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Revista História
Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831
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Dossiê Criminalidade
Revista História
Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831
A Revista História tem o apoio do Laboratório de Estudos das Diferenças e
Desigualdades Sociais.
Endereço: Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Departamento de História, Campus Francisco Negrão de Lima - Pavilhão João
Lyra Filho Rua São Francisco Xavier, 524 - 9° andar - Bloco E - Sala 06 -Rio de
Janeiro.
Página do Laboratório: www.leddes.com.br
Página da Revista: www.revistahistoria.com.br
Revisão
Verônica Maria Nascimento Tapajós
Diagramação
Luciano Rocha Pinto
Editores
Profa. Dra. Marilene Rosa Nogueira da Silva
Prof. Drdo. Luciano Rocha Pinto
Prof. Drdo Marcelo Coimbra Biar
Profa. Msa. Verônica Maria Nascimento Tapajós
Conselho Consultivo
Prof. Dr. Antonio Filipe Pereira Caetano
Profa. Dra. Antonia da Silva Mota
Prof. Dr. Augusto Cesar Freitas de Oliveira
Profa. Dra. Carmen Margarida Oliveira Alveal
Profa. Dra. Margarida Maria Dias de Oliveira
Profa. Dra. Sônia Maria dos Santos
Prof. Dr. Carlos Augusto Lima Ferreira
Prof. Dr. Duarcides Ferreira Mariosa
Profa. Dra. Paula Pinto e Silva
Prof. Dr. Augusto da Silva
Prof. Dr. Jozimar Paes de Almeida
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Profa. Dra. Benair Alcaraz Fernandes Ribeiro
Profa. Dra. Selma Rinaldi de Mattos
Prof. Dr. Gustavo Acioli Lopes
Prof. Dr. Cristiano Wellington Noberto Ramalho
Prof. Dr. Fabio Luiz da Silva
Prof. Dr. Edison Bariani Junior
Prof. Dr. André Porto Ancona Lopes
Prof. Dr. Ozanan Vicente Carrara
Prof. Dr. Geraldo Mártires Coelho
Profa. Dra. Samira Adel Osman
Profa. Dra. Maria Hilda Baqueiro Paraiso
Profa. Dra. Eulalia Maria Aparecida Moraes dos Santos
Profa. Dra. Terciane Ângela Luchese
Profa. Dra. Hustana Maria Vargas
Profa. Dra. Vanessa dos Santos Bodstein Bivar
Web Master
André de Carvalho
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SUMÁRIO
7
APRESENTAÇÃO
Luciano Rocha Pinto
8
MELANCOLIA E DEPRESSÃO:
FACES DA CONDIÇÃO HUMANA NA HISTÓRIA
Edison Bariani
22
CÓDIGOS
PENAIS
TRANDFORMAÇÕES
Maíra Rosin
BRASILEIROS:
ORIGENS
E
36
...SEPAROU A CABEÇA DO CORPO DA VÍTIMA, A SUA
PRÓPRIA MÃE [...]
O QUE É ISTO, SENÃO LOUCURA?
Jéferson dos Santos Mendes
52
LIVROS DE MATRÍCULAS DA CASA DE DETENÇÃO:
MEMÓRIAS DOS “DESEDUCADOS” DA CORTE (1880-1889).
Jailton Alves de Oliveira
74
PERFIL DO PRESO DE DORES DO INDAIÁ-MG (1958 a 1974)
João de Sousa Matos Monteiro / Gilberto Cézar de Noronha
103
O CONTROLE SOCIAL DA DELINQUÊNCIA INFANTIL NA
CIDADE DE SÃO PAULO NA PASSAGEM DOS SÉCULOS
XIX - XX PELA TEORIA DE MICHEL FOUCAULT
Robson Roberto da Silva
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133
O EFEITO RASCHOMON E OS PROCESSOS CRIMES COMO
FONTE
HISTÓRICA:
ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES
METODOLÓGICAS
Hélio Santos
163
SOROCABA ÀS VÉSPERAS DA EMANCIPAÇÃO DE
ESCRAVOS: UMA ANÁLISE DA SEMANA NO DIÁRIO DE
SOROCABA
Patrícia Leardine
178
IMPRESSÕES DO ILÍCITO: REPRESENTAÇÕES DO CRIME
NO JORNAL DE ITABUNA (1921-1923)
Bruno Alessandro Gusmão Moreira
192
NIETZSCHE: O NOVO MODO DE FAZER HISTÓRIA
Pablo Martins Bernardi Coelho
204
O CÔMICO
A SOCIEDADE GREGA PELO TEATRO DE ARISTÓFANES
Flávia Bruna Ribeiro da Silva Braga
236
LIBERDADE RELIGIOSA – UMA QUESTÃO MILENAR
Cristiano Rocha Santos
259
ÍNDIOS XUKURU: O VIVIDO, O CONCEBIDO E O
EXPRESSADO.
A HISTÓRIA A PARTIR DAS MEMÓRIAS
Edson Silva
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274
SER PORTUGUÊS E SER CATÓLICO: DIFERENTES USOS
DA MEMÓRIA NA TENTATIVA DE CONFIGURAÇÃO DE
UMA
IDENTIDADE NA AMÉRICA PORTUGUESA
Fábio Eduardo Cressoni
292
HISTÓRIA DA LOUCURA NA OBRA “O ALIENISTA” DE
MACHADO DE ASSIS: DISCURSO, IDENTIDADES E
EXCLUSÃO NO SÉCULO XIX
Márcio José Silva Lima
315
O ARCO DO PASSADO, A FLECHA DO FUTURO: PRIMEIRA
GUERRA MUNDIAL E AS RELAÇÕES LUSO-BRASILEIRAS
NA REVISTA ATLÂNTIDA (1915-1920).*
Livia Pires Claro
337
D. PEDRO II NA MARGEM DIREITA DO SÃO FRANCISCO
Marcello Eduardo K.L.Campos
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APRESENTAÇÃO
É com alegria que a Revista História coloca à disposição sua terceira
edição com o dossiê "Criminalidade". Foi uma grata surpresa o número de
artigos recebidos e a repercussão que a revista vem alcançando, desde sua
segunda edição, no âmbito nacional.
Nosso interesse pelas noções de Punição e Controle e temas
relacionados - como disciplina, legislação, polícia, justiça, prisão, criminalidade,
cidadania... – sem nos fecharmos ao diálogo com outros temas e noções, está
suscitando interesses diversos e contribuições das mais variadas. Delinquência
infantil, perfil do criminoso, Códigos Penais, Casa de Correção da Corte,
crimes hediondos, criminalidade e imprensa, são alguns dos temas do dossiê.
Mas não é só.
Desejamos um espaço de experimentação e diálogo. Neste sentido,
contribuições dos mais diversos temas, campos teóricos e metodológicos foram
aceitos a fim de efetivarmos este ambiente de troca e interação. Liberdade
religiosa, Nietzsche, melancolia e depressão na história, D. Pedro II, história da
loucura, Primeira Guerra Mundial, formação da identidade portuguesa na
América, índios Xucuru e o teatro de Aristófanes são temas que compõem
também esta terceira edição. A todos os autores o meu agradecimento pela
contribuição intelectual e pela qualidade de seus trabalhos.
Quero ainda agradecer o contato de pessoas que escrevem sugerindo
dossiês, fazendo elogios e de editoras. É nosso interesse, futuramente,
selecionarmos artigos para, em uma edição especial, elaborarmos uma
publicação comemorativa. Particularmente gostaria de agradecer o interesse do
senhor Secretário Municipal de Segurança Pública e Cidadania, da Prefeitura
Municipal de Canoas (RS), o sr. Eduardo Pazinato. Seu interesse por nossas
publicações reforça nosso compromisso intelectual com a cidadania e a
transformação da realidade.
Muito obrigado a todos.
Luciano Rocha Pinto
Editor
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Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831
MELANCOLIA E DEPRESSÃO:
FACES DA CONDIÇÃO HUMANA NA HISTÓRIA
Edison Bariani
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Resumo: A melancolia, atualmente chamada depressão, tem afetado os homens
ao longo da história e, também, tem sido objeto de estudos científicos e
reflexões sociais e filosóficas, desde a antiguidade grega até os dias atuais.
Todavia, tais reflexões apontam para o fato de que, mais que uma patologia ou
um distúrbio, a melancolia é uma das faces da condição humana.
Palavras-chave: Melancolia. Depressão. História. Condição Humana.
Abstract: Melancholy, nowadays called 'depression', has affected men along
history and has also been subject of scientific studies and social philosophical
considerations from antiquity until today. However, these considerations point
to the fact that, much more than a pathology or a disturb, melancholy is one
aspect of human condition.
Keywords: Melancholy. Depression. History. Human Condition.
***
“Um homem é tão infeliz quanto se convence de que é”.
Sêneca
A depressão, no mundo atual, tem afetado cada vez mais pessoas em
número e intensidade. Segundo a Organização Mundial de Saúde (2011), em
relatório de 2007, a depressão atinge cerca de 121 milhões de pessoas no
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Doutor em Sociologia, professor das faculdades de Itápolis, Novo Horizonte e Catanduva.
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mundo. Aproximadamente 15 a 20% da população mundial, em algum
momento da vida, sofreu de depressão, que está ligada à morte de cerca de
850.000 pessoas por ano no mundo. Até o ano de 2020, a depressão deve
passar a ser a segunda maior causa de incapacidade e perda de qualidade de
vida. No Brasil, estima-se que cerca de 17 milhões de indivíduos tenham
depressão. Segundo o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), 74.418
trabalhadores foram afastados de suas atividades em 2007 em decorrência de
depressão (VEJA.COM, 2011).
Frente a esses dados, cabe questionar: haveria atualmente uma espécie
de ‘pandemia’ depressiva? Seria uma ‘doença social’, no sentido de que seria
causada pelas condições sociais de vida no mundo contemporâneo? Seria a
depressão uma doença, um distúrbio, um transtorno? Ou seria algo inerente à
condição humana, daí que a frequência e intensidade dos efeitos danosos
configurariam esses sim o problema caracterizado como “depressão”?
A palavra depressão tem origem no latim premere, pressionar, oprimir
ou puxar para baixo, e foi usada no sentido atual primeiramente na Inglaterra
do séc. XVIII, por Richard Blackmore, poeta e médico de William III, que,
em seu A treatise of the spleen and vapours (1725), menciona a ideia de “estar
deprimido em profunda tristeza e melancolia, ou levado à insanidade e
distração” (“being depressed into deep sadness and melancholy, or elevated into
lunacy and distraction”).1
Aliás, “melancolia”, do grego melagcholia (de mélas, "negro", e cholé,
"bílis"), caracterizando um estado psíquico de abatimento sem causa específica,
falta de entusiasmo e predisposição, era, até o século XIX, a palavra mais usada
para expressar a ideia do que chamamos hoje “depressão”.
Consta que no séc. XVI, na Inglaterra, Richard Baker (1568-1645), autor de Chronicle of the
Kings of England, já havia mencionado o termo ao referir-se a “uma grande depressão de
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espírito” (“a great depression of spirit”). Também o autor inglês Samuel Johnson teria
mencionado a palavra em 1753.
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Foi o grego Hipócrates, no séc. V a. C., que classificou a melancolia
como doença, a partir de sua teoria dos quatro 'humores' corporais (sangue,
fleuma ou pituíta, bílis amarela e bílis negra), sendo o equilíbrio ou o
desequilíbrio responsável pela saúde (eucrasia) ou enfermidade e dor (discrasia)
de um indivíduo, cuja influência de Cronos ou Saturno1 levava o baço a secretar
mais bílis negra, alterando e escurecendo o humor do indivíduo, levando ao
estado de melancolia. Para Hipócrates, a melancolia era caracterizada pela
persistência duradoura da tristeza e do medo ao longo do tempo.
Aristóteles (384-322 a. C.), no séc. IV a. C., em escrito atribuído a ele
(Problema XXX), é tido como o primeiro a considerar a questão: por que
todos os homens considerados excepcionais são melancólicos? Assim, a
melancolia passa a ser vista não como uma doença simplesmente, mas como
uma segunda natureza, um estado da alma.
Galeno (131- 200 d. C.), médico e filósofo romano de origem grega,
afirmava, no séc. II, que a melancolia é uma patologia, uma doença do corpo
que afeta as ideias, uma doença que lesa o pensamento e causa mal-estar
(dysthimia) e aversão às coisas mais queridas.
Na Idade Média, o persa Avicena e o judeu Maimônides consideravam
a melancolia como uma doença causada pelo desequilíbrio, ainda nas
condições postas por Hipócrates, todavia, Maimônides, por exemplo, receitava
para isso o fortalecimento da sabedoria e da moral por meio da religiosidade,
pois que o homem virtuoso é menos suscetível de ser acometido daquele mal.
Assim, distancia-se de Aristóteles e da ideia da melancolia como característica
do homem de gênio. No Império Bizantino, o médico Paulo de Egina, no séc.
VII (625–690) associa a melancolia à possessão demoníaca. A partir de então, a
melancolia passa a ser vista como uma tentação ou pecado, sendo também
chamada acídia ou apatia (tristeza, abatimento de espírito). Tomás de Aquino
(1225-1274), no séc. XIII, quando se refere aos sete pecados capitais, inclui a
Cronos (Saturno para os romanos) é um ser mitológico, um titã, filho de Urano (Céu) e de Gaia
(Terra), mutilou o pai e conquistou seu domínio. No poder, devorava seus filhos, mas sua esposa
Réia e seu filho Zeus o enganam e o destronam.
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acídia, “a tristeza pelo bem espiritual; a acidez, a queimadura interior do
homem que recusa os bens do espírito” (LAUAND, 2010) que, por vezes, foi
erroneamente identificada com a preguiça, mas se referia ao anterior pecado da
melancolia.1
A partir do séc. XV, com a Renascença, período no qual havia certa
predileção pela melancolia, a imagem do anjo se tornará o símbolo desse
estado da alma, imagem essa eternizada por meio da gravura de Albrecht
Dührer (1471-1528). Personagem dividido entre o divino e o humano, o anjo
não encontra seu lugar nem no mundo terreno nem no mundo extraterreno.
Daí sua atitude de negação do mundo, de reflexão, interioridade e de apatia
aparente. Apesar da possibilidade da genialidade, a existência do melancólico é
triste e miserável. Nessa época, há uma recuperação de Aristóteles e da sua
visão do gênio melancólico, do homem excepcional. Marsílio Ficino, médico
florentino, no séc. XV (1433-1499), afirma que as pessoas melancólicas
possuem dons especiais para a criação artística, daí a ideia da melancolia
criativa, que teria forte influência entre os românticos (KONDER, 1988. p.
104).
É com Richard Burton (1577-1640), médico e filósofo inglês do séc.
XVII, que aparece a primeira grande obra sobre o assunto: The anatomy of
Evágrio de Ibora, o Pôntico (345-397), no século IV, interpretou que havia oito pecados capitais:
Gula, Avareza, Luxúria, Ira, Melancolia, Acídia (ou Preguiça Espiritual), Vaidade e Orgulho. Já o
Papa Gregório I, no final do século VI, reduziu a lista a sete itens, juntando “vaidade” e “orgulho”
(ou “soberba”) e trocando “acídia” ou “melancolia” por “inveja”. Para fazer sua própria
hierarquia, o pontífice colocou em ordem decrescente os pecados que mais ofendiam ao amor
divino: Orgulho, Inveja, Ira, Indolência, Avareza, Gula, Luxúria – Dante Alighieri utilizou a
mesma ordem na Divina Comédia (1308-1321). Tomás de Aquino, no séc. XIV, analisou
novamente a gravidade dos pecados e fez mais uma lista, nessa substituiu “melancolia” por
“acídia”, do grego akedía, “indiferença”, “tristeza”, pelo latim acedia: abatimento do corpo e do
espírito; moleza, frouxidão (FERREIRA, 2009).
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melancholy (1621). Na sua minuciosa descrição da melancolia, afirma que essa
poderia ter várias causas (o amor à religião, a política, a influência das estrelas, o
aborrecimento, etc.); ele a caracteriza pela violência de uma dor atemporal,
infinita, que se prolonga e se atualiza levando à eliminação da possibilidade de
sentir prazer na relação com o mundo exterior. Assim, os melancólicos não
podem ter prazer e não podem evitar a tristeza.
O filósofo racionalista do séc. XVII, Baruch Espinosa (1632-1677),
judeu holandês, em sua obra Ética (1675), toma a melancolia como sempre má,
e, em certo sentido, o mal por excelência; é um dever expulsá-la, resistir a ela é
um princípio da ética, pois a melancolia é impotência e o espinosismo é uma
ética da ação, da potência.
Philippe Pinel (1745-1826), médico francês, estudioso das doenças
mentais, um dos pais da psiquiatria, defende, na passagem do séc. XVIII para o
XIX, o tratamento dos problemas mentais como doenças e vê na melancolia a
manifestação de transtornos (fanatismos religiosos, desilusões intensas, amores
apaixonados, etc.), cujas causas são morais, delírios por pessoas ou objetos.
Sigmund Freud (1856-1939), em seus estudos sobre o superego,
deparou-se com algo conhecido na época como melancolia. Segundo Freud, a
melancolia se assemelhava ao processo do luto, mas sem haver necessariamente
uma perda (senão uma perda narcisista). Em Luto e melancolia (1917), Freud
define a melancolia como uma forma de depressão, na qual o interesse pelo
mundo exterior é suspenso, há uma perda da capacidade de amar, o
sentimento de auto-estima é diminuído e tem início um processo sádico de
auto-acusações e autopunições (MOREIRA, 2010).
No séc. XX, Viktor Emil Frankl (1905-1997), médico e psiquiatra
austríaco, fundador da escola de logoterapia (que explora o sentido existencial
do indivíduo e a dimensão espiritual da existência), articulou a depressão a
sentimentos de futilidade e falta de significado, direcionando o tratamento para
preencher o “vácuo existencial” nos indivíduos. Já o psicólogo existencialista
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americano Rollo May (1909-1994) considerou a depressão como a “inabilidade
para construir o futuro”; na depressão, os indivíduos perdem a capacidade de
vislumbrar adiante no tempo, logo, focando algum ponto no tempo adiante, o
paciente tem uma perspectiva, um projeto, que pode quebrar a cadeia
depressiva. Outros psicólogos sociais e humanistas vão ainda abordar a
depressão no sentido de uma incongruência entre indivíduo e sociedade, um
conflito entre contexto de vida e realização das potencialidades.1
É na modernidade, com o capitalismo, urbanização e massificação
social, a mercantilização da vida e a reificação dos homens que a melancolia (ou
a depressão) se torna mais presente e intensa na vida social. Diante de um
mundo desumanizado e desencantado, o melancólico se sentirá ainda mais
isolado, marginalizado. Pode-se mesmo dizer que a melancolia reflete uma
espécie de mal-estar da modernidade.
Walter Benjamin, pensador marxista da Escola de Frankfurt (18921940), procedeu – principalmente em sua obra Origem do drama barroco
alemão (1984) – um estudo sobre o sujeito melancólico. Para Benjamin, a
melancolia poderia embasar uma posição crítica frente ao mundo, uma atitude
de recusa das condições postas, isolamento e reflexão sobre a condição
humana. “Assim, o melancólico flerta também com a morte, sendo seu
mensageiro entre os vivos. Ele traz essa mensagem porque trai o mundo com
sua atitude filosófica. Trai o mundo e o troca pelas coisas mundanas. Não dá ao
mundo valor, vendo-o como um grande vazio” (BRAGA, 2010). Benjamin
elabora uma nova visão da questão ao referir-se a uma “melancolia de
esquerda”. A melancolia agora traz consigo a contestação, todavia, ainda é
incapaz de se libertar do passado; o melancólico de esquerda se situa na
posição do Angelus Novus (figura de Paul Klee, que Benjamin usa como
alegoria em suas Teses sobre o conceito de história, de 1940): o anjo vislumbra
Do ponto de vista médico-clínico foi em 1952 que o DSM-I (Diagnostic and Statistical Manual
of Mental Disorders ou Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) trouxe a
1
definição de “reação depressiva” e, em 1968, o DSM-II incluiu a “neurose depressiva”, definida
como uma excessiva reação ao internalizar conflitos ou eventos.
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o passado com sofreguidão, entretanto, a tempestade que sopra do passado o
empurra para o futuro. “Em um mundo coisificado e desumano, a atitude
melancólica permite uma via revolucionária para a transformação da realidade”
(BRAGA, 2010).
O tema da melancolia (ou depressão) e seu outro, a felicidade, foi
discutido por vários pensadores. Na filosofia, Aristóteles pensou a melancolia
como característica do homem de gênio; Kant concebeu a felicidade como ideal
da imaginação e não da razão; Auguste Comte viu numa das circunstâncias da
melancolia, o tédio, a motivação dos homens para mudar a história; John Stuart
Mill, ele próprio um melancólico, assim como outros pensadores (Rousseau,
Hegel), identificou a felicidade como a inocente ignorância e a sabedoria como
algo que trazia tristeza e melancolia; ser feliz, assim, seria não conhecer
profundamente as coisas e o mundo, pois quando alguém se pergunta se é feliz,
deixa de sê-lo. Ainda, as considerações de Kierkegaard sobre o desespero como
condição humana, de Schopenhauer a respeito do pessimismo e da vida e
mundo como sofrimento, de Heidegger sobre a angústia e o homem como ser
para a morte, bem como as preocupações existencialistas sobre a vida e o
sentido, o nada (Sartre) e o absurdo (Camus), contribuíram para uma visão
filosófica da depressão.
Na sociologia, são clássicas as formulações de Durkheim (O Suicídio,
1897) sobre o suicídio como fato social e suas motivações e causas na sociedade
moderna; Max Weber e a angústia de ter de escolher entre seus próprios
deuses e demônios, a difícil escolha da vida num mundo regido pela
racionalização e pelo desencantamento do mundo, a existência na jaula de ferro
da razão; Z. Bauman e a percepção do mundo contemporâneo em termos da
liquidez que rege a vida, o medo, o amor, a identidade, as relações sociais,
destacando a volatilidade dos laços societários e seus efeitos.
Vários desses pensadores sofreram, eles próprios, com a depressão ou
doenças nervosas. Filósofos como John Stuart Mill, William James, Friedrich
Nietzsche e sociólogos, como M. Weber, tinham transtornos nervosos. Notório
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é o caso de Walter Benjamin, cuja melancolia derivava, em parte, da impressão
de que tudo na vida era um grande erro, de que estaria sempre no lugar e no
momento errados. Escritores e artistas como Edgar Allan Poe, William Blake,
Mark Twain, Wolfgang A. Mozart, Charles Dickens, Vincent Van Gogh, T. S.
Eliot, Ernest Hemingway e Sylvia Plath também manifestaram sintomas
depressivos.
Na literatura, são vários os exemplos de personagens melancólicos. Na
Bíblia, no Antigo Testamento, há a história de Saul que, desprestigiado,
fracassado, vendo seus filhos serem mortos na guerra, sentindo-se inferiorizado
por Davi, joga-se sobre sua própria espada. Na Ilíada, Ájax, perdendo a
armadura de Aquiles para Ulisses, sente-se inferiorizado e, descontrolado,
degola os animais dos rebanhos dos gregos, certo de que se vingava. Ao
perceber o erro, suicidou-se usando a espada do inimigo Heitor, com o qual
havia lutado. A loucura de Ájax inspirou Sófocles na tragédia Ájax furioso (450
a. C.). O personagem Hamlet, de Shakespeare, tornou-se o exemplo típico do
melancólico, desgostoso da vida. O poeta inglês John Keats chegou a escrever
um poema, “Ode on Melancholy” (1819), no qual aborda o assunto. Também
em Franz Kafka (O Processo, O Castelo, Metamorfose), Albert Camus (O
Estrangeiro) e, principalmente, em Samuel Becket (Companhia, Esperando
Godot) o desespero, o vazio do mundo e falta de sentido da vida são temas
constantes.
No mundo moderno, a melancolia e a depressão não podem ser
consideradas apenas doenças, patologias, sequer de caráter médico-biológico.
Há componentes sociais (o que incluem os psicológicos) que contribuem para o
aparecimento, intensidade e frequência das manifestações melancólicas.
Assim, devemos considerar que, no mundo moderno, nunca tantos
estiveram vivendo tão próximos e tão intensamente, e nunca fomos tão
solitários; somente no séc. XIX as cidades ocidentais chegaram a um milhão de
habitantes (Londres foi a primeira), essa densidade demográfica, todavia,
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amplificou a sensação de solidão e distanciamento social entre os indivíduos. A
solidão, individualismo, o vazio da vida moderna (alguns diriam pós-moderna)
permeiam a existência dos indivíduos e os lançam no limite da incompreensão.
Também, nunca fomos tão providos e nunca a vida foi tão abundante,
entretanto, nunca fomos tão infelizes. A abundância material não trouxe a
felicidade prometida pelo capitalismo. Podemos questionar se vivemos uma
época de anomia, entropia social, perda da experiência comum, perda da
noção de vida como bem maior (e não a felicidade), perda da ideia judaicocristã da vida como expiação e perda da noção (presente nas religiões orientais
e no espiritualismo ocidental) de vida como aprendizado e elevação por meio
do sofrimento e das provações.
A felicidade antiga, mormente na formulação de Aristóteles
(eudemonia), estava ligada ao bem-estar, ao bem da coletividade, prosperidade
relacionada à vida pública, da polis. Já a felicidade moderna está ligada à
satisfação individual, prazer intenso e frequente, gozo imediato e solitário. A
felicidade pública deu lugar à privada (BODEI, PIZZOLATO, 2000). A
fragilidade ou perda dos laços comunitários e do sentimento coletivo fez crescer
o isolamento e a incapacidade de compartilhar a vida.
Todavia, será que, como se crê no mundo atual, teríamos “direito à
felicidade”? Seria a felicidade um direito resguardado aos indivíduos? A
felicidade seria não somente a motivação, mas também daria sentido à vida?
Atualmente, há quase que uma coerção pela busca da felicidade, o que
legitima o interesse individual e o culto do prazer. Sofremos com a ilusão de
que se vive para sempre, de que a morte é evitável, que tratamentos e cuidados
obsessivos com saúde nos farão eternos e teremos, assim, tempo para a
felicidade. A luta contra o envelhecimento toma o envelhecer como decadência
e não como processo da vida; a busca do corpo perfeito, de aventuras radicais,
de ‘adrenalina’, faz com que pessoas com idade razoável comportem-se como
adolescentes, abusando da irresponsabilidade na busca da ‘vida’ e ‘felicidade’
intensas. Há aí um evidente desprezo pela velhice e a sabedoria, pela
prudência, pela calma, pela experiência acumulada pelos anos. Tais adultos,
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vivendo como adolescentes, recaem – obviamente – no ridículo do eterno
agora, transformando a emoção numa busca desenfreada pela ação, pela
excitação.
Tal busca pela ação, e consequente desprezo pela contemplação,
alavanca a indústria da satisfação e do prazer, do gozo como única motivação da
vida, elevando o consumo de mercadorias à condição de fruição da vida,
consumo para a vida ou vida para consumo, parafraseando Z. Bauman (2008).
Por outro lado, frente à insatisfação ou ao vazio desse prazer fugaz, vige
também uma indústria da depressão, um mercado de drogas, medicamentos,
serviços médicos, atestados, irresponsabilidade, vitimização, etc. Tudo muito
conveniente para que sejamos convencidos de que nos falta comprar algo para
sermos felizes e de que a nossa eventual infelicidade pode nos trazer algum
‘benefício’ ou ‘lucro’.
Talvez, entre os pilares desse sentimento melancólico disseminado
socialmente na modernidade tardia, a crise da política e das ideologias, das
utopias, seja um componente importante. Também, a crise do sagrado, o
abandono da transcendência, a perda da noção de glória, de sacrifício, de
resignação, de provação e de nobreza da vida difícil ou de abnegação e entrega
sejam outros componentes, uma vez que nada garante que a vida boa e útil, a
vida ‘feliz’ (num sentido no qual já não usamos mais), a vida digna, deva ser
vivida pela busca do prazer, mas, estranhamente para nós, pode estar ligada ao
sentido de reconhecimento e busca de um propósito maior, mais elevado, algo
que torne a vida individual importante para o bem-estar da coletividade e para o
aperfeiçoamento da humanidade.
Escapa-nos hoje o valor da morte e de um propósito maior para a vida
que o prazer, a possibilidade de viver não exclusivamente para si, mas para
outrem, de tornar a vida individual forma de compartilhar a vida coletiva, e
reconhecer nessa vida vivida para outrem um motivo de busca da felicidade, no
sentido pleno da palavra. Isto sem abdicar do destino individual, pois só o
indivíduo pode determinar-se nessa entrega em benefício de outrem.
[17]
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Ao que parece, afastamo-nos da ideia da finitude do ser, da consciência
e autoconsciência da efemeridade da vida, da resignação frente ao
imponderável e à grandiosidade do mundo que não nos pertence
individualmente, nem sequer coletivamente, uma vez que – já indicou Hannah
Arendt (1997) – devemos cuidar do mundo, pois o legaremos aos que virão.
Isso tudo faz com que autores como Z. Bauman (2009) se perguntem
pelas “misérias da felicidade” e, ainda, seguindo Michael Rustin, questionem “o
que há de errado com a felicidade”. A sensação que nos assola é de que
experimentamos nossa existência a partir de um automóvel que segue pela
estrada: vemos os outdoors com as promessas do prazer e felicidade e
aceleramos para persegui-las; o passado, os princípios e os significados ficam
para trás, vemo-los se distanciar pelo retrovisor, e a vida passa rapidamente pela
janela do carro. Não nos damos conta do risco de acelerar a existência, e talvez
estejamos em rota de colisão com a existência de outros ou os limites da
própria vida. Para Z. Bauman:
A incerteza é o habitat natura da vida humana – ainda
que a esperança de escapar da incerteza seja o motor
das atividades humanas. Escapar da incerteza é um
ingrediente fundamental, mesmo que apenas
tacitamente presumido, de todas e quaisquer imagens
compósitas da felicidade. É por isso que a felicidade
‘genuína, adequada e total’ sempre parece residir em
algum lugar à frente: tal como o horizonte, que recua
quando se tenta chegar mais perto dele. (BAUMAN,
2009, p. 31-2).
Todavia, é necessário vislumbrar o horizonte para perceber, ainda
como uma miragem, a possibilidade da felicidade. Quando baixamos os olhos
para o chão, o horizonte se esvai e a vida se enterra na inevitabilidade da morte.
Talvez vã.
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A melancolia, a depressão, a angústia frente à incerteza da vida ou ao
que se segue na vida é algo imanente à condição humana, a esse animal que
alcançou a benção e a desgraça da autoconsciência: o homem. Não há redenção
possível do incômodo da existência e do pavor do vazio da alma, nem deve
haver, pois um mundo sem incerteza e angústia significaria a erradicação da
possibilidade de questionar, errar, compreender o outro, procurar verdades,
descartar mentiras, perguntar-se pelo seu erro e perdoar o alheio... Significaria a
erradicação do que conhecemos como ‘ser humano’.
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CÓDIGOS PENAIS BRASILEIROS:
ORIGENS E TRANSFORMAÇÕES
Maíra Rosin1
Resumo
Não se pode pensar sobre criminalidade e todas as suas esferas, sejam
elas jurídicas ou mesmo cíveis sem pensarmos acerca dos códigos legislativos
que regeram os crimes praticados. Um ato só pode ser considerado criminoso
uma vez que conste em um Código Penal que estabeleça suas práticas e
conseqüências.
