Propriedade intelectual e políticas públicas para acesso aos

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Propriedade intelectual e políticas públicas para acesso aos
Propriedade intelectual
e políticas públicas
para o acesso
aos antirretrovirais
nos países do Sul
Tradução
Marie José Parlange Lunardi
Revisão
Helô Castro
Pedro Villela
Produção Editorial
Thaís Garcez
Projeto gráfico e diagramação
Juliana Jesus
Capa
Sheila Rego
Cristina Possas
Bernard Larouzé
editores
Propriedade intelectual
e políticas públicas
para o acesso
aos antirretrovirais
nos países do Sul
Esta obra foi igualmente publicada na França no âmbito
da coleção “Sciences Sociales et Sida”, da ANRS, com o
título Propriété intellectuelle et politiques publiques
pour l’accès aux antirétroviraux dans les pays du sud.
Ela está acessível no site da ANRS: http:\\www.anrs.fr
Rio de Janeiro, 2013
© ANRS/E-papers Serviços Editoriais Ltda., 2013.
Todos os direitos reservados a ANRS/E-papers Serviços Editoriais Ltda. É proibida a
reprodução ou transmissão desta obra, ou parte dela, por qualquer meio, sem a prévia
autorização dos editores.
Impresso no Brasil.
O conteúdo dessa obra é de única responsabilidade dos autores.
ISBN 978-85-7650-368-2
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Como citar este livro:
POSSAS, C.; LAROUZÉ, B. (ed.). Propriedade intelectual e politicas publicas para o accesso aos
antirretrovirais nos paises do Sul. Rio de Janeiro: ANRS e E-Papers, 2013.
Para citar os capítulos (exemplo):
SPIRE, B. Associação AIDES: 25 anos de luta. In: POSSAS, C.; LAROUZÉ, B. (ed.). Propriedade
intelectual e politicas publicas para o accesso aos antirretrovirais nos paises do Sul. Rio de
Janeiro: ANRS e E-Papers, 2013.
CIP-Brasil. Catalogação na fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
P958
Propriedade intelectual e políticas públicas para o acesso aos antirretrovirais
nos países do Sul / editores Cristina Possas, Bernard Larouzé. - Rio de Janeiro :
E-papers, 2013.
328 p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7650-368-2
1. Propriedade intelectual. 2. Propriedade industrial. 3. Medicamentos - Legislação
- Brasil. 4. Indústria farmacêutica. 5. AIDS (Doença) - Pacientes - Tratamentos. 6.
Acesso a medicamentos. 7. Saúde pública. I. Possas, Cristina. II. Larouze, Bernard.
13-0617.
CDD: 362.1782
CDU: 364.444
Os editores
Cristina Possas
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu de Pesquisa Clínica
em Doenças Infecciosas, Instituto de Pesquisa Clínica Evandro
Chagas (IPEC). Conselho Político e Estratégico do Instituto de
Tecnologia em Imunobiológicos, Bio-Manguinhos, Fundação
Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil.
Bernard Larouzé
Unidade mista de pesquisa Inserm 707, Universidade Pierre
e Marie Curie, Paris, França. Escola Nacional de Saúde Pública
(ENSP), Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil.
Comitê editorial
Marilena Corrêa
Benjamin Coriat
Véronique Doré
Lia Hasenclever
Suzy Mouchet
Fabienne Orsi
Isabelle Porteret
Laurence Quinty
Agradecimentos
Os editores agradecem à Amélie Robine, Benjamin Coriat,
Constance Meiners, Cristina d’Almeida, Eloan Pinheiro,
Fabienne Orsi, Francisco Bastos, Fred Eboko, Guillaume Le
Loup, Lia Hasenclever, Mamadou Camara, Maria Andrea
Loyola, Marilena Corrêa, Maurice Cassier, Wanise Barroso,
Yazdan Yazdanpanah por suas contribuições na revisão dos
capítulos.
Eles agradecem igualmente à Bruna Fanis, Andrea Salomão,
Flavia Moreno, Letícia Teixeira, Alexandra Sanchez, Pedro
Villela, Nevada Mendès e Murièle Matignon por suas
contribuições na realização desta obra.
Sumário
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
INTRODUÇÃO
Propriedade intelectual e acesso aos tratamentos antirretrovirais
nos países do Sul no início da década de 2010: qual é o balanço? . . . . 13
Benjamin Coriat
Fabienne Orsi
PARTE I Novas moléculas, novas estratégias terapêuticas, a que preços
e a que custos?
CAPÍTULO 1
Estrutura de mercado e evolução dos preços dos medicamentos
antirretrovirais no Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
Constance Meiners-Chabin, Camelia Protopopescu,
Julien Chauveau e Jean-Paul Moatti
CAPÍTULO 2
Análise custo-eficácia de estratégias terapêuticas de primeira
linha: estudo feito a partir da experiência brasileira em matéria de
tratamentos antirretrovirais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
Sandrine Loubière, Julien Chauveau, David Zombre e Emily Catapano Ruiz
PARTE II Propriedade intelectual: questões e desafios
CAPÍTULO 3
Propriedade Intelectual e Aids nos países em desenvolvimento:
inovação e acesso aos produtos farmacêuticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
Cristina Possas
CAPÍTULO 4
Condições de uso das licenças compulsórias: a ação do governo
tailandês . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
Gaëlle Krikorian
CAPÍTULO 5
Procedimento de oposição: o caso Tenofovir . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
Wanise Borges Gouvea Barroso
CAPÍTULO 6
Aprendizagem e usos das flexibilidades dos direitos de patentes de
medicamentos no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .109
Maurice Cassier e Marilena Correa
PARTE III Genéricos e competências nacionais
CAPÍTULO 7
Reflexo das políticas industriais e tecnológicas de saúde brasileiras
na produção e no fornecimento de ARVs genéricos pós-2005 . . . . . . .127
Lia Hasenclever, Julia Paranhos, Helena Klein e Benjamin Coriat
CAPÍTULO 8
Institutional and procedural challenges to generic production
in India: antirretrovirals in focus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .143
Cassandra Sweet e Keshab Das
CAPÍTULO 9
A arquitetura do mercado de teste de monitoramento do HIV/Aids
e suas implicações sobre as respostas nacionais nos países em
desenvolvimento: a experiência brasileira na construção das redes
nacionais de laboratórios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .161
Cristina d’Almeida e Benjamin Coriat
CAPÍTULO 10
Competências e desafios para uma maior oferta de antirretrovirais
no Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .179
Adelaide Antunes, Andressa Gusmão, Flavia Mendes,
Fernando Tibau, Paola Galera e Rodrigo Cartaxo
PARTE IV Diversidade dos modelos de políticas públicas e de
abastecimento em antirretrovirais
CAPÍTULO 11
Sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito
aos medicamentos ARV: conquistas e desafios. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .199
Cristina Possas, Rogério Scapini e Mariângela Simão
CAPÍTULO 12
Os modelos locais de controle da epidemia de HIV/Aids no Brasil . . .221
Guillaume Le Loup, Andreia Pereira de Assis, Maria Helena Costa Couto,
Jean-Claude Thoenig, Sonia Fleury, Kenneth Camargo e Bernard Larouzé
CAPÍTULO 13
A cooperação entre o programa de Aids brasileiro e o Banco Mundial:
lições de uma parceria sustentável para os países do Sul . . . . . . . . . . . .239
Guillaume Le Loup, Andreia Pereira de Assis, Maria Helena Costa Couto,
Jean-Claude Thoenig, Sonia Fleury, Kenneth Camargo e Bernard Larouzé
CAPÍTULO 14
Determinantes sociopolíticos do acesso a ARVs na África: uma
abordagem comparada da ação pública contra a Aids . . . . . . . . . . . . . .255
Fred Eboko
CAPÍTULO 15
Modalidades e modelos de aquisição de ARVs na África Subsaariana:
implicações na disponibilidade local de medicamentos. . . . . . . . . . . . .275
Mamadou Camara, Cristina d’Almeida e Benjamin Coriat
PARTE V Acesso aos antirretrovirais: experiência e papel da
sociedade civil
CAPÍTULO 16
Associação AIDES: 25 anos de luta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .295
Bruno Spire
CAPÍTULO 17
O modelo brasileiro de combate à epidemia de Aids: a participação
da sociedade civil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .303
Maria Andréa Loyola, Pedro Villela
Lista de autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .323
Apresentação
Este livro foi elaborado a partir das discussões que ocorreram no Seminário organizado, no ano da França no Brasil, pela Agência Nacional Francesa de AIDS e Hepatites Virais (ANRS) e o Departamento de DST, AIDS e Hepatites Virais, do Ministério
da Saúde, com o apoio da Embaixada da França. O evento, que contemplou um
tema de pesquisa central para a cooperação entre essas instituições, foi realizado
em maio de 2009 no Rio de Janeiro e intitulado “Acesso aos medicamentos antirretrovirais nos países do Sul: 20 anos após a introdução ao tratamento antirretroviral”.
Este Seminário permitiu aprofundar, de forma inovadora, um tema estratégico
para os países em desenvolvimento, possibilitando o debate e a estruturação de
redes de pesquisa que têm contribuído para o fortalecimento da cooperação científica e tecnológica na área.
O livro está organizado em cinco partes e 17 capítulos, além da introdução temática que posiciona a questão do acesso aos medicamentos antirretrovirais nos
países do Sul, 20 anos após a introdução ao tratamento conhecido como HAART
(Highly Active Antirretroviral Therapy/Terapia Antirretroviral Altamente Ativa).
A primeira parte, composta de dois capítulos, trata dos preços dos novos medicamentos e sua influência sobre os custos das novas estratégias terapêuticas. O
primeiro capítulo analisa a estrutura do mercado de medicamentos antirretrovirais
e sua evolução no Brasil e o segundo foca a atenção sobre a relação custo/eficácia
dessas terapias. Ambos os capítulos têm como objeto de estudo a experiência brasileira, uma das mais bem-sucedidas entre os países do Sul.
A segunda parte, composta de quatro capítulos, versa sobre a propriedade intelectual e os novos arranjos em curso para aumentar o acesso aos medicamentos
antirretrovirais frente às regras impostas pelo acordo TRIPS (Trade Related Aspects
of Intellectual Property Rights). O Capítulo 3 versa sobre os contraditórios entre, por
um lado, a importância da inovação na dinâmica da indústria farmacêutica e, por
outro, a questão do acesso a estas inovações. Os demais capítulos, quarto, quinto
e sexto, analisam arranjos específicos adotados na Tailândia (Capítulo 4) e no Brasil
(Capítulos 5 e 6) no sentido de buscar melhores práticas para a aplicação do TRIPS
sem desconsiderar a questão do acesso.
Na terceira parte, também composta de quatro capítulos, são discutidos os
desafios da produção de medicamentos genéricos e avaliadas as competências
técnico-científicas para a sua produção. Apresenta, ainda, uma análise do mercado
de testes de monitoramento das pessoas vivendo com HIV. Os dois primeiros capítulos desta parte, Capítulos 7 e 8, contrapõem, respectivamente, as experiências
da Índia e do Brasil na produção local de antirretrovirais. Os dois últimos trazem
contribuições originais de análise do mercado de testes de monitoramento e das
competências disponíveis na universidade e nas instituições de pesquisa para o
desenvolvimento e a produção de antirretrovirais, respectivamente no nono e décimo capítulos.
A quarta parte é composta de cinco capítulos e discute a diversidade de modelos adotados pelos países do sul para o suprimento dos medicamentos antirretrovirais ou para lidar com a epidemia. O décimo primeiro capítulo trata da difícil
sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito aos antirretrovirais em um contexto de aumento rápido de custo do tratamento para o Ministério da Saúde. Nos capítulos seguintes são analisadas as políticas públicas frente à
epidemia de AIDS no Brasil (Capítulos 12 e 13) e na África (14). O último capítulo
trata de modelos de aquisição dos medicamentos e seu impacto sobre sua disponibilidade em vários países africanos.
A quinta e última parte é composta de dois capítulos que destacam o papel
da sociedade civil através do relato de experiências de organizações não governamentais de alcance nacional – tanto do Brasil quanto da França – e internacional.
Agradecemos à equipe do Departamento de DST/AIDS e Hepatites Virais do
Ministério da Saúde e à Embaixada da França pela sua valiosa participação na organização do Seminário que deu base à organização desse livro, em particular a
Bruna Fanis, Andrea Salomão, Flavia Moreno e Carmen Balduino.
Rio de Janeiro, setembro de 2012
OS EDITORES
12
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
INTRODUÇÃO
Propriedade intelectual e acesso
aos tratamentos antirretrovirais nos
países do Sul no início da década
de 2010: qual é o balanço?
Benjamin Coriat
Fabienne Orsi
A obra apresentada aqui, fruto de vários anos de intensa colaboração entre equipes
brasileiras e francesas sob os auspícios da ANRS e do Departamento de DST/AIDS
e Hepatites Virais do Ministério da Sáude do Brasil, e representada por pesquisas
sobre a situação atual da luta contra a Aids, oferece esclarecimentos múltiplos, inovadores e são, na maioria dos casos, fonte de dados originais, obtidos em primeira
mão pelos pesquisadores autores dos textos em questão.
Deixaremos ao leitor a descoberta dos detalhes desses estudos de forma a alimentar sua própria reflexão. Ele próprio poderá constatar que esses textos constituem um marco da colaboração franco-brasileira, mas que vão muito além, contribuindo de maneira decisiva para um melhor entendimento da década de 2010. A
presente introdução pretende contribuir a esta construção coletiva, constatando,
de nossa parte, que o quadro do combate contra a Aids sofreu, sem dúvida, algumas complicações, a partir de 2005.
Por vários motivos (expostos e detalhados no decorrer deste texto, bem como
em vários capítulos do livro), é evidente que o combate contra a pandemia entrou
numa nova fase. Quer se trate dos financiamentos internacionais, do custo dos tratamentos ou da legislação e da regulamentação relativas à oferta de genéricos –
três questões de suma importância sobre as quais esta introdução vai estar focada
– as evoluções recentes relativamente a essas três questões indicam um contexto
novo, inédito e, sob muitos aspectos, menos favorável que aquele do início da década de 2000.
A proposta desta introdução é de aportar precisões sobre este ponto, assinalando as mudanças mais importantes ocorridas durante os últimos anos1.
1 Este capítulo de introdução da continuidade e atualiza um exercício de natureza semelhante em publicação anterior, em obra de síntese da ANRS. Cf. Coriat (ed, 2008), Introduction Générale de l’ouvrage.
I. Financiamento: o esgotamento da ajuda pública
O fato relevante da recente evolução é a desaceleração dos financiamentos públicos (especialmente sob a forma de ajuda pública multilateral), que se seguiu a um
período de forte crescimento.
O início dos anos 2000 foi cenário do surgimento de novas instituições (Fundo
Global, mais tarde a UNITAID) construídas em uma base multilateral e que contribuíram de maneira significativa na solução de problemas encontrados pelos programas de acesso aos tratamentos dos países do Sul. No total, os financiamentos
referentes ao combate contra as três pandemias (aids, malária e tuberculose) passaram de 200 milhões de euros em 1999, para 7 bilhões de euros/ano em 2008 e
ultrapassaram os 10 bilhões, em 2010. O crescimento dos financiamentos públicos
multilaterais, adicionado aos da ajuda pública bilateral (caso do The U.S. President’s
Emergency Plan for AIDS Relief, PEPFAR) permitiu o lançamento de políticas de scaling up, em muitos países (inclusive na África subsaariana, onde a epidemia é mais
intensa). Foi assim que mais de 5 milhões de pessoas estavam em tratamento nos
países do Sul, ao final de 2010.
Este período de crescimento dos financiamentos públicos e do que eles possibilitavam em termos de acesso de novos pacientes aos tratamentos antirretrovirais
parece chegar aos seus limites.
Um sinal das novas dificuldades foi o fato de, pela primeira vez na história, o
Fundo Global ter deixado de financiar projetos já aprovados por seu Comitê2. Por
falta de recursos, alguns projetos prioritários, representando um total aproximativo de US$ 4 bilhões 3 4 deixaram de ser concluídos.
Tais fatos alarmantes foram confirmados nos meses seguintes, quando o Fundo
Global iniciou uma campanha por recursos, para seu próprio refinanciamento para
o período de 2011-2013. O Fundo desenhou três cenários5 que correspondem a
três montantes de recursos financeiros.
O Cenário 1 (considerado também como o cenário “mínimo”) foi concebido
como aquele que garantiria o prolongamento do financiamento dos programas
em andamento. Novos programas seriam possíveis, mas só poderiam ser aceitos e
financiados num ritmo bem inferior ao adotado nos anos anteriores. Neste cenário,
o financiamento de programas volumosos, baseados em tratamentos inovadores
2 Para os procedimentos de licitação dos projetos pelo Global Fund against AIDS, TB & Malaria GFTAM,
ver a introdução geral, já mencionada em Coriat (ed. 2008).
3 GFATM. Report of the Executive Director. Twentieth Board Meeting. Addis Ababa, Ethiopia. Disponível
no site do Fundo Mundial no endereço www.theglobalfund.org
4 Ver as observações de MSF: http://www.msfaccess.org/resources/key-publications/
5 Para o balanço do Fundo Mundial na época do lançamento da campanha 2010 e para a campanha
propriamente dita, ver o editorial publicado por Le Lancet com o título: The Global Fund: replenishment
and redefinition in 2010, The Lancet (2010).
14
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
– logicamente esperados, tendo em vista a evolução da pandemia6 – estaria excluído, exceto em circunstâncias excepcionais. Resumindo, este cenário introduziria
uma competição entre os candidatos a financiamento, com muitos demandantes
e poucos escolhidos. O montante dos recursos para esse cenário mínimo foi fixado em
US$ 13 bilhões para o período de 2011-2013.
O Cenário 2 (que pode ser chamado de “intermediário”) foi elaborado para
permitir não apenas a continuidade dos financiamentos para os programas existentes, mas também para garantir o lançamento de novos programas a um ritmo
comparável àquele do final da década de 2000. Dessa maneira, a trajetória iniciada
seria preservada. O total de recursos para esse cenário de preservação de conquistas
anteriores representava US$ 17 bilhões.
O Cenário 3 (dito «de progresso») foi pensado de forma que permitiria, além
do refinanciamento dos programas existentes, uma aceleração do scaling up, para
se chegar o mais perto possível dos objetivos do Milênio em matéria de saúde pública. Os recursos fixados para esse cenário foi de US$ 20 bilhões.
Durante a campanha por recursos do Fundo visando a garantir o seu refinanciamento, esses cenários (inclusive o mais “favorável”: o cenário 3) foram objeto de
críticas pela sua falta de ambição; crítica emanada por muitos atores da área e de
ONGs. O argumento das críticas consistia em lembrar que, sendo o objetivo do enfrentamento da pandemia a garantia de recursos necessários para os tratamentos
de todos os pacientes, as necessidades financeiras deveriam ser seriamente reavaliadas em um patamar superior. Dentre as contribuições para essa discussão que foram à época propostas e debatidas, J. Sachs publicou, no jornal The Guardian, uma
estimativa das reais necessidades do Fundo Global: elas seriam de US$ 12 bilhões
por ano, ou seja, US$ 36 bilhões para o período 2011-2013. Sachs precisou: “The
total, $12bn per year for an expanded Global Fund, might seem unrealistically… But
total annual funding of $12 billion is really very modest, representing around 0.033%
(three cents per $100) of the donor countries’ GNP. This is a tiny sum, which could be
easily mobilised if donor countries were serious”.7
Os resultados da campanha por recursos foram extremamente decepcionantes.
O Fundo só conseguiu mobilizar US$ 11,7 bilhões, muito aquém do cenário “mínimo” aquele que só permitia a continuação das ações iniciadas, disponibilizando
recursos suplementares para um número muito limitado de novas ações.
Devemos acrescentar ainda, que os recursos mobilizados devem ser considerados ainda mais insuficientes, se notarmos, junto a vários observadores, que estes
6 Ver a Seção 2 desta introdução, onde está explicada a necessidade de programas inovadores.
7 “O total de US$ 12 bilhões por ano, para um Fundo Global expandido, pode parecer algo não realista... Mas, na verdade, um financiamento anual total de 12 bilhões é certamente algo muito modesto,
representando cerca de 0,033% (três centavos por US$ 100) do PIB dos países doadores. Este é um valor
pequeno que poderia ser facilmente mobilizado se os países doadores fossem sérios.” Artigo de Jeffrey
Sachs, publicado no The Guardian em 25 de março de 2010.
Introdução. Propriedade intelectual e acesso aos tratamentos antirretrovirais nos países do Sul
15
cenários foram construídos sobre hipóteses de preços que correspondiam a regimes terapêuticos ditos “mínimos”: aqueles que não incluem (ou apenas excepcionalmente) as novas moléculas recomendadas ou em vias de sê-lo, tendo em vista a
evolução da pandemia e a pesquisa clínica8.
De fato, convém acrescentar aos recursos do Fundo aqueles do Pepfar, do Banco
Mundial ou de doadores privados, ainda que o Fundo continue a representar a instituição de referência em matéria de financiamentos. Construído numa base multilateral, com editais transparentes, o Fundo se constituiu no padrão para se avaliar
o engajamento da sociedade internacional no combate contra as três principais
pandemias que assolam o mundo. O enfraquecimento da capacidade de ação do
Fundo que, na prática, é acompanhado de uma maior relevância de mecanismos
construídos na base de uma ajuda bilateral, concedida de maneira discricionária
(caso da ajuda concedida pelos Estados Unidos no âmbito do Pepfar) ou das ajudas
privadas concedidas sem nenhum controle e obedecendo à lógica ultrapassada da
“caridade” é uma péssima notícia. E, sem dúvida, anunciadora de tempos bastante
difíceis. A explosão da crise financeira de 2007-2009, o crescimento do endividamento e dos déficits públicos, consequências dessa crise, podem ser a causa desse
enfraquecimento. As massas financeiras gigantescas (mobilizadas na base de empréstimos públicos), destinadas a salvar os bancos e as instituições financeiras e/
ou reaquecer economias quebradas pela crise das instituições financeiras já têm
aqui uma consequência. Desde 2010, a saúde pública mundial e a luta contra a
Aids foram atingidas por um contragolpe maior ligado aos erros e tropeços na área
financeira.
Neste contexto e encerrando nossa contribuição sobre este ponto, só podemos
esperar que as campanhas lançadas para conseguir uma taxação dos fluxos financeiros internacionais tenham finalmente um desfecho feliz. Somente uma taxação
deste tipo permitirá a perenização da mobilização de quantias condizentes com o
problema em questão9.
II. Evolução e custo dos tratamentos
Essa evolução dos elementos capazes de garantir o financiamento da luta contra
a pandemia é mais do que desejável, tendo em vista o brutal aumento dos custos
8 Para este ponto, ver especialmente a “Carta” endereçada por MSF a M. Kazatchkine, presidente do
Fundo Mundial, disponível no site de MSF: www.msfaccess.org/
9 Sob a denominação de “Taxa Robin Hood” uma campanha internacional está em andamento para
exigir a taxação dos fluxos financeiros e alocar as quantias coletadas para objetivos de saúde pública.
Informações atualizadas são disponíveis em: www.taxerobindesbois.org
16
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
dos medicamentos e dos tratamentos enquanto, como já foi lembrado, os financiamentos perdem fôlego ou regridem.
A causa principal dessa situação reside no impacto, cada vez mais forte, sobre o
preço dos medicamentos, da aplicação dos acordos ADPIC. Como é sabido, o dia 01
de janeiro de 2005 foi a data-limite concedida aos países do Sul para se adequarem
às múltiplas restrições impostas pelos ADPIC10. Os efeitos da entrada nessa nova
fase de aplicação dos acordos da OMC se traduzem no fato de medicamentos mais
recentes, aqueles que não tinham versões genéricas antes de 2005 – ou para os
quais os fabricantes de genéricos não tinham, ainda, feito investimentos significativos – não poderem mais ser produzidos sob a forma de genéricos. Na prática,
trata-se da quase totalidade dos medicamentos ditos de segunda linha11. Ademais,
o consumo destes medicamentos, já bem significativo, só tende a aumentar, e muito, com o passar do tempo. De fato, pode se considerar que, cada ano, 10% de uma
coorte de pacientes sob tratamento com medicamentos de primeira linha deve
migrar para aqueles de segunda linha12. Considerando que o custo de aquisição
da segunda linha, em 2009, era de 7 a 12 vezes maior que os de primeira linha
(dependendo dos países destinatários e das combinações terapêuticas administradas aos pacientes), é fácil entender que o impacto do pós 2005 é muito forte13.
Se nada mudar, os aumentos observados de preço dos tratamentos irão abalar os
equilíbrios financeiros (muitas vezes bastante frágeis) que permitem o acesso aos
cuidados nos países em desenvolvimento (PED). O gráfico a seguir apresenta as
diferenças de preços entre os custos dos tratamentos de 1ª e 2ª linhas. Em alguns
casos, o preço dos tratamentos chega a ser multiplicado por até 17 vezes para alguns países “intermediários”14 que não podem ter acesso aos genéricos em razão
de patentes em vigor, a partir de 2005 para os medicamentos em questão.
A situação é ainda mais preocupante porque os tratamentos de segunda linha
não são os únicos envolvidos neste problema de custo. De fato, mesmo para “os países de recursos limitados”, as recomendações terapêuticas da OMS incluem alguns
10 Na realidade, foram fixadas duas datas-limites para a incorporação das restrições dos acordos ADPIC
às leis nacionais. O 1º de janeiro de 2005 para os países “intermediários” (este grupo reúne todos os países providos de uma indústria farmacêutica capaz de produzir genéricos) e 1º de janeiro de 2016 para
os países “menos adiantados”, desprovidos de qualquer capacidade tecnológica em matéria de medicamentos. Sobre o detalhe dos acordos ADPIC em matéria de medicamentos, ver Coriat et al. (2006).
11 Os tratamentos de 1a linha são aqueles recomendados como primeira intenção para os pacientes
virgens de tratamento. No entanto, em caso de falha terapêutica ou de mutação do vírus, (o que ocorre
regularmente depois de alguns anos de tratamento de 1a linha) novas moléculas devem ser prescritas.
Trata-se de tratamentos de 2a linha (eventualmente de 3a linha, caso seja necessário).
12 Estimativa fornecida pela Fundação Clinton.
13 Os argumentos apresentados neste capítulo visam atualizar as análises já apresentadas em Orsi et
al. 2007.
14 A noção de “país intermediário” (mais adiante, usaremos também a expressão middle level income countries) refere-se aos países chamados “de renda intermediária”, categoria forjada a partir de indicadores macroeconômicos para distinguir esses países dos países “desenvolvidos” e dos países “de baixa renda”.
Introdução. Propriedade intelectual e acesso aos tratamentos antirretrovirais nos países do Sul
17
dos “novos” ARV cuja produção e venda são atingidas pelas restrições oriundas da
plena aplicação dos TRIPS.
O impacto da mudança para regimes terapêuticos de segunda
linha sobre o preço do tratamento ARV (em US$)
$1,800
$1,600
$1,400
$1,200
$1,000
$800
$600
$400
$200
$0
$1,548
$1,225
$1,090
$749
$819
$87
Lowest generic
price
3TC/d4 T/NVP
Best CF price
ABC + ddl +
LPV/r
Originator
price ABC +
ddl + LPV/r
Best CF price
TDF/FTC +
LPV/r
Originator
price for Cat 1
countries
TDF/FTC +
LPV/r
Originator
price for Cat 2
countries
TDF/FTC +
LPV/r
“CF price” corresponde ao preço negociado pela Fundação Clinton. A categoria 1 (Cat 1) corresponde aos países com
baixos níveis de renda e a categoria 2 (Cat 2) aos países de níveis de renda intermediário.
Fonte: http://www.msfaccess.org/sites/default/files/MSF_assets/HIV_AIDS/Docs/AIDS_report_UTW11_ENG_2008.pdf
Assim, em período recente, a OMS modificou duas vezes suas recomendações
de tratamento para países com recursos limitados (em 2006 e 2009), levando em
conta a experiência adquirida em matéria de tolerância e de toxicidade dos ARV
de 1ª geração, hoje em dia distribuídos em grande escala, e dos benefícios trazidos
pelos novos medicamentos (e pelas novas combinações terapêuticas que eles permitem). As novas recomendações da OMS incluem doravante vários medicamentos novos, sendo que nenhum deles – salvo circunstâncias excepcionais – pode
ser produzido sob a forma de genérico. É o caso, em particular, do Tenofovir, do
Lopinavir/r para a 1ª linha e de um novo medicamento, o Raltergravir, para a segunda linha. Segundo a OMS, em 2008, os países de baixa renda pagavam US$ 94/
pessoa/ano para um tratamento de 1a linha, enquanto esse preço atingia US$ 610
para um tratamento novo de 1ª linha15. Esses preços e custos adicionais para os
programas de luta contra a Aids não incluem as últimas recomendações de 2009,
as quais irão também contribuir para uma alta16.
Esta tendência deve se acentuar com o passar do tempo. Dados para 2011
evidenciam que, a ausência de concorrência, pela redução do número de fabri-
15 WHO. Global Price Reporting Mechanism http://www.who.int/hiv/amds/gprm/en/index.html.
16 Lembramos que as novas recomendações da OMS preconizam, desde 2009, a introdução dos ARV
a partir do nível de 200 e não mais de 300cc/m3, para os CD4. Esta mudança nas recomendações, justificada pelos progressos da pesquisa, tem como consequência: levando em conta esse nível, 5 milhões
de pacientes adicionais são elegíveis para os tratamentos ARV. Cf. WHO/UNAIDS. AIDS Outlook. 2009
http://data.unaids.org/pub/Report/2008/JC1648_aids_outlook_en.pdf.
18
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
cantes de genéricos, o que permitiria o rebaixamento dos preços, a 3ª linha seria
disponível para os países mais pobres (os da África subsaariana) ao custo mínimo
de US$2.766 por paciente/ano. Evidentemente, isto representa uma quantia inviável para os programas de Aids desses países. No caso dos países intermediários,
o custo da 3ª linha é bem mais elevado. No Brasil, por exemplo, o custo do único
Raltegravir (novo medicamento, cada vez mais utilizado) ultrapassa US$ 6,000 por
pessoa/ano17.
Podemos prever que, no futuro, as boas práticas terapêuticas incluirão cada vez
mais ARV de novas gerações, mesmo como primeira alternativa, para os pacientes
que nunca fizeram tratamento. O resultado é que a situação que tinha favorecido o
acesso em grande escala ao tratamento está se deteriorando rapidamente.
A importância crescente da implantação de redes de
ferramentas de acompanhamento biológico dos pacientes18
Não é somente o custo dos ARV que pesa nos orçamentos, e que confirma a tendência para a alta do custo dos tratamentos. De fato, o acompanhamento correto
dos pacientes (possibilitando a detecção precoce de um estado de falha terapêutica, ligada ou não a uma mutação do vírus), exige exames periódicos para verificação do estado imunológico e virológico. Nos países do Norte, isto já é a regra.
Periodicamente, a cada seis meses, os pacientes se submetem a testes para medir
a carga viral. O custo de aquisição dos equipamentos para aplicação dos testes e,
da mesma forma, a capacitação do pessoal encarregado de fazer a aplicação ou a
interpretação dos testes ou ainda de administrar e fazer a manutenção dos equipamentos representa um peso econômico adicional considerável. Este peso é mais
importante ainda nos países do Sul onde tais equipamentos (e o pessoal habilitado
para utilizá-los) não são supridos de acordo com as necessidades.
Convém ainda esclarecer que, diferentemente do mercado dos ARV, relativamente transparente e onde pode haver algum tipo de concorrência, o mercado
dos testes e das ferramentas de acompanhamento biológico muito mais fechado
e com barreiras à entrada muito maiores. O forte caráter oligopolístico desse mercado faz com que o custo de aquisição dessas ferramentas de acompanhamento e
de implantação de redes de laboratórios habilitados para a utilização dos mesmos
seja extremamente alto. Inevitavelmente, tais redes terão que ser instaladas nos
países do Sul de acordo com recomendações recentes da OMS.
17 Dados extraídos da última publicação (2011) do relatório MSF “Untangling the Web of ARV Price
Reductions” disponível em utw.msfaccess.org.
18 No quadro desta introdução, nós limitaremos a algumas indicações sobre esse ponto capital para o
futuro da luta contra a Aids. Uma análise mais exata e detalhada pode ser consultada em Coriat et al.
(2011).
Introdução. Propriedade intelectual e acesso aos tratamentos antirretrovirais nos países do Sul
19
Constatamos que, por todos esses motivos e se nada for feito, a luta contra a
Aids no futuro corre o risco de ser enredada em um terrível impasse: de um lado, diminuição relativa dos financiamentos e, do outro, crescimento do custo dos tratamentos. Tal evolução ameaça seriamente o futuro do combate contra a pandemia.
III. Propriedade Intelectual: o “Medicines
Patent Pool” da UNITAID e as novas estratégias
das grandes companhias farmacêuticas
No contexto que acabamos de descrever, é claro que não se pode falar em saída sem
soluções audazes e inovadoras, especialmente no que diz respeito à evolução do preço dos medicamentos. Essa questão depende essencialmente da evolução do âmbito
legal que regulamenta a PI sobre os medicamentos e das margens de ação deixados
para os países do Sul, especialmente no que diz respeito a oferta de genéricos.
Nesta frente, as evoluções observadas são, no mínimo, controversas. Temos primeiro que elogiar a iniciativa inédita tomada por dois atores importantes da luta
contra a Aids, no caso, a Tailândia e o Brasil, de recorrer ao uso da flexibilidade que
representa a emissão de licenças compulsórias. As licenças emitidas para o Tenofovir (TDF), pelo primeiro país, e o Efavirenz, pelo segundo país, em 2008 e 2009 possibilitaram, para esses países, o abastecimento desses ARV essenciais a um custo
muito mais baixo. Mas o resultado dessas políticas não é muito nítido19. Primeiro,
porque a emissão de licenças compulsórias é um processo difícil e complexo. Além
disso, esses procedimentos são politicamente perigosos, tendo em vista que eles
ocorrem dentro de um contexto gerador de muitas tensões entre os países que
emitem tais licenças e os governos dos países hóspedes das firmas farmacêuticas
detentoras das patentes sobre os medicamentos envolvidos. Obviamente, estes
procedimentos não podem ser recorrentes, enquanto a evolução da pandemia exige a inclusão contínua de novas moléculas nos tratamentos. Por todos esses motivos, para que a emissão de licenças compulsórias possa representar uma solução, o
regime de emissão dessas licenças deve ser revisto, no sentido de uma adequação
ao caso de pandemias envolvendo, como a Aids, doenças crônicas que necessitam
tratamentos em constante evolução20. Abordaremos, novamente, esse ponto crucial na última seção da presente introdução.
19 Para uma apresentação circunstanciada da emissão das licenças compulsórias pelo Brasil e pela Tailândia, ver d’Almeida et al. 2008.
20 Nesse espírito, foi lançado no Le Lancet, um « call for action », assinado por um grupo de pesquisadores científicos implicados nas pesquisas sobre a Aids Cf. Orsi F. et al. (2010).
20
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Ante as dificuldades apresentadas pela emissão de licenças compulsórias, a
única opção consistiria em procurar aquelas oportunidades abertas pelo sistema
das licenças voluntárias.
Nesse aspecto, o lançamento pela UNITAID do Medicines Patent Pool (MPP) reacendeu as esperanças. A missão do MPP é negociar com as grandes firmas farmacêuticas detentoras de patentes, acordos de cessão de licenças voluntárias aos fabricantes de genéricos, permitindo a fabricação (mediante o pagamento de taxas
aos detentores das patentes), de modo a abastecer os países do Sul, de genéricos
de qualidade a preço reduzido,21 mesmo no período de vigência das patentes.
Após dificuldades iniciais, o MPP anunciou recentemente o primeiro acordo
fechado com a firma Gilead. Ainda que este acordo apresente um interesse incontestável para alguns países beneficiários virtuais, ele indica de maneira clara que as
soluções fornecidas por esse mecanismo serão – na melhor das hipóteses – limitadas. Pois os termos do acordo – ainda que considerado como histórico por muitos
analistas e observadores – parecem bastante ambivalentes.22
Para se ater ao essencial, podemos realçar que o acordo envolve três moléculas de base. A primeira é a molécula de base do Tenofovir (TDF), medicamento
atualmente utilizado nos tratamentos de 1ª e na 2ª linha, mas convém esclarecer
que, no decorrer dos últimos anos, o preço deste medicamento, produzido por um
número crescente de fabricantes de genéricos, caiu de maneira significativa23. Os
dois outros medicamentos (o Elvitegravir, doravante designado por EVG, e o Cobicistats, doravante designado por COBI) são medicamentos cujo registro está em
andamento junto a FDA. O acordo inclui também o QUAD (combinação em dose
fixa associando TDF-COBI-EVG-emtricitabina) bem como qualquer combinação em
dose fixa associando duas ou mais moléculas entre aquelas citadas anteriormente.
A boa notícia é que podemos imaginar que os países do Sul citados e envolvidos
nesse acordo poderão assim dispor do TDF e de outras moléculas a preço reduzido.
A má notícia é que esse acordo exclui todos os países de renda intermediária bem
como muitos países classificados como nível médio/baixo de renda, classificação
que envolve quase todos os países da América Latina e vários países asiáticos24.
Convém acrescentar que uma das disposições do acordo estipula que os princípios ativos para os ARV em questão deverão ser adquiridos diretamente da Gile-
21 No site, o histórico da constituição do MPP, bem como todos os documentos básicos regulamentando a sua atividade cf : www.medicinespatentpool.org .
22 O texto do acordo encontra-se no site do MPP, bem como um conjunto de releases de imprensa.
Ver www.medicinespatentpool.org. Além do mais, uma discussão sobre o alcance e o significado foi
desenvolvida no site ip-health, onde são debatidas opiniões muito divergentes sobre o interesse desse
acordo. Cf : www.iphealth.com
23 Com o passar do tempo e com a entrada dos genéricos e sua proliferação, o preço do TDF passou de
US$ 195 por pessoa/ano (preço inicial em 1997, na ausência de genéricos) para US$ 76 em 2011, (com
cinco genéricos presentes no mercado). Números extraídos do relatório MSF (2011), já citado.
24 A lista dos países incluídos está anexada ao texto do acordo publicado no site do MPP.
Introdução. Propriedade intelectual e acesso aos tratamentos antirretrovirais nos países do Sul
21
ad ou das firmas indianas credenciadas pela Gilead. Mais ainda, os fabricantes de
genéricos indianos são os únicos autorizados a utilizar as licenças cedidas ao Patent Pool, o que exclui do acordo os produtores de genéricos chineses, bem como
aqueles operando a partir dos países de renda baixa, dispensados da aplicação
do acordo sobre os ADPIC até 2016. Sem querer insistir sobre as suas implicações,
podemos observar que, obviamente, tais disposições têm uma grande importância
e produzirão, sem dúvida, um forte impacto sobre a oferta de genéricos fabricados
sob as licenças voluntárias de Gilead (no sentido de restringi-las).
Uma série de negociações está em andamento entre o MPP e algumas sociedades farmacêuticas. Precisamos esperar o fim desse ciclo de negociações para se
ter uma melhor avaliação da situação. No entanto, caso a série de acordos em fase
de negociação com o MPP concluir pela exclusão de todos os países de renda intermediária, podemos questionar o benefício real obtido por este mecanismo, no
que diz respeito à luta mundial contra a pandemia, já que países como a Tailândia,
o Brasil ou a África do Sul são aqueles que oferecem programas de combate mais
consistentes e estão excluídos do acordo.
Além disso, enquanto as negociações continuam, várias empresas farmacêuticas acabam de anunciar o fim dos programas de “preços preferenciais” para os
países intermediários, iniciativa que tinha sido negociada no âmbito do programa
ACCESS, assinado com apoio das Nações Unidas.25
É o caso da firma Merck, que declarou o fim dos preços preferenciais para todos
os países (classificados pela própria empresa como países de renda lower midlle e
upper middle). O aspecto mais preocupante desta decisão é que, no caso de Merck,
as diferenças de preços entre as ofertas com preços preferenciais e os preços de
cessão aos países desenvolvidos eram bastante significativas. Da mesma maneira,
Tibotec/Johnson & Johnson acaba de excluir da sua lista todos os países de renda
intermediária (middle income), para todos os ARV. Isso inclui a Nevirapina (medicamento-chave para o tratamento de 2ª linha), bem como os medicamentos mais
novos como o Duranavir ou a Etravirina, recentemente incluídos como opções em
certos regimes terapêuticos recomendados pela OMS. Finalmente, a título de último exemplo, o consórcio VIIV acaba de anunciar que, contrariando os anúncios
anteriores, são excluídos do benefício das suas ofertas com preços preferenciais
os medicamentos incluídos em programas integralmente financiados pelo Fundo
Global ou o Pepfar. A exclusão envolve todos os países de renda média.26
25 Observamos aqui que, no âmbito do programa ACCESS, as grandes empresas farmacêuticas se comprometiam a propor aos países do Sul uma série de medicamentos a “preços preferenciais”. Dois tipos de
preços diferentes eram propostos, aos países “intermediários” de um lado, e aos países de baixa renda
do outro. O problema desse acordo é que cada empresa farmacêutica tem autonomia para estabelecer
de maneira discricionária a lista dos medicamentos incluídos, o preço oferecido e os países beneficiários. Para uma apresentação desse acordo e de seus limites, ver Chauveau et al. (2008) e Coriat (2008).
26 Os diversos anúncios das empresas farmacêuticas e os comentários sobre o seu significado encontram-se no relatório MSF (2001).
22
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Para o conjunto desses países (e para inúmeros países considerados como
upper ou middle low level) que reúnem a maioria dos pacientes em tratamento, a
consolidação desses fatos – caso isso aconteça – provocaria uma deterioração significativa da situação. Sendo excluídos dos acordos MMP/farmas, esses países e
os seus pacientes encontram-se igualmente banidos das listas de preços preferenciais. E ficam obrigados a adquirir medicamentos a um preço alto, com margens de
lucro que possibilitam às empresas farmacêuticas distribuir dividendos elevados
aos seus acionistas. Tal preço, obviamente, está fora de alcance dos orçamentos
dos programas de Aids desses países.
Essa situação de dupla exclusão dos países intermediários27 e dos seus pacientes (dos acordos de licenças voluntárias negociados pelo MPP e dos beneficiários
de preços preferenciais estabelecidos de maneira discricionária pelas sociedades
farmacêuticas) resultaria numa situação inédita com consequências explosivas. De
fato, ela significaria, na prática, que a ajuda pública mundial contra a Aids (pelo
Fundo Global ou o Pepfar) seria em grande parte desviada em benefício das empresas farmacêuticas que seriam, em razão dos novos preços impostos, os últimos
receptores dessa ajuda. Recolocados nesse contexto, será que os benefícios acumulados pelos países de baixa renda (obtidos no âmbito dos acordos de cessão
de licenças voluntárias negociados pelo MPP) – nos quais, na maioria das vezes, as
sociedades farmacêuticas não depositaram patentes para os seus medicamentos –
compensam esses efeitos negativos? Vale pelo menos levantar o assunto.
IV. Como enfrentar isso?
Tendo em vista as evoluções que nós acabamos de descrever, para dar uma nova
chance de sucesso aos programas de combate contra a Aids dos países do Sul, novas iniciativas devem ser tomadas.
Claro, tem que se dar tempo ao amadurecimento do MPP e aos processos de cessão de licenças voluntárias recentemente iniciados, como no caso do acordo firmado
com Gilead. Mas permanece claro – inclusive para favorecer o desfecho de acordos
de cessão de licenças voluntárias representando progressos significativos – que o
recurso às licenças compulsórias, mais do que nunca, aparece como essencial.
No entanto, esse processo deve ser atualizado, com as lições das experiências passadas. Na situação atual, o interesse real da luta contra a epidemia exige que o dossiê
“flexibilidades” inclusas no TRIPS seja reaberto afim de esclarecer essas flexibilidades
e, sobretudo, ampliá-las para que elas se tornem adequadas às novas exigências.
27 A noção de país “intermediário” (mais adiante, usaremos também a expressão middle level income countries) refere-se aos países chamados “de renda intermediária”, categoria forjada a partir de indicadores macroeconômicos para distinguir esses países dos países “desenvolvidos” e dos países “de baixa renda”.
Introdução. Propriedade intelectual e acesso aos tratamentos antirretrovirais nos países do Sul
23
Temos que realçar que no passado, pelo menos em duas ocasiões, foi necessário recorrer a essas revisões e esclarecimentos dos ADPIC28 e, portanto, não existem
motivos para refutar uma nova iniciativa sobre esse ponto.
Na falta disso e, no mínimo, para criar as condições necessárias para um abastecimento mais ou menos garantido, no espírito da nova declaração da OMS (2008)
que pretende favorecer o acesso aos tratamentos, estimulando ao mesmo tempo a
inovação e a produção de genéricos, poderíamos considerar uma proposta elaborada sobre os princípios a seguir.
Primeiro, a OMS poderia introduzir regularmente os novos ARV colocados no
mercado na sua lista de “medicamentos essenciais”, os quais completariam aos
poucos aqueles que já fazem parte dela. Nessa base e para permitir a fluidez do
processo, o Conselho dos ADPIC da OMC poderia emitir uma declaração tornando
lícita para os países do Sul engajados no combate contra a pandemia, a emissão de
licenças compulsórias válidas para o conjunto dos antirretrovirais inclusos na lista
dos medicamentos essenciais da OMS; essas licenças poderiam valer durante vários anos, sem obrigatoriedade de especificação das quantidades ou formulações
envolvidas. Tal flexibilidade permitiria aos países do Sul dispor de uma ferramenta
jurídica adequada ao tipo de epidemia que representa a Aids.29 Desta maneira, seriam restabelecidas, para os novos ARV, condições mínimas de concorrência – entre fabricantes de genéricos e entre eles e as empresas inovadoras – as únicas em
condição de abrir para os países do Sul uma margem de escolha em matéria de
abastecimento e, portanto, de garantir a regulação dos preços.30
Em conclusão, pensamos que só assim o abastecimento de medicamentos a
preços sustentáveis poderá ser garantido, num momento em que o número de
28 A primeira vez foi por ocasião da Declaração do Conselho dos ADPIC em 2001, chamada “Declaração
de Doha” que enunciou princípios muito claros: a segunda vez em 2003, com o acordo esclarecendo
as condições nas quais os países do Sul, desprovidos de recursos, podem recorrer a importações de
medicamentos sob licença compulsória. Essas disposições são apresentadas de maneira detalhada em
Coriat et al. (2006).
29 Um esclarecimento importante tem que ser dado aqui. O processo preconizado pode parecer inovador e, no entanto, possui vários precedentes. O primeiro consiste na Lei de PI indiana, de 2005 (Amended
Intellectual Property Law). Essa lei estabelece que os medicamentos já produzidos pelas empresas indianas anteriormente a 2005 e que, depois dessa data (com a abertura da mail box prevista nos acordos ADPIC) seriam objeto de patente, continuariam a ser produzidos na versão genérica. Nesses casos, um fee
seria pago às detentoras das patentes. Constatamos que, dessa maneira, foi estabelecido pela Lei Indiana de 2005 um tipo de licença compulsória generalizada e promulgada por antecipação. O mecanismo
que nós preconizamos é muito semelhante àquele implantado por essa Lei, o qual não foi contestado
no Conselho dos ADPIC. O segundo precedente é o caso do Equador: no ano de 2010, este país emitiu
por antecipação uma licença compulsória única para várias dezenas de medicamentos.
30 Caso as empresas farmacêuticas renunciem à cláusula pétrea que elas acabaram de se engajar, excluindo os países intermediários de suas listas de preços preferenciais, a evolução aqui proposta poderia ser acompanhada de um acordo “ACCESS” renovado e mais elaborado no que diz respeito, mais
especificamente, aos novos ARV (pós-2005), utilizados em tratamentos de 1ª ou 2ª linha. Nesse novo
acordo, as empresas se comprometeriam a abastecer com prioridade os países do Sul, com os preços
preferenciais anunciados e, em troca, processos de registro acelerados poderiam ser concedidos nesses
mesmos países do Sul.
24
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
pacientes sob tratamento com ARV de nova geração aumenta de maneira significativa e em que os financiamentos para a luta contra a doença aparecem ainda
mais restritos que no passado.
Referências bibliográficas
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D’ALMEIDA, C.; HASENCLEVER, L.; KRIKORIAN, G.; ORSI, F.; SWEET, C.; CORIAT, B. New Antirretroviral treatments and Post-2005 TRIPS constraints. First Moves towards IP Flexibilization in Developing Countries. In: CORIAT, B. (Ed.). The Political Economy of HIV/AIDS
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Introdução. Propriedade intelectual e acesso aos tratamentos antirretrovirais nos países do Sul
25
PARTE I
Novas moléculas, novas
estratégias terapêuticas, a que
preços e a que custos?
CAPÍTULO 1
Estrutura de mercado e evolução dos preços
dos medicamentos antirretrovirais no Brasil
Constance Meiners-Chabin
Camelia Protopopescu
Julien Chauveau
Jean-Paul Moatti
Resumo: O Brasil foi o primeiro país em desenvolvimento a fornecer acesso universal e gratuito a medicamentos antirretrovirais a pessoas vivendo com HIV/Aids.
Em junho de 2009, o Programa de Aids do Ministério da Saúde atingia uma cobertura de quase 190 mil pacientes. Recentemente, o aumento do peso orçamentário
de medicamentos patenteados causa preocupação quanto à sustentação dessa
política. Este artigo apresenta uma análise estatística da evolução dos preços dos
medicamentos antirretrovirais no mercado brasileiro, com base nas compras efetuadas pelo Ministério da Saúde entre 1998 e 2006. Embora tenha-se observado
uma queda geral significativa na média de preços por dose diária de 1998 a 2002, a
partir de então observa-se uma flutuação ascendente. Dentre os principais fatores
associados à alta nos preços destacam-se medicamentos novos e a proteção patentária. Nesse sentido, as patentes farmacêuticas continuam a representar um dos
principais obstáculos ao acesso aos tratamentos antirretrovirais.
Palavras-chaves: HIV/Aids; Medicamentos Antirretrovirais; Patentes, Mercado Farmacêutico; Brasil.
I. Introdução
Até o final de 2009, havia cerca de 33,3 milhões de pessoas vivendo com HIV/Aids
(PVHA) no mundo. Ainda que alarmante, o aumento da prevalência do HIV/Aids
tem ocultado dois avanços importantes na luta contra a epidemia: a queda continuada da incidência desde 1996 e a redução da mortalidade associada à doença.31
Avanços esses, vale notar, fruto de esforços de prevenção e aumento da cobertura
do tratamento antirretroviral nos países em desenvolvimento [1]. A presente déca31 Para 2009, foram estimados 2,6 milhões de casos de novas infecções e 1,8 milhão de óbitos.
da testemunhou uma mobilização de recursos e ativismo social sem precedentes
com vistas à expansão do acesso a terapias antirretrovirais de alta potência (TARV)
no mundo em desenvolvimento [2]. Segundo o último relatório da Organização
Mundial da Saúde (OMS), em dezembro de 2009, mais de 5 milhões de indivíduos
tiveram acesso à TARV. Não obstante, quase dois terços das PVHA que necessitam
de tratamento permanecem sem cobertura32 [3]. Dentre as inúmeras barreiras a serem transpostas, o preço dos medicamentos antirretrovirais (ARV) permanece entre as mais significativas, sobretudo quando considerado o acesso a medicamentos
mais novos, que agregam maior potência e menor nível de toxicidade, mas são
geralmente protegidos por patentes.
O Brasil foi o primeiro país em desenvolvimento a fornecer medicamentos ARV
de forma universal e gratuita às PVHA. O sucesso de seu Programa contribuiu para
o reconhecimento da política brasileira de acesso ao tratamento antirretroviral
como referência para outros países atingidos pela epidemia de HIV/AIDS [4,5]. À
medida que esse programa expande sua cobertura e, com seu amadurecimento,
cresce o número de pacientes em terapias de resgate e, ao mesmo tempo, ocorre
a incorporação de novas tecnologias, consoante ao processo de atualização das
recomendações brasileiras, o peso cada vez maior de medicamentos patenteados
no orçamento [6] causa preocupação quanto à sustentação dessa política no longo
prazo. Este artigo apresenta uma análise estatística da evolução dos preços dos
medicamentos ARV no mercado brasileiro entre 1998 e 2006. O objetivo da análise
consiste em examinar, dentre os fatores determinantes de preços, o papel das patentes farmacêuticas. Com vistas a contextualizar esta análise, as próximas seções
trazem uma breve exposição da estrutura de mercado dos medicamentos ARV e
das estratégias de acesso ao tratamento contra HIV/Aids no Brasil. Em seguida, são
abordados os métodos e discussão dos resultados da análise da evolução dos preços no mercado brasileiro. Na conclusão, são destacadas as principais implicações
desta análise para a continuidade do acesso às TARV.
II. O mercado de medicamentos ARV
Segundo dados disponibilizados pelo IMS Health, o mercado farmacêutico mundial atingiu a cifra de US$ 773,1 bilhões de vendas em 2008. O volume de vendas
mais que dobrou de tamanho ao longo desta década, com uma taxa de crescimento média anual próxima a 8%.[7] Em termos regionais, América do Norte, Europa
e Japão juntos representam mais de 80% do mercado mundial. O mercado latino-americano, representando pouco mais de 6% das transações globais, cresceu
12,6% em relação a 2007, onde Brasil e México se destacam como mercados emer32 A cobertura atingida em dezembro de 2009 foi de 36%.
30
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
gentes.[8] Além da forte concentração geográfica, pode-se afirmar que o mercado
farmacêutico apresenta características de oligopólio. Apenas 10 empresas respondem por cerca de 43% das vendas globais [9]. A concentração dessas empresas no
controle da produção e distribuição dos medicamentos é favorecida pela presença
de barreiras à entrada de concorrentes. Essas barreiras são marcadas por: atividades intensivas e especializadas em pesquisa e desenvolvimento (P&D); presença de
economias de escala e escopo; considerável volume de gastos e tempo investidos
no processo de regulação e acesso ao mercado; e proteção concedida pelos direitos de propriedade intelectual, mais especificamente, patentes e marcas [10-12].
Os medicamentos ARV representaram cerca de 1,7% do mercado farmacêutico
mundial em 2008, com uma cifra superior a US$ 12,2 bilhões. Em 2008, os ARV ocuparam o 12° lugar de vendas, sendo a terceira classe terapêutica que mais cresceu
em relação a 2007.[13] Tomando-se por base os medicamentos com registro na
agência reguladora de medicamentos e alimentos dos Estados Unidos (Foods and
Drug Administration – FDA), foram lançados 27 ARV33 e cinco doses fixas combinadas (DFC) entre 1997 e 2007 [14]. Dentre os fabricantes dos produtos originais,
encontram-se nove empresas farmacêuticas [9,14], cinco das quais figuram entre
as 10 empresas líderes no mercado mundial [9].34 No que concerne à produção de
ARV genéricos, a partir de registros junto à FDA e ao projeto de pré-qualificação da
OMS, foram identificados 14 fabricantes,35 nove dos quais de origem indiana, para
a produção de 16 ARV e 12 FDC [15,16]. Vale notar que a produção e comercialização de ARV genéricos estão restritas a países onde o pedido de patente não tenha
sido depositado ou, ainda, onde a patente, uma vez concedida, tenha sido objeto
de licenciamento compulsório ou voluntário.36
São comercializadas atualmente seis classes de ARV, sendo elas: Inibidores de
Transcriptase Reversa Análogos de Nucleosídeos (ITRN), Inibidores de Transcriptase Reversa não Análogos de Nucleosídeos (ITRNN), Inibidores de Protease (IP),
Inibidores de Fusão (IF), Inibidores de Entrada (IE) e Inibidores de Integrase (II). O
tratamento para a infecção por HIV preconizado pelas autoridades de saúde consiste na combinação de três ARV, de forma geral, pertencentes a duas classes distintas. Conforme padrões de resitência viral ao tratamento, algumas classes de ARV
33 Dois dos quais foram retirados do mercado.
34 Pfizer (1°), GlaxoSmithKline (2°), Hoffman-La Roche (6°), Merck Sharp & Dome (8°), Abbott Laboratories (9°), Bristol-Myers Squibb, Gilead Sciences, Tibotec Therapeutics e Boehringer Ingelheim. A Agouron
Pharmaceuticals foi comprada pela Warner-Lambert em 1999 que fusionou com a Pfizer em 2000.
35 Strides Arcolab, Matrix Laboratories, Cipla, Hetero Drugs, Aurobindo Pharma, Emcure Pharmaceuticals, Macleods Pharmaceuticals, Alkem Laboratories, Ranbaxy Laboratories (India); Barr Pharmaceuticals
do grupo Teva (EUA/Israel); Combino Pharm (Espanha); Huahai (China) ; Aspen Pharmacare (África do
Sul); e, Pharmacare Limited (Tailândia).
36 Em termos gerais, a licença compulsória refere-se à exploração da patente por decisão do ente do
Estado que a outorgou por motivos de interesse público, emergência nacional ou abuso de poder, entre
outros, com vistas a permitir que terceiros entrem no mercado, reservado ao titular o direito de receber o pagamento de royalties. A licença voluntária refere-se à negociação direta entre o titular e o(s)
laboratório(s) interessado(s) sobre a cessão dos direitos da patente num mercado específico.
Capítulo 1. Estrutura de mercado e evolução dos preços dos medicamentos antirretrovirais
31
encontram-se sob reserva para uso em esquemas de resgate.37 Adicionalmente, o
desenvolvimento de toxicidade ou ainda casos de comorbidade, como por exemplo a coinfecção por tuberculose ou hepatites virais, acabam por restringir o uso de
determinados ARV. Esses fatores conferem baixa possibilidade de substituição entre os ARV disponíveis, o que por sua vez reforça a tese de oligopólio da indústria.
A alta concentração de mercado a um número pequeno de produtos e os limites impostos à concorrência de fabricantes genéricos dá lugar à prática de preços
elevados e à obtenção de altos lucros pelas empresas fornecedoras de medicamentos ARV inovadores. Desta forma, nos países onde os recursos empenhados
para a saúde pública são reduzidos, o acesso ao tratamento, assim como sua continuidade ao longo da vida dos pacientes, sofre constantes ameaças. O mecanismo
de diferenciação de preços, visto como uma forma de reduzir os preços praticados
pelos laboratórios farmacêuticos em países menos desenvolvidos, tendo por base
o nível de renda per capita e a taxa de prevalência do HIV na população,38 pode
contribuir para facilitar o acesso aos ARV [17]. Não obstante, quando da presença
de proteção patentária, esse mecanismo, por se tratar de uma iniciativa essencialmente unilateral, que depende do voluntarismo das empresas é sujeita a riscos
de ancoragem de preços e importação paralela,39 apresenta grande fragilidade.
Diante dessas considerações, vale examinar o modelo apresentado pelo governo
brasileiro para garantir a ampla cobertura de pacientes sob TARV, assim como compreender os desafios mais recentes à continuidade de sua política.
III. O acesso ao tratamento contra HIV/Aids no Brasil
O acesso universal e gratuito aos medicamentos ARV foi legalmente instituído no
Brasil em 1996 [18].40 Desde então, o Ministério da Saúde, por meio do Departamento de Doenças Sexualmente Transmissíveis, Aids e Hepatites Virais, edita e revisa periodicamente as recomendações terapêuticas para crianças, adolescentes,
adultos e gestantes infectados pelo HIV, assim como para a profilaxia da transmissão vertical do vírus. Segundo fontes oficiais, cerca de 190 mil pacientes têm acesso
37 Como é o caso das classes IF, IE e II no Brasil e ainda da classe IP nas recomendações da OMS.
38 Para maiores explicações sobre preços diferenciados vide: Danzon PM e Towse A. Differential pricing
for pharmaceuticals : reconciling access, R&D and patents. International Journal of Health Care Finance
and Economics 2003; 3: 183-205.
39 Tratam-se de estratégias de regulação do mercado farmacêutico, utilizando como referência o preço
praticado em outros mercados ou permitindo a importação do medicamento de um mercado onde os
preços sejam mais baratos, que por sua vez colocam em risco a prática de preços diferenciados.
40 A distribuição gratuita de medicamentos ARV no país teve início já em 1991, quando do surgimento
da Zidovudina (AZT) no mercado brasileiro.
32
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
à TARV pelo Sistema Único de Saúde (SUS).41 Atualmente, são dispensados 20 ARV
e uma DFC, pertencentes a cinco classes terapêuticas, conforme nome e data de
início de distribuição indicados na Tabela 1 a seguir.
Tabela 1 – Medicamentos ARV dispensados pelo SUS
Medicamento (sigla)
Início da distribuição
1. ITRN
Medicamento (sigla)
Início da distribuição
3. IP
Zidovudina (AZT)*
1991
Saquinavir (SQV)*
1996
Didanosina (ddI)*
1993
Ritonavir (RTV)*
1996
Lamivudina (3TC)*
1996
Indinavir (IDV)*
1997
Estavudina (d4T)*
1997
Amprenavir (APV)
2001
AZT + 3TC [DFC]*
1998
Lopinavir/RTV (LPV/r)
2002
Abacavir (ABC)
2001
Atazanavir (ATV)
2004
Tenofovir (TDF)
2003
Fosamprenavir (FPV)
2005
Didanosina EC (ddI EC)
2004
Darunavir (DRV)
2008
2. ITRNN
4. IF
Nevirapina (NVP)*
1998
Enfuvirtida (T-20)
Efavirenz (EFV)‡*
1999
5. II
Etravirine (ETR)
2010
Raltegravir (RAL)
2005
2009
* Medicamentos produzidos localmente
‡ Medicamento sob licença compulsória desde 2007
Fonte: Logística de Medicamentos e Insumos Estratégicos, Departamento de DST, Aids
e Hepatites Virais, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde.
A garantia do acesso às TARV tem como apoio uma série de estratégias utilizadas
pelo Estado brasileiro com vistas a baratear o custo do tratamento sem comprometer a sua qualidade. Em primeiro lugar, a centralização do processo de compra pelo
Ministério da Saúde [6], permitindo-lhe melhor organizar a compra de insumos ao
mesmo tempo que lhe concede maior poder de barganha na negociação com fornecedores. Um outro aspecto fundamental consiste na exploração da capacidade
industrial brasileira para a produção de oito medicamentos similares e uma DFC,
não sujeitos à proteção patentária,42 que pôde contar com importação de princípios ativos da China e da Índia [6,19,20]. Merece também destaque a ameaça e o
uso do mecanismo de licenciamento compulsório, em conformidade com o disposto no Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacio-
41 Dados do Departamento DST/AIDS para junho de 2009.
42 Vale notar que a proteção patentária foi extendida a produtos e processos farmacêuticos somente a
partir da Lei n. 9.279, de 14 de maio de 1996.
Capítulo 1. Estrutura de mercado e evolução dos preços dos medicamentos antirretrovirais
33
nados ao Comércio (TRIPS), da OMC, de 1994. Em maio de 2007, o Brasil decretou
o licenciamento compulsório de patentes relacionadas ao Efavirenz (EFV) [21], cuja
produção local43 teve início em 2009. Por fim, cabe mencionar o exame qualificado
dos pedidos de patentes farmacêuticas, por meio da exigência de anuência prévia
da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a partir de 199944 [22,23].
Recentemente, o aumento expressivo do orçamento do Ministério da Saúde
destinado à compra de medicamentos ARV tem gerado preocupações quanto
à longevidade da política brasileira de acesso às TARV [24]. De um valor correspondente a quase US$ 312 milhões em 1998, o orçamento aprovado para 2009
atingiu cerca de US$ 543 milhões.45 Esse aumento deve-se, de um lado, à contínua expansão do programa e, de outro, ao aumento da sobrevida dos pacientes
e, consequentemente, à introdução de medicamentos mais potentes para lidar
com problemas relacionados ao desenvolvimento de toxicidade e resistência ao
tratamento [25]. Segundo fontes oficiais, o número de pacientes em TARV teve um
aumento de quase quatro vezes entre 1998 e 2009.46 Ao mesmo tempo, cabe notar
que a participação dos produtos patenteados representa cerca de 80% dos gastos
com medicamentos ARV nos anos mais recentes [6,26,27]. Nesse contexto, com
vistas a melhor informar o debate em torno do impacto dos preços dos medicamentos sobre a sustentação da política de acesso às TARV, cabe analisar empiricamente os determinantes e a evolução dos preços dos ARV no mercado brasileiro
para melhor avaliar as tendências que se desenham em período mais recente.
IV. Análise da evolução dos preços dos
medicamentos ARV no Brasil
O programa intitulado “Avaliação econômica do acesso às TARV nos países em desenvolvimento”, conhecido como Programa ETAPSUD, foi lançado em 2001 pela
Agência Francesa de Pesquisa sobre Aids e Hepatites Virais (ANRS). Este programa
teve por finalidade estudar a capacidade de financiamento e gestão de programas
em HIV/AIDS nos países em desenvolvimento para prover acesso ao tratamento
de pacientes elegíveis, assim como estimar o impacto do HIV/AIDS sobre o desenvolvimento e como o acesso ao tratamento pode contribuir para aliviar esse
43 De maneira exclusiva.
44 Embora o escopo da anuência tenha sofrido limitações mais recentemente.
45 Valores informados pela Área de Logística de Medicamentos e Insumos Estratégicos, Departamento
de DST, Aids e Hepatites Virais, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde.
46 Dados fornecidos pela Área de Logística de Medicamentos e Insumos Estratégicos, Departamento de
DST, Aids e Hepatites Virais, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde.
34
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
impacto. O estudo da evolução dos preços dos medicamentos ARV47 teve como
enfoque analisar quantitativa e qualitativamente os determinantes e variações dos
preços, com o objetivo de orientar o processo de compra de ARV contribuindo para
a expansão e melhoria do acesso ao tratamento contra HIV/AIDS nos países em
desenvolvimento. A análise teve por base dados provenientes de 14 países, sendo 13 situados na África48 e o Brasil. A coleta de dados foi realizada in situ junto
às autoridades responsáveis pela compra de ARV, a partir do preenchimento de
formulários padronizados. Os resultados desta análise, referente ao período compreendido entre 1998 e 2002, foram relatados por Luchini et al., 2003 [17]. A análise
apresentada nesse capítulo concentra-se no contexto e preços de medicamentos
ARV praticados no mercado brasileiro entre 1998 e 2006.
IV.1. Dados e métodos
A base utilizada para esta análise contém o total de transações de medicamentos
ARV informadas pelo Ministério da Saúde para o período entre 1998 e 2006. Esses
dados foram fornecidos ao banco do Programa ETAPSUD pelo Departamento de
DST, Aids e Hepatites Virais. Os preços encontram-se registrados em dólar americano, convertidos pelo valor da moeda nacional tomando-se por base a média
geométrica da cotação para o ano de transação de referência.49 Consoante às recomendações terapêuticas editadas pelo Brasil para pacientes adultos acima de
60 quilos, preços unitários para cada ARV foram convertidos em preços por dose
diária (PDD),50 de forma a permitir a comparação entre os diferentes ARV. Os 17
medicamentos incluídos na análise são: Zidovudina (AZT), Didanosina (ddI), Lamivudina (3TC), Zalcitabina (ddC),51 Estavudina (d4T), Abacavir (ABC), Tenofovir (TDF)
e Didanosina Entérica (ddI EC), da classe ITRN; Nevirapina (NVP) e EFV, da classe ITRNN; Saquinavir (SQV), Indinavir (IDV), Nelfinavir (NFV),52 Amprenavir (APV), Lopinavir (LPV/r) e Atazanavir (ATV), da classe IP;53 e, Enfuvirtida (T-20), da classe IF. Dados
47 Este estudo foi confiado à Unidade de Pesquisa 379 do Instituto Francês de Saúde e Pesquisa Médica
(Inserm), atualmente, Unidade Mista de Pesquisa 912 (Inserm/IRD/Universités Aix-Marseille), intitulada
SE4S “Ciências Econômicas e Sociais, Sistemas de Saúde, Sociedades”, situada em Marselha.
48 Benin, Botsuana, Burkina-Faso, Burundi, Camarões, República do Congo, Costa do Marfim, Gabão,
Malawi, Mali, Nigéria, Quênia e Togo.
49 A média geométrica anual foi obtida a partir das cotações do dólar americano conforme valores
publicados no site do Banco Central (disponível em : http://www.bcb.gov.br).
50 O preço da dose diária equivale ao preço pago por uma unidade do medicamento (comprimido,
cápsula, ou injeção) multiplicado pelo número de unidades necessárias para compor a dose diária recomendada pelo Ministério da Saúde.
51 Descontinuado pelo Ministério da Saúde em 2001.
52 Descontinuado pelo Ministério da Saúde em 2007.
53 O medicamento Ritonavir (RTV) foi excluído da análise pois vem sendo utilizado desde 2000 como
potencializador de outros medicamentos da classe dos IP e sua dosagem diária pode variar de acordo
com o medicamento coadjuvante. Para os medicamentos da classe IP cujo uso é recomendado junto
com o RTV, o cálculo do PDD leva em conta o preço total do medicamento potencializado.
Capítulo 1. Estrutura de mercado e evolução dos preços dos medicamentos antirretrovirais
35
sobre a situação patentária de cada ARV foram obtidos mediante consulta junto a
representantes do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), da Anvisa e
do Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos), laboratório farmacêutico oficial, vinculado à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Ministério da Saúde.
A análise estatística se divide em duas partes. A parte descritiva baseia-se no
estudo da evolução média do PDD, ponderada pela quantidade de doses diárias
(QDD) adquiridas54 dos medicamentos ARV, agrupados por classe terapêutica e por
ano. Essa análise é complementada por uma regressão multilinear que visa tomar
em conta o impacto das características dos medicamentos e do contexto de compra, enquanto determinantes de preço, ao longo do período estudado. O modelo
econométrico empregado inspira-se no modelo encontrado em Luchini et al., 2003
[17] e utiliza o método dos mínimos quadrados. A variável dependente deste modelo consiste no PDD transformado em logaritmo natural (log PDD).55 As variáveis explicativas selecionadas foram: ano da transação, volume de compra, classe terapêutica, situação patentária, idade do ARV e recomendação terapêutica.56 A relevância
estatística de cada variável foi examinada a partir do Teste T de Student. Os pacotes
estatísticos utilizados foram SPSS (versão 17.0) e Stata Intercooled (versão 10).
A variável “ano da transação” compara a mudança de preços no período de 1999
a 2006, tendo como referência o ano de 1998. A inclusão de dummies para cada ano
permite ajustar o efeito das demais variáveis inseridas no modelo ao efeito do ano
em que teve lugar a transação. O “volume de compra” refere-se à quantidade de
doses diárias compradas em cada transação. De acordo com a teoria econômica,
tudo o mais constante, volumes mais importantes de compra tendem a ter um impacto negativo sobre os preços. A transformação por logaritmo natural desta variável tem por vantagem permitir interpretar seu coeficiente enquanto a elasticidade
do preço em relação ao volume de compra.57 No tocante à “classe terapêutica”, a
classe de referência trata-se dos ITRN à qual são comparadas as classes dos ITRNN,
IP e IF.58 Quanto à “situação patentária”, para fins da análise, os medicamentos isen54 A média ponderada do PDD dos ARV para cada ano foi obtida dividindo-se a soma do produto da quantidade e do preço de cada transação pelo total da quantidade de doses diárias compradas naquele ano.
55 Tendo em vista que a regressão multilinear pelo método dos mínimos quadrados pressupõe uma
distribuição simétrica dos valores tomados pela variável dependente, a variável preço não assumindo
valor negativo, a tranformação logarítmica permite aproximá-la a uma distribuição normal (simétrica).
56 O modelo pode ser descrito como : Log PDDi = β0 + Σj=1999:2006 βj Yji + β1LogQDDi + β2NNRTIi + β3PIi +
β4FIi + β5Pi + β6Ai + β7Ti +υi ; onde β representa os coeficientes a serem estimados, sendo β0 a constante,
Y a variável ano, NNRTI, PI e FI classes terapêuticas, P a variável patente, A idade do medicamento, T uso
preferencial no tratamento inicial e υ o termo residual, contendo erros de estimação e varíaveis não
incluídas no modelo. À exceção de LogQDD, que é uma variável contínua, todas as demais variáveis
explicativas são dummies.
57 A elasticidade (η) do preço em relação ao volume da demanda é dada por : η = q/p x Δp/Δq e se
refere a como o preço de um bem responde a variações na quantidade demandada. Se η > |1|, o preço
é elástico, pois Δp > Δq. Em contrapartida, se η < |1|, o preço é inelástico, pois Δp < Δq. Assim sendo,
quanto mais próximo η de zero, mais inelástico o preço em relação ao volume da compra.
58 Até o final de 2006 apenas essas quatro classes terapêuticas encontravam-se disponíveis no mercado
brasileiro.
36
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
tos de proteção patentária são: AZT, ddI, ddI EC, 3TC, d4T, NVP, SQV, IDV, sendo os
demais protegidos por pedidos de patentes em análise ou por patentes concedidas sobre seu princípio ativo.
A variável “idade do ARV” foi construída a partir do número de anos contados
da introdução do medicamento de referência no mercado mundial, tendo-se como
base o mercado dos Estados Unidos [14]. De acordo com a literatura especializada
[28], o preço de um novo medicamento tende a ser mais elevado no ano que segue
o seu lançamento. Esse preço se reduz ao longo do tempo, sendo essa redução mais
sensível a partir do quinto ano de comercialização, à medida que produtos concorrentes adentram o mercado. Nesse sentido, a variável foi construída separando
medicamentos com menos de cinco anos daqueles com cinco anos ou mais. A variável “recomendação terapêutica” tem por base as recomendações brasileiras e diz
respeito ao fato de o medicamento constar ou não como opção preferencial para o
início do tratamento (i.e., de primeira linha) no ano em que foi feita a transação.
IV.2. Resultados
Após eliminação das compras referentes a medicamentos de dosagem infantil,
dosagem específica para adultos com peso inferior a 60 quilos, Ritonavir (RTV),
DFC e doações, os resultados da análise foram obtidos a partir do registro de 371
transações. Em termos gerais, o PDD médio ponderado pela quantidade, atingiu
o seu valor mais baixo em 2003 (US$ 2,14), com uma queda de 62% desde 1998,
mais acentuada entre 200059 e 2002. Até o final do período estudado, o PDD médio aumentou cerca de 27%, sendo a alta mais importante para os anos de 2004
e 2005. A Figura 1 abaixo ilustra o comportamento do PDD médio ponderado por
classe terapêutica entre 1998 e 2006.60 Essa figura confirma uma tendência geral à
queda dos preços até 2003, a partir de quando ocorrem oscilações. Vale notar que
a presença de picos observados ao longo das curvas está fortemente relacionada
ao impacto da incorporação de novos medicamentos pelo SUS, como é o caso do
EFV, da classe ITRNN, em 1999, do TDF, da classe ITRN, em 2003 e do Atazanavir, da
classe IP, em 2004. Por fim, enquanto o preço médio ponderado das classes ITRN e
ITRNN tenderam a uma aproximação no período mais recente, para a classe IP, ainda que a queda do PDD tenha sido da ordem de 50% durante o período avaliado,
os preços permaneceram, em média, quase o dobro das duas primeiras.
59 Vale notar que em 2000, a triterapia composta por 2 ITRN + 1 ITRNN ou 1 IP, passou a ser o tratamento
de referência no Brasil. Até este ano, a biterapia, composta por 2 ITRN ainda era admitida.
60 Como a Enfuvirtida (T-20) foi incorporado apenas em 2005, a classe IF foi excluída em função do
curto período de observação. O PDD médio ponderado do T-20 foi de US$ 45,80 e 44,43 para 2005 e
2006 respectivamente.
Capítulo 1. Estrutura de mercado e evolução dos preços dos medicamentos antirretrovirais
37
Figura 1 – Evolução do PDD por classe terapêutica (1998-2006)
12,00
Total
10,00
ITRN
8,00
US$
ITRNN
6,00
IP
4,00
2,00
06
20
05
20
04
20
03
20
02
20
01
20
00
20
99
19
19
98
0,00
A Tabela 2, a seguir, reproduz o resultado da regressão multilinear sobre o log
PDD. À exceção da variável “recomendação terapêutica”, todas as variáveis inseridas no modelo econométrico são estatisticamente significativas.61 Esta análise
toma em conta o efeito de cada variável explicativa sobre o LogPDD, ajustado pelo
efeito conjunto das demais variáveis presentes no modelo. Tendo como referência
o ano de 1998, tudo o mais constante, a regressão multilinear indica uma queda
contínua da média de preços até o ano de 2002, observando-se sua gradual retomada ao final do período. Quanto à classe terapêutica, em relação à classe NRTI, a
classe NNRTI apresenta um preço em média 17% superior.62 Quando comparado
com a classe IP o preço médio mais que dobra e chega a ser 3,6 vezes superior para
a classe IF. O volume de compra, ainda que em correlação negativa com o preço,
como seria esperado, tem elasticidade muito próxima a zero. Assim sendo, um aumento de 1% na quantidade demandada contribui para uma redução em apenas
0,10% da média de preços.
As variáveis de maior impacto sobre o preço de ARV são a situação patentária e
a idade do medicamento. Quando comparados os ARV com e sem proteção patentária, os medicamentos patenteados são em média 87% mais caros (p<0,001). Já
medicamentos com menos de cinco anos, ou seja, novos, são em média 43% mais
caros que os medicamentos mais antigos (p<0,001). Finalmente, o fato de um ARV
constar entre os medicamentos preferenciais indicados para tratamento inicial não
exerce impacto significativo sobre o preço (p=0.125).
61 A partir do teste t de Student, onde o valor p encontrado é inferior a 5% (α = 0,05).
62 O valor p assumido para essa variável encontra-se bastante próximo ao limite do nível de significância de 5%.
38
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Tabela 2 – Regressão multilinear do log PDD dos medicamentos
ARV comprados pelo Brasil: 1998-2006 (N=371)
Variável estimada:
log PDD
Desvio
padrão
Valor t
Valor p
estimado
2,621
0,374
7,009
< 0,001
1999
- 0,400
0,140
- 2,855
0,005
2000
- 0,457
0,139
- 3,286
0,001
2001
- 0,963
0,138
- 7,002
< 0,001
2002
- 1,222
0,132
- 9,222
< 0,001
2003
- 1,216
0,136
- 8,941
< 0,001
2004
- 1,255
0,134
- 9,378
< 0,001
2005
- 1,113
0,127
- 8,757
< 0,001
2006
- 0,998
0,148
- 6,728
< 0,001
Volume de compra (log QDD)
- 0,097
0,026
- 3,770
< 0,001
ITRNN
0,177
0,088
2,000
0,046
IP
1,200
0,076
15,737
< 0,001
IF
2,596
0,313
8,293
< 0,001
0,873
0,084
10,430
< 0,001
- 0,429
0,088
- 4,871
< 0,001
- 0,091
0,059
- 1,536
0,125
(constante)
Parâmetro
Ano da transação (ref. 1998)
Classe terapêutica (ref. ITRN)
Situação patentária (ref. ARV sem patente)
ARV com patente pendente ou concedida
Idade do ARV (ref. < 5 anos)
5 anos ou mais
Recomendação terapêutica (ref. outro uso)
ARV de uso preferencial no tratamentto inicial
R2 ajustado: 0,80
IV.3. Discussão
Quando examinada a tendência de comportamento dos preços médios ponderados pela quantidade, o ano de 2003 representa um ponto de inflexão na queda
que vinha sendo observada desde 1998. Quando tomado em conta o modelo econométrico, essa queda se mantém até o ano de 2002, não havendo diferença estatística entre os coeficientes estimados de 2003 a 2005. Para o ano de 2006, a partir
do teste de igualdade dos coeficientes estimados, observa-se uma fraca tendência
Capítulo 1. Estrutura de mercado e evolução dos preços dos medicamentos antirretrovirais
39
à retomada da alta de preços (p=0,063). Muito embora não se possa afirmar, com
base exclusivamente nesta análise, que haja uma tendência à alta de preços, os dados sugerem que o período de queda vertiginosa observado até 2002 se esgotou.
Cabe salientar o papel da competição de medicamentos ARV produzidos localmente sobre a queda dos preços no primeiro período, que contribuiu para a
expansão da cobertura da TARV não só no Brasil como em outros países em desenvolvimento [29]. Não obstante, o período mais recente combina um aumento
de preços desses produtos no mercado interno com a apreciação do Real em relação à moeda americana, cujo maior impacto pode ser observado em relação ao
PDD da classe ITRN (Figura 1). O aumento geral dos preços nos últimos anos reflete
principalmente a crescente incorporação de novos medicamentos, mais potentes
porém sujeitos à proteção patentária, em substituição a medicamentos mais antigos, que apresentam perfil de toxicidade menos adequados. Esses medicamentos
ocupam um peso cada vez maior nas compras do Ministério da Saúde, consoante
ao processo de revisão e atualização das recomendações terapêuticas, que prioriza
a qualidade do tratamento em relação ao preço.
Nesse sentido, num contexto dinâmico de aperfeiçoamento tecnológico, onde
surgem novas opções de tratamento que, por sua vez, alimentam o processo de
revisão das recomendações terapêuticas vigentes, o desafio que se segue consiste
em conciliar cobertura e qualidade. A ausência de competição de genéricos no
caso de medicamentos mais novos, em função da existência de direitos de propriedade intelectual, exerce um impacto extraordinário sobre os preços, sendo estes
ainda mais importantes para novos medicamentos. Nesse sentido, a intensificação
da proteção patentária tende a agravar o problema do acesso às TARV, se não comprometendo sua continuidade, podendo, num futuro próximo, colocar em risco a
alta qualidade dos tratamentos oferecidos pelo SUS.
Uma resposta a esse desafio revela-se premente tanto para o Brasil como para
outros países em desenvolvimento onde não somente os recursos financeiros são
escassos, mas também o contingente de PVHA elegíveis à TARV é considerável. Dentre as medidas vislumbradas para a contenção dos gastos, muitas já vêm sendo colocadas em prática pelo governo brasileiro: a produção local de medicamentos não
passíveis de proteção patentária, o licenciamento compulsório e o uso de seu poder
de barganha para obter preços mais favoráveis na compra de medicamentos importados. Infelizmente, as flexibilidades previstas pelo acordo TRIPS, em que se inclui o
licenciamento compulsório, têm alcance limitado, especialmente face a uma nova
realidade em que os direitos de propriedade intelectual sobre princípios ativos, entre outros produtos e processos químico-farmacêuticos, ganharam terreno na China
e na Índia, em 2002 e 2005 respectivamente. Além disso, cabe destacar que a solução apresentada pelo uso da licença compulsória é de caráter temporário.
Em vista das novas fragilidades que se apresentam no que tange à luta pelo
acesso à TARV nos países em desenvolvimento, cabe reforçar o apoio junto à opi-
40
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
nião pública mundial no sentido de conter a expansão do regime de propriedade
intelectual e mesmo exercer pressão, tanto em nível nacional quanto internacional,
em favor de uma revisão mais equilibrada desse regime. De outro modo, como
mostra a experiência brasileira, deve-se continuar investindo na capacidade produtiva local, tanto a partir da negociação de licenças voluntárias quanto no fomento à P&D e de recursos humanos mais qualificados; estimular a dispensação racional de medicamentos ARV, levando-se em conta sua relação custo-efetividade a
longo prazo; e, além disso, fortalecer o sistema de exame de pedidos de patentes,
sobretudo, aperfeiçoando o mecanismo para apresentação de subsídios ao exame
de pedidos de patente quando de sua não elegibilidade.
V. Conclusão
O governo brasileiro logrou, ao longo da presente década, agir de maneira a reduzir o impacto dos preços dos medicamentos ARV sobre os objetivos de expansão
da política de cobertura universal e gratuita das PVHA. Vale reconhecer que o Brasil
contou com um cenário nacional e internacional bastante favorável. A exploração
da capacidade industrial interna aliada à disponibilidade de fontes alternativas de
matéria-prima, como a China e a Índia, permitiu a produção local de medicamentos
ARV mais baratos que os oferecidos pelas empresas farmacêuticas multinacionais.
Ao lado disso, o reconhecimento que a política brasileira inspirou junto à opinião
pública mundial concedeu ao país uma posição privilegiada no processo de negociação com os laboratórios. De fato, a queda substancial dos preços de ARV, observada no início desta década, trouxe enorme benefício a outros países em desenvolvimento e deixou claro a importância do recurso a medicamentos genéricos.
A análise da evolução dos preços dos medicamentos ARV no mercado brasileiro
mostra que, no período mais recente, o processo de queda perdeu ritmo e começa
a apresentar indícios de retomada. O enrijecimento do regime de propriedade intelectual restringe cada vez mais o recurso a medicamentos genéricos. Ainda que
o acordo TRIPS apresente flexibilidades e que os detentores de direitos possam
unilateralmente oferecer concessões aos países com menos recursos, as soluções
oferecidas têm caráter precário. No período mais recente, as recomendações terapêuticas da OMS passam por um processo de revisão e têm como resultado imediato não somente o aumento do número de pacientes elegíveis ao tratamento,63
como também a adoção de medicamentos mais novos e mais potentes que, em
alguns países em desenvolvimento, são patenteados. Desta forma, o impacto da
proteção patentária sobre o preço dos medicamentos ARV continua sendo uma
barreira importante ao acesso às TARV nesses países. Iniciativas devem ser tomadas
63 Uma vez que propõem o aumento da taxa de CD4 a partir do qual a TARV deve ser iniciada.
Capítulo 1. Estrutura de mercado e evolução dos preços dos medicamentos antirretrovirais
41
no sentido de fortalecer os sistemas jurídico e produtivo internos, como também,
de formar uma posição estratégica junto a outros países para conter a expansão
dos direitos de propriedade intelectual e promover o equilíbrio entre interesses
econômicos e sociais.
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Capítulo 1. Estrutura de mercado e evolução dos preços dos medicamentos antirretrovirais
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44
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
CAPÍTULO 2
Análise custo-eficácia de estratégias
terapêuticas de primeira linha: estudo
feito a partir da experiência brasileira em
matéria de tratamentos antirretrovirais
Sandrine Loubière
Julien Chauveau
David Zombre
Emily Catapano Ruiz
Resumo: O objetivo deste estudo é avaliar a relação custo-eficácia de dois esquemas de primeira linha (AZT+3TC+EFV versus AZT+3TC+LPV/r) em pacientes HIV
positivos atendidos no âmbito do Programa Nacional de DST e Aids no Brasil. Os
dados se referem a uma coorte retrospectiva de adultos HIV+, acompanhados pelo
Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids de São Paulo (CRT SP) entre 1998
e 2008. O tempo de tratamento antes da mudança de tratamento de primeira linha
foi avaliado para cada grupo. Os resultados evidenciam uma vantagem clínica e
econômica da estratégia EFV sobre a estratégia LPV/r. Somente uma redução de
preço do LPV/r teria vantagem sobre a nítida dominância do EFV. Os resultados da
presente análise econômica, conjugados com estudos feitos em prazo mais extenso são indispensáveis e serão considerados para a definição das recomendações
para as políticas públicas em matéria de tratamento do HIV/Aids no Brasil e também nos países em desenvolvimento.
Palavras-chave: HIV/AIDS, HAART, Custo-eficácia, Brasil, Lopinavir, Efavirenz
I. Introdução
O primeiro caso de Aids no Brasil foi registrado em 1982 e, na época onde muitos
países lutavam para frear a propagação do HIV e oferecer o acesso ao tratamento
para as pessoas vivendo com o HIV/Aids, a resposta do Brasil foi considerada como
um êxito [1]. Desde a segunda metade dos anos 90, o Brasil tornou-se o primeiro
país de recursos limitados a oferecer a todos o acesso gratuito aos tratamentos
antirretrovirais (ART) [2, 3]. Em 1996, as terapias de alta potência (HAART) foram
desenvolvidas e revolucionaram o tratamento do HIV. Mais uma vez, esses tratamentos foram disponibilizados para todos os pacientes. Desde 1980, em torno de
meio milhão de casos foram notificados e, atualmente, mais de 180.000 pacientes
afetados pelo HIV/Aids receberam algum tipo de multiterapia antirretroviral no
Brasil [4, 5].
