indivíduo sustente um padrão de consideração pelos demais, agindo de modo a salvar a face dos outros presentes. No caso da representação pelas fotografias, isso também acontece. Uma informante afirmou jamais publicar “fotos constrangedoras de algum amigo onde eu não estou na mesma situação”. Do mesmo modo, outra entrevistada revelou não tornar público “fotos que possam me comprometer de alguma maneira, ou comprometer alguém que está na foto”. Essa conduta é esperada, no entendimento de Goffman, em decorrência da identificação emocional com os outros e com os sentimentos deles e espera-se também, “que ele faça isso de bom grado e espontaneamente”179. As fotografias expostas na sequência são exemplares de como os usuários gostam de se mostrar. Direta ou indiretamente, eles apresentam os seus melhores ângulos. Fotografia 34 - "Eu” 179 Ibid., p.10 Fotografia 35 - "Eu" 121 Fotografia 36 - "Eu" Fotografia 37 - "Eu" Fotografia 38 - "Eu" Fotografia 39 - "Eu" 122 Fotografia 40 – “Eu” Fotografia 41 – “Eu” *Amigo é coisa pra se guardar Quem tem amigos os mostra. Prova disso é o número de fotografias cujo tema é a amizade. Abraçados, num passeio, num evento, em casa para uma conversa fiada, para comer um churrasco. Esses são os enredos por trás de muitas das imagens de amigos analisadas. Nas legendas, isso se confirma: “te amo”, “amizade eterna”, “parceria”, “quem tem amigos tem tudo”, “Minha grande amiga”, “Um evento super especial para esta pessoa linda que é a Cleidinha”, “Minha amiga lindona lá de Maringá”, “Meninas lindas do meu S2”, “Amigo mais que querido”, “Mais uma vez juntas (L)”, “Amigo =)”. Sem falar nos álbuns dedicados exclusivamente aos amigos, alguns apenas virtuais e que estão longe. Isso acontece com muita frequência no Orkut, onde alguns dos meus sujeitos criaram álbuns em homenagem aos seus amigos espalhados pelo Brasil de modo a apresentálos. Nas legendas, escrevem o nome, alguma mensagem e de onde são. São as: “Amigas do Orkut”, “Amigos”, “Para Laís”, “Os amigos mais lindos e amados do Orkut”, “Ira com pessoas especiais”, “Laços 123 eternos”, “Amigos reais, não mais virtuais”, “Amigos queridos”, “Dedico a vc, amiga”. Em outros casos, os amigos estão perto e há um contato mais frequente. De qualquer forma, é importante destacar a importância deles, tal qual é feito com os familiares. Alguns álbuns dão a dimensão disso, evidenciando a importância dos amigos, os membros das tribos a que cada um pertence. “Amigas”, “Galera”, “Luciana Baiana”, “Amigos e componentes da turma”, “Fotos de amigos”, “Amigos para sempre”, “Especiais”, “A gente se diverte, sempre”, “Complementares”, “Incomparáveis”, “Complementares”, “Sinônimos de minha felicidade”, “Razões de meu sorriso”, “Tiffany”, “Meus amigos”, “Galera reunida”, “Gentes”, “Visita da Carmem, João e Larissa”, “Fotos de todas as pessoas que amo. Isso sem falar dos amigos de outras espécies, cães e gatos que tem lugar cativo nos álbuns de muitos dos sujeitos. Alguns álbuns se referem a eles como: “Meus grandes amigos”, “Meus companheiros”, “Meus amigos de todas as horas”, “Moradores da casa”, “Meus amores”, “Agora tenho um lar, não sou mais abandonada”, “Cães e cia”, “Minha vida animal”. Outros batizam os álbuns com os próprios nomes dos bichanos: “Pitucha e deco”, “Tango”. Num perfil de um dos meus informantes, encontrei um álbum em homenagem aos seus cachorros já falecidos, o Kolly e a Kelly. Entre algumas fotografias das fases do casal de quatro patas, lê-se “saudades eternas”. Muitos dos que conversei disseram que o motivo dos fotografias nos sites é exatamente a possibilidade de compartilhar os momentos com os amigos e familiares. É através das fotos que eles se mostram e contam sua vida. Além disso, as fotos cumprem o papel de reconhecimento, quando se está à procura de alguém nos sites. Também há os que publicam para receber algum feedback. Um dos sujeitos da pesquisa revelou em sua fala que, além de gostarem das fotos, as pessoas se aproximam através delas: “As pessoas gostam de fotos, criam um vínculo de proximidade”. Dos 50 pesquisados, 37 afirmaram que o motivo de publicar fotografias é o de se aproximar de amigos e familiares, tentando suprir a falta de contato ou então simplesmente para prolongar o contato off-line. Por mais banais que sejam, as fotografias conferem 124 dinâmica às relações mediadas pelo computador. Elas servem aos outros e só tem sentido no coletivo. Há quem as publique esperando os comentários que elas vão despertar, e outros que não se importam com isso. Para os últimos, a publicação ou não depende exclusivamente de sua vontade, independente dos comentários alheios. E há quem não tenha um motivo coerente para as publicações, dizendo: “apenas publiquei” ou simplesmente “porque gosto”. Entre os motivos mais comuns das postagens, todos estão ligados, de alguma forma, aos amigos. São eles: compartilhamento, para facilitar identificação ou para o (re) conhecimento, feedback e como homenagem. O compartilhamento de fotografias tem uma relevância clara para uma informante: a de servir de identidade visual para outros portadores de doenças reumáticas. (...) nas doenças reumáticas, em especial a artrite reumatoide as pessoas sofrem muito com o estigma social de ser diferentes, de terem deformidades aparentes, então,elas costumam não aparecer, ou pelo menos,até chegar no nosso grupo virtual, essa pessoa se escondia, qdo ela vê que nós publicamos fotos de vida social e familiar elas começam a entender que podem ter uma vida compatível com uma pessoa sem a doença.Na verdade sem eu ter planejado isso me tornei uma referência para os pacientes; se eu posso viajar, sair, e namorar eles começam a entender que eles podem também então, minhas fotos são uma identidade visual para eles. Nos casos em que os amigos não se conhecem fisicamente, as fotografias são facilitadoras de um encontro virtual. Além disso, mesmo quando já amigos “físicos” elas cumprem a função de melhor apresentar quem ele é realmente. Uma