Este artigo busca relacionar os diversos Códigos Penais que regeram as
leis brasileiras entre si, apontando transformações e permanências assim como
colocá-los dentro de um cenário mundial.
Palavras chave: Código Penal; Direito Penal; Criminalidade
Résumé
Il est impossible de penser à la criminalité et toutes ses sphères, soient
elles juridiques ou même civiles sans penser aux codes législatifs qui ont régit les
crimes pratiqués. Un acte ne peut être considéré comme criminel qu'une fois
qu'il apartienne à un code pénal qui établisse ses pratiques et ses conséquences.
Cet article cherche à corréler les divers Codes Pénaux qui ont régit les
lois brésiliennes entre elles, détachant les transformations et les permanences
bien comme à les insérer dans un cadre mondial.
Mots Clés: Code Pénal; Droit Pénal; Criminalité
1
mestranda em História Social na Universidade de São Paulo.
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O sistema do direito e o campo judiciário são o
veículo permanente das relações de dominação.
Michel Foucault
O Código Penal faz parte de diversos estudos e pesquisas realizadas
sobretudo nas áreas de História e do Direito no Brasil, no entanto, não
encontram-se artigos e outros escritos sobre a evolução do pensamento jurídico
e das mudanças sociais que podem ser percebidas através do estudo das leis
penais brasileiras.
Desde o princípio, as sociedades mais desenvolvidas necessitaram de
um sistema de leis que as regulassem em diversas esferas, como a civil e a
criminal, assunto que aqui nos cabe. Mesmo sem a presença de um código de
leis preciso, as sociedades se regulavam através de um superior e de alguns
códigos de conduta aplicados por uma determinada autoridade tribal ou através
do membro mais forte daquela comunidade para a garantia e a manutenção de
uma boa convivência em grupo e do respeito entre os indivíduos que formavam
estes grupos.
Este trabalho foca, fundamentalmente, o Código Penal de 1890,
desenvolvido após a proclamação da República para substituir o Código
Criminal do Império, em vigor no Brasil desde 1830. Este código, porém, não
foi pensado individualmente, mas deriva do conhecimento de outros códigos
pelo mundo e se apresenta como ultrapassado mesmo em sua publicação por
conter colagens de leis e ideias que não representavam a realidade da sociedade
a que estava destinado.
A doutrina que os legisladores haviam ignorado quando
adotaram o código penal de 1890, inspirado no direito
clássico, foi integrada à jurisprudência brasileira no final da
década de 1930. (...) Mesmo juristas conservadores como
Nélson Hungria (...) proclamava que os juízes tinham uma
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obrigação moral e profissional de moldar a lei às situações
específicas por meio de interpretações.1
Segundo Stuart Schwartz, o Brasil foi um país sem leis até 1530, por
não ser um local colonizado. Depois desse período, a administração da justiça
passou pelas mãos de diversos indivíduos, ou seja, o sistema de punição
funcionava de acordo com as vontades daqueles que administravam suas
porções de terra e contra os sujeitos submetidos àquela administração, ainda
que oficialmente a lei em vigor era a mesma portuguesa: as Ordenações
Filipinas. Com a criação de um tribunal na colônia, em 1609, o exercício da
justiça passou para as mãos de pessoas como o ouvidor-mor e seus
subordinados, mas ainda assim era efetivamente aplicada de acordo com a
localidade da ocorrência criminal, ou seja, muitas vezes eram os próprios
senhores de engenho ou administradores locais que aplicavam penas e
realizavam os julgamentos daqueles acusados de cometer quaisquer tipos de
crimes. 2
Com a queda do Antigo Regime o poder judiciário sai das mãos do rei,
mas permanece nas mãos do Estado, se pensarmos que essa esfera de poder,
mesmo que independente, faz parte do aparato estatal, o governo ainda é o
regente da justiça criminal. Isso também vale para o caso do Brasil, que mesmo
com a presença de um monarca dotado do poder Moderador, coloca na
Constituição de 1824 um artigo onde determina que os crimes não seriam
julgados nem sentenciados por ele, e sim por um corpo capacitado, seguindo os
ideais lançados pela Revolução Francesa e seu pensamento ilustrado, mesmo
que, como veremos depois, esses ideais fossem incompatíveis com o sistema de
governo proposto por D. Pedro I.
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra. São Paulo: Editora Unicamp, 2005. P. 255.
SCHWARTZ, Stuart B. “Justiça e Juízes no Brasil – 1500 - 1580” in Burocracia e Sociedade no
Brasil colonial. São Paulo: Perspectiva, 1979.
1
2
[24]
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De acordo com Foucault, a teoria da soberania 1 continuou a existir na
Europa do século XIX, e nos países inspirados pelos ideais ilustrados, com a
elaboração dos códigos chamados napoleônicos (Código Civil de 1804 e
Código Penal de 1810). 2
A ideia também pode ser compreendida a partir das comparações no
âmbito do direito realizadas por José Reinaldo de Lima Lopes:
Durante boa parte do Antigo Regime, esta convivência de
princípios de direito natural com a tradição medieval
(jurídica e política) será bastante complicada. Até certo
ponto ela só se resolve com as revoluções liberais,
especialmente a partir da Revolução Francesa de 1789. 3
É interessante notar como a França pós-revolucionária consegue alterar
positivamente seu sistema jurídico e legislativo, se pensarmos que durante o
período da Revolução os julgamentos eram rápidos e sumários, baseados
apenas nas acusações feitas pelo comitê revolucionário e sem a exposição dos
réus e de testemunhas contra ou a favor deste, tendo sido julgado e condenado
à guilhotina deste modo até mesmo o rei Luis XVI, julgado como Luis Capeto,
ou seja, removido de qualquer soberania que o protegesse diante daquele
tribunal. Podemos entender por essa perspectiva que o período anterior à
Foucault entende como teoria da soberania a importância do Rei diante da formação do Direito
Ocidental. O poder de julgar era inerente ao poder monárquico até a queda do Antigo Regime.
Este conceito que alia o campo jurídico ao político aparece como herança da Idade Média e do
poder feudal, mas também tem seus princípios apoiados no direito romano, cuja decisão final
também recaía sobre o Cesar. Portanto, a teoria da soberania refere-se à capacidade de se obter
obediência por parte daqueles que estavam abaixo dos soberanos ou, com a mudança no regime,
subordinados à lei que os rege.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. P. 43.
LOPES, José Reinaldo de Lima. “Metodologia e ensino do direito: a Modernidade” in O
Direito na História. São Paulo: Atlas, 2009. P; 199.
1
2
3
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ascensão de Napoleão ao poder foi marcado por um sistema basicamente sem
leis, ou melhor, onde a lei era aplicada de forma arbitrária, mesmo com todo o
ideal ilustrado que permeava a França e sua revolução. É ainda mais curioso
que o sistema jurídico francês tenha servido de base para outros países do
mundo após a publicação dos códigos napoleônicos, como veremos a seguir, ou
seja, de um país sem lei e sem rei a modelo jurídico.
No caso do Brasil, como colônia e depois, como território
independente, o sistema jurídico evoluiu da seguinte forma: por mais de
trezentos anos o país foi regulado em sua esfera jurídica primeiro pelas
Ordenações Afonsinas, pelas Ordenações Manuelinas e em seguida, por
ocasião da reforma proposta pelo rei Felipe II, pelas Ordenações Filipinas,
através de um conjunto de livros que controlavam o Império Português e cuja
aplicação se estendia a suas colônias. O mais famoso destes livros, e o mais
importante aqui, é o Livro V, que compete o âmbito do direito penal,
regulando as condutas e estabelecendo penas para cada determinado tipo de
crime. Este livro funciona mais como um regulador de condutas do que
propriamente um tipo de código penal. Ele apresenta as práticas que vão contra
os sistemas da sociedade que regula e traz punições (a maioria relacionada a
lesões corporais, degredo e galés) às ações consideradas erradas e passíveis de
qualquer punição. É interessante notar que a maioria das condutas consideradas
criminosas pelo Livro V são aquelas onde o rei é alvo, ou seja, são crimes de
lesa-majestade, punidos geralmente com tortura e execução:
Lesa-majestade quer dizer traição cometida contra a pessoa
do Rei, ou seu Real Estado, que é tão grave e abominável
crime, e que os antigos Sabedores tanto estranharam, que o
comparavam à lepra; porque assim como esta enfermidade
enche todo o corpo, sem nunca mais se poder curar, e
empece ainda aos descendentes de quem a tem, e aos que
com elle conversão, pelo que é apartado da comunicação da
gente: assim o erro da traição condena o que a comete, e
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empece e infama os que de sua linha descendem, posto que
não tenham culpa. 1
Este livro é fundamental para a compreensão da evolução da justiça
penal brasileira, uma vez que mesmo com as diversas alterações sofridas pelos
códigos que o seguiram e as diversas novas ideias que os permearam, muito do
tradicionalismo e dos castigos propostos nas Ordenações continuam vigorando
como lei no país, mesmo que de forma bastante reduzida.
Estas leis, porém, só regiam os cidadãos europeus que habitavam a
então colônia. Índios e escravos estavam sujeitos às ordens eclesiásticas e à
dominação de seus senhores, respectivamente.
As Ordenações Filipinas estão apoiadas no Antigo Regime, e tem como
característica básica a defesa do soberano.
O exercício da justiça seguia no mesmo caminho, fazendo
privilegiar a vontade do monarca sobre a vingança
particular, tornando pública a justiça penal. Punir, controlar
os comportamentos e instituir uma ordem social, castigar as
violações a essa ordem e afirmar o poder do soberano
constituíam elementos inerentes ao poder real. 2
O rei é dono dos corpos de seus súditos, sendo ele quem decide em
caso de necessidade de uma punição, como já vimos ser base da teoria da
soberania apresentada por Foucault. Stuart Schwartz aponta que os “soldados,
comerciantes, clérigos e cidadãos portugueses encaravam a administração da
justiça como a parte mais importante do governo real” 3. Michel Foucault
LARA, Silvia Hunold (Org). Ordenações Filipinas – Livro V. São Paulo: Companhia das Letras,
1999. P. 69.
LARA, 1999: P. 21.
SCHWARTZ, 1979: P. 17.
1
2
3
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representa essa afirmação sobre o poder do rei na frase “Fazer viver e deixar
morrer e deixar viver” 1, que vigorou até a queda do Antigo Regime como
mostra de direito político do soberano, sendo substituído depois pelo que
Foucault chamou de “fazer viver e deixar morrer” 2.
Foram várias as tentativas de reforma do código filipino, a mais
importante delas feita pelo Marquês de Pombal, que chegou a aplicar algumas
das mudanças no período de seu governo, mas todas as reformas por ele
implantadas foram substituídas assim que ele deixou o poder. Uma nova
reforma foi tentada no governo de D. Maria I, mas fracassou, já que não se
conseguiu um acordo entre aqueles que buscavam redigir um novo conjunto de
leis e a nobreza, que não aceitava perder a centralidade dada pelos livros que
compunham as Ordenações Filipinas.
A justiça penal continuou, portanto regida no Brasil pelo Livro V das
Ordenações, que se mantiveram como regra máxima mesmo com as mudanças
realizadas com a chegada da família real portuguesa ao país. O sistema
legislativo só viria a ser alterado com a independência do país, ou seja, quando
desvinculado de Portugal passasse a ter suas próprias leis. E foi como se deu,
logo após a proclamação da Independência do Brasil, o Imperador D. Pedro I
outorgou a Constituição de 1824, deixando constar nela que fosse elaborado
um Código Criminal que regulasse as penalidades do império o mais rápido
possível. Este código entrou em vigor no ano de 1830, trazendo em si diversas
semelhanças com as Ordenações Filipinas. Nele foram mantidas as penas de
castigos corporais, como açoites (pena esta muito aplicada nos casos de crimes
leves cometidos por cativos), pena de degredo, galés perpétuas ou temporárias e
mesmo a pena de morte por forca. Naturalmente estas penas competiam a
poucos crimes, se compararmos com as Ordenações Filipinas e foram aplicadas
em poucos casos.
1
2
FOUCAULT, 2005: P 286 e 287.
Idem.
[28]
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O Código Criminal de 1830 introduz no Brasil a prisão como meio de
punição para diversos crimes e em outros casos o pagamento de multas
também servia como pena para um crime. Segundo o Artigo 179 da
Constituição as cadeias deveriam ser “seguras, limpas e bem arejadas, havendo
diversas casas para separação dos Réus, conforme suas circunstâncias e natureza
dos seus crimes” 1.
É também a Constituição de 1824, através do Artigo 151, que
transforma a Justiça em um elemento independente em relação ao governante,
no caso, o imperador deixa de ter o poder de julgar, função que passa a ser
tarefa de juízes e jurados, que tem o poder de fazê-lo tanto na esfera Cível
quando na Criminal 2. Com esta medida o imperador, D. Pedro I, se desprende
daquela que até então havia sido, como vimos, a maior função de um monarca,
para entregá-la àqueles que eram considerados maiores conhecedores da
justiça. Esse ponto é fundamental na compreensão dos caminhos da mudança
da legislação criminal, pois esta postura assume que o rei não é a vítima da
maioria dos crimes, mas que todos os cidadãos podem ocupar os papéis de
criminosos e vítimas, sendo regidos por uma mesma lei e julgados por pessoas
competentes na análise das situações, nas testemunhas e nas provas, e não por
um soberano que o faz de maneira passional.
As ideias presentes neste código estão profundamente vinculadas ao
Código Francês de 1810, também conhecido como Código Napoleão, uma vez
que apesar de demonstrar certo continuísmo no que se refere à legislação
anterior, o Código Imperial está carregado de diversos ideais ilustrados da
Revolução Francesa, e é exatamente neste ponto que está a ambigüidade de sua
existência; afinal como articular um código baseado nos ideais de liberdade,
igualdade e fraternidade quando o país ainda vive, de certa forma, nos moldes
Constituição Política do Império do Brasil (de 25 de março de 1824). Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm
(acessado
em
21/07/2011).
Idem.
1
2
[29]
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do Antigo Regime, governado por um Imperador e permeado pela prática da
escravidão, elementos totalmente inconsistentes diante destas ideias?
De qualquer forma, ainda de acordo com o artigo 179, parágrafo VIII
da Constituição de 1824 o novo Código Criminal deveria ser “fundado nas
bases sólidas da Justiça e da Equidade” 1, equidade esta que foi um dos ideais
mais fortes da Revolução Francesa. Foi o primeiro código criminal da América
de colonização Ibérica a conter inspirações ilustradas. É também sabido que o
Código Civil dos Franceses e a Constituição dos Estados Unidos, frutos das
revoluções liberais do final do XVIII são base de inspiração para a grande
maioria dos conjuntos legislativos em diversos pontos do mundo. Segundo o
jurista José Reinaldo de Lima Lopes, “O Código (de 1830) tivera inspiração nas
mesmas fontes da Constituição de 1824, isto é, o iluminismo penal do século
XVIII” 2. O Código Criminal de 1830 é o primeiro a reger legalmente todos os
cidadãos habitantes do país, fossem brancos, escravos ou libertos.
Ao mesmo tempo em que se apresentava como inovador, o Código
Criminal de 1830 é, segundo alguns juristas, como Nelson Hungria, autor do
anteprojeto do Código Penal de 1940 como um código carregado de velharias.
As velharias às quais Hungria se refere estão basicamente fundamentadas nas
heranças deixadas pelas Ordenações Filipinas neste código, considerado
moderno por suas inspirações. Alguns elementos de tortura, como os açoites, a
pena de morte, o degredo e a pena de galés ainda existem no Código Criminal
de 1830, deixando clara a influência da legislação anterior e ainda mais,
deixando transparecer certas posturas existentes diante de um local governado
por um rei, ou seja, novamente a soberania transparece, incoerente com o
exemplo adotado.
Este código foi substituído logo após a proclamação da República,
dando lugar ao Código Penal de 1890, uma das fontes de estudo desta pesquisa.
A recém proclamada república no Brasil precisava de códigos novos, que
1
2
Idem.
LOPES, 2009: P. 265.
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apagassem aqueles herdados do finado império e que fossem a imagem do país
em pleno desenvolvimento e liberto dos antigos ideais que a monarquia
carregava. O Brasil agora era um país democrático, que seguia os padrões de
tantos outros considerados desenvolvidos. Escrito às pressas, o Código Penal de
1890 carregou muito das leis imperiais, embora na aplicação das punições
tenham desaparecido os castigos físicos, pena de galés, degredo e pena de
morte, transformando as punições em reclusão pelo período determinado pelo
Código e pelo juiz em casa de detenção ou em manicômio judiciário.
A República mudara novamente as cores do Brasil, trazendo novas
ideias, expressando a nova doutrina do capitalismo, o laissez-faire, de forma
ampla, o que abriu espaço para a atração de uma nova população, liberta,
imigrante e daqueles que compunham a aristocracia do império que
mantinham seu poder e prestígio durante a Primeira República. Essa nova cara
do país era também responsável por uma nova dinâmica de vida, onde mais
uma vez na história desaparecia a figura de um governante que poderia ser
considerado superior e diferente dos demais para um sujeito às mesmas
virtudes e defeitos, sujeito ao mesmo conjunto de leis que regia toda a
população do país e para isso era necessária a produção de um código que
atendesse a essas necessidades.
O novo código, mesmo modernizado, ainda carregava críticas a
algumas posturas consideradas erradas tanto nas Ordenações como no Código
Criminal de 1830, como a vadiagem (agora inscrito no artigo 400) e os
denominados “crimes contra a honra e a honestidade das famílias” (Capítulo I
do Código Penal de 1890).
Ainda que houvesse permanências, a inexistência de castigos corporais
para o cumprimento das penas era uma novidade bastante interessante para o
país, uma vez que era uma prática comum e recorrente em diversas esferas. A
pena de reclusão passou a ser quase única, fundamental para o cumprimento
das sentenças, sendo inclusive já pré-estabelecidas no próprio código, ou seja,
caberia ao juiz ou ao corpo de jurados apenas adequar a punição ao delito
cometido, sem excessos, sem faltas. É aqui que entra também a possibilidade de
[31]
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cumprimento da pena em um manicômio judiciário. Esta modalidade deveria
ser indicada por um médico, qualificando o réu como incapaz ou declarando-o
portador de algum tipo de moléstia mental. A pena em manicômio judiciário
era a mesma a ser cumprida nas casas de detenção, com a diferença de poder
ser renovada ao seu término caso fosse comprovado que o réu em questão
oferecia algum tipo de risco caso voltasse ao convívio social1.
Casos como estes só foram possíveis através da incorporação das
teorias Positivas do século XIX vão além do campo do Direito, impregnando
diversas outras áreas como a da medicina, que será bastante importante mesmo
no que compete ao âmbito do direito penal no Brasil, já que o Código Penal,
ao ser reformulado e colocado em prática no ano de 1942, traz diversos usos da
medicina legal e dos exames médicos para a determinação da procedência dos
crimes.
Isto se deve ao sistema de identificação dos corpos dos delinqüentes
através de diversos sinais que este poderia apresentar, o que o transformaria em
um Criminoso Nato, segundo as teorias de Cesare Lombroso. Esta condição foi
bastante difundida no Brasil e trabalhada de forma intensa na esfera do direito
penal do país, que viria a condenar diversos suspeitos por apresentares os tais
sinais de degenerescência. 2
Foi o caso de Febrônio Índio do Brasil, condenado a pena em manicômio judiciário em 1928
através de laudo emitido pelo Dr. Manoel Clemente Reyo, que declarava que Febrônio era
“portador de uma psicopatia constitucional, caracterizada por desvios éticos, revestindo a forma
da loucura moral e perversões instintivas, expressas no homossexualismo com impulsões sádicas,
estado esse a que se juntam ideias delirantes da imaginação, de caráter místico” (CARRILHO,
Heitor. “Laudo do exame médico-psychológico procedido no accusado Febronio Í. do Brasil”
in Archivos do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 77-101,
1930.). Sua pena foi constantemente renovada até sua morte, em 27/08/1984, fazendo de
Febrônio a pessoa a passar mais tempo em regime correcional e abrindo precedentes para a
discussão sobre a renovação indeterminada para réus que cumprem pena em manicômios
judiciários.
SZMRECSANYI, Tamas e SILVA, Sérgio S. (org). História Econômica da Primeira República.
São Paulo: Hucitec, 2002. P. 354.
1
2
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O positivismo impôs uma ruptura com o senso comum: o
senso comum, como se sabe, tende a ser conservador e
fixista. O Estado liberal precisava ser implantado, precisava
ser criado e substituir o Antigo Regime. A legislação deste
Estado veio para por fim a todo o direito anterior e seu
instrumento privilegiado foi o Código: uma lei que dispunha
sistemática e completamente sobre um assunto
determinado. O código pretendia ter um caráter axiomático.
Opunha-se à falta de sistemas das ordenações anteriores.
Quem abre as Ordenações Filipinas, que também
vigoraram no Brasil desde 1603, nota que são casuísticas.
No famoso Livro V, sobre matéria penal, não existe uma
parte geral sobre as penas, os delitos, as circunstâncias
atenuantes ou agravantes, o dolo ou a culpa: ele é uma
coleção de delitos, sem que sejam agrupadas numa ordem
genérica, numa tipologia definida. Cada um com suas
próprias circunstâncias. 1
O conjunto de leis propostas pelo Código Penal de 1890 vigorou até
1940, quando foi substituído por um projeto novo, que incorporava a medicina
legal em seu texto e que também eliminava alguns artigos obsoletos, artigos
cujas mudanças na sociedade regida pelo código faziam com que estes delitos
não fossem mais válidos, como é o caso da já citada vadiagem, que não conta
mais no texto promulgado em 1940, assim como o defloramento, que foi
substituído pelo crime de sedução.
Apesar de tantas modernizações este ainda é um código carregado dos
ideais patriarcais, que fazem com que ele seja de certa forma bastante machista.
Ele também foi criticado pelo autor de seu anteprojeto, o já citado advogado
1
LOPES, 2009: 204.
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Nelson Hungria, que na ocasião do lançamento do código ocupava uma das
cadeiras do Supremo Tribunal Federal.
É interessante perceber que o sistema penal no Brasil muda a cada
grande mudança política ocorrida no país, e sempre influenciado por grandes
mudanças ocorridas também em nível mundial. O primeiro código surge logo
após a Independência, o próximo na República e o último, em vigor até hoje,
vem com as mudanças propostas pelo governo Getúlio Vargas e as mudanças
do Estado Novo. Mesmo com as outras mudanças ocorridas no governo, o
Código Penal se manteve funcionando e regula a justiça criminal até hoje, tendo
sido ao longo destes anos apenas adaptado às novidades que o mundo oferecia,
trazendo anexos, como a inclusão de alguns crimes e colocando outros em
desuso, como o já citado crime de reclusão.
Portanto, através dos códigos penais e de suas mudanças e
permanências podemos compreender a sociedade que forma o Brasil, assim
como suas mentalidades e seus conceitos de julgamento das posturas certas ou
erradas e das punições a elas impostas.
BIBLIOGRAFIA
ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon. Michel Foucault e a teoria do
poder. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7 (1-2): 105-110, outubro de
1999.
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra. São Paulo: Editora Unicamp,
2005
Constituição Política do Império do Brasil (de 25 de março de 1824).
Disponível
em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm
(acessado em 21/07/2011).
[34]
Dossiê Criminalidade
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FOUCAULT, Michel. Em defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes,
1999.
HILL, Christopher. O mundo de ponta cabeça. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987.
LARA, Silvia Hunold (Org). Ordenações Filipinas – Livro V. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999.
LOPES, José Reinaldo de Lima. “Metodologia e ensino do direito: a
Modernidade” in O Direito na História. São Paulo: Atlas, 2009.
MACHADO NETO, Zahidé. Direito Penal e Estrutura Social. São Paulo:
Saraiva, 1977.
SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e Sociedade no Brasil colonial. São Paulo:
Perspectiva, 1979.
SZMRECSANYI, Tamas e SILVA, Sérgio S. (org). História Econômica da
Primeira República. São Paulo: Hucitec, 2002.
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...SEPAROU A CABEÇA DO CORPO DA VÍTIMA, A SUA
PRÓPRIA MÃE [...]
O QUE É ISTO, SENÃO LOUCURA?
Jéferson dos Santos Mendes1
Resumo:
O presente artigo busca trabalhar um crime cometido em 1909, na serra do
Taquary, no município de Soledade, Rio Grande do Sul. Neste o réu após um
episódio de “loucura” agride a irmã e mata a mãe, decapitando-a. Abordando
um estudo histórico-sociológico dos sujeitos envolvidos no crime. O tratamento
dado pela justiça às vítimas e aos réus. Qual era o fator desencadeador do
delito. Alguns conceitos chaves como de desvio e norma.
Palavra-chave: crime, norma, direito.
Résumé:
Présent article cherche travailler un crime commis en 1909, dans la montagne
du Taquary, dans la ville de Soledade, de Rio Grande do Sul. Dans cet o accusé
après un épisode de “folie” il agresse la soeur et tue la mère, en la décapitant.
En abordant une étude historique-sociologique des sujets impliqués dans le
crime. Le traitement donnée par la justice aux victimes et aux coupables. Quelle
ère le facteur déchaîner du délit. Quelques concepts clés comme de détour et
de norme.
Parole-clef: crime, norme, droit.
Mestre em História pela Universidade de Passo Fundo.
Pós-graduado em Sociologia pela Universidade de Passo Fundo.
Graduado em História pela Universidade de Passo Fundo.
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O homem, no fundo, é um animal selvagem e terrível. Nós
o conhecemos unicamente no estado subjugado e
domesticado, denominado civilização: por isto nos assustam
as eventuais erupções de sua natureza. Porém, onde e
quando a trava e a cadeia da ordem jurídica se rompem, e
se instaura a anarquia, se revela o que ele é.
[...] é a essência interna e inata do homem. Em cada um se
aninha inicialmente um egoísmo colossal, a ultrapassar com
maior a facilidade os limites impostos pelo direito [...].
[...] No coração de cada um repousa efetivamente um
animal selvagem, apenas à espera de uma oportunidade
para bramir com fúria e devastação, na pretensão de
prejudicar outros e mesmo, quando se lhe opõem, de
aniquilá-los [...].
[...] Quando dois cachorros pequenos brincam,
apresentando uma visão tão pacífica e agradável, e se
aproxima uma criança de 3 a 4 anos, imediatamente esta
baterá nos animais com seu chicote ou pedaço de pau,
mostrando assim que já é l’animal méchant par excellence.
(o animal perverso por natureza).
Shopenhauer
As práticas criminosas sempre foram e ainda são comuns em nossa
sociedade. Ao mesmo tempo. Sempre foram duramente combatidas. Mas o
Estado, como instituição mantenedora da ordem pública nem sempre conteve
os impulsos conscientes ou inconscientes dos indivíduos. O crime entendido de
diferentes formas, e, em diferentes épocas. Sofreu diversos processos tanto de
condenação como de prática. Michel Foucault percebeu essas transformações e
as novas correções nas execuções das penas.
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Dentre tantas modificações, atenho-me a uma: o
desaparecimento dos suplícios. Hoje existe a tendência a
desconsiderá-lo; talvez, em seu tempo, tal desaparecimento
tenha sido visto com muita superficialidade ou com
exagerada ênfase como "humanização" que autorizava a não
analisá-lo. De qualquer forma, qual é sua importância,
comparando-a às grandes transformações institucionais, com
códigos explícitos e gerais, com regras unificadas de
procedimento; o júri adotado quase em toda parte, a
definição do caráter essencialmente corretivo da pena, e
essa tendência que se vem acentuando sempre mais desde o
século XIX a modular os castigos segundo os indivíduos
culpados? Punições menos diretamente físicas, uma certa
discrição na arte de fazer sofrer, um arranjo de sofrimentos
mais sutis, mais velados e despojados de ostentação,
merecerá tudo isso acaso um tratamento à parte, sendo
apenas o efeito sem dúvida de novos arranjos com maior
profundidade? No entanto, um fato é certo: em algumas
dezenas de anos, desapareceu o corpo supliciado,
esquartejado, amputado, marcado simbolicamente no rosto
ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como
espetáculo. Desapareceu o corpo como alvo principal da
repressão penal.1
Esse desvio social, transformou o atrativo penal conduzido a privação
da liberdade do indivíduo e não mais o corpo como elemento punitivo.
Agregador de modelos de suplício. Em contrapartida o desenvolvimento da
FOUCAULT, Michel, Vigiar e punir: nascimento da prisão, Trad. Raquel Ramalhete,
Petrópolis, Vozes, 1987, p. 12.
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sociedade industrial, trouxe precipuamente um arrojado sistema punitivo com
novos agentes sociais institucionalizados.
[...] um exército inteiro de técnicos veio substituir o
carrasco, anatomista imediato do sofrimento: os guardas, os
médicos, os capelães, os psiquiatras, os psicólogos, os
educadores; por sua simples presença ao lado do
condenado, eles cantam à justiça o louvor de que ele
precisa: eles lhe garantem que o corpo e a dor não são os
objetos últimos de sua educação punitiva.1
O crime e sua ocorrência nos grandes centros urbanos passou a ser
entendido como algo comum,2 recrescente ao início do século XX. O próprio
Durkheim, o percebia como um fato social normal.3
O recrudescimento das normas aos atos falhos dos indivíduos tornaram
o sistema punitivo mais democrático. As ações humanas seriam contidas através
das leis. Um conjunto de regras éticas e morais foram elaborados para manter a
ordem social. Um processo civilizatório em construção.
Entretanto, nem todos estavam envolvidos a essa rede em
desenvolvimento. Os grandes centros urbanos, envoltos de problemas de
crescimento e densidade populacional tornavam as relações sociais mais
estáveis, deletérias, nocivas. Mas controlados substantivamente pelas ações do
Estado. Já os pequenos centros urbanos mais vulneráveis as ações reguladoras
da instituição estavam propícios aos desvios ascendentes.
Enquanto nos grandes centros urbanos, os crimes podem ser
entendidos como processos de imitação, “por exposição anormal à influência
FOUCAULT, Michel, Vigiar e punir: nascimento da prisão, Trad. Raquel Ramalhete,
Petrópolis, Vozes, 1987, p. 15.
DURKHEIM, Emile, As regras do método sociológico, Trad. Paulo Neves, São Paulo, Martins
Fontes, 1999, p. 15.
SELL, Carlos Eduardo, Sociologia Clássica, Itajaí, Univali, 2001, p. 146.
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de pessoas e grupos já criminosos”.1 Então, como explicar as ações criminosas
de indivíduos em pequenos centros urbanos?, O que levaria um filho a matar a
própria mãe? E, depois decapitá-la?. Nesse emaranhado de hipóteses é que
tentaremos costurar as ideias, tecendo o objeto a partir dos sujeitos envolvidos.
Em mais um domingo vivido por uma família humilde do norte do
Estado do Rio Grande do Sul, tudo parecia estar nos seus devidos lugares,
entretanto a aparente calmaria daria lugar aos ventos tortuosos de náufragos
antigos. Em 12 de dezembro de 1909, as primeiras horas do dia repetiam a
rotina pacata do interior. Até que,
[...] às 11 horas da manhã, no 1º distrito do município da
Soledade, na Serra de Taquary, achando Ignácio dos Santos
Vaz em companhia de suas irmãs Conceição e Apolinária,
em casa de seus pais, altercando com a primeira, armou-se
de um pau e deu com ele um golpe em Conceição, ferindoa gravemente e deixando-a sem sentidos, caída ao chão.