Este nível de cobertura terapêutica é excepcional para um país de renda intermediária como o Brasil e se aproxima mais do nível de um país industrializado. Assim, o Brasil conseguiu estabilizar a prevalência da doença em 0,6% desde
2000 e reduzir em 50% a taxa de mortalidade ligada ao HIV/Aids [5]. Essa rápida
expansão da cobertura terapêutica é devida, em parte, à indústria farmacêutica
brasileira, que fabrica nacionalmente antirretrovirais (ARV) genéricos, comprados
pelo governo a preços inferiores aos preços dos ARV no mercado internacional [6].
Além disso, houve uma pressão muito forte sobre as companhias farmacêuticas internacionais para obter reduções de preços. Uma ferramenta muito útil para essas
negociações reside em uma cláusula do acordo sobre os aspectos dos direitos de
propriedade intelectual (acordos ADPIC) da OMS, oferecendo aos países em desenvolvimento a possibilidade de emitir licenças compulsórias para os medicamentos.
Essas licenças compulsórias permitem aos países “quebrar” a patente desses medicamentos para que eles possam ser produzidos ou importados como genéricos.
Cumprindo o seu compromisso, desde 1996 o Brasil desenvolve as suas próprias
recomendações nacionais para o tratamento e o manejo dos pacientes afetados
pelo HIV/Aids [1].
A experiência dos programas nacionais de acesso aos ARV nos países com recursos escassos, entre os quais o Brasil serviu de exemplo, ressalta a necessidade de
encontrar um equilíbrio entre a efetividade dos programas, a extensão da cobertura para um número crescente de pacientes e a complexidade das multiterapias atuais exigindo 2a e 3a linhas terapêuticas, mais caras [7,8]. Um dos maiores desafios
a ser enfrentado nos próximos anos é representado pela administração das falhas
terapêuticas e da passagem para a 2ª linha de tratamento antirretroviral nos países com recursos limitados. Em um contexto de escassez de recursos, o aumento
preocupante dos gastos ligados à chegada dos tratamentos de 2ª linha, patenteados na grande maioria, irá provavelmente acentuar ainda mais as imposições orçamentárias já existentes e reduzir de maneira significativa o acesso aos tratamentos
eficazes nesses países. Neste contexto, a definição de estratégias de primeira linha
aparece como uma prioridade; estas estratégias seriam as mais adequadas para
atender à exigência de custo-eficácia, assegurando uma resposta inicial ao desafio
da sustentabilidade do acesso universal ao tratamento nos países pobres.
O objetivo do nosso estudo é de avaliar a eficácia e a relação custo-eficácia
de dois tratamentos de primeira linha: início com triterapia incluindo um inibidor
da transcriptase reversa não análogo de nucleosídeo (INNRT) e dois inibidores da
transcriptase reversa análogos de nucleosídeos (INRT) versus triterapia associando
46
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
um inibidor de protease com “booster” de ritonavir (IP/r) e dois INRT, com especial
atenção para o subcaso de esquemas incluindo o efavirenz (EFV) para a classe dos
INNRT e o lopinavir/ritonavir (LPV/r) para a classe dos IP/r. Optamos pela comparação mais específica entre esses dois medicamentos pelos motivos seguintes: em
primeiro lugar, as recomendações brasileiras de 2008 para o tratamento antirretroviral para os adultos baseiam-se nos dois esquemas seguintes: 1) a associação
de 2INRT+1INNRT; o EFV sendo o INNRT de preferência comparado com a nevirapina (NVP); 2) a associação 2INRT+1IP/r; LPV/r e o atazanavir (ATV) sendo ambos
recomendados. Um estudo feito pelo serviço de epidemiologia do CRT evidencia
que, entre 2002 e 2005, as combinações zidovudina+lamivudina (AZT+3TC)+EFV e
AZT+3TC+LPV/r foram os esquemas mais prescritos no CRT. Além disso, EFV e LPV/r
foram os objetos de ameaça de licença compulsória no Brasil. Tal ameaça não foi
bem-sucedida para o Kaletra,(LPV/r): um acordo foi assinado com a Abbott mas,
para o efavirenz, produzido pelo laboratório Merck, o Brasil emitiu, em maio de
2007, uma licença compulsória permitindo a importação de versões genéricas desse medicamento ou a produção local pela indústria farmacêutica nacional [9]. Em
1999, o EFV foi incluído nas recomendações brasileiras de tratamentos de primeira
linha e o LPV/r em 2001. Além disso, o LPV/r apresenta algumas vantagens que devem ser mencionadas: conservação sem refrigeração, nenhuma restrição alimentar,
resistência que se desenvolve menos rapidamente do que no caso do EFV [10]. Além
disso, o LPV/r é oferecido para os países em desenvolvimento a preços reduzidos,
no âmbito do programa nacional para o acesso ao tratamento [11]. Por fim, estudos
clínicos recentes evidenciaram uma melhor resposta clínica com o EFV, comparado
ao LPV/r [12], com uma resposta imunológica idêntica, até levemente melhor com o
EFV [10], apesar de uma meta-análise indicar que a resposta virológica é similar nas
duas estratégias e não mostrar diferença significativa entre o EFV e o LPV/r quanto
à mortalidade ou evolução da doença [13]. No entanto, a maior desvantagem do
EFV é a fraca barreira genética, que favorece resistências rápidas aos INNRT e aos
INRT. Tais resistências podem ter um efeito negativo sobre a qualidade de vida dos
pacientes HIV+ [14] e aumentar o custo global do seu manejo [15].
Na seção seguinte, apresentamos a amostra de estudo e os métodos de coleta dos dados. As técnicas econômicas e estatísticas utilizadas foram descritas na
segunda seção. Os resultados são então apresentados e debatidos na terceira e
quarta seções. Na última parte do documento, analisamos as implicações de nossas conclusões para os pesquisadores e os detentores do poder de decisão.
Capítulo 2. Análise custo-eficácia de estratégias terapêuticas de primeira linha
47
II. Metodologia de análise
II.1.Definição da amostra e critérios de inclusão
O Centro de Referência e Treinamento em Doenças Sexualmente Transmissíveis e
Aids de São Paulo (CRT-DST/Aids) é um complexo sanitário64 do município de São
Paulo (SP) e constitui um dos centros de referência para o atendimento das pessoas portadoras do HIV. Criado em 1988, ele atende tanto os pacientes para novas
consultas quanto aqueles provenientes de outros serviços ou hospitais do Estado,
além de realizar pesquisas visando o desenvolvimento ou a integração de novas
tecnologias para a prevenção da Aids e seu tratamento no âmbito do sistema público de saúde do Brasil. O Centro é a sede do Programa Estadual DST/Aids de SP.
O CRT-SP acolhe todos os dias em torno de 200 pacientes infectados pelo HIV/
Aids, residentes no município de São Paulo ou oriundos de outros serviços ou centros de atendimento do Estado. As análises aqui apresentadas se referem exclusivamente aos pacientes tratados com multiterapias ARV e cujo acompanhamento
é feito no CRT. Em 2007, a fila ativa do CRT incluía 4.750 pacientes. Por ocasião de
cada consulta dos pacientes em tratamento, o esquema terapêutico prescrito é sistematicamente registrado, bem como um conjunto de dados sociodemográficos,
clínicos e imunológicos. O serviço de vigilância epidemiológica do CRT desenvolveu um sistema de informação semiautomatizado com máscara de entrada das
informações contidas nos prontuários médicos dos pacientes. Uma equipe de enfermeiros e de médicos do serviço de vigilância epidemiológica é encarregada da
entrada e da coleta dos dados. Desde 2000, este registro é feito diariamente como
rotina para os pacientes recém-matriculados no CRT, aqueles diagnosticados como
soropositivos ou com tuberculose pelo laboratório do CRT, aqueles que são atendidos no hospital-dia (serviço de internação parcial), aqueles que evoluem para
óbito e as gestantes e crianças.
Para serem incluídos na nossa análise retrospectiva como “intenção de tratar”,
os pacientes deveriam atender a quatro critérios seguintes: (1) ter recebido um dos
dois esquemas de primeira linha seguintes: AZT+3TC+EFV ou AZT+3TC+LPV/r, (2)
ter 18 anos ou mais, (3) ter iniciado o tratamento no CRT de São Paulo entre 2002 e
2005, e (4) ser virgem de tratamento na época do início de um dos dois esquemas
HAART considerados para o estudo.
64 Hospital-dia e alguns quartos disponíveis para atendimento durante várias noites, clínica geral, medicina especializada como o serviço de doenças infecciosas, consultas externas para DST, CTA etc.
48
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
II.2. Escolha do critério principal de eficácia
Escolhemos como critério o tempo com o mesmo esquema terapêutico até a mudança de tratamento. Na ausência de definição exata de primeira e segunda linha
nas recomendações brasileiras que não diferenciam os esquemas em termos de
linhas terapêuticas, consideramos toda mudança de molécula como mudança de
tratamento (seja ele definido a priori em razão de uma falha virológica ou de uma
adaptação exigida pela ocorrência de efeitos indesejáveis e/ou de toxicidade). A
variável elaborada “tempo com o mesmo tratamento antes da mudança de tratamento” foi calculada a partir da data de início do tratamento HAART até a data da
ocorrência da mudança de tratamento. Para aqueles que não trocaram de tratamento no período de observação igual a três anos a partir da inclusão no estudo,
os dados foram bloqueados na data correspondente à seguinte ocorrência: data da
última consulta ou data do último contato com o paciente. Os estágios clínicos da
OMS foram utilizados para definir os estágios da doença para cada paciente.
II.3. Recursos consumidos e valorização
As informações sobre o consumo de cuidados foram coletadas a partir da base de
dados do serviço de vigilância epidemiológica do CRT e, de maneira pontual, a partir dos prontuários médicos dos pacientes. Os dados referentes aos exames laboratoriais e clínicos, bem como aqueles relativos ao número e duração das internações
e ao número de consultas foram coletados. Os dados sobre a contagem de CD4 e
a carga viral, realizada durante o período observado, foram coletados por meio do
cruzamento da base de dados do serviço de vigilância epidemiológica do CRT e a
base nacional SISCEL (Sistema de Controle de Exames Laboratoriais).
Os dados sobre o custo unitário de uma internação completa (estada incluindo
as despesas de hotel e as despesas gerais), bem como o custo unitário de uma
consulta médica em ambulatório e no serviço especializado, o custo dos medicamentos contra a tuberculose e o custo dos exames laboratoriais e clínicos foram
calculados a partir das informações contábeis do CRT. O custo dos esquemas terapêuticos foi calculado multiplicando o custo unitário de uma dose diária de cada
componente do tratamento inicial pelo número de dias de tratamento. Os preços
dos medicamentos antirretrovirais são provenientes do Programa Nacional de DST
e Aids. Os custos expressados em real brasileiro em 2008 foram convertidos em
US$, na base do câmbio médio vigente em 2008 (1 US$= 1,833 real: Fonte: FMI
Bases de Dados Estatísticos, 2008).
II.4. Análises estatística e econômica
Foram utilizados o método de Kaplan-Meier e o teste log-rank para elaborar e comparar a sobrevida nos dois grupos. Um processo de imputação múltipla foi usado
Capítulo 2. Análise custo-eficácia de estratégias terapêuticas de primeira linha
49
para controlar os dados faltantes. As análises foram ajustadas sobre um conjunto
de variáveis: o sexo, a idade, a taxa de CD4 e o estágio da Aids no início. A análise de
sobrevida foi estratificada sobre o número inicial de CD4(CD4<=350 células/mm3,
CD4>350 células/mm3). Além disso, uma análise de sobrevida realizada pelo serviço epidemiológico do CRT na base 1988-2005 evidencia que desde 2001 nenhuma
associação significativa entre fatores sociodemográficos e clínicos e a escolha por
um início com um INNRT ou um IP/r foi encontrada (resultados não publicados).
Desenvolvemos um modelo de Cox para determinar os fatores que são associados ao tempo de permanência com o mesmo tratamento antes de mudar, efetuando um controle sobre um conjunto de variáveis específicas. Extrapolamos o
tempo de tratamento antes da falha além do período de acompanhamento de três
anos para calcular a duração média antes da falha do tratamento em cada grupo.
Essa extrapolação foi realizada a partir de uma distribuição paramétrica da variável “duração do tratamento antes da falência”, chamada distribuição de Weibull.
Os cálculos foram efetuados com softwares SPSS (versão 15; SPSS sistema) e STATA
(versão 10; Intercooled Stata).
A média e o intervalo de confiança de 95% (IC 95%) das variáveis de consumo de
cuidados bem como o custo total foram avaliados por paciente-ano e comparados
entre os dois grupos. A avaliação econômica foi conduzida levando em conta o sistema de saúde. A razão custo-eficácia incremental (ICER) entre o esquema incluindo o EFV e o esquema incluindo o LPV/r sobre os três anos de acompanhamento
da coorte foi calculada. O numerador foi definido como a diferença de custo total
por paciente-ano entre os dois grupos e o denominador como a diferença sobre o
critério de eficácia considerado, ou seja, a duração do tratamento antes da falha.
Uma análise de sensibilidade foi conduzida para avaliar a variação dos ICER em
função das variações dos parâmetros chave da análise. Mudamos o valor da variável duração do tratamento antes da falha dentro dos intervalos de confiança. As variações dos valores dos parâmetros de custo também foram exploradas. Os preços
dos tratamentos foram submetidos a uma análise de sensibilidade.
III. Resultados
III.1. Características sociodemográficas e clínicas da inclusão
360 dos18 561 pacientes positivos para o HIV registrados no CRT na base de dados,
entre 1988 e 2005, atendiam aos critérios de inclusão: 279 pacientes receberam
AZT+3TC+EFV como primeiro esquema de tratamento (grupo EFV) e 81 pacientes
receberam AZT+3TC+LPV/r (grupo LPV/r). Dois pacientes do grupo EFV foram ex-
50
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
cluídos da análise, por apresentarem valores aberrantes para as variáveis de consumo de cuidados.
O quadro 1 apresenta as características sócio-demográficas e clínicas dos pacientes na época do início dos seus tratamentos. Mais de 75% dos pacientes são
homens. A idade média por ocasião da inclusão é de 36,5 anos. Não havia diferença significativa entre os dois grupos no que diz respeito ao grau de escolaridade,
a maioria sendo de nível secundário (58%). Mais da metade (80%) dos pacientes
foram diagnosticados com um dos estágios Aids no início do tratamento.
Quadro 1 – Características sócio-demográficas e clínicas (N=358)
Totais
AZT+3TC+EFV
AZT+3TC+LPV/r
Variáveis
N=358
N=279
N=81
p
Sexo
Feminino
87 (24,3%)
63 (22,7%)
24 (29,6%)
0,20
Masculino
271 (75,7%)
214 (77,3%)
57 (70,4%)
Média (SD)
36,5 (8,5)
36,6 (8,4)
36,2 (8,9)
0,67
<= 40 anos
262 (73,2%)
203 (73,3%)
59 (72,8%)
0,94
> 40 anos
96 (26,8%)
74 (26,7%)
22 (27,2%)
Orientação sexual
Heterossexuais
143 (39,9%)
102 (36,8%)
41 (50,6%)
Idade
Homo e bissexuais
170 (47,5%)
139 (50,2%)
31 (38,3%)
Não informado
45 (12,6%)
36 (13,0%)
9 (11,1%)
Raça
Branca
244 (68,2%)
184 (66,4%)
60 (74,1%)
Outras
114 (31,8%)
93 (33,6%)
21 (25,9%)
Grau de escolaridade
Primário
152 (42,5%)
114 (41,2%)
38 (46,9%)
Segundário ou mais
206 (57,5%)
163 (58,8%)
43 (53,1%)
Estágio Aids no início
Não
71 (19,8%)
56 (20,2%)
15 (18,5%)
Sim
287 (80,2%)
221 (79,8%)
66 (81,5%)
0,08
0,19
0,36
0,74
CD4 no início
Média (IIQ)
288 (185-388)
313 (209-416)
204 (130-280)
0,000
≤ 350 células/mm3
238 (66,5%)
166 (59,9%)
72 (88,9%)
<0,0001
> 350 células/mm3
120 (33,5%)
111 (40,1%)
9 (11,1%)
Sim
134 (37,4%)
91 (32,9%)
43 (53,1%)
Não
224 (62,6%)
186 (67,1%)
38 (46,9%)
Mudança de tratamento
0,001
SD: Intervalo-padrão.
Capítulo 2. Análise custo-eficácia de estratégias terapêuticas de primeira linha
51
A mediana de CD4 no início era de 288 células/mm3, 29% dos pacientes apresentando taxas de CD4< 200 células/mm3. A mediana de CD4 no início variava de
maneira significativa entre os dois grupos (313 células no grupo EFV vs. 204 células/
mm3 no grupo LPV/r; p<0,0001).
III.2. Duração com o mesmo tratamento antes da falha
A proporção de pacientes que responderam ao tratamento com 6, 12, 24 e 36 meses foi respectivamente de 94%, 90%, 81% e 80%. A taxa de mortalidade dentro de
um período de três anos foi inferior a 6%, não apresentando diferença significativa
entre os dois grupos. A metade dos óbitos ocorreu durante os três primeiros meses
seguintes ao início.
As falhas eram mudanças de classes de medicamentos (43%) ou intensificação
do tratamento com adição de uma molécula (1%). A taxa de falha foi bem mais
importante no grupo LPV/r do que no grupo EFV (53% contra 33% ; p = 0,001). A
mediana de sobrevida no período de observação foi de 3,0 anos (IQR: 0,9-3,0) no
grupo EFV e de 2,0 anos (IIQ:0,2-3,0) no grupo LPV/r; do ponto de vista estatístico,
essa diferença foi significativa (teste log-rank, chi2 = 13,4 ; p <0,0001). A diferença
de duração do tratamento antes da falha entre os grupos EFV e LPV/r foi igualmente significativa na faixa CD4<=350 células/mm3 (2,8 vs. 1,6 anos; chi2 = 8,6; p
<0,0001), mas não significativa na faixa CD4>350 células/mm3.
O modelo de Cox identificou dois fatores associados à “duração do tratamento
antes da falha”: estar em tratamento com LPV/r multiplica por 1,7 o risco instantâneo de mudar de tratamento (HR: 1,7 IC 95%: 1,3 - 2,4; p = 0,004); ter mais de 40
anos multiplica esse risco por 1,5(HR: 1,5 (1,1 - 2,0); p = 0,04); enfim, apesar de não
ser significativo (p>0,05), o fato de iniciar o tratamento no nível de CD4<=350 células/mm3 multiplica esse risco por 1,4(HR: 1,4 (1,0 - 2,0); p = 0,08) (Quadro 2).
A partir da distribuição paramétrica de Weibull, a mediana da duração com o
mesmo tratamento antes da falha era alcançada entre 20,2 e 17,7 anos no grupo
EFV, conforme a idade do paciente por ocasião do início (<40 e ≥40 anos, respectivamente), em comparação com 16,7 e 15,0 anos no grupo LPV/r, respectivamente.
Quadro 2 – Modelo de Cox
Variáveis
Avaliação
de β
Intervalo
padrão β
Hazard
razão=exp(β)
IC 95%
p
Homem
0,27
0,25
1,3
(0,8 – 2,0)
0,28
Idade >40 anos
0,38
0,19
1,5
(1,1 – 2,0)
0,04
Grau de escolaridade primário
-0,06
0,19
0,9
(0,7 – 1,3)
0,72
Raça branca
0,18
0,20
1,2
(0,9 – 1,7)
0,35
52
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Variáveis
Avaliação
de β
Intervalo
padrão β
Hazard
razão=exp(β)
IC 95%
p
Heterossexuais
0,18
0,24
1,2
(0,8 – 1,8)
0,46
Episódio de uso de droga injetável
0,05
0,25
1,1
(0,7 – 1,6)
0,84
Iniciar com AZT+3TC+LPV/r
0,56
0,19
1,7
(1,3 – 2,4)
0,004
CD4≤350 células/mm3 no início
0,35
0,20
1,4
(1,0 – 2,0)
0,08
Estágio Aids no início
0,06
0,21
1,1
(0,7 – 1,5)
0,77
2002
-0,31
0,26
0,7
(0,5 – 1,1)
0,25
2003
-0,07
0,22
0,9
(0,6 – 1,3)
0,74
2004
-0,33
0,26
0,7
(0,5 – 1,1)
0,20
Ano do início
IC: intervalo de confiança.
III.3. Os custos
O número médio de internações, o número de consultas e de exames por pacienteano não apresentou diferença significativa entre os dois grupos. Em média, dentro
de cada grupo, os pacientes fizeram uma consulta por mês e uma contagem de
CD4 e de carga viral a cada seis meses. 14% dos pacientes foram internados, com
uma média de uma internação por ano de acompanhamento. A média dos custos
de manejo (sem os ARV) foi de US$ 465 por paciente-ano, esses custos variando
entre US$ 408 para os pacientes com EFV e US$ 648 por paciente-ano para aqueles
com LPV/r. Levando em conta os custos dos ARV, a média do custo total foi bem
mais elevada no grupo LPV/r (2184 US$ vs 1108 US$ por paciente-ano, respectivamente). Os custos dos ARV representaram 79% vs 82% do custo total por paciente
durante o período considerado, no grupo EFV e no grupo LPV/r, respectivamente.
Os pacientes com uma contagem de CD4 ≤ 350 células/mm3 no início apresentaram um custo de manejo bem mais elevado (US$ 1486 por paciente-ano), comparados com os pacientes que tinham iniciado com CD4> 350 /mm3 (US$ 1033 por
paciente-ano) p< 0,01).
III.4. A razão custo-eficácia
O tratamento de primeira linha associando o EFV apresentou uma maior duração
de tratamento antes da falha e um custo menor comparado com o tratamento com
LPV/r (Quadro 3). Sendo assim, o tratamento com EFV se apresenta como uma estratégia dominante, possibilitando uma economia financeira para um ganho em
“sobrevida”, em qualquer faixa de CD4.
Capítulo 2. Análise custo-eficácia de estratégias terapêuticas de primeira linha
53
A análise de sensibilidade evidenciou resultados sempre favoráveis à dominância nítida do tratamento de primeira linha com EFV sobre o tratamento com LPV/r.
Dentro de um cenário onde surgia a hipótese de uma queda do preço do LPV/r
de 80%, o tratamento com EFV não seria mais uma estratégia dominante, com o
grupo LPV/r se mostrando até mais barato, considerando a alta baixa (75%) de l’IIQ
para a variável “duração do tratamento antes da falha”.
Quadro 3 – Custo total por paciente-ano, mediana e intervalo interquartil
(IIQ) da sobrevida antes da mudança de tratamento (em anos) e custoeficácia da estratégia EFV versus estratégia LPV/r (em dólares 2008)
2INTI+EFV
2INTIs+LPV/r
Custos anuais (PPA)
804
1 724
Mediana de sobrevida (anos, IIQ)
3,0 (0,9-3,0)
1,9 (0,2-3,0)
ICER (custo por ano de vida ganho)
Dominante
Todos os pacientes
Pacientes com CD4<=350 células/mm3 no início
Custos anuais (PPA)
786
1 694
Mediana de sobrevida (anos, IIQ)
2,9 (0,7-3,0)
1,6 (0,2-3,0)
ICER (custo por ano de vida ganho)
Dominante
Pacientes com CD4>350 células/mm3 no início
Custos anuais (PPA)
819
1 737
Mediana de sobrevida (anos, IIQ)
3,0 (1,7-3,0)
3,0 (1,3-3,0)
ICER (custo por ano de vida ganho)
Dominante
IV. Discussão
Esse estudo fornece uma avaliação única dos resultados e dos custos de um centro
de tratamento do HIV/Aids no Brasil. Ela estabelece uma comparação entre uma
coorte de pacientes infectados pelo HIV iniciando um tratamento com EFV e uma
coorte de pacientes similares ao primeiro grupo no que diz respeito às características imunológicas, clínicas e sociodemográficas, recebendo um tratamento de
primeira intenção com um IP associado, o LPV/r. Esta comparação permite verificar
que existe um aumento da duração com o mesmo tratamento antes da falha no
grupo EFV em relação ao grupo LPV/r; além disso, constatamos custos relativamente diferentes para os ARV entre as duas estratégias (4,27 US$ vs. 1,93 US$ por dia
para o esquema associando LPV/r e o esquema com EFV), sem diferença significa-
54
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
tiva para as outras categorias de custos. Concluindo, o esquema com EFV é uma
estratégia dominante.
Conforme certos estudos clínicos [16-18] e avaliações econômicas realizadas
em países de baixa renda e baseados sobre dados de observação [19,20] ou sobre
modelos de simulação [21-23], o nosso estudo mostra a correlação entre a contagem dos CD4 no início do tratamento e a ocorrência de uma falha, a porcentagem
de falhas sendo mais elevada nos pacientes apresentando valores de CD4<=350
células/mm3 no início. Da mesma maneira, o início de um tratamento HAART com
mais de 40 anos era associado, no nosso estudo, a um risco mais elevado de falência do tratamento. Esses dois resultados indicam que o início precoce de um tratamento HAART (e, portanto, uma procura mais rápida dos testes para o diagnóstico
da infecção pelo HIV) representa uma condição importante para um atendimento
mais eficiente da doença HIV/Aids. Isso apresenta um interesse particular nos países de baixa renda, onde a incidência de manifestações oportunistas, incluindo
a tuberculose e as infecções bacterianas, é sensivelmente mais elevada que nos
países desenvolvidos e poderia ser associada a taxas de mortalidade mais elevadas
nos pacientes iniciando um tratamento HAART. Ao contrário, o fato de iniciar uma
multiterapia no estágio Aids não influencia de maneira significativa o critério de
eficiência considerado. Esse resultado pode ser proveniente de um modo de seleção ligado ao fato de que a maioria dos pacientes da nossa amostra (mais de 80%)
iniciaram o tratamento no estágio Aids.
A duração com o mesmo tratamento antes da falha, mais elevada no grupo
EFV, deve ser avaliada junto com a forte proporção de interrupções terapêuticas
nesse mesmo grupo. De fato, mais de 62% das falhas no tratamento no grupo EFV
consistia na mudança de classes de medicamentos, passando de um esquema
2INRT+INNRT para um esquema 2INRT+PI/r. No grupo LPV/r, menos de 45% dos
pacientes com falha mudaram de classes terapêuticas (p<0,0001). Esses resultados
confirmam o risco mais elevado de resistência aos medicamentos antirretrovirais
nos tratamentos baseados no EFV [24-26]. O aumento previsto dos custos associados com a passagem para tratamentos de segunda linha ressalta a importância da
procura pela melhor estratégia de primeira linha, tanto no aspecto clínico quanto
econômico, para contribuir com a definição de políticas de saúde pública eficazes
e sustentáveis em longo prazo [27].
No nosso estudo, com o cenário otimista da queda de 80% do preço do LPV/r,
seja, US$ 400 por ano para a combinação AZT+3TC+LPV/r, o início de um tratamento de primeira linha com o LPV/r torna-se eficaz do ponto de vista do custo. Caso,
tal diminuição dos preços dos medicamentos seja alcançada, o tratamento com
o LPV/r poderia apresentar uma boa relação custo-eficácia no Brasil e, provavelmente, nos contextos similares onde, atualmente, esta opção é considerada unicamente como um tratamento de segunda linha. Tal queda é realista? Desde 2002,
a parte do orçamento do programa brasileiro de luta contra o HIV/Aids destinada
Capítulo 2. Análise custo-eficácia de estratégias terapêuticas de primeira linha
55
à aquisição dos ARV aumentou de maneira significativa com os ARV patenteados
[3,18,11]. Na medida em que a patente tende a pressionar os preços para cima,
ela pode constituir um obstáculo para a incorporação dos novos ARV pelos países
de baixa renda. Sendo assim, a tendência é de excluir novos medicamentos dos
esquemas de primeira linha e mesmo de segunda linha, quando existem opções
mais baratas apresentando certo grau de eficiência [28]. No entanto, desde 2010
e graças ao acordo assinado entre a Fundação Clinton e a sociedade farmacêutica
Matrix, uma coformulação genérica atazanavir (ATV), ritonavir (RTV) associada com
uma combinação de dose única de TDF+3TC é disponibilizada ao preço de US$
425 por paciente e por ano. Este novo tratamento poderia exercer uma pressão
decisiva sobre os preços dos medicamentos, da qual os países como o Brasil se
beneficiariam [29,30].
A nossa análise tem várias limitações. A mais importante e comum ao conjunto dos estudos de coorte observacionais, consiste na impossibilidade de avaliar o
impacto das observações sobre a sobrevida dos pacientes no longo prazo [19,31].
A segunda limitação, também comum a todos os estudos observacionais, é a existência inevitável de desvios de seleção na inclusão dos pacientes nos dois grupos.
No entanto, esses estudos permitem avaliar as alternativas de tratamento baseadas na prática e métodos estatísticos foram elaborados para limitar os desvios potenciais. Do mesmo modo, temos que ter cautela na generalização dos resultados,
porque um único centro no Brasil foi utilizado para avaliar a eficiência e os custos
do tratamento. No estado de São Paulo, 75.000 doentes afetados pelo HIV/Aids
encontravam-se em HAART em 2007, tratamentos fornecidos pelo sistema público de saúde, a grande maioria acompanhados em mais de 170 serviços de saúde
pública. O CRT integra esta rede de serviços e, atualmente, acompanha cerca de
quatro mil pacientes com HIV/Aids. Enfim, os custos avaliados incluem somente os
custos diretos; os custos indiretos não foram levados em consideração porque os
dados sobre a perda de produtividade não estavam disponíveis.
V. Conclusão
As conclusões deste estudo evidenciam que a estratégia de primeira linha baseada
nos INNRT – no caso o EFV – é a mais adequada, comparada com as estratégias iniciando com um PI/r, tendo em vista os resultados clínicos e a relação custo-eficácia,
no contexto do CRT de São Paulo e, provavelmente, em contextos semelhantes
no Brasil. Nossos resultados evidenciam também que uma multiterapia iniciada
precocemente (quando a contagem de CD4 é superior a 350 células/mm3) tem um
efeito positivo sobre a duração com o mesmo tratamento de primeira linha e sobre
os custos de manejo.
56
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
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Capítulo 2. Análise custo-eficácia de estratégias terapêuticas de primeira linha
59
PARTE II
Propriedade intelectual:
questões e desafios
CAPÍTULO 3
Propriedade Intelectual e Aids nos
países em desenvolvimento: inovação
e acesso aos produtos farmacêuticos
Cristina Possas
Resumo: Este artigo debate as conexões entre os sistemas de inovação, a regulação das atividades de P&D no setor farmacêutico e a propriedade intelectual (PI)
nos países em desenvolvimento, analisando as consequências do cenário pós-ADPIC (Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relativos ao Comércio, em
inglês TRIPS, 1994) para os produtores locais de medicamentos ARV genéricos e
para o acesso ao tratamento das pessoas vivendo com o HIV. São examinadas as
atuais restrições na esfera legal da PI, que conduziram a um aumento de preços
e ergueram novas barreiras ao acesso nesses países, com implicações éticas e de
direitos humanos. São discutidos aqui os possíveis cenários e as perspectivas futuras, analisando as alternativas que surgem no panorama internacional, tais como
novos mecanismos de financiamento para as atividades de Pesquisa e Desenvolvimento e iniciativas como o “Pool de Patentes” da UNITAID, permitindo minimizar as
consequências das imposições legais e das barreiras para esses produtos.
Palavras-Chave: Inovação, Propriedade Intelectual, HIV/Aids, Medicamentos ARV,
Países em desenvolvimento.
I. Introdução
Em um cenário internacional caracterizado por uma forte competitividade e pela
crise econômica recente, a implementação efetiva de sistemas nacionais de inovação, os desafios impostos pela regulação e pelo registro de processos e produtos, bem como pelo papel das políticas de propriedade intelectual se apresentam
como questões cruciais do know how econômico.
Nesse novo ambiente mundial, as economias emergentes como as da China,
da Índia, do Brasil e da Rússia, fortalecem a sua capacidade local de formulação
de políticas científicas, tecnológicas e industriais adequadas e de regulação dos
resultados das atividades científica e tecnológica. Atualmente, essas economias
tentam superar as limitações locais no âmbito da regulação, pela implementação
de estruturas institucionais e de regulação envolvendo o registro de produtos, a
avaliação da propriedade intelectual, a biossegurança e a ética. Assim, durante as
duas últimas décadas, novos processos institucionais e legais foram incorporados
às estruturas locais de regulação, traduzindo, por um lado, melhoras significativas
de sua capacidade local de governo e, de outro lado, um aumento das demandas
externas feitas por novos contatos comerciais internacionais.
No entanto, um dos principais desafios que esses países, assim como outros
países em desenvolvimento, enfrentam atualmente é a implementação de estratégias de política científica, tecnológica e industrial adequadas às condições específicas de cada setor econômico, sendo que as necessidades de regulação e o impacto
dos processos de regulação variam muito de um setor para o outro.
Especialmente para os setores econômicos ligados à qualidade de vida e à sobrevivência, ou seja, os produtos farmacêuticos e a agricultura, os processos e os
impactos da regulação exigem estratégias de governo bem elaboradas e específicas, já que envolvem conceitos sociais e éticos e, nos países desenvolvidos, têm uma
forte conotação política envolvendo os Direitos Humanos no que diz respeito ao
acesso aos produtos farmacêuticos que salvam vidas e ao acesso à alimentação.
No setor farmacêutico, a pandemia da Aids, que afeta 33 milhões de pessoas
no mundo, ampliou essas contradições, principalmente depois do período de salvaguarda de 10 anos dos acordos sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade
Intelectual Relativos ao Comércio, ADPICs (TRIPS, em inglês) em 2005, aumentando as restrições legais impostas aos produtores de genéricos para a fabricação de
medicamentos ARV, nos países em desenvolvimento. Tais restrições contribuem
para um aumento significativo do custo do tratamento por paciente.
Em consequência, os países em desenvolvimento tornaram-se cada vez mais
dependentes das licenças compulsórias e outras “flexibilidades” do acordo ADPIC,
para poder enfrentar os preços elevados dos medicamentos ARV [1]. Essas “flexibilidades” revelam-se muitas vezes de difícil aplicação, tendo em vista as pressões política e econômica. Além disso, várias dessas nações sofrem pressões internacionais
para concluir acordos de livre comércio draconianos (FTA – Free Trade Agreements),
o que impõe limitações para o uso dessas flexibilidades. Sem dúvida, esse novo cenário cria um impasse para a atual estrutura legal internacional da PI e incentiva os
governos e as organizações internacionais a buscar estratégias alternativas.
Este trabalho analisa de maneira breve as conexões entre os sistemas de inovação, a regulação das atividades de P&D no setor farmacêutico e a propriedade
intelectual, discutindo as consequências para os produtores de ARV genéricos e as
restrições atuais no âmbito legal da Propriedade Intelectual (PI), que conduziram a
um aumento dos preços e ergueram novas barreiras para o acesso, nos países em
desenvolvimento. Para concluir, serão examinadas as estratégias alternativas à PI
que se apresentam no cenário internacional.
64
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
II. Sistemas de inovação: desafios
para as economias emergentes
Vários estudos de caso já foram elaborados sobre os sistemas de inovação em diferentes países [2,3].
Estes estudos apontam para uma grande complexidade das relações entre propriedade intelectual e inovação e indicam que levar em consideração as condições
locais específicas do setor econômico envolvido, em cada país, parece ser a melhor
abordagem dessas relações. A conclusão mais relevante desses estudos é que a
propriedade intelectual representa apenas um dos elementos da política de inovação e que, na maioria dos setores econômicos, não há evidência de que ela seja
responsável pela miríade de restrições à inovação.
Por outro lado, esses estudos indicam que sistemas rígidos de propriedade intelectual limitam o fluxo de informação e atrasam a inovação em alguns setores
econômicos específicos. De fato, na pesquisa médica e, em particular, no setor
farmacêutico, alguns autores [4,5] apresentam exemplos de atraso na inovação e
de redução das aprovações de novos medicamentos, resultantes de uma proteção
rígida da PI e outras imposições da regulação.
O Brasil e outros países emergentes empenham-se de maneira significativa em
incentivar a capacidade local e promover a inovação na área dos produtos para a
saúde pública, como os medicamentos ARV e as vacinas contra o HIV. Esses esforços resultaram num aumento considerável das fontes de financiamento destinadas
ao desenvolvimento de novos candidatos, preventivos e terapêuticos.
Estes países apoiaram também os seus centros de pesquisa de referência nacional, visando, por meio do fortalecimento da infraestrutura clínica e laboratorial,
criar condições favoráveis para o desenvolvimento de novos produtos.
Essas iniciativas foram fortalecidas pela implementação de normas internacionalmente reconhecidas e de critérios para a capacitação de laboratórios de pesquisa e de centros clínicos engajados na pesquisa e no desenvolvimento. Estes
países vêm organizando também redes de pesquisa, cuja atividade é focada na
descoberta e na inovação, estimulando a cooperação entre grupos de referência
e grupos emergentes e apoiando a sua participação em estudos multicêntricos internacionais.
Essas economias vêm efetuando também investimentos estratégicos em infraestrutura tecnológica e recursos humanos qualificados, com o objetivo de construir
plataformas tecnológicas para o desenvolvimento dos produtos farmacêuticos, inclusive as vacinas recombinantes, apoiado em recursos humanos especializados.
Ao mesmo tempo, elas incentivam a incorporação de novas tecnologias internacionais, por meio de acordos de transferência de tecnologia, adotando procedi-
Capítulo 3. Propriedade Intelectual e Aids nos países em desenvolvimento
65
mentos para a produção com BPF (Boas Práticas de Fabricação), o que permite o
desenvolvimento e a produção de medicamentos e produtos vacinais, pela tecnologia do DNA recombinante, utilizando vetores virais recombinantes, as subunidades de proteína, o uso de proteínas purificadas de DNA plasmídico ou de qualquer
outra biotecnologia inovadora esses medicamentos.
Esses esforços de transferência de tecnologia para os países em desenvolvimento, envolvem: o interesse e a possibilidade de execução científica, os aspectos
da propriedade intelectual, o mercado, o estabelecimento de sistemas de lotessemente e a produção de lotes consistentes, o controle e a garantia de qualidade, a
capacitação de laboratórios para as Boas Práticas de Fabricação e a biossegurança,
e estudos clínicos para a validação e o registro dos dados do ensaio.
Tais desafios exigem, por parte dos governos federais, negociações para estabelecer as condições dessa transferência, mediante o uso da sua força política e
do seu poder de compra governamental. Essas iniciativas de transferência de tecnologia têm o apoio das políticas governamentais, industrial e tecnológica, que
garantem os recursos financeiros necessários, já que as novas tecnologias exigem
um longo período de desenvolvimento e de produção.
Outro resultado importante para os sistemas de inovação é a disponibilidade
local de políticas e de mecanismos visando à promoção das parcerias público-privadas. No Brasil, por exemplo, as disposições legais necessárias já existem, como
a nova Lei da Inovação, permitindo a aquisição antecipada de inovações tecnológicas e a legislação que regula as Parcerias Público-Privadas. No entanto, existem
poucas parcerias efetivamente implantadas.
Para isso, é fundamental assegurar, além de uma disponibilidade ocasional de
recursos para apoiar a inovação nesses países, um financiamento sustentável de
longo prazo, por meio da coordenação interagências e da participação do setor
privado.
III. Regulação da inovação
Os kits de vacinas, produtos farmacêuticos e testes com base na tecnologia do DNA
recombinante e outros produtos medicinais modernos são cada vez mais incorporados às rotinas médicas no mundo inteiro, bem como à prevenção, aos diagnósticos e à terapia de várias doenças. Os novos métodos por imagem para as moléculas
individuais de DNA, como os microscópios mais potentes capazes de escanear em
farmacologia e projetar novos medicamentos antivirais, são muito mais velozes
que os métodos tradicionais, fornecendo informações valiosas sobre como esses
medicamentos se ligam aos genes. A tecnologia do DNA recombinante possibilitou a descoberta de vacinas mais seguras, eficazes e polivalentes, entre as quais
66
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
convém destacar: as vacinas recombinantes subunidades de segunda geração; as
vacinas gênicas e as vacinas vetorizadas por micro-organismos, de terceira geração
(genes carregados de DNA plasmídico).
Esse cenário pressiona os países desenvolvidos, bem como os países em desenvolvimento, a estabelecer estruturas de regulação efetivas e coordenadas para
essas novas tecnologias e protege os consumidores e os inovadores, fornecendo
avaliações de qualidade nos campos da biossegurança, da propriedade intelectual,
do registro do produto e da avaliação ética.
Nos países em desenvolvimento, a implementação dessas estruturas representa um desafio importante, face a um ambiente comercial global em rápida mudança e, sem dúvida, vai introduzir mudanças radicais nos sistemas nacionais para a
ciência e a tecnologia, bem como nos sistemas de saúde.
IV. Registro de medicamentos ARV
O demorado processo desde a criação de um medicamento ARV no laboratório
até o seu acesso pelos pacientes é bastante complexo. Antes da introdução de um
medicamento no mercado, ele deve ser submetido a vários controles, incluindo
o registro do produto, para obter a autorização para ser comercializado, junto a
um organismo nacional de regulação competente, em geral o Ministério da Saúde.
Essa autorização é uma das condições para que o fabricante possa vender ou distribuir o medicamento nacionalmente. O processo de avaliação demora entre 6 a
24 meses, conforme o país.
Em geral, um organismo de regulação nacional examina os dados submetidos
pelo fabricante, referentes à eficácia e à segurança do medicamento. Para obter a
aprovação para um medicamento ARV como genérico (exigência para qualquer
genérico), o fabricante passa por vários estágios de avaliação. Ele deve demonstrar
que o produto contém tantas substâncias ativas quanto o original; que ele não
contém níveis inaceitáveis de qualquer substância; que é absorvido e distribuído
pelo corpo humano do mesmo modo que o original (bioequivalente); que apresenta uma boa conservação; que foi produzido numa fábrica conforme as Boas
Práticas de Fabricação (BPF-GMP em inglês).
Durante o processo de avaliação, o fabricante pode, eventualmente, ter que fornecer dados complementares ou esclarecimentos sobre o produto. Organizações
internacionais, como a OMS (WHO – sigla em inglês) são também solicitadas para
conduzir experiências complementares, em resposta às conclusões do responsável
pela avaliação.
Capítulo 3. Propriedade Intelectual e Aids nos países em desenvolvimento
67
Um número cada vez maior de países efetua também uma auditoria BPF das
plantas de fabricação e não aceita nenhum medicamento proveniente de plantas
que não tenham sido fiscalizadas.
Tendo em vista a urgência da pandemia de Aids e a necessidade de registrar
e entregar os medicamentos ARV genéricos nos países em desenvolvimento sem
abrir mão da qualidade, alguns autores [6] chegaram a sugerir autorizações provisórias emitidas pelas agências de regulação locais para o produto previamente
aprovado e/ou previamente qualificado pela OMS evitando recomeçar todo o processo e permitindo o acesso rápido a esses medicamentos nos países mais afetados
pelo HIV/Aids. Eles argumentam que o uso dos medicamentos com autorização
provisória seria válido a curto prazo e limitado aos serviços públicos de saúde e as
organizações não governamentais, sendo regularmente monitorado e controlado.
Na opinião desses autores, tal autorização provisória poderia ser confirmada após
a conclusão satisfatória da avaliação pelo organismo de regulação ou cancelada,
caso exista um motivo qualquer para negar a autorização ao produto.
V. Propriedade Intelectual: licença compulsória
e outras “flexibilidades” ADPIC
Até a metade dos anos 1990, os países em desenvolvimento mais adiantados não
forneciam proteção aos produtos farmacêuticos, nem aos produtos agrícolas destinados à alimentação. Essa ausência de proteção era proveniente, por um lado, de
uma visão segundo a qual o acúmulo de conhecimento tecnológico da época não
era suficiente para motivar a proteção desse conhecimento; por outro lado, existia
o argumento de que as barreiras às patentes afetariam de maneira negativa o interesse público em setores sociais críticos.
Como resultado da pressão da indústria farmacêutica e dos países desenvolvidos,
a entrada forçada do Acordo sobre os ADPIC na Organização Mundial do Comércio,
que inclui estes produtos no comércio, mudou totalmente o cenário mundial.
Os casos do Brasil e da Tailândia ilustram bem essas novas imposições legais. Os
dois países utilizaram as licenças compulsórias e as flexibilidades do Acordo ADPIC
para obter reduções de preço significativas dos medicamentos ARV essenciais.
Em 2006, a empresa Abbott reduziu o preço do lopinavir/ritonavir (Kaletra) para
US$ 500 por paciente/ano para os países africanos pobres, mas tentou impor ao
governo da Tailândia uma oferta de US$ 2.967. Em consequência dos protestos
dos ativistas, o laboratório baixou o preço para US$ 2.000 para os países de renda
média. No entanto, como o preço de custo era de somente US$ 400, o governo da
Tailândia decidiu emitir uma licença compulsória. Em represália, a Abbott negou-
68
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
-se a entregar novos medicamentos à Tailândia durante o período da licença compulsória.
Em 2007, a Merck decidiu baixar os preços dos ARV na Tailândia (o efavirenz, reduzido a US$ 244 por paciente/ano) depois da decisão do governo de emitir uma licença compulsória para importar um genérico equivalente da Índia. A Merck negou-se a
oferecer ao Brasil um preço inferior a US$ 580 e o governo brasileiro emitiu também
uma licença compulsória, passando a importar o efavirenz da Índia e estabelecendo
as bases de uma futura produção local. O Brasil conseguiu, assim, reduzir custos em
quase US$ 30 milhões, e a parcela dos recursos para os medicamentos ARV do Ministério da Saúde destinados ao efavirenz diminuiu de 12% para 4%.
No Brasil, em 2005, quatro medicamentos ARV – o efavirenz (Merck, Sharp &
Dome) –, o nelfinavir (Roche), o lopinavir/ritonavir (Abbott) e o tenofovir (Gilead
Sciences) – representavam mais de 70% do orçamento do Ministério da Saúde para
a terapia ARV (15 medicamentos). Como já foi mencionado, o Brasil pagava por
esses medicamentos o equivalente a quatro vezes os preços internacionais.
Com o aval do presidente da República e do ministro da Saúde, o então Programa Nacional de DST e Aids (hoje Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais)
iniciou uma série de consultas com juristas, laboratórios públicos e empresas farmacêuticas nacionais, examinando os processos para emissão de licença compulsória desses medicamentos. Essas consultas provocaram um forte debate político:
alguns dos responsáveis por essas políticas e outros atores do processo político
sustentaram que a tentativa de emitir licenças compulsórias para vários medicamentos ao mesmo tempo seria um erro, cujas consequências seriam difíceis de
administrar, bem como as pressões políticas. Mas o presidente da República decidiu apoiar a decisão e um documento legal foi elaborado pelo Ministério da Saúde
declarando o interesse público do lopinavir/ritonavir, fabricado pelo laboratório
Abbott e comercializado sob o nome comercial Kaletra.
Contudo, nessa fase, o ministro da Saúde, até então favorável à decisão presidencial e não obstante o próprio discurso na Assembleia Mundial de Saúde, em
Genebra, em defesa da licença compulsória para os medicamentos ARV, desistiu,
para espanto de toda a comunidade, de assinar a licença compulsória para o Kaletra. Em vez disso, insistiu na retomada de negociações infrutíferas sobre as licenças
voluntárias do Kaletra e de dois outros medicamentos (o tenofovir e o efavirenz,
das firmas Gilead e Merck, respectivamente) e, finalmente, assinou um acordo comercial inaceitável em relação ao Kaletra, beneficiando a Abbott.
Sob intensa pressão política e internacional, o ministro tentou justificar essa
decisão de última hora invocando a falta de capacidade de produção da indústria
nacional. Esse argumento contrariava as estimativas favoráveis do Ministério da
Saúde sobre a capacidade farmacêutica nacional, fornecidas pelo Programa Nacional de DST e Aids, mais tarde confirmadas pelas avaliações feitas pelo Programa de
Desenvolvimento das Nações Unidas (UNDP, sigla em inglês), a Fundação Clinton e
Capítulo 3. Propriedade Intelectual e Aids nos países em desenvolvimento
69
o Grupo de Trabalho sobre a Propriedade Intelectual da Rede Brasileira para a Integração dos Povos (GTPI/REBRIP), atestando a capacidade dos laboratórios públicos
brasileiros e das empresas privadas. Isso provocou um debate público, mas, até
agora, a licença compulsória do Kaletra não foi emitida.
Assim, o Brasil não seguiu a decisão do governo tailandês de emitir uma licença
compulsória para o Kaletra, mas, em vez disso e de forma surpreendente, aceitou
um acordo draconiano com a Abbott, prejudicando os interesses nacionais.
Apesar de várias ameaças e tentativas para emitir licenças compulsórias para os
ARV, feitas por vários ministros da Saúde no decorrer da última década, só recentemente uma medida legal teve êxito para um medicamento, o antirretroviral efavirenz, do laboratório Merck. Finalmente, o presidente do Brasil emitiu, em maio de
2007, a licença compulsória para a produção de uma versão genérica do efavirenz,
a um custo bem inferior. Segundo as estimativas do governo, essa versão genérica
do medicamento pode representar para o Brasil uma economia de US$ 240 milhões até 2012, ano do fim da validade da patente da Merck sobre o efavirenz.
Estimativas recentes do governo brasileiro indicam que as negociações de preço
e a licença compulsória do efavirenz já resultaram numa redução significativa de preço, representando uma grande economia para o país, em torno de US$ 75 milhões.
Em abril de 2007, um mês antes da emissão da licença compulsória, o ministro
da Saúde do Brasil havia assinado um decreto anunciando a compra, pelo país, de
uma versão genérica do efavirenz de um produtor da Índia, caso a Merck não oferecesse um preço melhor para o medicamento. Conforme esse decreto, o efavirenz
é um medicamento de “interesse público”.
O Brasil concedeu à Merck um prazo de sete dias para negociar um preço inferior para o medicamento e solicitou uma redução de US$ 1,57 a US$ 0,65 a dose
do efavirenz. A Merck não aceitou estas condições e a licença compulsória foi finalmente emitida pelo presidente.
As reações das empresas multinacionais e do “Brazil-US Business Council” foram
muito fortes. Em contrapartida, as organizações de pacientes de HIV/Aids no mundo inteiro saudaram a decisão do presidente como uma importante vitória.
Num relatório publicado depois do anúncio do presidente, a Merck declarou
que o Brasil “pode pagar mais caro pelos medicamentos contra o HIV que os países
pobres ou aqueles mais afetados pela doença”. Um vice-presidente da Merck declarou que as economias emergentes, caso do Brasil, “devem ajudar o mundo desenvolvido a cobrir os custos de produção dos novos medicamentos e a estabelecer as
bases da inovação em medicamentos”.
Apesar desses poucos êxitos e de alguns progressos por parte dos dois países
em desenvolvimento referentes ao uso da licença compulsória e das flexibilidades,
convém destacar que o processo político é complexo: os governos se mostram vulneráveis a represálias e pressões por parte das empresas, dos ativistas e organiza-
70
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
ções do comércio internacional, dificultando a implementação dessa flexibilidade.
Alternativas institucionais e legais são imprescindíveis e deveriam ser debatidas.
VI. Alternativas: a iniciativa “Pool de
Patentes” da UNITAID e outros incentivos
em P&D (pesquisa e desenvolvimento)
Existe uma conscientização crescente, principalmente nos países desenvolvidos,
de que há urgência em reformular o sistema internacional dos Direitos de Propriedade Industrial (IPR, sigla em inglês) e que este deveria ser mais flexível, criando
novos mecanismos para remunerar os investimentos feitos pelas empresas e pelos
governos na área de pesquisa e desenvolvimento, reduzindo o preço dos produtos
de salvaguarda da vida.
Ao contrário, algumas sociedades farmacêuticas multinacionais argumentam
que é impossível mudar a estrutura internacional existente dos DPI, porque isso
afetaria seus enormes investimentos de longo prazo em P&D e, em consequência,
a sua capacidade de inovação. Conforme essas empresas, o caso das patentes dos
medicamentos ARV reside nos custos muito elevados da introdução no mercado
desses novos medicamentos.
No entanto, os economistas estimam que as empresas multinacionais são responsáveis por apenas um terço da pesquisa biomédica e do desenvolvimento no
mundo, sendo que nos Estados Unidos e em muitos países desenvolvidos a pesquisa nessa área é desenvolvida, em grande parte, nas universidades e centros de pesquisa fortemente apoiados pelos governos federais. Além disso, essas empresas
beneficiam-se de altas taxas de incentivos tributários, em torno de 20%, por parte
do governo. Os numerosos pacientes vivendo com o HIV/Aids reconhecem os progressos da terapia ARV trazidos ao mercado por essas empresas multinacionais,
melhorando a sua qualidade de vida, mas convém ressaltar que as inovações mais
significativas nesse setor não são provenientes dessas empresas, e sim dos centros
de pesquisa nas universidades e instituições acadêmicas, com um financiamento
público considerável.
Mecanismos de incentivo foram propostos, tal como o Fundo para a Pesquisa e
o Desenvolvimento (P&D Fund), no caso da licença compulsória, com pagamento
direto ao titular da patente e uma porcentagem ao P&D Fund, bem como uma
participação desse titular ao Fundo [7,8]. No Brasil, esse Fundo foi incorporado a
um instrumento legal proposto (mas não assinado) para a licença compulsória dos
ARV em 2005.
Capítulo 3. Propriedade Intelectual e Aids nos países em desenvolvimento
71
Foi elaborado um novo sistema de remuneração para sustentar a inovação, o
Fundo de Premiação da Inovação Médica, no qual o mercado dos produtos é distinto do mercado das inovações, podendo esses produtos serem disponibilizados ao
público a preço de medicamentos genéricos, enquanto os inovadores beneficiam-se de um sistema diferente [9].
“Pools” para licenciamento de patentes [7] podem também ser criados, como
entidades sem fins lucrativos, a título de estratégia de colaboração à gestão coletiva dos direitos de patentes.
Recentemente, a UNITAID elaborou e iniciou a implantação de uma promissora
Iniciativa de Pool de Patentes. A UNITAID é um dispositivo internacional, sediado
em Genebra, na Organização Mundial da Saúde, destinado a facilitar a aquisição
de medicamentos para o HIV/Aids, a malária e a tuberculose, criado em 2006 por
iniciativa do Brasil e da França com base em mecanismos de financiamento inovadores, ou seja, uma taxa solidária sobre as passagens aéreas.
Para a UNITAID, a missão do “Pool de Patentes” é de “reduzir os preços dos medicamentos ARV e apoiar o desenvolvimento e a produção de novas fórmulas já
aprovadas (por exemplo, as combinações de dose fixa e os medicamentos pediátricos), permitindo o acesso à propriedade intelectual no caso desses produtos”.
O objetivo dessa iniciativa é de abrir os mercados farmacêuticos monopolísticos à competição sobre os genéricos, com os titulares de patentes aceitando de
maneira voluntária a licença das patentes pelo “pool” e incentivando a produção
local nos países em desenvolvimento.
O objetivo é aumentar a disponibilidade dos ARV dos quais necessitam os países em desenvolvimento e os países de renda média. A entidade “Pool de Patentes”
é concebida como uma organização independente da UNITAID e como iniciativa
voluntária, já que existe um conceito, por parte de alguns governos e ONG, segundo o qual não é possível determinar ou antecipar o resultado final dos acordos de
licença nem a cobertura geográfica em vários desses países sem o “Pool de Patentes”, uma vez que eles dependem dos acordos entre os titulares de licença e os
licenciados de um país específico.
A estrutura da organização e a situação da Iniciativa “Pool de Patentes” ainda
está em pauta na UNITAID. Para evitar o pagamento de royalties a patentes duvidosas, prolongando de maneira artificial a vida de patentes de produtos, os acordos
de licença do Pool deverão estipular que as patentes não exploradas ou cujo pedido foi indeferido não receberão royalties.
A criação de uma nova organização independente está sob análise, já que parece impossível, por motivos legais e administrativos, estabelecer a sede do “Pool
de Patentes” da UNITAID na OMS: de fato, esta Organização beneficia-se de imunidades que, junto com outras questões legais, restringem as possibilidades, para os
titulares de patentes e os licenciados, de defender os seus direitos por litígio.
72
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Algumas ONG e alguns governos, incluindo o do Brasil, opinaram que o novo
cenário político mundial criado por esse novo mecanismo, independente da OMS,
poderia dificultar a implementação das flexibilidades do acordo ADPIC. O argumento da UNITAID é que a Iniciativa do “Pool de Patentes” é uma iniciativa voluntária, não possuindo, assim, nenhuma relação com o direito dos países de fazer uso
das flexibilidades do acordo ADPIC.
Recentemente, surgiram outros novos mecanismos e novas estratégias de incentivo à inovação e destinados às aplicações comerciais de P&D, como a criação
de pesquisas comunitárias e iniciativas incentivando o livre acesso ao know how;
isso representa também uma alternativa importante para os países emergentes e
em desenvolvimento [10].
VII. Acesso aos medicamentos ARV:
ética e direitos humanos
O cenário mais provável de deterioração do acesso ao tratamento ARV, resultante
da crise econômica mundial, na maioria dos países em desenvolvimento em torno
de 2015, e particularmente nos países da África, é o maior desafio para as organizações internacionais e os governos. As restrições do acesso ao tratamento que as
populações mais pobres afetadas pela pandemia vivenciam sugerem a necessidade urgente de um debate internacional sobre as questões de ética e dos direitos
humanos.
Convém ressalvar que, durante os cinco últimos anos, várias iniciativas internacionais e locais conseguiram aumentar em quase 10 vezes o acesso ao tratamento [11], beneficiando 4 milhões de pessoas vivendo com o HIV/Aids, por meio da
disponibilização de medicamentos ARV a preço reduzido produzidos pela Índia e
a China (estes países eram os maiores produtores de princípios ativos e de medicamentos genéricos, favorecendo uma intensa competição sobre os genéricos e
reduzindo os seus preços).
No entanto, com a adesão desses países ao acordo ADPIC, vários medicamentos são atualmente protegidos por patentes e o ambiente internacional mudou
rapidamente, elevando o custo do tratamento por paciente. Segundo relatórios
internacionais, a demanda pelo tratamento cresce rapidamente nos países em
desenvolvimento e apenas 42% dos 9,5 milhões de pessoas necessitando desse
tratamento em 2008 tiveram acesso à terapia. Além disso, vários países passaram
da primeira linha aos tratamentos de segunda linha, mais caros, protegidos por
patentes.
Capítulo 3. Propriedade Intelectual e Aids nos países em desenvolvimento
73
Mais ainda, com a recente crise econômica, estima-se que as necessidades mundiais de financiamento para o HIV passarão de US$ 7,4 bilhões a US$ 19,3 bilhões,
em 2009. As estimativas da UNITAID, feitas antes da crise econômica, previam um
aumento do financiamento mundial de US$ 20 milhões por ano até 2015. Sem dúvida, tal situação será agravada pela recente redução dos recursos nacionais destinados à saúde em muitos países e pela diminuição das contribuições dos agentes
de financiamento internacionais.
Com certeza, esse cenário de crise terá impacto global, já que a disponibilização
de medicamentos de baixo custo pelos produtores de ARV genéricos da Índia e da
China era o fator crucial para o tratamento em todo o mundo. O Departamento das
DST, Aids e Hepatites Virais tem o respaldo da lei e, desde 1996, garante o acesso
ao tratamento e à cobertura da terapia ARV para todos os pacientes com HIV/Aids.
Num período de apenas seis anos, de 1996 a 2002, essa política teve como resultado a queda impressionante de 70% da mortalidade e 80% da morbidade, refletidas
na redução de 70% das internações, representando para o país uma economia de
US$ 2,2 bilhões.
Durante a última década, a pesquisa iniciada para produzir localmente alguns
medicamentos ARV de primeira geração e para importá-los da China e da Índia
permitiu ao Brasil negociar a redução de preços com as empresas farmacêuticas
multinacionais. De fato, em alguns países em desenvolvimento, como o Brasil, a
possibilidade de introduzir no mercado os medicamentos genéricos foi vista como
uma estratégia para derrubar os custos elevados das terapias ARV [12]. De qualquer maneira, convém destacar que, apesar do êxito dessa estratégia de redução
de preços, surgiram vários obstáculos depois de 2004, período de novo aumento
dos medicamentos, como resultado da introdução de novos medicamentos no
mercado, da redução da concorrência e da elevação dos preços dos genéricos.
De fato, o declínio acentuado do preço dos medicamentos ARV de primeira linha no mercado internacional e a estratégia de negociação com as empresas farmacêuticas multinacionais, adotada pelo Departamento de DST, Aids e Hepatites
Virais do Ministério da Saúde, contribuíram com uma queda de quase 40% para
alguns medicamentos ARV no Brasil durante a última década.
No entanto, a introdução no mercado da nova segunda geração e da terceira
geração de medicamentos ARV, cada vez mais caros e protegidos por patentes,
inverteu essa tendência e limitou as estratégias de negociações de preço por parte do governo brasileiro. Em 2006, esse problema foi agravado pelo crescimento
da demanda por medicamentos ARV (180.000 pacientes em tratamento e 20.000
novos pacientes por ano) e, particularmente, pela adesão, em 2005, da Índia e da
China ao acordo ADPIC, aumentando os preços dos genéricos, das matérias-primas
e dos princípios ativos para os medicamentos ARV importados pelo Brasil.
No Brasil, um exemplo perfeito desse impacto da PI sobre os preços é a batalha legal sobre o medicamento ARV tenofovir, que provocou um embate entre o
74
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
governo brasileiro e a empresa Gilead. Sob pressão do Ministério da Saúde e da
sociedade civil, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) rejeitou o pedido de patente para esse medicamento, argumentando que ele não representava
uma invenção. Isso provocou uma queda do preço do medicamento (redução de
um terço em 2009 e 2010).
Como resultado das intensas mobilizações políticas e das estratégias dirigidas
à sustentabilidade da política de acesso universal, o Brasil conseguiu, entre 2003
e 2009, por meio da licença compulsória para o efavirenz, de ameaças de licenças
compulsórias para outros medicamentos e de negociações de preços com as empresas multinacionais, reduzir em 25% o custo médio por paciente referente aos
medicamentos ARV, apesar da hostilidade crescente do meio legal. É claro, todavia,
que isso não justifica a manutenção da sua estrutura legal atual no campo da propriedade intelectual.
VIII. Considerações finais
As patentes podem contribuir para criar monopólios, acarretando, como consequência, o aumento dos preços e podendo agravar as condições de setores já
altamente concentrados, como o segmento dos medicamentos ARV no setor farmacêutico, afetando de maneira significativa a qualidade de vida das pessoas que
vivem com HIV/Aids no mundo em desenvolvimento.
Nesse setor, a tendência a regimes mais rígidos no que se refere à PI no cenário
pós-ADPIC, agravada por acordos na Organização do Comércio Exterior (FTA – Free
Trade Agreements) reduz a possibilidade de competição nos países em desenvolvimento, provocando uma escalada dos preços dos medicamentos ARV. Depois do
período de salvaguarda de 10 anos do ADPIC, esses países tornaram-se cada vez
mais dependentes das licenças compulsórias e de outras “flexibilidades” do acordo
ADPIC, sujeitas a represálias políticas e muito difíceis de executar.
Além disso, os acordos FTA impuseram a esses países altos níveis de proteção
da propriedade intelectual, trazendo ainda mais restrições do que o ADPIC. Esses
acordos limitaram as possibilidades de exclusão de uma patente, reduzindo os motivos para uma licença compulsória, e não contêm nenhum dispositivo contra as
importações paralelas (permitindo ao titular da patente intentar uma ação contra
as importações paralelas).
Na maioria desses acordos, a vida útil da patente para os produtos farmacêuticos e químicos é prorrogada, restringindo a introdução de produtos genéricos e
exigindo para os genéricos a possibilidade de comercialização para um período
de, pelo menos, cinco anos. Esses acordos implementam também uma proteção
Capítulo 3. Propriedade Intelectual e Aids nos países em desenvolvimento
75
da patente mais extensa no tempo, em razão de uma patente válida em outro país,
mesmo se a patente expira num determinado país.
Essas imposições da PI conduziram a um impasse internacional, consequência do crescimento da demanda, ligado à adesão da Índia e da China ao ADPIC
e à queda dos recursos financeiros causada pela recente crise econômica. Esses
medicamentos atingiram preços elevados oriundos das barreiras legais contra os
produtores de genéricos nos países em desenvolvimento. No caso da China, este
país modificou recentemente a legislação referente à propriedade intelectual, no
objetivo de adequá-la ao Acordo ADPIC, ao qual aderiu na sua entrada na OMC, em
11 de dezembro de 2001. A China incluiu nas suas leis de propriedade intelectual o
tratamento nacional, princípio essencial do Acordo ADPIC.
Assim sendo, é possível prever um futuro sombrio para a produção dos medicamentos ARV e para o tratamento da Aids no mundo em desenvolvimento, caso a
situação atual na área da propriedade intelectual não mude, o que trará consequências para a sustentabilidade do regime internacional atual dos DPI.
Sem dúvida, a estrutura legal do Acordo ADPIC teve um enorme impacto sobre
a saúde pública nas nações em desenvolvimento e, também, sobre os resultados
da pesquisa e do desenvolvimento. As conclusões de algumas pesquisas indicam
que, para alguns setores econômicos, DPI rígidos podem impedir o fluxo da informação e, portanto, retardar os progressos da inovação [13].
Isso assume um sentido particularmente verdadeiro para as ciências da Medicina e a Biotecnologia. Conforme Palombi [4], “observar como o sistema de patente
interfere agora num território até então sagrado, a natureza, só fortalece os argumentos contra a continuação do sistema mundial de patentes. Isso levou à proliferação de patentes sobre milhares de materiais biológicos que não representam
e nunca representaram invenções”. Esse aspecto deteve, também, o fluxo da informação nas Ciências Biomédicas, necessárias ao desenvolvimento dos produtos
farmacêuticos essenciais.
Apesar da evidência das consequências negativas do sistema da PI nos setores
farmacêutico e da biotecnologia, uma questão crucial persiste: considerando que
este sistema desfigurado vigora ainda, sem dúvida agravado durante as duas últimas décadas, como podemos conceber uma alternativa para o regime internacional atual da PI aceitável pelos atores mundiais?
Alguns autores [14,15] consideram que as flexibilidades do Acordo ADPIC já
representam uma iniciativa importante e que os países em desenvolvimento deveriam explorar todas as oportunidades desses acordos, incorporando essas salvaguardas no desenvolvimento da política e de suas leis internas, mediante a criação
de uma coordenação interagências, evitando os termos draconianos dos acordos
FTA. No entanto, o licenciamento compulsório e outras flexibilidades do TRIPS são
muito difíceis de executar e estão sujeitos a pressões políticas e legais, vez que os
76
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
países em desenvolvimento enfrentam diversas barreiras para implementar essas
salvaguardas.
Várias alternativas para esse impasse estão surgindo no cenário internacional.
Pools de patentes, como o recentemente proposto pela UNITAID, e outros mecanismos inovadores de financiamento para criar incentivos em P&D são naturalmente
bemvindos e podem, sem dúvida, fazer uma diferença significativa para os países
em desenvolvimento.
Mas convém ressaltar que iniciativas como a mencionada Iniciativa de Pool de
Patentes da UNITAID ultrapassam o âmbito das leis internacionais de PI. Sob uma
perspectiva jurídica internacional, temos de rever com urgência o Acordo TRIPs,
levando em consideração as crescentes exigências da pandemia de Aids e a necessidade de flexibilidades mais abrangentes para produtos de salvaguarda da vida,
como os medicamentos ARV.
As iniciativas locais em países emergentes, para incorporar as flexibilidades do
Acordo ADPIC em suas leis e reformar suas políticas internas de PI, podem representar uma tendência positiva, mas certamente não poderão contribuir isoladamente para a ampliação do acesso aos medicamentos genéricos, uma vez que os
entraves jurídicos internacionais e as barreiras comerciais ainda são os mesmos.
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Capítulo 3. Propriedade Intelectual e Aids nos países em desenvolvimento
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78
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
CAPÍTULO 4
Condições de uso das licenças compulsórias:
a ação do governo tailandês
Gaëlle Krikorian
Resumo: Entre o fim de 2006 e o início de 2008, o ministro da Saúde Pública da Tailândia, Mongkol Na Songkhla, outorgou sete licenças compulsórias para permitir
o acesso de doentes a tratamentos genéricos contra a Aids, o câncer ou acidentes
cardiovasculares. Apesar das declarações da Organização Mundial do Comércio,
essa política provocou uma série de reações hostis por parte da indústria farmacêutica e dos países ricos. Situando essa política em seu contexto histórico e social,
o presente capítulo analisa as condições em que se produziu essas decisões do
ministro da Saúde tailandês. Evidencia-se, particularmente, que esses processos se
tornaram possíveis graças à conjunção de episódios recentes, mas também antigos
ocorridos ao longo de várias décadas, bem como a ação coletiva de diferentes atores. O estudo deste caso abre caminho para uma reflexão mais abrangente sobre a
governança da propriedade intelectual nos países em desenvolvimento.
Palavras-chave: Licença compulsória, propriedade intelectual, acesso a medicamento, Tailândia, saúde pública, Organização Mundial do Comércio, HIV/Aids
I. Introdução
Em 29 de novembro de 2006, o ministro da Saúde Pública da Tailândia, Mongkol
Na Songkhla, anunciou uma decisão até hoje tomada por poucos de seus homólogos nos países em desenvolvimento: suspendeu a proteção da patente de um
medicamento para o tratamento da Aids com o objetivo de permitir o recurso a
genéricos.65 Assim, o ministro fez uso de um dispositivo previsto no artigo 51 da lei
tailandesa de patentes, a licença compulsória, também inscrito nos textos internacionais da Organização Mundial do Comércio (OMC). Apesar de ser legal e aparentemente legítima, essa decisão iria suscitar virulentas críticas por parte da indústria
farmacêutica e dos governos dos países ricos, os mais veementes chegando a taxar
65 Obtidos inicialmente por importação a partir de fornecedores indianos, com a perspectiva de produção local a médio prazo.
a Tailândia de país “ladrão”. Apesar dessas reações, entre novembro de 2006 e o
início de 2008, Mongkol Na Songkhla emitiu sete licenças compulsórias. A primeira
se referia ao efavirenz, antirretroviral (ARV) utilizado nas terapias de primeira linha
contra o HIV/Aids e vendido sob o nome de marca Stocrin® pela Merck Sharp and
Dohme (MSD). Nos dias 24 e 27 de janeiro de 2007, duas novas licenças foram expedidas, uma para a combinação ARV lopinavir/ritonavir utilizada como tratamento de segunda linha contra o HIV/Aids e conhecida pelo nome de marca Kaletra®
do laboratório Abbott e a outra para o tratamento cardiovascular, o clopidogrel, comercializado pela Sanofi-Aventis sob o nome de marca Plavix®. Finalmente, quatro
novas licenças foram concedidas em janeiro de 2008 para os medicamentos contra
o câncer docetaxel (Taxotere®), da Sanofi Aventis, erlotinib (Tarceva®), da Roche, e
letrozole (Femara®) e imatinib (Glivec®), da Novartis.
A maioria dos países membros da OMC segue hoje os padrões exigidos pela organização, em matéria de proteção da propriedade intelectual. O acordo sobre os
aspectos dos direitos de propriedade intelectual relativos ao comércio (Trips/Adpic)
impõe, em especial, uma proteção de 20 anos sobre os medicamentos, proibindo
a produção, a importação ou a venda de versões genéricas durante esse período.
A partir de meados da década de 1990, alguns estudos começaram a evidenciar
o impacto negativo potencial desse fortalecimento dos direitos de propriedade
intelectual sobre o acesso a medicamentos nos países pobres [1, 2, 3]. O temor
dessas consequências, manifestado pelas mobilizações internacionais pelo acesso
aos medicamentos contra a Aids, resultou em intensos debates dentro da OMC e
no surgimento de uma frente de oposição entre países ricos e países em desenvolvimento. Em novembro de 2001, as tensões diminuíram temporariamente com
a adoção da Declaração de Doha sobre o acordo Trips/Adpic e saúde pública. Reconhecendo a legitimidade do “direito dos membros da OMC de proteger a saúde
pública e, em particular, de promover o acesso aos medicamentos para todos”, essa
declaração expõe sem ambiguidades o que o acordo Trips/Adpic estabelecia em
termos legais menos transparentes, ou seja: “Cada membro tem o direito de conceder licenças compulsórias e liberdade para determinar os motivos pelos quais ele
concede tais licenças”.66 Assim, a adoção desse texto apontou para uma inflexão no
curso das negociações internacionais sobre a propriedade intelectual: pela primeira vez desde a ratificação do acordo Trips/Adpic, a relação de poder entre países
ricos e países em desenvolvimento não resultava no fortalecimento dos direitos de
propriedade intelectual. Pelo contrário, chegou-se a um consenso sobre a necessidade de garantir uma aplicação desses direitos sem ameaçar o direito à saúde e
aos medicamentos. Esse fato revelou, sem que isso representasse uma revolução
na ordem estabelecida, o enfraquecimento, ao menos pontual, do predomínio dos
interesses das empresas farmacêuticas. Podia-se esperar alguma evolução, não somente das representações, mas também das práticas dos Estados.
66 OMC (2001), §4, e §5.b.
80
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
No entanto, desde a adoção da Declaração de Doha, enquanto o número de
patentes registradas nos países em desenvolvimento cresceu de maneira significativa, os direitos por elas garantidos se expandiram, especialmente pela assinatura
de acordos bilaterais de livre comércio. As barreiras potenciais ao acesso aos produtos de saúde aumentaram; por outro lado, o número de países emitindo licenças
compulsórias permaneceu pequeno. Alguns países pobres recorreram de maneira
pontual a esse direito para se beneficiar dos genéricos, mas, em geral, o fizeram
sem fazer qualquer publicidade por medo de represálias. Dessa maneira, apesar
de a OMC ter reconhecido publicamente o direito dos países de utilizar esse dispositivo, pronunciando-se especificamente sobre a questão dos medicamentos e,
portanto, dando mais legitimidade à ação dos Estados nesse campo, na prática, um
número muito restrito deles tirou proveito desse direito.
Não obstante o estabelecido em lei, como as políticas nacionais de propriedade
intelectual são “adotadas em contexto mais abrangente de relações de poder assimétricas entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento, e entre os
produtores e os consumidores dos frutos da propriedade intelectual”[4], a margem
de ação real e efetiva dos países pobres permanece limitada.
É nesse contexto de tensão que se insere a decisão do ministro da Saúde da
Tailândia de recorrer às licenças obrigatórias. Essa tomada de decisão, naquele momento, podia parecer paradoxal, já que a Tailândia era, desde o golpe de estado de
outono de 2006, dirigida por um governo militar e atravessava um período de instabilidade que poderíamos imaginar ser pouco propício para a preocupação com
as necessidades dos doentes. Além disso, essa decisão tinha toda chance de ser
interpretada pelos Estados Unidos como uma mudança de rumo lastimável das
autoridades tailandesas, já que os dois países estavam engajados desde 2004 na
negociação de um acordo de livre comércio.67 O presente artigo pretende apresentar uma série de elementos que explicam esses paradoxos e permitiem entender
o contexto político que determinou a decisão do ministro. Visa também induzir
uma reflexão mais abrangente sobre a governança da propriedade intelectual nos
países em desenvolvimento. A proteção da propriedade intelectual é uma forma
de gestão e de controle do saber desenvolvida nos países ocidentais e progressivamente imposta ao resto do mundo, primeiramente pela colonização e, mais
tarde, no contexto da globalização econômica neoliberal. No entanto, as políticas
e as práticas dos Estados não podem ser consideradas como meras aplicações de
dispositivos legais. Agindo sob a dupla exigência das regras internacionais e da
pressão dos detentores de direitos de propriedade intelectual e dos países que os
apóiam, cada Estado deve, em particular, avaliar o uso que deseja fazer das flexibi-
67 Na ocasião, as negociações estavam suspensas, mas iriam reiniciar e, muito provavelmente, iriam
desembocar na limitação das possibilidades de uso das licenças compulsórias e no fortalecimento das
regras de proteção da propriedade intelectual.
Capítulo 4. Condições de uso das licenças compulsórias: a ação do governo tailandês
81
lidades existentes para enfrentar as exigências locais particulares.68 A aplicação das
licenças compulsórias pela Tailândia permite analisar esse processo de elaboração
de políticas em um momento crítico: quando os enfrentamentos na OMC pareciam
acalmados, mas a aplicação dos dispositivos legais sobre as patentes começava
a impor limites concretos sobre o acesso a medicamentos nos países. Em outras
palavras, o caso tailandês permite observar esse processo quando os países em
desenvolvimento são praticamente obrigados a fazer uma escolha.
A nossa análise baseia-se sobre uma série de entrevistas semidirigidas, realizadas com funcionários do Ministério da Saúde Pública, do Ministério do Comércio, do
National Health Security Office (NHSO), com sociedades farmacêuticas tailandesas,
multinacionais farmacêuticas, membros de ONG, representantes de embaixadas
(Americana, Europeia, Francesa, Suíça), com jornalistas e membros do parlamento
da Tailândia. Também se baseia em observações realizadas por ocasião de reuniões, manifestações ou conferências. A proposta se organiza a partir da análise de
momentos selecionados em função do que eles revelam sobre as alianças, tensões
e subordinações entre os atores, permitindo a decodificação da complexidade do
jogo que os vincula. Como colocou pelo doutor Vichai Chokevivat, diretor do Laboratório Farmacêutico do Governo (GPO, sigla em inglês): entender o processo que
levou o ministro da Saúde a autorizar o uso das licenças compulsórias pressupõe a
revisão dos fatos históricos de várias décadas.69 De fato, recolocar essa decisão em
seu contexto histórico possibilita a compreensão dos motivos pelos quais Mongkol
Na Songkhla escolheu um caminho que tantos ministros da Saúde têm evitado até
hoje. Pretendo, assim, expor as inúmeras dobras de histórias contemporâneas à decisão do ministro ou daquelas, menos recentes, coletivas ou individuais, ocorridas
em um contexto nacional/local ou escritas no âmbito internacional, que contribuíram para tecer o contexto dessa tomada de decisão.
II. As forças envolvidas
Para entender a lógica de cada episódio e seu entrelaçamento, temos que expor
de maneira breve as forças aqui envolvidas. De fato, a emissão de licenças compulsórias pode ser vista como o produto da interação entre diferentes forças num
momento específico. Para facilitar a leitura das interações, podemos estabelecer
que temos três conjuntos distintos de agentes: o movimento favorável a um fortalecimento dos direitos de propriedade intelectual, o movimento para o acesso
68 A questão dos limites e problemas específicos ao desenvolvimento de uma produção farmacêutica
local não são levados em consideração aqui, pois o recurso à fabricação local não foi colocado como
condição prévia ao uso das licenças compulsórias pelo governo tailandês, que contava, pelo menos em
curto prazo, com a importação a partir de laboratórios indianos.
69 Comunicação pessoal, 4 de setembro de 2007.
82
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
aos medicamentos e o Estado tailandês. Eles não constituem grupos homogêneos
e formalizados, mas sim conjuntos sem contornos nítidos que convivem, se interpenetram ou se enfrentam, conforme as ocasiões, às escondidas nas antecâmaras
do poder ou, quando as tensões chegam no espaço público, aos olhos de todos.
Falemos primeiro do Estado tailandês: essa designação não representa uma entidade homogênea pois abrange atores e instituições na posição de representar o
Estado tailandês ou obrigados a seguir o que é apresentado como a posição do governo em um determinado momento. Em primeiro lugar, temos o primeiro ministro Thaksin Shinawatra, eleito em 2001 e reeleito em 2004. O início das negociações
para a assinatura de um acordo de livre comércio com os Estados Unidos, em junho
de 2004, foi sua iniciativa. Acusado de corrupção, falcatruas e abuso de poder, foi
obrigado a pedir demissão em razão do levante de parte da população tailandesa
e acabou fugindo do país para escapar de uma condenação. Depois do período de
agitação que culminou na sua saída do governo em setembro de 2006, os militares
organizaram um golpe de estado e tomaram o poder. As licenças compulsórias
foram emitidas durante a gestão desse novo governo.
O Estado tailandês é também representado por diferentes ministérios, cada
um visando seus objetivos, com suas motivações próprias e uma cultura política e
institucional específica. Apesar do seu poder de influência limitado no governo, o
Ministério da Saúde ocupa aqui um lugar de destaque. Conforme a lei tailandesa, o
ministro da Saúde é um dos oficiais com poder para emitir licenças compulsórias.
Outros atores, dependentes do Ministério da Saúde ou ligados a ele, intervêm na
história que nos interessa: o National Health Security Office (NHSO, sigla em inglês),
a instituição encarregada da implantação da cobertura médica universal adotada
pelo National Security Act, em 2001, e também a Governmental Pharmaceutical
Organization (GPO), fabricante de medicamentos genéricos envolvida na produção de ARVs contra a Aids desde o final da década de 1990. Na emissão de licenças
compulsórias, também foram implicados o Ministério do Comércio e seu Departamento de Propriedade Intelectual, encarregado da concessão das patentes, que,
em razão de suas atribuições, mantêm contatos frequentes com a indústria. Isso
explica que este Ministério tenha demonstrado maior proximidade com o discurso
das indústrias farmacêuticas do que com os argumentos dos defensores do acesso
aos medicamentos. Finalmente, o Estado tailandês é representado em inúmeras
situações, particularmente nas relações diplomáticas com outros países, pelo Ministério de Relações Exteriores cujos funcionários enfrentaram, após a emissão das
licenças compulsórias, reações hostis do exterior, especialmente por intermédio
das embaixadas.
Em oposição ao governo tailandês, encontramos o segundo conjunto de atores, capitaneado pelas multinacionais farmacêuticas. Trata-se de firmas diretamente afetadas pelas licenças compulsórias, mas também da indústria farmacêutica
detentora dos direitos de propriedade intelectual em geral, preocupada com o de-
Capítulo 4. Condições de uso das licenças compulsórias: a ação do governo tailandês
83
senvolvimento de práticas que ela considera contrárias a seus interesses. Algumas
empresas se envolveram individualmente, afirmando sua posição por meio de seus
representantes na mídia ou por ocasião de conferências ou reuniões com oficiais
tailandeses. Diversas associações desempenharam o papel de porta-voz dessas sociedades, como a Federação Internacional da Indústria do Medicamento (IFPMA,
sigla em inglês), a Associação Americana da Indústria Farmacêutica (PhRMA, sigla
em inglês) ou a Associação Tailandesa da Indústria Farmacêutica (PReMA, sigla em
inglês). Localmente, a Câmara de Comércio Americana (AmCham, em inglês) em
Bangkok defendeu os interesses de seus membros por meio de um comunicado
agressivo, acenando mesmo com a ameaça da suspensão de investimentos externos na Tailândia.
Além disso, alguns governos ou representantes deles se mobilizaram contra a
ação do governo tailandês, em defesa das posições das sociedades farmacêuticas.
O Departamento de Comércio americano (USTR, sigla em inglês), que promove
e protege os interesses das sociedades farmacêuticas implantadas nos Estados
Unidos e por extensão os da indústria farmacêutica exportadora de propriedade
intelectual em geral, conduziu sem dúvida a ação mais espetacular e mais explorada pela mídia. Por ocasião da emissão das licenças compulsórias pela Tailândia,
vários outros governos dos países ocidentais se manifestaram, especialmente por
meio de suas embaixadas (Estados Unidos, França, Suíça) ou suas representações
locais (Comissão Europeia) em contato direto com as empresas farmacêuticas, que
intervieram de maneira mais ou menos formal junto às autoridades tailandesas.
A Comissão Europeia interveio também pelo intermédio de seu comissário de Comércio, Peter Madelson, que escreveu ao ministro do Comércio tailandês, Krirkkrai
Jirapaet, em 10 de julho de 2007, para comunicar sua “preocupação” e incentivar o
governo tailandês a chegar a um consenso com a indústria. Por sua vez, em 20 de
julho de 2007, o embaixador americano, Ralph Boyce, manifestou por escrito ao
primeiro ministro Surayud Chulanont seu receio de ver a Tailândia conceder novas
licenças compulsórias.
Essas duas intervenções constituem uma amostra das pressões exercidas sobre o governo tailandês. Tanto os Estados Unidos quanto a Comissão Européia, na
condição de membros da OMC, aprovaram a Declaração de Doha e, portanto, reconheceram formalmente o direito dos países de fazer uso das licenças compulsórias para garantir o acesso aos medicamentos. Nenhum deles nega publicamente
a possibilidade de se recorrer a esse dispositivo, mas ambos invocam o medo de
um uso sistemático dele e, de certa forma, o que eles questionam, em primeiro
lugar, é a interpretação da lei tailandesa. A proximidade, no tempo, das duas correspondências leva a supor uma ação coordenada dos países. O fato de a carta do
embaixador Boyle ter sido endereçada ao primeiro ministro evidencia a multiplicidade dos níveis a que se pretendiam levar as críticas (ou ameaças), solicitando até
os mais altos níveis da hierarquia governamental. Isso indica também uma estreita
comunicação entre a indústria e a administração americana.
84
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
A carta do comissário Mandelson, por sua vez, revela as tensões internas das instituições europeias, evidenciando as divergências da época entre o Parlamento e a
Comissão sobre a questão do acordo Trips/Adpic e o acesso aos medicamentos[5]70.
Temos aqui a ilustração da ausência de homogeneidade no seio de entidades representando um mesmo Estado ou uma Federação de Estados, mas muitas vezes
afetadas por divergências significativas de opinião.
Além das pressões ou medidas diretas de represálias praticadas pelas indústrias farmacêuticas ou pelos governos, a oposição às licenças compulsórias se manifestou também, de maneira indireta, na mídia. Isso evidenciou apoios favoráveis
às posições da indústria, alguns mais esperados que outros. Assim, enquanto o
presidente da filial tailandesa da Novartis declarava que não era “o momento para
impor licenças compulsórias [sobre o Glivec]”,71 o doutor Saengsuree Joota, presidente da Sociedade Tailandesa de Hematologia, afirmou: “o governo deve refletir
bastante antes de conceder licenças compulsórias para transpor as patentes de
medicamentos contra o câncer, porque tal ação poderia provocar efeitos adversos
em longo prazo. (...) Emitir uma licença compulsória para o Glivec poderia ter consequências negativas para os 900 pacientes afetados pela leucemia e que já têm
acesso ao Imatinib, versão genérica do anticancerígeno, por meio de um programa
filantrópico”.72 Podemos imaginar que uma boa parte dos 113 médicos trabalhando nos 34 centros beneficiários desse programa filantrópico deve ter expressado
opiniões semelhantes, por medo de medidas de represálias.
Por fim, o último conjunto de atores envolvidos é constituído por uma variedade de ONGs e os grupos sociais que essas organizações puderam mobilizar. De
fato, inúmeros grupos distintos se juntaram para formar uma coalizão, mais ou
menos formal, engajada nos acontecimentos que levaram à emissão de licenças
compulsórias. Em primeiro lugar, encontramos grupos tailandeses mobilizados na
luta contra a Aids, como a Aids Foundation e a Rede Tailandesa de Pessoas vivendo
com Aids (TNP+). Outros grupos e alianças, frutos de mobilizações mais antigas sobre a propriedade intelectual, menos diretamente focados nas questões de saúde,
reivindicaram o direito e apoiaram a utilização das licenças compulsórias. Trata-se,
particularmente, da FTA Watch, entidade que reúne 11 redes mobilizadas contra o
acordo de livre comércio com os Estados Unidos (sindicalistas, estudantes, agricultores etc); mas também algumas ONGs, como Bio Thai, dedicada à biodiversidade
e à proteção dos recursos naturais e dos conhecimentos tradicionais das comuni70 Esta carta é nitidamente contrária à resolução do Parlamento europeu, adotada dois dias mais tarde,
em 12 de julho de 2007, solicitando o apoio dos países membros aos países em desenvolvimento no
uso das flexibilidades previstas pelo acordo Trips/Adpic. Acesso à resolução em: http://www.europarl.
europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//TEXT+TA+P6-TA-2007-0353+0+DOC+XML+V0//FR.
71 Sarnsamak P. (2007, July 21), “Novartis pleads for cancer drug; The maker of a leukaemia and intestinal-cancer drug is lobbying the government not to impose compulsory licensing”, The Nation. Acesso
em : http://nationmultimedia.com/2007/07/21/national/national_30041806.php.
72 Treerutkuarkul A. (2007, July 21), “Govt urged to reconsider CL policy. Glivec ‘doesn’t need’ compulsory licence” Bangkok Post.