professora de 68 anos, explica o porquê de suas fotos: “Para que meus amigos, ao estudarem meu rosto, minhas expressões, possam conhecer-me melhor e verdadeiramente”. Semelhante é a explicação de um militar reformado. Ele diz que as fotografias são um meio “para que reconheçam-me aqueles que não me veem há muito tempo e até quem nunca teve contato comigo, no caso de sobrinhos e sobrinhos netos”. Se fisicamente não há contato com alguns parentes e amigos, reside aí uma das principais funções das imagens, explicitadas por um aposentado: “eu tenho parentes que não conheço e amigos que não vejo há muitos anos, elas servem até como uma maneira deles me encontrarem”. Um dos homens entrevistados, que utiliza os sites também para conhecer novas pessoas, afirmou que as fotografias tornam-no conhecido e popular e ele as utiliza “para que mais pessoas fiquem me conhecendo e assim formar mais amizades”. Alguns deixam fotos pessoais públicas no caso de alguém lhes procurar. 125 Com os SRS também ficou mais fácil enviar fotografias para os amigos. Uma declaração, em especial, apresentou essa possibilidade: “na verdade é uma troca, tiro várias fotos com as pessoas, ao invés de enviar por e-mail eu posto no facebook”. É comum ver fotos postadas para felicitar alguém pelo aniversário ou simplesmente para mostrar a importância da amizade e do amor entre duas pessoas. Em alguns casos, o destinatário não tem conta no site ou então é apenas um bebê. De qualquer forma, o que se busca é mostrar aos demais que o homenageado existe e o que ele representa na vida do remetente. A admiração pelos conhecidos, amigos e familiares que fazem parte da mesma rede social ainda que não estejam nos sites, fica explícita no argumento de uma jornalista entrevistada: “eu publico muitas vezes em homenagem a alguém, ah, é aniversário do meu pai, aí eu coloco uma foto minha com ele, é aniversário de casamento dos meus pais”. Outra disse que, no geral, publica fotos “para homenagear pessoas”. Há quem o faça por motivo de admiração simplesmente, de suas fotografias e também das fotografias dos amigos. Uma gaúcha exemplifica isso: “são pessoas que fazem parte do meu dia a dia, então é muito bom olharmos de vez em quando as fotos e admirarmos elas”. Uma informante, em particular, me deu uma explicação interessante. Segundo ela, além de os sites serem uma excelente forma de arquivamento de fotografias, o simples exercício de olhar para elas é relaxante. Ah, eu publico fotos pq eu gosto, por exemplo, eu tô, às vezes eu não to num dia muito bom, por exemplo, aí de repente, eu sei que eu posso ir na internet pesquisar lá em imagens e ver um monte de fotos. As que eu gosto mais, são minhas pessoais, eu guardo lá. Eu acho o Orkut maravilhoso pra se guardar fotos como um arquivo, e outra, publicando ou não, eu entro e eu fico vendo aquelas imagens, aquilo me dá uma paz tremenda, é gostoso, sabe... eu acho aquilo uma delícia, é um relax. Relataram-me, aliás, encontros promovidos pelos sites. Há quem encontrou o primeiro namorado de cinquenta anos atrás e quem entrou em contato com parentes que há trinta anos não via. Mesmo que não seja possível voltar no tempo e estabelecer a mesma ligação que se tinha com este que acaba de reencontrar, é possível dar uma nova tônica à relação, interagindo de forma a buscar novas identificações dentre velhas e nostálgicas histórias. Eis o trágico cotidiano de Maffesoli. Ludibriamos o passado e damos um fecho diferente para nossas vidas. Se parecia difícil rever um certo alguém, está aí uma potencialidade do desenvolvimento 126 tecnológico presente nos SRS: a de unir passado e presente e fazer com o que o destino seja dominado, ao menos no campo virtual. Apresento, então, exemplos das muitas fotografias de amigos que estampam os álbuns dos usuários do Orkut e também do Facebook. Fotografia 42 – Amigos Fotografia 44 -Amigos Fotografia 43 – Amigos Fotografia 45 - Amigos 127 Fotografia 46 - Amigos Fotografia 47 -Amigos A possibilidade de falar com o outro através das fotografias fica clara nas respostas dadas pelos sujeitos analisados. E fala-se, através delas, de amor pela família e amigos, como já foi exposto, mas também pelo parceiro, namorado, esposo. É disso que me ocuparei na próxima temática. 1.1.1 *O par perfeito Já mencionei que as pessoas falam e compartilham sentimentos de amor e carinho entre os amigos e os familiares através de suas fotografias. Entre os casais, esse amor é exaltado, enaltecido, idealizado. Homens e mulheres, usuários dos SRS pesquisados dão demonstrações explícitas de amor por meio das fotografias, seja na criação de álbuns exclusivos do parceiro, nas legendas, ou na imagem do perfil a dois. Quanto às fotografias do perfil, 12 homens disseram que usam ou já usaram imagem com a parceira, e entre as mulheres o resultado foi parecido: 14 delas responderam que não veêm problema algum em publicar fotografias com o parceiro como imagem de perfil. Porém, durante o período da coleta de dados, observei imagens a dois no perfil de apenas dois 128 homens no Orkut e quatro no Facebook; quanto às mulheres, no Orkut de três delas havia uma fotografia com o parceiro enquanto no Facebook quatro se apresentavam dessa maneira. Se agrupados aqueles que disseram não utilizar fotografias com o parceiro como imagem de perfil, muitos afirmam que as fotos existem, mas elas aparecem nos álbuns, já que o perfil é individual. Algumas mulheres relataram essa opção: “no perfil não, só nas fotos pq o perfil é somente meu”. “Pq o perfil é meu, e o face representa minha personalidade, e tem o local correto para por fotos com o namorado, que é no álbum de fotos”. “não como capa de perfil, o perfil é meu, foto minha”. Entre as mulheres entrevistadas, também existem aquelas que não publicam fotografias com o parceiro em virtude da exposição provocada. Uma respondeu que utiliza o site com outra intenção: “não gosto de me expor muito, só adiciono pessoas que conheço então eles me conhecem e conhecem meu