A contribuição winnicottiana à teoria do complexo de Édipo e suas

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A contribuição winnicottiana à teoria do complexo de Édipo e suas
A contribuição winnicottiana à teoria do complexo de Édipo e suas implicações para a
prática clínica.
No interior de sua teoria geral, Winnicott redescreve o complexo de Édipo como uma fase
tardia do processo de amadurecimento1, que se faz presente apenas a partir do momento em que a
criança, mediante a previa sustentação e adaptação do ambiente às suas necessidades específicas
nas fases mais primitivas, tornou-se uma pessoa integrada, capaz de distinguir o “eu” do “não-eu”
e de estabelecer relações de objetos totais. Neste momento, o ambiente não cumpre mais a função
de estruturação da personalidade, embora continue a ser importante, agora por motivos diferentes
(Winnicott, 1988).
As figuras reais dos pais e seu modo de se relacionar com a criança são, para Winnicott,
fatores decisivos na resolução e elaboração do conflito edípico2. Sabe-se, desde Freud, que o
advento do complexo de Édipo suscita na criança sentimentos intensos de amor e ódio com relação
aos pais. Winnicott destacou a necessidade do ambiente se manter estável apesar de
comportamentos infantis que implicam, em suas palavras, em certa “deslealdade” com relação aos
pais, (Winnicott, 1986d, p.132; 1988, p. 68). Somente a partir da estabilidade do ambiente, a
criança poderá elaborar as turbulências internas próprias ao conflito edípico estando livre de se
preocupar com o resultado objetivo de seus testes e ataques.
Se a família é capaz de se manter intacta, o pai, naturalmente, se ocupa de sua posição, o que
significa dizer que ele é capaz de intervir na relação da criança com a mãe, afastando-as, o que é,
1
Esta forma de compreensão do fenômeno edípico opõe-se radicalmente a outras leituras psicanalíticas.
Em Freud, por exemplo, o Édipo constitui-se no problema central de sua psicanálise, perspectiva que é
ainda ampliada por Klein, a partir da noção de Édipo precoce. É preciso notar que, em Winnicott, existem
muitos motivos pelos quais uma pessoa pode vir a adoecer, problemáticas anteriores ao advento do
complexo de Édipo como questão humana. Cf. Winnicott , 1988, p.67.
2
Esta posição marca profundas diferenças com relação à psicanálise tradicional (Freud e Klein), para a
qual o fenômeno edípico é encarado como uma tarefa exclusivamente intrapsíquica. Cf. Klein, 1945, p.
452
de fato, uma necessidade do processo de desenvolvimento da criança. A importância da
intervenção paterna reside, para Winnicott, no fato de que neste estágio, “sua performance é
deficiente, tendo a criança de esperar (até a puberdade como sabemos) pela capacidade de realizar
seu sonho” (Winnicott, 1988, p. 62). Sem esta intervenção, a criança teria de se haver sozinha com
sua impotência, de modo que “(...) o medo à castração pelo genitor rival torna-se uma alternativa
bem-vinda para a agonia da impotência” (Winnicott, 1988, p.62). Tal contexto, na saúde, implicará
na identificação do menino com o pai, propiciando uma espécie de acordo, a partir da qual “(...) o
menino obtém uma potência por procuração e uma potência adiada, mas própria, que poderá ser
recuperada na puberdade” (Winnicott, 1988, p. 289).
As contribuições winnicottianas à teoria do complexo de Édipo implicam em modificações
significativas para o método de tratamento da neurose. À diferença da psicanálise tradicional, para
a qual o tratamento deve se orientar pela interpretação das resistências e da transferência como
forma de trazer à consciência o inconsciente reprimido, Winnicott, com a introdução do
funcionamento do ambiente como parte relevante da elaboração do complexo de Édipo, introduz
novos elementos a serem considerados na clínica com pacientes neuróticos. Comentando a
importância do funcionamento do ambiente real, ele afirma que estes são aspectos que surgem na
relação transferencial, tratando-se de “questões que não são tanto de interpretar, mas de
experienciar”. (Winnicott 1989xa) (p. 188)
Com isto, Winnicott introduz elementos que dizem respeito ao modo de ser e de operar do
analista a partir do lugar transferencial dado pelo paciente, elementos estes que são relativos ao
que o autor chamou de manejo (manegement), que são, em última instância, relativos a uma
provisão ambiental (Winnicott, 1955d, 1956a). Isto não significa, pois, que a clínica winnicottiana
seja avessa à interpretação, mas que esta é compreendida como um dos elementos da provisão
ambiental, que é, em sua clínica, o aspecto fundamental. Winnicott (1958h) salienta, por exemplo,
a existência de um setting estável e de uma pessoa (o analista) preocupada, disposta a ajudar e
capaz de sobreviver aos ataques do paciente. Todas estas são atitudes silenciosas que
desempenham um papel fundamental no tratamento e, são, por assim dizer, um pré-requisito para o
trabalho interpretativo.
