Ernest Hemingway: destino, genética e álcool

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Ernest Hemingway: destino, genética e álcool
Leituras / Readings
Ernest Hemingway: destino, genética e álcool
Ernest Hemingway: destiny, genetic and alcool
“- Para te dizer a verdade, filha, os psicanalistas metem-me medo, por ainda não ter encontrado um que tivesse sentido do humor.
- Queres dizer – perguntou a Ava, pasmada – que nunca tiveste um psicanalista?
- Tive e tenho. A Corona portátil número três. Esse tem sido o meu analista.Vou dizer-te uma coisa: embora não seja um fiel da análise,
passo uma porção do tempo a matar animais e peixes para não me matar a mim. Quando um homem está em revolta contra a morte,
como eu, sente prazer de se apossar de um dos atributos divinos: o poder de dar.
- Isso é profundo de mais para mim, Papá.”
Conversa entre Hemingway e Ava Gardner reproduzida no livro “Hemingway” de A.E. Hotcher
“Só nos primeiros anos da juventude o acaso ainda parece idêntico ao destino. Mais tarde sabemos que o verdadeiro caminho da vida
é determinado de dentro; por mais cruel e absurdamente que nosso caminho pareça desviar-se de nossos desejos, ele sempre nos conduz
ao nosso objectivo invisível.”
Adrian Gramary
Stefan Zweig: O mundo de ontem. Memórias de um europeu
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Na manhã do domingo 2 de Julho de 1961, o escritor
Ernest Hemingway acordou muito cedo na sua casa
de Ketchum (Idaho). Saiu da cama silenciosamente,
deixando a sua mulher Mary a dormir e dirigiu-se ao
quarto onde estavam guardadas as armas. Nesse
momento, na sua cabeça, provavelmente surgiu nítido
um velho fantasma familiar que retornava, desta vez
para se encarnar e concretizar: o suicídio do seu pai.
O escritor, sentindo o peso inexorável do destino,
pegou numa espingarda que usava para caçar pombos
e, encostando no palato o cano da arma, apertou o
gatilho.
Trinta anos antes, o pai do escritor, o médico Clarence
Edmonds Hemingway, tinha-se suicidado aos 28 anos
de idade, no seu consultório, com a velha pistola Smith
& Wesson do avô. Em nenhum sítio melhor do que na
própria obra de Hemingway encontramos a significação
e a transcendência que a morte trágica do pai teve na
sua vida. Assim, Robert Jordan, o protagonista do
romance “Por quem os sinos dobram”,
questionando-se a si próprio pelas mortes inúteis da
guerra civil espanhola, evoca, na parte final do romance,
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a figura heróica do seu avô, soldado na guerra civil
americana. A partir desta evocação, surge uma outra
sombra, bem mais trágica, a da figura do pai, que se
suicidou com a pistola do avô. Recorda assim o
protagonista, depois do funeral do pai - e após lhe ter
sido entregue a pistola com que ele se matara - ter
ido ao lago e, depois de contemplar a sua imagem
segurando a pistola na mão, reflectida na superfície
imóvel da água, evoca como se libertou desse objecto
letal, deitando-o no lago. Alguém que acompanha o
protagonista neste momento diz-lhe “eu sei porque é
que fizeste isso com a velha pistola, Bob”, ao que aquele
alter ego do escritor responde “bom, então não teremos
que voltar a falar disto”. Este fragmento descreve o
mais terrível fantasma do escritor: a morte do pai. O
lago da cena, bem poderia ser o lago Michigan, perto
da vila natal de Ernest, Oak Park, velha pátria índia,
região de florestas, de serrações, de caçadores e
pescadores, para onde o nosso escritor costumava ir
em criança, acompanhando o seu pai na pesca de truta,
como nos lembra Olivier Rolin nas suas “Paisagens
Originais”. No entanto, esta não é a única referência
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a esta morte trágica na obra do escritor. No romance “Ter ou
não ter”, o protagonista conclui uma sombria reflexão sobre o
suicídio com estas palavras: “outros seguiram a tradição indígena
da Colt ou da Smith & Wesson, instrumentos bem fabricados, que,
com o apertar de um dedo, terminam com a insónia, acabam com
os remorsos, curam o cancro, evitam as falências, abrem uma saída
a situações intoleráveis, admiráveis instrumentos americanos fáceis
de levar, de resultado seguro, tão bem projectados para por fim
ao sonho americano quando este se transforma em pesadelo, e
cujo inconveniente é a porcaria que deixam para a família limpar”.