namorado, o face é só para descontrair.” Além dessas, há quem já tenha utilizado fotografia com o namorado ou marido, mas que não faria isso novamente. Uma delas, casada, afirma que hoje só publicaria fotografias com as filhas como imagem de perfil, com o marido não mais. Em sua explicação ela diz: “já usei muitas, mas coisinhas foram acontecendo e as ilusões de adolescente foram passando, então como imagem de perfil não uso mais”. Semelhante é o caso da dona de outro perfil analisado. Ela afirma já ter publicado fotografias com o namorado, mas que tal exposição não lhe agradou. Segunda ela, as pessoas vão criando intimidade e querendo saber da sua vida pessoal. Depois disso, ela nunca mais publicou fotografias deste tipo. Agora publica somente com amigos, filho e família. Ela relata a experiência que teve: Não isso, não. Namorados podem passar, não costumo expor minha vida tão pessoal assim. Já tive essa experiência, por exemplo, namorei um bom tempo uma pessoa tínhamos fotos em eventos sociais e pessoal. Quando terminamos o relacionamento as pessoas ficaram com raiva dele, ele foi assediado e eu tinha que toda hora dar satisfação para alguém: pq terminou? como vc tah? vc arrumou 129 outro? isso me deu muito trabalho, e desde então, ñ faço + isso. O coitado levou a culpa social não achei legal. Outra entrevistada disse que o fato de ter uma fotografia com o marido na imagem de perfil desconfigura a sua presença no site. Independente do estado civil, ela quer ser reconhecida por ser o que é. Eu: e assim, fotos com parceiro, marido, essas coisas? Izilda:não, não tenho o hábito. Eu não tenho o hábito de fazer isso, eu não sei pq... Eu: é só a sua mesmo Izilda: Só a minha mesmo. Aliás, eu nem me identifico se eu sou casada, sou solteira...e não é por nada...é verdade....meus amigos, eu já coloquei foto dele no álbum, já coloquei que eu era casada Eu: sim Izilda: mas aí eu não sei, eu acho que isso aí desconfigura um pouco. Eu tô voltada não é pra , tipo assim, não é pra nada, assim, pra nada sexualmente... então eu quero que as pessoas se apeguem a mim pela Izilda que eu sou, a Izilda natureza Eu: e não pelo seu status matrimonial Izilda: isso, independente da minha idade, do meu estado civil, eu sou a Izilda que ama a natureza Entre os homens, também há aqueles que não simpatizam com a ideia de configurar a imagem do perfil com uma fotografia junto da parceira. Pelos comentários, o que se percebe é que eles acham isso muito pessoal e sem garantia, por isso preferem publicar imagens da parceira somente nos álbuns. Um deles me disse que é preciso respeitar a individualidade de cada um: “quando tiver ela que faça o dela; É uma coisa particular de cada um, respeitando a individualidade de cada um.” Outro fala em desnecessidade: Eu: Utiliza fotos com a parceira/ namorada na imagem do perfil? Raron: Não, só no álbum. Eu: utilizaria? Raron: não, acho desnecessário. Alguns acreditam que é preciso ter um relacionamento mais sério ou encontrar a pessoa certa para só então publicar uma fotografia juntos na imagem do perfil. “Ainda não encontrei assim uma pessoa bem legal sabe, ke eu possa amar e confiar ao ponto de mostrar a todos até mesmo nestes sites de relacionamento”. 130 Eu: Utiliza ou já utilizou fotos com a namorada na imagem do perfil? Fernando: na imagem do perfil não, acredito que no mural, mas na imagem de perfil não! Eu: mas utilizaria? Fernando: essa pergunta acho que é difícil, mas acredito que não. Eqto o status continuar como namorada, acredito que não Eu: tem que ficar mais sólido, concreto para colocar? Fernando: seria o único jeito que eu colocaria, caso o relacionamento passasse de um namoro para algo mais concreto mesmo. Mas, mesmo assim, não seria algo obrigatório, pensaria antes de colocar. Em seu comentário, um senhor de 63 anos afirma não postar fotografia sua com a mulher na imagem do perfil porque ela tenta passar uma imagem de harmonia perfeita entre os dois, o que o irrita: Até agora, ele tenta se passar por dona de mim, e se intromete em todas as minhas comunidades, tantando passar uma falsa imagem de harmonia perfeita, então a mantenho afastada, rsrs. Acha-se no direito de escolher os meus contatos, criticar as minhas conversas, como se fossemos um ser único. Se deixar, ela pensa por mim, e, pior, se recusa a fundamentar os seus achismos. O conflito, nesse caso, parece advir do fato de que a fachada que a esposa deseja criar, aquela de um casal perfeito e em eterna harmonia não está em acordo com o dia a dia do casal, que briga, passa por dificuldades, se desentende. O parceiro entende que a representação é falsa e que há uma discrepância entre as aparências alimentadas pela esposa e a realidade. Nesse caso, o excesso de idealização da fachada não o agradou. Alguns homens disseram não usar fotografias com a parceira por motivo de segurança ou então para preservar a sua imagem. “não, pois sou separado, entretanto, mesmo se não fosse não usaria em respeito a sua imagem”. Miro: não sou mais casado e se fosse também não postaria Eu: por questão de segurança? Miro: afirmativo Mas há usuários de ambos os sexos que não se importam em dividir a imagem do perfil com quem amam. Eles disseram que usam ou já usaram fotografia com o (a) parceiro 131 (a) na imagem de perfil e que não veem problema algum nisso. Alguns colocam a família toda, uma vez que isso representa certa estabilidade ou que ele (a) é comprometido (a). “acho interessante mostrar ali que eu sou casada, que eu tenho filhos”. “Meu relacionamento tem quase quatro anos e as pessoas já me relacionam com a imagem do meu parceiro... então considero q ele já faz parte do meu perfil tbm!!!” “no face na linha do tempo somos nós dois” “com relação a foto minha juntamente com minha namorada, acho que apenas uma forma de divulgar que estou com alguém, amo essa pessoa.... algo do gênero”. “Sim, na minha foto de perfil estamos nós três... eu, minha mulher e filha”. Às vezes, a esposa tem perfil em algum SRS, mas