Capa RDE-13 Curvas Frente e Verso.cdr

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Capa RDE-13 Curvas Frente e Verso.cdr
Ano VIII • Nº 13 • Semestral • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
Departamento de Ciências Sociais Aplicadas
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano
INDEXAÇÃO:
A Revista de Desenvolvimento Econômico – RDE é indexada por:
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Regional/Demografia (área do Programa responsável pela sua edição) e Arquitetura e Urbanismo.
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conforme decreto nº 1.825, de 20 de dezembro de 1907.
Ficha Catalográfica – Sistema de Bibliotecas da Unifacs
RDE – Revista de Desenvolvimento Econômico. – Ano 1, n. 1, (nov. 1998).
– Salvador: Departamento de Ciências Sociais Aplicadas 2 / Universidade Salvador, 1998.
v.: 30 cm.
Semestral
ISSN 1516-1684
Ano I, n. 1 (nov. 1998); Ano I, n. 2 (jun. 1999); Ano 2, n. 3 (jan. 2000);
Ano 3 n. 4 (jul. 2001); Ano 3, n. 5 (dez. 2001); Ano 4, n. 6 (jul. 2002);
Ano 4, n. 7 (dez. 2002); Ano 5, n. 8 (jul. 2003); Ano 6, n. 9 (jan. 2004);
Ano 6, n. 10 (jul. 2004); Ano 7, n. 11 (jan. 2005); Ano 7, n. 12 (jul.
2005); Ano 8, n. 13 (jan. 2006).
1. Economia – Periódicos. II. UNIFACS – Universidade Salvador.
UNIFACS.
CDD 330
Pede-se permuta
On demande l´échange
We ask for exchange
Pede-se canje
Si rischiede lo scambo
Mann bitted um austausch
2
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
EDITORIAL
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
EXPEDIENTE:
Revista de Desenvolvimento Econômico
A Revista de Desenvolvimento Econômico é uma publicação
semestral do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano da Universidade Salvador – UNIFACS.
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VICE-REITOR:
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PRÓ- REITOR DE PÓS-GRADUAÇÃO:
Prof. Luiz Magalhães Pontes
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PRÓ-REITOR ADMINISTRATIVO:
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DEP. DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS:
Prof. Manoel Joaquim F. de Barros
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
DESENVOLVIMENTO REGIONAL E URBANO–PPDRU:
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CONSELHO EDITORIAL
Prof. Dr. Alcides Caldas
Profª Dra. Bárbara-Christine Nentwig Silva
Prof. Dr. José Manoel G. Gândara
Prof. Dr. Luiz Gonzaga G. Trigo
Prof. Dr. Fernando C. Pedrão
Prof. Dr. Noelio D. Spinola
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Prof. Dr. Sylvio Bandeira de Mello e Silva
Profª Vera Lúcia Nascimento Brito
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SECRETÁRIO
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TIRAGEM: 1.000 exemplares
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Departamento de Ciências Sociais Aplicadas
Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Regional e Urbano – PPDRU
Agora, atualizado cronologicamente, lançamos o nº 13 da Revista de Desenvolvimento Econômico (RDE), editada pelo Programa de Pós-Graduação
em Desenvolvimento Regional e Urbano da Universidade Salvador.
Os 13 artigos que enriquecem a edição começam com o professor Fernando
Cardoso Pedrão que apresenta dois trabalhos. O primeiro, de sua autoria,
intitulado Aníbal Pinto e a ruptura do círculo vicioso da pobreza e o segundo, um
artigo inédito de Aníbal Pinto que durante muito tempo permaneceu no limbo
de um arquivo e também versa sobre El financiamiento del desarrollo y el círculo
vicioso de la pobreza. O artigo de Pedrão constitui uma aula de história econômica contemporânea que se impõe à leitura de todos aqueles que trabalham com
a temática do desenvolvimento. Em seguida o professor José Elí da Veiga, em
seu artigo sobre as vicissitudes da governança cidadã, discute as dificuldades
da emergência de novas identidades regionais no extremo sul do Brasil. Já o
quarto artigo, de autoria da professora Bárbara-Christine Nentwig Silva e do
bacharelando Araori Silva Coelho, estuda a macrocefalia urbana em Boa Vista,
Roraima, do ponto de vista urbano e funcional, este direcionado para a área de
saúde. O Norte do país é também contemplado, mais uma vez, pela pesquisadora Marta de Azevedo Irving, que aborda a questão das áreas protegidas de
fronteira e o turismo sustentável na Amazônia brasileira, especificamente os
parques nacionais das Montanhas de Tumucumaque e Cabo Orange que se
situam na fronteira com a Guiana francesa. A professora Irving além de contribuir para a discussão da perspectiva do turismo sustentável conclui que o
turismo regional só poderá ser competitivo, no plano internacional e, inclusivo, no
cenário local, se estiver associado a um diferencial de qualidade social e ambiental, tendo
como marca a cooperação Brasil-França e toda a sua significação cultural e identitária no
contexto amazônico. Ainda tratando do turismo a professora Carolina de Andrade
Spinola questiona se o ecoturismo, o desenvolvimento local e a conservação da
natureza em espaços naturais protegidos são objetivos conflitantes? Neste
artigo ela toma como exemplo o Parque Nacional da Chapada Diamantina que
foi objeto de sua pesquisa, concluindo que não é possível perseguir os objetivos da
conservação da natureza e do desenvolvimento local, especialmente nas unidades de
conservação localizadas nos países em desenvolvimento, sem atentar para as necessidades humanas de subsistência das populações que os habitam e, conseqüentemente, proceder-se a uma nova discussão sobre os modelos de gestão adotados nesses espaços e a sua
capacidade de equacionar todas as variáveis derivadas do uso turístico desses espaços.
Continuando na mesma temática a professora Sieglinde Kindl Cunha e o
professor João Carlos da Cunha apresentam uma proposta de modelo de
análise de clusters de turismo a partir de um enfoque multidisciplinar entre as
áreas da sócio-economia, geografia-social e estudos de redes. Mudando de
assunto os professores Augusto Monteiro e Carlos Palma de Mello apresentam
as conclusões de um estudo de caso onde avaliaram a eficácia dos programas
de qualidade em obras públicas do estado da Bahia. O nono artigo, do mestrando
Cláudio Damasceno Pinto, na seara microeconômica, estuda a competitividade
do setor de supermercados na cidade do Salvador. No plano ambiental registra-se o décimo artigo do professor Generoso de Angelis Neto e equipe, que
discutem alguns conceitos relacionados ao tema “resíduos sólidos” num contexto voltado para a análise geográfica. Neste enfoque estuda-se o planejamento e a recuperação de áreas urbanas, principalmente as decorrentes dos
impactos ambientais derivados da gestão incorreta dos resíduos. Por seu turno, o professor Paulo Renato Soares Terra apresenta um ensaio onde revisa a
literatura teórica e empírica sobre a interdependência entre o crescimento econômico e o setor financeiro. O penúltimo artigo, do professor Jefferson Staduto
e equipe, trata de uma experiência concreta dos arranjos produtivos relatando
o surgimento de um APL no Oeste do Paraná. Esta edição se encerra com o 13º
artigo, dos professores José Vergolino e Alexandre Jatobá que, numa análise
econométrica, analisam os determinantes do crescimento da população e do
emprego das microrregiões do Nordeste do Brasil no período de 1970/1996.
Até a próxima edição.
Noelio Dantaslé Spinola
EDITOR
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
3
SUMÁRIO
5
ANÍBAL PINTO E A RUPTURA DO CÍRCULO DA POBREZA
FERNANDO PEDRÃO
11
EL FINANCIAMIENTO DEL DESARROLLO Y EL CÍRCULO VICIOSO DE LA POBREZA
19
VICISSITUDES DA GOVERNANÇA CIDADÃ: OS CONSELHOS REGIONAIS GAÚCHOS (COREDE)
28
MACROCEFALIA URBANA EM RORAIMA E SUA REPERCUSSÃO NOS SERVIÇOS DE SAÚDE
35
ÁREAS PROTEGIDAS DE FRONTEIRA E TURISMO SUSTENTÁVEL NA AMAZÔNIA: ENTRE O
ANÍBAL PINTO SANTA CRUZ
JOSÉ ELI DA VEIGA
BARBARA-CHRISTINE NENTWIG SILVA E ARAORI SILVA COELHO
SURREALISMO E A INVENÇÃO
MARTA DE AZEVEDO IRVING
50
O ECOTURISMO, O DESENVOLVIMENTO LOCAL E A CONSERVAÇÃO DA NATUREZA EM ESPAÇOS
NATURAIS PROTEGIDOS: OBJETIVOS CONFLITANTES?
CAROLINA DE ANDRADE SPINOLA
60
CLUSTERS DE TURISMO: ABORDAGEM TEÓRICA E AVALIAÇÃO
68
A EFICÁCIA DOS PROGRAMAS DE QUALIDADE NO SETOR PÚBLICO: O CASO DO QUALIOP
75
ESTRUTURA DE MERCADO E PADRÕES DE CONCORRÊNCIA: BARREIRAS À ENTRADA NO SETOR DE
SUPERMERCADOS EM SALVADOR
SIEGLINDE KINDL DA CUNHA E JOÃO CARLOS DA CUNHA
AUGUSTO DE OLIVEIRA MONTEIRO E CARLOS PALMA DE MELLO
CLÁUDIO DAMASCENO PINTO
86
ÁREAS URBANAS DEGRADADAS: RELAÇÕES COM A GESTÃO DOS RESÍDUOS SÓLIDOS
93
AN ESSAY ON THE INTERDEPENDENCE BETWEEN ECONOMIC GROWTH AND THE FINANCIAL
SECTOR
GENEROSO DE ANGELIS NETO, BRUNO LUIZ DOMINGOS DE ANGELIS E PAULO FERNANDO SOARES
PAULO RENATO SOARES TERRA
101
ARRANJO PRODUTIVO LOCAL DE TERRA ROXA: A ANTI-VOCAÇÃO?
114
DETERMINANTES DO CRESCIMENTO DA POPULAÇÃO E DO EMPREGO DAS MICRORREGIÕES DO
NORDESTE DO BRASIL - 1970/1996: UMA ABORDAGEM ECONOMÉTRICA
JEFFERSON ANDRONIO RAMUNDO STADUTO, EDNILSE WILLERS E PAULO ROBERTO AZEVEDO
JOSÉ RAIMUNDO VERGOLINO E ALEXANDRE DOMINGOS SÁVIO CALDAS JATOBÁ
4
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
ANÍBAL PINTO E A RUPTURA
DO CÍRCULO DA POBREZA
Fernando Pedrão1
Resumo
A publicação tardia de um artigo
inédito de Aníbal Pinto Santa Cruz
oferece a oportunidade de reconstruir algumas linhas básicas do debate que se travou em torno da superação do circulo vicioso da pobreza,
que foi uma tese aparentemente da
mecânica da economia, mas que estava carregada de ideologia.
Palavras chave: Desenvolvimento,
subdesenvolvimento, círculo da pobreza, poupança interna.
Resumen
La publicación tardía de un
ensayo inédito de Aníbal Pinto Santa Cruz nos ofrece la oportunidad de
reconstruir algunas líneas básicas
de un debate que se trabó acerca de
la superación del círculo vicioso de
la pobreza, que fue una tesis aparentemente de la mecánica de la
economía, pero que estaba cargada
de ideología.
Palabras llave: Desarrollo, subdesarrollo, círculo de la pobreza,
ahorro interno.
da CEPAL, com textos não publicados precursores da década de 50, na
qual se integrou Aníbal Pinto e na
qual participamos.
O ensaio de Aníbal Pinto que
agora apresentamos tem um significado especial, por trazer uma perspectiva histórica à análise do financiamento do desenvolvimento, como
fundamento do debate acerca da desigualdade do desenvolvimento entre as nações e desmitificando as
razões do sucesso dos que se industrializaram. Surgem, pela mão dele,
a complexidade do papel do colonialismo entre latinos e saxões, e o peso
negativo sobre os latinos da transferência do centralismo político e de
sua sustentação feudal na formação
da grande propriedade rural nas regiões latino-americanas. Concomitantemente, descobre-se o custo
social do crescimento da economia
inglesa e o modo como esse custo foi
arcado no exterior para beneficio da
economia norte-americana. O círculo vicioso da pobreza é a reprodu-
A oportunidade de ter encontrado um texto inédito de Aníbal Pinto
entre papéis da época, além de
publicá-lo, permite esboçar uma homenagem tardia ao intelectual engajado que ele foi.2 Isso significa publicar o texto original e avaliar seu
significado na época em que foi produzido. Discutir o financiamento do
desenvolvimento não era apenas ver
como conseguir dinheiro para financiar o plano de desenvolvimento, senão significava perscrutar como a
esfera da circulação se integrava na
esfera da produção nas condições
especiais – induzidas ou conduzidas – dos planos de desenvolvimento. Essa foi a linha de trabalho aberta por Carlos Oyarzún no ambiente
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ção linear da dominação. A ruptura
do círculo vicioso da pobreza é o
modo da emancipação econômica e
política.
Aníbal Pinto foi um grande polemista e incentivador de outros, mas
deixou uma obra própria assinada
surpreendentemente pequena. Grande parte do que fez ficou submerso
em relatórios oficiais.3 Assim, o melhor modo de fazer um elogio a Aníbal Pinto é situá-lo no debate de que
foi participante apaixonado. Essa
figura de homem do mundo, entretanto tão profundamente nacional,
de boêmio e incansável trabalhador,
perspicaz e cuidadoso, que parecia
saído de um diálogo de Platão, teve
um claro sentimento político da Economia. Sua participação no debate
econômico, sempre teve um sentido
afinado da realidade social da economia e da responsabilidade da teoria do desenvolvimento. Foi uma
figura representativa do período criativo daquela instituição que teve um
desempenho surpreendente: a única
1
Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano da Unifacs.
2
O texto em causa é uma exposição crítica da teoria do círculo vicioso da pobreza, realizada num
tratamento de modelo de dois setores, numa linguagem teórica marxista. A tese central dessa crítica
é que a continuidade do círculo da pobreza resulta do modo como o capital circula entre S1 e S2 mediante os termos de troca entre esses dois setores – que, entretanto, é determinado pelo padrão
geral de acumulação. A noção de circulo vicioso da pobreza é contraditória com as alterações na
composição do capital, mesmo em condições em que a operação de cada setor permita separar
recursos para investimento. A concepção de circulo vicioso da pobreza não se coaduna com o funcionamento da produção capitalista, porque não considera as interdependências entre os usos de
meios de produção nos dois setores. No essencial, a crítica de Aníbal Pinto ao circulo vicioso da
pobreza difere da de Celso Furtado – que aparece em La formación de capital y el desarrollo econômico – em que esta última opõe a perspectiva keynesiana à perspectiva de Schumpeter, representada por Nurkse. Há um problema de alteração da composição na formação de capital, que é manejado
de diferentes modos por Furtado e por Pinto, dado que na perspectiva keynesiana não há espaço
conceitual para trabalhar com as conseqüências das alterações na composição do capital. Mais
ainda, na perspectiva keynesiana essas alterações não são obrigatórias, pelo que a ruptura do circulo vicioso da pobreza se torna incidental. O questionamento de Aníbal Pinto sobre a mecânica da
ruptura do circulo vicioso da pobreza apóia-se numa abordagem que parte dos elementos da reprodução simples do capital.
3
Há uma produção paralela de artigos de Aníbal Pinto que apareceu em diversas revistas com pseudônimos utilizados para proteção, devido a restrições impostas por sua condição de funcionário
internacional. O pseudônimo de Spartaco serviu aos seus propósitos polêmicos politicamente mais
comprometidos.
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5
das comissões continentais das Nações Unidas que desenvolveu um
pensamento teórico próprio e que procurou criar uma base empírica sistemática para sustentar alternativas de
política de desenvolvimento.
A CEPAL surpreendeu ao mundo das Nações Unidas, porque ultrapassou seu mandato. O que a
CEPAL dos seus primeiros quinze
anos teve de original foi concentrar
o debate sobre as transformações
sociais e econômicas definidas como
desenvolvimento econômico e social
e ter elevado esse debate a um plano
mundial, formulando idéias próprias e trazendo pensadores independentes de outras partes do mundo. As contradições desencadeadas
pela política mundial, que cercearam
a possibilidade de continuar essa
polêmica, e que se estenderam desde a pressão indireta da Aliança para
o Progresso até o obstáculo direto do
golpe militar que derrubou Salvador
Allende, deixaram uma outra CEPAL, convencional, que tem tanto em
comum com a anterior como o aldeamento de Tróia VIII com a Tróia VII
de Homero.
O trabalho da CEPAL começou
em 1948 e se cristalizou no Estudo
Econômico da América Latina de
1949 4, gerando a seguir um conjunto de estudos país por país, com o
nome de Análises e Projeções do
Desenvolvimento Econômico. Esses
estudos, que foram realizados para
diversos países, criaram uma nova
inércia do conhecimento de hoje de
realidades nacionais que surgiram
dos tempos do sistema colonial. Desde fins da década de 50 houve modificações profundas no pensamento sobre as transformações da economia mundial, que podem ser atribuídas em parte a certo amadurecimento das teses formuladas dez
anos antes e em parte ao reconhecimento ou ao desenvolvimento de
uma visão crítica do processo. Isso
em parte apareceu como um contraste entre a chamada teoria do crescimento econômico5 e a teoria do desenvolvimento econômico, sobre a
qual em todo caso pairavam dúvidas ou conflitos, se se tratava de desenvolvimento do sistema produtivo capitalista – no sentido de Marx
6
e Schumpeter – ou se se tratava de
uma teoria que explicasse como poderiam os países subdesenvolvidos
se desenvolver. Realisticamente, se
reconhecia que não necessariamente todos os países se desenvolveriam,
mas não se entrava realmente no
mérito de que no mundo capitalista
as tendências da concentração de
capital alargavam e aprofundavam
as diferenças entre os países.
A visão crítica do desenvolvimento surge, ao mesmo tempo em que a
própria concepção de desenvolvimento nas nações periféricas ao movimento internacional de acumulação de capital. Essa visão crítica é
própria da Economia Política Crítica, geneticamente incompatível com
a abordagem mecanicista da análise neoclássica que se tornou a
linguagem técnica padronizada da
economia do grande capital. Há diferentes níveis e escalas dessa crítica: é uma crítica acadêmica formal,
ou passa a incluir o reconhecimento
do mundo americano indígena, que
é negado pelo projeto colonial, mas
que ressurge, repetidamente, definindo-se como uma fonte insubstituível de consciência social.
Tal sentido critico aparece junto
com a noção de processo de subdesenvolvimento apresentada por Celso Furtado6 – ainda em sua perspectiva keynesiana – assim como aparece
através de uma crítica marxista do
pensamento teórico, com que se identificavam Pedro Vuskovic, Julio Melnick e Aníbal Pinto no âmbito da
CEPAL. Há uma diferença sutil porém profunda, entre a conceituação
de subdesenvolvimento manejada
por Prebisch e a que passou através
das vulgarizações que se reproduzi-
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ram, tal como reimpressões em edições de menor qualidade. Prebisch
absorveu uma visão histórica – weberiana – da economia, que distinguiu
os trabalhos de seu colaborador mais
próximo, o filósofo e sociólogo José
Medina Echevarria. Tinha-se como
essencial que o desenvolvimento econômico e social – crescimento do
produto, distribuição da renda e controle nacional do processo de transformação econômica – jamais foi garantido para todas as nações e que
historicamente a maioria fracassa na
tentativa de alcançar esses resultados. Daí, a centralidade do planejamento como meio de superar essa tendência negativa.
Ficou faltando ligar a historicidade do comércio desfavorável à
historicidade da formação de capital. Essa lacuna que Celso Furtado
tentaria suprir com seu trabalho de
1969 – A economia latino-americana
desde a conquista ibérica até a Revolução Cubana - mas que continuou em
aberto, pela falta de uma análise histórica do capital na periferia. Essa
seria uma lacuna que Samir Amin
tentaria fechar com seu Acumulação
à escala mundial (1967), mas que ficou em aberto no relativo à compreensão da reprodução ampliada do
capital em sua etapa de concentração. A teoria do desenvolvimento
econômico não conseguiu criar uma
teoria do capital para a periferia da
economia mundial.
Com essa visão histórica, na origem não havia praticamente semelhança alguma entre aquela compreensão de que o subdesenvolvimento
significava uma perda de capacidade de exercer políticas econômicas
independentes e o entendimento
4
A primeira obra teórica de Raul Prebisch, em que foi apresentada por primeira vez a teoria da relação
centro-periferia.
5
Houve um estreitamento dos objetivos da teoria do crescimento, desde a versão inicial de Roy Harrod
(1939) até a leitura tardia de John Hicks (1965), em que as implicações em termos de teoria do capital
foram retiradas. No entanto, a contribuição de Harrod à teoria monetária se faz à luz de uma visão
formada no contexto da teoria do capital. Não se pode esquecer que naquele mesmo momento Joan
Robinson publicava o que pretendeu ser sua obra principal, a Acumulação de capital. – logicamente
numa perspectiva keynesiana.
6
Celso Furtado, Desenvolvimento e subdesenvolvimento, Rio de Janeiro, Cultura, 1959. A crítica
harrodiana da teoria neoclássica – no sentido de Marshall – do crescimento pressupunha a necessidade de penetrar no conceito de taxa de salário, para examinar a relação entre os requisitos de
trabalho – em cada composição do capital – e as condições do sistema socioprodutivo para prover
esse trabalho qualificado. O tema de Harrod não é a taxa in abstracto senão as condições sociais
para que essa taxa se verifique e se mantenha. A questão da composição do capital reaparece em
diversos textos de Harrod, e, especificamente, numa conferência sobre Marx.
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vulgar de que o subdesenvolvimento
seria apenas uma mecânica do atraso tecnológico e de multiplicador de
emprego. O enriquecimento da conceituação de subdesenvolvimento
surgiu como de algo inerente à dinâmica da economia mundial – tal como
Prebisch já tinha indicado desde o
Estudo de 49 – e não poderia ser definido como um problema apenas interno, que se pudesse reduzir aos argumentos conhecidos de falta de
poupança, de falta no sistema educativo, ou simplesmente de sociedades
infensas ao progresso (material). 7 No
ambiente da progressão da produção
capitalista, o subdesenvolvimento seria o resultado negativo – perverso –
da desigualdade conduzida.8 O mecanismo do comércio seria esse fio
condutor. Havia, portanto, latente, a
necessidade de uma teoria da periferia, que teria que contemplar os aspectos materiais e os ideológicos do
processo e não poderia ser apenas
uma teoria econômica. Esse foi um
objetivo que Prebisch entreviu, em sua
tentativa de fazer um grande trabalho coletivo em 1970, mas que foi interrompida.
Desde então, a principal diferença entre aquilo que defino como a
análise maior do desenvolvimento e
a análise menor, estaria entre trabalhar com o processo em sua totalidade ou buscar aspectos ou setores
que se apontaria como responsáveis
da perpetuação do subdesenvolvimento. Mais adiante, na década de
1970, essa diferença também estaria
entre uma visão a longo e médio prazo do planejamento e o aparecimento de um planejamento a curto prazo, que não era muito mais que
disciplina orçamentária. A proposta
de técnica de planejamento apoiouse em um quadro sintético que era
uma combinação do modelo de
Harrod com a análise de relações
inter-industriais de Leontief. Mas
essa técnica estava sustentada num
intenso trabalho de análise e pesquisa teórica, que veio a constituir um
corpo doutrinário bastante bem definido.
Um seminário realizado no Lago
Como (Itália) em 1959 mostrava,
além disso, a divisão maior entre as
doutrinas contestatórias integradas
na teoria do desenvolvimento e uma
resposta ortodoxa, representada por
W.W.Rostow e Roberto Campos. 9
Outros autores neoclássicos que escreviam sobre desenvolvimento, tais
como Harvey Leibenstein, Everet
Hagen, Henry Bruton, formavam o
neoconservadorismo de então, estruturando um discurso que antecipava a chamada síntese neoclássica
post-keynesiana, identificada com
Paul Samuelson e John Hicks e logo
adiante com Robert Solow10. A maré
anti-keynesiana apontava justamente para os keynesianos ou pós keynesianos mais à esquerda, especialmente contra Roy Harrod, Joan
Robinson, Nicholas Kaldor. 11 Os
suecos, isto é, Gunnar Myrdal, Erik
Lindahl,12 que já representavam uma
crítica mais progressista que Keynes,
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ele próprio um conservador, passavam a constituir um referencial
colateral. Os pensadores oriundos
das nações classificadas como subdesenvolvidas, tais como Raul Prebisch e os cepalinos do grupo original13, apareciam perante a academia
conservadora, majoritariamente norte-americana, como um incidente
academicamente pouco consistente.
O inverso seria ver a análise neoclássica como historicamente irrelevante.
Esse quadro de posições foi ulteriormente confirmado com o lançamento da Aliança para o Progresso
– um projeto da administração Kennedy – que se tornaria a referência
para uma visão tecnicista desses
processos, onde se excluía o componente de conflito social. 14 Em vez de
políticas de transformação, ajuda a
7
A escassez de poupança na visão de Prebisch, é um saldo negativo de relações internacionais desfavoráveis que atinge a formação de capital e não é a simples falta de capacidade de poupar dos países
periféricos. O Haiti e a Bolívia foram vitimas dessa expropriação da formação de capital em suas exportações, respectivamente, de café e de minerais, tanto como o Brasil, o Chile, a Argentina. A escassez de
poupança é um resultado de relações coloniais, que se agrava quando uma maior proporção da formação de capital se passa a investimentos nos países mais ricos e que se aprofunda quando os novos
investimentos são parte das cadeias integradas de capitais. É um tema em que se tem que voltar a
pensar, quando se confronta hoje com um neoneocolonialismo perpetrado por países europeus que
voltam a fazer grandes investimentos integrados em redes internacionais que extraem todo lucro dos
países receptores de seus capitais. Os exemplos mais imediatos são Portugal, Espanha e França.
8
Desigualdade conduzida pelas forças que prevalecem na acumulação de capital. Interesses econômicos institucionalmente organizados, com capacidade efetiva de decidir sobre os usos de recursos.
9
As idéias de Roberto Campos já estavam bem definidas em artigo de 1960, Inflação e crescimento
equilibrado. Aparecem de modo pleno e sintético na introdução que escreveu ao livro de LorenzoFernandez.
10
Em seus diversos matizes, o conservadorismo na análise do desenvolvimento caracterizou-se por procurar sempre um fator decisivo ao qual atribuir o desastre do atraso e a possibilidade do progresso. Foi
o contrário da visão de totalidade do processo, Diferentes autores focalizaram em educação, ou em
tecnologia, ou em industrialização, sempre como objetivos que se deve buscar através da liberação dos
mercados, que na prática significava abaixar barreiras à expansão dos capitais norte-americanos.
Somente da década de 70 em diante a liberação de mercados passou a beneficiar capitais europeus,
que, para surpresa de alguns, revelam-se mais colonialistas que os norte-americanos.
11
As idéias de Michal Kalecki tiveram certa ressonância a partir de sua divulgação por Joan Robinson,
porém aparentemente jamais foram levadas em conta pelos norte-americanos, mesmo por aqueles
mais progressistas. Kalecki foi ignorado pela CEPAL e na América Latina passou a ser lido seriamente
pelos brasileiros. Dentre os cepalinos, apenas Carlos Oyarzun e Aníbal Pinto trabalharam com as idéias
de Kalecki, por isso tomando o financiamento do desenvolvimento como uma disciplina essencial no
estudo do desenvolvimento econômico.
12
Tanto Myrdal quanto Lindahl se destacaram inicialmente com trabalhos de economia monetária, respectivamente, O equilíbrio monetário (1932) e Estudos sobre a teoria do dinheirol e da moeda (1947),
mas se afirmaram como cientistas sociais, com um espectro muito mais amplo de interesses.
13
Refere-se a José Mendive, Jorge Ahumada, Jesus González, Carlos Oyarzún , Manuel Balboa, Julian
Calvo, José Antonio Mayobre e vários outros.
14
Hoje é preciso reconhecer que a Aliança para o Progresso constituiu uma opção ideológica de política
de desenvolvimento, que carregou toda uma elite de pensadores liberais – no sentido norte-americano
dessa expressão – que se afirmavam como o lado democrático da Guerra Fria, comparados com fenômenos tais como o macartismo e a direita republicana norte-americana em geral. Observe-se que há
uma linha de continuidade entre a luta contra o racismo nos EEUU e a perspectiva étnica nas políticas
de desenvolvimento nos países latino-americanos. Na América Central e nos países andinos continuava uma política escravista em relação com os indígenas. A Argentina continuava declarando-se como
país mais europeu da América e o Chile continuava negando cidadania aos seus indígenas. O racismo
das elites latino-americanas transformou-se em instrumento de apoio a essa linguagem modernizada
da influência norte-americana.
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7
políticas setoriais e a gastos assistenciais. O papel desde então atribuído às despesas assistenciais,
rotuladas de setores sociais, que significava tratar educação como uma
benesse do Estado aos mais pobres,
constitui o cerne de uma abordagem
da política de desenvolvimento, que
ficava reduzida a uma política publica setorialmente delimitada. O
mais importante é que o papel do
Estado nacional ficava externamente determinado. Logicamente, essa
abordagem de despesas compensatórias seria questionada no próprio
campo neoclássico, pela subcorrente
representada por Milton Friedmann
e Harberger, em que esse último passaria a assessorar a ditadura chilena na década de 1970.
Assim, a chamada “teoria da dependência” – que, praticamente, foi
uma visão sociológica e weberiana
do subdesenvolvimento – captava
um aspecto do problema maior de
desigualdades nas relações entre ricos e entre pobres, mas esquivava o
debate sobre a acumulação de capital. Por isso, em paralelo ao discurso
demonstrativo da marginalidade – e
nem sempre da marginalização – ficava por explicar os mecanismos econômicos que levavam a essa marginalização. A resposta que alguns de
nós encontrávamos era o debate sobre a distribuição da renda15, que suscitava resistências de todos que
entendiam que a teoria do desenvolvimento deveria ser uma teoria da
produção e o foco na distribuição seria um desvio ricardiano, a todas luzes, inoportuno. Prevalecia o ponto
de vista de que a análise da distribuição seria, inevitavelmente, estática, e
voltaria as costas para a análise a
longo prazo da relação entre o crescimento do produto e o do capital. Entretanto, Aníbal Pinto entrou de cabeça nessa outra linha, da relação
entre as alterações da distribuição e
o desenvolvimento dos países, publicando um livro intitulado Distribuição de renda na América Latina e desenvolvimento (1967), em que trabalhava
a distribuição como a cara visível, negativa, da concentração do capital.
À parte de expressões que se tornaram emblemáticas, tais como marginalidade e dependência, paten-
8
teou-se uma fragilização do discurso teórico do desenvolvimento, que
deveria dar conta de um constante
acréscimo do conhecimento factual
da realidade latino-americana e que
refletia o esgotamento das análises
oriundas da macroeconomia keynesiana, que ficava no registro de evidências, mas não se aventurava nas
causas do atraso. Nesse contexto,
destacou-se, positivamente, o trabalho de Sunkel, Paz e Rodriguez16, que
procurou encontrar as especificidades do subdesenvolvimento nesta parte do mundo. No entanto, ainda padecia de um conhecimento
histórico estruturado suficiente para
compreender o problema do colonialismo. Dentre os cepalinos, somente
Celso Furtado empreenderia uma
tentativa de síntese dessa trajetória.17
Aníbal Pinto teve uma participação
significativa nesse debate, mas infelizmente não deixou texto que referende seus pontos de vista.
O contraste desses trabalhos com
aqueles outros de desenho marxista, tais como os de Gunder Frank,
Ruy Marini e Theotonio dos Santos
mostravam a impossibilidade de
definir o enquadramento doutrinário dos trabalhos apenas pelo uso de
termos de aceitação geral, tais como
subdesenvolvimento, dependência,
dominação etc. A visão marxista
rompia com as barreiras entre as
análises macroeconômica e microeconômica, assim como revelava a
centralidade do movimento de acumulação de capital. O problema substantivo de combinar a escolha de te-
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
O problema
substantivo de combinar a
escolha de temas com a
abordagem de método
significava uma opção
ideológica não
compatível com o projeto
de resolver os problemas
da sustentação das
classes médias...
mas com a abordagem de método
significava uma opção ideológica
que não era compatível com o projeto de resolver os problemas da sustentação das classes médias no
processo de desenvolvimento. O suposto economicismo da época não
era mais que uma estratégia evasiva
dos conflitos de classe que, inevitavelmente, surgiam quando se buscavam as fontes da reprodução da desigualdade e do atraso. Significava
que os economistas não se ocupavam dos conflitos sociais subjacentes à formação de capital, onde tudo
se resumia em desigualdade de renda. O estudo de Kuznets sobre as variações na relação capital/produto
nos EEUU durante 80 anos, era um
modo de mostrar o capital formado
e de evitar o debate sobre a mecânica da acumulação.18
15
Elaborei minha tese para concurso de docente livre sobre A distribuição da renda e o desenvolvimento econômico (1960) por instigação de Jorge Ahumada, assim como escrevi um artigo sobre As
desigualdades regionais e o desenvolvimento econômico (1964) por instigação de Aníbal Pinto.
16
Oswaldo Sunkel, Pedro Paz e Octavio Rodriguez, El subdesarrollo latinoamericano y la teoria del
desarrollo, (1981). Esse livro foi o texto básico de vários cursos de desenvolvimento econômico conduzidos por Sunkel na década de 60, quando funcionou como uma resposta econômica da teoria
sociológica da dependência. Já havia uma tensão básica entre a fundamentação histórica das
teorizações sobre a América Latina e as tentativas de generalização.
17
Alusão a A economia latino-americana desde a Conquista até a Revolução Cubana (1969). Nessa
obra Celso Furtado fez uma tentativa de explicar os processos latino-americanos em função dos
dados iniciais da colonização, que hoje se vê como um modelo caótico, isto é, um modelo que não
incorpora as alterações de tendências introduzidas durante o percurso considerado do
processo.Concretamente, como se o fato da independência política não resultasse em alterações das
combinações de poder que pudessem alterar as tendências de cada nação em seu conjunto. A
principal fragilidade desse modelo – reconhecida pelo próprio Furtado em fala durante o seminário
em sua homenagem em 92 – consiste em excluir - tacitamente – o imperialismo.
18
Simon Kuznets, Long –term changes in the National Income of the United States of America since 1870,
Income and Wealth, series II, Income & Wealth of the United States, trends and structure, Cambridge,
Bowes & Bowes, 1952. Posteriormente, se reconheceu que a pesquisa de Kuznets na realidade
significava uma prova das idéias de Marx sobre as alterações na composição orgânica do capital.
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
O desgaste da teoria da relação
centro-periferia – em sua versão original – deu lugar a outras incursões
teóricas, sempre no marco de uma
busca de soluções alternativas às da
imposição da supremacia norteamericana. Nesse sentido, entendo
que podem ser decodificadas as contribuições ao debate sobre a heterogeneidade do capital, em que se destaca um artigo de Aníbal Pinto 19,
inaugurando uma linha de debate
que se aproximava mais de visão de
Marx que do neo-ricardianismo de
Piero Sraffa.20 A questão central de
uma leitura séria de Marx pesou sobre a teoria do desenvolvimento na
América Latina, onde poucos, como
Maria da Conceição Tavares e Pedro
Vuskovic conheciam consistentemente a obra de Marx. Reconheciase, portanto, que o problema central
de uma teoria econômica do capitalismo – uma teoria do capital – ficara fora da teoria do desenvolvimento econômico. Esse, a meu ver, é o
fundamento de uma crítica interna
da teoria do desenvolvimento, que
perdeu de vista a questão essencial
da Economia Política.
A noção de estilos de desenvolvimento foi introduzida no ambiente
da CEPAL pelo físico argentino Oscar Varsawski, que veio municiar
outra subcorrente da análise do desenvolvimento – uma corrente quantitativista - que encantou figuras da
esquerda e da direita, em busca de
uma legitimação não ideológica.21 A
noção de estilos de desenvolvimento seria uma ferramenta para penetrar na variedade de situações do
período colonial, bem como para registrar a variedade de situações da
segunda revolução industrial. Mas
padecia da falta de um fundamento
consistente no campo social, por
isso, terminando por protagonizar
mais um engendro de linguagem da
Física no campo social. Parecia uma
simplificação e um desvio de uma
análise genuinamente histórica, já
que não registrava o fundamento
social da formação do capital e se
dispunha a identificar o sistema histórico do colonialismo como uma
forma colonial.
A seguir surgiu uma bifurcação
no próprio campo da análise de es-
tilos de desenvolvimento, em que um
grupo tentava substituir a análise
econômica por uma outra, de inspiração da engenharia; enquanto outra acreditava encontrar uma análoga da categoria formação social.
Aníbal Pinto, Oswaldo Sunkel, Norberto González e alguns outros corresponderam a essa subcorrente, que
procurava restabelecer categorias
nacionais para o tratamento do movimento internacional do capital. Foi
uma tentativa que topou com contradições profundas, mas que deixou
alguns resultados positivos, na
individualização dos problemas
nacionais de desenvolvimento. A
contribuição de Aníbal Pinto nessa
área foi modesta, mas deixou marca,
justamente por indicar as contradições entre uma análise internacional
do capital e uma análise nacional das
formações sociais. Tentativas de interpretação da economia chilena,
empreendidas por Jorge Ahumada e
pelo próprio Aníbal Pinto, de diferentes modos, tinham mostrado a
impossibilidade de alcançar uma
explicação nacional satisfatória sem
integrá-la internacionalmente. Afinal, o modelo primário exportador
mineiro chileno decorria do modo de
uso de minerais na segunda revolu-
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
ção industrial nos Estados Unidos.
O envolvimento de Aníbal Pinto
com os problemas do desenvolvimento no Brasil data de sua presença como chefe do Escritório da
CEPAL no Brasil e correspondem à
primeira metade da década de 1960.
Naquele período, em boa parte por
sua atividade docente, entrou em
contato com grupos de diversas partes do país, vindo a ponderar que a
análise regional neste país teria um
peso e um significado diferentes de
outras partes do continente. A crítica histórica do círculo vicioso da pobreza teve um significado muito especial, naquele momento em que foi
formulada e hoje, quando parece remota, porque evoca a temática do
controle da formação de capital no
esforço dos países para superarem
suas condições desfavoráveis. Por
isso mesmo, contém os elementos
básicos de uma critica das políticas
econômicas que descuidem ou ignoram o aspecto de vulnerabilidade
das economias nacionais aos movimentos de capitais especulativos.
Naquele período em que a análise econômica no Brasil estava dominada por uma quase exclusividade
da visão dos grandes centros do Sudeste, percebeu que havia algo de
19
Aníbal Pinto Santa Cruz, La heterogeneidad del capital, Trimestre Económico, abril, 1964. Como se
sabe, o debate entre a visão de heterogeneidade do capital e a de capital como entidade financeira
– Cambridge (UK) vs.Cambridge (Massachussets) aconteceu durante a década de 60 e foi registrada
pela coletânea de Harcourt & Laing , Capital and growth (1967). Entretanto é um pseudo debate, já
que evade a questão substancial da composição orgânica do capital. Observe-se que Joan Robinson
(1973) – Economics versus Political Economy – que a composição do capital é um tema ambíguo em
Marx, entretanto que se torna essencial para a teoria do capital, quando se enfrentam os problemas
mais complexos de renovação tecnológica. Tal como se pode ver no referido livro de Harcourt & Laing,
o debate cerca da heterogeneidade – de que é parte o artigo de Aníbal Pinto – é uma reação à
autosuficiencia da visão do capital financeiro.
20
Referencia a Production of commodities by means of commodities, (1961). O livro de Sraffa foi festejado de modo quase universal, talvez em parte por sua parcimônia – levou 42 anos para produzir um
livro de 139 páginas – e talvez porque resolvesse um problema latente em todos economistas, de
desejar que houvesse uma saída pós marxista para a teoria de Ricardo. No entanto, esse livro traz
uma formalização da análise da produção capitalista industrial, que não contempla as transformações inerentes à superação da segunda revolução industrial. Os principais desdobramentos da análise sraffiana – Pasinetti e Garegnani – continuam no mesmo rumo de tentar criar uma explicação pós
ricardiano não inglesa no coração da justificativa inglesa do controle da acumulação industrial. Indiretamente, estão levando água ao pote, isto é, estão construindo uma mecânica da economia plenamente industrial – mercadorias por meio de mercadorias – que não contempla quaisquer outras
dimensões da desigualdade que não sejam essas da própria mecânica interna do processo. A
internacionalização do capital aparece apenas como um desdobramento ulterior e não como centro
do capital mundializado.
21
Não se pode esquecer que uma grande parte da presença das Nações Unidas no após guerra deveuse ao esforço de difundir técnicas estatísticas e de análise macroeconômica em países cujas estatísticas eram precárias, para criar condições de comparabilidade na esfera internacional. O referido
quantitativismo seria uma atitude de tendente a pretender desenvolver e aplicar modelos econométricos,
que geralmente estavam muito além da confiabilidade das estatísticas desses países. Houve uma
substituição da análise econômica possível pela tentativa de impor técnicas quantitativas sem dispor
de números confiáveis para esse uso.
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
9
irredutível na presença do Nordeste. Esse talvez tenha sido seu momento de maior intimidade com a complexidade deste país e o ensejo para
uma visão não centralista dos problemas do desenvolvimento.
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visão de auto-regulação da produção capitalista), em Valor, força de trabalho e acumulação capitalista, São Paulo, Estudos
CEBRAP, s.d.
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10
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
EL FINANCIAMIENTO DEL DESARROLLO Y EL
CÍRCULO VICIOSO DE LA POBREZA1
Aníbal Pinto Santa Cruz2
A. El círculo vicioso de la
pobreza
La activación del desarrollo económico depende, como ya se sabe,
de la capacidad de una población
para apartar del consumo una fracción adecuada de sus ingresos (o
recursos) para destinarlos a la creación de capital. En relación a este
problema se ha popularizado la metáfora del círculo vicioso de la pobreza. Ingreso bajo – ahorro bajo –
productividad baja – ingreso bajo
etc. En resumen, “son pobres porque
son pobres”.
En términos estrictamente financieros, “el círculo vicioso” no existe.
Los países podrían disponer de todo
el ingreso monetario que desearan
si las autoridades bancarias dieran
“empleo pleno” a las máquinas
impresoras. Desde ese ángulo, la
pobreza se apreciaría en función de
la capacidad para crear y distribuir
medios de pago. Lo anterior, claro
está, no tiene otra significación que
una especie de “reducción al absurdo”. En verdad, cuándo hablamos
de “ingresos” nos referimos tácitamente a “ingresos reales” en un sentido muy claro: como una contrapartida financiera que es el reverso
de la corriente de bienes y servicios.
Al hablar de ahorro y capacidad de
ahorro, no nos referimos solamente
al saldo monetario de ingresos que
se sustraen del consumo, sino que
implicamos lo que va con él, como el
cuerpo y la sombra – en este caso –
que son los recursos humanos y
materiales que esas rentas representan, o mejor dicho, sobre las que tiene
dominio.
En otras palabras, expresar que
ahorramos tal o cual proporción del
ingreso equivale a señalar que una
mayor cuota de bienes queda dispo-
nible para la inversión, y tal decisión
sólo tiene pleno sentido o importancia en esa acepción.
En su forma más simple, el problema del “círculo vicioso” de la
pobreza podria exponerse gráficamente así:
S1
100
S2
10
El sector 1 es el productor de
bienes de consumo. El sector 2 es el
productor de bienes de capital. En
una esfera están reunidos y combinados los factores productivos que
satisfacen las necesidades inmediatas de la población. En la otra, los
recursos que tienen por objeto mantener y expandir la capacidad productiva.
En un país adolescente, de baja
productividad relativa, el S1 absorbe el grueso de los factores de producción (el caso de una comunidad
primitiva). En términos de ingresos
esto significa que el margen susceptible de ser ahorrado es obligadamente muy pequeño. El s 2 por oposición,
es muy reducido si se mide por la
proporción de recursos que absorbe
y no sólo eso: crece lentamente ya
que es muy limitado el flujo de recursos que puede transferir el s 1
para su ampliación.
En una economía que se expande, tanto la magnitud como as proporciones de los sectores van modificándose. Podríamos imaginarlas así
después de un periodo de desenvolvimiento activo:
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
S1
200
S2
40
La comunidad ha sido capaz de
desplazar hacia el sector consumo
una parte creciente de sus recursos
y ese esfuerzo se ha traducido en una
ampliación de ambos sectores, pero
en mayor proporción de la esfera que
produce bienes de capital. Para tener
una idea concreta del desarrollo de
ese proceso pueden considerarse las
siguientes cifras respecto a la evolución de la importancia relativa de las
industrias de bienes de consumo y
las de bienes de capital en los Estados Unidos
1850
1900
1927
I
II
43%
35
32
18%
23
39
Gracias a esa expansión acelerada – con respecto al otro sector – la
inversión por hombre ocupado en el
país del norte ha sobrepasado los
US$7.000.
El problema tratado puede apreciarse desde otro ángulo, más preciso, en las siguientes ecuaciones
basadas en aquel esquema de dos
sectores:
Y=
O=
S=
C=
ingreso
producto
ahorro
consumo
Y los signos 1 e 2 para señalar
los componentes de ambos sectores.
1
Este material inédito é a segunda parte de um texto escrito por Aníbal Pinto para um conjunto de aulas
que proferiu para a matéria Financiamento do Desenvolvimento, em curso realizado em Salvador em
1963, em cooperação entre a SUDENE e a Universidade Federal da Bahia e coordenado pelos professores Edivaldo Boaventura e Fernando Pedrão.O artigo foi conservado em sua estrutura original,
não atendendo a padronização editorial da RDE.
2
Economista. Pesquisador da Universidade do Chile. Ex-diretor da CEPAL.
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
11
0 = 01 + 02 = Y = C + S
01 = C1 + S 1
02 = C2 + S 2
02 = S = S1 + S2,
luego, S1 = C2
Esto es, el consumo del sector
inversión debe ser igual al ahorro del
sector consumo. A fin de que la
población activa en el sector inversión pueda dedicarse a la creación
de bienes de capital, se requiere que
aquella que labora en el sector 1
produzca un excedente sobre su propio consumo.
Para esclarecer más este problema y con miras a anticipar otras
cuestiones relacionadas que examinaremos más adelante, conviene que
nos detengamos más en las relaciones entre los sectores 1 y 2.
Supongamos que el excedente de
bienes de consumo que deja el S 1
permite ampliar en el S 2 la producción de acero. Logrado ese objetivo,
se va a plantear en seguida el problema del destino o uso que se va a
dar al incremento de esa disponibilidad. Imaginemos algunas alternativas: (a) la mayor producción de
acero se pone a disposición de las
industrias del sector I a fin de que
aumenten la oferta de bienes durables, menaje etc.; (b) el incremento
marginal de la oferta de acero queda
integramente en el sector II, para
ampliar su capacidad productiva
(descontando que ha habido provisión para las depreciaciones en ambos sectores) ; y (c) una combinación
de (a) e (b).
Evidentemente la alternativa más
favorable desde el punto de vista del
desenvolvimiento es la (b) , o en todo
caso una (c) que inclinara la distribución del acero agregado a favor de
S 2 . Esto podría exponerse así: no
sólo importan los márgenes de
ahorro del S 1 , sino también es primordial resolver acerca del destino
de los frutos de ese ahorro. En otras
palabras, de que S 1 siga ahorrando,
en el sentido de que renuncie al goce
inmediato de los resultados del
esfuerzo realizado.
En lo que respecta a esta cuestión,
el profesor Kaldor llama la atención
12
respecto a la distinta “posición estratégica” de los dos sectores. El S2
es dependiente de S1 porque su escala de operaciones está subordinada al ahorro de este último, es decir
al margen de bienes de consumo que
deja disponible al S1, o sea, a una
decisión de éste. Sin embargo, las
relaciones de medios o términos de
intercambio entre los dos sectores –
la cantidad de bienes de capital que
puede trocarse por una unidad de
bienes de consumo – está determinada por el S2.
Supongamos que la producción
del S2 consiste de acero. De lo dicho
puede deducirse que la cantidad
producida va a depender del margen de bienes de consumo liberados
, no consumidos, por el S1. Sin embargo, la producción de acero que se
pone a disposición del S1 estará determinada por las decisiones del S2.
De qué manera? Elevando el precio
de sus productos puede reducir la
rentabilidad de las inversiones en el
S1 y acrecentar la que puede esperarse en el propio.
Imaginemos que el S1 ahorra 100
unidades de trigo, que permiten al
S2 operar en una escala que se
traduce en la producción de 100
unidades de acero, fijará un precio
al acero que lleve a intercambiar 70
unidades por las 100 de trigo. Si el
S1 redujera en 90 unidades de trigo,
obligaría al S2 a disminuir su producción de acero también a 90 unidades, pero si el S2 quisiera continuar usando las 30 unidades del
ejemplo anterior, podría hacerlo colocando el precio necesario al acero
a fin de que 60 unidades se trocaran
por las 90 de trigo que ahorró el S1 .
En otras palabras, habría empeorado la relación de precios para el
sector consumo.
Quizás la consecuencia más importante de lo expuesto es que los
países que desean activar su desarrollo necesitan en alguna medida
llevar a cabo el proceso de radicar
en el S2 una buena o mayor parte de
la capacidad acrecentada por el acto
de ahorro en el S1. Eso significa dedicar a las industrias de bienes de
capital (siderurgia y metalurgia,
cemento, maquinarias, energía) una
mayor proporción de su producción,
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
que le requeriría un crecimiento paralelo o similar de los dos sectores.
He aquí la razón básica del énfasis
colocado sobre el crecimiento acelerado de las industrias pesadas en
algunos programas de desarrollo
económico intensivo. Asimismo
subraya la importancia del funcionamiento y control de las industrias
básicas de capital, ya que ellas
pueden ser la fuente de sus propios
requerimientos de inversión. Un
caso ilustrativo en este asunto es la
política de tarifas o precios de las
industrias de servicios públicos o de
las industrias pesadas en general.
Cómo dijimos antes, todo esto implica que los frutos del ahorro se
distraen en alguna medida del
sector de producción para el consumo y se concentran en la ampliación
de la capacidad productiva. Ello,
naturalmente, permitirá una expansión ulterior más acelerada de ambos sectores.
Como una cotación al margen de
esta cuestión y por su decisiva
importancia para el proceso de
ahorro – inversión y el del desarrollo
en general, cabe subrayar que el
sacrificio presente o directo del acto
de ahorrrar, de substraer ingresos y
recursos del consumo, no se altera
por el hecho de que una parte importante de los mismos se dedica a
la expansión del S2 en vez de
dirigirse a ampliar la capacidad o
provisión de recursos para el S1.
Volviendo al ejemplo de Kaldor,
el S1 ahorró 100 unidades de trigo y
las puso a disposición de los inversores a fin de que éstos ocuparan
factores en la creación de medios de
capital. Estos bienes de producción
(otra vez dejando de lado el problema de mantener la capacidad existente) puede dirigirse o utilizarse en
uno u otro sector. Supongamos que
toda la inversión neta es en el S2 . En
este caso el sacrificio extra del sector
consumo estribará en no aumentar
su capacidad de producción inmediata o próxima, pero no implica
acrecentarlo en forma absoluta o
actual, ya que está fijado por las 100
unidades de trigo.
Desde ese ángulo podemos apreciar que una tasa o volumen de
inversión producirá muy distintos
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
efectos sobre el desarrollo según implique una mayor o menor preferencia por la expansión de S2, aunque
el sacrificio actual de ahorro sea el
mismo en ambos casos.
Las relaciones que se establecen
desde ese ángulo no deben confundirse con el problema de la productividad de la inversión o del capital,
que se expresa en la relación poducto/capital. Por ejemplo, una inversión en un cinema y otra en una obra
de irrigación pueden tener la misma
productividad si comparamos el
volumen de ingresos que genera
cada unidad de capital en esos usos,
pero el efecto sobre la capacidad
productiva y el potencial de desarrollo será muy distinto en ambos
casos. Por otra parte, en el momento
en que apartaron recursos del consumo paraísos fines, el sacrificio del
acto de ahorro fue idéntico , supuesto
claro está, que se requerian los mismos factores.
Retomando el hilo de la exposición podrá sentarse el supuesto obvio
de que los países que tienen un sector
I relativamente reducido en comparación con sus habitantes, se encuentran en pié más difícil para ampliar
el sector II, o, dicho en otros términos, como S1 (ahorro del sector I) es
pequeño, también lo es C 2 ( que representa el margen de bienes de consumo que debe ponerse a disposición de quienes laboran en el sector
de bienes de producción).
Este principio elemental tiene
alguna corroboración estadística,
aunque veremos más adelante que
está expuesto a serias críticas.
Tasas de inversión en algunas áreas
Europa Occidental
Estados Unidos
América Latina
Excepción
Europa Oriental
+ de 20%
+ de 15%
+ de 15%
expansiones sucesivas de la capacidad de los sectores. Así nadie debería
preocuparse mayormente de esas
relaciones y todo el problema estribaría en que los caminantes se
encuentran en un momento dado en
puntos más o menos avanzados de
la carretera. Lo que ocurre, sin embargo, es que en gran parte del mundo sub-desarrollado no hay o no ha
habido durante largos períodos una
expansión secular que derive en
aquella desviación de recursos hacia
la inversión: en otros países la cadencia del crecimiento no ha bastado para compensar el aumento de la
población; y en el resto, finalmente,
la expansión ha sido demasiado
modesta, inestable o desequilibrada
para satisfacer la comunidad.
En esta materia cabe referirse a
una circunstancia marginal, a nuestro tema específico, pero de enorme
significación para ubicar el problema en un marco adecuado. Es el
hecho de la tendencia indisputable
durante un largo período a la acentuación de las desigualdades en el
desarrollo económico internacional.
(A) El caso de las naciones más
rezagadas de Asia y Medio Oriente,
que parecen encontrarse aún en términos absolutos más pobres que
hace un siglo, no sólo han quedado
al margen de la revolución industrial, el sistema capitalista, la irradiación del “libre comercio internacional” etc., sino que puede suponerse
que éstos y otros fenómenos contemporáneos resultaron contraproducentes para ellos. (B) La experiencia
de otras economías adolescentes –
entre las cuáles pueden encontrarse
América Latina – que han logrado
algún incremento en sus niveles de
ingreso, pero que se hallan, sin embargo, a una distancia mayor que
hace un siglo de los niveles alcanzados por los países centrales.
+ de 25%
El truísmo de que a mayor volumen de ingreso por persona hay una
mayor reserva potencial para transferir recursos hacia la inversión,
tendría mayor significado si el
desenvolvimiento fuera un proceso
espontáneo, persistente o necesario,
que automáticamente se tradujera en
B. La ruptura del círculo
vicioso de la pobreza
El interés del examen histórico
del problema de romper el círculo
vicioso de la pobreza reside en la
circunstancia meridiana de que numerosos países han logrado sobrepasar los obstáculos que dificultan
el camino y emprender el ascenso
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desde niveles tanto o más bajos que
los que caracterizan a muchos países adolescentes en la actualidad. re
las experiencias o modelos más representativos que se mencionaron en
esta materia vale la pena considerar
los de Inglaterra, Estados Unidos, la
Unión Soviética y Japón.
Para Singer, el caso inglés se caracteriza por una combinación de
dos elementos principales, que son
una distribución desigual del ingreso y una alta propensión a ahorrar,
un espíritu puritano de la gente que
recibía altas rentas. En otras palabras, aludiendo a menciones anteriores, a una compresión muy resuelta
y sostenida del sector de producción
para el consumo – fundamentalmente el consumo de gran masa – y el
aprovechamiento de los recursos así
disponibles para la formación del
capital.
Algunas condiciones muy sui
generis se requirieron para que
tuviese lugar esa combinación.
En primer lugar cabria señalar la
reforma agraria inglesa, que destruyó la estructura feudal en el campo, caracterizada por la explotación
semi-comunal de pequeñas extensiones fragmentadas y la sustituyó
por una agricultura de extensiones
más amplias y dirigida a satisfacer
la demanda por alimentos y materias primas de las ciudades. Esa reforma, como se sabe, no implicó una
revolución en el sistema de propiedad sino que fundamentalmente un
cambio en la organización y en el
funcionamiento del sistema agrícola. Por otra parte, está el sistema
suplementario que anota Singer. La
alta propensión a ahorrar de quienes
resultaron favorecidos por la situación descrita. Para explicar esa inclinación incluso se alude frecuentemente a condiciones de tipo religioso, como la influencia del movimiento protestante y las proyecciones económicas del mismo: una
estimación por los valores materiales, sobriedad en los hábitos de vida
etc..
Desgraciadamente, para esas tesis
generalmente aceptadas, la escasa
documentación empírica no ofrece
mucho asidero. De acuerdo a Simon
Kuznets, por ejemplo, que se basa
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13
en varias investigaciones inglesas,
el porcentaje de formación de capital en el Reino Unido entre 1870 e
1890 fue inferior al 10% sobre el
producto bruto y en el mismo periodo en Estados Unidos fue más del
doble.
De manera, pues, que no habría
sido la abstinencia de consumo por
parte de los sectores no asalariados,
que son la otra parte de esa ecuación
socio-económica del desarrollo inglés. Pensamos, en cambio, y nada
más que a título de vaga hipótesis,
que podrian haber tenido mayor
gravitación elementos como los
siguientes:
a. Las innovaciones tecnológicas
del periodo, que elevaron sustancialmente la productividad del
sistema.
b. El hecho de que una parte considerable de las inversiones debió
dirigirse a las industrias básicas
de capital, especialmente después
de la expansión textil del primer
periodo, cuestión que parece muy
probable, al recordar la estructura
de la economía inglesa del periodo y el hecho de que la expansión
de las industrias de consumo para
la masa estaba constreñida por el
patrón de la distribución de las
rentas.
c. Seguramente su condición de
principal proveedor de bienes de
capital permitió a Inglaterra
establecer una relación de precios
ventajosa para su economía, a lo
que habría que agregar la existencia de condiciones políticas – v.g.
su posición rectora del mundo que favorecían al proceso. Sobre
esa materia Meier & Baldwin
señalan que los historiadores económicos generalmente concuerdan en que una parte substancial
del incremento en el ingreso real
de Gran Bretaña puede atribuirse
a un mejoramiento secular de sus
términos de intercambio.
d. Por último, aunque no menos importante, el desarrollo económico
inglés fue alimentado por una
caudalosa transferencia de ingresos de otros países, gracias al sistema colonial. Los antecedentes
muy minuciosos sobre la contri-
14
bución dela Índia, por ejemplo, no
dejan dudas de que el crecimiento
del ingreso, que a la postre llegó
también a alcanzar a los grupos
que habían sufrido y pagado por
la Revolución Industrial, se debió
en buena proporción al factor
señalado. (Ver al respecto, Political Economy of Growth, por Paul
Baran, University of Stanford, Estados Unidos).
Respecto a las características del
proceso de financiamiento de la
creación de capital, es posible distinguir algunas fases características
en la evolución inglesa.3 Entre 1750
e 1800 se ha percibido que la acumulación se debió a la “inflación de utilidades”, que fueron ahorros forzosos a través de un retraso de los salarios monetarios respecto de los
precios en alza, que facilitaron la
acumulación de fondos para la inversión en nuevas empresas y ampliaron el margen de ganancias que
podrían reinvertirse en el sistema
industrial.
Durante el siglo dieciocho y la
primera parte del diecinueve, el
financiamiento interno antes que el
externo, basado en el sistema bancario y en las bolsas de valores, fue el
principal medio de desenvolver las
empresas industriales. Hacia fines
del siglo dieciocho el sistema bancario comenzó a adquirir un gran
impulso, pero de preferencia facilitó
el capital de trabajo en tanto que los
ahorros individuales y las utilidades no distribuidas proveyeron los
recursos para la formación de capital, desarrollándose con el tiempo las
instituciones conocidas del mercado financiero. Es interesante señalar
que en Inglaterra, a la inversa que
en el continente, y sobre todo en
Alemania, los bancos se mantuvieron ajenos al financiamiento, control
y promoción de empresas, lo que se
explica porque hubo un flujo suficiente de ahorros desde las otras
fuentes ya mencionadas. En este último sentido, habría que mencionar
la aparición en la constelación
financiera de uno de los instrumentos más eficaces y que pasa a ser
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3
dominante en la organización privada: la sociedad por acciones o
anónima.
En tiempos recientes, el proceso
de financiamiento en Gran Bretaña
ha experimentado cambios que son
comunes a prácticamente todos los
países europeos y que se podrían
resumir en: (a) la pérdida de importancia de la contribución de ahorros
personales; y (b) la generación en el
propio mundo de las empresas de
los recursos invertibles. Aún en los
países de filosofía tan liberal como
Alemania Occidental, el ahorro del
gobierno ha representado alrededor
del 40% del total en 1954. Sobre este
punto, véase conferencia del prof.
Carlos Oyarzún.
En el extremo opuesto al modelo
inglés puede situarse la Unión Soviética, cuyo único punto de semejanza con el primero puede estar en
el hecho de que en ninguna de las
dos experiencias jugó un papel la
inversión extranjera. En el ejemplo
soviético, como es evidente, el desarrollo económico tiene lugar en el
marco de una estructura social y
política por completo diferente, por
no decir opuesta. Sin embargo, algunos rasgos económicos fundamentales se repiten. Por una parte está el
fenómeno del crecimiento desproporcionado de los sectores básicos,
que se traduce en una expansión
acelerada de la esfera de la producción de bienes de capital y en la
contención del crecimiento del sector
de producción para el consumo. Por
otra parte, sobresale el hecho de la
transformación agraria, que a la vez
que liberó mano de obra para las
industrias y las actividades terciarias – servicios de toda clase – provee
el excedente alimenticio y las materias primas de origen agropecuario,
que demanda la industrialización.
Respecto al primer aspecto, el
agente social que tuvo a su cargo la
recepción de los ingresos y su canalización hacia la formación de capital fue el Estado y no la clase propietaria, que en el proceso aseguró el
dominio sobre los medios de producción en Inglaterra. Mirado desde un
ángulo menos institucional, podría
Ver, para mayores detalles, G.Meier e R. Baldwin, Economic Development.
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decirse con Hans Singer que el grupo o partido dirigente desempeñó el
papel respectivo. Hay pocas dudas
que ese conglomerado humano consiguió eludir gran parte de los
sacrificios que resistió la masa, pero
no es menos efectivo que la prodigalidad, el consumo conspicuo y la
relajación que traerían aparejadas
no han figurado corrientemente entre los múltiples defectos que se han
criticado en esos agentes políticos
del proceso de acumulación. De allí
que el mismo Singer se haya referido alguna vez al patrón victoriano
de la sociedad soviética dirigente.
Hay considerable discusión respecto al grado de sacrificios que implicó para a población rusa el desenvolvimiento económico. Que ha
habido un sacrificio relativo no cabe
duda y está registrado en la distinta
intensidad del crecimiento de los
sectores. Sin embargo, no está claro
si el proceso también implicó otro de
carácter absoluto, es decir que el
esfuerzo haya requerido en el período o parte de él una disminución del
ingreso o mejor dicho del consumo
por persona. A este respecto el economista inglés Maurice Dobb,4 sostiene que deben dejarse de lado las
influencias o causas extra económicas, como las que afligieron los
primeros diez años de la revolución.
Descontados esos efectos y ese periodo, Dobb sostiene que hubo pequeños aumentos del consumo y no una
reducción del mismo y que el gran
empeño de inversión se debió esencialmente a la acumulación de los
aumentos del producto en el sector
de bienes de capital. De todos modos
– y sin olvidarse la gravitación de las
exigencias militares y la destrucción
de la última guerra – parece cierto que
el ciudadano tuvo que esperar hasta
estos últimos años para disponer en
alguna cantidad significativa de
muchos bienes de consumo de empleo extendido en los países desarrollados. Esta reflexión, empero, debe
relacionarse con otra que habitualmente se olvida: que el grueso de la
población inglesa debió aguardar
casi un siglo desde el inicio de la
revolución industrial, que se fija aproximadamente em 1760, para que se
compensaran sus ingentes sacrificios
en pro del desenvolvimiento de su
país. Y agregamos que la fase de
mejoramiento arribó principalmente
cuando Inglaterra comenzó a cosechar el fruto de sus inversiones en la
producción agrícola del extranjero y
el giro favorable de sus relaciones de
precio de intercambio.