Acudindo a outra irmã Apolinária, Ignácio dos Santos Vaz
vibrou-lhe um golpe com o pau que tinha a mão, ferindo-a
também. Correndo Maria Vaz dos Santos em socorro de
suas filhas, Ignácio seu filho armando-se de um machado,
vibrou-lhe tremendo golpe, que a derrubou por terra, já
quase morta e repetindo os golpes, separou a cabeça do
corpo da vítima, a sua própria mãe.
Como Ignácio dos Santos Vaz, assim procedendo, venha
cometido os crimes previstos nos art. Os 304, 303 e 294 §
1º do Código Penal da República, oferece o promotor
público da comarca a presente denúncia, que espera, seja
afinal julgada provada. Assim P. q. A. esta, se proceda a
JOHNSON, Harry M, Introdução sistemática ao estudo da Sociologia, Trad. Edmond Jorge,
Rio de Janeiro, Lidador Ltda, 1967, p. 647.
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formação da culpa, inquerindo-se as testemunhas arroladas,
que devem ser citadas para depor em dia e hora, que forem
designados, com ciência do indiciado, cuja prisão preventiva
requer continue até final sentença.
O dano causado é incalculável.
Testemunhas.
[...]
em tempo. – em face do hediondo crime, que autoriza a
duvidar-se do estado mental do denunciado, requeira que se
proceda a exame de sanidade mental no mesmo.
Passo Fundo, 24 de dezembro de 1909.1
O réu foi autuado nos arts. 303, 304 e 294 § 1º do Código Penal da
República. O art. 303 compreende a ofensa física que produz algum tipo de
lesão, sem derramamento de sangue, tendo prisão de três meses a um ano.2 O
art. 304, se a lesão corporal resultar de “mutilação ou amputação, deformidade,
ou privação permanente de uso de um órgão ou membro, ou qualquer
enfermidade incurável e que prive para sempre o ofendido de poder exercer o
seu trabalho”, registrando pena de dois a seis anos.3 Já o art. 294 § 1º, condiz ao
matar alguém,4 e esse “crime for perpetrado com qualquer das circunstâncias
agravantes mencionadas nos §§ 2, 3, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 16, 17, 18 e 19 do
art. 39 e § 2º. Do art. 41”.5 Prevê prisão de 12 a 30 anos.1 Assim,
Arquivo Histórico Regional de Passo Fundo, acervo PPGH-UPF (2ª Vara Civil da comarca de
Soledade-RS) - Caixa 10.
Referente às lesões causadas nas irmãs do réu.
Referentes às lesões causadas na mãe do réu.
O criminoso, portanto, deve ser visto de maneira diversa daquela pela qual a penalogia o olhara
anteriormente, deve ser visto dentro do moderno conceito biológico do crime como expressão de
normalidades orgânicas e funcionais, ainda que não se possam perder de vista os fatores
sociológicos e as necessidades da defesa social. In: BRITTO, Lemos, A questão sexual nas
prisões, Rio de Janeiro, Livraria Jacintho, sd, p. 51.
Art. 39 – São substancias agravantes:
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O que transforma este fato num ato jurídico (lícito ou ilícito)
não é a sua facticidade, não é o seu ser natural, isto é, o seu
ser tal como determinado pela lei da causalidade e
encerrado no sistema da natureza, mas o sentido objetivo
que está ligado a esse ato, a significação que ele possui. O
sentido jurídico específico, a sua particular significação
jurídica, recebe-a o fato em questão por intermédio de uma
norma que ele se refere com o seu conteúdo, que lhe
empresta a significação jurídica, por forma que o ato pode
ser interpretado segundo esta norma. A norma funciona
como esquema de interpretação. Por outras palavras: o juízo
em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui
§ 2.º - Ter sido o crime cometido com premeditação, mediando entre a deliberação criminosa e a
execução o espaço, pelo menos, de vinte e quatro horas;
§ 3.º - Ter o delinquente cometido o crime por meio de veneno, substancias anestésicas,
incêndio, asfixia ou inundação;
§ 6.º - Ter o delinqüente procedido com fraude, ou com abuso de confiança;
§ 7.º - Ter o delinqüente procedido com traição, surpresa ou disfarce;
§ 8.º - Ter procedido ao crime com emboscada, por haver o delinqüente esperado o ofendido
em um ou diversos lugares;
§ 9.º - Ter sido o crime cometido contra ascendente, descendente, cônjuge, irmão, mestre,
discípulo, tutor, tutelado, amo, doméstico, ou de qualquer maneira legitimo superior agente;
§ 10.º - Ter o delinqüente cometido o crime por paga ou promessa de recompensa;
§ 11.º - Ter sido o crime cometido com arrombamento, escalada ou chaves falsas;
§ 12.º - Ter sido o crime cometido com entrada, ou tentativa para entrar, em casa do ofendido
com intenção de perpetrar o crime;
§ 13.º - Ter sido o crime ajustado entre dois ou mais indivíduos;
§ 16.º - Ter sido cometido o crime estando o ofendido sob a imediata proteção da autoridade
publica;
§ 17.º - Ter sido o crime cometido com emprego de diversos meios;
§ 18.º - Ter sido o crime cometido em ocasião de incêndio, naufrágio, inundação, ou qualquer
calamidade publica, ou de desgraça particular do ofendido. In: PIRAGIBE, Vicente,
Consolidação das Leis Penaes: Código Penal Brasileiro, Rio de Janeiro, Jornal do Comércio,
1933.
PIRAGIBE, Vicente, Consolidação das Leis Penaes: Código Penal Brasileiro, Rio de Janeiro,
Jornal do Comércio, 1933.
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um ato jurídico (ou antijurídico) é o resultado de uma
interpretação específica, a saber, de uma interpretação
normativa. Mas também na visualização que o apresenta
como um acontecer natural apenas se exprime uma
determinada interpretação, diferente da interpretação
normativa: a interpretação casual. A norma que empresta ao
ato o significado de um ato jurídico (ou antijurídico) é ela
própria produzida por um ato jurídico, que, por seu turno,
recebe a sua significação jurídica de uma determinada
norma. [...] Isso que dizer, em suma, que o conteúdo de um
acontecer fático coincide com o conteúdo de uma norma
que consideramos válida.1
Através do conceito elaborado por Kelsen, o Estado possuía a sua
expressão mais sintomática, definindo-o como “a ordem política a qual se
atribui o uso exclusivo do poder coativo”, em contrapartida “o Direito, que
constitui o objeto deste conhecimento, é uma ordem normativa da conduta
humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento
humano".2 Dessa forma, “direito e Estado se confundem”.3
Após a consumação do ato em questão foi dado o auto de prisão em
flagrante ao réu, pela tentativa de fuga. Depois de efetuado o corpo de delito no
cadáver de Maria Vaz dos Santos, no qual os peritos eleitos faziam as seguintes
perguntas:
1º Se houve a morte?
2º Qual a causa imediata?
3º Qual o meio empregado que o produziu?
KELSEN, Hans, Teoria pura do direito, Trad. João Baptista Machado, São Paulo, Martins
Fontes, 1998, p. 3-4.
KELSEN, Hans, Teoria pura do direito, Trad. João Baptista Machado, São Paulo, Martins
Fontes, 1998, p. 4.
COELHO, Fábio Ulhoa, Para entender Kelsen, São Paulo, Saraiva, 2001, p. XIX.
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4º Qual o valor do dano causado?
Sendo feita a perícia,
[...] declararam que examinando o cadáver referido,
verificaram achar degolada tendo a cabeça separada do
corpo e quebrada; e que, portanto respondem: ao 1º
quesito, sim; ao 2º quesito, consequência do golpe; ao 3º
quesito, instrumento cortante (machado); ao 4º finalmente
que avaliam em vinte contos de reis o dano causado.1
Após o auto do corpo de delito na mãe do réu, o mesmo foi feito nas
irmãs. Com os seguintes questionamentos:
1º Se a ofensa física produzida nas pacientes, dor ou alguma lesão corporal?
2º Qual o instrumento que o produziu?
3º Se as lesões corporais são ou não mortais?
4º Se as lesões corporais, por sua natureza, serão causa eficiente das mortes das
ofendidas?
5º Se as lesões corporais em vista da constituição o estado mórbido anterior das
ofendidas concorrerá irremediavelmente para a morte destas?
6º Se das lesões corporais resultaram ou podem resultar copulação ou
mutilação de algum órgão ou membro?
7º Se das lesões corporais resultaram ou podem resultar deformação e qual seja
esta?
8º Se das lesões corporais podem resultar privação permanente de algum, digo,
do uso de algum órgão ou membro e qual seja ele?
9º Se das lesões corporais podem resultar qualquer enfermidade incurável e
que prove para sempre as ofendidas de exercer o seu trabalho e qual seja ele?
Arquivo Histórico Regional de Passo Fundo, acervo PPGH-UPF (2ª Vara Civil da comarca de
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10º Se as lesões corporais produz algum incomodo de saúde que desabilite os
pacientes do serviço ativo por mais de trinta dias?
11º Finalmente qual o valor do dano causado?
A partir dos exames relatados os peritos encontraram diversos golpes
de machado pelo chão,
[...] e que examinado as pacientes verificaram existir na
região frontal da primeira paciente uma contusão com três
centímetros mais ou menos, e na segunda paciente existir
também uma contusão na região occipital com cinco
centímetros mais ou menos ambos as contusões em forma
arredondadas, declararam mais os peritos terem encontrado
na inclusa casa um machado todo ensanguentado, [...].1
Com isso "Todo um conjunto de julgamentos apreciativos. diagnósticos,
prognósticos, normativos, concernentes ao indivíduo criminoso encontrou
acolhida no sistema do juízo penal".2
Para provar os momentos de insanidade do réu, ou mesmo não
consciência, consciência instintiva. Feito o exame de sanidade mental, por dois
médicos, ambos fizeram as mesmas perguntas.
1º Se Ignácio dos Santos Vaz sofre de alienação mental?
2º Se é contínuo ou tem nítidos êxitos?
3º Se é geral ou parcial?
4º Qual é a sua espécie de gênero?
5º Desde que tempo dota esta loucura?
6º Se a morte?
Dessa forma, foi verificado que o réu sofria de “loucura”.
Arquivo Histórico Regional de Passo Fundo, acervo PPGH-UPF (2ª Vara Civil da comarca de
Soledade-RS) - Caixa 10.
FOUCAULT, Michel, Vigiar e punir: nascimento da prisão, Trad. Raquel Ramalhete,
Petrópolis, Vozes, 1987, p. 23.
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Conforme exame feito em Ignácio de Tal, na prisão desta
vila e que diz ter somente 12 anos, devendo ter acima de 21
anos de idade. Julgo.
1º que Ignácio sofre de alienação mental;
2º que Ignácio tem momentos de lucidez;
3º que o seu estado de alienação é parcial;
4º que sofre de idiotismo;
5º que este é congênito;
6º que Ignácio de tal devia ter morte a sua mãe e ferido as
suas irmãs em estado mórbido;
Kurt Spalding
Soledade, 8 de janeiro de 1910.1
Já o médico João Joseph Krein, ressalta que
[...] pelo exame que fiz no Ignácio de Tal... que se acha na
cadeia e que declara de ter somente 12 anos, classifico seu
estado mental. Idiotismo congênita, esta criatura criada no
mato, privada de cultivo físico e moral, alcançou o alto grau
de idiotismo e uma brutalidade capaz de praticar o mais
horroroso crime, se ele encontrou obstáculo no desejo de
satisfazer certo instinto. Considero também que o sujeito
deve de ter 21 anos mais ou menos.2
Além disso, “Todos nós reconhecemos que a doença mental é uma
perturbação da personalidade, implicando portanto em motivação
Arquivo Histórico Regional de Passo Fundo, acervo PPGH-UPF (2ª Vara Civil da comarca de
Soledade-RS) - Caixa 10.
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Soledade-RS) - Caixa 10.
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inconsciente”, o mesmo autor acredita que as vítimas na maioria das vezes
contribuem inconscientemente ou não para a ação do delituoso.1
A pessoa em desvio expressa sua atitude negativa contra
pessoas ou na forma de seu ato em desvio – assalto e
agressão, por exemplo – ou apenas pelo desvio em si, como
quando uma pessoa infringe uma norma sobretudo porque
esta foi estabelecida ou é mantida por alguém contra quem
se sente agressiva. Os psicólogos muitas vezes dizem que
esta pessoa tem uma atitude negativa para com a autoridade.
Isto significa que uma atitude alienadora originalmente
dirigida, supõe-se, contra determinada pessoa com
autoridade – por exemplo, o pai – ampliou-se mais ou
menos inconscientemente, atingindo todas as pessoas cuja
posição-função lembra a da figura autoritária original. Este
processo de disseminação por associação inconsciente ou
ligações simbólicas é às vezes chamada de generalização.2
Segundo as testemunhas consultadas referem-se o réu na ocasião do
crime como muito alterado, no depoimento de seu irmão “disse que o
denunciado depois do crime, disse que sua mãe queria bater em suas irmãs
então ele resolveu agredi-la”.3 A condição da suposta demência do fato deste ter
caído quando criança do cavalo, tendo depois disto estados de desequilíbrios
mentais.
JOHNSON, Harry M, Introdução sistemática ao estudo da Sociologia, Trad. Edmond Jorge,
Rio de Janeiro, Lidador Ltda, 1967, p. 652.
JOHNSON, Harry M, Introdução sistemática ao estudo da Sociologia, Trad. Edmond Jorge,
Rio de Janeiro, Lidador Ltda, 1967, p. 652.
Arquivo Histórico Regional de Passo Fundo, acervo PPGH-UPF (2ª Vara Civil da comarca de
Soledade-RS) - Caixa 10.
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Pela defesa
O réu Ignácio dos Santos Vaz é alienado.
Do próprio fato praticado se infere a sua loucura.
Sem nenhum motivo se enraivece contra as irmãs e as
esbordoa.
Aproxima-se, carinhosamente, a sua mãe, ele a mata com
uma machadada.
Morta, separa a cabeça do corpo e, em seguida, vai para a
casa de uma sua irmã e ali fica.
O que é isto, senão loucura?
O exame de sanidade mental, [...] apesar de muito
imperfeito, serve para atestar que o réu é um louco.
Os depoimentos das testemunhas afirmam o estado
mórbido de sua inteligência, sendo que uma delas atribui o
seu estado doentio a uma queda, ou seja, a um choque
traumático.
[...].
Está, pois, provado dos autos que o réu sofre de
enfermidade mental que lhe tolhe a consciência ou a
liberdade dos próprios atos.
[...] Na qualidade de curador nomeado ao réu, sentimo-nos
no dever de não deixar passar esta oportunidade legal sem
pugnar a sustentação de seus direitos.
E pelo que exposto fica e que em face das provas dos autos,
esperamos que o réu não seja pronunciado nas penas
pedidas na denuncia e que de conformidade com o disposto
no art. do Cód. Penal, seja ele entregue e sua família, por
ser isto de direito e justiça.
Soledade, 14 de fevereiro de 1910.
O curador do réu
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Abelardo de Almeida Campos.1
Para considerar o réu alienado conforme provam as testemunhas, é
aplicado o exame de sanidade, assim, este, “[...] não tem mesma consciência do
ato que praticou. Considerando que nestas condições senão pode dizer que
haja crime (Cód. Penal. Art. 27 § 4º). [...] que seja o mesmo recolhido ao
hospício, requisitando-se do governo as necessárias providências para isto”.2 O
Estado, paga as custas do processo e da internação do jovem no hospício. Para
fundamentar que o réu sofre de um tipo de demência, foi fundamentado no art.
27 § 4º, “Os que se acharem em estado de completa perturbações de sentidos e
de inteligência no ato de cometer o crime”.
E o papel do psiquiatra em matéria penal? Não será o
perito em responsabilidade, mas de conselheiro de punição;
cabe-lhe dizer se o indivíduo é "perigoso", de que maneira se
proteger dele, como intervir para modificá-lo, se é melhor
tentar reprimir ou tratar. Bem no começo de sua história, a
perícia psiquiátrica tivera que formular proposições
"verdadeiras" sobre a medida da participação da liberdade
do infrator no ato que cometera; ela tem agora que sugerir
uma receita sobre o que se poderia chamar seu "tratamento
médico-judicial.3
Arquivo Histórico Regional de Passo Fundo, acervo PPGH-UPF (2ª Vara Civil da comarca de
Soledade-RS) - Caixa 10.
Arquivo Histórico Regional de Passo Fundo, acervo PPGH-UPF (2ª Vara Civil da comarca de
Soledade-RS) - Caixa 10.
FOUCAULT, Michel, Vigiar e punir: nascimento da prisão, Trad. Raquel Ramalhete,
Petrópolis: Vozes, 1987, p. 25.
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O Estado comprometido com o problema em voga, determinou que o
melhor tratamento ao paciente não era a prisão mas a internação hospitalar.
Essa decisão demonstra progressivamente o desenvolvimento das novas visões
jurídicas de institucionalização das penas. A regulação do aparato normativo
busca impedir a repetição das ocorrências sociais de novos distúrbios.
Não temos informações a respeito do réu após a internação, se ele
voltou ao convívio familiar, se tem novas incidências de transtornos ou algo
aconteceu enquanto estava internado. Dessa forma, por falta de documentos
carecemos de maiores informações.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho aqui referenciado,1 trouxe além de uma fonte inédita a
questão dos trabalhos produzidos a partir dos processos judiciárias. Estes
engatinham nas mãos dos historiadores e sociólogos. Dessa forma, vemos a
necessidade de abrir esse campo de análise.
As práticas criminosas para serem combatidas primeiro devem ser
entendidas. Em seus variados aspectos. Independente de tempo e espaço. É um
problema social.
O contexto acima, um crime hediondo onde o filho após um ataque de
fúria agrediu as duas irmãs e matou a mãe com um machado. Depois da prisão
e do corpo de delito, a conclusão foi que o réu sofria de distúrbios desde um
acidente na infância. O resultado foi enviá-lo para um hospital psiquiátrico.
Previsto no art. 27 § 4º do Código Penal, que se o indivíduo estiver em
estado de “completa perturbações” no momento do crime o mesmo deve ser
“recolhido ao hospício”. Sendo o Estado responsável pelas demais despesas
quanto à internação. Ou seja, o desvio do indivíduo consciente ou não, através
1
Este segue em andamento.
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da lei permitiu que a instituição do Estado agisse supostamente de forma eficaz
quanto à regulação do delito do infrator.
REFERÊNCIAS
Arquivo Histórico Regional de Passo Fundo, acervo do PPGH-UPF.
BRITTO, Lemos, A questão sexual nas prisões, Rio de Janeiro, Livraria
Jacintho, sd.
COELHO, Fábio Ulhoa, Para entender Kelsen, São Paulo, Saraiva, 2001.
DURKHEIM, Emile, As regras do método sociológico, Trad. Paulo Neves,
São Paulo, Martins Fontes, 1999.
FOUCAULT, Michel, Vigiar e punir: nascimento da prisão, Trad. Raquel
Ramalhete, Petrópolis, Vozes, 1987.
JOHNSON, Harry M, Introdução sistemática ao estudo da Sociologia, Trad.
Edmond Jorge, Rio de Janeiro, Lidador Ltda, 1967.
KELSEN, Hans, Teoria pura do direito, Trad. João Baptista Machado, São
Paulo, Martins Fontes, 1999.
PIRAGIBE, Vicente, Consolidação das Leis Penaes: Código Penal Brasileiro,
Rio de Janeiro, Jornal do Comércio, 1933.
SELL, Carlos Eduardo, Sociologia Clássica, Itajaí, Univali, 2001.
Schopenhauer, Parerga e Paralipomena, São Paulo, Abril Cultural, 1974, Os
Pensadores, v. XXXI.
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LIVROS DE MATRÍCULAS DA CASA DE DETENÇÃO:
MEMÓRIAS DOS “DESEDUCADOS” DA CORTE (1880-1889).
Jailton Alves de Oliveira
Resumo
O artigo tem como objetivo principal discutir, a partir das análises de alguns
Livros de Matrículas de Presos, como a então Casa de Detenção da Corte pode
ser considerada um espaço formal de educação, via adestramentos dos corpos,
para milhares de presos homens (livres e libertos), mulheres e crianças.
Procura-se, também, perceber quem são esses sujeitos, como e porque entram
na prisão. Para tal, investiga-se a construção da figura do vadio, a partir das
análises de alguns discursos jurídicos oitocentista, e as características físicas,
guardando as suas especificidades, dos mesmos.
Palavras-chave: Prisão; Educação; Vadiagem.
Abstract
The article’s main objective is to discuss, from the analysis of some books for
the registration of prisoners, then as the Court House of Detention can be
considered a formal space education, through training of the bodies for
thousands of imprisoned men (free or freed), woman and childrens. We try to
also understand who these guys are, how and why enter the prison. To this end
we investigate the construction of the figure of the vagrant, from the analysis of
some nineteenth-century legal discourse, and physical characteristics, keeping
their specificities, the same.
Keywords: Prison; Education; Truancy.

Mestrando em História da Educação. Programa de Pós-Graduação em História da Educação da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
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A Casa de Detenção da Corte,1 atual penitenciária Milton Dias Moreira,
foi o grande xadrez da então sede do governo imperial, principalmente após o
fechamento do Calabouço em 1874.
[...] escriptura de venda de chácara que fazem a Manuel de
Passos Correa e sua mulher dona Rosa Maria Abreu Correa
á fazenda nacional, pelo excellentissimo procurador da
coroa soberana e fazenda nacional srº José Antonio da Silva
Maia, sres. proprietários de uma chácara e benfeitorias nella
existentes situada no lugar determinado Catumby e que se
divide pela frente com a rua do Conde [...] vendião por esse
instrumento de hoje para compra mencionada chácara com
todas as benfeitorias existentes á fazenda nacional pela
quantia de oitenta contos de reis valha mais ou valha menos
que esses contos de reis.2
Para lá convergiam todos os dias uma massa de deserdados,
desocupados e desvalidos que caíam na malha fina do poder jurídico-policial da
época. Foi criada e instalada nas dependências da Casa de Correção da Corte
do Rio de Janeiro,3 atual penitenciária Lemos de Brito, e fazia parte do
complexo penitenciário onde se encontrava também o Calabouço. Foi criada
para substituir o Aljube, uma antiga prisão eclesiástica desativada por não mais
atender as necessidades da justiça. Embora também pudesse abrigar presos
condenados, sua principal função era manter detidos aqueles que ainda não
tivessem sido condenados ou cometidos pequenos delitos sem pena. A maioria
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). BRASIL . Decreto de número 1774, de
02 de julho de 1856. Coleção das Leis do Império do Brasil de 1856. Rio de Janeiro: Typografia
Nacional, 1857, p.294. A Casa de Detenção da Corte foi criada e instalada nas dependências da
Casa de Correção da Corte do Rio de Janeiro, atual penitenciária Lemos de Brito.
Arquivo Nacional. Fundo Estados e Chácaras. Série Justiça. IJ6, nº. 2523, Cx.419, Gal. A.
O complexo da Frei Caneca, como era comumente conhecido, foi implodido em março de
2011 e os presos da instituição foram transferidos para algumas alas do complexo penitenciário
do Gericinó.
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das prisões era feita sob prerrogativa da manutenção da ordem constituída e,
por isso, muitos transeuntes eram direcionados à instituição sob argumento de
simples averiguação.
A maioria das prisões era feita sob prerrogativa da manutenção da
ordem constituída e, por isso, muitos transeuntes eram direcionados à
instituição sob argumento de simples averiguação. Essa hipótese pode ser
confirmada pelo elevado número de presos que eram diariamente conduzidos à
Casa de Detenção, para prestar esclarecimentos sobre suas condutas. Assim,
pedreiros, fundidores, latoeiros, guardas freio, ostreiros, lavadeiras, lustradores,
estivadores, barbeiros, quitandeiros, escravos ao ganho, pautadores, alfaiates,
cigarreiros, calafates, cafeteiros, cigarreiros, entre outros, eram encaminhados à
instituição por incorrerem em delitos como vadiagem, mendicância,
embriaguez, desordem, ofensas públicas, agressões, insultos, portar navalha,
entre outros.
O Decreto de criação da Casa de Detenção da Corte determinava que
cinco tipos de livros fossem mantidos:
De entradas e saídas (para homens, mulheres e escravos
separadamente), de óbitos, de inventário, de conta-corrente
dos presos sustentados pelo Estado e de índice alfabético
devidamente numerados e na última página deveria ter o
fechamento com a assinatura do diretor da instituição.1
Esses Livros de Matrículas de Presos constituem, para o historiador
Soares, “o maior repositório de informações pessoais sobre indivíduos das
classes populares no Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX”. 2 Os
mesmos fazem parte do Fundo Casa de Detenção do Rio de Janeiro. Este
BRASIL. Decreto de número 1774, de 02 de julho de 1856., op. cit. p. 294.
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Negredada Instituição: os capoeiras da corte imperial (18501890). Coleção Biblioteca Carioca, vol. 31. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura,
1994, p.34.
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Fundo é um corpus documental compreendido por quinhentos e dezesseis
Livros de Matrículas de presos homens (livres e libertos), mulheres, menores,
escravos e presos políticos, que deram entrada na instituição entre os anos de
1860 e 1969. Nos Livros encontramos importantes dados sobre os detentos
como nome, filiação, naturalidade, nacionalidade, ocupação, idade, sexo,
moradia, data da entrada, como foi preso, quem o prendeu, motivo da prisão,
local da prisão, se houve julgamento, data da condenação, entrada e saída da
enfermaria, data da saída, quem o conduziu à prisão, entrada e saída da
enfermaria, sinais característicos visíveis (cor, olhos, boca, nariz, olhos,
sobrancelhas e pele), entre muitas outras informações.1 Os Livros são,
supostamente, oriundos da penitenciária Milton Dias Moreira, antiga Casa de
Detenção do Rio de Janeiro, que na década de 1990 transferiu todo o acervo
para o APERJ.
Afinal, para que tantas informações sobre o preso? Chazkel,2 lembra
que as informações contidas nos livros, esses saberes formulados, contribuíam
muito para os órgãos policiais da cidade. Nesse ritual de classificação saber
sobre filiação, por exemplo, significava saber se o detento pertencia a chamada
família legítima, ou seja, se não era escravo ou simplesmente perambulava pela
cidade; as vestimentas, como “grande indicador da condição socioeconômica”3
eram investigadas nos livros. O personagem documental acaba sendo
considerado como um “criminoso conhecido”4, na medida em que a polícia, a
partir dessas e outras informações, passava a construir o perfil dos criminosos
da cidade. Ter mais de um registro em algum dos livros era outro fator que
marcava o ex-detento.
As informações variam conforme o tempo e o livro. No livro dos escravos, por exemplo, existe
o campo destinado ao nome do seu senhor. Em outro, o termo “ocupação” é substituído pelo de
“profissão”.
CHAZKEL, Amy. Uma perigosíssima lição: a Casa de Detenção do Rio de Janeiro na primeira
república. In. Maia; Bretas (orgs.). História das Prisões no Brasil. Volume II. Rio de Janeiro,
Rocco, vol. II, 1999, p.7-34.
Ibid., loc. cit.
Ibid., loc. cit.
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Olmo1, problematizando a criminologia no espaço da América Latina,
nos diz que diante dos avanços tecnológicos ocorridos na Europa do século
XIX, a ciência foi “chamada para ordenar”2 os acontecimentos. Nesse sentido,
o delito também foi palco de discussões científicas; abordado sob aspectos
científicos do “positivismo, da antropologia e psiquiatria”.3 Busca-se, com isso,
construir cientificamente a figura do criminoso. Em vários países da Europa
estuda-se o criminoso. Estudos morfológicos e anatômicos procuram definir a
natureza desse personagem. Era necessário classificar, pela fisionomia, e
identificar a presença de características criminosas, ressalta Faria.4 Vale ressaltar
que mesmo com o serviço de fotografia, inaugurado na instituição na década de
1870,5 as autoridades policiais não deixavam de consultar as anotações dos
livros, pois ainda acreditavam que assim conseguiriam capturar criminosos.
Como exemplo disso, em ofício expedido pela secretaria de polícia da corte,
em 1888, para o diretor da Casa de Correção constava um pedido para
confecção de “24 livros, contendo cada um com 250 folhas numeradas, em
almaço pautado para o expediente da Casa de Detenção da Corte”.6 Em cada
página, salvo quando o livro está em péssima condição de uso, podem-se ter
informações variadas para três presos e, desta forma, chegando-se a uma média
de setecentos e cinquenta presos por livro. Em vinte e quatro livros, teremos
anotações para aproximadamente dezoito mil presos. No ano de 1888, por
exemplo, tendo sido utilizados seis livros, temos anotações para quatro mil e
quinhentos presos.
OLMO, Rosa Del. A América Latina e sua criminologia. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2004, p.
34.
Ibid. loc. cit.
Ibid. loc. cit.
FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Raça e poder no império do Brasil. In. MATTOS, Hebe
Maria. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2000.
p.128.
SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Um lugar para os deserdados e deserdadas. In. FILHO,
Silvio de Almeida Carvalho (org). Deserdados: dimensões das desigualdades sociais. Rio de
Janeiro : Ed. H.P. Comunicação, 2007, p.28.
Fundo Justiça. op.cit., Códice 106, p. 21.
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No dicionário da língua portuguesa o termo educado corresponde a
alguém que recebeu educação; foi instruído, ensinado; é cortês e adestrado.
Por outro lado, o termo deseducado (des+educado) significaria estragar a
educação de ou mesmo um sujeito sem educação.1 Nos limites deste trabalho,
o termo “educação” será tratado não como um conjunto de normas
“pedagógicas tendentes ao desenvolvimento geral do corpo e do espírito”2, e
sim como “uma forma de instrução, polidez”.3 Essa posição justifica-se na
medida em que a elite político-econômica oitocentista, particularmente a partir
do segundo quartel, procurou polir os comportamentos dos ditos desviantes.
Refletir a respeito da educação no Brasil oitocentista, em particular na
cidade do Rio de Janeiro, é ter em mente:
[...] heterogeneidade das formas de educação e de
apropriação dos modelos educacionais, enfatizando a
pluralidade das possibilidades históricas e usos diversos que
os agentes fazem das instituições educativas, escolares e nãoescolares, remodelando e reconstruindo os espaços, os
saberes e os tempos sociais.4
É observar, também, que a educação, como instrumento de
interferência no curso da vida desses sujeitos, estava presente em lugares
variados. Portanto, há, aqui, uma aproximação com a “[...] existência de forças
distintas que, agindo de modo solidário ou concorrente, delineiam aquilo que
encontramos em termos de iniciativa e conteúdo educativo”.5 Pensar, portanto,
em escola ou escolarização no Brasil do XIX é se apropriar de termos plurais,
Novo dicionário da língua portuguesa. Dicionário Michaelis. Editora Melhoramentos Ltda.,
2011, p. 110.
Ibid., p. 112.
Novo dicionário da língua portuguesa. op. cit., p. 118.
GONDRA, José Gonçalves; SCHUELER, Alessandra. Educação, poder e sociedade no
império brasileiro. São Paulo : Cortez, 2008, p. 19-25.
Ibid., p.41.