Capítulo 4. Condições de uso das licenças compulsórias: a ação do governo tailandês
85
dades locais. A atuação das ONGs locais foi elaborada em um contexto de colaboração com o meio universitário tailandês. Um grupo de universitários criado nos
anos 1970 e dedicado à saúde pública e aos medicamentos, o Drug Study Group,
apoia as reivindicações das ONGs para o acesso aos genéricos contra a Aids e tem
colaborado com argumentos jurídicos e sanitários. Uma rede local heterogênea,
composta de indivíduos e organizações, engajados no acesso aos medicamentos e
nas questões sobre a propriedade intelectual, foi assim se desenvolvendo progressivamente na Tailândia, a partir do final dos anos 1980.73 Sua eficácia reside em sua
capacidade de apreender assuntos técnicos e jurídicos com um nível de competência muitas vezes superior ao dos interlocutores institucionais. Para sustentar o uso
dos genéricos, as ONGs apelaram para vários tipos de estratégias: encontros com
as instituições, manifestações, petições, campanhas na mídia e, em alguns casos,
recursos na justiça. Elas souberam mobilizar ativistas em todas as regiões do país,
os quais se tornaram vetores de difusão de suas mensagens e agentes mobilizáveis
por ocasião das manifestações. Esses grupos locais conseguiram o apoio de ONGs
internacionais como MSF, Oxfam e Knowledge Ecology International (antigo CPTech). As posições da sociedade civil tailandesa foram, assim, retomadas e apoiadas
por um grande número de ONGs e grupos ativistas externos na Índia, na França, no
Brasil, nos Estados Unidos etc. Uma ampla coalizão internacional informal, constituída em torno da questão do acesso aos tratamentos contra a Aids e mobilizada
alguns anos antes contra a OMC foi assim reativada, afirmando sua solidariedade
com os doentes tailandeses e a decisão do ministro da Tailândia.
Assim sendo, a atuação das ONGs na Tailândia se baseia, por um lado, sobre a
existência de uma ampla coalizão nacional informal possuindo fortes conexões internacionais e, por outro, sobre uma forte dinâmica de apropriação e utilização do
conhecimento e da expertise. A argumentação das ONGs em prol da concessão de
licenças compulsórias, inscrita em uma longa trajetória de mobilização pelo acesso
aos medicamentos, constitui um dos elementos que explica o fato de a Tailândia
ter optado pela utilização desses dispositivos num momento em que o país era
dirigido por um governo militar, período muitas vezes considerado como pouco
propício à influência exercida pelas ONGs.
73 Convém observar que os representantes da indústria farmacêutica privada tailandesa eram praticamente ausentes das redes de mobilização sobre a questão da propriedade intelectual e do acesso aos
medicamentos quando foi efetuado o trabalho de campo servindo de base para esse documento.
86
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
III. Histórias entremeadas
III.1. O histórico de um conflito duradouro
O histórico dos conflitos sobre propriedade intelectual entre a Tailândia e os Estados Unidos remonta pelo menos aos anos 1980. Essa questão está no centro de
tensões marcadas por repetidas ameaças de sanções econômicas contra a Tailândia por meio do dispositivo 301 da lei americana sobre comércio. Em 1989, a Tailândia é colocada na Priority Watch List; em 1991, ela passa a fazer parte da Priority
Foreign Country List [6, 7].74 Essas pressões provocaram uma emenda à lei tailandesa de patentes em 1992, destinada a instaurar níveis de proteção mais restritivos
(às vezes, mais restritivos que os níveis atualmente exigidos pela OMC, embora esta
instituição ainda não existisse). Diante de novas pressões, a lei foi mais uma vez
modificada, em 1998.
Quando as pressões não são exercidas pelo governo americano, as empresas
farmacêuticas passam à ofensiva de maneira direta. No final dos anos 1990, os pacientes tailandeses soropositivos pagavam o tratamento do próprio bolso; o preço
na época para uma triterapia era praticamente equivalente ao praticado nos países
ocidentais, em torno de US$ 10.000 por paciente por ano. Obviamente, o custo dessa terapia era proibitivo para a maioria dos pacientes tailandeses. Tal situação levou
o produtor governamental, GPO, a considerar a possibilidade de produção local de
vários medicamentos ARVs, incluindo a ddl. A empresa farmacêutica Bristol-MyersSquibb (BMS) interveio, então, reivindicando direitos exclusivos, argumentando ser
detentora de uma patente sobre uma versão melhorada do produto. O GPO esperava poder comercializar uma versão do medicamento fabricado conforme um
processo de fabricação elaborado por seu departamento químico, o que permitiria
uma redução do preço de 40%. A BMS impetrou uma ação e, apesar da legalidade
da proposta, o GPO desistiu de produzir o medicamento.
Perante essa situação, algumas ONGs solicitaram junto ao governo o recurso às
flexibilidades autorizadas pelo acordo Trips/Adpic. Em 1997, o GPO apresentou um
requerimento de licença compulsória no escritório de patentes tailandês [8]. Em
1998, ONGs apoiadas pelo Drug Study Group lançaram uma campanha nacional.
Durante dois dias, 22 e 23 de dezembro de 1999, uma centena de pessoas infectadas pelo HIV, membros de grupos de luta contra a Aids, bem como inúmeros
ativistas, se sentaram em protesto (sit-in) em frente ao Ministério de Saúde Pública
do país. Eles reivindicavam o uso das licenças compulsórias para autorizar o GPO a
74 Conforme o programa Generalized System of Preferences (GSP), os Estados Unidos retiram então as
reduções de taxas de importação de 19 produtos de exportação tailandeses. Em 1993, a Tailândia sai
da Priority Foreign Country List e volta para a Priority Watch List, sinal de melhora da situação do ponto
de vista americano.
Capítulo 4. Condições de uso das licenças compulsórias: a ação do governo tailandês
87
produzir comprimidos de ddl [9]. O representante da OMS na Tailândia na época,
doutor E.B. Doberstyn, declarou “Reconhecemos que o uso da licença compulsória
é uma das possibilidades para resolver o problema”.75 Desde fevereiro de 1999, em
seu relatório anual enviado ao departamento de comércio, o sindicato americano da indústria farmacêutica pedia a inclusão da Tailândia na Priority Watch List.
Esse requerimento não foi atendido, mas, apesar de a Tailândia ter modificado mais
uma vez sua legislação de patentes para responder às expectativas americanas, ela
permaneceu na Watch List. Além disso, o governo enfrentou ameaças de sanções
aduaneiras sobre as exportações tailandesas, especialmente de madeira e de jóias
[10], o que aniquilava qualquer tentativa de uso das licenças compulsórias. Em janeiro de 2000, ONGs tailandesas escreveram para o presidente americano Bill Clinton e, em 18 de janeiro, cerca de 200 pessoas organizaram uma manifestação em
frente à embaixada dos Estados Unidos. Em sua resposta, o presidente americano
reconheceu, de maneira implícita, a possibilidade do uso de licenças compulsórias
dentro dos termos do acordo Trips/Adpic, mas o governo da Tailândia, cauteloso,
continuou negando-se a usar essas licenças. Ele pediu que o GPO se limitasse a produzir o ddl em pó, que não era protegido pela patente da BMS. Em março de 2000,
o GPO anunciou a produção de ddl em pó. Por sua vez, as ONGs de saúde e luta
contra a Aids mudaram de estratégia, movendo processos na Justiça contra a BMS
e o Departamento de Propriedade Intelectual (DIP, sigla em inglês). Depois desses
processos, a BMS resolve abrir mão de sua patente.
Essa série de conflitos favoreceu a aquisição progressiva de uma forte experiência em matéria de propriedade intelectual e acesso a medicamentos por parte da
sociedade civil tailandesa. De maneira concomitante, se estabeleceu uma importante colaboração entre as ONGs e o meio universitário que, de seu lado, mantém
contato com alguns funcionários das instituições governamentais. De certa forma,
as ofensivas dos detentores dos direitos de propriedade, bem como as do governo
americano, que os apoiava, favoreceram a emergência de uma resistência informada e organizada.
III.2. Janeiro de 2006 – uma mobilização maciça
Enquanto se desenvolve a sexta rodada de negociações do Acordo de Livre Comércio entre a Tailândia e os Estados Unidos, cerca de 10.000 pessoas manifestavam
nas ruas de Chiang Mai. Foi uma mobilização maciça que ultrapassava consideravelmente as manifestações organizadas, até então, contra esse acordo. O líder
da delegação tailandesa, Nit Phibunsongkhram, que reconheceu ter sido obrigado
a escapar, por uma porta secreta, dos manifestantes que cercavam o hotel onde
ocorriam as negociações, pediu demissão algumas semanas depois. Nessa mani75 Bhatiasevi, Aphaluck (2000, January 16), “Local production to benefit HIV patients”, Bangkok Post,
http://lists.essential.org/pipermail/ip-health/2000-January/000047.html. [tradução livre]
88
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
festação que reuniu agricultores, estudantes, sindicatos e até alguns bancários, os
grupos dedicados à saúde desempenham o papel principal. No desfile de 11 de
janeiro 2006, mais de um terço dos manifestantes era, de fato, formado por grupos
de pessoas vivendo com o HIV de diversas regiões do país. Isso atesta o importante
trabalho de informação e educação desenvolvido pelas ONGs desde o começo das
negociações. O compartilhamento de recursos – expertise, capacidades de comunicação, recursos financeiros – possibilitou a formação de ativistas encarregados
de difundir a informação e o conhecimento, especialmente nas redes de pessoas
doentes. Assim, um número crescente de pessoas adquiriu certa familiaridade com
noções jurídicas de propriedade intelectual e a questão de seu impacto sobre o
acesso aos medicamentos. As ONGs organizaram ateliês, conferências de imprensa, manifestações, produziram documentação, panfletos, publicações e vídeos
denunciando o impacto negativo em termos de aumento da proteção intelectual
que esse acordo poderia impor [11].76 Enquanto acontecia a sexta rodada de negociações, elas intimaram o governo a recusar os pedidos americanos em matéria
de propriedade intelectual, especialmente as limitações ao uso das licenças compulsórias. O nível de detalhes dos documentos apresentados evidencia o grau de
expertise adquirido por essas redes e o trabalho pedagógico e de comunicação desenvolvido junto à sociedade tailandesa. Um adesivo amplamente distribuído pelas redes ativistas proclama: “Right to CL = Right to live”.77 O slogan, que pareceria
misterioso em outros contextos e em outros países é, no contexto tailandês, uma
mensagem de mobilização. A dinâmica de educação e de apropriação do saber
aplicado é confirmada por uma análise publicada na imprensa tailandesa. Para lutar contra o Acordo de Livre Comércio, as ONGs mobilizadas na luta contra a Aids se
aproveitaram das relações desenvolvidas com a mídia desde o início da luta contra
a epidemia. Apoiados nos vínculos criados e na credibilidade conquistada, seus
porta-vozes e especialistas desenvolvem junto a jornalistas um trabalho de informação e educação sobre propriedade intelectual, os acordos de livre comércio e as
licenças compulsórias, da mesma maneira que haviam feito anteriormente sobre
a Aids, os modos de contaminação, a ação dos ARVs etc. Isso explica, em parte, a
repercussão, até então sem igual durante as rodadas anteriores, que as manifestações contra o Acordo de Livre Comércio provocaram nos jornais no início de 2006.
III.3. A trajetória de um homem
A decisão de emitir licenças compulsórias tomada pela Tailândia se situa na conjunção de duas histórias: de um lado, uma sucessão de conflitos sobre propriedade
intelectual marcante para o país e parte de seus cidadãos e, por outro lado, a traje-
76 Isso, entre outras coisas, era subentendido na proposta de um capítulo sobre a propriedade intelectual apresentada pelo lado americano durante as negociações.
77 “Right to Compulsory Licensing = Right to live”, direito à licença compulsória = direito à vida.
Capítulo 4. Condições de uso das licenças compulsórias: a ação do governo tailandês
89
tória individual de Mongkol Na Songkhla, nomeado ministro da Saúde em outubro
de 2006. O Dr. Mongkol estudou na Universidade Mahidol, em Bangkok. Nos anos
1970, participou das manifestações estudantis pela democracia e se juntou à Sociedade dos Médicos Rurais (RDS, sigla em inglês). Em 1976, depois de passar boa
parte da carreira nas províncias rurais da Tailândia, foi nomeado “Médico Rural Extraordinário”. Ao longo dos anos, ocupou cargos importantes em várias instituições
sanitárias e, em particular, foi diretor do Hospital Phimai, diretor-geral do Departamento de Serviços Médicos e Secretário Permanente de Saúde Pública. Quando
de sua nomeação como ministro, o doutor Mongkol escolheu como conselheiros
alguns de seus antigos colegas da Universidade de Mahidol que, como ele, possuíam experiência em atuar nas províncias rurais. Alguns haviam se tornado especialistas em matéria de propriedade intelectual, engajados nos debates nacionais
e internacionais no decorrer da década anterior. O Secretário geral do NHSO, Dr.
Sanguan Nittayarumpon, também engajado nas mobilizações estudantis dos anos
1970 e membro das redes de médicos rurais, foi quem deu o alarme em 2006 sobre
o impacto que a compra de tratamentos de segunda linha contra a Aids teria sobre
o orçamento nacional para a saúde.
Foi nesse contexto que o doutor Mongkol solicitou que seus serviços reunissem
todos os fatos e dados necessários à sua decisão sobre a questão das licenças compulsórias. Um mês depois, ele tomou a decisão. A análise do contexto histórico e
biográfico da decisão do doutor Mongkol nos indica que ela deve ser considerada
como a decisão corajosa de um homem de implantar uma política em prol dos
pobres e dos doentes. Levar em consideração elementos da trajetória pessoal do
ministro pode parecer trivial, mas a comparação com a situação de outros países
ressalta sua importância (e revela também o papel performático da micro-história
sobre a história nacional). Em inúmeros países, a opção pelas licenças compulsórias
é rejeitada por medo das represálias e por falta de segurança quanto às questões
jurídicas implicadas. Na Tailândia, a conjunção do acesso à expertise jurídica e do
clima de confiança, propiciado pelo compartilhamento de valores e de experiências entre o ministro e os seus colaboradores próximos, desempenhou sem dúvida
um papel-chave em sua decisão.
III.4. Setembro de 2006 – golpe militar
Do ponto de vista político, o uso das licenças compulsórias na Tailândia ocorreu em
um momento especial: quando o poder estava nas mãos de um governo militar
transitório. Depois da demissão do primeiro-ministro Thaksin em abril de 2006 e de
um golpe de Estado, em meados de setembro, os militares nomearam um governo
temporário. Esse contexto, na verdade, viria a favorecer a decisão do ministro da
Saúde que, tendo em vista a situação política, se viu liberado de certas exigências.
Em primeiro lugar, com o governo sendo temporário por definição, Mongkol podia estar mais facilmente inclinado a tomar decisões politicamente perigosas para
90
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
seu cargo, já que, em princípio, não deveria ocupar o cargo por muito tempo. Por
outro lado, ele se beneficiava de uma autonomia maior do que teria no seio de
um governo comum. De fato, a vida política tailandesa e a maior parte da classe
política estavam centradas em vários problemas de maior envergadura – garantir
a estabilidade do País, organizar um referendo sobre a Constituição, definir o destino do antigo partido no poder, possibilitar a volta à democracia. Nesse contexto,
o uso de licenças compulsórias para permitir o acesso a medicamentos genéricos
não tinha, para a maioria dos atores políticos, a importância que poderia assumir
em outras circunstâncias. Além disso, tendo em vista a situação, essa questão era
mais facilmente relegada ao domínio de competência do ministro da Saúde, o qual
consultou o Ministério do Comércio a respeito dos aspectos legais da concessão de
licenças compulsórias e da interpretação da lei tailandesa, mas tomou sua decisão
sem submetê-la ao Conselho dos Ministros ou solicitar a opinião do primeiro-ministro (o que seria o procedimento correto em um contexto normal). Essa conduta
explica porque, mais tarde, representantes de outros ministérios deram a entender
que Mongkol os tinha colocado diante do fato já consumado. Assim, entendemos
melhor que nenhum outro ministro tenha podido se contrapor a sua iniciativa.
III.5. Reações em cadeia
As reações provocadas pela decisão do ministro da Saúde da Tailândia oferecem
um prisma de análise interessante das alianças ou oposições atuando acerca das
questões de propriedade intelectual e de acesso aos medicamentos. Esse episódio
revela redes atuando por motivos mais complexos do que a priori se parece, em
nível nacional e também internacional. Após o anúncio da primeira licença pela
Tailândia, atores implicados no fortalecimento dos padrões de proteção da propriedade intelectual participaram de uma série de reações em cadeia muito exploradas pela midia. Aliás, em alguns casos, a própria mídia participou de medidas de
represálias contra a Tailândia, como no caso do Wall Street Journal, que publicou
uma série de editoriais e de artigos incriminando a Tailândia.78 No começo do mês
de março, o laboratório Abbott resolveu retirar sete pedidos de registro de medicamentos no mercado tailandês. Em 1º de maio de 2007, o Departamento americano
de comércio publica seu relatório anual 301, transferindo a Tailândia da Watch List
para a Priority Watch List. Os responsáveis do Departamento do Comércio declararam que essa mudança de estatuto da Tailândia na lista não ocorreu em consequência da concessão de licenças compulsórias; no entanto, o relatório explicita:
“Além de preocupações duradouras no que diz respeito a uma proteção deficiente
dos direitos de propriedade intelectual na Tailândia, no final de 2006 e início de
2007, apareceram novos sinais de enfraquecimento do respeito das patentes, com
78 Em particular, ver os artigos publicados em 31 de janeiro, 9 e 10 de fevereiro, 7, 13 e 14 de março, 23,
25 e 30 de abril e 7 de maio.
Capítulo 4. Condições de uso das licenças compulsórias: a ação do governo tailandês
91
o anúncio feito pelo governo tailandês de licenças compulsórias de diversos produtos patenteados. Apesar de os Estados Unidos reconhecerem a capacidade de
um país de emitir tais licenças conforme as regras da OMC, a falta de transparência
do processo adotado pela Tailândia é um problema sério” [12]. Por sua vez, a USA
Innovation, grupo que se autodefine como ONG – mas que, na realidade, revelou
ser ligado a uma empresa de relações públicas cujo principal cliente é o laboratório
Abbott –, lançou uma virulenta campanha de comunicação contra a Tailândia, acusando o país de ser um “ladrão de propriedade intelectual”, produtor de medicamentos de péssima qualidade, e cujo governo seria comparável à “ditadura militar”
de Mianmar. O grupo escreveu também para os membros do Congresso e para a
Secretaria de Estado dos EUA, Condoleezza Rice. Alguns membros do Congresso
iniciaram uma mobilização: em 20 de março, vários senadores escreveram para a
representante do Departamento de Comércio, Susan Schwab, denunciando a ação
da Tailândia. Na Europa, o Comissário europeu para o Comércio escreveu para seu
homólogo tailandês.
Assim, uma mecânica bem azeitada de repressão e intimidação se instalou. Entre os protagonistas mobilizados para a defesa dos interesses da indústria, um grupo considerável reagiu, cada um utilizando os meios de ação a seu alcance. No entanto, as reações às iniciativas da Abbott e da USA Innovation produziram efeitos
paradoxais e imprevistos. Pelo menos temporariamente, e mesmo que, no fundo,
muitos atores fossem favoráveis à ação da empresa farmacêutica, sua virulência e
a condenação moral por ela provocada no seio da opinião pública resultaram em
uma fissura na frente dos defensores da propriedade intelectual, habitualmente
muito unida. Pelo menos aparentemente, a Abbott ficou isolada de boa parte de
seus aliados teóricos que temiam serem associados à posição extremista do laboratório. Os organismos que adotavam uma posição “dura”, como a Câmara de Comércio Americana em Bangkok (AmCham), apesar de afirmarem compreender o
descontentamento da Abbott, reconheceram também que a sociedade farmacêutica errou ao retirar seus produtos do mercado.79
Como os Estados Unidos não queriam ser vistos como contrários por definição
ao uso de licenças compulsórias (o que seria uma contradição com seu discurso
oficial), o Departamento de Comércio não teve outra escolha a não ser reconhecer a legalidade da decisão tailandesa. Quanto à embaixada dos Estados Unidos,
em Bangkok, ela não apoiava oficialmente a posição da Abbott, seguindo assim o
exemplo de outras empresas farmacêuticas (como a Merck) que buscavam parecer
mais flexíveis e conciliadoras, reiterando a sua vontade de manter o diálogo com o
governo. Por ocasião da emissão das licenças compulsórias, as embaixadas e delegações dos países sedes das firmas afetadas por essas licenças se consultaram uns
aos outros e trocaram informações sobre o que sabiam a respeito das intenções do
governo. A ação da Abbott, a campanha da USA Innovation e a internacionalização
79 J. Benn, AmCham, comunicação pessoal, 5 September 2007.
92
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
da crise levou cada um a adotar certa distância e desenvolver uma linha de comunicação individual. Nenhum desses países queria ser considerado como tendo posições extremistas, renegando os compromissos assumidos em Doha e reabrindo
um conflito sobre a propriedade intelectual e o acesso aos medicamentos.
Do lado oposto, as iniciativas da Abbott e da USA Innovation, que se refere à Tailândia como «um eixo do mal da propriedade intelectual”, acabaram provocando
uma reação de orgulho nacional e fortalecendo a solidariedade entre as instituições tailandesas cujos membros se diziam chocados pela violência das declarações
a respeito de seu país e particularmente indignados pelas comparações com o regime ditatorial de Mianmar. Os ministérios implicados, cada um com sua lógica institucional própria e sob a pressão externa, poderiam ter dado lugar a importantes
divisões no seio do governo tailandês, mas acabaram encontrando-se na posição
de dever defender juntos uma “identidade nacional” e, frente à adversidade, formaram um grupo unido para justificar o recurso às licenças compulsórias.
IV. Conclusão
O modo como se cristalizaram e expressaram as tensões entre o governo tailandês
e as empresas farmacêuticas (e seus defensores), entre 2006 e 2008, muitas vezes
no limite da cortesia diplomática, evidencia a importância desse conflito. Em um
contexto histórico (a proximidade da declaração de Doha), social (existência de uma
forte mobilização internacional e de um consenso moral sobre a necessidade de propiciar o acesso aos medicamentos) e epidemiológico (uma epidemia sempre fora de
controle), o confronto entre a indústria farmacêutica e a Tailândia obrigou inúmeros atores a tomar posição. Vimos como os defensores dos direitos de propriedade
intelectual da indústria farmacêutica se mobilizaram. Por outro lado, nos Estados
Unidos, alguns membros do Congresso e o ex-presidente Bill Clinton expressaram
seu apoio à Tailândia. Representantes de outros países, como França, Reino Unido,
Índia, Brasil e outros adotaram a mesma posição. Sendo assim, as tensões a respeito do uso das licenças compulsórias pela Tailândia traduzem mais que um mero
conflito entre a Tailândia e os Estados Unidos. Elas são a ilustração de um confronto
internacional entre duas frentes mobilizadas e constituídas novamente por ocasião
desse acontecimento. De fato, esse episódio paroxístico de enfrentamento revela
uma discórdia subjacente de magnitude internacional entre uma corrente a favor
de uma aplicação inflexível dos direitos de propriedade intelectual e de um aumento progressivo de seus padrões, e uma corrente oposta, interessada em restringir o
impacto negativo dessas proteções sobre a vida e a existência dos indivíduos, pelo
menos nos países em desenvolvimento. Esse confronto provocou uma mudança
inegável, ainda que restrita e temporária, no equilíbrio de poderes entre essas forças. No jogo de tensão permanente, o cursor se deslocou levemente.
Capítulo 4. Condições de uso das licenças compulsórias: a ação do governo tailandês
93
Provocados pelas ONGs tailandesas e seus aliados, os primeiros debates a respeito da utilização concreta das licenças compulsórias surgiram no país no final
dos anos 1990. No entanto, o uso efetivo desse dispositivo legal não aconteceu
antes do final do ano de 2006. Segundo Judith Butler, “Conditions are not the causes,
conditions do not ‘act’ in the way that individual agents do, but no agent acts without them”.80 Apesar do contexto político tenso, que podia parecer desfavorável,
a conjunção de fatos históricos recentes e antigos, bem como a ação coletiva de
vários atores, acabou favorecendo o estabelecimento de condições que permitiram a emissão das licenças compulsórias pelo ministro da Saúde. No entanto, a
experiência tailandesa, em razão da diversidade e da especificidade dos fatores sociais, políticos, econômicos e epidemiológicos que conduziram ao uso das licenças
compulsórias, aponta para as dificuldades de replicação dessas condições em outros países. Do ponto de vista da governança da propriedade intelectual, o uso das
flexibilidades previstas pelo acordo Trips/Adpic pelos países em desenvolvimento
parece muito complexo.
Assinado no final de 1994, o acordo Trips/Adpic da OMC representava o ponto
máximo de um consenso que oferecia, em troca de certo nível de proteção, algumas flexibilidades para ponderar e limitar essas proteções, caso necessário, a fim
de permitir um equilíbrio justo entre direitos e obrigações. As tentativas de utilização dessas flexibilidades, como no caso da Tailândia, indicam, além das restrições
inerentes a essas flexibilidades, algumas importantes limitações políticas. Questiona-se a capacidade do acordo Trips/Adpic de, fora a proteção da propriedade
intelectual imposta, fornecer para o conjunto dos países signatários os meios para
levar em consideração as necessidades nacionais de ordem social, como a saúde
pública. É dessa forma que a história local do uso das licenças compulsórias na
Tailândia, reabrindo um debate delicado sobre a inadequação das regras da OMC à
realidade dos países em desenvolvimento, poderia vir ao encontro da história mais
global de negociações entre países ricos e países pobres.
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individuais fazem, mas nenhum agente age sem elas.” Butler J. P. (2004), ‘Precarious life: The powers of
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Capítulo 4. Condições de uso das licenças compulsórias: a ação do governo tailandês
95
CAPÍTULO 5
Procedimento de oposição: o caso Tenofovir
Wanise Borges Gouvea Barroso
Resumo: A Lei da Propriedade Industrial (LPI 9.279/96) passou a conceder patentes
na área farmacêutica. A apresentação de subsídio a exame (oposição), usada em
diversas áreas tecnológicas, poderia ser uma estratégia a ser adotada em produtos
importantes para a saúde pública. Nesse procedimento, terceiros podem apresentar esclarecimentos fundamentados e documentos de modo a auxiliar o examinador durante o exame do pedido de patente, para impedir que patentes sejam
concedidas indevidamente. Esses documentos e esclarecimentos devem comprovar que os critérios de patenteabilidade, necessários à concessão das patentes, não
foram atendidos. Neste capítulo, descrevemos os fundamentos e a elaboração do
subsídio ao exame aplicado ao pedido de patente do medicamento Tenofovir, antirretroviral incluído no consenso terapêutico brasileiro e amplamente utilizado no
tratamento da HIV/Aids. Diferentemente da licença compulsória que é decretada
após a patente já ter sido concedida, ocasionando a suspensão temporária do direito de propriedade atribuído pela carta patente ao seu detentor, o procedimento
de subsídio ao exame acarreta menos danos técnicos e políticos para o governo
por ocorrer, antes da concessão da carta patente, ao longo do processo de exame
do pedido de patente.
Palavras-chave: Patente, tenofovir, subsídio a exame, oposição, medicamento
I. Introdução
O presente estudo teve início em 2004 como resultado do estágio financiado conjuntamente pelo Programa Nacional de DST/Aids – Ministério da Saúde, pelo Brasil,
e pelo Ministère des Affaires Etrangères, pela França81.
Com a entrada em vigor da Lei da Propriedade Industrial n.. 9.279/96 - LPI, de 14
de maio de 1996 [1], a qual passou a estabelecer as cláusulas mínimas de Propriedade Intelectual definidas no Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (ADPIC – TRIPS em inglês). As consequên-
81 O estágio foi supervisionado na França pelo professor Luc Quoniam da Université de Toulon et du Var
cias foram imediatas, principalmente no que diz respeito à área farmacêutica, ou
seja, os produtos químico-farmacêuticos, agro-químicos e alimentícios: i) passaram
a ser patenteados; ii) o tempo de proteção da invenção passou a ser de 20 anos; e,
iii) o estatuto da patente pipeline permitiu o patenteamento de matéria já em domínio público no país. Essas modificações favoreceram, principalmente, os interesses dos proprietarios de produtos e processos farmacêuticos, em geral empresas
farmacêuticas internacionais, em detrimento do acesso local ao conhecimento e
aos bens produzidos.
Em 1999, o Ministério da Saúde demonstrou seu descontentamento com os
preços dos medicamentos patenteados praticados pelos laboratórios farmacêuticos, sinalizando com a possibilidade de usar a licença compulsória (RODRIGUES,
2009) [2]. No mesmo ano, devido ao alto custo dos medicamentos antirretrovirais
(ARVs) comercializados no Brasil, o laboratório farmacêutico brasileiro Farmanguinhos82, que conta com especialistas altamente qualificados, começou a produzir
os antirretrovirais que estavam em domínio público. Entretanto, outros medicamentos ARVs ainda estavam protegidos por patentes, como por exemplo o Kaletra, Nelfinavir e Efavirenz. Bermudez (2004) [3] descreve que, entre 2001 e 2003, os
medicamentos Lopinavir/Ritonavir, Efavirenz e Nelfinavir (todos protegidos pelo
mecanismo pipeline) foram alvo de negociações de preços entre o Ministério da
Saúde e as empresas detentoras das patentes, em virtude do forte impacto que o
consumo dos mesmos – de aproximadamente 60% – representava no orçamento
para compra de ARVs.
Rodrigues (2009) [2] esclarece que o país continuava refém das políticas de preços e distribuição de laboratórios titulares de patentes. Nos anos de 2001, 2003 e
2005, o Brasil não aplicou o mecanismo de licença compulsória a nenhum medicamento. O que ocorreu foram ameaças de aplicação desse mecanismo, durante
a negociação de preços de medicamentos ARVs entre o governo e as empresas
detentoras das patentes. Somente em 2007 o governo decretou, pela primeira vez,
o licenciamento compulsório do medicamento Efavirenz.
Sabemos da importância da proteção patentária de uma invenção, mas colocar
em prática todos os dispositivos da legislação exige elevada capacitação e dispêndio de verba considerável, uma vez que o sistema é bastante burocrático e complexo, exige conhecimento e formação não apenas na área técnica, mas também em
legislações nacionais e acordos internacionais referentes à propriedade industrial,
domínio de diversos idiomas e de ferramentas de busca de informações, principalmente patentes e artigos, e especialização em novas tecnologias. Portanto, o conhecimento do Sistema de Patentes brasileiro é imprescindível para que se possa,
por um lado, proteger e gerenciar adequadamente as inovações desenvolvidas em
território nacional e, por outro, conhecer e empregar as flexibilidades previstas na
82 Instituto de Tecnologia em Fármacos – Unidade da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) produtora de
medicamentos.
98
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
lei. Dentre as flexibilidades destacamos o licenciamento compulsório, discutido anteriormente, subsídio a exame (oposição) apresentado ao INPI durante o exame do
pedido e nulidades administrativas e judiciais após a patente ter sido concedida.
O dispositivo de subsídio ao exame deve ser utilizado com a finalidade de evitar
o patenteamento da tecnologia que: (i) encontra-se em domínio público, (ii) não
apresenta os requisitos de patenteabilidade; (iii) não foi suficientemente descrita,
(iv) não trata de invenção e; (v) não consiste de matéria patenteável.
Essa flexibilidade deve ser acionada antes de qualquer outra quando se tem por
objetivo a comercialização e/ou produção de determinado produto para o qual
haja um depósito de pedido de patente. Isso porque outras salvaguardas, como
principalmente o licenciamento compulsório, gera grande desgaste técnico e político para os governos e integrantes de comissões responsáveis pela efetivação do
licenciamento.
Além disso, o tempo necessário para finalizar o processo é mais curto nos casos
que contam com subsídio do que o tempo gasto em processo de licenciamento
compulsório: a Figura 1 apresenta um fluxograma, onde se pode observar, que o
tempo gasto até o final da análise do pedido de patente do medicamento Tenofovir com subsídio ao exame, foi de quatro. Já o processo de licenciamento compulsório do medicamento Efavirenz teve seis anos de duração.
Figura 1 – Etapas e duração do processo de subsídio a exame de pedido
(caso Tenofovir) e de licenciamento compulsório (caso Efavirenz).
LICENÇA OBRIGATÓRIA
EFAVIRENZ
SUBSÍDIO AO EXAME
TENOFOVIR
1a ameaça
22/08/2001
2001
2002
6 anos
PRIMEIRA OPOSIÇÃO
06/12/2005
2003
2004
2a ameaça
06/2005
2005
2006
4 anos
LICENÇA
07/05/2007
INDEF. (INPI)
08/04/2008
REJEIÇÃO (INPI)
26/08/2008
RECURSO
(Gilead)
03/03/2009
REJEIÇÃO de RECURSO
(INPI)
30/06/2009
Capítulo 5. Procedimento de oposição: o caso Tenofovir
2007
2008
2009
99
I.1. Por que estudar o medicamento Tenofovir?
Dentre os medicamentos prescritos no tratamento e prevenção da HIV/Aids selecionamos nesse estudo o medicamento de nome comercial VIREAD®, tendo como
princípio ativo o “tenofovir disoproxil fumarato” (Tenofovir DF), conhecido como
Tenofovir, uma droga da classe de “Inibidor de transcriptase reversa nucleotídeo”.
Ele é indicado para pacientes que apresentam rejeição aos medicamentos nucleotídeos utilizados como primeira linha no tratamento de Aids. O Ministério da Saúde (MS) incluiu o VIREAD® no tratamento de Aids no Brasil a partir do segundo
semestre de 2003, sendo o 15º medicamento da lista de ARVs disponibilizados no
Brasil, devendo ser administrado ao paciente 1 (um) comprimido de 300 mg por
dia. Segundo fonte do MS, foram adquiridos 1.989.510 comprimidos de VIREAD®
no ano de 2004, sendo que o preço de cada comprimido foi de US$ 7,68, o que
correspondia a R$ 23,04, no câmbio da época. O total gasto pelo MS, em 2004, na
compra do VIREAD® foi de US$ 15,25 milhões (ou R$ 45,8 milhões) e a previsão do
gasto estimado para 2005 foi de US$ 23 milhões (ou R$ 69,2 milhões).
De modo a se evitar gasto excessivo na aquisição do VIREAD®, foi estabelecido
que o tratamento da HIV/Aids não deveria ser iniciado com o medicamento VIREAD®,
e que antes de ser prescrito para o paciente dever-se-ia verificar, por meio de um
teste de genotipagem, se o paciente apresentava resistência ao medicamento.
Como esclarece Eloan Pinheiro, “é absurdo que o Brasil esteja pagando US$7
pelo tablete de Tenofovir, que é uma molécula muito velha. Nada justifica o Brasil
estar pagando pesquisa e desenvolvimento de uma molécula inventada nos EUA
em 1985, que foi aprimorada num sal para segundo uso, contra a Aids” [4]. Como
esclarece Mariângela Simão, diretora do Programa Nacional DST/Aids, “A redução
do custo do Tenofovir possibilita o aumento do número de pacientes atendidos e,
assim, o Tenofovir passa a ser um medicamento de escolha de primeira linha”, diz.
Segundo ela, o remédio tem vantagens pela eficácia terapêutica, pela dosagem
única diária e pela redução de sintomas colaterais [5].
II. Histórico de subsídios a exame (oposições)
A Lei brasileira de propriedade industrial – LPI foi redigida de modo a cumprir as
diretrizes mínimas do acordo ADPIC (TRIPS, em inglês), incluindo, também, disposições visando minimizar as imposições trazidas pelo Acordo, onde uma delas é o
subsídio a exame (oposição) de pedido de patente estabelecido no Art. 31 da LPI
9.279/96, o qual pode ser apresentado até o final de exame. Esse dispositivo não
pode ser considerado novo, pois o Código da Propriedade Industrial 5.772 – CPI, de
1971 [6], vigente até 1996, estabelecia em seu Art. 19 que as “oposições” de tercei-
100
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
ros poderiam ser protocoladas ao pedido de patente até 90 (noventa) dias após a
publicação do pedido de exame na Revista da Propriedade Industrial (RPI).
A proposta de substituir o antigo procedimento de oposição formal, com prazo
definido de 90 dias a partir da publicação do pedido na RPI, por um novo procedimento de apresentação de subsídios a qualquer momento do exame surgiu
na época em que o projeto que originou a LPI em vigor tramitava no Congresso
Nacional. A minuta que circulava na época do Tratado de Harmonização de Leis de
Patentes da Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI, defendia a
inexistência de qualquer etapa de oposição anterior à concessão, o que representa
uma forma de acelerar o exame de pedidos e a concessão das respectivas patentes.
Assim, as fases de oposição formal de terceiros e o recurso contra o deferimento de
pedidos de patente deixaram de ser incluídos na nova lei, sendo mantida, contudo,
a possibilidade de terceiros apresentarem informações relevantes que pudessem
subsidiar o exame, bem como o recurso contra o indeferimento.
A ideia era que esses subsídios tivessem o efeito de uma denúncia e que os documentos fossem considerados como se tivessem sido encontrados pelo próprio
examinador. Com isso, uma petição de subsídios entraria no “fluxo” normal do exame, dando oportunidade para que terceiros apresentassem informações relevantes, sem afetar o andamento do processo com prazos para apresentação de contestações e para que o depositante se manifestasse a respeito, em resposta. A fim
de se evitar que o examinador se sentisse inclinado a aguardar até o final do prazo
para uma possível apresentação desses subsídios para só então iniciar o exame, foi
tido como mais apropriado manter em aberto até o final do exame a possibilidade
de apresentação de subsídios. Logo, pelo fato de não incluir a figura da oposição ao
pedido de patente reduziu-se a etapa processual uma vez que deixaram de existir:
1) o prazo de 90 dias, a partir da publicação do exame, para que terceiros apresentassem oposição; 2) a própria publicação do exame do pedido de patente na
RPI, uma vez que não havia sentido em publicar o exame do pedido para contar o
prazo de entrada de oposição; 3) a publicação de entrada de oposição no pedido,
para que o depositante se manifestasse previamente sobre os termos da oposição,
antes que o examinador iniciasse o exame do pedido.
Somados todos esses prazos, logrou-se uma redução de, no mínimo, 3 meses
e de pelo menos 6 meses nos casos em que uma oposição era apresentada. Na
mesma linha, reduziu-se o lapso de tempo que decorre entre o deferimento e a
expedição da patente, mediante extinção da possibilidade de que terceiros recorram contra o deferimento do pedido de patente. Face esse novo procedimento
processual incluído na Lei brasileira de PI, o chamado “subsídio a exame”, foi mantida a nullidade administrativa, após expedida a patente, que, em realidade, passa
a ser a única instância de contestação formal entre depositante e a parte contrária
(terceiros interessados).
Capítulo 5. Procedimento de oposição: o caso Tenofovir
101
III. Conceitos relevantes
Discutir os conceitos referentes aos requisitos de patenteabilidade, independência
das patentes e falta de suficiência descritiva são de extrema relevância quando desejamos apresentar subsídio ao exame. Para que uma patente seja concedida, ela
deve atender aos seguintes requisitos de patenteabilidade:
 novidade: a invenção é considerada “nova” quando não estiver compreendida no estado da técnica83.
 atividade inventiva: a invenção é dotada de atividade inventiva quando não
for considerada óbvia para um técnico no assunto.
 aplicação industrial: a invenção será considerada suscetível de aplicação
industrial quando possa ser utilizada ou produzida em “qualquer tipo” de
indústria.
Conforme previsto na LPI 9.279/96 uma patente pode ser concedida a um produto, formulação ou processo, quando se deseja proteger alguma invenção da área
farmacêutica. No entanto, muitos depositantes também reivindicam o uso do medicamento bem como o “método terapêutico” ou a “segunda indicação terapêutica”.
Cabe a cada país definir os critérios de patenteabilidade ou seja: “critérios amplos” os quais podem levar a um maior número de patentes concedidas e “critérios
mais limitados” onde serão concedidas patentes apenas para determinadas invenções, onde não serão concedidas patentes para modificações óbvias de produtos
já conhecidos ou de fenômenos que ocorrem na natureza. Dessa forma, o tipo de
adoção dos critérios de análise poderá levar um país a conceder mais patentes do
que outro.
Ressaltamos também que as patentes têm validade apenas no território em que
foi concedida. Ou seja, o fato de uma patente ser concedida num determinado país
não significa que seu pedido de patente correspondente deverá ser automaticamente concedido em outro país. Este é o chamado princípio da “independência das
patentes” [7]. A concessão de uma patente é uma decisão nacional, baseada em critérios nacionais, tendo como patamar mínimo o estabelecido no Acordo ADPIC [8].
Outro questionamento bastante utilizado nos pedidos de patente é o da falta
de suficiência descritiva da invenção, segundo o art. 24 da LPI, “O relatório deverá
descrever clara e suficientemente o objeto, de modo a possibilitar sua realização
por técnico no assunto e indicar, quando for o caso, a melhor forma de execução.”
83 Artigo 11 da LPI (9.279/96): A invenção e o modelo de utilidade são considerados novos quando não
compreendidos no estado da técnica.
§ 1º – O estado da técnica é constituído por tudo aquilo tornado acessível ao público antes da data de
depósito do pedido de patente, por descrição escrita ou oral, por uso ou qualquer outro meio, no Brasil
ou no exterior, ressalvado o disposto nos arts. 12, 16 e 17.
102
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Ou seja, muitos pedidos de patente não apresentam a descrição suficiente da
invenção de modo que um técnico no assunto possa reproduzir a mesma. Assim, no
exame de um pedido deve ser avaliado se o mesmo apresenta suficiência descritiva.
IV. Andamento do Pedido de Patentes do Tenofovir
De modo a propiciar a visualização de todo o processamento de um subsídio a
exame de pedido de patente, apresentamos a seguir o caso referente ao medicamento Tenofovir. Os dados bibliográficos do pedido de patente do Tenofovir são
os seguintes:
Pedido de Patente: PI9811045-4
Data do depósito: 23/07/1998
Prioridade Unionista:
País
Número
Data
US
08/900,752
25/07/1997
US
60/053,777
25/07/1997
Depositante: GILEAD SCIENCES, INC.
Inventores: John D. Munger, Jr / John C. Rohloff / Lisa M. Schultze
Título: Composição de análogo de nucleotídeo e processo de síntese
Resumo: A invenção fornece uma composição que compreende bis(POC) PMPA e ácido fumárico (1:1).
A composição é útil como um intermediário para a preparação de compostos antivirais, ou é útil para a
administração a pacientes para terapia antiviral ou profilaxia. A composição é particularmente útil quando
administrada oralmente. A invenção também fornece processos para obter PMPA e intermediários na síntese
de PMPA. As modalidades incluem t-butóxido de lítio, 9-(2-hidroxipropil) adenina e p-toluenossulfonilmetóxifosfonato de dietila em um solvente orgânico tal como DMF. A reação resulta em preparações de PMPA de dietila
contendo um perfil de subproduto melhorado comparado a PMPA de dietila obtida por métodos anteriores.
PCT:
País: US
Número: US9815254
Data:23/07/1998
Data RPI : 22/08/2000
Despacho 1.3
Data da publicação: 04/02/1999
Publicação INPI:
N° RPI: 1546
O pedido de patente PI9811045-4 passou pelas seguintes etapas:
 Em 5/9/2000 a Gilead requereu o exame do pedido de patente PI9811045
no INPI.
 Apresentação de três subsídios a exame ao pedido de patente, a saber:
1. Em 06/12/05 – Petição de subsídio ao exame apresentada pelo Instituto
de Tecnologia em Fármacos – Farmanguinhos (n. 20050141995).
Capítulo 5. Procedimento de oposição: o caso Tenofovir
103
2. Em 01/12/06 – Petição de subsídio ao exame apresentada pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA) e outros (n. 20060179654).
3. Em 02/01/07 – Petição de subsídio ao exame apresentada pela Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz (n. 20070000016).
Nos três subsídios são apresentados esclarecimentos e anterioridades que mostram que a matéria reivindicada no PI9811045-4 não possui atividade inventiva
pelo fato do composto fumarato de bis(POC)PMPA bem como a produção e formulação contendo o mesmo não apresentam efeito técnico novo face as anterioridades citadas. Assim, foi solicitado o indeferimento do PI9811045-4.
 Em 8/4/2008, na RPI n. 1944, foi publicado o parecer de ciência (código
de despacho 7.1), redigido pelo examinador de patentes, alegando que o
PI9811045-4 não era passível de proteção por estar em desacordo com os
Artigos 8º, 10 (VIII), 13, 24 e 25 da Lei n. 9.279/96. O parecer foi assinado
por uma comissão de examinadores do INPI composta por Luiz Eduardo
Kaercher, Romi Lamb Machado e Liane Elizabeth Caldeira Lage, questionando não apenas a forma das reivindicações, como também os aspectos
físico-químicos dos produtos e processos reivindicados, evidenciando ainda a completa fragilidade do pedido. O depositante Gilead teve até o dia
07/07/08 para apresentar manifestação face ao parecer técnico do INPI.
 Em 26/08/08, na RPI n. 1964, o INPI publicou indeferimento do pedido de
patente do Tenofovir pelo fato do mesmo estar em desacordo com os Artigos 8º e 13 da LPI 9.279, onde a firma Gilead teve 60 dias para recorrer. Para
observadores do processo, havia poucas chances de a decisão se reverter.
Mesmo cabendo recurso, a decisão trouxe uma nova perspectiva para a negociação de preços do Tenofovir pelo Brasil, uma vez que o contrato entre
o Ministério da Saúde e a firma Gilead terminaria dentro de pouco tempo.
“Certamente, havia a possibilidade de solicitar um preço bem menor do que
era cobrado”, disse Reinaldo Guimarães [9].
 Na data 03/03/09 a Gilead apresentou recurso contra o indeferimento do
pedido.
 Em 30/06/2009 foi publicada a manutenção do indeferimento pelo INPI.
V. Discussão
V.1. A exemplaridade do “caso Tenofovir”
O subsídio ao exame apresentado para o pedido PI9811045-4 foi de grande relevância para o país, uma vez que, face ao seu indeferimento, o tenofovir pode
104
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
ser produzido e comercializado por qualquer laboratório interessado no país, não
havendo impedimento legal e nem a necessidade de pagamento de royalties para
o depositante do pedido.
Essa iniciativa deve ser um exemplo a ser seguido não apenas pelo governo
federal, através do Ministério da Saúde e de seu laboratório Farmanguinhos, mas
por qualquer outro produtor que tenha interesse em produzir e/ou comercializar
produto para o qual esteja sendo requerida proteção no país. É um procedimento
muito utilizado pelas empresas farmacêuticas e deve também ser considerado um
instrumento importante dos laboratórios oficiais que atuam no mesmo mercado e
desejem influenciar a concorrência para a redução de preços.
O subsídio ao exame evitou grande desgaste em negociações por parte do
Ministério da Saúde (MS) com o laboratório farmacêutico que havia depositado o
pedido de patente do Tenofovir, evitando, caso a patente tivesse sido concedida, o
licenciamento compulsório da patente.
Assim, é de grande relevância para o governo a adoção de estratégia de monitoramento de pedidos de patente de matéria de seu interesse, com a possível
apresentação subsequente de subsídio ao exame, de modo a se evitar o patenteamento indevido de produto farmacêutico no país.
O presente estudo mostrou a importância do trabalho multidisciplinar em rede,
pois para se redigir subsídio ao exame com argumentos consistentes é necessária
a participação de especialistas nas áreas da propriedade industrial, ciência da informação, síntese orgânica, formulação de medicamentos, direito, saúde pública,
entre outros.
Verificamos que para outros medicamentos, principalmente relacionados a HIV/
Aids, poderiam ser apresentados subsídios ao exame junto ao INPI, pois os pedidos
de patentes de alguns medicamentos carecem dos requisitos de patenteabilidade.
V.2. O acesso ao Tenofovir
Com a redução do custo para o Ministério da Saúde, o Tenofovir passou a ser um medicamento de escolha no tratamento de primeira linha no Brasil. Assim, um número
maior de pacientes portadores de HIV/Aids passaram a ter acesso ao tratamento com
esse medicamento uma vez que conseguiu-se a redução do preço de comercialização.
A diminuição do preço também permitiu que o Tenofovir fosse usado como
primeira opção de tratamento para portadores de hepatite B. A previsão em 2009 é
a de que, no primeiro ano, 2,5 mil pessoas recebam indicação para o remédio [10].
Os pacientes com Aids de outros países emergentes ou em desenvolvimento
deverão ter mais acesso a tratamentos contra a doença, uma vez que, por exemplo,
as autoridades indianas indeferiram o pedido de patente do Tenofovir. Da mesma
forma, o escritório de patentes de Nova Delhi confirmou apelação da Cipla, fabri-
Capítulo 5. Procedimento de oposição: o caso Tenofovir
105
cante de medicamentos genéricos da Índia, para rejeitar a proteção intelectual ao
Tenofovir conhecido pelo nome de marca de Viread, um dos tratamentos mais usados contra a Aids [11].
A Cipla é uma empresa indiana produtora do genérico do Tenofovir que obteve certificação pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Logo, tal medicamento
está disponível para compra pelo Brasil.
V.3. Discussões sobre o uso da legislação de PI no Brasil
Após a apresentação do subsídio ao exame ao pedido de patente do Tenofovir
ocorreram, no INPI, várias discussões referentes ao patenteamento na área farmacêutica e biotecnológica. Dentre os principais temas de discussões temos:
polimorfos, segundo uso farmacêutico, patentes de seleção, sais de substâncias
conhecidas e invenções incrementais. Tais discussões resultaram em importantes
resoluções oficiais.
Resolução 132 INPI de 17.11.2006
O INPI publicou resolução definindo critérios para exame prioritário de pedidos
de patente. O Art. 3º da resolução estabelece que “serão examinados prioritariamente, de ofício, os pedidos de patente cujo objeto esteja abrangido pelo ato do Poder
Executivo Federal que declarar emergência nacional ou interesse público”.
Resolução 191 INPI de 10.10.2008
Face ao entendimento de que o país estaria decretando novo licenciamento
compulsório a resolução 132 que trata de exame prioritário de pedidos de patente
foi substituída pela resolução 191. Assim, o Art. 4º passou a definir que “seriam examinados prioritariamente, por solicitação do Ministério da Saúde, pedidos de patentes
relativos a medicamentos que fossem regularmente adquiridos pelo SUS”.
Em suma, este estudo sobre subsídio (oposição) a exames de patentes farmacêuticas nos mostrou o valor da utilização deste dispositivo, que tem impacto: no
plano industrial, ao permitir que qualquer firma interessada venha a desenvolver o
produto e produzi-lo; no preço do medicamento e, consequentemente, no acesso
a tratamentos; e, ainda, na regulação da propriedade intelectual, ao propiciar um
debate sobre diretrizes ao exame com vistas à melhoria da qualidade dos exames
de patentes no país.
Referências bibliográficas
1.
106
BRASIL. Lei da Propriedade Industrial n. 9.279. Regula Direitos e Obrigações Relativos à
Propriedade Industrial. 14 mai. 1996.
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
2.
RODRIGUES, W. C. V.; SOLER, O. Licença compulsória do efavirenz no Brasil em 2007:
contextualização. Rev. Panam. Salud Publica [online], v. 26, n. 6, p. 553-559, 2009.
3.
BERMUDEZ, J. A. Z.; OLIVEIRA, M. A.; CHAVES, G.C. O Acordo TRIPS da OMC e os desafios
para a saúde pública. In: BERMUDEZ, J. A. Z.; OLIVEIRA, M. A.; ESHER, A. (Org.). Acceso a
medicamentos: derecho fundamental, papel del Estado. Rio de Janeiro: ENSP/FIOCRUZ,
p. 69-89, 2004.
4.
GENEBRA, A. M. Brasileira defende a quebra de patentes para baratear remédios, como
já ocorre nos EUA. Valor Econômico, 22/11/2004. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/clipping/mostra_clipping.asp?id=19769> Acesso em: 23 fev. 2010.
5.
NEWS.MED.BR, 2011. HIV: tenofovir, distribuído gratuitamente para 11 mil pessoas, fica
51% mais barato. Disponível em: <http://www.news.med.br/p/hiv++tenofovir++distri
buido+gratuit-1288.html>. Acesso em: 25 fev. 2010.
6.
BRASIL. Código da Propriedade Industrial n. 5.772. Institui o novo Código da Propriedade Industrial, e dá outras providências. 21 dez. 1971.
7.
CUP. Convenção da União de Paris. Decreto n. 75.572, de 8 abril 1975. Promulga a Convenção de Paris sobre a Proteção da Propriedade industrial, revisão de Stockholm,
1967.
8.
ADPIC. Acordo sobre aspectos dos Direitos da Propriedade Intelectual relacionado ao
comércio. Decreto n. 1.355, de 30 dez. 1994. Promulga a Ata Final que Incorpora os Resultados da Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais do GATT, 2004.
9.
Consulta Remédios, 2008. INPI nega patente para anti-retroviral Tenofovir. Disponível
em: <http://www.consultaremedios.com.br/noticia.php?id=1127>. Acesso em: 25 fev.
2010.
10. Confiantes no Futuro, 2009. Tenofovir – Droga para Aids vai tratar hepatite B . Ministério
afirma que acordo entre farmacêuticas atrasou ampliação dos usos aprovados do medicamento. Disponível em: <http://confiantes-no-futuro.blogspot.com/2009/10/tenofovirdroga-para-Aids-vai-tratar.html>. Acesso em: 25 fev. 2010.
11. Agência Aids. Índia derruba patente do Tenofovir, destaca Valor Econômico. Disponível
em: <http://www.hiv.org.br/internas_materia.asp?cod_secao=acontece&cod_materia=2648>. Acesso em: 25 fev. 2010.
Capítulo 5. Procedimento de oposição: o caso Tenofovir
107
CAPÍTULO 6
Aprendizagem e usos das
flexibilidades dos direitos de patentes
de medicamentos no Brasil
Maurice Cassier
Marilena Correa
Resumo: A implementação da lei de propriedade industrial votada em 1996 instaurou patentes de produtos e processos farmacêuticos no Brasil, concomitantemente
à difusão da política de luta contra a epidemia de Aids. Nesse contexto, os autores dessa biopolítica84 de acesso aos tratamentos, como o Ministério da Saúde, as
associações de pacientes, as ONGs internacionais, os laboratórios de genéricos se
engajaram na invenção e no uso de flexibilidades do direito de patentes com o objetivo de defender o interesse público e o interesse dos pacientes. Estudamos neste
artigo as flexibilidades e as regulações usadas no Brasil: intervenção da Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) na atribuição das patentes farmacêuticas,
obtenção do direito de fazer a engenharia reversa de medicamentos patenteados,
decisão de licença compulsória, uso do direito de oposição a pedidos de patentes
(“subsídios ao exame”), intervenções de ONGs e associações de pacientes e do laboratório farmacêutico federal do Ministério da Saúde no campo das patentes, da
propriedade pública das invenções, e das invenções fora do âmbito da propriedade intelectual.
Palavras-chave: patentes; medicamentos; flexibilidades; oposições; licença compulsória; sociedade civil.
I. Introdução
Com o advento das triterapias contra o vírus da Aids, o Brasil se tornou um espaço
de uma tensão particular entre propriedade intelectual e saúde pública. De um
84 A noção de « biopolítica » proposta por M. Foucault, 1978-1979, recobre as intervenções dos Estados
ou dos atores da sociedade civil no campo da saúde, da higiene, da natalidade, da longevidade etc. com
o objetivo de gerenciar, manter e proteger as populações [1]. Pensamos que a política de acesso universal aos tratamentos do HIV/AIDS, estabelecida pelo governo do Brasil e defendida pelas associações, se
adequa à utilização do termo.
lado, o Congresso Nacional adota de maneira antecipada, a partir de 1996, o patenteamento farmacêutico para se adequar aos ADPIC – Aspectos dos Direitos de
Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio (em inglês, TRIPS) – da OMC
(Organização Mundial do Comércio), de outro lado o Estado, no âmbito do Ministério da Saúde, instaura uma política de acesso universal aos tratamentos para HIV/
Aids, inscrita em uma lei promulgada em novembro de 1996 pelo então Senador,
ex-presidente da República, José Sarney85. Desse modo, o ano de 1996 vê o aparecimento de duas leis contrárias, uma vez que a nova lei brasileira de patentes86
estabeleceu uma propriedade exclusiva sobre os produtos terapêuticos, ao passo
que a lei Sarney os tornou produtos de interesse público para responder à epidemia do HIV/Aids. O mesmo conflito se estende ao campo da cópia e da produção
local de medicamentos genéricos. O programa de cópia de ARVs iniciado pelo Ministério da Saúde em 1997 logo se choca com o novo regime de patenteabilidade,
no que tange os ARVs de gerações mais recentes. Assim, enquanto no início dos
anos 2000, o laboratório federal empreende a engenharia reversa de ARVs patenteados, como foi o caso do Efavirenz, a firma Merck tenta fazer valer seu título de
propriedade visando bloquear o trabalho de pesquisa dos químicos brasileiros, de
cópia desse princípio ativo. Essa situação bastante contraditória entre as patentes
de produtos farmacêuticos e a lei de acesso universal aos tratamentos para HIV/
Aids, entre o regime de livre cópia dos ARVs e os direitos exclusivos que abrangem
os novos ARVs, entre as listas de medicamentos essenciais da RENAME – Relação
Nacional de Medicamentos Essenciais – e os monopólios de fornecimento dos medicamentos, gera um aumento das tensões e das lutas sobre e contra o direito de
patentes para que se consiga um equilíbrio entre o interesse dos detentores de
patentes e o interesse da saúde pública.
A primeira hipótese que formulamos é a de fabricação do direito de patentes
de medicamentos no Brasil no contexto de lutas e de regulações públicas e cidadãs
voltadas para fazer valer o interesse público face ao direito de propriedade. A primeira forma de regulação estudada, diz respeito ao próprio processo de atribuição
do direito de propriedade, ou seja, quando do exame e da concessão de patentes
farmacêuticas. Sobre este ponto, em 1999, o ministro da Saúde José Serra decide
conferir à ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária –, que ele acabara de
criar, um direito de decisão na concessão de patentes farmacêuticas: “A concessão
de patentes para produtos ou processos farmacêuticos deve depender da anuência prévia da ANVISA” (artigo 229-C da Lei 9.279/96). A intervenção de duas instituições, o INPI – Instituto de Propriedade Industrial – e a ANVISA, no processo de
exame e de concessão de patentes farmacêuticas suscita uma forte oposição dos
agentes de propriedade industrial e da indústria farmacêutica internacional, que
denunciam a mistura de gêneros, a saúde pública e a propriedade das invenções.
85 Decreto 9.313 de 13 de novembro de 1996.
86 Lei brasileira de Propriedade Industrial – LPI 9.279/96..
110
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Uma segunda forma de uso dos direitos de propriedade intelectual ocorre
através do processo judicial que opõe a firma Merck ao laboratório público federal
Farmanguinhos relativamente aos estudos ali empreendidos de engenharia reversa deste medicamento patenteado, o Efavirenz. Em dezembro de 2006, o Tribunal
Federal do Rio de Janeiro proferiu decisão favorável à engenharia reversa do medicamento a fim de não atrasar a entrada de genéricos, que viria a ampliar o acesso
a portadores do HIV/Aids.
A terceira forma de regulação se refere ao uso das licenças compulsórias emitidas em razão de interesse público. Em maio de 2007, o presidente do Brasil assina
um Decreto autorizando uma licença compulsória, “no interesse público e com fins
não comerciais”, para importar matéria-prima e produzir o Efavirenz. Era a primeira
vez no Brasil que uma licença compulsória envolvia um medicamento. É importante compreender as condições de possibilidades dessa licença compulsória em um
país tão estratégico quanto o Brasil para a indústria farmacêutica e para a política
de saúde pública em relação à epidemia de Aids.
A quarta diz respeito ao uso das oposições que terceiros podem acionar perante
o INPI do Brasil. Em 2006, várias oposições (subsídios aos exames) são feitas contra os
pedidos de patentes do Tenofovir e do Kaletra, pelo laboratório federal de Farmanguinhos e por um coletivo de associações de luta contra o HIV/Aids e pelos direitos
dos pacientes, o Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI/ REBRIP). Essas oposições terão um grande efeito, já que o INPI acabou por rejeitar a concessão
de patente do Tenofovir à firma Gilead, que dessa forma cai em domínio público.
A quinta consiste no depósito de patente pelos laboratórios farmacêuticos públicos como forma de controlar sua exploração futura. O laboratório federal de Farmanguinhos depositou pedidos de patentes para novos ARVs, desde o início dos
anos 2000; tanto com o objetivo de desenvolver novos medicamentos em cooperação com a universidade e com os laboratórios nacionais privados, produtores de
genéricos, quanto para controlar os seus preços.
Finalmente, uma sexta forma de regulação consiste em gerenciar as invenções
farmacêuticas fora do âmbito da patente, em consórcios industriais que visam a
garantir a acessibilidade das inovações médicas e dos tratamentos. Trata-se em primeiro lugar, a partir de 2002, da participação do laboratório Farmanguinhos no
consórcio FACT – Fixed-Dose Artesunate Combination Therapy – para desenvolver
novas combinações de moléculas contra a malária. E, mais recentemente, desde
2007, do consórcio montado entre cinco laboratórios brasileiros, públicos e privados, para assegurar o desenvolvimento da tecnologia e o lançamento da produção
industrial do Efavirenz no Brasil.
A segunda hipótese que propomos se refere à expansão do círculo de atores
no campo da propriedade intelectual. Enquanto o direito de oposição é tradicionalmente usado pelos industriais para limitar a extensão do domínio reservado de
seus concorrentes, o direito de oposição no campo do medicamento é empregado
Capítulo 6. Aprendizagem e usos das flexibilidades dos direitos de patentes de medicamentos
111
pelas associações de doentes ou pelo laboratório oficial do Ministério da Saúde
para aumentar a acessibilidade aos tratamentos e viabilizar a política de saúde do
Estado. Vimos que a análise dos pedidos de patentes de medicamentos não era
apenas da alçada dos examinadores do Instituto de Propriedade Industrial, dependendo também da competência da ANVISA. Por sua vez, as campanhas públicas
para as licenças compulsórias mobilizaram um amplo espectro de atores que vão
desde as ONGs/Aids nacionais e as ONGs internacionais, os advogados universitários ou profissionais, os laboratórios fabricantes de genéricos, e o Ministério da
Saúde. Esses embates dão lugar a alianças originais entre o Estado, as ONGs e os
produtores de genéricos. Esses diversos atores, ONGs e Ministério da Saúde, têm
gradualmente desenvolvido uma contra-expertise no campo do direito de patentes. As ONGs têm inclusive incluído advogados especializados em seus quadros.
As monografias jurídicas circulam entre os diferentes atores, entre os especialistas
do laboratório federal e as associações brasileiras; ou ainda, entre ONGs em escala
internacional, com vistas à coordenação de suas ações no que diz respeito às oposições a pedidos de patentes de medicamento e na área farmacêutica.
A abordagem sociológica utilizada neste artigo inclui uma sociologia do direito
[2] que visa captar os usos das regras do Direito pelos atores; ou seja, durante as
lutas sociais e os conflitos jurídicos, bem como os efeitos sociais dessas ações. A
noção de biopolítica empregada neste texto supõe a interrogação dos atores que
mobilizam esta ou aquela regra do Direito: por exemplo, as ONGs e as associações
que militaram pela utilização das disposições de licença compulsória inscritas no
direito de patentes do Brasil; os especialistas e as instituições passíveis de aplicar,
utilizar, controlar o uso da regra de direito (escritórios de patentes, examinadores
de patentes, advogados, juízes); os processos concretos de elaboração dos títulos
de propriedade (os especialistas que redigem as patentes ou os examinadores que
as avaliam); os processos de regulação e de julgamento (como nos processos de
oposição às patentes que envolvem terceiros no exame e concessão das patentes). A abordagem sociológica se interessa, portanto, pelo trabalho diário de uso
do direito de patentes, no INPI e na ANVISA, pelo trabalho parlamentar que, no
momento, aponta para uma reforma da lei de PI (projetos de lei em tramitação no
Congresso Nacional) ou ainda pelos embates jurídicos (processos ou oposições às
patentes), que podem promover um deslocamento da regra do Direito (como no
julgamento do processo Merck/Farmanguinhos ocorrido em 2006) e que autorizou
a engenharia reversa de medicamento patenteado em nome do interesse público.
112
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
II. A intervenção da ANVISA na fabricação e na
concessão de patentes (a anuência prévia)
Em 1999, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária foi criada, o ministro
da Saúde, José Serra, decidiu submeter a concessão das patentes farmacêuticas ao
consentimento prévio da ANVISA. Essa disposição temporária foi inscrita na lei de
propriedade intelectual em 2001. A concessão das patentes farmacêuticas implica portanto na dupla autoridade do Instituto Nacional da Propriedade Industrial
(INPI) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, esta última tendo um direito
de veto no processo de concessão das patentes. A autoridade da ANVISA no processo de atribuição de patentes farmacêuticas é justificada pela missão específica
da agência que é de proteger e de promover a saúde pública e de garantir os interesses dos pacientes:”‘Uma vez que a missão da Anvisa é proteger e promover a
saúde da população, garantindo a segurança sanitária dos produtos e dos serviços
de saúde e participar da construção de seu acesso, a Agência, desde sua criação,
considerou importante sua participação no processo de avaliação das patentes de
medicamentos e processos farmacêuticos. A preocupação que a guia é o impacto
dos direitos de propriedade intelectual nos preços dos medicamentos e, consequentemente, na acessibilidade de sua população”.87 Quando confere uma autoridade especial à ANVISA no processo de atribuição de patentes de medicamentos,
o Estado brasileiro muda a natureza da propriedade industrial que tem de estar de
acordo, agora, com o interesse da saúde pública. O responsável pela Coordenadoria
de propriedade intelectual da ANVISA enfatiza a “função social” da propriedade88
que tem como base limitar os abusos, na medida que o patenteamento poderia
prejudicar o interesse dos doentes e das populações. Os juristas das associações e
ONGs envolvidos nas discussões sobre propriedade intelectual no Brasil veem na
anuência prévia “uma medida para proteger os pacientes, impedindo a concessão
indevida de patentes de medicamentos” [3]. Essa disposição é objeto de importantes controvérsias [3, 4, 5, 6, 7, 8, 9] e de processos movidos pelos laboratórios
internacionais que tiveram importantes patentes negadas pela ANVISA como, por
exemplo, a patente do Taxotère da firma Aventis, ao passo que o INPI a aceitara.
Em 2004, a Aventis entrou com uma ação contra a ANVISA denunciando abuso de
poder na área de concessão das licenças e pedindo a restrição de sua autoridade
nas questões de saúde.89 Para a Aventis, o exame e a concessão de patentes devem
depender unicamente do INPI.
87 www.anvisa.gov.br/rel/proprieintelectual.htm, citado por Guimarães, 2008.
88 A teoria da função social da propriedade está inscrita na Constituição brasileira de 1988, cf. Maristela
Basso, 2006.
89 Julgamento do Tribunal Federal do Rio de Janeiro, 15 de julho de 2008.
Capítulo 6. Aprendizagem e usos das flexibilidades dos direitos de patentes de medicamentos
113
Essa regulação especial das patentes farmacêuticas supunha o estabelecimento de um dispositivo concreto de exame dos pedidos de patentes no âmbito da
Agência Nacional de Vigilância Sanitária. A Coordenadoria de Propriedade Intelectual ou COOPI, instalada no Rio de Janeiro, em local próximo ao INPI para facilitar
as trocas entre as duas instituições, foi colocada sob a autoridade de um diretor da
ANVISA. Em 2001, a ANVISA selecionou 16 profissionais (químicos, farmacêuticos,
biólogos) que receberam um treinamento em propriedade intelectual. Decidiu-se
formar quatro equipes, cada uma delas sendo composta por quatro examinadores
que tinham trabalhado durante dois anos no INPI [7]. A COOPI também dispõe de
um Grupo de Apoio Técnico, composto de quatro engenheiros químicos, de um
médico e de um advogado, que supervisiona e discute cada processo. Guimarães
(2008) acompanhou o trabalho dos examinadores da COOPI que é bastante semelhante ao trabalho dos examinadores do INPI: busca das anterioridades e avaliação
dos pedidos sob o ponto de vista dos critérios de patenteabilidade tradicionais,
ou seja, novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Aparentemente, os
examinadores da ANVISA dispõem de mais tempo para o exame de cada processo
relativamente ao tempo disponível aos seus colegas do INPI, mesmo que se exija
da ANVISA que ela dê seu parecer no prazo de 120 dias.90 É bom relembrar aqui
que os examinadores da ANVISA intervêm depois dos examinadores do INPI e que
dispõem do relatório de exame de seus colegas do INPI. Durante uma audiência
pública na Câmara em novembro de 2009, o presidente do INPI denunciou com veemência a confusão das responsabilidades e a duplicação de tarefas entre as duas
agências “quando enviamos um pedido de patente para ser analisada pela ANVISA,
é porque o INPI já a aceitou. E quando eles recusam conceder essa patente, nós
temos relatórios de exame diferentes”. O presidente do INPI também questiona a
expertise da COOPI-ANVISA “nosso grupo de exame é mais importante e mais bem
preparado do que o grupo da ANVISA que conta com apenas 18 pesquisadores”.
Finalmente, ANVISA e INPI discordam sobre um projeto de lei que altera a lei das
patentes, em tramitação na Câmara dos Deputados, em novembro de 2009.
Ao mesmo tempo em que a ANVISA selecionava e treinava seus examinadores,
em parte oriundos do INPI, ela tinha de estabelecer suas próprias orientações e procedimentos de exame. Com efeito, a lei de 2001 que estabelece a anuência prévia
é muito sucinta: ela consagra o consentimento da ANVISA, mas não diz nada sobre
sua organização nem sobre o conteúdo deste trabalho. Para avaliar as patentes, a
Coordenação de Propriedade Intelectual se apoia nos critérios de patenteabilidade
tradicionais e se baseia no texto de lei de patentes. Ela enfatiza a natureza técnica e
jurídica de seu exame, ao contrário das acusações de “ideologia” de que às vezes ela
é o objeto.91 Ao se reportar e se vincular à lei das patentes do Brasil e aos acordos
90 Visita à COOPI que fizemos em março de 2006; entrevista com seu diretor à época, Luis Carlos Lima,
e os advogados do grupo técnico de apoio.
91 Audiência pública, Câmara dos Deputados, novembro de 2009.
114
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
TRIPS da OMC, a COOPI ancora seu trabalho no direito nacional e internacional. Ao
mesmo tempo, e é nesse ponto que a COOPI reinventa o direito de patentes, ela
interpreta os critérios de patenteabilidade dos medicamentos em função de sua
missão, ou seja, a proteção dos pacientes e das populações. Daí a produção de um
corpus próprio de interpretação e de diretrizes que foram parcialmente divulgadas
em artigos de autoria dos advogados e do responsável pela COOPI; ou ainda, durante os debates ou audiências públicas na Câmara dos Deputados.92 As duas regras elaboradas e aplicadas pela COOPI que foram particularmente debatidas tratam da não patenteabilidade dos polimorfos e do 2º uso terapêutico das moléculas
farmacêuticas [3, 7, 9]. A contribuição da Coordenadoria de Propriedade Intelectual
da ANVISA aos exames de pedidos de patentes no Brasil é bem clara aqui, uma vez
que ela produz um novo corpus de interpretação das regras de patenteabilidade e
que eleva os padrões de concessão das patentes de medicamentos com o objetivo
de preservar o interesse da saúde pública e a extensão do domínio público das
invenções farmacêuticas. A COOPI é um campo de testes para colocar em ação as
flexibilidades das patentes de medicamentos.
III. Obter o direito de fazer a engenharia reversa
de medicamentos patenteados: o processo
MERCK/Farmanguinhos (2004-2006)
No mesmo momento em que as negociações com a Merck para obter uma licença voluntária para a fabricação do Efavirenz no Brasil chegavam a um impasse, o
laboratório público federal de Farmanguinhos lançava uma licitação internacional,
em setembro de 2004, para compra de matérias-primas, no intuito de empreender
estudos com vistas à reprodução de diversos ARVs patenteados; entre eles o Efavirenz. A compra de matérias-primas para o estudo de medicamentos patenteados é
justificada pela necessidade de obtenção de informações tecnológicas necessárias
para o registro de genéricos desses ARVs junto à ANVISA. A Merck logo contesta a
validade da licitação: sendo ela a única proprietária do Efavirenz, não pode haver licitação e concorrência sobre a molécula. Farmanguinhos suspende por um tempo
o andamento da licitação e se dirige à Merck para adquirir os 200 kg de matériasprimas necessárias para a fabricação dos lotes industriais de teste solicitados pela
ANVISA para registro do genérico. A Merck discorda frontalmente da utilização
dessas matérias-primas. Simultaneamente, recomeçam as negociações para a ob92 A questão da divulgação incompleta das diretrizes da COOPI e da ANVISA foi tema de discussões
(3, 7). Podemos ver nesse fato o efeito da prudência da ANVISA que não pretendia tornar rígidas suas
divergências em relação às diretrizes do INPI ou ainda o fato de que a COOPI estava ainda elaborando
essas diretrizes.
Capítulo 6. Aprendizagem e usos das flexibilidades dos direitos de patentes de medicamentos
115
tenção de uma licença voluntária entre a Merck e a Farmanguinhos: uma equipe
da Merck visita as instalações industriais de Farmanguinhos em 14 de outubro de
2004. No final, as duas transações fracassam, já que as duas partes não concordam
sobre o preço das matérias-primas: Farmanguinhos se baseia no preço do Efavirenz
genérico; Merck refere-se ao preço de mercado do princípio ativo patenteado. Reconhecendo o impasse, Farmanguinhos relança a licitação e a Merck entra com um
processo judicial, pedindo a anulação da referida licitação de Farmanguinhos. A
perspectiva da licença voluntária desaparece e a da licença compulsória se define.
O juiz do Tribunal Federal do Rio de Janeiro inicialmente concorda com a reivindicação da Merck e ordena a suspensão da importação de matéria-prima. Ele
justifica sua decisão com base no fato de que as operações de engenharia reversa
para o registro dos medicamentos genéricos se inscrevem em um determinado
período – até a expiração da patente em 2012 – e que ela não responde a uma
necessidade imediata. Farmanguinhos recorre e o juiz reconsidera a sua decisão
em agosto de 2005.93 O juiz concorda com o argumento de Farmanguinhos que
valoriza o interesse da saúde pública e a necessidade de fazer a engenharia reversa
da molécula para isso: “o atraso no desenvolvimento das pesquisas mencionadas
acima provocará o atraso da aquisição da tecnologia e da fabricação dos medicamentos genéricos”. O juiz declara que “... o atraso ou a proibição da produção
trará prejuízos à saúde pública por causa da falta de medicamentos genéricos no
mercado”.94 A reviravolta do julgamento envolve, de forma fundamental, a questão
do interesse da saúde pública e da urgência em adquirir a tecnologia para enfrentar o seu desabastecimento. Já não é mais a duração dos direitos da patente que
é prioritária, mas a do desenvolvimento de medicamentos genéricos no interesse
da saúde da população. Essa hierarquia dos interesses é explicitada no julgamento
de 6 de outubro de 2005: “A partir do confronto dos interesses nesse assunto, devemos nos concentrar na ideia de que o interesse econômico da Merck, detentora
da patente do medicamento Efavirenz, não resiste perante o interesse comum em
proteger a ordem econômica e a saúde pública” (Supremo Tribunal Federal, 6 de
outubro de 2005). Aqui, a proteção da ordem econômica se refere ao interesse da
economia pública ligada à P&D farmacêutica empreendida na Fiocruz que sofreria
com qualquer atraso na aquisição da tecnologia farmacêutica. Essa decisão coloca
em prática a exceção Bolar no campo jurídico brasileiro. Em dezembro de 2006,
quando o Tribunal Regional Federal manteve a sua decisão, o diretor-geral da Farmanguinhos encorajou o Governo em sua decisão em favor de uma licença compulsória do Efavirenz [10].
93 Decisão de 17 de agosto de 2005, Tribunal Federal Regional do Rio de Janeiro.
94 Decisão de 6 de outubro de 2005, Tribunal Regional da 2ª Região.
116
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
IV. O uso da licença compulsória:
trabalho de laboratório, trabalho jurídico
e debate público (2000-2007)
Várias publicações têm enfatizado o valor estratégico do uso de uma licença compulsória no Brasil [11, 12] ou ainda a importância da mobilização do Ministério da
Saúde e das ONGs no processo de decisão [3,13]. Nossos trabalhos exploram as
diferentes arenas que intervieram no processo de fabricação dessa licença compulsória, a saber, os laboratórios industriais que adquiriram os conhecimentos necessários para a produção do Efavirenz; o palco judiciário com o processo que opôs a
Farmanguinhos ao proprietário da patente (ver parágrafo acima); as ONGs em seu
processo de aquisição de uma contra-expertise jurídica no campo da propriedade
industrial. A implementação desse dispositivo de salvaguarda dos direitos de propriedade intelectual é aqui percebida como o produto da ação de atores industriais, associativos, ministeriais, universitários que participam da nova governança
farmacêutica [13, 14, 15]. O Direito aqui é o produto do engajamento de várias
forças sociais. Ao mesmo tempo, esse dispositivo da licença compulsória permite
novas alianças entre Estado, sociedade civil e mundo industrial. O Direito perpassa
aqui a economia e as relações sociais.
Nossas pesquisas, realizadas entre 2002 e 2009, permitiram acompanhar a mobilização dos laboratórios farmacêuticos públicos e privados na preparação dessa
licença compulsória. A decisão pela licença acontece depois de vários investimentos de pesquisa realizados, muitas vezes a pedido expresso do Ministério da Saúde,
inclusive aos laboratórios privados [10]. A condição de o país deter a tecnologia é
uma pré-condição para a decisão do Ministério da Saúde emitir a licença compulsória. Uma nota do Ministério de 2004 define o quadro das capacidades tecnológicas dos laboratórios nacionais, indicando as condições de se produzir o princípio
ativo e o medicamento Efavirenz. Verificamos, assim, que três laboratórios públicos
e um laboratório privado são capazes de produzir o medicamento ao passo que
três laboratórios privados são capazes de produzir o princípio ativo, no Brasil. Mesmo assim, a capacidade tecnológica dos laboratórios brasileiros ainda é motivo de
controvérsias. Por isso, a associação ABIA – Associação Brasileira Interdisciplinar da
Aids – recorreu a dois químicos de renome internacional para visitar quatro laboratórios brasileiros, dois do setor público e dois do setor privado, de modo a produzir
uma análise especializada, que foi publicada sob a forma de relatório, divulgado
também em língua inglesa [16].
A implementação da licença compulsória, uma vez decidida em 2007, dará lugar a um edital para selecionar laboratórios capazes de produzir o princípio ativo:
nove laboratórios privados responderão ao edital, o que atesta, ao mesmo tempo,
Capítulo 6. Aprendizagem e usos das flexibilidades dos direitos de patentes de medicamentos
117
a anterioridade da capacitação dos laboratórios sobre a decisão jurídica e política e
a distribuição de conhecimentos no interior de vários laboratórios.
A licença compulsória do Efavirenz foi abordada em nossos estudos, também
como campo de elaboração de uma nova governança farmacêutica caracterizada pela constituição de consórcios público/privado para desenvolver a tecnologia e produzir o medicamento; pela aprendizagem dos laboratórios farmacêuticos
brasileiros no terreno da certificação dos medicamentos genéricos garantidos por
testes de bioequivalência; pela execução dos contratos de serviços que estão redefinindo o mercado das matérias-primas farmacêuticas ao subtraí-las da regulação
das compras públicas sujeitas à lei de licitação (e por isso à oferta do menor preço
em detrimento das normas de qualidade). Em 2007, ainda, o Ministério da Saúde
criou um comitê técnico para acompanhamento da licença compulsória e do desenvolvimento do Efavirenz, o que testemunha o forte envolvimento do Ministério
em um alto nível de representação e de uma forte imbricação entre política, ciência
e indústria.
V. O uso do procedimento de oposição às
patentes (subsídios aos exames): expertise
jurídica e mobilização social (2006- )
A partir de 2006, os atores brasileiros, laboratórios de genéricos e associações de
doentes, passaram a usar o meio de regulação jurídica no campo das patentes farmacêuticas denominado procedimento de oposição ao patenteamento – ou como
conhecido na lei brasileira de PI, o chamado subsídio ao exame. Em 2006, quatro
oposições foram formuladas junto ao INPI para os pedidos de patentes de dois
ARVs, o Kaletra e o Tenofovir. De um lado, essas oposições foram apresentadas pelo
laboratório público Farmanguinhos e de outro, pela ABIA. Essas quatro oposições
introduzem várias novidades no campo da propriedade intelectual no Brasil: primeiro, os oponentes usam o procedimento de oposição para ressaltar os critérios
de patenteabilidade e rejeitar patentes que, em sua opinião, carecem de novidade
ou de inventividade [17]. É o que acontece com os relatórios de oposição apresentados por Farmanguinhos em relação ao Tenofovir. Em segundo lugar, as oposições
introduzem critérios de justiça e de saúde pública para contestar a legitimidade do
patenteamento de medicamentos. A oposição apresentada pela ABIA elabora uma
rica construção jurídica para fazer valer o interesse público e o interesse dos pacientes.95 E terceiro, a apresentação dessas oposições marca a ampliação do círculo dos
95 Relatório de oposição apresentado pela ABIA sobre a patente do Tenofovir, 2006.
118
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
atores intervenientes no campo da propriedade intelectual. Normalmente, são as
grandes empresas industriais, como a companhia petrolífera brasileira, Petrobras,
que apresentam dezenas de oposições para combater as reivindicações de seus
concorrentes. No caso que tratamos aqui, é um laboratório público pertencente
ao Ministério da Saúde e uma associação de ativistas que fazem uso das flexibilidades da lei de patentes para reduzir a proporção dos direitos exclusivos sobre os
medicamentos, uma vez que eles não seriam justificados por critérios de invenção
suficientemente rigorosos, e para fazer valer as razões de justiça e de saúde pública. Em setembro de 2008, o INPI emitiu a decisão final de não conceder patente ao
Tenofovir, da empresa Gilead. Essa decisão, que se segue aos procedimentos de
oposição, resultou na entrada do Tenofovir em domínio público brasileiro. Duas
parcerias industriais foram recentemente firmadas para desenvolver o Tenofovir no
Brasil.
VI. ONGs HIV/Aids e propriedade
intelectual (2001- )
A virada dos anos 2000 foi marcada pela intervenção das associações de pessoas
vivendo com o HIV/Aids no campo da propriedade intelectual de medicamentos
[3, 18]. Dois eventos intervêm nesse deslocamento das intervenções das associações para o campo das patentes: campanhas públicas associadas ao processo de
Pretória que opôs o governo sul-africano ao cartel de laboratórios farmacêuticos; e
a queixa apresentada à OMC pelos Estados Unidos em relação a uma disposição da
lei brasileira de patentes [18, 19, 20]. As ONGs brasileiras afiliadas à REBRIP – Rede
Brasileira de Integração dos Povos – constituíram um grupo de trabalho sobre a
propriedade intelectual, o GPTI [18]. O MSF-Brasil desempenha um papel importante na aculturação das associações à propriedade intelectual. Essa aprendizagem
toma forma no âmbito dos fóruns e das campanhas para as licenças compulsórias,
entre 2001 e 2007, e durante a primeira apresentação de uma oposição perante o
INPI do Brasil em 2006. Essa oposição contra a patente do Tenofovir da firma Gilead
marca uma importante evolução das ONGs/Aids: uma jurista das próprias associações elaborou um argumento jurídico sofisticado, envolvendo o direito à saúde
inscrito na Constituição brasileira, uma lei sobre a participação das partes interessadas nos processos administrativos, a Lei Sarney sobre a distribuição gratuita dos
ARVs bem como uma argumentação técnica sobre a patenteabilidade da molécula
em questão. Podemos avaliar a trajetória da associação ABIA: antes de 2000, suas
publicações não contêm referências a patentes; hoje, publica artigos sobre a intervenção da sociedade civil no campo da propriedade intelectual [21]. Em novembro
de 2008, organiza um seminário internacional no Rio de Janeiro sobre a arte e a
Capítulo 6. Aprendizagem e usos das flexibilidades dos direitos de patentes de medicamentos
119
maneira de se construir oposições às patentes. A ABIA convida uma ONG indiana,
a I-MAK – Initiative for Medicines Access and Knowledge – que expõe sua metodologia [22]. As ONGs brasileiras participam hoje das lutas globalizadas sobre as
patentes de medicamentos e o acesso aos tratamentos. Em junho de 2008, a ABIA
apresenta, também, uma oposição junto ao escritório de patentes indiano em colaboração com uma ONG indiana [23]. Pouco tempo antes, em 2006, o MSF – Médicos Sem Fronteiras – tinha circulado o argumento da oposição de Farmanguinhos
junto às ONGs indianas.
VII. O papel do laboratório público federal na
regulação da propriedade intelectual: depositar
patentes e se opor a patentes em nome do
interesse público; difundir tecnologia
Ao mesmo tempo em que se engaja em uma política de cópia dos ARVs, o laboratório federal cria um núcleo responsável pela propriedade intelectual e pelas transferências de tecnologia. Ele recruta dois examinadores de patentes experientes
bem como um jovem químico formado em propriedade intelectual ao longo das
negociações e dos conflitos com laboratórios internacionais. Farmanguinhos decide depositar várias patentes sobre novos ARVs que são o resultado das pesquisas
realizadas em parceria com químicos da Universidade.96 Mediante a apresentação de tais patentes, Farmanguinhos pretende manter o controle da exploração
dessas invenções, para controlar os preços e a acessibilidade aos medicamentos.
A divisão de propriedade intelectual de Farmanguinhos exerce uma vigilância sobre as patentes farmacêuticas internacionais, tanto para alimentar as bibliografias
dos químicos que fazem a engenharia reversa dos ARVs, quanto, eventualmente,
se opor às patentes. Barroso [17] pretende usar o sistema de vigilância tecnológica,
criado pelo laboratório federal, para colocá-lo ao serviço do acesso universal aos
medicamentos. Finalmente, o laboratório federal desempenha um papel especial
na difusão das tecnologias que ele desenvolveu ao colocá-las à disposição dos laboratórios privados nacionais que estão interessados na produção dos princípios
ativos desses medicamentos. Farmanguinhos também participou do consórcio
FACT entre 2002 e 2004 para desenvolver novas combinações de moléculas que
foram deliberadamente colocadas em domínio público.
96 Proteases inhibitors and their pharmaceutical uses, WO0242412. 2001 ; igualmente, WO
2006/086865.
120
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
VIII. Inovar fora do âmbito da
patente: o consórcio FACT
Desde 2002, o Laboratório Federal de Farmanguinhos no Rio de Janeiro participa de
um consórcio internacional iniciado pelo MSF e pela DNDI para desenvolver novas
combinações de moléculas contra a malária. A originalidade do consórcio se deve
ao fato de que a inovação farmacêutica é compartilhada entre empresas privadas e
laboratórios do norte – a combinação Artesunato/Amodiaquina será desenvolvida
pela Universidade de Bordeaux em associação com a Sanofi Aventis e com uma start
up, e empresas e laboratórios do sul, a combinação Artesunato/Mefloquina será desenvolvida pelo laboratório federal brasileiro de Farmanguinhos. Além da divisão da
P&D farmacêutica entre o norte e o sul e as transferências de boas práticas de laboratório, o objetivo do consórcio era o desenvolvimento de medicamentos acessíveis
para os países com renda média e baixa. A DNDI impôs a seus diferentes parceiros
uma política de não patenteamento das novas combinações de moléculas que foi
aceita pela Sanofi Aventis assim como pelo Laboratório Federal Farmanguinhos. O
novo medicamento desenvolvido pelo laboratório é objeto de uma transferência
de tecnologia para o laboratório de genéricos Cipla para ser produzido na Índia em
escala industrial. O desenvolvimento de uma tecnologia farmacêutica não patenteada é acompanhada de uma transferência de tecnologia Sul-Sul; de um fabricante
de genéricos brasileiro para um fabricante de genéricos indiano.