Na biografia canónica de Hemingway escrita por Hotchner
(publicada pela Bertrand Editora em 1999, coincidindo com o
centenário da morte do escritor), encontramos as circunstâncias
reais em que a pistola chegou às mãos do escritor: “Alguns anos
mais tardes, pelo Natal, recebi um embrulho da minha mãe. Continha
o revolver com que o meu pai se suicidara. Trazia um bilhete
dizendo que achava que eu talvez gostasse de o ter, mas não
explicava se era agoiro ou profecia.” Esta entrega adquire conotações
ainda mais funestas, quando temos em conta que o escritor sempre
culpou a mãe da morte do pai.
A primeira coisa que nos surpreende, quando observamos o
genograma da família Hemingway, (reproduzido parcialmente por
Kay Redfield Jamison no seu livro: “Touched with fire: Manicdepression Illness and Artistic Temperament”) é a densidade
de suicídios nesta família: cinco em três gerações. Para além do
suicídio do pai e o do próprio autor, já referidos, dois irmãos de
Ernest, Úrsula e Leicester, e mais recentemente, a sua neta, a actriz
Margaux Hemingway, puseram fim aos seus dias suicidando-se.
É praticamente consensual que - tal como descreveu Fernandes
da Fonseca no seu livro imprescindível “Hemingway: Esboço
Psicobiográfico” - o autor norte-americano sofria de Perturbação
Bipolar, doença conhecida pela sua forte carga genética e pelo seu
alto risco de suicídio, nomeadamente quando se associa ao abuso
de substâncias, particularmente bebidas alcoólicas. Pode-se, da
mesma forma, concluir que o pai, Clarence, sofria da doença
maníaco-depressiva, embora nunca diagnosticada, pois tinha
constantes mudanças do humor.
O filho do escritor, Gregory, também médico como o avô,
apresentava ciclicamente episódios maníacos e depressivos, que
determinaram múltiplos internamentos psiquiátricos e a introdução
de terapia electro-convulsiva. A história trágica de Gregory foi
abordada recentemente no livro de memórias da sua última esposa
e secretária pessoal do seu pai, Valerie Hemingway, intitulado
“Correr com os touros: os meus anos com os Hemingway”.
O livro descreve esta vida trágica, que, após três naufrágios
matrimoniais, passou pela decisão radical da mudança de sexo no
ano 1995 e que terminou, tragicamente, em 2001, com a sua morte
por ataque cardíaco, numa prisão feminina. Tinha sido detido por
“comportamento indecente”: foi encontrado nu, quando regressava
de uma festa, com o vestido e os sapatos de saltos altos na mão,
em evidente estado de desorientação.
A neta de Ernest, Margaux Hemingway, actriz famosa nos anos 80
por filmes como “Lipstick”, após falhanços consecutivos na sua
carreira profissional e na sua vida afectiva, e com uma historia de
intenso abuso de álcool no seu passado, se suicidou num dia 2 de
Julho (mesma data que o seu avô, o que se torna mais uma
coincidência nesta historia fatídica) de 1996 por overdose do
barbitúrico fenobarbital. Segundo relato da imprensa, as circunstâncias
em que o seu corpo, em avançado estado de decomposição, foi
encontrado, são suficientemente expressivas por elas próprias:
“No quarto havia uma mesa pequena que tinha sido usada como
altar. Em cada canto da mesa havia um montezinho de sal. Em cima
da mesa havia um ramo de flores brancas e dois círios, também
brancos, sem queimar, num candeeiro com forma humana. À
esquerda havia outro candeeiro branco. Os candeeiros estavam
colocados dentro de um círculo feito com fita branca. Fora do
círculo havia um livro religioso. Margot tinha queimado incenso.
Havia também vários papéis procedentes de um bloco de
apontamentos em que se podia ler: «amor, cura, protecção perpétua
para Margot». À esquerda da cama havia um ursinho teddy.”
A morte, nas suas múltiplas faces, é uma presença constante na
obra de Hemingway. Às vezes, assume a forma de uma reflexão
directa sobre ela, como no seu romance sobre a tauromaquia
“Morte na tarde”. O autor encontrou na tourada - no que ela tem
de representação mítica da luta trágica pela existência - um símbolo
pessoal e talvez uma liturgia para exorcizar os seus próprios
fantasmas. Outras vezes, a morte foi uma presença mais heróica
e épica: assim, é possível entender a sua participação em todas as
guerras (a primeira grande guerra, a guerra civil espanhola, a
segunda guerra mundial). O nosso autor esteve sempre onde a
vida bulia mais intensamente (no Paris de entre-guerras,
compartilhando vivências com os outros colegas da “geração
perdida”: Scott Fitzgerald, Dos Passos, Gertrude Stein, etc; no
desembarque de Normandia, acompanhando as tropas aliadas).