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que perpassam o campo de visão onde apenas em espaços escolares, ditos
formais, poderemos perceber a presença de mecanismos educadores. Esses
espaços não podem, em uma perspectiva da cidade do Rio de Janeiro
oitocentista, ser limítrofes da educação populacional; nem os únicos de
aprendizado. Para, além disso, pode-se entender que prisões, quartéis,
manicômios e ordens religiosas também foram locais selecionados para
educação da população. A significativa ampliação de fontes e campos do saber
na história da educação brasileira, observada em dissertações e teses de
doutoramento, produzidas nos diferentes programas de pós-graduação em
educação, em diferentes instâncias e processos de difusão do saber, também
tem contribuído muito às “novas abordagens e problemas, provocando um
deslocamento no campo e fazendo aparecer novos perigos”.1
Pensar a educação supõe inscrever em nosso horizonte os
interesses que esse tipo de prática aciona e mobiliza. Nesse
movimento, é possível observar que a vontade de educar, de
interferir no curso da vida de modo mais ou menos
“racional”, mais ou menos “científico”, está presente em
lugares variados. Dessa forma, consideramos a existência de
forças distintas que, agindo de modo solidário ou
concorrente, delineiam aquilo que encontramos em termos
de iniciativa e conteúdo educativo. 2
Os recentes estudos sobre o período, no campo educacional,
demonstram intensidade nos debates sobre a escolarização de uma camada
populacional como, por exemplo, negros, índios e mulheres. Os estudos têm se
distanciado daqueles que consideram o período como “idade das trevas”3 da
GONDRA, José Gonçalves. Paul-Michel Foucault: uma caixa de ferramentas para a História da
Educação. In. FILHO, Luciano Mendes de Faria (org.) Pensadores sociais e história da
educação. São Paulo, 2004, p. 285-311.
GONDRA, José Gonçalves; Shueler, Alessandra. op. cit., p.41.
FILHO, Luciano Mendes de Faria Filho. op. cit., loc.cit.
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educação brasileira. Os modelos de educação escolar para o país estavam
diretamente ligados aos ideários civilizatórios iluministas segundo os quais, para
que houvesse progresso, era preciso ordenar, adestrar a população dita
perigosa. Inventar o Brasil, a partir de ideário iluminista foi um processo que
perdurou até o final do regime imperial e trouxe significativas modificações nos
diferentes mecanismos educacionais, particularmente nos debates pedagógicos,
pois a “instrução possibilitaria arregimentar o povo para um projeto de país
independente”1 Assim, o país assistiu à formação de escolas de primeiras letras,
ainda nas primeiras décadas do século, até aos sistemas de ensino primário, no
final da centúria.
Refletir sobre educação oitocentista, portanto, é perceber “múltiplas
possibilidades da educação como agente normalizador, dentro de um sistema
biopolítico de manutenção da ordem e dos bons costumes”,2 como apregoado
pelos homens da boa sociedade. A pedagogia, portanto, vista como
participante desse jogo de saber-poder, bem como utilizada como agente
normalizador dos corpos desses “deseducados” nos espaços intramuros da
prisão.3 Quando Foucault problematiza a respeito de “lugares de sequestro”,4 se
referindo as prisões, escolas, manicômios e hospitais, está tentando demonstrar
como esses locais colaboram para educar, adestrar, os corpos desses sujeitos,
via vigilância e punição. A vigilância hierárquica e a sanção normalizadora,
combinadas com um procedimento de exame, formam instrumentos aos quais
se de deve o sucesso do poder disciplinar. O exame exerce “[...] uma vigilância
que permite qualificar, classificar e punir [...]”5 estabelecendo, nesse sentido,
Ibid., p. 140.
BITTENCOURT, Letticia Portes. Foucault e a educação: libertação ou controle? In. Revista
Sul-americana de Filosofia e Educação – RESAFE. Nº 6/7: maio/2006 – abril/2007, p. 25-35.
Ibid., loc. cit.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Ed. Vozes, 16ª Ed.,
p.154 -passim.
Ibid., loc. cit.
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uma visibilidade constante sobre os indivíduos fazendo com que sejam
diferenciados e sancionados.
O fim do século XIX caracteriza-se, guardando suas especificidades,
por um período de turbulências econômicas, políticas e sociais, em virtude da
desmontagem do sistema escravocrata no país. A Lei do Ventre Livre, a
crescente chegada de trabalhadores estrangeiros, a constituição do partido
abolicionista, ascensão e declínio da produção do café no Vale do Paraíba, o
fim da guerra do Paraguai, as pressões de diferentes setores, a resistência negra,
alteraram significantemente o comportamento do Estado imperial que se viu
diante da inadiável decisão de por fim ao sistema. A partir de 1870 houve um
significativo crescimento do espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro.
Inúmeras transformações já eram tangíveis na sociedade brasileira, relacionadas,
particularmente, à expansão do capitalismo e ao processo de urbanização. A
cidade do Rio de Janeiro, como sede do governo central e onde esteve
localizada a Casa de Detenção da Corte, não poderia deixar de ser o espaço
geopolítico a ser estudado neste trabalho.
A partir de 1870, houve um significativo crescimento do espaço urbano
da cidade do Rio de Janeiro. Inúmeras transformações já eram tangíveis na
sociedade brasileira, relacionadas, particularmente, à expansão do capitalismo e
ao processo de urbanização. A cidade do Rio de Janeiro não era mais a dos
tempos joaninos. A extinção do tráfico negreiro, liderado pela Inglaterra a partir
do segundo quartel dos oitocentos, liberou grande soma de capitais que
afluíram para outras atividades econômicas. Como empório comercial e Sede
do Governo Central, foi a cidade que mais se beneficiou com os estrangeiros.
No final do século XIX a modernidade na cidade era percebida pelos
calçamentos de muitas ruas; a implantação de redes de esgotos; a criação de
serviços de limpeza pública e de transportes urbanos; iluminação a gás; além de
empresas industriais, bancos, caixas econômicas, companhias de navegação a
vapor, companhias de seguros e estradas de ferro. Soma-se a isso o surgimento
de novas freguesias, em função do fluxo de pessoas que a cada dia enchia a
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cidade. Nesse final de século os espaços da urbe carioca haviam se
transformado; permitindo ou produzindo relações ambíguas onde homens
livres, escravos fugidos e ao ganho, alforriados misturavam-se a comerciantes,
intelectuais e políticos. Um local para “encontro de desconhecidos”.1
Embora, segundo Neder,2 no século XIX ainda não existissem formas
de produção capitalista, mas sim uma inserção do Brasil em um quadro de
economia mundial, muito particularmente após a abolição do tráfico
transatlântico, a importação dos ideais liberais de progresso, igualdade, ética,
trabalho, estiveram presentes no quadro social, político, cultural e econômico
do país. No entanto, esse processo de troca de ideais baseou-se em ajustes e
reajustes à realidade brasileira. Portanto, não acreditando em pura e simples
cópia do que acontecia na Europa. O processo jurídico, além de encaminhar o
processo de construção de nação, promove uma ideologização que acompanha
a constituição do mercado de trabalho no Brasil. Através do processo de
criminalização esses discursos jurídicos encaminham a disseminação da
ideologia burguesa de trabalho, elemento constitutivo de um sujeito útil,
civilizado e cidadão. Ao mesmo tempo as instituições de controle social visam
lembrar o sujeito sobre as consequencias de seus atos, bem como dissuadir os
desocupados a cometerem delitos ou crimes face às necessidades, se mostram
propensos a cometerem delitos.3 Na ordem liberal os atos transforman-se em
autos. O crime vai sendo percebido como dando social e o criminoso como
aquele que rompeu com o pacto social. Souza, problematiza essa questão ao
levantar a hipótese sobre uma “ideologia da vadiagem”,4 onde os pobres, que no
século XII eram de Cristo, no XVIII passaram a ser classificados como vadios.5
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Rio de Janeiro: Ed. Globo, 2001, p. 22.
NEDER, Gizlene. Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil. Ed. Sérgio Antônio, 1995,
p.18-20.
NEDER, Gizlene. Op.cit. loc. cit.
SOUZA, Laura de Mello e. Os Desclassificados do Ouro: A pobreza mineira no século XVIII.
Rio de Janeiro : Ed. Graal, 4ª ed., 2004, p.46.
Ibid. p.47.
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A noção de vadio e vagabundo, no Código Criminal,
assinalava uma aproximação com ideal histórico-ideológico
burguês quanto ao que seria trabalho. Assim, para ociosos,
previa-se prisão com trabalho na penitenciária.1
Tendo vigorado entre 1831 e outubro de 1890, o Código Criminal do
Império,2 imbuído pelo ideal de modernização do sistema jurídico-penal, veio
em substituição às leis contidas no livro V das Ordenações Filipinas que,
embora muito alteradas, ainda mantiveram algumas disposições em vigência no
Brasil até o ano de 1916, quando da promulgação do Código Civil brasileiro.
Juridicamente, o Código é uma observância da Constituição Imperial de 1824
que previa a constituição de um “Código Criminal, fundado nas sólidas bases
da justiça e da equidade”.3 No campo das ideologias, o Código foi baseado nas
ideias liberais, iluministas, onde a escola classista de Beccaria teve grande
participação e influência sobre nossos legisladores imperiais.
Na língua portuguesa, a palavra “vadiagem”, além de expressar a
condição de indivíduos vagabundos, errantes e sem moradia certa, queria
exprimir também a recusa em se conduzir de acordo com as normas do
trabalho. As ordenações Filipinas definiam o vadio como indivíduo sem
ocupação, sem senhor e sem moradia certa, pessoas ociosas e refratárias ao
trabalho.4 O dicionário de Antonio Morais, publicado em 1813, definia vadio
como alguém que vivia sem amo ou sem senhor, sem “[...] tracto honesto”,
negócio, ofício, emprego, nem modo de vida nem domicílio certo [...]”.5 O
código Criminal do Império, porém, foi mais incisivo ao criminalizar os
ociosos:
NEDER, Gizlene, op. cit., p.45.
Coleção das Leis do Império do Brasil. Typografia Nacional, 1831. Código Criminal do
Império do Brasil de 1830, p.143.
Constituição Política do Império do Brasil de 25 de março de 1824. Artigo 179, inciso XVIII.
FILHO, Walter Fraga. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do séc. XIX. São Paulo,
Hucitec/Salvador: Ed. UFBA, 1996, p. 12-20.
Idem.
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Não tomar qualquer pessoa uma ocupação honesta, útil
de que possa substituir depois advertido pelo juiz de paz,
não tendo renda suficiente, pena de prisão com trabalho
de oito a vinte e quatro dias, simplesmente por ser vadio,
e de prisão simples ou com trabalho segundo o estado de
forças do mendigo, de oito dias a um mês, por estar
simplesmente andar mendigando. 1
O Código não especifica claramente se o criminoso é um vadio,
apenas trás formulações subjetivas sobre quem deveria ser o criminoso. O
crime é definido como “toda acção, ou ommissão voluntária contrária ás leis
penaes” 2 e os criminosos são os “os autores, os que commeterem,
constrangerem ou mandarem, alguém commeter crimes”.3 Os decretos que
compõem à categoria de crime policial, por exemplo, são destinados a
“manter a civilidade e os bons costumes” 4 e isso incluía perseguição a
“vadios, desordeiros, capoeiras, prostitutas e sociedade secreta”. 5 No Título
I, cap. I, referente a crimes e dos criminosos, o Código informa que “não
haverá crime, ou delicto sem uma lei anterior que o qualifique”.6 No entanto,
era de se esperar que nessa sociedade estamental oitocentista, que se formava à
luz dos pensamentos liberais jurídicos, que “[...] o homem pobre, sem quase
nenhuma chance de ascensão profissional, acabaria mais cedo ou mais tarde
atrás das grades das prisões da cidade”. 7 Essa associação entre crime e
vadiagem persistiria no Brasil República. O código Penal de 1890 também
tipifica a vadiagem como crime quando previa pena de reclusão para
Código Criminal do Império do Brasil. op. cit., p. 129.
Ibid., loc. cit.
Ibid., p.131.
Ibid., p.132.
Ibid., p. 133.
Ibid, p. 134.
CARVALHO, José Murilo. Teatro de Sombras: A política imperial brasileira. Rio de Janeiro:
Ed. UFRJ. p. 231.
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aqueles que deixassem de “exercer profissão, ofício [...] prover subsistência
por meio de ocupação proibida por lei [...]”. 1
Em uma suposta intercessão entre delito, ociosidade e vadiagem, a
preta e lavadeira Julieta Maria da Conceição, 18 anos, moradora da Rua do
Resende, filha de Manoel e Maria Isidora, presa no dia 03 de abril de 1888, 2
por desordem e vagabundagem, era, portanto, uma suposta descumpridora
do pacto social. Pela ocupação, cor da pele, por exemplo, e motivo da
prisão, pode-se deduzir que Juliana não pertencia ao mundo da ordem,
governo ou trabalho, mas sim ao mundo da rua. Mas, trajando sua saia de
chita e paletot branco, com seu “nariz reggular, bocca reggular, olhos
escuros, lábios reggular, semblante reggular, cabelos carapinha e rosto
redondo”3, Julieta foi solta somente dez dias após ter dado entrada na
instituição. A preta Dionísia Maria da Silva Lopes, escrava, presa em nove
de novembro de 1889, vestia um vestido verde, e, assim como Juliana, foi
presa por vadiagem. Tinha nariz “reggular, bocca reggular, olhos escuros,
lábios grossos, semblante reggular, cabelos carapinha e rosto redondo”. 4
Como foi presa descalça, o escrivão, que por algum motivo não especificou
o motivo de sua prisão, deduzimos que Dionísia poderia ser uma escrava
fugida que, nos dizeres de Chalhoub, contribuía para tornar a cidade, além
de perigosa, um “esconderijo”. 5 Dionísia ficou vinte dias presa e ambas não
foram beneficiadas com o pedido do Ministro da Justiça que, em 1888,
MENEZES, Lená Medeiros de. Os indesejáveis: Desclassificados da modernidade. Protesto,
crime e expulsão na capital federal (1890-1930). Rio de Janeiro : EdUERJ, 1996,p.132.
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). Livro de Matrícula de Presos da Casa
de Detenção da Corte. Notação número 61, p. 210.
Ibid., p. 211.
Ibid., p.212.
CHAULOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. O cotidiano dos trabalhadores da Belle
Époque. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1986, p.35.
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pediu “alguma providencia para os presos encarcerados por mais de oito
dias”.1
A preta Dionísia Maria da Silva Lopes, escrava, presa em nove de
novembro de 1889, trajada com um vestido verde, assim como Juliana foi
presa por vadiagem. Tinha nariz “reggular, bocca reggular, olhos escuros,
lábios grossos, semblante reggular, cabelos carapinha e rosto redondo”. 2
Como foi presa descalça, o escrivão, que por alguma razão não especificou
o motivo de sua prisão, deduzimos que Dionísia pode-se levantar a hipótese
de que era uma escrava fugida, que nos dizeres de Chalhoub ,contribuía para
tornar a cidade, além de perigosa, um “esconderijo”. Dionísia ficou vinte
dias presa e ambas não foram beneficiadas com o pedido do Ministro da
Justiça que, em 1888, pediu alguma providencia para os presos encarcerados
por mais de oito dias.
Todos os habitantes desta cidade serão alistados nas
freguesias de suas residências. Todos os chefes de família
deveriam listar seus habitantes com nome, ocupação,
nome da rua, número, parentes, agregados, escravos,
idades, empregos, e estados de origem. Eles, os chefes,
assignam e são responsáveis pelos dados. O chefe de
quarteirão com uma cópia e outro para o juiz. E uma
outra na Câmara.3
O Código de Posturas da cidade continha ordenações quanto à
saúde pública, polícia, calçamentos, tráfego da cidade, pinturas
emplacamento das casas, tamanho dos muros das residências, prédios
comerciais e públicos, entre muitas outras. Embora constituído em 1838,
pouco mudou em suas ordenações até o final do império, principalmente às
Arquivo Nacional. Relatório do ministro da justiça, 1888, p.5.
Livro de Matrícula de Presos da Casa de Detenção da Corte. op. cit., Notação número 59, p. 21.
Código de Posturas Municipais da cidade do Rio de Janeiro, op. cit., Titulo VII. Artigo 10º,
§9º.
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destinadas à ordem pública. As novas determinações para o funcionamento
de fábricas de velas e o emplacamento de carroças de limpeza e de café;
novas medidas a remoção do lixo; novas determinações para as albergarias,
entre alguns outros, são exemplos de algumas mudanças ocorridas no
Código entre 1880 e 1889.
Assim como no Código Criminal, encontram-se referências e
aproximações entre uma figura dita vadia e a dinâmica do trabalho.
Diferentemente da Europa, onde os meios de produção capitalista esboçavam o
desejo por um tipo de trabalhador livre, no Brasil imperial o vadio poderia ser
considerado todo aquele que não se inserisse nos padrões de trabalho ditados
pela obtenção do lucro imediato. Nossos legisladores ordenavam que
inspetores de quarteirões registrassem, nos respectivos mapas de moradores,
qualquer desconfiança [...] que haja sobre a conduta de ociosos, os vadios, os
bêbados, mendigos, os sem profissão, turbulentos [...] e achando desconfiança
proceda sobre elles como perturbadores públicos”.1 No final do império, já era
possível verificar que os moradores da cidade eram obrigados informar ao juiz
de paz “casos de suspeitos, dos vícios anteriores”. Além de informar qualquer
manifestação de desordem, seja em sua casa, seja na do vizinho.
O espectro da periculosidade rondava tabernas, bares, e todo e
qualquer espaço da cidade. Atitudes, antes consideradas corriqueiras,
passam a ser marginalizadas. Na cidade perigosa muitos foram presos por
“perturbarem o sossego público nas horas de silêncio, com gestos, palavrões,
vozerias, assobios, serão multadas em 10$000 [...]”.2 No livro de Matrícula de
Presos, aparecem algumas prisões como por desordem pública, proferir
obscenidades, embriagues, vagabundo e vozeria na rua, embriaguez e desordem
pública, cúmplice e desordem, espiando as casas alheias, entre outros.
Código de Posturas Municipais da cidade do Rio de Janeiro, op. cit., Titulo VII. Artigos 6 e 7.
§8º
Ibid., Titulo VII. Artigos 3 e 4. §9º.
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Não serão permitidas as construções de habitações
vulgarmente conhecidas cortiços, entre as praças D.
Pedro II e Onze de Junho, e todo o espaço da cidade
entre as ruas do Riachuelo e do Livramento. Serão
multados em 30$000 e obrigados á demolição. 1
Numa dialética perversa entre crime e vadiagem, a parte da sociedade
desprovida de direitos civis, sem muitas oportunidades de trabalho, sem
mobilidade social, era naturalmente enquadrada nos códigos de crime contra a
conduta aceitável por parte das elites dominantes, resultando em relações de
poder onde as “forças antagônicas estavam sempre em evidência”. 2 Isso fica
mais claro nos conflitos que se sucediam e como essa parcela da população
reagia às imposições das leis, pois prisão por desordem, embriagues, desacato a
autoridade, vadiagem, conflitos com armas, eram freqüentes. Uma ideologia
onde os maus tratos infligidos aos suspeitos, detenção por alguns dias,
continuaram como práticas abusivas de uma polícia despótica e violenta.
Educar a população pareceu ser um dos principais ingredientes para o
envio de tanta gente à prisão da corte. Nessa direção, a instituição deveria ser
um prolongamento dos acontecimentos sociais, políticos e econômicos do
espaço da cidade. Deveria se a escola para educar, produzir comportamentos
desejáveis, ensinar o vadio a ser produtivo mediante as oportunidades de
trabalhos nas diversas oficinas da instituição. Deveria contribuir com o processo
de construção da nação. E não por acaso a instituição chega ao final do
império superlotada; correcionais e apenados, na mesma cela, participantes de
uma teia de poder onde as múltiplas relações ocasionassem, por exemplo, em
motins, assassinatos, promiscuidade, jogos de azar, suborno a policiais, brigas
Ibid., Portaria do Ministério do Império, em sessão realizada em 05/11/1873, proibindo a
construção de habitações chamadas de cortiços. Artigo I, p. 223.
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: A formação do estado imperial. São Paulo,
ed. Hucitec, 1987. p. 30.
1
2
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entre outros. A instituição como uma escola de todas as perdições para os
desviantes do pacto social e que, portanto, deveriam ter seus comportamentos
adestrados nos diferentes espaços da instituição.
Por fim, os livros de registros denunciam um encontro entre duas
sociedades: uma branca, onde a vigilância e punição eram os principais
mecanismos pedagógicos, e outra subterrânea, vadia, cujas estratégias próprias
de sobrevivência iam de encontro com os ideais liberais de liberdade,
prosperidade e fraternidade. A “cidade negra desafiando a cidade branca”.1
Nesse confronto, “a cidade negra” superlota as dependências da Casa de
Detenção da Corte. Milhares de pessoas, incluídas na categoria de vadio
acabavam por contribuir ao velho problema de superlotação da Casa de
Detenção da Corte. Em relatório expedido no ano de 1885, o Ministro da
Justiça constata que “[...] 600 internos chegavam a ficar espremidos numa área
construída para 200 pessoas [...]” tornando urgente a construção de um prédio
separado e que “[...] fosse compatível com nosso estado de civilização [...]”.2
Três anos mais tarde, o mesmo ministro sugeriu “que as pessoas em detenção
simples, sempre em grande número, deveriam ser ou formalmente acusadas de
crime ou libertadas”.3 Como a instituição foi criada em 1856, levou mais de
trinta anos para que alguma providência fosse tomada a fim de eliminar o
problema da superlotação.
Por fim, na canção intitulada “Pai João” o personagem principal, que se
identifica como africano, não demonstra ter um espírito “resignado” ou
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores da Belle
Époque. São Paulo : Brasiliense, 1986, p.19.
Ibid., p. 21.
HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: Repressão e resistência numa cidade do
século XIX. Rio de Janeiro. Ed. FGV, 1997, p 144.
Ibid., loc. cit.
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“acabrunhado pela escravidão.”1 Pelo contrário, parece demonstrar
possibilidades de os escravos não terem sido “vítimas nem heróis o tempo
todo.”2 Antes, participantes dessa teia de poder.
Baranco – dize quando môre
Jezuchrisso que levou,
E o pretinho quando môre
Foi cachaça que matou...
Baranco dize – preto fruta,
Preto fruta co rezão;
Sinhô baranco também fruta
Quando panha casião.
Nosso preto fruta garinha
Fruta sacco de fuijão;
Sinhô baranco quando fruta
Fruta prata e patacão.
Nosso preto quando fruta
Vai pará na correção,
Sinhô baranco quando fruta,
Logo sai sinhô barão.
MENDES, Canções populares do Brasil apud ABREU, Márcia. Conflitos raciais, protesto
escravo e irreverência sexual na poesia popular, 1850-1990. In. Revista Afro-Ásia, nº31, 2004, p.
235-276.
Ibid. loc. cit.
1
2
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Constituição do Império do Brasil de 1824. Art. 179, inciso XVIII.
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro(AGCRJ):
Código de Posturas Municipais da cidade do Rio de Janeiro. Titulo VII.
Artigos 3 e 4. §9º;
Artigo 4. § 6,º 8º e 10º.
Portaria do Ministério do Império: sessão realizada em 05/11/1873. Artigo I.
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PERFIL DO PRESO DE DORES DO INDAIÁ-MG (1958 a 1974)
João de Sousa Matos Monteiro1 / Gilberto Cézar de Noronha2
Resumo
A presente pesquisa visou analisar o perfil do preso de Dores do Indaiá, detido
ou aguardando julgamento, no período de 1958 a 1974. Para tanto, tomou
como fonte principal o livro de registro de presos da cadeia de Dores do Indaiá
além de fontes complementares como jornais e entrevistas. Além de procurar
traçar o perfil do preso verificou-se a relação das prisões com a ditadura militar.
O resultado revela parte importante da história social da região oeste de Minas
em suas relações com os processos mais amplos da história brasileira.
Palavras chaves: Perfil de presos, Cadeia, Dores do Indaiá.
Abstract
This study aimed to analyze the profile of Dores do Indaiá arrested, detained or
awaiting trial in the period from 1958 to 1974. To this end, took as its main
source of the book record of prisoners in the chain of Dores do Indaiá, as well
as additional sources such as newspapers and interviews. In addition to seeking
to draw a profile of the arrested was found to link the arrests to the military
dictatorship. The result reveals important part of the social history of the region
west of Mines in its relations with the broader processes of Brazilian history.
Key words: Profile of prisoners, Chain, DoresdoIndaiá
1
2
Historiador. FASF-Luz. Graduando em Direito – UNIPAC – Bom Despacho
Doutor em História Social – UFU; Professor Adjunto F.H. – UFG
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INTRODUÇÃO
A história é uma arte, a história é literatura. (...) a história é
uma ciência, mas uma ciência que tem como uma de suas
características, o que pode significar sua fraqueza, mas
também sua virtude, ser poética, pois não pode ser reduzida
a abstrações, a leis, a estruturas.
(Marc Bloch,19441)
Marc Bloch escreveu que a história é uma “ciência do homem no
tempo”, que pode abordar todas as dimensões da vida do ser humano, porque
tem como objetivo de estudo e compreensão do homem em seu meio
ambiente e o domínio sobre ele (Marc Bloch, 2001, p.5.).
O estudo da história tem como um de seus propósitos fundamentais
procurar explicar as perguntas que ainda não foram respondidas. Desde a Nova
História2 proposta pela escola dos Annales, o historiador passou a considerar
um amplo campo de documentos históricos, deixando de lado a noção
tradicional de documento, que considerava apenas as fontes oficiais: passou a
tomar por fontes históricas todos os indícios da vida humana, produzidos ao
BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da História, ou o ofício do historiador. Tradução
de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
“De acordo com Peter Burke, a novellehistoire pode ser definida por uma via negativa, em
outras palavras, defini-la em termos do que ela não é, daquilo a que se opõe seus estudiosos. “Os
1
2
historiadores tradicionais pensam na história como essencialmente uma narrativa dos
acontecimentos, enquanto a nova história está mais preocupada com o análise das
estrutura”(Burke.1992, p12). Ou seja , a nova história não estuda épocas, mas estruturas
particulares. Aqui reside o conceito de “História de Longa Duração”. Segundo Braudel a história
situa-se em três escalões: a superfície, ou seja, uma história dos acontecimentos que se insere no
tempo curto (concepção positivista); a meia encosta, uma história estrutural de longa duração, que
põe em causa os séculos. Nesse sentido, a nouvelle histoire, isto é, a história sob a influência das
ciências sociais realizou uma revolução epistemológica quanto ao conceito de tempo histórico.
Não obstante,a pesquisa histórica dentro do quadro do tempo longo consiste em um esforço de
superação do evento e de seus corolários: a história continua, progressiva e irreversível da
realização de uma consciência humana capaz de uma reflexão total. (Burke,1992)
[75]
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longo do tempo, tais como os produtos de escavações arqueológicas, fotos,
documentos orais, dentre outros.
Para além dessa ampliação do campo documental com que trabalha o
historiador, hoje é de comum acordo a necessidade de ampliar os estudos
científicos direcionados para a vida do homem em suas diversas dimensões que
não a estritamente política ou econômica. “O historiador não pode ser
sedentário, um burocrata da história, deve ser um andarilho fiel a seu dever de
exploração e de aventura” (Le Goff, 2001, p 21), é nesta perspectiva que se
pretende discutir a importância do tema desta pesquisa: um estudo analítico
que tem como objetivo geral analisar dados sobre a criminalidade numa
pequena cidade de Minas Gerais, em meados do século XX (1958 a 1974),
registrados no livro da Delegacia Municipal de Dores do Indaiá, cidade
localizada no oeste de Minas Gerais, a 182 km da capital Belo Horizonte.
O interesse pelo tema surgiu a partir da descoberta de um livro de
registro de presos condenados e/ou aguardando julgamento que cumpriram
pena na cadeia de Dores do Indaiá entre 1958 a 1974. Este livro traz dados
importantes sobre a composição social dos presos e representa um recorte
importante para explorarmos ljos dados sobre a composição social da região. O
interesse pelo tema surgiu quando, ainda em 2005, participávamos de um
projeto de pesquisa na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Alto São
Francisco (FASF-LUZ)que propunha problematizar temas locais ainda pouco
explorados pela historiografia. Assim, surgiu a ideia de pesquisar sobre a cadeia
da cidade de Dores do Indaiá, especialmente, quando nos deparamos com o
livro de registro de presos. Desde então, o interesse em analisar os dados
contidos no livro tornou-se uma meta e decidimos recolher elementos teóricos
e metodológicos para compreendê-lo. O objetivo principal do documento era
registrar os presos que se encontravam condenados ou aguardando julgamento.
Em suas páginas são registradas características importantes de cada preso que
possibilitam traçar um perfil dessa população, tanto no que se refere às questões
qualitativas, quanto àsquantitativas. Assim, estão registradas a cor, escolaridade,
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idade e o crime cometido, além do estado civil, a origem do preso e data da
condenação do preso.
A partir dos dados registrados neste documento, pretendeu-se pensar
melhor a criminalidade de Dores do Indaiá naquele período específico de sua
história. Os objetivos gerais da pesquisa foram, portanto, analisar o perfil dos
presos de Dores do Indaiá no período de 1958 a 1974, verificando as
mudanças e permanências nesse perfil, procurando compreender questões
relacionadas às configurações sociais, econômicas e políticas brasileiras neste
recorte temporal, como por exemplo, observando as possíveis relações entre o
perfil dos presos e a política de Segurança Nacional, desenvolvida na Ditadura
Militar, no período de 1964 a 19741.
Os dados trazidos pelo documento são importantes não apenas para se
conhecer melhor o perfil da população carcerária de Dores do Indaiá num
período significativo da história de uma região de composição social pouco
conhecida na historiografia, mas também possibilita investigar as possíveis
movimentações de presos políticos de outras regiões para o interior do estado, à
época da ditadura militar. A observação da vinda de presos transferidos de
outras cidades para Dores do Indaiá chamou a atenção para uma possível
relação entre a repressão política e a mudança do perfil dos presos da cadeia de
Dores especialmente a partir de 1968, período em que a mudança no perfil dos
presos coincide com a criação do Ato Institucional número 5 (AI-5) que
“endureceu” o regime pela suspensão da “garantia de habeas corpus aos
acusados de crimes e das infrações contra a ordem econômica e social e
economia popular” (Fausto, 2006, p.480).
Para a apresentação dos resultados, o trabalho foi dividido em três
tópicos: No primeiro, serão apresentados os dados gerais encontrados no
documento: registros dos réus recolhidos na cadeia de Dores do Indaiá e a
descrição dos crimes mais cometidos de 1958 a 1974. O objetivo é traçar o
A Ditadura Militar durou de 1964 a 1985. No entanto, os dados sobre os presos correspondem
ao período de 1964 até 1974.
1
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perfil do preso em Dores do Indaiá. Em seguida, será realizada uma análise
diacrônica, investigando melhor as mudanças e permanências percebidas no
perfil dos presos. Para o período entre 1964 e 1974, numa análise sincrônica,
procuraremos apontar as possíveis relações da mudança desse perfil com a
repressão política na ditadura militar. Por último, pretende-se retomar
elementos para a reconstituição da historia do presídio, a Cadeia Regional de
Dores, local onde o documento foi produzido.
REGISTRO DOS RÉUS NA CADEIA DE DORES DO INDAIÁ DE
(1958/1974)
A criminalidade está entre os mais preocupantes problemas sociais que
vêm inspirando trabalhos em diversas áreas tanto no Brasil como em outras
partes do Mundo. Como observa Rafael Barbosa (2007):
O mercado editorial começa a enxergar nos relatos dos
presos um novo vilão, a indústria fonográfica investe no rap
produzido dentro das cadeias, filmes e documentários sobre
a realidade carcerária. (Barbosa, 2007, p.19)
No entanto nessas abordagens, como observa o autor, os presos são
rotulados de diversos adjetivos, e a própria instituição carcerária tem
contribuído para que isso ocorra, reproduzindo diversos preconceitos de
representação. Essa situação nos remete àquilo que Foucault (1997) observava
na década de 1970: A arte de punir deve, repousar sobre toda uma tecnologia
da representação. A imprensa só pode ser bem sucedida se estiver inscrita
numa mecânica natural. (Foucault, 1997, p.87).