IX. Conclusão
A implementação da nova lei de patentes de 1996 que instaura patentes de produtos farmacêuticos no Brasil ocorreu no contexto da política de luta contra a
epidemia de Aids desenvolvida pelo Governo. A política de acesso universal aos
tratamentos contra o HIV/Aids, as listas de medicamentos essenciais da Rename –
Relação Nacional dos Medicamentos Essenciais, a política de cópia dos ARVs pelos
laboratórios locais introduziram importantes contradições, com a instauração de
monopólios sobre os medicamentos possibilitados pela nova lei. Ao mesmo tempo, os autores dessa biopolítica do acesso aos tratamentos, o Ministério da Saúde,
as associações de pacientes, as ONGs internacionais, os laboratórios de genéricos
se engajaram na invenção e no uso das flexibilidades dos direitos de patentes de
medicamentos. Ao longo do tempo, os meios de regulação criados e usados são
cada vez mais variados: a anuência prévia da Agência de Vigilância Sanitária, o direito de isenção para a pesquisa (exceção Bolar) e a duplicação de tecnologias para
fins de registro de medicamentos genéricos, a licença compulsória, as oposições
Capítulo 6. Aprendizagem e usos das flexibilidades dos direitos de patentes de medicamentos
121
perante os escritórios de patentes, a queixa junto ao Ministério Público para obter
uma licença compulsória, a propriedade pública das invenções etc.
Esse processo de fabricação de diretrizes para o uso do direito de patentes de
medicamentos é caracterizado por um fenômeno de democratização. Novos atores investem no campo jurídico especializado, aprendem suas regras e procedimentos, intervêm para mudar seus padrões de aplicação. O programa de Aids do
Ministério da Saúde, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, as associações de
pessoas vivendo com o HIV e outras ONGs, e o Laboratório Federal de Farmanguinhos desempenham um papel essencial nesse processo de democratização. A
apresentação de oposições às patentes junto ao INPI no Brasil, a partir de 2006,
mostra a aculturação jurídica do laboratório federal e das associações que passam
a contar com advogados que praticam uma verdadeira contra-expertise no campo
da propriedade intelectual. Essa regulação jurídica em que as organizações da sociedade civil intervêm ativamente desde o início dos anos 2000 se reveste de um
caráter globalizado. Observamos uma circulação internacional das expertises entre as ONGs brasileiras e as indianas. Essas redes são o espaço de uma importante
criatividade para conceber novos usos do direito de patentes – o MSF iniciador do
FACT – e de novos mecanismos para tornar os medicamentos acessíveis, mesmo
após a obrigatoriedade da concessão de patentes para a área farmacêutica com o
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20. VARELLA, M. La propriété intellectuelle des produits pharmaceutiques au Brésil, 66 páginas, relatório, 2002.
21. ABIA. IPR and Access to ARV Medicines. Civil Society Resistance in the Global South. Rio
de Janeiro, p.135, 2009.
Capítulo 6. Aprendizagem e usos das flexibilidades dos direitos de patentes de medicamentos
123
22. TAHIR, A. Making the patent system more democratic: the role or Public Participation.
Examination of Pharmaceutical Patents: Arguing from a Pro-Public Health Perspective,
Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids-ABIA. Rio de Janeiro, 18 nov. 2008.
23. The Asia Pacific Network of People living with HIV/Aids. The roles and experiences of
PLHIV networks in securing access to generic ARV medicines in Asia. Relatório, 2009.
124
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
PARTE III
Genéricos e competências nacionais
CAPÍTULO 7
Reflexo das políticas industriais e
tecnológicas de saúde brasileiras
na produção e no fornecimento
de ARVs genéricos pós-2005
Lia Hasenclever
Julia Paranhos
Helena Klein
Benjamin Coriat
Resumo: O objetivo é investigar quais são os contornos institucionais e as estratégias de política industrial e tecnológica implantadas, entre 2003-2008, no Brasil,
e se elas permitem dar continuidade à política de suprimento de ARVs genéricos
para garantir a sustentabilidade econômica do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Seriam essas políticas capazes de responder às mudanças no regime
de propriedade intelectual e a outras mudanças no setor farmacêutico sem afetar o
fornecimento de ARVs genéricos para o Departamento? Consideram-se as distintas
visões dos atores e instituições intervenientes e seus principais problemas e desafios no novo marco político institucional. Destacam-se também as soluções intermediárias que estão sendo adotadas, enquanto a política ainda permanece mais
no nível da retórica do que de sua real execução. Finalmente, apontam-se mudanças necessárias para que seja obtida uma maior eficácia no aumento da oferta local
de ARVs, entre as quais se destaca o fortalecimento da farmoquímica nacional.
Palavras-chave: políticas industrial e tecnológica; compras públicas de antirretrovirais; Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais; política de saúde; Brasil.
I. Introdução
O Brasil é considerado um caso de sucesso no estabelecimento de uma política de
saúde voltada para o combate à Aids, através do Programa Nacional de Controle
das Doenças Sexualmente Transmissíveis e da Aids, criado em 1986, e a partir de
2010 denominado Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais.97 Em 1996, foi
promulgada a Lei 9.313, que garante a distribuição gratuita de medicamentos aos
portadores de HIV98 e doentes de Aids.99
A concepção de uma política de saúde é influenciada pelas políticas industrial e
tecnológica principalmente para garantia de suprimentos de medicamentos, objeto de análise deste capítulo. Em relação aos ARVs,100 a produção local teve os seus
primórdios em 1992, mesmo antes da criação do marco jurídico que deu direito de
acesso universal ao tratamento, capitaneada por uma empresa da iniciativa privada,
Microbiológica, e pelo principal laboratório público brasileiro, Farmanguinhos.101
Posteriormente, com a universalização do tratamento, outros laboratórios públicos
passaram a participar do fornecimento de medicamentos, a partir da compra de
princípios ativos nacionais e importados, principalmente da Índia e da China. Vigorou, desde então, um modelo de fornecimento baseado em compras públicas de
princípios ativos realizadas pelos laboratórios públicos, por meio de processos de
licitação nos quais não se faz distinção entre empresas nacionais ou estrangeiras.
Estas regras obedecem ao preconizado pela Organização Mundial do Comércio
(OMC) e pela lei brasileira de compras públicas (Lei 8.666/93). Neste modelo em
questão, o importante é obter preços os mais baixos possíveis. Estas iniciativas foram discutidas por Orsi et al. [1] em artigo no qual os autores alertavam para o risco
da saída das empresas nacionais da concorrência e para uma mudança no modelo
de oferta de ARVs. Ainda de acordo com os autores, a redução da concorrência interna poderia ameaçar o excelente resultado obtido pelo modelo de fornecimento
até então adotado, que logrou a redução dos preços dos medicamentos de primeira linha na primeira metade da década de 2000. De fato, um número menor
de empresas competindo acaba por forçar o aumento de preços, o que ocorreu no
Brasil em período recente [2; 3]. A discussão dessa questão é uma das motivações
deste capítulo.
Em 2005, o Acordo TRIPS102 passou a vigorar plenamente, incluindo os PEDs103
que haviam inicialmente optado por se beneficiarem do período de transição que
lhes fora facultado, como foi o caso da Índia, um dos principais fornecedores de
princípios ativos para os laboratórios públicos brasileiros. O Brasil não se beneficiou do período de transição e adequou sua legislação ao TRIPS em 1996. Adicionalmente, adotou o pipeline, um mecanismo que permitiu a concessão de patentes
retroativas para casos em que as patentes houvessem sido concedidas em outros
97 Ao longo do texto denominado de Programa.
98 Sigla em inglês para Vírus da Imunodeficiência Humana.
99 Sigla em inglês para Síndrome da Imunodeficiência Adquirida.
100 Medicamentos antirretrovirais.
101 Laboratório público farmacêutico ligado à Fundação Oswaldo Cruz.
102 Em português, Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio.
103 Países em desenvolvimento.
128
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
países e cujos objetos ainda não tivessem sido comercializados [4]. A concorrência
foi reduzida também, agora, entre os ofertantes internacionais de ARVs genéricos,
já que a possibilidade de oferta desses ARVs foi deslocada para o final da vigência
de suas patentes, salvo a concessão de licenças voluntárias ou a aplicação da salvaguarda de licença compulsória prevista no Acordo TRIPS. A consequência inevitável foi um aumento dos preços dos medicamentos pagos pelo Programa, a partir
de 2004 [5].
O objetivo desse capítulo é investigar quais são os contornos institucionais e as
estratégias de política industrial implantadas, entre 2003-2008, no Brasil, e se elas
permitem ou não dar continuidade à política de suprimento de ARVs genéricos
para garantir a sustentabilidade econômica do Programa frente às novas restrições
que emergiram após 2005. Na primeira seção, discute-se o contexto de mudança
e as implicações sobre o fornecimento de ARVs genéricos para o Programa. Consideram-se várias instituições e marcos jurídicos intervenientes no processo e seus
principais problemas e desafios decorrentes de uma série de eventos internos e
externos ao ambiente nacional. Entre eles irão se destacar: o novo regime de propriedade intelectual, o modelo de fornecimento através das compras públicas, as
condições de concorrência da oferta local e do fornecimento nacional e internacional de ARVs, os aspectos regulatórios de registro e boas práticas de manufatura, e
os investimentos em P&D.104 Na segunda seção, examina-se o que aconteceu no
marco da política industrial e tecnológica brasileira de saúde e as soluções intermediárias em curso. Na última seção, discute-se, à guisa de conclusão, quais seriam
as mudanças importantes e necessárias para que a política proposta alcance uma
maior eficácia, especialmente no estímulo à produção de ARVs genéricos.
II. Contexto de mudanças pós-2005
O ano de 2005, no qual terminou o prazo de transição facultado aos PED para satisfazer às restrições do TRIPS, marca a abertura de um novo período no que diz respeito à oferta de genéricos a preços reduzidos para o suprimento dos programas
voltados para o combate à Aids. Este novo período que se inicia é ainda mais delicado do que o passado, uma vez que estas restrições irão se mostrar especialmente
relevantes no que diz respeito à oferta de ARVs (ou dos princípios ativos que os
compõem) ditos de nova geração,105 já que a maior parte deles encontra-se ainda
104 Pesquisa e desenvolvimento.
105 Os medicamentos de nova geração são aqueles indicados, em princípio, para atender o desenvolvimento de resistência por parte dos pacientes que já utilizam medicamentos de primeira geração
por períodos prolongados. É preciso acrescentar que alguns dos medicamentos, antes reservados para
segunda linha, são hoje prescritos na primeira linha. Uma importante característica dos medicamentos
Capítulo 7. Reflexo das políticas industriais e tecnológicas de saúde brasileiras
129
sob proteção patentária. A consequência mais evidente é a redução da oferta potencial e real desses medicamentos.
O período pós-2005 coloca em xeque tanto o modelo de fornecimento, baseado em compras de princípios ativos e de ARVs pelo menor preço ofertado, através
da lei de compras públicas, quanto o modelo de oferta destes genéricos. Em ambos os modelos, de fornecimento e de oferta de ARVs, estão em curso adaptações
com a intenção de aportar inovadoras e relevantes soluções, pelo menos parciais,
para as novas restrições. Entretanto, elas ainda trazem embutidas muitas incertezas
que dificultam a criação de um novo pacto de sustentabilidade econômica de fornecimento de ARVs para o Programa como desenvolvido a seguir.
Um primeiro aspecto que merece atenção é a redução da concorrência real e
potencial entre os produtores de ARVs, incluindo a nacional e a internacional, fato,
em parte, herdado do período anterior pela redução da concorrência nacional, mas
reforçado a partir de 2005 pela redução da concorrência internacional. Este aspecto afeta a adequação do modelo de fornecimento de ARVs, através das compras
públicas, porque a lei que regula essas compras (Lei 8.666/93) pressupõe a existência de concorrência para o seu funcionamento ideal.
O fornecimento exclusivo de matérias-primas pela Índia e pela China e a produção exclusiva pelos laboratórios oficiais na área de medicamentos através de, respectivamente, licitações para compras públicas e estabelecimento de convênios,106
levou ao desaparecimento de alguns competidores privados locais que já estavam
produzindo esses produtos (como, por exemplo, a Microbiológica e o Labogen).
Além disso, os potenciais competidores que haviam, no início do funcionamento
do Programa, programado investimentos para se instalar no Brasil (como foi o caso
da Ranbaxy) optaram por continuar importando esses produtos. Adicionalmente,
o surgimento de um novo ator no processo de compras de medicamentos e princípios ativos, o broker – intermediário responsável por representar os produtores
indianos e chineses – acelerou ainda mais a redução da concorrência nas licitações,
já que ele reúne vários produtores para fornecimento em atacado.
Com efeito, as empresas nacionais produtoras de princípios ativos (ou insumos
farmacêuticos ativos), matérias-primas para a produção de ARVs, não têm participado das concorrências abertas pelos laboratórios públicos para compra de princípios ativos. A abertura das fronteiras praticada sistematicamente durante a década
de 1990 no Brasil afetou consideravelmente a indústria farmoquímica nacional,
expulsando do mercado um grande número de empresas e enfraquecendo a ca-
de nova geração é que eles estão protegidos por patentes, enquanto os de primeira linha, mais antigos,
não gozam desta proteção no Brasil.
106 A demanda para esses medicamentos é basicamente pública e tem sido atendida pelos laboratórios públicos através de convênios do Ministério da Saúde com os mesmos ou negociação direta com os
proprietários dos produtos novos ainda com patentes em vigor. Entre 2000 e 2008, 48,4% das compras
públicas de medicamentos foram feitas através de convênios e 41,4% através de compras diretas [3].
130
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
pacidade de oferta. As poucas empresas que continuaram atuando não obtiveram
sucesso nas licitações da década seguinte em grande parte devido às fortes assimetrias decorrentes da inexistência de isonomia tributária, segundo os produtores
locais. A legislação nacional privilegia a importação, isentando os importadores do
recolhimento do imposto industrial (IPI) e dos impostos sociais (PIS e Cofins). Ademais, só em 2009, o governo estabeleceu isonomia sanitária, através da Resolução
da Diretoria Colegiada da Anvisa107 – RDC 57. Esta Resolução estendeu a obrigatoriedade de registro aos insumos farmacêuticos ativos importados.108
Um segundo aspecto que merece atenção é que a legislação de compras públicas não exige a pré-qualificação dos fornecedores, o que pode onerar os custos
finais de produção e de gestão de compras, pelo não atendimento dos padrões
mínimos necessários de qualidade. A compra da matéria-prima pelo menor preço
e sem critério técnico de pré-qualificação impede a sua rastreabilidade e acaba
criando a necessidade de purificação da matéria-prima importada para a produção
de medicamentos, onerando o custo final dos mesmos pelo atraso de entrega e
reprocessamento, ainda que o princípio ativo tenha sido comprado pelo menor
preço. Alternativamente, a matéria-prima seria devolvida, o que elevaria também o
custo de gestão de compras. A primeira questão leva a outro problema enfrentado
pelos laboratórios públicos brasileiros e outros laboratórios que também importam a matéria-prima: romper a barreira técnica para o registro dos medicamentos
genéricos devido a não rastreabilidade dos fornecedores, o que faz com que todos
os medicamentos ARVs produzidos pelos laboratórios públicos, no Brasil, sejam registrados como similares. A primeira e única exceção foi o medicamento Efavirenz,
produzido por Farmanguinhos, com registro obtido em dezembro de 2008. A solução adotada nesse caso será mais bem discutida na próxima seção.
Todavia, a agência reguladora do registro de medicamentos brasileira, a Anvisa, através da RDC 134/03, estabeleceu prazo até o ano de 2009, para que todos
os medicamentos similares na classe de antirretrovirais apresentem, na ocasião da
renovação de seu registro, testes de bioequivalência e biodisponibilidade com os
produtos de referência. Esta exigência vem representando um desafio para os laboratórios públicos brasileiros, tanto por exigir custos adicionais à comercialização
de seus produtos quanto pela necessidade de ter fornecedores de matérias-primas
certificadas e com rastreabilidade de seus fornecedores.
Um terceiro aspecto digno de nota é a ausência de investimentos significativos em P&D. Uma de suas causas é o tamanho reduzido das empresas nacionais: o
setor industrial brasileiro é constituído por 65,2% das empresas com 10 a 29 pes107 Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
108 Ainda que tanto a isonomia tributária quanto a isonomia sanitária já estivessem previstas, de forma
geral, pela lei 8.666/93, em seu art. 42, § 4º, apenas em 2008, com a publicação da Portaria Interministerial 128, mais precisamente no art. 5 º, no que tange aos aspectos tributários, e, em 2009, através da RDC
57, no que tange aos aspectos sanitários, é que foram estabelecidos parâmetros para a sua aplicação em
licitações internacionais para aquisição de fármacos e medicamentos.
Capítulo 7. Reflexo das políticas industriais e tecnológicas de saúde brasileiras
131
soas ocupadas e somente 1,7% de empresas com mais de 500 pessoas ocupadas.
O setor farmacêutico segue o padrão da indústria brasileira e também é composto
por um grande número de pequenas empresas [4]. Outra causa é que não se tem
investido o suficiente em pesquisa nos laboratórios públicos para capacitação de
reprodução ou até mesmo melhoria dos produtos patenteados ainda que em escala laboratorial; os poucos investimentos realizados não articulam os objetivos da
saúde e de desenvolvimento industrial.
Gadelha [6] mostra como as políticas de saúde e de desenvolvimento industrial
se instituíram no Brasil segundo lógicas diferentes e, por muito tempo, permaneceram completamente dissociadas. Guimarães [7] complementa afirmando que é
necessária uma articulação da agenda de pesquisa em saúde às políticas públicas
da área de saúde. O autor sugere que esta articulação seja liderada pelo MS109 com
possibilidade de criação de um órgão fomentador de pesquisa em áreas de necessidade específicas da população brasileira. Esta opção teria que contar com forte
componente de subvenção econômica do governo dado que as empresas privadas
locais não investem substantivamente em P&D. De acordo com dados da terceira
edição da pesquisa de inovação tecnológica – PINTEC III [8], as empresas farmacêuticas privadas investiram apenas 1,27% da receita líquida de vendas em atividades de
P&D entre 2003 e 2005, considerando atividades internas (0,72%) e externas (0,55%)
às empresas. Desta forma e, aliado ao fato de que a produção de novos ARVs exige
o aprendizado em relação a novas moléculas ainda sob proteção patentária, tem se
constatado um enfraquecimento da capacidade de aplicar efetivamente a licença
compulsória, que exige capacitação industrial e tecnológica prévias.
Ainda associado à descoordenação dos investimentos em P&D, chama-se atenção para o fato de que as patentes não estão sendo utilizadas como instrumento
de direcionamento da política industrial e tecnológica. Seu monitoramento em
muito poderia acelerar o processo de produção de versões genéricas dos ARVs,
colaborando não só para a redução dos preços como para o aumento de credibilidade da capacidade industrial e tecnológica do país em prol das negociações
de preço dos produtos patenteados. Um exemplo dessa falta de coordenação de
investimentos foi o indeferimento do pedido e sua posterior confirmação que resultou na não concessão da patente para o Tenofovir, respectivamente, em agosto de 2008 e junho de 2009, com base na falta de atividade inventiva. Embora se
observe a mobilização do MS e dos laboratórios oficiais para a produção local do
medicamento, o Tenofovir genérico já poderia estar no mercado desde 2009. Além
do monitoramento das patentes com data de expiração próxima, poderia ser utilizado como instrumento de direcionamento das políticas industriais e tecnológicas,
o controle do cumprimento da obrigatoriedade legal de produção local após três
anos de concessão da patente prevista na legislação brasileira para produtos que
tenham viabilidade de mercado local.
109 Ministério da Saúde.
132
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Um quarto, e último, aspecto é o problema de gestão dos laboratórios públicos.
Estes foram modernizados e colocados em condições técnicas mais adequadas,
mas não tiveram um desenvolvimento paralelo na questão gerencial produtiva e
comercial. A antiga Central de Medicamentos, extinta em 1990, era responsável
não só pelo registro dos laboratórios públicos, como pelos investimentos em P&D
e ainda pelo processo de compras de matérias-primas e medicamentos, exercendo
um papel coordenador importante sobre os laboratórios públicos. Esta coordenação, após a sua extinção, não foi substituída, ainda que o MS tenha estabelecido,
em 2005, através da Portaria MS 843/05, a Rede Brasileira de Produção Pública de
Medicamentos com este propósito, suas ações ainda não têm surtido efeito. Ao
contrário, os antigos métodos de gestão foram mantidos, frente a importantes mudanças na política de saúde e nos métodos de compra, em prejuízo flagrante dos
resultados obtidos [9; 10; 11].
Na próxima seção, examina-se em que medida as políticas industriais e tecnológicas para o setor de saúde são capazes de responder aos desafios apontados
nesta seção.
III. Políticas industrial e tecnológica
brasileiras, 2003-2008
A posse do presidente Lula, em 2003, implicou na eleição de uma nova agenda de
desenvolvimento econômico e social. Para criá-la e torná-la efetiva seria necessário que os diversos atores envolvidos compartilhassem as mesmas ideias acerca
do caminho a ser trilhado em relação às transformações que a sociedade deveria
buscar para o pagamento da dívida social. Entre as várias dimensões da inclusão
social, proposta na nova agenda, destaca-se, nesta seção, a dimensão voltada para
a saúde.
Por um lado, este novo caminho implicou na adoção de uma nova política industrial e tecnológica de cunho bastante heterodoxo voltada para o setor de fármacos e, em seguida, para o complexo da saúde. Por outro lado, manteve-se o
poder e a capacidade de influência dos setores mais conservadores da sociedade,
que estão dificultando a efetivação das mudanças necessárias para sua realização.
Estas dificuldades são os resultados da presença de visões distintas do caminho
a trilhar para o processo de inclusão social da população, através da saúde. Segundo Erber [12], na disputa pela hegemonia entre os interesses divergentes sobre o
melhor caminho a trilhar, existem pontes consensuais entre as duas correntes denominadas pelo autor, respectivamente, de institucionalista restrita e neo-desenvolvimentista. As possíveis pontes consensuais entre elas são a percepção de que os
pobres tendem a ser os mais prejudicados em períodos de alta inflação e a neces-
Capítulo 7. Reflexo das políticas industriais e tecnológicas de saúde brasileiras
133
sidade de ampliar-se a capacidade produtiva e a produtividade sistêmica, através
das melhorias na infraestrutura, incluindo a saúde. Entretanto, ainda que estes dois
grupos habitem o espaço político brasileiro, o primeiro grupo, aquele que privilegia
a estabilidade dos preços, juros altos e taxas de câmbio flexível, é, para o autor, dominante no período entre 2003 e 2008, dificultando as transformações necessárias
à realização da nova agenda de desenvolvimento econômico e social.
Em resumo, ainda que exista uma proposta de política industrial e tecnológica
bastante avançada em pensar transformações profundas para a área de saúde, ela
não é consensual entre os atores envolvidos no processo de sua execução. A seguir,
serão descritas as principais políticas e as suas dificuldades de operação.
III.1. PAC da Saúde, PITCE e PDP
A nova política industrial e tecnológica da saúde está contida nos seguintes documentos governamentais: PAC da Saúde,110 PITCE111e PDP.112 O PAC da Saúde é
composto por sete eixos principais de atuação do Ministério da Saúde. O eixo três é
direcionado à melhoria e fortalecimento do CIS113 para redução do crescente déficit
da balança comercial brasileira em todos os segmentos ligados ao setor e conta
com um orçamento de R$ 2 bilhões. O propósito da linha de atuação desse eixo é
permitir a associação dos objetivos do SUS114 com a transformação necessária da
estrutura produtiva do país, tornando-a compatível com um novo padrão de consumo em saúde e com novos padrões tecnológicos adequados às necessidades da
saúde [13].
A PITCE, de 2003, e a PDP, de 2008, têm como diferencial em relação às políticas industriais anteriores o foco na inovação a partir de uma visão sistêmica do
processo. Em ambos os documentos, os setores de fármacos e medicamentos são
escolhidos como prioritários para o desenvolvimento produtivo do país. Essa escolha foi posteriormente atenuada em favor de políticas horizontais para todo o CIS,
como a redução dos preços dos medicamentos para maior acesso da população, a
busca de uma nova coalizão entre capital público e privado através das parcerias
público-privadas, a redução da dependência externa de importação de insumos e
tecnologias, a ênfase na importância da organização das atividades de inovação no
setor público e de incentivos para o setor privado.
As principais semelhanças e diferenças entre a PITCE e a PDP são: 1) manutenção da eleição do setor (fármacos) e ampliação de sua abrangência para todo o CIS,
que envolve os setores de produção de equipamentos médicos hospitalares, de
110 Programa de Aceleração do Crescimento da Saúde.
111 Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior.
112 Política de Desenvolvimento Produtivo.
113 Complexo Industrial da Saúde.
114 Sistema Único de Saúde.
134
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
serviços hospitalares, de fármacos e de medicamentos; 2) ampliação também do
número de ministérios, agências e instrumentos de políticas envolvidos; 3) no caso
do CIS os responsáveis pela gestão são o MS e um comitê executivo formado por
MS, MCT115 e BNDES.116
Como visto, Gadelha [6] destaca o fato de que há pouca interação entre as políticas de saúde e de desenvolvimento produtivo e que mesmo nos casos das avaliações tecnológicas em saúde não se pode dizer que a introdução de variáveis
econômicas tenha como objetivo estabelecer uma relação com as políticas de desenvolvimento. O autor argumenta que a PITCE indicou uma mudança positiva no
sentido da incorporação de “segmentos-chave do complexo industrial da saúde” na
agenda de política industrial do governo, e que a PDP, dando continuidade à PITCE,
segue na direção da articulação das políticas de saúde e industrial incorporando a
dimensão do CIS, dedicando um programa estratégico exclusivo para o mesmo.
Em termos de atuação efetiva no âmbito da PITCE, com ampliação e expansão
na PDP, a atuação do BNDES tem sido uma das mais consistentes e melhor avaliada
pelas empresas privadas no sentido de consolidação do CIS. Em 2004, foi criado o
Profarma117 com o objetivo de modernização, reestruturação e expansão da capacidade produtiva, além do alinhamento das empresas aos aspectos regulatórios.
Em maio de 2007, foi realizada uma revisão do programa na qual se concluiu que
a primeira etapa havia sido completada. O Programa acumulou uma carteira de 47
operações, totalizando uma solicitação de financiamentos de R$ 935 milhões [14].
Foi então estabelecida uma segunda fase do programa, com ênfase na inovação e
exportação, além da inclusão dos laboratórios oficiais entre os possíveis clientes a
serem atendidos pelo Programa. Nesta nova fase, a atuação do BNDES busca uma
melhor articulação entre a política industrial e a política de saúde através de uma
aproximação com o MS. Um outro foco de atuação do Banco é o estímulo às fusões
e aquisições no setor nacional, permitindo a consolidação de empresas nacionais e
sua maior competitividade em nível internacional.
No âmbito da PDP, ressalta-se a criação118 do GECIS,119 com o objetivo de promover medidas e ações concretas do marco regulatório brasileiro referente à estratégia de desenvolvimento do governo federal para a área da saúde. O GECIS tem
competência para desenvolver e implantar, de forma integrada, o marco regulatório necessário para a concretização das estratégias e diretrizes previstas na PDP e
no PAC da Saúde, promovendo a articulação dos órgãos e entidades envolvidas,
115 Ministério de Ciência e Tecnologia.
116 Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.
117 Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Cadeia Produtiva Farmacêutica e, em 2007, Programa
de Apoio ao Desenvolvimento do Complexo Industrial da Saúde.
118 A partir do Decreto de 12 de maio de 2008.
119 Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde.
Capítulo 7. Reflexo das políticas industriais e tecnológicas de saúde brasileiras
135
com vistas a viabilizar um ambiente econômico e institucional propício ao desenvolvimento do CIS.
O novo quadro legal e institucional brasileiro para o CIS, mesmo que bastante elaborado e desenhado nos documentos governamentais, ainda está longe de
estar consolidado, refletindo o interesse antagônico entre os dois grupos e suas
distintas visões sobre o desenvolvimento econômico e social através da saúde. Em
uma das visões bastaria construir as instituições para que as falhas de mercado
fossem corrigidas, enquanto para a outra seriam necessárias profundas transformações em prol da saúde. Estas divergências dão lugar a iniciativas e soluções pensadas para contornar a ausência de mudanças institucionais capazes de solucionar
os impasses na produção e fornecimento de ARVs.
III.2. Iniciativas e soluções intermediárias
Entre as iniciativas mais representativas do conflito de interesses entre os atores,
encontra-se o Anteprojeto de Lei de Compras Governamentais para o CIS, cuja minuta de texto foi elaborada pelo GECIS em março de 2009. Os aspectos jurídicos
foram avaliados em julho de 2009 e a versão final a ser levada ao Congresso Federal
foi aprovada em agosto do mesmo ano.
Esse Anteprojeto pretende estabelecer as normas aplicáveis às licitações e contratos de prestação de serviços e de compras dos produtos necessários ao cumprimento do art. 196 da Constituição Federal – que determina que a saúde seja direito
de todos e dever do Estado –, no que tange, em âmbito nacional, ao CIS. Além
disso, deve definir o CIS e seu rol de produtos, vinculando a aplicação dos termos
do Anteprojeto de Lei a ato específico do MS. Entre as proposições inseridas nesse
Anteprojeto estão: o estabelecimento da criação dos Programas de Avaliação de
Conformidade, a serem realizados pela Anvisa e pelo Inmetro,120 a instituição do
“Regime Especial de Licitações e Contratos destinados à Aquisição de Bens e Serviços Inovadores”, com o propósito de possibilitar uma diferenciação na aquisição
dos produtos e serviços de interesse estratégicos para o CIS e de induzir a inovação,
a isonomia competitiva nas licitações internacionais, a inclusão de novo critério de
Dispensa de Licitação, a adoção de Prêmio de Resultado e a permissão de aquisição
pelo regime de técnica ou técnica e preço, entre outras.
O Anteprojeto, se tornado projeto e aprovado como lei, representará uma inovação institucional muito importante para contornar os constrangimentos da Lei
8.666, e garantir que as soluções intermediárias até agora adotadas não sejam consideradas razões de insegurança jurídica anteriormente apontadas.
Enquanto esse novo marco regulatório relativo às compras governamentais
está sendo discutido e examinado, além da Portaria MS 978/08, foram editadas
120 Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial.
136
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
algumas Portarias pelo MS, tais como: a Portaria MS 3.031/08, que dispõe sobre
critérios a serem considerados pelos Laboratórios Oficiais de produção de medicamentos em suas licitações para aquisição de matéria-prima; e a Portaria MS 374/08,
que institui, no âmbito do SUS, o Programa Nacional de Fomento à Produção Pública e Inovação no CIS. Além dessas Portarias do MS, foi publicada a Portaria Interministerial121 128/08, que estabelece as diretrizes para a contratação pública de
Medicamentos e Fármacos pelo SUS.
Apesar de serem iniciativas importantes e se encontrarem ao abrigo da lei, essas Portarias não estão sendo respeitadas em benefício do CIS, da forma que se
pretendia quando foram criadas, ilustrando a divergência existente entre os agentes. Farmanguinhos foi o único laboratório público que, até o momento, realizou,
em alguns casos, os procedimentos previstos nessas Portarias, em benefício do CIS.
Nenhum outro laboratório utilizou-as para subsidiar seus processos de compras e
beneficiar o setor industrial no Brasil, mantendo os procedimentos que consideram o menor preço como critério exclusivo na escolha final dos fornecedores de
produtos ou prestadores de serviços para a saúde.
A estratégia utilizada por Farmanguinhos para solucionar as dificuldades na obtenção, através de licitação segundo os procedimentos da lei, de matérias-primas
de boa qualidade, foi a da compra de “serviços de produção de matérias-primas
(princípios ativos)”, no lugar das compras de matéria-prima propriamente dita.122
Através da compra de serviços foi possível, ao comprador, inspecionar as fábricas
produtoras de matérias-primas e rastrear todo o processo de produção, evitandose futuros problemas de especificação. A expectativa é estimular que as empresas
fabricantes de matérias-primas tenham sítios produtivos no Brasil, pois, caso contrário, o custo de acompanhamento do processo seria muito alto e, portanto, as
mesmas não poderiam ser fornecedoras dos laboratórios públicos.
Um outro caso que ilustra a utilização deste modelo por Farmanguinhos é o
da produção do Efavirenz, cujas patentes tiveram seu licenciamento compulsório
decretado no ano de 2007 [15]. A aquisição do princípio ativo se deu através de
um consórcio formado por três laboratórios privados nacionais pré-qualificados
que, ainda que tenham adquirido intermediários químicos da China, realizaram,
no Brasil, a última etapa da síntese química, permitindo, desta forma, a rastreabilidade e a garantia de qualidade desse princípio ativo. Tratou-se de uma parceria
121 MS, MCT, Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
122 As empresas vencedoras e respectivos produtos encomendados através dos primeiros editais que
seguiram o modelo da compra de serviços foram, no caso de medicamentos: Blanver (São Paulo) – AZT
+ Lamivudina; Cristália (Campinas) – AZT + Lamivudina; e Mappel (Rio de Janeiro) – AZT; Lamivudina;
e Nevirapina. E no caso dos princípios ativos, as empresas vencedoras foram: Nortec (Rio de Janeiro) –
AZT; e Globe (Campinas) – Lamivudina.
Capítulo 7. Reflexo das políticas industriais e tecnológicas de saúde brasileiras
137
público-privada estabelecida com o laboratório público por meio de um contrato
de prestação de serviços.123
Estas estratégias permitiram a pré-qualificação das empresas capazes de fornecer o princípio ativo, o estabelecimento do consórcio, e a parceria com o laboratório público por meio de contratos de prestação de serviços, constituindo-se
em um modelo de compras alternativo ao previsto atualmente na Lei de Compras
Públicas. Este novo modelo contém uma nova estratégia capaz de permitir a aquisição de matéria-prima cuja qualidade e rastreabilidade estejam de acordo com os
critérios exigidos para o registro dos medicamentos como genéricos, entre eles a
vedação do registro de mais de três fornecedores qualificados.
Embora Farmanguinhos venha tentando consolidar o novo modelo de compras, este ainda se encontra sob a ameaça de ações judiciais, que se fundamentam
na suposta ilegitimidade dos contratos de compras de serviços de produção de
matérias-primas e no desrespeito à Lei de Compras Públicas atualmente em vigor.
Mais uma vez, caberá à Justiça decidir, com base na interpretação da legislação,
se as medidas propostas com o objetivo de beneficiar o CIS não serão interrompidas. O descompasso entre essas medidas e a legislação de compras públicas, cuja
discussão tem avançado muito lentamente, torna os laboratórios pouco dispostos
a tomar iniciativas como àquela de Farmanguinhos por se tornarem vulneráveis
às decisões judiciais. Dessa forma, as Portarias são iniciativas importantes, mas insuficientes para garantir a segurança dos contratos que se baseiam nas suas determinações. Essa discussão é uma ilustração importante de que nem sempre há
aderência entre a proposta de política e a sua execução.
Ainda que as Portarias não sejam a solução definitiva para as compras públicas,
dentre as Portarias publicadas, é importante destacar o papel da Portaria MS 978/08,
que lista vários produtos de alto valor agregado de interesse do MS a serem fabricados no Brasil, através de parcerias formadas entre os laboratórios públicos e empresas farmoquímicas nacionais e estrangeiras. Aqui, claramente se reconhece uma
faceta da visão desenvolvimentista de aproximação dos capitais públicos e privados
(nacionais e estrangeiros), denominada pelo autor Peter Evans de aliança tripartite.
Os principais objetivos dessas parcerias são o fortalecimento dos laboratórios
públicos, a ampliação de seu papel de regulação do mercado, o estímulo à produção local de produtos de alto custo e/ou de grande impacto sanitário e social e o
fomento ao desenvolvimento da capacidade produtiva da indústria farmoquímica
nacional, possibilitando a verticalização da produção e ainda a capacitação tecnológica dos laboratórios através de transferências de tecnologia.
Essas parcerias foram coordenadas pela Secretaria de Ciência e Tecnologia de
Insumos Estratégicos do MS. No final do ano de 2009, nove termos de compromissos entre o MS e laboratórios públicos e privados foram formalizados, com o obje123 Para um melhor detalhamento desta ilustração ver D’Almeida et al., 2008 [15].
138
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
tivo de garantir a compra pública de 14 medicamentos, entre eles um ARV (Tenofovir), por preços determinados e descrescentes durante o período do acordo. Esses
termos deverão ser revistos anualmente, uma vez que os orçamentos públicos são
elaborados ano a ano. A economia média por ano estimada é da ordem de R$ 200
milhões.
Na opinião de alguns atores do processo,124 a Portaria MS 978 é o melhor Programa de governo dos últimos 20 anos para empresas da cadeia farmacêutica de
base científica e tecnológica, sendo uma excelente oportunidade para a criação de
novos concorrentes na cadeia farmacêutica brasileira, com novos desenhos organizacionais e ideias inovadoras, e com a possibilidade, real, de desenvolvimento
totalmente verticalizado no Brasil de todas as etapas do processo produtivo, sem
necessidade de “transferência” de tecnologia exógena.
Os principais desafios desse novo quadro institucional são: a necessidade da
centralização das compras, atualmente descentralizadas entre Estados e Municípios e que terá de ser feita pelo MS para viabilizar todo o Projeto; a elaboração
dos instrumentos jurídicos para a efetivação das parcerias estabelecidas no âmbito
dos acordos entre as empresas farmoquímicas e os laboratórios públicos; o fato
de a maioria dos medicamentos escolhidos agregarem pouco valor à indústria farmoquímica, apesar de os medicamentos prontos terem alto valor agregado após
a incorporação dos princípios ativos; a dificuldade de concretização de algumas
parcerias entre as empresas farmoquímicas e os laboratórios públicos, além da já
conhecida dificuldade de gestão desses laboratórios. Em outras palavras, apesar
da criação de uma política industrial e tecnológica voltada para a saúde, o novo
quadro institucional está tendo dificuldades para sanar grande parte dos desafios
apontados na seção II.
IV. Considerações finais
As limitações dos produtores brasileiros não se relacionam apenas aos reflexos da
mudança observada no regime de proteção patentária após 2005. Como visto, o
Brasil adotou o regime de patentes antecipadamente, em 1996, e ainda incluiu o
mecanismo de pipeline (retroação de concessão de patentes), reduzindo o espaço de concorrência para atuação dos concorrentes nacionais e causando prejuízos
para o orçamento público. As alterações na produção e comercialização de genéricos na Índia125 não afetaram o fornecimento de ARVs para o Brasil, em razão do
grande fornecedor de intermediários para a indústria farmoquímica brasileira ser a
124 Entre eles a Abifina, associação que representa as empresas do segmento farmoquímico.
125 Quando esse país ficou impedido de fornecer os princípios ativos para a produção brasileira de
medicamentos ARVs, cujas patentes foram concedidas após essa data.
Capítulo 7. Reflexo das políticas industriais e tecnológicas de saúde brasileiras
139
China e a maioria dos intermediários básicos não estarem patenteados. Entretanto,
a redução da concorrência internacional de genéricos, a partir da oferta indiana,
afetou o modelo de fornecimento de compras públicas locais no que diz respeito à
possibilidade de redução do preço dos ARVs.
Outros fatores relativos ao contexto nacional impeditivos da execução de uma
política industrial e tecnológica capaz de fortalecer a indústria local fornecedora
de princípios ativos foram enumerados. Entre eles, destacamos o marco legal das
compras públicas (Lei 8.666) e a consequente dependência dos laboratórios públicos de importação de princípios ativos, a redução da concorrência local e internacional de produtores genéricos, os baixos investimentos em P&D e a decorrente incapacidade de produzir medicamentos substitutos aos novos ARVs lançados pelas
empresas multinacionais, e, finalmente, o despreparo gerencial dos laboratórios
públicos.
A principal limitação no suprimento de ARVs genéricos pós-2005 é que a indústria farmoquímica brasileira, por múltiplas razões, não participou de modo significativo do surgimento da indústria de genéricos brasileira. Dessa forma, a produção
de genéricos no Brasil foi desenvolvida e permanece fortemente dependente da
aquisição de princípios ativos importados. A causa mais importante da exclusão
da farmoquímica nacional do processo de compras deu-se por uma concorrência
desleal entre produtos nacionais e importados, graças à falta de isonomia tributária e sanitária. Um recente movimento para corrigir este curso foi a aprovação pela
Anvisa da RDC 57/09, que inaugura o registro para os princípios ativos importados,
marcando o início da isonomia sanitária entre os fornecedores nacionais e estrangeiros. Medidas de estímulos à produção nacional através das parcerias públicoprivadas têm sido também realizadas, conforme discutido anteriormente.
O capítulo analisou as principais dificuldades de execução das políticas industrial
e tecnológica formuladas entre 2003 e 2008, exemplificando-as através da análise
de fornecimento de ARVs. A concepção das políticas se traduziu em leis e regulamentações, mas também na atuação dos atores na operação do complexo da saúde. Nem sempre houve uma perfeita aderência entre as regras formais e as de operação, refletindo um flagrante conflito de interesses entre os atores participantes do
processo e levando a uma maior lentidão na consecução da política proposta.
Conclui-se que existe uma fragilidade das políticas industrial e tecnológica
que pode ser resumida na incapacidade de fomentar uma indústria farmoquímica nacional para aumentar a competição e sustentar preços baixos. Mais do que
nunca uma política de Estado consistente, que privilegie a farmoquímica nacional,
de forma rápida e eficiente, é atualmente necessária. Outras medidas de política
industrial e tecnológica neste sentido são esperadas. Somente a este custo a indústria nacional poderá ocupar todo o seu potencial na oferta de medicamentos para
apoiar a política de saúde pública do país.
140
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
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Capítulo 7. Reflexo das políticas industriais e tecnológicas de saúde brasileiras
141
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142
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
CAPÍTULO 8
Institutional and procedural challenges to
generic production in India:
antirretrovirals in focus126
Cassandra Sweet
Keshab Das
Summary: The Indian pharmaceutical industry has played a central role in providing generic antirretroviral medicine to national and global antirretroviral therapy
programs over the last two decades. Indeed it is no exaggeration to say that the
industry has become the primary supplier of medicines, and in particular, of antirretroviral medicines, to the developing world, through both international organizations and nation-level antirretroviral access programs. Given India’s important
role as a global supplier, this chapter reviews the legal and political situation in
India with special attention to adaptations in regulatory procedure and trends
in jurisprudence since India’s adherence to the World Trade Organization (WTO)
Trade-related Aspects of Intellectual Property Rights (TRIPS) agreement in 2005.
The chapter comprises three sections. The first reviews the historic role of India as a
supplier of antirretroviral medicines. The second outlines some of the key rulings in
Indian courts as the interpretation of the new patent laws are tested. The third section presents an analysis of recent challenges to the Bolar exception in India. The
aim of the chapter is to introduce the reader to some of the most crucial changes
in Indian patent law and procedure which are likely to shape production of local
antirretroviral medicine.
Key words: Indian pharmaceutical industry, HIV/AIDS, antirretrovirals, intellectual
property.
The ability to transform HIV/AIDS from a veritable death sentence into a manageable, chronic disease is largely attributable to two major shifts over the last decade:
first, the political will to confront the disease and, second, the technical ability to
supply antirretroviral medicine. Recent gains in the expansion of access to antirret-
126 Thanks are due to Benjamin Coriat, Bernard Larouzé, Lia Hasenclever, Tara Nair and Madhu J for their
helpful comments and interventions in preparing this chapter.
rovirals have been unprecedented. Antirretroviral access has expanded remarkably
over the last decade: from the period 2003-2007 for example, the number of people in the developing world receiving antirretrovirals increased more than seven
times [1]. By the end of 2008, more than four million people in low and middle
income countries were receiving antirretroviral therapy, up from nearly three million just the previous year. More than a quarter of a million of those receiving antirretrovirals were children [2]. These achievements, however, remain overshadowed
by enormous challenges facing the global community. In 2007, 33 million people
were living with HIV/AIDS, 2.7 million became infected with the virus and 2 million
people died as a result of causes related to the virus. UNAIDS reports that only a
third of those in developing countries needing antirretroviral therapy are receiving
it [3].
For those who have begun treatment, major barriers remain for their continued
access. In the developing world, where 95 per cent of the people with HIV/AIDS
reside, issues regarding the supply of the first-line medicines have been largely
hampered by accessibility and adaptability [4]. Although it is now widely accepted
that antirretroviral therapy programs can be effectively managed in developing
countries [5], putting an end to earlier debates about the dangers of antirretroviral
access provoking resistances [6, 7], the rising costs of new first-line and second-line
therapies are increasingly prohibitive [8]. The cost of new first-line and second-line
antirretroviral regimens are approximately US$ 610 and US$ 1,660 on average perperson per year (respectively) compared to the old generation of first-line treatment US$ 88 [9]. For those patients on antirretroviral, access to the second-line
treatments will be critical if the gains of the first line-treatments are to be preserved.
The Indian pharmaceutical industry has played a central role in providing generic antirretroviral medicine as national and global antirretroviral programs have
expanded their operations over the last decade. More than 80 per cent of global
antirretroviral generics are sourced from Indian suppliers. In 2008, Indian paediatric antirretroviral and adult nucleoside and non-nucleoside reverse transcriptase
inhibitory products represented 91 per cent and 89 per cent of global purchase
volumes127 [10]. India’s role as the so-called “pharmacy of the developing world”128
and as a key supplier of HIV/AIDS antirretrovirals129, stems from legal and industrial
systems, which until 2005, did not recognize product patents. Since 2005, 70 per
cent of antirretrovirals purchased by the UNICEF, IDA Foundation, the Global Fund,
127 Waning et al provide a fascinating survey of the depth India’s global antirretroviral supply to the
developing world, tracking over 17,600 purchases of antirretroviral tablets made by 115 low and middle
income countries from 2003-2008. They show the dominance of the Indian generic products and their
comparative price advantage over non-generic suppliers [10].
128 In addition, over 80 per cent of the stock comprising Médecins Sans Frontières (MSF), HIV/AIDS
treatment programs are supplied by Indian firms. Doctors Without Borders, December 18, 2006. http://
www.doctorswithoutborders.org/news/access/novartis_qa.cfm. Accessed December 28, 2006.
129 Unni Karunakara, Medical Director of MSF’s Campaign for Access to Essential Medicines, http://
www.accessmed-msf.org/. Accessed February 7, 2007.
144
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
and the Clinton Foundation130 are being sourced from Indian producers [11]. In
addition to supplying generics, India is also a major source of active pharmaceutical ingredients – those bulk inputs which have been fundamental sources for the
generic programs pursued in both Brazil and Thailand.
With India’s harmonization of patent standards with those set by the WTO’s
Agreement on Trade-related Aspects of Intellectual Property Rights (TRIPS), its
pharmaceutical firms will no longer be able to provide generic copies of antirretroviral medicines for which patent applications have been filed according to the new
rules set in India’s Patent Office. The end of this system will have vast implications
for the access to medicine issues around the world, in particular for populations
in the developing world, where over 90 per cent of purchases are made through
out-of-pocket payments and medicines account for the second largest household
expenditure [12].
With this backdrop, this chapter explores the post-2005 situation in India with
special attention to adaptations in regulatory procedure and legal jurisprudence
which could affect the production decisions of Indian generics pharmaceutical
companies131. The chapter comprises three sections. The first reviews the historic
role of India as a supplier of antirretroviral medicine. An analysis of the three areas
of patent law currently tested in Indian courts is presented in the second section.
The third and final section reviews debates regarding the implementation of the
Bolar exception and so-called “patent linkage” in India. In conclusion, we reflect on
how these changes may influence the strategies taken by the Indian pharmaceutical firms. The aim of this exercise is not to provide a complete picture of transformations in Indian law, but to focus on those which are most relevant to production by
the local industry.
130 The Clinton Foundation HIV/AIDS Initiative (CHAI) supports national governments to expand highquality care and treatment to people living with HIV/AIDS. CHAI offers reduced prices for antirretrovirals
to members of its Procurement Consortium. CHAI has agreements with eight manufacturers of
antirretroviral formulations, active pharmaceutical ingredients and/or pharmaceutical intermediates:
Aurobindo Pharma, Cipla Ltd., Hetero Drugs, Macleods Pharmaceuticals, Matrix Laboratories, Ranbaxy
Laboratories, Strides Arcolab and, Zhejiang Huahai Pharmaceutical Co. The antirretrovirals included in
CHAI’s pricing agreements are: abacavir, didanosine, efavirenz, emtricitabine, lamivudine, lopinavir/
ritonavir, nevirapine, stavudine, tenofovir and zidovudine.
131 The larger aim of the project, which will comprise a two year period, is to investigate how the
production of antirretrovirals has changed since the implementation of TRIPS standards and to identify
how it will affect access to antirretrovirals. This research project, directed by Dr. Keshab Das and linked
in tandem with the grant application coordinated by Professor Benjamin Coriat of University Paris 13,
“Production et approvisionnement en antirétroviraux génériques dans l’après 2005 : une analyse à
partir des cas du Brésil et de l’Inde” proposes a three-fold but interrelated set of objectives – namely,
legal, industrial and access – towards understanding the consequences of the product patent regime
on production of first- and second-line antirretrovirals and their respective active principal ingredients
by Indian generic firms. The proposed research will benefit from the larger research project directed by
Professor Benjamin Coriat in collaboration with Dr. Lia Hasenclever of the Universidade Federal do Rio
de Janeiro.
Capítulo 8. Institutional and procedural challenges to generic production in India
145
“The pharmacy of the developing
world” in transformation
A contradiction confronts current efforts at dealing with the HIV/AIDS epidemic.
Globally, whereas the political motivation to address the HIV/AIDS crisis has gained
momentum132, the future source for procurement of affordable antirretrovirals, in
particular, second-line treatments, appears increasingly dubious133. Much depends,
at least in the short and medium term, on outcomes in the Indian patent system,
where issues in the implementation of international patent laws are currently under
debate. Throughout the 1990s, while other developing countries experienced a decline in their ability to produce the active pharmaceutical ingredients necessary for
antirretroviral production, India’s capacity expanded with growing demand134 [13].
During the period 2000-2005, Indian generic competition was essential for reducing the first-line AIDS drug prices from approximately 12,000 dollars per year to 150
dollars per year. In addition to providing a source of competitive antirretrovirals
prices, Indian firms’ ability to innovate on molecules patented elsewhere resulted
in a series of technical improvements to antirretroviral therapies. One such critical breakthrough ushered in by the Indian firms was the development of a “fixeddose combination” drug compounding three antirretrovirals in a single dose135.
During the 1990s, Asian manufacturers, largely Indian and Chinese bulk producers, played a central role in the ability of national governments, such as Brazil and
Thailand, to scale up programs for universal access [14-16]. India’s role as a global
supplier of low-cost medicines is rooted in the nation’s early policies to foster national industrialization in the pharmaceutical sector. In 1970, the Indian Congress
132 The scaling up of programs on a global level, from the Global Fund to UNITAIDS, has been
compounded by increased focus on the issue at the national level. A recent paper, “Programme
Implementation Guidelines for a Phased Scale up of Access to Antirretroviral Therapy for People Living
with HIV/AIDS” from the National AIDS Control Organization (NACO) highlights the importance of both
global initiatives promoting the use of antirretroviral treatment in addressing the HIV/AIDS epidemic,
and the drop in prices for those treatments. See, NACO, http://www.nacoonline.org/guidelines/
guideline_1.pdf
133 Current production of the first-line antirretrovirals are sufficient, but as the Director General
of India’s NACO, Dr. Quraishi, puts it, “the problem will come when we need second line drugs... I’m
personally very worried about the second line drugs.” AIDSMAP, “India, China or Brazil, Who will produce
the second line antirretrovirals?”, Reproduced from Health and Development Networks SEA-AIDS Forum
coverage of the 7th International Conference on AIDS in Asia and the Pacific. July 12, 2005, www.aidsmap.
com. Accessed February 10, 2007.
134 Vijay Kumar Kaul shows that Indian exports of pharmaceutical chemicals have been steadily growing
over the last decade. In contrast, while Brazil is heralded as a successful case in its ability to negotiate
with multinationals for lower antirretroviral prices, its national pharmaceutical chemical base has
witnessed a contraction in the already small number of companies producing antirretrovirals. Brazilian
laboratory Labogen, for example, has discontinued production of antirretroviral active pharmaceutical
ingredients and Cristália has reduced production to three (ritonavir, saquinavir, and saquinavir mesylate
[13].
135 This was orchestrated by Cipla in the so called (D4T+3TC+NVP) combination.
146
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
enacted a Patent Act which sought to address the low level of local pharmaceutical
production. The 1970 Act provided for patents for pharmaceutical processes but
eschewed the granting of monopoly ownership for pharmaceutical products136
[17]. This distinction opened the door for reverse engineering by Indian firms and
harboured the growth of one of the world’s largest generic drug industries137 [17,
18]. Despite the achievements of Indian firms during 1970-1995 in developing high
skills of adaptation and growth, they face steep difficulties competing in innovation and remain a highly generic industry with comparatively meagre success in
new molecule discovery138 [19].
During the Uruguay Rounds (1984-1996), which culminated in the formation
of the World Trade Organization, India was an avid negotiator for the rights of its
generics industry, negotiating a transition period for the implementation of the
new TRIPS standards which many developing countries hastily enacted [20]. Over
the following decade, several stages marked the transformation of Indian law from
a process to product patent regime139 [21, 22]. Two of the most significant legislative changes took place in the last year of the transition. On the eve of the TRIPS
implementation deadline, the Indian Parliament enacted the Indian Patent Ordinance (codified on December 26, 2004). The Ordinance was widely viewed as multinational enterprise-friendly, with the patent process lessening requirements for
patent applications and terminating a clause for procedures for contestation of applications during the pre-grant period. In terms of potential impact on pharmaceutical trade, the Ordinance constrained Paragraph 6, regulating export and provided
for export only to those countries which had issued compulsory licenses. Finally,
the Ordinance did not specify the procedure for issuing compulsory licenses.
The Ordinance provoked a great deal of concern among both the public health
community and in intellectual rights law circles. In contrast, the final version of India’s domestic application of Intellectual Property law, the Patents (Amendment)
Act of 2005 (henceforth, “the 2005 Act”) which was passed in March, provided for
136 It is important to note that process patents were granted for a period of five years from the date
of the patent grant or alternatively, seven years from the filing date of a patent, whichever was earlier.
Additionally, the 1970 Patent Act included multiple provisions for compulsory licensing of process
patents. Three years after the sealing date of the patent, any party interested in working on the patented
invention could apply for a compulsory license. Finally, the Patent Act included a clause for “licenses of
right” enforceable three days after the sealing of the patent should the government believe that the
invention was not available to the public at a “reasonable” price [17].
137 Indian generic medicines account for 22 per cent of generic medicines worldwide [18]. There is
some disagreement about the actual source of Indian pharmaceutical development. A report from the
Chemicals & Pharmaceuticals division of the Federation of Indian Chambers of Commerce and Industry
(FICCI) concludes that the 1970 Indian Patent Act has been the “single most important factor pushing
the growth and development of the domestic pharmaceutical industry” [17].
138 Srinivas outlines three core challenges for Indian firms in entering innovative areas: finance,
experience and institutional environment [19].
139 Janice Mueller provides a thorough review of the key transformations in the three stages of the
Indian patent system, arguing that the emerging system has taken on a “mosaic” nature, incorporating
western standards and Indian norms [22].
Capítulo 8. Institutional and procedural challenges to generic production in India
147
a comparatively flexible framework and addressed some of the core issues which
had not been addressed in the Ordinance. The key change brought about by the
2005 Act was the extension of product patents in the area of pharmaceuticals and
chemical inventions. The Act defined new invention and patentability on the basis
of three attributes – a novelty standard, inventive step and industrial applicability [23]. The Act also expanded on the exception provided under Section 3 (d) of
the Patents Act 1970 and provided that any discovery of a new form of a known
substance is not patentable unless it results in the enhancement of the known efficacy of that substance (Ibid.). Section 3 (d) was introduced as a measure to prevent the ever greening of patents, this rather liberal – and vague according to legal
experts – provision paved the way for a prolonged legal battle between Novartis
and the Union of India, a case dealt with later in the chapter. Another significant
change was the introduction of the post-grant opposition mechanism and revocation mechanism to complement the pre-grant mechanism that the 1970 Act was
already endowed with. This again is considered as a strategic provision that can
effectively discourage frivolous patent applications.
One of the most significant changes in the Act, and the most promising in terms
of use of TRIPS flexibilities, is in the area of compulsory licensing. In pursuance of
a TRIPS obligation, the 1999 amendment of the Patent Act provided for a “mail
box”, whereby patent applications during 1995-2005 were to be put away to be
reviewed in 2005. The Act provided that generic companies which had made significant investment and were producing and marketing drugs covered by the mail
box applications prior to January 1, 2005 would be granted automatic compulsory
licenses subject to payment of a reasonable royalty. In this way the Act ensured
that generic producers of such drugs continued their business even after the Act
came into effect.
A number of scholars have attempted to understand how the Indian case reflects trends in the “harmonization” of international legal standards to a developing
country [24, 25] and what the quantitative effects of the TRIPS implementation in
India might be [26-29]. Yet little consensus has emerged on how India’s adoption
of the patent regime has affected the supply of medicine in great part, because the
implementation of the standards continues to be undergoing a process of definition140 [30].
One of the most important areas of flexibility and continued definition and
re-definition which remained in place in the 2005 Act was a system of pre-grant
and post-grant patent opposition channels141 [31]. Patent decisions in India are administered by the Patent Office, which has four branches, in Kolkata (head office),
140 Oxford’s Carolyn Deere-Birbeck has called this process the “Implementation Game” [30].
141 Discussion regarding “flexibilities” has garnered increasing attention in the legal and public health
communities. One important contribution was a study published by the South Centre [31].
148
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Chennai, Mumbai and New Delhi142. Patent applications in India may be routed
through the national application system or, for foreign applicants, through the
Patent Cooperation Treaty. In the year 2006-2007 for example, the conventional
national applications accounted for 3165, a 10 per cent increase over that of the
previous year. The total applications through the Patent Cooperation Treaty route
were 19,768, about 28 per cent higher than that of the previous year. In the specific
category of medicines, the number of applicants for patents was 3,239, an increase
of 46 per cent from that of the previous year. The number of patents registered was
787, an increase of 72 per cent over that of the preceding year. Based on these statistics, revealing the immediate post-implementation trends, a rise in the general
patent applications is visible, and particularly so in the sphere of medicines. Importantly, in terms of patent oppositions during the same period, the Indian Patent
Office recorded 44 pre-grant oppositions and 27 post-grant oppositions. Despite
receiving a relatively low proportion of applications for which there are oppositions in process, almost all applications for antirretrovirals or cancer drugs face preor post-grant oppositions from national or international groups.
Legal turf wars: interpreting and
applying the patent law in India
Over the past 5 years, a number of cases in Indian jurisprudence have begun to
shape the legal interpretation of intellectual property standards with direct results
for the amendment’s implementation. In this section, three cases have been presented with discussions on their preliminary implications for the Indian generics
industry. These include: 1) a case testing the infamous Section 3(d) clause setting
a standard for levels of minimum innovation; 2) consideration of public interest;
and 3) withdrawal of patent applications and the granting of voluntary licenses
by multinational enterprises. The aim here is not to provide a complete review of
trends in Indian patent jurisprudence, which is beyond the scope of this chapter,
but to focus on some of the key, recent political and legal issues emerging for the
production of some life-saving medicines. Many of these cases are still under consideration; for those in which judgements have been released, appeals may leave
the door open for debate for years to come.
142 Prior to the 2005 Act, the period for consideration of patents was approximately 6 years but now
the Patent Office has undergone a series of steps to modernize the process, and suggests that this
average has been reduced to 3 years. As part of the modernization process, the patent office has begun
to computerize its systems. All applications filed after January 1, 2005 have their information held
electronically (with a classification of the application, name of application, country type etc.) The ability
to track patents and their stage in the application process is of paramount public interest.
Capítulo 8. Institutional and procedural challenges to generic production in India
149
Testing the constitutional validity of
Section 3(d): Novartis and Glivec
In 2006, the Patent Office in Chennai rejected the Swiss-based Novartis’ patent application for the anti-cancer drug Glivec143. The rejection of Novartis’ application set
into motion a series of rulings with implications reaching well beyond the question
of the Glivec application. Novartis’ response was not merely to appeal the rejection,
but to question the constitutionality of Section 3(d). As briefly discussed earlier,
Section 3(d) prohibits the granting of patents for what are considered negligible
modification of existent drugs, defining such substances as a “mere discovery of a
new form of a known substance which does not result in the enhancement of the
known efficacy of that substance144.” This clause is considered critical in preventing
firms from engaging in evergreening, or for firms’ seeking extensions to monopoly
rights for insignificant molecular adaptations. The Madras High Court rejected Novartis’ claim, and found that Section 3(d) was constitutional145 [32].
Novartis, the Swiss pharmaceutical company, filed an application in 1998 claiming a patent over Glivec, a life-saving cancer drug to treat patients suffering from
chronic myeloid leukemia. Glivec is the β crystalline form of imatinib mesylate. Imatinib, the free base molecule, was invented by Novartis in 1992 and the 1993 US
patent for imatinib discloses imatinib mesylate (US Patent No. 5521184). Despite
this, Novartis filed the patent application in India in 1998 and argued before the
Patent Controller that they had invented two compounds – imatinib mesylate and
its β crystalline form. Novartis had been granted patents on corresponding patent
applications in over 40 countries including China and Russia. The Cancer Patient
Aid Association filed a pre-grant opposition, claiming that Glivec could not be patented. The Association claimed the grounds of (1) prior publication in an earlier
patent, (2) obviousness, (3) lack of enhancement of efficacy, and (4) incorrect claim
of priority146.
As India did not recognise product patents for pharmaceuticals at the time of
this application, it was to be examined only after 2005. In the meantime, in 2003,
Novartis obtained the exclusive marketing right for imatinib mesylate based on its
patent application147. Based on the exclusive marketing right, Novartis obtained
143 Sold in the United States under the commercial name Gleevec.
144 The Patents (Amendment) Act 2005, Office of the Controller General of Patents, Designs and
Trademarks, Delhi, India.
145 It also held that it did not have “jurisdiction” for evaluation of TRIPS, which has been artfully
challenged in Basheer, & Reddy [32]. For an excellent discussion on this case, see, Raju [33].
146 See the group the Lawyer’s Collective for a discussion of this case, http://www.lawyerscollective.
org/hiv-aids/activities/legal-services-access-to-medicines-patents
147 Before its harmonization with the full-fledged TRIPS patent regime in January 2005, India
incorporated into its 1970 Patent Act a provision allowing for “exclusive marketing rights.” The term
150
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
orders from the Madras High Court to stop several generic pharmaceutical companies from manufacturing generic versions of imatinib mesylate, while the Bombay
High Court did deny the same. While generic versions were available at a cost of
around Rs. 8 000 (US$ 160) to Rs. 12,000 (US$ 240) per month, Novartis sold its version at Rs. 120 000 (US$ 2,400) per month. The court order resulted in the reduction
of the supply of generic versions, and consequently impacted patients suffering
from chronic myeloid leukemia.
In 2006 the Indian patent office rejected the application on the ground that the
product claimed by Novartis lacked a sufficient level of novelty and failed to show
an increased efficacy over the known substance148. The base substance known at
the time of application was not imatinib but imatinib mesylate; thus, Glivec being
only a β crystalline form of imatinib mesylate was deemed to be only a new form of
a known substance and not an enhancement of efficacy. Rejecting Novartis’ argument that it was 30 per cent more bio available in rats, the controller held that there
had been no enhancement of efficacy149. With the rejection of patent the exclusive
marketing right came to an end.
Subsequently, Novartis filed multiple challenges in the Madras High Court. It
challenged not only the decision of the Patent Office rejecting its patent application, but also the Section 3(d) of the Patents Act – a crucial public health safeguard
introduced in the law by Parliament to prevent evergreening. The company argued
that the section 3(d) was vague and not compatible with the Constitution of India
and was not compliant with the TRIPS Agreement. Its position was that since the
free base of imatinib was never patented in India, there was no question of extending the life of the patent and thereby engaging in evergreening.
In 2007, the Madras High Court rejected Novartis’ challenge to Section 3(d) and
held that it had no jurisdiction to determine the issue of TRIPS compatibility. In determining the issue of constitutional validity, the court held that the word “efficacy”
used in section 3(d) had a definite meaning in the pharmaceutical field.
The set of appeals filed by Novartis challenging the Chennai Patent Office’s decision was transferred from the Madras High Court to the Intellectual Property Ap-
refered to products which were granted provisional monopoly marketing rights for patented products,
or products for which a patent application was pending, based on 3 criteria, including its patent status
in other World Trade Organization countries. Rights were granted for a period of 5 years or until the
rejection or grant of the patent. With the entry into the TRIPS system, the intermediate stage of the
exclusive marketing right was abolished. For specificities on this system see the Indian Patent office,
http://www.patentoffice.nic.in/ipr/patent/emr.htm. As accessed, November 2010.
148 It was noted by the Patent Controller that the 1993 patent claimed all salts related to the free base
that was being patented. Since Glivec was a salt of that free base, and was obtained in the customary
manner and was the form that the salt normally exists in, Glivec was a known salt and could not be
patented. Since Glivec’s salt form was the most thermodynamically stable and also the form that the
salt normally assumes, it was obvious. In other words, the application only claims a new form of a
known substance.
149 http://www.lawyerscollective.org/node/1042
Capítulo 8. Institutional and procedural challenges to generic production in India
151
pellate Board (IPAB) which released its decision in June 2009. The IPAB too held that
Novartis was not entitled to a patent on imatinib mesylate as its claimed product
did not meet the requirement of increased therapeutic efficacy. He, however, reversed the findings of the Patent Controller on novelty and inventive step. It held
that imatinib mesylate was novel and not obvious to a person skilled in the art. It
also allowed Novartis to proceed with certain process claims.
Novartis approached the Supreme Court on August 28, 2009 arguing that the
Intellectual Property Appellate Board had wrongly relied on the interpretation of
Section 3(d) by the Madras High Court – that a patent applicant has to show an
increase in therapeutic efficacy. In a statement justifying legal arguments, the company declared that “Section 3(d) of the Indian patent law will limit pharmaceutical research and development in India because it limits the ability to patent incremental innovation.” The company contended that “Acknowledging innovation by
granting a patent is unrelated to the access to medicines issue. Improving access
to medicines is a matter of making medicines available. Medicines can be made
available through access safeguards in international agreements and, in the case
of essential and life-saving medicines, special pricing arrangements in developing
countries can, and must, be made150.”
What are the implications of Novartis’ legal challenge of Section 3(d), a clause
hailed as symbol of responsible use of public health safeguards? Any compromise
with this section would eventually help pharmaceutical companies with deep
pockets to patent incremental changes to the existing drugs. This would hamper
competition in generic drugs which has been largely responsible for the reduction of drug prices and increased affordability and access. More specifically, access
to recently developed second-line generic antirretroviral drugs by people living
with HIV/AIDS all around the developing world would be seriously affected by any
weakening of Section 3(d)151. Mass scale treatment programmes for other diseases
like tuberculosis too would also face rapid shortages of low-cost generic medicines.
Consideration of public interest: Roche and Tarceva
One of the fundamental characteristics of the Indian patent system is that while
patents are valid for a period of 20 years, calculated from the date of filing/priority
of the patent application (whichever is earlier), patents may be challenged through
systems of pre-grant and post-grant opposition. Post-grant opposition was origi-
150 Novartis company release, http://www.novartis.com/downloads/about-novartis/Novartis_positionGlivec_Gleevec_patent_case_india.pdf, as accessed 26 September 2010.
151 CARE, “The Novartis case and access to affordable drugs,” http://www.care.org/newsroom/
articles/2007/06/20070613_novartis.asp, as accessed 27 September 2010.
152
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
nally outlined in India’s 1970 Patent’s Act, in Section 25(2), and was brought forth
in the 2005 Act. Procedures for post-grant opposition allow any interested party,
be they representatives of civil society, or generic producing competitors, to challenge the validity of a patent as far as one year from the date of publication of the
patent issuance152.
The process of how post-grant oppositions are reviewed and what issues are
taken into consideration during their review have been illustrated in a case which is
currently ongoing between the Swiss-based Roche and local (Indian) producer Cipla153. Roche introduced the drug “Erlontinib” under the trademark name of Tarceva
in India in April 2006 and was granted patent rights in June 2007. Nearly six months
following the patent’s issuance, local generics producer Cipla launched a generic
version called of Erlocip. In response, Roche challenged Cipla’s right to generic production and requested an injunction which would prohibit its manufacture.
Cipla’s response reflected the view of many local producers and public health
groups in India; according to Indian jurisprudence there is no presumption of the
validity of patents, given the multiple stages at which a patent application may
face objection and review. Cipla suggested that examination and opposition at
India’s patent offices comprise a first stage of patent review: “The patent is subject to scrutiny at several higher levels, unlike the case of trademarks.” In addition
to its procedural arguments against the issuance of an injunction, Cipla argued
that patent had been granted without proving sufficiently innovative under Section 3(d). Cipla pointed out that Erlontinib was merely a derivative from quinazolin
compounds, which are widely known to inhibit growth and proliferation of mammalian cells154.
Thus far, the importance of this case has not been in the debates over the application of Section 3(d). In 2009, Delhi High Court Justice Ravindra Bhat dismissed
the request by Roche for an injunction, on the grounds that the Cipla alternative
was being offered at one third the price of the originator product. Prohibiting the
product from entering the market, before a full evaluation of the patent’s validity,
would be in conflict with public interest. Bhat’s order represented, for the first time
in India, that public interest was brought into explicit consideration in the rejection
or granting permission of an injunction. As a number of HIV/AIDS cases move forward, having established the “public interest” precedent is an important and positive development in the wake of the 2005 Act.
152 Recent post-grant opposition decisions include; Novartis vs. Cipla (Dulera), Gendon vs. Cipla (Ipill),
Roche vs. Cipla (Valcyte), Roche vs. Wockhardt (Pegasys)
153 The case has now evolved into a full-blown series of suits against Indian producers, including locally
based Matrix. See posts by Shamand Basheer, at Indian IP bloc, SPICY IP, for full legal coverage of this
case.
154 An important case on evergreening which is used as a reference in this case is the ruling of the
Madras High Court in Novartis vs. Union of India, 2007 (4) MLJ 1153. Cipla also shows three European
patents of similar compounds dating back to 1993.
Capítulo 8. Institutional and procedural challenges to generic production in India
153
Defensive strategy: GlaxoSmithKline and Abacavir
While a number of important cases are currently being fought out in Indian courts
others are taking shape in the public ambit. One such interesting example has
emerged through the multiple cases of multinational enterprises which have withdrawn patent applications, or issued voluntary licenses. Such is the case of GlaxoSmithKline which withdrew its application for abacavir sulfate in India in 2007155.
The Indian Network of Positive People had filed an opposition against the GlaxoSmithKline’s application, arguing that it did not meet innovative standards set out
in Section 3(d). The Indian Network of Positive People noted that in an earlier published patent (1991, EP 0434450) the release of sulfuric acids make the addition of
hemisulfate salt an obvious step and therefore the mere large scale manufacture
of these combinations does not entail sufficient innovation. The Indian Network of
Positive People was joined in its patent opposition by the local producer Cipla.
In response to the oppositions generated by the abacavir application, GlaxoSmithKline withdrew its claim, citing its concern for the “public interest.” A number
of local groups questioned if the motivations of the company were less than altruistic and merely represented a calculated defensive strategy: “We wonder whether
GSK is truly acting in the public interest or is avoiding the build up of case law by
the patent office that could serve to hinder other similar applications/granted patents in India and other countries156.”
Withdrawal of a patent application in the face of public scrutiny or a potentially
damaging case law is one approach multinationals appear to be adopting157. Another strategy is that of issuing a voluntary license to a select number of generic
companies, essentially granting them permission to produce the product and, thus,
avoiding costly legal battles over patent rights. Gilead Sciences, the proprietor of
the key antirretroviral Tenofovir Disproxil Fumarate, known by the brand name Viread, followed this route when it permitted 11 Indian generic manufacturers to
produce the drug at a much lower price. Voluntary licensing, like the withdrawal
of patent applications, does not present a sustainable solution for public health
groups because it depends on the interests of private firms. What these doublepronged strategies reflect in India is how firms are adapting to local challenges;
with some products not worth the legal investment and others used as tools to
create alliances with local industry.
155 Marketed as Ziagen, application n. 872/Cal/1998.
156 I-MAK, “Initiative for Medicines, Access & Knowledge,” http://www.i-mak.org/i-mak-blogupdates/2007/12/9/gsk-withdraws-its-application-for-abacavir-in-india.html (accessed June 1, 2008).
157 In another case, GlaxoSmithKline withdrew its patent application in India for the antirretroviral
combination known as Combivir. Facing a similar controversy in Thailand, GlaxoSmithKline adopted a
similar strategy for abacavir.
154
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Ensuring generic market entry:
challenges to the Bolar exception
The intellectual property standards established under the TRIPS agreement mandated the introduction of patent ownership for pharmaceutical products for all
World Trade Organization members158. As discussed earlier, in a number of developing countries, India among them, pharmaceutical products were previously not
considered patentable goods159 [34]. Despite the push toward a universal, homogenous standard system of patenting processes, the TRIPS agreement did provide
a number of flexibilities allowing for national governments to tailor international
standards to local demands [35]. These flexibilities have been largely underutilized by developing countries, and have been the frequent target of bilateral trade
agreements160 [36-38].
One specific area of flexibility is the so-called Bolar exception. The Bolar exception stipulates that generic manufacturers have the right to manufacture a patented drug in limited quantities during a period in which patent rights are valid.
The exception allows generic manufacturers to produce a patented drug with the
intent of collecting data to submit to drug approval regulatory authorities. Regulatory systems in developed and developing countries alike may take as many
as 1-5 years to grant approval for the entry of a pharmaceutical product into the
market. In short, the Bolar exception allows generics firms to prepare products for
market entry so that, with the expiration of the patent period, generic alternatives
are readily available161. Without the Bolar exception, generic firms would have to
wait until a patent period had fully expired before initiating regulatory approval
processes, thereby granting patent-holding firms a de facto extension of their product’s market monopoly.
The rejection of Bolar rights is frequently referred to as “linkage” of the regulatory approval system with the patent granting processes, as restricting Bolar rights
would mandate regulatory agencies to review only those market access applications which have patent rights. Linkage of patenting and regulation processes is
158 See Part II, Article 5 of the TRIPS Agreement (http://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/27-trips.pdf).
159 Brazil, for example, was another country which did not consider pharmaceutical goods patentable
due to public interest. A number of developed countries also shirked patent systems for pharmaceutical
products; as late as 1976, Switzerland did not have pharmaceutical patents [34].
160 A number of studies have identified a pattern in bilateral trade agreements between northern
and southern partners, in which countries such as the United States make tighter patent restrictions a
requirement of preferential trade status [36-38].
161 The name Bolar exception is derived from US case law more than a quarter of a century ago through
the case Roche Products Inc. v. Bolar Pharm. Co. Inc. 733 F: 2d 858 which ruled against the right of generic
producers. This ruling was overturned by the US Congress’ enactment of the Hatch-Waxman Act, which
established the right to pre-term patent production for generic firms.
Capítulo 8. Institutional and procedural challenges to generic production in India
155
currently opposed in a number of developing and developed countries, including
the European Community and United States162 [39].
In India, the 2005 Amendment included the Bolar exception163 [23]. Generic
firms in India may seek regulatory approval of drugs for which patents are valid;
if firms go beyond the purview of activities related to seeking regulatory permission, and bring drugs to market without patent approval, they may be held legally
responsible164. Yet, the ensured existence of the Bolar exception in India has been
repeatedly challenged by political and legal pressures to link patent and product
approval systems. In 2007, the Drug Controller General of India (the organization
which regulates the market entry of pharmaceutical products) announced that he
intended to reject applications for regulatory approval of patented generics from
non-patented holders. Soon thereafter, facing an uproar in the public health community, this proposal was withdrawn. Nevertheless, in subsequent years, a number
of legal suits levelled by the international pharmaceutical community have challenged the Bolar exception in India, arguing that the courts should restrict the ability of generics firms to seek regulatory approval for a product for which they do not
enjoy patent ownership.
Two recent cases highlight the attempts of multinationals to challenge the Bolar exception in India. In January 2009, Bristol Myers Squibb filed a suit against local
generics producer Hetero Drugs. He argued that Hetero should be prevented from
manufacturing, selling, or offering to sell “dastinib”, used by patients with leukemia.
Hetero had not yet been granted regulatory permission for the drug at the time of
the suit, nor had it brought the product to market. The Delhi High Court granted
a restraining order in favor of Bristol Myers Squibb, ruling that permissions to seek
regulatory approval amounted to patent infringement. Yet, in another ruling, in
August 2009, the Delhi High Court rejected a suit brought by Bayer Corporation
against Cipla Ltd. and the Union of India, arguing that the Drug Controller General
of India should consider the patent status for its cancer drug sorefenib tosylate.
After initially granting an injunction on production of Bayer’s drug in October 2008,
the Court’s final dismissal of the case included the “vexatious and luxury litigation
which should be discouraged” [40]165. Bayer has now appealed the High Court’s
ruling and the case is currently before India’s Supreme Court.
162 See, Section 271 (e) (1) of the Drug Price Competition and Patent Term Restoration Act. For a
discussion of recent rulings related to the Bolar exception in the United States, see MJ Adelman [39].
163 As ensured in Section 107A of the Patents Act (2002 version). The 2005 Act updated and expanded
Bolar exception rights to include the act of “importing.” According to Indian legal scholar Shamand
Basheer, this will “no doubt aid the efforts of generic manufacturers, who are exploring all possible
means to help mitigate the adverse consequences of a pharmaceutical patent regime” [23].
164 An example is the case of cancer drug Tarceva, in which Cipla was granted the approval to market,
although the drug was patented by Swiss drug maker F Hoffmann-La Roche. Cipla went ahead with the
production of Tarceva and a lawsuit proceeded.
165 The ruling can be found at “High Court of Delhi at New Delhi” LPA/443/2009, http://lobis.nic.in/dhc/
SMD/judgement/09-02-2010/SMD09022010LPA4432009.pdf.
156
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Legal attacks on the Bolar exception in India, and their continued evaluation
in India’s highest courts illustrate that nearly half a decade following the passage
of the Patent Amendment, fundamental issues regarding the implementation of
India’s patent system are still under definition. The Drug Controller General of India
is not qualified to evaluate the validity of patents granted, nor does it enjoy reliable
data regarding which patents are granted [41]. In addition to these issues of institutional capacity, the policy implications of product-patent approval linkage would
create a significant barrier to national and international access of generic drugs.
The potential linkage of India’s patent and regulatory approval systems would
present a great challenge for local generic producers. A committee appointed by
India’s Ministry of Chemicals and Fertilizers (the Satwant Reddy Committee) was
convened in 2007 to examine patent linkage and determined that it was not in
India’s interest, but the “implementation game” [30] regarding how national laws
will apply international patent laws remains in full play.
Concluding observations
This chapter has reviewed the importance of Indian generic products for global
antirretrovirals access, provided an overview of the major changes in Indian patent law through its 2005 Amendment, and introduced some of the most recent
debates which will affect the implementation of patent law in India. The shape of
institutions regulating the insertion of products in the Indian market, and the systems by which patents are granted, will have direct impact on the drugs which are
brought to market by Indian firms and the strategies of these firms.
In the past, Indian firms have been at the front line, not only in providing cheap,
quality medicine to global health and public national programs, but also in leading the way for a number of delivery system improvements and improved combination formulae, for which Indian firms have a history of developing. How Indian
producers react to the legal challenges they are facing in Indian courts and in other
courts abroad will have a significant impact on the types of drugs they choose to
produce. The cost of litigation, for example, can serve as a barrier for generic firms
hoping to access developing markets166. Trends in the generic sector will likely lead
toward local Indian firms adopting strategies for survival in the new competitive
framework. We can expect for Indian firms to increasingly focus their resources on
developing R&D for drugs intended for export where high-value revenue is anticipated. The battlefield of current litigation in India, much of it pending, will be
166 Managing director of Dr. Reddy’s, Satish Reddy, reports that the firm spent 12 million US$ on
legal costs in 2005, equivalent to above 25 per cent of its R&D allocations. The Economist, “A survey of
pharmaceuticals,” p.17.
Capítulo 8. Institutional and procedural challenges to generic production in India
157
critical in determining how the 2005 Act is interpreted and applied. The strategies
of multinationals in relationship to their Indian competitors and the future of the
Bolar exception will all be important issues in determining the future of low-cost
antirretroviral medicine production in India.
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160
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
CAPÍTULO 9
A arquitetura do mercado de teste de
monitoramento do HIV/Aids e suas
implicações sobre as respostas nacionais
nos países em desenvolvimento: a
experiência brasileira na construção
das redes nacionais de laboratórios
Cristina d’Almeida
Benjamin Coriat
Resumo: O crescente acesso aos tratamentos antirretrovirais de 2ª geração em nível global torna ainda mais evidente a necessidade de um efetivo monitoramento
terapêutico do HIV/Aids. Não obstante, as tecnologias de contagem dos linfócitos
T- CD4+/CD8+ e de quantificação da carga viral permanecem ainda inacessíveis aos
países do hemisfério sul. Esta situação é devida à natureza oligopolística e cartelizada deste mercado particular, assim como pelas elevadas restrições impostas pela
propriedade intelectual e pela complexidade tecnológica destes testes. A experiência brasileira referente à aquisição e distribuição dos testes de monitoramento
do HIV/Aids constitui-se em uma importante fonte de aprendizado quanto ao estabelecimento de estratégias nacionais efetivas no confronto às barreiras do mercado, através do estabelecimento das Redes Nacionais de Laboratórios.
Palavras-chave: Monitoramento do HIV/Aids; Redes Nacionais de Laboratórios,
Centralização; Descentralização; Brasil.
I. Introdução
Os testes utilizados no monitoramento terapêutico de pacientes de HIV/Aids (testes de contagem dos linfócitos T- CD4+/CD8+, testes de quantificação da carga viral
e testes de genotipagem) constituem-se em tecnologias essenciais para o monitoramento do HIV/Aids [1]. No entanto, devido ao elevado custo destas tecnologias,
a maioria dos países em desenvolvimento (PED) ou de menor desenvolvimento
relativo (PMDR) é desprovida de um programa de monitoramento laboratorial ade-
quado, devido à natureza oligopolística e cartelizada deste mercado, assim como
pelas elevadas restrições impostas pela propriedade intelectual destas tecnologias
e pela complexidade tecnológica destes testes. Neste contexto, a experiência brasileira referente ao acesso universal aos testes de monitoramento do HIV/Aids reflete não somente as características deste mercado, mas as dificuldades enfrentadas
pelos países em desenvolvimento na manutenção deste acesso, sobretudo, no que
diz respeito às estratégias de redução de preços destes produtos e na capacitação
dos laboratórios nacionais.
O presente capítulo visa descrever as estratégias nacionais adotadas pelo governo brasileiro na constituição das Redes de Laboratórios. Desta forma, o capítulo
será organizado através de duas seções. Primeiramente, apresentará uma avaliação
geral do mercado dos testes de monitoramento, no qual serão detalhadas as características do mercado e as principais tecnologias empregadas. A segunda seção
visa descrever as experiências da Resposta Brasileira ao HIV/Aids no que tange às
estratégias de centralização e de descentralização adotadas para o acesso universal
às tecnologias de monitoramento. Ao final do capítulo, é apresentada uma breve
discussão na qual serão apontadas algumas tendências deste mercado e algumas
proposições para as Respostas Nacionais dos países em desenvolvimento.
II. Testes de monitoramento do HIV/Aids:
tecnologias e características de mercado
Entre todos os insumos utilizados para o combate ao HIV/Aids, os testes de monitoramento são os que apresentam maior complementaridade institucional e
tecnológica em relação ao mercado dos medicamentos antirretrovirais. Esta complementaridade torna-se ainda mais relevante se observarmos o significativo aumento do acesso ao tratamento antirretroviral, no contexto global, tendo em vista
que a diversidade genética do HIV, o número crescente de casos de falhas terapêuticas, assim como de resistência viral constituem-se nos principais fatores que contribuem para a demanda crescente pelos testes de monitoramento nestes países
[2-3]. No entanto, os preços praticados para estes insumos encontram-se muito
acima dos orçamentos nacionais dos países de média e baixa renda, desta forma
comprometendo a eficácia dos tratamentos antirretrovirais utilizados e a sustentabilidade das suas Respostas Nacionais [4-5].
As principais categorias que constituem o mercado dos testes de monitoramento do HIV/Aids estão organizadas em três grupos distintos, a saber, os tes-
162
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
tes imunológicos (contagem dos linfócitos167 T-CD4+/CD8+); os testes virológicos
(quantificação da carga viral) e os testes genotípicos (genotipagem do HIV).168 Os
testes de contagem dos linfócitos T- CD4+/CD8+ correspondem ao recurso adotado
pelas recomendações da OMS (ver Tabela 1) para a avaliação do estado do sistema imunológico do paciente de HIV/Aids. As informações providas por estes testes
contribuem de maneira crucial tanto para a profilaxia de infecções oportunistas,
como para a definição do momento de introdução de terapias antirretrovirais [611]. Os testes de quantificação da carga viral (CV) constituem-se no padrão de referência para a quantificação de vírus em amostras de sangue total, em nível global
[12-13]. Os equipamentos utilizados nesta quantificação são robustos e projetados
como verdadeiras “caixas pretas”, nas quais decorre a etapa de extração e isolamento do DNA viral, seguida pela etapa de amplificação e detecção do ácido nucléico.
Tabela 1 – As Diretrizes da OMS (2005) referente ao uso
dos testes de monitoramento do HIV/Aids
Contagem CD4+/CD8+
Quantificação da Carga Viral
Pacientes assintomáticos
A cada 3-4 meses/ano
A cada 3-4 meses/ano
Pacientes de Aids
Pacientes “naive”: 2-8 semanas após
início do TARV
A cada 3-4 meses/ano
A cada 3-4 meses/ano
Falha terapêutica
2-8 semanas após início do TARV
2-8 semanas após início do TARV
Uma vez comparados aos testes imunológicos, as tecnologias para quantificação da CV apresentam custos muito mais elevados, tanto no que se refere ao
equipamento, quanto ao valor unitário dos testes. Os valores dos equipamentos
para a contagem dos linfócitos T-CD4+/CD8+ variam entre 20 e 35 mil dólares americanos, enquanto que os equipamentos para a quantificação da CV poderá variar
entre 70 e 80 mil dólares americanos, de acordo com a técnica adotada [11]. No
que se refere ao valor unitário para a realização do teste, os valores são igualmente discrepantes, sendo o custo unitário para a contagem imunológica de 5 a 10
dólares americanos, enquanto que os testes virológicos são comercializados a um
valor unitário entre 15 e 20 dólares americanos [14]. As principais razões para esta
disparidade considerável entre ambas as tecnologias referem-se à complexidade
tecnológica dos testes de quantificação da CV, assim como ao forte impacto advindo da propriedade intelectual das mesmas. Outro fator relevante no impacto sobre
167 Estas células constituem um subtipo particular de linfócitos, os quais sofrem um considerável
decréscimo durante a reprodução do HIV no paciente. Esta situação deve-se ao fato destes linfócitos
consistirem na “porta de entrada” do vírus HIV na célula hospedeira sendo, portanto, um importante
indicador da condição do sistema imune do paciente.
168 Por se tratarem de uma tecnologia que visa essencialmente a detecção de ocorrência de resistência
viral nos pacientes de HIV/AIDS, o presente artigo não abordará as tecnologias de genotipagem.
Capítulo 9. A arquitetura do mercado de teste de monitoramento do HIV/Aids
163
os custos da tecnologia de quantificação da CV decorre de um intenso processo de
concentração do mercado, sobretudo, quanto à utilização da tecnologia dominante, em nível mundial, como veremos a seguir.
Atualmente, o mercado de testes de contagem dos linfócitos T-CD4+/CD8+ é
caracterizado pela presença de quatro empresas dominantes, a saber, Becton Dickinson (EUA), Beckman Coulter (EUA), Partec (Alemanha) e Guava Technologies
(EUA), as quais possuem um vasto portfolio de patentes compreendendo todos os
componentes dos testes (calibradores, reagentes, softwares e consumíveis), como
principal estratégia de mercado. Ao contrário das empresas compreendidas no
mercado de testes moleculares (quantificação da CV), estas empresas utilizam a
mesma tecnologia (imunofluorescência) para a contagem dos linfócitos e estabelecem uma tática de diferenciação de produto baseada na proteção intelectual de
processos de imunofluorescência direcionada (targeted).