Esta evaluación, sobra señalarlo,
no toma en cuenta los aspectos políticos del asunto – por ejemplo, si la
población ganó o perdió por ese
concepto al pasar del zarismo al sistema actual. Solamente quiero subrayar que en términos estrictamente
económicos el enorme salto de la
industrialización soviética no importó penurias que resulten desmedidas
en su rigor o prolongación al compararse con las que sufrió la nación
inglesa para romper su círculo de la
pobreza.
La nota anterior es importante
porque quienquiera haya visitado –
como el que escribe – los países de
Asia, se habrá dado cuenta de que el
impacto de la experiencia rusa tiene
poco que ver con la ideología o el
sistema político y mucho, en cambio,
con la reflexión de que es posible en
un plazo no excesivamente largo y
sin reducción absoluta de los niveles de vida, imprimir un impulso vigoroso al desenvolvimiento económico aún desde niveles muy bajos
de productividad e ingresos. Quizás
en esta apreciación exista un grado
de ilusión, porque no puede olvidarse que muchos de los países de esa
región, por ejemplo India, no cuentan con los ricos recursos naturales
de que dispone la U.R.S.S., pelo ello
no despoja de significación aleccionador a la experiencia.
Como es natural, el mecanismo
de financiamiento de la creación de
capital en el sistema soviético difiere
radicalmente del empleado en los
países de empresa privada. El Estado, por medio del presupuesto fiscal, es el principal recolectador e inversor de los ahorros colectivos. Por
otro lado, las empresas estatales y
las granjas colectivas también disponen de una parte menor de los recursos para la capitalización, ya que
están autorizados para retener un
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4
margen de las utilidades de sus
operaciones productivas.
El medio que emplea el gobierno
para reunir los ahorros es el común,
de un superávit en cuenta corriente,
esto es, un excedente de las entradas
respecto a los gastos que no involucran aumento del capital nacional.
Ese superávit, unido a los recursos
propios citados arriba, constituye el
volumen del ahorro que pasa a
disposición de las unidades productivas, de acuerdo a las decisiones
generales y particulares del plan.
Un aspecto interesante y discutido del sistema soviético es la estructura tributaria que le permite acumular los recursos para sus gastos
corrientes y de capital. Como se sabe,
la fuente primordial de ingreso está
representada por los impuestos indirectos sobre las mercaderías producidas. En esta clasificación también
se incluyen los tributos sobre las utilidades de las empresas estatales y
las deducciones o imposiciones de
seguridad social sobre los salarios,
ya que representan cargas sobre los
precios.
Parece indudable que el efecto de
este régimen tributario es de carácter
regresivo, esto es, significa una
contribución mayor sobre el ingreso
para las personas de menores rentas,
efecto que se atenúa en alguna medida por cierta discriminación que
favorece a los bienes más esenciales.
A juicio de algunos investigadores (ver F.D. Holzman, Financing
Soviet Development, trabajo del libro
Capital Formation and Economic
Development, Universidad de Princeton) esta preferencia del régimen
fiscal soviético obedece a tres razones:
a. que los efectos psicológicos de
la tributación son menores que
en el caso de la imposición
directa y personal a los ingresos;
b. que los impuestos indirectos
son de administración más
simples;
c. que el impuesto al valor de las
producciones facilita la planificación de la economía. Como
existe un mercado relativamente libre de productos de consu-
Simon Kuznets, Soviet economic development since 1917.
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
15
mo, por medio de la tributación
pueden equilibrarse oferta y
demanda elevando o bajando
los precios de los artículos.
A lo anterior habría que agregar
que la teoría y práctica soviéticas se
han mostrado muy indiferentes a
los problemas de la distribución del
ingreso, salvo en lo que respecta a la
necesidad de establecerse incentivos
apropiados para los elementos calificados de la mano de obra. Parece
haberse partido de la base de que
proviniendo todas las rentas del trabajo y Estado supeditados a una
ponderación de la utilidad social del
servicio prestado, no hay lugar para
las preocupaciones que interesan en
otros tipos de sociedades. En resumen, el sistema soviético se basa en
un mecanismo de ahorro a través del
sistema de precios y que se traduce
en el control y dirección del volumen
de consumo de la población.
El modelo de crecimiento de Estados Unidos – que tiene algún parentesco con el de Canadá, Australia y
Nueva Zelandia ) es el que más se
asemeja en el terreno económico al ya
famoso “parto sin dolor” de la medicina actual. Evidentemente, no fue
una situación idílica la que afrontaron los esforzados pioneros de la
colonización norteamericana, como
tampoco pueden olvidarse las dificultades y penurias que encaró el proletariado industrial en los períodos
formativos de la industrialización. La
documentación económica y la literatura social nos ofrecen abundante
testimonio al respecto y vale la pena
recordar que el día que consideran
como su principal festividad los
trabajadores de la mayoría de los países, recuerda precisamente el drama
obrero de un 1er de mayo en Chicago. Sin embargo, en términos relativos, que son los que importan para
estos exámenes, difícilmente puede
ponerse en duda que el formidable
progreso del país del norte requirió
una suma mínima de sacrificios en
comparación a otros países y a la
generosidad de la cosecha de bienestar material conseguida.
Esta experiencia afortunada se
debe a una conjunción de factores
de diverso orden. En primer lugar,
habría que referirse a la combinación
16
excepcional, de recursos humanos y
naturales, tan ricos unos como otros.
Respecto al primer factor, bien se
sabe que las corrientes de inmigración trajeron a Estados Unidos a una
parte de los elementos más emprendedores y capacitados que existían
en Europa, gente que poseía el bagaje
técnico de la época y que se encontraba poseído de un espíritu indomable y resuelto a superar toda clase
de obstáculos. Por otra parte, esa
energía se volcó sobre un medio
material de gran riqueza potencial:
tierras vírgenes y abundantes, aptas
para todas las explotaciones en su
inmensa área, ricas en variadas reservas minerales.
De esa feliz combinación de recursos, unida a una mentalidad realmente identificada con el progreso
y con la necesidad de la acumulación, surgieron caudalosos los excedentes destinados a elevar la productividad agraria y a desarrollar los
otros sectores económicos. Es útil
indicar que las propias unidades
agrícolas y el comercio y pequeñas
manufacturas fueron la cuna de los
industrialistas que habían de transformar la economía.5 El proceso de
formación de capital se alivió también porque, como anota Hans Singer, “los fondos que fueron necesarios
para el crecimiento del país y que Inglaterra y la U.R.S.S. generaron con enormes sacrificios fueron obtenidos por Estados Unidos en la forma del dinero
gastado por los países fuentes de la
migración en el aprovisionamiento,
preparación y equipo de los que partieron a Estados Unidos”.
Junto a los elementos anteriores
conviene subrayar la importancia
decisiva del dinamismo y de la flexibilidad inherentes a una sociedad
abierta, esto es, libre de las rigideces
institucionales y del peso de tradiciones desventajosas para un proceso de cambios persistentes en la
estructura social y económica. La
ausencia de una organización feudalista en la agricultura, con el consiguiente monopolio o control de los
recursos y el poder por minorías sin
intereses en la mutación del cuadro
existente, puede apreciarse en toda
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
5
6
7
su trascendencia al cotejar la evolución dispar que tiene lugar en el Sur,
donde existían esas trabas, y en otras
áreas del territorio.
Un aspecto interesante en el
desarrollo de Estados Unidos es el
referente al aporte extranjero a la
formación de capital por la vía de
inversiones o transferencias de
ingresos. Aunque parezca extraño a
la luz de las oportunidades que
ofreció ese pujante mercado, las
inversiones a largo plazo en el país
del norte no parecen haber sido
sustanciales ni en relación a la
inversión con recursos internos ni
comparados con las contribuciones
a otras áreas. Respecto al primer
punto, los datos recopilados por
Kuznets6 indican que el aporte exterior representó entre 1870 y 1890
aproximadamente el 7% de la creación de capital interna, que desaparece posteriormente, cuando Estados
Unidos se transforma en país acreedor. Asimismo, en la distribución de
inversiones a largo plazo de los
principales países exportadores de
capital, que exceptuando Estados
Unidos llegaban a unos 40.000 millones de dólares en 1913-14, la economía norteamericana sólo recibió
6.800 millones, cifra inferior a la de
América Latina – 8.500 millones – y
a la de Europa – 12.000 millones –
comparable solamente con la de
Asia, 6.000 millones. Esta evolución
subraya la observación de algunos
autores de que, contrariamente a las
suposiciones abstractas, desde antiguo los movimientos de capital sufrieron una gran influencia de las
consideraciones políticas. A este respecto se destaca que buena parte de
las inversiones en Europa fueron
dirigidas antes de los años citados a
países europeos y Rusia con fines
extra económicos y por influencia de
los gobiernos acreedores. Sobre ese
punto Kuznets señala que los fondos
internacionales de capital disponibles sólo fluyeron en parte hacia los
canales de una demanda garantizada para la formación de capital.7
En cuanto a la estructura o mecanismos financieros para la conversión de los ahorros en capital, el
Ver G. Soule, Economic forces in American History
Simon Kuznets, op.cit.
Simon Kuznets, op.cit.
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estudio de Goldsmith8 indica algunas tendencias significativas en la
evolución norteamericana. En primer
término esas tendencias señalan un
marcado cambio en la relación entre
los activos financieros o intangibles
– acciones, bonos etc – y el capital
reproductivo o activos reales. El coeficiente era muy bajo alrededor de
1850, período del que se disponen
los primeros cálculos, cuando los
activos financieros representaban
aproximadamente la mitad de los
físicos. Eso es muy natural, dado el
escaso desarrollo de las instituciones
financieras y las corporaciones de
negocios o sociedades anónimas, lo
mismo que la deuda pública. Con
posterioridad, la relación sigue
inclinándose a favor de los activos
financieros que en los últimos años
representan un valor equivalente al
capital reproductivo. El proceso,
como es evidente, representa la
creciente sustitución de la propiedad
directa – en que se confunden dueño
y empresa – por la indirecta – en que
esas dos categorías se separan y son
relacionadas por títulos o valores
financieros. Por ejemplo, la explotación agrícola tradicional y la inversión o propiedad por la vía de una
institución de seguros o de financiamiento.
Anota Goldsmith que “si la primera mitad de este siglo es tomada en
conjunto…se percibe que menos de un
cuarto de la expansión neta total de los
activos de las unidades familiares, menos de un tercio de la de los gobiernos
locales y estaduales y de los negocios no
integrados en corporaciones, pero 3/5 del
incremento de activos de las corporaciones
no financieras, requirieron fondos externos, es decir, tuvieron que valerse de los
canales financieros”.9
Otro aspecto digno de destacarse
en el proceso de formación de ahorros y capital en Estados Unidos y
que contrasta con la situación emergente en otros países capitalistas
avanzados, es la importancia que
mantienen los ahorros individuales
en el volumen global, aunque su
proporción haya disminuido ligeramente con el tiempo.
Como se puede apreciar, aumentó
la participación de las empresas y
del gobierno.
Según Kuznets, el ahorro bruto se distribuyó así en los dos períodos
escogidos:
Personal
No agrícola
1887-1906
1946-1949
43,3
36,1
agricultura
Sociedades
incorporados anónimas
gobierno
8.1
8,0
Finalmente, cabría aludir al
hecho que representa un marcado
contraste con el modelo británico
que para Estados Unidos el proceso
de crecimiento y de capitalización
ha debido muy poco a la transferencia de ingresos de otros países a causa de sus inversiones en el exterior.
La verdad es que a pesar de su condición de país acreedor, las entradas por este concepto representan
una fracción muy pequeña de su
ingreso nacional. Esto se aprecia
muy claramente en la escasa significación del intercambio exterior en la
producción norteamericana, que no
ha llegado al 5% en los últimos años.
Parece claro que el mejoramiento del
ingreso disponible por ese camino
tiene que manifestarse realmente en
los excedentes de importaciones
respecto a las exportaciones. Y
siendo reducido ese volumen respecto al producto interno, difícilmente
puede ser aplicable ese margen para
el ingreso global.
El problema puede apreciarse con
nitidez en algunas cifras sobre América Latina. En 1955, por ejemplo, la
salida de capitales por servicios y
remesas de utilidades representó
unos 1.100 millones de dólares. La
suma fue muy importante en comparación al valor de las exportaciones
latinoamericanas de ese año, que
alcanzaron a 8.150 millones, pero
relativamente insignificante comparada con el ingreso nacional del país
del norte, que excedió los 300.000
millones de dólares. Se trata, como
se ve, de dos problemas distintos,
que no deben confundirse en este
momento del análisis, aunque más
tarde los apreciemos en distinta for-
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Negocios
8.4
4,4
33.5
36,5
6.8
14,6
ma al detenernos a considerar la
cuestión de las contribuciones y
aportes del capital extranjero.
La experiencia de Japón no ha
recibido tanta atención como las
anteriores. Sin embargo, es indudable que se trata de uno de los fenómenos más fascinantes en la historia
del desarrollo económico. Primero,
es el único país no europeo que ha
logrado introducirse al selecto club
de las naciones industrializadas y,
en seguida que realizó esta hazaña
en un ambiente poco propicio aparentemente para la aventura, como
era la última parte del siglo pasado,
cuando una tras otra de las economías de la periferia no capitalista
fueron incorporadas al sistema de
intercambio creado por las naciones
más adelantadas. Segundo, significa un verdadero reto para los investigadores la circunstancia sin paralelo de que la radical transformación
de la estructura productiva del
Japón se desenvolvió dejando casi
intacto el sistema socio-político tradicional, salvo en lo que respecta a
desplazamientos entre los grupos
dominantes.
Hasta ahora no ha sido posible
resolver enteramente la incógnita
respecto a la motivación o conjuro que
hizo, prácticamente, saltar siglos a la
economía japonesa. Entre las hipótesis más atractivas quizá esté la que
menciona Paul Baran10 y que tiene
alguna sugerencia digna de Toynbee.
A juicio de ese autor, el proceso de
mutación del sistema productivo iniciado por la clase dirigente nipona
puede interpretarse como la respuesta al desafio planteado en Asia por
la invasión comercial y política de
8
R.W. Goldsmith, Capital formation and economic growth
9
R. W. Goldsmith, op.cit.
10
Paul Baran, op.cit.
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
17
las grandes potencias. Ese fenómeno
sometió a una presión angustiosa a
la sociedad japonesa, tradicionalmente hostil a toda penetración
extranjera: o seguir la suerte de China y otros países del área, o erigirse
contra los colonizadores, no con las
armas, que no ofrecían esperanza,
sino con la misma organización y el
instrumento económico que había
hecho poderosos a sus enemigos
potenciales. Su condición insular y
la relativa pobreza de recursos
naturales seguramente favorecieron
la elección y desarrollo de la segunda alternativa.
La estrategia económica del Japón
se asienta, como otras, en una función
decisiva de la agricultura. Por un
lado, el Estado arrebató a los terratenientes el poder de tributación que
tenian sobre los granjeros y que
ejercían por medio de los samurais.
Por el otro lado, se realizó una intensa acción para elevar la productividad de la explotación agrícola, con
los fines ya conocidos – aumentar la
oferta de bienes y de mano de obra –
pero recurriendo a los impuestos,
para impedir que el aumento de
ingresos acrecentara su consumo y
a objeto de canalizarlos hacia la inversión. A esto se agregó la resuelta
política gubernamental de establecer
industrias, desarrollar yacimientos
mineros, astilleros etc., para entregarlos a poderosos grupos privados
a bajo precio, o su compensación. De
este modo, el Estado congenió sus
poderes con los intereses de las grandes casas empresariales, las zaibatsu.
Fue un arreglo poco justiciero para
quienes habian suportado el peso de
la tributación, pelo el objetivo central – la transformación del país – se
obtuvo en un plazo relativamente
breve. Antes de la Primera Guerra
Mundial, en su enfrentamiento con
Rusia, Japón probó que ya era una
de las grandes potencias.
La transferencia de los ahorros
creados por la política fiscal significó el principal mecanismo de financiamiento de la formación de capital. Luego, los propios excedentes de
los grandes consorcios, favorecidos
por una política social y por una
situación de mano de obra excesiva,
que restringía la lucha de los asala-
18
riados, pasaron a constituir la otra
fuente básica de recursos. El capital
extranjero jugó, en general, un papel secundario. Sólo en los años anteriores a la Primera Guerra Mundial representó alrededor del 5% de la
inversión doméstica. En verdad,
pasaron a ser más importantes las
inversiones japonesas en el exterior
y el flujo de ingresos provisto por la
expansión de su sistema colonial. El
discípulo resultó a la postre un destacado exponente de la política contra la que se había rebelado.
C. Revisión: el esfuerzo
interno en la ruptura del
círculo de la pobreza
Una sumaria recapitulación de
los aspectos primordiales en estas
cuatro experiencias tan destacadas
como particulares podría poner de
relieve el papel estratégico de la política y el desarrollo del sector agrícola en relación a la liberación de
mano de obra para los otros sectores,
la provisión de un excedente de alimentos y de materias primas para
las actividades industriales y como
reserva tributaria, como el caso del
Japón Sólo en Inglaterra el comercio
exterior tiene una significación importante como proveedor de alimentos, pero una vez que las inversiones
y exportaciones ya habían crecido
considerablemente.
En lo relativo a los medios de
financiamiento y acumulación de
capital, encontramos que tanto en
Inglaterra como en Estados Unidos
las empresas y el ahorro personal
proveen los principales recursos,
canalizándose hacia la inversión
gracias a un complejo sistema financiero. En cambio, vemos que en Japón
y en la U.R.S.S, con distintas modalidades y contenido, el ahorro creado
por la política fiscal constituye la
fuente básica del proceso. En el caso
de Japón sobre todo en la fase inicial
de la industrialización. Luego, vemos
que el aporte de capital extranjero
tiene una significación muy reducida
en la experiencia de E.E.U.U. y de
Japón y prácticamente ninguna en
las de Inglaterra e de la U.R.S.S. y
aun, que la transferencia de ingresos
desde el exterior, por la vía del
rendimiento de inversiones, la relación con los términos de intercambio
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
y los vínculos coloniales, revista
importancia en Inglaterra y Japón y
muy poco en los Estados Unidosy
ninguna para la U.R.S.S..
Ahora, si proyectamos esos cuadros a la evolución latinoamericana
de las últimas décadas, para intentar un contraste muy simple de características, tal vez se pusieran en
relieve los siguientes aspectos en el
por lo demás muy poco homogéneo
fenómeno latinoamericano. Salvo en
los casos de Argentina, México y
Brasil, la agricultura no ha desempeñado la función “clásica” de las
experiencias antes comentadas. En
cambio, la expansión de las actividades primarias ha constituido, en
general, un medio para adquirir manufacturas y bienes de capital en el
exterior, o sea, para activar la industrialización de otros países. Las relaciones entre los sectores I e II a las
que nos referimos más atrás, podrían
proyectarse en sus líneas básicas
para interpretar el intercambio entre las naciones de producción primaria y las industrializadas. El sistema financiero en general y la
formación de ahorros personales
tienen poco peso en la acumulación.
En casi todos los países, al lado de
la inversión con recursos internos de
las empresas, pesó la participación,
directa e indirecta, del Estado. En
México, la inversión pública se situó
entre el 35% (1946) y el 43% (1953)
del total. En Colombia, subió desde
un 2,2% en 1945 a un 23% en 1954.
En Chile representó un promedio de
35% entre 1946 y 1953. En Brasil, las
cifras de CEPAL sitúan la inversión
pública en ese periodo desde un
8,9% a un 14,6%.
MESTRADO EM
ANÁLISE REGIONAL
O primeiro
da sua categoria
no Estado da Bahia
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VICISSITUDES DA GOVERNANÇA CIDADÃ:
OS
CONSELHOS REGIONAIS GAÚCHOS
(COREDE)
José Eli da Veiga
1
Resumo
Este artigo discute as atuais dificuldades do processo de emergência de novas identidades regionais
no extremo sul do Brasil.
Palavras-chave: institucionalização
de regiões, emergência de identidades regionais, conselhos regionais,
Rio Grande do Sul, COREDE.
Abstract:
This article undertakes a discussion about the current difficulties on
the rise out of new regional identities
in the extreme south of Brazil.
Key-words: institutionalization of
regions, emergence of regional identities, regional councils, Rio Grande
do Sul, COREDE.
1. Introdução
Os diversos tipos de arranjos institucionais de caráter infra-municipal, municipal ou intermunicipal;
micro ou mesorregional; e até estadual ou interestadual, podem ser
vistos como decorrências inevitáveis
da óbvia incapacidade de uma simples estrutura do tipo União/Estados/Municípios democratizar uma
sociedade que objetivamente se organiza em uma dúzia de imensas
cidades metropolitanas, rodeadas
por 160 microrregiões polarizadas e
dominadas por aglomerações urbanas ou cidades, e por uma imensa
variedade de situações que ocorrem
em 390 microrregiões rurais.
Tais arranjos institucionais visam a gerar governança, justamente
onde mais fica clara a debilidade governamental, ou a quase falta completa de governo. E nas partes do
Brasil em que já houve mais desenvolvimento (Sul/Sudeste), essa debilidade ou falta de governo vem se
manifestando com mais clareza nos
vazios institucionais que se situam
entre a base – municipal — e o escalão intermediário – estadual.
Entre as experiências brasileiras
desse tipo de governança micro e
mesorregional destacam-se as dos
dois estados do extremo sul que –
talvez não por mera coincidência –
têm os mais altos índices de desenvolvimento humano (IDH): Santa
Catarina e Rio Grande do Sul. Com
base em pesquisa realizada pelo
autor no primeiro trimestre de 20052,
a seção 3 deste texto se servirá de
concisa descrição analítica, principalmente do caso gaúcho, para propor, na seção 4, discussão mais normativa sobre condições de êxito e
real efetividade desse tipo de experiência. O que permite que se proponha no final um balanço sobre a institucionalização dessas novas unidades territoriais com base nos quatro
critérios enfatizados por Bandeira
(2006), que não devem ser entendidos como etapas consecutivas: a)
definição da forma ou abrangência;
b) formação de imagem conceitual e
simbólica; c) surgimento e instituições e organizações apropriadas; d)
estabelecimento da região como parte
de um sistema.
2. O contexto
Há sempre muita diversidade em
fóruns e conselhos criados, ou modificados, por ações de atores sociais
que — por várias razões e em diferentes conjunturas — optam por se
engajar e se empenhar pela promoção do desenvolvimento. No caso
brasileiro essa diversidade tende a
ser exponencial, não apenas devido
à sua formidável heterogeneidade
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
natural e cultural (que pode ser decomposta em geográficas, históricas,
etnológicas, etc.). Também – talvez
principalmente — por diversas características da evolução política
que transformou essa imensa parte
da América do Sul em federação
tripartite constituída por 27 unidades territoriais e 5.561 municípios,
com graus muito heterogêneos de
autonomia legal e dependência financeira de uma União que há meio
século foi transferida para o coração
do Planalto Central, com a construção de Brasília.
Uma das principais conseqüências dessa estranha federação, que
só foi legitimada pela Constituição
de 1989, é uma óbvia contradição
objetiva entre estrutura governamental e hierarquia territorial. Não apenas entre um Brasil metropolitano e
o resto, comum em grosseiras abordagens urbanísticas que entendem
por interior aquilo que está fora de
algumas das verdadeiras 12 aglomerações metropolitanas. Ou — muito
pior — fora de algumas das oficiais
27 “RM” (Regiões Metropolitanas)
e 3 “RIDE” (Regiões Integradas de
Desenvolvimento). Simplesmente
são ignoradas as influências cruzadas de 37 aglomerações proto-metropolitanas, 77 centros urbanos, e outros 567 núcleos, sobre os restantes
4.500 municípios nos quais a ruralidade é onipresente. E poucos se dão
conta de que o Brasil real é formado
por algo como 550 microrregiões
potenciais, das quais 60 são fortemente marcadas por aglomerações,
100 são significativamente urbanizadas, e 390 são essencialmente rurais.
1
Professor Titular do Departamento de Economia da FEA e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo: www.econ.fea.usp.br/zeeli/ [email protected]
2
Informações bem mais detalhadas sobre os resultados dessa pesquisa estão em Veiga (2005).
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
19
Não resta dúvida
que a descentralização
viabilizada pela
Constituição de 1989 foi
benéfica para a educação
e a saúde...
Além disso, apesar de já estar bem
demonstrado que existem no Brasil
entre 9 e 11 macrorregiões, que em
nada coincidem com as velhas demarcações, quase todas as análises
continuam obrigadas a usar os 26
Estados (mais DF) agrupados em 5
regiões como principais manifestações das desigualdades espaciais. E
tão ou mais delirantes são as que utilizam jurássicas dicotomias oficiais,
como a do urbano versus rural, que
no Brasil é interna aos municípios.
A esse chocante nevoeiro territorial soma-se o resultado ambivalente
da autonomia que foi atribuída aos
5.561 pilares da singular República
Federativa. Não resta dúvida que a
descentralização viabilizada pela
Constituição de 1989 foi benéfica
para a educação e a saúde, duas das
três dimensões mínimas do desenvolvimento. Prova disso é a melhoria
dos indicadores desses dois trunfos
sociais em enorme número de municípios com baixos ou baixíssimos
níveis de renda familiar, além de
medonhas ou horripilantes condições de saneamento. Todavia, em
termos de dinamização econômica,
parece ter sido estéril essa pulverização das transferências de recursos públicos. O Atlas do Desenvolvimento Humano (www.pnud.org.br)
mostra que nos grotões a freqüência
escolar melhorou cinqüenta vezes
mais que a renda. Uma distorção que
decorre a extrema pulverização dos
recursos para investimentos e clama,
portanto, por articulações intermunicipais de caráter microrregional na
linha das pioneiras sulistas.
3. A governança microrregional sulista
ríodo de ditadura militar (Governo
Euclides Triches, 1971-74), e o “Programa de Descentralização Regional”, do período da redemocratização (Governo Pedro Simon, 198690), visaram ambos absorver e promover as pré-existentes estruturas
de atuação da máquina governamental para fins de planejamento do
processo de desenvolvimento. A
principal diferença do atual ambiente institucional e organizativo —
que só começou a realmente emergir
a partir de 1990, na campanha eleitoral de Alceu Collares — está na
ênfase na participação da sociedade civil na promoção do desenvolvimento regional.
São raros (e certamente pouco lidos) os estudos que se propuseram
a reconstituir a trajetória histórica
dessas três consecutivas visões públicas do desenvolvimento territorial.3 Por outro lado, há um rico conhecimento tácito disperso entre protagonistas e observadores dessa experiência (de praticamente 35 anos),
mas não se pode dizer que ele esteja
sistematizado (e, menos ainda, que
tenha sido assimilado por significativo número de quadros governamentais, políticos, acadêmicos,
sindicais, etc., que hoje estão envolvidos em ações de desenvolvimento). É um problema muito sério, pois,
ao lado do semelhante caso catarinense, a experiência de desenvolvimento regional gaúcha é, de longe, a
mais avançada do Brasil. 4 Aliás,
pode-se até perguntar se a dianteira
desses dois estados sulinos em termos de desenvolvimento — apesar
de não serem as mais ricas unidades da federação – pode estar ligada
a um processo de construção institucional incomparavelmente mais virtuoso do que aquele que ocorreu no
Estado de São Paulo, por exemplo.
A divulgação do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal de
2000 (IDH-M) revelou que é tão forte
a superioridade dos catarinenses e
dos gaúchos nas duas dimensões
mais relevantes – longevidade e escolaridade – que eles superam os paulistas. Por isso, dar atenção às diferen-
O “Sistema de Desenvolvimento
Regional e Urbano (Sisdru)”, do pe-
20
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
ças de desempenho entre esses três
Estados pode ser muito elucidativo,
particularmente para quem ainda
acredita que crescimento e desenvolvimento sejam sincrônicos.
O Estado de São Paulo concentra
30% das empresas, 31% dos empregos e mais de 38% da renda gerada
pela economia formal brasileira.
Como fica fora desse cálculo quase
todo o setor primário, no qual são
raros os empreendimentos com cadastro nacional de pessoas jurídicas
(CNPJ), pode-se supor que a economia paulista abranja bem mais de
um terço das empresas e dos empregos, e algo que se aproxima da metade da renda real do país. Não é de se
estranhar, então, que seja mais elevada a renda per capita dos municípios paulistas. Em média, ela é 7%
mais alta que a dos catarinenses e
10% superior à dos gaúchos. Situação que se inverte com as médias do
IDH-M: 0,791 em SC, 0,783 no RS e
apenas 0,779 em SP. Um contraste
que decorre do sofrível desempenho
social de muitos municípios paulistas.
Para procurar as raízes desse
paradoxo, é bom começar pelo aspecto que melhor espelha a diferença: a distribuição dos municípios de
cada Estado segundo as três categorias definidas pelo Pnud. Como nenhum dos 1.405 municípios dos três
Estados está em situação de baixo
desenvolvimento (IDH menor que
0,500), a comparação se resume aos
dois grupos superiores: médio (IDH
entre 0,500 a 0,800) e alto (IDH superior a 0,800). Têm alto desenvolvimento 42% dos municípios catarinenses, 37% dos gaúchos, e somente 26% dos paulistas.
Certo, o Estado de São Paulo é
maior e tem mais municípios. Mas
essa desculpa fica em farrapos quando ele é comparado à soma dos dois
Estados sulinos. Juntos têm 760 municípios, dos quais 293 (39%) com
alto desenvolvimento, enquanto só
há IDH superior a 0,800 em 171 dos
645 municípios paulistas. E a superioridade sulista fica ainda mais patente quando são considerados se-
3
Destacam-se: o capítulo IV de RÜCKERT (2001), pp. 348-494; e o volume 1 de BECKER (2002).
4
O mesmo se aplica para certas regiões do Paraná, principalmente Sudoeste e Oeste.
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
paradamente os indicadores sociais
que compõem o IDH. Por exemplo,
no grupo formado pelos municípios
de alto desenvolvimento, a média de
esperança de vida é de 75 anos em
Santa Catarina, 74,4 no Rio Grande,
e 73,4 em São Paulo. Para todos os
outros indicadores o que varia é a
primeira colocação, disputada pelos
dois sulinos. São Paulo é sempre o
terceiro...
Não há explicação razoável para
esse fenômeno que não passe pelo
avanço relativo das instituições gaúchas e catarinenses de desenvolvimento regional. Enquanto gaúchos
e catarinenses azeitavam instituições locais que favoreciam processos descentralizados de desenvolvimento, os paulistas reforçavam as
que inibem o dinamismo e a modernização da maioria de suas microrregiões. Enquanto no Sul já se discute
quais poderiam ser as melhores formas de gestão de agências de desenvolvimento a serem criadas por dinâmicos conselhos ou fóruns intermunicipais, São Paulo procura novas fórmulas de amparo paternalista a municípios mais atrasados sem
o envolvimento solidário de seus vizinhos mais avançados. Claro, esse
é um contraste que pode ser atribuído a profundas raízes históricas,
pois em São Paulo predominaram as
grandes fazendas escravistas enquanto o extremo Sul era povoado
de forma democrática por colonos de
origem européia. Mas é um contraste que foi confirmado no século XX
em vez de ser contrariado.
O desempenho socioeconômico
de qualquer pequeno município certamente depende muito das qualificações individuais de seu prefeito.
Ele não pode fazer milagres, mas são
bem recorrentes os casos em que a
dinamização pode ser atribuída à
eleição de uma pessoa “fora do comum”, capaz de estimular novos empreendimentos e atrair para seu
município decisivos investimentos
privados e públicos. Quando fica
patente a mudança de “atmosfera”,
constata-se inclusive o retorno de
emigrantes que adquiriram alguma
qualificação profissional e fizeram
poupança suficiente para abrir novos negócios. Mas esse papel crucial
do prefeito não vai muito longe se
estiver isolado, e não conseguir contrabalançar a força de gravidade dos
municípios que já dominam os vínculos sócio-econômicos da região.
Torna-se assim necessária alguma forma de articulação microrregional dos municípios que inclua
aquele que mais os influencia. Só
assim pode haver diagnóstico, planejamento, divisão do trabalho e capacidade operacional. Em todas as
regiões do País já existem inúmeras
indicações de tentativas informais de
se estabelecer “pactos”, e até algumas iniciativas de criação de consórcios intermunicipais especializados. Mas nada indica que a excelente experiência adquirida em SC e RS
pelas “Associações de Municípios”
e por seus respectivos “Fóruns de Desenvolvimento” e “Conselhos Regionais de Desenvolvimento” (COREDE) seja razoavelmente conhecida,
e muito menos que esteja sendo emulada.
O pior é que muitas políticas do
governo federal enveredam pela contramão, ao exigirem que pequenos
municípios “se voltem para o próprio
umbigo”, mediante criação de conselhos municipais, quando o mais
importante seria induzir articulações
intermunicipais. É compreensível
que se queira incentivar a fiscalização da sociedade sobre o uso que as
prefeituras fazem das de verbas federais. Mas é equivocado pretender
que um conselho de um minúsculo
município possa sozinho diagnosticar e planejar seu próprio desenvolvimento.
Em movimento independente das
demarcações oficiais adotadas pelo
governo estadual (Microrregiões Polarizadas e Bacias Hidrográficas), e
pelo IBGE (Microrregiões e Mesorregiões Geográficas), os municípios
catarinenses se organizaram em 21
microrregiões “espontâneas”, conhecidas como regiões das associações,
cada uma com seu respectivo centro
regional, também chamado de “município-pólo”. As Associações de
Municípios catarinenses são instituições de caráter cooperativo que
começaram a ser implantadas desde a década de 1960. Mas foi só com
a posterior multiplicação que o go-
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
O pior é que muitas
políticas do governo
federal enveredam pela
contramão, ao exigirem
que pequenos municípios
“se voltem para o próprio
umbigo”...
verno estadual passou a estimular
seus programas de trabalho e a apoiar
sua articulação.
As duas primeiras reivindicações
motivadoras do surgimento das Associações de Municípios catarinenses foram: construção de estrada (BR282) e expansão da rede de energia
elétrica. Desde então, o leque de objetivos não cessou de se ampliar. A
organização foi sendo moldada pelos vínculos sócio-econômicos e culturais que existem entre os municípios. E as associações ficaram cada
vez mais profissionalizadas. Já em
1998, mais da metade de seus empregados tinha nível superior, além
do pessoal de nível médio ser principalmente constituído por técnicos
em informática. E os municípios que
mais se apóiam na estrutura das associações são justamente aqueles
que são considerados de médio e de
pequeno porte.
A partir de 1992, surgiram convênios entre o governo estadual e as
Associações de Municípios para que
fossem elaborados “Planos Básicos
de Desenvolvimento Regional”, que
logo depois passaram a ser chamados de “Planos Básicos de Desenvolvimento Ecológico-Econômico”, para
se adequarem ao “Programa Nacional de Zoneamento Ecológico-Econômico”.
Como conseqüência, foi realizada uma viagem a diversos países da
Europa, com participação de alguns
prefeitos, com o objetivo de conhecer as estratégias utilizadas para a
promoção do desenvolvimento regional. E foi essa a origem dos Fóruns
Regionais de Desenvolvimento,
mais o Fórum Catarinense de Desenvolvimento, criado em 1996, e com-
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
21
posto de 59 entidades públicas e privadas, que envolvem todos os segmentos organizados da sociedade.
Com certeza uma das duas matrizes
institucionais de desenvolvimento
mais avançadas do País.
Foi em tudo semelhante o processo gaúcho de construção das instituições e organizações de desenvolvimento regional. Pode-se dizer até
que, tanto em SC quanto no RS, tudo
começou nos anos 1970, com as influências estimuladoras dos extintos Serphau e Sudesul5. E que, apesar das diferenças com o que agora
ocorre em Santa Catarina6, o ambiente institucional para o desenvolvimento regional permanece muito
parecido. A essência da questão reside no fato de que, tanto quanto o
atual governo Rigotto, os quatro precedentes (de Simon, Collares, Britto
e Dutra) procuraram — cada um a
seu modo – formas de convivência e
cooperação com as embrionárias organizações regionais.
3.1
A experiência gaúcha
Começar com este explícito e inequívoco reconhecimento do lugar de
vanguarda que ocupam as instituições e organizações gaúchas de desenvolvimento territorial não significa que se deva contemporizar com
qualquer de suas diversas insuficiências, distorções, mazelas, e vícios. Trata-se exatamente do contrário. O que mais interessa nesta reflexão é fazer a crítica desse complexo
sistema adaptativo institucional no
qual evoluem organizações de caráter municipal (como os atuais conselhos municipais de desenvolvimento, COMUDE), intermediárias,
como são os COREDE, e superiores,
como são as Mesorregiões “Grande
Fronteira Mercosul” e “Metade Sul
do RS”. É apontar os problemas e
obstáculos que estão retardando e até
comprometendo um melhor desempenho das regiões. E o que será dito
a seguir deve ser entendido mais
como um conjunto de hipóteses que,
por enquanto, foram insuficientemente testadas. 7
A principal pergunta de uma
avaliação da experiência gaúcha só
pode ser a seguinte: “por que ela não
está dando liga, apesar do respeito
22
à receita”? É que a dinâmica de emergência dos COREDE não poderia ter
sido mais virtuosa. Houve ampla liberdade para que prevalecessem iniciativas com forte participação dos
potencias protagonistas locais do
desenvolvimento. Foi um processo
muito próximo da democracia direta, além de quase sempre conduzido por elites científico-tecnológicas
de focos de polarização regional. E,
desde o início, esteve fortemente casado com o Programa dos Pólos Tecnológicos, inaugurado pelo governo
Simon (desde 1987, com a criação da
Fundação de Apoio à Pesquisa,
Fapergs), e certamente reforçado no
governo Britto, quando a experiência anteriormente liderada pela principal universidade comunitária da
região noroeste (UNIJUÍ) passou a
ser a grande referência.
Bastariam esse três elementos
para que se pudesse prognosticar inédita aceleração do desenvolvimento
das regiões que melhor tirassem partido dessa invejável ferramenta política que pode ser um COREDE. Todavia, o balanço parece apontar para
resultado bem menos efusivo, e, por
vezes, até contrário a tal expectativa.
Não é difícil apontar regiões nas
quais são muito duvidosas as perspectivas de mais desenvolvimento,
muito embora tenham um COREDE
que pode ser bem avaliado. E, no extremo oposto, não seria difícil apontar região de surpreendente desempenho desenvolvimentista, apesar de
seu COREDE ser considerado entre
os piores.
À primeira vista, tal constatação
poderia ensejar uma rápida sentença: não existe qualquer tipo de correspondência entre a qualidade dos
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
COREDE e êxito em termos de desenvolvimento regional. No entanto, seria uma conclusão apressada e
comodista, pois só serviria para evitar uma análise mais detalhada dos
fatores que mais contribuem para
que a ação de um COREDE seja eficaz, neutra, ou até prejudicial ao
desenvolvimento regional. Ou seja,
o grande desafio de uma avaliação
deste tipo é enumerar (e se possível
classificar, e mesmo hierarquizar) as
causas de uma indisfarçável frustração com o desempenho dos COREDE.
Nesta perspectiva, a primeira
questão que merece ser discutida tem
a ver com a escala. Isto é, com a
abrangência espacial e político-administrativa das regiões representadas pelos COREDE. Alguns chegam
a reunir mais de 30 municípios, o
que por si só já cria imensas dúvidas sobre a possibilidade de engendrar uma elaboração coletiva democrática e realmente participativa de
um projeto de território. Pior, há casos de óbvia tensão entre pelo menos duas sub-regiões (na verdade
regiões), como demonstra a sobrevivência das respectivas associações
de municípios.8
Não se trata apenas de uma questão operacional, embora seja difícil
sequer imaginar uma reunião democrática e produtiva na qual estejam
presentes 30 representantes de prefeituras, mais 30 representantes de
Câmaras Municipais, mais 30 representantes dos COMUDE, e mais “N”
representantes dos diversos segmentos organizados da sociedade civil.
Há também uma questão de heterogeneidade, que compromete uma verdadeira identidade regional, além de
5
“Serviço Federal de Habitação e Urbanismo” e “Superintendência de Desenvolvimento da Região Sul”.
6
No início de Janeiro de 2005, o governo de Santa Catarina enviou para apreciação dos deputados
estaduais um projeto de modernização administrativa, denominado “Cícerus”, em homenagem ao filósofo romano. Ele prevê maior atribuição às secretarias regionais criadas há dois anos, no início do
governo Luiz Henrique. São oito secretarias mesorregionais, em torno dos principais pólos econômicos,
e 22 microrregionais.
7
Tais hipóteses foram amadurecidas ao longo de entrevistas abertas com informantes-chave realizadas
em Janeiro de 2005 em dez municípios gaúchos, além de contatos diretos com dirigentes de diversos
COREDE (“Produção”, “Nordeste” e “Noroeste Colonial”, “Fronteira Noroeste” e “Serra”) e da GFM:
“Mesorregião Grande Fronteira do Mercosul”.
8
Um caso ilustrativo é o do COREDE “Noroeste Colonial”, no qual coexistem a AMUPLAN (com 12 municípios ao redor de Ijuí) e a AMUCELEIRO (com 21 polarizados por Três Passos). Pior: neste caso houve
tentativa inicial de manter no mesmo COREDE também a região polarizada por Santa Rosa, atual COREDE
“Fronteira Noroeste”, com 20 municípios.
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
impedir um verdadeiro senso de
pertencimento.
Um caso que chega a ser chocante é o do COREDE auto-intitulado
“Produção” (CONDEPRO), mais
identificado como “Planalto”, com
sede em Passo Fundo. Em assembléia realizada dia 12/01/05, para
eleger o Conselho de Representantes, credenciaram-se 547 pessoas que
supostamente representavam os 21
“segmentos”. Antes mesmo de entrar
em qualquer discussão sobre a legitimidade de conselho assim eleito,
cabe perguntar como os 547 presentes poderiam ter tido algum tipo de
participação ativa nos trabalhos,
caso houvesse algum assunto importante a ser realmente objeto de votação (e não apenas de deliberações
por unanimidade silenciosa, ou simples aclamação).
Quando se levanta a questão da
excessiva escala das regiões supostamente representadas por esses
COREDE que têm duas ou três vezes
mais municípios do que parece razoável, a resposta dos interlocutores
é uma só: força política. É imediato o
reflexo de ver o COREDE como um
instrumento de pressão9 sobre o governo estadual, mais do que um organismo realmente voltado à ação
regional. Este viés de interlocução
com a instância superior para a reivindicação e defesa dos interesses
da suposta região será discutido
mais adiante. Mas antes é preciso
ressaltar que parece ser freqüente a
utilização dos COREDE em óbvias
operações de “lobby”, no sentido de
criação de lastro para demandas de
grande interesse de determinado
“segmento” (o que não exclui, evidentemente, a possibilidade que
também possam ser de relativo de
interesse regional).
O caso mais óbvio que pode ser
citado é o dos interesses específicos
das universidades regionais, cujo
papel foi certamente crucial para a
emergência dos COREDE, e continua
sendo vital para muitos deles. E é
impossível cometer exagero quando
se enfatiza o lado positivo dessa
participação das universidades desde o início do processo de formação
dos COREDE.
Como duvidar dessa vantagem,
quando se sabe que regiões tendem
a ser criadas por cidades-pólo; e que
neste início de Século XXI nada pode
ser melhor do que conseguir que tal
polarização seja determinada pelo
conhecimento científico-tecnológico
em fertilização cruzada com empresas inovadoras? Chega a ser óbvia a
vantagem de ter as universidades
como principais protagonistas dos
COREDE. Todavia, é preciso perceber que esse importante peso das
universidades também pode criar
distorções.
A rigor, para que as universidades pudessem desempenhar um papel exemplar na orientação (e até
condução) dos COREDE, seria necessário que elas evitassem qualquer
envolvimento com as inevitáveis disputas político-partidárias. Uma organização voltada ao desenvolvimento regional só evolui e se fortalece se conseguir que o entendimento
e a concertação entre seus principais
agentes possa sobreviver aos periódicos terremotos eleitorais.
Se uma região realmente tem um
projeto de desenvolvimento construído com a participação de seus principais empreendedores públicos, privados e sociais, esse projeto terá necessariamente caráter supra-eleitoral
e deverá permanecer na agenda seja
qual for a eventual reviravolta política causada pelos últimos embates.
Na verdade, essa capacidade de “juntar os cacos” pós-eleitorais e continuar a ação conjunta pelos objetivos
e metas inscritos por consenso no
projeto regional é o principal sinal
de maturidade de uma organização
(seja conselho, fórum, ou mesmo
agência). E a universidade deveria
ser, em princípio, o “segmento” mais
capaz de evitar que a política partidária causasse sérios estragos no
processo de concertação regional.
Infelizmente, parece estar ocorrendo o inverso com boa parte das
universidades comunitárias que foram tão decisivas para a emergência dos COREDE.10 Há casos em que
ocorre exatamente o contrário. “Rachas” internos nas universidades
são transferidos para a vida dos
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
COREDE, fazendo como que uma
nova reitoria se afaste completamente, mesmo que continue cedendo algum tipo de infra-estrutura à direção
do Conselho. Ou — o que é igualmente grave — concorde que um determinado docente continue prestando serviços na coordenação de um COREDE, mas sem qualquer tipo de envolvimento institucional efetivo.
Essa instabilidade do comportamento das universidades certamente não seria tão grave se algum outro
“segmento” do COREDE pudesse ser
um substituto à altura. No entanto,
todos os demais atores têm muito
mais propensão a se deixarem tragar pelos periódicos turbilhões eleitorais do que seria de se esperar das
universidades. Ou seja, em meio a
prefeitos, vereadores, sindicalistas,
e movimentos sociais, é de se esperar que representantes de universidades sejam os mais maduros e capazes de conseguir que a continuidade do trabalho coletivo não fosse
comprometida por clivagens partidárias e ideológicas. Em vez disso,
em alguns casos parece que os representantes das universidades são
os primeiros a “estragar a festa” ao
se deixarem envolver de forma irremediável nos conflitos político-partidários locais.
3.2 Três questões de fundo
Tudo isso sinaliza a imaturidade
do processo institucional. Por isso
mesmo, também seria errado atribuir
à ideologização de reitores e pró-reitores toda a responsabilidade pela
baixa efetividade da ação de certos
COREDE. Na verdade, há pelo menos três questões de fundo que ajudam a entender melhor essa fragilidade comportamental dos principais
agentes do desenvolvimento regional, a começar pela atuação da
intelectualidade científico-tecnológica representada pelas universidades.
(a) A primeira dessas questões de
fundo é a precariedade dos projetos
de desenvolvimento regional. Salvo
engano, nenhum COREDE chegou
a produzir um verdadeiro plano de
9
Pressão que é sempre qualificada de “política”, mas na maior parte das vezes se assemelha mais a
uma pressão corporativa (e até sindical).
10
O papel da UERGS ainda não pode ser avaliado por ser muito recente e incerto.
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
23
Encontra-se
com certa facilidade
alguma brochura intitulada
“Plano Estratégico de
Desenvolvimento
Regional”, que parece
muito mais com aqueles
“cahiers de doléances”
dos Estados Gerais de
1789 do que projetos de
desenvolvimento...
desenvolvimento regional, que tenha
resultado de profunda análise objetiva de suas potencialidades, vocações, vantagens, oportunidades, ou
chances de médio e longo prazo. E
que depois tenha sido amplamente
debatido, legitimado e assumido
pela coletividade envolvida. Encontra-se com certa facilidade alguma
brochura intitulada “Plano Estratégico de Desenvolvimento Regional”,
ou coisa parecida. Mas não passa,
em geral, de uma listagem de carências regionais, mais ou menos hierarquizadas, a depender da competência do grupo de trabalho específico
que as coletou. Parecem muito mais
com aqueles “cahiers de doléances”
dos Estados Gerais de 1789 do que
projetos ou planos de desenvolvimento.
Só quando existe um verdadeiro
projeto – que realmente demonstre
que a viabilidade do desenvolvimento da região depende de determinadas ações estratégicas muito bem
identificadas – é que os diversos grupos sociais conseguem estabelecer
as sinergias necessárias a colocá-las
em prática. Só quando percebem com
clareza uma real perspectiva de progresso é que as forças vivas de uma
região podem “vestir a camisa”, independentemente se suas inclinações ideológicas, religiosas, políticas,
etc. É isso que faz com que realmente se mobilizem para alavancar os
recursos necessários, batendo à por-
24
ta de outras instâncias que não apenas as dos orçamentos públicos do
Estado e da União. E é isso que também pode ajudar a criar condições
de “blindagem” contra os estragos
que resultam dos inevitáveis conflitos de interesse entre partidos, sindicatos corporações, igrejas, empresários, etc.
(b) A segunda questão de fundo,
que certamente contribuiu muito
para o agravamento da primeira, foi
a dinâmica incentivada por diversos
governos estaduais de se comprometer a alocar uma pequena parte dos
recursos para investimento em função dos resultados de anual “consulta popular” ou “orçamento participativo”. Não pode haver dúvida
de que a predisposição original do
governo Collares de submeter esse
tipo de decisão aos novos COREDE
foi positiva e certamente ajudou muito em sua rápida estruturação. Todavia, também criou uma séria armadilha, tanto para os governos seguintes, quanto para os próprios COREDE.
Por um lado, qualquer governo
estadual gaúcho passou a se ver obrigado a algum tipo de ritual do gênero, sob pena de cometer um recuo no
processo de democratização. Por
outro, qualquer COREDE prefere ter
essa oportunidade de abocanhar e
repartir algumas migalhas orçamentárias do que se lançar nas incertezas da elaboração coletiva de um
verdadeiro projeto de desenvolvimento que depois pudesse ser objeto de contratos de médio prazo (por
exemplo, os prazos dos “Planos
Plurianuais”, PPA).11 Como sempre
valerá mais “um passarinho na mão
do que dois voando”, os COREDE
consagram 95% de suas energias
nesse tipo de operação anual, que
além de desgastante, gera muitas
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
frustrações nos municípios que não
conseguem a verba que tinha sido
orçada para: construir o muro da
escola “A”, ou construir uma quadra esportiva perto da escola “B”,
mas que acabou não sendo sequer
empenhada, muito menos executada. 12
Não se trata de entrar em comparações sobre a condução dessas anuais “consultas populares” ou “orçamentos participativos”, pois seus
problemas comuns são muito mais
importantes que seus diferentes defeitos específicos. Infelizmente, a
principal resultante desses rituais
tem sido desviar os COREDE da
principal missão que eles deveriam
ter assumido: elaborar projetos consistentes que pudessem ser objetos
de negociações para a implantação
de estratégias de desenvolvimento
regional.
Enfim, em vez de mobilizar a capacidade de inovação dos principais
empreendedores (privados, públicos
e sociais) na elaboração de uma estratégia de construção da competitividade sistêmica do território, os
COREDE abandonam esse objetivo
central. Eles são levados a despender
suas melhores energias em inúmeros expedientes de varejo que possam levar este ou aquele órgão do
governo estadual a empenhar, e depois executar, esta ou aquela previsão orçamentária. Em poucas palavras: os COREDE abdicam de seu
papel no atacado ao se consumirem
em pequenas ações de varejo.
(c) A terceira das principais questões de fundo que comprometem a
eficácia dos COREDE para a ação de
desenvolvimento regional está nos
discutíveis graus de representatividade e legitimidade que lhes conferem as atuais regras de constituição e funcionamento. Dos trinta e
11
Durante o Fórum dos COREDE realizado no final de fevereiro de 2005 em Nova Petrópolis, foi possível notar em algumas intervenções do plenário uma séria preocupação com este problema. Todavia, a posição predominante, a começar pela atitude dos dirigentes do Fórum, foi mais parecida com
uma espécie de “sindicalismo de resultados”. Não valeria a pena abrir mão dessa rotina reivindicatória
por migalhas do orçamento obtidas na lógica de varejo, de balcão. Enfim, uma opção preferencial
pela obtenção de resultados imediatos, mesmo que irrisórios para o processo de desenvolvimento
regional.
12
É impressionante a importância e o tempo que ocupam em reuniões dos COREDE as reclamações
contra esta ou aquela Secretaria do governo estadual por não ter atendido até aquele momento esta
ou aquela demanda. Ou ainda, para ressaltar que o COREDE provavelmente conseguirá que seja
executado neste ano 80% do que foi aprovado no ano anterior.
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
dois “segmentos” com direito de representação no COREDE “Noroeste
Colonial” (NORC), por exemplo,
quatro são membros natos: deputados federais e estaduais com domicílio eleitoral na região, e os prefeitos e presidentes de Câmaras municipais dos trinta e tantos municípios envolvidos. Os outros 28 representantes e seus suplentes são escolhidos durante assembléia convocada para esse fim, na base do voto de
quem se fez presente.
É muito discutível que isso possa
ser considerado como prática democrática. Pode-se até afirmar o oposto, pois esse tipo de escolha dos representantes de cada segmento exclui liminarmente quem não tiver
condições de viajar naquele dia ao
local da assembléia. Pior, escancara
a possibilidade de que prevaleçam
os que pertencem a algum “aparelho” partidário, sindical, de ONG,
etc. E esse tipo de viés anti-democrático certamente causa prejuízos à
composição balanceada de alguns
setores decisivos dos empreendedores privados (associações de empresários), públicos (universidades, por
exemplo), e sociais (movimentos
menos “aparelhados”).
Não é o que parece acontecer no
COREDE “NORC”, por razões que
só poderiam ser apontadas por uma
análise mais específica da situação
concreta. No entanto, é exatamente
o que está ocorrendo com o CONDEPRO (COREDE “Produção”, com
sede em Passo Fundo), pois só apareceram pessoas totalmente alinhadas pela identificação com o programa do governo Olívio Dutra (PT) na
já citada assembléia para escolher
representantes. E mesmo que isso
possa significar alta representatividade “popular” (supondo-se que a
maioria dos empreendedores sociais
siga essa linha), é óbvio que também
revela baixíssima representatividade
dos empreendedores privados e públicos. E podia-se contar nos dedos
de uma mão o número de pessoas
presentes que elegeram representantes de algum dos tais “segmentos”.
O baixo grau de representatividade e de legitimidade de um COREDE também pode ter o sinal político
contrário. Nesse caso, em vez de con-
tribuir apenas para uma maior letargia da ação regional, pode engendrar fragmentação organizacional,
com o surgimento de estrutura paralela com os mesmos objetivos. Aliás, é o que já está ocorrendo na
microrregião chamada de “Médio
Alto Uruguai”, por exemplo, onde a
ação da SDT/MDA (Secretaria de Desenvolvimento Territorial do Ministério do Desenvolvimento Agrário)
provocou a criação de um novo conselho regional (que será seu único
interlocutor), e que terá missão idêntica à do respectivo COREDE, o
“CODEMAU”. E também ocorreu
antes na “Grande Santa Rosa”,
onde surgiu um “Fórum” paralelo
ao COREDE “Fronteira Noroeste”, e
com os mesmo objetivos.
Finalmente, é preciso registrar
que não se deve subestimar um ceticismo mal disfarçado nas manifestações de vários presidentes de COREDE. Sempre fazendo questão de
ressaltar as virtudes desses conselhos, eles por vezes deixam escapar
frases bem surpreendentes, como,
por exemplo: “O COREDE é uma
planta que não tem raiz”. É até muito duvidoso que essa metáfora seja
apropriada, pois o problema principal talvez não esteja nessa eventual falta de “raízes”. Mesmo assim,
a frase é muito reveladora de um
nebuloso mal-estar com o desempenho de certos COREDE. Mal-estar
que parece não ter sido ainda bem
analisado em razão de uma “mística” que tende a atrofiar os esforços
de pesquisa nessa área.
Mais uma vez é preciso repetir
aqui que essas três observações críticas não devem ser entendidas como
um “ataque” à experiência ou à valorosa tradição “corediana”. É exatamente o contrário, pois tanto os
COREDE, quanto seus interlocutores no governo estadual, só teriam
vantagens em aproveitar este momento para repensar a dinâmica organizacional e institucional do desenvolvimento das atuais 24 regiões.
A partir de um balanço conjunto
desses 35 anos de experiência prática, talvez seja possível retomar sobre novas bases o relacionamento
dos COREDE com as várias esferas
de governo e, sobretudo, com orga-
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
nizações cruciais para o desenvolvimento regional, como são os bancos de desenvolvimento (BNDES,
BID e BIRD). Por outro lado, tudo
indica que o ponto de mutação desse processo passará necessariamente por uma “repactuação” do relacionamento entre os COREDE e o governo estadual.
Seria inócua pretensão tentar ir
mais longe neste tipo de reflexão. E
não apenas pelas características do
trabalho de pesquisa que deu origem
a este texto. Mesmo que a investigação tivesse sido mais longa e mais
profunda, não poderia chegar a algum tipo de receita capaz de prescrever as soluções para os problemas apontados. No máximo se pode
aqui formular algumas recomendações que talvez ajudem os atores envolvidos a buscar tais soluções.
4. Diretrizes
Qualquer conselho microrregional do gênero dos COREDE visa a
organizar o processo de desenvolvimento no território, como alternativa ao puro e simples comportamento dos mercados, que tangem os residentes a se deslocarem para encontrar oportunidade de trabalho e geração de renda. Trata-se de uma prática que pode ter perdido legitimidade com a ofensiva neoliberal do
final do século 20, mas que volta com
toda a força para as agendas de desenvolvimento. Há pelo menos quatro fatores que explicam essa volta
do território ao domínio da ação
pública: (a) ele está no centro das
estratégias que visam a competitividade e a atratividade econômicas;
(b) é nele que pode ser reforçada a
coesão social; (c) é o melhor instrumento de modernização das políticas públicas, já que impõe abertura
e transversalidade; (d) apesar de nele
estarem ancoradas as instituições
locais, permanece um domínio de
ação de instâncias hierárquicas superiores cujos graus de liberdade são
cada vez mais condicionados pelo
processo de globalização e pela construção de acordos regionais supranacionais.
Enfim, renovar a concepção de
território para uma política de ordenamento exige antes de tudo que ele
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
25
seja entendido como ator de um esforço constante de desenvolvimento, mas de um desenvolvimento no
qual a coesão social é simultaneamente uma aposta e uma alavanca.
Neste sentido, três insights merecem ser mais uma vez repetidos e enfatizados: (a) a necessidade de combinar concorrência com cooperação;
(b) a necessidade de combinar conflito com participação; e (c) a necessidade de combinar o conhecimento
local e prático com o científico.
Três lições que embutem uma interrogação central sobre as condições
que permitem a emergência de instituições mais favoráveis a essas três
combinações. E a resposta — como
não poderia deixar de ser — é afirmação de que o desenvolvimento depende essencialmente do papel catalisador que desempenha um projeto
que tenha sido elaborado com ampla participação dos atores locais, isto
é, dos empreendedores privados,
públicos e sociais que se identificam
com determinada região.
A orientação essencial de qualquer estratégia de desenvolvimento
regional só pode ser a de estimular o
surgimento desses “territórios-projeto” e criar as condições para que eles
consigam alavancar recursos humanos e financiamentos (ou mesmo
doações), tanto no âmbito nacional
como internacional. Por isso, a principal recomendação deste estudo é
que a riquíssima experiência gaúcha
dos COREDE seja auto-avaliada sob
essa ótica. Até que ponto se pode
dizer que os COREDE estão favorecendo o surgimento de “territóriosprojeto” capazes de alavancar os recursos humanos e financiamentos
necessários ao desenvolvimento de
suas respectivas regiões?
Como já foi bem explicitado acima, por várias razões houve uma
espécie de desvio de rota na trajetória dos COREDE. Em vez de fazerem
com que pelo menos algumas das 22
regiões iniciais se transformassem
em “territórios-projeto”, os COREDE
viraram instrumentos de reivindicação de investimentos que, em geral,
pouco ou nada contribuem para o
desenvolvimento regional (mesmo
que muitas vezes possam contribuir
para responder a certas carências de
alguns municípios).
26
Além de colocar em discussão
uma possível repactuação da relação dos COREDE com o governo estadual, tal constatação permite enfatizar mais quatro recomendações
duas das quais poderão ser facilmente consensuais: (i) a capacitação
dos “coredianos”; (ii) o papel estratégico da política de Ciência, Tecnologia & Inovação (CT&I). Deve ser
concebido com a máxima urgência
um plano de capacitação dos agentes “coredianos” para a prática do
planejamento estratégico. E deve ser
dada máxima prioridade ao aprofundamento da política descentralizada de CT&I, o único investimento
que poderá ter impacto de longo prazo para o desenvolvimento de “territórios-projeto”.
É provável que as outras duas
recomendações provoquem muita
polêmica e não obtenham o consenso necessário para que possam se
tornar efetivas: (iii) a necessária revisão dos estatutos e regimentos internos dos COREDE para que se tornem mais legítimos e realmente favoreçam a participação conjunta
dos empreendedores privados, públicos e sociais; (iv) o incentivo à
subdivisão de COREDE gigantes em
entidades mais adequadas às verdadeiras identidades regionais e que
favoreçam mais o sentido de pertencimento por parte dos cidadãos envolvidos.
Finalmente — mas de modo algum menos importante — é necessário enfatizar que Bandeira (2004)
está certamente coberto de razão
quando diz que a experiência gaúcha (assim como a catarinense), indica que os esforços de articulação e
concertação têm mais possibilidades
de sucesso quando existem, nas regiões, organizações dotadas de credibilidade que se disponham a proporcionar apoio operacional efetivo e
continuado a essas iniciativas. No
caso de Santa Catarina, esse papel
foi até agora mais desempenhado
pelas Associações de Municípios do
que pelas Universidades. No Rio
Grande do Sul ocorreu o contrário.
Considerando-se a literatura científica já disponível sobre os temas
como a “learning region” e a “knowledge-based economy”, é razoável su-
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
por que a fórmula gaúcha venha a
se mostrar superior, muito embora
ainda seja cedo para uma avaliação
comparativa. Muitas universidades
comunitárias gaúchas certamente
exercem uma liderança efetiva em
escala regional. Em geral, as universidades não são vistas com desconfiança, e raramente dão motivos
para hostilidade de algum dos grupos sociais locais. Todavia, elas estão longe de ser neutras. Antes de
tudo por que têm interesses próprios a defender. E é perfeitamente possível que tais interesses nem sempre
coincidam com as respostas necessárias aos desafios estratégicos do
desenvolvimento das regiões em que
estão implantadas.
Bandeira (2004) destaca que o
britânico John Goddard, reitor da
Universidade de Newcastle upon
Tyne, analisou os efeitos econômicos regionais das universidades,
tanto para a OCDE, em 1997, quanto para a Unesco, em 1998. E suas
recomendações foram no sentido que
mais pesquisas empíricas venham a
caracterizar três tipos de influência
das universidades sobre as regiões
em que se localizam.
O primeiro é obviamente o efeito
direto da Universidade como empregadora e como geradora de fluxos de
gastos dentro da região, cujo impacto ele considera eminentemente estático. Em segundo lugar, menciona
os impactos dinâmicos de interação
entre as universidades e as empresas localizadas na região. Esses impactos ocorrem através da atividade de pesquisa, do ensino, e do recrutamento de graduados pelas empresas da região, bem como através
de programas de aperfeiçoamento
profissional. O terceiro, aponta para
a contribuição das universidades ao
desenvolvimento social e comunitário das regiões em que atuam, através de sua influência geral sobre o
ambiente cultural local, sobre a formação de lideranças, e também diretamente na formulação de visão
estratégica sobre os condicionantes
econômicos da região. A rigor, comenta Bandeira (2004:101), esse
engajamento direto na promoção do
desenvolvimento interessa à própria
universidade, pois em geral depen-
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
de também diretamente do dinamismo das áreas em que atua para assegurar os recursos necessários à sua
própria manutenção, reprodução, e
expansão.
No que se refere a esse papel
crucial para o desenvolvimento
regional que podem desempenhar as
universidades, o que mais diferencia a situação gaúcha de situações
comparáveis em ambientes mais desenvolvidos é a precária formação
dos demais atores, agentes, ou representantes dos “segmentos”, como
são chamados nos COREDE. Contrariamente ao que ocorre em situações de mais desenvolvimento, as
universidades comunitárias gaúchas tendem a ocupar não apenas o
seu espaço, mas muitos outros, dada
a carência de quadros bem formados
que sejam porta-vozes de outros interesses, ou pontos de vista. E se tal
“invasão” pode muitas vezes até ser
benéfica, em certos casos ela pode
atrapalhar e retardar o processo de
formulação, negociação e viabilização de alternativas.