o parceiro não. Ela então coloca fotos juntos para os amigos saberem e até como uma maneira de passar recados de seus amigos em comum para o esposo. Mas isso só me foi relatado por mulheres, nunca por homens. “geralmente uso próximo do niver dele, ou dia dos namorados, niver de casamento (...) é pra divulgar pros amigos saberem, já que meu marido não tem face e nem Orkut, kkk”. Eu: Você já usou fotografias de outras pessoas no seu perfil? Priscilla: coloco muitas vezes foto minha junto de meu marido Eu: por quê? Priscilla: Porque é uma forma que encontrei, que podemos compartilhar as mesmas amizades, e de expressar o carinho que tenho por ele. Eu: inclusive, no seu orkut o nome que aparece é o seu e o dele né? Priscilla: isso mesmo Eu: mas por que ele não tem uma conta no site? Priscilla: ele me diz que não tem muito tempo de entrar e nem paciência. Quando alguem manda recado a ele, eu sempre dou o recado. E as vezes ele responde. 132 Em relação às fotografias dos álbuns, é comum encontrar algumas ou até álbuns inteiros dedicados ao parceiro, como: “Aniversário do meu amor”, “O amor em minha vida”, “Meu vidinha”, “O amor é lindo”, “Amor para a todo vida, amo demais”, “Dia dos namorados 2009”, “Amor e eu”, “Eu e ela”, “anjo”, “1 ano de felicidade”, “Amor”, “Minha princesinha”. Isso sem falar nos álbuns que apresentam essas fotografias, mas que não estão intitulados, ou que apresentam um título mais geral, como “Momentos”, “=)”, “Variadas”, “Especiais”. As legendas dizem muito sobre esses sentimentos também. Deparei-me com frases como: “Meu eterno amor”, “Curtindo uma preguiça com minha fro”, “Meus amores”, “Eu e o meu lindo...te amo”, “Meu Homem....com H maiúsculo!! Amo vc”, “S2”, “Amoo muito você meu amor”, “Amooo muito vc meu vida”, “Te AmO”, “Te amo meu vidinha”, “Só tenho que agradecer por vc estar ao meu lado cuidando de mim. Obrigada por tudo muito minha vidinha”, “Sempre linda”, “Minha Doutora”, “Meu amor =)”, “Eu e meu marido”, “Meu capitão Nascimento”, “Fernando, marido, vida”, “Te amo marido”, “Eu e Júlio”, “Os noivos”, “Cada dia com vc é muito especial”, “Meu amoreeeeeeee”, “Que casal lindo”, “Te amo gata”, “Te amo muito mais que ontem e hoje muito menos que amanhã”, “Casal do século”. Há um cuidado maior ao apresentar o parceiro. E também há rituais. Vocativos do tipo amor, mozão, moli, amorzinho povoam o imaginário dos casais. E não são apenas as mulheres que idealizam a representação de um amor perfeito, mas também homens se orgulham em apresentar suas escolhidas. Declarações de amor aparecem nas legendas de fotografias a dois ou nos próprios títulos dos álbuns. A fachada criada nesse caso é a de um casal em perfeita harmonia, sorridentes e felizes um por ter o outro. Nessa representação idealizada do par perfeito as promessas de amor eterno somam-se aos diversos comentários apaixonados. De repente um sinal de que o amor ideal se transformou em cinzas: eis que surge uma atualização dizendo que alguém trocou o status de relacionamento para solteiro. Arrisco-me a dizer que a decisão por publicar, como imagem de perfil, uma imagem com o parceiro é um passo adiante na relação e significa muito mais do que apenas postar fotografias no Mural ou nos álbuns. Para alguns, isso só acontecerá no dia que o relacionamento se estabilizar ou então quando encontrar a pessoa certa. Vincular a fotografia do perfil com o parceiro (a) significa reduzir o seu espaço no site para compartilhá-lo com tal pessoa e por isso é visto com certo desconforto por alguns 133 usuários. O que acontece é que eles deixam de ser identificados por serem quem são e passam a ser vistos como namorado (a), esposa (a), parceira(a) de fulano de tal. Apesar do estado civil, o que querem é manter a individualidade de cada um, portanto cada um tem a sua conta nos SRS. Podem, entretanto, informar se são casados ou se namoram, preenchendo o formulário do site. O amor está no ar nos SRS. E as fotografias são provas disso. A seguir, exemplares do amor perfeito exibido pelos usuários. Fotografia 48- Par Fotografia 50 - Par Fotografia 49 - Par Fotografia 51 - Par 134 Fotografia 53 - Par Fotografia 52 - Par Muitos também publicam fotografias que remetem ao passado, recordando o que já viveram e quem já esteve por perto. Essas imagens podem ser situadas na categoria “Memórias”. Na sequência, falarei mais sobre esse tópico. *Com um pé no passado Numa passada de olhos pelas fotografias dos seus amigos, você certamente as verá. Comumente vistas nos álbuns são aquelas imagens que acionam a memória dos usuários. Elas relembram momentos com a família, junto dos amigos de infância, da escola, das festas, do trabalho. Faz quem publicou e também os amigos que passeiam pelos álbuns reviver uma época que já passou. Entre os álbuns que trazem essa temática, alguns que encontrei foram: “Infância”, “Túnel do tempo”, “Trajetória”, “Momentos”, “Lembranças”, “Volta às origens”, “Naftalina, direto do fundo do baú”, “Saudades”, “Tudo o que vale ser lembrado”, “Tão pequeninos, pena que crescemos”, “Alguns anos atrás, não sei se continua”, “Quem sabe quem é aqui?”, “Antigas, mas eu amo”, “Exclusivas”, “Faz tempo”, “Momentos inesquecíveis”, “Inéditas/relíquias”, “Retrospectiva 2011”, “Saudade do tempo e das pessoas que fizeram parte de minha vida”, “Família, tradições” 135 A união de presente e passado mostra como a questão do tempo é relativizada na internet e como as pessoas criam vínculos de identificação ao redor das fotografias. É interessante poder ver como uma amiga era quando criança, ou então dar-lhe forças quando um parente morre. As fotografias nos deixam em contato direto com as pessoas, nos possibilitam tocá-las de alguma maneira. E aquelas do passado nos remetem ao território de origem, nos permitem saber quem somos e mostrar aspectos de nossa vida que não seriam conhecidos de outra maneira. Reviver o passado é sinal de vivências, experiências, e permite um entendimento de que ele foi bom. Por isso o desejo de compartilhá-lo