No que se refere aos testes de quantificação da CV, quatro empresas líderes
destacam-se no mercado: Roche (Suíça, compreendendo 56% do mercado internacional), Siemens (EUA, 21%), Abbott (EUA, 5%) e BioMérieux (França, 18%), sendo
que Roche detém mais da metade do volume total de vendas. Esta situação devese ao fato de a tecnologia de Reação em Cadeia da Polimerase (PCR169) proprietária
da empresa Roche ser a mais utilizada em nível global, assim como pela posição
estratégica adotada pela empresa no que se refere à propriedade intelectual dos
processos em tempo real (qPCR), os quais serão amplamente adotados no futuro
próximo, devido às suas vantagens tecnológicas.170 Além da natureza oligopolística deste mercado, a pluralidade de componentes que constituem os testes (primers, marcadores, calibradores, enzimas, corantes, instrumentos, softwares e consumíveis) representa um fator crucial que conferem uma organização industrial
particular e mais complexa do que aquela observada para os testes imunológicos,
caracterizada pela elevada concentração do número de atores, os quais são coordenados em redes. Estas redes fechadas representam uma estratégia poderosa
para a proteção de mercado, com vistas à redução do número de potenciais competidores [15] [16].
Tais características de mercado constituem-se em uma significativa barreira à
ampliação do acesso à medicina laboratorial, assim como o monitoramento do
tratamento antirretroviral destinado aos pacientes de HIV/Aids nos países de baixa renda, sobretudo, no continente Africano [17]. Da mesma forma, os testes de
monitoramento ainda não têm configurado nas políticas de combate ao HIV/Aids
destes países como um insumo primordial nas estratégias nacionais de combate à
169 Polymerase Chain Reaction, em inglês.
170 De fato, contrariamente às tecnologias padrão de quantificação da CV citadas anteriormente, a metodologia de PCR em tempo real (qPCR) permite a detecção da amplificação de uma determinada região
do material genético viral durante as primeiras etapas da reação (fase exponencial), desta forma, permitindo a análise da reação em tempo real. A técnica tradicional de PCR, por exemplo, permite apenas a
detecção da amplificação na fase final da reação (end point), desta forma incorrendo em limitações.
164
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
epidemia; tão pouco, as iniciativas internacionais de financiamento têm dado a devida relevância ao monitoramento do HIV/Aids. De fato, o que se observa é que, em
sua grande maioria, a prioridade é geralmente dada às estratégias de prevenção e
tratamento [18]. Não obstante, algumas iniciativas recentes têm envidado esforços
no sentido de suplantar estas barreiras e promover o estabelecimento de redes
nacionais e regionais de laboratórios destinadas ao monitoramento terapêutico do
HIV/Aids no continente Africano. Estas iniciativas visam promover o fortalecimento
da capacidade técnica e de recursos humanos no uso racional destes insumos, assim como de normalizar os procedimentos laboratoriais nestes países [19-22].
III. A experiência brasileira na aquisição,
utilização e distribuição de testes de
monitoramento do HIV/Aids
Os testes de monitoramento têm sido parte integrante do Programa Brasileiro de
combate ao HIV/Aids desde a sua concepção e passaram a ser fornecidos de maneira centralizada desde 1997, com a implantação das Redes Nacionais de Laboratórios. Atualmente o país garante o acesso destes testes a 352.000 pessoas vivendo
com HIV/Aids,171 nos quais estão compreendidos pacientes assintomáticos (aproximadamente, 80%), gestantes (cerca de 13.000, em 2010), recém-nascidos de mulheres HIV+ e pacientes apresentando falha terapêutica.172 A Figura 1 apresenta o
uso dos testes de contagem dos linfócitos T-CD4+/CD8+ e de quantificação da CV,
administrados por classe de pacientes. Desde 2008, o governo brasileiro passou
a adquirir 820.000 testes para CD4 e 820.00 para CV (cerca de 70% da demanda
nacional), os quais representam um mercado considerável para as empresas multinacionais, neste setor. Os resultados das licitações das compras realizadas em 2008
são apresentados em detalhe na Tabela 2.
171 Fonte: SISCEL (2007).
172 Fonte: MONITORAIDS (2007).
Capítulo 9. A arquitetura do mercado de teste de monitoramento do HIV/Aids
165
Figura 1 – Distribuição dos testes de monitoramento, por categoria de pacientes
16%
2%
2%
Sintomáticos
Recém-nascidos HIV+
5%
53%
Gestantes
Assintomáticos
Crianças HIV+
22%
Falhas terapêuticas
Fonte: Departamento de DST/Aids e Hepatites Virais (2008)
Tabela 2 – Resultado dos pregões realizados pelo Departamento de DST/Aids e
Hepatites Virais para a aquisição dos testes de monitoramento do HIV/Aids, em 2008
Teste de
Monitoramento
Demanda
Anual
Fornecedor
Preço Unitário
(USD)
Marca
CD4+/CD8+
720.000
Becton Dickinson
USD 7,20
FacsCount
CD4+/CD45+
30.000
Becton Dickinson
USD 16,00
FacsCalibur (3 colors)
Carga Viral
720.000
Siemens
USD 10,04
Versant HIV-1 RNA 3.0
Assay (b-DNA)
Genotipagem
15.000
Siemens
USD 122
Trugene
Total
1.485.000
®
®
®
®
Fonte: Departamento de DST/Aids e Hepatites Virais (2008)
III.1. As estratégias de aquisição dos testes
de monitoramento do HIV/Aids
O governo federal, representado pelo Ministério da Saúde e pelo Departamento
de DST/Aids e Hepatites Virais, desempenha um papel fundamental nos estágios
ex-ante e ex-post nos processos de aquisição, os quais têm início na compreensão
da estrutura do mercado e na negociação de preços até a regulação sanitária e
distribução dos testes de monitoramento do HIV/Aids.
As aquisições são realizadas de acordo com o critério de menor preço, através
da modalidade de “pregão”. O cálculo da demanda é feito com base nas estimativas
das necessidades anuais. Os equipamentos necessários à execução dos testes não
são adquiridos pelo governo mas negociados através de uma estratégia de comodato, cujo custo é embutido no valor de venda dos respectivos testes, consideran-
166
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
do-se um horizonte de cinco anos para a depreciação do equipamento. Importa
também lembrar que a transação de um sistema de diagnóstico (compreendendo o analisador, o equipamento, os reagentes e o respectivo software) vai além
da mera comercialização dos produtos (kits), uma vez que um pacote de serviços
também faz parte da negociação 173 [23].
Desta forma, observa-se que o bem a ser comercializado assume uma dupla
dimensão: (i) uma dimensão técnica referente à aquisição dos testes de monitoramento, o seu uso e as atualizações referentes à metodologia aplicada (“produto
em mãos”) e (ii) uma dimensão de aprendizado/conhecimento, mediante o treinamento local oferecido pelo fornecedor aos laboratórios nacionais (“know-how em
mãos”). No entanto, o conhecimento adquirido pelos laboratórios limita-se ao uso
da tecnologia (através de atualizações tecnológicas e da assistência técnica) e não a
um efetivo fortalecimento da capacitação técnica nacional referente ao desenvolvimento tecnológico e aos mecanismos de fabricação dos testes de monitoramento.
As complexidades tecnológicas referentes à cada metodologia de monitoramento do HIV/Aids, assim como a propriedade intelectual das mesmas e as dimensões territoriais do país constituem-se em importantes barreiras à entrada de outros
competidores, no mercado nacional. Primeiramente, devido à intensidade tecnológica destes testes (dimensão técnica), a comercialização destes produtos só pode
ser realizada por um número restrito de empresas detentoras deste conhecimento.
Ainda, os requerimentos quantos aos serviços a serem prestados pelo fornecedor
(distribuição, capacitação e assistência técnica de toda a Rede) demandam uma
robusta infraestrutura por parte do mesmo, a qual também colabora para reduzir
o número de competidores.
III.2. A implementação das redes nacionais de
laboratórios: uma combinação evolutiva das
políticas de centralização e de descentralização
No Brasil, a necessidade pela harmonização de boas práticas, experiências e infraestrutura dos laboratórios nacionais que executam testes de monitoramento,
assim como a ausência de um sistema nacional de monitoramento do HIV/Aids
levaram as autoridades de Saúde Pública a decidirem-se pela implementação das
Redes Nacionais de Laboratórios, em 1997. As especificidades inerentes à cada
uma das tecnologias de monitoramento do HIV/Aids gerou a criação de duas redes
173 De acordo com a Ata Pública dos Pregões de aquisição dos testes de monitoramento publicada
pelo Ministério da Saúde, o fornecedor deverá prover os itens a seguir: (i) o kit de reagentes; (ii) os
equipamentos e softwares necessários; (iii) uma linha telefônica exclusiva (0-800) para o fornecimento
gratuito de assistência técnica; (iv) serviço in-loco de assistência técnica e científica e manutenção dos
equipamentos; (v) treinamento técnico para a execução da tecnologia, (vi) serviço de distribuição dos
testes em todo o território nacional e (vii) treinamento continuado nas atualizações da técnica.
Capítulo 9. A arquitetura do mercado de teste de monitoramento do HIV/Aids
167
distintas de laboratórios, as quais compreendem apenas os laboratórios nacionais
de referência: (i) a Rede Nacional de Laboratórios para contagem dos Linfócitos
CD4+/CD8+ (RCD); (ii) a Rede Nacional de Laboratórios para quantificação da Carga Viral (RCV) 174 [24].
O estabelecimento e a implementação das redes nacionais de laboratórios submeteram-se a três etapas distintas: (i) o primeiro período de centralização, entre
1997-2001; (ii) o período de descentralização, entre 2001-2004 e; (iii) o segundo
período de centralização, iniciado em 2004 e vigente até o presente momento.
1997-2001 – a escolha pela centralização e seus impactos
Primeiramente, duas redes de monitoramento foram prioritariamente estabelecidas, sendo uma destinada à execução dos testes imunológicos e outra à execução
de testes virológicos.175 O financiamento e gerenciamento destas redes foram fundamentados nos princípios que regem o Sistema Único de Saúde (SUS), segundo
as quais as responsabilidades e os custos foram divididos entre os governos federal,
estadual e municipal [25]. O estabelecimento desta primeira fase contou também
com o importante Acordo de Empréstimo concedido pelo Banco Mundial, cujos
fundos foram geridos pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD).
No início da construção da Rede Nacional de Laboratórios para contagem dos
Linfócitos CD4+/CD8+ (RCD), 32 laboratórios constituiam a Rede, cuja maioria localizava-se em universidades federais e estaduais. Apesar da presença de quatro
empresas líderes no mercado mundial de testes para CD4+/CD8+ (Becton Dickinson, Beckman & Coulter, Partec e Guava), a empresa americana Becton Dickson176
permaneceu como o único fornecedor para a região, apesar do esforço do governo
brasileiro em promover a realização de licitações internacionais que propiciassem
a participação de todos os concorrentes no mercado. Importa considerar, ainda,
que a arquitetura do mercado nacional (elevada extensão territorial), assim como
os requerimentos referentes ao processo de aquisição, contribuiu para a limitação
do número de competidores. Os testes eram comercializados ao preço unitário de
26,50 dólares americanos. Em 2001, a RCD passou por um crescimento considerável, no qual o número de laboratórios aumentou de 32 para 78.177 A expansão
do mercado nacional para estes testes também permitiu uma redução de preço
(unitário) de 40%, se comparado ao preço comercializado em 1997. Nesta ocasião,
174 Com o intuito de monitorar a diversidade do vírus HIV, assim como o nível de resistência viral no
nível nacional, o Ministério da Saúde também criou a Rede Nacional para o Isolamento do HIV em 1999
e a Rede Nacional de Laboratórios de Genotipagem (RENAGENO), em 2001. No entanto, este capítulo
pretende focar na quantificação dos linfócitos CD4+/CD8+ e da carga viral, exclusivamente.
175 A Rede Nacional de Laboratório de Genotipagem foi estabelecida posteriormente, em 2001.
176 Representada pela empresa nacional Ambriex, no Brasil.
177 Ver Figura 1 referente à evolução das Redes Nacionais de Laboratórios.
168
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
dois testes foram adquiridos ao mesmo tempo – FacsCountTM e o FACSCaliburTM
– ambos fornecidos pela Becton Dickinson.178 A decisão de compra de dois testes
deveu-se às diferentes necessidades e infraestruturas dos laboratórios compreendidos na Rede. Nesta ocasião, os testes eram comercializados aos valores unitários
de 14,73 e 15,73 dólares americanos, respectivamente.
Ainda em 1997, deu-se o início ao estabelecimento da Rede Nacional de Laboratórios para quantificação da Carga Viral (RCV), a qual contou com a participação
de 30 laboratórios de referência. No entanto, a constituição desta Rede ocorreu
mediante um contexto institucional e cientificamente mais complexo em relação
aos testes imunológicos, devido às características intrínsecas do próprio vírus HIV.
Naquela ocasião, três empresas multinacionais de diagnóstico – Roche (detentora
da tecnológica de RT-PCR179), Chiron180 (detentora da tecnologia de b-DNA181) e
Organon Teknika182 (detentora da tecnologia NASBA183) participaram do pregão.
No entanto, apenas a Organon estava apta a atender todos os requisitos administrativos, tecnológicos, assim como ao critério de menor preço, no qual são baseados os processos licitatórios. De fato, o “objeto” da licitação a ser fornecido pela
empresa consistia de um “pacote” compreendendo o sistema de diagnóstico (equipamentos, analisadores e respectivos softwares) de quantificação da CV através da
técnica NASBA, reagentes, a implantação da tecnologia em todos os 30 laboratórios integrantes da Rede, assim como a permanente assistência técnica e científica
e treinamento.
No decorrer deste primeiro período de centralização (1997- 2001), o número de
pacientes em tratamento antirretroviral aumentou vertiginosamente, passando de
48.600 pacientes, em 1997, para 113.200 pacientes, em 2001.184 No decorrer destes
quatro anos, o Departamento de DST/AIDS e Hepatites Virais forneceu 687.250 testes de CV e investiu massivamente na capacitação e aprimoramento dos laboratórios de referência [26]. Neste mesmo período, o número de laboratórios integrando
a RCV praticamente dobrou, aumentando de 30 para 65 laboratórios (Figura 2). A
empresa Organon permaneceu como a única fornecedora de testes de CV durante
todo o período, os quais eram comercializados a um valor unitário de 56 dólares
178 O primeiro teste, FacsCountTM, consiste de uma tecnologia manual, utilizada para uma quantidade
menor de amostras (cerca de 30/dia), sendo, portanto, mais adaptada a laboratórios de menor porte. O
teste FACSCaliburTM, por outro lado, refere-se à uma tecnologia automatizada, destinada a execução
de um grande número de amostras (cerca de 150/dia) e é recomendada para os laboratórios de médio
e grande porte.
179 Reação em cadeia da Polimerase-Transcriptase Reversa.
180 A empresa Chiron era a representante da multinacional Bayer no Brasil.
181 branched DNA.
182 Posteriormente adquirida pela empresa francesa BioMérieux, em junho de 2001 (Fonte: http://
www.biomerieux.com/servlet/srt/bio/portail/dynPage?open=PRT_NWS_REL&doc=PRT_NWS_REL_G_
PRS_RLS_13&crptprm=ZmlsdGVyPQ).
183 Amplificação do ácido nucléico baseada em sequências.
184 Apresentação interna do Departamento de DST/AIDS e Hepatites Virais (2009).
Capítulo 9. A arquitetura do mercado de teste de monitoramento do HIV/Aids
169
americanos. Importa também lembrar que neste período foi instaurada a modalidade de aquisição de equipamentos (tanto para testes imunológicos como para
virológicos) através do comodato. Esta estratégia foi adotada com vistas a reduzir
os custos fixos relativos à depreciação do equipamento (cerca de 5 anos) e à sua
manutenção técnica, ao mesmo tempo em que permitia a introdução de equipamentos mais modernos, caso necessário.
Figura 2 – Evolução das Redes Nacionais de Laboratórios (RNL)
100
90
CD4/CD8
80
Carga Viral
78
Número de labs
70
73
65
50
52
40
20
82
70
60
30
91
88
82
41
32 30
10
0
1997
1998
2001-2002
2004
2005/2006
2007
Ano
Fonte: Departamento de DST/Aids e Hepatites Virais (2008).
No intuito de romper o monopólio das empresas fornecedoras e promover uma
significativa redução do preço dos testes de monitoramento, o governo brasileiro decidiu proceder à descentralização dos processos de aquisição, em meados de 2001.
2001-2004 – o período de descentralização
Este período estabeleceu o marco histórico mais relevante no processo de desenvolvimento tecnológico e fortalecimento institucional das Redes Nacionais de Laboratórios. Nesta ocasião, foi desenvolvido um novo instrumento institucional, a
Ata Nacional de Preços, o qual visava promover homogeneidade nos processos de
aquisição realizados entre os laboratórios de referência de todo o país. Além disso,
a Ata destinava assegurar a definição de um preço mais acessível, a partir da negociação centralizada em nível federal, a qual permitia melhor margem de negociação, graças às economias obtidas nas aquisições realizadas em grande volume.
Uma das características mais relevantes do período de descentralização refere-se à tentativa de uma estratégia nacional que visasse o estabelecimento do equilíbrio entre as atividades realizadas de forma centralizada, realizadas no âmbito do
Departamento de DST/Aids – tais como o planejamento da demanda, a definição
de padrões de qualidade e boas práticas e a definição dos orçamentos de esta-
170
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
dos e municípios – e as atividades de implantação e gestão realizadas de maneira
descentralizada, realizadas no âmbito dos estados e municípios [27]. O fortalecimento institucional das Redes contou também com o suporte financeiro provido
pelo Banco Mundial, através do Acordo de Empréstimo Aids II185, 186. Ainda, é importante mencionar a criação do SISCEL,187 um sistema nacional de informação
para o gerenciamento dos testes de T- CD4+/CD8+ e de CV em nível nacional, o qual
contribui significativamente para o desenvolvimento das estratégias de coordenação das Redes. Da mesma forma, este Sistema consiste em um forte indicador da
eficiência do Sistema Único de Saúde (SUS) 188 [28].
A RCD observou uma fraca expansão no número de laboratórios (apenas quatro novos laboratórios integraram-se à Rede) neste período e o aumento no número de testes adquiridos foi de 18% (cerca de 623.000 testes, no total). No entanto,
a Rede submeteu-se a um considerável desenvolvimento no uso de tecnologias
mais sofisticadas. A partir de 2004, todos os laboratórios nacionais foram capacitados pelo Departamento de DST/Aids no uso do sistema FacsCaliburTM,189 fornecido
pela Becton Dickinson.
No que tange à expansão da RCV, este foi um período de grandes desafios
tecnológicos, uma vez que os laboratórios viram-se impelidos a se adaptarem às
novas tecnologias de quantificação, através da introdução de novas empresas concorrentes (Bayer e Roche) no mercado nacional. De fato, com o intuito de estimular
a competição de mercado e confrontar o monopólio estabelecido pela empresa
BioMérieux (antiga Organon),190 o Departamento de DST/Aids e Hepatites Virais
estabeleceu uma divisão “virtual” do território nacional, a qual consistiu de três regiões, com vistas a promover uma efetiva redução de preço para esta tecnologia.
Esta divisão foi estabelecida tomando como principal critério que todas as regiões
185 O Banco Mundial, em parceria com o BIRD, investiu 300 milhões de dólares americanos no Programa de Aids no Brasil, no período entre 1998-2003, através do Acordo de Empréstimo AIDS II. O Acordo
consistia de três eixos principais: (i) Prevenção da Aids e de DST (128 milhões de dólares americanos);
(ii) Diagnóstico, tratamento e aconselhamento de pessoas vivendo com HIV, Aids e DST (102 milhões de
dólares americanos) e (iii) Fortalecimento Institucional (70 milhões de dólares americanos).
186 O eixo do Acordo Aids II intitulado “Fortalecimento Institucional” incluía, entre outras atividades, o
suporte financeiro referente à implementação das Redes Nacionais de Laboratórios para o monitoramento do HIV/AIDS [28].
187 Sistema de Controle de Exames Laboratoriais da Rede Nacional de Contagem de Linfócitos Cd4+/
Cd8+ e Carga Viral (SISCEL).
188 Por exemplo, no ano de 2006, de acordo com os dados do SISCEL, o uso de testes de CD4+/CD8+ e
de CV corresponderam, respectivamente, a 82.9% e 71.6% da demanda nacional estimada.
189 Decorridos 12 anos após a sua comercialização no Mercado internacional, o sistema FACSCountTM foi atualizado com vistas a atender às novas demandas solicitadas pela epidemia de DST/AIDS, tais
como o monitoramento pediátrico. A empresa foi solicitada a modificar os parâmetros desta tecnologia,
a fim de preencher esta lacuna. O novo sistema, baseado na citometria de fluxo realizada a partir de
três cores, permite o cálculo simultâneo do valor absoluto e percentual para as células CD4+, sendo o
primeiro parâmetro um indicador essencial para o monitoramento de recém-nascidos e crianças [29];
[30]. Ainda, o sistema permite a realização da quantificação dos valores absolutos para as células CD3+
e CD8+.
190 A empresa BioMérieux adquiriu a empresa Organon Teknika em junho de 2001.
Capítulo 9. A arquitetura do mercado de teste de monitoramento do HIV/Aids
171
apresentassem aproximadamente a mesma demanda por testes de CV. Inicialmente, esta estratégia alcançou resultados exitosos para a redução do preço unitário
dos testes de CV, uma vez que o Departamento de DST/Aids reduziu o preço do
teste de CV para 29 dólares americanos.191 No entanto, apesar das economias obtidas nos primeiros anos deste período, o número limitado de fornecedores e as
especificidades de cada tecnologia favoreceram o estabelecimento de práticas de
cartel entre as empresas.
A este respeito, o processo de licitação realizado no ano de 2004 foi bastante
representativo desta situação uma vez que, nesta ocasião, as três empresas fornecedoras (Roche, BioMérieux e Bayer), apesar de terem participado do processo,
não atingiram o preço de referência estabelecido. Ainda, o processo de descentralização não obteve êxito no âmbito dos laboratórios estaduais de menor porte, os
quais careciam de visão política local e de capacidade técnica e gerencial.192 De
fato, a experiência de descentralização trouxe sérias consequências para a continuidade do monitoramento dos pacientes de HIV/Aids e, consequentemente, em
custos adicionais para o Departamento de DST/Aids e Hepatites Virais. As dificuldades no gerenciamento pelos governos estaduais quanto aos seus respectivos
orçamentos incorreram em significativos atrasos no pagamento às empresas fornecedoras de testes e no desabastecimento de determinadas regiões. Em determinados estados, os pacientes limitaram-se à execução de apenas um teste por ano.
Deste modo, a fim de sanar as precariedades destes laboratórios, assim como de
assegurar a redução de preços para os testes de monitoramento, o governo brasileiro decidiu reinstaurar o processo de centralização, em 2004.193
De meados de 2004 até hoje – a retomada
do processo de centralização
O início da retomada do processo de centralização pelo Departamento de DST/
Aids caracterizou-se não somente como uma iniciativa visando sanar as dificuldades acima mencionadas, como também pela necessidade de introdução de novos
regimes terapêuticos de segunda e terceira geração, assim como dos testes de contagem dos linfócitos T-CD45+ empregados no monitoramento de crianças HIV+.
Este período alavancou consideravelmente a expansão da RCD, através da incorporação de 10 novos laboratórios de referência, assim como no aumento de
95% do número de testes imunológicos a serem distribuídos, entre 2004 e 2006.
Neste mesmo período, 1.214.190 testes FacsCountTM foram distribuídos para estados e municípios, assegurando, desta forma, a cobertura nacional. Ainda, o De-
191 Outro fator relevante refere-se ao aumento da demanda pour ARV (vide Referência 9).
192 Comunicação pessoal com Paulo Teixeira e Alexandre Grangeiro (2008).
193 Através da Portaria n. 1015/2004.
172
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
partamento de DST/Aids alcançou uma redução de preço considerável no preço
unitário deste teste, reduzindo-o para 7,20 dólares americanos.
A introdução da contagem dos linfócitos T-CD45+ para o monitoramento pediátrico nas diretrizes nacionais de 2007, não somente criou uma nova demanda
nacional – e, portanto, um novo mercado – como também apresentou um impacto considerável na organização da demanda por testes imunológicos a partir de
2008.194 Isto decorreu do fato de que a quantificação deste tipo de linfócitos passou a exigir a utilização de uma tecnologia mais sensível, também comercializada pela Becton Dickinson, denominada pela marca MultiTEST TM. No início do ano,
apenas 20 dos 92 laboratórios que constituem a Rede eram capazes de realizar
esta tecnologia. Decorridos 18 meses, todos os laboratórios integrantes da Rede
encontravam-se aptos para a realização destes testes. [24]
A necessidade da retomada do processo de centralização pelo Departamento
de DST/Aids fez-se sentir de maneira mais evidente pelos laboratórios integrantes
da RCV, devido às dificuldades dos laboratórios de pequeno e médio porte de confrontarem-se às barreiras específicas impostas pelo mercado de testes de quantificação da carga viral. Estas barreiras tornaram-se ainda mais evidentes no decorrer
do período de descentralização, devido ao período de forte turbulência política
estabelecido pelas negociações com duas das empresas fornecedoras (particularmente, Roche e Abbott) quanto ao estabelecimento de iniciativas visando a redução de preços de determinados antirretrovirais estratégicos.
Desde o início do período de centralização, o Departamento de DST/Aids tem
ampliado consideravelmente a aquisição de testes de quantificação da carga viral e
investido na expansão da Rede. O número de testes distribuídos passou de 604.181
para 981.091, no período entre 2004-2006 e 13 novos laboratórios de referência passaram a integrar a RCV (ver Figura 2). Da mesma forma, os laboratórios passaram
a receber cursos de treinamento anuais com vista à promoção da capacidade nacional na incorporação da nova tecnologia de quantificação da CV em tempo real,
a qual deverá ser qualificada mediante avaliação da eficácia em relação ao painel
sorológico nacional e incorporada em toda a Rede, até meados de 2010. [31 – 32]
III.3. Discussão
Contrariamente às experiências observadas na expansão da Rede Nacional de Laboratórios para quantificação da Carga Viral, não foram observadas iniciativas por
parte do governo federal visando à oposição do monopólio estabelecido pela empresa Becton Dickinson no mercado de testes de contagem dos linfócitos T- CD4+/
194 Em 2008, o Departamento de DST/AIDS e Hepatites Virais procedeu à aquisição de 30.000 testes de
CD45+, a um preço unitário de 16 dólares americanos por teste. Se comparado à demanda nacional por
testes de CD4+/CD8+ destinados ao monitoramento de adultos, os testes de CD45+ são comercializados a um preço 2,2 vezes mais elevado e representa 8% da demanda nacional por testes imunológicos
destinados ao monitoramento do HIV/AIDS (vide Tabela 2).
Capítulo 9. A arquitetura do mercado de teste de monitoramento do HIV/Aids
173
CD8+. Embora o governo federal fizesse várias investidas em potenciais empresas
entrantes no mercado mundial, as mesmas não demonstraram interesse em abastecer o mercado nacional devido ao elevado número de laboratórios constituindo
as Redes e pela intensa divisão do mercado global entre as três empresas líderes
anteriormente citadas.195
Não obstante as garantias quanto à utilização de equipamentos e técnicas
atualizadas para a execução destes testes imunológicos (contagem dos linfócitos
T-CD4+/CD8+) estabelecida pelos processos de licitação, os laboratórios nacionais
permanecem à margem de uma efetiva capacitação nacional quanto ao desenvolvimento tecnológico dos mesmos, visto que, desde a implantação da Rede, não se
observou qualquer iniciativa referente à transferência das tecnologias empregadas
para a sua produção. A mesma situação é observada para o novo mercado dos
testes de contagem dos linfócitos T-CD45+, destinados à crianças HIV+. Esta situação estabelece, portanto, uma condição de elevada dependência tecnológica dos
laboratórios, os quais são constantemente compelidos à adaptarem-se – técnica e
fisicamente – às novas exigências estabelecidas pelo fornecedor.
Ainda, importa lembrar que, à medida que a tecnologia para a quantificação
dos linfócitos T evolui, o preço final destes testes de monitoramento aumenta
proporcionalmente, sobretudo, no que se refere aos novos equipamentos utilizados.196 Ainda que este custo seja introduzido no valor final do teste, através da
modalidade de comodato, este representa uma questão importante para a sustentabilidade da expansão da Rede Nacional de Laboratórios para contagem dos
Linfócitos CD4+/CD8+, em particular, em situações de transição tecnológica (a
exemplo da migração da tecnologia FACSCount para a tecnologia FACSCalibur).
Tais situações requerem o uso de tecnologia e equipamentos mais sofisticados, os
quais representam um custo adicional considerável para a Rede, tendo em vista
que o equipamento anterior (FACSCount) custa aproximadamente 25.000 dólares
americanos, enquanto que o atual (FACSCalibur) é comercializado no valor médio
de 85.000 dólares americanos.197
A transição de um monopólio para um oligopólio ocorrida no período de descentralização permitiu não somente a capacitação da Rede Nacional de Laboratórios para quantificação da Carga Viral nas diversas tecnologias disponíveis, como
também uma melhor compreensão da organização deste mercado. Não obstante,
a elevada especialização das tecnologias, a dependência tecnológica dos laboratórios nacionais em relação aos fornecedores e as dificuldades técnicas e logísticas
quanto à negociação, aquisição e execução dos testes estabeleceram uma situação de vulnerabilidade dos pequenos e médios estados, os quais ainda carecem
195 A empresa beneficia-se da vantagem competitiva vis-à-vis seus competidores, de ter sido a primeira
a se estabelecer no mercado nacional.
196 O tempo estimado para a depreciação do equipamento é de 4 anos.
197 Preço FOB.
174
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
de apoio técnico e financeiro para atingir sua autonomia na gestão dos testes de
monitoramento. Esta situação poderá tornar-se ainda mais evidente a partir da introdução das técnicas de quantificação da CV em tempo real, a qual demandará
ainda maiores investimentos no treinamento e na infraestrutura destes laboratórios e contará com a participação de um número ainda maior de empresas concorrentes.198 Uma potencial solução para esta situação consiste no estabelecimento
de uma política nacional visando o fortalecimento das capacidades de pesquisa
científica e desenvolvimento tecnológico dos laboratórios universitários, os quais
correspondem a 20% do número total de laboratórios integrantes [31-32].
IV. Conclusões
O mercado de testes de monitoramento apresenta características distintas no
que se refere aos mercados de testes imunológicos e virológicos. A necessidade
de fortalecimento institucional, não somente em nível político como também no
que se refere à organização das Redes Nacionais de Laboratórios, tenderá a ser
ainda mais clara, à medida que a demanda por tratamentos mais robustos de segunda e terceira linha, assim como o monitoramento da resistência viral, evolua
com o perfil da epidemia. A experiência brasileira quanto à construção das Redes
Nacionais representa, desta forma, uma importante fonte de aprendizado quanto
ao entendimento da organização e do comportamento do mercado de testes de
monitoramento do HIV/Aids, assim como os diversos desafios que o mesmo impõe
à sustentabilidade das Respostas Nacionais ao HIV/Aids em países em desenvolvimento e países de menor desenvolvimento relativo.
A situação de elevada dependência tecnológica dos laboratórios nacionais
quanto ao conhecimento das tecnologias de monitoramento do HIV/Aids poderá
ser redimida através da implantação de políticas de incentivo à pesquisa e desenvolvimento em tecnologias de laboratório visando a produção nacional das mesmas,
a exemplo da experiência nacional na produção de medicamentos antirretrovirais.
Para tanto, as Redes Nacionais de Laboratórios contam com um número considerável de laboratórios universitários (cerca de 20%), os quais poderão absorver esta
capacidade tecnológica e, potencialmente, reduzir os preços destes testes.
As fragilidades físicas, técnicas e a evasão de competências dos laboratórios
localizados nos pequenos e médios estados, apresentadas nos diversos períodos
de centralização e de descentralização, representam desafios importantes para a
198 Atualmente, cinco empresas líderes detêm as tecnologias de quantificação da CV em tempo real: Siemens, Roche, Abbot, BioMérieux, e Quiagen, Atualmente, o Departamento de DST/AIDS e HV têm envidado esforços para a avaliação das cinco metodologias de mercado, baseada nos custos, infraestrutura necessária e avaliação do desempenho destas quanto à detecção de todos os subtipos circulantes no Brasil.
Capítulo 9. A arquitetura do mercado de teste de monitoramento do HIV/Aids
175
sustentabilidade do monitoramento terapêutico de indivíduos vivendo com o HIV/
Aids, o qual constitui-se em um componente essencial da Resposta Nacional à epidemia. Estas fragilidades poderão acentuar-se ainda mais com a introdução das
novas tecnologias de monitoramento em tempo real, a ser utilizada na quantificação da CV. Neste contexto, importa que as iniciativas de capacitação e treinamento
das equipes de laboratório sejam ainda mais reforçadas, mediante o estabelecimento de uma parceria público-privada entre o Departamento de DST/Aids e o
setor privado, representado pelos fornecedores dos testes de monitoramento.
A experiência brasileira referente à implantação das Redes Nacionais de Laboratórios, poderá servir como importante fonte de aprendizado para os países de
baixa renda engajados na luta contra o HIV/AIDS. Diversos são os conhecimentos
adquiridos a partir do caso brasileiro, dentre os quais: (i) o entendimento da dinâmica do mercado dos testes de monitoramento; (ii) o uso de estratégias visando a
quebra da estrutura de monopólio/oligopólio; (iii) a avaliação dos custos de aprendizado e de coordenação ao se estabelecer as Redes Nacionais de Laboratórios; e
finalmente, (iv) a percepção da premente necessidade de promoção de uma constante qualificação dos laboratórios e dos recursos humanos envolvidos. Muitas dificuldades restam ainda a ser enfrentadas por estes países, sobretudo no que diz
respeito à normalização das técnicas laboratoriais e da informatização dos resultados dos testes. Não obstante, o monitoramento terapêutico do HIV/Aids é uma
premissa essencial para o bom funcionamento das políticas nacionais de HIV/Aids
e é necessário que os governos destes países sejam sensibilizados a este respeito.
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178
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
CAPÍTULO 10
Competências e desafios para uma maior
oferta de antirretrovirais no Brasil
Adelaide Antunes
Andressa Gusmão
Flavia Mendes
Fernando Tibau
Paola Galera
Rodrigo Cartaxo
Resumo: A aquisição de medicamentos para o combate a Aids no Brasil sempre
foi motivo de discussões do governo, especialmente em relação à sustentabilidade
da política de acesso, quer via importações ou produção local dos antirretrovirais
(ARVs). O presente estudo aborda as competências e desafios para alavancar a produção de ARVs no Brasil. Para isso, utiliza-se a metodologia de prospecção mercadológica para análise dos fármacos e medicamentos utilizados no tratamento da
Aids no Brasil, a produção e o potencial nacional, os produtores internacionais de
princípios ativos e explicita-se a capacidade técnico-científica do país em síntese
química, formulação, ensaios clínicos, estabilidade de medicamentos, controle de
qualidade, biodisponibilidade e bioequivalência.
Palavras-chaves: Medicamento antirretroviral, Competências, Produtores, Prospecção mercadológica, Patentes.
I. Introdução
No Brasil, aproximadamente 187 mil pacientes faziam tratamento, em 2009, com
os medicamentos antirretrovirais (ARVs), que são distribuídos gratuitamente pelo
Sistema Único de Saúde (SUS) [1].
Em 2008, o SUS utilizava 18 princípios ativos para o tratamento da Aids, divididos em cinco classes terapêuticas: a classe dos Inibidores Nucleosídeos de
Transcriptase Reversa (ITRN), que envolve a Zidovudina, o Abacavir, a Didanosina,
a Estavudina, a Lamivudina e o Tenofovir; a classe dos Inibidores Não Nucleosídeos de Transcriptase Reversa (ITRNN), que compreende o Efavirenz e a Nevirapina;
os Inibidores de Protease (IP), onde se enquadram o Amprenavir, o Atazanavir, o
Darunavir, o Fosamprenavir, o Indinavir, o Lopinavir, o Ritonavir e o Saquinavir; os
Inibidores de Fusão (IF), com a Enfuvirtida; e os Inibidores de Integrase (II), representados pelo Raltegravir [2].
Até o ano de 2007, 16 medicamentos eram utilizados para o tratamento da Aids
no Brasil. O medicamento contendo o princípio ativo Nelfinavir fazia parte da lista do
SUS, mas foi retirado de circulação após problemas de contaminação no processo de
produção de alguns lotes da empresa produtora Roche, quando houve o cancelamento do contrato entre o Ministério da Saúde (MS) e o laboratório responsável.
Em 2008, com a divulgação da 7ª edição das Recomendações para Terapia Antirretroviral em Adultos Infectados pelo HIV, do Ministério da Saúde, foram incluídos
o Darunavir, o Fosamprenavir e o Raltegravir na lista dos medicamentos fornecidos
gratuitamente pelo governo brasileiro, como uma alternativa aos pacientes que
desenvolveram resistência a outros ARVs.
O Brasil conta com produção de alguns princípios ativos e medicamentos ARVs,
entretanto, a produção não é suficiente para atender totalmente a demanda do
país, havendo necessidade de importação complementar, além da aquisição de
fármacos e medicamentos que não possuem produção nacional.
Tendo em vista a referida dependência de importações, seria muito desejável o
aumento de investimentos na integração universidade-empresa para a produção
interna de princípios ativos e medicamentos, no país. O primeiro caso sucesso de
produção de antirretroviral (ARV) foi com a empresa brasileira Microbiológica Química e Farmacêutica Ltda., formada por pesquisadores da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, que deu início em 1990 a um projeto que permitiu que se chegasse,
em pouco tempo, ao princípio ativo da Zidovudina (AZT). A grande contribuição da
empresa foi produzir, de forma totalmente verticalizada, o princípio ativo e o medicamento em cinco etapas de síntese, a partir da matéria-prima básica Timidina. O
Brasil tornou-se, então, o único país da América Latina a produzir o AZT [3].
A Zidovudina brasileira foi aprovada em 1992 pela então Secretaria Nacional de
Vigilância Sanitária (atual Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA199) e
lançada oficialmente no ano seguinte, durante a conferência internacional de Aids,
realizada no Rio de Janeiro. A Microbiológica passou a produzir a matéria-prima
e a formular este medicamento utilizando técnicas inovadoras. Ainda em 1992, a
empresa venceu uma concorrência aberta pelo Ministério da Saúde, para fornecer
16.600 frascos de AZT, fazendo com que, inicialmente, o custo médio do frasco caísse 50% em relação ao produto importado. Este exemplo do AZT mostra que, com
o incentivo de garantia de compra feito pelo Estado, é possível a produção de ARVs
no país com competências nacionais.
Este capítulo tem como objetivo apresentar as competências brasileiras em
oferta de ARVs, bem como os desafios a serem enfrentados para alcançar uma
199 A criação da ANVISA se deu apenas em 1999.
180
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
maior oferta no país. O capítulo está dividido em quatro seções, onde na primeira
são analisadas as importações dos fármacos e medicamentos ARVs, apresentando
o déficit na balança comercial brasileira. A segunda seção diz respeito às competências na produção de intermediários de síntese, princípios ativos e medicamentos ARVs no Brasil, apresentando a capacidade produtiva e os gargalos enfrentados
para cada uma das etapas de produção nas empresas e laboratórios. Nesta mesma seção são abordadas as competências nacionais existentes nas universidades,
como forma de aumentar a pesquisa e desenvolvimento do País. A terceira seção
foca o potencial de inovação brasileiro e sua comparação com o mundo, através da
análise de depósitos de patentes dos ARVs distribuídos pelo Ministério da Saúde. A
quarta seção apresenta algumas propostas para superar os desafios do setor e aumentar a produção de fármacos e medicamentos ARVs, seguida pela última seção,
onde são feitas as considerações finais.
II. A dependência nas importações de ARVs
A dependência externa de intermediários farmacêuticos, princípios ativos e medicamentos está refletida no déficit da balança comercial de produtos químicos brasileira. Segundo a Associação Brasileira de Produtos Químicos, apesar do aumento
das exportações nos últimos anos, a importação também vem crescendo de forma
significativa [7].
Com relação aos ARVs, existe uma grande dependência nas importações do
Abacavir, Amprenavir, Atazanavir, Darunavir, Enfuvirtida, Fosamprenavir, Lopinavir,
Raltegravir e Tenofovir. Esses nove princípios ativos não são produzidos nacionalmente e são importados diretamente como medicamento.
Observa-se também, que os outros nove princípios ativos restantes dos 18 distribuídos pelo SUS: Didanosina, Efavirenz, Estavudina, Indinavir, Lamivudina, Nevirapina, Ritonavir, Saquinavir e Zidovudina, possuem parte da demanda interna
suprida pela oferta nacional, mas ainda assim existe grande dispêndio em importação desses princípios ativos e seus medicamentos.
Essa grande dependência externa para aquisição de produtos farmacêuticos destinados ao tratamento da Aids, pode ser observada na Tabela 1 onde constam, para
cada ARV, os valores de importação em 2008 dos princípios ativos, Capítulo 29 da Nomenclatura Comum Mercosul (NCM),200 e dos medicamentos, Capítulo 30 da NCM.
200 NCM é o código para a classificação de mercadorias importadas e/ou exportadas utilizado pelos
países do Mercosul.
Capítulo 10. Competências e desafios para uma maior oferta de antirretrovirais no Brasil
181
Tabela 1 – Relação dos medicamentos para tratamento da
Aids no Brasil e valores de importação, 2008
Medicamentos distribuídos
no Brasil
Sigla
Valor de Importação em
2008 do PRINCÍPIO ATIVO
Valor de Importação em
2008 do MEDICAMENTO
US$ FOB
US$ FOB
Abacavir
ABC
0
4.960
Atazanavir
ATV
0
57.589.482
Amprenavir
APV
0
2.036.764
Darunavir
DRV
30
3.400.878
Didanosina
ddI
1.627
4.581.200
Efavirenz
EFV
418.276
14.184.764
Enfuvirtida
ENF
0
21.203.112
Estavudina
d4T
0
72.704
Fosamprenavir
FPV
0
6.113.400
Indinavir
IDV
940.000
0
Lamivudina
3TC
2.730.637
1.055.114
Lopinavir
LPV
0
46.431.769
Nevirapina
NVP
497.050
440.846
Raltegravir
-
0
3.672.365
Ritonavir
r
284.508
5.055.987
Saquinavir
SQV
362.859
14.534
Tenofovir
TDF
0
52.116.625
Zidovudina
AZT
3.423.079
51.100
8.658.066
220.554.778
TOTAL DE IMPORTAÇÃO
Fonte: elaboração do SIQUIM/EQ/UFRJ com fonte da ALICEWEB e do
Ministério da Saúde, ambos com acesso em março/2010.
Os gastos totais em 2008 com a importação de princípios ativos ARVs foram de
aproximadamente US$ 8,7 milhões. Já a importação de medicamentos ARVs, no
mesmo ano considerado, foi superior a US$ 200,5 milhões, sendo o Atazanavir e o
Tenofovir responsáveis por mais de 50% deste valor. Dessa forma, o desafio está em
reverter a alta dependência externa.
A seguir, serão avaliadas as competências produtivas de empresas e laboratórios, apontando os principais gargalos quando analisadas a produção de intermediários, princípios ativos e medicamentos ARVs, bem como a competência nacional
em P&D presente nas universidades.
182
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
III. Competências nacionais
III.1. Competências produtivas: empresas e laboratórios
A produção de ARVs, assim como a de medicamentos em geral, é feita por um
conjunto de processos químicos/físicos complexos, que estão sujeitos a rígidos regulamentos para garantia da qualidade dos mesmos. A cadeia produtiva pode ser
dividida em três grandes elos, que compreendem: a fabricação dos intermediários
de síntese (matéria-prima para a produção dos princípios ativos); a produção do
princípio ativo (fármacos); e a formulação do medicamento.
Considerando esses elos, a produção de “intermediários de síntese” se caracteriza como a mais frágil no Brasil, não só para os intermediários utilizados na produção de medicamentos para o tratamento da Aids, mas em medicamentos de uma
maneira geral, sendo raros os casos de produção de matérias-primas para o setor
farmacêutico no país. Isso se deve ao fato do complexo farmacêutico brasileiro estar apoiado principalmente na formulação de medicamentos e em sua comercialização e marketing. Além disso, os países asiáticos, com destaque para China e
Índia, possuem inúmeros fornecedores com baixos preços, o que, associado à política cambial brasileira desfavorável e falta de isonomia sanitária e tributária com os
produtos importados, inviabiliza a competição e a produção nacional [4]. Assim, a
importação de intermediários acaba sendo mais vantajosa economicamente para
as empresas nacionais produtoras de princípios ativos, representando um entrave
para o desenvolvimento deste elo no país.
No caso dos ARVs, segundo especialistas, o país produz apenas três intermediários destinados à fabricação de princípios ativos: a Betatimidina, para a produção
da Zidovudina e Estavudina; e a Citosina e o Glioxilato de L-mentila, para Lamivudina. Em parte, o fato está relacionado à modalidade de compra governamental que
é feita através de leilões eletrônicos sem anúncio prévio, onde se avalia o menor
preço ofertado. Se o planejamento de compra dos medicamentos for estabelecido
e divulgado para os próximos três a cinco anos, a produção de princípios ativos
assim como de intermediários no país poderia ser mais diversificada.
Da mesma maneira que os intermediários de síntese, a produção de princípios
ativos também é dificultada pelo sistema de compras praticado pelo governo através dos laboratórios oficiais, onde há a necessidade de produção em um curto
espaço de tempo. As empresas nacionais, para se tornarem competitivas nos pregões, sintetizam o fármaco a partir da importação de um intermediário químico
mais avançado, realizando um número menor de etapas de síntese. Dessa forma,
conseguem reduzir o tempo de produção e atender parte da demanda interna. A
compra de intermediários mais avançados reflete em um aumento no valor das
importações de produtos químicos.
Capítulo 10. Competências e desafios para uma maior oferta de antirretrovirais no Brasil
183
Em consulta às empresas de síntese no Brasil, existem apenas seis delas dedicadas à produção de princípios ativos farmacêuticos para fabricação de medicamentos ARVs: a Cristália, a Ecadil Indústria Química,201 a Globe Química, a Medapi, a
Microbiológica e a Nortec Química. Todas são de capital privado e juntas possuem
capacidade produtiva de 10 fármacos: Didanosina, Efavirenz, Estavudina, Indinavir,
Lamivudina, Nevirapina, Ritonavir, Saquinavir, Tenofovir202 e Zidovudina.
Outro fator apontado pelo empresariado nacional, como barreira para produção de princípios ativos no país, está relacionado à absorção de tecnologia das universidades para o setor produtivo. Existem diversos entraves na transposição da
escala laboratorial para a escala-piloto ou industrial, relacionados com parâmetros
de produção como temperatura e pressão.
Considerando a formulação de medicamentos, o Brasil possui laboratórios
oficiais financiados pelo governo que formulam medicamentos para atender às
necessidades dos programas do SUS, além de empresas privadas. Segundo o Ministério da Saúde, existem atualmente 20 laboratórios oficiais no país. A partir da
década de 1990, alguns começaram a disponibilizar ARVs, sendo que em 2010, foram identificados sete laboratórios produtores de medicamentos ARVs: Instituto
de Tecnologia em Fármacos da Fundação Oswaldo Cruz (Farmanguinhos/Fiocruz),
Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco (LAFEPE), Fundação para o
Remédio Popular (FURP), Laboratório Industrial Farmacêutico de Alagoas (LIFAL),
Fundação Ezequiel Dias (FUNED), Indústria Química do Estado de Goiás (IQUEGO)
e Laboratório Químico-Farmacêutico da Aeronáutica (LAQFA). Esses laboratórios
são responsáveis pela formulação da Didanosina, Efavirenz, Estavudina, Indinavir,
Lamivudina, Nevirapina e Zidovudina.
O país conta também com três laboratórios farmacêuticos nacionais de capital privado: Cristália, Blausiegel e Laborvida, que produzem medicamentos ARVs
e participam dos leilões do governo. Tais laboratórios produzem efavirenz, lamivudina, ritonavir, saquinavir e zidovudina. Deve ser observado que há leilões para
a aquisição do produto acabado, quando não há ARVs, registrados pela rede de
laboratórios públicos ou quando excepcionalmente há falta de estoque.
Verificou-se a existência de laboratórios multinacionais que somente comercializam os ARVs no Brasil, mas não foram abordados neste estudo, pois sua produção
é feita em outros países.
A título de comparação foi montada a Tabela 2 com informações sobre o número de produtores nacionais e internacionais de princípios ativos ARVs. A Tabela
também apresenta o levantamento dos laboratórios nacionais produtores dos fármacos e medicamentos ARVs.
201 Atualmente a empresa está com suas atividades para produção farmoquímica temporariamente
paralisadas.
202 Ainda na fase de transposição de escala.
184
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Tabela 2 – Número de produtores nacionais e internacionais de princípios ativos e
levantamento dos produtores nacionais de princípios ativos e medicamentos
ARV
Produtores de Princípios Ativos (PA)
Mundo
Brasil
Produtores Nacionais de
Medicamentos
Abacavir
10 (7 China e 3 Índia)
0
0
Amprenavir
3 (2 China e 1 Grã-Bretanha)
0
0
Atazanavir
3 (1 China, 1 Índia e 1 Japão)
0
0
Darunavir
1 Estados Unidos
0
0
Didanosina
27 (14 China e 5 Índia)
2: Nortec Química, Globe
Química*
4: Farmanguinhos/Fiocruz,
FURP, LAFEPE, LIFAL
Efavirenz
13 (7 Índia e 5 China)
3: Globe Química, Cristália,
Nortec
2: Cristália, Farmanguinhos/
Fiocruz
Enfurvirtida
3 (2 China e 1 Alemanha)
0
0
Estavudina
36 (14 China e 11 Índia)
3: Ecadil Indústria
Química**, Nortec Química,
Microbiológica
3: Farmanguinhos/Fiocruz,
FURP, LAFEPE
Fosamprenavir
1 Estados Unidos
0
0
Indinavir
14 (6 Índia e 7 China)
2: Ecadil Indústria Química**,
Nortec Química
2: LAFEPE, LIFAL
Lamivudina
41 (17 China e 16 Índia)
4: Globe Química,
Nortec Química, Medapi,
Microbiológica
8: Blausiegel, Cristália,
Farmanguinhos/Fiocruz,
FUNED, FURP, IQUEGO,
Laborvida, LAFEPE
Lopinavir
8 (5 China e 3 Índia)
0
0
Nevirapina
22 (11 China e 7 Índia)
3: Ecadil Indústria Química**,
Medapi, Nortec Química
3: Farmanguinhos/Fiocruz,
FUNED, LIFAL
Raltegravir
2 (1 EUA e 1 Canadá)
0
0
Ritonavir
13 (7 China e 4 índia)
1: Cristália
1: Cristália
Saquinavir
15 (6 Índia e 5 China)
1: Cristália
1: Cristália
Tenofovir
17 (11 China e 4 Índia)
1: Globe Química***
0
Zidovudina
42 (15 China e 12 Índia)
4: Ecadil Indústria Química**,
Microbiológica, Nortec
Química, Globe Química***
7: Blausiegel,
Farmanguinhos/Fiocruz,
FUNED, FURP, IQUEGO,
Laborvida, LAFEPE
Fonte: Elaboração própria com dados de [8], Directory of World Chemical
Producers, 2010 e contato direto com empresas em novembro/2010.
Notas: Não foram localizados produtores nacionais nos itens com 0.
* Em fase de desenvolvimento. Segundo contato com a empresa, a comercialização está prevista para 2011-2012.
** A empresa Ecadil Indústria Química possui capacidade de produção dos fármacos, entretanto está com suas
atividades temporariamente paralisadas para produção farmoquímica.
*** Em fase de scale-up. Segundo contato com a empresa, a comercialização estava prevista para 2011.
No Brasil, é possível observar que alguns medicamentos só são produzidos por
laboratórios oficiais: Didanosina, Estavudina, Indinavir e Nevirapina; outros possuem produção em laboratórios do governo e de capital privado: Efavirenz, Lamivudina e Zidovudina; e dois deles possuem produção exclusivamente de empresa
privada: Ritonavir e Saquinavir, pela Cristália. Neste último caso, nota-se que a empresa em questão, Cristália, fabrica o princípio ativo apenas para uso cativo, sendo
uma empresa integrada de princípio ativo/medicamento.
Em relação à produção de princípios ativos no mundo, nota-se o domínio da
China e da Índia. Comparando tais países com o Brasil, uma vez que juntos com
Capítulo 10. Competências e desafios para uma maior oferta de antirretrovirais no Brasil
185
a Rússia fazem parte do BRIC,203 nota-se uma grande discrepância no número de
produtores. Tal fato pode ser explicado pela política industrial adotada por estes
países asiáticos. É oportuno lembrar que a estratégia da Índia em relação ao acordo
TRIPs,204 adiando por 10 anos o reconhecimento de documento de patente, possibilitou a este país se estruturar na produção de intermediários. Assim, enquanto o
Brasil aderiu ao TRIPs em 1995, abrindo mão do prazo disponível para os países em
desenvolvimento, a Índia só reconheceu a proteção da patente no setor farmacêutico no prazo final, ou seja, em 2005. Os países menos desenvolvidos, como alguns
países da África, terão até 2016 para implementar as disposições do acordo na área
farmacêutica.
III.2. Competências em P&D: universidades
A avaliação das competências nacionais não pode ser restringida apenas às empresas e laboratórios oficiais, é necessário abordar a existência de um complexo
tecnológico envolvendo, além desses atores, as universidades. No Brasil, as pesquisas no setor farmacêutico são feitas principalmente em universidades, dessa forma
busca-se a capacitação de mão de obra qualificada no país a fim de estimular o
crescimento do setor.
A aproximação do setor produtivo com a academia tem como objetivo a complementaridade das competências, buscando uma relação direta para geração de
inovações e conhecimento compartilhado. Dessa maneira, para estimular a P&D, as
empresas do setor farmacêutico vêm buscando na academia certas competências
nelas não existentes, já que a Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (P&D&I) são
essenciais para se tornarem competitivas.
Considerou-se fundamental para avaliação das competências nacionais a análise
da existência de especialistas em síntese e formulação, uma vez que somos tradicionais
importadores de tecnologias para produção da grande maioria de medicamentos.
O mapeamento das competências do país em P&D de fármacos e medicamentos
em geral identificou 561 líderes de pesquisa cadastrados no Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com o apoio de 329 grupos de pesquisadores em áreas essenciais ao desenvolvimento de fármacos e medicamentos.
Segundo o Portal de Inovação, do Ministério e Ciência e Tecnologia (MCT), foram identificadas as instituições dos especialistas de maior relevância205, levando
203 Brasil, Rússia, Índia e China – países emergentes que possuem características comuns.
204 O Acordo TRIPs (Agreement on Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights) é um acordo
internacional assinado no final de 1994 que foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro a partir
de 1º de janeiro de 1995. O TRIPs estabelece padrões mínimos de proteção à propriedade intelectual a
serem adotados por todos seus países signatários, diferenciando-se a data da obrigatoriedade para essa
adoção em função do grau de desenvolvimento relativo do país.
205 A classificação representa o percentual da ocorrência de palavras-chaves no currículo Lattes do
pesquisador, onde foram utilizados os nomes comuns dos ARVs juntamente com os termos síntese
186
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
em consideração a capacitação em síntese e formulação especificamente de ARVs,
que estão descritos na Tabela 3. Os profissionais encontrados com capacitação em
ensaios clínicos, estabilidade de medicamentos, controle de qualidade e biodisponibilidade e bioequivalência também foram levados em consideração.
O resultado encontrado nas áreas analisadas mostra que a grande competência
do país nas universidades está voltada para a síntese de princípios ativos, com 32
especialistas, em sua maior parte doutores em Química. As instituições com maior
atuação nessa área são: Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp) e Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Em relação à formulação especificamente de ARVs, foram encontrados somente
três especialistas de diferentes universidades, levando a crer que estes profissionais
estão mais presentes em empresas e laboratórios produtores de medicamentos do
que em universidades e centros de pesquisa.
Para a estabilidade de medicamentos, controle de qualidade e biodisponibilidade e bioequivalência, o país conta com 12 especialistas, sendo quatro deles
pertencentes à Universidade de São Paulo (USP). No ramo de ensaios clínicos em
ARVs, foram identificados oito doutores, com destaque para a Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Ainda que estes profissionais, que formam uma massa crítica de alto nível para
o desenvolvimento de ARVs, estejam empregados nas instituições respectivas indicadas na Tabela 3, a Lei de Inovação (Lei 10.973/04), permite a flexibilidade e a integração entre os pesquisadores presentes nas universidades e centros de pesquisas
com o setor produtivo. Esta Lei, implantada em 2004, estabelece medidas de incentivo à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo, com
vistas à capacitação e ao alcance da autonomia tecnológica e ao desenvolvimento
industrial do país. A partir desta lei, pretende-se estimular a inovação tecnológica
no Brasil, reduzindo assim a lacuna tecnológica existente, mas seu estabelecimento
ainda é bastante incipiente, tanto nas instituições de ensino quanto nas empresas.
e formulação. Após a leitura dos currículos encontrados, foram selecionados os doutores com maior
relevância no assunto.
Capítulo 10. Competências e desafios para uma maior oferta de antirretrovirais no Brasil
187
Tabela 3 – Especialistas com capacitação técnica em fármacos/medicamentos
ARVs no Brasil localizados no portal de Inovação do MCT
Capacitação
Instituição
Formação (Nível Doutorado)
Síntese
FIOCRUZ/RJ
Química Orgânica e Biorgânica (1)
Química Orgânica (1)
Química (3)
IME, SBQ
Química (1)
UERJ
Química (1)
UFF
Química Orgânica (1)
Química (1)
UFMG
Química Orgânica (1)
Química de Carboidratos (1)
UFPE
Química (2)
Farmácia (4)
UFPEL
Química (1)
UFRJ
Química Medicinal (1)
Química (1)
Química Orgânica (1)
UFSC
Química (1)
UFSCAR
Química (1)
UNICAMP
Química (4)
Física (1)
Formulação
188
UNISA, MACKENZIE
Farmácia (1)
URI
Química (1)
USP
Química Orgânica (2)
UFAL
Farmácia (1)
UFPE
Farmácia (1)
USP
Fármacos e Medicamentos (1)
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Capacitação
Instituição
Formação (Nível Doutorado)
Estabilidade de
Medicamentos /
Controle de Qualidade
/ Biodisponibilidade e
Bioequivalência
UFAL
Farmácia (1)
UFPB
Química (1)
UFPE
Farmácia (2)
UFRGS
Fármacos e Medicamentos (1)
Ciências Farmacêuticas (1)
UFRJ
Química (1)
UFS
Fármacos e Medicamentos (1)
USP
Química (Química Inorgânica) (1)
Fármacos e Medicamentos (2)
Química Analítica (1)
Ensaios Clínicos
FIOCRUZ
Medicina (1)
UFBA
Medicina e Saúde (2)
Doenças Infecciosas e Parasitárias (1)
UFRJ
Medicina Tropical (1)
UNIFESP
Ciências (Fisiopatologia Experimental) (1)
Infectologia (1)
USP
Doenças Infecciosas e Parasitárias (1)
Fonte: Portal de inovação do Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT), acesso on-line em outubro de 2010.
Os números entre parênteses representam o número de pesquisadores por área de formação.
Ainda assim, seus efeitos já podem ser observados, uma vez que nos últimos
anos, houve uma aproximação maior com a universidade por parte da indústria, na
busca por consultores acadêmicos, o que tem levado à formação de parcerias no
desenvolvimento de princípios ativos e medicamentos, como é o caso da Cristália
com o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Fármacos e Medicamentos
(INCT-INOFAR206).
A competição na indústria farmacêutica se baseia principalmente na diferenciação de produto, refletida nos elevados e contínuos investimentos em atividades
de P&D. Assim, o aumento da capacitação nacional se refletirá na maior inovação
para o país.
206 O INCT-INOFAR possui como metas principais articular, organizadamente, as competências nacionais existentes no país e situadas nos diferentes estágios da cadeia de fármacos e medicamentos, permitindo o avanço da inovação neste setor.
Capítulo 10. Competências e desafios para uma maior oferta de antirretrovirais no Brasil
189
IV. Potencial de inovação no Brasil e no mundo
A dinâmica das indústrias Farmoquímica e Farmacêutica é caracterizada pelo intensivo investimento em P&D. Esses setores necessitam do monitoramento da concorrência e das tendências de P&D para guiar estratégias de inovação, produção e
mercado.
Devido aos elevados riscos na produção de novas moléculas, tempo de desenvolvimento e altos investimentos em P&D, os laboratórios farmacêuticos alegam que
os custos só são possíveis de serem compensados mediante a exploração comercial
e o pagamento de royalties pelos licenciados. Isso torna o documento de patente
um importante mecanismo de proteção no setor por assegurar retorno financeiro
às empresas farmacêuticas, diferentemente de outros segmentos, mesmo aqueles
de alta tecnologia, onde existem outras possibilidades de garantir esse retorno financeiro que envolve capacidade de produção, segredo industrial e know how.
Por ser uma indústria que se baseia na diferenciação do produto, as empresas
líderes do mercado mundial destinam cerca de 10 a 20% do faturamento em P&D
[4]. No Brasil, o setor farmacêutico ainda investe muito pouco, menos de 1% do
faturamento, tornando fundamental para o país transformar o conhecimento científico em inovação [5].
Considerando-se que o documento de patente possui vigência de 20 anos após
o primeiro depósito, foi analisado o ano dos primeiros depósitos em ARVs para
avaliar se a primeira patente ainda está em vigor ou se já expirou, e também se o
mesmo depósito foi protegido no Brasil. Constata-se que o Abacavir, a Didanosina,
a Estavudina, a Lamivudina, a Nevirapina, o Saquinavir e a Zidovudina já não estão
sob proteção dessas patentes no mundo, possibilitando a produção de medicamentos genéricos. Desses princípios ativos com a primeira patente já expirada, o
Brasil somente não produz o abacavir. As primeiras patentes do Darunavir, Didanosina, Enfuvirtida, Estavudina, Indinavir, Lamivudina, Nevirapina, Ritonavir, Tenofovir e Zidovudina não foram protegidas no Brasil, permitindo aqui a cópia dessas
patentes para a produção do Darunavir e Enfuvirtida, que ainda não são fabricados
no país.
Para análise do potencial de inovação em ARVs no âmbito internacional, foi realizada a busca de patentes na base Derwent Innovation Index, uma base de dados
de reconhecida confiança, disponível no Portal Capes. A estratégia de busca utilizada leva em consideração o nome comum do ARV junto com os termos Aids ou
HIV presentes no título e/ou no resumo do documento. O período considerado foi
de 1996 a 2010, pois somente em 1996 foi aprovada a Lei de Patentes no Brasil, Lei
9.279/96, que regula os direitos e obrigações relativos à concessão de patentes.
O resultado do patenteamento no período mencionado pode ser observado no
Gráfico 1.
190
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Gráfico 1 – Número de depósitos de patentes no mundo por Antirretroviral
para o tratamento de HIV, no período de 1996 a 2010
Ritonavir
Indinavir
Saquinavir
Zidovudina
Lamivudina
Nevirapina
Efavirenz
Amprenavir
Abacavir
Didanosina
Estavudina
Tenofovir
Lopinavir
Atazanavir
Enfuvirtida
Darunavir
Raltegravir
527
461
441
434
383
362
329
320
304
297
293
216
216
172
107
63
36
Fonte: Elaboração SIQUIM com base nos dados de busca na Derwent Innovations Index, outubro/2010.
Ao analisarmos todas as patentes depositadas dos ARVs no mundo, considerado
o período mencionado, constatou-se a existência de 1.037 documentos distintos.
Vale observar que uma mesma patente pode fazer referência a mais de um ARV, por
exemplo, foram identificadas 15 patentes onde constavam os 18 ARVs estudados.
Tais documentos são relacionados a novos compostos utilizados nos medicamentos ARVs, que buscam inibir o desenvolvimento de resistência ao medicamento,
além de novos métodos para aumentar a farmacocinética dos medicamentos.
Analisando a série histórica de depósito dos documentos nos últimos 15 anos,
observa-se que em 1996 o número de patentes de ARVs no mundo era inexpressivo. O patenteamento ganhou força internacional apenas em 1998, com o depósito
de 69 patentes. Os anos seguintes apresentaram crescimento oscilante, atingindo
o pico em 2007, ano em que 118 patentes foram depositadas.
Pode-se destacar que, utilizando a estratégia de busca descrita anteriormente,
o antirretroviral Ritonavir, apresenta o maior número de patentes, possuindo 527
depósitos. Em seguida aparecem Indinavir, Saquinavir e Zidovudina, todos com
mais do que 400 depósitos de patentes cada. Cabe ressaltar que 15 do total de
18 ARVs apresentaram mais do que 100 patentes nesse período, o que evidencia
projetos de pesquisa nessa área.
Com a análise das patentes encontradas, observa-se que a maior parte está relacionada a inovações incrementais de depósitos feitos anteriormente. Drogas que
já tiveram suas patentes vencidas ainda estão sendo objetos de novos pedidos de
patenteamento que poderão vir a se constituir em inovações. As inovações incrementais que constam nessas patentes são, em sua maioria, preparação de novos
compostos e novas composições, assim como a preparação de derivados de compostos voltados para o tratamento do HIV.
Em relação aos depositantes em âmbito internacional, as empresas que mais
se destacam com patentes de ARVs são a SmithKline Beecham Corp. (41 patentes),
Abbot (40 patentes), Bristol Myers Squibb (40 patentes), Hoffmann La Roche (25
patentes), Glaxo Group Ltd. (24 patentes) e Gilead SCI Inc. (23 patentes). Os demais
depositantes possuem menos do que 20 patentes depositadas.
Em se tratando do detentor da tecnologia (sendo em geral o país de primeiro
depósito, ou seja, país de prioridade), os Estados Unidos é o principal líder em patenteamento com 721 patentes nos últimos 15 anos, o que representa 70% do total
de documentos encontrados na estratégia de busca utilizada. Os Estados Unidos
possuem 10 vezes mais patentes do que a Índia, que está em segundo lugar no
número de depósitos, mostrando a potência e a hegemonia que os americanos
têm com relação ao patenteamento em ARVs. Numa análise de em quais países
os Estados Unidos estão protegendo essas patentes, verificou-se que existe uma
preocupação em proteger tanto no próprio país como também na Europa (369
depósitos), Ásia (305 depósitos), Austrália (329 depósitos), Canadá (109 depósitos)
e México (149 depósitos). Enquanto no Brasil, com um pouco menos destaque do
que os outros países, foram depositadas 90 patentes pelos Estados Unidos.
Entretanto, quando se fala em mercados mais protegidos, ou seja, os locais com
maior depósito de patentes, os Estados Unidos já não se apresenta mais como o
mercado de maior proteção, pois 82% dos depósitos alocados no país são de residentes, isto é, empresas americanas. Numa análise mais detalhada, constata-se que
países como Austrália, Japão, China e Índia recebem mais depósitos de patentes
realizados por outros países do que documentos originados internamente. Nesses
quatro países, respectivamente, 98%, 94%, 84%, 77% das patentes foram depositadas por estrangeiros. Isso nos leva a concluir que o mercado asiático (Japão,
China e Índia) e a Austrália são o foco de proteção através do patenteamento em
antirretrovirais.
Com referência ao Brasil, foram constatados sete depósitos de patentes, nos últimos 15 anos, sendo o Brasil o país de prioridade do pedido de depósito. O país de
prioridade é o primeiro lugar do depósito da patente e indica, na grande maioria
das vezes, o país de origem da empresa e/ou inventores, ou seja, o local onde a tecnologia/pesquisa que levou à patente foi desenvolvida. Após este primeiro pedido,
o detentor da patente escolhe os outros países de interesse de proteção. Em relação aos documentos de patente com prioridade no país, quatro são da empresa
192
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
brasileira Cristália, duas da Instituição Fiocruz e uma da empresa SmithKline. A empresa brasileira Cristália possui como foco, em suas quatro patentes, a preparação
de novas composições contendo Ritonavir ou Saquinavir, ou ainda o Ritonavir associado ao Lopinavir para o tratamento do vírus HIV. Já o foco das duas patentes da
Fiocruz está na formulação do medicamento, no caso, tendo como componentes
a Nevirapina, Zidovudina e Lamivudina. Enquanto a SmithKline, como a empresa
Cristália, em sua única patente teve o foco para a preparação de nova composição
para o tratamento do vírus HIV.
Em relação ao mercado de proteção, 13% das patentes encontradas (133 patentes das 1.037) foram depositadas no Brasil. Dentre os depositantes, somente aparecem como residentes a empresa Cristália e a Instituição Fiocruz, conforme citado
anteriormente; e como não residentes, empresas multinacionais e universidades e
institutos de outros países. Pode-se mencionar como exemplo de multinacionais
não residentes, com depósitos no Brasil, as empresas Bristol Myers Squibb, Glaxo
Group Ltd., Abbott e Pfizer. Já as universidades e instituições internacionais com
proteção no Brasil são, em sua maioria, universidades americanas, tais como a Universidade da Geórgia, Universidade de Pittsburgh, Universidade do Texas, Universidade da Carolina do Sul, Universidade da Califórnia e Instituto de Biotecnologia da
Universidade de Maryland. Porém, o Brasil não foi o único país de depósito dessas
instituições, que buscaram proteger também em outros países.
As patentes depositadas no Brasil pelas empresas e instituições não residentes
tratam de formulação de medicamentos, preparação de novos derivados de alguns
compostos, preparação de composição farmacêutica, preparação de combinações
anti-HIV, método para melhorar a farmacocinética de determinado composto no
tratamento, nova célula recombinante para detectar o vírus do HIV, preparação de
novo nucleosídeo como agente antiviral, entre outras novidades e aplicações.
Em resumo, pode-se dizer que as patentes depositadas no Brasil, tanto das empresas multinacionais quanto das instituições estrangeiras, abrangem vários tipos
de vantagens e melhoramento das tecnologias já depositadas, assim como novas
aplicações e usos, demonstrando a tendência dessas empresas em proteger no
Brasil tecnologias que envolvem inovações incrementais.
V. Como superar desafios
Existem diversos desafios que precisam ser enfrentados para alavancar a produção
integrada de ARVs no Brasil, que envolve a produção de intermediários de síntese,
princípios ativos e medicamentos. A produção nacional de fármacos e medicamentos ARVs não possui infraestrutura suficiente, em relação à capacidade tecnológica e
incentivos legais, para competir internacionalmente. A produção em países asiáticos
Capítulo 10. Competências e desafios para uma maior oferta de antirretrovirais no Brasil
193
está muito mais avançada em termos tecnológicos, além do valor de produção ser
extremamente baixo, não sendo viável a competição. Entretanto, se houver investimento e apoio governamental, os laboratórios e empresas brasileiras terão condições de aumentar sua capacidade de produção para suprir a demanda interna.
Outro problema que o Brasil enfrenta é em relação à qualidade dos importados.
De acordo com especialistas da Fiocruz e da FURP, muitas vezes o princípio ativo
importado não está com qualidade compatível para o processamento, sendo necessário, em alguns casos, descartar até 50% do fármaco. Somente cerca de 30%
chegam com qualidade e os 20% restantes ainda precisam ser refinados para o seu
aproveitamento. Esta é uma questão que pode ser superada com o aumento da
produção nacional.
De maneira geral, as parcerias estão presentes como um fator positivo para o
aumento da competência nacional, estimulando a pesquisa e desenvolvimento
no país, além da produção de fármacos e medicamentos. Geralmente as parcerias
envolvem: empresas com universidades, para desenvolvimento de pesquisas, tecnologias próprias e prestação de serviços analíticos especiais; empresas com centro de pesquisa, para cooperação tecnológica; e empresas com outras empresas,
visando o fornecimento de insumos e representação comercial no Brasil/América
do Sul, ou para verticalização da produção.
A parceria universidade-empresa é uma alternativa. No entanto, há que superar
o desafio do scale-up na produção de fármacos. Em termos de escala, é essencial
para as indústrias trabalhar no desenvolvimento de produtos com gramas/quilogramas, e por outro lado, nas universidades trabalha-se com miligramas. Analisando a indústria, os princípios ativos se enquadram na chamada química fina que
possui como característica a flexibilidade e planejamento da diversificação da produção, otimização do maior uso da capacidade produtiva vis a vis competitividade.
O Brasil conta com plantas multipropósitos de diversos setores com unidade de
scale-up que tem disponibilidade de reatores de 20, 50, 100, 250, 500, 1.000, 2.000
a 5.000 litros, e com empresas experientes em validar processos e metodologia,
conforme previsto nas normas da ANVISA. Já as universidades possuem know-how
na síntese de produtos, havendo assim a necessidade de Parcerias Público Privadas
(PPP). A parceria entre esses atores possibilitará na transposição da P&D da universidade para a empresa, o que superará este gargalo. A proposta é a criação de infraestrutura nas próprias universidades, ou seja, laboratórios dedicados a transpor da
escala de bancada – miligramas – a escala que possa ser trabalhada pela indústria
– gramas, para o scale-up promovendo a real integração com as empresas para o
desenvolvimento final do produto. Esses laboratórios podem contar com mão de
obra qualificada, ou seja, recém-doutores orientados por professores especialistas,
que não foram absorvidos pela Indústria. Observa-se que tal infraestrutura não segue a mesma concepção das empresas incubadas, pois há que se criar massa crítica
do processo e da demanda contínua por parte das empresas [6].
194
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Para aumentar a produção brasileira de ARV e torná-la competitiva com as ofertantes internacionais, há a necessidade de incentivos governamentais e adaptação de algumas medidas existentes. É preciso criar mecanismos para produção de
intermediários de forma a incentivar as empresas nacionais a produzir matériasprimas voltadas para a indústria farmacêutica. Isso só ocorrerá através de políticas
públicas que subsidiem o setor para redução da aquisição externa, principalmente
do mercado asiático, e foco no mercado interno. As medidas de estímulo à produção de princípios ativos no Brasil precisam ser continuadas, pois em média o valor
do medicamento é 20 vezes o valor do princípio ativo, isso implica que a produção deste agregará valor no país. Para isso torna-se essencial o financiamento nas
empresas para se adequarem em termos de infraestrutura voltadas à exportação
segundo as boas práticas produção. Em relação aos laboratórios oficiais, incentivos
governamentais são necessários para que estes iniciem produção de novos medicamentos. Tais medidas auxiliarão na redução dos preços dos princípios ativos e
medicamentos produzidos nacionalmente, o que tornaria a empresa nacional mais
competitiva nos leilões.
O sistema de compras do governo, como entrave à produção, precisa ser readaptado. Os pregões deveriam ser anunciados com antecedência, para garantia da
qualidade da compra de fornecedores rastreados, e assim os laboratórios públicos
e nacionais poderiam se associar para incrementar as quantidades e as exigências
técnicas necessárias. Além disso, as compras deveriam ser para períodos maiores,
pois mudar fornecedores de matérias-primas/intermediários é uma transgressão
das BPF e das condições do registro sanitário da ANVISA.
VI. Considerações finais
Em termos gerais, o Brasil não é visto como prioridade de proteção de fármacos e
medicamentos para Aids, já que não apresenta um número considerável de depósitos de patentes em comparação à Austrália, Japão, China e Índia. Deve-se notar
que as patentes depositadas no Brasil são, em sua maioria, de multinacionais que
depositam em todo o mundo, portanto esta proteção não resulta de uma preocupação internacional na fabricação de fármacos e medicamentos ARVs.
Tomando como base os valores de importação, as competências existentes no
país e a proteção patentária, o Brasil possui condições de aumentar o portfólio de
produção dos fármacos e medicamentos ARVs. A produção de Abacavir, Darunavir, Enfuvirtida e Tenofovir já poderia estar sendo feita por empresas e laboratórios
nacionais, uma vez que não estão sob proteção de patente e representam altos
valores de importação.
Capítulo 10. Competências e desafios para uma maior oferta de antirretrovirais no Brasil
195
Referências bibliográficas
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5.
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BUSS, P. M.; CARVALHEIRO, da R. J.; CASAS, C. P. R. (Org.). Medicamentos no Brasil. Inovação e Acesso. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008.
8.
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196
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
PARTE IV
Diversidade dos modelos
de políticas públicas e de
abastecimento em antirretrovirais
CAPÍTULO 11
Sustentabilidade da política brasileira
de acesso universal e gratuito aos
medicamentos ARV: conquistas e desafios
Cristina Possas
Rogério Scapini
Mariângela Simão
Resumo: Este artigo descreve as conquistas da política brasileira de acesso universal e gratuito aos medicamentos antirretrovirais, internacionalmente reconhecida
por seu pioneirismo e impacto junto às pessoas que vivem com HIV/Aids. Discute
os diferentes aspectos desta política, inclusive questões da política tecnológica e industrial e do sistema nacional de inovação: propriedade intelectual, política de compras públicas e suas relações com as restrições impostas aos produtores públicos e
privados nacionais. O artigo conclui chamando atenção para o fato de que, apesar
da expressiva economia de recursos governamentais alcançada por medidas como
a licença compulsória do medicamento Efavirenz, em 2007, e mais recentemente,
o pedido de subsídio ao exame de patente do Tenofovir, os gastos governamentais com medicamentos para tratamento de terceira linha, protegidos por patentes,
consumidos por apenas 3% dos pacientes, estão crescendo exponencialmente.
Palavras-chaves: Acesso universal, inovação, ARV, propriedade intelectual, capacidade nacional.
I. Introdução
A política brasileira de acesso universal e gratuito das pessoas que vivem com HIV/
Aids aos medicamentos antirretrovirais (ARV) é internacionalmente reconhecida
como um caso de sucesso na implementação de uma política pública de saúde. De
forma pioneira, o Brasil implementou esta política logo após a promulgação da Lei
n. 9.313, em novembro de 1996, que garante a oferta gratuita de medicamentos
ARV no Sistema Único de Saúde, em consonância com o surgimento da HAART,207
terapia então recém-instituída.
Esta política permitiu o controle da epidemia no País, com expressivo declínio,
de 1996 a 2002, de cerca de 70% na mortalidade e 80% das internações hospitalares, chegando em 2006 a uma prevalência de 0,6 %. Os baixos níveis de resistência
aos medicamentos ARV, quando comparados com outros países [1] permitiram
que o País chegasse hoje a uma situação bastante favorável no manejo terapêutico,
visto que em 2009 cerca de 80% dos pacientes (150 mil pacientes) em tratamento
no Brasil encontravam-se controlados, com carga viral indetectável e portanto sem
falha terapêutica (SISCEL, 2009).
Esta situação contrasta com a dramática situação de boa parte dos países em
desenvolvimento. Com efeito, segundo dados de organismos internacionais [2, 3],
mais de um terço da população mundial afetada não tem acesso regular aos medicamentos ARV. Esta situação é particularmente grave nos países da África e da Ásia,
nos quais cerca de metade da população afetada pela epidemia não tem acesso
a esses medicamentos. Além disso, em boa parte destes países, entre outros fatores, a descontinuidade do tratamento, pela baixa cobertura dos serviços de saúde,
propicia baixos níveis de adesão, podendo levar a altos níveis de resistência aos
medicamentos ARV.
No entanto, em que pese as importantes conquistas alcançadas no País desde
a implementação desta política, com respaldo constitucional e legal, bem como a
forte mobilização das pessoas vivendo com HIV/Aids e organizações da sociedade
civil, ainda persistem importantes desafios a serem superados para assegurar a sua
sustentabilidade.
No plano internacional, o cenário pós-TRIPS favoreceu a elevação dos preços
dos medicamentos ARV protegidos por patentes, limitando o Brasil, signatário do
acordo TRIPS, à importação de princípios ativos e genéricos pré-qualificados de
baixo custo da China e da Índia, nossos principais fornecedores.
A política governamental bem-sucedida de negociação de preços, que permitiu, ao longo das duas últimas décadas, rebaixar consideravelmente os preços
desses medicamentos no País, é uma estratégia que, embora importante e de reconhecido impacto, vem encontrando agora limites neste novo cenário internacional. A licença compulsória do Efavirenz pelo governo brasileiro foi certamente um
indicativo desse impasse.
Esta situação é particularmente grave no caso de medicamentos utilizados nos
tratamentos de segunda e terceira linhas, patenteados e, portanto, de preços bem
mais elevados do que os dos medicamentos utilizados no tratamento de primeira
linha e, como se verá mais adiante, cada vez mais consumidos no Brasil.
207 HAART – Highly Active Anti-Retroviral Therapy.
200
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
No plano nacional, este cenário internacional restritivo vem impondo ao Brasil a
necessidade de rapidamente reduzir a dependência de importações de medicamentos ARV e sobretudo intermediários de síntese e de princípios ativos, fortalecendo
as instituições públicas de pesquisa e desenvolvimento nacionais, os laboratórios
oficiais e as empresas farmacêuticas nacionais, favorecendo o estabelecimento de
parcerias público-privadas.
Este capítulo apresenta uma descrição sucinta dos desafios para a sustentabilidade desta política e as principais estratégias nacionais implementadas pelo Ministério da Saúde brasileiro, por meio de seu Departamento de DST, Aids e Hepatites
Virais, em parceria com outras instâncias governamentais, nos diferentes níveis de
governo, para sua superação.
II. A política de acesso universal
e gratuito aos medicamentos ARV
A política brasileira de acesso universal e gratuito aos medicamentos ARV foi implementada numa perspectiva abrangente e inclusiva de políticas públicas, fundamentada nos direitos humanos, transcendendo portanto, sua dimensão estritamente assistencial [4].
A Constituição Brasileira estabelece a saúde como direito de todos e dever do
Estado. Fundamentada nesse contexto, em 1996 foi editada a Lei n. 9.313, garantindo o tratamento gratuito dos medicamentos antirretrovirais no âmbito do SUS.
Desde então, tem sido ampliado o acesso gratuito ao diagnóstico do HIV e ao tratamento da Aids. Estima-se que existam no Brasil 630 mil pessoas portadoras do HIV.
Até dezembro de 2009, 195.000 delas estavam em uso dos antirretrovirais (ARV).
Anualmente, são aproximadamente 35.000 novos casos diagnosticados e notificados por ano.
O sucesso na luta contra a epidemia de Aids no Brasil, sustentado pela organização da rede de serviços, pela disponibilização de medicamentos antirretrovirais
e pelas ações de prevenção desenvolvidas, foi uma conquista do governo, da sociedade civil organizada e dos profissionais de saúde envolvidos com o enfrentamento da epidemia.
O Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais responsabiliza-se, no Ministério
da Saúde, pela política pública nessa área, orientando o tratamento de indivíduos
portadores da infecção pelo HIV e Aids, apoiando organizações de pessoas que
vivem com esta doença, assim como projetos de organismos não governamentais
e promovendo a adoção de estratégias de melhoria da adesão ao tratamento antirretroviral na rede de serviços de atendimento.
Capítulo 11. Sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito
201
As orientações para o tratamento seguem as Recomendações para Terapia Antirretroviral em Adultos, em Crianças e Adolescentes e em Gestantes, elaboradas
por comitês assessores formados por especialistas da área, representantes da sociedade civil e de sociedades médicas e periodicamente publicadas. Essas recomendações são revistas e atualizadas à medida que novas evidências demonstrem
a necessidade de novos medicamentos e estes já estejam registrados na ANVISA,
sempre na perspectiva do uso racional desses medicamentos e do alinhamento
técnico-científico às premissas da política de acesso universal aos antirretrovirais
no Brasil.
Desde a década de 1980, o país tem implementado campanhas educativas e
de prevenção, incluindo a distribuição de preservativos no âmbito nacional, bem
como campanhas direcionadas a populações vulneráveis, tais como profissionais
do sexo, usuários de drogas injetáveis e homens que fazem sexo com homens.
A organização da rede de serviços de referência no Brasil teve um papel histórico no manejo clínico da infecção pelo HIV, com grande impacto na sobrevida
dos pacientes. Essa rede conta atualmente com 675 Unidades Dispensadoras de
Medicamentos (UDM), 636 unidades de referência para o tratamento (Serviços de
Assistência Especializada – SAE), 434 hospitais de referência, 79 hospitais-dia e 54
unidades de atendimento domiciliar terapêutico, num total de 1.210 serviços.
A ampla utilização da terapia antirretroviral altamente ativa resultou, além da
melhora nos indicadores de morbidade, de mortalidade e qualidade de vida dos
brasileiros que realizam tratamento para o HIV e a Aids, no perfil crônico-degenerativo assumido pela doença na atualidade.
A política governamental enfrenta hoje o grande desafio de encontrar formas
de prevenir e tratar uma parcela significativa dos pacientes com Aids, que vêm convivendo com os eventos adversos ao uso de antirretrovirais, como as dislipidemias
(aumento de colesterol e triglicérides), a lipodistrofia (alterações na distribuição
da gordura corporal), a resistência periférica à insulina (acarretando aumento do
açúcar no sangue) e a acidose metabólica (por disfunção mitocondrial). O envelhecimento da população em tratamento, pelo significativo aumento da sobrevida,
que hoje já é de mais de 108 meses em pacientes adultos, coloca também novos
desafios.
Medidas de estímulo à adesão aos serviços e à terapia antirretroviral vêm sendo
implementadas, apoiadas por ações contínuas e duradouras. Da mesma forma, esforços vêm sendo direcionados à busca de estratégias inovadoras e efetivas de abordar
a prevenção entre os pacientes com HIV, incorporando-as à rotina dos serviços.
A adesão ao tratamento, crucial para a melhoria da qualidade de vida e diminuição dos índices de mortalidade, é também decisiva para a sustentabilidade da
política de acesso universal aos medicamentos ARV. Níveis elevados de adesão permitem que se assegure a manutenção dos pacientes em tratamento pelo maior
202
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
tempo possível nos esquemas terapêuticos iniciais e baratos, com qualidade, diminuindo a pressão pela utilização de esquemas mais complexos e caros.
Em síntese, a adesão ao tratamento deve ser entendida tanto na sua dimensão
clínica, de melhoria da qualidade da atenção e da qualidade de vida quanto na
sua dimensão econômica, como uma estratégia crucial para a sustentabilidade da
política governamental de enfrentamento da epidemia.
III. A distribuição e a logística em um
país de dimensões continentais
O desafio e a complexidade da distribuição de medicamentos em uma política de
acesso universal e gratuito impuseram, já em 1997, a necessidade de implementação de um Sistema de Controle e Logística de Medicamentos ARV (SICLOM). Para
tanto foi necessário conceber um sistema de gerenciamento logístico centralizado
apoiado em ações descentralizadas de distribuição pelas 675 Unidades Dispensadoras de Medicamentos (UDM) em todas as cinco regiões do País, nos serviços locais de saúde nos Estados e Municípios.
Este sistema de gerenciamento, apoiado no sistema de informação SICLOM,
permite acompanhar o processo da cadeia logística de cada medicamento ARV,
abrangendo desde a seleção, programação, aquisição/entrega, armazenamento
até a distribuição e dispensação. Ele permite que o Departamento de DST, Aids
e Hepatites Virais se mantenha atualizado em relação ao fornecimento de medicamentos aos pacientes em TARV, nas várias regiões do país. As informações são
utilizadas para controle dos estoques e da distribuição dos ARV, assim como para
obtenção de informações terapêuticas dos pacientes de Aids e uso de diferentes
esquemas ARV.
A utilização do SICLOM permitiu melhorar de forma significativa a capacidade
de resposta da área de logística de medicamentos tanto no nível central quanto
nas Unidades Federadas e Locais. Com a melhoria da qualidade das informações
foi possível ampliar a capacidade de planejamento das aquisições, otimizar o fluxo nas diferentes esferas de gerenciamento e controlar o estoque mensal na rede
de serviços, e monitoramento, o que possibilitou a gestão e avaliação local dos
medicamentos utilizados nas diferentes categorias de usuários e da qualidade da
assistência.
Finalmente, cabe observar que as estratégias de relacionamento do Banco de
Dados do SICLOM com outros bancos de dados nacionais como o SINAN (Sistema
Nacional de Notificação de Agravos), SISCEL (Sistema de Informações Laboratoriais) e SIM (Sistema Nacional de Informações sobre Mortalidade) vêm permitindo
Capítulo 11. Sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito
203
aprimorar a qualidade das informações no enfrentamento da epidemia e no tratamento ARV.