5. Conclusão
A institucionalização de uma região pode ser vista como a culminância de processo histórico. Segundo
Bandeira (2006), apoiado em Paasi
(1986), tal processo envolve quatro
aspectos que não devem ser entendidos como etapas consecutivas: a)
definição da forma ou abrangência
territorial; b) formação de imagem
conceitual e simbólica; c) surgimento
e instituições e organizações apropriadas; d) estabelecimento da região
como parte de um sistema de regiões,
com papel administrativo definido,
associado à consciência regional da
comunidade. Quatro critérios simples que permitem fazer um balanço
sintético da experiência gaúcha.
No que se refere à abrangência
territorial, o balanço é negativo, pois
a propensão a ter força política fez
com que as regiões dos COREDE
atropelassem identidades e pertencimentos pré-existentes, e que até
subsistem na forma de associações
de municípios. Pior, algumas são
formadas por número tão grande de
municípios que inviabilizam a possibilidade de real participação democrática.
Na formação de imagem conceitual e simbólica, o balanço pode ser
simultaneamente positivo e negativo. Ele é positivo no que se refere à
imagem e à simbologia geral dos
COREDE como forma de gestão mais
descentralizada do território estadual, além de menos pulverizada que
o poder local dos municípios. Mas
ela é negativa em muitos casos em
que os COREDE tentaram emplacar
denominações simbólicas completamente artificiais, além de contraproducentes. O caso extremo é o do
COREDE “Produção”, em região
historicamente conhecida por “Planalto”. Mas está longe de ser o único.
O aspecto em que o processo parece estar mais avançado é o terceiro, que se refere ao surgimento das
instituições e organizações correspondentes, pois foram muito adequadas em sua origem. Todavia, vicissitudes fizeram com que se desviassem de sua principal missão. Em
vez de realmente serem aceleradores do desenvolvimento endógeno,
os COREDE se tornaram essencialmente instrumentos de reivindicação e pressão na partilha dos parcos recursos do governo estadual.
Algo parecido deve ser dito sobre o estabelecimento de cada região
corediana como parte de um sistema de regiões, com papel administrativo definido, associado à consciência regional da comunidade.
Tem havido avanços bem significativos no contexto estadual, mas que
esbarram no atraso relativo em que
se encontra o processo histórico de
emergência regional fora da região
Sul. E isso se manifesta com clareza
no contraste entre as experiências
sulistas e as frágeis políticas regionais do Ministério da Integração
Nacional, com especial destaque
para a proposta de implantação do
Programa de Desenvolvimento de
Mesorregiões Diferenciadas.
O balanço é, portanto, bem negativo, apesar de ser enorme o potencial dos COREDE que forem capazes
de uma autocrítica que os redirecione para a governança cidadã.
Referências
BANDEIRA, Pedro Silveira. “Universidades, articulação de atores sociais e
desenvolvimento regional”. In: PERIN,
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Zeferino. (org.) Desenvolvimento regional: um novo paradigma em construção. Erechim, RS: EdiFAPES, 2004,
p. 73-106.
BANDEIRA, Pedro Silveira. “Institucionalização de regiões no Brasil” Ciência & Cultura, ano 58 (1), janeiromarço 2006, pp. 34-35.
BECKER, Dinizar Fermiano (Coord)
Pró-RS II. Por uma organização social pró-desenvolvimento regional do
Rio Grande do Sul. 2 vols. (Conselho
Regional de Desenvolvimento do Rio
Grande do Sul) Santa Cruz do Sul:
Edunisc, 2002.
PAASI, Anssi. “The institutionalization
of regions: a theoretical framework for
understanding the emergence of regions and the constitution of regional
identity”. Fennia, 164:1, 1986, pp.105146 (apud Bandeira, 2006).
RÜCKERT, Aldomar Arnaldo. Reforma do Estado e Tendências de Reestruturação Territorial. Cenários contemporâneos no Rio Grande do Sul. Tese
de Doutoramento. USP, FFLCH, Dep.
Geografia, Programa de Pós Graduação em Geografia Humana. São Paulo:
Dezembro de 2001, 662 p.
VEIGA, José Eli da. “Articulações
intermunicipais para o desenvolvimento rural”. Texto apresentado no
seminário “Associativismo, cooperativismo e economia solidária no meio
rural”, CEAM- NEAGRI, ICS – Departamento de Sociologia, CDS Centro de
Desenvolvimento Sustentável, Brasília
(DF), 16 de novembro de 2005.
VEIGA, José Eli da. “O papel do território: uma visão histórica”. Texto apresentado no workshop “Estratégias de
combate à pobreza rural no Brasil: situação atual e perspectivas”, realizado
no Instituto de Economia da Unicamp,
Campinas (SP), 21 a 23 de Novembro
de 2005.
VEIGA, José Eli da. “Territórios para
um desenvolvimento sustentável” Ciência & Cultura, ano 58 (1), janeiromarço 2006, pp. 20-23.
MESTRADO
EM ANÁLISE
REGIONAL
O primeiro da sua categoria
no Estado da Bahia
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
27
MACROCEFALIA URBANA EM RORAIMA E SUA
REPERCUSSÃO NOS SERVIÇOS DE SAÚDE
Barbara-Christine Nentwig Silva1
Araori Silva Coelho2
Resumo
O Estado de Roraima caracteriza-se
por apresentar um sistema urbano
macrocefálico, ou seja, com uma
grande cabeça, a capital, Boa Vista,
muitas vezes maior que as demais cidades do Estado. Assim, por exemplo, Boa Vista é 24 vezes maior em
população que a segunda cidade,
Caracaraí. Isto se reflete, de forma
destacada, na distribuição das funções
centrais exercidas pelas cidades. Desta forma, o objetivo deste trabalho é
o de fazer uma avaliação da macrocefalia urbana em Boa Vista do ponto de vista demográfico e funcional,
este direcionado para os serviços de
saúde considerando sua importância
para o conjunto da população em
todo o Estado. O estudo demonstra
que a concentração dos serviços de
saúde em Boa Vista é exageradamente
grande, muito maior, em termos relativos, que a concentração demográfica. Há, portanto, graves problemas
de acessibilidade aos serviços de saúde no interior do Estado o que justifica a implantação de políticas públicas de descentralização.
Palavras-chave: Macrocefalia urbana; funções de saúde; Roraima; Boa
Vista.
Abstract
The State of Roraima/Brazil is
characterized by an urban macrocephalic system, that is, with a big
head, the capital, Boa Vista, many
times is greater than the other cities
of the State. Thus, for example, Boa
28
Vista is 24 times greater in population
than the second city, Caracaraí. This
is reflected clearly in the distribution
of urban central functions. Therefore,
the purpose of this paper is to make
an evaluation of the urban macrocephaly of Boa Vista taking demographic and functional data, the last
related to health services considering
its importance for all the Roraima
population. The study shows that the
concentration of health services in
Boa Vista is extremely exaggerated,
much bigger, in relative terms, than
demographic concentration. Thus,
there are serious problems in health
services accessibility in the inland
which justify the introduction of
decentralization in Roraima health
public policies.
Key words: urban macrocephaly;
health functions; Roraima; Boa Vista.
Introdução
A análise da rede urbana brasileira
revela que a maioria dos Estados brasileiros apresenta uma estrutura urbana do tipo macrocefálico, ou seja, com
uma cidade, invariavelmente a capital
estadual, exageradamente maior que as
demais cidades. Se tomássemos como
parâmetro as regiões metropolitanas,
os indicadores de macrocefalia seriam ainda mais expressivos. As exceções são os Estados de Santa Catarina,
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
1
2
Espírito Santo, Paraíba, Tocantins,
Acre, Rondônia, Pará e Amapá. O
termo tem sido mais associado às
grandes cidades (São Paulo, Rio de
Janeiro, Salvador, etc.) mas pode também ser aplicado a contextos em que
cidades de porte médio, como é o
caso de Boa Vista, exercem um papel altamente concentrador com relação ao sistema de cidades e da região sob sua influência direta. (SILVA;
SILVA, 2004a; SILVA; SILVA, 2004b;
AMORIM; DINIZ, 2004).
Assim, o Estado de Roraima, localizado na Região Norte do Brasil, é
um dos Estados que apresentam a
macrocefalia em sua organização urbana do ponto de vista demográfico
e funcional, o que causa graves problemas de acessibilidade aos bens e serviços por parte da população distribuída em todo o território estadual.
Por conseguinte, o objetivo deste
trabalho é o de analisar a macrocefalia urbana de Boa Vista, a capital estadual, do ponto de vista demográfico e funcional, priorizando a análise
dos serviços de saúde como um indicador das repercussões da exagerada concentração populacional na
capital. Os serviços de saúde foram
escolhidos considerando sua relevância para o conjunto da população, não
importando, dentre outros aspectos,
o sexo, a idade, a renda e o seu local
de residência. Com isto, pretende-se
Professora Dra., UCSAL / Mestrado em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social,
Pesquisadora do CNPq; e-mail: [email protected].
Bacharelando em Geografia, UFBA, Bolsista do CNPq; e-mail: [email protected].
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
demonstrar a relação direta entre uma
determinada estrutura espacial e o
acesso aos bens e serviços por parte
da população. Assim, uma estrutura
urbana macrocefálica coloca graves
problemas de consumo e uso de bens
e serviços em todo o território, exigindo deslocamentos, o que implica
em tempo e custos, ao contrário de
uma estrutura urbana mais equilibrada e, conseqüentemente, mais descentralizada e acessível.
A metodologia apóia-se na análise
estatística e cartográfica dos indicadores demográficos e dos serviços de
saúde, obtidos no site do IBGE
<http://www.sidra.ibge.gov.br/
cidadesat/default.php> e <http://
www.sidra.ibge.gov.br>. Inicialmente,
foram levantados os dados sobre população urbana e rural de diferentes
períodos censitários e, em seguida, os
dados envolvendo, de forma detalhada, 35 funções centrais relacionadas
com os serviços de saúde, referentes
ao ano de 2002. Os dados demográficos foram analisados com o objetivo de dimensionar o tamanho de Boa
Vista com relação às demais cidades
do Estado. Na análise dos dados sobre saúde foram aplicados os seguintes passos metodológicos:
tatísticas; a homogeneidade interna do grupo é satisfatória se o coeficiente de variação de cada grupo indicador é menor do que o
coeficiente entre as médias dos
grupos consecutivos;
– classificação dos centros em níveis
hierárquicos e construção de um
gráfico que relaciona visualmente
os centros urbanos e a freqüência
de ocorrência de suas funções com
a classificação hierárquica;
– desenho do mapa com a hierarquia urbana relacionada com os
serviços de saúde.
Esta metodologia de análise funcional urbana segue, em termos resumidos e com adaptações, a abrangente
proposta de Palomäki (1964) aplicada no Brasil por vários autores, dentre os quais Silva; Silva; Leão (1987).
Tabela 1 – População total, urbana
e rural do Estado de Roraima – 2000
Estado e
municípios
ESTADO
Alto Alegre
Amajari
Boa Vista
Bonfim
Cantá
Caracaraí
Caroebe
Iracema
Mucajaí
Normandia
Pacaraima
Rorainópolis
São João da Baliza
São Luiz
Uiramutã
– levantamento da existência (1) ou
não (0) das funções centrais escolhidas em cada centro urbano; não
foi necessário o levantamento da
freqüência de ocorrência de uma
determinada função, mas somente sua existência ou não;
– classificação das funções centrais
segundo as suas freqüências de
ocorrência em cada cidade, ou seja,
a sua existência ou não, com o
objetivo de definir grupos indicadores de níveis diferentes;
– teste da homogeneidade interna
dos grupos indicadores de níveis
diferentes através de medidas es-
Macrocefalia demográfica
Como foi analisado no trabalho de
Silva; Silva (2004a), a população das
cidades do Estado de Roraima, referente ao ano de 2000, pode ser vista
na tabela 1 onde se constata que 10
das 15 cidades têm menos que 5.000
habitantes, e duas têm menos de 1.000
habitantes (Uiramutã, com 525 habitantes e Amajari, com 799 habitantes).
É preciso observar que nenhum município de Roraima possui vilas (sedes
de distritos, segundo a definição do
IBGE). Assim, a população urbana
apresentada corresponde à população
das cidades (sedes dos municípios). As
taxas de urbanização são também bastante diferenciadas, sendo que o tamanho demográfico de Boa Vista afeta
toda a taxa média de urbanização do
Estado de Roraima.
O histórico da posição relativa
de Boa Vista com relação ao Estado
Taxa de
População População
População
urbanização
total
urbana
rural
(%)
324.397
247.016
76,15
77.381
17.907
5.195
29,01
12.712
5.294
799
15,09
4.495
200.568
197.098
98,27
3.470
9.326
3.000
32,17
6.326
8.571
1.155
13,48
7.416
14.286
8.236
57,65
6.050
5.692
1.977
34,73
3.715
4.781
3.228
67,52
1.553
11.247
7.029
62,50
4.218
6.138
1.500
24,44
4.638
6.990
2.760
39,49
4.230
17.393
7.185
41,31
10.208
5.091
3.882
76,25
1.209
5.311
3.447
64,90
1.864
5 802
525
9,05
5.277
Fonte: IBGE. Censo Demográfico – 2000.
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
29
começa a configurar, a partir de 1970,
uma situação que revela a exagerada
importância da capital (tabela 2).
A população das cidades, com a
proporção das cidades do interior do
Estado e sua porcentagem com relação à capital, Boa Vista, é apresentada na tabela 3 para os anos de 1991 e
2000. Observa-se que, em 2000, Boa
Vista era quase 24 vezes maior que a
segunda cidade do Estado, Caracaraí,
e a população desta representava apenas 4,18% da população da capital
do Estado.
Todos estes indicadores possibilitam, portanto, caracterizar a rede ur-
ços pelas cidades não siga exatamente a regra acima exposta, dificultando ainda mais o acesso aos bens e
serviços por parte da população distribuída em todo o território. Isso
decorre dos efeitos negativos da macrocefalia, historicamente construída,
combinados com a ausência de políticas públicas específicas. A análise que
se seguirá demonstrará que, no caso
de Roraima, tomando como parâmetro os serviços de saúde, este problema ocorre de forma destacada.
Para tanto, a tabela 4 mostra as 35
funções levantadas nas 15 cidades do
Estado (existência ou não existência
bana de Roraima como sendo do
tipo macrocefálica, ou seja, uma grande cabeça com um pequeno corpo.
Macrocefalia funcional dos serviços de saúde
A macrocefalia demográfica de
Boa Vista se reflete na distribuição das
funções urbanas. Em princípio, as cidades de um sistema urbano, segundo o modelo das localidades centrais
(CHRISTALLER, 1966), deveriam
ter os serviços compatíveis com seu
tamanho demográfico e com suas necessidades básicas. Entretanto, pode
ocorrer que a distribuição dos servi-
Tabela 2 – Proporção entre a população de Boa Vista e a população do Estado de Roraima – 1950/2000
Cidade e Estado
População do Estado
População de Boa Vista
% da população de Boa Vista / Estado
Anos
1950
18.116
5.132
28,33
1960
28.304
7.037
24,86
1970
40.885
16.727
40,91
1980
79.159
43.016
54,34
1991
217.583
118.926
54,66
2000
324.397
197.098
60,76
Fonte: SILVA; SILVA, 2004a, p. 42, com base em BARROS, 1995; IBGE, 1950/2000.
Tabela 3 – Comparação entre Boa Vista em relação às demais cidades
do Estado de Roraima com base no conceito de primazia urbana – 1991 e 2000
População
PorcenProporção
1991
tagem
Boa Vista
120.157
–
–
Mucajaí
5.222
23,01
4,35
Caracaraí
5.139
23,38
4,28
Alto Alegre
3.356
35,80
2,79
São João da Baliza
2.309
52,04
1,92
São Luiz
2.268
52,98
1,89
Bonfim
1.221
98,41
1,02
Normandia
1.146
104,85
0,95
Cidades
Cidades
Boa Vista
Caracaraí
Rorainópolis
Mucajaí
Alto Alegre
São João da Baliza
São Luiz
Iracema
Bonfim
Pacaraima
Caroebe
Normandia
Cantá
Amajari
Uiramutã
População
PorcenProporção
2000
tagem
197.098
–
–
8.236
23,93
4,18
7.185
27,43
3,65
7.029
28,04
3,57
5.195
37,94
2,64
3.882
50,77
1,97
3.447
57,18
1,75
3.228
61,06
1,64
3.000
65,70
1,52
2.760
71,41
1,40
1.977
99,70
1,00
1.500
131,40
0,76
1.155
170,65
0,59
799
246,68
0,41
525
375,42
0,27
Fonte: SILVA; SILVA, 2004a, p. 44, com base em dados do IBGE, 1991/2000.
30
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
das funções), arrumadas em ordem
decrescente de freqüência de ocorrência. As primeiras duas funções são de
baixo limiar e ocorrem em cada cidade, enquanto que 12 funções foram somente encontradas em uma cidade. A função 35 não existe em
nenhuma cidade segundo as informações do IBGE. O teste estatístico
sugere uma classificação em quatro
grupos que indicam homogeneidade
intragrupal maior do que de uma
classe para a outra (tabela 5).
A tabela 4 serviu como base para
o desenho da figura 1 que mostra no
eixo y as 35 funções de saúde na seqüência da referida tabela e no eixo x
a ocorrência destas funções nas 15
cidades. O gráfico dá a visão da formação dos quatro grupos definidos.
O primeiro grupo indicador envolve
as variáveis (1) a (13); o segundo grupo as variáveis (14) a (16), o terceiro
grupo as variáveis (17) a (22) e o quatro grupo 12 variáveis (23) a (34) que
ocorrem somente em um centro urbano.
A figura 2 visualiza a distribuição
das funções de saúde em cada uma
das 15 cidades do Estado, identificando a ocorrência ou não das mesmas nos centros urbanos, seguindo a
seqüência da tabela 6. Como se percebe, Boa Vista possui 34 funções das
35 arroladas. Já Iracema, no outro
extremo dispõe apenas de seis funções.
Na classificação dos centros urbanos destaca-se evidentemente Boa Vista, formando, isoladamente, o primeiro
nível hierárquico (tabela 7). O segundo grupo de cidades foi definido considerando a presença de todas as três
funções de saúde do segundo grupo
indicador ou, pelo menos, duas funções do segundo grupo e, no mínimo, uma função do terceiro grupo.
Assim, neste nível hierárquico enquadram-se quatro cidades. O terceiro
nível de cidades envolve centros que
Tabela 4 – Número de ocorrência de funções
relacionadas com a saúde nas cidades de Roraima – 2002
Nº de
ocorrência
Funções
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31
32
33
34
35
Estabelecimentos públicos de saúde sem internação
Postos de trabalho de nível superior
Equipo odontológico
Estabelecimentos de saúde que prestam serviços ao SUS
Postos de trabalho de auxiliar de enfermagem
Postos de trabalho de médicos
Postos de trabalho de nível técnico/auxiliar
Postos de trabalho de odontólogos
Estabelecimentos de saúde com plano de saúde próprio
Equipamentos para manutenção da vida
Estabelecimentos públicos de saúde com internação
Leitos disponíveis ao SUS
Postos de trabalho de enfermeiros
Postos de trabalho de técnicos de enfermagem
Equipamentos de diagnóstico através de imagem
Aparelhos de raio X até mais de 500 mA
Eletrocardiógrafos
Equipamentos por métodos gráficos
Grupo de geradores
Ultra-som ecógrafo
Estabelecimentos privados de saúde sem internação
Estabelecimentos de saúde com atendimento particular
Eletroencefalógrafos
Equipamentos de hemodiálise
Equipamentos para terapia por radiação
Equipamentos por métodos óticos
Estabelecimentos privados de saúde com internação
Estabelecimentos de saúde que prestam serviços
a plano de saúde de terceiros
Estabelecimentos de saúde de apoio à diagnose
e terapia privados
Estabelecimentos de saúde de apoio à diagnose
e terapia públicos
Leitos particulares
Mamógrafos com comando simples ou com estereotaxia
Tomógrafos
Ultra-som doppler colorido
Raio X para densitometria óssea
15
15
14
14
14
14
14
14
13
12
12
12
12
7
6
5
3
3
3
3
2
2
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
0
Fonte dos dados: IBGE. Serviços de saúde – 2002. Elaboração: Autores.
apresentam pelo menos duas funções
do segundo grupo ou duas funções
do terceiro grupo indicador. A este
nível hierárquico pertencem três cidades. O quarto nível é formado pelas
cidades com funções mais freqüentemente distribuídas, sem apresentar as
funções mais raras. A figura 3 representa o resultado da classificação acima demonstrada. É preciso salientar
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
que algumas cidades menores, como
Normandia, tendem a ter mais funções em decorrência de sua maior distância de Boa Vista. Já cidades maiores, mas bem próximas de Boa Vista,
podem ter poucas funções, como é o
caso de Mucajaí.
Como resultado, foi elaborado um
mapa da distribuição das cidades segundo os níveis hierárquicos relacio-
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
31
Tabela 5 – Homogeneidade interna dos grupos de funções de saúde
Grupos
indicadores
1
2
3
4
Homogeneidade dos grupos
Relativa
Freqüência média
Coeficiente
Coeficiente
de ocorrência
Desvio padrão Desvio padrão
de variação
de variação
intragrupal
intergrupal
intragrupal
intergrupal
13,46
1,13
8,40
2,82
26,68
6,00
1,00
16,67
1,33
34,73
2,67
0,52
19,48
0,36
31,58
0,92
0,28
30,43
Absoluta
Número
de funções
13
3
6
13
Elaboração: Autores.
Tabela 6 – Número de funções
centrais de saúde nas cidades
de Roraima – 2002
Cidades
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
Boa Vista
Normandia
Alto Alegre
Rorainópolis
Caracaraí
Bonfim
Pacaraima
Caroebe
Amajari
São Luiz
Mucajaí
Cantá
São João da Baliza
Uiramutã
Iracema
Nº de
funções
34
18
17
16
16
16
15
14
13
13
12
11
11
9
6
Fonte dos dados: IBGE. Serviços de saúde
– 2002. Elaboração: Autores.
nados com as funções de saúde (figura 4). Como se observa, destaca-se Boa
Vista e o fato de que várias cidades
próximas da capital não atingiram um
nível hierárquico médio demonstrando sua dependência direta de Boa Vista. No sul, Rorainópolis apresenta um
nível que a define como um pequeno
centro regional.
32
Tabela 7 – Classificação das cidades segundo as funções de saúde
Hierarquia dos centros urbanos
1ª Boa Vista
2ª Normandia
Alto Alegre
Rorainópolis
Caracaraí
3ª Bonfim
Pacaraima
Caroebe
4ª Amajari
São Luiz
Mucajaí
Cantá
São João da Baliza
Uiramutã
Iracema
Número de funções População
34
197.098
18
1.500
17
5.195
16
7.185
16
8.236
16
3.000
15
2.760
14
1.977
13
799
12
3.447
12
7.029
11
1.155
11
3.882
9
525
6
3.228
Fonte dos dados: IBGE. Serviços de saúde – 2002. Elaboração: Autores.
Visando expressar de forma
quantitativa a macrocefalia urbana
em Roraima, com base nos serviços de saúde, foram selecionadas
três funções: leitos hospitalares,
postos de trabalho de médicos,
postos de trabalho de enfermeiros
e aparelhos de raio X (figura 5). Boa
Vista concentra 76% dos leitos hospitalares, 89% dos postos de médicos, 81% dos postos de enfermeiros e 81% dos aparelhos de raio
X, contra 61% da população. Em
todos estes casos fica clara a concentração dos equipamentos e ser-
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
viços de saúde em Boa Vista, complementada pela informação do SUS de
que só a capital dispõe de leitos de
UTI (15 leitos) no Estado de Roraima.
A análise efetuada permite comprovar que a macrocefalia demográfica
de Boa Vista repercute de forma
dramática na distribuição dos serviços
de saúde em Roraima. Toda esta situação é agravada pelas grandes distâncias e pelo estado das rodovias o que
torna ainda mais problemático o acesso das pessoas aos serviços de saúde
da capital, considerando o tempo e os
custos de deslocamento.
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Conclusão
O pequeno tamanho demográfico de muitas cidades de Roraima, evidentemente não justifica uma forte
descentralização dos equipamentos e
serviços de saúde. Mas, mesmo as cidades de porte um pouco maior, como
Rorainópolis, Caracaraí e Mucajaí estão relativamente mal servidas.
Tudo indica, portanto, que a distribuição dos serviços de saúde em
Roraima necessita de uma avaliação
estratégica que leve em conta dois critérios básicos: (i) o tamanho da cidade e (ii) sua localização relativa com
relação à capital e suas relações com
outras cidades e municípios vizinhos.
Com base nisto, aparece como prioritário o apoio a Rorainópolis, com
sua localização mais distante de Boa
Vista, no sul do Estado, influenciando
São Luiz, São João da Baliza e Caroebe, totalizando hoje uma demanda de
42.000 pessoas, e Caracaraí, influenciando Iracema e toda a área central do
Estado, atualmente somando quase
24.000 habitantes. Seria o início do que
se poderia chamar de uma “descentralização centralizada” dos serviços
com base em Rodwin (1967), em ou-
Grupos
indicadores
35
1
30
30
2
3
25
4
Funções de saúde
Funções de saúde
25
20
15
5
5
0
0
0
3
6
9 12 15
Ocorrência das funções
Figura 2 – Ocorrência
de funções de saúde
nas cidades de Roraima
Fonte dos dados: IBGE. Serviços de saúde
2002. Elaboração: Autores.
Fonte dos dados: IBGE. Serviços de saúde
2002. Elaboração: Autores.
1ª ordem
2ª ordem
25
3ª ordem
20
4ª ordem
15
10
Cidades
Figura 3 – Número de funções de saúde
e classificação hierárquica das cidades de Roraima
Fonte dos dados: IBGE. Serviços de saúde 2002. Elaboração: Autores.
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Iracema
Uiramutã
S. João da Baliza
Cantá
Mucajaí
São Luiz
Caroebe
Pacaraima
Bonfim
Caracaraí
Rorainópolis
0
Amajari
5
Alto Alegre
1 3 5 7 9 11 13 15
Cidades
Figura 1 – Frequência
de ocorrência das funções
de saúde e seu agrupamento
30
Normandia
15
10
Centro de
Boa Vsita
20
10
35
Número de funções
35
tras palavras, de uma regionalização
planejada destes serviços visando torná-los mais acessíveis a toda a população do Estado. Além disso, deveria ser
implantado um amplo serviço de atendimento médico e odontológico com
características móveis para o periódico atendimento básico in loco das populações urbanas e rurais sem necessidade de deslocamento ou, como diz
o Ministério de Saúde (2004, p. 21),
de forma semelhante ao que propõe
o já citado modelo de hierárquicosistêmico das localidades centrais:
As ações e os serviços de saúde não
podem ser estruturados apenas na escala dos municípios. Existem no Brasil milhares de pequenas municipalidades que não possuem em seus territórios condições de oferecer serviços de
alta e média complexidade; por outro
lado, existem municípios que apresentam serviços de referência, tornandose pólos regionais que garantem o atendimento da sua população e de
municípios vizinhos.
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
33
Uiramutã
Pacaraima
Postos de trabalho de médico
600
500
500
Normandia
BR-174
Amajari
Leitos hospitalares
400
400
300
Bonfim
Boa Vista
Alto Alegre
BR
-4
300
01
200
200
Cantá
Mucajaí
100
100
0
Caracaraí
Centro de
BR
-21
0
1ª ordem
Rorainópolis
2ª ordem
São
Luiz
São João
da Baliza
Caroebe
0
Boa Vista
Alto Alegre
Caracaraí
Rorainópolis
Mucajaí
Bonfim
Normandia
Pacaraima
Cantá
São Luiz
Caroebe
São João da Baliza
Amajari
Uiramutã
Iracema
0
- 21
BR
Boa Vista
Alto Alegre
Pacaraima
São Luiz
Caracaraí
Normandia
Bonfim
Caroebe
Rorainópolis
São João da Baliza
Amajari
Uiramutã
Cantá
Iracema
Mucajaí
Iracema
4
3ª ordem
BR
-1 7
4ª ordem
Postos de trabalho de enfermeiros
Aparelhos de raio X
200
18
Estrada pavimentada
15
160
Estrada implantada
12
Limite municipal
Povoados
0
50
100
150 km
120
9
80
6
40
3
0
Tabela 8 – Distâncias entre Boa Vista e as demais cidades de Roraima
Cidades
Alto Alegre
Amajari
Bonfim
Cantá
Caracaraí
Caroebe
Iracema
Mucajaí
Normandia
Pacaraima
Rorainópolis
São João da Baliza
São Luiz
Uiramutã
Distância
de Boa Vista (km)
89
158
125
32
134
354
92
52
183
215
291
346
305
299
Tempo aproximado de
viagem*
1
3
2
0
2
7
1
1
3
4
5
7
6
6
h 50
h 10
h 30
h 40
h 40
h 00
h 50
h 00
h 40
h 20
h 50
h 00
h 10
h 00
min
min
min
min
min
min
min
min
min
min
min
min
min
min
Boa Vista
Alto Alegre
Mucajaí
Rorainópolis
Caracaraí
Pacaraima
Bonfim
São Luiz
Normandia
Amajari
Cantá
Iracema
Caroebe
São João da Baliza
Uiramutã
Fonte dos dados: IBGE. Serviços de saúde – 2002; DNIT. Mapa rodoviário Roraima – 2002.
Elaboração: Autores.
Figura 5 – Número de leitos hospitalares,
postos de trabalho de médicos, postos de trabalho
de enfermeiros e aparelhos de raio X
nas cidades de Roraima – 2002
Fonte dos dados: IBGE. Serviços de saúde – 2002. Elaboração: Autores.
MINISTÉRIO DE SAÚDE. O SUS no seu
município: garantindo saúde para todos.
Brasília, 2004. (Série B. Textos Básicos de
Saúde).
* Média de 50 km/h.
Fonte: FECOMÉRCIO/RR. Guia turismo em Roraima. 2002/2003.
Esta nova regionalização garantiria o atendimento de metas de eficiência e eqüidade para o sistema de
saúde do Estado de Roraima.
Bamako, Conakry, Dakar and Niamey.
Síntesis. Paris: UNICEF; République
Française, 2001.
Referências bibliográficas
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Southern Germany. Englewood Cliffs:
Prentice Hall, 1966 (original de 1933).
AMORIM FILHO, O. B.; DINIZ, A. M. Boa
Vista, Roraima: uma cidade média na fronteira setentrional do Brasil. In: XXV
CONGRESO NACIONAL Y X INTERNACIONAL DE GEOGRAFIA. Resúmenes…
Valdivia: Universidad Austral de Chile,
2004.
ASSANI, A. Equity and access to quality care
in urban areas. Urban health project Abidjan,
34
0
Boa Vista
Alto Alegre
Caracaraí
Rorainópolis
Pacaraima
Amajari
Bonfim
Cantá
Caroebe
Iracema
Mucajaí
Normandia
São João da Baliza
São Luiz
Uiramutã
Figura 4 Distribuição das cidades de Roraima segundo
níveis hierárquicos relacionados com as funções de saúde – 2002
BARROS, N. C. C. de. Roraima: paisagens
e tempo na Amazônia Setentrional. Recife: Editora Universitária-UFPE, 1995.
FECOMÉRCIO/RR. Guia turismo em
Roraima – 2002/2003. Boa Vista, 2003.
PALOMÄKI, M. The functional centers
and areas of south Bothnia. Finland.
Fennia, Helsinki, n. 88, p. 1-235, 1964.
RODWIN, L. Planejamento urbano nos países em desenvolvimento. Rio de Janeiro:
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SILVA, S. B. de M. e; SILVA, B. C. N. A
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em: <http://www.ibge.gov.br/cidadesat
/default.php>. Acesso em: 10 jun. 2005.
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LEÃO, S. O. O subsistema urbano-regional
de Ilhéus-Itabuna. Recife: SUDENE, 1987.
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
ÁREAS PROTEGIDAS DE FRONTEIRA E TURISMO
SUSTENTÁVEL NA AMAZÔNIA: ENTRE O
SURREALISMO E A INVENÇÃO
Marta de Azevedo Irving 1
Resumo
O presente trabalho visa contribuir
para a discussão da perspectiva do
Turismo Sustentável em áreas protegidas de fronteira, na Amazônia brasileira, a partir do olhar sobre os parques nacionais Montanhas de Tumucumaque e Cabo Orange, que configuram e materializam, em sua dinâmica, o encontro de duas lógicas distintas de desenvolvimento, uma vez
que se situam em área de fronteira
com a Guiana francesa e, ilustram a
complexidade de uma região ultraperiférica da Europa e da América Latina, que gradualmente passa a compor o imaginário coletivo, por sua importância geoestratégica, no âmbito
da diplomacia contemporânea e, em
especial, com relação à Convenção
da Diversidade Biológica.
Palavras-chave: parques nacionais,
fronteira, turismo sustentável, Amazônia.
Abstract
The present work aims to contribute to the discussion of the approach
of Sustainable Tourism in protected
areas in the brazilian Amazon
border, from the case of Montanhas
de Tumucumaque e Cabo Orange
National Parks, which illustrate,
directly, the challenges and conflicts
between two different logics of development in the Amazon region, at the
border of French Guiana, an “ultraperipheric” region of the European
Union and the Latin America that
gradually increases in importance
in the global imagination, for its
geostrategic importance linked to the
contemporany diplomacy, and, in
special, with the framework of the
Biodiversity Convention.
Key Words: National parks, border
areas, sustainable tourism, Amazon
Region.
1. Introdução e Pressupostos
A utilização da base de recursos
renováveis para uso turístico se
constitui em tema central, no contexto de ecossistemas tropicais, em países emergentes (ou em vias de desenvolvimento), nos quais, a demanda por inclusão social representa
foco central de políticas públicas e,
também, a garantia de manutenção
de integridade de patrimônio natural, de importância global. Essa afirmação é ainda mais significativa
para os países de megadiversidade
biológica, nos quais as estratégias de
conservação estiveram, historicamente, dissociadas da perspectiva
de desenvolvimento regional.
Nesse contexto, os parques nacionais emergem como pontos focais
para o desenvolvimento turístico e
veículos potenciais de inclusão social, principalmente em países como
o Brasil, ainda distantes das estatísticas mundiais de turismo, apesar de
sua condição de país de importante
liderança no âmbito da Convenção
da Diversidade Biológica. Esta afirmação ganha ainda um significado
mais expressivo, no âmbito das políticas públicas e sua articulação
progressiva para a redução das desigualdades sociais. No momento, a
Diretoria de Áreas Protegidas do
Ministério do Meio Ambiente, empreende esforços para a elaboração do
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Plano Nacional de Áreas Protegidas
que, em seus princípios norteadores,
busca compatibilizar a conservação
do patrimônio natural e a inclusão
social. Da mesma forma, um esforço
conjunto dos Ministérios de Turismo
e de Meio Ambiente, finaliza e revisão das Diretrizes para a Política
Nacional de Ecoturismo (EMBRATUR/IBAMA, 1994) e coloca em evidência as Unidades de Conservação
e a participação da sociedade como
focos prioritários para atuação futura.
Atualmente, no Brasil, existem 55
parques nacionais, e este englobam
aproximadamente 17.631.180 hectares.2 (IBAMA, 2005), distribuídos por
todas as regiões do país, com elevada representatividade dos diferentes ecossistemas regionais. No entanto, o processo de criação de parques nacionais (e, a conseqüente demanda de gestão), induzido pelo
momento político brasileiro e pelas
pressões internacionais, não foi
acompanhado de uma estratégia
equivalente de inclusão social, ou
mecanismos de participação da sociedade na discussão de políticas
públicas de proteção da natureza, o
que acabou por consolidar uma cisão evidente sociedade-natureza,
causa provável de grande parte dos
conflitos relacionados à existência
de áreas protegidas no Brasil. No
entanto, apenas poucos são utilizados efetivamente para uso turístico
e, a maioria encontra-se ainda “em
fase de implantação”. Assim, os parques nacionais, apesar de seu valor
1
Pesquisadora e Professora do Programa Eicos/IP/UFRJ. Trabalho realizado com apoio inicial da
CAPES, do Museu de História Natural de Paris e, da DAP/SBF/MMA para as atividades de campo.
2
Para esta análise, não são consideradas terras indígenas ou quilombolas, por estas não serem
constituintes do SNUC.
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35
como patrimônio natural de impacto global, contribuem ainda muito
pouco como pontos focais para o
desenvolvimento regional, a economia local e a inclusão social.
Destes parques, cinco estão diretamente em área de fronteira do Brasil, na Amazônia e, significativamente distantes dos mercados emissores
tradicionais: PN da Serra do Divisor,
PN do Pico da Neblina, PN Monte
Roraima, PN do Cabo Orange, PN
Montanhas de Tumucumaque, sendo os últimos dois de importância
central para o diálogo ético do turismo entre América Latina e Europa,
na Amazônia. Esta região, de grande
impacto no imaginário coletivo, representa um atrativo patrimonial e simbólico, sem precedentes, a ser, certamente, capitalizado pelo turismo regional, a médio e longo prazos.
Becker (2005) assinala o significado geopolítico da Amazônia,
como valorização ecológica de “dupla face”, em termos de sobrevivência humana e capital natural, sobretudo água e megadiversidade, num
contexto progressivo de mercantilização da natureza, ao que ela denomina “mercado da vida”. Segundo
a autora, a Amazônia pode ser interpretada como um eldorado da contemporaneidade, capital de realização atual e futura e, o único a pertencer, em sua maior parte, a um só
Estado Nacional. Esta afirmação se
sustenta em alguns argumentos e
revela algumas tendências:
O novo valor atribuído ao potencial de recurso naturais confere à
Amazônia o significado de fronteira do uso científico-tecnológico
da natureza e, em sintonia com a
política de formação de grandes
blocos supranacionais, revela a necessidade de pensar e agir na escala da Amazônia sul-americana”
(p. 33-34)...
Enquanto espaço geográfico, territorial, a valorização estratégica da
Amazonia decorre do novo significado por ela adquirido, o de um
duplo patrimônio: o de terras propriamente dito, e o de imenso capital natural. Na representação
simbólico-cultural, o valor da região está condicionado pela centralidade que tem hoje no mundo a
biodiversidade e a sustentabilidade da Terra. (p. 35).
36
Assim, pensar o planejamento
turístico para a região focal de inserção dos parques nacionais Montanhas de Tumucumaque e Cabo
Orange (percebidos em seu conjunto com as demais áreas protegidas
do Estado do Amapá e da Guiana
Francesa), se constitui num exercício complexo e, ainda, surrealista e
abstrato de projeção de cenários,
numa região de “ultraperiferia”
amazônica (MASTEAU, 1997). Esta
região, em processo de “transe silencioso” (IRVING, 2005), no qual o território se transforma, de maneira
imperceptível para os distantes centros de decisão, adquire uma nova
representação no plano global pelo
valor estratégico do patrimônio natural (notadamente a base de recursos hídricos e de biodiversidade), e
emerge, como potencialidade, para
um novo modelo de integração amazônica.
Nesse contexto, o turismo, surge
como uma projeção distante na economia local, como uma possibilidade remota no mundo globalizado
mas se materializa como um apelo,
sem precedentes para a reflexão acadêmica e para a possibilidade de
distribuição de benefícios pelo uso
da natureza, segundo a concepção e
os compromissos centrais da Convenção da Diversidade Biológica3. Se
expressa também, de maneira progressiva como justificativa recorrente no discurso político regional, sob
forte pressão pela integração regional e pelas demandas de desenvolvimento, como mito e alternativa
para a redenção regional, em contraposição aos mecanismos convencionais de uso e ocupação de solo na
Amazônia.
Mas em que escala e, de que maneira, pensar o turismo em Unidades de Conservação tão diversificadas ecologicamente, de elevado
significado para a biodiversidade
global, mas ainda não efetivamente
implantadas, distantes dos centros
urbanos e não competitivas na lógica de mercado internacional? Como
refletir sobre planejamento turístico
num espaço protegido em que o aces-
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
3
so representa ainda uma aventura
imprevisível e atraente a poucos e,
que, não é sequer “reconhecido e
apropriado” pelos brasileiros, nem
mesmo residentes em sua área de
inserção? Que pressupostos éticos
deveriam antecipar a emergência do
turismo regional?
Para o salto ainda surrealista sobre planejamento turístico, neste
caso, algumas questões permanecem
ainda sem resposta: Em que bases
pensar o turismo em áreas protegidas de uso indireto na Amazônia,
tendo como fundamento a integração regional? Qual a abordagem desejada para o turismo em áreas protegidas de fronteira? Qual o Estado
da Arte do processo de gestão destes parques e quais as suas implicações em cooperação internacional?
Como as políticas públicas pretendem construir uma estratégia regional para a gestão da biodiversidade
e o desenvolvimento regional, uma
vez que os ecossistemas amazônicos
são contínuos e transcendem as fronteiras políticas?
Algumas dessas questões foram
discutidas por Irving (2002a e 2005),
tendo como ponto focal os desafios,
conflitos, as potencialidades e restrições para a gestão da biodiversidade em áreas protegidas e, em particular, nos espaços para a cooperação transfronteiriça Brasil-França,
na Amazônia. Na verdade, o tema da
gestão da biodiversidade regional
constitui ainda um desafio de contornos indefinidos, o que tende a dificultar seriamente as iniciativas de
planejamento turístico, principalmente em função da complexidade
envolvida em ecossistemas contínuos envolvendo minimamente 3 países (Brasil, França e Suriname), sujeitos e distintos arcabouços legais e
institucionais e lógicas diversificadas, na interpretação de conservação
de patrimônio natural e cultural.
Com base neste contexto previamente avaliado, o presente trabalho,
de caráter exploratório, pretende
contextualizar o turismo, numa perspectiva de projeção de cenários tendo, como focos centrais de análise,
Para este trabalho, o maior foco de análise estará dirigido à dinâmica do turismo no Estado do Amapá
e sua interação com a Guiana Francesa.
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
os parques nacionais de fronteira do
Estado do Amapá, em suas potencialidades e interfaces com a Guiana
Francesa, tendo em vista as políticas públicas, a dinâmica regional e,
as demandas futuras, na lógica de
um território “em efervescência silenciosa”.
A pesquisa foi desenvolvida entre maio de 2004 e julho de 2005, simultaneamente no Brasil e na França, com base em pesquisa documental e bibliográfica, entrevistas dirigidas a interlocutores selecionados
(pesquisadores, gestores de espaços
protegidos e políticos dos dois países), questionários dirigidos aos diretores de parques, análise de folheteria turística e pesquisa de campo4.
2. Parques nacionais Montanhas de Tumucumaque e
Cabo Orange
A contextualização preliminar
dos dois parques está apresentada
a seguir. No entanto, é importante
mencionar que as informações sobre
a área em questão são ainda limitadas e estão dispersas em alguns sites
especializados e muitas publicações
e documentos são de acesso limitado. As informações a seguir apresentadas foram levantadas, principalmente, nos sites do Ministério de
Meio Ambiente (2004a), do IBAMA
(2004), e na consulta a alguns veículos de comunicação e entrevistas realizadas em campo, sistematizadas
e discutidas em Irving (2005). Embora localizados numa mesma região geográfica, os dois parques tem
características ecológicas bastante
distintas e, ilustram um gradiente da
linha de fronteira entre sistemas
marinhos e costeiros e áreas interiores de floresta tropical densa mas
estão sujeitos progressivamente a
fortes pressões com relação ao uso
dos recursos renováveis.
2.1. Caracterização do Parque Nacional Montanhas de Tumucumaque
Figura 1: Contexto de Localização do Parque Nacional Montanhas de
Tumucumaque
Amapá, tendo também parte de sua
extensão no Estado do Pará e faz
fronteira com a Guiana Francesa e o
Suriname (figura 1).
A região de inserção do PNMT
se caracteriza por clima quente e
úmido, dominada pela floresta tropical densa. Ela abriga também as
nascentes dos principais rios do
Amapá, como o Oiapoque, o Jari e o
Araguari. Com relação ao patrimônio natural, o PNMT se caracteriza
por uma elevada riqueza florística
e faunística e uma significativa diversidade de habitats, uma das
potencialidades de maior relevância para o desenvolvimento turístico, em geral, e para a pesquisa científica, em particular.
Entre as espécies de fauna podem
ser mencionados grandes carnívoros como a onça (Panthera onca) e a
sussuarana (Puma concolor) e primatas raros como o caxiu (Chiropotes
satanas) de população muito reduzida em outras regiões. Pássaros como
as macaws (Ara cloroptera e Ara ma-
O PNMT5 , criado por Decreto s/n,
publicado no Diário Oficial de 23 de
agosto de 2002, é a maior área protegida do mundo em floresta tropical
e possui uma área de 3. 867.000 ha.
Está localizado predominantemente na região noroeste do Estado do
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
cao), marianinhas (Pionites melanocephalata, jacus (Penélope marail), beija-flor brilho de fogo (Topaza pela), e
grandes pássaros frutívoros da copa
da floresta, tais como o Anambé-militar (Haematoderus militaris), o pássaro-boi (Perissocephalus tricolor) e
o Gainambé (Procnias alba) são abundantes nas florestas bem conservadas da região. Entre as espécies da
flora podem ser citadas a maçaranduba, maparajuba, cupiúba, jarana,
mandiqueira, louros, acapu, matamatás, faveiras, abioranas, cedrorana, pracachi, piquá, tachi, entre outras (IBAMA, 2004)
A importância ecológica do PNMT
é reforçada ainda por este se inserir
num imenso corredor de biodiversidade, ligando toda a face oeste do
Estado do Amapá até o nordeste do
Pará, que proporciona a interligação
de diversas áreas protegidas, a grande maioria em ecossistema de floresta densa. O parque é ainda a peça
maior em um mosaico de unidades
de conservação que recobre mais de
4
A continuidade da pesquisa está prevista no âmbito do Programa Eicos/IP/UFRJ e dos projetos de
cooperação Brasil-França para a Gestão da Biodiversidade e Desenvolvimento Regional, em fase de
construção entre a Universidade Federal do Rio de Janeiro, o Museu Nacional de História Natural de
Paris (MNHN), a Escola Nacional de Altos Estudos de Paris (EHESS) e, a Diretoria de Áreas Protegidas
do Ministério da Secretaria de Biodiversidade e Florestas do Meio Ambiente do Brasil.
5
De acordo com o dispositivo do Artigo 1º do documento legal, “o parque tem como objetivo específico
assegurar a preservação de recursos naturais e da diversidade biológica, bem como proporcionar a
realização de pesquisas científicas e o desenvolvimento de atividades de educação, de recreação e
turismo ecológico”. (Lei 9985/2000).
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
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Figura 2: Contexto de Localização do Parque Nacional de Cabo Orange
50% da área do Estado do Amapá.
Sem estradas e isolado de qualquer
grande concentração urbana, o parque está praticamente intocado, a
não ser por alguns focos isolados de
garimpo e pela presença do núcleo
populacional de Vila Brasil.
O parque situa-se numa região
despovoada, exceção à Vila Brasil,
único núcleo populacional contido
dentro dos limites do Parque. No
entanto, em seu entorno, há ocorrência de garimpos. Em seu interior, foram identificadas, pelo IBAMA, 25
pistas de pouso clandestinas6, algumas ainda ativas. As atividades de
caça e exploração irregular de madeira, até o momento, não constituem um problema maior para a fiscalização.
Não existe acesso rodoviário ao
parque, uma vez que as estradas existentes são precárias e não chegam
aos seus limites. Sem estradas, e isolado de qualquer grande concentração urbana, o parque está praticamente intocado, a não ser por alguns
garimpos e pelo núcleo urbano de
Vila Brasil. Também não há no local
infraestutura turística de porte mas,
com a perspectiva de finalização do
plano de Manejo, a área poderá ser
aberta à visitação em 2006/2007 e
um investimento nesse setor será
essencial para o desenvolvimento
turístico regional.
38
2.2. Parque Nacional do Cabo Orange
O PNCO foi criado pelo Decreto
n° 84.913 de 15.07.1980, está localizado no Estado do Amapá, nos municípios de Calçoene e Oiapoque7 e
possui uma área de 619.000 ha, com
fronteira direta com a Guiana francesa (figura 2).
O clima da região é tropical, quente e úmido, com 3 meses de baixa
precipitação pluviométrica. As temperaturas médias anuais situam-se
entre 24 a 26° C., e o nível pluviométrico entre 1750 e 2000 mm anuais.
Em contraste com os ecossistemas predominantes no Parque Nacional Montanhas de Tumucumaque, o Parque Nacional do Cabo
Orange tem função primordial na
preservação de manguezais e de
campos de planície do Amapá e pertence à unidade de relevo Planície
Fluvio-Marinha Macapá-Oiapoque,
que se constitui de áreas planas, na
faixa de terrenos quaternários, formados por sedimentos argilosos,
siltosos e arenosos de origem mista,
fluvial e marinha. O parque protege
uma grande extensão de mangue
(uma faixa marítima a 10 Km de largura da costa) e ecossistemas terrestres, além de favorecer a educação
ambiental e a pesquisa.
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6
7
8
A vegetação se caracteriza predominantemente por espécies do mangue como a siriúba (Avicenia nitida), o
mangue-vermelho (Rhizophora mangue) e o mangue-amarelo (Laguncularia sp.). Os campos da planície do
Amapá têm a cobertura vegetal abundante de gramíneas ciperáceas. São
encontrados o buriti (Mauritha flexuosa), mururés (Eichornia sp.), canaranas (Echinoa sp.) e o capim-arroz.
A fauna local é rica e diversificada e abriga várias espécies de tartaruga, o peixe-boi (Trichechus inunguis), bem como a avifauna,que merece destaque por ser o litoral amapaense o último reduto de várias espécies anteriormente encontradas
em todo o litoral brasileiro, entre elas
o guará (Eudocimus ruber) e o flamingo (Phoenicopterus ruber).
O PNCO, diferentemente da maioria dos parques nacionais brasileiros, possui 92% de sua área total regularizada. No entanto, alguns conflitos e pressões sobre os ecossistemas locais são observados em função de pioneiros na ocupação da região, que possuem fazendas no entorno. São também registrados incêndios, invasões, atividades de pecuária, agricultura, caça, pesca, desmatamentos, mineração e erosão no
interior da área do Parque. É importante também ressaltar a existência
de moradores dentro do parque e
conflito com criadores de búfalos. A
relação da administração com os
moradores da Borda Sul (remanescentes de quilombo, reconhecidos
pela Fundação Palmares) tem sido
pacífica mas com a comunidade de
Cunani (extrativistas) há problemas
de solicitação de área, no limite sul
do parque. Não há conflitos diretos
entre o parque a área indígena a oeste. Na localidade de Taperebá, os
conflitos existem com pescadores
que vem do exterior8.
2.3. A importância histórica e cultural
do território na lógica da disputa
O território, que atualmente abriga os dois parques está associado a
um percurso histórico da mais alta
Informação obtida em reunião com o IBAMA em Macapá, em agosto de 2004.
O acesso é feito através da BR-156, ou por rede fluvial (Rio Caciporé). De Oiapoque (670 Km da capital)
por via marítima, é possível chegar a Vila Taperebá que fica na área do Parque.
Informações obtidas em questionário dirigido à equipe IBAMA/Parque Nacional de Cabo Orange.
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
importância, na lógica da construção
de identidade do Brasil e da França
na região amazônica e, esse registro
é apenas, marginalmente, conhecida pela população dos dois países.
Estes parques representam, portanto, não apenas um registro de patrimônio ambiental de importância global mas também uma memória, a ser
resgatada, não pelo ângulo da disputa de território, mas por sua face
simbólica e multifacetada, de sobreposição de influencias culturais e
étnicas, que cria uma paisagem singular, de difícil reprodução no espaço amazônico. Estas influencias
reproduzem duas realidades distintas, que trazem à reflexão o diálogo
norte-sul ou ainda, os desafios de
um espaço geográfico que concentra,
simultaneamente, em toda a complexidade, a reflexão ética sobre o
(des)envolvimento.
Este território representa o resultado do balanço de forças, entre diversos países, desde os tempos remotos da descoberta do continente
americano até a época recente da
República no Brasil. O percurso histórico recua desde a disputa entre
portugueses e espanhóis e, a assinatura imprecisa do Tratado de Tordesilhas, passando pelas iniciativas
dos demais países europeus em ocupar a amazônia brasileira, até a disputa direta entre França e Brasil pela
soberania do território, entre o Amazonas e o Oiapoque. Confronto político finalizado apenas em 1900, por
um Tratado de Arbitragem, decidido
na Suíça, que estabeleceu, no plano
internacional, os limites definitivos
de fronteira, reafirmando a base do
Tratado de Utrecht. Estudos detalhados sobre o tema são apresentados
em Masteau (1997) e Sarney et al.
(2003), entre outros pesquisadores.
Evidentemente que a dimensão
histórica é extremamente complexa
e afeta, até os dias atuais, a dinâmica do território e a paisagem cultural de fronteira e merece um capítulo à parte na caracterização dos dois
parques em questão, uma vez que
amplifica a sua importância e transcende a interpretação apenas centrada no discurso sobre a biodiversidade. No território dos parques e seu
entorno, diversos são os registros
históricos e as influencias recíprocas entre Brasil e França, o que pare-
ce contribuir para um cenário peculiar na dinâmica amazônica, pouco
estudado e negligenciado nos textos
tradicionais, que merece um olhar de
pesquisa mais aprofundado. Cabe
ainda enfatizar que o valor histórico da região poderá representar um
diferencial de alta atratividade turística para a região, em estratégias futuras de desenvolvimento, uma vez
que integra um resgate identitário
para os dois países e envolve, complementarmente, a história do Suriname e todas as suas interfaces com
o contexto atual da União Européia..
Com o objetivo de contribuir para a
visibilidade desta dinâmica, o Quadro 1 apresenta, resumidamente, alguns dos marcos históricos que poderiam inspirar roteiros turísticos
para a região. A resultante do modo
de ocupação do território é decorrente do valor estratégico atribuído historicamente ao patrimônio natural e
da integração progressiva de bases
culturais distintas e, envolve, de
maneira evidente, um processo gradual de troca entre etnias e civilizações, de difícil reprodução em território amazônico.
2.4. A gestão dos parques como tema
central ao desenvolvimento turístico
O processo de criação dos dois
parques materializa uma história de
decisões centralizadas e, evidentemente conflitos, que, apenas recentemente, começam a ser negociados
entre diferentes esferas do Poder
Público. Com relação ao processo de
gestão e sua utilização para fins turísticos, os parques não dispõem
ainda de Planos de Manejo consolidados. No caso do PNMT, uma parceria com a Conservation International e o Exército, tem apoiado expedições para levantamento de flora e
fauna, que subsidiarão a caracterização ecológica do parque e a elaboração futura do Plano de Manejo,
previsto para ser concluído em 2006.
Da mesma forma que o Plano de
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Manejo, o Conselho Gestor, previsto
pelo SNUC, com caráter consultivo,
encontra-se ainda em formação e
consolidação.9 O esforço, no momento, pela direção do parque, tem sido
sensibilizar lideranças da região, no
sentido de uma configuração mais
definitiva e atuante do conselho. Com
o novo conselho empossado e, as
informações de flora e fauna e, dados sócio econômicos levantados, o
Plano de Manejo poderá ser discutido construído, participativamente e,
a área aberta à visitação, teoricamente, a partir de 2006/2007.
Da mesma maneira, embora o
PNCO tenha sido criado em 1980, não
dispõe ainda de Plano de Manejo, em
fase de planejamento e realização
pelo Projeto ARPA. O Conselho
Gestor encontra-se também em fase
de implantação e consolidação.10 Não
há visitação em processo de rotina,
embora já tenham sido iniciados testes de visitação orientada com grupos oriundos de Caiena e, no momento, encontra-se em fase de discussão um Projeto de Turismo Integrado entre o Parque Nacional de
Cabo Orange e o Parque Regional
Natural da Guiana, ambos contíguos
na linha de fronteira.
No entanto, para o planejamento
turístico, considerando o Plano de
Manejo, (associado ao Plano de Uso
Público) essencial não apenas como
documento técnico mas como instrumento norteador de planos e programas, qualquer iniciativa para o desenvolvimento turístico no interior
do parque, só poderá ser idealizada, na prática, a partir de 2007, numa
previsão realista. Se esta restrição
impede o desenvolvimento de estratégias turísticas de curto prazo, ela
representa também uma oportunidade ímpar para o planejamento de
longo prazo, capaz de antecipar
impactos e maximizar benefícios sociais e ambientais. Talvez este seja um
dos diferenciais mais interessantes
na perspectiva de planejamento turístico para os parques nacionais
9
Um primeiro conselho havia sido criado, de maneira arbitrária, aparentemente sem qualquer representatividade, vinculação ao parque ou lógica de participação social no processo de tomada de decisão.
10
A composição prevê as prefeituras locais, Exército de Fronteira, Batalhão Ambiental (Polícia Militar), Associação Comercial, Colônia de Pescadores (Taperebá), Representantes dos Cuninami (Quilombos), FUNAI,
APIO (Povos Indígenas do Oiapoque), AGN (Associação Galibi-Warmorno Indígena), Assentamento de
Caçipore e Assentamento de Vila Velha (Assentamento do INCRA), criadores de gado, comunidades locais, Associação Ambiental, Pegadas do Oiapoque (ONG), IEPA (Instituto do Estado de Pesquisa do Amapá),
IESA (Instituto de Estudos Socioambientais), INCRA, Associação de Catraeiros (transporte fluviais).
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
39
Quadro 1: Principais Marcos do Histórico da Disputa de Fronteira na Região
40
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
(continua)
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
(conclusão)
Fonte: Doratioto, F.F.M. (2003).
Obs: As informações resumidas refletem a leitura brasileira sobre a lógica da disputa de fronteira.
MESTRADO EM ANÁLISE REGIONAL
O primeiro da sua categoria no Estado da Bahia
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
41
Quadro 2: Municípios do Amapá associados à área dos PNMT e PNCO
(Área, população, IDH, Principais Atrativos e Comunidades
Fontes: www.amapa.net (Consulta em fevereiro 2005), www. Frigoletto.com.br/GeoEcon/
menuecon.html (consulta em fevereiro 2005), PNMT: Parque Nacional Montanhas de
Tumucumaque. e PNCO: Parque Nacional do Cabo Orange.
Montanhas de Tumucumaque e Cabo
Orange e sua região de inserção.
Um tema central para a gestão e,
futuramente, para o desenvolvimento de circuitos turísticos regionais, diz
respeito à limitação de recursos humanos nos dois parques. As equipes
do IBAMA são extremamente reduzidas e, embora estejam efetivamente
engajadas no processo de inclusão
social para a gestão, dispõem de poucos recursos e meios efetivos para responder a uma demanda cotidiana
elevada e crescente, em termos de
compromissos e ações de campo.
42
2.5. Contextualização sócio econômica
regional
Os dois parques inserem-se num
conjunto total de 5 municípios do
Estado do Amapá (Pedra Branca, Serra do Navio, Laranjal do Jarí, Oiapoque e Calçoene) e um município do
Pará (Almerim) Estes municípios estão apresentados, em termos de data
de criação, população, densidade demográfica e IDH no Quadro 2.
A economia local se baseia no
setor primário e de serviços. No entanto, em alguns casos, como no município de Oiapoque, o comércio ga-
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
nha dimensões mais importantes e
estabelece uma dinâmica distinta, de
relação direta com a Guiana Francesa. De maneira geral, a agricultura
de subsistencia, a criação de gado, a
pesca, a exploração florestal e mineral constituem a base da economia
local. A infraestrutura turística é
praticamente inexistente e, o turismo, não constitui ainda elemento
significativo para a economia regional, apesar da riqueza do patrimônio
natural e cultural da região.
Um tema fundamental para discussão, com relação à gestão da
biodiversidade regional e ao planejamento turístico, diz respeito à
temática indígena e sua integração
às estratégias de desenvolvimento e
conservação de recursos renováveis.
Nesta coexistem diversos grupos indígenas, alguns dos quais, em ambos
os lados da fronteira com a Guiana
Francesa e, portanto, submetidos a
um enquadramento legal e institucional distinto. Segundo Gallois e
Grupioni (2003) são inúmeras as
etnias indígenas no norte do Amapá. Os Galibi Marwono ocupam a
Terra Indígena Uaçá e a Terra Indígena Juminã. Os Palikur ocupam as
margens do rio Urukawá, afluente
do Uaçá (Terra Indígena Uaçá), os
Karipuna, as Terras Indígenas Uaçá,
Juminã e Galibi do Oiapoque e, os
Galibi do Oiapoque, a Terra Indígena Galibi do Oiapoque. No noroeste
do Amapá os Wajãpi ocupam a Terra Indígena Waiãpi. Próxima ao
PNMT há também a Reserva Indígena de Tumucumaque.
O Ibama inaugurou recentemente um escritório/base de apoio para
o parque Nacional de Tumucumaque em Serra do Navio, município
adotado como porta de entrada para
o parque estão em fase de discussão
duas bases de apoio em Oiapoque e
Vila Brasil.
Na perspectiva regional, no entanto, a área dos parques e seu entorno já se configuram, sutilmente,
como cenário estratégico para a cooperação transfronteiriça com a
Guiana francesa sob a ótica da gestão da biodiversidade, do desenvolvimento regional e, a médio e longo
prazos, a partir dos circuitos turísticos integrados.
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Quadro 3: Entrada de turistas no Brasil, segundo regiões de residência
permanente
Fonte: Ministério do Turismo (Embratur), - Dados de 2002 revisados.
Quadro 4: Hóspedes Nacionais e
Estrangeiros no Amapá entre 1998
e 2001
Fonte : Departamento de Turismo do
Amapá (http://www.seplan.ap.gov.br)
Quadro 5: Hóspedes nacionais e estrangeiros registrados nos meios de
hospedagem do Amapá segundo o motivo de viagem – 2001
Fonte: Ficha Nacional de Registro de Hóspedes (http://www.seplan.ap.gov.br/)
3. Estatísticas de Turismo no
Brasil e a Perspectiva do
Amapá
De acordo com o Anuário Estatístico da Embratur de 2004 (Ministério
de Turismo/EMBRATUR, 2004), o
Brasil recebeu, em 2003, 4.090.590
turistas estrangeiros, dobrando o
número de visitantes recebidos em
1995. Ainda assim, as estatísticas de
2003 foram inferiores aos anos de
1998 até 2001, nos quais se registrou,
em média, cinco milhões de visitantes ao ano. (Dados resumidos segundo as regiões de residência permanente no Quadro 3).
Ainda segundo a mesma fonte, a
receita cambial gerada pelo turismo
internacional no Brasil foi de US$
3.385.967, no ano de 2003, demonstrando um crescimento de 8% em relação ao ano anterior, com evidente
tendência ao crescimento nos próximos anos.
Quanto à origem, em 2003, os turistas europeus (1.567.708 visitantes), representaram o contingente
mais representativo, principalmente Alemanha, Portugal, França e Itália. Em segundo lugar, o país foi visitado por turistas sul-americanos
(1.532.234 visitantes) e, em seguida,
norte americanos (790.652), asiáticos (53.785), sendo 50% desse mercado proveniente do Japão.
No mesmo ano, as cidades mais
visitadas foram: Rio de Janeiro
(36,9%), São Paulo (18,5%), Salvador
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
(15,8%), Fortaleza (8,5%), Recife
(7,5%), Foz do Iguaçu (7,4%) e Búzios (6%). As cidades amazônicas não
se expressam, ainda, com expressividade nas estatísticas turísticas.
No caso específico do Estado do
Amapá, poucos são os dados recentes. As estatísticas disponíveis pelo
Governo do Estado, entre 1998 e
2001, demonstram também um crescimento progressivo da atividade
turística, conforme os dados apresentados no Quadro 4.
No entanto, a análise cautelosa
dos dados informações existentes
tendem a reafirmar que, a visitação
ao Estado, se dirige prioritariamente
à viagem de negócios. O patrimônio
natural não parece figurar ainda nas
estatísticas como um atrativo significativo, conforme os dados apresentados no Quadro 5. A visitação ao
Estado é motivada basicamente por
negócios, representações comerciais,
circulação de funcionários federais
e estaduais, parentes de residentes,
e outros grupos para os quais não
há ainda motivação turística ou ecoturística.
Quanto à faixa etária, a grande
concentração de visitantes tem idade entre 26 e 40 anos, provavelmente representando a faixa ativa da
população, engajada em negócios ou
atividades profissionais diversas no
Estado (Quadro 6).