Nesse sentido, essas ideias interferem na forma como enxergarmos os
presos, como temos entendido o papel social da prisão e como têm sido
desenvolvidas as políticas governamentais. Considerando essa perspectiva,
acreditam-se na pertinência de pensar melhor as ideias comuns sobre a
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população carcerária tomando como ponto de partida a situação específica na
cadeia de Dores do Indaiá, no período de 1958 a 1974.
A partir de um olhar sobre os crimes mais cometidos em Dores do
Indaiá, naquele período, pretende-se traçar um perfil desses presos através dos
registros, considerando sua origem, escolaridade, estado civil, dentre outros, no
período de 1958 a 1974.
A composição étnica dos presos pode ser vislumbrada na Tabela I.
Nela, foram considerados como critérios de classificação as divisões utilizadas
no próprio documento de registro para a classificação da cor. O documento
oferece as seguintes opções: morena, branca, preta, mestiça e parda. Um outro
campo, associado à composição de cor, foi o estado civil do preso.
No entanto, é necessário alertar que essa classificação tem o
inconveniente de se estruturar ainda de acordo com o conceito de raça, daquela
época, como qual hoje já não é mais possível concordar. Esse conceito,
presente desde pelo menos o século XV, motivou um forte intento em
descobrir a razão das diferenças entre europeus e não-europeus, já que a
princípio os não-europeus não eram nem considerados como seres humanos,
mas sim bestas e feras, o que justificava a exploração e a violência sobre esses
povos. Nessa perspectiva, a humanidade foi dividida basicamente em três
“raças”: branca, negra e amarela, sendo que a justificativa para esta divisão,
fundamento das teorias raciais do século XIX, pautava-se na biologia, a qual
denotava uma superioridade natural da “raça” branca com relação à negra e
amarela (Ribeiro, 2005).
Desde 1950, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)
utiliza a classificação branca, preta, parda e amarela para designação da cor.
Conforme os dados do IBGE,desde 1950, (apud Ribeiro, 2005), no Brasil,
negro é quem se auto-declara preto ou pardo, pois a população negra é o
somatório de pretos e pardos (Ribeiro, 2005). No entanto, não se pode ter
certeza se esses procedimentos de classificação do IBGE eram seguidos na
cadeia de Dores do Indaiá. Parece que a classificação na cadeia de Dores do
Indaiá era feita pelos próprios carcereiros.
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Atualmente, considera-se negra a pessoa de ancestralidade africana,
desde que assim se identifique. Na mestiçagem1, ser negro possui vários
significados, que resultam da escolha da identidade racial de quem tem a
ancestralidade africana como origem (afro-descendente). Ou seja, ser negro, é,
essencialmente, um posicionamento político, em que se assume a identidade
racial negra. Merece destaque o fato de que população negra, para a
demografia, é o somatório de preto + pardo (Oliveira, 2004). Cabe ressaltar,
como nos lembra a autora, que “preto é cor e negro é raça”.
Assim, as categorias branca e preta representam extremos das etnias
mais importantes, pois representam descendências europeias e africanas. A
parda abrange vários termos que definem a mistura racial entre negros e
brancos ou negros e índios, ou ainda índios e brancos.
Como alerta Oliveira (2004):
O conceito de raça é uma convenção arbitrária e pode ser
enquadrada como uma categoria descritiva da antropologia,
uma vez que é baseada nas características aparentes das
pessoas. Portanto, o uso dos termos raça ou etnia está
circunscrito à destinação política que se pretende dar a eles.
(Oliveira, 2004, p.3)
Portanto, considerando todas essas ressalvas, foi adotada a divisão de
cor apresentada pelo documento da cadeia Municipal de Dores do Indaiá, que
define os brancos como aqueles de descendência europeia e os negros e pretos
como afrodescendentes e os morenos como oriundos da mistura das etnias
portuguesa e africana (branca + preta). Desde modo, o carcereiro olhava a cor
A mestiçagem foi o principal tema abordado por Gilberto Freyre, em Casa-grande e Senzala. A
miscigenação é entendida pelo autor como fator benéfico para as raças, tomando o negro como
parte importante no processo de formação do povo brasileiro, que recebe das diferentes raças
contribuições da língua, religião, costumes e culinária. Segundo o autor, a miscigenação comprova
a democracia racial no Brasil. (Ribeiro, 2005)
1
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da pele do preso e definia se ele era moreno, dito mulato e/ou moreno claro.
O mestiço era a pessoa que não tinha a sua composição étnica bem definida de
acordo com as referências dos carcereiros.
Segundo Franchin1, que trabalhou nesse presídio na época da
produção do documento, não importava se o preso era moreno ou preto,
dependia muito da visão do carcereiro. Pretos ou pardos, portanto, denotavam
mais a forma como carcereiro considerava o preso do que a cor da sua pele.
Para o IBGE, as duas cores tem o mesmo significado. Essa classificação
sustentava-se por um critério subjetivo, advindo não do declarante como hoje,
mas do próprio funcionário que observava o fenótipo e tecia a classificação. É
possível, por exemplo, que a origem social, a situação econômica do preso,
dentre outros fatores, pudessem influenciar na classificação feita pelo escrivão.
TABELA 1: Presos da cadeia de Dores do Indaiá segundo a cor.
Como é possível observar na tabela 1, na década de 1950, a população
carcerária de Dores do Indaiá era composta por 66 presos, dos quais 29 eram
de cor morena, representando 43,94% do total, 22 eram de cor branca
(33,33%), sendo apenas 7 de cor preta, o que correspondia a 10,61%. Quatro
eram pardos, e os quatro restantes eram mestiços, representando apenas 6,06%
cada uma.
FranchinCalistro de Oliveira. Conversa informal. Dores do Indaiá, 05 de ago. 2008.
1
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Comparando-se essa composição à da década seguinte, no entanto,
observa-se um aumento de mais de 300% da população carcerária. Na década
de 1960, dos 245 presos que estavam na cadeia de Dores do Indaiá (um
aumento de 179 presos), 115 eram da cor morena (46,94%), 87 eram de cor
branca, correspondendo a 35,51%, 36 eram da cor preta, o que correspondia
(14,69%), 4 eram mestiços e 3 eram pardos representando respectivamente
1,63% e 1,22% desse montante.
Pelos dados registrados, é possível observar o aumento da quantidade
de presos, de 1958 a 1974, em termos absolutos. E dentre os criminosos, a
maioria era de cor morena. Na década de 1950 encontravam-se entre os presos
da cor morena 43,94%, já na década de 1960, passou a representar 46,94%, ou
seja, um aumento de 3%. O que se percebe com menor intensidade na década
seguinte: menos de 2%. Mas, se comparamos com a cor Branca, o aumento
também foi significativo nas duas primeiras décadas (1950 e 1960), de 2,18%.
Na década de 1970, houve uma queda pouco significativa do número de presos
(da ordem de 0,66%)mas o de cor morena não diminuíram. Assim, como os de
cor branca, os presos de cor pretaaumentaram 4,08% nas duas primeira
décadas e diminuíram na década seguinte (cerca de 1,05%).
Embora a população carcerária mestiça e parda fosse menos
expressiva, num total de 2,85%, ocorre uma situação interessante nas décadas
em que aparecem essas duas cores: permanece a mesma quantidade
populacional. Percebe que, na década de 1950, há uma porcentagem maior do
que na década de 1960. Quanto às tendências da criminalidade relacionada à
cor, segundo as fontes de informação mencionadas, são semelhantes, existindo
apenas uma diferença nos dados absolutos de uma década para a outra. Outro
aspecto que pode ser observado, é que não aparecem presos classificados com
a cor mestiça e parda na década de 70, isto porque dependia muito de como o
carcereiro olhava e classificava o preso. Para o IBGE, desde pelo menos 1950,
preto, pardo e mestiço tinham o mesmo significado.
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Pelo documento analisado, é possível também observar o nível de
escolaridade dos presos de Dores do Indaiá entre as décadas de 1950 a1970
(Ver tabela 2). Percebe-se que a maioria dos presos na década de 1950 sabia ler
e escrever: eram 33,33% de uma maioria de um total de 36 presos de todas as
etnias que sabiam ler e escrever. E, na sua maioria eram de cor branca, 14
presos (21,21%), e da cor morena 17 presos (25,76%). Daqueles classificados
como de cor preta apenas um sabia ler e escrever. Dentre os pardos e mestiços
apenas 4 presos sabiam ler e escrever. No entanto, se observarmos o número
daqueles que não sabiam ler nem escrever (15 pessoas) a maioria era de cor
morena ou preta (5 cada) e da cor branca era apenas 1. Pardos e mestiços
continuaram com a mesma quantidade dos que sabiam ler e escrever (4 presos)
e 6 presos (3 Branca e 3 Morena) sabiam apenas ler e escrever.
TABELA 2: Grau de instrução dos presos da cadeia de Dores do Indaiá
associado a cor.
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O aumento da criminalidade vista pelo aumento da população
carcerária não pode ser relacionado a nenhuma cor específica, quando se
analisa a criminalidade relacionada à cor e escolaridade. Observa-se que os
presos negros eram em sua grande maioria analfabetos. Isso não significa que os
negros analfabetos tivessem mais tendência ao crime, já que o percentual de
pretos não se modifica em relação ao das outras etnias. Mas significa apenas
que os negros, mesmo aqueles que cometeram crimes, estavam em
desvantagem em relação ao branco ou ao mestiço no acesso à educação escolar
na década de 1950.
Segundo Boris Fausto:
Após a Segunda Guerra Mundial, o ritmo de crescimento
da educação no Brasil ficou acima dos outros pais como
latino – americanos mais avançados, como o Chile, a
Argentina e o Uruguai. (Fausto, 2006, p. 543)
Na década de 1960, aumentou em apenas 5% o percentual dos presos
que sabiam ler e escrever, de um total de 146 (59,59%) presos. Destes, 58
(39,73%) eram brancos, os morenos eram 66 (45,21%), os pretos 17, e os
mestiços 2 e pardos 3. Os que não sabiam ler nem escrever somavam 67
pessoas divididas entre 15 brancos, 42 morenos e 1 mestiço. Os que assinavam
o nome eram oito presos; destes, 4 eram brancos, dois morenos e dois pretos.
Na década de 1970, mais uma vez, o maior índice dos que não sabiam
ler e escrever (analfabetos) era de cor morena (62,69%). Os presos que
possuíam o primário eram 11, destes, a maioria era de cor branca (7); os
morenos 3, e 1 preto. Havia um analfabeto que era moreno e um que só sabia
ler, mas não escrevia. Na década 70 ,4 presos sabiam ler e escrever, destes
apenas 2 eram brancos e 3 morenos, Dos que não sabiam ler e escrever havia
14 - 5 que eram Brancos ,8 Morenos e 1 Preto. O que assinavam o nome eram
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2 Morenos, 29 presos tinham o curso primário1 das quais 10 eram Brancos, 15
Morenos e 4 Pretos. Os que tinham o ginasial 2 eram Brancos, 2 tinham curso
Superior, 1 Branco e outro Moreno e 2 eram analfabetos.
Na análise das três décadas, dos 186 presos que sabiam ler e escrever, a
maioria era de cor morena (86 presos), depois vem aqueles de cor branca (73
presos), os pretos com 18, os mestiços com 4 e os pardos com 5. Os presos
desse período que não sabiam ler e escrever eram 96% dos quais 55 presos
eram morenos, 21 eram Brancos,15 Pretos, 3 Mestiços e 2 Pardos. Os que
escreviam e liam mal eram 39 presos dos quais 21 eram cor morena, 21 de cor
branca, 7 de cor preta.
Percebe-se que durante as três décadas, o aumento significativo da
criminalidade só ocorreu entre aqueles de cor branca e morena, em todos os
níveis da educação. Entre as outras etnias só existem dados para as primeiras
décadas e, nas décadas de 60 e 70, o índice de presos que tinham algum grau
de instrução era bem significativo entre aqueles de cor branca e morena e
apareceram pessoas que tinham primário e ginasial, dois presos tinham Curso
Superior.
Não é difícil imaginar a razão pela qual houve o aumento na
escolarização dos presos: o nível de escolarização havia melhorado para toda a
população como parte de um movimento educacional mais amplo. Neste
sentido, Noronha observa que, dentro de uma formação de Estado Nacional a
escola cumpria uma missão de civilização de um povo tão heterogêneo, a
pedagogia se concentra nesse esforço de transformar o súdito em cidadão e
trabalhador. A educação assumia o papel de formar um novo cidadão para uma
sociedade urbana – industrial que aos poucos estava se consolidando.
(Noronha, 2004, p.73).
E a mesma Noronha diz:
1
É a designação dada ao nível de ensino correspondente aos primeiros anos de educação formal.
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Ao perceber que a atitude reformista, civilizadora e
moralizadora na nação, ao eleger a educação como um
tema de “salvação nacional” fazia convergir interesses
antagônicos mas nem sempre contraditórios:o de setores
das elites modernizastes que viam na educação das massas
um veículo político de mudança do eixo hegemônico, de
agrário – exportador para urbano- industrial. (Noronha,
2004, p.102)
No entanto, a maioria dos presos era da cor morena, categoria que
concentra mais daqueles que sabiam ler e escrever além dos analfabetos. O
aumento da escolarização dos presos nos remete às transformações sociais
ocorridas na sociedade brasileira neste período, embora não possamos fazer
uma relação direta entre as transformações na educação e a população da
cadeira. Mas, o Brasil vivia tempos de transformação na educação, seja pelo
movimento de educação popular nos anos 1960 e a alfabetização de adultos
pelo método Paulo Freire, pela elaboração das diversas cartilhas, do aumento
na oferta de vagas, da contratação de professores, enfim, vivia-se um amplo
processo de democratização educacional. Essa mobilização educacional deve
ser pensada num conjunto maior de mudanças que afetaram também o campo
político, como a possibilidade de eleger um representante.
Uma outra variável que o documento também possibilita analisar é o
estado civil dos presos que se encontravam em Dores do Indaiá, entre as
décadas 1950 a1970, associado com a sua cor (tabela 3).
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TABELA 3: Estado civil do preso de Dores do Indaiá associado com a cor
Observando-se o estado civil dos presos, percebe-se, que na década de
50, de um total de 34 (51,51%) eram casados e pertenciam a todas as etnias.
Que a maioria dos casados era da cor morena e branca (15 presos),
correspondendo a 45,45% dos presos. Os da cor parda era 3 correspondendo
4,55% e dos mestiço apenas um era casado correspondendo 3,33%. Ospresos
solteiros de cor branca e morena eram em menor número do que os casados,
num total de 19, 13%, em que corresponde 6 da cor branca e 7 da cor preta, 1
da cor parda e 3 mestiços, que não tinham ocorreu com os casados. Havia
também um desquitado da cor morena e um eclesiástico (padre) de cor branca.
Este padre foi preso em fevereiro de 1959 em Estrela do Indaiá e autuado em
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flagrante por lesões corporais. Foi solto cinco meses depois (Minas Gerais,
preso 27).
Na década de 1960, os presos solteiros eram em número superior aos
casados. De um total de 138 solteiros (56,33% do total), 69 (49,28%) eram
brancos, 44 (31,88%) morenos, e 23 (16,67%) eram da cor preta. Os casados
eram 100 (40,82% do total). Destes, os da cor morena eram 45(45,%), os da cor
branca 38 (38%), os pretos 12 (12%) Já os pardos e mestiços correspondiam a
5% do total restante. Os viúvos apareceram nas etnia branca e morena um na
cor branca e mais um na cor morena, e um outro de cor morena, que no
documento não registrou o seu estado civil. Na década de 1970, os presos que
se encontravam solteiros eram 42 (63,64% do total de presos). Destes, 24 eram
da cor morena, 13 da cor branca e 5 da cor preta. Os casados eram 18 (27,27%
do total). Destes, 9 eram da cor morena,7 branca e 2 preta. Dois eram viúvos
de cor branca e 3 pretos. Havia um dos presos que não teve definido o seu
estado civil.
Analisando as três décadas, vimos que a maioria dos presos eram
solteiros: 210 (correspondendo a 55,85% do total de presos). Destes, 106 eram
da cor morena, 63 de cor branca, 35 pretos e a parda e a mestiça
correspondem a 6. Os presos casados nas três décadas correspondem a total
de 152 (40,43%), que correspondia 69 da cor morena e 60 brancos. Vemos
que a diferença de um para o outro é mínima,os da cor preta só vai aparecer
nas duas ultimas décadas com 14. Percebe-se que tem um desquitado da
década de 1950 e 10 viúvos nas décadas de 60 e 70, 2 da cor morena, 6 da cor
branca e 2 da cor preta.
Observando as três tabelas, vimos que as cores que mais predominam
são a branca e morena, seguida pela preta, a parda e a mestiça. Portanto, cada
uma das tabelas apresentadas determina dados variáveis de fatores como: cor
predominante, o grau de instrução escolar e o estado civil dos presos, do quais,
no entanto percebe-se que a cor morena também pode ser composta pelos
pardos, mestiços e pelos pretos, sobressai perante a cor branca em todas as das
três décadas.
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OS PRESOS DA CADEIA DE DORES DO INDAIÁ DA ÉPOCA DA
DITADURA MILITAR
Depois de analisar o perfil dos presos, tomando como referência os
dados reunidos por três décadas, será realizada uma análise diacrônica,
investigando melhor as mudanças e permanências percebidas no perfil dos
presos, no período de 1964 a 1974. E num movimento concomitante, numa
análise sincrônica, procurar-se-á apontar as possíveis relações da mudança desse
perfil de presos antes da ditadura e após a repressão política na ditadura
militar1.
Para avaliar as mudanças ocorridas na cadeia de Dores do Indaiá
durante a Ditadura Militar, é necessário analisar, primeiramente, qual era o
O Ato Institucional nº 1 mantém a Constituição de 1946, as Constituições Estaduais e suas
respectivas Emendas, modificando as regras para “a eleição do Presidente e do Vice-Presidente
1
da República, cujos mandatos terminarão em trinta e um de janeiro de 1966, será realizada pela
maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, dentro de dois (2) dias a contar deste
Ato, em sessão pública a votação nominal” (Brasil, AI-1, 09/04/1964). A partir desta data, os
inquéritos e processos visando à apuração da responsabilidade pela prática de crime contra o
Estado ou seu patrimônio e a ordem política e social ou de Atos de guerra revolucionária
poderiam ser instalados individual ou coletivamente. Ato Institucional nº 2: suspendia as garantias
constitucionais ou legais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de
exercício em funções por tempo certo, Ato institucional nº 3: “A eleição de Governador e ViceGovernador dos Estados far-se-á pela maioria absoluta dos membros da Assembléia Legislativa,
em sessão pública e votação nominal” respeitada os mandatos em vigor, serão nomeados pelos
Governadores de Estado, os Prefeitos dos Municípios das Capitais mediante prévio assentimento
da Assembléia Legislativa ao nome proposto, mais os Prefeitos dos demais Municípios do inteiro
serão eleitos por voto direto e maioria simples, admitindo-se sublegendas, nos termos
estabelecidos pelos estatutos partidários. Ato Institucional nº 4: convocado o Congresso Nacional
para se reunir extraordinariamente, de 12 de dezembro de 1966 a 24 de janeiro de 1967, o objeto
da convocação extraordinária é a discussão, votação e promulgação do projeto para a nova
Constituição apresentado pelo Presidente da República.. Ato institucional nº 5: é mantidas a
Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições estaduais, com as modificações
constantes deste Ato Institucional; no interesse de preservar a Revolução, o Presidente da
República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na
Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos
e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.(Acervo, 2008)
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perfil do presidiário da cadeia antes do período da ditadura, para observar se
houve alguma mudança no perfil dos presos que nela se encontravam.
Entre 1954 e 1973, o documento registra a entrada de 367 presos
dentre réus recolhidos na cadeia de Dores do Indaiá para cumprir pena ou
acusados aguardando julgamento. Para efeito de análise, reorganizamos os
dados em dois períodos: a) o período de 1954 a 30 de março de 1964 e b) o
período de 1964 (após o dia 9 de abril1) a 1973. Para qualificar esse universo
foram utilizadas tabelas para que fosse possível identificar alguma mudança no
perfil: no grau de instrução, cor, crimes mais cometidos além de se atentar para
a movimentação dos presos da cadeia. O resultado encontrado é apresentado
na tabela 4:
TABELA 4: Movimentação de presos em Dores do Indaiá
Atentando-se sobretudo para o número de presos transferidos nos
dois períodos, observa-se que no primeiro momento, o percentual de presos
transferidos correspondia a 40% e no segundo momento, já em plena
ditadura Militar, esse número sobre para 53,60 %. Apesar do aumento do
número de transferências não ter sido muito significativo, é válido questionar
se haveria alguma relação entre o aumento do número de transferências e o
fechamento do regime, ou mesmo se haveria algum preso político sendo
recebido na cadeia de Dores do Indaiá. Nesse sentido, foi importante saber
a origem do preso que chegava à Cadeia Regional de Dores do Indaiá.
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Rio de Janeiro- GB, 9 de abril de 1964, quando teve inicio ao golpe militar
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Observa-se que a maioria dos presos no segundo período, vieram do
presídio de Vigilância Geral de Belo Horizonte1 e de delegacias da região2. A
transferência desses presos para Dores do Indaiá vindos da capital mineira
poderia ter relação com Ato Institucional nº 5.
Procurou-se vestígios de presos político na cadeia de Dores do
Indaiá, mas não foi encontrado, isso porque a categoria “presos políticos”
não era registrada. Segundo Domingos Ferolla, em uma entrevista para o
Jornal o Liberal (O Liberal,1980) que circulava na região, tiveram dois
presos políticos: o senhor Rubens Fiúza3 que era tido como socialista e foi
levado para Bom Despacho, depois para o DOPS de Belo Horizonte e o
senhor Hugo de Souza de Araújo, todos os dois considerados subversivos.
Analisando o aumento dos presos de Dores do Indaiá de um
período a outro, pode-se retomar o nível de escolaridade para tentar
surpreender mudanças nas configurações sociais por meio desse novo
agrupamento dos dados. (tabela 5),
Esta delegacia se encontra ativa até os dia de hoje. À época da ditadura ela era responsável por
receber todas as pessoas que eram presas na capital. Ela se encontra na Av. Antônio Carlos, 901,
São Cristovão, Belo Horizonte MG.
Delegacias: Luz (MG), Bom Despacho (MG), Abaeté (MG), Pompéu (MG), Belo Horizonte
(MG), Uberaba (MG), São João Del Rei (MG), São Paulo (SP),Carmo da Mata (MG), Recife
(PE)
Rubens Fiúza foi professore escrito e Hugo de Souza de Araújo foi Prefeito, Farmacêutico.
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2
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TABELA 5: Grau de instrução dos presos
O que teria contribuído para a melhoria gradual dos indicadores de
instrução dos presos na transição do período de 1964 a 1973? Esse fenômeno
talvez seja decorrente da alta transferência de presos de outras localidades com
mais oportunidades de freqüentar a escola. O que se observa é que os presos
desse período tinham melhor grau de instrução independente da cor da pele.
Com a constatação um aumento da presença de alfabetizados, deve-se perguntar
sobre os resultados da política educacional do regime militar que tinha como
meta erradicar o analfabetismo. Neste sentido, foi criado o Movimento
Brasileiro de Alfabetização – MOBRAL (1967) para ensinar os jovens e adultos
a lerem e escreverem. Nota-se um aumento na quantidade de presos que
sabiam ler e escrever e alguns que possuíam o primário e o ginasial.
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Outro aspecto importante para analisarmos a relação entre a
mudança do perfil dos presos e a ditadura militar é a natureza dos crimes
cometidos, como se observa as tabelas dos dois períodos abaixo:
TABELA 6: Crimes mais cometidos
Não temos dados suficientes para saber de quais crimes eram acusados
os presos políticos que estavam em Dores do Indaiá. Analisando a tabela dos
dois períodos, observamos que os crimes mais cometidos são homicídio e furto.
O número de homicidas de 1954 a 1963 correspondia a 40% e de 1964 a1973
a 36,47%: houve portanto uma queda. Já os furtos tiveram seu índice
aumentado. Se no período de 1954 a 1963 foi de 21,38 %, de 1964 a 1973
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aumentou para 31,53 % o número de furto. Os períodos permaneceram quase
invariáveis, temendo a uma leve redução de 0,43% em relação ao período de
1954 a 1973.
Observa-se também que a tentativa de homicídio de 1954 a 1963 foi
de 6,9%. Já no período posterior (1964 a 1973) não apareceu nos registro
dos documentos. Os roubos tiveram um aumento significativo. Se entre
1954 a 1963 representavam 2,76% do total de crimes, no período seguinte
de 1964 a 1973 passa a representar 5,85% do total.
Pela análise dos dados não foi possível encontrar prova de que a
cadeia de Dores tenha recebido ou enviado presos políticos e, portanto, que
tenha feito parte do esquema de perseguição e repressão política.
Foram outras fontes que nos deram informações sobre a existência
de dois presos tidos como subversivos, Prof. Rubens Fiúza que foi preso em
1964, na casa de sua mãe levado para Bom Despacho e logo depois para o
DOPS de Belo Horizonte e também Hugo de Souza. No entanto, o mais
perseguido foi Rubens Fiúza em que 1978, ele próprio definiu o que era
considerado uma pessoa subversiva: o “individuo que propõe derrubar o
regime pelo emprego da violênciarevolucionaria”, ele não deseja derrubar o
regime atual do país, mas apenas deseja uma nova legalidade democrática
para o país. E ainda ironizava “será o presidente Geisel então um
subversivo? Então eu estou em boa companhia”. (Fiúza,1980)
O PRESÍDIO DE DORES DO INDAIÁ
Se os dados encontrados no documento da cadeia de Dores do Indaiá
não permitem dimensionar seu significado para a região, isto não quer dizer
que a Cadeia Regional de Dores não tenha significado político para a cidade.
Uma rápida retomada da história de sua construção e funcionamento corrobora
essa ideia.
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A construção do presídio de Dores do Indaiá começou em 1928, a
pedido do então deputado federal dorense Francisco Luiz da Silva Campos
(Francisco Campos) que, queria ver sua região ser conhecida. Segundo
Domingos Ferolla a justificativa dada era que a criminalidade dos grandes
centros estava crescendo. A obra fazia parte de um conjunto de ações públicas
destinadas a Dores do Indaiá, como a construção da Escola Normal (Escola
Estadual Francisco Campos). A cadeia foi terminada em 1932, ano em que
Francisco Campos deixou Ministério da Educação. No ano seguinte, Francisco
Campos disputou, sem sucesso, as eleições para uma cadeira na Assembléia
Nacional Constituinte de Minas Gerais, como candidato avulso.
O presídio foi construído no alto de um morro, estrategicamente
localizado, de onde até hoje, é possível visualizar todos os pontos da cidade
(figura 1). Sua arquitetura é de estilo neoclássico: suas fachadas de inspiração
romana com colunas jônicas. O prédio é composto por dois andares. Na época,
nas salas da frente encontravam-se o Batalhão da Policia Militar e da Delegacia
de Policia Civil. A área construída é de 903,99 m², em uma forma de caixa
quadrada, num terreno de 4050m² (figura 2). O presídio foi dividido em dois
andares, que possuía 14 selas, nos fundos se encontrava umquadra de futebol,
nas laterais do fundo do terrenos haviam duas guaritas e na sua frente uma,
como se pode observar na planta original do edifício.
O prédio, segundo Domingos Ferolla (2008), foi construído para ser
uma penitenciária. Na época de sua construção, era um dos presídios mais
modernos do Estado de Minas Gerais. Ele teria construído para manter presos
de altíssima periculosidade, que vinham de todas as regiões de Minas e de
outros estados.
Se no início do século, o presídio fora recebido como símbolo do
progresso e da civilização, no final do século XX, entretanto, ele é
ressignificado: na década de 1980, representantes da população local se
empenharam numa campanha de mais para tentar desativá-lo. Esta campanha
começou
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FIGURA 1: A cidade vista da Janela do andar superior do prédio da
Cadeia
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FIGURA 2: Cadeia de Dores do Indaiá de 1932 a 1983, hoje a Prefeitura
Municipal de Dores do Indaiá.
Na imprensa pela iniciativa do prof. Rubens Fiúza1, que escrevia artigos
enfáticos sobre o presídio, em sua coluna no jornal O Liberal, folha quinzenal
que circulou na cidade (com sua primeira circulação de 1933 a 1989 depois
reapareceu em como informativo da prefeitura de 1993 a 2000). O periódico
registrou as tentativas dos líderes locais de convencer as autoridades estaduais a
desativarem a cadeia. Cartas enviadas para deputados, como as que Domingos
O Prof. Rubens Fiúza (1923-2000) foi sempre um grande estudioso de História, Geografia e
Sociologia, sobretudo nos aspectos relacionados com a sua região
1
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Ferolla enviou ao deputado Dalton Canabrava líder, do PP (Partido Popular),
continham o seguinte argumento contra a manutenção do presídio na cidade:
Funciona escandalosamente no centro residencial de Dores
do Indaiá, uma penitenciária, cuja desativação vem sendo
reivindicada por todos as munícipes, sem, contudo, merecer
a atenção das insensíveis autoridades do nosso Estado. A
localização do prédio, as condições sub-humanas em que
vivem os detentos, rebeliões, assassinatos, constantes
tentativas de fugas, corre-corre nas ruas do bairro de
policiais no encalço de fugitivos, às vezes até com tiros, além
dos gracejos obscenos e dos palavrões dirigidos às
professoras e aos alunos da Escola Estadual Mestre Tonico,
localizada nas imediações, são algumas das razões que nos
força a solicitar às autoridades por um fim a esta calamidade
que há anos vem afligindo a terra de Francisco
Campos.(Ferolla, O Liberal,1980, p.2).
Rubens Fiúza em um dos seus artigos que também pedia a desativação
do presídio se referia às condições dos presos da cadeia:
É necessário que o prédio seja urgentemente reformado e
restaurado, e inclusive melhoradas as suas instalações, de
modo a poder oferecer aos detentos condições humanas de
habitação, dentro das modernas concepções criminologias da
missão lidimamente pedagógica, reeducacional das instituições
carcerárias dos paises civilizados e da civilização cristã.
(Fiúza,1980,p.1)
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O Livro de registro de presos da cadeia não se refere às condições
oferecidas aos presos. No entanto, a imprensa registrou outros vestígios que
permitem a aproximação do modo como viviam os internos.