Este relacionamento dos bancos de dados vem permitindo superar, em boa
parte, as dificuldades relacionadas à subnotificação epidemiológica. No futuro, a
análise em maior profundidade do SICLOM e dos demais sistemas nacionais de
informação, por meio de estudos e pesquisas de natureza avaliativa e operacional,
permitirá fortalecer a resposta governamental na política de acesso aos medicamentos antirretrovirais.
IV. O gasto brasileiro com medicamentos ARV
Os gastos anuais do programa brasileiro com a compra de medicamentos antirretrovirais (ARV) pelo Ministério da Saúde, da ordem de US$ 400 milhões, já representam hoje cerca de 62% do gasto total no enfrentamento da epidemia do HIV/Aids e
17% dos gastos federais com medicamentos (Unidade de Logística, Departamento
de DST, Aids e Hepatites Virais, Ministério da Saúde, 2010).
Além do aumento no número de pacientes e aumento do tempo de permanência dos pacientes em tratamento, pelo expressivo aumento da sobrevida, fatores
diversos estão contribuindo para a elevação desse gasto, que deverá aumentar
ainda mais nos próximos anos. O primeiro fator diz respeito à inclusão de novos
medicamentos no tratamento, através dos Consensos Terapêuticos nacionais. O segundo refere-se ao aumento da demanda por medicamentos mais caros, utilizados
nos tratamentos de segunda e terceira linhas. A análise da evolução das despesas
do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais entre 2000 e 2010, apresentada no
Gráfico I, indica que neste período as despesas com medicamentos utilizados nos
tratamentos de primeira linha foram drasticamente reduzidas (de 41% em 2000 para
28% em 2010), contrastando com o aumento expressivo das despesas com os medicamentos utilizados nos tratamentos de segunda e terceira linhas, bem mais caros
(os medicamentos de segunda linha passaram de 59% em 2000 para 42% em 2010 e
os de terceira linha de 4,5% em 2005, ano em que foram introduzidos, para 29% em
2010). Esta tendência de aumento dos gastos com medicamentos para tratamentos
de segunda e terceira linhas fica evidenciada nos dados a seguir, disponibilizados
pela Unidade de Logística do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais.
204
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Gráfico 1 – Evolução dos gastos com medicamentos ARV segundo linha de tratamento
Brasil, 2000 – 2010 (%)
70,00
62,09
62,07
59,42
60,00
58,95
57,49
57,30
58,31
42,70
41,69
57,07
53,30
50,00
42,51
41,05
46,08
42,68
38,09
40,00
38,36
37,93
31,29
33,41
30,00
29,64
28,54
28,78
22,63
20,00
8,34
10,00
4,50
4,84
2005
2006
10,94
0,00
2000
2001
2002
2003
2004
1ª linha
2ª linha
2007
2008
2009
2010
3ª linha
Fonte: Unidade de Logística, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Ministério da Saúde.
Em termos de valores, enquanto os gastos com os medicamentos utilizados nos
tratamentos de 1ª linha reduziram de US$131,4 milhões para US$ 92 milhões entre
2000 e 2008, as despesas com os medicamentos utilizados nos tratamentos de 2ª
linha saltaram de US$178,6 milhões para US$213 milhões. Destaca-se, como observado, o grande aumento da participação dos medicamentos do tratamento de
terceira linha na despesa com medicamentos ARV. Entre 2005, quando estes entraram no Consenso Terapêutico, e 2008, observou-se aumento de 87,6%, passando
de US$17,8 milhões em 2005 para US$33,4 milhões em 2008. Isto indica tendência
expressiva ao aumento da despesa nos próximos anos porque estes medicamentos são mais caros, sem a disponibilidade de genéricos no mercado externo [5].
Apresentamos finalmente a situação atual da despesa para o ano de 2010 (Tabela 1 e Gráfico 2) e da demanda por medicamentos ARV (Tabela 2 e Gráfico 3)
segundo a linha terapêutica, que apontam para uma expressiva participação do
valor dos medicamentos utilizados nos tratamentos de terceira linha, que consumidos por apenas 3% dos pacientes já respondem por despesa equivalente à dos
medicamentos utilizados nos tratamentos de primeira linha (cerca de 28%).
Tabela 1 – Despesa em US$ milhões segundo linha de TARV
Brasil, 2010
Linha de TARV
Despesa US$ milhões
%
1º linha
112.62
28,27%
2º linha
170.30
42,75%
3º linha
115.48
28,99%
Fonte: Unidade de Logística, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Ministério da Saúde.
Capítulo 11. Sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito
205
Gráfico 2 – Despesas com medicamentos ARV segundo linha de TARV (em milhões de US$)
Brasil, 2010
3º linha
115,48
28,99%
1º linha
112,62
28,27%
2º linha
170,30
42,75%
Fonte: Unidade de Logística, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Ministério da Saúde.
Gráfico 3 – Número e percentual de pacientes segundo linha de TARV
Brasil, 2010
3º linha
5,899
3%
2º linha
108,111
58%
1º linha
72,196
39%
Fonte: Unidade de Logística, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Ministério da Saúde.
Tabela 2 – Pacientes segundo linha de TARV
Brasil 2010
Linha
Nº Pacientes
%
1ª linha
72.196
39%
2ª linha
108.111
58%
3ª linha
5.899
3%
Fonte: Unidade de Logística, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Ministério da Saúde.
206
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
V. A negociação de preços e licença
compulsória do Efavirenz
Ao longo do seu percurso, o Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais logrou
sucesso na sua negociação de preços com as empresas farmacêuticas multinacionais, que representam cerca de 76% do gasto governamental com medicamentos
ARV, conseguindo reduções de preço significativas que variaram de 15 a 25% nesta
década. Esta política de negociação de preços permitiu, neste período, expressiva
economia para o País.
Contudo, a partir de 2005, esta política de negociação de preços passou a enfrentar alguns impasses no cenário pós-TRIPS, com a adesão a este acordo internacional de países como a Índia e a China, exportadores de genéricos e princípios
ativos dos medicamentos ARV para o Brasil [6, 7]. Cabe aqui, no entanto, ressaltar
que estes impasses devem ser analisados caso a caso, por cada medicamento, uma
vez que, apoiada em brechas legais, a adesão da Índia ao TRIPS não a impediu, por
exemplo, de não reconhecer determinadas patentes como as do Tenofovir e do
Atazanavir. A disponibilidade destes genéricos e princípios ativos de baixo custo
no mercado brasileiro certamente contribui, entre outros fatores, para a política
governamental de negociação de preços.
A reversão deste quadro após 2005 acabou favorecendo a pressão por preços
mais elevados por parte das empresas farmacêuticas multinacionais, especialmente no caso de medicamentos utilizados nos tratamentos de segunda e terceira linhas, protegidos por patentes. Como se pode verificar nas Tabelas 3 e 4 a seguir,
apesar do sucesso na negociação dos preços dos medicamentos de terceira linha,
eles ainda permanecem muito altos:
Tabela 3 – Preço por Frasco e percentual de redução
no Brasil, 2005-2010
ARV/ano
2005*
2006
2007
2008*
2009*
2010
% reducão
Fuseon®
1,382.91
1,333.13
1,333.13
1,325.19
1,156.29
1,052.22
23,91
Prezista®
576.72
548.40
477.60
17,19
Isentress®
570.78
482.52
15,46
Fonte: Burgos e Scapini (2010) [8]
* ano de introdução dos medicamentos no Brasil
Capítulo 11. Sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito
207
Tabela 4 – Economia anual depois da negociação de preços
no Brasil, 2005-2010
ARV/ano
2005*
2006
2007
2008*
2009*
2010
US$ reducão
Fuseon®
552,580.00
0.00
126,968.00
4,332,400.00
2,263,522.00
7,275,470.00
Prezista®
789,664.00
7,646,400.00
8,436,064.00
Isentress®
4,962,300.00
4,962,300.00
Total
20,673,834.00
Fonte: Burgos e Scapini (2010) [8]
* ano de introdução dos medicamentos no Brasil
Este aumento da pressão por preços acabou obrigando o governo brasileiro a
buscar a utilização de flexibilidades do TRIPS. Com efeito, já em 2005, houve uma
tentativa do Ministério da Saúde de licença compulsória para quatro medicamentos antirretrovirais que, por decisão no último minuto do então ministro da Saúde,
acabou não se concretizando. A justificativa na ocasião foi de que o País não teria
ainda capacidade de produção imediata e não dispunha de genéricos pré-qualificados para adquirir.
Recentemente, em 2007, o Ministério da Saúde, considerando a inflexibilidade
da empresa Merck no processo de negociação de preços, que se recusou a reduzir o custo do comprimido do Efavirenz 600mg de US$ 1,59 para US$ 0,65, preço
praticado na Tailândia à época, finalmente decidiu emitir a licença compulsória
deste medicamento com grande repercussão no País e no exterior, pelas enormes
pressões econômicas e políticas envolvidas nesta decisão [9]. Além de sua inflexibilidade na negociação de preços do Efavirenz, que acabou precipitando a decisão ministerial por uma licença compulsória deste medicamento, a empresa Merck
acabou cometendo neste processo outro erro estratégico, ao desconsiderar que
o Brasil poderia se beneficiar temporariamente da recente pré-qualificação pela
Organização Mundial da Saúde das empresas indianas Aurobindo e Ranbaxy em
maio de 2006 para produção do Efavirenz, enquanto fazia os desenvolvimentos
necessários internamente para produzi-lo no País.
Desta forma, ao contrário do que acreditava a empresa Merck durante o processo de negociação, o licenciamento compulsório deste medicamento era possível,
apesar das pressões comerciais americanas junto à Organização Mundial do Comércio, pois agora havia condições de aquisição de medicamento pré-qualificado
enquanto ocorria o desenvolvimento do medicamento no País, o que durou um
ano e meio.
Uma conclusão importante é que apesar da complexidade e das resistências
que permearam o processo de licença compulsória do Efavirenz, ele resultou em
enormes benefícios para o País. Estimativas do governo brasileiro, considerando o
impacto de medidas recentes, como negociações de preços, a licença compulsória
208
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
do Efavirenz e, mais recentemente, o subsídio ao exame de patente do medicamento Tenofovir, que acabou por ter a sua patente negada pelo Instituto Nacional
de Propriedade Industrial (INPI), mostram que tais medidas já possibilitaram uma
economia expressiva para o País. Só com o Efavirenz, que o Ministério da Saúde
deixou de comprar da Merck ao valor US$ 1,59 pelo comprimido de 600 miligramas
e passou a importá-lo da Índia por US$ 0,45 o comprimido enquanto o desenvolvia
localmente, foi possível economizar desde 2007 US$ 154, 8 milhões. Com o Tenofovir foi possível economizar desde 2003 US$ 78,4 milhões e, mais recentemente,
com a oposição ao pedido de patente deste medicamento deferida em 2009, o
governo brasileiro economizou neste ano US$ 23,7 milhões.208 Em síntese, a economia brasileira com medicamentos ARV de 2003 a 2010 é estimada em US$ 261,4
milhões, sem considerar a economia mencionada com a licença compulsória do
Efavirenz, de US$ 154,8 milhões.
VI. O fortalecimento da capacidade nacional
para inovação e parcerias público-privadas
Conforme apontado anteriormente, a participação das empresas farmacêuticas
multinacionais no gasto governamental brasileiro com medicamentos ARV ainda é
muito elevada, representando cerca de 71,9% dos gastos em 2010.
O mercado brasileiro de ARV, pelo lado da oferta, é basicamente composto por
laboratórios farmacêuticos públicos, como, entre outros, Farmanguinhos, Lafepe e
FURP, e algumas poucas empresas privadas, como a Cristália, Nortec e Globe, que
produzem medicamentos mais antigos e/ou seus princípios ativos e que não estão
sob patentes. Já os medicamentos patenteados são ofertados pelos laboratórios
farmacêuticos multinacionais que não produzem este tipo de medicamento no
País e por isso a demanda é suprida pela importação dos mesmos [5,10].
A demanda, por sua vez, é essencialmente pública, ou seja, o mercado nacional
de ARV é oligopsônico, tendo o Ministério da Saúde como o seu principal demandante, devido à política de centralização das compras governamentais de medicamentos ARV. Sendo assim, as transações entre os produtores de matérias-primas,
produtores de ARV, entre produtores públicos e privados e entre produtores nacionais e estrangeiros são importantes elementos para o estudo da dinâmica deste
mercado [10].
Um esforço importante vem sendo realizado recentemente, a partir de 2009,
pelo governo brasileiro para reverter este quadro de baixa participação dos produtores nacionais (laboratórios oficiais e empresas nacionais) na produção desses
208 Cálculo feito pelo Ministério da Saúde.
Capítulo 11. Sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito
209
medicamentos. No âmbito do sistema nacional de inovação, a política governamental tem se voltado ao fortalecimento dos laboratórios oficiais e das empresas
farmacêuticas nacionais, na perspectiva de consolidação do chamado complexo
industrial da saúde.
Esta política vem estimulando parcerias público-privadas (PPP), com apoio de
agências de fomento à política tecnológica e industrial, como a Financiadora de
Estudos e Projetos (FINEP) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES).
A compra de medicamentos ARV por meio de parcerias público-privadas para a
produção de ARV encomendados, é prevista na legislação brasileira (Lei 8.666/93)
[11] e constitui uma modalidade de contratação de serviços. Com diversas parcerias
público-privadas recentemente iniciadas para a produção local de medicamentos,
através de convênios e com dispensa de licitações, o Ministério da Saúde poderá
ter acesso a medicamentos ARV a preços bem mais acessíveis que os medicamentos importados.
As parcerias público-privadas (PPP), previstas na Lei 11.079/04 e que estavam
em andamento em 2010 para os medicamentos ARV eram as seguintes: Farmanguinhos/Bristol para o Atazanavir, FUNED/Nortec/Blanver para o Tenofovir, FUNED/
Microbiológica para o Entecavir, LAFEPE/Cristália para o Ritonavir, Farmanguinhos/
Nortec/Cristalia/Globe para o Efavirenz, LAFEPE/Cristalia para o Tenofovir. No entanto, é importante observar que a maioria dessas parcerias encontra-se ainda em
estágio inicial. Nesse estágio uma PPP consiste na verdade de um acordo de confidencialidade entre as partes interessadas para examinar a possibilidade de uma
parceria que pode não se concretizar.
Portanto, como se trata de um esforço muito recente, iniciado em 2009, é importante ressaltar que tais políticas só surtirão efeitos a médio e longo prazos. Outro ponto importante é que, diferentemente da legislação em outros países, a Lei
8.666/93 [11] referente à compra pública, não possui incentivos para a aquisição
de produtos nacionais, uma vez que apenas em caso de empate a preferência é do
produtor nacional. Os produtos estrangeiros baratos, de baixa qualidade e beneficiados com incentivos à exportação dados por seus países, acabam levando vantagem sobre os produtores nacionais [5]. Cabe destacar aqui que esta afirmação não
se aplica aos medicamentos ARV acabados, já que o governo brasileiro não compra
genéricos de ARV produzidos nacionalmente e sim as matérias-primas. Neste caso,
isto ocorre com as empresas farmoquímicas nacionais, prejudicando-as.
É importante lembrar ainda que a importação de intermediários químicos por
parte dos laboratórios oficiais é isenta de impostos, enquanto a compra dos produtos nacionais não [5]. Como bem aponta Hasenclever (2003) [12], se, por um lado, a
Lei 8.666/93209 [10] permite a importação de intermediários a preços baixos para a
209 A Lei 8.666/93 é a lei que institui normas para Licitações e Contratos com a Administração Pública.
210
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
produção local de antirretrovirais, tem, por outro lado, o efeito de inviabilizar paulatinamente a competitividade das poucas empresas ainda envolvidas na síntese
de antirretrovirais.
A esse cenário, como destacam esses autores, soma-se o fato de que a Lei de
Compras Públicas não exige uma pré-qualificação dos fornecedores, as compras
são feitas levando em consideração apenas critérios de preço e não considerando
a qualidade, o que agrava o quadro preocupante de falta de incentivo à indústria
química nacional.
As parcerias público-privadas, aliadas a outras medidas que vêm sendo propostas no âmbito do sistema nacional de inovação, como o aprimoramento do sistema
de compras públicas e do arcabouço legal, poderão contribuir no médio e no longo
prazos para minimizar o impacto deste quadro de elevada dependência externa.
Estratégias para o estabelecimento de parcerias público-privadas, visando reduzir esta dependência, foram iniciadas a partir de acordos firmados por ocasião
da licença compulsória do Efavirenz. Como bem lembram Almeida et al. (2008) [13],
na ocasião, parcerias com indústrias farmoquímicas nacionais foram vistas pelo governo brasileiro como um meio efetivo para assegurar a sustentabilidade da resposta nacional. O laboratório público farmacêutico Farmanguinhos estabeleceu
iniciativas de cooperação tecnológica com duas empresas farmacêuticas nacionais
(Nortec Química e Cristália), por meio de uma parceria inovadora, baseada em service contracting, em curso. Como apontam esses autores, embora a produção local
do Efavirenz possa vir a ser um pouco mais cara que os medicamentos genéricos
importados da Índia (por Farmanguinhos a uma faixa de 10% a 15% sobre o preço
indiano), o Ministério da Saúde mostrou-se disposto a arcar com esta diferença,
não apenas pela característica “customizada” a ser apresentada pelo medicamento
genérico nacional, mas sobretudo como uma estratégia de reinvestimento nos setores farmacêutico e farmoquímico nacionais.
VII. Sustentabilidade da política brasileira
de acesso universal aos ARV
A avaliação das condições de sustentabilidade de uma política nacional de acesso aos medicamentos ARV é bastante complexa, pela diversidade das variáveis a
serem consideradas. A modelagem das condições de sustentabilidade, visando a
construção de cenários, com base em alguns parâmetros econômicos, tem prevalecido na literatura.
Recentemente, um desses autores [5] observou, a partir de modelagem, que o
cenário apresentado para 2013 a partir das projeções feitas é pessimista, com previsão de aumentos de gastos com ARV da ordem de 150% no período de 2009 a 2013.
Capítulo 11. Sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito
211
Segundo este autor, com a expectativa de atender cerca de 300 mil pacientes,
o custo estimado total para compra e ARV em 2013 ficaria em cerca de US$ 1.116
milhões. Com isso, segundo o autor, a sustentabilidade do Departamento tornar-se-ia bem mais difícil, pois este quadro levaria a um aumento das despesas mais
que proporcional ao aumento das receitas. Observa ainda que devemos considerar
que o Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais continuará a concorrer com os
demais programas de saúde pública do Ministério e um aumento tão grande nas
despesas com ARV poderá não ser absorvido com tanta facilidade.
Embora reconhecendo a grande importância do trabalho e dos alertas desse autor, que certamente contribuirão para a estratégia de enfrentamento da epidemia,
apontamos nesse capítulo para a necessidade de um tratamento mais abrangente da questão da sustentabilidade, chamando atenção para a necessária distinção,
nesse esforço de modelagem e construção de cenários, entre uma “sustentabilidade
econômica”, restrita à análise de indicadores monetários, mensurados pela evolução
dos preços de mercado dos medicamentos ARV, e uma sustentabilidade “clínicocomportamental” que considera outras variáveis igualmente importantes, associadas às estratégias terapêuticas e à adesão ao tratamento, que podem igualmente,
pelo lado da demanda por medicamentos, impactar nos cenários projetados.
Com essa perspectiva, é importante destacar quatro aspectos: negociações de
preços para as aquisições anuais; desenvolvimento tecnológicos de fármacos (novos e atuais); terapia sequencial; e adesão ao tratamento.
Esses quatro aspectos correm em paralelo e vêm possibilitando a sustentabilidade a curto, médio e longo prazos da política brasileira de acesso universal aos
medicamentos ARV, devendo portanto ser considerados na modelagem de cenários para o acesso à TARV.
Os dois primeiros devem ser incorporados a uma visão mais abrangente da “sustentabilidade econômica”, contemplando, além da evolução dos indicadores monetários, o impacto das estratégias de redução dos preços (negociação de preços,
licença compulsória e outras) e as condições existentes para o desenvolvimento
tecnológico de fármacos. Os dois últimos, terapia sequencial e adesão, referentes
às condições de sustentabilidade “clínico-comportamental”, são igualmente importantes para as avaliações de condições futuras de sustentabilidade da política
brasileira de acesso universal.
VII.1. Redução de preços: negociações para as aquisições anuais
Como observado anteriormente, o Ministério da Saúde, por meio do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, evoluiu bastante, ao longo da última década, no
processo de negociação de preços de medicamentos ARV, alcançando uma redução cada vez mais expressiva (que variou de 15 a 25%, conforme o medicamento)
na negociação com as empresas farmacêuticas.
212
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Anualmente, por ocasião das aquisições de ARV, é realizada negociação com
cada uma das empresas fornecedoras, especialmente as empresas farmacêuticas
multinacionais, o que vem assegurando reduções sistemáticas dos preços praticados, levando em conta as seguintes garantias e vantagens que proporciona: aquisições centralizadas; distribuição gratuita; pagamento garantido e dentro dos prazos
estabelecidos; e aquisições anuais, considerando as recomendações terapêuticas
estabelecidas pelo Departamento.
Em especial, a centralização na aquisição e a distribuição gratuita exercem papel crucial na redução de preços, uma vez que o governo estabelece a regra mais
custo-efetiva para o paciente, minimizando com isto o poder de negociação das
empresas.
Mesmo quando o medicamento é recém-introduzido ou não haja competição
na classe terapêutica a que pertence, existe um parâmetro mínimo estabelecido,
que é o preço registrado para comercialização (Preço CMED/ANVISA – Câmara de
Regulação do Mercado de Medicamentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária) que foi fixado considerando os menores preços praticados em oito países de
referência.
Além disso, o Ministério da Saúde, por intermédio do Departamento de DST,
Aids e Hepatites tem conseguido aplicar um redutor de preço (CAP – Coeficiente
de Adequação de preços) que hoje está em 22% ao preço de fábrica registrado na
CMED, para as compras feitas pelo governo. Isso já implica inicialmente em redução de 22% dos menores preços registrados no País.
Cabe finalmente destacar que estas estratégias são complementadas pela busca de outras oportunidades de redução de preço encontradas durante as negociações, tais como, por exemplo, a compra de medicamentos ARV de baixo custo
pré-qualificados pela OMS, a não concessão de patentes, o acompanhamento do
término do período de concessão da patente, os pedidos de subsídio ao exame, o
licenciamento compulsório e o interesse e oportunidade de transferência de tecnologia (licenciamento voluntário) entre os laboratórios públicos e as empresas
farmacêuticas multinacionais.
VII.2. Terapia sequencial
A terapia sequencial, adotada pelo Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais,
com base no Consenso Terapêutico, tem sido fundamental para se contornar as
estratégias das empresas de tentar lançar seus novos ARV para início de terapia,
com impacto importante no custo do tratamento.
A terapia sequencial, estabelecida por meio de achados clínicos baseados em
evidências, garante a efetividade das combinações terapêuticas, considerando os
parâmetros de durabilidade do esquema terapêutico em uso, efeitos adversos/colaterais e os níveis de resistência às outras classes terapêuticas.
Capítulo 11. Sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito
213
Os novos ARV sempre são introduzidos como medicamento de resgate terapêutico, preservando a lógica de custo-efetividade, ao manter os medicamentos
ARV mais antigos, mais baratos e efetivos como início de terapia e reservando os
novos ARV mais caros e também efetivos para resgatar falhas terapêuticas.
VII.3. Adesão
Como observado anteriormente, este é um aspecto extremamente importante da
política de sustentabilidade do acesso universal aos ARV, ao qual vem sendo conferido alta prioridade pelo Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, considerando-se sua importância na manutenção, pelo maior tempo possível, dos esquemas terapêuticos iniciais (mais baratos e efetivos) e mesmo dos esquemas para a
primeira falha (também ainda baratos e efetivos).
Os serviços de saúde exercem papel fundamental nesse aspecto, pois ao se
assegurar um serviço estruturado e com qualidade, as ferramentas de estímulo à
adesão acabam fazendo parte da sua rotina de trabalho.
Estudos indicam que os níveis de não-adesão na rede do SUS sejam da ordem
de 34,4% [14] e indicam, com a intensificação dos esforços governamentais a possibilidade de uma redução desta taxa da ordem de 5% ao ano.
Nesse sentido o Qualiaids (ferramenta on-line de gestão da qualidade) tem sido
vital para a melhoria da qualidade dos serviços, reforçando as boas práticas e garantindo não só a qualidade dos serviços mas também a qualidade de vida de seus
usuários.
Esta estratégia de melhoria da qualidade dos serviços e de elevação dos níveis de
adesão vem permitindo ao governo brasileiro reduzir consideravelmente a demanda
por medicamentos utilizados nos tratamentos de terceira linha, buscando reverter a
situação atual de crescimento exponencial da demanda por esses medicamentos.
VII.4. Desenvolvimentos tecnológicos
de fármacos (novos e atuais)
Embora seja difícil conceber parâmetros que permitam a modelagem e a construção de cenários dos avanços de um país na área de fármacos e medicamentos,
certamente os recentes esforços do governo brasileiro no desenvolvimento tecnológico de fármacos poderão, a médio e longo prazos, se revelar estratégicos na
garantia da sustentabilidade da política de acesso universal aos ARV. A perspectiva
de alcançar autossuficiência no fornecimento dos ARV poderia evitar os atuais gargalos na produção mundial de matéria-prima e produto acabado.
O investimento nos parques fabris de medicamento e as transferências de tecnologia de ARV feitas por meios das Parcerias Público-Privadas (PPP) poderão, a
214
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
médio e a longo prazo, assegurar a estabilidade e “expertises” fundamentais para o
enfrentamento do aumento do número de pacientes, viabilizando a incorporação
a menor custo dos novos ARV.
VII.5. A importância do real dimensionamento da demanda
Como observado, as estratégias voltadas ao fortalecimento de condições assistenciais e comportamentais nos serviços de saúde que assegurem o aumento nos níveis de Adesão ao Tratamento e a efetiva adoção da Terapia sequencial na rede de
serviços de saúde, são na verdade o cerne da sustentabilidade, conferindo destaque ao seu componente clínico-comportamental, que deverá ser considerado nos
processos de modelagem e construção de cenários.
Do ponto de vista da demanda, atualmente ingressam a cada ano 35 mil novos
pacientes ao tratamento ARV no País e destes cerca de 10 mil morrem. Teríamos
então 25 mil pacientes ingressando no tratamento anualmente, chegando a 2013
com cerca de 100 mil novos pacientes em tratamento. Somando-se esses novos
pacientes aos 195 mil em tratamento em 2009, podemos estimar que chegaremos
a 2013 com cerca de 300 mil pacientes em tratamento com ARV.
Este cenário para a demanda deve, no entanto, considerar ainda as estratégias
de impacto que já vêm sendo implementadas pelo governo brasileiro para enfrentar esta situação. Entre estas medidas destacam-se: a identificação precoce dos
pacientes HIV positivos antes do adoecimento e o estímulo à adesão, minimizando as falhas terapêuticas. Esta estratégia apoia-se na constatação de que os ainda
elevados níveis de não-adesão ao tratamento antirretroviral acabam acarretando,
como vimos anteriormente, um crescimento exponencial da demanda por medicamentos de terceira linha, bem mais caros.
Um possível cenário de redução da taxa de não adesão e consequentemente
da redução da demanda por medicamentos de terceira linha deverá ser levado em
conta nas projeções de médio e longo prazos. Esta possibilidade deverá ser considerada nos esforços de modelagem e nas considerações quanto à sustentabilidade, apontando para a necessidade de revisão das atuais estimativas do número
de usuários, que deverão ser ajustadas às condições de adesão ao tratamento e às
diferentes linhas terapêuticas.
Estima-se que, com o sucesso de uma estratégia de redução gradual dos níveis
de não-adesão, reduzindo a demanda dos medicamentos utilizados nos tratamentos de terceira linha, bem mais caros, e com os investimentos recentes no fortalecimento da capacidade nacional de produção de princípios ativos e medicamentos
ARV de baixo custo, seria possível prever uma considerável redução dos gastos
governamentais e um cenário um pouco mais otimista do que foi projetado por
Santos (2010) [5] que, estimou uma demanda de 300 mil pacientes em 2013, e uma
despesa para aquele ano da ordem de US$ 1.116 milhões.
Capítulo 11. Sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito
215
Em síntese, uma projeção de cenários restrita à sustentabilidade econômica,
pelo lado da oferta de medicamentos ARV, poderá se mostrar insuficiente se não
for complementada por um esforço para uma adequada projeção da evolução da
demanda por estes medicamentos.
VIII. Considerações finais
Neste artigo procuramos destacar que a avaliação de uma política nacional de
acesso a medicamentos antirretrovirais requer que se transcenda uma perspectiva
estritamente assistencial, circunscrita aos serviços e ao sistema de saúde. Ela impõe, sobretudo, a necessidade de uma discussão mais ampla das reais condições
do sistema nacional de inovação em questão e de sua articulação com o complexo
industrial no setor farmacêutico.
Embora reconhecendo as importantes conquistas e avanços alcançados até
aqui na política brasileira de acesso universal aos antirretrovirais, apontamos para
o fato de que as políticas tecnológica e industrial nacionais ainda encontram consideráveis obstáculos para a superação do quadro atual de elevada dependência
externa, sobretudo no que diz respeito à produção de princípios ativos de medicamentos ARV.
Esses obstáculos, se não superados, poderão comprometer as condições de
sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito aos medicamentos ARV no próximo quinquênio.
A construção de cenários futuros para dimensionar as condições de sustentabilidade deve considerar um complexo de variáveis. Estas dizem respeito não apenas
à evolução das condições de oferta de medicamentos antirretrovirais mas também
à evolução da demanda por estes medicamentos, sobretudo pelos medicamentos
de terceira linha. Esses medicamentos, consumidos por apenas 3% dos pacientes,
já representam hoje cerca de 29% da despesa, já superando os gastos com medicamentos utilizados nos tratamentos de primeira linha, consumidos por 39% dos
pacientes.
Para reduzir o impacto do expressivo aumento da despesa, projetado para cerca de US$ 1 milhão em 2013 e assegurar a sustentabilidade de sua bem-sucedida
política, o governo brasileiro está tomando medidas importantes, tanto no que diz
respeito à evolução da demanda quanto à da oferta de medicamentos.
Esforço significativo vem sendo realizado pela política governamental junto
aos serviços de saúde, concentrado no grupo de pacientes não aderentes, onde
a tendência de crescimento do consumo de medicamentos utilizados nos tratamentos de segunda e terceira linhas é muito rápida, procurando reduzir a falha terapêutica e a resistência aos medicamentos ARV, melhorando a qualidade de vida
216
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
destes pacientes e permitindo, ao mesmo tempo, redução significativa do gasto
governamental.
Ainda com relação à demanda, esforços vêm também sendo realizados pelo
governo brasileiro, através do teste rápido nas diversas regiões do País, e do aprimoramento da vigilância epidemiológica, buscando-se identificar e tratar precocemente os pacientes HIV, permitindo, além da melhoria das suas condições de
saúde e qualidade de vida, a redução da demanda por medicamentos utilizados
nos tratamentos de segunda e terceira linhas. Esta política de ampliação da testagem e do acesso precoce dos pacientes HIV ao tratamento volta-se especialmente
aos grupos populacionais mais vulneráveis (HSH, profissionais do sexo e usuários
de drogas), considerando-se o fato de que a epidemia brasileira é uma epidemia
concentrada nestes grupos. Outras medidas importantes de prevenção, como a
significativa ampliação da distribuição de preservativos no País e a redução da
transmissão vertical do HIV, apoiam esta estratégia.
Com relação à oferta de medicamentos ARV, a estratégia governamental vem
se concentrando na superação dos principais obstáculos identificados. O principal
deles diz respeito aos elevados preços dos medicamentos na aquisição governamental brasileira, apesar dos esforços de negociação de preços e do sucesso de
medidas como a licença compulsória do Efavirenz e do pedido de subsídio ao exame de patente do Tenofovir.
A intensificação destas medidas, explorando as flexibilidades existentes no
TRIPS e na Lei Brasileira de Propriedade Industrial, será essencial para assegurar
a sustentabilidade desta política de acesso universal, considerando-se que atualmente boa parte dos medicamentos ARV já se encontra sob patente.
Outro aspecto importante desta política governamental diz respeito à necessidade de fortalecimento da capacidade de produção dos laboratórios públicos e
das empresas farmacêuticas nacionais, bem como à importância do processo de
transferência de tecnologia e das parcerias público-privadas.
Este esforço, apoiado pela urgente reformulação do arcabouço legal que fundamenta hoje as compras públicas, poderá permitir superar a falta de produção
local dos princípios ativos farmacêuticos, reduzindo o atual quadro de dependência nacional.
Esta política de fortalecimento da capacidade nacional é certamente condição
essencial para assegurar a sustentabilidade do fornecimento de medicamentos
ARV de baixo custo para os serviços de saúde no SUS.
Capítulo 11. Sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito
217
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Capítulo 11. Sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito
219
CAPÍTULO 12
Os modelos locais de controle
da epidemia de HIV/Aids no Brasil
Guillaume Le Loup
Andreia Pereira de Assis
Maria Helena Costa Couto
Jean-Claude Thoenig
Sonia Fleury
Kenneth Camargo
Bernard Larouzé
Resumo: O estudo qualitativo baseado sobre a análise das políticas públicas efetuado de 2005 até 2007 junto aos atores da luta contra o HIV/Aids e nos serviços
de saúde nos estados de São Paulo e do Pará possibilitou a identificação de três
padrões de controle da epidemia. Face às novas tendências da epidemia – interiorização, feminização e “pauperização” – a forte coordenação entre os atores públicos e associativos da Aids e os cuidados básicos possibilita uma resposta de saúde
pública adequada no modelo 1, com ampla cobertura para as populações afetadas
pela epidemia. Mas o risco de banalização ameaça, a curto prazo, a mobilização em
torno do HIV/Aids. No segundo modelo, o HIV/Aids permanece como um desafio
excepcional, dentro de um contexto de forte estigmatização. Este caráter de excepcionalidade do HIV, no entanto, representa um freio para os cuidados básicos e isso
resulta em uma resposta deficiente à evolução da epidemia. Por fim, no terceiro
modelo, o da gestão administrativa da epidemia, na ausência de ONGs fortes e
bem estruturadas, nenhuma mobilização acontece de fato e a resposta à epidemia
é inadequada.
Palavras-chave: políticas públicas, descentralização, HIV/Aids, Brasil, prevenção e
tratamento.
I. Introdução
Desde o final dos anos 1990, a política conduzida no Brasil se impôs como um modelo da luta contra o HIV/Aids. Esse país implementou um programa nacional de
referência, do ponto de vista de sua organização, da articulação da prevenção e do
tratamento, e da mobilização dos atores sociais. Ele foi o primeiro país em desenvolvimento a oferecer tratamento antirretroviral universal e gratuito no interior do
sistema público de saúde [1-3].
Esse programa encontra-se agora frente às mudanças epidemiológicas e aos
novos problemas. Desde os anos 1990, foram observados: uma difusão em direção
ao interior do país (“interiorização”), um aumento dos casos na população de baixo
nível de educação e de renda (“pauperização”), e, finalmente, uma feminização da
epidemia [4-5]. Por outro lado, o custo novamente crescente dos medicamentos
antirretrovirais no Brasil pesa no financiamento do programa. Essas evoluções levantam a questão dos recursos humanos e financeiros e da organização do programa. Em resumo, a sustentabilidade da política de luta contra o HIV/Aids faz parte
do processo.
A maioria das publicações na literatura internacional não estudou essa evolução recente. Além do mais, elas se concentraram nas dimensões nacionais da política de controle, em suas linhas diretrizes e em seus princípios gerais [6]. Enfim, trata-se principalmente de estudos descritivos. Então, para compreender o programa
brasileiro e estudar as lições que podem ser extraídas pelos outros países, parece
útil centrar a pesquisa em nível local, principal nível operacional do SUS. Sendo
também indispensável utilizar um método de análise dos mecanismos e das competências da mobilização e do programa brasileiro.
O programa brasileiro de Aids se desenvolveu no interior do sistema público de
saúde, o SUS (Sistema Único de Saúde). Este foi criado pela Constituição de 1988,
segundo os princípios de descentralização, de participação dos usuários e de controle social. Ele prevê o acesso universal à atenção integral a prevenção e tratamentos curativos [7-9]. O SUS estabelece uma autoridade político-administrativa
descentralizada por nível de governo.
No interior desse sistema, o programa de Aids foi implantado nos níveis: federal, estadual e municipal. O programa nacional foi criado em 1985, os programas
estaduais existem em todos os 27 estados do país (inclusive no Distrito Federal), os
programas municipais se desenvolveram em 400 municípios, dos 5.565 existentes.
Para diagnosticar e tratar os pacientes, vários tipos de estruturas foram estabelecidas. Trata-se principalmente dos Centros de Testagem Anônimo (CTA), dos Serviços
de Assistência Especializados (SAE) que realizam o atendimento ambulatorial, os
serviços hospitalares de diversos tipos (serviço de infectologia, hospital-dia, tratamento domiciliar) [10]. Várias organizações não governamentais, específicas ou
não do HIV/Aids, intervêm na prevenção e no tratamento aos doentes, bem como
na elaboração das políticas [11].
O programa nacional estimula a descentralização das ações de controle da epidemia por meio de uma política de incentivos. No âmbito dessa política, iniciada a
partir de 2002 para responder às mudanças da epidemia, os 27 estados e os cerca
de 400 municípios que representam 90% dos casos de Aids do país, recebem recur-
222
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
sos federais para o HIV/Aids por meio de uma transferência automática de fundos.
Em contrapartida, eles estabelecem, em seu nível, o diagnóstico epidemiológico
e a estratégia de luta contra a epidemia. Um plano anual de ações descreve essa
estratégia. Ele é adotado pelo conselho municipal e/ou estadual de saúde. Este
reúne por meio de uma representação igualitária profissionais de saúde, usuários e
representantes da autoridade política local.
II. Objeto e metodologia da pesquisa conduzida
Nossa pesquisa estuda, por meio de uma enquete qualitativa local, o método brasileiro de controle da epidemia em nível local, estadual e municipal. O objetivo é o
de analisar a resposta brasileira à evolução epidemiológica e ao problema da sustentabilidade do programa de Aids. Essa pesquisa tem seu foco nas modalidades
de cooperação entre os diferentes atores e os seus impactos sobre o controle da
epidemia.
A pesquisa foi realizada em dois estados brasileiros, o estado de São Paulo (região
Sudeste) e o estado do Pará (região Norte) no interior de cinco municipalidades.
As informações foram recolhidas em 2005-2006 da seguinte maneira: 100 entrevistas semidirigidas com atores administrativos e operacionais públicos e não
governamentais do programa de Aids e do sistema de saúde brasileiro; uma observação direta do sistema de saúde e de comunidades vulneráveis (habitantes de
favelas, prostitutas, travestis); uma pesquisa documental nas principais bases de
dados (MEDLINE, BIREME, SCIELO, JSTOR, GLOBAL HEALTH, FRANCIS, WEB of SCIENCE, GOOGLE SCHOLAR) e um estudo da literatura acadêmica.
O estado de São Paulo, fortemente urbanizado (92%), é o mais rico do país. Ele
dispõe de uma densa rede de infraestruturas de saúde. A população pobre (12% da
população total) concentra-se em vastos territórios de exclusão [12]. Foi nesse estado que a partir de 1981 surgiram os primeiros casos de Aids. Vinte anos depois, a
incidência da epidemia permanece bastante elevada (22,8 para 100.000 habitantes
em 2002). Ela se espalha para o interior do estado e para os municípios menores.
Dois municípios foram escolhidos para o estudo:
i. Guarulhos, 1 milhão de habitantes, segunda cidade da região metropolitana de São Paulo, que conta com uma importante população pobre;
ii. Ribeirão Preto, cidade de 500.000 habitantes, situada no interior do estado,
em uma das rotas do tráfico de entorpecentes, com uma população em
média mais rica, e melhores índices de desenvolvimento.
O estado do Pará se inscreve no contexto geográfico e social da Amazônia. A
taxa de urbanização é de 68%, sendo que 38% da população vivem abaixo do ní-
Capítulo 12. Os modelos locais de controle da epidemia de HIV/Aids no Brasil
223
vel de pobreza. Observam-se importantes migrações de populações rurais para os
bairros periféricos das cidades. As estruturas de saúde pública são menos desenvolvidas e a esses problemas se somam as dificuldades ligadas ao isolamento geográfico das populações rurais e a elevada prevalência de patologias tropicais [13].
No estado do Pará, o primeiro caso de Aids data de 1985, mas em comparação com
o estado de São Paulo, a incidência permanece baixa. Mas a epidemia avança e
existe uma provável subnotificação dos casos. Três cidades foram estudadas:
i. Belém e Ananindeua, pertencendo ambas à principal região metropolitana
do estado;
ii. Santarém, 300.000 habitantes, situada no interior do estado.
As informações coletadas foram avaliadas com base na análise estratégica e sistêmica [14]. Ela de fato se revelou fecunda para analisar principalmente as políticas
públicas da luta contra a Aids, em nível nacional ou local [15]. Nossa pesquisa estuda o programa de Aids como uma ação pública. Esta pode ser definida como “a
maneira pela qual uma sociedade constrói e qualifica problemas coletivos, elabora
respostas, conteúdos e processos para tratá-los. O foco se coloca de forma mais
abrangente sobre a sociedade e não somente sobre a esfera institucional do Estado” [16]. Por outro lado, essa pesquisa utiliza os conceitos de excepcionalismo e de
normalização da forma como foram definidos nas pesquisas anteriores que tratam
do HIV/Aids [17, 18].
III. Resultados: três modelos locais
com características contrastadas
Nossa pesquisa evidencia três modelos locais de controle da epidemia no Brasil.
Eles são apresentados no Quadro 1.
Resumindo, o modelo 1, em um contexto de diminuição da estigmatização, evidencia a passagem da excepcionalidade à normalização do HIV/Aids, favorecendo
dentro do sistema público de saúde o envolvimento dos atores do cuidado básico
e das ONGs “generalistas” (ou seja, não específicas para o HIV/Aids) no controle da
epidemia. Essas mudanças permitem responder aos desafios colocados pela evolução da epidemia, garantindo uma cobertura adequada à população pobre, mas,
a longo prazo, ameaçam a sustentabilidade do programa de Aids, pois os novos
atores envolvidos geralmente não consideram a epidemia de HIV como uma prioridade de saúde pública.
224
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Quadro 1 – As propriedades dos três modelos de controle
Modelo 1 :
integração e
banalização
Modelo 2 :
Excepcionalismo e
enquistamento
Modelo 3 :
O excepcionalismo
impossível
Discriminação das
pessoas soropositivas Baixa, na família, no
bairro, no sistema de
saúde
Alta, na família, no bairro,
variável no interior do
sistema de saúde
Alta, na família, no bairro,
variável no interior do
sistema de saúde Atores principais da
política de controle do
HIV/Aids (a) Programa municipal e
estadual de Aids,
(a) Programa municipal e
estadual de Aids,
(a) Programa
municipal+/- estadual
(b) ONGs específicas e
não específicas,
(b) ONGS específicas,
(b) CTA , SAE
(c) CTA, SAE
(c) autoridades políticas
locais
(d) unidades básicas de
saúde, CTA, SAE, serviços
hospitalares
Tipos e atividades das
ONGs ONGs específicas para
o HIV/Aids e ONGs nãoespecíficas.
Prestação de serviços >
Ativismo
Poder dos programas
de Aids (a) estadual: alto
(b) municipal: médio
ou alto
ONGs específicas
principalmente
Ativismo > Prestação de
serviços
ONGs não específicas.
Prestação de serviços > >
Ativismo
(a) estadual: médio a
baixo
(a) estadual médio a
baixo
(b) municipal: médio a
baixo
(b) municipal: baixo
Conflituoso
Elaboração e execução
da política de controle
Consensual
Arranjos locais entre
ONGs autoridades
políticas locais
Conflituoso com
autoridades políticas e
outros atores do sistema
de saúde
Cooperação
operacional no interior
do sistema público de
saúde Forte cooperação dos
programas de Aids com
as unidades de cuidados
básicos Baixa cooperação dos
programas de Aids com
as unidades de cuidados
básicos O modelo 2 descreve a persistência da excepcionalidade do HIV e suas consequências na resposta às evoluções da epidemia. A capacidade dos programas
de Aids e das ONGs/Aids em manter o HIV no rol de um problema excepcional
contribui, em um contexto de estigmatização que permanece elevado, para o isolamento desses atores no interior do sistema de saúde e para o frágil envolvimento
das unidades de cuidados básicos. Disso resulta uma cobertura insuficiente da população pobre e dos territórios geográfica e socialmente marginalizados.
Enfim, no modelo 3, a emergência do HIV como problema de saúde pública
é mais tardia e não existem, em nível local, ONGs/Aids. O ator-chave da resposta
à epidemia é um ator administrativo, o programa de AIDS, que faz parte das Secretarias de Saúde. Nesse contexto, não há excepcionalidade do HIV. A cobertura
das populações pobres atingidas pela epidemia é insuficiente. A sustentabilidade
a curto e longo prazo do programa de Aids está ameaçada.
Capítulo 12. Os modelos locais de controle da epidemia de HIV/Aids no Brasil
225
A seguir, apresentam-se as características de cada um dos modelos e os primeiros resultados observados.
III.1. O modelo 1: integração ao sistema público
de saúde e risco de banalização
III.1.1. As propriedades do modelo
No primeiro modelo, quatro grupos principais de atores cooperam estreitamente para a elaboração e a execução da política de controle: as autoridades políticas locais estaduais e municipais; os programas de Aids municipais e estaduais;
as organizações não governamentais, específicas para HIV/Aids (ONGs/Aids) ou
não específicas, isto é, que têm um leque de atividades mais amplo; e as unidades
operacionais de saúde, que reagrupam os CTA e SAE, os serviços hospitalares de
infectologia, as maternidades e as unidades de cuidados básicos.
Observamos uma baixa discriminação em relação às pessoas soropositivas tanto nas famílias e nos bairros em que eles residem quanto dentro do sistema de
saúde.
As autoridades políticas locais dão seu apoio ao programa municipal de Aids.
Este é igualmente mantido por um poderoso programa estadual por meio de seu
know how e de seus recursos. Esse duplo apoio fortalece a capacidade de negociação e de ação (poder) do programa municipal de Aids.
As ONGs especialistas ou generalistas desenvolvem relações de parcerias tanto
com os programas de Aids quanto com as autoridades políticas locais, que lhes
alocam os fundos públicos. O perfil das ONGs/Aids evoluiu. Em nível municipal,
seu papel de ativismo se reduziu sensivelmente à medida que suas reivindicações
foram satisfeitas. Suas atividades de gestão da atividade de saúde, muitas vezes
financiadas pelas autoridades locais, se desenvolveram.
Essas relações de parcerias baseadas em acordos com os serviços e as autoridades municipais estão hoje em dia muito desenvolvidas. A tal ponto que às vezes
os responsáveis pelos programas de Aids lamentam a falta de pressão exercida pelas ONGs. As reivindicações, centradas no tratamento dos doentes, são discutidas
principalmente em nível estadual, entre o fórum das ONGs e o programa de Aids
estadual.
A elaboração e a execução da política de controle são consensuais. O plano
anual define as ações em matéria de prevenção, diagnóstico e tratamento, bem
como o apoio às organizações não governamentais. Ele é adotado sem dificuldade
pelo Conselho Municipal de saúde e executado no local pelas ONGs e pelas unidades operacionais de saúde.
226
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Observamos um forte envolvimento das unidades de cuidados básicos na prevenção e no diagnóstico do HIV/Aids. Esse envolvimento se explica pela: a baixa estigmatização das pessoas soropositivas no seio da população; o suporte das autoridades políticas ao programa de Aids e à cooperação interserviços; as iniciativas dos
programas de Aids que têm uma forte capacidade de negociação com os outros
serviços de saúde; e em alguns casos, a participação dos médicos infectologistas
especializados nas atividades das unidades de saúde primária.
Essa participação facilita a cooperação entre os diversos escalões primário e
secundário e terciário do sistema de saúde e o atendimento integrado dos soropositivos. Além dos infectologistas, os médicos sanitaristas estão fortemente envolvidos nos programas. Eles compartilham com as ONGs/Aids um papel de integrador
entre os diversos componentes da política de controle: diagnóstico, prevenção e
tratamento.
Em contrapartida, no local, e no mesmo território, não existe cooperação entre
serviços de saúde e ONGs. Ao contrário, o que prevalece é a ignorância das atividades tanto de uns quanto das outras.
III.1.2. As consequências para a política de controle
Essas modalidades de cooperação têm consequências diretas sobre a política de
controle. Elas são apresentadas no Quadro 2. O apoio das autoridades políticas locais e a capacidade de negociação do programa de Aids permitem mobilizar localmente importantes recursos tanto financeiros quanto humanos. Assim, a participação financeira local é percentualmente elevada dentro do financiamento federal.
No campo da prevenção, o envolvimento das unidades de cuidados básicos
tem como consequência uma cobertura sistemática, ainda que heterogênea, da
população pobre. Com efeito, essas unidades de cuidados básicos esquadrinham
o território nacional. Além do mais, ela permite focar nas mulheres gestantes, cuja
gravidez é acompanhada nessas unidades. Paralelamente, as ONGs focam as categorias em risco como as dos profissionais do sexo, dos homossexuais, dos usuários
de drogas injetáveis. Outras ONGs também agem no seio da população em geral,
em paralelo com as atividades das unidades de cuidados básicos, além das poderosas instituições de caridade que derivam das igrejas. Em resumo, são muitos os
que intervêm no campo da prevenção, e suas ações são diversificadas (preservativos masculinos e femininos, educação à saúde, ...). E no âmbito das unidades de
cuidados básicos e das maternidades, uma prevenção da transmissão da mãe para
o filho é efetivamente realizada.
Capítulo 12. Os modelos locais de controle da epidemia de HIV/Aids no Brasil
227
Quadro 2: As consequências sobre a política de controle da epidemia
Mobilização dos
recursos humanos e
financeiros
Prevenção Modelo 1
Modelo 2
Modelo 3
+
+/-
-
Foco na população geral
pobre, principalmente
as mulheres pobres;
Ferramentas de
prevenção diversificadas
Foco principalmente
em certos grupos de
risco (Homossexuais,
toxicômanos,
profissionais do sexo)
Depende das ONGs
envolvidas no programa.
Prevenção efetiva da
transmissão vertical
Variedade limitada
das ferramentas de
prevenção
Prevenção limitada
ou inexistente da
transmissão vertical
Variedade limitada
das ferramentas de
prevenção
Prevenção limitada da
transmissão vertical
Barreiras à prevenção
Prioridades dadas aos
grupos específicos no
interior das unidades de
cuidados básicos;
Estigmatização no
sistema de saúde
Baixa cooperação das
unidades de cuidados
básicos /ONGs;
Subdiagnóstico e
tratamento das DSTs
Idem modelo 2
Baixa cobertura
territorial das ONGs
Baixa cooperação do
programa de Aids e dos
serviços hospitalares
Cuidados
Variedade limitada
das modalidades de
cuidados. Tratamento
efetivo das infecções
oportunistas (IO) e das
DST. ARV disponíveis
Variedade importante
das modalidades de
cuidados. Carências no
tratamento das IO e DST.
ARV disponiveis.
Variedade limitada das
ferramentas de cuidados.
Carências no tratamento
das IO e DST. ARV
disponíveis.
Cobertura
População geral pobre e
grupos de risco
Principalmente grupos
de risco
Limitada. Atende a
população pobre via as
ONGs não específicas.
Resposta à:
– pauperização
+
+/-
+/-
– interiorização
+/-
+/-
-
+
+/-
-
– feminização
Sustentabilidade
Risco de banalização
Risco ligado à
instabilidade política
Risco ligado à falta de
mobilização
No campo dos tratamentos, observamos uma boa disponibilidade dos medicamentos: antirretrovirais, medicamentos para as infecções oportunistas, tratamentos das DST. Os centros hospitalares das cidades médias se responsabilizam pelos
pacientes das pequenas cidades situadas em sua periferia.
Mas importantes carências ainda permanecem: os prazos muito longos de espera para as consultas, a falta de especialistas, como, por exemplo, em psiquiatria,
o baixo desenvolvimento das modalidades de hospitalização, a relativa insuficiência dos leitos hospitalares. Essas carências são uma possível consequência da dimi-
228
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
nuição da pressão exercida pelas ONGs. Elas resultam também do foco mantido na
disponibilidade dos antirretrovirais.
Em suma, nesse modelo, uma resposta é dada ao problema da pauperização e
da feminização. A resposta à interiorização da epidemia se choca com a resistência
dos pequenos municípios, com carências em recursos humanos. Disso resultam
lacunas na cobertura do território estadual em matéria de prevenção, atrasos no
atendimento (prevenção, tratamento).
O duplo apoio das autoridades locais e dos programas estaduais garante certa
estabilidade aos programas de Aids municipais. Ela é fortalecida pela contribuição dos fundos federais por meio dos incentivos (cf. introdução). Mas dois fatores
criam um risco de banalização. De um lado, trata-se da desmobilização relativa das
ONGs/Aids. Por outro, trata-se do envolvimento das unidades de cuidados básicos.
Com efeito, essas unidades, e os usuários que participam de sua gestão, consideram a epidemia de Aids como um problema secundário. Quando a população ou
os gestores são questionados, qualquer que seja a importância da epidemia, nunca
o HIV/Aids aparece como uma prioridade.
III.2. O modelo 2: excepcionalidade e “enquistamento”
III.2.1. As propriedades do modelo
A discriminação em relação às pessoas soropositivas é muito mais forte, tanto no
interior dos serviços de saúde quanto no da família ou do bairro.
O grupo de atores que cooperam fortemente para a elaboração e a execução da
política de controle é reduzido. Trata-se dos programas estaduais e municipais de
DST/Aids, das ONGs específicas para o HIV/Aids, e dos CTA e das SAE. Esses atores
compartilham um imperativo: manter a política do HIV/Aids como uma prioridade
de saúde dentro de um clima de hostilidade e escassez dos recursos humanos e
financeiros.
Os programas locais não são apoiados pelas autoridades políticas locais. Além
do mais, as relações são distantes e até mesmo conflituosas entre programas municipais e estaduais. Privado de dois apoios fortes, os programas municipais têm uma
capacidade de negociação e de ação limitada.
Nesse contexto, as ONGS/Aids são, portanto, um parceiro indispensável dos
programas locais. Juntos, eles tentam impor a epidemia de Aids como um problema sanitário e cívico excepcional, exigindo respostas públicas excepcionais. O
ativismo das ONGs é apoiado pelo programa nacional de Aids e divulgado pelas
mídias. Com o ocasional recurso à Justiça, este ativismo é uma condição essencial
para manter uma pressão sobre os poderes públicos e os serviços de saúde.
As unidades de cuidados básicos não parecem persuadidas a se envolverem na
política de controle do HIV. Várias razões explicam isso: a forte discriminação nos
Capítulo 12. Os modelos locais de controle da epidemia de HIV/Aids no Brasil
229
bairros em que elas estão implantadas; a hostilidade ou a indiferença das autoridades políticas locais; o controle social exercido pelas ONGs/Aids sobre os serviços de
saúde; a não participação dos médicos infectologistas nas consultas de cuidados
básicos. Enfim, há poucos médicos sanitaristas nos programas de Aids.
Assim, os diferentes fatores de integração (envolvimento das autoridades políticas, presença de infectologistas em diferentes níveis do sistema de saúde, implicações de médicos sanitaristas) são deficitários neste contexto.
III.2.2. As consequências para a política de controle
Nesse modelo, a política de prevenção foca os grupos de risco tradicionais: homossexuais, toxicômanos, profissionais do sexo. Esses grupos de risco na maioria
das vezes constituíram ONGs específicas para a Aids. Eles são os arquitetos da política de prevenção, centrada na distribuição de preservativos.
As unidades de cuidados básicos quase não participam da prevenção. Elas recebem regularmente estoques de preservativos, julgados insuficientes, mas sua
distribuição não se inscreve em uma estratégia. No interior das unidades, a discriminação em relação aos portadores de uma DST, aos soropositivos, é muito forte. A
existência de uma epidemia local é negada.
A ausência de participação das unidades de cuidados básicos na política de
prevenção explica a inexistência de uma cobertura territorial sistemática. As atitudes discriminantes contribuem para o subdiagnóstico do HIV e das DSTs, em particular entre as gestantes.
Em matéria de tratamento, não existem problemas de distribuição de antirretrovirais, que são da responsabilidade federal. Em contrapartida, os medicamentos
para DST e infecções oportunistas, a cargo dos estados e dos municípios, faltam
com frequência. Enfim, o atendimento hospitalar é muitas vezes retardado pela
falta de leitos disponíveis, real ou não. Mas o ativismo das ONGs e a ameaça do
recurso à justiça permitem o surgimento de vários obstáculos.
Em resumo, os atores da política de controle sofrem para se adaptarem à nova
etapa epidemiológica. Observamos uma espécie de “enquistamento” desses atores
no interior do sistema de saúde. Eles permanecem isolados, cooperam pouco. A
resposta à pauperização e à feminização da epidemia é frágil. Essa fragilidade se
explica pela: ausência de participação das unidades de cuidados básicos; o foco
das ONGs/Aids nos grupos de risco tradicionais e sua recusa em atenderem novos
desafios (sífilis congênita, por exemplo); e a escassez e a fragilidade das associações que representam ou trabalham em benefício das populações pobres e das
mulheres.
A resposta à interiorização da epidemia se choca com os mesmos obstáculos encontrados no modelo 1, acentuados pela discriminação e pela carência dos recursos.
230
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
III.3. O modelo 3: o excepcionalismo impossível
III.3.1. As propriedades do modelo
O terceiro modelo se inscreve igualmente em um contexto de forte discriminação no interior do sistema de saúde e dos bairros e pela ausência de ONGs/Aids
poderosas. Os atores que cooperam entre si são os programas municipais para o
HIV/Aids, os serviços de cuidados e de diagnóstico CTA e SAE. Assim, o desenvolvimento da política de controle do HIV/Aids se baseia exclusivamente nos atores
públicos, administrativos e operacionais, do sistema de saúde. As tentativas dos
programas de Aids para que novas ONGS/Aids surjam frequentemente fracassam.
Ainda que eles se beneficiem da política de incentivos estabelecida pelo Ministério da Saúde, esses programas estão em uma situação de forte dependência
em relação às autoridades políticas municipais. Essa dependência é reforçada pela
relativa fragilidade do programa estadual. Entre os programas municipais e estaduais, as relações oscilam entre cooperação e desconfiança, em razão de orientações
ou de conflitos políticos entre suas autoridades de tutela.
Uma grande parte das atividades de prevenção como a distribuição de preservativos é confiada às ONGs não específicas. Estas integram as atividades de
prevenção da Aids entre suas outras atividades, das quais aquelas são apenas um
componente menor. Com o programa de Aids local, elas são apenas uma prestadora de serviço.
Apesar das diversas iniciativas do programa, as unidades de cuidados básicos
não participam da política de controle da epidemia. As maternidades também estão pouco envolvidas. A forte estigmatização, a fragilidade dos programas contribuem para o baixo envolvimento dos médicos, especialistas ou não, nos programas de Aids. Às carências financeiras se somam as pesadas carências humanas.
Em resumo, não há um fator integrador da política do HIV/Aids. Sob esse aspecto,
faltam aqui autoridades políticas, médicos infectologistas e ONGs/Aids. Isso explica
a abrangência bastante reduzida da política de controle.
III.3.2. As consequências para o controle da epidemia
Nesse modelo, a mobilização de recursos financeiros como complementos dos recursos federais é baixa. A prevenção depende quase que exclusivamente da atividade das ONGs generalistas presentes no município. Estas têm um acesso limitado
aos grupos de risco bastante estigmatizados que são os homossexuais, os toxicômanos, os profissionais do sexo. Em contrapartida, elas proporcionam o acesso ao
programa da Aids a seu público beneficiário, composto de populações pobres. A
cobertura geográfica é limitada, mas essas ONGs às vezes têm importantes recursos, são antigas, com uma forte implantação local.
Capítulo 12. Os modelos locais de controle da epidemia de HIV/Aids no Brasil
231
Em matéria de tratamento, constatamos igualmente uma boa disponibilidade
dos ARV, uma disponibilidade irregular dos medicamentos para as infecções oportunistas e para as DSTs. Mas a carência geral em médicos retarda os diagnósticos e
o atendimento.
Ainda que pouco sistematizada, a resposta à pauperização da epidemia existe, graças à atividade das ONGs não específicas. Mas a resposta à interiorização se
choca com a resistência das autoridades locais e com a carência de atendentes. A
resposta à feminização da epidemia é baixa, em razão da não participação das maternidades e das unidades de cuidados básicos na política de controle.
IV. Conclusões
Essa pesquisa traz vários resultados relativos ao programa de Aids brasileiro aprofundando os conhecimentos já disponíveis. Ela também propõe modelos-tipo de
controle da epidemia cujo interesse ultrapassa o âmbito estrito do Brasil.
Para além da política nacional de controle da epidemia, que permitiu obter
resultados notáveis [19, 20], ela evidencia a diversidade das estratégias locais de
controle e de mobilização brasileiras, que contrasta com a aparente uniformidade
do programa brasileiro. Ela reúne essa diversidade aos elementos contextuais, em
particular às formas e aos níveis de discriminação.
Essa pesquisa mostra os conteúdos diversos que as noções de descentralização
adquirem, de participação, de cooperação com as unidades de cuidados básicos,
em função dos contextos locais.
Critica-se assim, à luz de uma enquete qualitativa local, resultados adquiridos
em outras publicações [1, 3, 6]. Dessa forma, a descentralização foi considerada
como um elemento-chave do sucesso da política brasileira de luta contra a Aids.
Mostramos que ela pode questionar a mobilização política sobre o problema da
Aids e a própria existência dos programas. Isso se explica tanto pela forte discriminação local e pela instabilidade política dos programas de saúde, quanto pelo risco
de banalização do problema da Aids.
Da mesma forma, a cooperação entre atores públicos e organizações não governamentais é considerada pela maioria dos autores como um elemento-chave
do sucesso brasileiro. Essa pesquisa mostra que é preciso diferenciar as situações
em função do tipo de ONGs, de suas atividades e da fase do programa. O papel
das ONGs parece determinante para garantir uma mobilização na fase inicial do
programa. Mas, como mostrou a análise dos modelos 1 e 2, a ação delas pode, em
seguida, ter efeitos negativos em termos de cobertura e de sustentabilidade.
232
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Essa análise da descentralização e do papel das ONGs contribui para explicar,
por exemplo, a diversidade dos resultados registrados no Brasil no campo da prevenção da transmissão mãe-bebê ou do tratamento das infecções sexualmente
transmissíveis [21].
Os modelos-tipo de controle da epidemia que descrevemos têm suas lógicas
próprias, seus pontos fortes e suas fragilidades (Quadro 3), e suas consequências
específicas em termos de saúde pública. Pensamos que eles podem ser úteis, em
outros contextos de países com recursos limitados, à análise das políticas de luta
contra a Aids e às decisões de saúde pública.
Capítulo 12. Os modelos locais de controle da epidemia de HIV/Aids no Brasil
233
PRINCIPAIS
FRAGILIDADES
– leva em conta o desafio HIV/Aids em todos os níveis do sistema de
saúde;
PRINCIPAIS
FORÇAS
– SEGUNDO TIPO DE CONTRADIÇÃO cobertura x sustentabilidade a
longo prazo
– baixa cooperação entre OGN e APS no local (não compartilhamento
de informações, ausência de comunicação, daí a eficácia limitada).
– mal funcionamento do sistema de cuidados básicos que repercutem
na qualidade do diagnóstico e da prevenção.
– institucionalização das ONGs/Aids e não envolvimento com os
novos desafios de saúde, como gestantes e as populações mais
pobres. Orientação prioritária da política de controle do HIV/Aids
em função das demandas e das prioridades expressas pelas ONGs
antigas e instaladas que correspondem a certos grupos vulneráveis
(MSM, sex workers) e uma menor importância dada aos grupos que
têm uma baixa capacidade de expressão, cujas necessidades serão
principalmente atendidas pelas unidades de cuidados básicos;
– risco de excessiva normalização da política do HIV/Aids, isto é,
do desaparecimento do HIV/Aids como prioridade de saúde no
momento em que a epidemia continua progredindo e se espalhando
nas populações cada vez mais marginalizadas. Vários fatores podem
contribuir para isso: a institucionalização das ONGs/Aids, a participação
das unidades de cuidados básicos, as prioridades de saúde expressas
pela população em geral, o envolvimento ativo das ONGs generalistas
que não fazem da Aids um problema prioritário;
– participação dos médicos nos diferentes níveis do programa de saúde.
– consenso entre os que decidem favorecer a estabilidade e a
continuidade a curto prazo do programa de Aids, diálogo que favorece
a cooperação dos diferentes atores locais;
– importante cobertura da população, devida (1) à participação
das unidades de cuidados básicos e (2) à participação de ONGs
generalistas, o que permite responder parcialmente ao novo dado da
epidemia em termos de cobertura, de diagnóstico e de prevenção;
– circulação possível do paciente entre os diferentes níveis primários,
secundários e terciários de saúde sem impedimento importante;
TIPO OU MODELO N° 1
– primeiro tipo de contradição: Entre mobilização
política e cobertura.
– nítidas divergências entre ONGs generalistas e
ONGs/Aids;
– cobertura amplamente incompleta da população
pobre, da feminina em particular, e da população
em geral, em razão da não participação das APS;
– pressão exercida sobre as estruturas de
cuidados básicos envolvidas no HIV/Aids e caráter
das relações com autoridades contribui para
desencorajar envolvimentos das estruturas de
saúde na política do HIV /Aids;
– proteção bastante eficaz das pessoas soropositivas
vítimas de discriminação.
– em um contexto de ausência de apoio político ou
de franca hostilidade, capacidade para manter o
programa de Aids em um nível de prioridade;
– em um contexto de forte discriminação,
manutenção de uma ala específica e identificada
de cuidados dedicada aos pacientes com HIV no
interior do sistema de saúde;
– nível de pressão política e midiática exercida pelas
ONGs/Aids sobre os que decidem para permitir
captação dos raros recursos;
TIPO OU MODELO N°2
Quadro 3 – Forças e fragilidades dos três modelos
– cobertura limitada da
população pobre.
– ausência de ONGs/Aids;
– falta de recursos
financeiros e humanos;
– ausência de advocacy;
– presença de ONGs
generalistas que atendem
a população pobre e
integram o problema do
HIV em uma abordagem
de educação para a
saúde. TIPO OU MODELO N°3
– manter um financiamento direto de ONGs por meio do nível federal
(isto é, diferente da política de incentivos) focando a execução
de atividade de advocacy e o trabalho junto às novas populações
atingidas;
RECOMENDAÇÕES
– focar nas campanhas de informação e de educação para a saúde
junto aos responsáveis do bairro eleitos pela população.
– criar benefícios para os agentes de saúde das unidades básicas que
investem no campo do HIV (alas universitárias);
TIPO OU MODELO N° 1
– estimular os médicos de terceiro nível a intervir
nos níveis inferiores.
– recorrer aos meios de detecção e de prevenção
alternativos no aguardo de: diagnóstico rápido etc.
– desenvolver as vantagens evidentes ao
investimento no campo do HIV/Aids para as
estruturas de cuidados básicos;
– diagnóstico rápido: continuar a luta prioritária
contra discriminações fomentando outros atores
como igrejas, escolas;
TIPO OU MODELO N°2
– aumentar a luta contra
as discriminações.
– no nível local, para
o programa de Aids,
reforçar os vínculos com
as unidades de cuidados
básicos e com as ONGs
generalistas em torno
de uma aliança não
excepcionalista;
– A prioridade é envolver
por meio de incentivos
financeiros importantes
as ONGs generalistas no
campo da Aids, proteger
e ajudar os pequenos
núcleos, grupos ou
associações específicos
para a Aids e formar o
pessoal administrativo
local do programa e os
agentes de saúde dos
hospitais;
TIPO OU MODELO N°3
Evidenciam-se duas contradições importantes que têm implicações operacionais. Por um lado, trata-se da contradição entre mobilização e cobertura das
populações. Uma mobilização política é necessária para superar as dificuldades
financeiras e de recursos humanos inerentes ao sistema de saúde brasileiro. Essa
mobilização política é iniciada pelas ONGs e se apoia nas mídias, no poder judiciário, às vezes nos partidos políticos locais. Ela é uma condição para superar a dupla
barreira da estigmatização e dos racionamentos. Mas ela tem um efeito perverso
imediato: ela gera para os outros atores do sistema de saúde um custo elevado de
se engajar na luta contra a Aids, ligado à publicização da ação pública e ao controle
associativo. Essa não-participação tem como consequência uma cobertura limitada das populações pobres.
Por outro lado, trata-se da contradição entre a cobertura das populações e a
sustentabilidade dos programas. Quando as unidades de cuidados básicos se envolvem na luta contra a Aids, no interior do sistema brasileiro tal como ele funciona, a infecção pelo HIV/Aids jamais aparece, qualquer que seja o contexto epidemiológico, como uma prioridade. Pelo contrário, as populações pobres urbanas,
que participam da gestão das unidades de cuidados básicos, relegam a epidemia
ao patamar de um problema como outro qualquer, e até mesmo como um falso
problema. Essa banalização da questão da infecção surge, portanto, como uma
consequência da participação das unidades de cuidados básicos na luta contra o
HIV/Aids. Ora, essa participação permite por outro lado uma melhor cobertura da
população a curto prazo.
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(Supl.):18-22.
Capítulo 12. Os modelos locais de controle da epidemia de HIV/Aids no Brasil
237
CAPÍTULO 13
A cooperação entre o programa de Aids
brasileiro e o Banco Mundial: lições de uma
parceria sustentável para os países do Sul
Guillaume Le Loup
Andreia Pereira de Assis
Maria Helena Costa Couto
Jean-Claude Thoenig
Sonia Fleury
Kenneth Camargo
Bernard Larouzé
Resumo: Ator na situação excepcional do Brasil para o HIV/Aids, o Banco Mundial,
apesar da sua posição inicial, favoreceu a mudança de escala do programa brasileiro, especialmente no que diz respeito à implementação efetiva do tratamento
universal e gratuito. Os acordos AIDS I, II, III e AIDS SUS garantiram o financiamento
plurianual da luta contra a Aids, incentivando os investimentos por parte dos detentores de decisão, locais e nacionais. As capacidades de preparo e de negociação das administrações brasileiras implicadas, a escolha clara de uma estratégia
de controle da epidemia e, por fim, o apoio político nacional dado ao então Programa Nacional de DST/Aids pelas autoridades públicas brasileiras foram fatores
essenciais de êxito. O exemplo brasileiro prova que a cooperação duradoura entre
uma instituição internacional e um programa nacional pode ser particularmente
importante em várias fases de um programa público: durante as fases iniciais de
mobilização, permite inserir o problema na agenda política e institucional quando,
ao contrário, a normalização do problema evolui de maneira concomitante com a
falta de mobilização de vários atores principais.
Palavras-chave: instituições internacionais, sustentabilidade, cooperação, HIV/Aids.
I. Introdução
Os anos 2000 foram marcados por uma profunda transformação na avaliação dos
problemas de saúde pública em nível internacional. A mobilização sem precedente
de recursos financeiros dedicados às principais patologias que afetam os países do
sul, em especial o HIV, o paludismo e a tuberculose, foi acompanhada pela emergência dos novos atores, particularmente as Iniciativas Globais de Saúde (Global
Health Initiatives, definidas como “A blueprint for financing, resourcing, coordinating and/or implemeting disease control across at least several countries in more
than one region of the World”) [1], e as Parcerias Público-Privadas (PPP), que doravante representariam um importante papel na definição e na ação dos programas
de saúde. Essa transformação trouxe incontestáveis resultados positivos, como o
acesso de vários milhões de pacientes do sul à tri-terapia antirretroviral, ou a diminuição da transmissão do paludismo na África subsaariana. Mas também levantou,
no final dos anos 2000, questões quanto ao seu impacto a médio e longo prazo
sobre os programas e os sistemas de saúde beneficiários [2]. De maneira mais geral, essas questões trataram das modalidades e dos efeitos da cooperação entre as
instituições internacionais, as IGS e os países do sul no campo da saúde.
A experiência brasileira no campo do HIV/Aids oferece um modelo útil de análise e de reflexão nesse campo. De um lado, porque se trata de um duplo sucesso:
sucesso da política de controle da epidemia e sucesso da cooperação entre os dois
parceiros, que foi renovada em várias ocasiões. De outro, porque essa cooperação
foi engajada e construída em um contexto marcado por divergências estratégicas
entre os dois parceiros quanto às modalidades de controle da epidemia. E enfim,
porque essa cooperação se prolongou durante duas décadas, de forma que ela
participou e acompanhou a política de luta contra o HIV em etapas muito variadas
de seu desenvolvimento e de sua realização.
O objetivo de nossa pesquisa sobre a cooperação entre o Banco Mundial e o
então Programa Brasileiro de DST/Aids foi o de descrever suas modalidades, as dimensões políticas, organizacionais e sanitárias, os efeitos em nível nacional e local,
e enfim indicar com precisão suas lições para os outros países do Sul.
II. Métodos de pesquisa
II.1. A coleta dos dados
O trabalho de pesquisa teve:
 Entrevistas semidirecionadas individuais e confidenciais, com importantes
atores da política brasileira de luta contra a Aids, públicos ou não governamentais, em nível nacional e local, realizadas em dois estados brasileiros (o
Estado de São Paulo e o Estado do Pará) em 2006 e 2007;
 Observação direta, realizada em 2006 e 2007, da atividade dos atores da
política de controle da Aids e do sistema de saúde brasileiro e da maneira
240
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
como eles cooperavam no interior das estruturas especializadas de atendimento dos pacientes, das unidades de cuidados básicos do sistema público
de saúde, dos programas locais de Aids e das ONGs;
 Um estudo documental bastante detalhado (relatório de reuniões, relatório
de atividade, projetos etc.) a partir dos documentos do Banco Mundial e dos
outros atores da política brasileira, conduzido até 2006;
 A análise secundária dos dados de estudos realizados por terceiros e das
publicações nacionais e internacionais, conduzida igualmente até 2009.
II.2. A análise dos dados
De um lado, nossa pesquisa se apoiou nos conceitos e nos métodos utilizados na
análise estratégica e sistêmica, de outro, na análise das políticas públicas. E essas já
foram apresentadas detalhadamente [3]. Em resumo, a análise estratégica e sistêmica identifica os atores envolvidos na ação organizada, as modalidades e o grau
desse envolvimento, e as estratégias racionais por eles empregadas para maximizar seu poder e os benefícios que obtêm da ação organizada. O conjunto das estratégias e das cooperações que disso resultam forma um sistema caracterizado
por uma regulação específica. A análise das políticas públicas estuda as diferentes
etapas de sua elaboração e de sua execução por atores públicos e/ou não governamentais e a maneira pela qual elas induzem a mudança social.
III. Resultados da pesquisa
III.1. O Banco Mundial, ator da excepcionalidade brasileira
O conceito de “excepcionalidade”, assim como ele emergiu no contexto da Aids,
remete à execução de medidas políticas, dispositivos de abordagens que rompem
com o que estava feito anteriormente e ocasionam uma reviravolta nas práticas
sanitárias anteriores. Como escrevem Rosenbrock e os demais: “HIV infections and the outbreak of Aids attracted not only special attention in all the
countries impacted but also led to a high degree of readiness to try out innovative processes as well as to institutionalize matters and disburse large amounts of money – Aids
became the exception from many rules in health policy, prevention and patient care” [5]
Capítulo 13. A cooperação entre o programa de Aids brasileiro e o Banco Mundial
241
A dinâmica política da excepcionalidade brasileira
Dois conjuntos principais de atores, que intervêm na elaboração e na execução da
política brasileira de controle do HIV/Aids, se sucederam ao longo dos primeiros
anos da epidemia:
 de 1981 a meados dos anos 1980, dois atores se afirmam em um cenário nacional fragmentado. De um lado, trata-se das Secretarias Estaduais de Saúde
e, de outro, das populações atingidas pela epidemia que progressivamente
se organizam no interior de associações e adquirem uma forte capacidade
de expressão e de ação. Esses dois atores cooperam para definir a primeira
resposta principalmente estadual (no sentido de nível político-administrativo), à epidemia.
 a partir de meados dos anos 1980, o então Programa Nacional de DST/
Aids pouco a pouco se estrutura no interior do Ministério da Saúde. Paralelamente, diferentes parceiros internacionais, em particular o Banco Mundial, desenvolvem programas de cooperação. A partir de então, a política se
constrói principalmente entre quatro atores interdependentes no interior
de uma “aliança excepcionalista” original: além do programa nacional e do
Banco Mundial, fazem parte as organizações não governamentais e os estados. Até os anos 2003-2004, esse conjunto de atores define as modalidades
da resposta brasileira à epidemia e conduz à sua intensificação.
De um lado, todos os quatro atores principais dividem uma necessidade de reconhecimento em um cenário em que seu lugar ainda não está definido ou, no
caso dos estados, tem de ser reafirmado. A luta contra a Aids lhes oferece um terreno para reforçar seu papel e suas competências.
Por outro, eles têm um interesse compartilhado para que o HIV/Aids seja reconhecido no contexto brasileiro, pelo maior tempo possível, como um problema
público excepcional que exige respostas excepcionais. Por problema público, nós
compreendemos um problema relativo à sociedade em seu conjunto, que cria uma
forte demanda social e justifica a mobilização e a intervenção das autoridades políticas em um clima de incertezas e de controvérsias sobre as estratégias a serem
praticadas para a solução do problema [3]. O medo de uma generalização da epidemia no conjunto do País basta para criar, no final dos anos 80, uma demanda
social importante. Essa noção de problema público se diferencia da noção de problema de saúde pública que “corresponde à intervenção programada dos poderes
públicos para responder a uma doença, com a ajuda de uma ação determinada por
um processo de decisão técnica, levando em conta a existência de meios capazes
de responder à doença ou de preveni-la” [6].
Para os quatro principais atores, o HIV/Aids constitui um problema público pois,
em um nível duplo, ele representa uma ameaça para o conjunto da sociedade brasileira, em razão de suas características próprias: ameaça para a saúde individual
242
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
e ameaça civil e política pelos riscos de discriminação em relação aos doentes e
atentado aos direitos e liberdades de cada brasileiro. A epidemia de Aids tem valor
de teste quanto à capacidade da sociedade brasileira para se democratizar. Como
expressou um célebre ativista brasileiro, Herbert de Souza, o Betinho, a morte física
é precedida, como no caso da lepra de que o Brasil permanece um dos principais
focos, de uma morte social.
Enfim, todos os atores que se beneficiam de um mínimo de recursos políticos
(e em três de cada quatro casos ao mesmo tempo políticos e financeiros), podem
contribuir para satisfazer os objetivos estratégicos de cada um dos outros atores.
Dessa maneira, nos anos 1990, os principais atores da política brasileira de Aids
compartilham uma regra comum, não explícita, mas que pode ser assim formulada: manter no Brasil e pelo maior tempo possível a excepcionalidade do HIV/Aids,
ainda que a ameaça de uma epidemia generalizada venha a desaparecer. Para esse
objetivo, cada ator está pronto a fazer concessões em relação à sua própria teoria
dos meios de controle da epidemia. Assim se coloca em ação uma dinâmica de
excepcionalidade que estrutura a intensificação do combate brasileiro.
As ONGs, expressões dos grupos vulneráveis, dirigem fortes demandas aos poderes públicos, ministério e estados. São demandas de serviços sociais (prevenção
e tratamento), de garantias jurídicas, de reconhecimento político e de participação
no programa. Em troca, as associações oferecem acesso a esses grupos vulneráveis
e à sua participação na prática da política de controle.
Depois dos estados, somente o Ministério da Saúde pode responder a essas demandas públicas de prevenção e de tratamento, ainda mais que o então Programa
Nacional de DST/Aids oferece realmente ao Ministério a oportunidade de conduzir
um programa terapêutico exemplar pela sua universalidade e sua gratuidade.
As relações entre o Programa Nacional de DST/Aids e o Banco
Mundial: negociações complexas com múltiplos desafios
Ao entrar em longas negociações com o Banco Mundial, o Ministério da Saúde não
ignora que escolheu como principal parceiro uma instituição internacional cuja visão do controle da epidemia é profundamente diferente da sua. Mas a negociação
com o Banco Mundial, renovada por duas vezes, oferece ao Ministério uma dupla
oportunidade: por um lado, reunir sob sua autoridade, enquanto negociador, todos os atores da luta contra a Aids no Brasil, por outro, ter acesso a uma importante
fonte de financiamento internacional.
Para o Banco Mundial, o envolvimento no então Programa Nacional de DST/
Aids permite relançar a cooperação no campo social e sanitário com o Brasil e promover sua abordagem da saúde, que dedica um amplo espaço às organizações
comunitárias e às estruturas descentralizadas na luta contra a epidemia.
Capítulo 13. A cooperação entre o programa de Aids brasileiro e o Banco Mundial
243
Suas relações com o então Programa Nacional de DST/Aids brasileiro se desenvolvem no início dos anos 90, justamente no momento em que os problemas
organizacionais e políticos afetam o Programa Nacional. A primeira década do Programa é, com efeito, marcada por uma importante crise de 1990 a 1992, que o enfraquece diante dos estados e das instituições internacionais. Essa importante crise
está diretamente ligada à reorganização do Programa de Aids sob a presidência
de Collor, que foi o governo que se propôs a fazer um programa liberal de redução
drástica do Estado em todas as áreas, repassando suas responsabilidades a outros
níveis de governo e/ou à sociedade civil.
Foi prevista, em vez de uma estrutura nacional, a criação de comissões municipais de Aids encarregadas da execução da política. Por outro lado, após uma polêmica sobre a participação em um teste clínico de vacina, as relações com a Organização Mundial de Saúde (OMS) são interrompidas no mesmo período.
Na mesma época, as relações são complexas entre o governo brasileiro e o
Banco Mundial por causa das dificuldades encontradas para a execução de três
programas definidos ao longo dos anos 1980: Northeast Health Services I (1986,
empréstimo de 59 milhões de dólares), Northeast Endemic Disease Control (1988,
empréstimo de 109 milhões de dólares), Amazon Basin Malaria (1989, 99 milhões
de dólares). O projeto de 1988 compreende um baixo montante consagrado às
atividades de prevenção do HIV/Aids (7 milhões de dólares) [7]. No entanto, no final
dos anos 80, o Banco Mundial publica um relatório prevendo uma explosão dos
casos de Aids concluindo que “as perspectivas são sombrias” [8].
As relações entre o Ministério da Saúde e o Banco Mundial melhoram ao longo
dos anos seguintes e resultam, a pedido do governo brasileiro, em um primeiro
acordo de empréstimo, AIDS I (1994-1998), longamente negociado. Esse empréstimo será seguido de dois outros AIDS II (1998-2003) e AIDS III (em 2003). Eles foram
objeto de uma intensa preparação por parte do lado brasileiro, orquestrada pelo
programa nacional. Esses acordos oferecem ao Banco Mundial a oportunidade de
fazer prevalecer sua estratégia no setor sanitário, expressa no relatório “Investing
in Health” [9] e sua estratégia de luta contra a epidemia tal como formulada no
relatório “Confronting Aids ” de 1997 [10]:
 primazia dada à prevenção baseada em uma mudança dos comportamentos individuais;
 não “sustentabilidade” financeira do financiamento público do acesso universal aos tratamentos antirretrovirais (o que, como se verá mais adiante,
não prevaleceu no Brasil);
 descentralização necessária dos programas de luta contra a Aids;
 forte participação das ONGs na execução do programa e envolvimento do
Banco tanto no financiamento quanto no desenvolvimento de suas ações.
244
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Para o Banco, essas negociações também representam uma ocasião para afirmar seu papel internacional no campo da saúde que dessa maneira se inscreve em
uma estratégia mais ampla da instituição de investimento (sob forma de empréstimos), na área da saúde.
Por ocasião dos programas de ajustes e das crises financeiras que marcam os
anos 1980 e 1990, o Banco Mundial dispõe de dois importantes trunfos em suas
relações com o programa nacional e com o Ministério da Saúde: por um lado, o
empréstimo e, por outro, a capacidade de conferir ao Estado uma credibilidade
financeira internacional. A partir dessa base, o Banco pode negociar para que se
reconheça a sua força de proposição e de ator operacional no campo da saúde,
considerado como uma alavanca do desenvolvimento coletivo.
Enfim, os Estados, principalmente aqueles em que a epidemia é mais intensa, não podem arcar sozinhos com o custo financeiro da política de controle e de
atendimento. Mas seu engajamento na luta contra o HIV/Aids pode lhes trazer, ali
onde a demanda social é forte, um triplo benefício: na cena político-administrativa
local, por suas relações tecidas com a rede associativa; no campo da saúde, em que
os estados têm em muitos casos uma posição de inovadores frente ao Ministério
da Saúde e de coordenadores de iniciativas frente aos municípios. Esse é o papel
representado, e que continua a ser plenamente representado, pelo programa do
Estado de São Paulo, considerado como referência para o conjunto do Brasil e cujos
quadros foram, por duas vezes, chamados para dirigir o programa nacional.
Portanto, as estratégias dos atores, bem como a dinâmica de suas relações,
conduzem a tratar a epidemia de HIV/Aids como um problema público excepcional, definido como uma ameaça sanitária e cívica para o conjunto da população.
Essa excepcionalidade perdura no Brasil durante os anos 1990 e no início dos anos
2000: a escolha de um tratamento gratuito pela triterapia universal, a posição do
programa de Aids dentro do Ministério da Saúde até o início da década de 2000 e
a mobilização midiática e associativa sobre o HIV/Aids, são algumas das manifestações dessa excepcionalidade. Ela é mantida pela ação dos atores; os acordos com
o Banco Mundial são renovados, as associações se organizam no interior de poderosas redes capazes de se fazerem ouvir pelas mídias e pelos agentes políticos, a
cooperação com o programa nacional se institucionaliza.
Esse primeiro círculo de quatro atores (Ministério da Saúde, Banco Mundial, estados, ONG/Aids), que forma a aliança “excepcionalista” brasileira, recorre, quando
as negociações se bloqueiam, a um segundo círculo de atores formado por responsáveis políticos, alguns deles constituindo, no início dos anos 2000, grupos
parlamentares consagrados ao HIV/Aids; pelas mídias; pelo aparelho judiciário. A
intervenção desse segundo círculo muitas vezes teve como efeito reforçar a excepcionalidade do HIV/Aids e resolver os conflitos, quer se trate de soluções judiciárias
ou de liberações obtidas após a intervenção do poder executivo local ou federal.
Esse segundo círculo constitui um recurso para os atores de primeiro círculo, em
Capítulo 13. A cooperação entre o programa de Aids brasileiro e o Banco Mundial
245
caso de problemas que coloquem em risco o acesso dos pacientes, coletiva ou individualmente, aos tratamentos e aos cuidados. Ele representou um importante papel durante a elaboração da lei de 1996 que garante o acesso universal gratuito aos
tratamentos antirretrovirais, nos casos de escassez de antirretrovirais ou de medicamentos para as infecções oportunistas em nível nacional ou estadual, e, enfim,
quando pacientes infectados não tiveram acesso aos leitos de hospitalização.
III.2. O Banco Mundial e a intensificação do
programa de Aids brasileiro (1993-2002)
Os dois primeiros acordos Aids acontecem em um período decisivo da resposta
brasileira à epidemia, o do estabelecimento, no conjunto desses países com dimensões continentais, de uma estratégia de controle que associa prevenção e
acesso universal ao tratamento antirretroviral. Os acordos AIDS I e II constituem
poderosas alavancas para esse processo.
AIDS I
O primeiro programa AIDS I atinge 250 milhões de dólares dos quais 160 sob forma
de empréstimo do Banco Mundial [11-13]. Ele está centrado nas atividades de prevenção e de controle da epidemia.
Os 27 estados do país e os 41 municípios são selecionados para receber financiamentos no âmbito desse acordo, mas a autoridade do programa nacional está
claramente estabelecida, principalmente pelas condições colocadas para a obtenção desses recursos: definição das ações com o programa nacional, que resultam
na assinatura de acordos contratuais. O Acordo AIDS I coloca então o Programa
Nacional como o único interlocutor direto do Banco Mundial e como a interface
obrigatória com as estruturas descentralizadas, para a distribuição dos 115 milhões
de dólares atribuídos a essas estruturas.