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
43
Quadro 6 Hóspedes nacionais e estrangeiros registrados nos meios de
hospedagem do Amapá segundo a faixa etária - 2001
Quadro 8: Total de Visitantes brasileiros por Estado de Origem –
2001
Fonte: Departamento de Turismo (http:/
/www.seplan.ap.gov.br/)
Fonte: Ficha Nacional de Registro de Hóspedes (http://www.seplan.ap.gov.br/)
Quadro 9 – Total de Visitantes Estrangeiros do Amapá por país de
origem – 2001
Fonte: Departamento de Turismo (http:/
/www.seplan.ap.gov.br)
Quadro 7: Hóspedes nacionais e estrangeiros registrados nos meios de
hospedagem do Amapá segundo o meio de Transporte – 2001
Fonte: Ficha Nacional de Registro de Hóspedes (http://www.seplan.ap.gov.br/)
Pensando o acesso ao Estado, este
é feito prioritariamente por via aérea, o que confirma a origem distante dos viajantes que ali chegam, provavelmente por razões profissionais
(Quadro 7).
Com relação à origem dos turistas/visitantes brasileiros, os principais estados emissores na região são
o Pará e o próprio Amapá. Alem destes, o Estado do Amazonas aparece
também nas estatísticas, o que parece confirmar uma significativa circulação regional. (Quadro 8). Mas
chamam a atenção as elevadas esta-
44
tísticas de procedência do Rio de Janeiro e, principalmente, São Paulo,
o que parece confirmar a hipótese
dos negócios como motivação central para o deslocamento em direção
ao Amapá.
Com relação à origem dos turistas/visitantes estrangeiros (Quadro
9), a procedência dominante é exatamente dos franceses (de origem da
Guiana francesa e do território central). Cabe lembrar ainda, que exis-
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
11
tem hoje vôos diretos e diários da Air
France para Caiena e, algumas companhias regionais, de menor porte, já
operam o circuito de cidades da Amazônia e do nordeste brasileiro diretamente à Caiena e vice versa. E algumas tour operadoras já tem em seu
cardápio de ofertas, circuitos integrados entre o Brasil e a Guiana Francesa. Embora o fluxo entre os dois países já tenha caráter regular e sazonal
estatísticas turísticas mais detalhadas são ainda incipientes11.
O Estado não dispõe de infraestrutura turística significativa e os
meios de hospedagem são insuficientes, em qualidade e quantidade
Durante a pesquisa, o Comitê de Turismo da Guiana em Paris informou que estava em curso a
elaboração de um relatório técnico sobre o turismo regional mas não foi possível o acesso a este
documento.
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Quadro 10: Agências de viagem instaladas com registro na empresa
brasileira de turismo - EMBRATUR
– 1996-2001
Fonte: Departamento de Turismo (http:/
/www.seplan.ap.gov.br)
para atender à demanda atual e qualquer projeção futura. Não existe, no
contexto atual, uma rede efetiva de
agências de viagem especializada
que possa dar suporte à visitação
(Quadro 10). A pesquisa de campo
indicou também que, embora as
agencias existam nas estatísticas,
elas tem baixa capacidade operacional e de resposta, provavelmente em
resposta a uma baixa demanda na
maior parte do ano.
Na perspectiva do Governo do
Estado do Amapá (2005), os parques
apenas recentemente foram incorporados nos sites oficiais e nas estratégias de planejamento turístico. Mas
o Estado os divulga num conjunto
de atrações envolvendo, entre outras, a pororoca, o equinócio, o rio
Amazonas, a Cachoeira Grande, a
Cachoeira de Santo Antônio , a Vila
de Curiaú (área quilombola), o Município de Oiapoque e seus diversos
diversos atrativos e os diversos grupos e etnias indígenas (como os
Galibi-Marwono,os Galibi do Oiapoque, Juminã.
Em 2002, o PROECOTUR (Programa de Ecoturismo da Amazônia)
concluiu a Estratégia de Ecoturismo
para o Estado do Amapá (MMA,
2002), com base na interpretação das
informações disponíveis para o Estado. O Relatório Final sistematiza
a estratégia para o Estado12. A estratégia foi desenhada para uma abrangência de 15 municípios, entre os
quais Calçoene, Laranjal do Jarí,
Oiapoque, Pedra Branca do Amapari, e Serra do Navio. A estratégia proposta reconheceu e incluiu, portanto, os cinco municípios do PNMT e
seu entorno nas prioridades deli-
neadas para o turismo no Estado,
mas ela não é clara sobre os encaminhamentos futuros, a não ser pela
proposta de fortalecimento da infraestrutura regional.
O relatório reafirma, também, a
elevada potencialidade do Estado
para o ecoturismo. Alem da riqueza
em recursos hídricos (Araguari, Jarí
e Oiapoque e, principalmente o Amazonas e sua foz), a variedade de fisionomias vegetais e sua posição geográfica (atravessada pela linha do
Equador), o colocam em evidencia
como potencialidade futura. É mencionada também no documento, a importância do complexo sistema de áreas protegidas, federais e
estaduais, entre as quais, a Estação
Ecológica Maracá-Jipioca, a Reserva Biológica do Lago Piratuba, a Estação Ecológica do Jarí, a Floresta
Nacional do Amapá, a Reserva Extrativista do Rio Cajari, a Reserva
Biológica do Parazinho, a Reserva
Biológica da Fazendinha, a APA do
Rio Curiau, e a Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Iratapuru, alem dos parques nacionais
Montanhas de Tumucumaque e
Cabo Orange. Compõem também o
conjunto as Reservas de Patrimônio
Natural Seringal Triunfo, Ekinox,
Lote Urbano, Retiro Boa Esperança
e Retiro Paraíso. Assim, os PNMT e
PNCO poderiam funcionar, no futuro, como áreas núcleo de ecoturismo
numa perspectiva de circuitos integrados regionais, num mosaico complexo de áreas protegidas.
Segundo o relatório, o elevado
grau de preservação da cultura local poderia também representar um
dos pontos de maior interesse potencial para o turismo, como reflexo da
miscigenação de hábitos e costumes
ao longo da história, entre negros,
indígenas e ribeirinhos, expressos
na culinária, na língua, no artesanato e no modo de vida. Com este enfoque alguns atrativos poderiam ser
potencializados e integrados ao roteiro ecoturístico, como a Comunidade Negra Quilombola de Curiaú,
a Fortaleza de São João e o Trapiche
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
12
13
em Macapá, as minas abandonadas
de manganês da Serra do Navio,
alem do artesanato e da culinária
local. No entanto, o relatório pouco
detalha ou discute a influencia francesa e a importância histórica da área
dos parques nacionais como um valor agregado e valorização local das
estratégias regionais de turismo.
O relatório explicita claramente
a limitação de infraestrutura turística, serviços e equipamentos como
um problema emergencial a ser
equacionado para o desenvolvimento do turismo no Estado. Na época
dos levantamentos (2002), foram
registrados 39 equipamentos de hospedagem e, um total de 1.621 leitos.13
A maioria, muito simples, com até
20 unidades habitacionais e administração familiar. Como equipamentos de alimentação, o relatório
quantificou 133 com oferta bastante
limitada.. No setor de entretenimento, a maior parte das alternativas está
concentrada em Macapá. Segundo o
mesmo documento, a divulgação turística e, os serviços, em geral, são
precários e, a maior parte está concentrada em Macapá. Da mesma forma, o Estado é pouco conhecido pelas agências de viagem nacionais e
internacionais mas representa um
produto que, em geral, desperta o
interesse segundo a pesquisa realizada. O relatório propõe para o desenvolvimento do turismo no Estado uma estratégia dirigida especificamente para a observação de fauna,
em função da base de recursos renováveis de grande diversidade e
abrangência, um roteiro para o mercado externo e cinco roteiros para o
mercado interno.
No entanto, para se pensar o turismo regional, fortemente centrado
em sua potencialidade natural e cultural, é fundamental que se contextualize o contexto do país e o tema,
no âmbito de políticas públicas em
curso, também na esfera federal.
Alem do PROECOTUR e do ARPA
(Programa Áreas Protegidas para a
Amazônia, que tendem a apoiar estratégias regionais integradas de
Criado em 1998, com uma superfície territorial de 143.453,7 km2. e uma população de 457.843 habitantes em 2000 (IBGE, 2000), com crescimento populacional de 5,74% ao ano
Com maior concentração em Macapá, Santana e Oiapoque, a maioria, muito simples, com até 20 unidades habitacionais e administração familiar.
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
45
conservação da biodiversidade e
uso sustentável de recursos renováveis, está em fase de conclusão a revisão das Diretrizes para a Política
Nacional de Ecoturismo (EMBRATUR/IBAMA, 1994)14 como resultado de um esforço conjunto entre os
ministérios de Turismo e o de Meio
Ambiente (MMA/Ministério do Turismo, 2004 ).15
Uma importante inovação da revisão das Diretrizes para a Política
Nacional de Ecoturismo, se refere à
compreensão de que o Sistema Nacional de Unidades de Conservação,
criado pela Lei 9985/2000 (BRASIL,
2000) representa um elemento central a ser inserido nas políticas de
turismo. O documento identificou as
seguintes estratégias para o planejamento do ecoturismo em âmbito
nacional: a) Ordenamento, Normatização, Regulamentação e Monitoramento; b) Informação e Comunicação; c) Articulação; d) Envolvimento
da Comunidade; e) Capacitação; f)
Incentivos ao desenvolvimento do
ecoturismo; g) Infraestrutura; h) Promoção e Comercialização e; i) Unidades de Conservação. Da mesma
forma, encontra-se no Gabinete da
Casa Civil para as providências jurídicas o Plano Nacional de Áreas
Protegidas com um forte compromisso de articulação institucional, transversalidade e inclusão social. Assim,
o ecoturismo no Estado do Amapá
poderá se beneficiar, desde as etapas iniciais, de uma base de planejamento, também em articulação com
as políticas do Governo Federal.
4. Turismo Sustentável: Uma
discussão possível no caso
amazônico?
O Brasil representa, no cenário e
nas estatísticas internacionais, ainda um destino emergente, de impacto reduzido nas estatísticas globais.
No entanto, o fenômeno turístico
adquire um impacto progressivo na
economia do país e se apresenta, no
discurso político, como prioridade
para a inclusão social e para valorização do patrimônio natural, numa
nova perspectiva de desenvolvimento, que pretende sintonizar o crescimento econômico à conservação dos
recursos renováveis e à redução das
46
desigualdades sociais. Esta concepção parece representar um esforço na
direção da perspectiva global de sustentabilidade, cultivada a partir da
Rio 92, e que teve influencia direta na
formulação do conceito de turismo
sustentável e, inspirou a Agenda 21
do Turismo e do Código de Ética para
o Turismo (IRVING, 2002 b).
Evidentemente que essa discussão ganha, gradualmente, os espaços
das políticas públicas, mas a experiência em planejamento turístico
tem demostrado que, na verdade,
existe uma enorme lacuna entre a
teoria e a práxis e, as experiências
consideradas bem sucedidas, tem
abrangência ainda limitada e caráter experimental.
O planejamento turístico, de base
sustentável, requer, por princípio,
um compromisso ético, de respeito e
engajamento de “quem está” e de
“quem vem”, um intercâmbio real
entre os sujeitos “que recebem” e os
que “são recebidos” e, destes, com o
ambiente no qual interagem. Sem
esta interação harmoniosa, a troca
de valores não se efetiva e o “espaço
da interação” ganha contornos apenas circunstanciais.
Essa afirmação é ilustrada com
maior alcance quando se discute o
turismo na região amazônica, de
grande impacto no imaginário coletivo mas submetida a restrições sócio econômicas e de acesso (em termos logísticos e operacionais) e de
custo.
No caso amazônico, “quem está”,
atrai o imaginário coletivo, mas está
freqüentemente excluído e distante de
sua própria autonomia, no processo
de tomada de decisão. E “quem vem”
não parece ter ainda um rosto definido, e representa, portanto, um “sujeito oculto”, de motivações desconhecidas de uma realidade externa
à região. Mas talvez chegue fascinado pelo exótico amazônico que não
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
sabe definir, mas que precisa reproduzir no seu cenário urbano, para
preencher as lacunas de seu cotidiano, na materialização do “mito moderno da natureza intocada” (DIEGUES, 1996). Evidentemente que este
turista, que busca a Amazônia distante como destino tem um perfil
particular que precisa ser interpretado, no momento em que estratégias turísticas para a região são desenhadas e/ou discutidas. Mas em
que medida esse “sujeito oculto”, em
tese, ávido por experiências enriquecedoras e contato profundo com a
natureza se diferencia dos “bandos”
que invadem locais turísticos, e que
deles se apropriam e se afastam, com
a mesma falta de cerimônia em que
chegaram?
Elouard (1998) lança uma interessante questão sobre esse tema que
merece ser transposta para a reflexão em foco. O autor questiona se
existe uma “arte de viajar”, que distingue o turista cultivado solitário
ou em pequenos grupos “do aventureiro ávido de “bons planos” ou “daquele bando, de umas 50 cabeças”,
que se beneficia de uma “super promoção”? Segundo Elouard (op. cit.)
os “bandos” tendem a viajar, muito
mais para confortar e reafirmar a
opinião que tem de seu próprio mundo do que para apreciar um outro.
Assim, estes “permanecem” no lugar de origem, cultivam seus valores e querem reproduzir os mesmos
hábitos, apesar do deslocamento que
empreendem. Por outro lado, aqueles que se dispõem a enfrentar condições imprevisíveis de viagem e alcançar a realidade distante como
forma de encontro com a alteridade,
podem ser importantes parceiros
num processo de fortalecimento da
identidade local. Um tema portanto
essencial a ser investigado para o
planejamento turístico local, se dirige ao perfil do turista (atual e proje-
14
O Plano Nacional de Turismo 2003/2007 é um instrumento essencial de políticas de turismo mas não
será detalhado nesta análise, de caráter mais regional.
15
A atualização das Diretrizes para a Política Nacional de Ecoturismo, que completou 10 anos em 2004, foi
o resultado de um esforço interinstitucional e envolveu vários segmentos da sociedade civil, governo,
setor privado, pesquisadores e profissionais de turismo. O trabalho foi coordenado pelo Grupo temático
de Ecoturismo da Coordenação Geral de Segmentação, do Depto de Estruturação, Articulação e
Ordenamento Turístico da Secretaria Nacional de Políticas de Turismo, do Ministério do Turismo, a partir
de 5 oficinas, realizadas entre junho e novembro de 2004, em cinco regiões brasileiras, em parceria com
o Programa Nacional de Ecoturismo, da Secretaria de Políticas para o Desenvolvimento Sustentável-SDS
do MMA. O processo envolveu 206 profissionais.
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
tado) numa projeção consistente de
cenários.
Além dos altos custos envolvidos
num deslocamento à Amazônia e às
dificuldades evidentes de acesso,
que restringem e selecionam o perfil
do turista, existe alguma estratégia
de planejamento que garanta que o
turismo à Amazônia poderá se configurar como uma alternativa sustentável e diferenciada?
Sob essa ótica, é essencial que se
entenda a atração da Amazônia
conectada à leitura do exotismo tropical e da floresta virgem. Segundo
Quella-Villéger (1998), o exotismo
representa “a relação orientada do
Ocidente na direção do resto do globo, a tensão do indivíduo face à
heterogeneidade do mundo”. Assim,
a Amazônia, para o turismo, tenderá a resignificar num cenário ainda
distante, o mito moderno da natureza intocada, conforme a discussão
de Diegues (1996).
Este parece ser o contexto de interpretação para os parques nacionais Montanhas de Tumucumaque
e Cabo Orange, encravados numa
região “ultraperiférica”, em “efervescência silenciosa”, para os quais
o acesso é ainda limitado, mas que,
ironicamente, situam-se em fronteira direta com a União Européia e se
configuram como áreas protegidas
estratégicas para a gestão da biodiversidade global.
Embora o turismo não seja ainda
uma realidade na região, a base de
recursos renováveis do Amapá (neles incluídos os parques nacionais
Montanhas de Tumucumaque e Cabo Orange) constitui, evidentemente, uma forte inspiração para roteiros integrados futuros, de grande
potencialidade para a região mas
que poderá atrair mercados emissores de fora do país, prioritariamente
europeus, numa conexão turística
direta entre a Europa e a Amazônia.
Embora o desenvolvimento turístico na área dos parques e seu entorno possa se configurar ainda como
uma hipótese surrealista ou uma ficção, ela precisa ser interpretada sob
a ótica de território “em transe silencioso”, no qual será a cooperação
com a Guiana francesa e com o
Suriname para a gestão da biodiver-
sidade e o desenvolvimento regional
(incluindo circuitos integrados de
turismo), a médio e longo prazos,
essencial para qualquer estratégia
governamental.
Embora os parques se insiram na
“ultraperiferia” amazônica (MASTEAU, 1997), o cenário regional indica transformações evidentes no
processo de desenvolvimento, de
impacto global, capazes de interferir na lógica de uso e ocupação do
espaço de fronteira e, assim, na pressão sobre a base de recursos renováveis e, conseqüentemente, nos mecanismos de cooperação internacional.
Esse “transe silencioso” é lento e
tende a escapar dos olhares desatentos das distantes metrópoles e centros de decisão, o que torna a região
ainda mais interessante como “laboratório” para a gestão da biodiversidade e o desenvolvimento regional
em área de fronteira, uma vez que os
mecanismos para a proteção da natureza e inclusão social podem ser,
em tese, discutidos e aprimorados
anteriormente à pressão das atividades humanas, que tende a ser crescente, pelo cenário observado. (IRVING, 2005).
Ainda são incipientes as discussões no sentido de estratégias de cooperação internacional com os países vizinhos e o turismo ainda se
constitui em tema periférico em qualquer fórum oficial. Nesse quadro, não
menos flagrante é o distanciamento
ainda evidente da pesquisa e das
políticas públicas dirigidas à conservação da biodiversidade e o desenvolvimento entre os governos
brasileiro francês e, destes com o
Suriname e a Guiana, ainda que a
realidade socioeconômica e os ecossistemas extrapolem as fronteiras
políticas.
No plano regional, a criação do
Parque Nacional do Sul da Guiana,
em discussão há aproximadamente
10 anos16 e, prevista para 2006 (NAVET, 1998; CHARLES-DOMINIQUE,
1998; FLEURY, 1998; LEPÊTRE,
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
16
17
18
1998; PREFECTURE DE LA RÉGION
GUYANE, 2003), em território contíguo ao PNMT (confirmada, em discurso oficial do Presidente Jacques
Chirac, em Janeiro de 200517), pode
representar um impulso nas estratégias regionais para a gestão da biodiversidade e, conseqüentemente para
a cooperação Brasil-França.
Não é possível também desconsiderar o diálogo direto entre o Estado
do Amapá e o Governo Regional da
Guiana francesa. Alguns projetos
ocupam a pauta central de discussões e estão em real processo de negociação e implementação, entre estes, a pavimentação integral do sistema viário que estabelece a ligação
entre Caiena e Macapá e, a construção da ponte entre Saint Georges e
Oiapoque, interligando diretamente Brasil e Guiana Francesa. Em curso, encontra-se também a negociação do Governo do Estado com a rede
internacional de hotéis Accor18, para
a construção de um hotel de alto nível em Macapá, até 2006/2007, o
que poderá favorecer a base para circuitos turísticos regionais, envolvendo diretamente Caiena, Macapá e
Belém e, num segundo plano, Manaus e as Antilhas. Este processo
poderá ter ainda maior alcance com
o fortalecimento progressivo da Base
Aeroespacial de Kouru, num cenário de aumento demográfico progressivo e, o evidente crescimento da
visitação turística e/ou de negócios, em ambos os lados da fronteira
(MASTEAU, op. cit. e GOVERNO DO
AMAPÁ, 2004).
Os parques nacionais de fronteira do Amapá representam a memória histórica de um “território em
transe”, de elevada importância ecológica e geoestratégica.
Na perspectiva francesa, Barbault
(1998) propõe uma ação e uma abertura para a cooperação com os países vizinhos, em especial o Brasil,
para a pesquisa e a política de formação de recursos humanos, num
contexto amazônico global. O autor
sugere também que o futuro Parque
Esse debate ilustra uma polêmica central no debate amazônico, que considera o confronto entre as
perspectivas ecocêntrica e antropocêntrica na leitura da natureza.
Discurso proferido na Conferencia Internacional sobre Biodivesidade, Ciência e Governança (UNESCO)
em Paris em 24 de janeiro de 2005.
Informação obtida em conversa com Alberto Gois em novembro de 2004.
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
47
Nacional do Sul da Guiana funcione como inspiração para uma Reserva de Biosfera, o que viabilizaria a
proteção da natureza e o uso sustentável dos recursos renováveis.. Uma
Reserva de Biosfera transfronteiriça,
poderia ter como núcleos o Parque
Nacional Montanhas de Tumucumaque e o futuro Parque Nacional
do Sul da Guiana e, envolver os demais espaços protegidos da região,
num exercício efetivo de cooperação
binacional.
No entanto, qualquer política de
cooperação regional deve considerar o Tratado de Cooperação Amazônico19, conforme também discutido por Brackelaire (1998) que advoga uma maior inserção da Guiana
no processo. 20 Segundo o autor, a
temática de conservação e gestão da
biodiversidade da Guiana se insere
num contexto regional muito mais
amplo, no qual intervêm oito países
amazônicos, vizinhos diretos ou indiretos da Guiana Francesa, sendo
o principal parceiro o Brasil, com
fronteira comum de 655 km. Vale
lembrar que o Brasil é o país com
maior extensão de fronteira direta
com a França.
Não menos significativo é o momento político-institucional atual,
em que França e Brasil se mobilizam
para operacionalizar as suas políticas de biodiversidade e suas estratégias globais para a gestão dos espaços protegidos, sendo que ambas
as políticas se sustentam na lógica
da gestão da biodiversidade com o
enfoque de desenvolvimento regional e uso sustentável dos recursos
renováveis. (IFB, 2003 a e 2003 b;
BRASIL, 2000 a e b; BRASIL, 2002;
IRVING, 2004 e MMA, 2004 b e c).
Para os dois países, a oportunidade
de intercambio cultural, de produção científica conjunta, de inovação,
de conhecimento compartilhado e
de construção de um novo modelo
de cooperação internacional, baseado no princípio de solidariedade
entre países, baseado numa perspectiva ética de desenvolvimento.
Nesse movimento possível, em
busca da cooperação Brasil-França,
alguns avanços político-institucionais estão em curso. Além de uma
base legal formal e histórica entre os
48
dois países 21, para a área temática
de gestão da biodiversidade e desenvolvimento sustentável, foi assinado entre o Ministério de Meio Ambiente do Brasil e o Ministério de Ecologia e do Desenvolvimento Sustentável da França um Memorando de
Entendimento, em outubro de 2004
(MMA, 2004 c) buscando, entre outros objetivos, cooperar em projetos
ambientais e de desenvolvimento
sustentável ajustados às demandas
e prioridades políticas de meio ambiente dos dois países e, em especial,
na região de fronteira Guiana francesa/Amapá, no sentido de fortalecimento das ações de cooperação regional.
Como desdobramentos deste Memorando de Entendimento, foram realizadas reuniões oficiais entre os
dois países em Brasília (abril de 2005),
Macapá (Novembro de 2005) e Caiena (dezembro de 2005), que geraram
como resultado as bases de um Plano de Ação, em quatro temas prioritários: Articulação político-institucional, fiscalização, pesquisa e desenvolvimento local. Com relação ao desenvolvimento local, encontra-se em
fase de elaboração um projeto conjunto de desenvolvimento turístico entre
o Parque Natural Regional da Guiana francesa e o Parque Nacional do
Cabo Orange como primeira iniciativa com este objetivo.
No entanto, o turismo regional só
poderá ser competitivo, no plano
internacional e, inclusivo, no cenário local, se estiver associado a um
diferencial de qualidade social e ambiental, tendo como marca a cooperação Brasil-França e toda a sua significação cultural e identitária no
contexto amazônico. Sem este resgate e a percepção do valor geoestratégico regional, o desenvolvimento
turístico tenderá a reproduzir os
modelos do exotismo tropical, nos
quais os compromissos de inclusão
social estão no discurso mas rara-
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
mente se materializam na prática.
Nesta perspectiva, o valor agregado
em planejamento se expressa pelo
fato de que a potencialidade turística da região não responde ainda a
investimentos em infraestrutura de
curto prazo, e tende a se consolidar
como alternativa de desenvolvimento apenas a médio e longo prazos, o
que poderá contribuir para a possibilidade de capacitação local e estratégias diversificadas de desenvolvimento local, nas quais o turismo
representa apenas uma das possibilidades.
Neste cenário real entre o surrealismo e a invenção, o turismo emerge como potencialidade futura,
numa nova perspectiva de integração regional com base na valorização de patrimônio natural e cultural, e como mecanismos possível de
construção de cidadania global.
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institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação e d’’a outras providências. Brasília.
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de Conservação e dá outras providências. Brasília.
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institui princípios e diretrizes para
implementação da Política Nacional de
Biodiversidade, Brasília.
19
Tratado estabelecido em 1978, envolvendo oito países amazônicos, tendo como um dos seus princípios a afirmação e a defesa da soberania de cada um dos países membros para a gestão e uso dos
recursos naturais, neles compreendida a floresta amazônica.
20
Apenas recentemente está em discussão o status da França como país observador no Tratado de
Cooperação Amazônico.
21
Esse quadro legal e institucional é bastante consistente e já data de mais de 35 anos, a partir do
Decreto No. 63.404 de 10 de outubro de 1968 que promulga o Acordo Básico de Cooperação Técnica e Científica com a França, apoiado no Acordo Quadro de 28 de maio de 1996.
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Departamento de Ciências Sociais Aplicadas
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
DESENVOLVIMENTO REGIONAL E URBANO
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
49
O ECOTURISMO, O DESENVOLVIMENTO LOCAL
E A CONSERVAÇÃO DA NATUREZA EM ESPAÇOS
NATURAIS PROTEGIDOS: OBJETIVOS
CONFLITANTES?
Carolina de Andrade Spinola
1
Resumo
Este artigo procura discutir a real
contribuição do ecoturismo para o
desenvolvimento local e a conservação do patrimônio natural em espaços naturais protegidos, através da
análise dos resultados de alguns
estudos realizados em alguns dos
mais conhecidos “destinos verdes”
da atualidade.
Palavras-Chave: Ecoturismo, Desenvolvimento Local, Conservação da
Natureza, Unidades de Conservação.
Abstract
This paper proposes an analysis
of the real contribution of ecotourism
to local development and nature
conservancy in protected areas, thru
the analysis of the experiences of
some of the most known green destinies of nowadays.
Key Words: Ecotourism, Local Development, Nature Conservancy, Protected Areas.
As unidades de conservação têm
se firmado como os espaços ideais e
legítimos para a prática do ecoturismo nas últimas décadas. Isso ocorreu, em parte por serem os espaços
que concentram a maior variedade
de atrativos naturais relevantes e
biomas/espécies animais preservadas, ao mesmo tempo em que são
consideradas o lócus de uma exploração sustentável da atividade, tendo em vista a existência de um aparato legal e administrativo que, ao
menos teoricamente, assegura limites à sua utilização.
No âmbito desses espaços, a discussão sobre o binômio ecoturismo/
50
desenvolvimento local introduz alguns aspectos específicos, relacionados com a sua condição de unidades de conservação: a concentração
massiva de oferta complementar e
fluxos de demanda intensos concorrendo com os usos tradicionais e históricos da área; a existência de restrições, em maior ou menor escala, à
sua utilização, por atividades econômicas e populações autóctones;
os conflitos institucionais relacionados com a sua administração e a
necessidade de conhecimentos técnicos específicos de manejo que assegurem a sua sustentabilidade.
Outro questionamento importante para se fazer nesse momento é a
quem beneficia o desenvolvimento
do ecoturismo em espaços protegidos. Aos próprios espaços e seu patrimônio natural? Às comunidades autóctones? Ao governo central? Aos
turistas? ou aos mercados emissores, através do recebimento de parte
das receitas de sua operação?
O presente artigo pretende, a partir da análise das experiências de
alguns destinos ecoturísticos consagrados, responder a essas indagações. De início, far-se-á uma análise
das possíveis interações entre ecoturismo e Unidades de Conservação,
considerando seus aspectos econômicos, ecológicos e sócio-culturais.
Em seguida, introduz-se uma discussão muito controversa no tocante à questão da busca pelo desenvolvimento local nesses espaços: o papel das populações tradicionais. Por
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1
fim, relacionando todos os elementos levantados, e à luz das da definição de desenvolvimento local sustentável, analisar-se-á quem são os
grandes ganhadores e perdedores
desse processo e possíveis alternativas de mudança nesse cenário.
Custos e benefícios do turismo
em Unidades de Conservação
Não são numerosos os estudos
sobre o impacto do ecoturismo no
ambiente específico das unidades de
conservação. Normalmente, os trabalhos que objetivam analisar as
externalidades da atividade o fazem
de uma maneira geral, abrangendo
mais elementos do que aqueles presentes em espaços protegidos. Por
outro lado, os estudos relativos a
unidades de conservação tratam de
todos os tipos de ameaças decorrentes do uso econômico da área, inclusive o ecoturismo. Da interrelação
entre essas temáticas e consulta a
publicações da OMT, obteve-se o
elenco das variáveis abordadas nessa seção.
Diferentemente da análise que é
comumente feita em relação ao turismo convencional, o estudo dos
impactos do ecoturismo em Unidades de Conservação deixa para um
segundo plano as implicações de
ordem econômica e social, se concentrando no levantamento e monitoramento de externalidades negativas,
relacionadas com variáveis ambientais a exemplo de vegetação, fauna,
solo e recursos hídricos. (MORSEL-
Doutora em Geografia (Concentração em Análise Territorial e Planejamento do Turismo) pela Universidade de Barcelona – ES. Professora titular do curso de Turismo da Universidade Salvador –
Unifacs; das Faculdades Jorge Amado e da Faculdade Castro Alves.
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Quadro 1 – Principais impactos ambientais negativos gerados pelo turismo em unidades de conservação
Fonte: Autores referenciados. Elaboração própria.
LO, 2001, MATHIESON;WALL,
1990; OMT,1992; PAGANI et al.,
1999; THORSELL, 1984; SERRANO,
2001). Os principais impactos negativos listados na bibliografia de referência podem ser melhor visualizados no quadro 1.
A vegetação é um dos atrativos
principais de muitas unidades de
conservação e, apesar de se constituir em um recurso turístico primário, quase todas as atividades recreacionais desenvolvidas pelos visitantes trazem algum tipo de impacto sobre ela, como mudança na quantidade e variedade de espécies, índices
de crescimento e estrutura cronológica e diversidade de habitats.
Em relação à utilização de madeira por campistas e em construções
turísticas, Wall e Wright (1977) destacam o perigo que essa prática pode
trazer para a sobrevivência de bosques e florestas que têm árvores muito jovens arrancadas e não repostas.
Lindberg e Hawkings (1993) contabilizaram que, no Nepal, uma expedição padrão de 2 semanas gasta 8
mil Kg de madeira enquanto na lareira convencional das casas, gastase 5 mil Kg/ano.
Os incêndios verificados nas
UC´s devem-se, em sua maioria, a
ações outras que a prática de atividades recreacionais mas, não se
pode ignorar o perigo representado
pelas fogueiras de acampamento
acendidas em locais inapropriados
e de maneira inadequada ou o dano
que pode ser causado por restos de
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
cigarros displicentemente jogados
em áreas cuja vegetação seja muito
seca. Mathieson e Wall (1993) destacam esses como alguns dos fatores responsáveis pelos incêndios em
parques da Califórnia e Austrália.
A exclusão de vegetação pode
atingir, além da madeira, outras formas de extração vegetal como a exploração de frutos, plantas medicinais, ornamentais, forrageiras, folhas, bambus e fungos. Essa ação
pode ser atribuída à comunidade
local ou ao turista, que, direta ou indiretamente colabora para a permanência do problema, colhendo “mudas” de plantas ou alimentando o
comércio de artesanato elaborado
com base nesses materiais. Uma boa
forma de resolver essa questão é atra-
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51
vés da criação de reservas extrativistas e regulamentação da exploração
vegetal, restringindo-a àquelas espécies que podem se regenerar e determinando quotas máximas e períodos
em que a atividade é permitida.
Embora aconteça em uma escala
infinitamente inferior à exclusão, a
introdução de espécies exógenas
também é um problema que pode resultar em desequilíbrio do ecossistema e aflige os administradores de
unidades de conservação. Morsello
(2001) destaca que dentre as espécies vegetais sob perigo de extinção,
18% são ameaçadas por espécies invasoras. A autora alerta para o caso
específico das ilhas, ambientes isolados em que os efeitos danosos da
introdução de novas espécies podem
ser desastrosos. Esse é o caso do arquipélago de Galápagos, em cujo
parque nacional, o zoneamento impede a visitação da maioria das ilhas
desabitadas, onde a introdução de
espécies exógenas seria capaz de
pôr em risco as espécies endêmicas
singulares do local, que evoluíram
com tão poucas ameaças e proporcionaram a Darwin o cenário ideal
para o desenvolvimento de sua teoria sobre a evolução das espécies. A
administração do parque já pensa
em medidas para evitar esse problema, através do estabelecimento de
quarentena para as mercadorias que
chegam e inspeção de passageiros,
inclusive com a descontaminação
dos seus sapatos. (WALLACE, 1993)
Finalmente, ainda relativo à vegetação, o pisoteio das raízes e utilização do tronco das àrvores como
apoio nas passagens mais difíceis
das trilhas são procedimentos muitas vezes recomendados pelos guias mas, que ameaçam a sobrevivência desses indivíduos. Westhoff
(1967 apud WHELAN, 1991 ) constatou esse fato estudando as sequóias da Califórnia.
O lixo é um outro fator que, além
do aspecto estético desagradável e
da atração que exerce sobre insetos
e roedores, contribui para a alteração da estrutura do solo, bloqueando a passagem da luz e do ar. Glick
(1991) e Whelan (1991) alertam para
os prejuízos causados pelo lixo deixado pelos visitantes no Parque
Nacional de Yellowstone2:
52
Os gêiseres Minute e Ebony, na base
Norri, no Parque de Yellowstone,
cessaram suas erupções porcausa
do lixo depositado em suas bocas
(GLICK, 1991, p. 65).
A remoção de fauna, assim como
acontece com a exclusão de vegetação, é uma externalidade para a qual
contribuem principalmente os moradores locais, estimulados pelo valor
atribuído a esses animais pelos visitantes. Em uma pequena parcela dos
casos, pode-se falar em atividades
de caça e pesca realizadas pelos turistas, notadamente nas reservas da
África, de maneira clandestina, mas
é adquirindo artesanato e consumindo pratos típicos elaborados com esses animais, que o seu impacto é
maior. Em Fernando de Noronha, no
Brasil, a caça aos tubarões foi incrementada com o objetivo de extrair a
sua cartilagem para a produção de
bijouterias. No Caribe, os visitantes
compram jóias feitas com coral negro e outros espécimes raros. (WHELAN, 1991).
Os turistas também interferem na
dinâmica social das espécies animais
e, em alguns casos chegam até a alterar os seus hábitos alimentares A
maioria dos relatos a respeito dessa
interação turistas x fauna silvestre
referem-se a exemplos africanos e
norte americanos, onde o efeito da
visitação já é perceptível principalmente no comportamento de grandes
predadores. Gray (1973) ressalta, por
exemplo, que o interesse dos turistas
que fazem safári nos parques africanos em observar o momento da captura de uma presa por um predador,
ao mesmo tempo que se constitui no
auge da experiência para o visitante,
mina a privacidade dos animais observados e frustra seu intento. Olindo
(1991) também alerta para o impacto
dos balonistas sobre as manadas de
elefantes do Parque Nacional do
Serengeti; Glick (1991) relata a mudança no comportamento dos coiotes,
que ficaram mais agressivos após se
acostumarem a ser alimentados pelos visitantes. O mesmo efeito foi percebido por Whelan (1991) com os ursos de Yellowstone.
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2
No que diz respeito à poluição da
água, engloba-se nesse item o despejo de esgotos de empreendimentos turísticos em rios e mares, a contaminação da água pelo combustível de veículos de passeio como jetskis, lanchas, etc; e, menos citados
mas, igualmente preocupantes, o
dano de longo prazo causado pela
contaminação de riachos e córregos
pela gordura dos utensílios domésticos lavados em água corrente pelos campistas e por dejetos humanos
depositados inapropriadamente.
Glick (1991) revela que esse é mais
um dos problemas vivenciados pelo
Parque de Yellowstone, onde já se
constatou a presença de parasitas
do tipo giárdia nas águas dos lagos.
Há também outros tipos de poluição que não são citados por todos os autores como a poluição visual e auditiva lembrada por Mathieson e Wall (1990). Elas se dão,
principalmente, através da utilização de letreiros, luminosos e/ou
construções pintadas com cores
chamativas e, no segundo caso, através do comportamento descompromissado dos visitantes e de alguns
agentes da oferta que recorrem a aparelhos de som e não se preocupam
em manter um mínimo de silêncio
durante passeios a áreas mais isoladas das UC´s.
Quando se procura listar as conseqüências positivas oriundas da
exploração da atividade, encontrase sempre uma argumentação de
cunho econômico, que justifica a sua
existência em função dos ganhos
obtidos pelas reservas e pelas comunidades. Raramente se discute sobre
benefícios ambientais que, embora
menos freqüentes do que os impactos apresentados, podem ter alcance considerável em um contexto de
desenvolvimento planejado. Basicamente, pode-se trabalhar com dois
aspectos mais genéricos que são: a)
os visitantes ajudam no processo de
sensibilização política e social para
a criação de leis e atração de investimentos que protejam esses espaços;
b) o ecoturismo praticado dentro dos
seus imperativos éticos contribui
“Minute and Ebony geysers, at Norris Geyser Basin in Yallowstone Park, have ceassed erupting because
of litter carelessly tossed in their mouths” (tradução própria).
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
para a melhoria da consciência ambiental de visitantes e moradores.
Parte-se do pressuposto de que só se
valoriza aquilo que se conhece e,
nesse caso, o ecoturismo pode passar da posição de ameaça para a de
instrumento de conservação.3
Os argumentos econômicos a favor do ecoturismo são inúmeros,
bastante freqüentes em qualquer
obra sobre o assunto e se resumem
na possibilidade de auto-financiamento que a atividade traz para as
UC´s, aliada à melhoria da qualidade de vida da comunidade local, que
terá mais oportunidades de emprego e renda.
Essa apologia aos benefícios econômicos do turismo, ou do ecoturismo, não é novidade e, como já foi
objeto de inúmeros outros trabalhos,
não tomará muito espaço desse artigo. Mas, todavia, faz-se necessário
apresentar algumas experiências de
espaços protegidos que reforçam o
primeiro argumento e demonstram
que a melhoria da qualidade de vida
das comunidades locais está longe
de ser resolvida mediante um simples aumento do fluxo de visitantes
e da arrecadação das UC´s.
Um dos maiores problemas enfrentados pelas UC´s e pelas economias locais é a centralização das
operações turísticas em mãos de empresas estrangeiras que, preocupadas com a qualidade de seus serviços e a maximização dos seus lucros,
subutilizam os recursos produtivos
locais e, como conseqüência, têm um
impacto econômico bem menos representativo do que se costuma considerar.
No Nepal, onde os locais hospedam os caminhantes, apenas US$
0,20 dos US$ 3,00 gastos diariamente pelos turistas ficam com as comunidades. De acordo com o autor, o
problema maior são as operadoras
estrangeiras que trazem seus suprimentos e guias e contratam poucos
nativos para guiar seus grupos
(PUNTENNEY, 1990 apud WHELAN, 1991).
Das 32 operadoras de ecoturismo
baseadas nos Estados Unidos (41%
do total), 20 usavam guias locais;
apenas 8 utilizavam agências ou
gerentes locais, 6 usavam cozinhei-
ros e 8 usavam motoristas da própria comunidade. Das 20 que alegaram usar guias locais, a maioria os
trazia de grandes cidades (INGRAM; DURST,1987 apud WHELAN, 1991).
Para Whelan (1991), um outro
problema relevante é a distribuição
dos recursos que ficam no país com
a atividade:
A economia nacional dos países
receptores normalmente são mais
beneficiadas do que as economias
locais; um estudo concluiu que pelo
menos 50% dos gastos dos turistas nos países em desenvolvimento ficam nesses países [...] entretanto, é pouco comum encontrar
essas receitas canalizadas de volta para as comunidades locais ou,
até mesmo, para o manejo das áreas protegidas que geraram essa receita 4 (WHELAN, 1991, p. 10).
É o que também constata Olindo
(1991) em relação aos Parques Nacionais do Quênia. Segundo o autor,
em 1990, apenas US$ 7 milhões, dos
US$ 350 milhões arrecadados com a
atividade foram direcionados para
o sistema de parques.
A baixa repercussão econômica
verificada nos casos relatados se
deve, também, à existência de problemas relacionados com os altos
níveis de corrupção e desorganização das estruturas administrativas
desses espaços. Não é incomum que
a gestão dos recursos arrecadados
com a atividade fique centralizada
em algum órgão burocrático, freqüentemente da administração federal, sobrecarregado com outras atribuições e/ou prioridades, o que quase sempre resulta no direcionamento
da receita para fins outros que não a
conservação da UC. Muitas vezes, o
dinheiro arrecadado em uma unidade mais lucrativa é dividido com
outros espaços protegidos, em um
sistema de rateio nem sempre justo,
como acontece em Galápagos:
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Embora a administração do Parque Nacional de Galápagos disponha de mais recursos do que outros parques do Equador, esses
recursos são ainda muito modestos e limitam o investimento no
quadro de funcionários, treinamento, equipamentos e infra-estrutura. A receita gerada com a cobrança de ingressos de 40 dólares
pagos por turistas estrangeiros,
bem como as taxas pagas pelos visitantes equatorianos e pelos operadores turísticos, ajuda a financiar outras áreas protegidas do Equador. (WALLACE, 1993, p. 100).
Finalmente, a despeito de serem
bastante discretos e muitas vezes
estarem mascarados sob o argumento de que são uma conseqüência inevitável em um ambiente onde a presença do homem não é desejada e/
ou permitida, os impactos sócio-culturais somam-se às repercussões
elencadas nesse capítulo e, ao mesmo tempo em que vitimam as comunidades autóctones, podem servir de
estopim para deflagrar um movimento de reação desses moradores
à implantação e conservação da UC.
Aspecto muito pouco explorado
na bibliografia consultada, os impactos sócio-econômicos são citados
sempre sob a ótica das ameaças representadas pela presença de populações no interior dos espaços protegidos, enquanto que muito raramente, como no caso do trabalho da
OMT(1992) e o de Diegues (1998) a
relação inversa é destacada. Genericamente, considera-se que as comunidades locais são beneficiadas com
a criação de infra-estruturas básicas
e equipamentos de lazer, além de
poderem desfrutar do intercâmbio
cultural proporcionado pelo contato com pessoas diferentes, inclusive
provenientes de outros países.
A análise das interações que se
estabelecem entre comunidade autóctone e os meios físico e biótico dos
espaços protegidos implica em uma
3
Exemplos de casos em que o ecoturismo tenha contribuído para a mudança de conduta da comunidade podem ser encontrados na seção 3.3.2.
4
The national economy of the host country is likely to do substantially better than the local economy;
one study found that at least 50 percent of tourist expenditures in developing countries are likely to
stay in the country (…) however, it is unusual to find those receipts channeled back to the local
communities or even to the management of the protected areas that generated the income. (Tradução Própria).
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53
discussão mais profunda e polêmica, que envolve questões éticas, sociológicas e jurídicas, onde a sua
própria existência e permanência
são contestadas, conforme será abordado em seguida.
As comunidades autóctones e
o fenômeno turístico em Unidades de Conservação
A presença humana causa impactos, quase sempre negativos, fato que
justifica e fundamenta os argumentos contrários à permanência de comunidades autóctones dentro de espaços protegidos.
Sabe-se que o objetivo das áreas
protegidas, notadamente aquelas
denominadas de proteção integral5
é a preservação de atributos ecológicos importantes, através da criação
de redomas ou ilhas, onde a natureza pode permanecer intocada, longe da ação devastadora do homem.
Essa concepção, conforme analisado anteriormente, surgiu com a criação dos primeiros parques nacionais
americanos e se expandiu pelo mundo, tendo influenciado a classificação das categorias de UC´s existentes atualmente, quer seja no âmbito
internacional ou no contexto do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) brasileiro.
Esse entendimento da relação
homem x natureza leva ao que a antropóloga Debra Bird Rose (apud
MERCER, 2001) diz ser a “ encruzilhada dramática e lesiva” a que os
humanos chegaram como espécie, ao
enxergar-se como elemento estranho
ao meio-ambiente. De acordo com
Mercer (2001), ela se opõe a essa visão antagônica entre direitos humanos e ecológicos:
uma oposição que, em última instância, é fatal tanto para o planeta
quanto para a espécie humana. A
mensagem rude de Bird é que não
temos escolha senão atentar para
a “sabedoria dos antigos” e prestar muita atenção às percepções
das populações nativas sobre o
funcionamento e o papel dos ecossistemas (MERCER, 2001, p.119).
Diegues (1998) lembra que esse
modelo de parques nacionais sem
moradores para a preservação da
vida selvagem sofreu duras críticas
54
tanto dentro como fora dos Estados
Unidos, provenientes de correntes
antropocêntricas, que defendem a
consideração do elemento humano
e ecocêntricas, como no caso do filósofo Baird Callicot (1991 apud DIEGUES, 1998) que alertava para a importância das populações humanas
tradicionais do Terceiro Mundo na
conservação da natureza.
De fato, quando se analisa as relações de conflito e simbiose entre o
homem e a natureza, em um contexto de uma unidade de conservação,
ignora-se, com muita freqüência, que
essa presença humana está composta por grupos diversos de pessoas,
com interesses e costumes diferenciados. Pádua (1996) elenca a existência de dois grupos: as populações
permanentes e transitórias que, por
sua vez, subdividem-se em populações indígenas, populações tradicionais, caçadores, extrativistas, caboclos, madeireiros, agricultores, garimpeiros, mineradores, fazendeiros,
população urbana, caçadores, grandes pescadores, comerciantes, missões religiosas, sem-terra, turistas e
pesquisadores. Segundo a autora,
“há gente e gente”, ou seja, deve-se
considerar que há aqueles que não
concorrem e, até mesmo impedem o
objetivo da conservação enquanto,
outros, notadamente as populações
consideradas tradicionais, que podem vir a se transformar em aliadas
efetivas das administrações das UC´s.
Nesse contexto da discussão sobre a importância das chamadas
populações tradicionais, é fundamental que se delimite a natureza
desse grupo de pessoas e que se as
diferencie dos demais habitantes dos
espaços protegidos. As populações
consideradas tradicionais se caracterizam por:
a) dependência e até simbiose com a
natureza, os ciclos naturais e os
recursos naturais renováveis a
partir dos quais se constrói um
modo de vida;
b) conhecimento aprofundado da
natureza e dos seus ciclos que se
reflete na elaboração de estratégias de uso e manejo dos recursos
naturais. Esse conhecimento é
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
5
transferido de geração em geração
por via oral;
c) noção de território ou espaço
onde o grupo social se reproduz
econômica e socialmente;
d) moradia e ocupação desse território por várias gerações, ainda que
alguns membros individuais possam ter se deslocado para os centros urbanos e voltado para a terra dos seus antepassados;
e) importância das atividades de
subsistência, ainda que a produção de mercadorias possa estar
mais ou menos desenvolvida, o
que implica em uma relação com
o mercado;
f) reduzida acumulação de capital;
g) importância dada à unidade familiar, doméstica ou comunal e às relações de parentesco ou compadrio
para o exercício das atividades econômicas, sociais e culturais;
h) importância das simbologias, mitos e rituais associados à caça, à
pesca e a atividades extrativistas;
i) a tecnologia utilizada é relativamente simples, de impacto limitado sobre o meio-ambiente. Há reduzida divisão técnica e social do
trabalho, sobressaindo o artesanal, cujo produtor (e sua família)
domina o processo de trabalho até
o produto final;
j) fraco poder político, que em geral
reside com os grupos de poder dos
centros urbanos;
k) auto-identificação ou identificação pelos outros de se pertencer a
uma cultura distinta das outras.
A crença de que as populações tradicionais podem se classificadas em
uma outra categoria de análise quando se questiona a presença de moradores em espaços protegidos reside,
principalmente, nas características
a,b,h e i, listadas acima, refletidas nas
atividades do fazer, do conhecer, das
técnicas patrimoniais e do campo
simbólico dessas comunidades. O
convívio das populações tradicionais
com o meio-ambiente é considerado
de mais baixo impacto e, até mesmo,
benéfico para os objetivos da conservação, como reforça Diegues, enfatizando a sua natureza:
Denominação utilizada no Brasil para designar as UC´s de uso mais restrito, como os parques nacionais.
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
a simbiose entre homem e natureza é muito mais evidente nas sociedades indígenas brasileiras, por
exemplo, em que o tempo para
pescar, caçar e plantar é marcado
por mitos ancestrais, pelo aparecimento de constelações estelares no
céu, por proibições e interdições.
(...) Nesse sentido é importante
analisar o sistema de representações, símbolos e mitos que essas
populações tradicionais constroem, pois é com base nele que elas
agem sobre o meio. (...) O imaginário popular dos povos da floresta , dos rios e dos lagos brasileiros, está repleto de entes mágicos
que castigam os que destroem as
florestas (caipira, caipora, mãe da
mata, boitatá); os que maltratam
os animais da mata (anhangá); os
que matam os animais em época
de reprodução (tapiora), os que
pescam mais do que o necessário
(mãe d´água) (1998: p.92).
ora, grande parte das florestas tropicais e outros ecossistemas ainda
não destruídos pela invasão capitalista é, em grande parte, habitada por tipos de sociedades diferentes das industrializadas, isto é,
por sociedades extrativistas, ribeirinhos, grupos e nações indígenas.
Muitas delas ainda não foram totalmente incorporadas à lógica do
lucro e do mercado, organizando
parcela considerável de sua produção em torno da auto-subsistência. Sua relação com a natureza, em muitos casos, é de verdadeira simbiose, e o uso dos recursos naturais só pode ser entendido
dentro de uma lógica mais ampla
de reprodução social e cultural,
distinta da existente na sociedade
capitalista (DIEGUES, 1998: p.79).
E continua mais adiante:
mas ainda mais importante, e menos reconhecido, o modo de vida
sustentável nessas áreas de florestas e pobres em recursos é uma salvaguarda política contra a pilhagem e degradação pelos interesses
econômicos comerciais e contra os
ricos. Ao contrário do preconceito
profissional popular, há evidência
crescente que quando as populações pobres têm assegurados seus
direitos à terra e a uma quantidade suficiente de bens para cobrir
os imprevistos, elas tendem a ter
uma visão de longo prazo, agarrando-se tenazmente à terra, protegendo e salvando árvores, assegurando-as para seus descenden-
tes. Nesse sentido, sua perspectiva temporal é mais longa que a dos
interesses comerciais, que visam
somente os lucros do capital a curto prazo (CHAMBERS, 1987 apud
DIEGUES, 1998, p.95).
Até mesmo nos Estados Unidos,
como comentado anteriormente,
sabe-se, hoje, que os parques nacionais não foram implantados em
áreas despovoadas. Yellowstone, por
exemplo, foi criado no território dos
índios Crow, Blackfeet e ShoshoneBannock, estes últimos vivendo durante todo o ano dentro dos limites
atuais do parque. A necessidade de
sair do parque nunca chegou a ser
compreendida pelos índios remanescentes, como fica claro nas palavras do chefe Standing Bear, da tribo
Sioux:
nós não consideramos selvagens as
vastas planícies abertas, os maravilhosos montes ondulados, as torrentes sinuosas. Somente para o
homem branco a natureza é selvagem, mas, para nós, ela é domesticada. A terra não tinha cercas e era
rodeada pelas bênçãos do Grande
Mistério. (MCLUHAN, 1971 apud
DIEGUES, 1998, p.28).
Nos tempos atuais, a importância da discussão dessa questão se
desloca para os países menos desenvolvidos, onde vastas áreas de
ecossistemas relevantes são ocupadas por habitantes fixos. Morselo
(2001) estima que 50% das áreas protegidas do mundo sejam habitadas
e, que na América do Sul, essa participação chegue a 86%. Estudo realizado pelo Nupaub (VIANA et al,
1995) constatou que 83% dos parques nacionais implantados nos estados do Paraná, São Paulo, Espírito Santo e Rio de Janeiro possuem
moradores em seu interior. De acordo com o Ibama (1997) essa participação é menor, embora igualmente
preocupante, com 51% dos parques
nacionais, 265 das reservas biológicas e 28% das estações ecológicas
habitadas. Apesar de não se dispor
de dados estatísticos precisos e mais
recentes, sabe-se que esse quadro é
preocupante no País.
A consideração da natureza manos impactante dessas comunida-
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
des tem levado à construção de algumas propostas que cogitam sobre
a possibilidade da sua permanência em suas moradias, desde que
observe-se o que Bailey (1992) denomina de o estereótipo do “bom selvagem”, partindo do pressuposto de
que essas comunidades devem permanecer imutáveis, alheias aos acontecimentos e transformações externas, principalmente no que se refere
à sua relação com os recursos naturais.
Freqüentemente se permite que as
populações nativas (indigenous)
permaneçam nas áreas protegidas
desde que continuem “tradicionais” (...) (muitas vezes para aumentar seu valor turístico) enquanto o resto do mundo se transforma. A política de manejo para as
reservas deve ser suficientemente
geral e flexível para permitir variações nos estilos administrativos em
relação aos grupos locais ao longo
do tempo (BAILEY, 1992 apud
DIEGUES, 1998, p.96).
Além de reprovável eticamente,
visto que interfere em direitos fundamentais dos seres humanos e reduz essas comunidades a um papel
quase inanimado de atrativo turístico, essa condição é absurda pela
impossibilidade de se evitar o inevitável. Como manter as populações
tradicionais vivendo sob condições
ancestrais, sem conforto e acesso às
informações, ao mesmo tempo em
que se fomenta a sua exposição ao
público visitante e, conseqüentemente a modos de vida bastante diferentes dos seus? A propósito desse fato,
inclusive, é pertinente ressaltar que
para muitos moradores de espaços
protegidos não é compreensível que
o local possa ser visitado por forasteiros e que a comunidade, muitas
vezes estabelecida há gerações, tenha que se retirar.
Quando uma unidade de conservação é criada sem o suporte das
comunidades que habitam o seu interior e as áreas vizinhas, o objetivo
da conservação e o próprio ecoturismo estão fadados ao fracasso. Exemplos dessa afirmação infelizmente
são bastante comuns, em países
como a Índia, Costa Rica e Quênia,
para não se falar apenas do Brasil.
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
55
Whelan (1991) cita o caso do Projeto Tigre, na Índia, onde os parques
nacionais foram criados sem envolver os membros da comunidade e
sem oferecer-lhes opções econômicas
que substituíssem o corte da madeira e a criação de gado. Como resposta, essas duas atividades econômicas nunca puderam ser extintas,
continuando a existir dentro da área
do parque, ameaçando o projeto. O
mesmo autor relata que, na Costa
Rica, há casos de incêndios e derrubada de árvores causados pelos vizinhos e moradores que não foram
indenizados após terem tido suas
atividades econômicas proibidas.
Olindo (1991) nos apresenta o
caso do povo Masai na Reserva de
Masai Mara, no Parque Nacional do
Serengeti, Quênia. De acordo com ele,
os pequenos proprietários de terra
locais, passaram a sentir-se menos
importantes e privilegiados do que
a fauna selvagem. Seus animais domésticos e fontes de água eram constantemente ameaçados pelos grandes mamíferos. Para enfrentar esse
problema, os Masai resolveram construir cercas para isolar a vida selvagem e evitar o acesso dela às fontes
de água em suas propriedades, o que
causou uma diminuição no número
de animais.
Por outro lado, existem exemplos
de experiências bem-sucedidas, em
que a comunidade local se tornou
importante aliada dos projetos de
conservação, como no caso do Projeto Rara Avis, reserva particular localizada nas montanhas da Costa
Rica. Whelan (1991) descreve o
envolvimento dos locais na operação do projeto, provendo transporte, mantimentos para as expedições,
alimentação e alojamento para os
grupos. Ainda na Costa Rica, constatou-se que na comunidade de
Tortuguero, no entorno do Parque
Nacional de Tortuguero, mais de
70% das pessoas envolvidas com a
atividade turística eram membros da
comunidade local.
Também em Belize procurou-se
resolver o problema da retirada das
populações tradicionais através da
inserção dos moradores em atividades econômicas compatíveis que
substituíssem a caça e a agricultura.
56
O Santuário da Vida Silvestre Cockscomb, citado por Lindberg e Hawkings (1993) ilustra bem esse processo, com o aproveitamento dos moradores desde em atividades tradicionais relacionadas com alojamento e
alimentação até a venda de artesanato.
De forma diferente, a KWS –
Kenya Wildlife Service, tentou resolver o impasse estabelecido com o
povo Masai: optou-se por cobrar uma
taxa diária adicional de Us$ 10,00
para os turistas estrangeiros, cuja
metade vai para um fundo administrado pelos Masai, que determinam
o melhor uso dos recursos para a
comunidade.
No caso do Brasil, embora não
existam estudos detalhados que analisem essa relação, sabe-se que a realidade não difere da dos países citados anteriormente. Para o Ibama e
perante a Legislação Brasileira, a situação dos habitantes de unidades
de conservação de proteção integral,
notadamente dos parques nacionais, é ilegal, devendo ser resolvida
através da desapropriação dos imóveis particulares e indenização dos
posseiros pelas benfeitorias construídas (IBAMA, 1996).
Contudo, Morsello (2001) identifica alguns sinais de mudança nessa postura radical do órgão. Em parte por incapacidade administrativa
e, também, por restrições orçamentárias, a remoção dos habitantes das
UC´s nunca foi possível. Com o passar do tempo, entretanto, ao passo
em que os prazos legais para a remoção dos moradores iam se expirando, a administração do Instituto
começou a sofrer influências do debate internacional que se estabeleceu sobre esse tema, tendo passado
a admitir a relevância do tema e buscado encontrar soluções mais flexíveis para o problema.
Um dos sinais mais claros dessa
preocupação foi a criação de um grupo de trabalho interno, em 1992,
Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentado das Populações Tra-
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
dicionais – CNPT6 com o objetivo de
minimizar o impacto que as UC´s
têm sobre a população local, partindo do princípio de que a maior agressão ao meio-ambiente é a miséria. A
despeito de seu significado simbólico, o CNPT não conseguiu avançar
muito além da criação das reservas7
extrativistas, enfrentando muitas
resistências internas dentro da estrutura do próprio IBAMA.
Em que pese a iniciativa da criação do CNPT, continuam existindo
direcionamentos divergentes dentro
da estrutura do governo, e as ações
efetivas em prol das populações tradicionais acabam por direcionar-se
unicamente para aquelas que habitam o entorno de áreas de proteção
integral ou que estejam estabelecidas
em unidades de uso direto.8
Em outras palavras, não existem
indícios de que alguma mudança
fundamental no tratamento da questão ocorrerá no curto ou no médio
prazo e, considerando-se a incapacidade administrativa para aplicar
a legislação vigente, subentende-se
que, pelo menos essa ameaça, continuará existindo por muito tempo
ainda nos espaços protegidos brasileiros.
A análise do ecoturismo como
uma ferramenta para alcançar
o desenvolvimento local em
unidades de conservação
De todo o exposto sobre os casos
analisados, conclui-se que, a despeito do forte poder desestruturante que
pode exercer sobre comunidades e
economias menos articuladas, a atividade, em sua essência, apresenta
grande potencial para se transformar em uma ferramenta tanto da conservação como do desenvolvimento
local dos espaços naturais protegidos e suas populações tradicionais.
O ecoturismo é uma das poucas atividades em que a junção desses dois
objetivos é clara e direta pois suas
condições de produção são particulares a exemplo das poucas barreiras à entrada e a adoção de estraté-
6
Criado através da Portaria IBAMA N 22, de 10/02/92.
7
Até julho de 2004 haviam sido criadas 33 Reservas Extarativistas.
8
Unidades de conservação consideradas de uso sustentável, que admitem algum tipo de manejo
econômico.
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
gias artesanais que se traduzam na
criação de uma oferta difusa e de
baixa intensidade e na gestão local
e personalizada dos recursos.
O conceito de desenvolvimento
local sustentável é uma derivação do
próprio conceito de desenvolvimento, trabalhado pela Geografia e pelas Ciências Econômicas desde os
seus primórdios e, mais recentemente, foi objeto das análises de Albuquerque (1997), Jordan e Zapata
(1998), Valcarcel – Resalt (1998),
Vazquez Baquero (1999a e 1999b),
Rodriguez Gutiérrez (coord) (1999),
Pérez Ramírez e Carrillo Benito
(Coord) (2000). A relação entre turismo e desenvolvimento está presente nas obras de Rodrigues (1997),
Benevides (1997), Souza (1997),
López Palomeque (2000) e Irving
(2002), enquanto as implicações específicas do ecoturismo em unidades de conservação são abordadas
por Lindberg e Hawkings (org)
(1995), Whelan (org) (1991), Wearing
e Neil ( 2001), Fennel ( 2002) dentre
outros autores consultados para
esse estudo.
Como visto, a definição do termo
“desenvolvimento” passou por uma
evolução conceitual ao longo do tempo, assumindo diferentes acepções
que variaram do seu entendimento
como sinônimo de crescimento econômico, depois incorporando parâmetros relacionados com o bem-estar das comunidades no que se
convencionou chamar de desenvolvimento social ou sócio-espacial
(SOUZA, 1997); e ainda, desenvolvimento sustentável, desenvolvimento local e endógeno, para citar
apenas algumas das denominações
mais utilizadas na produção científica sobre o tema. Para Perez e
Carrillo (2000) o conceito de desenvolvimento local seria um novo
enfoque do conceito de desenvolvimento, baseado no aproveitamento
dos recursos endógenos (humanos,
naturais e de infra-estrutura) ou, em
suas palavras:
estimular e fomentar o seu crescimento econômico, criar emprego,
renda e riqueza e, sobretudo, melhorar a qualidade de vida e bem
estar social da comunidade local
(2000, p.48).
O local é entendido como o espaço socialmente construído e onde se
conformam comunidades e se constroem identidades (COELHO E FONTES, 1998).
Em linhas gerais, a perspectiva
do desenvolvimento local exige a
integração do turismo, e do ecoturismo no caso específico desse estudo, de maneira compatível às condições físico-ecológicas, econômicas e
sociais das unidades de conservação e suas áreas de entorno mais
imediato, através de um processo de
planejamento e gestão permanente
e participativa da atividade, que privilegie a construção de um poder
endógeno por parte das comunidades capaz de torná-las auto-gerenciadas e independentes.
Contudo, esse não é um desafio
fácil de ser vencido, ou melhor, trata-se, justamente, da condição mais
difícil de ser alcançada, tendo em
vista o baixo nível de instrução, informação e cidadania encontrados
nas comunidades de áreas subdesenvolvidas do planeta, que são forçadas a se adaptar a uma nova realidade, muitas vezes não desejada.
Considerando todas as externalidades levantadas e as dificuldades
de gestão enfrentadas por esses espaços que, em sua maioria, continuam a reproduzir o modelo excludente
dos parques nacionais norte-americanos, cabe questionar como, então,
o ecoturismo pode contribuir para o
desenvolvimento local das unidades
de conservação? Alguns autores arriscam sugestões mas todos são unânimes ao concordar em pelo menos
dois pontos: a) em que nenhuma
ação pode excluir a população local,
de acordo com o princípio da orien-
aquele processo reativador da economia e dinamizador da sociedade local que mediante o aproveitamento dos recursos endógenos
existentes em uma determinada
zona ou espaço físico é capaz de
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
tação social defendida pela concepção de turismo sustentável, e b) na
necessidade de planejamento para
qualquer ação com esse propósito.
Brandon (1993) esclarece que é
importante que se atente para o tipo
de participação comunitária que se
buscará nesse processo. Com base
em inúmeras experiências estudadas, ela diferencia dois tipos de abordagem: a beneficiária e a participativa.
A primeira consistiria na cooptação passiva da população local, através da oferta de postos de trabalho,
de eventuais consultas quanto às
suas expectativas ou do repasse de
recursos para a realização de ações
comunitárias ou a título de remuneração compensatória em função de
algum transtorno provocado pela
iniciativa. Exemplos dessa abordagem são citados por Lindberg &
Huber (1993) na Zâmbia, em Fiji e
no Quênia e pela própria autora, no
México9. Essa abordagem se assemelharia ao pagamento de uma esmola, que não conscientiza, não educa
e não contribui para o desenvolvimento individual e da comunidade.