No ano de 1982, um detento transferido da capital Belo Horizonte
revoltado com o tratamento que obteve na Cadeia de Dores do Indaiá através
de seu advogado, faz um pedido ao juiz de Contagem para que não fosse
transferido outra vez para aquela prisão. Dizia preferir ser mandado para a
Sibéria do que retornar. No seu pedido argumentava:
Sou Antonio Carlos Braga, meliante não vulgar/tenho
muitos
anos
de vida/muitos
desenganos pra
mostrar/recolhido na condição de cativo, na cadeia de
Dores do Indaiá. Dizem que a violência do mundo/ não
reside apenas no Nilo ela se encontra no fundo até no ar
que respiro.../ em Dores não se toma banho/água nem para
tomar/um médico em nossos sonhos/ que nos venha
examinar... /sim, porque doente e rua/ é mais comum que
barata/ nas celas de dor mais crua, duma cidade antes
pacata.../presidiários vão desencarnar/ isso eu posso afirmar
– na terceira esquina depois do inferno/ que é Dores do
Indaiá...(Braga, 1982,p,1)
A despeito do tom satírico, pelo trecho acima é possível ter ideia das
condições da cadeia de Dores do Indaiá, na década de 1980. Analisado os
artigos dos jornais, percebemos que a campanha foi bastante dura em defesa do
fechamento do presídio. Embora os sofrimentos dos presos tenham sido muito
exagerados, estas fontes podem dar uma dimensão de como era a vida dos
presos e completar o quadro social apresentado nos registros de presos.
A campanha foi bem-sucedida. Em 1983, a cadeia foi desativada pelo
governo estadual e passou a pertencer em caráter de comodato, por um
período de 20 anos (vinte anos), ao município. Antonio Lopes Cançado,
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festejando o ato escrevia que aquele “prédio estava desperdiçado como cadeia,
vai ter agora uma destinação condigna: será a sede da Casa da Cultura de Dores
do Indaiá, uma velha aspiração da comunidade dorense.” (Cançado, 1983,p.1).
A doação do prédio para a Prefeitura fez parte do acordo entre o
município e o estado, pelo qual, para “substituir a ex-cadeia a prefeitura se
comprometeu a construir uma delegacia à altura das necessidades
municipais”.(Cançado,1983,p,1). Entretanto, a Casa da Cultura nunca chegou a
funcionar no local. Desde a sua desativação, o prédio imponente da antiga
cadeia passou a ser a sede do governo municipal de Dores do Indaiá: as antigas
celas viraram grandes salas e escritórios que abrigam os diversos setores
administrativos do governo municipal.
CONCLUSÃO:
Através da pesquisa realizada verificou-se que não existiram registros de
presos políticos na cadeia de Dores do Indaiá entre os detidos. Embora alguns
habitantes tenham sido presos e perseguidos, foram levados a outros
lugares.Boa parte dos presos era alfabetizada e os crimes cometidos, em sua
maioria, respectivamente, homicídios, furtos e roubos. Verificou-se também
que o índice de escolaridade dos presos era mais elevado à época da ditadura
militar.
Se pelo estudo dos registros de presos da cadeia de Dores do Indaiá do
período de 1964 a 1974, não foi possível fazer uma relação direta com a ditadura
militar, indiretamente podemos perceber que a instalação do novo regime contribui
para o aumento dos presos da cadeia de Dores, sobretudo na década de 1960
quando subiu o número de presos transferidos de diversos lugares, em especial da
capital Belo Horizonte.
Embora não haja registros de presos políticos no Presídio de Dores do
Indaiá, isto não quer dizer que não tenha havido prisões políticas relacionadas à
ditadura militar. Rubens Fiúza, por exemplo, escritor e jornalistatomado por
socialista, foi delatado como subversivo e preso em abril de 1964. Recolhido da
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casa de sua mãe foi levado para Bom Despacho e depois para o DOPS, em Belo
Horizonte, onde ficou por 3 meses, incomunicável, à espera de interrogatório.
Também houve o caso do senhor Hugo de Souza de Araújo tido também como
subversivo, que logo foi posto em liberdade. Nenhum deles passou pela cadeia de
Dores, ou pelo menos, não deixaram registro sobre essa passagem. Afinal, esta não
era sua função. Ela tinha sido construída, nos tempos de Francisco Campos, para
contribuir para o processo civilizatório, encarcerando os bárbaros e não os
militantes de outras causas.
FONTES:
BRAGA, Antônio Carlos. “Preso pede ao Juiz para sair da cadeia de Dores do
Indaiá”.O Liberal, Dores do Indaiá, 30, janeiro, 1982. Periódico, p.2, c. 1-2.
CANÇADO, Antônio Lopes. “Cadeia Vira Casa da Cultura”, O Liberal,Dores
do Indaiá, 12, março de 1983. Periódico p.1, c.1-3.
FEROLLA, Domingos. “Vereador dorense continua lutando contra a Cadeia de
Dores do Indaiá”,O Liberal,Dor do Indaiá MG, 20, setembro, 1980. Periódico p.2,
c.1-3.
FEROLLA, D. da.Domingos Ferolla: depoimento [out. 2008]. Entrevistador:
J.S.M. Monteiro Dores do Indaiá – MG, 2008.1 fita cassete (60 mim), estéreo.
Entrevista concedida para a monografia PERFIL DO PRESO DE DORES DO
INDAIÁ – MG.
FIÚZA, Rubens. “Estamos em Pleno Século XVlll”, O Liberal, Dores do
Indaiá MG, 21, junho, 1980. O Vigilante, p.1, c.1-3.
FIÚZA, Rubens. “O Que e ser Subversivo”, O Liberal, Dores do Indaiá, 28,
outubro, 1979. O Vigilante, p. 2, c.1.
MINAS GERAIS. “Delegacia especial de Dores do Indaiá”. Registros dos réus
recolhidos na cadeia de Dores do Indaiá. Dores do Indaiá, 1958. Não
publicado.
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BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da História, ou o ofício do
historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BURKE, Peter. A Escrita da História – Novas Perspectivas. São Paulo. ed.
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FOUCAULT, Michel.Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 39. ed. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2007.
NORONHA, Olinda Maria. Ideologia, trabalho e educação. Campinas, São
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http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010340142004000100006 . Acesso em: 15 abr. 2008
RIBEIRO, Eliana Marques. Cor/raça no senso escolar 2005:o que é ser preto,
branco pardo. Disponível em:
www.anped.org.br/reunioes/29ra/trabalhos/trabalho/GT21-2545--Int.pdf
.
Acesso em 28 mar. 2008
RIBEIRO, Flávia Maria Franchini. A Disputa Pela Memória: Prisões Políticas
do Regime Militar. Disponível em:
www.rj.anpuh.org/Anais/2006/conferencias/Flavia%20Maria%20Franchini%20R
ibeiro.pdf. Acesso em : 20 ago. 2008.
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O CONTROLE SOCIAL DA DELINQUÊNCIA INFANTIL NA
CIDADE DE SÃO PAULO NA PASSAGEM DOS SÉCULOS XIX XX PELA TEORIA DE MICHEL FOUCAULT1
Robson Roberto da Silva2
Resumo:
As instituições disciplinares de característica laica e científica surgiram no Brasil
entre o final do século XIX e início do século XX e a cidade de São Paulo foi
uma das pioneiras na inauguração desses institutos para o atendimento ao
constante crescimento da delinqüência e criminalidade infantil nas ruas e
cortiços da cidade, pois as antigas entidades religiosas não tinham estrutura para
essa crescente demanda social. Analisando essas instituições pela teoria de
Michel Foucault, filósofo e historiador francês, especialista nos estudos sobre
essas instituições de controle social (orfanatos, reformatórios, prisões,
manicômios, etc.) analisa a dinâmica social no interior dos institutos e como
eram formadas e realizadas as hierarquias e as relações de poder e os
mecanismos de disciplina e vigilância sobre os internos, com o objetivo
principal de inserir na mentalidade das crianças delinqüentes os princípios
morais de organização e conduta através do trabalho.
Palavra-chave: Infância, Delinqüência, Instituições, Relações de Poder,
Disciplina
Esse artigo baseia-se no terceiro capitulo do projeto de dissertação cujo titulo: A
instrumentalização da infância: estudos sobre as condições sociais e as políticas publicas das
crianças marginalizadas na cidade de São Paulo (1888-1927)
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Historia Social - Universidade Estadual de
Londrina – PR.
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2
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Summary
The institutions to discipline of laica and scientific characteristic had appeared
in Brazil enters the end of century XIX and beginning of century XX and the
city of São Paulo was one of the pioneers in the inauguration of these justinian
codes for the attendance to the constant growth of the deliquency and infantile
crime in the streets and tenement houses of the city, therefore the old religious
entities did not have structure for this increasing social demand. Analyzing these
institutions for the theory of Michel Foucault, philosopher and French
historian, specialist in the studies on these institutions of social control
(orphanages, reformatories, arrests, lunatic asylums, etc.) it analyzes the social
dynamics in the interior of the justinian codes and as they were formed and
carried through the hierarchies and the relations of being able and the
mechanisms of it disciplines and monitoring on the interns, with the main
objective to insert in the mentality of the delinquent children the moral
principles of organization and behavior through the work.
Word-key: Infancy, Deliquency, Institutions, Relations of Being able, Discipline
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1. A DELINQUÊNCIA INFANTIL NA CIDADE DE SÃO PAULO NO
INÍCIO DO SÉCULO XX
São Paulo, final do século XIX e início do século XX, era uma cidade
em plena mutação urbanística e social, a industrialização mostrava um
dinamismo nunca antes experimentado por outra cidade no Brasil, com
exceção do Rio de Janeiro. A vinda de grandes levas de imigrantes europeus,
especialmente italianos para tentar a vida na América. Além disso, a abolição
da escravidão colocou uma grande quantidade de indivíduos negros e mestiços
no mercado de trabalho, porém esses tiveram maiores dificuldades para ser
alocados na produção industrial por diversas razões, mas todas elas baseadas
no preconceito racial, relegando-os a sub-empregabilidade. Todos esses fatores
históricos e demográficos transformaram profundamente as estruturas sociais
de São Paulo, aprofundando as contradições socioeconômicas da capital
paulista, entre elas o aumento da pobreza da maioria da população. Uma das
conseqüências mais graves da elevação da carestia social será o aumento da
indigência e da criminalidade infantil entre os últimos anos do século XIX e as
primeiras décadas do século seguinte (Figura 1). Pela Tabela 1 pode-se
observar claramente que os índices de criminalidade infantil superam dos
adultos em 1916. A questão da infância abandonada, antes tratada como caso
privado das famílias ou das instituições religiosas, se converteu em uma
preocupação de ordem pública, a infância indigente se tornara a plataforma
política dos governos na Primeira República.
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Figura 1 - Aurélio Becherini: Detalhe de foto Rua Capitão Salomão, 1912.
Fonte: Aurélio Becherini, São Paulo: Editora Cosac Nayfy, 2009. Acervo –
DPH / SMC São Paulo.
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Segundo Marco Antônio Cabral dos Santos:
Assim como o menor em São Paulo era iniciado (...) nas
atividades produtivas que o mercado proporcionava, (...),
também o era nas atividades ilegais numa clara tentativa de
sobrevivência numa cidade que hostilizava as classes
populares. Desta maneira o roubo, o furto, a prostituição e
a mendicancia tornaram-se instrumentos pelos quais estes
menores proviam a própria sobrevivência e a de suas
famílias. Inúmeros são os relatos da ação destes meninos e
meninas pelas ruas da cidade, em bandos ou sozinhos,
compondo o quadro e as estatísticas da criminalidade e da
delinquência. O moleque travesso que alegremente saltitava
pelas ruas, era também o esperto batedor de carteiras, que
com sua malícia e agilidade assustava os transeuntes.
Frequente tambem era a presença de garotas, ora
mendígando pelas calçadas ou furtando pequenos
estabelecimentos, ora prostituindo-se para obter o dificil sustento.1
A preocupação da sociedade em relação às crianças que ficavam
vagando pelas ruas, soltas e propícias a influência de todos os tipos de vícios e
perversidades que a cidade oferecia, causava a consternação das autoridades e
da sociedade, que viram nisso a emergência da elaboração de políticas públicas
que atendessem essas demandas sociais. “As sociedades industriais, intensificando
as relações entre os grupos, multiplicam normas e interdições; sob muitos aspectos
constrangedoras e repressivas, elas codificam tudo e, ao mesmo tempo, fabricam
SANTOS, Marco Antonio Cabral dos.Criança e criminalidade no inicio do sec. XX. In:
PRIORE, Mary Del. Historia das crianças no Brasil, São Paulo. Contrexto, 1999, p. 218
1
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delinquentes.”1 Nesse período da passagem dos séculos XIX - XX houve o
surgimento de uma grande estrutura assistencialista voltada para o
recolhimento, internação e adestramento dessas crianças para se tornarem
cidadãos úteis para a sociedade pela pedagogia do trabalho. Os conceitos de
ociosidade e criminalidade se confundiam nessa época.
Segundo Sérgio César da Fonseca:
O ócio, associado ao ambiente contaminador das ruas,
estava identificado com a corrupção moral a qual estavam
submetidos os menores (...). A desocupação dos menores,
desde as idades mais jovens, não era tratada tão somente
como um problema social, mas também como um
fenômeno moral. Se tinha essa conseqüência moral, o ócio
e rua tinham a responsabilidade por produzir distorções de
caráter que comprometeriam os menores. Há nesse aspecto
moral, acerca da perversão dos menores pela ociosidade nas
ruas, algo implícito, que e justamente a individualização de
um fato social, ou seja, não há uma avaliação que aponte
para a marginalização como a eminente produtora dessas
pessoas, e sim a transferência da responsabilidade da
criminalidade e da mendicância para os indivíduos.2
O coro discursivo das autoridades da época era que poderia se evitar o
crescimento da criminalidade infantil com a inserção cada vez mais precoce das
crianças a educação voltada ao mundo do trabalho, para que esse indivíduo
pudesse se tornar útil para a sociedade industrial que emergia em São Paulo no
PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Tradução de
Denise Bottman. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988 (Coleção Oficina da História).
p.236
FONSECA, Sérgio César da. Infância e disciplina: O Instituto Disciplinar do Tatuapé em São
Paulo (1890 - 1927). Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2007., p. 134
1
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início de século XX “A disciplina industrial, (...), não é senão uma entre outras,
e a fábrica, (...) a escola, o exército, a prisão etc., pertence a uma constelação de
instituições que, (...), participa da elaboração dessas regulamentações.”1 Rizzini
explica como era idealizado a decência:
Para ser um 'homem de bem' não havia outro caminho
senão o do trabalho, o trabalho idealizado, que conduz à
grandesa nacional', que requer a participação de todos (do
'garimpeiro' ao 'capitalista'...) — os 'obreiros do -progresso da
Pátria': "Vós que viveis ainda nos brincos da infância e que,
da escola, passaes para a ridente vida domestica, ainda não
chegastes á idade em que o homem sente a necessidade
impulsiva de trabalhar. Quando lá chegardes, vereis quão
delicioso é o trabalho! Elle desenvolve o corpo e o espirito;
avigóra o animo; fortalece o caracter; evita a tentação da vida
vagabunda. Raramente encontrareis um criminoso, repulsivo e
odiento, num homem de trabalho; mas encontrareis centenas
de delinquentes aos quaes elle renegou.2
Tantos os políticos quantos os empresários viam a inserção precoce das
crianças indigente ao trabalho como uma forma de salva-las dos vícios das ruas
e da criminalidade, era o pensamento filantrópico da classe burguesa que
atuava no salvamento das classes populares de sua inata indolência para o
trabalho, em salvaguardar a infância. “As novas posturas (...) defendidas pêlos
médicos higienistas e pelas elites pensantes, mostravam o caminho da
filantropia como solução racional e técnica para atender à questão social do
PERROT, Op. cit. 1988, p.53
BRITO, 1919, p.79 apud RIZZINI, Irene. O século perdido: raízes históricas das políticas
sociais para a infância no Brasil. Rio de Janeiro: EDUSU, AMAIS Livraria e Editora, 1997. p.
110
1
2
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menor abandonado.” 1 Era uma política baseada no pensamento científico, onde
as questões sociais eram vistas moléstias a serem curadas “Esboça-se, (...), uma
política mais racional, normalizada, "científica" e global do social. (...). ”2 Stein
explica o filantropismo da classe empresarial do século XX:
Os empresários da indústria têxtil algodoeira recrutavam a sua
mão-de-obra não especializada nos orfanatos, nos juizados de
menores, nas Casas de Caridade e entre os desempregados das
cidades do litoral. Ao se utilizarem dessas fontes de mão-deobra, os proprietários das fábricas asseguraram o
desenvolvimento de um segmento industrial da economia
brasileira, convertendo-se, ao mesmo tempo, em benfeitores e
filantropos; ambos os papéis estavam entrelaçados, e disso
tinham plena consciência os empresários e os observadores da
época.3
Tais políticas de assistência a infância marginalizada visavam
principalmente o saneamento moral da população empobrecida, sendo
isoladas em instituições especificas de acolhimento dos degenerados sociais.
“Em compensação, é o corpo da sociedade (...) que será preciso proteger, de
um modo quase médico: (...) como a eliminação dos doentes, o controle dos
contagiosos, a exclusão dos delinqüentes.”4 Assim, durante do período da
Primeira República, os governos implantaram estruturas correcionais para
educar e corrigir os delinqüentes e enquadrá-los nas normas sociais. “Matéria
facilmente moldável, o Estado deveria preocupar-se em formar o caráter da
MARCÍLIO, Maria Luíza. História social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998,
p.201
MARCILIO, Op. cit. 1998, p.202
STEIN, Stanley J. Origens e evolução da indústria têxtil no Brasil. 1850 - 1950. Rio de Janeiro:
Editora Campus, 1979, p.66
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete.
29ª Edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2004. Sec. XX p. 146
1
2
3
4
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criança, incutindo-lhe o amor ao trabalho, (...), de civilização e barbárie, enfim,
os princípios da moral burguesa.”1 Foi no início do século XX que surgiram as
primeiras instituições correcionais fundamentada na doutrina do utilitarismo e
nos princípios de uma filantropia científica, para melhor adestramento das
crianças delinqüentes, incutindo neles os princípios da moral, dos bons
costumes e da dignificação do ser humano através do trabalho.
2. ANÁLISE DOS MECANISMOS DE PODER E DISCIPLINA NAS
INSTITUIÇÕES CORRECIONAIS PELA TEORIA DE MICHEL
FOUCAULT
A questão da infância abandonada não era uma novidade no Brasil no
início do século XX, esse problema já era conhecido desde o período colonial,
onde as crianças bastardas ou expostas eram criadas pelas famílias motivadas
pela caridade ou pelas iniciativas das instituições religiosas. Maria L. Marcílio
denominava essa fase de caritativa. “Do período colonial até meados do século
XIX vigorou a fase (...) caritativa. O assistencialismo dessa fase tem como
marca principal o sentimento da fraternidade humana, de conteúdo
paternalista, sem pretensão a mudanças sociais.” 2 Esse sistema vigorou por
todo século XIX e somente na passagem para o século XX sua atuação
assistencial foi questionada, sendo taxada de ineficiente e retrógada, isso
expressava o pensamento social do final do século XIX e inicio do século
seguinte em que a elite intelectual e política brasileira exigiam a separação do
Estado da influência da Igreja e a reforma imediata das estruturas políticas e
sociais depois da Proclamação da Republica de 1889. “Nos últimos anos do
século XIX e primeiros anos desse século, a idéia de reforma social e moral
(...), preocupados com a devassidão dos costumes, a indisciplina cívica e com a
RAGO, Margareth. A preservação da infância. In: Do cabaré ao lar: a utopia da cidade
disciplinar. Brasil. (1890 – 1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p.121
MARCÍLIO, Op. cit.1998, p.134
1
2
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desobediência civil nas suas mais diversas formas.” 1 Nesse espírito de
reformismo, as crianças, especialmente aquelas tuteladas pelo Estado ou em
situação de risco moral e social, deveriam ser doutrinadas pelos novos
mecanismos educacionais para serem inseridas no mercado de trabalho aberto
pela industrialização. Cada vez mais sendo cerceados pelas instituições
correcionais, os delinqüentes se vêem analisados pelo saber médico e
psiquiátricos,
enquadrando-os,
organizando-os,
mensurando
seu
comportamento. Segundo Margareth Rago:
Assim, desde o final do século XIX, a preocupação com os
destinos da criança, (...), ocupa cada vez mais os horizontes
dos médicos higienistas, pedagogos e governantes. Através
da apropriação da infância, o poder médico procura
projetar-se no mundo da política, outorgando-se um papel
de importância vital para a sobrevivência física e moral dos
habitantes, das crianças aos adultos, de todas as classes
sociais. De fato, os médicos adquirem uma crescente
participação no aparato governamental, seja dirigindo o
serviço sanitário, seja definindo dispositivos estratégicos de regulação dos comportamentos e da vida íntima dos diversos
setores da sociedade. A tarefa de recuperação da infância
abandonada, neste contexto, cumpre a função de justificar a
crescente intervenção da medicina no campo da política e
sua interferência no domínio privado da família.2
Assim, desde as primeiras décadas do século XX, proliferam-se
inaugurações de instituições laicas de acolhimento e internação de crianças
abandonadas e delinqüentes. “São abertas instituições especialmente destinadas
ADORNO, Sergio. A experiência precoce da punição In: MARTINS, Jose de Souza. O
massacre dos inocentes, p.181
RAGO, Op. cit. 1987, p. 120
1
2
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a recolhe−los e a ministrar−lhes cuidados particulares (...), encontrarão um
meio de desenvolvimento mais favorável e economicamente menos custoso que
um asilo, (...).” 1 As crianças delinqüentes que tivessem cometidos crimes eram
recolhidas das ruas e cortiços da cidade de São Paulo e imediatamente
internados nessas instituições correcionais para sua reeducação. “Mudanças (...)
nos métodos de internação para crianças (...), deslocando-se dos orfanatos e
internatos privados para a tutela do Estado (...). Foi o ternpo das (...) políticas
sociais que valorizou, (...), a internação (...).”2 O Código Penal de 1890
determinava que os menores que cometessem crimes com discernimento
deveriam ser internatos nessas instituições. “Art. 30. Os maiores de 9 annos e
menores de 14, que tiverem obrado com discernimento, serão recolhidos a
estabelecimentos disciplinares industriaes, (...), comtanto que o recolhimento
não exceda á idade de 17 annos.”3 Não apenas os menores criminosos ficariam
confinados, mas todos aqueles considerados marginais ou desajustados da
sociedade. O Instituto Disciplinar do Tatuapé foi inaugurado em 1902 pela
iniciativa de políticos paulistas como Paulo Egydio e Candido N. Nogueira
Motta, ambos criminalistas e filantropos, regulamentado pela Lei n. 844 de
1902. “Artigo 1.° Fica o Governo do Estado auctorizado a fundar, (...), um
Instituto Disciplinar e uma Colonia Correccional, subordinados á Secretaria de
Estado dos Negocios do Interior e da Justiça e sob a immediata inspecção do
chefe de policia.”4 Pela explicação de Sérgio César da Fonseca:
No caso de São Paulo, em especial, o Instituto Disciplinar –
mais tarde conhecido como Instituto disciplinar do Tatuapé
– e criado em lei de 1902, entrando em funcionamento no
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. 1ª Edição. Rio de
Janeiro: Editora Graal, 1984, p.200
PASSETTI, Edson. Crianças carentes e políticas públicas. In. PRIORE, Mary Del (org.).
História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999. p.348
BRASIL. Decreto – Lei Federal n. 847 de 11 de Outubro de 1890 (Código Penal do Brasil)
SÃO PAULO: Lei-Estadual n. 844 de 10 de Outubro de 1902
1
2
3
4
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ano seguinte, também nessa onda de instituições que
surgem em outros centros urbanos. Esse tipo de instituição,
diretamente motivado pela preocupação social despertada
pelo menor, veio também para operacionalizar preceitos
legais já estabelecidos outrora.1
Basicamente, os candidatos mais freqüentes ao internamento eram as
crianças mais pobres e problemáticas, através de mandatos criminais expedido
pelo Juizado de Órfãos. “Mas a figura do menor, (...), aplica-se em toda sua
extensão aos meninos pobres. (...) a menoridade na sua dimensão ligada à
esfera do trabalho ou a pedagogia terapêutica é um conceito aplicável a gente
pobre.” 2 Marco A. Cabral dos Santos descreve os procedimento de entrada dos
menores e sua rotina de tarefas no instituto:
Na sua entrada, o menor era registrado em um livro de
matrícula e depois sujeito a longo interrogatório, feito na
maioria das vezes pelo próprio diretor. Em seguida passava
por um rigoroso exame médico, extraindo-se suas medidas
antropométricas e tirando-lhe fotografia. Recebia então seu
uniforme, pelo qual devia zelar enquanto durasse sua
estadia, sendo então encaminhado para a seção que lhe
fosse designada, “de acordo com sua robustez física e
aptidão”. (...) Após breve período de adaptação, o jovem era
imediatamente integrado às frentes de trabalho, que naquele
momento inicial era essencialmente agrícola. A regeneração
pelo combate ao ócio e a pedagogia do trabalho eram
moedas correntes no cotidiano do instituto. Tentava-se a
todo custo incutir naquelas mentes, hábitos de produção e
1
2
FONSECA, Op. cit. 2007, p.93
FAUSTO, Op. cit. 1980, p. 80
[114]
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convívio aceitáveis pela sociedade que os rejeitava. Por meio
de contínuas seções de exercícios físicos, tentava-se
doutrinar os jovens para uma vida mais regrada e
condizente com os anseios de uma cidade pautada pela
lógica da produção. (...) Além do trabalho agrícola, para
complementar as atividades físicas, os jovens recebiam aulas
de “ginástica moderna”, além de instrução militar completa,
com manejo de armas e exercícios de combate, “donde
resulta uma vantagem individual para a pátria, pelo
magnífico núcleo que se vai formando de excelentes
soldados para a defesa nacional”. Além disso, os internos
recebiam aulas complementares de educação cívica, na
intenção de reprimir o “desamor” que muitas vezes
expressavam pela pátria. 1
Pela descrição acima de Marco Antônio Cabral dos Santos, as crianças
delinqüentes ao darei entrada no Instituto Disciplinar, passavam por uma
triagem e inspeção detalhada através do interrogatório e do exame
antropométrico. Possivelmente, a primeira impressão que o instituto causava
nelas não deveria ser das mais agradáveis. “O orfanato e a prisão para crianças
e jovens são imagens que aterrorizam está fora delas e apavoram quem está
dentro.”2 Esses procedimentos estão estabelecidos pelo Regimento interno da
instituição:
Artigo 13. - Por occasião de ser admittido cada menor ao
Instituto, lavrar-se-ão os assentamentos respectivos, no livro
da matricula geral, e proceder se á ao interrogatorio, que
ficará sob a guarda do director do estabelecimento,
1
2
SANTOS, Op. cit. 2007, p. 224 – 225.
PASSETTI, Op. cit. 1999, p.356
[115]
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mantendo-se a respeito inteiro sigillo. Terá logar, em
seguida, a visita medica, finda a qual vestirá o menor o
uniforme do Instituto, sendo depois photographado, e
conservando-se-lhe, em reserva, o retrato, para ulterior
verificação de identidade.
Artigo 14. - Divididos os menores em classes, segundo o
disposto no artigo 10, caberá aos mais distinctos de cada
turma, conforme a designação do director, o encargo de
vigiar a conducta de seus companheiros, de admoestal-os,
de transmittir-lhes as ordens ou instrucções da auctoridade
superior, e de levar ao conhecimento desta as faltas
commettidas, para a necessaria repressão.1
Os internos eram submetidos à imposição de disciplina e postura
regulamentada, ou seja, a sua liberdade de ação era determina pela regras
impostas. Nas teorias de Foucault as relações do poder se davam pela sanção e
imposição de comportamentos, ele formula que o domínio sobre os internos se
dava principalmente sobre seus corpos. “Esses métodos que permitem o
controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante
de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que
podemos chamar as "disciplinas".2 Para Foucault, diferentemente do suplicio
medieval, a disciplina era imposta de forma mais sutil e complexa:
Este investimento político do corpo está ligado, segundo
relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica;
é numa boa proporção, como força de produção que o
corpo é investido por relações de poder e de dominação;
mas em compensação sua constituição como força de
1
2
SÃO PAULO: Decreto-Lei Estadual n. 1079 de 30 de Dezembro de 1902
FOUCAULT, Op. cit. 2004, p. 118
[116]
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trabalho só é possível se ele está preso num sistema de
sujeição (...); o corpo só se torna força útil se é ao mesmo
tempo corpo produtivo e corpo submisso. Essa sujeição não
é obtida só pelos instrumentos da violência ou da ideologia;
pode muito bem ser direta, física, usar a força contra a
força, agir sobre elementos materiais sem no entanto ser
violenta; pode ser calculada, organizada, tecnicamente
pensada, pode ser sutil, não fazer uso de armas nem do
terror, e no entanto continuar a ser de ordem física. Quer
dizer que poder haver um “saber” do corpo que não é
exatamente a ciência de seu funcionamento, e um controle
de suas forças que é mais que a capacidade de vencê-las:
esse saber e esse controle constitui o que se poderia chamar
a tecnologia política do corpo. (...) Trata-se de alguma
maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pelos
aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se
coloca de algum modo entre esses grandes funcionamentos
e os próprios corpos com sua materialidade e suas forças. 1
A política disciplinar priorizava o controle absoluto sobre as atitudes
dos internados, onde o medo da punição e o castigo rondavam a mentalidade
das crianças. “Ao escolher políticas de internação (...), o Estado escolhe educar
pelo medo. (...), vigia comportamentos a partir de uma idealização das atitudes,
(...) e estabelece rígidas rotinas de atividades, higiene, alimentação, vestuário,
ofício, lazer e repouso.” 2 Na chegada, os internos sofrem o efeito do
quadriculamento, ou seja, cada individuo sera separado dos demais de acordo com
suas caracteristicas: idade, condição fisica, delito, etc. “Cada individuo no seu
lugar; e em cada lugar, um individuo. Evitar as distribuições por grupos;
1
2
FOUCAULT, Op. cit.1984, p. 25 – 26.
PASSETTI, Op. cit. 1999, p.356
[117]
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decompor as implantações coletivas; analisar as pluralidades confusas, maciças
ou fugidias.”1 Essa separação sistemática dos corpos dos internos era
regulamentada:
Artigo 2.° - O Instituto Disciplinar constará de duas secções
destinadas a incutir habitos de trabalho e a educar,
fornecendo instrucção litteraria, profissional e industrial, de
referencia agricola:
a) a maiores de 9 annos e menores de 14, no caso do artigo
30, do Codigo Penal;
b) a maiores de 14 e menores de 21 annos, condemnados
por infracção do artigo 399 do Codigo Penal e artigo 2.º da
lei federal n. 145, de 11 de Julho de 1893;
c) a pequenos mendigos, vadios, viciosos, abandonados,
maiores de 9 e menores de 14 annos.