Além do mais, o Acordo AIDS I prevê o financiamento das ONGs que intervêm
no campo da prevenção. Ao longo desse acordo, as 181 ONGs que apresentaram
444 projetos recebem recursos diretamente do programa nacional para ações de
informação, de prevenção e de apoio/acompanhamento que focam principalmente três grupos vulneráveis: homens que mantiveram relações sexuais com outros
homens, usuários de drogas injetáveis, profissionais do sexo. Entre esses projetos,
62% são desenvolvidos na região Sudeste, 20 % no Nordeste, 10% no Sul, 7% no
Centro-Oeste e 2% no Norte. A escolha das ONGs beneficiárias se baseia em uma
submissão competitiva de projetos que serão avaliados por uma comissão independente composta de membros de instituições científicas e de universidades, em
um mesmo contrato-padrão para todas as ONGs, e na aceitação de uma avaliação
pelo Programa Nacional.
246
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Enfim, AIDS I estabelece um eixo que será conservado posteriormente: a formação (“capacitação” de acordo com o termo brasileiro) dos funcionários de saúde
no campo do HIV/Aids, que engloba 21.000 profissionais ao longo desse primeiro
projeto.
AIDS II
O Acordo AIDS II cobre o período 1999-2002 [13-16]. Ele acontece em um contexto
de crise financeira nacional. É negociado pelo Programa Nacional a despeito de
resistências no interior da administração brasileira, em especial por parte da COFIEX (Comissão dos Financiamentos Exteriores), organismo cuja função é aprovar
os parceiros externos dos diferentes ministérios – entre eles o Ministério da Saúde.
Esse acordo acontece pouco depois de o governo brasileiro ter adotado o princípio
de um acesso universal e gratuito à triterapia antirretroviral altamente ativa. As discussões bilaterais em torno desse novo acordo revelam importantes divergências
entre o Programa Nacional e o Banco Mundial sobre o financiamento público do
acesso universal e gratuito aos antirretrovirais.
Todavia, o Acordo AIDS II não está apenas centrado na prevenção. Ele também
se apoia, como o AIDS I, no reforço das estruturas de cuidados que garantem o
acompanhamento dos pacientes e a execução de seu tratamento. O Acordo AIDS
II atinge 300 milhões de dólares (dos quais 165 milhões do Banco Mundial). Ele se
baseia, diferentemente do AIDS I, cujo campo de intervenção era mais limitado,
em quatro princípios que guiam as intervenções financiadas: a descentralização, a
“sustentabilidade”, a institucionalização e a participação política.
Os acordos sucessivos contribuem diretamente para o estabelecimento de um
programa de Aids “vertical”, implantado no interior do sistema público de saúde,
mas que se beneficia de suas próprias unidades de diagnóstico e de tratamento
especializado ambulatorial. O Acordo AIDS II permite assim sustentar 145 SAE (Serviço de Atendimento Especializado), 66 unidades intra-hospitalares, e 50 unidades
de cuidados no domicílio dedicadas ao HIV/Aids [17].
Os grupos vulneráveis prioritários são ampliados, com a inclusão das mulheres
e das crianças.
Durante os cinco anos do programa AIDS II, o número de ONGs e de projetos
associativos financiados alcança uma progressão muito alta, passando respectivamente de 181 para 785, e de 444 para 2183.
Os acordos AIDS I e AIDS II são, portanto, uma importante ferramenta na realização da intensificação do então Programa Nacional de DST/Aids ao longo da
década de 1990. Mas essa cooperação, sustentada pela dinâmica da excepcionalidade, também tem efeitos induzidos indiretos. Em primeiro lugar, a excepcionalidade do HIV/Aids favorece o estabelecimento de um programa vertical e freia a
descentralização das ações de luta contra a epidemia, ainda que a integração e a
Capítulo 13. A cooperação entre o programa de Aids brasileiro e o Banco Mundial
247
descentralização sejam dois aspectos importantes da estratégia sanitária do Banco
Mundial. Embora a descentralização seja um dos princípios organizadores do SUS
seu desenho foi do tipo top-down, mantendo a função estratégica e a capacidade
de negociação da autoridade sanitária nacional. E mais ainda, ao apoiar a criação
e o desenvolvimento de ONGs dedicadas ao HIV, o Banco Mundial contribui indiretamente, via o desenvolvimento dessa força de advocacy e de reivindicações, à
criação das condições políticas para a execução de um acesso universal e gratuito
à triterapia antirretroviral, ao passo que na década de 90, ela se opõe a essa opção
tanto por razões econômicas quanto epidemiológicas. Essas reivindicações das
ONGs foram possibilitadas pela existência de um sistema universal e integral de
atenção pública, mantido mesmo durante os governos mais liberais.
III.3. O Banco Mundial e a “sustentabilidade”
do programa brasileiro (2002- )
Na virada dos anos 2000, no exato momento em que a política brasileira de luta
contra o HIV/Aids é reconhecida como um modelo para os países do sul, a epidemia brasileira conhece uma profunda mudança que afeta por muito tempo o
programa.
Essa mudança foi caracterizada pelos epidemiologistas brasileiros com os termos de feminização, pauperização, interiorização. Dessa maneira, desde meados
dos anos 1990, a epidemia atinge com uma crescente frequência a população feminina e a população de baixa renda e educação. Inicialmente concentrada nas
principais cidades do Sul e do Sudeste do país, a epidemia avançou progressivamente para o Norte e o Centro-Oeste do país, e para os pequenos e médios municípios [18-20].
Essa evolução epidemiológica teve várias consequências importantes para o
programa. Por um lado, a capacidade desses grupos de se organizarem e de participarem da resposta à epidemia é, na maioria das vezes, mínima em comparação
com os grupos mais atingidos nos primeiros anos da epidemia (homens que tiveram relações sexuais com outros homens [HSH], profissionais do sexo, em particular). Por outro lado, o sistema de saúde apresenta muito mais carências e é mais
frágil no interior do país, em particular nas regiões Norte e Nordeste, mas também
nos bairros pobres das grandes cidades, o que coloca o problema da carência dos
recursos humanos e financeiros disponíveis para executar a política de controle.
Paralelamente, o aumento do custo dos medicamentos antirretrovirais, associado ao aumento do número de pacientes tratados e ao aumento da duração de
vida das pessoas portadoras do HIV, coloca o problema relativo ao financiamento
da política de acesso universal e gratuito ao tratamento [21-23].
No contexto dessa dupla evolução epidemiológica e financeira, o programa de
Aids é confrontado, desde o início dos anos 2000, com a questão da sustentabili-
248
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
dade a médio e longo prazos. Uma das respostas trazidas em nível nacional é a de
relançar a descentralização da política de luta contra o HIV, com a finalidade de envolver mais fortemente, no plano administrativo, médico e financeiro, o conjunto
dos estados e cerca de 500 municípios em várias regiões do interior. Esse relançamento, executado a partir de 2002, foi denominado política dos “incentivos”. [24].
O objetivo é triplo: atender melhor as populações social ou geograficamente
marginalizadas; favorecer a articulação da política de Aids com a política de saúde;
“garantir a sustentabilidade do programa”, isto é, implicar muito mais os níveis descentralizados no financiamento do programa.
Essa política nacional, dita de “incentivos”, transfere aos municípios e secundariamente aos Estados, a responsabilidade pela elaboração de um plano anual
de luta contra a Aids no nível de seu território, em resposta aos incentivos financeiros que lhes são alocados. Essa política consagra principalmente a emergência
dos municípios brasileiros na luta contra a Aids: é nesse nível que se deve elaborar
o primeiro plano de luta, a definição das principais prioridades, a coerência das
ações. Cerca de 400 municípios, foram selecionados a partir de critérios variados
(incidência dos casos de AIDS, capacidades de gestão etc.) e representando 90%
dos casos de AIDS do país bem como todos os estados.
As competências oferecidas nesse âmbito aos municípios são amplas. Cabe a
eles em primeiro lugar estabelecer o diagnóstico epidemiológico sobre seu território e qualificar o problema que a epidemia provoca. Em seguida, as administrações
locais devem definir as prioridades no interior de um Plano de Ações e de Metas
(PAMs) de acordo com quatro eixos:
22. promoção da saúde, prevenção e proteção das populações;
23. diagnóstico, tratamento e assistência (os municípios dividem com os estados a responsabilidade pelos medicamentos para as infecções oportunistas
e para as doenças sexualmente transmissíveis. Em contrapartida, o abastecimento das unidades de atendimento em antirretrovirais permanece sob a
responsabilidade do governo federal);
24. desenvolvimento institucional;
25. parceria com as organizações não-governamentais. Sob este último ponto
de vista, é indispensável, para se beneficiar dos incentivos financeiros, que
as ONGs que trabalham no campo da Aids estejam associadas à elaboração
do plano; por outro lado, os fundos pagos às ONGs devem representar pelo
menos 10% das somas dadas pelo governo federal; se a soma representar
menos de 10%, a diferença deve ser devolvida ao governo federal. Os fundos provenientes do governo federal devem ser, sob pena de sanções, especificamente destinados pelos municípios à política de controle da Aids.
Várias configurações locais se estabelecem [25]. A principal, predominando no
sul do país, é caracterizada por uma estratégia de regulação e de gestão do proble-
Capítulo 13. A cooperação entre o programa de Aids brasileiro e o Banco Mundial
249
ma HIV/Aids que permite a integração dos programas locais de Aids ao sistema de
saúde e uma cooperação bastante estreita com os diferentes componentes desse
sistema, em particular as unidades de cuidados básicos. Essa integração favorece
uma responsabilização pelo diagnóstico e pela terapêutica das populações pobres
atingidas pela epidemia. No entanto, ela favorece também a desmobilização para a
questão do HIV/Aids, facilitada pela evolução das ONGs que apresentam principalmente um importante perfil de atores da advocacy para um perfil de prestadores
de serviços de saúde.
Ao contrário, nos contextos locais de recursos bastante restritos e de discriminação persistente, outra configuração é a da manutenção da excepcionalidade do
HIV/Aids pelos principais atores da resposta à epidemia. As ONGs, em particular,
permanecem fortemente mobilizadas diante das ameaças civis e para garantir a
obtenção de recursos humanos e financeiros suficientes. Nessa configuração, traduzida por um isolamento relativo dos programas de Aids no interior do sistema
de saúde e por uma resposta pouco adaptada às novas tendências da epidemia, a
sustentabilidade da resposta está ameaçada pelo frágil apoio, e às vezes até mesmo pela hostilidade declarada, das autoridades políticas aos programas de Aids
em razão do custo político, para as autoridades políticas locais, associado ao envolvimento na luta contra o HIV/Aids, nos lugares onde persiste uma estigmatização
importante dos doentes.
Nesses contextos, como foi que a cooperação entre o programa brasileiro de
Aids e o Banco Mundial influiu na sustentabilidade da resposta brasileira à epidemia, sendo a sustentabilidade definida como “the long-term ability of an organisational system to mobilize and allocate sufficient and appropriate resources for
activities that meet individual or public health needs and demands” [26]?
Em primeiro lugar, ainda que inicialmente o Banco e o Programa Nacional tenham previsto não concluir senão um único acordo de financiamento, um terceiro
acordo chamado Aids III foi concluído em 2003, e no final da década de 2000, novas
negociações foram engajadas para preparar um novo acordo, denominado AIDS
SUS, para cobrir o período de 2010 a 2014. Dessa maneira, em 2014, o programa
brasileiro terá sido beneficiado por um apoio ininterrupto do Banco Mundial por
mais de duas décadas.
O Acordo AIDS III está centrado na questão da sustentabilidade do Programa
brasileiro na dupla perspectiva de sua descentralização e de sua horizontalização
[27-29]. No documento inicial do Acordo AIDS III (Project appraisal) o Banco Mundial e o programa de Aids analisam os maiores riscos para a sustentabilidade e sugerem classificar os 27 estados brasileiros de acordo com os riscos financeiros e técnicos para prever níveis de financiamentos adaptados às necessidades em termos
de sustentabilidade de Programa. O risco técnico é definido como a capacidade
do estado em matéria de recursos humanos, de capacidade de acompanhamento
dos pacientes, de parcerias com as ONGs, de execução de atividades de prevenção
250
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
no interior dos grupos mais vulneráveis, e de atividades de controle dedicadas à
prevenção da transmissão mãe-bebê do HIV.
No programa AIDS III, a estratégia para favorecer a sustentabilidade do Programa baseia-se na busca de um apoio importante às ONGs, na capacitação dos profissionais de saúde do sistema público de saúde (em particular das unidades de
cuidados básicos) na área do HIV/Aids, no encorajamento à cooperação entre os
programas de Aids locais e as unidades de cuidados básicos a fim de melhorar a
cobertura das populações vulneráveis, em particular das populações vulneráveis
pobres, e enfim um apoio financeiro específico aos estados que apresentam os riscos mais elevados.
O programa AIDS SUS (2010-2014), assim como emerge das discussões e das
negociações anteriores, será centrado na cooperação entre os programas de Aids
locais e as unidades de cuidados básicos, particularmente nas três macrorregiões
com recursos limitados: o Norte, o Nordeste, e o Centro-Oeste. Os profissionais do
programa de saúde familiar (Programa de Saúde da Família), que desenvolve uma
abordagem específica da saúde básica (equipe pluridisciplinar móvel dedicada a
um território de saúde nos bairros menos favorecidos), estarão fortemente envolvidos na detecção e no acompanhamento dos pacientes com HIV, principalmente
mulheres grávidas. Paralelamente, a cooperação entre o Banco Mundial e o Ministério da Saúde brasileiro para a melhoria da qualidade da oferta de cuidados básicos
será perseguida no interior de diferentes projetos existentes tais como Qualisus e
Saúde Familiar. O montante previsto para o AIDS SUS é de 200 milhões de dólares.
IV. Conclusão: as lições da cooperação
entre o Banco Mundial e o programa
brasileiro de luta contra o HIV/Aids
Em primeiro lugar, a cooperação foi claramente benéfica para a política brasileira
de luta contra a Aids, em diferentes etapas de seu desenvolvimento [30], ainda
que de um lado a estratégia financeira do Banco Mundial nos anos 1990 (política
de ajuste) tenha tido um impacto muito negativo em inúmeros países do Sul [31],
e que, por outro lado, as estratégias de resposta à epidemia fossem divergentes e
até mesmo conflitantes entre os dois parceiros. A esse respeito, a negociação e a
execução dos acordos AIDS I e AIDS II ilustram a evolução do Banco Mundial em
sua própria concepção da resposta à epidemia, com a passagem de uma abordagem essencialmente preventiva a uma abordagem que associa prevenção e tratamento universal, assim como ela era promovida pelo Programa Nacional brasileiro.
Sob esse ponto de vista, as capacidades de preparação e de negociação das admi-
Capítulo 13. A cooperação entre o programa de Aids brasileiro e o Banco Mundial
251
nistrações brasileiras implicadas, a clara escolha de uma estratégia de controle da
epidemia, e enfim o apoio político nacional dado ao então Programa Nacional de
DST/Aids pelas autoridades públicas brasileiras foram fatores essenciais do sucesso
dessa cooperação.
Os benefícios da cooperação se manifestaram tanto no nível político quanto
financeiro, social e organizacional, tanto em escala local quanto em escala nacional. Essa cooperação pode se tornar decisiva ou particularmente importante em
diferentes momentos-chave da vida de um Programa e de uma política pública:
durante as fases iniciais de mobilização que permite inscrever o problema na agenda política e institucional, e quando, ao contrário, a normalização e rotinização do
problema se desenvolve, em geral de maneira concomitante com a desmobilização de vários dos principais atores.
Enfim, uma dimensão importante da cooperação entre o Banco Mundial e o
então Programa Nacional de DST/Aids foi sua duração. Os acordos Aids garantiram
um financiamento plurianual estável das ações de luta contra a Aids, favorecendo o
envolvimento e o investimento dos gestores locais e nacionais, contribuindo para
reforçar a dimensão pública da luta contra o HIV/Aids.
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254
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
CAPÍTULO 14
Determinantes sociopolíticos do acesso
a ARVs na África: uma abordagem
comparada da ação pública contra a Aids
Fred Eboko
Resumo: Esse capítulo visa descrever os processos políticos que buscaram responder ao advento da pandemia de Aids na África. Ele evidencia algumas respostas
diferenciais dos Estados africanos frente às dinâmicas epidemiológicas do início
da pandemia até as políticas de acesso às multiterapias antirretrovirais (ARVs). Os
programas nacionais de luta contra a Aids (PNLS, sigla em francês) sob os auspícios
e as diretrizes do Global Programme on Aids (GPA, sigla em inglês) da Organização
Mundial da Saúde (OMS), constituem a base das políticas públicas de luta contra a
Aids na África antes da descoberta dos ARVs. O acesso a esses tratamentos veio a
modificar as atitudes políticas, as mobilizações internacionais, bem como o lugar
das associações e organizações não governamentais (ONGs). A tipologia de respostas dos Estados africanos pode ser ilustrada por três “modelos”: a “participação ativa”, “o estado militante” e a “adesão passiva”. A análise comparada das interações de
atores nacionais e internacionais exige recorrer, para cada modelo, a um pano de
fundo histórico a fim de apreender o peso da conjuntura sóciossanitária e política,
bem como o efeito de dinâmicas anteriores ao acesso aos ARV.
Palavras-chave: Aids, tratamento ARV, África, Política pública, Abordagem comparativa.
I. Introdução
Os últimos 25 anos representam um grande marco para o surgimento de respostas
internacionais às grandes pandemias. Por exemplo, no final do ano de 2009, a soma
mundial dos financiamentos dirigidos às três grandes patologias (Aids, tuberculose
e malária) alcançou a marca de US$15,5 bilhões. Metade dessa soma provém de
adjuda bilateral e multilateral. Nesse contexto, a resposta à Aids permanece uma
alavanca extraordinária, uma figura de proa que abriu caminho para um melhor
gerenciamento das outras pandemias. Entre o aparecimento dos primeiros casos
de Aids no começo dos anos 1980 e o fim dos anos 1990, a pandemia de Aids foi
sem dúvida, dentro de um período tão curto, uma das mais mortíferas na história
das doenças e a África subsaariana aparece como a região do mundo que mais
sofreu com essa pandemia. Essa região do mundo abriga sozinha mais de 60% dos
casos de contaminação: 22,4 milhões de um total mundial de 33,4 milhões [1].
Durante as duas primeiras décadas de luta contra a Aids (anos 1980 e 1990), as
regiões mais pobres do mundo, incluindo a África, constituíam também o “ponto
cego” da resposta internacional em termos de tratamento. Com a descoberta em
1996 das multiterapias, o abismo entre os países do Norte e os do Sul cresceu ainda
mais. Um slogan de organizações não governamentais (ONGs) resume bem essa
situação: “os medicamentos estão no Norte e os doentes no Sul”. Na virada dos anos
2000, uma verdadeira revolução terapêutica foi iniciada graças a uma sucessão de
iniciativas internacionais.
Frente à situação trágica dos países do Sul, sem recursos suficientes para ter
acesso aos tratamentos, as ONGs atuaram de maneira decisiva para que as organizações internacionais e os Estados do Norte adotassem medidas para atenuar
essas desigualdades radicais. Diversas iniciativas se sucederam em nível internacional. Em 2003, menos de 2% dos pacientes africanos à espera de tratamento tinha
acesso aos medicamentos. No fim de 2008, essa porcentagem alcançou 44%, ou
seja, um milhão de pessoas [1]. Em alguns países, como Botsuana, cerca de 90%
dos doentes elegíveis para o tratamento o receberam.
Esse capítulo propõe uma apresentação da evolução diferenciada da luta contra a Aids na África no tocante à questão dos tratamentos.
Quadro 1 – Taxas de Soroprevalência para o HIV/Aids na
Faixa de 15-49 Anos em alguns Países Africanos
Porcentagem
Menos de 1%
1% a 5%
6% a 10%
11 % a 15%
Mais de 15%
País
Senegal
(0,7%)
Guiné-Bissau
(2,5%)
Camarões
(5,5%)
Malawi
(11%)
África do Sul
(17,8%)
Mauritânia
(0,7%)
Costa do Marfim
(3,4%)
Etiópia
(2,4%)
Moçambique
(11,5%)
Botsuana
(24,8%)
Níger
(0,8%)
CongoBrazzaville
(3,4%)
Quênia
(6,3%)
Namíbia
(13,1%)
Suazilândia
(26%)
Uganda
(6,5%)
Zimbábue
(14,3%)
República
Centro-Africana
(4,7%)
Fonte: ONUSIDA, Le point sur l’épidémie de sida, Genebra, dezembro de 2010.
A evolução epidemiológica da Aids na África subsaariana é caracterizada por
uma acentuação da prevalência do norte ao sul do continente (Quadro 1). Entretanto, as respostas políticas dos Estados africanos não são estruturadas segundo
uma relação de causa-efeito entre a amplitude da epidemia e a construção da ação
256
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
pública. Uma série de pesquisas permitiu evidenciar “modelos” provisórios e evolutivos das respostas políticas. Eles são ligados à situação respectiva de cada país
frente às características da epidemia em diversos setores. Podemos destacar diversas variáveis: a situação do sistema de saúde, os indicadores macroeconômicos do
país, a estabilidade/instabilidade política e a liderança política, bem como as mobilizações sociais. A combinação qualitativa dessas diferentes variáveis e a análise
da evolução histórica de cada país, antes e depois do início da epidemia, oferecem
os elementos para essa análise. Trata-se de caracterizar a situação de cada país em
relação a essas quatro variáveis no momento em que a existência da pandemia foi
reconhecida em seu território e, em seguida, identificar como foi constrúida a resposta política, administrativa, social e sanitária frente às modalidades de expansão
da doença.
Dentro dessa lógica, os modelos a seguir constituem os principais tipos de resposta à epidemia de HIV na África subsaariana. Esses modelos não são estanques
nem definitivos: eles estão em evolução permanente. Eles representam uma ferramenta de análise sociopolítica com a qual é possível observar a evolução dos
países que podem passar, ao longo do tempo, de um modelo a outro ou ficar na
interface entre dois modelos. Os três modelos aqui considerados antes de serem
modificados pelo acesso aos ARVs, são: a “participação ativa”, a “adesão passiva” e o
“Estado militante”, esse mais recente, ilustrado pelo caso emblemático de Botsuana
[2-3]. Esses “modelos” concebidos levam em consideração diversos fatores: a liderança política, a mobilização associativa, a conexão entre, de um lado o PNLS e de
outro, essa dinâmica associativa representando as questões sociais geradas pela
epidemia (luta contra o estigma, representação das pessoas vivendo com o HIV/
Aids, defesa dos grupos vulneráveis etc.). Essa abordagem se baseia nas “culturas
políticas” e o modo como elas se articularam na luta contra a Aids [5-6].
Depois desses determinantes sociopolíticos apresentados seguindo a síntese
de uma abordagem comparativa, amplamente documentada em outras publicações [2-3], analisaremos o exemplo particular de Camarões. Além da diversidade
das situações atuais em matéria de acesso a ARVs, o caso de Camarões resume e
explica em detalhes os progressos, as possibilidades e os limites da descentralização do acesso a ARVs em países de recursos limitados, na dinâmica dos Objetivos
do Milênio (ODM) editados em 2006 em âmbito internacional.
Capítulo 14. Determinantes sociopolíticos do acesso a ARVs na África
257
II. Dos Programas Nacionais de Luta
Contra a Aids (PNLS) ao acesso a ARVs
na África: gênese e evolução de uma
tipologia de Políticas Públicas AntiAids
II.1. Emergência dos PNLS e cooperação bilateral
contra a Aids na África: uma filiação internacional
Dois períodos (de 1986 a 1996 e de 1996 até hoje) foram caracterizados por ofertas
de cooperação internacional a que os Estados africanos responderam de maneira
diferenciada.
Após a descoberta do primeiro caso de Aids nos Estados Unidos, em 1981 e o
isolamento formal do vírus HIV em 1983, a epidemia de Aids se agravou no continente africano desde meados dos anos 1980. Dois obstáculos de natureza distinta
atrasariam a resposta institucional. A primeira dificuldade esteve ligada à carência
de ferramentas de diagnóstico disponibilizadas somente no final de 1985 para a
maioria dos países. O segundo obstáculo é de ordem ideológica. Alguns chefes de
Estado e de governo demoraram a reconhecer oficialmente a existência da doença
em seu território, sobretudo em razão de certos “a prioris” racistas, ou percebidos
como tais, que eram associados à doença e do caráter delicado do principal modo
de transmissão na África, o sexo.
Com a disponibilização de testes de detecção (teste Elisa: Enzyme Linked Sorbent Assay 210) em uma série de países, foram criados comitês, grupos e redes que
procuram respostas terapêuticas e medidas de prevenção ao HIV. Apesar dos recursos irrisórios, médicos locais se integraram a redes de intercâmbio com seus
colegas europeus e americanos.
Na mesma época, em 1986, sob a direção de Jonathan Man, o Global Programme on Aids (GPA, sigla em inglês) nasceu em Genebra, no seio da Organização
Mundial da Saúde (OMS). O objetivo desse programa foi produzir uma resposta
internacional para o risco sanitário representado pela Aids nos países do Sul, especialmente na África subsaariana. O GPA propõe aos governos a criação de Programas nacionais de luta contra a Aids (PNLS) com a missão de implantar mecanismos
de coleta e vigilância epidemiológica, de elaborar programas de prevenção junto
aos grupos alvos e de garantir, na medida do possível, a segurança nas transfusões
sanguíneas [4].
210 Técnica imunoenzimática visando a detecção dos anticorpos anti-HIV.
258
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Os PNLS foram constituídos conforme as modalidades propostas pela OMS. Um
órgão executivo, o Comitê nacional de luta contra a Aids (CNLS, sigla em francês),
era encarregado de coordenar as ações no território nacional, em colaboração com
um órgão consultivo. Um plano de avaliação rápida da situação epidemiológica
em curto prazo devia preceder um primeiro e um segundo plano em médio prazo.
As diretrizes de Genebra foram acompanhadas de recursos financeiros que colocavam os serviços ligados à Aids sob completa tutela material. Os governos nacionais
tinham a obrigação de fornecer o pessoal e os locais, mesmo se estivessem submetidos a planos de ajustes estruturais. Ainda que a maioria dos países africanos
tenha seguido as diretrizes do GPA da OMS, a implementação de políticas públicas
durante a primeira década de luta institucional contra a Aids (1986-1996) foi marcada por uma relativa diversidade. Nessa perspectiva, três modelos constituem a
proposta de tipologia dessas mobilizações políticas contra a Aids nos países africanos.
II.2. Uma tipologia das mobilizações políticas
“ativas” contra a Aids na África
II.2.1. A “participação ativa”: Uganda e Senegal
A “participação ativa” é o modelo que caracteriza os países que conceberam políticas públicas contra a Aids que vão além da incorporação formal das diretrizes
internacionais. Antes do acesso aos ARV, esses países implantaram programas de
prevenção originais e adaptados aos conhecimentos propiciados pela vigilância
epidemiológica. Os dois países considerados aqui como exemplos apresentam as
características dessa dinâmica. As trajetórias desses países se inscrevem em uma
mobilização de dinâmicas sociais locais em benefício da luta contra a Aids.
Esses dois países apresentam situações epidemiológicas diferentes com uma
taxa de soroprevalência de menos de 1% no Senegal e mais de 6% em Uganda para
a faixa etária de 15 a 49 anos. No entanto, a vontade política das respostas dos dois
países e o controle da evolução da epidemia os reúne no grupo dos países onde a
luta contra a Aids conhece alguns êxitos, especialmente em termos de prevenção,
antes do acesso a ARVs. Eles têm a particularidade de ter iniciado políticas públicas
compatíveis com as recomendações internacionais e, ao mesmo tempo, específicas para as dinâmicas epidemiológicas e políticas do país.
No Senegal, desde muito cedo, foram, por um lado, priorizadas as campanhas
de acompanhamento sanitário e social às profissionais do sexo; por outro lado, as
autoridades sanitárias dirigiram a ação de prevenção para a regulação da sexualidade, apostando no pano de fundo religioso e cultural. Isso apresentou a vantagem da coerência social e sanitária mas também a inconveniente desconsideração
Capítulo 14. Determinantes sociopolíticos do acesso a ARVs na África
259
de sexualidades que não se enquadravam nas representações estabelecidas, em
particular as práticas homossexuais masculinas.
Em 1986, quando Yoweri Museveni tomou o poder em Uganda, o país se encontrava arrasado por 20 anos de “etnocracia militar”, sendo uma década de violências
patológicas exercidas por Idi Amin. Em meados dos anos 1980, os números relativos
à Aids, já eram dos mais alarmantes para Uganda. A população “sexualmente ativa”
(entre 15 e 49 anos) da capital, Kampala, apresenta uma soroprevalência de cerca
de 30%. Mas, na segunda metade dos anos 1990, Uganda conheceu uma queda da
soroprevalência. Por exemplo, a taxa de soroprevalência das mulheres efetuando
o prenatal e com idade inferior a 20 anos era de 28%, em 1991 e de 6%, em 1998.
Uganda é o primeiro país africano cuja queda das taxas de soroprevalência de HIV/
Aids é confirmada e reconhecida pelas organizações internacionais, a mídia e observadores (atores institucionais e pesquisadores) [7]. Esse “êxito” deve ser creditado à
conjunção entre o engajamento político e a mobilização dita “comunitária”.
II.2.1.a. Uma mobilização social importante
A associação que melhor representa essa implicação associativa é, sem dúvida, a
Taso (“The Aids Support Organization”). Criada em 1987 pela viúva de um doente
da Aids, Noreen Koleba, a Taso e sua presidente se posicionaram como líderes da
mobilização dita “comunitária” em Uganda. Em razão da forte confrontação (direta
ou indireta) com a doença em Kampala nos anos 1980 (30% das grávidas fazendo
o prenatal eram soropositivas), a mobilização conduzida por Noreen Koleba teve
logo a adesão de famílias afetadas pela epidemia. A Taso, cuja principal missão era
ajudar as pessoas vivendo com o HIV/Aids, se beneficiou da ajuda de ONGs britânicas e americanas e do apoio político do Estado ugandês. Em 1997, dez anos após
sua criação, a Taso já havia dedicado um milhão de dólares americanos ao tratamento de doenças oportunistas para os membros da associação antes mesmo do
acesso a ARVs. No final da década de 1990, a Taso contava com quase 2.000 voluntários em todo o país e 150 trabalhadores permanentes em benefício de mais de
16.000 pessoas atendidas em domicílio e nos centros criados pela associação [7]. A
Taso incentivou a dinâmica associativa em Uganda e se colocou como interlocutor
do Estado e de parceiros internacionais de Uganda na luta contra a Aids antes e
durante a virada representada pelo acesso a ARVs.
Ainda que esse país tenha sofrido pesadamente com a epidemia no decorrer
dos anos 1980 e 1990, ele soube conseguir uma posição de destaque por meio de
uma política de prevenção voluntarista e de uma coordenação das mais notáveis
entre o Estado e as ONGs (locais e internacionais). A esses fatores de sucesso foi
acrescentada a vontade, desde meados dos anos 1980, de engajar todos os setores
ministeriais na luta contra a Aids. Muito antes das diretrizes da Unaids, Uganda foi
o precursor das “políticas multissetoriais” de luta contra a Aids.
260
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
No caso de Uganda e do Senegal, a implicação multissetorial e o trabalho com
ONGs, incluindo as associações ligadas ao setor religioso, favoreceram a dinâmica
da luta contra a Aids. Da mesma maneira, a dinâmica política foi mais forte, mais
precoce e mais importante quantitativamente em Uganda do que no Senegal [9].
II.2.1.b. Uma questão de liderança
Os dois países são ligados por um histórico de liderança política sob a batuta, respectivamente, do ex-presidente senegalês Abdou Diouf e do presidente ugandês
Yoweri Museveni [7-8-9]. Em ambos os casos, “O Estado desempenhou um papel decisivo, cedendo às associações a margem de ação necessária, mas também liderando
a mobilização contra a Aids” [9].
As autoridades políticas nacionais e locais dos dois países incentivaram muito o
engajamento contra a epidemia e implantaram estratégias de prevenção baseadas
nos contextos socioculturais nacionais. No caso de Uganda, os diversos escalões
administrativos foram mobilizados para multiplicar as atividades de prevenção e
de atendimento [7].
Em 1998, o Senegal foi o primeiro país africano a lançar, por conta própria, uma
iniciativa pública de acesso aos ARVs: a Iniciativa Senegalesa de Acesso aos ARV
(Isaarv) [11]. Mais uma vez, essa iniciativa é realizada por meio de acordos com
um oligopólio das empresas farmacêuticas detentoras das patentes, mas dessa vez
sem a intervenção da Unaids. Ainda que o caso do Senegal seja especial em razão
da taxa de soroprevalência relativamente baixa em comparação com os seus homólogos africanos, a ação deste país permitiu evidenciar as possibilidades políticas
de negociação direta para os países africanos. No Senegal no final de 2009, 75%
dos pacientes elegíveis para receber ARV estavam sob tratamento.
Uganda se envolveu em protocolos de acesso a politerapias firmados com a
Unaids desde 1997. No final de 2009, a percentagem de pacientes elegíveis para o
tratamento e tomando ARVs era de 53%, dentro de uma dinâmica reunindo os antecedentes locais da mobilização e a contribuição da comunidade internacional [7].
Os “Aids Awards” recebidos pelo casal presidencial ugandês (Yoweri e Janet
Museveni) ilustram o reconhecimento da liderança política desses personagens
centrais da luta contra a Aids. Entre 1998 e 2004, o chefe de Estado ugandês e sua
esposa receberam respectivamente oito recompensas. O primeiro prêmio recebido por Yoweri Museveni lhe foi atribuído pela Society for Woman and Aids in Africa,
juntamente com o presidente senegalês Abdou Diouf, em dezembro 1998, consagrando, assim, esses dois líderes [7]. A liderança senegalesa se beneficiou também
do sucesso internacional de cientistas senegaleses, especialmente da equipe do
prof. Souleymane M´Boup, codescobridor do HIV-2, em 1984 [10].
Assim, as recompensas e elogios relativos à luta contra a Aids em Uganda se referem essencialmente à constância dos esforços políticos e comunitários no âmbi-
Capítulo 14. Determinantes sociopolíticos do acesso a ARVs na África
261
to da prevenção, da detecção e da baixa estigmatização contra as pessoas vivendo
com o HIV. O acesso a medicamentos conheceu progressos importantes graças, entre outros, ao Pepfar dos EUA (President Emergency Plan for Aids Relief) desde 2004.
A entrada dos recursos do Fundo Global em 2006 encontrou uma forte presença
do programa americano. De fato, a segunda rodada de financiamento do Fundo
Global foi suspensa em razão da subutilização dos recursos financeiros. Isso manifesta a nítida força das trocas bilaterais entre os Estados Unidos e Uganda, e uma
conexão política mais fraca com as parcerias multilaterais na luta contra a Aids [7].
II.2.2. “O Estado ativista”: o caso do Botsuana, uma
resposta política voluntarista frente ao choque
epidemiológico ocorrido na África austral
Enquanto os anos 1980 e a primeira metade dos anos 1990 conheceram taxas de
soroprevalência muito elevadas na África oriental (Uganda, Ruanda, Burundi, Quênia etc.), os picos da epidemia ao final dos anos 1990 estavam localizados na África
austral (África do Sul, Botsuana, Suazilândia, Zimbábue, Namíbia, Moçambique).
Essa parte da África concentraria, a partir de então, as taxas mais elevadas de HIV/
Aids. De todos os adultos infectados no mundo, um em cada cinco vive na África
austral.
Quando a Aids ultrapassou a marca simbólica de 30%211 de soroprevalência em
Botsuana, patamar inédito para qualquer país, esse Estado é, por outro lado, apresentado como “modelo” de sucesso econômico [12]. Em 1966, quando da proclamação de sua independência, Botsuana era um dos países mais pobres no mundo.
Em 40 anos, ele se tornou um dos países mais “ricos” da África subsaariana com um
PIB por habitante avaliado em US$ 3.500.
Na mesma época, a comunidade internacional elogiava a estabilidade do regime político do país, baseado numa democracia bipartidária desde 1966 [13]; ou
seja, bem antes da liberalização maciça da vida política no continente africano, que
só aconteceria a partir do ano 1990.
O primeiro caso de Aids em Botsuana foi diagnosticado em 1985, por ocasião
da disponibilização dos testes de detecção. O Ministério da Saúde começou a
implantar os planos recomendados pelo GPA da OMS desde 1987, priorizando a
qualidade da vigilância epidemiológica graças a um sistema de saúde eficiente.
No entanto, as ações de prevenção não renderam os frutos esperados e a soropre-
211 Os métodos de cálculo das taxas de soroprevalência evoluíram e são mais precisos. Com os antigos
métodos de cálculo baseados numa extrapolação efetuada a partir de locais sentinelas (especialmente
para as grávidas em consulta prénatal), essa taxa foi estimada em mais de 37% na faixa dos adultos
jovens para Botsuana em 2003. Posteriormente os cálculos foram refeitos na maioria dos países, a partir
de pesquisas realizadas com famílias representativas da população geral, tendo sido as taxas encontradas mais baixas em todos os casos. Hoje em dia, a estimativa da taxa de soroprevalência em Botsuana é
de mais ou menos 25%. Para mais detalhes sobre esses cálculos, ver Joseph Larmarange [14].
262
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
valência conheceu uma progressão exponencial. O fator mais comumente citado
para explicar tal situação é a mobilidade dos trabalhadores das minas de diamante.
De maneira paradoxal, a qualidade da infraestrutura rodoviária e a facilidade de
deslocamento desses trabalhadores entre o domicílio familiar e as minas de diamante explicam em parte a exposição direta à doença para esses operários que
vivem longe da família durante a semana inteira. O fraco uso do preservativo e os
contatos sexuais com profissionais do sexo nas regiões das minas de diamantes explicariam também a dinâmica da epidemia em Botsuana, sobre a qual os discursos
moralistas oficiais produziram pouco efeito [2].
Até meados da década de 1990, a Aids não suscitou engajamento político (leadership) especial. A situação se modifica em 12 de outubro de 1992 com a eleição
de Festus Mogae, ex-deputado do partido no poder desde 1992 e ex-funcionário
do Fundo Monetário Internacional. Seu mandato coincidiu com a midiatização nacional e internacional da gravidade da epidemia de Aids em Botsuana. Ele se tornou a primeira personalidade do país a definir a Aids como “emergência nacional”
e, ao mesmo tempo, tomou as rédeas da luta contra a Aids ao assumir a presidência
do National Aids Council (NAC) [3-15].
O programa contra a Aids foi estruturado sobre a plataforma “Achap”: African
Comprehensive HIV/Aids Partnership. Criada no ano 2000, “Achap” é fruto de uma
colaboração com a Fundação Bill e Melinda Gates e o laboratório farmacêutico
Merck. Essa parceria foi precedida, acompanhada e seguida por uma série de outros acordos que criaram uma coalizão de atores internacionais no campo da Aids
em Gaborone, capital de Botsuana: o Botusa (governo de Botsuana e Center for
Diseases Control – CDC, de Atlanta, EUA); o “ Botsuana Harvard Institute” (governo
do país e Harvard Institute, de Boston, EUA); o “Secure the Future” (governo do país
e laboratório Bristol-Myers Squibb) [3-15].
O programa de acesso aos ARV, batizado de “Masa” (“a aurora”, “o recomeço”, na
língua setswana), foi lançado em janeiro de 2002. Desde o início, as autoridades de
Botsuana determinaram e garantiram a gratuidade desse programa para todos os
pacientes elegíveis, sob a condição de serem de nacionalidade botswanesa [15]. A
mobilização política alcançou um de seus objetivos prioritários: favorecer o acesso
aos tratamentos para o HIV/Aids. Contudo, entre 2002 e 2005, o número de pacientes em tratamento com ARVs e a aceitação dos testes recomendados pelos responsáveis de saúde pública pareciam não corresponder às ambições oficiais do país.
Nesse contexto, o presidente Festus Mogae tomou uma medida simbólica e
midiática extraordinária. Em meados de novembro de 2005, os telespectadores da
rede de televisão Botsuana Television (BTV) presenciaram um momento inédito
revelando, de maneira espetacular, o lugar do país na luta contra a Aids e a relação entre o político e os cidadãos: o presidente Festus Mogae se submeteu ao
vivo a um teste de detecção do HIV/Aids. Esse ato proclamava ao mesmo tempo a
vontade dos altos escalões do Estado de provocar um choque benéfico para uma
Capítulo 14. Determinantes sociopolíticos do acesso a ARVs na África
263
campanha maciça de detecção e a impotência desse mesmo Estado em conseguir
a aceitação da oferta inédita feita ao público: o atendimento integral (incluindo
triterapias) e gratuito para os pacientes afetados pelo HIV/Aids [16].
Essa ação pertence ao “Estado estrategista”, conceito analisado no caso dos
Estados ocidentais e que pode ser aplicado a Botsuana. Ele ilustra o “Estado estrategista [que] se apresenta como um discurso pertencendo ao mesmo tempo à
ordem analítica e à ordem normativa (...). A realidade do Estado estrategista e sua
representação como estrategista se apoiam uma na outra” [17]. Em termos de liderança, Festus Mogae é um vetor desse “Estado ativista”, “estrategista”, que coloca o
poder em cena a partir de objetivos definidos, a fim de estabelecer uma dinâmica,
no caso, o processo que levasse ao atendimento das pessoas infectadas pelo HIV/
Aids: sensibilização, detecção, atendimento terapêutico e psicossocial.
Três anos após sua façanha “espetacular em rede de televisão”, Festus Mogae se
apresentou em agosto de 2008 na abertura da Conferência Internacional sobre a
Aids na cidade do México. Ali anunciou, de maneira sóbria, que mais de 90% das
grávidas infectadas em Botsuana seguiam um tratamento de Prevenção da Transmissão de Mãe para Filho (PTME/PMCT, siglas em francês e inglês). Ele informou
também que, em seu país, mais de 80% dos pacientes elegíveis ao tratamento usavam ARV, o que representa um recorde para a África subsaariana. No entanto, o
limite desse modelo reside na fraqueza das mobilizações coletivas associativas em
Botsuana, o que o diferencia de Uganda e explica os baixos resultados de Botsuana
em termos de prevenção.
III. Da adesão passiva à “revolução terapêutica”212
III.1. “A adesão passiva” às diretrizes internacionais (1986-2000)
A adesão passiva foi o modo como a maioria dos Estados africanos (incluindo por
exemplo a Costa do Marfim, Camarões e Burkina Faso) adotou formalmente as recomendações internacionais do GPA da OMS entre 1986 e o final dos anos 1990. Essa
postura se orientava por dois critérios: a ausência de liderança política e a subordinação das associações de luta contra a Aids às autoridades de saúde ou às agências
de cooperação internacional presentes nesses países. A ausência de conexão entre os
atores da sociedade civil e a política pública de luta contra a Aids foi um dos primeiros
efeitos amplamente documentados nas pesquisas de ciências sociais sobre o tema.
212 Esse trecho repete, em parte, uma publicação recente sobre o mesmo tema: Fred Eboko, “A
l’articulation du national et de l’international: bref historique de l’accès aux antirétroviraux au Cameroun”. In: Eboko F., Abé C., Laurent C. (Eds.), 2010. Accès décentralisé au traitement du VIH/sida. Evaluation
de l’expérience camerounaise, Paris, ANRS: 1-11 [26].
264
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
III.1.1. O domínio das “oligarquias biomédicas” sobre as
associações: da ambivalência às redes de ação terapêutica
Na maioria dos países acima mencionados, os profissionais da biomedicina, em particular os responsáveis sanitários pela luta contra a Aids, desempenharam o papel
de ponta de lança para os laboratórios farmacêuticos tradicionais. Nesse contexto,
eles tiraram proveito da visibilidade adquirida nos anos 1980-1990 no campo da
luta internacional contra a Aids para integrar redes transnacionais que as empresas
farmacêuticas faziam parte. Por sua posição estratégica entre os dois níveis, o local
e o internacional, eles se colocaram como “oligarquias biomédicas” [19].
Antes do advento dos ARVs, a maioria dos países africanos aqui considerados
praticou uma separação de poderes, delegando a responsabilidade da luta contra
a Aids para os médicos, por meio da direção dos PNLS. Nesse contexto, o espaço
político da Aids era ocupado pelos médicos encarregados de implantar os planos
recomendados pelo GPA da OMS, ou seja, os Planos de Médio Prazo (PMT1 e PMT2).
Em diversos dos casos estudados, os chefes de Estado e chefes de governo se envolveram relativamente pouco do ponto de vista midiático, mesmo nos casos em
que o PNLS dependia dos serviços do presidente da República ou do primeiroministro. O apelo do presidente senegalês da época, Abdou Diouf, convocando
solenemente seus homólogos a tomar as rédeas da luta contra a Aids em seus
respectivos países, por ocasião de uma reunião de cúpula dos chefes de Estado
africanos em Dakar, em 1992, surtiu poucos efeitos. Essa relativa apatia política e
coletiva estabelece a nítida diferença entre a “adesão passiva”, a “participação ativa”
e o “Estado ativista”.
Na maioria dos países considerados, a questão da Aids foi mobilizada sobretudo como modalidade de trocas com parceiros e organismos internacionais. Nesses
casos, a luta contra a Aids era, ao mesmo tempo, considerada “prioridade nacional”
pelas agências de cooperação e pelos organismos da ONU, por um lado, mas por
outro, era acompanhada, nas relações internas do país, por uma inércia que marcou muitos países.
O caso de Burkina Faso, por exemplo, evidencia “um Estado contra a saúde pública” e, quando se trata do destino das crianças, uma “epidemia do silêncio” [20].
No caso de Camarões, podemos estigmatizar a situação amplamente difundida
com uma fórmula que ilustra essa tendência comum aos países da África subsaariana, “a síndrome da imunodeficiência política adquirida” [21]. Em ambos os casos,
trata-se de realçar a dupla linguagem das autoridades políticas africanas entre a
adesão ao discurso sobre o perigo da Aids na África e a carência da “participação
ativa”. Quanto a isso, os grupos sociais mobilizados por mudanças sociais na África,
em particular aqueles mobilizados por mudanças políticas e pela democracia, também permaneceram notavelmente ausentes do palco da luta contra a Aids, o que
deixou as autoridades africanas muito à vontade nesse jogo duplo.
Capítulo 14. Determinantes sociopolíticos do acesso a ARVs na África
265
III.1.2. O modelo da “adesão passiva” traz à luz uma
configuração particular do campo das associações de luta
contra a Aids, da subordinação à emancipação progressiva
As culturas políticas da ação coletiva, ligadas a passados coloniais diferentes, no
caso, “países anglófonos” versus “países francófonos”, explicam sem dúvida, ainda
que em parte, por que os primeiros estavam mais inclinados a desenvolver esse
tipo de ação coletiva. No entanto, o papel dos fatores socioepidemiológicos foi
provavelmente determinante. Os países anglófonos em que essas primeiras mobilizações coletivas surgiram (Uganda, Zâmbia e, um pouco mais tarde, África do Sul)
fazem parte dos países onde as taxas observadas de prevalência do HIV/Aids eram
as mais elevadas desde os anos 1980. As cidades onde surgiram as mobilizações
mais visíveis e mais perenes desde os anos 1980 apresentavam verdadeiras situações de crise epidemiológica: Kampala, em Uganda [8], Kinshasa, no antigo Zaire
de antes da guerra civil. Da mesma maneira, para os países “francófonos”, as associações mais dinâmicas e mais ativas surgiram no país então considerado como o
mais afetado da África ocidental e central, a Costa do Marfim [22].213 No entanto,
essa variável epidemiológica deve estar relacionada com a capacidade histórica
da sociedade civil de se mobilizar em prol de uma causa comum, para além da
intervenção isolada do Estado. Devemos acrescentar a variabilidade das dinâmicas
propriamente políticas a esses determinantes epidemiológicos e sócio-históricos
das mobilizações coletivas. A organização específica do Estado, bem como a situação política e econômica de cada país, dependendo do caso, favoreceram as
mobilizações associativas (em razão da fraqueza do Estado, especialmente nos lugares onde o Estado era muito fraco para organizar a luta contra o HIV/Aids) ou retardaram sua evolução (em razão da preeminência dos poderes públicos) [23,24]. A
capacidade de intervenção dos parceiros internacionais (organizações não governamentais internacionais e agências de cooperação bi e multilaterais etc.) também
desempenhou um papel significativo em diversos países e, de modo geral, esses
parceiros buscaram apoiar-se na ação de ONGs para contornar o que percebiam
muitas vezes como o peso burocrático das administrações.
A situação epidemiológica de Camarões era muito parecida com a da maioria
dos outros países francófonos da África ocidental e central, apresentando, nos anos
1980, taxas de prevalência consideradas pequenas (0,5%, em 1988) mas cuja progressão se acelerou nos anos 1990 e 2000 (5,5%, desde 2004). Nesses países, tanto
nos pouco afetados quanto naqueles em que se estabeleceu uma dinâmica epidêmica importante (como Camarões), as mobilizações das pessoas vivendo com
HIV/Aids (PVHA) enfrentaram muita dificuldade para emergir, exceto na Costa do
Marfim [22]. Um ponto comum ao conjunto desses países francófonos, incluindo
213 Na Costa do Marfim, a taxa de prevalência do HIV era estimada em 10% para a população adulta
em geral, nos anos 1990, com um pico de 20% na zona da capital, Abidjan. Essa taxa foi reavaliada para
baixo desde o ano 2000 (na ordem de 5%).
266
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
a Costa do Marfim, é que a criação de associações não resultou numa mobilização
espontânea e tampouco numa auto-organização das próprias PVVS. Nesses países,
as associações foram criadas, em grande parte, com o incentivo de profissionais
de saúde, de ONGs de luta contra a Aids dirigidas por esses mesmos profissionais
ou a pedido de organizações internacionais como a Unaids ou o Pnud (Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento). A autonomização das associações
ocorreu em primeiro lugar na Costa do Marfim graças à integração delas a redes de
ONGs internacionais e francesas, especialmente [22]. O Camarões apresenta uma
combinação dos modelos anteriores. As associações de PVVS foram inicialmente
criadas pela iniciativa de médicos hospitalares desempenhando um tipo de papel
de “agente duplo”, atuando simultaneamente como médicos e como presidentes
das principais associações de luta contra a Aids [25]; depois, elas evoluíram nitidamente para uma autonomia mais ampla em relação ao mundo médico, apoiada
em conexões internacionais estabelecidas a partir dos anos 2000. Paradoxalmente,
o acesso ao tratamento ARV produziu assim um enfraquecimento da influência das
redes de médicos sobre o campo associativo em consequência da crescente medicalização do tratamento dos pacientes.
De fato, a África entrou no cenário dos ARVs no ano de 1997. Naquele ano ocorreram as primeiras reuniões internacionais de especialistas na prescrição de moléculas ARVs no continente, sucessivamente em Dakar (Senegal), Abidjan (Costa do
Marfim) e Yaoundé (Camarões). Fora desses três países observamos certa diversidade no acesso aos ARVs no continente em função de protocolos diversos, tipos
diferentes de parcerias e múltiplos acordos internacionais (Quadro 2). No exemplo
de Camarões, na África central, é sintomática a transição da “adesão passiva” para
uma postura mais ativa com o acesso aos ARVs.
Quadro 2 – Taxa de soroprevalência de HIV e acesso ao
tratamento ARV em alguns países africanos
País Taxa de soroprevalência de HIV/Aids
(15-49 ans)1
Porcentagem de adultos e crianças em
estágio avançado de infecção pelo HIV e
que recebem tratamento ARV2
Ano
2007
2008
2009
2007
2008
2009
Camarões
5,1%
-
7,6 %
-
39%
46,5%
Senegal
1,0%
-
0,7%
-
64%
75,6%
Burkina Faso
1,6%
2,0%
-
-
48,1%
47,0%
Costa do Marfim
3,9%
-
-
31%
-
-
1UNAIDS,
2008 Report on the global Aids epidemic, Annex 1, http://www.unaids.org/en/KnowledgeCentre/HIVData/
GlobalReport/2008/2008_Global_report.asp
2 Dados UNGASS-AIDS. Disponíveis nos relatórios dos países 2010, cf. www.unaids.org
Capítulo 14. Determinantes sociopolíticos do acesso a ARVs na África
267
III.2. Camarões – da “adesão passiva” à descentralização ativa do
acesso aos ARVs214: a gênese do acesso aos ARVs em Camarões
O histórico do acesso aos ARVs em Camarões ilustra o encontro de várias dinâmicas
sociais, científicas e políticas. Desde a Conferência Mundial sobre a Aids em Vancouver (1996), onde foram apresentados os primeiros resultados evidenciando a eficácia das multiterapias ARVs para reduzir a mortalidade e a morbidade associadas à
infecção pelo HIV, diversas etapas marcaram o atendimento terapêutico e social
dos pacientes camaroneses. Os parágrafos a seguir tentam trazer à luz as principais
etapas desse processo com o objetivo de realçar a originalidade, as perspectivas e
as possibilidades representadas pela política de acesso aos ARVs em Camarões.
III.2.1. Uma mudança de ritmo e de escala
O dia 1º de maio de 2007 representou o desfecho de um processo. Desde essa data,
os medicamentos ARVs contra a Aids são distribuídos gratuitamente aos pacientes tratados em todas as Unidades de Atendimento (UPEC, sigla em francês) e nos
Centros de Tratamento Habilitados (CTA, sigla em francês) para essa patologia em
Camarões. Em toda a extensão do território nacional, as pessoas elegíveis para o tratamento, conforme as recomendações nacionais estabelecidas a partir de recomendações da OMS, podem ter acesso “gratuitamente” às multiterapias contra a Aids.
A mutação do GPA da OMS e a quase ausência de diretoria no CNLS camaronês
em 1997 fortaleceram o sentimento de afastamento de Camarões com relação ao
que estava em jogo no momento após Vancouver. De fato, em 1997, durante o
período de vacância da presidência, o CNLS foi dirigido pela Diretoria de Saúde
Comunitária (chamada mais tarde de Diretoria da Luta contra a Doença). O Unaids,
criado em 1996 em Genebra, enviou seu primeiro representante a Yaoundé apenas
no ano de 2000.
III.2.2. Uma multinacional no debate de saúde pública
Em 1999, foi a maior empresa privada do país que orientou e impôs novas perspectivas ao debate sobre o acesso aos ARVs. A empresa Alucam/Socatral, sediada
em Edéa, havia iniciado em 1997 um programa de prevenção do HIV para seus funcionários e a comunidade do entorno de seus empreendimentos, além de garantir
atendimento médico gratuito para as pessoas afetadas (funcionários e familiares).
Esta empresa requereu ao governo autorização para lançar um programa piloto de
tratamento com ARVs dirigido a essas pessoas. O Ministério da Saúde viu-se diante
de um dilema: o da equidade. Como aceitar que algumas pessoas recebessem o
tratamento numa empresa privada, sem que o resto da população se beneficiasse
214 Esta parte reproduz e sintetiza o artigo de F. Eboko, “A l’articulation du national et de l’international:
bref historique de laccès aux antirétroviraux au Cameroun”, in F. Eboko, C. Abé, C. Laurent [26].
268
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
também de um acesso equivalente? Finalmente, depois de muitos debates, a Alucam conseguiu a autorização e o Ministro da Saúde em pessoa participou do lançamento do projeto “Tricam” (“Triterapias em Camarões”), fruto de uma colaboração
científica e técnica entre a equipe do Centro Médico das Empresas da Sanaga (clínica da Alucam) e a equipe do professor Rozenbaum (Hospital Rothschild, Paris). Na
ocasião, a Alucam deu uma reviravolta completa em sua política de comunicação
sobre a questão do HIV: vista até então como potencialmente estigmatizante para
a imagem até mesmo da empresa, a questão do HIV representava, por meio do
“Tricam”, a oportunidade de a empresa afirmar que pretendia não poupar esforços
para preservar seu “capital humano”. Filial do grupo Pechiney que despachou o n.
2 de sua hierarquia para a cerimônia de lançamento do programa, a Alucam seria
inspiradora, no setor privado, de uma dinâmica propícia à tomada de consciência
por muitas empresas de Camarões.
III.2.3. Mobilização internacional e queda dos preços dos ARVs
O ano de 2000 ofereceu novas oportunidades para o programa camaronês, em
particular para o acesso aos ARVs. Em vez de se orientar exclusivamente para o
programa “Access” implantado por uma parceria negociada entre organizações da
ONU (OMS, UNAIDS etc.) e as multinacionais farmacêuticas em âmbito mundial,
Camarões apareceu como um dos primeiros países africanos que se empenhou em
aproveitar o advento dos genéricos. As análises econômicas retrospectivamente
efetuadas confirmariam sua escolha: as maciças quedas dos preços dos ARVs de
primeira linha, condição necessária para a expansão dos tratamentos para a Aids
na África, não poderiam ter sido obtidas unicamente por meio de negociações internacionais com as firmas detentoras das patentes na ausência de pressão da concorrência introduzida pela entrada dos genéricos nos mercados. Ao mesmo tempo,
no dia 12 de setembro de 2000, o primeiro-ministro da época apresentou um plano
estratégico de emergência ao governo e seus parceiros (Unaids e Banco Mundial
especialmente) para o período de 2000 a 2005. Camarões iniciou, então, de maneira concreta, o processo de descentralização do acesso aos ARVs. O ministro da
Saúde Pública, nomeado em 2000, transformou a presidência do Grupo Técnico
Central (GTC) do Comitê Nacional de Luta contra a Aids (CNLS, sigla em francês)
em Secretaria Permanente. Seguindo a mesma lógica, o ministro criou e designou
Centros de Tratamento Habilitados (CTA, sigla em francês) para o atendimento com
ARVs para PVHA.215
Entre 2000 e 2001, a introdução de genéricos e a disponibilização de ARVs a
preço de custo na farmácia do Hospital Laquintinie de Douala (HLD) e do Hospital
Central de Yaoundé (HCY) provocaram um forte aumento da demanda por parte
dos pacientes (50% por mês no HCY, em 2001). No final do ano de 2001, o número
215 Decretos ministeriais n. 0178/DMSP/CAB e n. 0190/D/MSP/CAB.
Capítulo 14. Determinantes sociopolíticos do acesso a ARVs na África
269
de pacientes no HCY havia quintuplicado [9-10] e mais de 500 pacientes haviam
iniciado tratamento no Hospital HLD.216 Antes das primeiras quedas de preço, algumas centenas de pacientes seguiam oficialmente o tratamento ARV ao custo
aproximado de US$1.000 por mês e por pessoa. Em abril de 2001, a redução dos
preços dos ARV, devida também à iniciativa Access, se tornou uma realidade em
Camarões com custos residuais para os pacientes 5 a 10 vezes inferiores.
III.2.4. Jogos e desafios internacionais acerca
do acesso a ARVs em Camarões
Quatro decisões políticas e econômicas importantes iriam mais tarde favorecer a
expansão das multiterapias para a Aids no país, a partir da década de 2000.
A primeira decisão do dia 4 de abril de 2001, já mencionada, era um protocolo
de acordo com o representante do laboratório Merck, Sharpe & Dhome (MSD) habilitado para representar esse laboratório e quatro outras empresas farmacêuticas.
Este protocolo cujas modalidades permaneceram confidenciais, resultou numa
declaração pública: nessa data, o preço de uma triterapia era reduzido em mais de
90% em relação ao preço anterior. Além da importação dos genéricos por intermédio do laboratório indiano Cipla, Camarões alcançava um equilíbrio entre o acordo
sobre os Direitos de Propriedade Intelectual relativos ao Comércio (Trips/Adpic)
da OMC de que o país é signatário e as prioridades de saúde pública estabelecidas
pelo governo. Nessa ocasião, o custo mensal para o paciente chegava a menos de
FCFA 70.000 (107 euros) para um tratamento de primeira linha. Decisões ministeriais ligadas a parceiros internacionais possibilitariam mais tarde quedas regulares
do custo dos tratamentos para os pacientes.
No âmbito das rodadas do Fundo Global, a subvenção pública aos medicamentos ARVs resultou, finalmente, desde o dia 1º de maio de 2007, na gratuidade do
acesso ao tratamento ARV. Os financiamentos oriundos da iniciativa “Unitaid” se
somaram a esses recursos. A consequencia foi uma aceleração do crescimento do
numero de pessoas sob tratamento antirretroviral (Figura 1).
Na República de Camarões, a estimativa era, no final de 2009, de 75.000 PVHA
elegíveis para tratamento imediato com ARVs (na base do critério da OMS na época, recomendando o tratamento sistemático das pessoas infectadas, apresentando
uma contagem de CD4 inferior ou igual a 200/mm3) e o programa nacional havia
conseguido uma taxa de cobertura de 46% das necessidades estimadas [16], levemente superior à média da África subsaariana. Em junho de 2010, a cobertura
dos pacientes recebendo ARV na República de Camarões foi estimada em 50%.
Camarões propõe um modelo particular que deve ser inscrito dentro de um debate
econômico e político mais amplo no plano internacional [15,16,17].
216 Fonte: Jean-Baptiste Guiard Schmid, Conferência Internacional sobre a Aids e as Doenças Transmissíveis (CISMA, sigla em francês), Ouagadougou, 2001.
270
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Figura 1. Aumento do número de pessoas sob tratamento
antirretroviral na República de Camarões entre 2005 e 2008
55 000
50 005
50 000
45 000
45 605
40 000
37 081
35 000
29 198
30 000
23 838
25 000
20 000
17 156
28 403
20 393
15 000
10 000
11 769
julho
2005
dezembro
2005
março
2006
junho
2006
dezembro
2006
março
2007
junho
2007
dezembro
2007
março
2008
Fonte: Comitê nacional de luta contra a Aids, para o acesso universal aos tratamentos e
cuidados para adultos e crianças, relatório de progresso, no 10, Yaoundé, 2008.
IV. Conclusão: os desafios a serem enfrentados
O exemplo de Camarões ilustra a passagem de um padrão de resposta política para
outro mas permite, ao mesmo tempo, lembrar que o programa de descentralização do acesso aos ARVs foi alimentado pela mobilização das redes de médicos mais
do que pela mobilização social de grande amplitude ou pela liderança política voluntarista, exceto em alguns casos ( Botsuana, Uganda, Senegal).
A segunda ótica evidencia a adaptação de uma resposta política já elaborada
para o desafio do acesso aos ARV. É o caso da “participação ativa” (Senegal, Uganda
etc.) dos países que conduziram uma ação pública já ampliada antes da expansão
do tratamento. O caso de Botsuana representa uma postura inédita, situada entre
uma liderança proativa, ofensiva e, em contraste, uma mobilização associativa bastante fraca. No entanto, os resultados em matéria de cobertura do acesso aos ARVs
não são um simples reflexo do tempo de mobilização política. O acesso aos ARVs
representa de fato a continuidade da luta contra a Aids mas também, e acima de
tudo, um marco significativo de questões específicas. A situação dos sistemas de
saúde se tornou um elemento mais crucial que durante o período do “tudo pela
prevenção” (1986-1996). Essa variável deslocou o cursor da política pública para
atores situados dentro do sistema de saúde e fora dele. Nesse último caso, trata-se
de “mediadores adicionais” [16] que podem ser empresas privadas locais, laborató-
Capítulo 14. Determinantes sociopolíticos do acesso a ARVs na África
271
rios farmacêuticos, associações nacionais e/ou internacionais ou, ainda, personalidades políticas de alto escalão exercendo uma liderança voluntarista [18], como
é o caso de Festus Mogae em Botsuana [15]. Em outro registro, Camarões e seu
programa de descentralização do acesso ao tratamento do HIV/Aids manifestam
um impulso desconhecido durante as duas primeiras décadas da luta contra a Aids
[26]. Com essa nova configuração da ação pública contra a Aids, as variáveis ligadas
ao mapeamento sanitário do território nacional se tornaram especialmente importantes. Os países onde as estruturas políticas estavam mais falidas eram os mesmos
onde o atendimento dos pacientes era menos coerente, dividido entre os diferentes atores (associativos, privados, públicos, nacionais, internacionais etc.).
Os desafios internacionais e o perigo anunciado da diminuição eventual dos
financiamentos internacionais devem suscitar a maior vigilância. Frear a evolução
da cobertura do acesso aos ARV na região mais afetada pela epidemia não seria
somente um drama africano; seria uma catástrofe mundial. Raros são os desafios
que ligam tanto a África ao resto do mundo; essa mobilização é menos questão de
solidariedade do que de bom senso e pragmatismo.
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274
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
CAPÍTULO 15
Modalidades e modelos de aquisição de
ARVs na África Subsaariana:
implicações na disponibilidade
local de medicamentos
Mamadou Camara
Cristina d’Almeida
Benjamin Coriat
Resumo: Esse capítulo identifica e descreve vários modelos de aquisição de antirretrovirais (ARVs), baseando-se em dados de campo coletados em cinco países
da África Subsaariana. Esses modelos revelam os limites impostos às instituições
encarregadas do abastecimento, levando em consideração principalmente as origens e as fontes de financiamento, as condicionantes a elas associadas, bem como
a natureza e a autonomia das centrais de aquisição.
São analisadas e esclarecidas as ameaças para o futuro desses modelos, especialmente em razão do fortalecimento das imposições de propriedade intelectual,
mais acentuadas nos anos posteriores a 2005.
Palavras-chave: modelos de abastecimento, antirretrovirais genéricos, propriedade intelectual, recursos externos, aquisição de medicamentos.
I. Introdução
A partir da década de 2000, a maioria dos governos africanos tem lançado iniciativas nacionais em matéria de acesso aos ARVs. Esses programas públicos de organização da aquisição e da distribuição de ARVs são estabelecidos em cooperação
com os doadores e agências internacionais. A ascensão desses programas nacionais de luta contra a Aids marca uma renovação das políticas de abastecimento de
medicamentos nos países aqui analisados.
As políticas de abastecimento estabelecidas217 buscariam se organizar, a partir
de então, em torno de dois objetivos: por um lado, a vontade de generalizar a autonomia de gestão das centrais de compra para aumentar sua eficácia e, por outro
lado, quando possível, favorecer a seleção de fornecedores de medicamentos priorizando os genéricos. Essa nova política de abastecimento incluindo os ARVs viria aos
poucos modificar a composição da oferta de medicamentos disponíveis, em relação
estreita com a implementação dos programas nacionais de acesso aos ARVs.
No entanto, mesmo se alguns progressos são observados, muitos problemas
ainda subsistem. Particularmente, a implantação da nova política enfrentou certa
instabilidade das cadeias de abastecimento e distribuição, acarretando consequências notáveis sobre a disponibilidade de ARV. Os problemas encontrados são relacionados à variedade (natureza e quantidade das moléculas presentes no território analisado) e aos preços (variações de preço dos diferentes regimes terapêuticos,
em função de sua composição molecular e do fato de as moléculas serem ou não
patenteadas nos países analisados).
A partir de uma metodologia combinando pesquisas bibliográficas, estudo de
documentos institucionais e dados de campo colhidos junto aos atores, esse capítulo, prolongamento de trabalhos oriundos de pesquisas publicadas pela equipe
do CEPN [3, 4 e 5], propõe uma reflexão sobre cinco países da África Subsaariana:
Mali, Senegal, Burkina Faso, Guiné e Camarões.218
O capítulo é dividido em três seções. A primeira apresenta e descreve os diferentes modelos de abastecimento em ARVs nos países considerados, segundo
seus modos de implantação a partir dos anos 2000. A segunda seção evidencia o
papel crucial dos financiamentos externos no funcionamento dos modelos nacionais de aquisição e mostra como esses padrões são sujeitos à uma dependência
multiforme. Enfim, a terceira seção debate as implicações desses modelos sobre a
disponibilidade de ARVs nesses países.
II. Os modelos de abastecimento
e seu modo de governança
A partir dos anos 2000, a maioria dos governos dessa região lançou iniciativas
nacionais de acesso aos ARVs. Estes eram programas públicos, com o objetivo de
217 O seminário de Dakar constitui um documento de referência[1]. Ver também [2].
218 Após uma fase de pesquisa prévia, esses países foram escolhidos porque, apesar de pertencerem
à mesma zona geográfica, eles apresentam experiências e modelos diferentes em matéria de política
de aquisição de medicamentos e de luta contra a Aids. Um estudo de campo foi efetuado em cada um
desses países, baseado na mesma metodologia e focado em entrevistas semidirigidas com os atores
principais encarregados da concepção ou da implantação da política de aquisição.
276
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
organizar a aquisição e a distribuição de ARVs. Com o fortalecimento desses programas de acesso, o número de pacientes tratados aumentou drasticamente de
algumas centenas para vários milhares.219
Até meados da década de 1990 e, em alguns casos, até seu fim, os sistemas de
abastecimento de medicamentos desses países eram caracterizados por uma multiplicidade de organizações oriundas do setor público, privado ou associativo, que
utilizavam circuitos de aquisição muito variados. Essa situação insatisfatória criava
inúmeras dificuldades e a necessidade de racionalização se tornou premente.
O objetivo dessa racionalização era transformar as centrais de compras em
elemento central do sistema de aquisição e distribuição de medicamentos, com
uma autonomia de gestão efetiva, considerada como garantia de eficiência. Era
imprescindível incentivar a cooperação das novas instituições com os atacadistas
privados, por meio, especialmente, dos comitês paritários, e fornecer os meios para
tanto. Foi também recomendado que as várias centrais harmonizassem suas modalidades de licitação, a fim de possibilitar uma pré-seleção comum dos fornecedores e incentivar a produção nacional e regional, por meio de aquisições junto a
empresas locais de, pelo menos, 15% do total das aquisições.
No entanto, quase uma década após o início dessas políticas, temos que constatar a inexistência, nessa região da África, de um padrão de organização de referência, que atendesse aos objetivos e critérios citados. Graças à cooperação com a
União Europeia e o Japão, podemos observar atualmente, na maioria desses países, uma organização centralizada encarregada do abastecimento de medicamentos, mas, na prática, essas estruturas apresentam grandes diferenças de um país a
outro.
O Quadro 1 mostram as várias características observadas.
219 No Mali, por exemplo, o número de pacientes em tratamento antirretroviral passou de 200 para
quase 8.000 entre 2001 e 2006; em Camarões, de 9.000 para 22.000, entre 2003 e 2006, e para quase
75.900, em 2009; no Burkina Faso, pulou de 300 para quase 11.000, entre 2001 e 2006. Para uma avaliação mais completa do número de pessoas nessa região, ver um estudo da OMS, de novembro de 2009,
que descreve detalhadamente a cobertura oferecida por vários países no que se refere aos ARV. Ver
https://www.who.int/hiv/pub/tuapr_2009_fr.pdf
Capítulo 15. Modalidades e modelos de aquisição de ARVs na África Subsaariana
277
Projeto oriundo da
cooperação entre
a Bélgica, a União
Europeia e Camarões,
agora sociedade de
economia mista
Estabelecimento
público a caráter
Industrial e Comercial
(EPIC)
EPIC
Associação privada
sem fins lucrativos
EPIC
CENAME
República de
Camarões
Farmácia Central
da Guiné : PCG
Senegal
Farmácia
Nacional de
Abastecimento :
PNA
CAMEG- Burkina
Farmácia
Popular do
Mali : PPM
Fonte: Camara et al. (2008).
Estatuto jurídico
Nome da
estrutura de
abastecimento
e país
Não tem autonomia de
gestão.
Autonomia de gestão com
controle assegurado por
um conselho administrativo
incluindo: Estado, parceiros
do desenvolvimento e grupos
de prescritores e usuários.
Autonomia de gestão
Controlado pelo Estado da
Guiné.
Autonomia de gestão desde
1995.
Autonomia de gestão
Modalidades de controle
Existência de um setor privado de atacadistas distribuidores
representando uma pequena parte do total das importações,
mas distribuindo 90% da produção local dos outros
medicamentos
Monopólio das importações de ARV desde 2001
em colaboração com o PNUD que compra os
ARV e os disponibiliza para a distribuição.
Monopólio para a importação dos ARV por meio
de licitações e de contratos consensuais.
Abastece o setor público e associativo. No âmbito de uma
parceria com a União Europeia e o sistema das Nações
Unidas, a PPM se tornará o foco principal do novo sistema de
abastecimento em ARV e medicamentos para as infecções
oportunistas.
Não existe monopólio para a importação dos outros
medicamentos; ela também é assegurada por, mais ou menos,
20 atacadistas.
Existência de um circuito privado de atacadistas importadores
de outros medicamentos.
Não tem o monopólio das aquisições de medicamentos nem
da sua distribuição.
Ponto central do sistema de distribuição dos ARV.
Não existe monopólio de importação dos outros
medicamentos Existência de um circuito informal e de um
circuito privado.
Sistema consensual entre o PNLS e os
fornecedores externos.
A PNA está fora do circuito de abastecimento em ARV.
A Farmácia Central de Fann é o ponto importante da
distribuição de medicamentos
Centralização das aquisições de ARV na farmácia
do hospital de Fann
O abastecimento do setor privado é assegurado por
atacadistas.
Abastece o setor público em medicamentos essenciais
O papel principal para as aquisições de ARV
(para o programa nacional) pertence à UNICEF.
Programa prévio, aquisição de ARV pelo sistema
de contrato consensual e na modalidade de
pagamento pós venda.
Não constitui o ponto central do sistema de distribuição.
Papel marginal para a importação dos ARV
Continuação de um circuito de abastecimento
paralelo para a educação sanitária confessional
Ponto central no sistema de distribuição dos ARV
Monopólio de importação de ARV
Papel no sistema nacional de abastecimento de
medicamentos
Processos de licitações, pré-seleção e seleção a
partir de uma lista reduzida, mas
Modalidades de aquisição dos ARV
Quadro 1: Perfil institucional das estruturas de abastecimento em ARV de Camarões, Guiné, Senegal, Burkina e Mali
Para ressaltar os traços comuns e as diferenças entre as várias estruturas implantadas, podemos observar as observações que se seguem. A autonomia de gestão aparece como um fator comum, já que todas as centrais de compras – exceto
no Mali – a possuem. Fazendo uso dessa autonomia e cumprindo sua missão de
serviço público, as centrais devem cobrir a totalidade dos custos de aquisição e
de gestão com os recursos provenientes da venda dos medicamentos. No entanto, segundo os dados do Quadro 1 apresentando as características essenciais do
perfil institucional das centrais, constatamos que, no Senegal e na Guiné, e também no Mali, ainda que em menor grau, a central de abastecimento possui um
papel apenas marginal no processo de aquisição de ARVs. Essa situação se deve, no
caso do Senegal, à implantação pelo CNLS de um mecanismo específico, utilizando um suporte logístico nacional original (a Farmácia do Hospital de Fann220); em
outros casos, a causa reside no papel de aquisição e estocagem de medicamentos,
desempenhado por um organismo “externo”; é o caso na Guiné, onde esse papel
cabe à Unicef, e no Mali, onde o papel de central de compras pertence ao PNUD).
Nos casos de Burkina e Camarões, as centrais estabelecidas localmente efetuam
as aquisições de ARVs. Elas detêm o monopólio de importação e lançam licitações
internacionais periódicas para selecionar os fornecedores.
No que diz respeito à disponibilidade local de ARVs, cada tipo de configuração
apresenta vantagens e desvantagens. Seria lógico imaginar que uma central com
estatuto de EPIC (Estabelecimento Público Industrial e Comercial) é, em princípio,
mais adequada para a consecução e aplicação dos objetivos estabelecidos pela política farmacêutica nacional do que uma central com estatuto de associação privada, obrigada a cumprir metas de rentabilidade mais severas. Na prática, no entanto, as centrais públicas não possuem recursos humanos e logísticos suficientes e,
sendo consideradas incapazes de administrar de maneira eficaz os programas, são
muitas vezes “dribladas” por outras operadoras.221 Às vezes, como no caso do Mali,
as autoridades preferem (ou são obrigadas a) apelar para um mecanismo específico ou organismo externo para administrar a cadeia de abastecimento. Em outros
casos, como, por exemplo, Camarões ou Burkina Faso, onde as centrais possuem
o estatuto de sociedade de economia mista ou de associação privada, não existe
relação de subordinação entre as centrais e o CNLS (ou o Ministério da Saúde). A
relação é “simples”, do tipo mandatário/mandante. O CNLS desempenha o papel
de mandatário e a central, o de mandante encarregado por mandato oficial”... de
comprar ARVs de qualidade a preços acessíveis para a maioria da população...”.
220 Este hospital adquire e armazena medicamentos para o CNLS.
221 Algumas vezes, como no caso do Mali, as centrais dotadas de um estatuto público (Epic) solicitaram
junto à autoridade de tutela recursos adicionais para profissionais capacitados, equipamentos e recursos financeiros, a fim de integrar a gestão dos ARVs a seu dispositivo. No entanto, os financiamentos
provêm de parceiros externos e são alocados segundo linhas orçamentárias fora do controle do CNLS
ou do Ministério da Saúde, o que explica o fato de esses não terem podido ou querido disponibilizar os
meios solicitados por essas centrais.
Capítulo 15. Modalidades e modelos de aquisição de ARVs na África Subsaariana
279
Em geral, entretanto, mesmo se o padrão focado sobre uma autonomia verdadeira e um monopólio de importação (como pode ser observado em Camarões,
por exemplo) apresenta algumas contradições, ele parece cumprir seu papel de
maneira adequada. A principal vantagem dessas fórmulas consiste no caráter parapúblico da estrutura, aplicando uma taxa de margem única, moderada e prefixada,
quaisquer que sejam os medicamentos considerados.222 Ao contrário, o estatuto
jurídico de associação privada, da qual o Estado é apenas uma das partes, não é
sempre compatível com os objetivos de saúde pública, caso não seja estabelecida
uma relação sólida, quase de subordinação, entre o mandatário e o mandante. O
caso de Burkina Faso constitui um excelente exemplo, pois, antes de 1999, a central
de compras de medicamentos do país não tinha julgado necessária uma oferta
diversificada e a baixo custo dos ARVs. Seguindo uma lógica estritamente comercial, só um dos ARVs oferecidos pela central constava da lista de medicamentos
essenciais.
Obedecendo a uma diretriz das autoridades, a estrutura iniciou uma política de
diversificação de suas aquisições.
No caso de Camarões, até 2006, a Cename funcionou sem estatuto jurídico definido. Seus recursos eram provenientes de financiadores internacionais e do governo [6]. Desde 2007, possui o estatuto jurídico de “sociedade mista”, com uma ampla
autonomia de gestão. Como contrapartida à essa autonomia e cumprimento de
sua missão de serviço público, a central deve cobrir a totalidade de seus custos de
administração com os recursos provenientes da venda de medicamentos. As primeiras aquisições de ARVs foram feitas pela Cename em 2000 e só contemplaram
ARVs de primeira linha.
Em resumo, a ausência de instituições públicas dotadas de recursos humanos e
financeiros suficientes provocou, nos países analisados, uma dependência de parceiros externos, sobretudo, de dispositivos institucionais de luta contra a Aids. Na
seção seguinte, vamos apresentar uma análise das implicações relacionadas a essa
dependência.
III. Programas caracterizados por uma grande
dependência de recursos externos
Segundo dados da OMS [7], confirmados pelo estudo de Muthuri-Kirigia e DiarraNama [8], o sistema de saúde da região da África é o mais dependente de recursos
financeiros externos (10,2% do total dos gastos com saúde em 2005, contra 2,1%
222 A taxa de margem aplicada atualmente pela Cename sobre os ARVs em Camarões é de 14%. Ela visa
a cobrir as despesas estruturais da central, bem como garantir sua independência.
280
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
no Sudeste Asiático e apenas 1,2% nos países mediterrâneos). Essa dependência,
20 vezes maior que no conjunto das regiões em 2005 (10,2% contra 0,4%), cresceu
no decorrer dos anos 2000 devido à pandemia da Aids.223
No caso dos países considerados, essa dependência é ainda mais significativa.
Tabela 1 – Participação dos recursos externos no total das despesas com a saúde
2001
2002
2003
2004
2005
Burkina Faso
13,6
14,5
20,4
26,7
29,5
Camarões
4,8
5,9
5,7
5,2
5,3
Guiné
7,8
7,4
6,5
8,2
12,2
Mali
17,8
14,8
11,7
13,8
15,6
Senegal
16,5
15,9
13,2
12,7
13
Média
12,1
11,7
11,5
13,32
15,12
Fonte: WHO Statistical Information System (WHOSIS), acessível em http://who.int/whosis/en/
Assim, como indicam os dados da Tabela 1, a taxa de dependência financeira
externa para os países considerados é muito superior àquela do conjunto da região
da África (15,12% contra 10,20%, em 2005). No entanto, trata-se de um fenômeno
mais acentuado nos países que apresentam forte prevalência do HIV, como Burkina Faso, a Guiné e, em menor grau, Camarões. Em termos de evolução, o Mali e o
Senegal, apesar de parecerem mais dependentes que Camarões e a Guiné, iniciam
um processo contrário, apontando para um fortalecimento da capacidade nacional. No caso do Mali, esse esforço é sustentado por despesas públicas, enquanto,
no Senegal, ele provém essencialmente das despesas familiares privadas.
No caso específico da Aids, os recursos nacionais investidos eram muito reduzidos até o fim dos anos 1990 e provinham essencialmente dos fundos PPTE. Após
esse período, os recursos internacionais foram diversificados, com o Fundo Global
e o Banco Mundial desempenhando o papel principal. A Tabela 2 apresenta suas
contribuições respectivas.224
223 Em todas as outras regiões em desenvolvimento – exceto os países do Mediterrâneo –, essa dependência financeira diminuiu no decorrer do mesmo período.
224 Para um estudo mais detalhado do investimento do Banco Mundial, ver [9].
Capítulo 15. Modalidades e modelos de aquisição de ARVs na África Subsaariana
281
Tabela 2 – Estrutura dos financiamentos internacionais dirigidos à luta contra Aids
Países
Contribuições do fundo global
em milhões de US$ (20032007) e (em % do total)
Contribuições do Banco
Mundial em milhões de US$
(2001-2007) e (em % do total)
Total em milhões
de US$
Burkina Faso
47,1 (38,6)
74,7 (61,4)
121,8
Camarões
76,0 (60,3)
50 (39,7)
126
Guiné
14,2 (41,2)
20,3 (58,8)
34,5
Mali
52,3 (67,2)
25,5 (32,8)
77,8
Senegal
23,5 (43,9)
30 (56,1)
53,5
Fonte: Banco Mundial (2008) “L’engagement de la Banque Mondiale face au
VIH/SIDA en Afrique” extraits des quadrox Pages 91-92.
Podemos observar certa divisão do trabalho no financiamento dos programas
nacionais de luta contra a Aids. Os recursos disponibilizados pelo Banco Mundial
são, em geral, dirigidos à prevenção e os do Fundo Global, às aquisições de ARVs.
Os dados da Tabela 2 mostram que dois países, Camarões e o Mali, obtiveram mais
recursos do Fundo Global do que do Banco Mundial, US$ 76 milhões contra 50 e
52.3 milhões contra 25.5, respectivamente, ao contrário de Burkina Faso, Guiné e
Senegal. Todavia, convém ressaltar que, mesmo que esses dois organismos tenham
mantido o papel de principais financiadores dos programas de luta contra a Aids
nos países analisados, outros agentes participaram desse financiamento225 em outros níveis, principalmente no da gestão das compras de ARVs.
Além da dependência financeira observada, os recursos, tanto tangíveis quanto
intangíveis, necessários à implantação de PNLS eficientes são tão amplos e complexos que exigem, no caso desses países, cooperações múltiplas e multifacetadas.
O quadro 2 ilustra os diferentes tipos de cooperação e parceria observados na região.
225 No caso de Camarões, podemos observar que o programa desse país possui três fontes essenciais
de recursos provenientes de financiadores internacionais e, mais recentemente, de uma quarta fonte.
Trata-se de: (i) recursos do fundo global de luta contra a Aids, a tuberculose e a malária, dirigidos essencialmente para as aquisições de ARVs; (ii) recursos PPTE do Banco Mundial destinados às estratégias
de prevenção; (iii) recursos da Agência Internacional de Desenvolvimento (IDA, sigla em inglês) para
aquisição de material de diagnóstico e testes laboratoriais. Desde 2008, Camarões conta também com
recursos da Unitaid, com os quais a fundação Clinton adquire para o país ARVs de segunda linha. Ver [6].
282
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Quadro 2 – A dependência multidimensional externa dos sistemas
de abastecimento dos países da África francófona
Modalidades de financiamento
das aquisições de ARV :
Organismo encarregado das
aquisições
Origem dos produtos adquiridos
Banco Mundial: 6 países, incluindo
Camarões, Mali, Senegal (fundo
PPTE) e Guiné (MAP)
UNICEF : 4 países, RCA, Guiné,
Tchad, Togo
Produtores de genéricos (país
em desenvolvimento): em
todos, particularmente: Burkina,
Camarões, Guiné
Fundo Global: 18 países, incluindo
Camarões
PNUD : Mali (2006)
Sociedades Farmacêuticas:
todos (somente quando não
ha disponibilidade de produtos
genericos no mercado, em
particular, Senegal e Gabão)
Orçamento nacional : 11 países
Central nacional: 12 países
incluindo Burkina e Camarões
Produção nacional de ARV:
nenhum país francófono é
produtor de ARV apesar da futura
eventual produção do Gabão
Recursos próprios da CNA :
4 países; Burkina, Camarões,
Ruanda, Togo
Outros: associações em 2
países (Madagascar e Nigéria)
Produção regional: apesar do
desejo de instituições regionais,
como a CEDEAO, de mobilizar
recursos para uma produção
regional, nenhum projeto regional
foi concretizado até hoje.
Outros: PEPFAR (2 países), União
Européia (3 países), Esther (2)
PNLS: 4 países incluindo o Senegal
Fonte: Elaborado com base de dados de pesquisa e daqueles fornecidos pelo artigo de Boisseau, Degui,
Brunetton et Rey (2006): “Difficultés d’Accès aux Antirétroviraux dans les pays d’Afrique Francophone:
état des lieux en 2004” em Médecine tropicale n. 66, P 589-592. de Camara et al. (2008).
Na maioria dos casos, essas cooperações, que contribuem para disponibilizar
recursos adicionais (tangíveis ou intangíveis) para os atores locais, impõem suas
próprias condicionalidades (normas e protocolos de implantação, relatório periódico etc.). Assim, a dependência financeira se traduz em um conjunto de condições múltiplas que se sobrepõem umas às outras.226 Num estudo anterior [6],
mostramos detalhadamente, no caso de Camarões, como uma mudança (ocorrida
a partir de 2007) nas modalidades de financiamento das aquisições de ARVs por
parte de atores nacionais produziu um efeito em cascata sobre toda a cadeia de
distribuição.
Em particular, um dos resultados dos acordos concluídos é a imposição feita aos
atores locais de delegar as aquisições de ARVs à uma central não nacional (subordinada ao Pnud, à Unicef, dentre outros). Essas centrais, por sua vez, devem abastecer-
226 Assim, por exemplo, analisando os dois financiadores principais, ou seja, o Fundo Global e o Banco
Mundial, cada um exige que os recursos alocados sejam administrados por organizações próprias e
segundo regras distintas, específicas de cada uma dessas entidades. São os CCM (Country Coordinating
Mechanism) para o Fundo Global, as NAC (National Aids Country) para o Banco Mundial. Para os atores
locais, essas regras diferentes se sobrepõem e dificultam muito a implantação dos programas. Ver [13].
Capítulo 15. Modalidades e modelos de aquisição de ARVs na África Subsaariana
283
-se de medicamentos patenteados ou pré-qualificados pela OMS, o que, inevitavelmente, tem um forte impacto sobre a disponibilidade local de medicamentos.
O caso da Guiné ilustra muito bem a importância e a gravidade das consequências que a situação de dependência dos atores locais pode ter sobre o acesso
ao tratamento [3, 5]. A ausência de recursos financeiros e, portanto, de centros de
poder e de decisão independentes em escala nacional constitui um dos fatores
essenciais a explicar porque, no país, até 2002, o acesso a ARVs foi muito limitado
para os pacientes, ainda que esses medicamentos – adquiridos pela farmácia central – estivessem disponíveis no mercado nacional.