O fato é que não há um só método que caracteriza a clínica winnicottiana, de modo que a
abordagem será definida pela necessidade do paciente: “Faço análise [padrão, método
interpretativo] porque é do que o paciente necessita. Se o paciente não necessita análise então faço
alguma outra coisa.” (Winnicott, 1965d, p. 152). É neste sentido de atendimento à necessidade que
a interpretação assume o caráter de provisão ambiental que é, como dissemos, o aspecto
fundamental do método de tratamento winnicottiano. Por isto mesmo, na clínica, é preciso ser
capaz de “estarmos sempre atentos à idade emocional do momento, de modo a podermos fornecer
o ambiente emocional adequado (Winnicott, 1988, p. 179). Isto implica no fato de que o trabalho
interpretativo tenha de ser interrompido temporariamente para dar lugar ao atendimento de outras
necessidades que se apresentem, no caso de regressão, por exemplo, uma vez que “devemos
permitir que a análise vá mais fundo, quando necessário, e não é preciso que o paciente esteja
muito doente, para de vez em quando, ser uma criança durante a sessão analítica” (Winnicott,
1958f, p. 263).
A questão é que, ainda que uma pessoa tenha sido capaz de integrar-se e, por isto, viver
problemas internamente, ela, na saúde, jamais será totalmente independente. A dependência é, por
assim dizer, a grande questão humana e, por isto pode se apresentar como uma necessidade,
mesmo na clínica das neuroses.
A dependência como parte inerente da vida é claramente
demonstrada por Winnicott (1953c) a partir de sua teoria dos objetos transicionais, que são
possibilitados por um tipo específico de adaptação ambiental que permitem á criança criar e
encontrar, ao mesmo tempo, os objetos, sem que nenhuma reivindicação seja feita em nome da
realidade interna ou externa. Trata-se de uma terceira zona da experiência cujo protótipo é o
brincar de crianças, estendendo-se, na vida adulta, às atividades culturais. Este espaço de
experimentação faz cumprir “a perpétua tarefa humana de manter as realidades interna e externa
separadas, ainda que inter-relacionadas” (Winnicott, 1953c, p. 15) e é, na saúde, “o lugar em que
vivemos”(Winnicott 1971q)
Winnicott (1968i) toma o brincar como modelo do tratamento psicanalítico. Ele afirma: “a
psicanálise foi desenvolvida como uma forma altamente especializada do brincar, a serviço da
comunicação consigo mesmo e com os outros” (Winnicott, 1968i, p. 63). Tal afirmação implica
em distinções profundas com o método psicanalítico tradicional que, como sabemos, é calcado na
pesquisa das motivações inconscientes que, via de regra, são de natureza sexual. A formulação da
análise como um tipo especial do brincar aponta para o deslocamento da centralidade das questões
da sexualidade, uma vez que “se a excitação física do envolvimento instintual se torna evidente,
então o brincar se interrompe ou, pelo menos se estraga (Winnicott 1968i, p. 60).
A partir destas considerações estamos em condições de apontar, para concluir, que, embora
Winnicott afirme que a interpretação é o método mais adequado para o tratamento das neuroses, o
seu modo de compreender a interpretação possui elementos distintos da psicanálise tradicional3. A
interpretação para Winnicott é relativa ao atendimento de necessidades específicas de forma que
ela pode assumir seu sentido clássico, mas estará sempre inserida num contexto mais amplo de
provisão ambiental. Este contexto diz respeito ao espaço potencial, à criatividade e sustentação
ambiental próprias ao brincar. A boa interpretação, diz Winnicott (1965d), é, em geral, econômica,
para não incorrer no risco de doutrinação e de submissão. Seu valor reside no sentido de criação
pessoal do paciente, embora – e paradoxalmente – ela tenha que ser um fato objetivo para que este
sentido se estabeleça. Como comenta Philips (1988, p. 201-202): uma boa interpretação, poder-seia dizer, é alguma coisa sobre a qual o paciente seja capaz de ponderar. Não é uma senha de
acesso”. A interpretação pode ainda ter valor por ser falha. Diz Winnicott (1965d, p. 153): Se não
3
Estamos chamando de tradicional, a psicanálise estabelecida por Freud e posteriormente desenvolvida
por Klein. Esta nomenclatura foi introduzida pelo próprio Winnicott, que também se referiu a estes
trabalhos como psicanálise clássica e ortodoxa. Cf. Winnicott, 1969i, p. 176; 1970b, p. 196.
fizer nenhuma, o paciente fica com a impressão de que compreendo tudo. Dito de outra forma, eu
retenho certa qualidade externa, por não acertar sempre no alvo ou mesmo estar errado”. Reter
certa qualidade externa significa, neste caso, manter-se, por assim dizer, à distância necessária para
que a criação pessoal do paciente tenha lugar na forma do brincar. Significa sustentar um espaço
potencial. Tais indicações dizem respeito à necessidade humana de se comunicar, uma perspectiva
mais ampla do que a busca de prazer sexual, embora estes sejam elementos significativos para a
resolução e elaboração do complexo de Édipo.
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