Já a abordagem participativa,
busca envolver as pessoas em seu
próprio desenvolvimento através da
mobilização do seu potencial. Que
elas sejam agentes ativos, gerenciem
os recursos, tomem decisões e controlem as atividades que afetam a
sua vida, a exemplo do que ocorre
com os modelos de co-gestão de parques nacionais adotados na Austrália. Mas, de acordo com Brandon
(1993) a maior parte dos projetos de
implantação ecoturística segue a
abordagem beneficiária, o que não
implica no verdadeiro engajamento
e participação dos locais.10
É importante ressaltar que o modelo participativo de planejamento
é mais difícil de ser implementado e
demanda um horizonte temporal de
longo prazo, quase sempre disso-
9
Na Zâmbia, o Programa de Administração de Äreas Comunitárias para Reservas Indígenas –
CAMPFIRE, próximo ao Parque Nacional de Lwanga do Sul, distribui 40% dos recursos auferidos com
os turistas para as comunidades vizinhas à área protegida. No Quênia, esse repasse é de 25%. Em
Fiji, a metade dos ingressos para o Parque e Reserva Florestal de Tavoro são destinados ao desenvolvimento de projetos comunitários.
10
Para mais detalhes sobre a abordagem participativa ver o relato da experiência Annapurna, no
Nepal em Brandon,(1993).
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
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ciado do timing da dinâmica empresarial e dos meandros da legislação
ambiental que implicam no alijamento das populações tradicionais
do processo de planejamento dessas
unidades.
As experiências relatadas demonstram, portanto, que não é possível perseguir os objetivos da conservação da natureza e do desenvolvimento local, especialmente nas
unidades de conservação localizadas nos países em desenvolvimento, sem atentar para as necessidades
humanas de subsistência das populações que os habitam e, conseqüentemente, proceder-se a uma nova discussão sobre os modelos de gestão
adotados nesses espaços e a sua capacidade de equacionar todas as
variáveis derivadas do uso turístico
desses espaços.
A construção e o fortalecimento
do capital social de uma comunidade não é um processo rápido. Deve
observar as peculiaridades da sua
cultura e respeitar a sua dinâmica
própria. Ressalte-se, contudo, que a
incorporação de inovações tecnológicas no tecido empresarial e produtivo local, constitui-se na estratégia
mais direta e segura de obtenção do
desenvolvimento local sustentável,
através do turismo ou de qualquer
outra atividade econômica que se
pense implementar.
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CEMPRE – Centro de Estudos Empresariais
UNIFACS – Universidade Salvador
Prédio de Aulas 8 – Campus Iguatemi – Alameda das Espatódias, 915
Caminho das Árvores, Salvador, BA, CEP 41820-460
Tel.: (71) 3273-8557 – E-mail: [email protected]
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
59
CLUSTERS DE TURISMO:
ABORDAGEM TEÓRICA E AVALIAÇÃO
Sieglinde Kindl da Cunha.
João Carlos da Cunha
1
2
Resumo
Este artigo tem por objetivo problematizar teoricamente sobre a dinâmica de competitividade gerada
pelas redes de cooperação e propor
um modelo de análise de clusters de
turismo a partir de um olhar multidisciplinar entre as áreas de conhecimento da sócio-economia, geografia-social e estudos de redes. Para
atender a este objetivo, inicialmente
o artigo apresentará o conceito de
desenvolvimento local, o papel das
redes de cooperação nos serviços
turísticos e o potencial de formação
de clusters com base no fortalecimento das relações de cooperação e
interação entre os agentes e atores
vinculados a um produto turístico.
Em seguida, discutem-se os modelos de competitividade de um cluster
turístico, contrapondo-se a abordagem de competitividade sistêmica
(ALTENBURG, 1998) como resultado das interações nos níveis meta,
macro, meso e micro, com a abordagem do diamante (PORTER, 1999).
A partir da avaliação crítica dos dois
modelos de competitividade sugerese um modelo alternativo que tem
por objetivo avaliar as vantagens
competitivas sistêmicas de clusters
de turismo. Finalmente, destacam-se
as vantagens e limitações do modelo e os possíveis resultado de aplicação em análises do desenvolvimento local de clusters.
Palavras chaves: cluster de turismo,
desenvolvimento local, competitividade.
the cooperation networks and to
propose a model for analyzing tourism clusters based on a multidiscipline approach, considering socioeconomy, social-geography and
network analysis. This article will
firstly introduce the concept of local
development, the cooperation network‘s role on tourism services and
the potential of clustering constitution derived from the strengthening
of the cooperation and interaction
relationships between the agents
and players associated to a tourism
product. Secondly the competitiveness models of a tourism cluster will
be discussed opposing the Systemic
Competitiveness approach (ALTENBURG, 1998) as a result of the meta,
macro, meso and micro levels against
the Diamond approach PORTER,
1999).An alternative model with the
objective of evaluating the Systemic
Competitive Advantages from tourism clusters is consequently suggested resulting from the critical
consideration of both previous
models. Lastly the advantages and
limitations of the proposed model
and the possible results of its employment on the analysis of local
clusters development are demonstrated.
Key words: tourism cluster, local
development and competitiveness.
Introdução
O turismo nos últimos 50 anos
vem se destacando como uma das
atividades com maior potencial de
expansão em escala mundial. A partir dos anos 80, a aceleração do processo de internacionalização e a
abertura das economias nacionais
provocam verdadeira explosão na
atividade de turismo, sendo apontado como o segundo setor mais
globalizado, perdendo em escala
mundial somente para o setor financeiro (SILVEIRA, 2002). Os avanços
tecnológicos do sistema de transporte e comunicações, com melhorias
significativas da qualidade, redução
do tempo e dos custos das viagens,
o aumento do número de viagens de
negócios e as conquistas sociais (férias remuneradas e finais de semana prolongado), tem atuado como
acelerador do processo de crescimento e globalização do turismo.
Pelo seu potencial de crescimento e por ser um produto que só pode
ser consumido in loco, o turismo assume papel de destaque como estratégia de desenvolvimento local. A
atividade do turismo tem sido o foco
do planejamento regional tanto dos
países desenvolvidos como em desenvolvimento, com papel relevante
na definição de diretrizes, estratégias e ações governamentais de caráter intervencionista direcionada
para reduzir as desigualdades sociais e regionais na busca de um desenvolvimento sustentável. O turismo como setor estratégico nos planos de Desenvolvimento Local, vem
recebendo atenção especial da Organização Mundial do Turismo –
OMT, com estudos e sugestões de
Abstract
1
The main objectives of this article
are to discuss the theory of the competitiveness dynamics generated by
Doutora em Economia pelo IE/UNICAMP. Professora Sênior do Mestrado e Doutorado em Administração – CEPPAD –UFPR. skcunha unicenp.edu.br Skcunha brturbo.com.br
2
Doutor em Administração pela FEA/USP. Professor Titular do Departamento de Administração da
UFPR. jccunha ufpr.br Jccunha brturbo.com.br
60
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
modelos de planejamento (OMT,
2004).
Este artigo tem por objetivo problematizar teoricamente a dinâmica
de “clusterização” dos serviços turísticos e o potencial competitivo gerado pelas redes de cooperação e propor um modelo de análise de cluster
de turismo, a partir de um olhar multidisciplinar entre as áreas de conhecimento da sócio-economia, geografia-social e estudos de redes.
Para atender a este objetivo, inicialmente o artigo apresentará o conceito de desenvolvimento local, o
papel das redes de cooperação nos
serviços turísticos e o potencial de
formação de clusters a partir da cooperação e interação entre os agentes
e atores vinculados a um produto
turístico. Em seguida, discute-se os
modelos de competitividade de um
cluster de turismo, a partir da visão
de competitividade sistêmica (ALTENBURG, 1998), que considera a
competitividade como resultado das
interações nos níveis meta, macro,
meso e micro, e da abordagem de
competitividade do diamante de
Porter (PORTER, 1999). A partir da
avaliação crítica dos dois modelos
de competitividade sugere-se um
modelo alternativo que tem por objetivo analisar o potencial competitivo e os fatores propulsores do desenvolvimento de clusters de turismo. Finalmente na conclusão, destacam-se as vantagens e limitações
do modelo e os possíveis resultado
da aplicação do modelo em análises
de desenvolvimento e competitividade de clusters de turismo.
O primeiro aspecto que chama a
atenção é a multidisciplinaridade
(economia, sociedade e geografia
social), como elemento chave para a
construção social dos territórios, que
ocorre através de redes de cooperação. Estas redes permitem explorar
de maneira eficaz as eficiências coletivas e/ou desenvolver as economias externas nas relações sociais
de produção. Este é um conceito que
se aproxima do conceito de capital
social que resulta da experiência associativa, dos laços de confiança, das competências e capacidades organizacionais e
das configurações de caráter tácito ou
institucionalizado que sedimentam relações interpessoais e interorganizacionais, passíveis de abordagem na ótica
da construção social dos territórios
(SILVEIRA, 2002, p. 239).
O turismo possui um diferencial
em relação as outras atividades produtivas, pois é um produto que só
pode ser consumido in loco, estimula
o desenvolvimento de outras atividades econômicas (comércio, transportes, meios de hospedagem, agências
de viagens, artesanato, serviços de
apoio), estimula o desenvolvimento
da infra-estrutura (estradas, aeroportos, saneamento, energia, etc),
depende da sustentabilidade cultural e ambiental e tem um forte efeito
indutor na geração de renda e emprego local.
MONFORT (2000, p. 46) propõe
o seguinte conceito de cluster turístico, adaptado a partir do conceito de
Aglomerações de Porter:
O conjunto complexo de diferentes elementos, entre os quais se encontram os serviços prestados por
empresas ou negócios turísticos
(alojamento, restauração, agência
de viagens, parques – aquáticos,
temáticos, etc.); a riqueza que proporciona a experiência das férias
de um turista; o encontro multidimensional entre empresas e indústrias relacionadas; as infra-estruturas de comunicação e transporte; as atividades complementares
(dotação comercial, tradição em
feiras, etc.); os serviços de apoio
(formação e informação, etc.); e os
recursos naturais e as políticas
institucionais.
1 Redes de cooperação de serviços de turismo: potencial
de formação de clusters
A compreensão do processo de
desenvolvimento local a partir de
atividades turísticas, cria um campo de interlocução entre três áreas
de conhecimento: a sociedade, o
ambiente e a economia, que interagem e se reforçam mutuamente, em
um contexto no qual a diversidade
social e cultural e a diferenciação
produtiva devem ser utilizadas
como recursos potenciais na geração
de transformações, de competitividade e de sustentabilidade.
Enquanto Monfort destaca as características e os componentes de um
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
cluster, Beni em artigo publicado no
ano de 2003, define cluster enfatizando a articulação entre os agentes e a cooperação através da formação de redes de empresas:
Cluster turístico é o conjunto de
atrativos com destacado diferencial turístico, concentrado num espaço geográfico delimitado dotado de equipamentos e serviços de
qualidade, de eficiência coletiva, de
coesão social e política, de articulação da cadeia produtiva e de cultura associativa, e com excelência
gerencial em redes de empresas que
geram vantagens estratégicas comparativas e competitivas (BENI,
2003, p.74) (Grifos nossos).
Rodríguez Domínguez (2001, p.
307), afirma que ao se trabalhar com
clusters no turismo torna-se necessário contemplar um nível geográfico
reduzido, concreto, um destino turístico, onde se pode adquirir um
número limitado de produtos turísticos. Nesta perspectiva,um cluster
turístico define-se segundo os seguintes critérios:
• existe um âmbito geográfico local,
medido em função de conexões
reais;
• conforma relações comerciais, entendidas como a distância máxima que permite a um fornecedor
servir adequadamente aos seus
clientes e desenvolver outras atividades complementares, bem
como muitos outros aspectos a
exemplo da promoção, das escolas de formação turística, etc.;
• contém infra-estruturas suficientes para toda a área;
• dispõe de uma estratégia própria
muito diferenciada, com características de oferta ou de demanda
muito distintas em relação ao resto do território.
Neste artigo desenvolvemos o
conceito de que um cluster turístico
está associado a um conjunto de
empresas e instituições vinculadas
a oferta de um produto ou um conjunto de produtos turísticos. Estas
empresas e instituições estão espacialmente concentradas e estabelecem entre si relações verticais (dentro da cadeia produtiva do turismo)
e horizontais (envolvendo o intercâmbio de fatores, competências e
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
61
informações entre agentes vinculados a oferta dos produtos turísticos).
O cluster representado na figura
1, apresenta conformação interna
que geralmente inclui: a) um conjunto de atrações turísticas que exerçam
atração sobre os não residentes b)
uma concentração de empresas de
serviços turísticos: restaurantes,
meios de hospedagem, serviços de
transporte, artesanatos, agências de
viagens, etc; c) setores de apoio à
prestação de serviços turísticos; d)
infra-estrutura apropriada e de baixo custo (estradas, energia, saneamento, serviços de saúde, segurança,
etc); e empresas ou instituições que
fornecem qualificações especializadas, informações, capital financeiro;
f) agentes internos organizados em
associações de classe; g) agências
governamentais e outros órgãos reguladores que exerçam influência
sobre a aglomeração turística.
2 Modelos de vantagens competitivas de clusters turísticos
De acordo com Altenburg (1998)
e Porter (1990), uma visão dinâmica
de competitividade deve ser desenvolvida a fim de que, se possa promover uma análise mais condizente
com a realidade econômica, política
e social nas quais as organizações
estão inseridas.
Altenburg enfatiza a dimensão
dinâmica e sistêmica da competitividade. Como visão dinâmica compreende a competitividade baseada nos
resultados de capacitações acumuladas, estratégias adotadas pelas
empresas e percepções quanto ao
processo concorrencial e ao ambiente econômico e institucional onde
estão inseridas. Nesta visão, a
competitividade resulta da capacidade dos agentes em formular e
implementar estratégias que permitam conservar posições sustentáveis, destacando-se as vantagens
associadas à qualidade e produtividade dos recursos humanos e à
capacitação produtiva e inovadora
das empresas. Esta dimensão dinâmica está condicionada por fatores
que podem favorecer e aperfeiçoar a
capacidade de acumulação tecnológica das empresas a partir dos di-
62
Figura 1 – Representação de um cluster turístico
Fonte: elaborada pelos autores
versos níveis de inter-relações das
organizações com seu meio. Como
dimensão sistêmica, Altenburg destaca quatro dimensões que resultam
das ações entre os agentes e destes
com o seu ambiente: níveis meta,
macro, meso e micro.
Porter desenvolve o conceito de
competitividade associado ao conceito de valor. As empresas possuem a capacidade de criar valor para
seus compradores pelo desempenho
obtido a partir de suas atividades
internas e que constituem o que o
autor denomina de cadeia de valores. A vantagem competitiva, sob a
perspectiva da organização, é obtida através das inovações alcançadas
nestas atividades, ou na sua cadeia
de valores e na capacidade de coordenação das mesmas. As organizações fazem parte de um sistema associadas as cadeias de valores: fornecedores, clientes, canais de distribuição e outros agentes do processo
produtivo. A capacidade de coordenar, de forma mais eficiente possível este “sistema de valores” é que
gera a vantagem competitiva.
A seguir analisa-se competitividade associada às condições de um
cluster turístico. O modelo de Competitividade Sistêmica do Instituto
Alemão de Desenvolvimento (AL-
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
TENBURG, 1998) e o modelo do diamante de Porter, serão adaptados
para explicar e relacionar as principais variáveis da dinâmica competitiva de um cluster de turismo.
2.1 Modelo de competitividade sistêmica
No enfoque sistêmico, a competitividade compreende o alinhamento de quatro dimensões de ação objetiva: nível meta (valores, coesão social, organização política); nível macro (políticas macroeconômicas, comércio exterior e políticas regulatórias); nível meso (interação entre o
Estado e os atores sociais que desenvolvem políticas de apoio específico, fomentando a formação de estruturas e articulando processos de
aprendizagem a nível social); nível
micro (ação interna às empresas na
busca simultânea de eficiência, qualidade, flexibilidade e rapidez de reação, estando muitas delas articuladas em redes colaborativas).
Em nível meta a competitividade
de um cluster turístico se materializa
quando o mercado (turistas) e as organizações sociais (agentes que compõe o cluster) se movem na mesma
direção e estão estreitamente associados, permitindo mobilizar
sinergias em constante movimento
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
As ações
que influenciam a
competitividade em nível
macro são as ações
específicas do
Estado...
de correção e ajuste. Esta convergência de direcionamentos se dá através
da capacidade dos atores em compartilhar uma visão conjunta, cultura
e valores no sentido de implementar
estratégias de desenvolvimento que
criam vantagens socialmente apropriáveis para os agentes locais.
As ações que influenciam a competitividade em nível macro são as
ações específicas do Estado que interferem no nível de atividade, na
distribuição e na forma de apropriação do produto gerado pelo cluster
turístico a curto, médio e longo prazo. Um ambiente econômico, político e institucional propício é condição imprescindível para gerar competitividade de um cluster.
O nível meso depende da capacidade organizativa e estratégica de
interação e cooperação entre os numerosos agentes sociais que atuam
na atividade do turismo ou que a ele
se relacionam. O meio que envolve
as empresas tem sido influenciado
pelas mudanças tecnológico-organizativas, e pela superação do tradicional paradigma de produção fordista. O novo paradigma das tecnologias de informação e comunicação
possibilita a expansão e penetração
de redes organizacionais em toda a
estrutura sócio-produtiva, transformando e reforçando os arranjos institucionais que se vinculam ao cluster.
O nível micro compreende essencialmente a perspectiva de análise
da competitividade ao nível das empresas do cluster de turismo que para
manterem sua vantagem competitiva, enfrentam adversidades do meio
que lhe é imposto pela competição,
exigindo a definição de estratégias e
processos de produção eficientes,
flexíveis, com qualidade e velocidade de reação.
O modelo de competitividade
apresentado por Altenburg permite
avaliar como as diferentes variáveis
influenciam nos níveis de competitividade de um cluster turístico.
Possibilitam ainda avaliar: as fragilidades e potenciais dos agentes e
de suas relações; os valores culturais comuns que orientam as estratégias de desenvolvimento; a posição de cada ator na divisão social
do trabalho do cluster de turismo; as
lacunas, fragilidades ou potencialidades das políticas públicas; as
estratégias de cooperação e de formação de redes entre os agentes; assim como as estratégias individuais
de competição e competitividade das
organizações.
2.2 Modelo de competitividade de
Porter
De acordo com Porter, o sucesso
de determinada empresa e ou de determinada indústria está associado
às condições nacionais de seu país
de origem, na medida em que potencializam a adoção de estratégias próprias a partir de um contexto favorável ao seu desenvolvimento. O sucesso de empresas e indústrias a
partir deste favorecimento constituiria a vantagem competitiva de uma
nação.
Porter destaca quatro determinantes e mais o papel do governo e
do acaso como determinantes da
vantagem competitiva de uma nação, região ou cluster: condições dos
fatores; condições da demanda; indústrias correlatas e de apoio; estratégia, estrutura e rivalidade de empresas. Estas condições são normalmente encontradas em clusters turísticos. Na maioria dos clusters turísticos as atividades vinculadas ao produto turístico, têm fortes ligações
com outras atividades industriais e
de serviços (através da compra de
equipamentos, treinamento, design,
indústria de alimentos, vestuário,
etc...), necessitam de condições de
fatores favoráveis, mercado exigente e sofisticado e de elementos que
fortaleçam as estratégias de rivalidade entre empresas.
Mais detalhadamente podemos
verificar os determinantes do diamante de Porter em um cluster turístico:
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
• Condições de fatores: abrangem
os recursos envolvidos no desenvolvimento das vantagens competitivas e podem ser encontrados
nas atividades de: capacitação de
recursos humanos para o trabalho e de serviços prestados ao turista, na disponibilidade de recursos físicos e atrativos turísticos,
na disponibilidade de recursos do
conhecimento (agencias de informação e divulgação), na disponibilidade de recursos de capital
(para financiamento de médio e
longo prazo, destinados a infra e
supra-estrutura turística); na
infra-estrutura de acesso aos produtos turísticos (estradas, energia, saneamento, etc) e nos serviços de segurança, etc.
• Condições de demanda: compreendem os elementos de mercado
a que se reportam determinadas
indústrias. Isto quer dizer que um
cluster turístico terá seu desenvolvimento associado à composição
e tamanho da demanda de seus
produtos e serviços, bem como ao
seu padrão de crescimento e exigências de qualidade.
• Indústrias correlatas e de apoio:
as indústrias correlatas compreendem aquelas que fazem parte
do sistema de cadeia de valores,
ou seja, que em alguma das partes de sua cadeia de valores esteja
associada através de um processo ou produto à cadeia de valores
da empresa em foco. Já, as empresas de apoio compreendem fornecedores e empresas que servem
como canais de distribuição e
intermediação.
• Estratégia, estrutura e rivalidade
de empresas: este determinante localiza-se na esfera interna da empresa, associada às práticas administrativas adotadas por determinada indústria e suas respectivas firmas, à percepção dos agentes envolvidos no processo competitivo sobre comércio interno e
externo, à formação dos profissionais de determinada empresa e
à influência de políticas governamentais no interior das organizações.
O modelo proposto por Porter
ainda acrescenta aos quatro deter-
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
63
minantes os efeitos do acaso e do
governo. O acaso está vinculado aos
fenômenos da natureza, ou fatores
geopolíticos tais como terrorismo,
guerras, etc... Também para Porter, a
ação pública também afeta as atividades de turismo através das políticas públicas, como por exemplo. a
taxa de cambio, políticas de renda,
taxa de juros, falta de controle da
poluição ambiental, regulação do
mercado de trabalho.
Ao compararmos o modelo do
diamante de Porter com o modelo de
Altenburg, observamos claramente
que Porter enfatiza as variáveis que
definem as condições de mercado,
que estão associados ao tamanho da
demanda e ao grau de sofisticação
desta demanda. Nas atividades turísticas as condições de mercado são
especialmente importantes para estimular inovações de produtos e serviços e estas variáveis são pouco
exploradas no modelo de competitividade de Altenburg.
Sem minimizar o papel da cooperação entre as organizações, o
modelo de Porter destaca a rivalidade como variável estratégica essencial para desenvolver inovações e
diferenciação na oferta de produtos
e serviços turísticos. Enquanto que,
no modelo de competitividade a ênfase é dada às variáveis de cooperação (especialmente a cooperação que
ocorre em nível meso) entre instituições públicas e organizações para
definir estratégias de desenvolvimento da infra-estrutura, supra-estrutura e das estruturas organizacionais do cluster turístico. A parceria
público-privada é colocada como
estratégica para a competitividade
sistêmica no modelo de Altenburg.
3 Divergências e convergências entre os modelos de
competitividade sistêmica e
o diamante do porter: uma
abordagem específica para
clusters de turismo
Os dois modelos se complementam para a análise da competitividade de clusters turísticos na medida
em que o modelo de competitividade
sistêmica de Altenburg propõe-se a
determinar os níveis ou dimensões da
competitividade com ênfase em vari-
64
Figura 2 – O diamante de competitividade de um cluster de turismo.
Fonte: Santos Silva (2004).
áveis econômicas, que envolvem um
conjunto complexo de fatores
dimensionados nos níveis meta,
macro, meso e micro. Devido à complexidade e características sistêmicas
destes fatores, o agrupamento por
níveis de competitividade facilita o
processo de análise de estudiosos,
pesquisadores, tomadores de decisão
e elaboradores de políticas uma vez
que as análises de clusters turísticos
devem sustentar-se em abordagens
que envolvam a visão holística,
multidisciplinar e multiescalar das
relações sociais, econômicas, culturais e ambientais. As variáveis analíticas do modelo permitem avaliar o
cluster pelo potencial dos agentes locais de viabilizarem um projeto local
de desenvolvimento do cluster turístico através da cultura associativa e
de coesão social e do fortalecimento
das redes locais de cooperação.
Na avaliação da competitividade
a nível meta e meso Altenburg também destaca, a capacidade interna
dos agentes de formação de novos
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
negócios e a visão holística, multidisciplinar e multiescalar dos agentes envolvidos no processo competitivo.
O segundo modelo apresentado
tem sua origem em uma abordagem
estratégica e, apresenta entre seus
determinantes os elementos comuns
à discussão mercadológica e de recursos estratégicos das organizações. Estes elementos são especialmente importantes em clusters turísticos uma vez que as organizações e
agentes que o integram, sustentamse no mercado, através da definição
de estratégias de competição interna entre as organizações e também
através de estratégias externas de
competição com outros clusters turísticos.
A principal característica do modelo de Porter é a ênfase dada a
interação entre os determinantes do
diamante. Cada determinante encerra também um conjunto de agentes
que promovem pressões sobre os elementos dos outros determinantes, de
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
forma que o grau de interação define a vantagem competitiva nacional.
Fica destacado no modelo de Porter
que a competição é o elemento determinante do sucesso de um cluster.
O autor do modelo do diamante
minimiza os elementos macroeconômicos que interferem no desempenho da vantagem competitiva nacional, ou seja, nas condições do ambiente econômico favorável ao fortalecimento do cluster turístico. Também não foi enfatizado no modelo
de Porter, os valores e culturas comuns dos agentes para criar um
ambiente colaborativo voltado para
o desenvolvimento contínuo das dimensões sócio-econômica e ambientais do cluster turístico.
O modelo de Porter reconhece o
papel do governo na definição de
políticas que interferem na competitividade do cluster turístico, mas
não destaca a importância da colaboração e da cooperação entre o governo e as organizações na definição de estratégias de desenvolvimento de um cluster. Porter coloca o
governo como um agente responsável pela regulação e pela disponibilidade de infra-estrutura, sem enfatizar a relação sinérgica que ocorre
entre os agentes públicos e privados.
A parceria público-privado pode ser
um dos elementos fundamentais na
promoção e apoio aos clusters turísticos, especialmente porque o Estado pode atuar em relações horizontais de cooperação com os demais
agentes, além de ser o agente facilitador do desenvolvimento através de
investimentos públicos na formação
da infra-estrutura básica de apoio ao
setor de turismo.
O modelo do diamante de Porter,
quando adaptado a estudos de competitividade de clusters deixa lacunas na análise dos fatores meta e
meso. Porter não enfatiza a capacidade dos atores em compartilhar
uma visão conjunta no sentido de
implementar estratégias de desenvolvimento setorial e local e também
minimiza a importância das relações
e parcerias do setor privado com as
instituições públicas no sentido de
desenvolver um modelo cooperativo de desenvolvimento do cluster turístico.
Figura 3 – Vantagens competitivas sistêmicas de clusters turísticos
Fonte: elaborada pelos autores com base nos modelos de competitividade sistêmica e o
diamante da competitividade de Porter.
No entanto o modelo é rico quando se pensa em um modelo estratégico de desenvolvimento em nível meso
e microeconômico. O modelo de Porter
destaca a rivalidade como variável
estratégica essencial para desenvolver
inovações e diferenciação na oferta de
produtos e serviços turísticos.
Embora ocorram lacunas na definição das variáveis estratégicas
entre o dois modelos, a maioria dos
determinantes da competitividade
apresenta variáveis convergentes,
embora agregadas com tipologias
diferentes. As relações convergentes
identificadas entre os dois modelos
são apresentadas por variáveis fundamentais para a competitividade
de um cluster turístico, ou seja, os
determinantes competitivos do modelo de Porter podem ser claramente identificados nas variáveis agregadas por níveis de competitividade
do modelo proposto por Altenburg.
Por exemplo, o nível meso dá ênfase a discussão de elementos de
infra-estrutura, de relações entre as
organizações privadas e instituições
públicas de apoio e a disponibilização dos recursos necessários ao
desenvolvimento. Da mesma forma
o determinante proposto no modelo
de Porter sobre condições de fatores,
também enfoca o mesmo conjunto de
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
elementos. O nível Micro, por sua
vez, compreende a dimensão da estratégia organizacional para a competitividade da mesma forma que o
determinante de “Estratégia, estrutura e rivalidade de empresas” do
segundo modelo.
Na figura 3, apresenta-se uma
proposta de avaliação das vantagens competitivas sistêmicas, a partir da combinação de variáveis apresentadas nos dois modelos discutidos neste artigo.
4. Vantagens e desvantagens
na aplicação do modelo
A aplicação do modelo de avaliação do desenvolvimento e competitividade de clusters de turismo poderá contribuir com subsídios aos
formuladores de políticas de desenvolvimento local, no sentido de identificar lacunas e potencialidades que
para o desenvolvimento competitivo do cluster de turismo. Como contribuição ao enfoque de políticas
públicas ou de competitividade
macro, o modelo poderá responder
questões tais como:
• existem políticas de estímulo específicas para o desenvolvimento
do Cluster turístico?
• se existem: Quais são estas políticas? São adequadas para as espe-
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
65
cificidades do cluster local? Como
contribuem para a competitividade? Que política poderiam melhorar a competitividade do cluster?
• qual o papel do estado na oferta
da infra-estrutura de turismo?
Quais as lacunas ou deficiências
em termos de infra-estrutura física e de apoio ao turismo?
A aplicação do modelo também
poderá contribuir em termos de potencial de organização interna do
cluster e de formulação de um projeto local de desenvolvimento ao responder questões tais como:
• qual a capacidade dos agentes locais para formular um projeto estratégico para o desenvolvimento
do turismo?
• fatores que fomentam ou criam
obstáculos ao associativismo e
cooperativismo.
• como os agentes se organizam
para atingir as metas de desenvolvimento local?
• qual o plano estratégico de desenvolvimento do turismo local a curto, médio e longo prazo?
• quais são os principais agentes
componentes do cluster turístico?
• qual o papel que cada agente ocupa no cluster turístico?
• que tipo de relações que ocorrem
entre os agentes internos e qual a
intensidade destas relações?
• quais atividades não são atendidas pelos agentes locais?
• quem são os principais ofertantes
de serviços turísticos internamente e quais são as atividades que
não são atendidas pelos agentes
locais?
O modelo também permite responder questões sobre estratégias,
estrutura e concorrência em nível
microeconômico, tais como:
• qual o potencial competitivo da
indústria local?
• quais as estratégias de concorrência das empresas dentro do cluster
e com os clusters turísticos concorrentes?
• qual o potencial de inovação das
empresas componentes do cluster?
• quais as estratégias de concorrência microeconômica em termos de
diferenciação dos serviços e de
vantagens de custo?
A aplicação de um de um modelo
estatístico, como por exemplo, o de
66
componentes principais, permitirá
selecionar e hierarquizar as variáveis com maior poder de explicação
em termos de competitividade do
cluster.
O modelo de vantagens competitivas sistêmicas de clusters turísticos,
resultado da fusão dos dois modelos analisados, apresenta uma visão
holística, multidisciplinar e multisetorial, resgatando através da abordagem sistêmica os conceitos de
competitividade.
A análise da competitividade de
clusters turísticos busca orientar estrategicamente os agentes responsáveis pelas políticas públicas, como
também as empresas e instituições
públicas e privadas em suas estratégias de competitividade, competição,
cooperação e sustentabilidade.
Conclusão
O turismo vem se destacando
como uma das atividades com maior potencial de expansão em escala
mundial. Pelo seu potencial de crescimento, e por ser um produto que
só pode ser consumido in loco, a atividade assume papel de destaque
como estratégia de desenvolvimento local. Contudo, mesmo com o potencial de desenvolvimento em todas
as escalas e o papel relevante na definição das políticas públicas da caráter intervencionista, pouco se
avançou em termos de estudos, pesquisas e modelos de medidas de impactos que a atividade de turismo
exerce sobre uma localidade.
Este artigo teve por objetivo
problematizar teoricamente a análise de competitividade de cluster de
turismo utilizando como embasamento o enfoque o modelo diamante
de Porter e a análise sistêmica de
competitividade de Altenburg.
O modelo tem como fundamentação teórica o conceito e a tipologia
de cluster, adaptando e integrando
os conceitos de competitividade às
dimensões econômicas, sociais, culturais, ambientais e políticas.
Os conceitos utilizados nos dois
modelos, embora com foco e abordagem inicial diferente (o modelo sistêmico tem um enfoque mais econômico de análise de impactos e o modelo do diamante de Porter, um enfoque
mais de estratégia das organiza-
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
ções), não são contraditórios, mas
interagem e dão uma visão mais
abrangente dos fatores e variáveis
que interferem na competitividade
de clusters turísticos.
As associações realizadas acima
e outras que ainda podem ser realizadas, determinam a complementaridade dos dois modelos. Não se
discute, neste enfoque, qual daqueles apresentados possa ser mais ou
menos efetivo, todavia propõe-se que
a adoção de ambos possa promover
uma análise mais apurada dos elementos envolvidos no processo de
competitividade dinâmica e sistêmica de um cluster de turismo.
O modelo proposto apresenta
uma visão holística, multidisciplinar e multisetorial do desenvolvimento local, resgatando, através da
abordagem sistêmica, os conceitos
de competitividade, eqüidade social e desenvolvimento sustentável. Os
resultados possibilitam orientar estrategicamente agentes responsáveis
pelas políticas públicas, bem como
as empresas e instituições públicas
e privadas em suas estratégias de
competitividade, competição, cooperação e sustentabilidade.
Como principal limitação do modelo destaca-se o seu corte temporal e
regional, ou seja, o modelo é estático e
sua comparabilidade no tempo e no
espaço depende da sua reaplicação.
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SANTOS, M. (1999) A Natureza do Espaço. São Paulo. Hucitec.
CEDRE
CENTRO DE ESTUDOS DO DESENVOLVIMENTO REGIONAL
•
– Análises regionais para programas de
desenvolvimento – Avaliações e acompanhamento de programas de fomento –
Estudos de viabilidade econômica – Estudos setoriais de oportunidades de
investimento – Estudos de localização industrial – Projetos de implantação e
ampliação de empresas – Diagnósticos municipais – Planejamento espacial e
econômico nos planos macro e microeconômicos – Planos diretores de
desenvolvimento urbano – análises urbanas.
•
– Planejamento turístico macro e microeconômico
– Estudos de viabilidade econômica de empreendimentos turísticos – Projetos
turísticos – Estudos de impactos ambientais (Rima).
Sendo uma instituição universitária o CEDRE não tem finalidades lucrativas e
opera em termos bastante acessíveis para as prefeituras municipais e as pequenas
e médias empresas.
Tel.: (71)
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Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
67
A EFICÁCIA DOS PROGRAMAS DE QUALIDADE
NO SETOR PÚBLICO: O CASO DO QUALIOP
Augusto de Oliveira Monteiro1
Carlos Palma de Mello2
Resumo
O objetivo desse artigo é analisar
a natureza e avaliar a eficácia de
programas de qualidade adotados
no âmbito das administrações públicas estaduais do Brasil nos últimos
anos. Para tal, é realizado um estudo de caso do Programa de Qualidade em Obras Públicas do Estado
da Bahia – QUALIOP, buscando-se
descrever os seus principais atributos e, sobretudo, discutir a sua eficácia. Desta forma, os resultados apresentados decorrem de uma ampla
pesquisa de campo realizada junto
às empresas executantes e aos contratantes de obras públicas no Governo do Estado da Bahia, mediante
a aplicação de questionários estruturados, com os quais se pretendeu
ressaltar as suas diferentes dimensões de desempenho, assim como
apontar as suas deficiências e requisitos de evolução. Os resultados da
pesquisa indicam significativos
avanços na melhoria dos processos
e nos mecanismos e instrumentos de
controle das obras públicas no Estado da Bahia.
Palavras-chave: Reforma do Estado,
Modelo de Gestão, Mudança Organizacional, Programa de Qualidade.
Abstract
The purpose of this paper is to
study the nature of quality programs
at Brazilian states and to assess its
effectiveness In order to do so, a case
study of Bahia’s Quality Program in
Public Works – QUALIOP was developed, searching to describe its
main features and to evaluate its
effectiveness. The results presented
derived from a field research at
outsourced companies and public
works contractors at Bahia State
68
Government, which aimed to highlight the different performance dimensions and the deficiencies, as
well as its requirements for further
development. The results indicate
significant improvements on the processes and control tools of the public
works.
Key-words: State Reform, Management Model, Organizational Change, Quality Program.
Introdução
Ao longo da última década, o processo de Reforma do Estado e as
mudanças nos organismos públicos
se aprofundaram e ganharam notoriedade. Diversos governos realizaram um grande esforço para melhor
focar as atividades de governo no
atendimento ao cidadão, tornando
a máquina estatal mais leve e produtiva. As diretrizes desta reforma
foram lastreadas no conjunto de
princípios da chamada Administração Pública Gerencial, a saber: foco
nos resultados, indicadores de desempenho, parcerias, trabalho em
rede, gestão do conhecimento, autonomia e responsabilização, transparência, controle social e avaliação.
Os instrumentos desta reforma
estão estabelecidos através da difusão de novas tecnologias, da promoção de diálogos e da construção efetiva de parcerias e redes entre o Estado, instituições privadas e não-governamentais. Procura-se mudar a
qualidade gerencial das instituições
públicas, pesquisando e implementando novos modelos de gestão
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
que possibilitem a execução destas
tarefas, com o objetivo principal de
melhorar a qualidade de vida do cidadão. Para isso, é necessário o desenho de um novo Estado através de
um ajuste fiscal, assim como reformas estruturais orientadas para o
mercado, com profundas repercussões na forma como o Governo atua,
nas dimensões política, econômica,
social e gerencial.
Também no âmbito da administração do Estado da Bahia, é possível
perceber um número crescente de projetos que visam promover a evolução
da gestão pública. Alguns programas estaduais parecem possuir estas
características, fazendo parte de um
conjunto de movimentos que constituem uma ampla agenda de trabalho
de fins transformadores e que buscam, em certa medida, assegurar a
transformação necessária à consolidação do novo modelo gerencial.
Desta forma, o objeto de estudo
deste trabalho é o Programa de Qualidade em Obras Públicas do Estado
da Bahia – QUALIOP. Instituído formalmente através do Decreto n o
7.795, de 24 de abril de 2000, este
programa pretende ser o agente
incentivador da inovação e da competitividade na atuação das empresas do setor de construção civil que
atuam no Estado. Como resultado de
extensa negociação entre o Estado e
a cadeia produtiva, este programa é
uma ação estratégica de introdução
da Gestão pela Qualidade Total no
âmbito das obras públicas estatais.
O QUALIOP está alinhado como o
1
Doutor, Professor Titular da Universidade Salvador (Unifacs), Coordenador do Programa de PósGraduação em Administração da Unifacs.
2
Mestre, Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Administração da Unifacs, Coordenador
do Curso de Marketing do Centro Universitário da Bahia – FIB.
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Programa Brasileiro de Qualidade e
Produtividade do Habitat (PBQP-H),
coordenado pelo Ministério das Cidades.
O programa visa a melhoria das
obras públicas contratadas pelo Governo do Estado mediante um sistema evolutivo que monitora a qualidade dos materiais, componentes, sistemas construtivos e projetos, bem
como os processos e procedimentos
dos contratantes (órgãos do Estado).
Seu funcionamento está calcado no
estabelecimento de acordos setoriais
com segmentos da construção civil e
contratantes públicos, através da implantação de processos de qualificação, homologação e certificação de
produtos, serviços e procedimentos.
O objetivo deste trabalho, portanto, é avaliar e discutir a eficácia do
Programa QUALIOP na melhoria
dos processos de contratação, execução e resultados das obras civis
no Estado da Bahia. Sendo assim, é
analisado também em que medida o
QUALIOP está alinhado com os preceitos da Reforma Gerencial em curso no Brasil. Acredita-se que este
programa esteja de acordo com as
propostas elencadas para este esforço, figurando como um dos modelos
de atuação com intenção de transformar a administração pública, representando ainda um avanço nas
relações entre o Governo e o setor
produtivo privado.
Reforma do Estado e Novos
Modelos de Gestão Pública
Nos últimos anos, tem-se observado um intenso debate acerca do
papel que o Estado deve desempenhar na vida contemporânea e o grau
de intervenção que deve ter na economia. No Brasil, o tema ganha relevância maior, tendo em vista que o
governo, em razão do modelo de desenvolvimento adotado, desviou-se
de suas funções precípuas para atuar fortemente na esfera produtiva
(BRASIL, 1995).
Bresser Pereira (1996) argumenta que a globalização empurrou o
Estado na direção da redefinição de
suas funções, antes fundamentadas
na proteção e no fomento de suas
economias e, neste momento, na garantia da universalidade dos servi-
ços de educação básica, de saúde e
segurança, financiando a formação
do capital humano e promovendo a
competitividade internacional das
empresas. O foco estaria centrado na
regulação destes serviços ditos monopolistas, além da intervenção capaz de compensar os desequilíbrios
promovidos pela globalização.
Spink (1999) cita o Relatório das
Nações Unidas de sua conferência
em Brighton, em 1971, na tentativa
da definição de Reforma Administrativa do Estado, como sendo o esforço que tem como alvo a indução
das mudanças fundamentais nos
sistemas de administração pública,
através de reformas de todos os sistemas ou, pelo menos, de medidas
que visem à melhoria de um ou mais
elementos-chave, como estruturas
administrativas, pessoal e processos. Neste particular, estas são consideradas essenciais para a criação
de capacidade administrativa necessária ao desenvolvimento econômico, alem da execução das funções
governamentais essenciais.
A definição de Reforma Gerencial
se encerra em sete características da
nova gestão pública: administração
profissional, indicadores de desempenho explícitos, maior ênfase no
controle de resultados, divisão das
organizações públicas em unidades
menores, maior competição entre
unidades, ênfase no uso de práticas
de gestão originadas no setor privado, e ênfase em maior disciplina e
parcimônia no uso de recursos.
A reforma do Estado pela via da
Reforma Gerencial da Administração Pública é uma resposta ao processo de globalização em curso, com
premente ameaça à autonomia dos
Estados na formulação e implementação de políticas públicas, e à chamada crise do Estado com início nos
anos 1970, e consolidação a partir
dos anos 1980 (BRESSER PEREIRA,
1992).
A grande crise dos anos 1980,
como cita o autor, reduziu drasticamente taxas de crescimento dos países centrais, e levou à estagnação
por quinze anos a renda por habitante nos países em desenvolvimento. Este fato decorre da crise do Estado – uma crise fiscal, do modo de
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
A intensa
intervenção do Estado no
mercado acarretou
distorções crescentes nos
anos 80 que se tornaram
insustentáveis nos
anos 90.
intervenção econômica e social e
uma crise na forma burocrática de
administrar o Estado. Bresser Pereira ainda associa a crise ao caráter
cíclico da intervenção estatal, bem
como à perda de autonomia decorrente da globalização, como fora citado anteriormente.
A intensa intervenção do Estado
no mercado acarretou distorções
crescentes nos anos 1980 que se tornaram insustentáveis nos anos
1990. No sistema capitalista, Estado e mercado são as duas instituições centrais que operam na coordenação dos sistemas econômicos.
Desta forma, se um deles apresenta
funcionamento irregular, é inevitável que os efeitos da crise se façam
presentes.
No Brasil, também nos anos 1980,
esta crise caracterizou-se pela perda
do crédito público e pela poupança
pública negativa. Agravada pelo processo de globalização, a crise do modelo de intervenção acelerou o esgotamento do modelo intervencionista
de proteção e substituição de importações até então vitorioso. Por sua vez,
a crise do modelo burocrático de administrar o Estado emergiu no final
dos anos 1980, em função do retrocesso burocrático da Constituição de
1988 (BRESSER PEREIRA, 1992). O
Plano Diretor da Reforma do Estado
(BRASIL, 1995) ainda cita que, a partir do início desta década, como resultado de reformas administrativas
apressadas, notadamente no início
dos anos 1990, verificou-se total desorganização dos centros decisórios
importantes, que afetaram a “memória administrativa” e desmantelaram
a sistema de informações para o processo governamental.
O Decreto-Lei nº 200, do final dos
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
69
anos 1960, visou conferir maior flexibilidade à Administração Pública,
principalmente por meio da criação
de autarquias, fundações e empresas públicas, resultando, em parte,
em grande desenvolvimento econômico até o final dos anos 1970 (PACHECO, 1999). Este é considerado o
primeiro esforço na direção de uma
reforma administrativa no País
(ABRÚCIO, 1997).
Timidamente, a reforma começa
nos anos 1980, em meio a uma crise
econômica com seu auge no início
dos anos 1990. Problemas como o
ajuste fiscal, as privatizações e a
abertura comercial foram atacados
de frente. Já a reforma administrativa só começou efetivamente em 1995
com uma proposta de reformulação
gerencial do Governo, a qual apontava para a direção da modernização do serviço público, da busca da
eficiência e profissionalização, da
consolidação do ajuste fiscal e do
melhor atendimento da necessidade dos cidadãos (BRESSER PEREIRA, 1999).
Essa direção procurou dotar os
governos de condições para enfrentar falhas históricas, trazendo ao
Estado mais condições de governabilidade, aqui definida como a capacidade de governo eficaz na condução dos negócios públicos, e governança, entendida como a capacidade de comando, direção, coordenação e implementação de distintas
políticas com ambientes mais democráticos e eficientes, atendendo melhor às demandas dos cidadãos a
um custo menor (DINIZ, 1997).
Ainda entre os objetivos da reforma havia duas mudanças fundamentais. A primeira dizia respeito à
redução do aparelho do Estado,
privatizando e publicizando atividades que necessitavam ter sua forma de propriedade redefinida. A segunda referia-se à assimilação da
administração gerencial naqueles
setores voltados para a prestação de
serviços ao público ou de operacionalização de atividades de fomento
ou fiscalização.
A Reforma Gerencial nos países
da Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico – OCDE,
assim como em alguns países em
70
desenvolvimento, foi baseada na
idéia de transferir mais autonomia e
maior responsabilidade aos administradores públicos, tornando a
administração pública voltada para
o cidadão-cliente (BRESSER PEREIRA, 1999). Nas duas direções, a inspiração vem da administração privada, distinguindo-se dela porque
não objetiva o lucro, mas o interesse
público. A Reforma Gerencial pretende uma governança forte, resultante
de um Estado sadio no plano fiscal
e financeiro e competente no plano
administrativo.
Uma outra abordagem interpretativa do processo de construção da
Nova Gestão Pública é apresentada
por Abrúcio (1997), segundo o qual
a mesma pode ser compreendida a
partir da análise dos seguintes modelos.
• o primeiro modelo é o gerencialismo puro, baseado na economia
e eficiência: “fazer mais com menos”;
• o segundo denominado consumerismo, com foco na flexibilização da gestão, qualidade nos
serviços e na prioridade às demandas do consumidor: é o “fazer
melhor”;
• e o terceiro, a Public Service Orientation (PSO), focada na noção de
eqüidade, de resgate do conceito
de esfera pública e da ampliação
do dever social de prestação de
contas (accountability).
Desta forma, o Programa da Qualidade e Participação na Administração Pública surgiu estrategicamente enquanto principal instrumento de aplicação do Plano Diretor da Reforma do Estado no Brasil.
A proposta deste Plano era a de introduzir no Setor Público novos valores e comportamentos recomendados pela Administração Pública
Gerencial. Além disso, pretendia-se,
através do programa, viabilizar a
revisão dos processos internos da
Administração Pública para melhorar sua eficiência e eficácia. Considera-se neste trabalho que a Qualidade Total no Serviço Público é parte integrante do conjunto de inovações gerenciais propostas pelo Novo
Gerencialismo.
Os termos “qualidade” e “parti-
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
cipação” definem bem a orientação
e ênfase que se deseja dar às ações
que são desenvolvidas pelo programa. Neste sentido, a estratégia de
implementação observa as diretrizes
dos programas de qualidade, interpretados e aplicados segundo a ótica da administração pública. A participação significa o envolvimento
de todos os servidores independentemente de cargos, função ou nível
hierárquico, além do compromisso
da cooperação entre todos os envolvidos na direção da satisfação de
todos os clientes da organização
(BRESSER PEREIRA, 1999).
Bresser Pereira (1996) assinala
que o Programa veio estimular novos esforços no sentido da busca da
melhoria da qualidade da ação governamental, em especial as com
foco na redução de custo e na melhoria na qualidade do atendimento prestado ao cidadão. Como instrumento desta empreitada, sugere
a adoção de um modelo referencial
de administração pública gerencial,
que funcione como sinalizador para
as organizações públicas que desejem a gestão por excelência.
De acordo com Mendes (2000), a
qualidade, no contexto aqui estabelecido pela temática das Gestões
Públicas, é um modelo de gestão inovador, que tem como objetivo aumentar a produtividade, reduzir os custos, obter a satisfação do cliente e elevar a competitividade. “A qualidade, na sua essência, é uma forma de
gerenciar uma organização” (MORGAN; MURGATROYD, 1994, p. 38)
e, em decorrência disso, confundese com o próprio conceito de política de gestão.
Monteiro (1991) assinala que, tratando-se de órgãos e empresas da
administração governamental, o benefício final consiste na melhoria da
qualidade de vida da sociedade.
Pode-se afirmar, seguindo as vias
desse pensamento, que a qualidade
da gestão implica na qualidade de
vida de uma sociedade.
A gestão pela qualidade e a gestão por resultados constituem uma
prescrição gerencialista (FISHER,
2003). A Gestão da Qualidade é um
modelo que revolucionou a Administração, de acordo com o método
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desenvolvido pelo americano W.
Edwards Deming, adotado pela indústria japonesa no período do pósguerra, em 1950. Outros autores contribuíram para construir a estrutura
e a história do Total Quality Management (TQM), tais como Ishikawa,
Crosby, Feigenbaun e Juran.
O instrumental deste processo
definido no programa brasileiro é a
certificação. No contexto da gerência de processos, este expediente é
de fundamental importância para a
classificação do grau de qualidade
e eficácia desses processos, funcionando como “selo de qualidade”
pelos resultados obtidos e pela garantia de continuidade na produção
dos mesmos padrões alcançados
(BRASIL, 1997). Esta metodologia
viria a ser amplamente defendida
inclusive no objeto de pesquisa deste trabalho.
Por meio do Programa, espera-se
melhorar a Qualidade dos Serviços
Públicos produzidos no Brasil, além
de apoiar o processo de mudança
cultural burocrática para uma cultura gerencial. A finalidade última é
a melhoria da qualidade de vida do
cidadão. Afinal, como ressalta Monteiro, “[...] qualidade total significa,
em última instância, qualidade de
vida”. Em resumo, é preciso concentrar esforços em cada uma das etapas: “[...] qualidade do processo;
qualidade do que é processado; qualidade de resultados; qualidade de
quem processa; qualidade de vida
para quem usufrui” (MONTEIRO,
1991, p. 152).
Para Mendes (2000), no setor de
serviços e, em particular, na Administração Pública, o enfoque gerencial é de grande importância para a
qualidade. Neste setor, a qualidade
depende muito dos executantes da
ação e dos que sofrem a ação – o cidadão. Sendo assim a qualidade
deve ser vista transformando o cidadão agora em usuário. Como também cita Kettl (1998), o Estado passa
a atender às necessidades do cidadão e não à conveniência burocrática. A exemplo de todo o mundo, os
cidadãos reclamam de filas intermináveis, atendimento descortês e de
regras arbitrárias.
Decorrentes dos movimentos re-
formistas, os programas da qualidade na gestão pública ainda despertam discussão acerca de dois dilemas. O primeiro diz respeito ao impulso de organizar os governos para
que funcionem melhor e custem menos. As táticas comumente utilizadas orientam-se por interesses de
curto prazo, eventualmente atrelados à lógica dos processos eleitorais,
o que torna ainda mais difícil melhores resultados a longo prazo. O
segundo dilema está relacionado
com a necessidade da busca de resultados bons e rápidos, concomitantemente com os cortes orçamentários inerentes aos esforços de ajuste
fiscal. Isto tem, freqüentemente, impedido melhorias de desempenho
mais significativas, com destaque
para os processos contínuos de mudanças, que exigem recursos substanciais para a sua implementação,
além do envolvimento de um grande número de atores neste processo
(KETTL, 1998, apud SPINK, 1999).
Metodologia
Para avaliação do desempenho e
resultados do Programa e verificação do seu alinhamento com os preceitos da Reforma do Estado em curso no País, foi realizada uma pesquisa de campo, durante o segundo
semestre de 2004. Nessa ocasião o
programa já contava com mais de
quatro anos de instituído, contemplando mais de 1.500 licitações com
a observância das exigências do
QUALIOP. Assim, esta pesquisa investiga os possíveis ganhos de produtividade desde a contratação até
a execução das obras, fazendo um
levantamento da presença e do uso
de instrumentos de controle destinados a garantir a melhoria de resultados nas obras contratadas a partir
do dia 1º de dezembro de 2001.
Desta forma, foram realizadas
entrevistas estruturadas com ocupantes de cargos estratégicos nas
organizações contratantes e executoras que participam do QUALIOP.
As questões foram elaboradas usando a escala de Likert, para classificar de maneira direta as respostas
dos entrevistados, facilitando assim
a sua tabulação e interpretação. As
entrevistas versaram sobre aspectos
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objetivos e subjetivos referentes aos
ganhos de qualidade nos procedimentos ligados à contratação e à execução das obras públicas, desde os
aspectos formais, gerenciais até os
resultados concretos da implementação do programa.
Para a avaliação dos resultados
do QUALIOP, foram adotadas quatro dimensões de análise. A primeira refere-se à percepção e ao cumprimento dos prazos estabelecidos
para cada fase dos dois processos –
contratação e execução. A segunda
trata da presença e evolução dos
itens de controle desenvolvidos pelo
programa, identificando ocorrências de desvios e problemas de operação. A terceira dimensão caracteriza-se pelo nível de satisfação e pelo
atendimento de expectativas dos
contratantes quanto ao resultado final da obra. A quarta e última está
relacionada com a redução dos custos das respectivas obras.
As entrevistas foram efetuadas
com empresas e instituições que participaram ou foram afetadas de maneira decisiva pelo programa QUALIOP. Vale salientar que em todos os
casos, as pessoas entrevistadas foram selecionadas em função dos cargos de direção e controle que exerciam nas organizações a que pertenciam. Foram executadas 60 entrevistas, sendo 35 delas com os executantes e o restante com os contratantes.
Até o dia 17 de novembro de 2003,
data da última atualização dos registros do QUALIOP, o Programa
contava com um total de 578 empresas qualificadas em diversos níveis
evolutivos e setores, indicando uma
boa adesão da cadeia produtiva ao
Programa.
Resultados da Pesquisa
Os resultados obtidos através
desta pesquisa são a seguir apresentados, tendo por base as quatro dimensões analisadas através da aplicação do questionário: cumprimento de prazos, itens de controle, atendimento à sociedade e redução de
custos.
No que tange ao cumprimento de
prazos, a redução do tempo gasto e
o atendimento de padrões nessas
atividades é fundamental para evo-
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
71
lução de todo o processo. Esse resultado é muito importante para as atividades de governo. É sabido que a
administração pública é reconhecidamente lenta na execução de suas
atividades, e evoluções desse comportamento podem indicar que os
esforços de reforma estão surtindo
efeito e trazendo mudanças para
esse ambiente organizacional.
Apesar de 72% de todos os entrevistados declararem que as datas do
processo de contratação não foram
respeitadas, 74% dos entrevistados
declararam que houve evolução no
processo de contratação com a implantação do QUALIOP, principalmente com a adoção do edital-padrão de licitação. A Figura 1, a seguir, ilustra melhor este resultado.
Os executantes e contratantes
apontaram a melhor seleção de empresas autorizadas a participar dos
processos de compra como um dos
maiores benefícios gerados pelo
QUALIOP. Em contrapartida, a má
qualidade dos projetos foi indicada
como a principal responsável pelo
atraso no processo de contratação e
execução das obras. É necessário
destacar que uma melhor seleção de
empresas também pode significar
ganhos, tanto na reforma do Estado
como na melhoria da qualidade de
seus processos. As decisões de contratação de governo se baseavam nas
práticas burocráticas ou no atendimento de interesses particulares,
sem uma atenção maior para medir
a competência do contratado ou avaliar os resultados finais da contratação (BRASIL, 1995).
Foi destacada também a dificuldade de caixa do Estado para tocar
as obras de forma conveniente. Nesse caso, a falta de recursos para a execução de obras já contratadas, como
assinalado por Osborne e Gaebler
(1994), demonstra que o governo ainda decide em cima de componentes
políticos transitórios. A visão de curto prazo e os diversos projetos executados simultaneamente impedem que
essas obras tenham o abastecimento
de recursos necessários para a sua
conclusão no tempo esperado, sem
trazer prejuízos à sua execução.
Nas atividades ligadas ao controle das obras, os resultados foram
72
Figura 1 – Gráfico sobre o cumprimento de prazos de contratação execução de obras.
Fonte: Elaboração própria.
Figura 2 – Gráfico sobre a contribuição para a melhoria nas práticas de
controle e execução das obras públicas.
Fonte: Elaboração própria.
bem positivos. Na grande maioria
das empresas e no entendimento dos
contratantes, existe um controle maior dos materiais e dos serviços envolvidos nas obras, conforme demonstra a Figura 2. Alguns entrevistados declaram que esta prática, antes do QUALIOP, era deixada em
segundo plano.
Nesse caso, o QUALIOP foi certamente capaz de trazer mudanças
organizacionais para a cadeia produtiva e o ambiente do governo. A
natureza estratégica e cultural das
mudanças que ocorreram com a implantação e o uso dessas práticas de
controle, mesmo sendo utilizadas
para atender à finalidade de controle documental do programa, indica
significativa evolução na gestão desses dois componentes.
Um resultado positivo na melhoria das práticas de controle sempre
é bem-vindo, principalmente quan-
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
do esses instrumentos, oriundos da
esfera pública, sempre foram enxergados pela sociedade como excessivos e associados a práticas exageradamente burocráticas. A forma consensual como foram implantados
impediu exageros e trouxe o apoio
dos envolvidos, a ponto de ser apontado por eles como um ganho gerado com a implantação do programa.
O poder de compra do Estado foi
utilizado com sucesso na promoção
de avanços de gestão e controle na
cadeia produtiva da construção civil no Estado da Bahia. O QUALIOP
funcionou como verdadeiro indutor
da qualidade e competitividade dessa indústria local.
No aspecto de atendimento à sociedade, abordando as funcionalidades e durabilidade das obras, as
conseqüências não foram animadoras. Segundo a percepção dos entrevistados, o Programa ainda não che-
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Figura 3 – Gráfico sobre a contribuição do QUAILOP para que as obras
atendam melhor a sociedade.
Fonte: Elaboração própria.
Figura 4 – Gráfico sobre a contribuição do QUALIOP para a redução dos
custos das obras públicas.
Fonte: Elaboração própria.
gou a esse nível de envolvimento,
sendo que este aspecto também depende de projetos bem elaborados.
É interessante notar que o novo
gerencialismo público prega um melhor atendimento às demandas da
sociedade e, para isso, a melhoria
desses dois itens das obras públicas
seria um passo importante.
Tanto a durabilidade quanto a
funcionalidade foram aspectos que
não encontraram um posicionamento firme por parte dos entrevistados.
Cabe ressaltar, no entanto, que o
pouco tempo decorrente entre a
implementação das obras avaliadas
e a realização desta pesquisa contribuiu para este nível de desconhecimento. As obras são novas e estes
dois fatores dependem de um maior
intervalo de tempo para que possam
ser analisados. Os resultados são
apresentados na figura 3.
Considerada a relevância destes
preceitos da reforma do Estado, a
aferição da efetividade das ações de
governo e de seu desempenho, associados à implantação de uma cultura gerencial, ainda precisam, neste
caso, de mais tempo para a sua verificação.
A redução de custo, fator de interesse público, determinado pelos
objetivos de eficiência da administração pública gerencial e defendido pelo Plano Diretor de Reforma do
Estado (BRASIL, 1995), foi certamente um ponto avaliado negativamente. Quase a totalidade dos entrevistados respondeu negativamente sobre este aspecto como demonstra a
figura 4. Neste caso, os conceitos debatidos por Abrúcio (1997) quanto a
“fazer mais por menos” ou à “prestação de contas” ainda não são contemplados pelo Programa.
Considerações Finais
O QUALIOP pode ser entendido
como um modelo de gestão inserido
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no processo de reforma do estado. Foi
visto, ao longo deste artigo, que o processo de reforma desenvolvido pelo
governo brasileiro, a partir no Plano
Diretor de Reforma do Estado de 1995,
estava voltado para a consecução de
alguns objetivos. Os principais são:
o aumento da governança e governabilidade, dotando o governo de maior eficiência e eficácia, a redução do
tamanho do estado, focando-o nas
ações que lhe são próprias, a transferência de algumas das ações do governo central para os outros membros
da federação e a assimilação de práticas gerenciais mais efetivas.
O modelo de gestão pela qualidade utiliza-se de princípios inovadores, em que se procura efetuar a
redução de custos, o aumento da
produtividade e a conseqüente diminuição de eventuais desperdícios. O
foco central desse programa é a satisfação dos clientes e a conseqüente melhoria da competitividade. A
Qualidade Total no ambiente governamental está associada à melhoria
de atendimento ao cidadão. Neste
caso, é totalmente compatível com os
mandamentos da Reforma do Estado. Estes e outros princípios centrais
da Gestão pela Qualidade, como o
incremento dos mecanismos de controle, foram medidos na pesquisa de
campo, e comparados com os resultados alcançados com a implantação do QUALIOP.
Em especial, foram registrados
importantes aperfeiçoamentos nas
práticas de execução e controle das
obras, mesmo que, eventualmente, o
cumprimento dos mandamentos do
QUALIOP sejam encarados por alguns como o mero atendimento a
condicionantes burocráticos, mantendo as empresas aptas a participar dos certames licitatórios. Outro
ganho importante está relacionado
com a melhoria do processo de
contratação das obras. Mesmo com
um alto percentual de entrevistados
declarando que os prazos não atenderam à sua expectativa, um grande
contingente também declarou que
houve avanços significativos, principalmente no que se refere às atitudes relacionadas com a padronização de processos.
Não obstante, observou-se que o
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
73
efetivo atendimento aos anseios do
cliente final do QUALIOP, o cidadão, ainda não pode ser constatado.
É prematuro afirmar qualquer coisa
sobre as funcionalidades e durabilidade das obras ou aos custos de
manutenção relacionados. Além disso, o modelo de contratação que privilegia só o preço, como ainda é o
caso das obras públicas, não contribui para o incremento desses aspectos. Sendo assim, é difícil estabelecer considerações sobre a utilidade
das obras. Isto ainda não é objeto do
Programa e sem dúvida não existe,
dentro do escopo de suas atividades,
resultados que demonstrem evolução nesse sentido. Os resultados
menos favoráveis, no entanto, estão
ligados à variável custo. O programa QUALIOP ainda não foi capaz
de reduzir o gasto do governo com
essa atividade, tanto na execução
quanto na manutenção. Não foi possível identificar efetivamente progressos nesta área.
Adicionalmente, cabe observar
que a dificuldade financeira que o
governo local atravessou durante o
período em exame parece ser apontada como a maior responsável pelo
não cumprimento de prazos das
obras e pela manutenção de práticas ainda fora dos padrões da gestão pela qualidade. Por fim, cabe ressaltar que o QUALIOP mostrou-se
mais presente como instrumento de
controle de processos, o que reflete
mais diretamente as premissas do
modelo burocrático de gestão pública, e menos efetivo na obtenção de
resultados finais, compatíveis com
as diretrizes da administração pública gerencial. Tratando-se, porém,
de um programa relativamente recente, talvez seja necessário um mai-
or prazo de maturação para que os
seus resultados finais sejam alcançados. Com a continuidade e evolução deste modelo de gestão, ensejando a gradativa prevalência dos princípios gerais da gestão da qualidade entre contratantes e executantes
de obras públicas no Estado da Bahia,
é esperado um progressivo atendimento aos seus propósitos precípuos, estendendo os seus benefícios
à sociedade.
Constata-se, portanto, através
desta pesquisa, a elevada dificuldade para o efetivo estabelecimento de
um estado gerencial, capaz de orientar-se por seus objetivos finais e
de afastar-se de uma tradição burocrática que impõe limites objetivos a
sua condição de eficácia e eficiência. Não obstante, reflete também a
crescente prioridade concedida à
construção de programas voltados
para tal, o que nos permite esperar
melhores resultados em um futuro
não muito distante.