com os outros. No contexto da pós-modernidade o mosaico contaminado por diferentes tendências, modas, pensamentos, atitudes, revelam que a mistura de elementos arcaicos com outros contemporâneos é próprio de um tempo presente cujas fronteiras se encontram esfumaçadas. Daí a fusão de presente e passado ser inteligível: um tempo que não volta mais sendo lembrado num tempo em que o passado é congelado através de scanners, e de programas de tratamentos das fotos antigas. Recordar é viver e nos SRS analisados recordar é experimentar junto um sentimento de nostalgia e voltar ao tempo através das fotografias. Pode ser das saudades da infância ou da adolescência: 15 anos, êta época boa”, “Querendo ser grande...agora queria voltar no tempo”, “Eu quanto garoto,pensando em ser gente”, “Faz tempo, mas eu já adorava fazer pose”, “Faz tempo,mas eu já tinha esse sorrisão”, “1º ano, esse dias atrás =D”, “Quando eu era pequenina... 136 Fotografia 54- Infância Fotografia 56 - Adolescência Fotografia 55 - Infância Fotografia 57 – Infância Dos tempos de colégio: “1º ano ginásio, São José, 1962”, “Turma da formatura do Ginasial em 1965”. 137 Fotografia 58 - Colegial Fotografia 59 - Festa da escola Do lazer ou do trabalho: “Torneio da Guatemala, 1949, Flamengo campeão invicto”,“isso aí é em um encontro do pessoal da sala de bate-papo de Cuiabá da ZAZ (Terra) em 1997... só tinha uma sala na época, kkkkkk, “Al mare em 1986”, “Navio transporte de tropas Barroso Pereira (G-16), meu primeiro embarque”, “Escola de Samba Filhos de Netuno – Carnaval de 1966 – Florianópolis SC (EAMSC)” Fotografia 60- Lembrança do trabalho Fotografia 61 - Lembrança do trabalho 138 Fotografia 62 - Lembrança de lazer Fotografia 63 - Lembrança de lazer Da família: “Vovô Oswaldyr, mamãe e Juju...sangue não é água”, “Olha o Rubens e o paizão, que saudades dos tempos idos”, “que lembrança beleza”, “Quase o jardim do Éden em 1978”, “Eu e minha mãe (Cinelândia-RJ) 1960” Fotografia 64 - Lembrança de família Fotografia 65 - Lembrança de família 139 Fotografia 66 - Lembrança de família Fotografia 67 - Lembrança de família Uma fala de um militar reformado é carregada de boas lembranças em relação à função desempenhada: Eu: mas nas suas fotos pessoais, é só você quem aparece? Miro: afirmativo, principalmente as do tempo de Marinha do Brasil, e os poucos comentários que faço são exatamente sobre postagens de ex- companheiros de farda Eu: entendi, publica essas fotos como lembrança Miro: afirmativo, e por sinal boas lembranças... Eu era feliz e não sabia! 140 Fotografia 68 - Militar reformado em tempos de Marinha Outra memória trazida pelas fotografias é a dos entes queridos já falecidos. E nesse quesito também entram amigos de outras espécies que não estão mais por perto, os gatos e cachorros que deixaram um rastro de fidelidade e alegria e que já partiram dessa vida. O que chama a atenção é o fato de os homenageados não estarem presentes para ouvir e ver o que é publicado sobre eles. Ao que tudo indica, essas publicações atendem a um tipo de necessidade de dividir os momentos felizes e as pessoas queridas que passaram pela vida de cada um, porque é através dessas banalidades comuns que encontramos conforto para lidar com a perda de alguém ou para aceitar que o passado ficou pra trás. Todos passaram por tais momentos e, portanto, a compreensão. As frases aqui compiladas foram retiradas dos títulos dos álbuns e das legendas das fotografias e mostram as saudades de quem já se foi. Elas mostram, em flashes, a história da construção de vidas e são essencialmente de membros da família. “Navô:o meu avô materno”, “Cotinha sempre muita saudade”, “Vô Noel, Descanse”, “Amiga eterna, saudades”, “Bella...que saudades!!!!”, “Mano gostava de animais como eu”, “Minha mãe, tá no céu”, “Manos Alfredo (in memorian)e mano Geraldo (in memorian)”, “Minha irmã Dalva (in memorian)no casamento de seu filho Geovane, à direita meu pai (in memorian)”, “Este era meu pai...”, “Quantas saudades, estes era meus pais”, “A que tá com chalé preto era minha vó Luiza, saudades”, “ow minha irmã,sinto falta de conversar com vc”, “Meu saudoso pai José Emílio Pereira”, “Meu saudoso irmão Domi”, “minha saudosa mãezinha”, “A grande guerreira, esteja com Deus”, “Eu e minha mãe na praia do farol da Barra em 1987” 141 Fotografia 69 - Parente falecido Fotografia – 71 Parente falecido Fotografia 70 - Parente falecido Fotografia 72- Parente falecido Os entes de quatro patas não podem ficar de fora, pois a presença deles marcou a vida de seus donos e de toda a família. “meu cãozinho assassino. Descanse em paz amigo”, “The flash, the mad dog, esse comia fogo”, “Meus grandes amigos, muitas saudades”, “Meu querido e fiel amigo/companheiro Kolly – partiu dessa vida em 09-02-2010. Obrigado por quase 13 anos de alegria”. 142 Fotografia 73 - Cão falecido Fotografia 75 – Cães falecidos Fotografia 74 - Cão falecido Fotografia 76 - cão falecido Finalmente, mas não menos importante, são as fotomontagens que aparecem repetidamente nos SRS pesquisados, com destaque para o Orkut, onde além de estampar os álbuns dos usuários, elas também são enviadas como recados. Nelas, em geral, as pessoas adaptam fotos pessoais com conteúdos diversos, como imagens com pessoas famosas, de lugares, de bichos e outras mais que serão comentadas a seguir. 