Artigo 3.º - Os menores serão distribuidos por classes e
aproveitados nos trabalhos, conforme a sua edade, robustez
physica e aptidão. 2
Além do quadriculamento, as crianças desde cedo tinha uma rígida
rotina de disciplina militar, onde cada função elas ficavam perfiladas e em
posição de sentido, igual nos quartéis. “Os recrutas são habituados a manter a
cabeça ereta e alta; a se manter direito sem curvar as costas, a fazer avançar o
ventre, a salientar o peito, e encolher o dorso; (...).” 3 Isso quebrava a resistência
juvenil dos internos em relação à hierarquia e incutia neles o respeito pelas
regras. Essa prática não acontecia apenas no Instituto Disciplinar, mas em
outras instituições correcionais como na Escola de Aprendizes e Artífices
(Figura 2). Na explicação de Carmem S. V. Moraes:
1
2
3
FOUCAULT, Op. cit. 2004, p. 123
SÃO PAULO: Lei-Estadual n. 844 de 10 de Outubro de 1902
FOUCAULT, op. cit. 2004, p. 117
[118]
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Dentro e fora da casa os educandos obedeciam a um regime
militar adaptado, com postos de graduação semelhantes aos
existentes no exército, de forma a que o sistema de
emulação provocasse neles o incentivo à “melhor conduta”
e “maior adiantamento”, ambos premiados no final do ano,
durante as festas de encerramento, na presença do
Presidente da Província (...). A exemplo das práticas
militares, (...), como bons soldados, os meninos trajavam
uniforme militar; nos dias de parada, (...) ou festa nacional,
compareciam em uniforme e com o maior asseio.1
MORAES, Carmem Sylvia Vidigal. A normatização da pobreza: crianças abandonadas e
crianças infratoras. In: Revista Brasileira de Educação. n. 15, set/out/nov/dez p. 70 – 96. São
Paulo, 2000, p.74
1
[119]
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Figura 2 - Duzentos aprendizes em formatura na hora inicial dos trabalhos na
Escola de Aprendizes e Artífices de São Paulo – 1914. Fonte: Revista A Vida
Moderna n. 218 23 de Abril de 1914. Acervo: Arquivo Publico do Estado de
São Paulo (AESP)
Os exercícios físicos eram uma rotina no currículo das atividades no
Instituto (Figura 3). “Artigo 22. - Nos domingos e dias feriados, os menores
farão exercicios militares, de gymnastica, de cantos coraes, e darão licções de
musica vocal e instrumental.” 1 Tudo para que os infantes se tornassem homens
honestos era preciso incutir o soldado dentro dele. “(...) o soldado tornou-se
algo que se fabrica; (...); corrigiram-se aos poucos as posturas; lentamente uma
coação calculada percorre cada parte do corpo, se assenhoreia dele, (...).” 2 A
disciplina é explicada por Foucault:
A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados,
corpos "dóceis". A disciplina aumenta as forças do corpo
(em termos econômicos de utilidade) e diminui essas
mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em
uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um
lado uma "aptidão", uma "capacidade" que ela procura
aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potencia que
poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição
estrita.3
1
2
3
SÃO PAULO: Decreto-Lei Estadual n. 1079 de 30 de Dezembro de 1902
FOUCAULT, Op. cit., 2004, p. 117
FOUCAULT, Op. cit. 2004p.118
[120]
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Figura 3 - Internos do Instituto Disciplinar executando exercícios físicos sob a
vigilância da Força Policial. Fonte: A regeneração pelo trabalho In: Revista A
Cigarra n.2 30 de Março de 1914. Acervo: Arquivo Publico do Estado de São
Paulo (AESP)
A desobediência não era tolerada, entretanto pelo regulamento não se
admitia o castigo físico, esse sistema que Foucault tão bem teorizou privilegiava
mais vigiar do que punir. “O castigo disciplinar tem a função de reduzir os
desvios. Deve, portanto ser essencialmente corretivo.”1 Normalmente os
castigos aplicados afetavam muito mais o psicológico das crianças do que seu
corpo. “Pela palavra punição, deve-se compreender tudo o que e capaz de fazer
1
Idem, p.149
[121]
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as crianças sentir a falta que cometeram, tudo o que e capaz de humilhá-las, de
confundi-las: (...).”1 Segundo o regulamento sobre as punições:
Artigo 27. - As unicas punições auctorizadas são as
seguintes:
a) A advertencia ou reprehensão, em particular ou em classe
;
b) A privação do recreio ;
c) Os maus pontos, que determinam a perda dos bons
anteriormente conquistados ;
d) O isolamento durante as refeições, em virtude do qual o
alumno castigado come numa mesa à parte, e ás mesmas
horas que os outros:
e) A perda definitiva ou temporaria das insignias de
distincção e dos empregos de confiança ;
f) A cellula clara com trabalho;
g) A cellula escura, mas sómente para as faltas de extrema
gravidade.2
Em contrapartida, havia também uma política de benefícios e
recompensas para os internos bem comportados e obedientes. Aliás, isso era
vantajoso, pois eles serviam de vigilantes para fiscalizarem o comportamento
dos mais rebeldes. “A disciplina recompensa unicamente pelo jogo das
promoções que permitem hierarquias e lugares; pune rebaixando e
degradando. O próprio sistema de classificação vale como recompensa ou
punição.” 3 Segundo o Regulamento sobre as recompensas e benefícios:
Artigo 26. - As recompensas auctorizadas são:
1
2
3
FOUCAULT, Op. cit. 2004, p. 148
SÃO PAULO: Decreto-Lei Estadual n. 1079 de 30 de Dezembro de 1902
FOUCAULT, Op. cit. 2004, p. 151,
[122]
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a) A inscripção no quadro de honra ;
b) Os lugares de honra na mesa;
c) O supprimento de fructas;
d) Os bons pontos;
e) As insignias de distincção ;
f) Os empregos de confiança;
g) Os passeios especiaes;
h) Os elogios em particular ou em público;
i) Os premios de qualquer natureza ou em dinheiro;
j) As cadernetas da Caixa Economica.1
A instrução ministrada aos internos do Instituto Disciplinar baseava-se
principalmente na educação profissional voltadas para a indústria e nas
atividades agrícolas, tanto que possuíam instalações industriais para esse
aprendizado (Figura 4). “Além do internamento (...), o poder médico defendia o
aprendizado de uma atividade profissionalizante, muito mais em função do aspecto moral — manter a criança ocupada, "incutir hábitos de trabalho", reprimir
a vadiagem.”2 O desenvolvimento intelectual não era aplicado, pois os pobres
devem ser adestrados na sua posição social na cadeia produtiva. “O poder
disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem
como função maior "adestrar"; ou sem duvida adestrar para retirar e se
apropriar ainda mais e melhor.”3 As matérias curriculares do Instituto
Disciplinar limitavam-se ao ensino básico e primário:
Artigo 24. - A instrucção, fornecida diariamente aos
alumnos, (...), comprehenderá as seguintes materias:
Leitura, principios de grammatica, escripta e calligraphia;
calculo arithmetico sobre os numeros inteiros, fracções e
1
2
3
SÃO PAULO: Decreto-Lei Estadual n. 1079 de 30 de Dezembro de 1902
RAGO, Op. cit. 1987, p.122
FOUCAULT. Op. cit. 2004, p. 143
[123]
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systema metrico decimal; rudimentos de sciencias physicas,
chimicas e naturaes, applicaveis á agricultura; moral pratica
e educação civica; desenho a mão livre.1
Figura 4 - Aspecto da oficina industrial inaugurado num dos pavilhões do
Instituto Disciplinar para o aprendizado dos internos. Fonte: A regeneração
pelo trabalho In: Revista A Cigarra n.2 30 de Março de 1914. Acervo: Arquivo
Publico do Estado de São Paulo (AESP)
No cotidiano dos internos, suas atividades sempre envolviam algo
referente ao trabalho, seu dia era ocupado nas mais variadas tarefas.
Veja na descrição de Fonseca:
1
SÃO PAULO: Decreto-Lei Estadual n. 1079 de 30 de Dezembro de 1902
[124]
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As rotinas do Instituto foram montadas de tal maneira que
os afazeres dos internos estiveram constantemente
resultando no trabalho, sendo ainda aproveitados para gerar
excedentes que provessem a casa de recursos e de
mantimentos. A manutenção da casa também estava a cargo
dos internos, sendo parte de suas obrigações, entre as
tarefas que envolviam o trabalho. (...) A faxina dos
dormitórios, a lavagem das roupas, as margens do rio Tiete,
a capina do terreno do Instituto a arrumação da própria
cama e o asseio com a cozinha, tudo envolvia a participação
regulamentar dos internos. O trabalho corroborava, assim,
para a disciplina geral da casa, pois servia a manutenção da
ordem física das instalações, o que por sua vez espelhava a
própria organização do Instituto.1
As atividades de educação voltadas para a profissionalização industrial
faziam com que as regras de conduta da produção fossem incutidas na
mentalidade dos internos. “Cada vez mais invisível e distante, a disciplina
também é cada vez mais interiorizada. Pela educação (...) modelaram a consciência dos homens que se definem pelo seu lugar num processo de trabalho.”2
Para que essa aprendizagem fosse realmente eficaz, um fator era importante: a
vigilância, feito pelos contramestres e alunos mais experiente (Figura 5).
Para Foucault, o panoptismo, um fenômeno de vigilância extenso e
continua introjeta na mentalidade dos internos o constrangimento de fazer atos
ilícitos. “Apenas um olhar. Um olhar que vigia e que cada um, sentindo−o
pesar sobre si, acabará por interiorizar, a ponto de observar a si mesmo; sendo
assim, cada um exercerá esta vigilância sobre e contra si mesmo.”3 Assim a
1
2
3
FONSECA, Op. cit. 2007, p.136
PERROT, Op. cit. 1988, p. 80.
FOUCAULT, Op. cit. 1984, p, 130
[125]
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disciplina era método de adestramento que necessita da vigilância. “A disciplina é
uma técnica de poder que implica uma vigilância perpétua e constante dos indivíduos.
(...). É preciso vigiá-los durante todo o tempo (...) e submetê-los a uma perpétua
pirâmide de olhares.”1 Segundo Foucault:
E o problema das grandes oficinas e das fabricas, onde se
organiza um novo tipo de vigilância. (...); tratasse agora de
um controle intenso, continuo; corre ao longo de todo o
processo de trabalho; (...) sobre a produção (...), mas leva
em conta a atividade dos homens, seu conhecimento
técnico, a maneira de fazê-lo, sua rapidez, seu zelo, seu
comportamento. (...). A medida que o aparelho de
produção se torna mais importante e mais complexo, a
medida que aumentam o numero de operários e a divisão
do trabalho, as tarefas de controle se fazem mais necessárias
e mais difíceis. Vigiar torna-se então uma função definida,
mas deve fazer parte integrante do processo de produção;
deve duplicá-lo em todo o seu comprimento.2
1
2
Idem, p. 106
FOUCAULT Op. cit. 2004, p.146
[126]
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Figura 5 - Alunos em aula pratica de marcenaria na Escola Profissional
Masculina. Fonte: Revista A Cigarra n.15 31 de Dezembro de 1914. Acervo:
Arquivo Publico do Estado de São Paulo (AESP)
Mas somente a vigilância constante não bastava, era também
fundamental o senso de organização do próprio comportamento do interno, ou
seja, domesticar os corpos das crianças para melhor executarem as tarefas. “O
corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o
desarticula e o recompõe. A disciplina fabrica assim corpos submissos e
exercitados, os chamados "corpos dóceis".1 As falhas na execução são punidas
em conformidade com as faltas cometidas. Michel Foucault explica essa
regulamentação do comportamento e as punições dos internos:
1
FOUCAULT, Op. cit. 2004, p. 119
[127]
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Na oficina, na escola, no exercito funciona como repressora
toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências,
interrupções das tarefas), da atividade (desatenção,
negligencia, falta de zelo), da maneira de ser (grosseria,
desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do
corpo (atitudes "incorretas", gestos não conformes, sujeira),
da sexualidade (imodéstia, indecência). Ao mesmo tempo e
utilizada, a titulo de punição, toda uma serie de processos
sutis, que vão do castigo físico leve a privações ligeiras e a
pequenas humilhações. Trata-se ao mesmo tempo de tornar
penalizáveis as frações mais tênues da conduta, e de dar
uma função punitiva aos elementos aparentemente
indiferentes do aparelho disciplinar: levando ao extremo,
que tudo possa servir para punir a mínima coisa; que cada
individuo se encontre preso numa universalidade punivelpunidora.1
As atividades educacionais não se limitavam a área industrial, o trabalho
na lavoura e plantações dentro do perímetro do Instituto também era de
extrema importância na formação dos internos (Figura 6). Essas tarefas também
eram supervisionadas por vigias e alunos mais experientes que auxiliavam na
faina agrícola.
1
FOUCAULT, Op. cit. 2004, p. 148
[128]
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Figura 6 - Fotografia de crianças internadas executando trabalhos agrícolas nas
lavouras dos institutos correcionais. Fonte: O Estado de São Paulo, 15 de Julho
de 1911, p.3 Acervo: Arquivo da Agencia Estado
As crianças internadas, agora adolescentes, não trabalhavam em vão, ao
final de seu período de internato eles recebem um pecúlio pela produção
dentro do Instituto. “Artigo 59. - O producto do trabalho executado no
Instituto será dividido em duas partes, uma das quaes constituirá renda do
Estado, sendo a outra distribuída (...) entre os menores, como peculio, quando
sahirem do estabelecimento.”1 Além disso, dependendo do seu comportamento
e postura durante o período recebia uma premiação da diretoria. “Artigo 4.º Aos menores que se houverem recommendado pela sua conducta e
1
SÃO PAULO: Decreto-Lei Estadual n. 1079 de 30 de Dezembro de 1902
[129]
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aproveitamento, será concedido pelo director, ao sahirem do instituto, um
certificado e um premio que não excederá de cem mil réis.”1 É difícil dizer
quais seriam os destinos desses jovens após o período de internamento, muitos
possivelmente caíram novamente na criminalidade, outros conseguiram levar
suas vidas pelo caminho da honestidade.
Para finalizar, Foucault critica a função social das instituições
correcionais, para o filosofo francês esses institutos assim como os presídios, os
manicômios, etc. apenas acabam reproduzindo os mesmos degenerados e
desajustados que aprisionaram, realimentando um sistema socialmente vicioso.
“Sem delinqüência não há policia. O que torna a presença policial, o controle
policial tolerável pela população se não o medo do delinqüente?”2 As
instituições não reformam os detentos, mas os estigmatiza ainda mais. Na
conclusão de Foucault:
A prisão não pode deixar de fabricar delinqüentes. Fabricaos pelo tipo de existência que faz os detentos levarem: que
fiquem isolados nas celas, ou que lhes seja imposto um
trabalho inútil, para o qual não encontrarão utilidade, e de
qualquer maneira não "pensar no homem em sociedade; e
criar uma existência contra a natureza inútil e perigosa";
queremos que a prisão eduque os detentos, mas um sistema
de educação que se dirige ao homem pode ter
razoavelmente como objetivo agir contra o desejo da
natureza? A prisão fabrica também delinqüentes impondo
aos detentos limitações violentas; ela se destina a aplicar as
leis, e a ensinar o respeito por elas; ora, todo o seu
funcionamento se desenrola no sentido do abuso de poder.3
1
2
3
SÃO PAULO: Lei-Estadual n. 844 de 10 de Outubro de 1902
FOUCAULT, Op. cit. 1984, p.221
FOUCAULT, Op. cit. 2004, p.222
[130]
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Enfim, segundo Foucault, a delinquência se perpetua no tempo porque
se realimenta do próprio sistema correcional e penitenciário, ou seja, não
soluciona a questão social, mas apenas reaparelha e moderniza um sistema
vicioso que somente tende a aumentava os índices de delinquência e
criminalidade.
LEGISLAÇÃO
BRASIL. Decreto – Lei Federal n. 847 de 11 de Outubro de 1890
SÃO PAULO: Lei-Estadual n. 844 de 10 de Outubro de 1902
SÃO PAULO: Decreto-Lei Estadual n. 1079 de 30 de Dezembro de 1902
REFERENCIA HEMEROGRAFICA:
Revista A Cigarra n. 2 30 de Março de 1914
Revista A Cigarra n. 15 31 de Dezembro de 1914
Revista A Vida Moderna n. 218 23 de Abril de 1914
Jornal O Estado de São Paulo 15 de Julho de 1911
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_________________. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de
Raquel Ramalhete. 29ª Edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2004. Sec. XX
[131]
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[132]
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O EFEITO RASCHOMON E OS PROCESSOS CRIMES COMO
FONTE HISTÓRICA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
METODOLÓGICAS
Hélio Santos
Para Heitor Santos Hoffmann.
Resumo
O presente texto tem o objetivo nada original de defender a pesquisa histórica
tendo como fonte o processo crime. Não só defender, como apresentar alguns
procedimentos, algumas considerações metodológicas pontuais sobre a
utilização dessa importante fonte documental que a cada dia seduz
pesquisadores. Antes, iniciarei historiando, de forma bastante resumida, o uso
historiográfico que os pesquisadores têm feito com os processos crimes. Depois
desse pequeno breviário, indico algumas considerações metodológicas que
pude realizar trabalhando com tais fontes no âmbito da Gerência de
Documentos Escritos da Superintendência de Arquivo Público.
Palavras chaves: Processos crimes, verdade, metodologia

Devo esclarecer que o texto foi elaborado a partir da experiência de trabalho profissional de
leitura, classificação e organização do acervo proveniente do Fundo do Poder Judiciário, Grupo
Cartório do 6º Ofício, no âmbito da Gerência de Documentos Escritos da Superintendência de
Arquivo Público de Mato Grosso e foi preparado, primeiramente, para exposição oral.

Mestre em História pela Universidade Federal de Mato Grosso. Historiador do Arquivo
Público de Mato Grosso, com ingresso através de concurso público. O autor agradece aos colegas
de trabalho pelas sugestões e críticas, mas reserva o direito de assumir total responsabilidade
pelos erros e falhas. Endereço eletrônico: [email protected]
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Abstract
This article aims to defend nothing original in historical research that uses
criminal documents as source. It not only defends, but also introduces research
procedures and considerations about methodological points that are important
source that seduces researchers every day. Before, I started doing a concise
history from the historiographical use by researchers has done with criminal
process. After this part, I indicate some methodological considerations I could
work with that sources in the Management of Writing Documents of Mato
Grosso Public Archive.
Keyboards: Criminal process, truth, methodology
***
INTRODUÇÃO
Efeito Raschomon, para quem se perguntou o que vem a ser isso,
acredito que seja importante eu iniciar explicando. E para isso é necessário
recorrer a um filme e a um conto. O filme é Raschomon, de Akira Kurosawa.
Raschomon é um filme clássico de Akira Kurosawa sobre o Japão, o mais
conhecido do diretor no ocidente, e o termo Efeito Raschomon traduz o fato
de que os participantes de um evento são muito capazes de dar testemunhos
contraditórios sobre o que aconteceu.
Mas na verdade, o filme é uma adaptação de conto do escritor,
também japonês, Ryûnosuke AKUTAGAWA (2008). Kurosawa adapta o
conto intitulado “Dentro do Bosque”, mas ambienta toda trama baseado em
outro conto, chamado justamente “Raschomon”. Assim, o primeiro conto
oferece a trama e o segundo a ambientação e o título. Nesse momento, o que
nos interessa é o conto Dentro do bosque, porque é ele quem oferece a
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oportunidade de pensar a prática historiográfica do trabalho com as fontes
judiciais.
Dentro do Bosque, escrito em 1922, trata-se de um conto onde a
pluralidade de vozes, seis no total, confunde o leitor para saber a verdade do
que aconteceu. Um homem é encontrado morto dentro do bosque e as
testemunhas relatam fatos que se contradizem totalmente. Há um suspeito que
confessa o crime; há a mulher da vítima que também diz sua versão e,
inusitadamente, há a versão do próprio morto, por meio de uma médium. O
detalhe é que cada uma dessas três versões da morte são incompatíveis. O
assassino diz que matou com uma espada, após uma horrível luta onde ele
apenas conseguiu matá-lo no 23º golpe; a mulher diz que quem matou o
marido foi ela mesma, após ser violentada pelo ladrão. Não suportando a
vergonha, ambos decidem morrer. Ela então o mata, mas quando chega a sua
vez de suicidar, acaba desfalecendo; já na versão da vítima, ou seja, o próprio
morto (transmitida por uma médium), o que houve foi um suicídio. Ele foi
vítima de uma armadilha do ladrão, que o amarrou e violentou sua esposa. No
entanto, a esposa desejou acompanhar o seu agressor e ainda pediu para que
matasse o marido. O ladrão não o fez. E ele então, diante de tão intensa
calamidade, consegue sair das cordas em que estava amarrado e apanhando um
punhal de sua própria esposa, crava-o no peito. Vamos parar por aqui, só
lembrando que o conto termina sem que tenhamos qualquer esclarecimento
sobre o fato do assassinato, do suicídio ou do próprio estupro (na verdade, o
estupro parece ser, à primeira vista, o único evento em que as três personagens
concordam).
O Efeito Raschomon é, então, o efeito que se deriva quando
testemunhos de um mesmo acontecimento podem oferecer relatos ou
descrições substancialmente distintos, mas, todavia, igualmente plausíveis. E é
justamente esse efeito que, à primeira vista, pode causar ao compulsar uma
documentação judiciária e/ou policial. Afinal, como saber de fato o que
ocorreu, quando há várias versões para o mesmo acontecimento, negações,
confissões, denúncias de torturas etc.? Como os eventos são contados a partir
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de quatro diferentes versões, diferentes pontos de vista, o leitor/espectador fica
se perguntando qual das versões está correta, ou se pode confiar em apenas
uma delas. Porque não são meras versões de pessoas que apenas presenciaram
o fato, não são testemunhas “por ouvir dizer”, mas são personagens envolvidas
diretamente no evento; e mais, as versões não só são diferentes, como
totalmente incompatíveis e, no entanto, todas são igualmente plausíveis. E um
complicador é que dos três personagens (Esposa, Bandido e Samurai morto)
não tentam se inocentar, mas ao contrário, cada um busca se responsabilizar.
Assim fica difícil, não é mesmo?
Quando li o conto não pude deixar de fazer o paralelo com a
documentação judiciária. Afinal, já estava trabalhando no Arquivo Público e
passava por minhas mãos e olhos uma quantidade enorme de processos penais
dos mais variados crimes. Em não poucas vezes o julgamento final ia em
direção totalmente contrária “as provas dos autos” e os jurados acabavam
inocentando o réu, porque o mesmo não fora autor do crime. Outras vezes as
testemunhas diziam coisas tão diferentes entre si que era impossível saber quem
está de fato falando a verdade ou estava falando a verdade sob sua perspectiva.
Felizmente, no caso brasileiro ainda não temos a versão do próprio morto, pois
aí sim complicaria de vez a coisa toda: afinal, se em vida todos mentem, por
que razão o morto deveria dizer a verdade? Assim, o drama ficaria insolúvel e
daí para o relativismo, ceticismo ou mesmo o niilismo é um passo quase
automático. Diante desse novo horizonte que se abria, decidi me aprofundar no
assunto e tentar esboçar algumas idéias sobre a prática de trabalhar com
processos crimes.
O presente texto tem o objetivo nada original de defender a pesquisa
histórica tendo como fonte o processo crime1. Não só defender, como
apresentar alguns procedimentos, algumas considerações metodológicas
pontuais sobre a utilização dessa importante fonte documental que a cada dia
Quero dizer que nessa ocasião estou privilegiando os processos crimes, no entanto, as fontes do
judiciário são muito mais amplas, pois ainda comporta os Inventários e Testamentos e um
número bastante variado de ações criminais e cíveis.
1
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mais seduz pesquisadores. Antes, iniciarei historiariando, de forma bastante
resumida, o uso historiográfico que os pesquisadores têm feito com os
processos crimes. Depois desse pequeno breviário, indico algumas
considerações metodológicas que pude realizar trabalhando com tais fontes no
âmbito da Gerência de Documentos Escritos da Superintendência de Arquivo
Público.
OS PROCESSOS CRIMES NA HISTORIOGRAFIA
A intenção não é elaborar uma recensão bibliográfica exaustiva, ma
simplesmente listar algumas obras que são marcos na historiografia. A primeira
delas é Crime e cotidiano, de Boris FAUSTO (1984). Nesse estudo pioneiro,
para apresentar uma visão geral da criminalidade em São Paulo no período de
1880 a 1924, o pesquisador elabora um profundo levantamento dos crimes,
numa exaustiva quantificação estatística, cujo fim último, segundo o autor, seria
“apreender regularidades que permitam perceber valores, representações e
comportamentos sociais, através da transgressão da norma penal”, pois, ainda
segundo Fausto, “se apreendida em nível mais profundo, a criminalidade
expressa a um tempo uma relação individual e uma relação social indicativa de
padrões de comportamento”. Ou seja, seguindo a linha inaugurada por Fausto,
no estudo da criminalidade, podemos adentrar num nível mais profundo da
sociedade e encontrar, investigando a documentação judicial, padrões de
comportamento, de representações e valores sociais que, de outra forma,
poderia ser ocultado mais facilmente ou relegado às margens.
Outro estudo pioneiro foi o realizado por Maria Sylvia de Carvalho
FRANCO (1997). Ao analisar as relações entre os homens livres na ordem
escravocrata, a autora elabora uma poderosa janela para o século XIX que até
então não era vista. Contrapondo-se aos estudos que sublinhavam
excessivamente a integração e as solidariedades em detrimento do conflito, a
autora infere, tendo como matéria prima principal os processos crimes, que
havia uma mediação extremamente violenta entre os grupos comunitários, em
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que a hostilidade e a tensão formavam o código do sertão, constituído por uma
cultura da violência. E essa inferência, em minha opinião, não deve ser
sustentada e abaixo eu explico.
Acredito que um grande risco ao perscrutar a documentação judicial é
sobrevalorizar um aspecto da vida em sociedade e, consequentemente,
extrapolar o sentido do que se vê em tais corpora documentais. Como
exemplo, no caso de Maria Sylvia de Carvalho Franco, uma das primeiras
pesquisadoras a utilizar os processos crimes como fonte para perscrutar o
cotidiano das camadas pobres da sociedade; em minha opinião, ela exacerba a
violência contida nos processos criminais e acreditou descobrir uma cultura da
violência na sociedade brasileira do Oitocentos.
Não considero como sendo operacional a utilização do conceito
cultura da violência1. Não só Carvalho Franco, mas até trabalhos mais atuais
tem se utilizado desse conceito para mostrar que não vivíamos idilicamente
como os saudosistas gostam de dizer. Ivan de Andrade VELASCO (2005),
autor de um estupendo trabalho diz que “a cultura da violência marca a
sociedade oitocentista” porque “A violência constituía um ethos, que atravessa
as relações sociais”. No entanto, para consertar o que disse antes, não considero
que havia somente uma cultura de violência, mas outras culturas igualmente
importantes. Tudo bem, ao examinar rigorosamente a documentação judicial, e
mesmo a policial do período que o autor está tratando veremos sim que a
violência é “corriqueira de solução dos problemas, de enfrentamento de
conflitos...”. No entanto, o próprio processo crime é rico em informações que
vai além da violência.
É claro que quando se lê que no dia 19 de março de 1876, Maria
Josefa de Jesus desfere uma facada no baixo ventre de seu próprio pai, João
Sobre cultura, Edward Palmer Thompson ressaltou que “na verdade o próprio termo cultura,
com sua invocação confortável de um consenso, pode distrair nossa atenção das contradições
sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro de um conjunto ”. Cf:
1
THOMPSON, E.P. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 17.
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Baptista de Oliveira e o mata1; ou quando lê que Fernando Costa Leite, após ter
uma filha raptada, por Joaquim José do Espírito Santo sai a procura do raptor;
após encontrá-lo, degola-o, além de castrá-lo e depois o mata. Por fim, joga o
cadáver no Rio Cuiabá2, ou ainda que numa reza, na noite de 30 de agosto de
1930, por causa de uma pequena desinteligência entre a vítima (Benedito
Soares do Espírito Santo), que empurrou um menino, e o acusado
(Guilhermino Dias), pai do referido menino, que por causa desse empurrão
vibrou-lhe uma forte facada que lhe ocasionou a morte3, a tentação de dizer
“matava-se por qualquer coisa” e indicar que havia uma cultura de violência é
grande. Mas, a documentação judicial e policial trata especificamente dessa
ordem, dessa característica da sociedade e não podemos nos esquecer que a
sociedade não é só isso, ou seja, não está toda na documentação judicial. Se
nem mesmo a totalidade dos atos ilegais culmina necessariamente na instrução
do processo (haja vista existirem outras instâncias intermediárias que podem
servir, e servem, para evitar a manifestação do conflito, sem que seja preciso à
intermediação do Terceiro4 [a justiça]), então devemos ter em mente também
que a totalidade dos atos de solidariedade, de ajuda etc., não ficou registrada
pelos procedimentos do aparelho repressor.
Para usar um exemplo da própria Carvalho Franco, o mutirão.
Quantos mutirões existiram onde nenhuma ordem foi quebrada, nenhum
crime aconteceu? Parafraseando Ciro Flamarion Cardoso quando dizia alhures
que “uma revolta que escapa à repressão escapa à história”, podemos dizer que
um mutirão que escapou a repressão, escapou à história. Mas, aí uma
pesquisadora (FRANCO, 1997) vai tratar “dos homens livres na ordem
escravocrata” e nos diz que “a violência aparecia em toda parte, como elemento
APMT. Cartório do 6º Ofício. Série: Penal; Subsérie: Homicídio. Caixa: 059.
APMT. Cartório do 6º Ofício. Série: Penal; Subsérie: Homicídio. Caixa: 064.
APMT. Cartório do 6º Ofício. Série: Penal; Subsérie: Homicídio. Caixa: 082.
Sobre a instituição do terceiro, como caracterização da justiça, ver: RICOEUR, Paul. O justo 1:
a justiça como regra moral e como instituição. (Tradução de: Ivone C. Benedetti. São Paulo:
Martins Fontes, 2008.
1
2
3
4
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constitutivo” e que não cabe dizer que ela chegou a essa conclusão por causa da
documentação, mas porque “foi a violência entranhada na realidade social que
fez a documentação nela expressiva e válida”. Ora, é claro que cabe essa
arguição. Não fosse a autora esquadrinhar essa documentação, é bem capaz que
não chegaria a essa conclusão. Os mutirões onde ela se baseou permitiu a
inferência de uma cultura da violência. Assim, os mutirões que a autora revela
foram aqueles em que especificamente ocorreram alguma quebra da norma.
Porém, e reconheço ser forçosa a repetição, a realidade social não
está toda na documentação judicial, ela é muito mais complexa, pois comporta
além dessa suposta cultura da violência, também a da ajuda mutua, das
solidariedades, do afeto e da compreensão. E mesmo nos processos crimes
pode-se perceber um “componente de ajuste social e mesmo de convivência
social” (SOARES, 2009. p.112), para muito além da violência, ou da cultura da
violência como argumentam os autores acima citados. Tendo a sociedade
paulista da metade do século XIX, Denise Soares de MOURA (2005.) mostra
que havia um código de conduta doméstico e que “O principio da amizade
também orientava a solução de miúdas demandas cotidianas”; e ainda, mais à
frente, a autora vai dizer que além da amizade, a confiança era outro principio
recíproco e fundamenta; claro que autora não deixa menor dúvida de que esse
código de conduta familiar e doméstico não apagava o teor tensamente
hierárquico das relações sociais. Por isso, levo a sério o conselho de Frans de
WAAL (2010, p. 18-9), quando diz para não acreditarmos seriamente em
ninguém que afirme que só resta aos humanos viver lutando eternamente entre
si, já que a natureza se baseia numa luta pela vida, só resta a nós, os humanos,
viver dessa maneira. Muitos animais sobrevivem cooperando e compartilhando
os recursos e não se aniquilando uns aos outros ou conservando tudo por si
mesmos. Nesse mesmo sentido e bem anteriormente, Piotr KROPOTKIN
(2009) em Ajuda mútua, publicado em 1902, mobilizou fortes argumentos para
mostrar que a luta pela sobrevivência não é só feita de batalhas entre indivíduos,
pois a cooperação é até mais frequente do que a própria luta. Ainda segundo o
príncipe e anarquista russo, em lugar de animais atacando-se uns aos outros,
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havia um principio muito mais forte: um princípio comunitário. Levando isso
para o plano da história, se havia violência, havia também ajuda mútua,
cooperação, solidariedades1.