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74
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
ESTRUTURA DE MERCADO E PADRÕES DE
CONCORRÊNCIA: BARREIRAS À ENTRADA NO
SETOR DE SUPERMERCADOS EM SALVADOR
Cláudio Damasceno Pinto1
Resumo
O artigo realiza uma análise estrutural do setor de supermercados
em Salvador, apresentando considerações teóricas, legais e mercadológicas, relativas ao nível de rivalidade, aos padrões de concorrência,
concentração do mercado, níveis de
barreiras à entrada, e levantamento
das técnicas de defesa da concorrência utilizada pelos órgãos regulatórios, numa tentativa de compreender as razões para a fraca penetração das grandes cadeias de varejo
internacional e nacional no mercado relevante de Salvador, em função
do amplo processo de expansão, adoção de estratégias competitivas e
internacionalização vigente no setor
de supermercados. Neste sentido,
são apresentadas as condições concorrenciais, efetivas e potenciais do
referido mercado relevante, na tentativa de obter informações e estabelecer relações de causalidade que
possam identificar e responder aos
questionamentos acima apresentados. Para tanto, torna-se imprescindível analisar o contexto na qual estão inseridas as empresas supermercadistas de Salvador, a partir do estudo das forças estruturais que
condicionam as estratégias e o comportamento das firmas atuantes nesta indústria.
Palavras-chave: Entrantes potenciais;
Barreiras à entrada; Concentração do
mercado, Mercado relevante; Oligopólio; Estrutura de mercado.
level of rivalry, to the competition
patterns, market concentration, level
of barriers to new entrances and a
presentation of the competition
defense techniques used by the regulatory organs, in an attempt to understand the reasons for the weak penetration of the big chains of national
and international retail in the relevant market of Salvador, regarding
the ample process of expansion,
adoption of competitive strategies
and internationalization in vigor in
the supermarket sector. This way, it
is presented herein effective and
potential competition conditions of
the referred relevant market, in the
attempt to obtain information and
establish causality relationships
which can identify and respond the
questions presented above. In order
to do that it is essential to analyze
the context in which the supermarket
firms in Salvador are inserted, from
the study of structural forces which
condition the strategies and the
behavior of the acting firms in this
industry.
Key-words: Potential newcomers; Barriers to entrance; Market concentration;
Relevant market; Oligopoly; Market
structure.
1. Introdução
Neste artigo pretende-se analisar
a estrutura de mercado e os padrões
de concorrência vigentes no setor de
supermercados em Salvador, a partir das tendências de internacionali-
Abstract:
This article presents a structural
analysis of the supermarket sector,
presenting theoretical, legal and
market considerations related to the
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
zação do varejo. Neste sentido, inicialmente são feitas considerações e
apresentados alguns fatos estilizados que condicionam o processo evolutivo e das transformações estruturais ocorridas na indústria de supermercados nos últimos tempos. Com
essas referências procura-se estabelecer uma análise do mercado relevante do setor supermercadista em
Salvador, definindo-se a dimensão
do produto e o mercado geográfico,
que fazem parte do raio de abrangência desta indústria2 em Salvador.
Complementarmente, faz-se uma
revisão da literatura de alguns aspectos concernentes à rivalidade e aos
padrões de concorrência nos mercados e sua aplicabilidade no setor de
supermercados em Salvador para, a
posteriori, considerando-se as técnicas utilizadas pela SEAE (Secretaria
de Acompanhamento Econômico) e
pelo CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) na avaliação de práticas anticompetitivas, verificar se existe nexo causal entre o
nível de concentração do setor supermercadista de Salvador e as barreiras à entrada de novas firmas.
Neste contexto, são apresentados
alguns aspectos que constituem fatores determinantes e explicativos da
rivalidade no setor de supermercados no Brasil, utilizando-se como
referencial teórico a literatura de
Organização Industrial (visão microeconômica) e da Legislação Brasileira Antitruste (pareceres da Se-
1
Economista –FCE-UFBA, Especialista em Finanças –EPGE-FGV e Mestrando em Análise Regional –
UNIFACS, Coordenador do Curso de Gestão Mercadológica e Professor da disciplina Economia e
Mercado dos Cursos de Graduação Tecnológica da IBES. Email: [email protected];
Telefone (71) 9967 2521
2
Conceito da microeconomia, caracterizado pelo conjunto de firmas atuantes num mesmo mercado.
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
75
As operações
do setor varejista,
tradicionalmente, se
caracterizavam por
atributos pouco
difundidos, reduzido
poder de mercado, pouca
disputa concorrencial e
competências gerenciais
limitadas...
cretaria de Acompanhamento Econômico sobre atos de concentração e
defesa da concorrência no setor
supermercadista brasileiro e análise
econômica de práticas ou condutas
limitadoras da concorrência, fundamentada na Lei n° 8.884, de 11 de
junho de 1994). Esses trabalhos são
fortemente influenciados pela corrente neo-schumpeteriana da firma, vertente do pensamento econômico que
direciona seus estudos para as questões relacionadas à competitividade
nos mercados, sobretudo em estruturas oligopolísticas, destacando também aspectos da teoria da firma e da
regulação econômica.
uma grande parcela do mercado,
sendo capaz de gerenciar a distribuição dos produtos que negociavam. Essas grandes operações de
varejo, tendo em vista a concentração de mercado estabelecida, deslocaram o poder de mercado do fornecedor para o varejista (DIB, 1997).
Assim, na década de noventa, o
setor supermercadista ganha importância, ocorrendo uma transferência
de poder da indústria para o varejo.
Algumas cadeias de supermercados
têm superado, em tamanho ou em
faturamento, diversas firmas do setor industrial, consideradas, ao longo da história, como as principais
responsáveis pelo crescimento das
economias capitalistas. O tamanho
crescente das cadeias de varejo estimulou as estratégias de expansão
internacional, de tal maneira que as
receitas obtidas nos mercados domésticos e a própria magnitude das
transações realizadas permitiram o
desenvolvimento de competências
gerenciais específicas, capaz de alavancar a internacionalização das
grandes empresas do referido setor.
O varejo internacional, portanto,
deixou de ser algo impulsionado
apenas pelas limitadas perspectivas de crescimento doméstico. Do
ponto de vista das firmas, a internacionalização passou a se constituir numa oportunidade de expansão da base operacional para novos mercados, nos quais, os produtos e serviços são valorizados
por uma intocada base de consumidores, possibilitando maiores
economias de escala e incremento
dos lucros (DIB, 1997, p.4).
2. Principais aspectos e condicionantes do varejo brasileiro
As operações do setor varejista,
tradicionalmente, se caracterizavam
por atributos pouco difundidos, reduzido poder de mercado, pouca
disputa concorrencial e competências gerenciais limitadas. O setor
industrial dominava e coordenava
toda a cadeia produtiva, de tal maneira que, aos varejistas, cabiam apenas a função de agente intermediário entre a indústria e o mercado, repassando para os consumidores os
produtos que ali chegavam.
Esta situação começou a ser modificada pelo poder emergente das
grandes cadeias de varejo como a
Sears, nos Estados Unidos, ou a
Marks & Spencer na Inglaterra que,
em âmbito nacional, dominavam
76
O aprofundamento da internacionalização, sobretudo no Brasil,
provocou profundas transformações
na estrutura do mercado nacional e
no interior das firmas, que estavam
acostumadas a uma concorrência
doméstica, muitas vezes regional,
apresentando atributos pouco sofisticados, sem muita inovação, e estrutura administrativa baseada na
gestão familiar. Com a entrada de
redes estrangeiras no setor as cadei-
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
3
as varejistas nacionais sentiram a
necessidade de se adequar ao novo
cenário competitivo que se configurava já no início da década de noventa.
Nos últimos anos, o número de
fusões3 e aquisições no varejo de alimentos cresceu rapidamente e o mercado brasileiro vem sendo uma das
alternativas para o aumento da participação externa. O crescimento externo está associado a estratégias de
diversificação, tendo em vista a penetração em mercados pouco explorados, mas com amplo potencial a
ser desenvolvido, conjugada a própria necessidade de conseguir economias de escala e escopo.
Desde o começo da década de
1990, com a entrada do grupo varejista Wal- Mart, até os dias atuais,
percebe-se profundas transformações que influenciam diretamente
na configuração e dinamismo do
setor supermercadista no Brasil. A
chegada deste grupo no Brasil
pode ser considerada como uma
terceira revolução no mercado, semelhante à introdução do auto-serviço na década de 1950 com a rede
Peg-Pag, do grupo Pão de Açúcar
e a chegada dos hipermercados
Carrefour na década de setenta
(PINTO, 2000 p.5).
A concentração do capital, fundamentada no processo de globalização econômica, reduz o número de
firmas atuantes no mercado, estimulando a competição entre as empresas “sobreviventes” que, em geral,
possuem vantagens absolutas de
custo, aporte financeiro, maiores
economias de escala e vantagens de
diferenciação de produtos e serviços. Por outro lado, a diminuição de
empresas na indústria através de
fusões e aquisições das redes menores pelas empresas competitivas do
mercado cria barreiras à entrada de
novos concorrentes e, conseqüentemente, permite a formação de oligopólios bastante concentrados.
Assim, como os investimentos em
modernização e expansão demandam muitos recursos, a abertura de
capital e associação com empresas
A fusão se caracteriza pela união de duas ou mais empresas, formando uma grande firma, cujo
controle administrativo geralmente é designado pela maior empresa (envolvida no processo) ou
para a organização melhor posicionada economicamente (SANDRONI, 1999).
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
estrangeiras são algumas das estratégias que vem sendo adotada pelas
redes domésticas. Para as empresas
estrangeiras, a penetração em mercados internacionais via aquisição
ou fusão é mais vantajosa, pois acelera o conhecimento do mercado e
dos hábitos dos consumidores, adquirindo uma rede ou participando
de uma firma já estabelecida no mercado, sem a necessidade de incorrer
em vultosos custos de publicidade e
propaganda na divulgação e fidelização da marca.
Da mesma forma, esse processo
de associação facilita a exploração
de sinergias, a conquista de market
share e a entrada em novos mercados, no qual as empresas adquiridas possuíam significativas participações, superando rapidamente a
etapa, em geral demorada, de cultivar o nome, fidelizar os clientes e,
principalmente, formar canais de
distribuição e suprimento.
No caso do setor de supermercadista brasileiro, a luta competitiva encontra-se diretamente associada a globalização da concorrência
que impôs dificuldades e desafios
para as redes domésticas que tiveram de realizar grandes investimentos ou alianças estratégicas para
manter e ampliar seu posicionamento no mercado. Neste contexto, existe uma relação de causalidade entre
o processo de internacionalização e
a formulação de estratégias na indústria de supermercados, mostrando que são as estruturas de mercado
que condicionam as decisões de investimento das firmas. No tocante ao
setor supermercadista, são as forças
estruturais do mercado que determinam a conduta das empresas no interior da indústria.
As modificações provocadas nas
estruturas da indústria de supermercados no Brasil, a partir da concentração do varejo, culminando com o
número cada vez maior de firmas estrangeiras disputando o mercado
com as redes nacionais, tem estabelecido um ambiente seletivo, no qual
somente as firmas bem posicionadas,
com maior disponibilidade de fundos para a expansão, condutoras de
inovações organizacionais e tecnológicas, conseguem permanecer no
mercado.
A dimensão da concorrência é o
parâmetro que orienta e condiciona os movimentos competitivos
das firmas rivais e o próprio funcionamento da economia capitalista. O esforço relevante para a análise da concorrência não se constitui num elemento estático, sendo
constantemente redelineado, a partir da evolução da indústria e conseqüentemente das transformações
ocorridas no comportamento dos
agentes econômicos, os quais, de
acordo com o cenário econômico,
estabelecem novas metas, táticas e
estratégias (POSSAS, 1999, p.69).
A estrutura de mercado se constitui num fator importante na análise
da decisão de investimento da firma,
principalmente em indústrias extremamente concentradas, nas quais as
empresas podem utilizar o investimento em capital fixo para impedir a
entrada de novos competidores no
mercado, ou seja, o investimento pode
ser utilizado como uma fonte de barreira à entrada. Assim, as inversões
em capital fixo pode sinalizar para
as entrantes potenciais que as firmas
estabelecidas estão dispostas a retaliar a entrada de qualquer novo concorrente (OREIRO, 1997).
Em nível regional, percebe-se
uma maior competição entre as empresas localizadas no Centro-Sul do
país através de uma vigorosa disputa por consumidores. Redes como
Carrefour, Pão de Açúcar e Wal-Mart
adotam estratégias ousadas para
atrair compradores em suas lojas,
envolvendo até guerra de preços entre as firmas varejistas. Entretanto,
as armas usadas nesta disputa não
se resumem apenas a preços e promoções, existindo atributos como a
qualidade no atendimento aos clientes, automação e modernização das
lojas, criação e expansão de novos
formatos de lojas e facilidade nas
formas de pagamentos.
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
3. Estrutura do setor de supermercados no mercado relevante de Salvador
No Estado da Bahia, mais precisamente em Salvador, grande centro
varejista, não se verifica muita competição entre as redes varejistas. O
reduzido número de grandes cadeias existentes e a própria concentração do Bompreço nesta área impedem o desenvolvimento de uma
maior competitividade e movimentos estratégicos agressivos em busca de novos consumidores.
Neste sentido, a análise estrutural da indústria de supermercados
em Salvador permite identificar um
mercado caracterizado por um oligopólio4 concentrado e com pequenas
franjas (formada por pequenas lojas
de vizinhança que não possuem os
mesmos atributos das principais redes pertencentes ao mercado relevante), existindo a presença de firmas estrangeiras, a exemplo do WalMart, cuja entrada foi realizada via
aquisição da rede Bompreço em
2004, sem provocar grandes alterações na estrutura de mercado vigente em função de que, nesta transação, houve apenas a mudança do
agente econômico.O processo de concentração deste setor em Salvador
não se constitui num movimento recente, sendo estabelecida ao longo
do tempo, onde o Bompreço adentrou neste mercado comprando a
rede Paes Mendonça5 e a posteriori
promoveu, a partir de estratégias
empresarias e influenciada pelo processo de concentração dos mercados, um movimento de expansão,
adquirindo firmas médias locais
como o PetiPreço, além da firma G.
Barbosa que possuía uma loja nesta
cidade.
Esse processo de concentração
estabelecido pelo Bompreço em Salvador produz dois efeitos sobre o
4
Tipo de estrutura de mercado na qual poucas empresas detém o controle da maior parcela do mercado. Reflete a tendência à concentração da propriedade em poucas empresas de grande porte, pela
fusão entre elas, incorporação ou eliminação das pequenas firmas (por compra, dumping e outras
práticas restritivas. Tipo de mercado caracterizado pela existência de barreiras à entrada, na qual as
firmas atuantes normalmente competem via diferenciação do produto ou vantagem de custo, apresentando economias de escala, acesso aos canais de distribuição e não há perfeita mobilidade dos fatores
de produção. (SANDRONI, 1999).
5
Na década de 1980, a rede de supermercados Paes Mendonça dominava cerca de 80% do setor de
supermercados em Salvador.
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
77
aspecto concorrencial e competitivo
do setor supermercadista soteropolitano, tendo em vista que a aquisição
de empresas locais (ainda que não
possuam o porte da firma líder, competiam em determinadas áreas geográficas da cidade compreendida
pelo mercado relevante) impede a
penetração de potenciais entrantes
e ao mesmo tempo elimina um concorrente, o qual foi absorvido no processo de aquisição.
Ao analisar as estratégias empresariais adotadas pelo Bompreço nos
últimos tempos, observa-se que esta
empresa mantém uma posição defensiva em relação à concorrência,
na medida em que possui crescimento restrito a região nordeste, não
se expandindo a outras áreas do
país, para disputar novos consumidores. Assim, além de não atuar em
outros mercados, o Bompreço possui condições de estabelecer barreiras estruturais à entrada de novas
firmas que possam ocupar sua liderança, seja através de economias de
escala, vantagens de custo ou até
mesmo pelo poder da marca, fidelizando clientes.
Desta forma, como até então não
existe grande rivalidade entre as redes no mercado soteropolitano, é
correto afirmar que as decisões de
investimento do Bompreço estão diretamente condicionadas aos movimentos dos entrantes potenciais que
sinalizam uma provável penetração
no setor supermercadista nordestino. Entretanto, a inexistência de outras grandes e médias redes de supermercados disponíveis para a realização de fusão ou aquisição por
parte de uma grande cadeia varejista nacional ou internacional, bem
como a concentração de mercado
exercida pelo Bompreço, dificulta a
entrada de novas firmas no mercado relevante de Salvador.
Definido como o menor grupo de
produtos e/ou serviços e a menor área
geográfica necessária para que uma
suposta firma esteja em condições de
impor aumentos de preço, o mercado
relevante se constitui num atributo
crucial para a análise dos efeitos
anticompetitivos potenciais de operações que impliquem concentração
de mercado e/ou condutas pratica-
78
das por empresas que se supõem detentoras de poder de mercado, cujo
exercício abusivo incumbe à legislação antitruste e às agências de defesa
da concorrência, estabelecendo mecanismos regulatórios que visam assegurar o bem-estar econômico6.
Na determinação do mercado relevante7 da cidade de Salvador, utilizamos as orientações e os parâmetros adotados pela SEAE (Secretaria de Acompanhamento Econômico do Governo Federal) nos pareceres sobre atos de concentração do
setor de supermercados. Este tipo de
comércio varejista é conhecido como
de auto-serviço ou auto-atendimento, em que o consumidor escolhe os
produtos que deseja adquirir, que se
encontram acondicionados em gôndolas, e efetuam o pagamento diretamente nos caixas (BRASIL, 2004).
Neste sentido, caracteriza-se um
supermercado como um estabelecimento que apresenta suas principais
áreas de vendas constituídas de
mercearia, bazar e perecíveis, cerca
de 1.500 a 5.000 itens em exposição;
de 3 a 40 check-outs8 e mais de 300m²
de áreas de vendas e um faturamento
anual acima de R$ 1 milhão de reais;
enquanto que um hipermercado é
definido como a unidade em que
suas principais seções de vendas são
constituídas de mercearia, bazar, perecíveis, têxteis e eletrodomésticos,
compreendendo mais de 5.000 itens
em exposição, mais de 40 check-outs
e mais de 5.000 m² de áreas de vendas e um faturamento anual de no
mínimo R$ 12 milhões de reais
(BRASIL, 2003).
O horizonte de análise estudado
é o setor de super e hipermercados,
de modo que o conceito de lojas de
vizinhança, mercearia, feiras, açougues e correlatos, ainda que possam
representar uma concorrência parcial com o referido setor, não fazem
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
parte do mercado relevante. Isto porque, o tipo de consumo que se pratica nesses pequenos estabelecimentos, via de regra, é o de conveniência, na qual são realizadas pequenas compras que suprem necessidades imediatas, de tal maneira que os
consumidores não podem efetuar o
mesmo tipo de compra integrada proporcionada pelo supermercado ou
hipermercado, se defrontado, portanto, com uma situação de substitutibilidade incompleta ou de menor
grau (BRASIL, 2003).
Do ponto de vista do espaço geográfico, o mercado relevante de Salvador, compreende uma população
de 2.443.107 habitantes, de acordo
com dados do IBGE em 2000, distribuídos numa área de 325 km², caracterizada por uma população com
diferentes faixas de renda. Do ponto
de vista estratégico, as lojas de supermercados apresentam localizações privilegiadas, existindo uma
estratégia de segmentação de mercado em função de determinadas localidades, fundamentado na demanda e no perfil do consumidor.
Partindo de uma percepção menos restritiva, em 2003, a SEAE definiu para o mercado relevante de Salvador a hipótese de que o consumidor típico desloca sua demanda em
direção a outros estabelecimentos
situados em um raio de 5 Km, a partir do ponto médio da área de concentração das lojas, tendo em vista
que segundo esses estudos, essa é a
distância máxima capaz de motivar
o deslocamento do consumidor, uma
vez que corresponde ao raio de influência de um hipermercado, conforme tabela 1.
A análise dos dados acima, conjugada com a concentração do setor
de supermercados soteropolitano,
favorecida também pelo processo de
aquisição de redes médias e peque-
6
Por essas razões, a finalidade da política de defesa da concorrência é assegurar condições estruturais para o adequado funcionamento dos mercados, preservando a livre iniciativa dos agentes
econômicos. Em última análise, o controle de concentrações deve restringir-se a evitar a formação
de estruturas de mercado capazes de gerar prejuízos à eficiência econômica e/ou ao bem-estar
social (BRASIL, 2004).
7
Cabe destacar que o conceito de poder de mercado afeta diretamente a própria delimitação do
mercado relevante, tendo em vista que o mesmo é definido como um lócus (produto/região) em que
o poder de mercado possa ser hipoteticamente exercido, de tal maneira que as elasticidades-preço
da demanda e da oferta são os principais fatores dessa delimitação.
8
Caixas, pontos de vendas onde são registradas as mercadorias vendidas aos consumidores.
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Tabela 1 -– Dimensões típicas da área de influência de supermercados
Tipo de loja
Supermercado pequeno
Supermercado grande
Hipermercado
Nº de check-outs
De 03 a 19
De 20 a 39
40 ou mais
Área de influência (Km)
1.8
2.5
5.0
Fonte: SEAE, 2003
nas na cidade de Salvador, nos últimos cinco anos, sobretudo por parte
do Bompreço, possivelmente, afetou
o comportamento do consumidor, no
sentido de que antes das operações
de compra e venda, a exemplo dos
negócios envolvendo a rede PetiPreço
e G. Barbosa, o cliente tinha a opção
de realizar suas compras nas referidas firmas, no Bompreço e nos concorrentes, e após as mesmas, o cliente passou a ter uma opção a menos,
encontrando-se, a partir daí, em pior
situação. Do mesmo modo, com 45
lojas espalhadas pela cidade, a rede
de supermercados Bompreço domina a indústria de Salvador, de tal maneira que só existe competição em pequenos espaços compreendidos pelo
mercado relevante.
A competição em preços é um elemento fundamental no setor supermercadista, visto que o consumidor,
ao efetuar suas compras, costuma
fazer suas escolhas sobre a economia que, potencialmente, pode realizar. A acentuada rivalidade entre
os concorrentes no que tange à competição em preços favorece ao bemestar social e econômico dos consumidores. Entretanto, no mercado relevante de Salvador, a intensidade
da rivalidade é relativamente baixa,
não existindo guerra de preços entre as redes, que apresentam participações desiguais no mercado. Presente em quase todos os estados nordestinos, o Bompreço é líder absoluto em Salvador e não há grandes
competidores para disputar o mercado em igualdade de forças.
Outro fator fundamental que influencia a rivalidade, é o grau de diferenciação do produto ou serviço
criado pelas estratégias das empresas. No setor supermercadista, a diferenciação se constitui numa estratégia convergente entre as firmas, as
quais investem cada vez mais no
marketing voltado para os clientes,
otimização da área de vendas,
melhorias na qualidade do atendimento, ampliação das formas de crédito, que se constituem em atributos
importantes para conquista de novos consumidores (PINTO, 2000).
A partir de uma perspectiva dinâmica, o desempenho no mercado
e a eficiência produtiva decorrem da
capacitação acumulada pelas firmas, que, por conseguinte, reflete as
estratégias competitivas adotadas
em função de suas percepções quanto ao processo concorrencial e ao
meio ambiente no qual estão inseridas. Os padrões de concorrência9 são
influenciados pelas características
estruturais e comportamentais do
ambiente competitivo da firma, sejam as referentes ao setor (mercado
de atuação), sejam relacionados ao
próprio sistema econômico (FERRAZ et alii, 1995).
O setor supermercadista de Salvador, ao longo dos anos, não tem
sido alvo das grandes cadeias varejistas nacionais e internacionais, as
quais tem realizado pesados investimentos para disputar fatias do
mercado brasileiro. Isto porque, em
função do grande participação
exercida pelo Bompreço nesta cidade, historicamente, não há grande
interesse das empresas em adentrar
neste mercado. Além da falta de espaço físico, a consolidação do Bompreço em quase todas as áreas do
mercado relevante tem inibido supostas tentativas de potencias entrantes
nesta região.
4. Concentração do mercado
A concentração do mercado é
uma condição necessária para determinar a possibilidade estrutural de
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
existência de poder de mercado. A
literatura econômica define que o
poder de mercado é função crescente da concentração, em função da
possibilidade de maior colusão e
domínio do setor. Entretanto, esta
relação de causalidade não se constitui numa condição suficiente para
a verificação do exercício do poder
de mercado, existindo outras variáveis e métodos de avaliação para a
comprovação efetiva de práticas
anticompetitivas por parte de uma
determinada firma. Do mesmo modo,
acredita-se existir uma correlação
positiva entre a concentração do
mercado e os níveis de barreiras à
entrada como instrumentos de inferência e análise da existência efetiva de poder de mercado.
De acordo com Possas et alii
(1998), uma condição adicional decisiva para a avaliação do poder de
mercado é o nível das barreiras à
entrada, apesar de não ser mensurável diretamente. Afirma-se que na
ausência de barreiras à entrada, por
exemplo, se não houver custos irrecuperáveis numa indústria, não é
possível fixar preços acima dos custos de forma persistente e significativa. Desta forma, o nível das barreiras à entrada se constitui numa
variável fundamental de análise
antitruste, não apenas para atos de
concentração (fusões e aquisições),
horizontais e verticais, como também para condutas, já que a sua
presença constitui um segundo fator necessário, ainda que não suficiente, para o exercício de poder de
mercado.
A Secretaria de Acompanhamento Econômico do Governo Federal
através do embasamento legal do
Art. 20 da Lei 8.884/94 define critérios para identificar se a concentração gera o controle de parcela de
mercado elevada:
• considera-se que uma concentração gera o controle de participação de mercado suficientemente
alta para viabilizar o exercício
unilateral do poder de mercado
9 Os níveis de competição em indústrias concentradas podem se alterar como resultado de modificações nas posições relativas das firmas. O corolário deste processo é a diminuição do número de
firmas atuantes no mercado, realização de fusões, joint venture e aquisições entre firmas independentes, de modo que apenas as maiores empresas sobrevivem na arena competitiva (KON, 1994).
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
79
sempre que resultar numa participação igual ou superior a 20%
do mercado relevante;
• admite-se que uma concentração
gera o controle de parcela de mercado suficientemente alta para
viabilizar o exercício coordenado
do poder de mercado sempre que:
a concentração tornar a soma da
participação de mercado das quatro maiores empresas (C4) igual
ou superior a 75%; a participação
da nova empresa formada for
igualou superior a 10% do mercado relevante.
De acordo com Possas et alii
(1998), uma estrutura de mercado
somente será eficiente, do ponto de
vista da maximização do bem estarsocial, se a entrada for possível, sendo impedida apenas pela política
de preços das empresas presentes
no mercado. Neste sentido, a eficiência da estrutura de mercado
dependerá do nível das barreiras à
entrada 10 e a saída na indústria,
ou seja, de seu grau de contestabilidade 11.
De acordo com (FARINA, 1990
apud BASSO; SILVA, 2000, p. 1):
Considera-se um mercado como
sendo contestável, quando não
houver barreiras à entrada nem
custos à saída (sunk-costs) para as
firmas que eventualmente nele desejem ingressar. As empresas nele
atuantes não estão protegidas de
eventuais entradas do tipo hit and
run, firmas de fora que, atraídas
por lucros extra-econômicos desse
mercado, nele ingressem e obtenham lucro, isso ocorrendo antes
que as firmas estabelecidas tenham tempo de sair do negócio ou
mesmo alterar seu preços. Para que
um determinado mercado seja contestável, é necessária a maior
homogeneização possível dos produtos e o livre acesso aos métodos
de produção para todos os produtores, que devem ter acesso à mesma tecnologia e possuírem a mesma demanda de mercado.
Tabela 2 – Participação (nº de lojas) das principais redes no Mercado Relevante
de Salvador
Empresa
Bompreço
Companhia Brasileira de Distribuição
Hiper Ideal
Atakarejo
Super Monteiro
Perini Delicatessen
Makro –Atacadista S/A
Atacadão
Ebal – Cesta do Povo
Ponto Verde Supermercado
G. Barbosa
Mercantil Rodrigues
Total
Participação
de mercado (%)
45
3
2
1
1
3
2
1
7
3
01
01
64,29
4,29
2,86
1,43
1,43
4,29
2,86
1,43
10,00
4,29
1,43
1,43
100,00
Nota: Elaboração própria, a partir dos dados divulgados pela SEAE (2003) e pela
ABASE 12 em 2005.
sições e considerações podem ser
feitos em relação às firmas atuantes
no setor de supermercados em Salvador e ao potencial destas empresas em estabelecer uma competição
mais vigorosa com as principais redes atuantes neste mercado, sobretudo em relação ao Bompreço, conforme se observa na tabela 2.
Neste sentido, a rede de supermercados Extra, bandeira pertencente a Companhia Brasileira de Distribuição, maior empresa do setor de
supermercados do Brasil, poderia
estabelecer uma disputa mais acirrada com o Bompreço, mas em função do reduzido número de lojas
desta firma em Salvador (apenas 3
unidades), verifica-se que a disputa
concorrencial com o Bompreço apresenta um reduzido efeito. Do mesmo modo, apesar da boa infra-estrutura da empresa Atakarejo e das inserções publicitárias na mídia televisiva realizadas por esta firma, operando com prazos longos e aceita-
A análise das firmas atuantes no
setor supermercadista de Salvador,
permite observar a desproporção do
mercado em termos de market share,
demonstrando uma dificuldade de
se implementar uma maior rivalidade inter-firmas e uma maior competição neste mercado. Algumas supo-
80
Nº de lojas
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
ção de cheques pré-datados em suas
vendas, a sua atuação em Salvador
com apenas uma loja, não consegue
rivalizar com o Bompreço que possui uma grande quantidade de lojas
nesta cidade.
Em relação à rede Perini, as três
lojas que esta firma possui no mercado relevante em questão é considerada uma parcela muito baixa, e
apesar de estarem revestidas de características especiais (segmentação
de mercado, marcas próprias, operando fundamentalmente para um
consumidor com perfil de renda elevado, infra-estrutura razoável), pertence uma rede local, com operações
restrita a cidade de Salvador, não
possui porte para rivalizar com as
maiores redes pertencentes a esta
indústria. No tocante às redes Makro
(duas lojas), Atacadão 13 (1 loja) e
Mercantil Rodrigues (1 loja), podese afirmar que as mesmas detém uma
parcela muito pouco expressiva do
mercado, fundamentadas no sistema
10
A depender da magnitude das barreiras à entrada e da elasticidade-preço da demanda, uma firma
pode exercer o seu poder de mercado praticando preços além dos níveis competitivos (preços acima
do custo médio de produção), auferindo lucros supra-normais, sem tornar convidativa a entrada de
novas firmas no mercado.
11
No tocante a política antitruste, na década de 80 foi criada a teoria dos mercados contestáveis,
estabelecendo condições nas quais uma determinada estrutura de mercado pode apresentar desempenho competitivo nos preços (conduta) e nos custos (eficiência) apenas sob a ameaça de
entrada da concorrência potencial. Ver POSSAS, 2002.
12
Associação Baiana de Supermercados
13
Cabe salientar que a 2ª loja do Atacadão localiza-se no município de Lauro de Freitas, não fazendo
parte do mercado relevante de Salvador.
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
atacadista, superando as vendas no
varejo, de tal maneira que as mesmas não tem condições de competir
em igualdades de condições com o
Bompreço (BRASIL, 2003).
Além dos concorrentes mais expressivos já mencionados, verificase a presença de outras duas redes,
quais sejam Ponto Verde e Cesta do
Povo-Empresa Baiana de Alimentos
S/A (EBAL). A empresa Ponto Verde, rede varejista de pequeno porte,
conta três lojas, em toda a cidade de
Salvador, possuindo em suas lojas
de 6 a 7 check–outs. O reduzido tamanho da rede e das respectivas lojas denotam as limitações do Ponto
Verde14 em termos de competição no
mercado considerado, concluindose pela sua incapacidade de plena
concorrência com a firma líder desta indústria (BRASIL, 2003).
Do mesmo modo, a rede Cesta do
Povo apresenta-se como uma alternativa de compras, fundamentalmente para clientes com perfil de
baixa renda, ainda que nos últimos
tempos tenha diversificado o seu mix
de produtos e a aceitação de cartões
de crédito para a realização de compras. Sendo assim, o pequeno porte
de suas lojas, combinado ao tipo de
estratégia comercial pouco agressiva da empresa, não credencia esta
firma como um concorrente efetivo
no mercado relevante de Salvador
(BRASIL, 2003).
Neste sentido, percebe-se uma
elevada participação do Bompreço15
no setor de supermercados e hipermercados em Salvador e uma incapacidade das empresas concorrentes disputarem o mercado em condições equilibradas com esta empresa.
Desta forma, cabe correlacionar o
nível de concentração do mercado e
a existência de barreiras à entrada
nesta indústria, fato que pode sinalizar para o exercício do poder de
mercado e adoção de práticas anticompetitivas vis-à-vis consumidores
e fornecedores.
O principal fator estrutural a afetar o grau de coordenação das condutas das empresas estabelecidas é
o nível de concentração da produção e das vendas, visto ser razoável
supor que comportamentos colusivos serão mais facilmente implementados quando um reduzido número de firmas domina o mercado.
Em mercados concentrados, a intensidade da concorrência potencial,
inversamente proporcional à magnitude das barreiras à entrada existentes, é um elemento crucial na determinação do desempenho observado.
(PINTO, 2000).
Neste sentido, Possas (1990) destacou o consenso dos teóricos do
paradigma Estrutura-Conduta- Desempenho em utilizar a concentração
econômica como elemento básico da
estrutura do mercado e a intensidade das barreiras à entrada como um
elemento chave do poder de mercado
das firmas oligopolísticas e codeterminante do nível de preços, destacando que é possível estabelecer
relações e generalizações teóricas
entre preços e barreiras à entrada.
Para Bain (1958), citado por Gonçalves (2003) a condição de entrada16
de uma firma no mercado pode ser
definida como o estado de concorrência potencial de possíveis novos
produtores/vendedores, podendo
ser avaliada pelas vantagens que as
firmas estabelecidas possuem sobre
os competidores potenciais, sendo
que estas vantagens se refletem na
capacidade de elevar persistentemente os preços acima do nível competitivo sem atrair novas firmas para
a indústria em questão. Do mesmo
modo, uma entrada consiste no estabelecimento de uma nova empresa que constrói ou introduz uma
nova capacidade produtiva em uma
indústria/mercado. A ameaça de
entrantes em um mercado depende
das barreiras à entrada existentes,
conjugada a reação que o novo con-
5. Barreiras à entrada
Por barreiras à entrada entendese como qualquer fator em um mercado que ponha um potencial competidor eficiente em desvantagem,
em relação aos agentes econômicos
estabelecidos.
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
corrente pode esperar dos competidores já estabelecidos.
Segundo Bain (1958) citado por
Gonçalves (2003), Porter (1986) e baseando-se nos estudos da Secretaria
de Acompanhamento Econômico
(BRASIL, 2003), as principais fontes
de barreiras à entrada são:
• custos irrecuperáveis (sunk costs)
– Se constituem em custos que não
podem ser recuperados quando a
empresa decide sair do mercado.
A extensão dos sunk-costs depende principalmente em função do
grau de especificidade do uso do
capital; da existência de mercados
para máquinas e equipamentos
usados; da existência de mercado
para o aluguel de bens de capital;
de volume de investimentos necessários para garantir a distribuição do produto (gastos com
promoção, publicidade e formação da rede de distribuidores);
• diferenciação de produtos – Caracterizado pelo controle de acesso a tecnologia para projetar produtos por parte das firmas já atuantes no mercado; elevados gastos com propaganda e vendas
para garantir a fidelidade dos clientes, impondo aos potenciais
entrantes elevadas despesas para
tornar seu produto conhecido e
aceito no mercado; reputação da
empresa perante os consumidores
através da durabilidade e complexidade dos produtos; acesso a canais de distribuição que limitam
a utilização de determinadas formas de acesso ao consumidor
para novos concorrentes; A diferenciação, portanto, estabelece
uma barreira à entrada, exigindo
que as firmas entrantes incorram
em custos elevados de publicidade, serviços, para superar os vínculos dos clientes junto às firmas
fixadas no mercado;
• economias de escala – Se constituem numa forma de barreiras à
14
O Ponto Verde recentemente passou a integrar a Redemix, uma aliança estratégica estabelecida por
pequenos supermercados, com a finalidade de obter maior economia de escala nas compras e
poder de negociação junto aos fornecedores, além de tentar fortalecer o poder da marca.
15
Market Share (participação relativa) calculado baseado no número de lojas estabelecido no mercado
relevante de Salvador.
16
Sendo assim, a compra do Bompreço pelo Wal-Mart em 2004 não se configura como uma entrada,
tendo em vista que se constituiu num processo de aquisição de uma firma já estabelecida nesta
indústria.
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
81
A necessidade
de investir altos recursos
financeiros em tecnologia
e marketing para competir
em igualdade de
condições com as
empresas atuantes cria
uma barreira à entrada de
novas firmas...
entrada, pois a sua utilização exige que as empresas entrantes adentrem em larga escala, arriscandose a uma forte reação das firmas
existentes ou ingressem no mercado em pequena escala, incorrendo
em desvantagens de custo;
• necessidade de capital – A necessidade de investir altos recursos
financeiros em tecnologia e marketing para competir em igualdade de condições com as empresas
atuantes cria uma barreira à entrada de novas firmas, sobretudo
se o capital for utilizado em atividades arriscadas e irrecuperáveis,
tais como publicidade e pesquisas em P & D;
• custos de mudança – Custos enfrentados pelo comprador quando muda de fornecedor. São considerados custos de mudança, os
custos auferidos de um novo treinamento dos empregados, custo
de implementação de uma nova
tecnologia, novo equipamento auxiliar, custos psíquicos de desfazer um relacionamento, havendo,
portanto, custos de transação exante e ex-post. A elevação destes
custos, exige que as firmas entrantes ofereçam um aperfeiçoamento
considerável em custo ou desempenho, de modo que o comprador
decida abandonar um produtor já
fixado na indústria;
• acesso aos canais de distribuição
– Torna-se uma fonte de barreira
à entrada, dada a necessidade da
empresa entrante de garantir a
distribuição de seus produtos. Admitindo-se que os canais de dis-
82
•
•
•
•
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
tribuição da indústria já estão
sendo utilizados pelas firmas atuantes, a recém-chegada organização precisa convencer os canais a
aceitarem seus produtos através
de descontos, verbas para campanha publicitária, etc., o que reduz
o lucro e inibe a entrada das empresas no mercado;
desvantagens de custo independentes de escala – As firmas atuantes podem ter vantagens de custos (know-how, localização estratégica, subsídios governamentais,
utilização da curva de aprendizagem, etc.) irrecuperáveis pelas
empresas entrantes, independentes do tamanho e das economias
de escala das mesmas, se constituindo numa barreira à entrada;
política governamental - O governo tem o poder de regular, limitar
ou impedir a entrada de firmas
numa indústria, defendendo os
interesses sociais, impedindo práticas oportunistas e anticompetitivas por parte dos agentes econômicos, que possa afetar o funcionamento dos mercados, bem como
evitar atos de concentração que
possibilitem a criação de empresas monopolistas em determinado setor;
localização estratégica – proximidade dos consumidores (enfatizada pelo cliente em sua decisão
de escolha de um determinado
estabelecimento para realizar
suas compras) e fornecedores (redução de custos de transportes,
agilidade no processo de logística
e necessidade mínima de acumular estoques). Neste sentido, em
cidades com escassez de terrenos
(vazios ou ocupados), o preço da
localização tende a ser elevado, se
constituindo numa barreira à entrada;
fidelidade dos consumidores –
Caracteriza-se como uma importante fonte de barreira à entrada
no setor supermercadista, na medida em que os consumidores incorrem em custos ao mudarem de
supermercados, condição que
gera um efeito de aprisionamento
(lock-in) dos consumidores nas
redes estabelecidas. Associa-se
também a indisposição do consu-
midor de se locomover para outras lojas, aos hábitos e costumes,
localização das gôndolas onde
estão os produtos nas lojas em que
determinados clientes costumam
realizar suas compras, ou até mesmo imagem ou reputação que se
tem da firma;
• ameaça de retaliação por parte
das firmas atuantes no mercado –
As empresas pertencentes à indústria podem baixar seus preços
e mantê-los, por no mínimo um
ano, em níveis inferiores aos vigentes antes da entrada. Este movimento pode sinalizar para às
potenciais entrantes que as oportunidades de vendas serão inferiores àquelas que vigoram atualmente, impedindo e/ou dificultando a entrada.
A partir destas considerações teóricas apresentadas em relação aos
principais tipos de barreiras à entrada é possível identificar e correlacionar tais atributos com algumas
características observadas no setor
de supermercados em Salvador. Assim, os principais tipos de barreiras
à entrada identificados no mercado
relevante de Salvador via concentração do mercado são:
• economias de escala – associadas
à racionalização da estrutura de
logística, tendo em vista que o
maior volume de vendas permite,
por exemplo a centralização do
abastecimento das lojas em um
único centro de distribuição, incorrendo em redução de custo.
Ademais, a existência de um centro de distribuição e o processo de
automação do setor de supermercados permitem às redes aumentar a área de vendas das lojas, ocupando espaços que normalmente
se destinam aos estoques de mercadorias. Neste sentido, o Bompreço possui uma vantagem competitiva em relação à concorrência e
isto pode inibir a entrada das principais redes de varejo em Salvador, na medida em que esta empresa possui um centro de distribuição nesta cidade, como também investe cada vez mais no processo de automação de suas lojas;
• diferenciação do serviço – Através do atributo de desenvolvimen-
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
to de marcas próprias, o Bompreço
estabelece a diferenciação da marca em relação à concorrência, conquistando a lealdade do consumidor e realizando uma integração vertical para trás, estabelecendo concorrência com firmas posicionadas à montante da cadeia
produtiva. Por outro lado, o Bompreço pode ser caracterizado como
um comprador com forte poder de
negociação junto aos fornecedores, tendo em vista o seu tamanho
e a escala de compras que realiza.
O desenvolvimento de programas
de fidelização17 pode ser entendido como uma estratégia de marketing, na medida em que permite a
segmentação do mercado, bem
como a escolha do mix de produtos que serão oferecidos num determinado mercado ou numa loja
específica;
• necessidade de elevados investimentos em capital – Pertencente a
maior rede de varejo do mundo, o
Bompreço possui acesso a fontes
de capital de modo a promover o
seu processo de expansão e consolidação do mercado, exercendo
a sua liderança e dificultando a
penetração de novas empresas
nesta indústria. Num setor em
que as condições de crescimento
imponham a necessidade de consideráveis economias de escala,
as firmas estabelecidas podem
considerar lucrativo acumular
uma quantidade de capital suficiente para tornar não lucrativa a
entrada de uma nova firma no
mercado, conseguindo, com isso,
manter seus lucros a um nível
mais alto do que obteriam caso
permitissem a entrada de um novo
competidor (OREIRO, 1997).
Localização estratégica – se constitui numa barreira à entrada tendo
em vista a escassez de terrenos adequados para a instalação de empreendimentos da magnitude de um supermercado ou hipermercado, tendo em
vista a característica estratégica deste atributo, como também o fato de
grande maioria das lojas das firmas
já atuantes no setor supermercadista
em Salvador possuírem localizações
privilegiadas e definidas em função
do perfil do consumidor.
Desta forma, apenas no sentido
Norte da cidade (região compreendida pela avenida Paralela, no sentido do Aeroporto), é possível encontrar disponibilidades de terrenos,
dificultando a penetração via construção de unidades próprias neste
mercado. A liderança absoluta e o
tamanho ocupado pelo Bompreço
em Salvador se constituem, portanto, em entraves ao desenvolvimento
e a consolidação de forma agressiva
de grandes cadeias (tais como Carrefour, Pão de Açúcar, etc) nesta região,
sendo que todas estas empresas estão acostumadas a disputar a liderança dos mercados em que operam,
possuindo elevadas participações
nas regiões Centro-Sul do Brasil.
A grande diferença das participações relativas das empresas neste
mercado e a eficiente logística do
Bompreço, possuindo lojas em diversos bairros da cidade de Salvador,
todas localizadas estrategicamente
para atender os mais variados segmentos da sociedade, dificultam o
desenvolvimento e a inserção de
novas empresas neste mercado.
Face à inexistência de redes atrativas para a aquisição em Salvador,
as empresas entrantes no referido
mercado, terão que adquirir redes
menores, ou construir unidades próprias, o que requer pesados investimentos em marketing para conquistar clientes (que podem de constituir
em sunk costs, custos irrecuperáveis,
para determinada firma), podendo
ainda incorrer em retaliações dos
principais competidores. Além disso, existe a possibilidade de recusa
dos consumidores, que estão acostumados com as bandeiras locais18,
sobretudo com a marca Bompreço,
que possui forte identidade junto aos
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
consumidores de Salvador, se constituindo também numa barreira à
entrada.
6 Conclusões
O presente trabalho ao analisar a
estrutura de mercado e os padrões
de concorrência vigentes no setor de
supermercados em Salvador, tem
como finalidade entender, analisar
e fomentar a discussão sobre as razões pelas quais as grandes redes de
supermercados nacional e internacional, tendo em vista o processo de
expansão e de internacionalização
dos mercados, não conseguem penetrar de forma agressiva no setor de
supermercados em Salvador, estabelecendo uma competição mais vigorosa com a firma Bompreço.
Neste sentido, o alto grau de concentração do mercado, a elevada
participação do Bompreço nesta indústria e as barreiras à entrada existentes constituem condições necessárias, contrariando, inclusive o Art.
20 da Lei 8884/94, porém não suficientes para configurar o exercício
do poder de mercado no setor de
supermercados em Salvador.
Uma das justificativas que a literatura econômica relativa ao tema
deste trabalho admite para o elevado tamanho e concentração de uma
determinada firma é o grau de eficiência decorrente do ato de concentração. De acordo com a Secretaria
de Acompanhamento Econômico
(BRASIL, 2003), tais eficiências apresentadas devem ser específicas da
operação, não podendo ser obtidas
de outra forma menos restritiva à
concorrência, que não por intermédio da operação. Do mesmo modo,
as eficiências devem derivar tão somente de economias reais, devendo
17
Em 1996, o Bompreço criou o Bomclube, um sistema de premiação à fidelização dos clientes, no qual
os consumidores recebem uma bonificação (o cliente junta os pontos e depois troca por mercadorias, sendo que cada um Real em compras vale um ponto). Esta estratégia além de se constituir numa
fonte de barreiras à entrada (a partir do fortalecimento da marca), possibilita a formação de um
banco de dados com as informações específicas de cada consumidor, se constituindo num processo
de customização. Com isso, é possível identificar o perfil da demanda e a freqüência de cada cliente
na realização de compras, podendo desenvolver um posicionamento específico para cada segmento-alvo (PINTO, 2000).
18
O atributo da fidelidade da marca é tão significante para o Bompreço em relação aos consumidores
que mesmo após ser vendido para o Wal-Mart, esta firma adotou a estratégia de manter a bandeira
Bompreço, aproveitando o poder da marca fortemente consolidada no mercado de Salvador, além
do elevado custo de mudança que teria que incorrer, mesmo se tratando da maior rede de varejo do
mundo.
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
83
ser apresentadas de forma clara e
precisa, como também compensar os
efeitos anti-competitivos resultantes
da concentração, gerando eficiências consideráveis.
Como forma de caracterizar e
exemplificar as considerações acima
mencionadas explicitaremos abaixo
algumas eficiências apresentadas
pela Secretaria de Acompanhamento Econômico relativa ao setor de
supermercados em Salvador, decorrente do ato de concentração nº
08012006976/01-58 referente à aquisição do Bompreço/Royal Ahold
(BR Participações e Empreendimentos S/A dos ativos operacionais e
estoques do G. Barbosa & Cia Ltda,
tais como: Economia de escala, economias de escopo, transferências de
melhores práticas e de melhores
tecnologias, aumento do número de
produtos oferecidos e criação de um
poder de mercado compensatório
por meio de utilização de marcas
próprias, melhorias da qualidade de
produtos e serviços ofertados e geração de externalidades positivas
(BRASIL, 2003).
Cabe salientar que a análise do
referido ato, bem como do parecer da
SDE (Secretaria de Direito Econômico) nº 08012005104/99-51 relativo à
aquisição pelo Bompreço de seis estabelecimentos comerciais do PetiPreço, permite concluir que as informações apresentadas pelas firmas
envolvidas nas operações não foram
suficientes para comprovar que as
eficiências previstas não poderiam
ser obtidas de outra forma que não
através da concentração (eficiências específicas do ato), caracterizando-se como dados insuficientes e
vagos, sem apresentar justificativa
técnica plausível para a viabilidade
das operações. Entretanto, apesar
das restrições, ambas as transações
foram aprovadas pela SEAE (Secretaria de Acompanhamento Econômico e pelo CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica),
após a apresentação, por parte do
Bompreço, firma adquirente, de estudos técnicos detalhados certificados por auditores independentes.
Tais documentos possuem caráter
confidencial, não sendo de fácil acesso, nem tampouco se encontram dis-
84
poníveis ao público na internet.
Sendo assim, tendo em vista as
considerações, características e particularidades inerente aos setor
supermercadista de Salvador apresentadas neste trabalho, fundamentada na concentração do mercado e
na existência de barreiras à entrada,
configura-se que a identificação de
tais variáveis no mercado relevante
de Salvador limitam a conduta de
potenciais concorrentes e o próprio
desempenho das firmas rivais, seja
em razão do seu reduzido porte e ou
da pequena participação relativa
(market share) que exercem em relação ao Bompreço (líder do setor).
O fator mais preocupante, é que
algumas empresas incluídas no cálculo da participação do mercado
pelo nº de lojas, a exemplo da Cesta
do Povo e da firma Ponto Verde, não
reúnem todas as características do
mercado relevante de supermercado
e hipermercado de Salvador, sendo
acrescentados na pesquisa tão somente porque exercem parcialmente
concorrência (substitutibilidade de
menor grau) com o Bompreço, de tal
maneira que a concentração do setor, considerando-se apenas as redes de super e hipermercados conforme definição da Secretaria de
Acompanhamento Econômico (2003),
deve apresentar índice ainda mais
elevado.
Por essas razões, se faz necessário à realização de uma ampla e minuciosa pesquisa com a finalidade
de verificar, de forma técnica e empírica, se existe excessiva concentração de mercado sem a existência de
eficiências econômicas que compensem ou suplantem tal condição, favorecendo a probabilidade do exercício do poder de mercado de forma
unilateral ou coordenada, ou se o
oligopólio concentrado verificado
neste setor se adequa às especificidades técnicas e mercadológicas
referentes a esta indústria em Salvador (aplicação do princípio da razoabilidade).
BASSO, L. F. C.; SILVA, M. R. Reflexões sobre a Regulamentação. RAC, v.
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Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
85
ÁREAS URBANAS DEGRADADAS: RELAÇÕES
COM A GESTÃO DOS RESÍDUOS SÓLIDOS
Generoso de Angelis Neto1
Bruno Luiz Domingos de Angelis2
Paulo Fernando Soares3
Resumo
A Agenda 21, apresentada na
Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente em 1992 (RIO 92),
apresenta três condições básicas
para a correta gestão dos resíduos
sólidos: reduzir, reciclar e reutilizar.
Dentro dessa premissa busca-se discutir alguns conceitos relacionados
ao tema “resíduos sólidos” num contexto voltado para a análise geográfica. Neste enfoque geográfico procura-se relacionar os resíduos sólidos com o planejamento e recuperação de áreas urbanas, principalmente decorrentes dos impactos ambientais derivados da gestão incorreta
destes resíduos. Destacam-se quais
assuntos são de interesse do futuro
licenciado em Geografia e de que forma estes conceitos podem ser analisados. Assim, têm-se alguns pontos
que devem ser de conhecimento deste futuro profissional, alicerçado em
aspectos técnicos, como normas e
conceituações, na busca da construção do conhecimento geográfico.
Palavras chave: Resíduos sólidos
urbanos; Práticas pedagógicas; Recuperação de áreas degradadas.
Abstract
Agenda 21, presented in the
Conference of the United Nations on
Environment in 1992 (RIO 92), presents three basic conditions for the
correct management of the solid
residues: to reduce, to recycle and to
reuse. Inside of this premise one
searchs to argue some concepts
related to the subject “solid residues” in a context directed toward
the geographic analysis. In this
geographic approach it is looked to
relate the solid residues with the
86
planning and recovery of urban
areas, mainly decurrent of the ambient impacts derivatives of the
incorrect management of these residues. Which subjects are distinguished are of interest of the future
permitted in Geography and of that
it forms these concepts can be analyzed. Thus, one has some points that
must be of knowledge of this professional future, based in aspects technician, as norms and conceptualizations, in the search of the construction of the geographic knowledge.
Key words: Urban solid residues;
Practical pedagogical; Recovery of
degraded areas.
Introdução
O modo de vida dominante nos
dias atuais, influenciado pela propaganda e pelo consumismo, tem
levado a uma apropriação nunca
antes vista em termos de sobrecarga
ambiental, em busca de matériasprimas exauríveis, em um espaço de
tempo bastante curto. Novas tecnologias produzem novos tipos de resíduos, cada vez mais inorgânicos,
que tendem a aumentar seu tempo
de contaminação do meio até que
retorne à natureza, de onde geralmente são extraídos. O aumento da
densidade demográfica que vem
ocorrendo nas últimas décadas nos
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
grandes centros urbanos (principalmente naqueles de países em desenvolvimento) em conseqüência do
êxodo rural ou crescimento vegetativo da população (maior longevidade) faz com que estas áreas necessitem, cada vez mais, de ações voltadas ao saneamento do meio, ou seja:
abastecimento e distribuição de
água, eliminação de águas servidas
e destinação adequada dos resíduos sólidos.
A correta gestão dos resíduos
sólidos esbarra numa série de fatores como a inexistência de uma política federal de limpeza pública e as
descontinuidades administrativas.
A ausência de uma política abrangente em todas as esferas do poder
(federal, estaduais e municipais) faz
com que ocorra a degradação ambiental em áreas urbanas, ocasionando densidades demográficas
elevadas, diversidade de atividades
e funções incompatíveis nas cidades
além da carência de áreas para disposição adequada dos resíduos.
Neste sentido, se faz necessário conhecer os principais aspectos envolvidos na gestão dos resíduos sólidos e suas implicações sobre o meio
ambiente, nas etapas de coleta,
transporte e destino final.
Classificação dos resíduos
Entende-se aqui por “resíduo”
1
Prof. Dr do Departamento de Engenharia Civil e dos Programas de Pós-graduação em Engenharia
Urbana e em Geografia – Mestrado – da Universidade Estadual de Maringá/PR. Vice-Diretor do
Centro de Tecnologia da Universidade Estadual de Maringá. E/mail: [email protected]
2
Prof. Dr do Departamento de Agronomia e dos Programas de Pós-graduação em Engenharia Urbana e em Geografia – Mestrado – da Universidade Estadual de Maringá/PR. Vice-Diretor do Centro
de Ciências Agrárias da Universidade Estadual de Maringá;
3
Prof. Dr do Departamento de Engenharia Civil e dos Programas de Pós-graduação em Engenharia
Urbana e em Geografia – Mestrado – da Universidade Estadual de Maringá/PR. Chefe do Departamento de Engenharia Civil da Universidade Estadual de Maringá.
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Quadro 1 – Classificação dos resíduos
Fonte: ANGELIS NETO (1999)
tudo aquilo que é descartado durante um processo produtivo, execução
de uma atividade ou consumo, mas
que pode agregar valor ou ser utilizado em outra função. Já o termo
“lixo” será entendido como aquilo
que já não tem função e não se agrega valor econômico. O quadro 1 apresenta uma classificação geral dos
resíduos de acordo com diversas
características que os mesmos podem possuir, fornecendo um panorama amplo de como pode-se classificar os resíduos.
Para normalizar estes conceitos,
definições e classificações, existem
uma série de normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), resoluções do CONAMA
(Conselho Nacional do Meio Ambiente), portarias da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitá-
ria), além de normas e decretos federais e estaduais. Com relação às responsabilidades de gestão destes resíduos, somente aqueles domiciliares, comerciais e públicos são de responsabilidade do poder público
municipal. Os demais são dos geradores.
O nível de vida da população, o
grau de industrialização dos alimentos, os hábitos da população e fatores sazonais influenciam a quantidade e a composição dos resíduos
domiciliares gerados. Estas variações interferem diretamente nas rotinas de gestão dos mesmos, dificultando-as e gerando alguns transtornos para a população quando não
resolvidas a tempo. O mesmo podese dizer com relação aos resíduos
públicos, que sofrem influência direta da arborização das vias públi-
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
cas, dos hábitos culturais da população de uma localidade e também
da qualidade e conservação dos
logradouros públicos.
Dentro deste enfoque, há que se
destacar algumas dificuldades decorrentes da própria gestão, dentre
as quais pode-se citar, além da
inexistência de política federal de
limpeza pública, as limitações financeiras, ausência de capacidade técnica (recursos humanos não qualificados), descontinuidades políticoadministrativas (tanto entre as três
esferas de poderes públicos – federal, estaduais e municipais – como
entre uma gestão e outra) e a falta de
controle ambiental, sem considerar
as falhas operacionais decorrentes
de cada uma das etapas de gestão
dos resíduos: coleta, transporte e
destino final dos mesmos.
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
87
Caracterização dos resíduos
Entre as diversas caracterizações
existentes para os resíduos sólidos
apresentaremos a seguir aquela que
melhor representa o aspecto geográfico que aqui se pretende, ou seja,
relacionada com a forma de produção dos mesmos. Assim, destaca-se
na seqüência os resíduos de construção e demolição, os resíduos de
serviço de saúde, os resíduos industriais, os resíduos agrícolas, os resíduos domésticos ou domiciliares, os
resíduos comerciais e os resíduos
públicos.
Resíduos de Construção e Demolição
(RCD)
Sob esta denominação, encontram-se os resíduos decorrentes da
construção, reforma, demolição e reparos nas obras de construção civil.
Com uma produção diária média
em torno da metade de todos os resíduos produzidos nas cidades, representam um grave problema ambiental, principalmente devido a seu
grande potencial inerte, ou seja, sua
dificuldade em ser re-absorvido pelo
meio ambiente e sua forma inadequada de disposição (fundos de vales, terrenos baldios e áreas degradadas).
Na busca de uma correta gestão
dos mesmos, ou seja, sua utilização
para outros fins, atividades especiais devem ter lugar no próprio canteiro-de-obras. Estas atividades devem se concentrar na separação destes em caçambas independentes e
individualizadas, como as que recolhem cerâmicas vermelhas, argamassas, vidros e cerâmicas esmaltadas,
concretos, pedras, areias e metais
além daqueles produtos descartados
como “lixo”, entre os quais destacam-se o gesso e resíduos de limpeza dos canteiros-de-obras. Esta separação deve-se ao fato de como estes resíduos de construção e demolição serão utilizados, se em forma de
agregados miúdo ou graúdo, ou
como materiais que devem apresentar elevada resistência estrutural.
Entre as vantagens de se proceder a reciclagem dos RCD’s, destacam-se: redução do consumo de recursos naturais, proteção ao meio
ambiente, economia na aquisição de
88
matéria-prima, redução de áreas necessárias para aterro, redução da
geração de poluição, redução no consumo de energia e redução no preço
de produtos, entre outros.
Um outro aspecto que merece
destaque é a utilização destes produtos reciclados como material utilizável em tecnologias apropriadas,
alternativas ou de baixa renda, visando o aspecto social de políticas
públicas urbanas. Assim, utilizando-se mão-de-obra local (geralmente não qualificada) pode-se implantar medidas de melhoria urbana em
áreas mais pobres ou degradadas da
cidade, aliando-se melhorias da qualidade ambiental com medidas de
amplo alcance social. Dentre os produtos reciclados que podem ser utilizados, após processamento em usinas apropriadas, destacam-se: blocos, painéis, briquetes, tubos, placas,
meios-fios, elementos pré-moldados
vários, além da confecção de concreto não-estrutural in loco. Além destas utilizações, tem-se ainda a diminuição do passivo ambiental decorrente das atividades de construção
civil.
Resíduos de Serviço de Saúde (RSS)
A Resolução RDC nº 33 da ANVISA define como geradores de RSS
todos os serviços que prestem atendimento à saúde humana ou animal,
incluindo os prestadores de serviço
que promovam os programas de assistência domiciliar, serviços de
apoio à preservação da vida, indústrias e serviços de pesquisa na área
de saúde, hospitais e clínicas, serviços ambulatoriais de atendimento
médico e odontológico, serviços de
acupuntura, tatuagem, serviços veterinários destinados ao tratamento
da saúde animal, serviços de atendimento radiológico, de radioterapia
e de medicina nuclear, serviços de
tratamento quimioterápico, serviços
de hemoterapia e unidades de produção de hemoderivados, laboratórios de análises clínicas e de anatomia patológica, necrotérios e serviços onde se realizem atividades de
embalsamamento e serviços de medicina legal, drogarias e farmácias,
inclusive as de manipulação, estabelecimentos de ensino e pesquisa
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
na área de saúde, unidades de controle de zoonoses, indústrias farmacêuticas e bioquímicas, unidades
móveis de atendimento à saúde e
demais serviços relacionados à saúde, humana e animal, que gerem resíduos perigosos. De uma maneira
mais coloquial, são aqueles resíduos que apresentam riscos físicos,
químicos ou biológicos sobre a saúde do ser humano, gerados em estabelecimentos como hospitais, laboratórios, farmácias, clínicas, hospitais veterinários, portos, aeroportos
e outros locais em que possa haver
riscos de transmissão de doenças.
Estes resíduos devem ser gerenciados de forma adequada em todas
as etapas envolvidas: geração, acondicionamento, armazenamento, coleta, transporte, tratamento e destino final, através da elaboração de um
Plano de Gerenciamento de Resíduos de Serviços de Saúde – PGRSS.
Este Plano constitui-se num conjunto de procedimentos de gestão, planejados e implementados a partir de
bases científicas e técnicas, normativas e legais, com o objetivo de minimizar a produção de resíduos e proporcionar aos resíduos gerados um
encaminhamento seguro.
Os resíduos dos serviços de saúde podem ser classificados, segundo a Resolução RDC nº 33/2003 da
ANVISA, em:
• Resíduos do Grupo A – Potencialmente Infectantes: Resíduos com
a possível presença de agentes biológicos que, por suas características de maior virulência ou concentração, podem apresentar riscos de infecção;
• Resíduos do Grupo B – Químicos:
Resíduos contendo substâncias
químicas que apresentam risco à
saúde pública ou ao meio ambiente, independente de suas características de inflamabilidade,
corrosividade, reatividade e toxicidade;
• Resíduos do Grupo C – Rejeitos
Radioativos: São considerados
rejeitos radioativos quaisquer
materiais resultantes de atividades humanas que contenham
radionuclídeos em quantidades
superiores aos limites toleráveis
aos serem humanos, e para os
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
quais a reutilização é imprópria
ou não prevista;
• Resíduos do Grupo D – Resíduos
Comuns: São todos os resíduos
gerados nos serviços abrangidos
por esta Resolução que, por suas
características, não necessitam de
processos diferenciados relacionados ao acondicionamento,
identificação e tratamento, devendo ser considerados como resíduos sólidos domiciliares; e
• Resíduos do Grupo E – Resíduos
Perfurocortantes: São os objetos e
instrumentos contendo cantos,
bordas, pontos ou protuberâncias
rígidas e agudas, capazes de cortar ou perfurar.
Através da RDC nº 33, a ANVISA
estabeleceu que até março de 2004
todos os estabelecimentos que produzem RSS’s deveriam se adequar a
ela. Para a solução deste problema,
os estabelecimentos geradores de
resíduos de serviços de saúde têm
procurado a união de esforços como
saída para a implantação de uma
empresa para o tratamento de seus
resíduos, além da elaboração de seus
Planos de Gerenciamento.
Resíduos Industriais
Segundo ROCCA et al. (1993) resíduos sólidos industriais podem
ser caracterizados como:
os resíduos em estado sólido e semisólido que resultam da atividade
industrial, incluindo-se os lodos
provenientes das instalações de tratamento de águas residuárias,
aqueles gerados em equipamentos
de controle de poluição bem como
determinados líquidos cujas particularidades tornem inviável o seu
lançamento na rede pública de esgotos ou corpos d’água, ou exijam,
para isso, soluções economicamente inviáveis, em face da melhor
tecnologia disponível.