143 * A vida como obra de arte O farto material que encontrei sob a classificação montagens me faz questionar o que leva alguém passar tanto tempo recortando, manipulando, colando, puxando e repuxando as suas fotos para que se encaixem em imagens prontas de locais, pessoas, e até objetos. Seguindo o raciocínio dos moralistas de plantão, tendo a conceber tal fenômeno como perda de tempo. E é normal que isso aconteça, dada a visão moderna e econômica de que todos os esforços e atividades devem ser redutíveis às necessidades materiais de produção e conservação. Porém, ao situar meu olhar numa perspectiva da pós-modernidade, vejo outra leitura possível para este fenômeno, que diz respeito à estetização da vida, tanto no sentido de obra de arte quanto no sentido original da palavra, que sugere uma vibração coletiva. Ao vasculhar por entre os álbuns dos sujeitos analisados, sobretudo no Orkut, me deparei com fotografias que mostram o usuário numa tela em um museu, num outdoor na rua, na tela da TV, no celular, emoldurada num retrato, na capa de um livro, na capa de um CD, no rótulo de perfume, no cartaz de um filme, na capa de revista, na tela do cinema. Até na carta de baralho tinha uma! Outros apareciam emoldurados em anjos, borboletas, flores, em bonecas, dentro de corações, entre estrelas e bichos os mais diversos, além de montagens ao lado de estrelas da TV e no próprio corpo do (a) famoso (a). Não só nos álbuns encontrei esse tipo de foto, mas também em recados enviados aos amigos, onde a foto do usuário é ajustada em um cenário desejável onde se lê uma mensagem de carinho, como “Tenha uma ótima semana” ou “Sua amizade é importante para mim”. Nessa estetização do cotidiano, o que se busca é transformar a vida em obra de arte. Há um dispêndio de tempo para fazer as montagens e, aparentemente, não há um propósito final a não ser o prazer próprio e coletivo. Há certo consenso sobre isso e nada de racional, pois o que reúne é justamente o aspecto emotivo e efêmero das fotografias, a histeria que elas provocam quando do irromper de uma gargalhada ou da vibração dos amigos: “ficou show!”. Não se usam as montagens como forma de forjar uma fotografia verdadeira, mas apenas brincar com a própria existência. Os próprios álbuns ratificam isso: “Montagens e efeitos 1”, “Montagens e efeitos 2”, “Matheus e Helena montagens”, “Fotos montagens”, “Foto montagens Ana”, “Montagens”, “Montagens feitas por amigos”. Existem as fotomontagens espalhadas por outros álbuns também, sem um álbum específico. 144 Na maioria das vezes, homens e mulheres utilizam essas fotografias por diversão, para ver a reação dos amigos e, algumas vezes, dão de presentes a amigos também. Perguntei a uma das entrevistadas o porquê de publicar esse tipo de imagem e ela me explicou que tinham sido presentes de amigos e que gosta de recebê-los porque sente que seus filhos e ela são queridos e lembrados. “nem foi bem eu que fiz, a maioria foi os amigos que fizeram e mandaram.Sim (gosto), é uma forma de carinho.Eu acho que é uma forma da pessoa demonstrar carinho pelas crianças (...)”. Outra me contou que já utilizou fotografias com montagem até mesmo na imagem de perfil: já usei minha mesmo com montagens de um programa que tenho, vc só encaixa o rosto e fica perfeita kkk, foi só uma brincadeira, na época que achamos esse site, eu e minha irmã fizemos várias, pra brincar mesmo, por diversão. Em algumas fotomontagens há uma clara modificação das cores da fotografia original. Ao colocar mais tinta na imagem, ao alterar a sua cor, a fachada construída se adapta às vontades do usuário. Desse modo, há uma acentuação de aspectos de sua fisionomia na tentativa de reforçar algumas características e provavelmente disfarçar outras. Introduzindo mais tinta às imagens, há uma tendência de retoque da fachada, que ao fim aparecerá mais bela e chamará mais atenção. Analisando o fenômeno das montagens, me ocorre relacioná-lo com o barroco ou o neo-barroco, como propõe Calabrese, numa atitude de descrever os fenômenos de cultura do nosso tempo. Esse termo é fecundo porque, antes de ser limitador de um período histórico, ajuda-nos a compreender esse tempo presente. A vida cotidiana, sob diferentes aspectos, ilustra a atualidade do barroco. A força da ilusão pode ser exemplificada pelos vários termos empregados sobre ele: artifício, pitoresco, fantástico, aparência, superficialidade. De forma semelhante, Maffesoli vê nos fenômenos contemporâneos uma contaminação barroca. Essa barroquização da existência pode ser vislumbrada no culto ao corpo e nas milhares de experimentações, nunca ortodoxas, da vida cotidiana, representadas em músicas, fotos, quadros, nas diversos hibridismos e porque não nas montagens? Esse mosaico de possibilidades, que casa fotografias de pessoas comuns com efeitos às vezes pouco interessantes, até mesmo grosseiros, não quer lembrar a perfeição. Ao opor elementos díspares, as montagens mostram que tudo vale e que nem por isso deixam de ser simbólicas. 145 Em analogia aos objetos de arte do barroco, com toda sua exuberância e fazendo de cada momento uma pequena festa, é possível inferir que as montagens são dotadas das mesmas qualidades: elas agregam e se tornam acontecimento. Tal constatação, acredito, não vale apenas para as fotomontagens, mas para todas as fotografias publicadas diariamente nos sítios pesquisados. Numa espécie de religiosidade social, estamos nos ligando ao outro, nos aproximando por meio delas. Nas fotomontagens, há ainda um fator a mais: a espetacularização da vida banal, elevada ao estatuto de arte e compartilhada com os demais usuários. As imagens comuns nos SRS permitem falar em um reencantamento do mundo, assim entendido por Maffesoli em contraposição com a modernidade, uma época em que a técnica e a ciência promoveram um desencantamento do mundo. A estetização do cotidiano visualizada nos sites através das fotografias mostra que é o sensível, o emotivo, o banal e a proxemia que sustentam toda a vida em sociedade. Abaixo, apresento algumas das várias fotomontagens exibidas nos sites. Fotografia 77 - Fotomontagem Fotografia 78 - Fotomontagem 146 Fotografia 79 - Fotomontagem Fotografia 81 - Fotomontagem Fotografia 80 - Fotomontagem Fotografia 82 - Fotomontagem 147 Fotografia 83 – Fotomontagem Fotografia 84 – Fotomontagem A explosão orgiástica contemporânea é impulsionada pelas novas tecnologias de comunicação e distribuída em escala planetária pela internet. O sucesso dos SRS só comprovam essa tendência. A socialidade de que fala Maffesoli não se limita à presença física das pessoas. Hoje ela é alargada pelos chats, fóruns, listas de discussão, blogs, os