Isso pode ser explicado pelo fato que, até essa data, a maioria das instituições
internacionais atuando no país concentrava seus esforços mais em prevenção do
que em tratamento.227 Assim, os recursos externos, únicos capazes de atender a
demanda interna, não eram destinados às aquisições de ARVs. Mais tarde, quando
se resolveu estabelecer uma política de tratamento, a situação não melhorou muito. De fato, vários fatores (provável existência de corrupção, ausência de política
farmacêutica bem definida etc.) desestimularam a liberação direta para o governo
da Guiné, por parte do Fundo Global e do Banco Mundial, de recursos dirigidos
à aquisição dos ARVs necessários ao bom funcionamento do PNLS. A Unicef foi
incumbida dessa missão. A instituição desempenhou, assim, o papel de intermediário entre os fornecedores de ARVs e o programa público de acesso a esses medicamentos. A tutela sobre as aquisições públicas de ARV então observada tornou
o acesso aos medicamentos fortemente dependente da política de compras da
Unicef. Na prática, foram as rotinas e os protocolos dessa organização para as aquisições que determinaram a evolução da estrutura dos ARVs disponíveis no país,
situação que deve prosseguir nos próximos anos.
A complexidade das estruturas e dos mecanismos aqui expostos tem efeitos
bem visíveis sobre a disponibilidade de ARVs nos vários países analisados.
IV. Padrões de aquisição e disponibilidade em ARV
Com base nos dados colhidos sobre os cinco países examinados, podemos definir
e comparar três modelos de aquisição de ARVs. Esses “modelos” refletem as limitações enfrentadas pelas instituições encarregadas do abastecimento, levando em
227 Os primeiros grupos de doentes a receber tratamento ARV apareceram com a chegada de ONGs,
como GTZ (Alemanha) e Médicos Sem Fronteiras (Bélgica). Tendo em vista os resultados animadores
obtidos com esses tratamentos e a pressão exercida pelas associações de doentes, a Unaids e o Banco
Mundial resolveram finalmente financiar um programa público de aquisição de ARVs, com uma condição: as encomendas do comitê executivo do CNLS deveriam passar pela Unicef, que recebeu, então, um
mandato para a compra de ARVs para o governo da Guiné.
284
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
conta, particularmente, as origens e as fontes de financiamento, as condições associadas, bem como a natureza e a autonomia das centrais de compra.
IV.1. O modelo “focado nas especialidades”228
O primeiro modelo analisado é do tipo “focado nas especialidades”, assim denominado para indicar que as forças em jogo na governança incitam a compra de medicamentos, sobretudo os de especialidades, os quais são, em geral, patenteados.
Ainda hoje,229 o Senegal constitui o melhor exemplo desse modelo, caracterizado
por uma predominância de ARVs fornecidos por grandes empresas farmacêuticas
e alguns genéricos provenientes de país em desenvolvimento.
Em julho de 2004, a oferta de ARVs era muito pouco diversificada no Senegal e
abarcava mais medicamentos de especialidades de grandes empresas farmacêuticas do que genéricos [5]. A lista de medicamentos disponíveis era muito reduzida.230 Essa oferta era caracterizada pela predominância de ARVs de especialidades,
fortemente dominada pelos laboratórios GSK e Merck, e uma penetração muito
fraca de genéricos no mercado. Um único produto do laboratório Aurobindo era
distribuído, enquanto Ranbaxy e Cipla invadiam o mercado dos países vizinhos,
como Burkina Faso.
A adoção desse modelo de abastecimento pelo Senegal remete ao fato de o
país ter sido um dos que, na África subsaariana, aderiu de maneira mais precoce
e decidida à iniciativa Access. Nesse modelo, a operadora central (papel desempenhado pelo Hospital Fann e não pelo PNA, como já mencionado) negocia diretamente as aquisições de medicamentos com as empresas farmacêuticas participantes do Access, algumas delas já implantadas no território Senegalês, por meio
de filiais. Conforme alguns especialistas do comércio local, a presença de filiais dos
maiores grupos farmacêuticos e o controle que eles exercem sobre a indústria farmacêutica local explicam provavelmente as dificuldades enfrentadas pelos produtores de genéricos de país em desenvolvimento para penetrar no mercado de ARVs
no Senegal. O fato de essas filiais (no caso, Cophase, Laborex e Sodipharm) participarem de licitações públicas para a importação das especialidades cria um proble228 Especialidades são aqui definidas como medicamento de marca. Por tratarem-se de medicamentos
inovadores (ou seja, são os primeiros a serem disponibilizados no mercado), estes produtos são, em
geral, patenteados, caso a legislação nacional assim o permita.
229 Essa precisão tem aqui um valor duplo. Ela indica que os países não são eternamente dependentes
de um modelo único de aquisição, que pode evoluir e, de fato, evolui conforme as mudanças nas imposições a que as centrais são submetidas e/ou se os poderes públicos mandantes conseguem se livrar
total ou parcialmente das imposições feitas. Assim, o Senegal, que tinha inicialmente um programa
de aquisição quase totalmente dirigido para as especialidades, mudou parcialmente no decorrer dos
últimos anos para a aquisição de genéricos [10].
230 Ela incluía seis inibidores nucleosídicos, sendo que a única combinação (o combivir®) estava em
falta; dois inibidores não nucleosídicos (Viramune® e Sustiva/Stocrin®), três inibidores de protease (Crixivan®, Viracept® e Kaletra®) e um único ARV da classe dos inibidores nucleosídicos da transcriptase
reversa.
Capítulo 15. Modalidades e modelos de aquisição de ARVs na África Subsaariana
285
ma de concorrência para a operadora local. De fato, isso limita a possibilidade de
essa operadora se posicionar em situação de monopsônio face aos fornecedores
externos para obter economias de escala mais significativas e negociar preços mais
baixos para os medicamentos.
No entanto, no fim de 2004, o desejo de adquirir ARVs a preços mais baixos
levou a operadora local a diversificar suas fontes de abastecimento, apelando para
os produtores de genéricos. Os dados mais recentes [10] apontam para uma leve
evolução da estrutura de aquisições, com uma presença mais forte de genéricos
depois de 2004.
Esse padrão focado nas especialidades inclui uma forte limitação financeira,
pois qualquer ampliação de escala aumenta de maneira considerável as necessidades de recursos financeiros. Além disso, a demanda cada vez maior por terapias
de segunda linha contribui para fortalecer essas limitações. Em 2006, o único protocolo de tratamento de segunda linha disponível localmente era a combinação
tenofovir, didanosina, lopinavir/ritonavir, comprada ao preço anual de US$1.885/
paciente/ano, enquanto o mesmo protocolo genérico era oferecido ao preço de
US$853/paciente/ano. Sendo assim, parece que o modelo de abastecimento baseado em especialidades continuava sua trajetória de evolução.
IV.2. O modelo “focado nos genéricos”
O segundo modelo, que caracterizamos como “focado nos genéricos” e cuja melhor
ilustração é Camarões, possui a vantagem de permitir uma ampliação de escala com
recursos financeiros menos pesados que os necessários para o modelo anterior.
A análise da estrutura dos ARVs adquiridos pelo programa desse país evidencia
a predominância de genéricos, essencialmente por meio do abastecimento prioritário de combinação de dose fixa (FDC) de Triomune (composta de três moléculas:
lamivudina, estavudina e nevirapina). A repartição, em termos de valores, dos estoques adquiridos em 2005 (ver Figura 1) indica que 70% das aquisições são representados por genéricos fornecidos por laboratórios indianos, contra 26% para as
moléculas de especialidades (efavirenz, comercializado sob o nome de Sustiva® ou
Stocrin®; e indinavir, comercializado sob o nome de Crixivan®). Apesar do aumento da diversificação das moléculas adquiridas e disponibilizadas para os pacientes
locais, com aumento relativo dos medicamentos de especialidades, a análise da
composição das aquisições das ARVs pela Cename evidencia que, comparando Camarões com outros países da mesma região, a política de abastecimento desse país
parece fortemente dominada pelos genéricos.
286
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Figura 1 – Distribuição do estoque acumulado de ARV em diferentes
triterapias comprado pela Cename, Camarões, 2005
Zidovex LN;
1 096; 0,5%
Efavirenz 200;
21 470; 9,3%
(Lamivudine 150mg +
Stavudine 40mg +
Névirapine 200mg, Comp.)
TRIOMUNE 40;
114 004;
49,2%
Efavirenz 600;
35 865; 15,5%
Indinavir 400;
2 433; 1,0%
Nlfinavir 250;
607; 0,3%
Névirapine 200;
8 114; 3,5%
(Lamivudine 150mg +
Stavudine 30mg +
Névirapine 200mg, Comp.)
TRIOMUNE 30;
48 127;
20,8%
Dados mais recentes confirmam essa predominância de genéricos nas aquisições de ARVs em Camarões. A distribuição dos protocolos utilizados pelos adultos
indica que, no final de março de 2009, a Triomune 30 representava 52,40% dos
protocolos de primeira linha consumidos pelos adultos.231 Outro protocolo genérico (lamivudina, zidovudina, nevirapina) representa 15,77% dos protocolos de
primeira linha. No entanto, os protocolos, incluindo moléculas patenteadas como
o efavirenz, o tenofovir ou o abacavir, conquistam, aos poucos, mais espaço nos
tratamentos de primeira linha. O crescimento futuro dos tratamentos de segunda
linha irá, sem dúvida, atenuar o caráter “focado nos genéricos” do padrão de abastecimento de Camarões.232 Por enquanto, a predominância de genéricos é incontestável e confirmada pela análise dos dados relativos aos ARVs disponíveis em
Camarões, no fim de março de 2007 [6]. Segundo esses dados, sete laboratórios,
cuja maioria é constituída por produtores de genéricos, oferecem ARVs. Os medicamentos de especialidades são adquiridos somente na ausência de equivalente
genérico.
Esse modelo, como o anterior, sofre muita influência da evolução da propriedade intelectual. O cenário pós-2005 pode comprometer o desenvolvimento desse
231 Em 2005, o protocolo mais utilizado era a Triomune 40 (49.2% do estoque acumulado contra 20.8
para a Triomune 30), mas em 2007, tendo em vista os efeitos clínicos secundários constatados (devido à
forte dose de estavudina 40mg), as diretrizes do Ministério da Saúde relativas aos protocolos indicaram
a Triomune 30 como tratamento de primeira linha mais adequado.
232 Um estudo recente foi dedicado à política e distribuição de ARVs de segunda linha em Camarões.
Ver (d’Almeida et al. 2010). Ele confirma, entre outras coisas, que, sem o investimento maciço de recursos
externos (fornecidos pela Unitaid), as autoridades locais não poderiam ter sustentado essa política.
Capítulo 15. Modalidades e modelos de aquisição de ARVs na África Subsaariana
287
tipo de modelo. Caso o fortalecimento das imposições relativas à propriedade intelectual crie obstáculos ao abastecimento com ARVs genéricos, toda a cadeia de
aquisição/distribuição será desestabilizada.
IV.3. O modelo “misto”
Finalmente, o terceiro e último modelo, qualificado de “misto”, vigente em países como
a Guiné e o Mali, é caracterizado por uma disponibilidade razoável de ARVs, incluindo
genéricos e de especialidades, provenientes de vários circuitos de abastecimento.
No caso da Guiné, além das aquisições de ARVs efetuadas pela Unicef por meio
de sua central na Dinamarca, existem duas outras fontes de abastecimento. Por
um lado, há as aquisições feitas por ONGs, como GTZ (Alemanha) e Médicos Sem
Fronteiras (Bélgica) e, por outro lado, os ARVs introduzidos via atacadistas privados,
como Sodipharm. Esses atacadistas introduziram no mercado ARVs genéricos. A
chegada desses medicamentos genéricos deveria, em princípio, tornar a oferta de
ARVs mais diversificada e mais competitiva (ver Quadro 3).
Quadro 3 – Lista dos ARVs por laboratório habilitado para introdução
no mercado da Guiné e dos ARVs atualmente disponíveis.
ARVs por laboratório
Nom e genérico
Data de registro
ARVs* disponíveis em 2007
por laboratório
Videx (25mg, 50mg,
100mg, 150mg, 1g, 4g).
Didanosina
20/06/2001 para todos
Zerit (15mg, 20mg,
30mg, 40mg)
Estavudina
20/06/2001 para todos
Securinina antiviral
hepatite A, B, C, D, E
05/01/1999
Combivir
AZT+3TC
21/01/1999
ABACAVIR
Epivir 150 mg
Lamivudina
09/08/1999
ZIDOVUDINA+LAMIVUDINA
Ziagen (ziagen 300)
Abacavir
11/04/2000
ZIDOVUDINA
Trizivir
Abacavir
30/06/2001
Retrovir 250
AZT
11/05/2003
Invirase 200
Saquinavir
14/09/1998 para todos
Viracept (50 et 250)
Nelfinavir
BMS:
GGIA:
Hepantivir 200mg
GSK:
ROCHE:
288
NELFINAVIR
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
ARVs por laboratório
Nom e genérico
Data de registro
ARVs* disponíveis em 2007
por laboratório
CIPLA:
Duovir
AZT+3TC
Nevimune 200
Nevirapina
NEVIRAPINA
Stavir (30 e 40)
Estavudina
ESTAVUDINA
Triomune (30 e 40)
D4T+3TC+NVP
Zidovir (100 e 300)
Azt
NEVIRAPINA+ESTAVUDINA+LA
MIVUDINA (TRIOMUNE)
09/04/2002 para todos
LAMIVUDINA
ZIDOVUDINA+LAMIVUDINA
(DUOVIR)
ABBOTT NOVO:
Kaletra 33,3
Lopinavir/RTV
Norvir 100
Ritonavir
02/03/2002
RANBAXY :
Aviro-z 300
Zidovudina
Avocomb
AZT+3CT
Avolan
Lamivudina
avostav
Estavudina
INDINAVIR (AVIRODIN)
02/05/2002 para todos
BAVYA PHARMACHEM:
Lamivudina 150
26/04/2002 para todos
Lamivudina+ Zidovudina
Nevirapina 200
Zidovudina 300
HETERO
Estavudina
MSD
INDINAVIR EFAVIRENZ Fonte: Dados colhidos durante missão em agosto de 2004 e completados em 2007.
* A coluna contém dados fornecidas pelo doutor Mohamed Cissé do CHU Donka de Conakry, a quem agradecemos.
No entanto, convém ressaltar que, como apontado pelos dados da última coluna do Quadro 3, a Guiné não dispõe de oferta efetiva de ARVs condizente com
a oferta potencialmente possibilitada pelas numerosas autorizações de registro
de genéricos introduzidos em seu mercado (AIMs) entre 1998 e 2002. Como já foi
mencionado, o fato de uma agência externa – a Unicef – ser encarregada das aquisições de medicamentos explica, em parte, o descompasso entre as AIMs e a variedade de ARVs disponíveis.
No caso do Mali, até 2001, a gerência da farmácia responsável pelas aquisições
de ARVs encomendava esses medicamentos aos laboratórios farmacêuticos por intermédio de Laborex233 (representante local de várias sociedades farmacêuticas e,
233 Labores Mali é uma sociedade atacadista distribuidora de produtos farmacêuticos que abastece
regularmente mais de 240 farmácias e possui 2.500 referências.
Capítulo 15. Modalidades e modelos de aquisição de ARVs na África Subsaariana
289
portanto, importadora de medicamentos no Mali). A partir de 2002, a queda dos
preços provocada pela introdução de genéricos no mercado local permitiu a diversificação da oferta. O número de fornecedores passou de três (BMS, GSK e Merck)
para seis. Além dos fornecedores de especialidades já mencionados, o país contou,
a partir dessa época, com três produtores de genéricos: as sociedades Cipla, Ranbaxy e Hétero. Da mesma maneira que na Guiné, esse modelo é misto. Essa característica aparece como o ponto forte desses modelos. No entanto, eles não escapam
de uma dupla determinação: para as especialidades, se trata da restrição ligada às
possibilidades de financiamento e, no caso dos genéricos, são as imposições relativas à evolução das regras da propriedade intelectual. Como observado em [11
e 12], esse padrão pode ser influenciado por vários tipos diferentes de evolução,
especialmente em função do fortalecimento (ou não) das imposições feitas sobre
o abastecimento de medicamentos genéricos durante o período iniciado em 2005.
V. Conclusões
O presente estudo das políticas de aquisição de ARVs em cinco países da África
subsaariana permitiu estabelecer o seguinte:
Em primeiro lugar, podemos evidenciar três modelos de governança: o modelo
“focado nas especialidades”, o modelo “focado nos genéricos”, pouco diversificado, e o modelo “misto”. Uma característica central e comum a esses modelos é sua
dependência de recursos externos (financeira e de outras ordens).
Procuramos também mostrar o impacto desses modelos de aquisição sobre a
disponibilidade local de ARVs, em preços e quantidades para cada uma das configurações analisadas. O impacto provocado por uma central de compras “nacional”
é diferente daquele provocado por uma central “não nacional”, nos casos em que
essa foi imposta aos atores locais pelos financiadores.
Cada um desses modelos é diretamente afetado pelo crescimento das demandas por tratamentos de segunda linha e, de modo geral, pela entrada de novas
gerações de medicamentos nas recomendações terapêuticas para tratamentos de
primeira intenção. No primeiro modelo, isso é devido ao fato de que, até prova em
contrário, esses novos ARVs não serem disponibilizados a preços reduzidos, sob a
forma de genéricos. No caso dos modelos 2 e 3, os preços de introdução de novas
especialidades no mercado – apesar dos preços diferenciados para os programas
Access, por exemplo – acarretam tal explosão de custos que são capazes de comprometer a sustentabilidade financeira das políticas de aquisição.
Em todos esses casos e no cenário pós-2005, o endurecimento das imposições
de propriedade intelectual marcado por essa data se apresenta como o maior desafio que esses países devem enfrentar.
290
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Os autores agradecem a dois pareceristas anônimos pela qualidade da leitura e
pelas suas observações.
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Capítulo 15. Modalidades e modelos de aquisição de ARVs na África Subsaariana
291
12. ORSI, F.; D’ALMEIDA, C.; HASENCLEVER, L.; CAMARA, M.; TIGRE, P.; CORIAT, B. Trips post2005 and access to new antirretroviral treatments in Southern countries Issues and
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292
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
PARTE V
Acesso aos antirretrovirais: experiência
e papel da sociedade civil
CAPÍTULO 16
Associação AIDES: 25 anos de luta
Bruno Spire
Resumo: A associação AIDES, fundada em 1984, é um movimento de pessoas “soroafetadas”, cujo objetivo é garantir às pessoas vivendo com HIV/Aids o exercício
de seus direitos e sua participação nos processos de tomada de decisão que afetam
suas próprias vidas. A associação segue um princípio de ação comunitária dividido
em três dimensões: a necessidade de atuar com as pessoas afetadas e não por elas;
o reconhecimento do saber adquirido pela vivência com a doença ou com o risco; e
o objetivo de transformação social pela ação sobre os tomadores de decisão e pela
mobilização dos grupos vivendo com a epidemia. A associação integrou novos
conceitos nas políticas de saúde pública, como a redução de riscos, o atendimento
integral e a democracia sanitária. Ela age contra a estigmatização, que permanece
sendo um dos maiores obstáculos para o acesso ao atendimento e à prevenção. A
associação é membro fundador da Coalizão Internacional PLUS, que procura levar
os pleitos das pessoas “soroafetadas” a uma escala mundial.
Palavraschave: AIDS, ONGs, França, Saúde Pública, Estigmatização.
I. Os princípios fundadores da AIDES
A Associação AIDES foi criada em 1984 por Daniel Defert, companheiro do filósofo
Michel Foucault, que, pouco tempo antes, havia falecido por complicações relacionadas à Aids. Desde o início, a associação foi fundada em torno de valores éticos
fortes: o não julgamento das pessoas, o respeito à confidencialidade e a afirmação
de que o respeito aos direitos humanos é parte integrante das políticas de saúde
pública. Mas, além desses valores, a associação reivindica também um princípio de
ação fundamental, o princípio da ação comunitária. Esse princípio, muitas vezes
mal interpretado pelas autoridades públicas, não diz respeito a qualquer tipo de
comunitarismo, mas pode ser desmembrado em três dimensões:
i. A abordagem comunitária se baseia no “fazer com as pessoas envolvidas” e
não “por elas”. Trata-se de uma abordagem ascendente e participativa, que
parte das necessidades das pessoas vivendo com HIV/Aids e, particularmente, dos mais afetados, ou seja, aqueles vivendo com HIV/Aids ou com
o risco de infecção. Na maioria das vezes, são homossexuais masculinos,
usuários de drogas ou imigrantes vindos da África Subsaariana, pois é
nesses grupos que a prevalência de HIV/Aids é mais forte.
ii. O princípio de ação comunitária reconhece o saber profano adquirido
pela experiência do “viver” com a doença ou com o risco. Ele se baseia
no princípio de que as pessoas afetadas por um problema de saúde têm
legitimidade para não apenas identificar suas necessidades, mas também
para agir e encontrar soluções, contribuindo, assim, para a formação de
uma resposta global. Foi dessa forma que as primeiras ações de acompanhamento das pessoas vivendo com HIV/Aids foram concebidas, junto com
os doentes, diante da angústia associada à doença e à rejeição que eram
objeto de uma vivência comum.
iii. Enfim, a abordagem comunitária abrange princípios de transformação social, visando agir sobre os tomadores de decisão pela mobilização dos grupos mais afetados pela epidemia. Não se trata somente de obter respostas,
mas de estendê-las ao conjunto da comunidade de pessoas afetadas, por
meio de ações sobre os regulamentos, as leis e as mentalidades.
Baseada nesses princípios, a AIDES implantou algumas ações, que podem ser
divididas entre ações de prevenção e ações de suporte. A associação privilegia
ações inovadoras, a fim de experimentá-las e depois, quando possível, transferi-las
para o direito comum. As ações representam também um campo de observação
útil para enriquecer a argumentação necessária à transformação social.
II. As ações de suporte
Antes da chegada dos tratamentos, o objetivo das ações de suporte era melhorar a
qualidade de vida das pessoas vivendo com HIV/Aids. Tratava-se, essencialmente,
de oferecer acompanhamento individual e ajuda domiciliar. Com o advento das
multiterapias, o objetivo das ações passou a ser “viver melhor” com o HIV e com os
tratamentos complexos. O suporte tem como objetivo fortalecer as capacidades
das pessoas vivendo com HIV/Aids, para melhor prepará-las e, assim, aumentar seu
desejo de se tratar e de aderir ao tratamento, e também propiciar uma boa qualidade de vida em todas suas dimensões, física, social, afetiva e sexual. A AIDES defende
um atendimento integral, incluindo atendimento social e psicológico, envolvendo
militantes associativos como atores. Para tanto, as ações de suporte devem ser baseadas em alianças entre profissionais de saúde e pesquisadores. Há alguns anos,
a AIDES vem implantando ações de autossuporte, grupos de conversação, finais
de semana terapêuticos, universidades para os pacientes, fóruns, desenvolvendo
um know-how para fortalecer a capacidade das pessoas vivendo com HIV/Aids de
296
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
tomarem conta de si. Essas ações representam uma oportunidade de fornecer às
pessoas informações de fácil compreensão e validadas por seus pares; elas possibilitam uma troca de experiências e a autoajuda entre pessoas com vivências similares; enfim, essas ações favorecem a mobilização das pessoas vivendo com HIV/
Aids e as ajudam na afirmação de seu estatuto sorológico. Propiciam encontros de
grupos com os profissionais de saúde fora do hospital, fora da relação médico/paciente. Atualmente, essas ações são padronizadas e registradas em guias de ação
e documentos de referência. Os programas de educação terapêutica que, durante
muito tempo, foram desdenhados pelas autoridades de educação terapêutica por
serem fundados em saberes profanos, sem reconhecimento hospitalar ou acadêmico, poderiam, a partir de então, serem co-construídos entre médicos e atores
associativos, desde que pelo menos um médico estivesse envolvido no programa.
As ações de suporte também são associadas à retórica do acesso ao tratamento e à pesquisa para todos, bem como à luta contra a falência terapêutica e pelo
acesso precoce a novas moléculas. Essa argumentação se fez em parcerias com
outras associações de luta contra a Aids, reunidas em um coletivo interassociativo,
o grupo TRT-5,234 hoje parceiro indispensável das principais instituições francesas.
A argumentação se baseia, por um lado, na expertise individual de membros do
TRT-5 que detêm bons conhecimentos dos aspectos científicos relacionados aos
medicamentos, mas também no acompanhamento das disfunções observadas por
ativistas de campo das associações membros. No início dos anos 2000, o objetivo
principal consistia em promover o acesso mais célere possível às novas moléculas
para as pessoas em falência terapêutica. Hoje em dia, trata-se de pressionar a indústria por medicamentos que permitam uma melhor qualidade de vida, com a
melhor tolerância possível em longo prazo.
III. A luta contra a estigmatização
Grandes progressos foram observados no atendimento à doença desde o início da
epidemia, mas, infelizmente, podemos constatar que o olhar da sociedade sobre
o HIV e os doentes ainda é pejorativo. Hoje, como há 25 anos, ainda é muito difícil
assumir a própria soropositividade. Essa situação é bem específica ao HIV e muito
diferente do que acontece em outras doenças crônicas, como o diabetes e a hipertensão. Sendo assim, a AIDES tem como objetivo modificar a visão da sociedade
sobre os doentes e, para tanto, propôs uma campanha de luta contra as discriminações. A proposta se baseava no slogan “se eu fosse soropositivo?”, para que cada
um pudesse refletir sobre os impactos que esse fato poderia ter sobre sua vida.
234 Coalizão de interesses entre cinco associações francesas (Actions Traitments, Act Up Paris, AIDES, Arcatsida e VLS) para definição de diretrizes no campo da pesquisa terapêutica e clínica, criada em 1992.
Capítulo 16. Associação AIDES: 25 anos de luta
297
Essa campanha elencou celebridades de esferas diferentes, no intuito de combater
a exclusão das pessoas soropositivas. Por ocasião da eleição presidencial, a campanha focou em personalidades do meio político; na Copa do Mundo de Rugby, a
campanha apresentou jogadores do time nacional, o XV de France.
Sem dúvida, a luta contra a estigmatização não pode ser resumida a campanhas
publicitárias. As ações de suporte coletivo visando levantar a autoestima representam alavancas poderosas, permitindo às pessoas preparar-se melhor para abordar
a questão do HIV em sua vida cotidiana, profissional e afetiva.
IV. As ações de prevenção
As ações de prevenção focalizam principalmente os grupos mais expostos ao HIV
e, no caso da França, a epidemia é concentrada. As ações concernem à prevenção
da transmissão sexual e sanguínea junto a usuários de drogas injetáveis. Nos anos
1990, a associação foi pioneira na disponibilização de material para injeção estéril.
Essa abordagem de redução de riscos possibilitou uma grande redução da incidência do HIV entre os usuários de drogas injetáveis. Atualmente, a associação está
experimentando programas de educação para melhorar a segurança da prática da
injeção e, assim, evitar a transmissão dos vírus HIV e das hepatites.
As ações de prevenção sexual vão muito além da informação e da distribuição
de preservativos, masculinos ou femininos. A informação é necessária, mas insuficiente para modificar os comportamentos. Para que as pessoas em situação de risco
possam se apropriar da prevenção, é imprescindível chamar a atenção para todas
as barreiras (emocionais, de autoconfiança, de autoestima). Por meio da abordagem comunitária, a AIDES conseguiu evidenciar as dificuldades de uma prevenção
baseada exclusivamente no uso sistemático do preservativo. A AIDES recomenda
uma abordagem pragmática da redução de riscos sexuais visando alcançar soluções, ainda que imperfeitas, para todos aqueles que não podem ou não querem
utilizar o preservativo em qualquer circunstância. Entre essas soluções, podemos
ressaltar a escolha sorológica (“séro-choix”), a adaptação das práticas sexuais ou
“positionning” entre os gays, o reforço da observância pelas pessoas infectadas e
o controle da carga viral, um dos maiores fatores associados à transmissibilidade
do HIV. No entanto, o controle da carga viral por tratamento antirretroviral implica o conhecimento do próprio estatuto sorológico. Por essa razão, a AIDES está
atualmente engajada em ações de detecção comunitária, ou seja, campanhas de
detecção conduzidas pelas próprias “soroafetadas” e tornadas possíveis pela disponibilidade, hoje em dia, de testes rápidos de detecção do HIV/Aids, realizados a
partir de pequenas extrações de sangue na ponta do dedo. Essas ações foram concebidas para atender à necessidade de realizar testes de detecção repetidamente,
298
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
constatada entre pessoas expostas ao risco, e tomaram a forma de uma pesquisa
operacional sobre testes de detecção rápidos realizada por atores não profissionais
junto a gays (projeto ANRS COM’-TEST). Graças à colaboração com pesquisadores,
a AIDES tem realizado a experiência do teste rápido junto com a delegação de tarefas antes reservadas aos profissionais da saúde, a fim de diversificar a oferta de
detecção na França. A ideia é que a oferta de testes de detecção num ambiente
associativo, realizados por pessoal não médico, porém capacitado e mais apto a
compreender as dificuldades enfrentadas pelos gays e oferecer escuta e conselhos
adequados, poderá ser mais eficiente para atrair populações regularmente expostas ao risco de infecção pelo HIV. Esse tipo de pesquisa-ação aproximou a AIDES do
mundo da pesquisa, e possibilitou também uma melhor formalização de seus modos de operação para melhor integrar-se em protocolos de pesquisa biomédica.
V. AIDES e o âmbito internacional
A AIDES firmou parcerias com várias associações de luta contra a Aids no mundo,
especialmente na África francófona, onde a AIDES faz parte de várias redes associativas: rede Afrique 2000 (com parceiros da África ocidental) e rede Afrique centrale.
Os objetivos dessas redes consistem em fortalecer as capacidades das associações
membros por meio de trocas, atividades de capacitação e estágios. Atendendo a pedidos de atores africanos, a AIDES contribuiu para a criação da rede Africagay contra
a Aids, cuja meta é fortalecer as ações comunitárias na área da saúde dirigidas aos
homens que mantêm relações homossexuais e permitir uma argumentação eficaz
junto aos tomadores de decisão. Essa rede permitiu que emergissem a voz dos homens homossexuais na África, as maiores dificuldades que enfrentam para serem
contemplados pelas políticas de saúde e os obstáculos para o acesso ao atendimento e ao material de prevenção (preservativos e, particularmente, gel lubrificante).
Recentemente, a AIDES esteve à frente da iniciativa de coalizão PLUS.235 De fato,
tendo em vista o crescimento da mobilização humana e financeira exigida pela
luta contra o HIV e as disfunções observadas na implantação dos programas organizados (principalmente no repasse de recursos, na qualidade do atendimento, no
acesso às moléculas de segunda e terceira linhas e aos testes biológicos, na eficiência dos programas de prevenção etc.), as associações de combate contra a Aids
AIDES, na França, ALCS, no Marrocos, Arcad-Sida, no Mali, e COCQ-Sida, no Québec,
manifestaram sua vontade de ir além das parcerias já estabelecidas em nível internacional, para construir uma estrutura comum de promoção da atuação comunitária. Por consequência, decidiram juntas constituir uma união em que possuem o
estatuto de fundadores. Promovendo a atuação comunitária na luta contra o HIV/
235 Informações sobre a iniciativa de coalizão PLUS podem ser obtidas no site www.coalitionplus.org.
Capítulo 16. Associação AIDES: 25 anos de luta
299
Aids, essa união pretende abranger novas associações, compartilhando os mesmos
valores e a mesma atuação. Recentemente, Kirimina, do Equador, Amongo, do Congo, Revs+, de Burkina Faso, e Aras, da Romênia, ingressaram na união.
A argumentação da PLUS segue alguns eixos estratégicos:
i. O primeiro eixo é a otimização do acesso aos direitos, à prevenção e ao
atendimento de qualidade, especialmente para os grupos vulneráveis:
trata-se de exigir, para os países do Sul, padrões de atendimento idênticos aos dos países do Norte, em particular o acesso às primeiras linhas de
medicamentos menos tóxicas e às segunda e terceira linhas de tratamento,
a carga viral e aos testes de resistência. Essa argumentação inclui também a luta contra a penalização da transmissão do HIV. Ela visa também o
reconhecimento das associações comunitárias por parte dos programas de
pesquisa sobre novas estratégias de prevenção.
ii. O segundo eixo consiste em apoiar a mobilização de recursos, atuando em
nível mundial para maximizar os recursos disponíveis, concorrer a financiamentos do Fundo Global, atuando junto à Unitaid para acelerar a queda
dos preços dos produtos essenciais para a luta contra a Aids e, assim,
liberar recursos novos nos atuais orçamentos. Nesse âmbito, PLUS iniciou
uma campanha para instaurar uma taxa sobre movimentações financeiras
(a taxa Robin), que poderia garantir a longevidade do Fundo Global. Outra
das ações de PLUS consiste nos esforços para derrubar os preços dos medicamentos, especialmente no que se refere às barreiras de propriedade
intelectual, que bloqueiam a diminuição dos preços. PLUS é, juntamente
com Médicos Sem Fronteiras e Oxfam, um dos líderes internacionais da
luta pela implantação rápida do Patent Pool, iniciativa da Unitaid por meio
da qual os grandes laboratórios ocidentais autorizariam a fabricação e a
comercialização de versões genéricas dos medicamentos antirretrovirais
de última geração nos países do Sul.
iii. O terceiro eixo é otimizar a utilização do sistema Fundo Global. Trata-se de
agir sobre o Fundo Global e a Unaids para melhorar o funcionamento das
instâncias de coordenação dos países (CCM), acelerando a implantação
efetiva do fortalecimento das associações comunitárias e, assim, permitir
uma maior implicação das pessoas afetadas. Trata-se também de motivar
os financiadores a favorecer o acesso dos ativistas do Sul a seus fundos.
A luta para aumentar os recursos dos organismos de ajuda multilateral é
importante e PLUS tem como missão defender os interesses das pessoas
envolvidas dentro das prioridades financeiras desses organismos. Os interlocutores naturais da argumentação de PLUS são os organismos internacionais, enquanto as associações-membros visam pressionar seus respectivos
Estados para financiar a luta contra a Aids em nível internacional.
300
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
VI. Perspectivas
Hoje em dia, a principal questão em jogo é a luta contra a banalização do HIV/Aids
entre os tomares de decisão. Parar a epidemia é hoje um fato concebível, já que os
tratamentos antirretrovirais possuem efeito maior na diminuição da transmissibilidade do vírus. Caso todas as pessoas infectadas fossem hoje detectadas e tratadas,
poderíamos impedir as novas infecções nas gerações futuras. Porém, para alcançar
essa meta, existem várias condições.
A primeira delas é a supressão do medo. O medo de se submeter ao teste de
detecção é o maior obstáculo para o fim da epidemia. Esse medo é devido ao estigma e ao fato de que o HIV/Aids é, antes de tudo, uma doença de caráter social. É
preciso mudar a maneira de se comunicar sobre o HIV, especialmente nos grupos
mais envolvidos com a doença.
A segunda condição consiste em favorecer o acesso aos testes de detecção por
meio da oferta de diversas possibilidades de se testar, incluindo o acesso à testagem comunitária pelos pares, não necessariamente profissionais da saúde. Abrimos o caminho e não mediremos esforços para que os ativistas da AIDES e, claro,
de outras associações possam se engajar no caminho da testagem comunitária.
A terceira condição é o acesso ao atendimento de qualidade para todos, em
qualquer lugar do mundo, incluindo as pessoas em situação de precariedade, os
estrangeiros, os detentos etc. Qualidade implica o acesso a medicamentos potentes, testes biológicos, atendimento psicossocial, no Norte como no Sul.
A quarta condição é a ampliação da prevenção nas populações onde o vírus
provoca mais danos. Para tanto, AIDES clama por uma prevenção baseada no uso
combinado ao máximo de todas as ferramentas, incluindo as ferramentas biomédicas validadas ou em desenvolvimento, como os tratamentos pré e pós-exposição.
A quinta condição consiste em obter financiamentos: é preciso continuar a demonstrar que a epidemia de HIV não acabou, a lutar contra a desistência das autoridades de saúde, a falta de liderança dos governos ou das instâncias internacionais
que gostariam de acreditar que a luta contra a Aids pode ser diluída em meio a
outros problemas sociossanitários.
É somente dessa forma que daremos fim à epidemia!
Capítulo 16. Associação AIDES: 25 anos de luta
301
CAPÍTULO 17
O modelo brasileiro de combate à epidemia
de Aids: a participação da sociedade civil
Maria Andréa Loyola
Pedro Villela
Resumo: Esse trabalho estuda a participação da sociedade civil – médicos, juristas,
jornalistas, empresários – e, sobretudo, das ONGs/Aids na construção do modelo
brasileiro de enfrentamento da epidemia de Aids. Ele se baseia em entrevistas realizadas com esses atores, em documentos, artigos de jornais e bibliografia especializada. A participação das ONGs/Aids no combate à Aids se deu, inicialmente, com
a prestação de assistência aos doentes e como grupo de mobilização e de pressão
junto ao Estado, lutando por prevenção e tratamento. Entretanto, a ameaça à sustentabilidade do programa governamental de distribuição de medicamentos, em
razão da elevação dos custos dos medicamentos protegidos por patentes, as levou
a uma mudança de posição. Sob a influência de ONGs internacionais, o tema das
patentes foi politizado, dando origem à constituição, em 2001, do Grupo de Trabalho Propriedade Intelectual (GTPI), voltado para a discussão desse tema. Nesse grupo e juntamente com outros setores da sociedade civil, notadamente os juristas e
a mídia, as ONGs/Aids continuam a exercer um papel fundamental na preservação
do modelo de luta contra a epidemia no País.
Palavras-chaves: Aids; ONGs, sociedade civil; modelo brasileiro de combate à Aids;
propriedade intelectual.
I. Introdução
A política brasileira de combate à Aids se tornou internacionalmente conhecida
por abordar não apenas os aspectos preventivos da transmissão da doença, mas
também aqueles referentes ao tratamento. A eficiência dessa política se deve também ao fato de ter sido articulada a programas industriais de cópia e produção
de medicamentos antirretrovirais (ARVs) [1]. Embora, para alguns, tal experiência
deva ser vista como localizada, ela aponta para alterações nas relações históricas
entre os setores nacionais e internacionais da indústria farmacêutica, que vêm se
manifestando notavelmente no tratamento relativo ao problema das patentes de
medicamentos ARVs [2, 3, 4].
A construção, implantação e desenvolvimento desse modelo de enfrentamento
da epidemia de Aids resultam, em grande parte, da vontade política de governantes e atores sociais estrategicamente posicionados, que souberam empreender,
mobilizar, conjugar e explorar positivamente e numa mesma direção uma série de
ações e fatores favoráveis [5].236 Dentre esses atores, se destacam, historicamente,
os médicos e profissionais de saúde ligados ao Movimento Sanitarista, que tiveram
um papel de destaque na formulação da política de medicamentos nos anos 1980
e 1990 e, em especial, na política de combate à epidemia de Aids. Esse movimento,
conhecido como Reforma Sanitária,237 foi responsável por algumas conquistas de
extrema importância para o setor da saúde, que se consolidaram com a redemocratização do país. Por influência dos sanitaristas na Assembléia Nacional Constituinte, a saúde foi consagrada na Constituição Federal de 1988 como um direito
fundamental: nos artigos 196 a 200 do capítulo relativo à Ordem Social, foi preconizado que “a saúde constitui direito de todos e dever do Estado, a ser garantido
mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução de doença e outros
agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação”.238 Esse movimento conduziu à criação do Sistema Único
de Saúde (SUS), concebido como uma rede nacional de serviços regionalizados,
hierarquizados e descentralizados de atenção integral à saúde (lei orgânica 8.080
de 1990).
Sob a liderança de médicos ligados ao Movimento Sanitarista, foi criado, em
São Paulo, em 1983, o primeiro Centro de Referência e Treinamento (CRT) para o
combate à Aids do país. Não apenas os sanitaristas, mas médicos de outras especialidades associadas à Aids – dermatologistas, infectologistas, cancerologistas –, que
começavam a atender em clínicas particulares pessoas vivendo com HIV, também
contribuíram de forma decisiva para o espaço que a epidemia viria a ocupar naquele momento e também no Ministério da Saúde. O Programa Nacional de Doenças
Sexualmente Transmissíveis e Aids (PN-DST/Aids), criado em 1985, teve papel fundamental não apenas na redução da morbimortalidade por Aids, mas também na
liderança, coordenação e formulação de uma política de medicamentos que alterou a relação entre o governo e as multinacionais farmacêuticas e tornou possível,
mais tarde, a promulgação da lei de genéricos no país [9].
236 A análise aqui desenvolvida se baseia em um conjunto de entrevistas realizadas com atores que
estão ou estiveram envolvidos com a política de enfrentamento da Aids no Brasil, de produção e de
distribuição de ARVs, além de documentos, artigos de jornais e bibliografia especializada.
237 Sobre a Reforma Sanitária, consultar [6] e [7].
238 Não obstante as sucessivas mudanças ocorridas na assistência pública à saúde até sua desvinculação definitiva da Previdência Social, ela não era, até então, extensiva a toda população brasileira. Sobre
esse processo, consultar [8].
304
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
II. As respostas da sociedade civil e as ONGs/Aids
Os profissionais de saúde não foram os únicos atores responsáveis pela construção
do modelo brasileiro de combate à Aids e seus desdobramentos atuais. A participação da sociedade civil é tida como um dos pontos fortes da resposta brasileira à
epidemia. Ela compreende a participação, por vezes complexa e contraditória, de
Igrejas de diferentes credos, associações profissionais e filantrópicas, intelectuais,
juristas, jornalistas e outros. Mas, no caso da Aids, é sobretudo com as organizações
não governamentais (ONGs) que o termo “sociedade civil” é correntemente identificado. Em parte porque, enquanto Igrejas e demais grupos se dedicaram principalmente a atividades de assistência a pessoas vivendo com HIV/Aids, as ONGs/
Aids tiveram também um papel político, como grupo de pressão junto ao Estado e
de mobilização da sociedade junto à mídia, ganhando visibilidade como representantes da sociedade civil, em nome de quem atuavam.239 A categoria ONGs/Aids,
entretanto, é problemática, porque tende a incluir, sob um único título, o que constitui, de fato, uma variedade de respostas não governamentais à epidemia [10].
Como, a exemplo de outros países, a Aids no Brasil atingiu primeiramente os
homossexuais masculinos, grupos gays, como o Grupo Gay da Bahia e o Grupo
Somos, de São Paulo, estiveram na origem das primeiras reações à epidemia. Em
1985, uma das primeiras ONGs/Aids do Brasil, o Grupo de Apoio à Prevenção à
Aids (Gapa), surgiu como um movimento de luta para melhorar as condições de
tratamento e proteção contra a doença, desempenhando importante papel como
grupo de pressão e colaboração junto à Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. Outra ONG/Aids de destaque nesse período, congregando uma ampla gama
de profissionais e líderes comunitários, é a Associação Brasileira Interdisciplinar de
Aids (Abia), fundada no Rio de Janeiro, em 1986. A Abia, ao contrário do Gapa,
rejeitava declaradamente qualquer papel direto na proteção e tratamento de pessoas com HIV/Aids, o que considerava obrigação do Estado, concentrando suas
atenções na crítica às políticas – ou à inexistência de políticas – de governo nessa
área [11, 12]. Muito importante na área assistencial, mas principalmente por sua
atuação na área jurídica, e também formado no Rio de Janeiro, foi o Grupo pela
Valorização, Integração e Dignidade do Doente de Aids (Grupo pela Vidda), que
deu início ao movimento de ações judiciais em defesa dos direitos civis – relacionados à moradia, benefícios, assistência etc. – de pessoas com HIV/Aids. Essas ações,
apoiadas no direito universal à saúde, consagrado pela Constituição de 1988, eram
geralmente acatadas e deferidas pelo Judiciário, constituindo, assim, um poderoso
mecanismo de pressão em favor da ampliação da política de distribuição de medicamentos adotada pelo Ministério da Saúde [13, 14].
239 A primeira casa de apoio a pessoas vivendo com HIV/Aids, criada em 1984, foi a pensão para prostitutos masculinos mantida pelo travesti Brenda Lee, em São Paulo, que deu início às primeiras ações
assistencialistas naquela cidade, com apoio financeiro de “um grupo de senhoras da sociedade” [9].
Capítulo 17. O modelo brasileiro de combate à epidemia de Aids
305
Finalmente, cabe mencionar a mídia que, no nível da sociedade civil, teve grande importância no enfrentamento da Aids. Ao contrário das doenças mais comuns,
que atingem grande parte da população brasileira, muitos portadores do HIV/Aids
eram pessoas de classe média e alta, artistas, costureiros, cabeleireiros e outras pessoas com acesso direto ou capazes de despertar o interesse dos meios de comunicação de massa – rádio, televisão, jornais e revistas –, o que contribuiu enormemente para tornar a doença conhecida [15], bem como divulgar as ações das ONGs
e as decisões judiciárias favoráveis às pessoas vivendo com HIV/Aids [16].
III. A distribuição nacional de
medicamentos contra a Aids
Desde seu aparecimento até o final do governo Collor, em 1992, as ONGs/Aids, tanto as “assistencialistas” quanto as “políticas”, atuaram principalmente na oposição ao
governo, notadamente como grupos de pressão por atenção médica, prevenção e
tratamento da Aids. No período Collor, a então já poderosa coordenação do PN-DST/
Aids perdeu grande parte de seus funcionários, ao mesmo tempo em que os quadros
da burocracia estatal oriundos do Movimento Sanitarista e das ONGs/Aids experimentaram um refluxo em sua atuação. Mas é nesse período, especialmente polêmico
e tido por muitos atores como um retrocesso no combate à epidemia, que teve início
a compra para distribuição gratuita do AZT, o primeiro ARV aprovado para o tratamento do HIV/Aids – que já ocorria no estado de São Paulo, desde 1990 –, em escala
nacional [17]. Segundo o coordenador do PN-DST/Aids na época, essa distribuição
tinha por objetivo forçar a notificação e o controle da doença, pois era cada vez mais
evidente que a Aids apresentava características endêmicas e universais, isso é, passaria dos homo para os heterossexuais e dos homens para as mulheres e crianças.
Com a queda de Collor em 1992, a equipe de sanitaristas retorna ao PN-DST/Aids
e inaugura um novo tipo de relação com as ONGs, passando de uma atitude de total
independência para uma que procurava direcionar o poder de pressão e de mobilização dessas organizações em favor de suas políticas. As ONGs/Aids, por sua vez, de
uma oposição quase radical ao PN-DST/Aids durante os anos 1980 e início dos 1990,
passaram a assumir uma posição ao mesmo tempo ainda crítica, mas também de colaboração. Voltaram a integrar a recriada Comissão Nacional de Aids e a participar,
como consultores, do projeto de financiamento de ações contra a Aids do Banco Mundial, que permitiu ao Ministério da Saúde repassar recursos para projetos das ONGs.
Esses recursos do Banco Mundial tornaram mais efetivas as ações das ONGs/
Aids em diferentes esferas e estimularam uma notável proliferação desse tipo de
306
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
organização.240 Mais ainda: na opinião de alguns ativistas e analistas, a ênfase quase exclusiva em projetos tendeu a limitar e mesmo esvaziar a atuação política, que
havia marcado a atuação das primeiras ONGs/Aids [10, 11, 19]. Por outro lado, as
ações visando à atenção médica e à distribuição de medicamentos, vistas como
onerosas e pouco eficazes, não eram consideradas prioritárias para o Banco Mundial.241 Grande parte do financiamento era, assim, destinada a atividades de prevenção, o que explica, em parte, o distanciamento das ONGs/Aids dos primeiros
embates travados pelo governo brasileiro com os laboratórios multinacionais para
garantir a distribuição de ARVs.
De qualquer forma, a compra para distribuição gratuita de medicamentos pelo
Ministério da Saúde se tornava irreversível, bem como os custos do PN-DST/Aids,
que, além de conviver com o crescimento da demanda, se viu obrigado a enfrentar
novas pressões sobre os preços dos medicamentos, que se tornaram excessivamente elevados com a entrada em vigor da nova lei de patentes, em 1997, antes
de o mercado poder contar com os genéricos brasileiros e indianos.
IV. A Lei de Patentes e a Lei Sarney: entraves
e soluções na distribuição de ARVs
A abertura da economia iniciada no governo Collor (1990-1992) criou um ambiente favorável à pressão internacional pela ampliação do escopo da patenteabilidade
na legislação brasileira, em especial para produtos farmacêuticos. A Organização
Mundial do Comércio (OMC), criada em 1995 para regular o comércio internacional, colocou como condição de filiação a adesão a diversos acordos, como aquele
sobre os aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio (Trips). Dessa forma, o Brasil e demais países interessados em se filiar à OMC deveriam revisar suas leis de propriedade intelectual, conformando-as aos preceitos
do Trips, o que implicava, dentre outras coisas, concessão de direitos de patente a
todas as áreas tecnológicas. O Brasil, que, desde 1945, não reconhecia patentes de
produtos farmacêuticos, se viu obrigado a estender a possibilidade de patenteamento a todos os tipos de medicamentos e produtos terapêuticos, inclusive, por
consequência, àqueles usados no tratamento do HIV/Aids.
240 Em 1993, o PN-DST/Aids aprovou 75 projetos, no valor total de US$4 milhões, submetidos por
ONGs/Aids, organizações religiosas, grupos feministas, sindicatos e uma variedade de outras organizações da sociedade civil [18]. Já em 1995, de acordo com algumas estimativas, o número de ONGS/Aids,
antes estimadas em cerca de 30, havia crescido para 400 organizações [10]. E, no final da década de
2000, o PN-DST/Aids registrava 698 ONGs/Aids.
241 No entendimento do Banco Mundial, um sistema de saúde baseado na distribuição gratuita de
medicamentos poderia levar a um desastre nas contas públicas no país [20].
Capítulo 17. O modelo brasileiro de combate à epidemia de Aids
307
Em comparação com a de outros países, a nova Lei de Patentes brasileira (lei
9.279 de 1996) é tida como bastante liberal. Dentre outros dispositivos, ela antecipou em 10 anos o período de transição previsto pelo Acordo Trips para a inclusão
de medicamentos no rol de bens patenteáveis, prazo de que a Índia e a China, ao
contrário, souberam se aproveitar. Também permitiu o reconhecimento retroativo
de patentes, isso é, aquelas requeridas no exterior até cinco anos antes da entrada
em vigor da lei brasileira, dispositivo que ficou conhecido como pipeline. Por outro
lado, a lei prevê, em seu artigo 68, a possibilidade de licenciamento compulsório
de uma patente registrada no Brasil, em casos de abuso de poder econômico (práticas anticompetitivas), quando o produto não é fabricado em território brasileiro
até três anos após a concessão de sua patente, ou ainda por interesse público.
Essa lei entrou em vigor num momento em que crescia enormemente a pressão
por medicamentos no âmbito do Judiciário, a ponto de os recursos orçamentários
para a compra de ARVs e as normas para sua aquisição e distribuição terem sido assegurados pelo Decreto n. 9.313 (de 1996), conhecido como Lei Sarney. Esse decreto garantiu a todos os pacientes vivendo com HIV/Aids o direito ao acesso gratuito
a toda medicação necessária e determinou que os critérios para essa distribuição
seriam estabelecidos pelo Ministério da Saúde. Para a definição desses critérios, foi
constituído um comitê assessor, formado por especialistas no tratamento da doença, a chamada Comissão do Consenso Terapêutico, que viria a definir os protocolos
de tratamento.
No curto prazo, a lei Sarney contribuiu para pressionar mais ainda o orçamento do Ministério da Saúde. Por um lado, pela ampliação da demanda por medicamentos; por outro, pela qualificação dessa demanda, a partir das recomendações
da Comissão do Consenso Terapêutico por terapias de diferentes complexidades,
algumas incluindo medicamentos de última geração, patenteados e, portanto, sujeitos aos preços praticados pelas multinacionais. Em 1997, quando teve início a
disponibilização dos inibidores de protease, o número de pacientes em tratamento
aumentou em cerca de 26.000 pessoas. Em 1998, esse crescimento foi de cerca
de 14.000 e, em 1999, de 19.500 pacientes. Em 2002, cerca de 90.000 pacientes
recebiam ARVs na rede pública de saúde. Esses pacientes se concentravam, principalmente, nas regiões mais desenvolvidas, com maior capacidade de pressão e
maior acesso a serviços de saúde.242 Os gastos do Governo Federal com aquisição
de medicamentos, que, em 1996, havia consumido cerca de US$35 milhões, passaram para US$224 milhões em 1997, US$305 milhões em 1998 e US$335 milhões
em 1999. Entre 1997 e 1998, ainda foram instituídos os exames de diagnóstico CD4
e carga viral243 [17].
242 70% na Região Sudeste – com destaque para os estados de São Paulo (44%) e Rio de Janeiro (20%)
–, 17% na Região Sul, 7% no Nordeste, 4% no Centro-Oeste e 2% na Região Norte.
243 Ao contrário da expectativa do Banco Mundial, que estimou, no início dos anos 1990, que, em torno
do ano 2000, 1,2 milhão pessoas poderiam estar vivendo com HIV/Aids no Brasil, uma previsão recente
308
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Diante dessas múltiplas pressões, técnicos do Ministério da Saúde e do PNDST/Aids decidiram investir na fabricação local de medicamentos, contando com
os laboratórios públicos nacionais [21, 22]. Esses laboratórios se tornaram componentes estratégicos para a execução da política de medicamentos do Ministério da
Saúde, notadamente Farmanguinhos, que passou a desenvolver os produtos que
já eram comercializados no país em 1996 e, assim, não poderiam ser patenteados.
Farmanguinhos assumiu papel muito importante também na troca e difusão de
tecnologia entre laboratórios oficiais, se consolidou como referência para o monitoramento de preços do Ministério da Saúde e para o enfrentamento dos laboratórios multinacionais, no que ficou conhecido na mídia como “guerra das patentes”.
O que melhor ilustra essa “guerra” foram os repetidos conflitos entre, de um
lado, o PN-DST/Aids e o Ministério da Saúde e, de outro, as firmas farmacêuticas
internacionais, conflitos ligados às negociações de preços de medicamentos, que
contavam sempre com a ameaça de licenciamento compulsório, em caso de fracasso das negociações [1]. Em 1999, 47% dos medicamentos contra a Aids foram
adquiridos de empresas nacionais (93% de laboratórios oficiais e 7% de privados) e
os 53% restantes, de multinacionais, correspondendo, respectivamente, a 19% e a
81% dos gastos com ARVs [20]. À medida que a produção local de medicamentos
contra Aids aumentou, esses gastos encolheram. Mas o processo foi freado e invertido com o início da distribuição de novos ARVs patenteados, lançados no mercado
após 1996, necessários ao combate de formas resistentes da infecção e que não
poderiam ser produzidos no país, salvo sob licença compulsória. Com base no Decreto 3.201 de 1999 da Presidência da República – que torna possível a concessão
de licença compulsória nos casos de emergência nacional e de interesse público,
de que fala o artigo 71 da lei de patentes –, o Ministério da Saúde ameaçou licenciar compulsoriamente dois medicamentos, o Nelfinavir, da Roche, e o Efavirenz, da
Merck. A licença não foi levada a termo, pois os laboratórios envolvidos se anteciparam e reduziram o preço dos medicamentos em questão, mas a simples ameaça
produziu um efeito em cascata sobre outros laboratórios, levando a uma redução
generalizada dos preços dos ARVs. No total, o custo do tratamento ARV individual
caiu de US$6.240, em 1997, para US$2.210, em 2001 [23].244
Esse episódio suscitou uma forte reação dos Estados Unidos, que, em 2001,
requereram à OMC um painel de arbitragem questionando a aplicação da lei de
patentes brasileira. O painel, entretanto, foi retirado, ainda em 2001, devido à reação negativa de outros países [24]. No final do ano, na Conferência Ministerial da
OMC, foi aprovada, contra a vontade dos Estados Unidos, a Declaração de Doha,
reavaliou esse número para 500 mil pessoas [9]. Esse quadro favorável tem sido atribuído, por diversos
autores, ao acesso à triterapia.
244 Essa tendência de queda se verificou até 2004, quando o custo do tratamento ARV individual atingiu US$1.336, voltando a subir, em 2005, para 2.500, em função da introdução progressiva de mais
drogas patenteadas no coquetel distribuído, ameaçando, com seus altos preços, a sustentabilidade do
programa de distribuição de medicamentos [25].
Capítulo 17. O modelo brasileiro de combate à epidemia de Aids
309
defendida pela delegação brasileira e que preconizava o acesso a medicamentos
para pessoas vivendo com HIV/Aids como uma questão de saúde pública e direito
humano fundamental.
Com exceção da mídia, que deu ampla cobertura a essa disputa [16], os principais segmentos da sociedade civil participaram ainda de forma incipiente e, por
vezes, contraditória das ameaças de quebra de patente de ARVs pelo governo brasileiro. Alguns médicos atuantes no setor consideram essas tentativas meras peças
ficcionais que desencorajavam as multinacionais a investirem no país; outros, como
uma estratégia de redução de preços, insuficiente para coibir a atuação das empresas contra a saúde pública. Algumas ONGs/Aids participaram mais de perto da
discussão sobre licença compulsória, muitas vezes capitaneadas por associações
internacionais, sobretudo Oxfam e Médicos sem Fronteiras (MSF), tendo sido inicialmente mobilizadas pelo próprio Ministério da Saúde e pelo PN-DST/Aids. A visão
das ONGs/Aids brasileiras nesse período ainda era, segundo o presidente de MSF,
a visão tradicional que marcou a prática dessas organizações: a de que a saúde era
dever do Estado e de que o papel das ONGs era principalmente o de pressionar
para cumprir sua função. Nesse processo, entretanto, o tema das patentes acabou
sendo pouco a pouco politizado pelas ONGs/Aids, dando origem à constituição, em
2001, do Grupo de Trabalho Propriedade Intelectual (GTPI), coordenado pela Abia
e voltado especificamente para a discussão desse tema [5, 26]. Essa é uma nova
modalidade de luta política, que se dá em um cenário cada vez mais desfavorável.
A introdução de mais drogas patenteadas no tratamento da Aids no Brasil fez seus
custos progredirem de uma média de US$1.336 por paciente por ano, em 2004, para
2.500, em 2005 [27]. Essa ameaça à sustentabilidade do programa de distribuição
de medicamentos levou o PN-DST/Aids a elaborar, em 2005, novo decreto para o
licenciamento compulsório de dois ARVs. Esse processo foi também interrompido
por uma negociação de preços considerada favorável pelo governo [28], mas que
foi alvo de duras críticas de ONGs e de técnicos do próprio PN-DST/Aids.
V. Politização da Propriedade Intelectual
no Brasil: a criação do GTPI
A inclusão da problemática das patentes farmacêuticas nas agendas de ativistas
mobilizados contra o HIV/Aids no Brasil, que, durante muito tempo, foi empreendida quase exclusivamente por associações internacionais, começou a se adensar
por volta da virada do século. Em novembro de 2000, no Fórum Comunitário América Latina e Caribe sobre HIV/Aids, ONGs brasileiras e internacionais reunidas solicitaram formalmente aos Estados Unidos que evitassem levar reclamações contra
a lei de patentes brasileira à OMC. Em 5 de março de 2001, dia do julgamento de
310
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
uma ação movida por multinacionais farmacêuticas contra a África do Sul, cuja legislação autorizava o governo a importar ou produzir genéricos em situações de
emergência – no caso da Aids, a importar ARVs genéricos brasileiros ou indianos
–, foi decretado um Dia Global de Ação. Assim, em São Paulo, ativistas brasileiros
organizaram passeata em frente ao consulado dos Estados Unidos, protestando
em nome da prevalência dos direitos de saúde sobre os direitos de propriedade intelectual. Em maio do mesmo ano, evento semelhante ocorreu, dessa vez também
diante do consulado dos Estados Unidos em Recife, durante o Encontro Nacional
de ONGs/Aids, com a mobilização de mais de 250 associações. No mês seguinte, junho de 2001, nova passeata, também em frente ao consulado dos Estados Unidos
e protestando contra abusos econômicos relacionados a patentes, reuniu ONGs/
Aids no Rio de Janeiro. Ao final desse ano, na Conferência Estadual de Saúde de São
Paulo, o Fórum de ONGs/Aids desse estado apresentou uma moção ao governo
solicitando que a Lei de Propriedade Intelectual brasileira fosse revisada à luz da
recente Declaração de Doha, segundo a qual os países membros da OMC devem
tomar medidas a fim de proteger seus interesses de saúde pública.245
Embora essas manifestações não fossem de fato coordenadas e provavelmente
apresentassem sentido político ainda difuso, começava a despontar no País uma
mobilização associativa mais ampla em torno do problema das patentes de medicamentos, que transborda, inclusive, para manifestações na mídia: em editorial
publicado em maio de 2001,246 Mário Scheffer, do Grupo pela Vidda, elogiou a inclusão pela ONU do acesso a medicamentos como direito universal e atacou frontalmente a indústria farmacêutica e sua defesa inveterada das patentes, alegando
que grande parte dos investimentos em pesquisa de novas drogas é invariavelmente feita em universidades e redes públicas de saúde. Foi de Scheffer a primeira
voz a se levantar criticamente contra a decisão – “tímida e temerária” – do Ministério da Saúde de não levar a cabo a quebra das patentes do Efavirenz e do Nelfinavir,
em favor de uma negociação junto aos laboratórios produtores.
Ainda nesse ano, um evento de suma importância teve lugar, fornecendo uma
consolidação formal à crescente presença de temas ligados à propriedade intelectual de medicamentos nas pautas de ONGs brasileiras e internacionais: a criação
do Grupo de Trabalho Propriedade Intelectual (GTPI), filiado à Rede Brasileira pela
Integração dos Povos (Rebrip).247 A ideia da criação do GTPI surgiu após uma série
245 Fonte: palestra de Jorge Beloqui, do Grupo de Incentivo à Vida (GIV), em conferência organizada por
MSF para discutir os 10 anos do acordo Trips, em 2004.
246 Folha de São Paulo, 11/05/2001.
247 A Rede Brasileira Pela Integração dos Povos (Rebrip), criada em 1998, funciona como uma rede de
articulação de ONGs, movimentos sociais, entidades sindicais e associações profissionais autônomas
e pluralistas, que atuam sobre os processos de integração regional e comércio, a construção de uma
sociedade democrática, e o desenvolvimento econômico, social, cultural, ético e ambientalmente sustentável, buscando alternativas de integração opostas à lógica da liberalização comercial e financeira
predominante nos acordos econômicos internacionais.
Capítulo 17. O modelo brasileiro de combate à epidemia de Aids
311
de reuniões convocadas pela Oxfam e por MSF na sede carioca da ActionAid,248 em
maio de 2001, em que diversas ONGs foram convocadas a discutir como atuar no
campo da regulação e da propriedade intelectual de medicamentos [29]. As entidades que, a partir de então, animam o GTPI formam um grupo diversificado, reunindo, dentre outros, ONGs que tradicionalmente militaram no campo da Aids, em
defesa da distribuição de medicamentos: seis ONGs/Aids brasileiras (Abia, Gapa/
SP, Gapa/RS, Gestos, GIV e Grupo pela Vidda), duas grandes organizações internacionais trabalhando na área da saúde (MSF e Oxfam) e quatro ONGs de direitos humanos, de defesa da democracia ou do consumidor (Conectas, Instituto de Estudos
Socioeconômicos (Inesc), Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) e Intervozes.
Assim, a atuação do GTPI acabou por adquirir um caráter marcadamente nacional. Afinal, enquanto temas como a regulação do comércio internacional em
agricultura ainda estavam em plena negociação nas instâncias internacionais, a
regulação da propriedade intelectual, no entender de representantes do GTPI, já
havia sido negociada e definida na OMC com o acordo Trips. Dessa forma, o GTPI
busca se aproximar dos inescapáveis condicionantes da produção local de medicamentos, seus limites e possibilidades [26, 30].
As atividades do GTPI incluem: acompanhar questões relacionadas à propriedade intelectual, suas negociações em acordos comerciais; pressionar e sensibilizar autoridades e o público em geral a esse tema; lutar contra práticas entendidas
como abusivas, tais como a concessão de patente de segundo uso. O GTPI também
procura buscar interlocuções com outros atores de relevo para o campo da regulação de medicamentos, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa),
o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e parlamentares que proponham projetos de lei versando sobre propriedade intelectual e/ou Aids, a fim de
influenciá-los e participar dos processos que movem [30].
Em 2002, provavelmente em resposta a uma suposta insatisfação do governo
brasileiro com a historicamente tímida mobilização da sociedade civil em torno das
discussões sobre regulação de medicamentos, o GTPI encomendou uma pesquisa
sobre as propostas de propriedade intelectual nas negociações de criação da Área
de Livre Comércio das Américas (Alca). Com base nos resultados dessa pesquisa, o
grupo procurou o Ministério das Relações Exteriores, a fim de sensibilizar a classe
política ao impacto da legislação patentária sobre a saúde e ao fato de que os Estados Unidos pretendiam acirrar as normas de patentes. O GTPI, a partir de então,
assumiu a intenção de incluir, entre suas frentes de mobilização, a manutenção de
canais diretos com o governo, a fim de criar instrumentos para pressionar, criticar e
estabelecer ações conjuntas e estratégias. Mais uma vez, se assistiu à formação de
alianças entre governo e ONGs “políticas”, sendo que, dessa vez, alguns ativistas da
248 Novo episódio que ratifica o papel de estruturação do campo desempenhado por algumas organizações internacionais.
312
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
Abia chegaram a ingressar nos quadros burocráticos do Estado, atuando no interior do próprio governo, em cargos na direção do PN-DST/Aids.
A partir de agosto de 2003, denotando a grande relevância que o tema das
patentes ganhava no campo do Aids, o GTPI passou a ser coordenado na Abia, que,
repetindo a experiência do Grupo pela Vidda no início da epidemia, montou na
organização um setor jurídico especializado em patentes de medicamentos. A presença, nessa ONG e no GTPI, de profissionais familiarizados com propriedade intelectual e mobilizados segundo os objetivos das organizações, implica, ao menos
potencialmente, uma capacidade de atuação técnica mais efetiva. Especialmente
se levarmos em consideração que, por volta dessa mesma época, a Abia e o GTPI
também passaram a contar, em seus quadros, com a contribuição de uma profissional de química farmacêutica [30]. Se os objetivos do grupo foram mantidos, a
presença de ativistas familiarizados com os mais relevantes saberes para discutir o
tema das patentes de medicamentos – o conhecimento jurídico e o conhecimento
químico – pode ser vista como marco de um novo momento de atuação, senão do
conjunto de ONGs brasileiras, ao menos das ONGs mais experientes na luta contra
a Aids e notadamente da Abia.
Em março de 2004, um seminário internacional foi organizado, em São Paulo, para discutir os “10 anos de Trips: em busca da democratização do acesso à
saúde”.249 O conjunto de organizadores do evento é, em si, indicativo do adensamento desse tema entre a sociedade civil: MSF, Oxfam, GTPI, Abia, GIV, além do
Instituto de Direito do Comércio Internacional e Desenvolvimento (Idcid, também
uma ONG) e da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Reunidos, ONGs, representantes do governo e especialistas, do Brasil e de outros países,
discutiram propostas para evitar que as patentes continuassem a ser uma das principais barreiras para o acesso a medicamentos. Ativistas, advogados, estudantes,
parlamentares e representantes de agências reguladoras foram incitados a debater
como proteger a saúde pública, sem necessariamente desrespeitar as regras do
Trips, isto é, buscando interpretações possíveis do acordo, explorando suas flexibilidades e as previstas pela Declaração de Doha, de modo a encontrar um equilíbrio
entre direitos de propriedade intelectual e direitos dos pacientes.250
249 Poucos meses antes, em 1º de dezembro de 2003, dia mundial da Aids, a OMC havia lançado a iniciativa 3 by 5, isso é, o compromisso de levar terapia ARV a 3 milhões de pessoas em 50 países até 2005.
O objetivo pressupunha padronização das formas de prescrição medicamentosa e desenvolvimento de
infraestrutura de saúde. Apesar de ter sido um marco e de ter impulsionado, em 2006, a iniciativa all by
2010 (ARV para todos até 2010, também da OMC), avaliações feitas em 2005 mostravam que o programa
não havia atingido seus objetivos, chegando, nos melhores casos, a 50% da meta.
250 Fonte: entrevista com Michel Lotrowska.
Capítulo 17. O modelo brasileiro de combate à epidemia de Aids
313
VI. Estratégias de intervenção:
informar para mobilizar
Convencidas da desinformação generalizada sobre a problemática da regulação e
da produção de medicamentos, algumas ONGs decidiram por em prática a estratégia de informar para mobilizar. Passaram, assim, a criar ferramentas para a propagação de informação e conhecimento críticos sobre a lei brasileira de propriedade
intelectual, a fim de sensibilizar e mobilizar diferentes atores sociais em torno de
debates sobre as patentes de medicamentos.
Com o apoio da OMS e da Unicef, o MSF publicou 10 edições de seu Guia de
preços para a compra de ARVs para os países em desenvolvimento, resposta à falta
de informações claras e confiáveis sobre os preços dos produtos farmacêuticos no
mercado internacional, fator que, no entender de MSF, dificultava significativamente o acesso a medicamentos essenciais, especialmente nos países em desenvolvimento. Com esse guia, MSF pretendia conscientizar e mobilizar contra os abusos
econômicos advindos da pouquíssima concorrência que enfrentam as multinacionais produtoras de ARVs. Em 2006, a Abia e o GTPI produziram uma cartilha intitulada Patentes farmacêuticas: porque dificultam o acesso a medicamentos?. O objetivo
declarado era o de levar ao maior número possível de leitores informações sobre
propriedade intelectual e medicamentos, de modo a reforçar um debate público
sobre a questão e mobilizar politicamente a sociedade civil organizada para acompanhar criticamente e intervir nas políticas públicas relacionadas ao tema e à luta
por acesso à saúde. Em tom emblemático, a cartilha afirma que “Estamos seguros
que a informação constitui um dos instrumentos mais eficazes para enfrentarmos
os desafios impostos pela epidemia de HIV/Aids” [31].
Os mesmos grupos lançaram, também em 2006, outra cartilha – Patentes: por
que o Brasil paga mais por medicamentos importantes para a saúde pública? – alertando para o fato de que a proteção patentária, na sua essência, gera direitos de
exclusividade para empresas farmacêuticas, reforçando uma virtual situação de
monopólio e, logo, o aumento de preços dos medicamentos. Diante desse cenário
e com essas estratégias, grupos e instituições da sociedade civil organizada têm
questionado o sistema de patentes proposto e praticado no País, alegando que, na
prática, ele favorece apenas os detentores das patentes [26].
314
Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
VII. Estratégias de intervenção: produção
e inovações terapêuticas
Também passou a fazer parte das estratégias de ativistas o debate sobre a produção e inovações terapêuticas. Um dos temas que ocupou espaço nas pautas
de discussão de entidades como a Abia e o GTPI foi a possibilidade de produzir
uma combinação de ARVs em dose única, o que tende a facilitar a adesão ao tratamento. Passando da mera discussão à prática, o MSF se aproximou do PN-DST/
Aids e de Farmanguinhos e financiou a P&D de uma combinação em dose única de
três ARVs (AZT, 3TC e Nevirapina).251 O MSF propunha ainda novos arranjos para
o sistema de produção local de medicamentos, de modo a otimizar a capacidade
dos laboratórios nacionais e burlar as deficiências da indústria farmacêutica: em
linhas gerais, a pesquisa fundamental deveria ser realizada nas universidades e a
pesquisa aplicada, articulada com a indústria privada. Dessa forma, seria quebrado
o chamado isolamento da Academia – vista como voltada apenas para publicações
– e se estudariam aquelas mazelas de saúde que, por não oferecerem mercado
atraente, deixam de suscitar o interesse de P&D dos grandes laboratórios privados
– as chamadas doenças negligenciadas –, o que permitiria montar um sistema de
produção de drogas mais eficiente e humanitário.
Em 2006, a Abia, por sua vez, encomendou uma avaliação sobre a capacidade
brasileira de produção de medicamentos, A produção de ARVs no Brasil: uma avaliação, realizada por um químico brasileiro e outro dos EUA, e baseada num estudo
sobre quatro grandes laboratórios farmacêuticos nacionais: dois públicos (Farmanguinhos e o Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco (Lafepe) e dois
privados (Cristália e Nortec). A conclusão do estudo confirma e fundamenta a opção política adotada pelo Ministério da Saúde desde a década de 1990 e assumida
por ONGs a partir de 2001. Fica clara a disposição de lutar pela produção local de
ARVs, mostrando que, contrariamente a alguns usuais prognósticos do setor privado, “O Brasil está atualmente capacitado para fabricar no país um volume muito
significativo dos princípios ativos necessários para os medicamentos ARVs. As empresas brasileiras teriam, com investimentos modestos, capacidade para expandir
sua produção a fim de se adequar às necessidades nacionais.” [33].
De fato, em 2004, militantes da Abia e do GTPI já se mostravam convencidos de
que o desenvolvimento de novas drogas poderia ficar bem mais restrito e que a
sustentabilidade financeira do PN-DST/Aids e toda a política de medicamentos estavam ameaçadas. Esses ativistas defendiam a importância de os países em desen-
251 A iniciativa seria inviável no setor privado, pois as patentes dos três ARVs pertencem a três laboratórios multinacionais diferentes; em contrapartida, como Farmanguinhos já produzia versões genéricas
dos três, o desenvolvimento de uma fixed dose combination (FDC) ou dose única dependeria apenas de
um rearranjo nas linhas de produção, que o MSF pretendia estimular e financiar [32].
Capítulo 17. O modelo brasileiro de combate à epidemia de Aids
315
volvimento utilizarem imediatamente as salvaguardas previstas no Trips, como o
licenciamento compulsório e a importação paralela, a fim de criarem mecanismos
legais que permitissem, no futuro, o desenvolvimento de uma tecnologia nacional
ou a compra a preços razoáveis de produtos que o Brasil não produz. Os militantes também reclamavam que a possibilidade de licenciamento compulsório ainda
era usada apenas como moeda de barganha nas negociações com as companhias
farmacêuticas internacionais. E que as reduções de preços oferecidas eram muito
tímidas diante do que poderia ser obtido caso o Brasil estivesse produzindo localmente, o que, para a maioria dos medicamentos essenciais, incluindo os ARVs, só
seria possível com o licenciamento compulsório ou voluntário das patentes desses
medicamentos [30].
A defesa da licença compulsória se tornou, assim, bandeira entre ativistas da
Aids. Bandeira que pressupõe a aquisição de conhecimentos específicos sobre patentes e o uso político desse conhecimento, baseado na ideia da importância da
promoção da saúde pública, em detrimento de todos os outros interesses que as
patentes possam promover. Entretanto, nos três momentos em que ameaçou e se
preparou para emitir uma licença compulsória de ARVs, o governo brasileiro voltou atrás e fechou acordos largamente entendidos como desvantajosos. As ONGs
defensoras da licença compulsória protestaram e criticaram, alegando que, se o
Brasil não lançasse mão das salvaguardas possíveis, o parque industrial do país e
sua capacidade técnica e humana eventualmente ficariam defasados e, nesse momento, a produção local de genéricos não poderia ser usada sequer como “blefe”
de negociação. De um modo geral, cresceram gradualmente, ao longo das ameaças malogradas de 2001, 2003 e 2005, essa insatisfação e a convicção de que a
continuidade da distribuição de ARVs dependia da garantia de que esses e todos
os novos medicamentos pudessem ser produzidos localmente [34]. Em outubro
de 2005, após várias ameaças, o governo brasileiro optou por um acordo com o
laboratório Abbott que reduzia em 46,15% o preço do Kaletra, uma das drogas
mais caras do coquetel anti-Aids. Tal acordo, entretanto, provocou desagrado entre
ativistas de luta contra a Aids do país, pelo fato de se ter aberto mão da transferência de tecnologia, por se ter excluído a sociedade civil das negociações e pelo
desrespeito à resolução do Conselho Nacional de Saúde, que havia recomendado
o licenciamento compulsório de três ARVs, entre eles o Kaletra.252
252 Representantes do GTPI afirmaram, na ocasião, estarem surpreendidos e indignados com o fato de
que novamente tenham tomado conhecimento pela imprensa de que um novo acordo com o Abbott
estava prestes a ser assinado. “[O Ministério da Saúde] realizou a negociação às escondidas e sob termos que a sociedade civil e até o próprio governo desconhece. O caráter de pessoalidade que marca as
negociações configura o descaso com a vida de milhares de brasileiros que dependem do sucesso e da
manutenção do Programa Nacional de Aids (...), uma postura inaceitável, autoritária e inconstitucional”.
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Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
VIII. Estratégias de intervenção: subsídios ao exame
Ativistas da Aids no Brasil não se limitaram a lutar pela licença compulsória de produtos já patenteados. Outra das frentes de intervenção privilegiadas diz respeito a
um momento anterior, ou seja, o próprio processo ainda não finalizado de concessão de patente, por meio de subsídios ao exame.
Em 1º de dezembro de 2006, Dia Mundial de Luta contra a Aids, ativistas do
GTPI e algumas das mais eminentes ONGs brasileiras e internacionais mobilizadas
em torno da epidemia convocaram uma conferência de imprensa, em que se discutiram temas como “o contexto atual de preços de medicamentos antirretrovirais”.
Ao final da conferência, os ativistas reunidos dirigiram-se à sede do INPI, com o objetivo de depositar dois documentos de subsídio ao exame para dois ARVs usados
no tratamento de pessoas vivendo com HIV/Aids, o Kaletra e o Tenofovir, drogas
cujos pedidos de patente ainda tramitavam no INPI.253
Os documentos de subsídio ao exame apresentados se valiam de uma possibilidade jurídica, prevista pela lei brasileira de patentes de 1996, segundo a qual quaisquer interessados podem apresentar informações aos órgãos pertinentes, com
vistas a subsidiar o exame de pedidos de patentes em processo. Elaborados por
um grupo que incluía advogados, químicos e economistas, os documentos abriam
com considerações gerais sobre a importância do uso desses dois medicamentos
e a centralidade da problemática das patentes na questão do acesso às drogas
anti-HIV/Aids, argumentando ser “fundamental que apenas os medicamentos que
efetivamente cumpram os requisitos legais de patenteabilidade recebam proteção patentária”. Dentre os diversos argumentos contrários à concessão de patente
ao Tenofovir, se destacam os de natureza técnica sobre química farmacêutica: “o
composto ora reivindicado não constitui um salto inventivo para o tratamento de
paciente infectado pelo HIV, uma vez que propõe-se apenas a formação de um sal
de uma estrutura biologicamente ativa já conhecida e que não apresenta qualquer
aspecto de novidade para um técnico no assunto, pois pode ser obtido por práticas
usuais empregadas em síntese orgânica.” Com base nessas evidências, o documento conclui que “o presente pedido de patente de invenção não apresenta qualquer
atividade inventiva, devendo ser indeferido por este Instituto [o INPI] [29].”
Em virtude de movimentos como esse, liderados tanto pela sociedade civil
organizada quanto pelo Estado, a patente do Tenofovir foi negada nos EUA, em
janeiro de 2008, e, mais tarde, no Brasil, em setembro do mesmo ano. Trata-se de
iniciativa que atualiza uma prática mais antiga, verificada em outros países, como
253 Nesse evento, um dos representantes do MSF afirmou que, “anteontem, a Tailândia emitiu a licença
compulsória sobre o Efavirenz [um dos ARVs], infelizmente, a gente esperava que fosse o Brasil, mas a
Tailândia teve mais coragem que os nossos ministros, os tigres sem dentes (que ameaçaram e nunca
emitiram). A Tailândia emitiu a licença compulsória e vai comprar da Índia até conseguir ter o produto
pronto para produzir localmente”.
Capítulo 17. O modelo brasileiro de combate à epidemia de Aids
317
a “oposição ao exame”, recurso legal e recorrente na agência de patentes da União
Europeia. E constitui, provavelmente, a manifestação formalizada que melhor ilustra o grau de sofisticação que os argumentos e as posições associativas acabaram
por assumir nos debates sobre regulação de medicamentos.
IX. Conclusão
Como em outros países, a participação da sociedade civil – médicos, juristas, jornalistas, empresários e, sobretudo, as ONGs/Aids – foi fundamental na construção
do modelo brasileiro de enfrentamento da epidemia de Aids, que alia prevenção e
tratamento e inclui a distribuição gratuita, a nível nacional, de medicamentos ARVs.
Esse modelo enfrentou numerosos obstáculos, notadamente uma forte disputa
com os laboratórios multinacionais fabricantes de ARVs, a maioria patenteados, em
busca de preços mais razoáveis. Disputa que envolveu a fabricação de medicamentos genéricos pelos laboratórios públicos brasileiros e, com base em artigo especial
da lei brasileira de patentes, a ameaça de licença compulsória desses medicamentos pelo governo brasileiro. A participação das ONGs/Aids nesse processo se deu,
inicialmente, na assistência prestada aos doentes e como grupo de mobilização e
de pressão junto ao Estado por prevenção e tratamento. A visão tradicional que
marcou a prática dessas organizações era, como consagrado na Constituição de
1988, a de que a saúde é dever do Estado e de que o papel das ONGs era, principalmente, o de pressioná-lo para cumprir sua função. Entretanto, a ameaça à sustentabilidade do programa governamental de distribuição de medicamentos, face ao
problema colocado pela aquisição de ARVs protegidos por patentes, levou ONGs/
Aids brasileiras a uma mudança de posição. Nesse processo, e sob a influência de
ONGs internacionais que atuam nessa área, pouco a pouco, o tema das patentes
acabou sendo politizado, dando origem à constituição, em 2001, do GTPI, voltado
especificamente para a discussão do tema. Colocando em prática estratégias variadas, como a busca e a disseminação de informações sobre patentes e produção de
medicamentos e o uso político dos subsídios ao exame dos pedidos de patentes,
as ONGs/Aids, juntamente com outros setores da sociedade civil, notadamente os
juristas e a mídia, entraram decisivamente nas disputas por credibilidade e legitimidade na construção de conhecimentos, posicionamentos e políticas sobre a epidemia. E, dessa forma, continuam a exercer um papel fundamental na preservação
do modelo de luta contra a Aids no País.
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Propriedade Intelectual e Políticas Públicas
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Lista de autores
Adelaide Maria de Souza Antunes
Instituto Nacional de Propriedade Industrial
Rio de Janeiro/RJ, Brasil
E-mail: [email protected]
Andreia Pereira de Assis
Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas – EBAPE
Fundação Getúlio Vargas
Rio de Janeiro/RJ, Brasil
E-mail: [email protected]
Andressa Gusmão
Sistema de Informação sobre Industria Química,
Escola de Química/Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro/RJ, Brasil
E-mail: [email protected]
Benjamin Coriat
Université Paris 13, CEPN-IIDE, UMR CNRS 7234
Villetaneuse, France
E-mail: [email protected]
Bernard Larouzé
Escola Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ
Rio de Janeiro, Brasil et INSERM U707/Université Pierre et Marie Curie
Paris, France
E-mail : [email protected]
Bruno Spire
Association AIDES
Pantin et SESSTIM, UMR 912 INSERM-IRD-Université Aix-Marseille
Marseille, France
E-mail : [email protected]; [email protected]
Camelia Protopopescu
SESSTIM, UMR 912 INSERM-IRD-Université Aix-Marseille
Marseille, France
E-mail : [email protected]
Cassandra Sweet
Instituto de Ciencia Política, Pontificia
Universidad Católica
Santiago, Chile
E-mail: [email protected]; [email protected]
Constance Marie Milward de Azevedo Meiners-Chabin
Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais
Ministério da Saúde
Brasília, Brasil
E-mail: [email protected]
Cristina d’Almeida
Université Paris 13, CEPN-IIDE, UMR CNRS 7234
Villetaneuse, France
E-mail : [email protected]
Cristina de Albuquerque Possas
Programa de Pós-Graduação Stricto-Sensu de Pesquisa Clínica em Doenças
Infecciosas (Mestrado e Doutorado)
Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas -IPEC
Fundação Oswaldo Cruz
E-mail: [email protected]
David Zombre
SESSTIM, UMR 912 INSERM-IRD-Université Aix-Marseille
Marseille, France
Emily Anna Catapano Ruiz
Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids (CRT-DST/AIDS)
Secretaria de Estado da Saúde
São Paulo/SP, Brasil
E-mail: [email protected]
Fabienne Orsi
SESSTIM, UMR 912 INSERM-IRD-Université Aix-Marseille
Marseille, France
E-mail: [email protected]
Fernando Tibau
Sistema de Informação sobre Indústria Química,
Escola de Química/Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro/RJ, Brasil
E-mail: [email protected]
Flavia Mendes
Sistema de Informação sobre Indústria Química,
Escola de Química/Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro/RJ, Brasil
E-mail: [email protected]
Fred Eboko
SESSTIM, UMR 912 INSERM-IRD-Université Aix-Marseille
Marseille, France
Affectation IRD/Institut Africain de la Gouvernance, Dakar, Sénégal
E-mail: [email protected]
Gaëlle Krikorian
IRIS – Institut de Recherche Interdisciplinaire sur les Enjeux Sociaux
Sciences sociales, Politique, Santé
Université Paris 13 – UFR SMBH
UMR 8156 CNRS – Inserm
Bobigny/Paris, France
E-mail: [email protected]
Guillaume Le Loup
INSERM U707/Université Pierre et Marie Curie et
Service des Maladies Infectieuses et Tropicales
Hôpital Tenon, AP-HP
Paris, France
E-mail : [email protected]
Helena Espelllet Klein
Instituto de Economia
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro/RJ, Brasil
E-mail: [email protected]
Jean-Claude Thoenig
Dauphine Recherches en Management
Université de Paris Dauphine
Paris, France
E-mail : [email protected]
Jean-Paul Moatti
SESSTIM, UMR 912 INSERM-IRD-Université Aix-Marseille
Marseille, France
E-mail : [email protected]
Julia Paranhos
Instituto d’Economia
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro/RJ, Brasil
E-mail : [email protected]
Julien Chauveau
SESSTIM, UMR 912 INSERM-IRD-Université Aix-Marseille
Marseille, France et
Université Paris 13, CEPN-IIDE, UMR CNRS 7234
Villetaneuse, France
E-mail : [email protected]
Kenneth Rochel de Camargo Júnior
Instituto de Medicina Social
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro/RJ, Brasil
E-mail: [email protected]
Keshab Das
Gujarat Institute of Development Research,
Gujarat, India
E-mail : [email protected]
Lia Hasenclever
Instituto d’Economia
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro/RJ, Brasil
E-mail: [email protected]
Mamadou Camara
Université Paris 13, CEPN-IIDE, UMR CNRS 7234
Villetaneuse, France
E-mail : [email protected]
Maria Andréa Rios Loyola
Instituto de Medicina Social
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro/RJ, Brasil
E-mail: [email protected]
Mariângela Batista Galvão Simão
Division pour la prévention, la vulnérabilité et les droits
UNAIDS
Genève, Suisse
E-mail: [email protected]
Maria Helena Costa Couto
Departamento de Política, Planejamento e Administração em Saúde
Instituto de Medicina Social
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro/RJ, Brasil
E-mail: [email protected]
Marilena Cordeiro Dias Villela Corrêa
Instituto de Medicina Social
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro/RJ, Brasil
E-mail: [email protected]; [email protected]
Maurice Cassier
Centre de Recherche Médecine, Sciences, Santé et Société
Villejuif, France
E-mail: [email protected]
Paola Galera
Sistema de Informação sobre Indústria Química,
Escola de Química/Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro/RJ, Brasil
E-mail: [email protected]
Pedro Villela
Instituto de Medicina Social
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro/RJ, Brasil
E-mail: [email protected]
Rodrigo Cartaxo
Sistema de Informação sobre Indústria Química,
Escola de Química/Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro/RJ, Brasil
E-mail: [email protected]
Rogerio Scapini
Departamento de MST, Sida et Hépatites Virales
Ministerio da Saúde
Brasília/DF, Brasil
Sandrine Loubière
SESSTIM, UMR 912 INSERM-IRD-Université Aix-Marseille
Marseille, France
Sonia Fleury
Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas – EBAPE
Fundação Getúlio Vargas
Rio de Janeiro/RJ, Brasil
E-mail: [email protected]
Wanise Borges Gouvea Barroso
Farmanguinhos
Fundação Oswaldo Cruz
Rio de Janeiro/RJ
E-mail: [email protected]; [email protected]