Por um caminho semelhante,
GERBER (1999) define resíduos sólidos industriais da seguinte maneira:
o resíduo industrial é aquele originado das atividades de diversos
ramos da indústria (metalúrgica,
química, petroquímica, papeleira,
alimentícia). O resíduo industrial
é bastante variado, podendo ser representado por cinzas, lodos, óle-
os, resíduos alcalinos ou ácidos,
plásticos, papel, madeira, fibras,
borracha, metal, escórias, vidros e
cerâmica. Nesta categoria, incluise a grande maioria dos resíduos
considerados tóxicos.
A NBR 10.004/87 – Resíduos
Sólidos – Classificação – baseia-se
para classificar os resíduos em listagens de resíduos reconhecidamente
perigosos e listagens padrões de
concentração de poluentes. A partir
destas listagens classifica os resíduos quanto aos riscos potenciais ao
meio ambiente e à saúde pública em
três categorias:
• Resíduos Classe I – Perigosos: São
classificados como resíduos Classe I ou Perigosos os resíduos sólidos ou mistura de resíduos que,
em função de suas características
de inflamabilidade, corrosividade, reatividade, toxicidade e patogenicidade, podem apresentar algum risco à saúde pública, provocando ou contribuindo para um
aumento de mortalidade ou incidência de doenças e/ou apresentar efeitos adversos ao meio ambiente, quando manuseados ou
dispostos de forma inadequada;
• Resíduos Classe II – Não Inertes:
Pertencem a classe dos resíduos
não inertes de Classe II os resíduos sólidos ou mistura de resíduos
que não se enquadram nas especificações definidas para a Classe I
(Perigosos) ou Classe III (Inertes).
Apesar de não se enquadrarem na
categoria de resíduos perigosos,
os resíduos Classe II podem apresentar características como combustibilidade, biodegradabilidade e solubilidade em água; e
• Resíduos Classe III – Inertes: São
classificados como Classe III ou
resíduos inertes os resíduos sólidos ou mistura de resíduos sólidos que, submetidos ao teste de
solubilização, não tenham como
resultado nenhum de seus constituintes solubilizados em concentrações superiores aos padrões
definidos pela NBR 10.004/87.
nas em um município. Podem resultar de atividades agrícolas, como
embalagens de agrotóxicos e restos
de culturas, ou da pecuária, como a
criação de animais confinados.
Com relação às embalagens de
agrotóxicos, é necessária a tripla lavagem destas embalagens antes que
as mesmas sejam encaminhadas ao
fabricante, por força de lei. Quando
manipuladas, é necessário o uso de
equipamentos de proteção individual como luvas e máscaras, para evitar danos à saúde dos operários.
Quando da limpeza dos equipamentos agrícolas após o uso, deve-se
faze-lo em locais específicos para tal,
de forma a não contaminar os mananciais superficiais e o solo.
Os restos de cultura que ficam
sobre o campo após a colheita têm a
função, na maioria dos casos, de fornecer nutrientes e minerais, pela decomposição da matéria orgânica e reabsorção pelo solo. Há que se destacar ainda a função de servir como
barreira física ao desencadeamento
de processos do meio físico, como
erosões e assoreamentos, diminuição da velocidade das águas do escoamento superficial, além de proporcionar uma melhor infiltração
das águas de chuva. Cuidados especiais deverão ser tomados para se
evitar a queima da matéria orgânica
seca que fica sobre o solo, pois a queima compromete a fertilidade pela
perda de minerais e nutrientes presentes no solo.
A pecuária confinada, como a
criação de gado (principalmente em
países europeus) e de aves, gera uma
grande quantidade de resíduos com
elevada carga orgânica. No caso de
aves, a produção de excrementos
vem acompanhado da “cama”, ou
seja, palha de arroz ou outro tipo de
material inerte, que fica sob as gaiolas para acomodar estes resíduos.
Devido à elevada carga orgânica que
estes resíduos geram, necessário se
faz encaminhar o mesmo para uma
destinação que não cause impactos
ambientais, como contaminações e/
ou poluições.
Resíduos Agrícolas
Também conhecidos como resíduos rurais, são aqueles produzidos
fora dos domínios das áreas urba-
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Resíduos Domésticos ou Domiciliares
São aqueles produzidos diariamente nas casas e apartamentos, e
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
89
que se constituem basicamente dos
resíduos provenientes das atividades domésticas. São constituídos
por restos de comidas, embalagens
plásticas e de metais, papéis, ciscos
de varrição, panos e matéria orgânica. São gerados em grandes quantidades diárias, por isso devem ser
removidos periodicamente do interior das casas e apartamentos.
aterro sanitário para disposição
final.
Gestão dos resíduos sólidos
O gerenciamento correto dos resíduos sólidos urbanos apresenta
três etapas bastante características:
a coleta, o transporte e o destino final. Falaremos brevemente sobre
cada uma delas, dando enfoque sobre os resíduos sólidos urbanos.
Resíduos Comerciais
São aqueles gerados em estabelecimentos comerciais e se aproximam bastante das características
dos resíduos domiciliares. Estão relacionados diretamente com as atividades desenvolvidas no estabelecimento, e podem apresentar em sua
constituição: papéis, restos de alimentos, embalagens e matéria orgânica, entre outros. Não apresentam
coleta diferenciada com relação aos
domésticos e são gerados normalmente nas zonas centrais ou comerciais das cidades.
Coleta
O usuário é responsável pela coleta interna, acondicionamento e
armazenamento dos resíduos, que é
função da quantidade, da composição dos resíduos gerados e da freqüência de coleta. Cabe ao poder
público a definição de padrões, tipos ou métodos de acondicionamento e sua fiscalização na fase externa,
dinâmica, e com roteiro elaborado.
A eficiência dos serviços de coleta
depende da universalidade dos serviços prestados e da regularidade da
mesma.
Resíduos Públicos
São aqueles resíduos produzidos
por atividades que se desenvolvem
em logradouros públicos e cuja responsabilidade é do poder público.
Entre estas atividades destacam-se
a limpeza de praias, bocas-de-lobo,
pintura de meios-fios, podas de árvore, roçadas em lotes urbanos, limpeza de logradouros públicos e
varrição, entre outros. Seus principais constituintes podem ser assim
caracterizados:
• Restos orgânicos vegetais: são
aqueles provenientes da varrição
de folhas, podas de árvores, restos de roçadas em canteiros e praças e que podem ser aproveitados
como composto orgânico ou serrapilheira, desde que devidamente
tratados e selecionados;
• Resíduos inorgânicos: provenientes dos vários serviços de limpeza urbana, não logram apresentar
qualquer possibilidade de reuso
ou reciclagem. São os materiais
inertes e os inservíveis; e
• Lodos: são os resíduos provenientes das bocas-de-lobo, bueiros
e canais em áreas urbanas. Devido à sua consistência e composição, devem ser encaminhados ao
90
Transporte
A necessidade da remoção dos
resíduos gerados para longe da fonte geradora faz com que seja necessário um serviço de transporte eficiente, na seqüência da coleta externa
efetuada pela guarnição. A obtenção
desta eficiência depende de fatores
econômicos (dimensionamento da
frota e de pessoal), técnicos (escolha
do melhor itinerário, com menor percurso “morto”) e higiênico (início da
decomposição dos resíduos). A escolha do veículo de transporte está
relacionada com a quantidade de
resíduos gerados, com a forma de
acondicionamento dos resíduos e
com as condições de acesso aos pontos de coleta.
Destino Final
A última etapa da gestão dos resíduos sólidos urbanos pode ser caracterizada sob dois aspectos: o destino final propriamente dito (em lixões,
aterros controlados ou aterros sanitários) e o tratamento, que compõe-se
basicamente da incineração, compostagem e reciclagem.
A disposição dos resíduos diretamente em lixões a céu aberto é a pior
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
forma de disposição final, pois contamina o meio ambiente em vários
aspectos e causa uma série de impactos ambientais. Não possui amparo legal e jurídico algum, sendo
condenado pelo poder público e por
órgãos ambientais em todo o país.
Apresenta ainda o agravante de proporcionar a presença de seres humanos (especialmente crianças) e animais que dali retiram seu sustento,
seja in natura, seja através de materiais recicláveis garimpados e vendidos. Não conta com nenhuma forma
de proteção ambiental ou obra de
engenharia, sendo os resíduos simplesmente lançados em uma área
qualquer, geralmente fundos de vales, cavas de pedreiras abandonadas
ou áreas degradadas.
Os aterros controlados caracterizam-se pelo revestimento do fundo
da escavação, para evitar-se o contado dos resíduos sólidos depositados e dos líquidos percolados com o
meio externo, além de apresentar
compactação e cobertura diária (ou
ao menos regular) das células de resíduos. São utilizados para comunidades que apresentam uma produção máxima de 30 ton/dia de resíduos em média.
Os aterros sanitários apresentamse como a melhor forma de disposição para os resíduos sólidos urbanos, no tocante aos aspectos técnicos, econômicos e ambientais. São
considerados obras de engenharia
onde os resíduos são dispostos em
áreas previamente selecionadas, licenciadas e preparadas, com revestimento de fundo, drenos de gases e
líquidos percolados, além de sistemas de queima dos gases gerados e
tratamento dos líquidos percolados.
Embora tenham grande eficiência,
começam a surgir problemas em algumas áreas urbanas, principalmente nas grandes metrópoles, em
decorrência da falta ou carência de
áreas para a implantação destes aterros, visto que seu período de vida
útil deve atingir próximo de 20 anos.
Os sistemas de tratamento dos resíduos sólidos urbanos, em sua última etapa, apresenta como objetivo
principal a redução da quantidade
e periculosidade dos resíduos a serem aterrados. Além disso, justifi-
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Quadro 2 – Principais fatores que causam impactos ambientais por falhas na gestão dos resíduos sólidos urbanos
Fonte: ANGELIS NETO (1999)
cam-se pela escassez de áreas em
grandes centros urbanos, pela disputa de terras remanescentes, pela
valorização dos componentes dos
resíduos e pela necessidade de
inertização dos resíduos de serviços
de saúde. Assim, tem-se resumidamente as formas mais comuns de tratamento como também suas vantagens.
A compostagem consiste na decomposição induzida de matéria orgânica animal ou vegetal. Proporciona uma economia de área nos aterros, o aproveitamento agrícola da
matéria orgânica gerada, a reciclagem de nutrientes para o solo, além
de ser um processo ambientalmente
seguro e proporcionar a eliminação
de patógenos.
A reciclagem é a derivação, coleta,
separação e processamento de materiais que iriam ao aterro, usados
como matéria-prima através de indústrias de reciclagem ou coleta seletiva. Deve ser encarada como um
conjunto de ações que visem simultaneamente os aspectos social, econômico e ambiental, com as vantagens de diminuir a quantidade de
resíduos a ser aterrado, preserva os
recursos naturais, economiza ener-
gia, diminui a poluição e ainda gera
empregos.
A incineração é definida como uma
tecnologia térmica, que atua acima de
900º centígrados, com o objetivo de
reduzir a massa e o volume dos resíduos a cinzas, além de inertizá-los.
Assim, suas principais vantagens
são a redução do volume de resíduos
a ser aterrado, a redução do impacto
ambiental, a destoxificação dos resíduos e a recuperação da energia térmica para outros fins.
Medidas para recuperação de
áreas degradadas por resíduos sólidos
Os problemas de gestão que
ocorrem no gerenciamento dos resíduos sólidos urbanos nas fases de
coleta (acondicionamento irregular e
falhas na freqüência de coleta), de
transporte (utilização de veículos
impróprios e itinerários inadequados de coleta) e de destino final (ausência de cobertura com material
inerte, ausência de sistemas de drenagem e coleta de líquidos percolados, ausência de impermeabilização
no contato resíduo x solo, utilização
de técnicas inadequadas de disposição dos resíduos e ausência de es-
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
tudo criterioso para escolha do local de disposição) no caso de lixões
a céu aberto, não encontram respaldo jurídico na grande maioria dos
instrumentos legais disponíveis.
A correta gestão dos resíduos
sólidos urbanos é um dos maiores
desafios enfrentados pelos governos
municipais, responsáveis pelas atividades nestas áreas. Se por um lado
percebe-se a presença de problemas
estruturais (como a falta de infra-estrutura necessária, dificuldades de
acesso a determinadas localidades
e carência de informações reais e atuais sobre o problema) por outro notase a ausência de políticas para a
área, que privilegiem soluções globais de médio e longo prazos. Como
conseqüência o poder público fica
impedido de prestar os serviços necessários e que atenda satisfatoriamente a população, evitando-se os
impactos ambientais. Assim, apresenta-se no quadro 2 as principais
causas destes impactos ambientais
que causam degradações em áreas
urbanas.
Em função dos fatores que causam impactos ambientais por falhas
na gestão dos resíduos sólidos urbanos, surge a necessidade de dire-
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
91
Quadro 3 – Instrumentos e diretrizes utilizadas para o controle e recuperação de áreas degradadas por resíduos
sólidos urbanos
Fonte: ANGELIS NETO (1999).
trizes que visem não só a recuperação das áreas degradadas por resíduos sólidos, mas também algumas
propostas de forma a contribuir para
evitar a ocorrência destes impactos.
Assim, apresenta-se no quadro 3 a
seguir os instrumentos econômicos,
educacionais e informativos com
este fim. Longe de se querer indicar
todos os instrumentos potencialmente utilizáveis para o planejamento e recuperação de áreas degradadas por resíduos sólidos, destacamse tão somente aqueles mais importantes.
Conclusão
A abordagem do tema sobre planejamento e recuperação de áreas
degradadas por resíduos sólidos
ensejou uma série de considerações
que descrevessem os conhecimentos
envolvidos nestes dois aspectos: se
por um lado houve a necessidade de
se conhecer os tipos de resíduos sólidos e as formas de gestão, além dos
impactos decorrentes de suas falhas,
por outro houve a necessidade de
explorar alguns aspectos envolvidos
com a degradação de áreas urbanas,
relacionadas com a gestão incorreta
dos resíduos sólidos. Neste contexto, procurou-se traçar um paralelo
entre os problemas de gestão que
92
ocorrem com os resíduos e os potenciais instrumentos utilizáveis para
o controle e desenvolvimento de impactos ambientais.
Os conhecimentos técnicos sobre
os problemas ambientais são comuns a diversas áreas de conhecimento. Cabe ao futuro profissional
especializar-se, dentro de sua área
de formação, de como fazer uso destes conhecimentos em busca de soluções, técnica e economicamente
viáveis, para a melhoria da qualidade ambiental. Os cursos da área de
Ciências Sociais Aplicadas são um
exemplo bem acabado de como estes
futuros profissionais podem e devem
agir: conhecedores do espaço que os
cerca, num aspecto mais amplo do
que comporta a palavra “espaço”,
estes profissionais são responsáveis
por, através de uma abordagem crítica, analítica e conclusiva, transformar os conhecimentos técnicos em
práticas pedagógicas, engajadas
num processo de transformação e
inseridas no contexto social, econômico e cultural da sociedade do momento, sem descartar as conseqüências das transformações históricas
sobre o meio. A análise do espaço,
sob essa ótica, não deve ser estático,
mas relacionado diretamente com o
dinamismo que a história produz,
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
transformando e re-transformando o
meio a partir da presença humana e
os processos tecnológicos envolvidos nesta ocupação.
Referências
AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA – ANVISA. Resolução RDC nº 33 de 25 de fevereiro de
2003. Dispõe sobre o regulamento técnico para o gerenciamento de resíduos
de serviços de saúde. Brasília/DF.
ANGELIS NETO, G. As deficiências nos
instrumentos de gestão e os impactos
ambientais causados por resíduos sólidos urbano: O caso de Maringá/PR
Tese, 1999 (Doutorado, Escola Politécnica da Universidade de São Paulo).
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS – ABNT – NBR 10004/
87 – Resíduos Sólidos – Classificação.
Rio de Janeiro: ABNT, 1987.
GERBER, W. Impacto ambiental: resíduos sólidos e reciclagem. Pelotas:
UCPEL, 1999.
ROCCA, A.C.C (org.). Resíduos sólidos
industriais. São Paulo: CETESB, 1993.
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
AN ESSAY ON THE INTERDEPENDENCE
BETWEEN ECONOMIC GROWTH AND THE
FINANCIAL SECTOR
Paulo Renato Soares Terra1
Abstract
This essay surveys the theoretical
and empirical literature on the interdependence between economic
growth and the financial sector. It is
shown that typical financial sector
functions such as price discovery,
risk sharing, and liquidity transformation have a non-trivial effect on
the growth of the real sector of the
economy. Gains come mainly from
reduced transactions costs as well
as better allocation of resources.
International empirical evidence
largely supports the proposition that
more financially sophisticated countries grow at faster rates than financially repressed ones. Nevertheless,
several questions regarding the effect
of financial development on economic growth remain unanswered,
and several suggestions for future
research are given in the final section
of the paper.
Keywords: economic growth; financial sector; financial development;
interdependence.
Resumo
Este ensaio revisa a literatura teórica e empírica sobre a interdependência entre crescimento econômico e o setor financeiro. É apresentado que as funções típicas do setor
financeiro tais como revelação de
preços, compartilhamento de riscos
e transformação de liquidez têm um
efeito não trivial sobre o crescimento do setor real da economia. Os ganhos provêm principalmente da redução dos custos de transação assim
como da melhor alocação de recursos. A evidência empírica internacional em geral apoia a proposição de
que países mais sofisticados finan-
ceiramente crescem a taxas mais rápidas do que países financeiramente reprimidos. Não obstante, muitas
questões sobre o efeito do desenvolvimento financeiro sobre o crescimento econômico permanecem sem
resposta. Ao final do artigo, são oferecidas diversas sugestões para futuras pesquisas.
Palavras-chave: crescimento econômico, setor financeiro, desenvolvimento financeiro; interdependência.
The understanding of business
on an international scale usually
requires from the professional analyst the mastering of several disciplines: marketing, economics, finance, operations management, and
intercultural studies, among other
social and human sciences. It is
tempting – in such a diverse field of
study – to attribute great importance
to conditions particular of a single
country, such as its history, the culture of its people, its institutional
arrangements, and its particular economic environment. However, as
any basic science course teaches, a
theoretical model must be an accurate description of the real world and
yet parsimonious enough to be
implemented with a finite number of
variables. In my point of view, this
fact poses one of the central research
problems in international business
studies: are universal theories suitable to understand economic agents’
behavior under particular business
conditions in different countries? It
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
1
is within this broad framework that
this paper is developed.
The main objective is to explore
the interdependence between the
macroeconomic environment and
the financial sector and how the interactions between them affect the
business conditions of firms. The
paper’s ultimate purpose is to derive
a few lessons regarding the interdependence between the macroeconomic environment and finance that
may be useful to a variety of parties
such as academic researchers, economic policymakers in developing
countries, managers of local and
multinational private corporations,
executives of international financial
institutions, managers of the investment fund industry, and the staff of
multilateral organizations, particularly those interested in developing
countries.
The remainder of this paper is
structured as follows. The next section presents an overall literature
review on the relationship between
economic growth and the financial
sector. Section 2 presents the main
empirical evidence on this subject,
while the last section outlines a synthesis of this literature. From this
synthesis, I suggest several prospective research topics for future investigation.
1. Theoretical Overview
The relationship between the financial and the real sector of the
economy and its potential effects on
Doutor em Administração pela McGill University (Montreal, Canadá), Professor Adjunto do Programa
de Pós-Graduação em Economia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). O autor
agradece à Fundação CAPES pelo apoio financeiro e ao Sr. Guilherme Heurich, bolsista de pesquisa, pela assistência na realização deste estudo. E-mail profissional: [email protected].
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
93
growth were largely ignored until
the late 1960s. It was with the breakthrough works of Goldsmith (1969),
McKinnon (1973) and Shaw (1973)
that financial markets come to occupy a major role in the growth literature. These authors argue that the
development of the financial sector
is not simply a byproduct of overall
economic growth, but rather leverages the growth process. It can assist in the breakaway from sluggish
economic performance to accelerated growth, mainly through incentives to save and invest.
Based on quantitative comparative analysis of the financial structure of between half to three dozen
countries, Goldsmith (1969) tries to
answer the following questions: who
finances whom at different stages of
financial development; to what extent; through which instruments;
and with what effects on economic
development. He concludes that (1)
financial superstructure grows more
rapidly than the infrastructure of
national product and wealth (the
ratio of aggregate market value of all
financial instruments to the value of
tangible net national wealth increases); (2) this increase is bounded
upwards (between 1 and 1½); (3)
LDCs have much smaller ratios than
Europe and North America; (4) the
main determinant of the financial
superstructure is the separation of
the saving and investment functions
among different economic units; (5)
the share of financial institutions in
the issuance and ownership of financial assets increases considerably with economic development; (6)
this institutionalization of saving
and ownership has affected the main
types of financial instruments differently: more progress on claims than
on equity securities; (7) financial
development started everywhere
with the banking system and has
been dependent on the diffusion of
scriptural money through the economy; (8) the share of the banking system in the assets of all financial institutions has declined with economic development; (9) foreign financing has played a substantial
role in some phase of the development of most countries; (10) trans-
94
fers of technology and entrepreneurship have been easier to accomplish,
and on the whole more successful,
with respect to financial instruments
and institutions than in many other
fields; (11) the cost of financing is
distinctly lower in financially developed countries than in LDCs; and
(12) as real income and wealth increase, in the aggregate and per head
of the population, the size and complexity of the financial superstructure grow, although the direction of
causation could not be established.
McKinnon (1973) focuses on the
extraordinary distortions commonly
found in the domestic capital markets of developing countries. He
finds that the impact of monetary and
financial policies on LDCs capital
markets is much greater than is generally supposed, and that policies
often stifle incentives to save and
invest. Repression of the financial
sector is paralleled by the use of tariffs and quotas in an effort to promote development by manipulating
the foreign trade sector. The author
suggests that a more effective strategy for economic growth would proceed from a thorough liberalization
of domestic financial markets, the
liberalization of the foreign exchange market, and the lifting of restraints on foreign trade. This strategy, which he calls a “bootstrap”
approach for development, aims at
securing a country’s own economic
development without having to rely
on foreign aid, foreign capital investment, and multinationals’ direct investment, technology, and managerial skills.
Shaw (1973) argues that the financial sector of an economy does
matter in economic development. It
can assist in the break from plodding
repetition of repressed economic performance to accelerated growth.
Numerous economies with low levels of per capita income and wealth
have been attracted at times to a development strategy that results in
“shallow” finance. By distorting financial prices including real money
balances, interest rates and foreign
exchange rates, it has reduced the
real rate of growth and the size of
the financial system relative to non-
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
financial activity. The author elaborates on the classical approach of
money, finance and capital accumulation by introducing uncertainty
and rigidities in output and financial decisions. Also, his model diverges from the Keynesian Liquidity Trap by considering money not
as wealth but as debt of the monetary
system. After outlining the principles of his model, the author discusses financial repression, its negative impact on growth, and its interrelations with the monetary system,
fiscal policy and international trade
and finance. As a subsidiary result
of his analysis, the author argues
that financially repressed economies
not only sacrifice the leverage for
growth that could be realized from
financial deepening, improved fiscal performance and closer integration with external markets, but also
suffer from a higher degree of shortterm instability in the growth process. The author concludes that financial deepening along with compatible reforms in the fiscal and international sectors may make
growth paths both steeper and
smoother.
In traditional growth theory, it
was believed that financial intermediation could have an effect on the
levels of the capital stock per worker
or to the level of productivity, but not
on growth rates. The breakthrough
work of Romer (1986), however, allowed the emergence of endogenous
growth models in which institutional arrangements influence the
growth rate endogenously, thus providing the theoretical basis for a relationship between financial markets and economic growth.
Pagano (1993) provides a simple
example of how the financial structure can affect growth. Assume a competitive economy where N identical
firms produce output yt with individual capital stock kt according to:
yt = Bktα
(Eq. 1)
Where B is the average capital stock
in the economy, given by:
B = Akt1−α
(Eq. 2)
B it is taken as a parameter by the
individual firm and A is regarded
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
as the social marginal productivity
of capital. Aggregate output is then
given by:
Yt = Nyt = NBktα = AKt
(Eq. 3)
Aggregate investment is given by:
I t = K t +1 − (1 − δ ) Kt
(Eq. 4)
Where d is the rate of depreciation of capital. For simplicity, assume a constant population and a
closed economy with no government
sector. This implies that in capital
market equilibrium, savings must
equal investment. However, let’s
consider that a fraction 1 – f of savings is captured by the financial sector in the form of fees and spreads (it
is assumed that these rents are totally consumed instead of reinvested). Therefore:
φSt = I t
(Eq. 5)
Using Eq. 3, Eq. 4, and Eq. 5, the
growth rate g at t + 1 is given by:
(Eq. 6)
Where st denotes the gross savings rate. Dropping the time subscripts, the steady state growth rate
becomes:
(Eq. 7)
In short, financial markets may
affect the growth rate directly through
the portion 1 – f of savings that are
consumed in the financial intermediation process. There are, however,
other plausible ways in which the financial sector may influence growth.
Pagano (1993) makes the distinction
between positive effects of financial
development on growth and ambiguous effects.
Positive effects of a developed financial sector refer to the channeling of savings to firms and the improvement of the allocation of capital. As the financial sector becomes
more developed, the proportion of
savings consumed by financial in-
termediaries (1 – f) tends to be competed away, and the total resources
available for investment increases,
therefore increasing the growth rate
g (BENCIVENGA, SMITh, and STARR,
1996). Besides fees and spreads, the
size of f can also be affected by government specific policies such as restrictive regulations, taxation, and
reserve requirements (AMABLE and
CHATELAIN, 1996). Another way
financial markets can positively affect the growth rate is by providing
efficient allocation of capital. Financial intermediaries help investment
in projects with the highest marginal
product of capital by collecting and
disseminating information on alternative projects, and by encouraging
individuals to invest in riskier – and
usually more productive – projects
by providing portfolio diversification (ATJE and JOVANOVIC, 1993;
LEVINE and ZERVOS, 1996; Obstfeld, 1994). This risk sharing role of
the financial sector affects the marginal productivity of capital (A) by
pooling resources and permitting the
funding of less liquid projects, preventing inefficient bankruptcy, as
well as creating the conditions for
g = Aφs − δ
diversification of volatility risks. Finally, productivity may be increased
by technological specialization of
firms, once these higher idiosyncratic
risks can be shared efficiently via the
stock market.
More ambiguous effects of the financial sector over growth refer to
its impact on the saving rate and the
interest rate. The existence of a financial market may actually reduce s –
and therefore g – for several reasons.
By providing risk-sharing technology, the financial sector reduces the
need for precautionary savings of
households. Also, portfolio diversification may lead to a negative effect
on the saving rate if the (constant)
risk-aversion coefficient is bigger
than unity (Pagano 1993; Devereux
and Smith, 1994). The financial sector also extends credit for households under the form of mortgages
and loans and this too reduces the
needs for precautionary savings. 2
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
2
Finally, besides the effects of the direct financial sector cost f on growth,
there are interest rate effects to be
considered. The effect of the real interest rate on the savings rate is theoretically ambiguous and definite
empirical evidence has not been presented. If the development of the financial sector helps to narrow the
spread and therefore raises the interest rate paid to savers, it is still
unclear what the impact should be
on growth.
An interesting question however
is not whether the existence of a financial sector contributes to growth
but how the development of such a
sector relates to economic development. In order to do so, it is essential
that financial development be precisely defined. Arestis and Demetriades (1996) list three problems that
financial sectors are expected to resolve: informational problems, principal/agent problems, and uncertainty problems. Informational problems refer to problems such as adverse selection. Principal/agent
problems address problems such as
moral hazard and incentive mechanisms. Finally, uncertainty problems
relate to risk sharing technologies
such as insurance and portfolio diversification. The degree of development of the financial sector would
be ideally measured by how well it
resolves these problems. Of course,
this is not an easy task, and most
empirical work in this area has chosen proxies related more to the size
of financial indicators relative to
aggregate output or per capita output. As a matter of fact, these indicators are more measures of depth and
scope of the financial market rather
than strict measures of its degree of
development, but this is a typical
shortcoming of empirical research.
It is easy to identify a typology of
financial systems. There are two basic types often mentioned in the literature: bank-based financial systems
and market-based financial systems.
Bank-based systems rely on the involvement of the banking firm with
industrial firms as the main way to
Notice however, that if households take loans to finance the accumulation of human capital, then the
effect on growth may be ambiguous: a lower saving rate but perhaps a higher productivity of capital.
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
95
transfer resources into production.
Banks collect the savings of the
households and invest such funds
according to its valuation techniques and private information of the
firms they work with. In such a system, the industrial firm’s ownership
is concentrated in a small number of
shareholders, each with a large stake
in the company. Banks participate
actively in the board of directors,
management performance is evaluated by the small group of shareholders, and changes in management are
decided usually within the scope of
the firm. The market for corporate
control is small, and mergers and
acquisitions are rare. Firms rely
heavily on bank loans for their financing and not so much on equity.
Banks exercise an important role in
monitoring corporate performance
and providing liquidity transformation technology for the economy.
Germany and Japan are usually
mentioned as examples of a bankbased financial system.
The market-based system on the
other hand, relies on capital markets
as the main source of funds for longterm investment, either as debt or
equity. Banks do not get closely involved with industrial firms, corporate ownership is dispersed among
a large number of small shareholders, and the market for corporate control is very active. Management performance is monitored by markedbased mechanisms such as hostile
takeovers. Examples of such system
are the United States and the United
Kingdom. Besides these two “pure”
types of financial systems, there is a
continuum of intermediary possibilities in between. Also, one cannot
underestimate the role of banks in
market-based systems: investment
banks provide much of the financing for hostile takeovers in the United States.
With respect to the three problems
that financial systems should resolve, it is generally accepted that –
under appropriate incentives – bankbased systems are more capable of
addressing those problems than
market-based systems (Arestis and
Demetriades, 1996). However, one
cannot really establish that one sys-
96
tem is a priori more developed than
the other. Moreover, one can observe
countries with similar types of financial systems but at different stages
of financial development. Finally,
some empirical evidence exists for a
complementary role between the
capital market and the banking system (BOYD and SMITH, 1996; DEMIRGÜÇ-KUNT and Levine, 1996b).
In this sense, it is useful to introduce yet another dimension of financial development: the government’s
role in administering prices and
quantities in the financial sector, as
in the case for interest rate controls,
capital rationing, and directed lending. A financial system is said to be
repressed when such kinds of government intervention are common.
Liberalized financial systems, on the
other hand, are those in which the
economic agents decide the allocation of capital based on market rates.
The effects of repression on growth,
in a government-administered framework like the one discussed above,
can occur in three ways: firstly, interest rate controls, taxation, and
capital requirements all depress f
which in turn reduces growth. Secondly, directed lending may allocate
investment to sub-optimal projects,
reducing the marginal product of
capital.3 Finally, repressive policies
may artificially reduce the real interest rate, which in turn may have
an ambiguous effect on the saving
rate. One can observe that bankbased financial systems allow for a
more active role of the government
in implementing repressive policies.
Under a specific set of conditions,
however, it can be shown that government intervention on the financial
market may indeed boost growth.
Hellmann, Murdock, and Stiglitz
(1996) focus on interventionist policies to enhance deposit mobilization,
while Levine (1996) contends that
intervention and/or regulation may
be growth enhancing in the presence
of pervasive market failures, but admits that interventions themselves
may at times cause or aggravate
other market failures. Finally, Amable and Chatelain (1996) suggest that
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
3
government policies that reduce the
problem of asymmetric information
are likely to have a positive effect on
growth.
So far the financial sector as a
whole has been discussed. One important element of a financial system is the stock market. That is particularly true not only for marketbased financial systems but also for
many emerging economies, which
observed a great increase in international portfolio investment in their
domestic markets since the early
1990s. Demirgüç-Kunt and Levine
(1996c) summarize the role of stock
markets in economic growth under
four topics: creation of liquidity, risk
diversification, incentives to governance, and price discovery.
Stock markets provide liquidity
for equity investment and therefore
create incentives for longer-term investment. The liquidity generated by
a stock market reduces the transaction costs associated with holding
equity and therefore improves the
allocation of capital towards higher
productivity projects. The positive
effects of improved liquidity are twofold: first, it allows the economy to
grow faster because of an improvement in marginal returns (Boyd and
Smith, 1996); second, because investment in equity can be cheaply reversed by selling shares in the market, higher volumes of savings are
allocated in such projects (Bencivenga, Smith, and Starr, 1996). However, one can list at least three potentially negative effects of liquidity
on growth: by reducing the savings
rate through income and substitution effects generated by higher average returns, by reducing the need
for precautionary savings, and by
encouraging investor myopia and
therefore relaxing monitoring (Demirgüç-Kunt and Levine, 1996b).
Although there is theoretical research on these effects, the empirical evidence is still scarce.
The technology to diversify risks
of specialized projects through the
stock market affects growth by shifting a higher proportion of savings
towards riskier, higher return invest-
Not to mention moral hazard and rent seeking.
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
ment projects. This boosts economic
growth provided that the effects on
the savings rate (income and substitution effects, reduction of precautionary savings) do not offset the
higher productivity of capital.
Large and more liquid stock markets may provide incentives that reduce the principal/agent problem
between management and shareholders. The creation of an active
market for corporate control is an
effective incentive to keep management’s interests aligned with shareholder interests. Moreover, the development of the stock market and the
creation of new financial instruments such as derivatives help in the
design of incentive mechanisms for
managers to maximize shareholders
wealth.
Finally, the price discovery function of the stock market may affect
growth in two ways. In relatively
inefficient markets, it pays investors
to research firms carefully before
making their investment decisions,
since they can profitably trade using their better information. This
leads to an improvement of the quality of the projects to be executed. In
efficient markets, all information is
quickly revealed in prices, again
contributing to the quality of projects.
However, this may lead to the freerider problem: investors will not
spend resources collecting information about firms if they cannot profit
from it.4
2. Empirical Evidence
Despite the obvious implications
that the relationship between financial development and economic
growth may suggest, the empirical
literature in this field is not as comprehensive as one might expect. Beyond the early studies of Goldsmith
(1969) and McKinnon (1973), empirical tests of such relationship are in
general recent. In a well-known paper, King and Levine (1993) study
the empirical link between a range
of indicators of financial development and economic growth. They
find that indicators of the level of financial development (the size of the
formal financial intermediary sector
relative to GDP, the importance of
banks relative to the central bank, the
percentage of credit allocate to private firms, and the ratio of credit issued to private firms to GDP) are
strongly and robustly correlated
with growth, the rate of physical
capital accumulation, and improvements in the efficiency of capital allocation. Also, the predetermined
components of these financial development indicators significantly predict subsequent values of the growth
indicators. The data are consistent
with the view that financial services
stimulate economic growth by increasing the rate of capital accumulation and by improving the efficiency with which economies use
that capital. The authors concluded
that Schumpeter might have been
right about the importance of finance
for economic development.
Similarly, Atje and Jovanovic
(1993) empirically test whether financial development (especially
stock market development) affects
the level and/or the growth rate of
economic activity, and they find a
substantial effect on both. They find
no effect when the financial development proxy used is credit extended by private and government
banks as a ratio to gross domestic
product (GDP). However, when the
proxy is the ratio of annual value of
all stock market trades to GDP, the
data strongly supports the model. As
for level effects, the authors also find
significant coefficients, although the
estimates do not seem fully consistent with the tendency for intermediation’s share in income to rise with
the level of development.
Murinde (1996) estimates an endogenous growth model in which
growth derives from the behavior of
economic agents in markets for
credit, bonds and shares using the
Zellner (1962) procedure for a group
of seven Pacific Basin countries. The
empirical investigation is further
extended by using growth accounting exercises and by extending the
analysis of the role of stock markets
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
4
as suggested by Atje and Jovanovic
(1993). In particular, the empirical
analysis indicates that stock market
development is significantly linked
to economic growth.
Odedokun (1996) provides an indepth empirical analysis of the relationship between financial development and the efficiency of investment, proxied by the incremental
output-capital ratio. For his analysis, the author constructs a wide
range of alternative indicators for financial intermediation, government
intervention in the financial sector,
interest rates, exchange rates, and
inflation. His findings show that financial intermediation (measured in
terms of flow variables) is positively
related to investment efficiency. By
contrast, government intervention
appears to be negatively related to
efficiency. He also finds that policies
of real exchange rate appreciation,
as well as high inflation are adversely related to investment efficiency. The relation between interest rates and efficiency remains undetermined in his analysis however.
Fry (1996) investigates the role
financial conditions have played in
producing the virtuous circles of
high saving, investment, output
growth and export growth in a
sample of Pacific Basin countries
during the past few decades. High
saving and investment stimulate
output growth and export growth.
In turn high growth raises saving
and investment levels. The author
finds that the relatively undistorted
nature of both financial and foreign
exchange markets in these countries
has been important to raise their saving, investment, output and export
levels over a long period of time.
Levine and Zervos (1996) examine whether there is a strong empirical association between stock market
development and long-term growth.
The authors use cross-country regressions to examine the association
between stock market development
and economic growth. Using data of
One can argue that recent developments in the U.S. stock market (e.g. Tyco, Enron, Worldcom, etc)
cast doubt on the depth of the financial analysis carried on. In this case, free-riders have been punished
for complacent reliance on market-generated information. I am thankful to Prof. Jan J. Jorgensen for
pointing this out.
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
97
forty-one countries over the period
from 1976 to 1993, they split the
sample period so that each country
has two observations with data averaged over each subperiod. The
authors regress the growth rate of
GDP per capita on a variety of variables designed to control for initial
conditions, political stability, investment in human capital, and macroeconomic conditions. Then, they include the composite index of stock
market development. Thus they
evaluate whether there is a relationship between economic growth and
stock market development that is
independent of other variables associated with economic growth.
They find a strong correlation between overall stock market development and long-run economic growth.
After controlling for the initial level
of GDP per capita, initial investment
in human capital, political instability, and measures of monetary, fiscal, and exchange rate policy, stock
market development remains positively and significantly correlated
with long-run economic growth.
Studies such as the one mentioned above generally assume that
financial development causes economic growth. However, the direction of causality between financial
development and economic growth
has been a controversial issue in economics. Arestis and Demetriades
(1996) challenge the causal interpretation of previous empirical work
that is based on a fragile statistical
basis. Once contemporaneous correlation between the financial indicator and economic growth has been
accounted for, there is no longer any
evidence of causality from financial
development to economic growth.
The second goal of the authors is to
demonstrate that cross section data
sets cannot address the question of
causality in a satisfactory way. The
authors conduct cointegration and
causality tests using time series data
for twelve representative countries.
The results in all cases tend to justify their claim for the importance of
institutional considerations and
policy differences. The results depends very much on the institutional
characteristics, including the type of
98
financial system and the type of financial policies followed, as well as
the efficiency in implementing such
policies. Also, the authors find that
the definition of the financial indicator used in the analysis also has
considerable importance for the results.
The empirical definition of “stock
market development” is the main
concern of Demirgüç-Kunt and
Levine (1996b). They contribute to
the literature by collecting and comparing a broader array of empirical
indicators of stock market development than any previous study. Using data on forty-four developing
and industrial countries from 1986
to 1993, the authors examine different measures of stock market size,
market liquidity, market concentration, market volatility, institutional
development, and integration with
world capital markets. The goal is to
produce a set of stylized facts about
various indicators of stock market
development that facilitates and
stimulates research into the links
among stock markets, economic development, and corporate financing
decisions.
These authors find enormous
cross-country variations in stock
market indicators and attractive correlations among the indicators. Although many stock market development indicators are significantly correlated in an intuitively plausible
fashion, the individual indicators
produce different country rankings.
Although richer countries generally
have more developed stock markets
than pioneer countries, many markets labeled emerging are more developed than those in France, the Netherlands, Australia, Canada, Sweden,
and Norway. Using measures of size,
liquidity, and international integration, the authors evaluate which markets have been developing fastest over
the years. The article documents the
relationship between the various
stock market indicators and measures of financial intermediary development. Since debt and equity are
frequently viewed as alternative
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
5
sources of corporate finance, stock
markets and banks are sometimes
viewed as alternative vehicles for financing corporate investments. The
authors document the cross-country
ties between stock market development and financial intermediary development using measures of the size
of the banking system, the amount
of credit going to private firms, the
size of non-bank financial corporations, and the size of private insurance and pension companies. They
find that most stock market indicators are highly correlated with the
development and efficient functioning of banks, non-bank financial corporations, and private insurance
companies and pension funds.
Countries with well-developed
stock markets tend to have well-developed financial intermediaries.
Also, developing countries with
well-developed financial systems
are growing faster than developing
countries with under-developed financial sectors.5
Demirgüç-Kunt and Maksimovic
(1996) empirically explore the effect
of financial market development,
particularly stock market development, on financing choices of firms.
The authors use aggregated firmlevel data for a sample of thirty countries from 1980 to 1991. They measure stock market development by
the ratio of market capitalization to
GDP, the ratio of total value of shares
traded to GDP, and the ratio of total
value of shares traded to market capitalization. Taking all the countries
in the sample together, the authors
find that there is a statistically significant negative correlation between
stock market development, as measured by market capitalization to
GDP, and the ratios of both long-term
and short-term debt to total equity of
firms. There is also a statistically significant positive relationship between the size of the banking sector
and leverage. The relationship between leverage and stock market
development loses significance
when they control for variables that
have been identified in the corporate
Demirgüç-Kunt and Levine’s (1996b) data ends in 1993, before the Mexican and Asian crises. Thus,
it would be interesting to test for the robustness of their results after these episodes.
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
finance literature as determining
firms’ financial structures.6 An interesting pattern emerges when the full
sample is broken down into subsamples. In developed markets, further development leads to a substitution of equity for debt financing,
especially for long-term debt. In developing markets, large firms become
more levered as the stock market develops, but small firms do not appear to be significantly affected by
market development. These findings
suggest that the development of a
stock market initially affects directly
the financial policies of only the largest firms. This may be because diversification of ownership and the
aggregation of information provided
by the development of stock markets
initially benefits the larger firms
more because of the need to spread
fixed issuance costs and traders’
costs of information acquisition.
Demirgüç-Kunt and Levine
(1996a) discuss the relationship between the initial state and reform of
the financial system on the one hand
and public enterprise reform on the
other hand. Based on detailed information of nine country case studies,
they find that private enterprise reform is more successful in countries
with initially relatively well-developed financial systems. Moreover,
they find that private enterprise reform is implemented much more successfully if such a reform is supplemented by substantial and well-designed financial sector reforms.
However, they underline the fact
that the causal relationship between
the two kinds of reforms runs in both
directions, and that exogenous factors are important in determining the
ultimate outcome of both reforms.
Berthélemy and Varoudakis (1996)
empirically test an endogenous
growth model, which exhibits multiple steady state equilibria due to
reciprocal interactions between the
financial and real sectors in the
economy. The model shows that depending on the nature of steady state,
there may exist a poverty trap in
which the financial sector “disappears” and where the economy stagnates, or endogenous economic
growth may be positive and finan-
cial intermediation follows a normal
development path. They support
their model by testing empirically the
existence of multiple steady states
linked to the initial state of financial
development in a cross-section of 95
developed and developing countries. Their results show that while
education is a pre-condition for
growth, financial under-development may become a major obstacle
in countries where the educational
pre-condition is satisfied. Moreover,
they show that the optimality of
other policies such as trade policy
and government expenditure policy
depend on a reasonably well-developed financial system. This result
leads to the conclusion that secondbest policies in countries that have
not succeeded in developing a financial system might be quite different
from the policies usually advocated
in a first-best framework.
3 Synthesis
In summary, there is a vast theoretical literature going back three
decades explaining the linkages of
financial sector development and
economic growth. Under competitive markets the role of the financial
system in channeling savings towards the highest return projects is
beneficial to welfare and allows
faster growth. Moreover, as the financial market develops and becomes
more competitive, transaction costs
tend to fall and the net savings directed to investment increase. Therefore, given these conditions, the financial sector plays an important
role as a catalyst for growth. More
recent literature, however, questions
the direction of the impact of financial development on aggregate savings because of income and substitution effects. Also, improvements in
risk diversification may induce investors to become reckless in their
research for projects because of the
free-rider problem, which may in the
aggregate lead to less efficient resource allocation.
The available empirical evidence
in general supports the view that
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
6
overall financial development has a
positive effect on economic growth
and that stock market development
in particular has an even more substantial impact than banking development. There is however plenty of
evidence on the complementary
roles between banking system and
stock market development as the financial system becomes more developed. Government intervention on
the financial sector has been shown
to be in general adverse to development, except in the presence of very
specific market failures. Finally, the
evidence on the effect of financial
integration with the global market
is as yet ambiguous.
A few aspects are not explored in
the literature and should deserve
more detailed investigation. For instance, how do different financial
intermediation systems (marketbased versus bank-based) compare
in terms of their contribution to
growth? Is competition policy in the
banking sector a major element of financial development and therefore
economic growth? Given different
initial conditions (income, deposits,
liquidity, etc), what are the policies
that developing countries should
address in order to develop their financial sectors? Similarly, given
imperfect competition in the banking sector and incompleteness in
capital markets that characterize
developing countries, how should
policymakers proceed in order to
develop the financial sector in a sustainable fashion? Is there an optimal
sequence of measures? How does the
recent experience of developing
countries contrast to theory with respect to financial liberalization?
What are the causality linkages between the real sector and the financial sector of the economy? To what
extent do macroeconomic factors influence the degree of indebtedness
of households and firms?
These are all interesting questions whose answers will greatly
contribute to our understanding of
the subtler interrelations between finance and growth. Of course, ad-
Such as the ratio of net fixed assets to total assets, the ratio of earnings to total assets, the ratio of net
sales to total assets, and the ratio of total assets to firm size.
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
99
dressing all of them at once in a
single piece of research is a near impossible task. Therefore, these topics are left as suggestions for future
research initiatives.
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Para que seu artigo seja publicado no próximo número da RDE (nº 14) o prazo para entrega dos originais
se encerra dia 31.08.06, e deverá ser enviado em CD
ou disquete de acordo com as NORMAS DE EDITORAÇÃO publicadas na página 123 deste número.
100
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
ARRANJO PRODUTIVO LOCAL
DE TERRA ROXA: A ANTI-VOCAÇÃO?
Jefferson Andronio Ramundo Staduto 1
Ednilse Willers 2
Paulo Roberto Azevedo 3
Resumo
O objetivo central deste artigo é
relatar a experiência do surgimento
do conjunto de empresas de confecção infantil do pequeno município
de Terra Roxa – Paraná. A idiossincrasia é um forte componente dos
APLs, no entanto, nesse caso a
dinamização de elementos ligados
sinalizam para uma completa antivocação territorial na qual está
imersa a concentração de empresas
de confecção infantil desse município. A capacidade de transformar
uma rede de pessoas em rede de negócios está fortemente associada à
idéia de resistir e criar condições de
sobreviver no local onde se vive, que
se expressa por meio do capital social, transformando-o em elemento
indissociável ao conceito territorial.
O capital sinérgico colocado na história de declínio econômico do município de Terra Roxa e a biografia
de seus sujeitos sociais lideram a
produção e a geração de emprego e
renda de tal magnitude que possibilita a reconfiguração econômica desse município empobrecido.
Palavras chave: arranjo produtivo
local, capital social, desenvolvimento local, Terra Roxa-PR.
Abstract
The central objective of this article
is to report the experience of the
sprouting companies of infantile
clothes confection of the small city
of Terra Roxa- Paraná. The idiosyncrasy is a strong component of the
APLs, however, in this case the
dynamiting of elements signals to a
complete territorial anti-vocation in
which is located the concentration
of companies of infantile clothes
confection of this city. The capacity
to transform a net of people into a
business net is strongly associated
with the idea to resist and to create
conditions to survive in the place
where people live, that it is expressed by the social capital, transforming it into an indissociable element
to the territorial concept. The synergic capital placed in the history of
the economic decline of Terra Roxa
and the biography of its social
citizens leads to the production and
generation of job and income of such
magnitude that it makes possible the
economic reconfiguration of this
impoverished city.
Key words: local productive arrangement, social capital, local development, Terra Roxa-PR.
1 Introdução
No Brasil, o planejamento e as
políticas de desenvolvimento regional estão ausentes da agenda do
Estado por muitos anos, as primeiras experiências remontam a década de 1950 e as últimas a década de
1970. A partir dos anos de 1980, a
política econômica voltou os seus
esforços para a estabilidade monetária. Recentemente, a década de
1990 foi marcada por uma nova ordem econômica, na vida pública e
privada dos cidadãos e empresas
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
brasileiras, pois o Estado não tinha
mais condições de incentivar e fazer
dispêndios financeiros para estimular intensivamente qualquer setor
econômico ou mesmo região.
Não obstante esta situação, alguns fenômenos de desenvolvimento se espraiavam pelo Brasil, sendo
que muitos com características
marcantes, como a aglomeração de
médias, pequenas e microempresas
em uma mesma localidade, ligadas
à produção de um ramo de atividade específico – industrial ou de serviço. Esta forma de organizar a produção já havia sido registrada no final do século XIX na Inglaterra, por
Alfred Marshall. Mas no Brasil, começou a ser estudada de forma mais
intensa há pouco mais de quinze
anos.
Atualmente, as políticas de fomento ao desenvolvimento regional
e, até então, o esquecido desenvolvimento local tem nova roupagem,
pois integram e favorecem ações entre o público e o privado. Já é extremamente conhecida a capacidade de
empregar e de gerar renda das médias, pequenas e microempresas, as
quais, conciliadas ao fato de estarem
agrupadas em torno de um mesmo
ramo de atividade, criam condições
favoráveis ao sinergismo capaz de
aumentar a competitividade e a sobrevivência no mercado.
1
Doutor em Economia Aplicada pela ESALQ/USP. Professor Adjunto do Colegiado do Curso de Ciências
Econômicas e do Mestrado em Desenvolvimento Regional e Agronegócio da Unioeste/Campus de
Toledo. E-mail: [email protected].
2
Mestre em Desenvolvimento Regional e Agronegócio pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(Unioeste/Campus de Toledo). E-mail: [email protected].
3
Doutor em Ciências Sociais pela UFRGS e Pós-Doutor pela Universidade do Texas. Professor Adjunto
do Colegiado do Curso de Ciências Sociais da Unioeste/Campus de Toledo. E-mail: pazevedo@
unioeste.br.
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
101
... uma impetuosa
geada dizimou os cafezais
de toda a região,
resultando na perda de
quase três quartos da
população do município
em 20 anos...
No Paraná, mais precisamente na
região Oeste do Estado, no município de Terra Roxa irrompe um desses fenômenos sócio-econômicos, o
qual serviu de esteio para o município começar a remover a poeira da
crise que se arrastava desde meados
da década de 1970, devido a uma impetuosa geada que dizimou os cafezais de toda a região. Isto resultou
na perda de quase três quartos da
população do município em 20
anos. A agricultura que fora o grande catalisador do surgimento da cidade, já não parecia tão benevolente, fazendo com que muitos deixassem as suas terras para buscar o sustento da família em outros locais.
Contudo, aparentemente do vazio surgiu um número expressivo de
indústrias de confecções de moda
infantil. O hobby de uma das moradoras da cidade, que poderia ser
apenas a tão sonhada renda extra,
frutificou e liderou uma nova configuração econômica para o município cujos resultados já impactou
positivamente na estrutura econômico-social local.
O objetivo central deste artigo é
relatar a experiência do surgimento
do conjunto de empresas de confecção infantil do pequeno município
de Terra Roxa – Paraná. Este artigo
avança de forma breve e concisa nos
conceitos de capital social e territorialidade bem como no processo de
transformação econômico-social que
o Brasil e o Estado do Paraná vivenciaram a partir da década de 1950,
como forma de se compreender o processo de declínio econômico dos
municípios pequenos, tal como Terra Roxa, e suas necessidades de
mudanças em favor de sua sobrevivência econômica e social.
102
Para tanto, o artigo está dividido
em cinco partes, sendo esta introdução a primeira, seguida do quadro
teórico que se subdivide na conceituação de capital social e territorialidade (tidos pela literatura econômica regional recente como reais
desencadeadores de desenvolvimento econômico). Na seqüência será
apresentado um breve resgate histórico do cenário econômico brasileiro e do Estado do Paraná da década
de 1950 em diante. Em seguida é relatado o processo de transformação
econômica do Município de Terra
Roxa, destacando a nova configuração produtiva que surgiu a partir do
ano 2000 e que foi responsável pela
alteração da estrutura urbano-rural,
existente até 1999, para a urbanoindustrial. Nessa secção também são
apresentados os resultados obtidos
das pesquisas realizadas nos anos
de 2004 e 2005 sobre as causas da
reestruturação produtiva ocorrida. E
para encerrar, as considerações finais.
2 Quadro teórico
Na nova concepção de desenvolvimento econômico ganham importância, entre outros, alguns componentes socioculturais. O espaço deixa de ser contemplado simplesmente como suporte físico das atividades e dos processos econômicos,
passando a ser mais valorizados os
territórios e as relações entre seus
atores sociais, suas organizações
concretas, as técnicas produtivas, o
meio ambiente e a mobilização social e cultural (MARTINELLI e JOYAL,
2004). Neste contexto termos como
capital social e territorialidade passam a centralizar as discussões acadêmicas enquanto promissoras vertentes de desenvolvimento econômico local.
O termo capital social tem sido
utilizado para contrapor a visão
economicista do desenvolvimento
econômico, pois modifica o centro de
análise das relações econômicas
para as relações humanas e sociais,
passando a ser reconhecido como
um ativo, no qual as estruturas sociais passam a ser vistas como recursos que podem desencadear o desenvolvimento econômico local.
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
Sendo o capital social um recurso em potencial, sua utilização enquanto instrumento que leva ao desenvolvimento econômico está fazendo parte, desde meados da década de 1990, das discussões acerca
dos modelos de desenvolvimento
econômico propostas pela Organização para a Cooperação Econômica e o Desenvolvimento – OCDE,
Banco Mundial e a Comissão Econômica para a América Latina –
CEPAL (AMÂNCIO et al., 2005).
Nesta configuração, o termo capital
não se reporta, apenas, ao acúmulo
de riqueza ou a um estoque que serve à produção e da qual a renda é o
objetivo, mas sim, a uma conotação
de coletividade, onde um local comum é compartilhado por grupos
cooperantes (MILANI apud AMÂNCIO et al., 2005).
O capital social, no atual contexto de desenvolvimento econômico, é
visto como um ativo que oferece às
localidades a possibilidade de consolidar metas de desenvolvimento
econômico por meio das próprias
potencialidades e capacidades da
sociedade local. É o que Bourdieu
apud Amâncio et al. (2005) afirmava quando disse que o capital social
é um recurso que pode ser mobilizado com a finalidade de permitir aos
grupos e/ou indivíduos formas mútuas de ajuda e de cooperação, pois
pode ser tanto um estoque quanto a
base de um processo de acumulação
que permite à determinada sociedade ter maiores chances de competitividade e de sobrevivência no mercado. Neste formato, o capital social
compreende a capacidade de organização de uma sociedade, a qual,
associada à vida econômica, à confiança e a cooperação transforma-se
em potencialidades reais de intervenção econômico-social, facilitando ações coordenadas que podem se
tornar a base do desenvolvimento
econômico local.
Este processo se torna viável por
ter o capital social a função de criar
e de gerar oportunidades, capacidades e potencialidades nos diversos
atores de uma determinada sociedade, é o que Putnam (1996) já demonstrou em suas pesquisas quando afirmou que onde existe capital social, é
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
ele o ponto fundamental para o desenvolvimento econômico.
Freeman (1991) e Newby (1992),
apud Albagli e Maciel (2003), também introduzem no contexto do capital social a inovação, tida pelos
autores como a capacidade de uma
sociedade, nas relações entre seus
agentes, movimentos e organizações, empenhar-se nas escolhas que
lhes são mais adequadas dentre as
opções disponíveis e acessíveis, bem
como aplicar os resultados de suas
opções onde e como serão mais produtivas social e economicamente.
Mas o que é capital social? Para
Putnam (1996) capital social diz respeito a determinadas características
de uma organização social, como
confiança, normas e sistemas, as
quais contribuem para o aumento
da eficiência da sociedade, pois facilita ações coordenadas em prol
de um objetivo comum. É uma resposta que contrapõe o mito de que a
sociedade é composta apenas por
grupos de indivíduos independentes, na qual cada um age para atingir objetivos pessoais. Segundo
Coleman (1990) apud Abramovay
(2000), o capital social vem contrapor este mito, pois demonstra que os
indivíduos não agem isoladamente
e que seus objetivos também não são
definidos de forma individualizada.
É diante desta constatação que as
estruturas sociais contemporâneas
devem ser vistas como recursos,
como um ativo, pois o capital social
é produtivo e através dele se torna
possível o alcance de objetivos que
não seriam atingidos de forma individualizada.
O capital social é um ativo coletivo de grupos inseridos numa estrutura social. Trata-se de valores e crenças que os cidadãos compartilham,
expressando socialização e consenso normativo. Esta postura favorece
o espírito cívico e a vida cooperativa, gerando espaços e estruturas de
trabalho em equipe, instigando a
inovação e a aprendizagem coletiva,
fatores importantes para o dinamismo econômico recente (ALBAGLI e
MACIEL, 2003). Sendo assim, podese dizer que vários podem ser os benefícios econômicos do capital social, quais sejam: a) maior facilidade
de compartilhamentos de informações e conhecimentos, devido a relações de confiança, “espírito” cooperativo, referências sócio-culturais e
objetivos comuns; b) conformação de
ambientes propícios ao empreendedorismo; c) melhor coordenação e
coerência de ações, processos de tomada de decisão coletiva e maior
estabilidade organizacional, contribuindo para a redução de custos.
Mas é a partir da década de 1990,
que se percebeu a existência de forte
relação entre capital social e a formação de aglomerações produtivas localizadas. Estudos teóricos e empíricos4 demonstram que em aglomerações produtivas, especialmente aquelas reconhecidas como arranjos produtivos locais, as empresas (de micro,
pequeno e médio porte) têm mais condições de sobreviver de modo competitivo e sustentado. Em conjunto
com a sociedade local tem alcançado
índices de crescimento econômico
que viabilizam a retomada do desenvolvimento econômico-social local
(ALBAGLI e MACIEL, 2003).
Se o capital social é tido como um
ativo que possibilita a convergência
de interesses coletivos na direção de
determinado objetivo, neste caso
para o desenvolvimento econômico
de uma localidade, então se faz necessário entendermos também o significado que se está delineando para
o espaço de ação deste capital social, ou como se tem denominado na
literatura recente, o espaço territorial
do desenvolvimento.
Para a OCDE (1994) apud Abramovay (2000, p. 385), “um território
representa uma trama de relações
com raízes históricas, configurações
políticas e identidades que desempenham um papel ainda pouco conhecido no próprio desenvolvimento econômico”. A idéia de que é a
partir de uma realidade territorial
específica que se pode desencadear
o desenvolvimento econômico adveio
dos exemplos de sucesso obtidos na
Terceira Itália (década de 1980) e nos
EUA (1980/1990) com o Vale do Silício. Nestes casos o desenvolvimento econômico foi resultado de formas
específicas de interação social e da
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
4
capacidade inovativa e empreendedora da população local, a qual, através de suas empresas conseguiram
promover e construir ligações dinâmicas que foram capazes de valorizar conhecimentos, tradições e confiança, criando a sinergia necessária entre os atores locais em prol do
objetivo comum de superar seu estado de estagnação econômica (ABRAMOVAY, 2000).
Com base nestas experiências de
sucesso, percebeu-se que o desenvolvimento econômico está diretamente ligado à emergência do potencial
do capital social local, bem como com
as iniciativas de seus atores em inovar e em definir planos de ação coletivos que os levem a agir em direção
a projetos comuns que busquem desencadear o desenvolvimento econômico local. Neste contexto, o território é visto como um meio inovador,
até porque, as empresas por si só não
se transformam em agentes inovadores. Elas são partes de um meio onde
a história, a organização, os comportamentos coletivos e o consenso que
os estrutura é que são seus verdadeiros componentes de inovação.
Sendo assim, os comportamentos
inovadores de um território dependem, diretamente, das variáveis definidas no plano local e na densidade de seu tecido institucional e capital de relações (MAILLAT, 2002).
Storper (1996), apud Abramovay
(2000), afirma que os sistemas produtivos mais dinâmicos são aqueles
que se caracterizam pelas inovações
e que emergem das potencialidades
endógenas e diferenciadas de atores
coletivos ligados uns aos outros por
objetivos comuns e localizados. Ou
seja, conforme Albagli (1999), é no
nível local que se desenvolvem as
empresas e as atividades úteis ao
desenvolvimento econômico, social
e cultural de uma coletividade. É nele
que se apresentam os elementos de
transformações sócio-político-econômicos, pois é o locus operandi de novas formas produtivas e de parcerias, onde a competição cede lugar à
cooperação.
Assim, os lugares estão se especializando de acordo com suas con-
Ver mais referências www.ie.ufrj.br/redesist.
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
103
dições naturais, de sua realidade
técnica e de suas vantagens de ordem social. Na medida em que as
potencialidades dos lugares se evidenciam, suas escolhas para o exercício dessa ou daquela atividade se
tornam mais precisas, o que, segundo Santos (1996, p. 199) irá desencadear o sucesso dos empreendimentos lá existentes, “é desse modo que
os lugares se tornam competitivos”.
O local passa a adquirir conotações socioterritoriais de ação, passando a ser redefinido enquanto
agente ativo dos processos de desenvolvimento econômico. Para tanto se
faz necessário pensar o território
como um sistema, cujas ações coletivas devem objetivar a implantação e
a gestão de projetos que potencializem a economia local, gerando trabalho e renda através da criação de
pequenas e médias empresas.
Ou seja, é preciso instigar o potencial competitivo do território, pois
é através deste que se dinamiza a
organização e a participação dos
agentes sociais nos processos de
desenvolvimento econômico local
(MORAES, 2005). São as ações coletivas preconizadas por Schmitz
(1997) tidas como a tônica que dinamiza as mudanças necessárias à
construção de planos locais que possam levar ao desenvolvimento econômico. E são essas mesmas ações
coletivas que alteraram e estão movimentando a economia de Terra
Roxa, tendo nas empresas de confecções infantis o desencadeador de
superação da estagnação econômico que se apoderou do município
desde a década de 1970.
Mas para que se possa compreender, efetivamente, o processo de
desenvolvimento econômico do Município de Terra Roxa, se faz necessário resgatar, mesmo que em breves
palavras, seu contexto histórico,
ampliando essa análise a partir da
realidade econômica do país e do
próprio Estado do Paraná.
3 Um Brasil em transformação
3.1 A Compressão dos municípios pequenos
O processo de modernização da
agricultura brasileira, não obstante,
104
Tabela 1 - Trabalhadores Ocupados em Equivalente Homem na
Agropecuária Brasileira e por região – 1970 a 1995/96
Fonte: IBGE-Censo Agropecuário (1970, 1980, 1985 e 1995/96).
aos benefícios econômicos e sociais,
contribuiu para a concentração da
terra. O sistema de produção vinculado pelo pacote tecnológico atrelado ao crédito rural inviabilizou vários produtores rurais. A policultura
expressa pelo sistema de produção
tradicional, não apresentou a sustentabilidade econômica necessária,
detonando a “bomba” imigratória
do campo para as cidades que ocorreram na década de 1960. Este cenário acentuou-se nas décadas de 1970
e 1980, e continuou na década 1990,
cuja alteração da estrutura fundiária
passou a ser o fenômeno que reforçou os índices de urbanização em
quase todos os estados brasileiros.
A partir da década de 1970, a pequena propriedade entra em crise.
As estatísticas revelaram que o número de estabelecimentos rurais estava diminuindo e o impacto da concentração de terra nos estados do Sul
aumentando. Nas cidades do interior as mudanças na estrutura fundiária alteraram profundamente a
estrutura econômica e a fixação da
população nessas localidades. Portanto, o estudo e a análise do movimento populacional das cidades brasileiras e paranaenses é fundamental para entender o significado das
transformações sócio-econômicas e
espaciais que ocorreram a partir da
década de 1970.
A mão-de-obra rural ocupada
começa a reduzir-se drasticamente
no campo em função do alastramento da mecanização das culturas de
soja, trigo e milho. Um grande contingente populacional ficou sem trabalho e renda. Não só a pequena propriedade desapareceu, mas também
os trabalhadores rurais perderam
seus postos de trabalho. Considerando essas duas situações, nos fortale-
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
ce a idéia de que o movimento migratório campo-cidade no Brasil teve
um forte caráter de expulsão, estimulando os residentes do meio rural a
se deslocarem para as cidades e outras regiões.