SRS e tantos outros serviços disponibilizados por softwares cada vez mais atentos às necessidades das pessoas: estar próximas, apesar de distantes. Com a possibilidade de inserção das fotografias, além da visão e da escuta – já agraciadas com conversas por áudio e vídeo -, os sistemas de comunicação introduziram o tato e agora permitem que as pessoas se toquem umas às outras por meio de suas imagens. No caso das fotomontagens, com toda a sua superficialidade, além de tocar, o que se pretende é surpreender o interlocutor com cenários inusitados, exóticos, fantasmagóricos, cuja figura principal é o usuário. Elas representam os quinze minutos de fama que todos sonham ter. 148 REFLEXÕES (IN) CONCLUSIVAS “Quando nada é importante, tudo tem importância.” Michel Maffesoli D iante de um relato certamente incompleto e empobrecido, cujas referências me permitem apenas mostrar como os fatos são e não como deveriam ser, encerro meu trabalho com algumas reflexões cujos desdobramentos estão longe de se esgotarem aqui. Na tentativa de desvendar como os usuários de sites de redes sociais se apresentam e a partir daí se relacionam e se envolvem, mais do que falar deles, falo de mim, uma usuária ativa desses sistemas. Como experiência pessoal, a (n) etnografia conduzida me fez conhecer não apenas o grupo estudado, mas a mim mesma. Por isso, considero ter o trabalho alguma contribuição. Como sujeitos sociais, somos também atores e estamos sempre, num esforço mais ou menos constante de encenação, envolvidos em estratégias através das quais cada um constrói uma imagem de si e busca se autoafirmar em sociedade. Apesar de as novas tecnologias da comunicação e informação estarem alterando significativamente o cotidiano das pessoas, inserindo-as em novos formatos de interação e permitindo-as se expressarem de um jeito novo, como nos SRS, é possível dizer, a partir da pesquisa, que a construção da fachada nesses espaços não é diferente da empreendida na interação face a face. Ainda que “escondido” por trás da tela do computador, o usuário se vale de um ritual de apresentação, como Goffman já havia captado. A apresentação de si parece guiada pelas mesmas regras que estabelecem o que pode ou não aparecer no contato não mediado, ou seja, há um cuidado para que o ator não tenha sua “cara” comprometida. A ressalva é que há um controle expressivamente maior da situação quando se está on-line. O constrangimento, as bochechas coradas e a falta de jogo de cintura típicos de um encontro físico, não são problemas enfrentados pelos usuários de SRS. Não até que o encontro físico aconteça. Nesse caso, e se a representação do usuário for falsa, a amizade ou até mesmo o romance virtual pode ser abalado. 149 No que diz respeito à apresentação dos usuários no Orkut e no Facebook, há uma visível preocupação com a aparência e com a imagem de si produzida. As fotografias selecionadas para compor os álbuns e também aquela eleita para figurar na imagem de perfil – diria a mais importante, pois é a que identifica o usuário quando de uma busca nos sites – são sempre as melhores, as mais bonitas e aquelas em que o usuário aparece “bem”. Isso parece não ser algo desconhecido do senso comum, mas é importante recuperar o fato e associá-lo ao que afirma Goffman sobre a criação e manutenção de fachada. “A face de alguém é uma coisa sagrada, e a ordem expressiva exigida para sustentá-la, é portanto, um ritual”180. Logo, as negociações que antecedem a publicação de material nos sites acima citados, sobretudo em relação às fotografias. Elas envolvem seleção, recorte, posicionamento e às vezes algum efeito para melhoramento da imagem. As fotografias analisadas e os depoimentos colhidos dão notícia de uma padronização daquilo que é tornado público nos SRS e também daquilo que não pode aparecer. Em relação às imagens apresentadas, os usuários se mostram de forma semelhante: com a família, os amigos, sozinhos, em viagens, festas, com o parceiro, relembrando o passado, e em montagens cuidadosamente elaboradas. Tudo que cause embaraço frente à sociedade deve ficar de fora: fotografias obscenas, íntimas, pornográficas, libidinosas, indecentes, feias, ousadas, extravagantes, constrangedoras, enfim, como relataram meus informantes, tudo o que possa comprometer de alguma maneira o usuário não pode ser visto. Contudo, a representação e a conduta tomada pelos usuários, sempre melhorativas, não parecem ser feitas de forma consciente. Durante as entrevistas, apenas dois informantes mencionaram que não são exatamente o que os perfis dão a entender. Não que a representação seja falsa, apenas que ela não corresponde, de forma precisa, ao que são e vivenciam diariamente. Os demais disseram que o perfil é verdadeiro, autêntico e que representa o modo como eles se veem. Isso pode ser compreendido a partir de Goffman, dado que “a maioria das ações guiadas por regras de conduta são executadas sem pensar”.181 Se a padronização do modo de apresentação de si nos sites pode parecer uma forma de exibir apenas as coisas “belas” da vida, ela também pode simbolizar uma forma de agregação social. Lembrando o tribalismo definido por Maffesoli como “o sentimento de filiação ou a partilha de um gosto”182, é possível enxergar tal o fenômeno como uma maneira de as pessoas expressarem o que é importante em suas vidas. E isso as une. As temáticas partilhadas 180 GOFFMAN, 1982, p.17. Ibid., p.49. 