Tentou, como refere Anthony Burgess “beber a vida até ao
limite”, sentindo, como bem descreve o católico escritor britânico,
que “para se comprometer com a literatura, é necessário primeiro
comprometer-se com a vida”. A prática do boxing, a caça do búfalo
e a pesca do espadarte - que praticou nas savanas africanas e no
mar das Caraíbas - foram, juntamente com as touradas, as suas
grandes paixões. Teve ainda a capacidade de traduzir a luta trágica
da pesca do espadarte em símbolo existencial no romance que
lhe concedeu a atribuição do Premio Nobel em 1954: “O velho
e o mar”.
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O prelúdio da sua tragédia definitiva começou em 1960, quando
surgiram os primeiros sintomas de uma grave fase depressiva,
provavelmente desencadeada pelo marcado abuso de álcool. O
escritor apresentava simultaneamente sintomas psicóticos de tipo
persecutório, referindo sentir-se perseguido por agentes do F.B.I.
Foi observado pelo psiquiatra Howard Rome, que recomendou
o seu internamento na Clínica Mayo para iniciar terapêutica
electroconvulsiva. Segundo a informação recolhida em diferentes
fontes, a recuperação não terá sido satisfatória, apesar de - e para
surpresa da mulher - o psiquiatra ter decidido dar alta, iludido
pelo aparente bom estado do autor. O suicídio de Hemingway,
ocorrido pouco depois de ter sido tratado com terapêutica
electroconvulsiva, tem sido um argumento usado repetidamente
pelos detractores deste tratamento (neste sentido, podem ser
encontradas múltiplas páginas na net, usando as palavras Hemingway
e psiquiatria no motor de pesquisa).
Dois dos elementos do título escolhido para este artigo – genética
e álcool - constituem, em si próprios, um cocktail suficientemente
explosivo para entender o final funesto desta história. Genética;
devido à história familiar de doença bipolar e suicídio, cuja sombra
parece ter atingido, sem poupar nenhuma geração, o destino dos
Hemingway. Álcool; que será o elemento que terá, no mínimo,
facilitado – como reconhece Fernandes da Fonseca - o desenlace
pessoal do escritor. Muito se tem discutido sobre as relações entre
o álcool e as doenças afectivas, e diferentes teorias têm sido
apontadas para explicar a estranha apetência que estes doentes
têm pelo álcool (por exemplo: a teoria da auto-medicação).
Poderíamos acabar deixando uma pergunta no ar: teria sido possível
mudar o desenlace desta história trágica se, na altura em que o
prémio Nobel adoeceu, tivessem existido os recursos terapêuticos
antidepressivos e estabilizadores do humor de que dispomos
actualmente? Os mais cépticos, ou até os mais temerosos do cego
poder das parcas (chamem-se elas genética, providência ou ambas
as coisas), responderiam colocando uma dúvida razoável; alguns
argumentariam a inutilidade do nosso desejo e para isso colocariam
o peso do livre arbítrio ou recordariam as limitações que
actualmente a psiquiatria ainda tem para tratar alguns destes casos.
E provavelmente todos teriam razão; mas era o nosso desejo como
terapeutas (talvez desejo de omnipotência) que a lúgubre presença
da pistola atirada por aquela criança ao lago, após o funeral do pai,
tivesse ficado definitivamente no fundo, esquecida, como no fundo
daquele rio do inferno, o Leteo, que Dante descreveu na Divina
Comédia, cujas águas tinham o poder de fazer esquecer todas as
recordações (que bem poderia ser, desta vez, o lago Michigan).
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BIBLIOGRAFIA
Burgess, A (1984): Hemingway. Salvat. Biblioteca de Grandes Biografias.
Barcelona. (Tradução espanhola do original “Hemingway and his world”,
editada em 1978 por Thames and Hudson.)
Fernandes-da-Fonseca, A (1999): Hemingway: Esboço Psicobiográfico.
Edições Universidade Fernando Pessoa. Porto
Hemingway, E (1987): Por quién doblan las campanas. Seix Barral. Barcelona
Hemingway, E (2001): Tener o no tener. Pocket Edhasa. Barcelona.
Hemingway,V (2005): Correr con los toros: mis años con los Hemingway.
Taurus. Madrid.
Hotchner, AE (1999): Hemingway. Bertrand Editora. Lisboa.
Misrahi, A (2002): Adiós mundo cruel: los suicidios más celebres de la
historia. Océano. Barcelona.
Pustienne, JP (2005): Ernest Hemingway. Fitway. Paris.
Redfield-Jamison, K (1998): Marcados com fuego. La enfermedad maníacodepressiva y el temperamento artístico. FCE. México. (Tradução espanhola
do original “Touched with fire: Manic-depression Illness ans Artistic
Temperament” editada em 1993 por The Free Press.)
Rolin, O (2000): Paisagens originais. Edições ASA. Porto.
Voss, F (1999): Picturing Hemingway. A Writer in His Time.Yale University
Press. New Haven & London
Zweig, S (1953): O mundo de ontem. Memórias de um europeu. Livraria
Civilização Editora. Porto.

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