A Tabela 1 revela o impacto que a
mecanização agrícola causou no
número de mão-de-obra empregada
na agropecuária brasileira. Este contexto nos conduz a uma forte reflexão sobre a necessidade dos municípios, ou mesmo regiões, vislumbrarem e concretizarem novas possibilidades de investir em mão-de-obra
não-agrícola ou urbano-industrial.
Alguns municípios estão conseguindo renovar a vida produtiva com
novas atividades, produzindo desenvolvimento com pouco ou mesmo nenhum vínculo com a atividade agropecuária, tal como, é o caso
das indústrias de confecção infantil
de Terra Roxa.
O crescimento econômico de
qualquer região (cidade, estado ou
país), pode ter um grande caráter de
“espontaneidade”, ou seja, sem planejamento. Por outro lado, o desenvolvimento pode ser planejado, programado e integrado do ponto de
vista social, produtivo e territorial.
Ora, o Brasil já teve uma forte experiência de planejamento, por meio de
diversos projetos de desenvolvimento iniciados na década de 1950, com
os Planos de Metas. Nas décadas
seguintes, no regime militar, outros
planos de desenvolvimento foram
adotados, mas estes tinham por alcance as macrorregiões brasileiras.
Contudo, a classe dirigente do país
percebeu que não bastava ter projetos de desenvolvimento bem concebidos e simplesmente fazer a sua
implementação. Havia o gargalo financeiro, pois os custos advindos
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Tabela 2 – Distribuição da população urbana segundo sua classe de tamanho – 1970 a 2000
Fonte: Brito, Horta e Amaral (2001). Dados Básicos: IBGE-Censos Demográficos (1970, 1980, 1991 e 2000)
destes projetos estavam, em grande
parte, atrelados ao sistema financeiro internacional. Além deste agravante, tinha-se ainda o problema da
inflação.
Após um longo período de diversas tentativas de combate a inflação,
somente na década de 1980/1990, é
que o governo começa a ter êxito em
seu controle. Mas, isto teve um custo
social e econômico considerável
para o país. Foram lançados e implantados sete planos de estabilização monetária, transformando o Brasil em um laboratório de controle inflacionário. O desenvolvimento planejado por meio de políticas públicas foi praticamente abandonado e
o crescimento das regiões e cidades
acabaram se tornando produtos de
iniciativas privadas ou políticas
públicas isoladas. Este fato contribuiu para que, em meados da década de 1990, conceitos como o empreendedorismo se tornasse a palavra
de ordem dos processos de crescimento econômico das localidades,
ou mesmo, do planejamento, por
meio de mecanismos de interação da
iniciativa privada e o público.
Nos últimos 30 anos a reorganização territorial bem como a sua evolução pode ser revelada pelos aspectos demográficos dos municípios.
Desta forma, deve-se examinar o cenário nacional, com a inversão da
população campo-cidade e a crise da
pequena propriedade, afetando fortemente as pequenas cidades, com
menos de 50 mil habitantes. Pode-se
observar por meio da Tabela 2 que
estas cidades estão reduzindo a sua
participação no total da população,
sendo liderados pelas cidades com
menos de 20 mil habitantes. De uma
participação de aproximadamente
26% da população em 1970, reduziu-se para pouco mais de 18% em
2000. Já as cidades entre 20 a 50 mil
habitantes tiveram a sua participação no total da população nacional
praticamente estável com uma certa
tendência de baixa.
Este comportamento populacional
demonstra uma certa crise geral das
pequenas cidades e, principalmente,
das menores. O movimento migratório que aconteceu no sentido campocidade fortaleceu as cidades maiores e apenas algumas conseguiram
crescer para alcançar o status de cidade média. O município de Terra
Roxa fez parte do movimento geral
que se observou no Brasil. Naturalmente, que cada região e cidade tiveram suas particularidades, contudo, muito de suas relações se igualam às causas já apresentadas aqui.
Sendo um pouco mais específico, a participação das cidades médias não-metropolitanas (100 a 500
mil habitantes), ao longo do período de 1970 a 2000, cresceu expressivamente no total da população
brasileira, passando de 10,29%, em
1970, para 17,31%, em 2000, números esses não acompanhados pelas
cidades médias que fazem parte das
regiões metropolitanas, que cresceram apenas 1,31%, no período, e
pelas cidades de maior porte, apesar do crescimento que ocorreu na
década de 1970 (BRITO, HORTA e
AMARAL, 2004).
Outro fato que merece atenção é
que de 1970 a 2000 ocorreu a eman-
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cipação política de 1.555 municípios, sendo 1.149 de pequeno porte,
com população de até 20 mil habitantes. No entanto, a participação da
população no total desses municípios diminuiu consideravelmente de
28%, em 1970, para 19,8%, em 2000.
Para os municípios do segundo extrato (20 a 50 mil habitantes), não foi
muito diferente, ou seja, houve um
aumento no número de municípios,
mas a população total também diminuiu cerca de 10% (Tabela 3).
As cidades médias exercem uma
grande atração regional de empresas e, conseqüentemente, de trabalhadores. Neste contexto, as transformações ocorridas no Paraná também refletiram as mudanças populacionais e as formas de organização
das cidades de maior porte (cidades
médias). O crescimento de algumas
e a redução de outras, foram resultantes das atividades sócio-econômicas, que por sua vez, foram construídas ao longo de uma trajetória
de desenvolvimento marcadas por
particularidades e ao mesmo tempo
integradas ao movimento geral do
desenvolvimento brasileiro e paranaense. Na região Oeste do Paraná,
por exemplo, a crise que está ocorrendo em muitos municípios pequenos é reflexo do efeito de polarização que está muito associado com a
agroindustrialização.
3.2 O Paraná na segunda metade do
século xx
No estado do Paraná até a década de 1940, as atividades econômicas eram restritas, basicamente, à extração da erva-mate e madeira. Nas
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
105
Tabela 3 – Classificação dos municípios segundo sua classe de tamanho – 1970 a 2000
Fonte: Brito, Horta e Amaral (2001). Dados Básicos IBGE/Censo Demográfico de (1970, 1980, 1991 e 2000).
décadas de 1950 e 1960 a produção
preponderante era o café e ainda a
extração da madeira. Contudo, foi
através da expansão da cultura do
café que o Estado sofreu sua transformação sócio-econômica (LEÃO,
1989).
A cultura do café era extremamente representativa no total da
produção agrícola e da economia
paranaense. “O crescimento acelerado da cafeicultura no Paraná, tratouse da mais dinâmica das economias
primário-exportadoras do Brasil, a
mesma que fora a base sobre o qual
se dera o desenvolvimento econômico de São Paulo, criara a ilusão de
que o estado [do Paraná] trilharia
agora o mesmo caminho.” (MAGALHÃES FILHO, 1996, p.9).
No entanto, no final da década
de 1960, a economia cafeeira apresenta sinais de sua fragilidade, pois
a sustentabilidade política que o café
teve quando ocorreu a sua expansão
em território paulista no século XIX
e início do século XX, já não se mantinha na segunda metade do século
XX. O foco do governo federal era a
indústria que se desenvolvia no estado de São Paulo, cujo financiamento adveio do confisco cambial do
café. Neste período, o estado de São
Paulo já não era o maior produtor
de café, mas sim o Paraná, sobre o
qual recaia todo o ônus pelo financiamento.
O ano de 1975 foi um dos mais
difíceis na história da economia
paranaense, contribuindo para que
ocorresse a mudança do perfil da
economia, tornando o Estado mais
urbano-industrial e menos rural. A
agricultura, setor que representava
106
mais de 40% da renda interna do
Estado, sofreu os efeitos dos fenômenos climáticos adversos, desde do
início desse ano, tendo por impacto
secas anormais que se alternaram
com geadas violentas e com o excesso de chuvas, o que resultou em pesados prejuízos para a agricultura.
Nesse ano as perdas nas lavouras
de café, trigo e cana-de-açúcar, nas
pastagens e criações de gado, nos
campos de produção de sementes e
em outras atividades vinculadas à
agropecuária foram equivalentes a
mais de um terço do Produto Interno
Bruto do Estado. (A ECONOMIA
PARANAENSE..., 1975).
“Em termos absolutos, as perdas
e prejuízos que resultaram da conjunção desses fatores, extremamente adversos, podem ser consideradas
como o maior revés da agricultura
paranaense, em toda a sua história”
(A ECOMOMIA PARANAENSE,
1975, p.61). A partir de então a economia do Estado começa a tomar
outra configuração, auxiliada pelo
intenso processo de modernização
da agropecuária, sendo a região Oeste do Paraná um dos territórios mais
afetados por este processo, o qual
alterou fortemente o seu perfil produtivo.
3.3 A marcha para o oeste do Paraná
A região Oeste do Paraná teve
dois fluxos colonizadores. O primeiro oriundo do fluxo migratório dos
estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, motivado principalmente pelas empresas colonizadoras. O
segundo foi impulsionado pela cultura do café, tornando-se uma extensão da expansão do Norte do Esta-
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
do, a qual atravessou o Rio Pequiri.
O fluxo populacional era mais heterogêneo, originava de São Paulo,
Minas Gerais, Espírito Santo e do
Nordeste brasileiro. O povoamento
do Oeste do Paraná por estas pessoas contribuiu para o surgimento de
vários municípios, tais como, Terra
Roxa, Assis Chateaubriand, Palotina, Tupãssi, Corbélia, Cafelândia,
entre outros (COLODEL, 2003).
Pode-se notar que o Oeste do
Paraná sofreu um processo migratório inverso ao que ocorreu no Brasil a partir dos anos 1950. No setor
rural brasileiro ocorria um forte processo de esvaziamento, atraído pelo
crescimento do setor urbano-industrial da região Sudeste, e principalmente no estado de São Paulo. A
produção agropecuária de modo geral não tinha praticamente nenhuma incorporação tecnológica. A estrutura fundiária concentrada era
apontada como uma das causas,
pois com exceção do Sul do país havia grande predomínio dos latifúndios. A forma preponderante de expandir a produção era por meio da
incorporação de terra. Com efeito,
as fronteiras agrícolas tinham que
ser agregadas ao processo produtivo nacional.
O Oeste paranaense era considerado a última fronteira agrícola do
Sul do país. A princípio a sua ocupação, idealizada na década de
1930, tinha por componente principal a segurança nacional, mas a partir da década de 1950 o grande
êxodo rural poderia comprometer a
produção agropecuária e a colonização contribuiu para contrapor a
este movimento.
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É a partir dos anos 1960, que a
região teve sua grande explosão
populacional. Entre 1960 e 1970, a
região recebeu 374.082 pessoas, e a
taxa decenal de migração de 0,82%
a.a.. Neste período apenas o Distrito
Federal, considerada área de fortíssima atração populacional, recebeu
mais migrantes que o Extremo Oeste
Paranaense (RIPPEL, 2004).
A partir da década de 1970, teve
início na região uma nova fase de
produção agrícola. A modernização
da agricultura brasileira que se alastrou fundamentalmente pelas regiões Sul e Sudeste encontrou condições sócio-econômicas para ser implantada no Oeste do Paraná. O crédito rural oficial e subsidiado era
atrelado a um pacote tecnológico. As
lavouras temporárias, como as culturas de soja e trigo, foram as principais responsáveis pelo crescimento
da produção agrícola e desenvolvimento da região. A produção não
resultava mais da policultura de
subsistência, mas da especialização
na produção de soja e trigo destinados ao mercado interno e exportador (PIFFER, 1997).
Os pequenos proprietários foram
alvo deste processo de reorganização
do espaço rural e muitos estabelecimentos desapareceram da contagem
dos Censos Agropecuários. O esvaziamento populacional do campo,
resultante da queda da população
rural ocorrida nas regiões Norte e no
Oeste paranaense tiveram suas causas nas transformações que constituíram a modernização da agropecuária. Essa redução ocorreu de forma mais nítida nessas regiões, onde
houve um grande adensamento populacional decorrente da expansão
agrícola que ocorreu anteriormente.
O movimento de concentração
fundiária foi um dos responsáveis
pelo forte processo de êxodo rural:
entre 1970 e 1980 as migrações na
região Oeste do Paraná deixaram um
saldo negativo de 117.047 pessoas.
Na década seguinte mais 62.295 pessoas deixaram a região. Boa parte
destas 179.342 pessoas deixou o setor rural (1970 a 1990) deslocandose para o meio urbano. Em 1970 a
população rural do Oeste do Paraná
estava na ordem de 80%, já em 1980,
a população rural e urbana iguala-
Figura 1 – Evolução da população de Terra Roxa de 1970-2000.
FONTE: IBGE- Censo Populacional (1970, 1980, 1991 e 2000).
vam-se em 50%, iniciando a década
de 1990 com uma população urbana de aproximadamente 71%. A alteração na composição da população dos municípios na região Oeste
do Paraná bem como no Estado tornaram ambos mais urbanizadas.
Esta situação está associada à necessidade de geração de emprego
nas cidades.
A partir da década de 1990, a produção agroindustrial nas regiões
produtoras de grãos e outras matérias-primas agropecuárias cresceu
verticalmente e começa a ter grande
visibilidade para a sociedade e os
segmentos políticos, o que contribuiu para que essas regiões caminhassem para a viabilização do desenvolvimento regional e, particularmente, alguns municípios se tornassem pólos com grande área de influência atraindo novos investimentos
e, fundamentalmente, a população
dos municípios vizinhos. Também
se tornaram receptores de antigos
produtores rurais que hoje não tem
mais a sua propriedade agrícola.
Mais recentemente, a região Oeste
do Paraná teve um grande processo
de agroindustrialização concentrada
em alguns municípios em razão de
vários vetores derivados de vantagens locacionais. Do ponto de vista
institucional também há vantagens
por meio do recebimento de royalties
pelos municípios lindeiros que fazem
margem com o lago de Itaipu. Há também o município de Foz de Iguaçu
que é um pólo turístico. No caso de
Terra Roxa apesar de ser um município lindeiro recebe um valor irrisó-
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rio, não contribuindo como fator
exógeno para aumentar a sua vantagem locacional como ocorre com outros municípios lindeiros e não foi
alvo de investimentos da indústria
processadora dos produtos agropecuários. De fato, havia um caminho
aberto para o forte declínio desse município.
3.4 No oeste paranaense, o solo de terras roxas
O município de Terra Roxa está
situado na parte norte da Região
Oeste do Paraná, e encontrou-se no
centro do fenômeno de ocupação citado anteriormente. Em 1970, o município também ingressou na segunda fase econômica paranaense, caracterizada pela produção agrícola
centrada no binômio trigo e soja, altamente tecnificada, mecanizada e
com largo uso de insumos. A transição da primeira fase para a segunda
contribuiu para a emigração do Oeste
do Paraná, revelando grande a substituição de mão-de-obra rural por
máquinas e equipamentos, acarretando na estrutura fundiária mais
concentrada.
Em Terra Roxa este processo de
emigração foi particularmente dramático. Entre 1970 a 1980, considerando-se a migração inter-estadual,
intra-estadual e intra-regional a população decresce de 37.452 habitantes para 25.535, e entre 1980 a 1990
para 19.820 habitantes e, ainda, entre 1990 a 2000 o decréscimo deixa
um saldo populacional de apenas
16.293 habitantes no município,
como demonstra o Figura 1.
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
107
Figura 2 - Quantidade colhida de mandioca em Terra Roxa de 1974-2003 (tonelada)
Fonte: IPARDES (2005)
Figura 3 - Quantidade produzida de algodão em Terra Roxa de 1990-2003 (em toneladas)
Fonte: IPARDES (2005).
O decréscimo populacional do
município de Terra Roxa, principalmente na década de 1970, pode ser
explicado pela transformação no
modelo de produção agrícola que
afetou todo Oeste do Paraná e que já
foi comentado anteriormente. Terra
Roxa não escapou da tendência geral dos movimentos demográficos
que ocorreu no Brasil, de redução de
tamanho das pequenas cidades. Excluído os aspectos políticos, religiosos, raciais ou mesmo de risco de
integridade física e psicológica o indivíduo tem a sua moradia onde ele
obtém a sua renda, por meio do seu
próprio negócio ou tendo uma ocupação assalariada. A evasão populacional dos pequenos municípios na
grande maioria é reflexo do baixo
dinamismo econômico.
No Paraná principalmente na
década de 1990, ocorreu intenso pro-
108
cesso de migração intrarregional.
Esta situação não poupou, principalmente, os municípios menores do
Estado, tal como o município de Terra Roxa, onde seus habitantes não
fixaram residência em função de não
visualizarem a possibilidade de geração de renda para suas famílias.
Mesmo sendo a agricultura a grande geradora de renda para o município, logo se percebeu que a mesma
não dava conta de atender a abundante oferta de mão-de-obra existente, até porque na situação de pequeno proprietário não havia muita demanda de serviços. Outro agravante foi o fato de Terra Roxa estar cercada por várias cidades mais dinâmicas, como: Cascavel, Toledo e Foz
do Iguaçu, e em segundo plano as
cidades de Palotina e Guairá.
Para ilustrar a evolução da produção agrícola do município, foram
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
selecionados 4 produtos, que representam as culturas produzidas pelas propriedades familiares na década de 1970 – café, algodão herbáceo e milho. As figuras 2, 3, 4 e 5 demonstram muito bem como a alteração da composição das culturas em
Terra Roxa tornou desfavorável seu
cultivo para a pequena propriedade. As culturas do café e algodão foram, praticamente, dizimadas no
município. Eram produtos dinâmicos e cultivados pela pequena propriedade. O café na década de 1970
reduziu a sua produção como discutido anteriormente em virtude da
geada de 1975 que afetou essa cultura no estado do Paraná. Já o algodão, na década de 1990, teve a sua
redução devido ao deslocamento da
cultura para a região Centro-Oeste
(Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e
Goiás) porque propiciava a implan-
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Figura 4 – Quantidade produzida de milho em Terra Roxa de 1990-2003 (em toneladas)
Fonte: IPARDES (2005).
Figura 5 – Quantidade produzida de café em Terra Roxa de 1990-2003 (em toneladas)
Fonte: IPARDES (2005).
tação de um novo padrão tecnológico (a mecanização). As culturas do
milho e mandioca continuaram a ser
cultivadas em grande parte para subsistência.
As transformações sócio-econômicas que ocorreram no campo refletiram diretamente na redução da
população de Terra Roxa. Uma vez
que, as opções de trabalho diminuíram com a redução da pequena propriedade, e as outras cidades mais
próximas e até mais afastadas pareciam mais atrativas. No entanto, a
situação começa a mudar com o
surgimento das primeiras empresas
de confecção infantil. As quais, a
partir da segunda metade da década de 1990, registram um rápido crescimento de absorção de mão-de-obra
local. A Figura 6 demonstra a mudança do perfil do município, nos quais
o expressivo aumento do emprego da
mão-de-obra no setor industrial, sobrepõe o ramo tradicional local (agricultura) e inclusive serviço. Verificase que a partir de 1999 ocorreu crescimento abrupto da ocupação industrial e, por sua vez, crescem os setores de serviço e comércio.
4 Evidências empiricas da
emergência do capital social
e territorialidade
Nos primeiros anos da década de
1990, o cenário nacional, tanto econômico quanto político, não era
muito favorável no Brasil bem como
no Paraná. Os municípios da Região
Oeste do Paraná já vinham enfren-
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
tando a crise das pequenas propriedades, como narrado anteriormente. Neste mesmo período, em Terra
Roxa, inicia-se um fenômeno que
refletia a necessidade de mudar. A
primeira empresa de confecção infantil surgiu a partir do ideal de uma
das moradoras em contribuir no orçamento familiar.
Inicialmente, era um hobby de
uma das moradoras de Terra Roxa,
Dona Celma, que bordou o enxoval
de seus filhos, que por sua vez, expandiu a atividade de forma restrita
para aumentar o orçamento familiar como é muito comum nas mulheres que não se engajam no mercado
de trabalho, e preferem atuar por
conto própria ou se deparam com a
realidade de falta de oportunidade,
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
109
Figura 6 - Evolução da ocupação de trabalho, por setores da economia em Terra Roxa de 1985-2002.
Fonte: RAIS (vários anos).
e sem dúvida Terra Roxa não era um
lugar propício para geração de emprego. No entanto, esta atividade
complementar tomou rumos maiores, primeiro tornando-se atividade
principal da família, com a adesão
do esposo, isto ainda na primeira
metade da década de 1990. Vários
fatores fizeram que alcançasse o êxito dessa atividade no âmbito familiar, no entanto, o mesmo se estendeu
e se alastrou pela cidade ávida por
um modelo de sucesso que outras
habitantes queriam replicar com
suas famílias. Desta forma, estavase levantando uma bandeira de resistência ao declínio econômico e
sem dúvida no logo prazo refletiria
no dilaceramento do tecido social.
Em menos de cinco anos, a idéia
de investir em confecções para bebês contagiou parcela expressiva
dos empresários locais e de novos
empreendedores, os quais passaram
a investir neste segmento, iniciando
uma nova fase na história econômica de Terra Roxa. Mas foi em 2004
que “nasceu” oficialmente a organização denominada de “Arranjo Produtivo Local de Moda Bebê de Terra
Roxa”, em decorrência do crescente
número de empresas que se especializaram no setor. Essa organização
expressou a vontade dos empresários em criar uma agenda em comum
de discussões e ações para fortalecer o coletivo das empresas locais
110
(ARRANJO PRODUTIVO CONFECÇÃO MODA BEBÊ, 2004). Segundo
Staduto, Willers e Azevedo (2005),
em 2005 existiam cerca de 47 empresas regularmente abertas e ativas. E
com a criação dessa organização o
conjunto das empresas pode alcançar os conceitos mais elaborados
que a literatura configura como arranjo produtivo local.
A seguir são colocadas algumas
evidências sobre os elementos que
conduziram para o crescimento dessas empresas e ao desenvolvimento local, os quais estão assentados
sobre um território que foi construído fundamentalmente pelo processo de resistência dos seus moradores frente a um declínio econômico persistente.
A história dos empresários das
confecções de moda bebê de Terra
Roxa está diretamente vinculada à
história do Oeste do Paraná, de uma
maneira geral, e da história do município de um modo mais específico. A maioria absoluta dos empresários nasceu ou veio a residir ainda criança no município, acompanhando o itinerário de seus pais. Segundo o LIS (2004), 67% dos empresários de confecções são nascidos
em Terra Roxa ou residente desde a
infância, e 33% mudou para Terra
Roxa depois dessa época.
O vínculo entre estes empresários e a história regional municipal é
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
a origem rural da grande maioria dos
empresários. Entre 27 empresários
pesquisados, 21 deles (77,8%) são
filhos de agricultores e 7 ainda tem
a agricultura como seu meio de vida.
Este dado remete diretamente ao índice de esgotamento de postos de
mão-de-obra no setor rural como
demonstrado anteriormente.
Com respeito às atividades realizadas anteriormente por esses empresários, em boa parte dos casos,
os mesmos já operavam em alguma
atividade relacionada com a área em
que atualmente estão empreendendo. Entre os 27 entrevistados 9 atuavam em áreas diretamente relacionadas ao setor de confecções, outros
5 atuavam como empresários e os
demais eram autônomos ou funcionários assalariados. A origem das
empresas é proveniente de capital
autóctone, ou seja, as empresas nasceram com capitais oriundos da economia pessoal de cada um dos empresários. Indagados diretamente
sobre esta questão mais da metade
dos empresários indicaram esse expediente como a fonte de recursos do
seu empreendimento (LIS, 2004).
As fontes de inspiração para a
tomada de decisão de ingresso no
ramo foram diversas, entre elas destacam-se principalmente o conhecimento de atividades do ramo, opinião de amigos ou familiares do
ramo, bem como o aproveitamento
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
de mão-de-obra local (LIS, 2004). A
maior parte das empresas de confecção infantil Terra Roxa foram criadas a partir de 2000. Essas empresas na grande maioria são de micro
e pequeno portes sendo que cerca de
96% tem menos de 100 empregados,
e 71%, destas, tem até 20 empregados, como ilustra a Tabela 4.
Tabela 4 - Empresas de confecção
moda infantil segundo o número de
empregados em 2003.
Figura 7 - Qualificação nas próprias empresas confecção infantil de Terra
Roxa por ocupação
Fonte: Censo Empresarial (2005).
exportados e a competir com os produtos de outros estados brasileiros,
a Tabela 5 ilustra esta expansão.
Fonte: CAGED (2004).
As empresas no ramo de confecções infantis são na maior parte de
fabricação dos vestuários. Há outras
empresas atuando como prestadoras de serviços, principalmente fazendo as costuras das roupas e aplicando os bordados. É provável que
com a expansão da produção nos
próximos anos a participação das
empresas prestadoras de serviços se
amplie, como um processo natural
de complexificação e de fortalecimento da estrutura produtiva. Segundo o Censo Empresarial (2005),
96% da empresas são de industriais
de confecção infantil e 4% são de
prestadoras de serviços.
A mão-de-obra empregada nestes estabelecimentos é preponderantemente formal e os treinamentos ocorrem na maioria, no âmbito
interno das empresas (Figura 7). O
processo de aprendizagem iniciou
extremamente endógeno, desta forma, espera-se haja forte respostas
dos agentes com a introdução organizada de treinamento da mão-deobra, e que ocorra um aprendizado
coletivo.
O setor desde seu surgimento
ampliou significativamente a abrangência de seu mercado. Hoje seus
produtos não se limitam mais ao
mercado regional, passando a ser
Tabela 5 – Destino das vendas das
empresas de confecção infantil de
Terra Roxa em 2004
Fonte: Censo Empresarial (2005).
Segundo o Censo Empresarial
(2005), constata-se que 82% das empresas têm marca própria, um resultado extremamente positivo, pois
configura a autonomia em termos
de designer e de produção das peças produzidas pelas empresas, aumentando expressivamente as chances de fixação das marcas no mercado. Desta forma, estas empresas
diferenciam-se das chamadas empresas de facção. As empresas respondem por boa parte da criação de
suas roupas, 75% têm até 100% de
criação própria, 17% e 8% têm até
90% e 80%, respectivamente, de cri-
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
ação própria. Esta constatação evidencia e valoriza o potencial artístico local.
Contudo, o que se destaca na
análise feita, é que as mudanças
ocorridas na estrutura econômica
de Terra Roxa foram oriundas do
capital social local e está refletindo
em um rápido posicionamento no
mercado de moda bebê. No caso
deste município, o capital social
parece ter maiores proporções, por
ter uma parcela expressiva de empresários nascidos no município.
Este fato “criou” um vínculo maior
com a idéia de crescer e morar no
município natal. Um outro elemento importante para caracterizar a
origem comum dos empresários é a
origem rural dos mesmos, pois 78%
deles afirmaram que entre as profissões exercidas pelos pais estava
a de agricultor (Censo Empresarial,
2005).
Outro indicador que representa
um traço de capital social é as relações constituídas entre os empresários, uma vez que, o círculo social de
convivência dos empresários é formado em sua grande maioria por pessoas do mesmo ramo. A Figura 8 mostra que parcela pequena dos empresários pesquisados apresentava baixo nível de confiança nos seus colegas de atividade. Estes dados evidenciam uma forte propensão à coesão
social, pois existe uma confiabilidade
média tendendo para o crescimento
entre os empresários.
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
111
Figura 8 – Nível de confiança entre os empresários das confecções moda
bebê de Terra Roxa.
Fonte: LIS (2004)
Quadro 1 - Exemplos de benefícios
citados pelos empresários das confecções infantis de Terra Roxa
Fonte: LIS (2004).
Atualmente, com a implantação
do Grupo Gestor APL de Moda Bebê
de Terra Roxa a totalidade dos empresários vinculados a esta associação declararam haver colaboração
entre as empresas, e cerca 93% das
empresas já recebeu algum tipo de
benefícios. No Quadro 1 são listados
esses benefícios.
5. Considerações finais e perspectivas
Como exaustivamente visto, o
município de Terra Roxa tinha uma
112
base econômica apoiada na produção agropecuária e, atualmente mais
diversificada, tende a uma complexidade nas relações intersetoriais
pelo efeito desencadeador gerado
pelas empresas de confecções infantis.
No final dos anos de 1950 até início da década de 1970, ocorre o esgotamento da fronteira agrícola associado ao processo de tecnificação
agrícola em áreas de ocupação mais
antigas, o que gerou um importante
processo de emigração na região.
Com a modernização da agropecuária uma enorme quantidade de
mão-de-obra foi liberada e, não tendo um suporte industrial urbano
próximo que pudesse representar
alguma alternativa, a solução foi à
migração para outras fronteiras
agrícolas, ou mesmo para centros
urbanos mais próximos. Foi o que
ocorreu em Terra Roxa entre 1970 a
1980, quando praticamente 15 mil
pessoas, deixaram o município.
A incapacidade de absorção urbana se refletiu nos índices estacionários do emprego no setor da indústria e de serviços até, pelo menos,
no final da década de 1990. É neste
período (final de década de 1990 e
início de 2000) que começam a proliferar as empresas de confecções infantis.
A origem familiar agrícola da
maior parte dos empresários indica
o esgotamento ocupacional do setor
e a necessidade de busca por outros
caminhos. A escolha deste caminho,
num primeiro momento, deveu-se à
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
perspicácia de alguns empresários
que perceberam um mercado promissor para empresas de confecções infantis, ainda na década de 1990.
Num segundo momento, foi o aprendizado e a percepção do setor, ainda
em crescimento, que levou alguns
empregados a tentarem o empreendimento próprio. O que aparece,
sempre em comum, é que esses empresários são em sua grande maioria moradores de longo tempo no
município e, ainda, que são os geradores dos recursos financeiros utilizados para iniciar seu próprio negócio.
Contudo, a sociedade de Terra
Roxa, 25 anos depois da grande perda populacional da década de 1970,
visualiza nas empresas de confecções infantis, uma nova oportunidade de recuperação da economia local. Surge um nicho de mercado que,
desde seu início já se configurou
como opção de crescimento econômico.
Os empresários de confecção infantis perceberam que não resolveriam as dificuldades de gerar renda
e bem estar para suas famílias mudando para outras regiões. A estratégia encontrada pelas pessoas que
decidiram ficar em Terra Roxa foi a
de apostar na idéia das empresas de
confecções infantis. Esta ação evidencia os principais agentes de mudança da cidade e da sua população. É
o que se chama de capital social, e é
esta particularidade que atribui uma
territorialidade específica e única, se
comparado aos demais municípios
de seu entorno.
Enfim, nas décadas de 1970 e
1980 o agente fundamental da economia do município foi a terra, tida
como recurso físico que desenvolvia
o capital produtivo local. Hoje, o que
fez Terra Roxa ganhar um “novo fôlego” não é mais a terra, mas, sim
sua gente e sua capacidade de gerar
renda de um atividade que escapa
da vocação da região, a anti-vocação. Gente em sua maioria nascida
ou criada no município e que, como
muitos outros agricultores e filhos
de agricultores, viu seu meio de vida
definhar em pouco mais de uma
geração. Agora, com o surgimento de
um novo caminho de crescimento eco-
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
nômico a ser trilhado, cuja expansão
depende, essencialmente, de sua população, tida como o verdadeiro capital de sua retomada econômica.
Essas pessoas são o diferencial de
competitividade e de sucesso deste
município, e é nelas que se deve investir.
A constituição do Grupo Gestor
APL de Moda Bebê de Terra Roxa
parece ser um ato consciente neste
sentido, e os empresários do setor
parecem estar convencidos de que
sua empresa depende desta “matéria prima”, que se configurou por
uma “gente” que vive e trabalha
nesta cidade. Desta forma, uma
empresa que treina funcionários
não pode ser vista apenas como sua
concorrente, mas sim uma colaboradora.
Para tanto, é necessário ter claro
que a expansão econômica de hoje
só aconteceu em função da existência da existência da população que
vive em Terra Roxa, apesar dela ter
uma composição heterogênea, pois
foi formada por imigrantes de vários
estados do Brasil, e de se tratar de
um município jovem. As empresas
de confecção infantil por mais que
sejam de capital privado, têm um
grande componente de construção
coletiva, cuja organização se configura na atual constituição do APL.
Para uma gente que através de
sua história viu seus próximos partirem em busca de alternativas de
melhoria da qualidade de vida. Para
uma população que, muito provavelmente, tenha, em cada família, um
parente que, há anos atrás, tenha
migrado de seu local de origem e que
hoje, muito provavelmente, também
já tenha em cada família um membro
que já possua alguma experiência
nas empresas de confecções infantis.
Desta vez, no entanto, não é a terra o
principal bem, mas o seu povo. Assim, como a terra se cultiva para produzir, a “gente” de Terra Roxa também deve ser “cultivada” para que
possa manter-se produtiva.
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O primeiro da sua categoria no Estado da Bahia
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
113
DETERMINANTES DO CRESCIMENTO DA
POPULAÇÃO E DO EMPREGO DAS
MICRORREGIÕES DO NORDESTE DO BRASIL 1970/1996: UMA ABORDAGEM ECONOMÉTRICA
José Raimundo Vergolino 1
Alexandre Domingos Sávio Caldas Jatobá 2
Resumo
A Região Nordeste do Brasil, ao
longo das décadas de 70 e 80, apresentou uma performance econômica que, para os padrões de uma região localizada na periferia do capitalismo brasileiro, pode ser caracterizada como virtuosa. Apesar disso,
esse resultado positivo, tanto no contexto econômico quanto no social,
não foram capazes de diminuir os
níveis absolutos de pobreza.O objetivo principal deste trabalho é analisar os determinantes do crescimento da Região Nordeste, no período
1970-1996, a partir de um banco de
dados sociais, demográficos e econômicos ao nível das microrregiões
– aglomerados de municípios com
as mesmas características geoeconômicas.
O trabalho está divido em seis seções. A primeira contempla a introdução. A segunda seção contempla
breves considerações sobre a dinâmica do emprego e da população da região nordestinas nos últimos anos.
A terceira apresenta o marco teórico
e a quarta contempla a escolha do
modelo econométrico a ser utilizado.
A quinta seção mostra os principais
resultados obtidos e a última seção
enumera as principais conclusões e
algumas recomendações.
Palavras chave: População, emprego, Nordeste.
had an economic performance that,
considering a region located in the
periphery of the country, can be
characterized as virtuous. But these
results were not sufficient enough to
diminish the poverty level of the
region. The main purpose of this
paper is to analyze the determinants
of growth of the Northeast, in the
period of 1970-1996, using a data
bank of social, demographic and
economic variables in a microrregional perspective – group of cities
with similar geoeconomic features.
The paper is divided in six sections. The first section contains the
introduction. The second is a brief
summary of the dynamics of population and employment in the region.
The third and the fourth sections
contain the theoretical approach
and the econometric model used in
this work, respectively. The fifth
section shows the main results of the
estimations. Finally, the last section
contains the conclusion and some
recommendations regarding public
policies.
Key words: population, employment, Northeast.
Introdução
A Região Nordeste do Brasil, ao
longo das décadas de 70 e 80, apresentou uma performance econômica que, para os padrões de uma re-
Abstract
The Northeastern Region of Brazil, during the 70s and the 80s, has
114
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
gião localizada na periferia do capitalismo brasileiro, pode ser caracterizada como virtuosa. O Produto Interno Bruto regional cresceu acima
da média do país. Parte desse crescimento pode ser explicado pelo
avanço das atividades manufatureiras, cujas plantas procuraram se instalar nos principais sítios urbanos
existentes na região. A balança comercial regional com o resto do mundo apresentou-se sistematicamente
superavitária. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) regional,
mesmo abaixo da média nacional,
apresentou taxas de crescimento acima da média do país, sugerindo a
ocorrência de um processo de convergências nos padrões de bem-estar. Esses resultados positivos, tanto no contexto econômico quanto
social, rebateram, todavia, de forma
bastante tênue, sobre o panorama da
pobreza e sobre o perfil de distribuição da renda pessoal.
No contexto demográfico, a região
Nordeste apresenta singularidades
dignas de menção. Em 1996 abrigava, aproximadamente, 44 milhões
de habitantes, e três Regiões Metropolitanas. É a segunda região brasileira em contingente populacional.
Apresenta o maior percentual de famílias pobres do país e de população rural, as maiores taxas de analfabetismo, mortalidade infantil e
fecundidade, a menor esperança de
1
Ph.D. em Economia-University of Illinois-USA. E-mail: [email protected]
2
Mestre em Economia – UFPE E-mail:[email protected]
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
vida ao nascer e o menor grau de
urbanização. Além disto, desde os
anos quarenta tem se constituído
num centro expulsor de população
para o restante do país (CAMARANO, 1998).
Em relação ao comportamento do
emprego, as evidências mais recentes indicam um processo de crescimento do grau de informalização
dos postos de trabalho acompanhado de um processo de precarização
desses empregos. Com efeito, o processo de industrialização que se instalou na Região, apoiada com recursos governamentais, foi intensivo
em capital físico gerando, por via de
conseqüência, um número reduzido
de novos empregos formais. Sucede,
todavia, que o rebatimento do processo de industrialização sobre o
segmento terciário foi bastante intenso. Nesse sentido foram criados centenas de postos de trabalho, do tipo
formal, no segmento terciário, mas
que não foram capazes de absorver
grande parte da População Economicamente Ativa. O excedente da
PEA, bastante elevado, tomou o caminho da informalidade.
O desenvolvimento da atividade
industrial na região Nordeste, como
não poderia deixar de acontecer, concentrou-se naqueles sítios urbanos de
maior nível de renda e que dispunham de uma boa oferta de infra-estrutura econômica e social. O impacto dessa concentração sobre o crescimento populacional dos aludidos sítios foi significativo, levando, num
espaço de 40 anos, a formação de três
grandes regiões metropolitanas –
Recife, Salvador e Fortaleza.
O entendimento do processo de
transformação da economia e da sociedade nordestina, nas últimas três
décadas, não se apresenta trivial.
Inúmeras variáveis sociais e econômicas, fortemente interrelacionadas,
explicam o comportamento da sociedade. O objetivo desse trabalho é
de investigar uma faceta da questão.
Trata-se de analisar o comportamento da população e do emprego no
espaço regional, no período 1970-96,
fase que coincide com o período de
grandes transformações da economia brasileira e regional.
Tabela 1 – Nordeste: Índice de Crescimento da População dos Estados
Nordestinos
Fonte: IBGE. Censos Demográficos
A dinâmica da população e
do emprego
População
Historicamente, a Região Nordeste vem apresentando características
bem peculiares no que diz respeito a
sua dinâmica populacional. Segundo Camarano (1998), as transformações demográficas no Nordeste têm
se dado de forma defasada em relação às outras regiões brasileiras e os
diferenciais intra-regionais são bem
mais expressivos do que os diferenciais inter-regionais.
A região contém o segundo maior
contingente populacional do país,
atrás apenas da Região Sudeste.
Além disso, a região apresenta o maior percentual de população pobre e
de população rural do país. Outra
característica marcante da dinâmica
populacional nordestina é que a região tornou-se, desde os anos 40, uma
região de emigração. Assim, apesar
de continuar sendo a região com o
segundo maior contingente populacional do país, o Nordeste vem perdendo ao longo dos anos sua posição relativa. Em 1872, a população
do Nordeste representava 47% da
população brasileira e, em 1996, esse
percentual caiu para 28%. A tabela 1
mostra que, em termos de crescimento populacional, o Nordeste obteve o
segundo pior desempenho dentre as
regiões brasileiras, atrás apenas da
Região Sul. Segundo Camarano
(1998), este fraco desempenho da Região Nordeste se deve, principalmente, das altas taxas líquidas de migração negativas.
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Como mencionado anteriormente, a região nordestina também apresenta desigualdades intra-regionais
bastante acentuadas. Desde 1970 até
1996, os três estados de maior contingente populacional detêm cerca
de 60% da população da região.
Além disso, as microrregiões das três
regiões metropolitanas da região
concentravam, em 1996, 18% do total da população. Considerando-se
também as microrregiões das demais capitais este percentual sobe
para 28%. A tabela 2 evidencia o
padrão concentrador das microrregiões das capitais, uma vez que, entre 1970 e 1996, a taxa de crescimento de todas as capitais foi bem maior
do que a taxa de crescimento do conjunto das demais microrregiões da
região.
Deste modo, a dinâmica populacional nordestina apresenta duas
características bastante peculiares.
Primeiramente, o Nordeste apresenta um padrão de concentração populacional em torno dos seus principais centros urbanos (as capitais).
E, em segundo lugar, o Nordeste vem
perdendo sua posição relativa em
relação à demais regiões do país.
Emprego
As informações sobre emprego
em uma perspectiva temporal, a nível microrregional, estão presentes
nos Censos e desde 1986, são disponibilizados, anualmente pela Rais
do Ministério do Trabalho. Desta
maneira, será utilizado para a análise da dinâmica do emprego nordestino, uma combinação dos dados de
Pessoal Ocupado publicados pelo
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
115
Tabela 2 – Nordeste: Taxa de Crescimento das Microrregiões do Nordeste
Fonte: IBGE. Censos Demográficos
Tabela 3 – Nordeste: Participação dos Estados no Total do Pessoal Ocupado
Fonte: IBGE.Censos Demográficos 1970 e 1980. Para 1996 MT/Rais.
Tabela 4 – Nordeste: Participação das Microrregiões no Total do Pessoal
Ocupado
IBGE através dos Censos Econômicos e Demográficos de 1970, 1980 e
1991 e os dados da RAIS para os
anos de 1991 e 1996.
Em termos estaduais, nota-se no
caso nordestino uma concentração
dos empregos nos seus três principais estados, a saber, Bahia, Pernambuco e Ceará, semelhante ao caso da
população. Trata-se dos Estados da
Região que apresentam os maiores
níveis de Produto Interno Bruto. No
período analisado, a participação do
emprego mantém-se em torno de 60%
com um ligeiro aumento da concentração no período 1980-1996. A participação de Pernambuco no emprego total, no período 1970/96, permanece estagnada enquanto cresce o
índice da Bahia e do Ceará. O fato
singular diz respeito à elevada participação do estado do Maranhão no
total do pessoal ocupado, sem apresentar uma forte correspondência
com o PIB do Estado (tabela 3).
Outra característica da dinâmica
do emprego na região é a forte concentração nas regiões metropolitanas e nas capitais. Entre 1970 e 1996,
a concentração dos empregos nas
microrregiões das regiões metropolitanas e das demais capitais tem se
intensificado. A tabela abaixo mostra que, em 1970, o emprego das
microrregiões das capitais representava cerca de 6% do total do emprego nordestino. Esta participação
aumentou para cerca de 26% em
1996. Nota-se que o processo de concentração foi mais intenso no período 1980 a 1996 (tabela 4).
Marco teórico
Fonte: IBGE Censos Demográficos 1970 e 1980. Para 1996 MT/Rais.
116
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
O crescimento das regiões tem
sido bastante explorado pelos analistas regionais nos últimos trinta
anos. Dentre os vários aspectos analisados, destaca-se a discussão acerca do movimento e do crescimento
populacional, como também do emprego de algumas regiões em detrimento à perda populacional e diminuição do nível de emprego de outras regiões. Em primeiro lugar, tem
sido dado destaque a questão da relação de causalidade entre a migração ou o crescimento populacional
e o nível de emprego. Em segundo
lugar, tem-se procurado determinar
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
que outros fatores influenciam a migração e o crescimento populacional,
bem como a oferta de empregos de
uma determinada região.
Existe uma corrente da ciência regional, liderada por Blanco3, Mazek4
e Lowry5, que defende que os diferenciais entre as taxas de migração a nível de regiões são induzidos pelo
crescimento diferenciado nas oportunidades de trabalho ou emprego. Esta
corrente se baseia na Teoria da Base
Exportadora do Crescimento Regional. A segunda delas, defendida por
Borts e Stein6, diz que as variações no
emprego são induzidas por diferentes taxas de imigração.
O movimento de migração, assim
como o crescimento populacional,
provoca um deslocamento da curva
de oferta de trabalho e, com isso, uma
mudança na remuneração do trabalho/hora para baixo, caso a demanda por trabalho permaneça invariante. A extensão deste deslocamento irá depender na composição
demográfica dos migrantes. Quanto
maior o número de migrantes na faixa etária chamada “população economicamente ativa”, maior será este
deslocamento. A variação do emprego que resulta do deslocamento da
oferta de trabalho irá depender da
elasticidade da demanda por trabalho e na programação da oferta de
trabalho na região. Além destes, a
variação no emprego irá se refletir
nos salários que são capazes de se
ajustar livremente ou não. As duas
correntes de pensamento acima destacadas discordam sobre a rigidez
das taxas de salário. Os seguidores
da teoria “emprego causa crescimento populacional” defendem que as
taxas de salários são totalmente rígidas enquanto os seguidores da teoria “crescimento populacional causa emprego” defendem que se existe
rigidez nos salários, esta só diz respeito a diminuição de salários.
Com o intuito de elucidar a relação de dependência entre migração
e crescimento do nível de emprego,
Muth (1971) utiliza o método de mínimos quadrados de dois estágios
onde as variáveis migração e emprego total ou força de trabalho são tratadas como sendo simultaneamente
determinadas. As variáveis cresci-
mento populacional natural e corpo
das forças armadas são variáveis
independes das duas equações.
Como determinantes do emprego total e também da força de trabalho
foram incluídas as variáveis renda
média das famílias em 1960 em relação a 1950, a participação do emprego industrial no emprego total da
cidade em 1950 e o tamanho da área
populacional urbanizada em 1950.
Na equação da migração, foram incluídas as variáveis taxa de desemprego em 1950, renda familiar média
em 1949, e duas variáveis dummy
regionais, uma indicando as cidades
do sul e outra para as cidades do
oeste americano.
Os resultados alcançados por
Muth mostram que tanto a migração
é determinada pelo nível de emprego quanto o nível de emprego é determinado pela migração. No caso
da equação do emprego e da força
de trabalho, obteve-se na maioria dos
casos um coeficiente unitário para a
variável migração. Porém, no caso
da equação da migração, obteve-se,
na maioria dos casos coeficientes
variando entre 0,6 e 0,7 para a variável emprego. Assim, os dados estudados por Muth indicam que há
uma relação de simultaneidade entre emprego e migração, porém, a
migração tem um efeito maior sobre
o emprego do que o emprego tem sobre a migração.
Steinnes e Fisher (1974) introduziram um modelo intra-urbano que
permite que o crescimento populacional e do emprego sejam simultaneamente determinados. O ponto de
partida é o modelo de equilíbrio geral convencional. Neste modelo, os
consumidores maximizam utilidade. Esta utilidade depende dos produtos e serviços que eles adquirem,
da localização de suas residências
em relação aos seus locais de trabalho e de algumas amenidades loca-
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
cionais. Uma restrição orçamentária
iguala a renda dos consumidores
aos gastos por eles feitos em bens e
serviços.
Já as firmas objetivam maximizar
seus lucros produzindo bens e serviços através da aquisição de insumos. Estes produtos e serviços são
produzidas em mercados competitivos. Os custos de produção variam
de acordo com a localização da firma. As firmas entram e saem do mercado até o momento em que os lucros se igualam entre as regiões aos
níveis competitivos, e as famílias
migram até o momento em que os
níveis de utilidade são equalizadas
a nível regional.
Neste tipo de modelo a população e o emprego não só se influenciam, mas também várias outras variáveis os afetam. Estas variáveis também poderiam ser determinadas simultaneamente, porém é necessário
assumir que as variáveis que afetam
a população e o nível de emprego
sejam consideradas exógenas. O
modelo, como sugerido por Steinnes
e Fisher (1974), apresenta a seguinte
resolução:
(1) E * = AE P + B E S
(2) P * = AP E + B P T
Onde, E e P são, respectivamente,
o emprego e a população de um
dado município; S e T são os vetores
das variáveis que afetam E e P; os
asteriscos indicam os valores de
equilíbrio; AE e AP são os coeficientes das variáveis endógenas; e BE e
BP são os coeficientes das variáveis
exógenas. Mills e Price (1985) sugerem que a população e o emprego se
ajustam aos seus valores de equilíbrio com defasagens, introduzindo
as seguintes expressões:
(
(P
)
)
(3) E = E −1 − λ E E * − E −1
(4) P = P−1 + λ P
*
− P−1
3
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5
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6
BORTS, George H & STEIN, Jerome L. “Economic Growth in a Free Market”, New York: Columbia
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Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
117
O índice –1 mostra a defasagem em um período, uma década neste caso.
lE e lP são os coeficientes que indicam a velocidade do ajustamento com lE
> 0 e lP < 1. Substituindo (1) e (2) por E* e P* em (3) e (4), tem-se:
(5) E = λ E AE P + λ E B E S + (1 − λ E ) E −1
(6) P = λ P AP E + λ P B P T + (1 − λ P )P−1
Onde as variáveis endógenas E e P são determinadas simultaneamente e
dependem das variáveis exógenas e de suas defasagens.
Modelo empírico
Em um estudo realizado em 1985 para identificar os determinantes do
crescimento dos condados americanos durante os anos 70, Carlino e Mills
(1985), utilizando o marco teórico acima descrito, sugeriram o seguinte
modelo econométrico:
Onde, Pi é a população do condado i em 1980; Ei é o emprego total
de i em 1979; Pi-1 é a população de i
em 1970; Ei-1 é o emprego total de i
em 1969; PBi é a participação dos negros na população de i em 1970; Ii é
a densidade das estradas inter-estaduais de i em 1982; Ti são os impostos governamentais per capita de i
em 1972; Yi é a renda média familiar
de i em 1970; CRi é a taxa de criminalidade por 100.00 habitantes de i em
1975; Ui é a participação dos empregados sindicalizados no total dos
empregados não-agrícola, por estado, em 1970; LAi é a quantidade de
áreas agricultáveis em milhas quadradas de i; MSi é número médio de
anos de estudo da população de i
em 1970; IDBi é o valor total dos Títulos do Desenvolvimento Industrial emitidos em 1981, por estado; CCi
é a variável dummy que tem valor
um se o condado possui uma cidade
central; NMj são duas variáveis
dummy, uma que assume o valor um
quando o condado é adjacente a um
118
condado metropolitano, e outra que
assume o valor um quando o condado nem é metropolitano nem adjacente a um condado metropolitano;
e Rj é cada uma das oito variáveis
dummy regionais.
As equações (7) e (8), denominadas de equações estruturais, foram
estimadas através do Método de Mínimos Quadrados de Dois Estágios.
Foi feita também uma estimação, utilizando o emprego industrial ao invés do emprego total pelo fato da
indústria ser o setor chave em várias
economias. Todos os coeficientes estimados tiveram os sinais esperados
e se mostraram significantes a pelo
menos 5%, e os coeficientes de determinação foram todos maiores do que
95%, revelando a adequação do modelo. Foram também calculados os
coeficientes na forma reduzida, uma
vez que nesta formas, os coeficientes
incorporam tanto os efeitos diretos
como os efeitos indiretos de todas as
variáveis independentes. Além disso, através dos coeficientes da forma
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
reduzida, foi possível o cálculo de
diversas elasticidades.
Uma conclusão interessante extraída dos resultados das estimações
diz respeito à não importância das
amenidades das cidades centrais
(poluição e tráfego intenso de veículos) em relação aos movimentos
populacionais. Os coeficientes das
variáveis dummy regionais sugerem
que os efeitos das amenidades naturais são importantes para o movimento da população, são pouco importantes para o emprego total e não
são importantes para o emprego industrial.
Sobre o debate “população segue
o emprego ou o emprego segue a população”, as elasticidades estimadas
revelam que, um aumento de 10% na
população resulta em um aumento de
4% no emprego total e de 3,5% no
emprego industrial; enquanto que,
um aumento de 10% no emprego total leva a um aumento de 0,7% na
população total. Estes resultados revelam que a população determina o
emprego. Finalmente, foi feita uma
análise da estabilidade do modelo
utilizado e o sistema se mostrou instável, revelando que as conclusões
acima destacadas aplicam-se ao curto prazo, não sendo possível realizar
previsões de longo prazo.
Seguindo Carlino e Mills (1985),
Clark e Murphy (1996) também fizeram uso do modelo de equilíbrio geral e sugeriram o modelo apresentado na equação 9 para analisar os
determinantes do crescimento dos
mesmos condados americanos nos
anos 80, onde FISCAL representa as
variáveis fiscais, LOCALCHARS representa as características demográficas, BUSCOND representa as
variáveis de ambiente para negócios, AMENITY são as amenidades
locacionais e LOCATION representa as variáveis dummy locacionais.
Foi utilizado o método de mínimos
quadrados ordinários de dois estágios. Através do teste de White foi
detectada a presença de heterocedasticidade. Para a correção das estimativas, foi utilizada a técnica da
matriz de covariância heterocedástica de White.
Na equação da densidade populacional foram encontrados sinais e
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
níveis de significância similares ao
estudo de Carlino e Mills (1987) em
relação à variável emprego (+), população defasada (–), renda (+), e várias dummies locacionais. As outras
variáveis, em sua maioria, tem sinais
iguais, as os níveis de significância
diferem. Em relação à equação do
emprego, descobriu-se, assim como
Carlino e Mills (1987) que a população e a renda influenciam positivamente o nível de emprego. Contrariamente ao estudo acima citado, o
percentual da população negra e o
percentual dos empregados sindicalizados revelaram sinais negativos
e significantes. Finalmente, as variáveis dummy locacionais mantiveram os mesmos sinais e níveis de
significância.
Em relação às variáveis “novas”
incluídas neste trabalho foi constatado, na equação da população, que
todas as categorias de variáveis, com
a exceção das variáveis fiscais, mostraram-se significantes. No caso da
equação do emprego, somente as
variáveis da categoria amenidade
locacionais mostraram-se insignificantes a 95% de nível de significância.
Foi feita uma análise considerando cinco setores econômicos (manufatureiro, construção, serviços, comércio e finanças/seguros/imobiliário FSI). A variável endógena crescimento populacional é positiva em
todos os setores e significantes no
setor FSI. Quase todas as categorias
de variáveis são conjuntamente
significantes a 95% de nível de confiança (as exceções são as amenidades no setor de construção).
Finalmente, foi realizada também
uma análise das elasticidades. As
elasticidades de curto prazo são derivadas das equações estruturais e
as elasticidades de longo prazo são
derivadas das equações na forma
reduzida. As elasticidades de curto
e longo prazos não se mostraram
muito diferentes, sugerindo que os
efeitos de feedback entre população
e emprego não são muito importantes. Finalmente, foi constatado que a
população tem uma influência maior sobre o emprego do que a influência do emprego sobre a população,
principalmente nos setores comer-
ciais (serviços, comércio e FIS). Este
resultado contraria as conclusões
obtidas em Carlino e Mills para os
anos 70.
Para analisar o crescimento das
microrregiões do Nordeste será utilizado um modelo semelhante aos
modelos acima apresentados. Neste
artigo serão realizadas duas estimações. A primeira delas refere-se ao
período 1970-1980 e a segunda refere-se ao período 1980-1996. Também
será utilizado o Método de Mínimos
Quadrados de Dois Estágios. O modelo tem a forma apresentada nas
equações 11 e 12.
Onde POP é a população residente na microrregião i; EMP é o pessoal ocupado da microrregião i, YPC é
o PIB per capita de i, EDU é o índice
de condição de vida para educação
de i, HAB é o índice de condição de
vida para a habitação de i, RUR é o
crescimento do PIB agropecuário da
microrregião i, URB é o índice de
urbanização de i definido como a
participação da população urbana
na população total, IND é o grau de
industrialização de i definido como
a participação do PIB industrial no
PIB total de cada microrregião e
DCAP é a variável dummy que assume valor unitário para as microrregiões das capitais nordestinas. Os
resultados e análises das estimações
estão apresentados na próxima seção.
Fonte de dados e resultados
Esta seção apresenta os principais resultados obtidos através da
estimação do modelo acima destacado. Primeiramente, vale a pena
salientar que os dados de população e urbanização foram extraídos
dos Censos Demográficos de 1970 e
1980, e da Contagem da População
de 1996. Os dados referentes ao emprego foram extraídos dos Censos
Econômicos de 1970 e de 1980, e do
Censo Demográfico de 1991. As publicações acima citadas foram ela-
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
boradas pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Para
a extrapolação dos dados até o ano
de 1996, foram utilizados os dados
da RAIS – Registro Anual de Informações Sociais, desenvolvido pelo
Ministério do Trabalho. Os dados
dos Produtos Internos Brutos Total,
Agropecuário e Industrial foram estimados através de metodologia desenvolvida por Maia Gomes, Vergolino e Monteiro Neto (1997). E, os índices de condição de vida da habitação e da educação foram retirados
do Atlas de Desenvolvimento Humano publicado pelo IPEA.
As tabelas 1 e 2 apresentam os
coeficientes das equações estruturais e reduzidas, respectivamente. De
acordo com o método de mínimos
quadrados de dois estágios, os coeficientes das equações estruturais
incorporam os efeitos diretos das
variáveis exógenas sobre as endógenas e os coeficientes das equações
reduzidas incorporam tanto os efeitos diretos quanto os indiretos (causados pela simultaneidade). Deste
modo, utilizando as equações reduzidas, foram estimadas elasticidades no ponto médio, apresentadas
na tabela 3.
Os resultados constantes da tabela acima indicam que, no caso das
microrregiões nordestinas, a população provoca o aumento do emprego. Isto é observado tanto para o período 1970-1980 quanto para o período 1980-1996. O coeficiente da população (POPit) na equação do emprego mostrou-se significante nas
duas estimações. A hipótese emprego causa aumento da população é
rejeitada para o caso nordestino já
que, no período 1970-80, contrariamente às expectativas, o coeficiente
mostrou-se negativo, indicando que
o emprego age de forma a diminuir
o crescimento populacional. No caso
da estimação para o período 19801996, este mesmo coeficiente mostrou-se insignificante.
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
119
Tabela 5 – Nordeste: Equações Estruturais para a População e o Emprego
Os números em parênteses indicam a estatística t.
* insignificantes.
Fonte: Elaboração nossa.
A inclusão de variáveis endógenas defasadas em um modelo de
equações simultâneas objetiva representar outras variáveis que possam
influenciar as variáveis endógenas
e que não foram incluídas no modelo. No presente caso todos os coeficientes mostraram-se significantes.
Em relação à equação da população, todas as outras variáveis obtiveram os sinais esperados e semelhantes aos encontrados na literatura (Muth (1971); Carlino & Mills
(1985); Clark & Murphy (1996)). Com
exceção da variável educação na estimação para o período 1980-1996,
todas as variáveis mostraram-se estatisticamente significantes. Os coeficientes da variável crescimento do
PIB agropecuário encontrados nas
120
equações da população indicam
que, no caso nordestino, as microrregiões que obtêm crescimento do
setor agropecuário tendem reter e até
aumentar sua população. Apesar
disso, os resultados também revelam
que as capitais obtiveram crescimento populacional superior às outras
microrregiões.
Em relação à equação do emprego, somente as variáveis índice de
urbanização (URBit-1) e dummy das
capitais para o período 1970-1980
mostraram-se significantes. O coeficiente da dummy revela que no período acima citado o crescimento do
emprego foi menor nas microrregiões
das capitais do que nas demais
microrregiões. O outro coeficiente
significante revela que, no período
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
1970-80, as empresas têm oferecido
mais empregos nas microrregiões
com menor índice de urbanização,
provavelmente por causa das amenidades negativas das metrópoles
(trânsito, poluição, maiores impostos, etc.). O fato dos demais coeficientes mostrarem-se insignificantes
revela que, apenas diretamente, tais
variáveis não influenciam o crescimento do emprego nas microrregiões do Nordeste.
A maioria dos coeficientes das
equações reduzidas mostraram-se
significantes e com os sinais semelhantes aos obtidos na literatura
(Muth (1971); Carlino & Mills (1985);
Clark & Murphy (1996). Didaticamente, uma melhor forma de analisar os resultados acima é através do
cálculo das elasticidades nos pontos médios das variáveis exógenas.
Tais elasticidades encontram-se expostas na tabela 7.
De acordo com as elasticidades
estimadas das equações reduzidas,
um aumento em 10% na população
do período base provocou um aumento de 1,34% (para o período
1970-80) e de 8,80% (para o período
1980-96) no emprego total. E, um
aumento em 10% no emprego do período base provocou, por sua vez,
uma queda de 0,86% (para o período 1970-80) e de 0,73% (para o período 1980-96) na população. Estes
resultados estão de acordo aos encontrados nas equações estruturais
e reforçam a idéia de que a população é que determina o emprego no
caso nordestino.
Em relação à variável renda,
pode-se dizer que a mesma desempenhou um papel discreto uma vez
que um aumento em 10% na renda
do período base provocou um aumento entre 1,48% e 1,86% na população da microrregião, e entre 1,45%
e 2,62% no emprego. Este resultado
é um pouco inferior aos resultados
encontrados por Carlino & Mills
(1985) cujas respostas em relação a
um aumento em 10% na renda das
cidades americanas provocou um
aumento em 3,1% na população e
6,3% no emprego. Como os coeficientes da variável renda nas equações estruturais do emprego mostraram-se insignificantes, as elasticida-
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Tabela 6 – Nordeste: Equações Reduzidas para a População e o Emprego
Os números em parênteses indicam a estatística t.
* insignificantes.
Fonte: Elaboração nossa.
Tabela 7 – Nordeste: Elasticidades da Forma Reduzida para a População
e Emprego
de 0,85% em 1980 e em 2,62% em
1996. Isto mostra que o investimento no nível educacional é uma das
políticas que poderiam ser utilizadas para diminuir as diferenças entre as microrregiões do Nordeste.
Com relação a variável urbanização, os resultados mostram que quanto mais urbanizada a microrregião,
menor é o crescimento populacional
da mesma. As elasticidades em relação ao emprego no período mostraram-se insignificantes na equação
reduzida em questão. Além destas,
embora significantes, as elasticidades da variável habitação em relação à população e ao emprego foram
as únicas a terem os sinais contrários aos esperados e encontrados na
literatura. Deste modo, torna-se necessário uma investigação mais detalhada acerca destes resultados.
Com relação ao grau de industrialização as elasticidades negativas revelam que tanto a população
quanto à oferta de empregos têm sido
relativamente maiores nas microrregiões menos industrializada, provavelmente por causa dos maiores
custos existentes em microrregiões
que já possuem um parque industrial consolidado, como por exemplo,
sindicatos mais atuantes e maiores
impostos em relação à oferta de emprego e maior poluição em relação à
população. Isso pode estar associado também ao padrão de industrialização implantado no Nordeste que
foi do tipo intensivo no fator capital
e poupador de mão-de-obra.
Finalmente, as elasticidades positivas do crescimento do PIB agropecuário em relação à população e
ao emprego reforçam a hipótese de
que um setor agropecuário forte é
gerador de empregos e atua como
fator de sustenção da mão-de-obra
na área rural afetando assim, o movimento da população.
Conclusões
Fonte: Elaboração nossa.
des revelam que a renda influencia
o crescimento dos empregos de forma indireta via população.
As elasticidades da variável educação revelaram que um aumento em
10% no nível educacional da microrregião gerou um aumento na população em 1,56% em 1980 e de 2,14%
em 1996. No caso da elasticidade em
relação ao emprego esse aumento foi
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O presente artigo teve como objetivo principal determinar os principais determinantes do crescimento
populacional das microrregiões do
Nordeste. Foi constatado que o nível de emprego no ano base e a população são os principais determinantes diretos do crescimento na
Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
121
oferta de emprego. Outras variáveis
como renda, educação, habitação,
crescimento agropecuário e grau de
industrialização agem de forma indireta sobre o nível de emprego das
microrregiões.
Para a população, foi constatado
que todas as variáveis contidas na
respectiva equação estrutural agem
de forma direta sobre seu crescimento, enquanto que, as variáveis que só
estão contidas na equação estrutural
do emprego agem sobre o crescimento populacional de forma indireta.
Uma das principais conclusões
do presente estudo foi a constatação
de que, no caso nordestino, a população determina o emprego. Assim,
sugere-se a elaboração de políticas
públicas que atuem naqueles espaços urbanos de médio e pequeno
porte, onde as deseconomias externas ainda não estão presentes, com
vistas a evitar a migração para as
áreas metropolitanas, onde os problemas urbanos são graves e cuja
solução implica em custos elevados
vis-à-vis as cidades de médio porte.
Concluindo, vale a pena salientar que este estudo tem caráter inédito no que diz respeito à Região
Nordeste. Por isso, mais estudos serão necessários para auxiliar as autoridades governamentais no que
diz respeito a diminuição das desigualdades regionais existentes na
sociedade nordestina.
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Ano VIII • Nº 13 • Janeiro de 2006 • Salvador, BA
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