182 MAFFESOLI, 2011, p.71 181 150 mostram um gosto comum, uma maneira semelhante de se apresentar em sociedade por meio da internet. É esse vínculo social, esse sentimento de pertencimento que permite às pessoas se sentir em correspondência. As formas atuais das relações sociais não se esgotam nos encontros face a face. Elas são alargadas pelos novos dispositivos comunicacionais proporcionados pelo desenvolvimento tecnológico e pela internet. E assim como em outros agrupamentos físicos, na internet é possível observar a marca da sociedade contemporânea, a socialidade de que fala Maffesoli. Integrando o lúdico, o onírico e o imaginário, ela dá o tom às reuniões, enfatizando a tragédia do presente, nas relações banais do cotidiano, no instante vivido sem projetos futuristas ou morais. São as práticas cotidianas que escapam ao controle social rígido e cujas características principais são o hedonismo e o tribalismo. Nesse sentido, e a partir de Lemos, é possível falar que a cibercultura se constitui em uma ciber-socialidade, ou seja, uma estética social alimentada pelas tecnologias do ciberespaço. A tecnologia investida pela potência da socialiade pode ser vista nos SRS, não sem conflitos.183 Os aspectos mais frívolos e anódinos da vida de cada um são exaltados nesses sites e há uma clara busca por empatia. Ao mostrar a casa, os animais de estimação, a família, os amigos, as novas aquisições etc, os usuários buscam um sentimento de filiação, de partilha, de afeto. E assim, a existência de cada um ganha sentido, porque assentada sob os mesmos valores. Eis a ideia do estar-junto, o cimento social de toda a vida em sociedade. Vida essa que não é mais marcada pelo aspecto produtivo, mas pela emoção que o vínculo com o outro pode suscitar. São as efervescências festivas e os momentos de júbilo que conferem o prazer de estar vivo. Nos SRS, as mensagens postadas imploram pelo final de semana, quando se pode, enfim, vivenciar tudo isso. Os títulos dos álbuns também sugerem essa tendência: “Momentos especiais”, “Qualidade de vida”, “Vida de qualidade”, “Momentos de felicidade”, “Instantes”, “Momentos inesquecíveis”, “Férias”, “A gente se diverte, sempre”, “Satisfaction”, “Festas e passeios”, “Sair, viajar, repensar, curtir a vida”, “Um pouquinho de folia”, “Tô de folga”, “O que importa”, “É tudo o que eu amo”, “Razões do meu sorriso”, “Tudo o que vale ser lembrado”, “Fim de semana animado”. Em cada um deles, a expressão do que realmente importa os usuários. O ambiente comunicacional dos SRS é palco de uma exacerbação da aparência que não pode ser vista como algo sem valor. Como pontuou Maffesoli, “a vida urbana é mesmo a 183 A agregação social possibilitada pela tecnologia pode também ter contornos violentos, conflitantes, discriminatórios, como, aliás, também acontece com as outras formas de comunhão não mediadas. 151 das aparências”184 e são elas que, simbolicamente, exprimem um modo de tocar o outro. A aparência não é desprezível. Ela é, antes, intrínseca ao corpo social. A eficácia da aparência, nas palavras de Maffesoli, “é tornar visível essa graça invisível que é estar-junto”185. É, de fato, por isso, que as fotografias são publicadas nos sites. A maior parte dos meus informantes disse que o motivo delas é justamente manter contato, mostrar um pouco da vida e de como as coisas estão a amigos e parentes com os quais não tem um contato físico frequente. Também há os que se preocupam com os amigos ou parentes que ainda não os conhecem e por isso publicam fotografias. É dessa forma que as imagens permitem tocar os seus observadores, proporcionando um estar junto virtual, por assim dizer. As apresentações dos usuários através das fotografias também dizem respeito de uma multiplicidade de máscaras. As imagens mostram homens e mulheres desempenhando papéis variados: em casa, no trabalho, com os amigos, na balada, o esportista, o artista, a dona de casa, o pai, a mãe, o filho, o torcedor, a voluntária... Enfim, a fachada bem cuidada também é uma fachada múltipla, que revela as várias facetas do usuário, os eus de que somos feitos. De forma geral e (in) conclusiva, entendo, então, que a construção da fachada nos SRS pesquisados está relacionada a um processo de representação performática dos usuários. Uma representação cuidada e previamente decidida, no sentido de que os usuários optam por deixar à mostra, ressaltar e também ocultar algumas informações, gostos e interesses, se pautando pelo que é valorizado ou desvalorizado pelos sujeitos com os quais se identifica, e, sobretudo, pelas regras da sociedade em que vive. Como exemplo dessas manobras, está a decisão de publicar em determinado site apenas as fotografias em que “saiu bem”. A aparência é, portanto, fator determinante para a construção da fachada, assim como as informações acrescentadas ao perfil. Tudo serve para que o observador adquira uma informação sobre o observado e projete uma definição dele. A construção da fachada é importante, mas é igualmente necessário manter a face inicialmente projetada. As constantes atualizações são, portanto, pertinentes. A importância da imagem no palco virtual dos sites é que ela é, antes de tudo, proxêmica. Faz as pessoas se sentirem mais próximas ao compartilharem situações e experiências vividas. E quando se observa certa padronização dessas imagens é sinal de que existe um equilíbrio ritual e que o usuário não as produz “a partir das propensões psíquicas do interior, mas das regras morais que são imprimidas sobre ele de fora”. É a partir dessas regras que a pessoa avaliará a si e aos seus companheiros. 184 185 MAFFESOLI, 1996, p.159. Ibid., p.167-168. 152 Finalmente, é preciso considerar a condição mediada da pesquisa enquanto um novo formato na relação orientador-orientado. Muitos encontros físicos não puderam acontecer, mas o contato virtual entre mim e a minha orientadora se fizeram constantes. Nos SRS pudemos trocar ideias, discutir caminhos, observar indícios... necessariamente estar perto. E estar juntas, sem 153 BIBLIOGRAFIA AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. AMARAL, Adriana; NATAL, Geórgia; VIANA, Lucina. Netnografia como aporte metodológico da pesquisa em Comunicação Digital. Revista Famecos, Porto Alegre, nº20, p. 34-40, dez. 2008. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/famecos/article/viewFile/4829/3687.Acessa do> Acesso em: 10 jan. 2012. BAYM, Nancy K. Internet Research as it isn´t, is, could be and should be. In: The Information Society, 21. Online. p.229-234. 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