Outro estudo importante foi o realizado por Maria Helena
MACHADO (1987). Utilizando de forma competente os processos criminais
para analisar a vida dos escravos e suas formas de resistência. A autora nos
lembra que esse tipo de documento (os processos crimes) possibilita ao
pesquisador uma apreensão de aspectos da vida cotidiana, revelando um pouco
do dia a dia dos indivíduos, suas relações, laços de amizades e de inimizades.
Acredito que esses três trabalhos citados, mais aqueles produzidos
por Sidney CHALHOUB (1986), para quem os processos crimes representam
uma encruzilhada de muitas vozes e lutas, são marcos referencias para todo
aquele que deseja se aventurar no tema da criminalidade e tomar os processos
criminais como fontes para essa aventura.
No entanto, ao lado desses, há outros que gostaria de citar, porque
trazem importantes contribuições para se pensar a relação do historiador com
suas fontes, no caso, a documentação judicial. Em “Um herege vai ao paraíso”,
Plínio Gomes FREIRE (1997) lembra que a documentação judiciária teria um
forte teor ideológico, existindo uma infinidade de mediações a separar o fato
real da sua passagem para o papel; existiram filtros linguísticos, culturais,
burocráticos entre tantos outros. As falas das personagens envolvidas são
filtradas pela autoridade, por meio dos escrivães.
O texto já estava pronto quando tive acesso ao trabalho de Maria Cristina Martinez Soto (ver
bibliografia). À página 410, nota 533, a autora pondera que: “A ênfase na solidariedade resulta
1
insuficiente para explicar por que estas soluções estavam pontilhadas por regulares atos violentos.
Por outro lado, a associação entre violência, mecanismos de sobrevivência e ajuda mútua e
resistência explicam de forma deficiente algumas formas de violência, como a conjugal, e
desconsidera os numerosos sinais de aceitação e a vontade de integração evidenciada por esses
grupos através de seus gestos violentos”. Acredito, embora reconhecendo que é preciso me deter
mais nesse aspecto, que a autora citada não faz mais do que corroborar minha tese de que as
‘culturas’ da violência, solidariedade, ajuda mútua, etc., estavam tão imbricadas que qualquer
menção a uma delas, excluindo as demais, é desfavorável em qualquer circunstância.
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Outra historiadora que lança mão da documentação judiciária para
estudar “As práticas da justiça no cotidiano da pobreza”, é Celeste ZENHA
(1985), chegou a dizer que um processo criminal constitui uma historieta cuja
verdade final se constitui numa verdadeira fábula, pois fruto das distintas
versões apresentadas nos autos. Para a autora, apropriando-se de idéias
originalmente exposta por Mariza Corrêa em “Morte em família”, o processo
produz uma verdade final e essa verdade pode ser identificada como uma
fábula. Porque a ação que serviu para a abertura do processo, está perdida para
sempre: o que realmente ocorreu ficou perdido no tempo. Assim, o processo
produz uma verdade responsável pela condenação ou não do réu. As práticas
judiciárias produzem uma verdade dos autos e jamais a repetição do fato
ocorrido no passado que ocasionou a agressão e/ou morte. No entanto,
prossegue a autora, essa fábula não pode ser reconhecida como uma mentira.
Ela deve conter os critérios mínimos para que seja verídica. Assim, as fábulas
dos processos penais não são simples fantasias: são discursos tidos como
verdadeiros pela comunidade local. A verdade, registrada no Libelo acusatório,
é a que leva o réu ao julgamento. Se o juiz e os jurados entenderem que ela é
verídica, que aquilo de fato ocorreu daquela maneira, o réu e condenado. Se ao
contrário, a verdade não encontrar crentes o réu é absolvido.
Ao analisar a escravidão e violência em Botucatu, num trabalho
intitulado justamente Processo Crime: escravidão e violência em Botucatu,
Cesar Mucio SILVA (2004) analisa uma quantidade expressiva desses processos
conseguindo detectar que um grande número de escravos fugiam do
comportamento dito normal para os cativos: detectou desleixo e pouca
preocupação com regras e normas.
Feita essa pequena e, reconheço, insuficiente história das pesquisas
com processos judiciais na historiografia brasileira, passo a expor de forma
também breve alguns usos que essa documentação ensejou nessa mesma
historiografia
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OS PROCESSOS COMO FONTE
Pelo que vimos acima, pode-se perceber que os processos crimes já se
fazem presentes na produção intelectual brasileira há algum tempo. Porém, é
necessário ter em mente que são documentos produzidos com determinados
objetivos (mas quais não são?), sendo que para entendê-los é necessário
conhecer quem os produziu, em que momento e atendendo a que normas.
Nessa mesma direção, torna-se necessário abordar o processo crime com
criticidade e vê-lo com ele de fato é: um processo que procura a elucidação da
verdade. O Processo é uma fonte institucional, produzida pela justiça e
carregada de manifestações de interesses distintos.
Aceitando a sugestão de alguns autores (ROSEMBERG & SOUZA,
2009), podemos dizer que pesquisa com fontes judiciais e policiais, do aparelho
repressor, para utilizar uma linguagem althusseriana, enquadra-se numa
problemática mais geral sobre a possibilidade do conhecimento em geral e do
conhecimento histórico em particular. Como Carlo GINZBURG (2002. P. 45)
salientou, o conhecimento, mesmo o conhecimento histórico, é possível. Mas
vamos transformar essa afirmativa em pergunta: para além do texto, o
conhecimento de algo que se aproxima do real, o conhecimento histórico é
possível?
Como já indiquei, as primeiras leituras que fazemos dos processos
crimes causam-nos um efeito parecido com o que o leitor do conto de
Akutagawa pode ter: como descobrir a verdade, já que por vezes não se entra
num consenso sobre o crime, nem sobre o criminoso, nem também pelas
razões do crime. Assim, podemos nos perguntar: há possibilidade de construir
algum conhecimento tendo por base uma documentação tão ambígua como os
processos judiciais?
Todavia, acredito que a documentação em questão não pode ser vista
só dessa maneira, só pelo seu conteúdo ambíguo. O ceticismo epistemológico é
interessante, mas apenas como método, não como finalidade. Se formos em
busca da verdade do ocorrido, poderemos nos frustrar; mas se formos movidos
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pelo ceticismo de que nada podemos concluir, a atividade torna-se sem sentido.
Afinal, se for para o arquivo, realizar o árduo trabalho de manusear e ler a
documentação, muitas vezes dificílimo de entender, e não tirar nenhuma
afirmação, nenhuma conclusão (por mais tênue que seja) então é melhor nem
ir. Só exercício acadêmico? Na verdade, acredito que o trabalho em arquivos, a
busca pelas fontes, sejam elas quaisquer que sejam, revela que os pesquisadores
não levam muito a sério o jargão pós-moderno que coloca a história como um
discurso como o literário. Ora, se é certo que, como escreveu Mario Bunge
(Apud: CARDOSO, 2006. p. 25-6),
A execução de provas empíricas supõe a existência
autônoma do mundo exterior ao sujeito que as executa.
Sem este suposto não teria objeto buscar dados por meio de
observações, medições ou experimentos: bastaria inventá-los
ou, mesmo, ignorá-los. Em outras palavras, as operações
empíricas supõem o realismo. Em particular, pressupõem
que o objeto observado e o instrumento de observação
tenham existência independente do sujeito cognoscente.
Isto não veda que o experimentador planeje e estabeleça
seus meios de observação, valha-se deles para modificar
algumas das propriedades das coisas que observa, ou
mesmo, fabrique algumas delas, como acontece quando
produz novas partículas ou moléculas, novos materiais, ou
até mesmo novos organismos.
creio que o fato de buscarmos nos arquivos material para nossas demandas, já
supõe uma filiação, mesmo que inconsciente, a alguma forma de racionalismo
epistemológico. Procuramos provas, isso nos faz historiadores e não
romancistas! Como o historiador italiano Adriano PROSPERI (2010. P. 26-7)
escreveu recentemente, ao narrar a história de Lúcia Cremonini, que em
dezembro de 1709 matou seu filho que acabara de nascer: a tentativa de
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compreender está na origem mesma da historiografia como forma de
conhecimento. Mesmo se as respostas dadas são sempre parciais. Marcadas por
sucessos e insucessos. Mas a única coisa que resta é repetir mais uma vez a
tentativa, demonstrando a falsidade de algumas e tentando construir outras
explicações.
Creio que há, ou pelo menos deve haver, uma alternativa entre o
objetivismo absoluto e o relativismo e/ou ceticismo também absolutos. E essa
alternativa é buscar nas fontes do judiciário aquilo que elas mostram quase sem
querer. Um processo crime de homicídio, instaurado para solucionar um
crime, revela muito mais do que podemos crer.
Nesse sentido, há muitos trabalhos historiográficos que enfatizam as
possibilidades de pesquisas com a documentação judicial. Para citar um
importante exemplo, num texto bastante atual e interessante, Oswaldo
MACHADO FILHO (2008. pp. 225-6), nos diz que os processos crimes
podem nos fornecer a
possibilidade de resgatar aspectos do cotidiano cuiabano,
costumes e tradições, a ‘baixa intuição’ das pessoas do povo,
como forma de conhecer o que se contrapõe ao
conhecimento científico ou à ‘alta intuição’, tal como aponta
Ginzburg. Ainda complementa que seu pressuposto é: o de
que as falas dos juízes, advogados, promotores, peritos dos
exames de corpo de delito, escrivães, testemunhas, réus e
vítimas, ainda que em meio a um universo permeado pela
intencionalidade da maioria desses relatores que instruem o
processo, são reveladoras. Abrem novas possibilidades de
leitura, fornecem sinais e pistas que cabem ao historiador
(...) recompor, bem ao gosto de Paul Veyne, uma trama
capaz de oferecer um quadro bastante surpreendente.
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Embora extensa, não poderia me furtar de citar essa passagem, pois a
mim me parece que não poderia expressar de forma melhor as possibilidades
que o trabalho com fontes criminais oferece ao historiador interessado em
chaves de leituras alternativas ao “tal como aconteceu” ou ao seu oposto cético
de que “não podemos saber o que de fato aconteceu”. Entre uma e outra, abrese a alternativa de, escusando-se do arrogante objetivo de saber o que de fato
aconteceu, não caia no abismo cético e com isso percamos a característica
intrínseca humana de tentar saber, ou pelo menos compreender o que pode ter
acontecido.
Na verdade, ao perscrutar a documentação proveniente dos fundos da
justiça e/ou da polícia, não há como ficar indiferente. A leitura de um processo
crime instaurado para investigar um crime de homicídio, por exemplo, nunca
nos deixa indiferentes. As passagens onde são descritas quase que de forma
realística os ferimentos, as causas que motivaram o crime, as falas dos
envolvidos e tantas outras, não nos permite ficar impassível, mesmo sabendo
que não podemos fazer nada além de nos indignar ao constatar a verdade de
que a violência é algo recorrente como uma permanência histórica (RADÜNZ,
2007. P. 39), assim como outras manifestações humanas. Mesmo sabendo que
temos que manter certa distância para poder melhor avaliar, é de suma
dificuldade conseguir esse distanciamento1.
Sobre essa questão, Arlette Farge nos alerta: “perigosa, porque esse jogo de espelhos bloqueia a
imaginação, imobiliza a inteligência e a curiosidade, permanecendo confinado em caminhos
escritos e sufocantes. Identificar-se é anestesiar o documento e a compreensão que se pode ter
dele”. A autora aqui está falando da distancia que devemos ter em relação ao documento.
1
Distancia essa necessária para poder retirar do documento toda sua potencialidade. Acreditamos
realmente que o conhecimento exige esse distanciamento. No entanto, acredito também que se
pode relativizar esse postulado. Acredito que podemos sim ter uma relação bastante íntima, até
intimista com o documento e mesmo assim saber guardar a diferença. Podemos nos identificar
com o documento, ou com os sujeitos ali representados e mesmo assim não ‘operar’ o
documento de forma inconseqüente e/ou reprovável. Nesse sentido, acredito que uma dose de
empatia não faz mal ao bom andamento no trabalho do historiador. Sobretudo, quer dizer,
mesmo com os documentos judiciais e policiais. Acredito que podemos ter acesso, mesmo que
mitigado, às vidas das partes e, mesmo assim, guardar os devidos distanciamentos.
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No entanto, devemos ponderar que se trata de uma documentação
em que os personagens principais, acusados, vítimas, testemunhas não pediram
para estarem ali, pelo contrário, foram coagidas a tal pela quebra de alguma
norma e lei. Nesse sentido específico, Arlette FARGE (p. 13-4), contrapondo o
arquivo ao texto impresso, cujo fim é ser dirigido necessariamente ao público,
nos diz que:
[O arquivo] Vestígio bruto de vidas que não pediam
absolutamente para ser contadas dessa maneira, e que
foram coagidas a isso porque um dia se confrontaram com
as realidades da polícia e da repressão. Fossem vítimas,
querelantes, suspeitos ou delinqüentes, nenhum deles se
imaginava nessa situação de ter de explicar, de reclamar,
justificar-se diante de uma polícia pouco afável. Suas
palavras são consignadas uma vez ocorrido o fato, e ainda
que, no momento, elas tenham uma estratégia, não
obedecem à mesma operação intelectual do impresso.
Revelam o que jamais teria sido exposto não fosse a
ocorrência de um fato social perturbador. De certo modo,
revelam um não dito.
Mais uma vez recorrendo ao professor Osvaldo MACHADO
FILHO (2006, p. 15), quando, num soberbo trabalho historiográfico sobre um
crime e suas verdades jurídicas, diz que num processo crime, atuavam-se os
operadores “em busca de uma verdade, [e que nessa busca] cenas do cotidiano
iam se revelando, nem que fosse uma fração de tempo”. Cenas do cotidiano
iam se revelando. São essas cenas do cotidiano se revelando que fazem com
que os processos crimes sejam uma importante fonte para os historiadores.
No entanto, o arquivo judicial não foi constituído para servir de
matéria prima para o historiador. Não é essa a sua função primeira, e para
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alguns nem sequer deveria ser guardado por tanto tempo1. Nesse sentido, a
documentação proveniente do fundo judicial deve ser objeto de leitura atenta,
embora saibamos que isso deve ser praxe para todas as fontes.
Creio que não é necessário afirmar que é possível contar a história tal
como aconteceu. A fórmula rankeana2 já não guarda mais as motivações dos
historiadores. Porque a verdade tal como aconteceu é impossível de restituir
nos mínimos detalhes. Um crime de homicídio, por exemplo, está
definitivamente perdido. Mas, isso não quer dizer que devemos abdicar da
pretensão de buscar uma aproximação real do evento. E por isso, é necessário
ao historiador analisar os processos criminais de forma critica. É preciso estar
atento aos elementos que se repetem de forma sistemática, mentiras e ou
contradições que aparecem com frequência, versões que se reproduzem várias
vezes. Ler nas entrelinhas para tentar captar os não-ditos, os silêncios e atos
falhos. É necessário também um conhecimento, pelo menos parcial, das noções
de direito, do campo jurídico como um todo. Estratégias de defesa perpetradas
por advogados experientes também são bons indícios de como atuavam seus
colegas no passado.
Assim sendo, estamos convictos que análise de processos crime
fornece informações importantes sobre o que se passa numa comunidade
qualquer, como vivem, divertem, ganham a vida na sociedade do período
Embora tenha mudado um pouco, mas no senso comum ainda continua a idéia de que o
Arquivo é um lugar de guardar papéis velhos, sem importância efetiva. Na verdade, observamos
isso até entre alguns funcionários, que dizem sempre que a “papelada velha” não serve para nada,
exceto para dar trabalho e ocupar espaço que deveria ser utilizado para outro fim.
Não dá mais para fazer referência a Leopold von Ranke sem mencionar que muito do que se
sabe sobre o historiador alemão como verdade, trata-se apenas de um mito historiográfico,
inventado pelos “revolucionários” criadores dos Annales. Ranke é, na verdade, muito citado
(sobretudo sua fórmula), mas pouco ou quase nada lido efetivamente. Ver: CALDAS, Pedro
Spínola Pereira. “O Espírito dos papéis mortos: Um pequeno estudo sobre o problema da
verdade histórica em Leopold Von Ranke”. Emblemas. N 1, 2007. Disponível: Cf. também:
MATA, Sérgio da. “Leopold von Ranke”. IN: MARTINS, Estevão de Rezende (org). História
pensada: teoria e método na historiografia européia do século XIX. São Paulo: Contexto, 2010.
Pp. 187-215.
1
2
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estudado. No entanto, sabemos que a linguagem é filtrada e que,
inevitavelmente, os processos são apenas amostras de tudo isso. Pois a
quantidade de crimes é bem maior do que os processados. Quando se trabalha
com Processos crimes, seja um pesquisador visando um trabalho acadêmico ou
um profissional realizando atividade para a qual é pago, há alguns detalhes
dignos de menção. Uma delas é a quantidade enorme de sugestões para se
realizar um trabalho historiográfico. De fato, a documentação judiciária permite
várias opções para estudo e é uma fonte ainda com enormes possibilidades de
pesquisas.
É sabido que uma das maiores controvérsias da historiografia versa
sobre a possibilidade de conhecimento objetivo através das fontes. Ora,
segundo os céticos de variados escopos, é o historiador quem cria sentido, logo
a verdade está para além da possibilidade de qualquer pesquisador. O que antes
poderia ser um conselho bem vindo acabou gerando a total abstenção de tentar
encontrar algo parecido com o real nas pesquisas históricas. A busca da verdade
está sendo conhecida como “prática extravagante”1.
No entanto, como já deixei claro um pouco antes, acredito que as
alternativas não se resumem apenas entre um positivismo absoluto ou o
ceticismo também absoluto. Creio que pode, deve haver uma solução, uma
terceira via (embora o termo não me agrade, lembranças de Giddens) entre um
e outro. E essa alternativa fui buscar, ou estou buscando em um autor que
pouco ou quase nada sabemos: Sebastian Castellion.
Só para exemplificar, ver essa passagem: “Se a linguagem é incerta, então o conhecimento que
adquirimos através dela é igualmente indeterminado. Isso significa que não é possível construir
narrativas verdadeiras como explanação histórica. Apesar do argumento posestruturalista de
Derrida e Barthes (...), a maioria dos historiadores ainda insiste na prática excêntrica de ler textos
(documentos e narrativas históricas) para localizar a verdade”. MUNSLOW, Alun.
Desconstruindo a história. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 47. Apud: AMED, Fernando. “Das
possibilidades do conhecimento histórico quando aproximado do ceticismo radical”. História da
historiografia,
nº
4,
março
de
2010.
Pp.
163-77.
Disponível:
http://www.ichs.ufop.br/rhh/index.php/revista (Acesso: 29/07/2011)
1
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No período da vida de Castellion1, com a Reforma Luterana, instalouse uma contenda filosófica sobre a veracidade e a capacidade de encontrar a
verdade. Na famosa disputa entre Católicos e luteranos, Castellion, autor dos
livros “Sobre os Heréticos” e “Sobre a arte de duvidar”, argumentou,
contrapondo-se os defensores da tradição como autoridade, mas também
aqueles que sugerem uma verdade subjetiva, optando por destacar que, o
critério seria “a razão e os sentidos que, por serem limitados, não permitem o
alcance de um conhecimento provido de certeza absoluta”. E aí ele vai propor
o que mais me interessa no momento: Não sendo possível a certeza no
conhecimento religioso, é possível discernir graus de probabilidade e de
razoabilidade: o conhecimento é limitado em escopo e a certeza alcançável é só
probabilística e razoável, até que, por meio de outras operações, decrete a
falsidade da mesma2
É essa afirmativa que levo em consideração ao perscrutar as fontes
criminais. Ora, é claro que não podemos obter o acesso ilimitado ao que de
fato aconteceu. Mas isso não significa que podemos fantasiar/fabular e escrever
o que quisermos sobre o que estamos tratando3. Existem graus de probabilidade
O parágrafo está baseado em uma resenha do livro de Richard Popkin. Infelizmente ainda não
consegui encontrar os livros de Castellion. Mas creio que para o objetivo presente, isso não
compromete a argumentação. (Ver bibliografia)
Isso remete a questão do falsacionismo de Karl Popper. Julio Aróstegui comenta: “Existem
1
2
aproximações científicas que terminam não em leis ou teorias, mas no descobrimento de
tendências probabilísticas, de tipologias redundantes ou da necessidade de concorrência de
elementos constantes e precisos para que se produzam certas conjunturas históricas. A isso se
chega com o uso de generalizações empíricas, ainda que imperfeitas, e podem ser produzidas
explicações que, se não são completas, são, certamente, refutáveis, falseáveis, na terminologia de
Popper, o que é uma prova de sua cientificidade”. P. 79.
Numa polêmica bastante acirrada, Elione Silva Guimarães e Francisco Carlos Limp Pinheiro
fazem denúncias graves às professoras doutoras Cláudia Maria Ribeiro Viscardi e Mônica de
Oliveira, autoras de capítulos do livro “Solidariedades e Conflitos: Histórias de vida e trajetórias
de grupos em Juiz de Fora”, organizado por Célia Maria Borges. Os autores denunciam
principalmente o uso inadequado das fontes, no caso, os processos crimes. Argumentam que a
professora Cláudia Viscardi, não tendo a devida preocupação no trato com os processos crimes,
trocou nomes, datas, entre outros detalhes e que, com isso, pela falta de seriedade, ao narrar fatos
que não existiram, escreveu um romance em vez de História. É por isso que defendemos o uso
3
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e razoabilidade, conseguidos por meio de nossa empatia com o mundo e as
pessoas, derivadas das próprias fontes.
Graus de probabilidade e razoabilidade. Acredito que existe nos
processos um grau de plausibilidade para além de toda ambiguidade; não
podemos nos esquecer que o processo ou um lastro de possibilidade em que o
pesquisador se escudaria. Isso porque é necessário dividir o processo criminal
em dois momentos distintos e muitas vezes irreconciliáveis: a apreciação
judiciária (realmente desvirtuada pelas representações sociais vigentes) e a
construção das circunstâncias, em que a plausibilidade se sustenta. Como
argumenta André ROSEMBERG (2007. P. 23) Muitas vezes, o desfecho do
processo (sentença) e o andamento da “construção da verdade” não apresentam
vínculos lógicos e é sob essa óptica que deve trabalhar o historiador na
execução de seu ofício. Isso fica evidente quando, após a leitura de todo o
processo, estamos quase convictos de que o réu é mesmo o autor do crime,
ficamos convictos que o mesmo irá ser condenado ao grau máximo que a lei
ordena; mas aí, eis que na sessão do júri em que ele é julgado, os jurados
respondem “não” ao quesito sobre a autoria do crime e o réu, que até então
tínhamos como certo ser o autor, acaba se livrando, julgado inocente e
das fontes sob regras, o que nos situa no campo da historiografia e não da literatura. Ver toda a
polêmica, com as críticas, réplicas tréplicas em:
http://historia_demografica.tripod.com/bhds/bhd22/1-critica.pdf
http://historia_demografica.tripod.com/bhds/bhd22/2lista.pdfhttp://historia_demografica.tripod.com/bhds/bhd22/3-replica.pdf
http://historia_demografica.tripod.com/bhds/bhd22/4-solidar.pdf
http://historia_demografica.tripod.com/bhds/bhd22/5-final.pdf (Acesso a toda a polêmica:
29/07/2011). O que toda essa polêmica mostra de forma cabal é que não podemos inventar
coisas que não aparece nos processos criminais. Mesmo tendo a tentação de tentar descobrir algo
além do que está narrado e descrito, o espaço de invenção é bastante restrito, em se tratando de
trabalho historiográfico, onde as regras da profissão devem sempre ser levadas a sério. Ou fazer
como fez a pesquisadora Ana Foa (ver bibliografia), quando apanha alguns casos verídicos e
extrapola a leitura e inventa um conjunto de oito histórias que, embora baseadas nos fatos que os
processos narram, são construídas como romances. No entanto, a autora faz questão de
esclarecer a fronteira entre história e romance.
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absolvido de todo o processo, pois os jurados não o consideram com autor do
crime.
O PROCESSO CRIME: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
METODOLÓGICAS
Ao compulsar e examinar a documentação judicial e/ou policial,
alguns procedimentos a priori devem ser elaborados. E são sobre esses
procedimentos que tentarei realizar algumas reflexões. Aqui, parte-se do
pressuposto que o interessado já realizou todo o levantamento prévio sobre as
fontes, ou seja, aquela etapa em que todos os manuais de pesquisa histórica nos
manda: antes de realizar a pesquisa em si, é necessária uma definição prévia,
uma busca incessante para saber onde encontrá-las e em que estado físico se
encontram. Assim, reiterando, parte-se do principio de que essas reflexões são
para quem já realizou essa etapa e só espera colocar as mãos à massa.
Antes mesmo de aventurar-se numa pesquisa em arquivos com a
documentação judicial (aliás, com qualquer documentação), a primeira coisa é
lembrar que os processos não existem para que os historiadores e cientistas
sociais façam pesquisa. Não foram feitos para servir ao historiador, mas sim
para apurar, investigar alguma demanda. Os documentos judiciais não estão lá
como que só esperando alguém vir desvendá-lo. Transformar um processo em
fonte histórica é uma operação de escolha e seleção feita pelo historiador e que
supõe seu tratamento teórico e metodológico no decorrer de toda pesquisa
desde a definição do tema à redação do texto final.
Depois, acredito ser necessária ter uma visão, pelo mesmo espacial,
dos distintos diplomas legais que regeram a execução da justiça no Brasil. Saber
que o Brasil possuiu diferentes códigos penais e diferentes códigos de processos
penais. É fundamental essa questão para poder entender um processo. Para dar
um exemplo, a tipologia criminal. O crime de Defloramento, tão afamado por
estudos clássicos da historiografia brasileira, só teve essa nomenclatura no
Código Penal da República de 1890. No anterior, o Código Criminal do
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Império, não existia a figura tipológica, mas sim (ver). Já no Código Penal de
1940, que é o vigente ainda nos dias de hoje, o mesmo fato, ou seja, deflorar
mulher, torna-se a figura da Sedução. Assim, é necessária uma visão
panorâmica dos distintos marcos legais, sobretudo os códigos de processos,
para poder entender a dinâmica da sociedade em termos de criminalística.
Estou de acordo com Carlos BACELLAR (2005. P. 44) quando diz
que nós historiadores “deveria[mos] ter preocupações em conhecer o
funcionamento da máquina administrativa para o período que se pretende
pesquisar”. De fato, sem uma compreensão pelo menos mínima de como
funcionava a máquina administrativa de outrora, o trabalho com as fontes se
torna muito menos factível, embora também não deva ser empecilho para tal
empreendimento.
Outro item fundamental para quem deseja se aventurar no trabalho
com fontes da justiça é saber que se trata de um tipo de documento onde a
dialogia se faz presente nitidamente. Embora já falamos sobre isso, é
fundamental saber que um processo, seja criminal ou civil, é um documento
onde há muitas vozes se entrecruzando.
Um processo criminal, basicamente é formado pelo seguinte
estrutura:
1.
Denúncia
Embora seja a primeira folha de um processo crime, ela é uma peça elaborada
após o término da fase policial, ou seja, a fase do Inquérito policial. A partir dos
distintos procedimentos e indícios, e a partir do relatório do delegado, o
Promotor pede a Pronúncia do indiciado. Ou, se ele não estiver satisfeito e os
indícios não forem seguros, ele pode mandar baixar o Inquérito novamente
para a polícia ou pedir o arquivamento, nesse caso, se ele estiver convicto da
inocência do indiciado.
2.
Auto de Corpo de Delito;
Peça fundamental de todo o processado. É só por meio do corpo de delito, ou
exame cadavérico, que se constata que houve o crime. Embora se trate de peça
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fundamental, vê-se que somente no século XX é formado um corpo pericial
especializado para a feitura de tais exames. (lembrar o relatório)
3.
Auto de perguntas ao ofendido;
Só válido, é claro, quando o crime não for de homicídio consumado. Aqui, a
vítima dá a sua primeira versão do acontecido. A linguagem usualmente
utilizada é de denúncia.
4.
Auto de Qualificação e perguntas ao acusado
Aqui, qualifica-se o acusado. As perguntas são padronizadas, dependendo do
marco legal, isto é, o Código de Processo Penal ou Civil. Nesse momento,
ainda no âmbito policial, normalmente os acusados prestam declarações mais
extensas e pormenorizadas. Nesse momento ele ainda não se faz acompanhar
por seus patronos, logo, a sua versão ainda pode ser vista como algo natural,
embora mesmo aqui o grau de naturalidade possa ser inferido, mas nunca
sabido verdadeiramente. Até porque, mesmo se há naturalidade na fala do
acusado, o filtro do escrivão e o encaminhamento das questões por parte da
autoridade policial. No Inquérito Policial não oferece ao suspeito a
oportunidade do contraditório, a mesma que terá no âmbito judicial. Como diz
Hélio Tornaghi (Apud: MARZAGÃO JÚNIOR. p. 50), “o caráter inquisitório
significa que a autoridade policial enfeixa nas mãos todo o poder de direção”.
5.
Inquirição de testemunhas
As primeiras testemunhas são ouvidas para fundamentar o relatório do
delegado.
6.
Relatório do delegado;
Peça que encerra a fase inquisitorial. É nele que o delegado expõe, de forma
detalhada, todos os indícios e provas que levam ao acusado, fazendo-o autor do
crime. Essa peça deve ser lida com bastante critério. Primeiro porque o
delegado tem um prazo para o encerramento do Inquérito, logo, ele não pode
ficar muito tempo para proceder outros atos. E mais, o delegado, como os
inquisidores, deseja, geralmente, a incriminação do acusado, pois isso o faz
competente. Ora, se ele prendeu o acusado e depois
[154]
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7.
Denúncia (Tudo que já falei, mais o fato de que é nesse momento que
o acusado, a partir da denúncia se torna um denunciado.
8.
Inquirição de testemunhas (Atentar para as diferenças entre
testemunhas de acusação e testemunhas informantes. O que é uma testemunha
informante? E mais: o Código de Processo exige, sempre, o número de
testemunhas para cada caso. Atentar para esse fato.
9.
Interrogatório
Nesse momento, o denunciado, já devidamente orientado, presta declarações
sucintas. Como diz Boris Fausto, o denunciado responde ao que é perguntado
não para esclarecimento da verdade, mas para sua própria defesa. Assim, as
versões, nessa fase, são quase padronizadas, a individualidade quase some de
vez. Não há mais individuo, mas há O DENÚNCIADO, o sujeito que deve,
necessariamente, construir sua imagem, de acordo com os preceitos legais.
Imagem essa que ajudará na sua absolvição, a sua Impronúncia como autor do
ato criminoso. Mais uma vez recorrendo a Boris Fausto, percebe-se nitidamente
que o acusado, sua fala, vai se apagando, à medida que os feitos se aproximam
do final. Agora ele só fala por meio do advogado, em momentos oportunos.
10.
Pronúncia
De posse de todo o processado, o juiz então irá decidir se o denunciado é ou
não passível de julgamento. Se a culpa estiver provada, o magistrado
pronunciará o denunciado, operando mais uma transformação: de denunciado,
agora nosso cidadão será réu num processo e terá seu nome lançado no rol dos
culpados. Enfim, nesse momento, para o judiciário já ficou provada a
culpabilidade do acusado. Ele já é um criminoso. Mas, no nosso sistema
judicial, os juízes não são os agentes da pena. Isso é feito pela sociedade, por
meio do Tribunal de Júri.
11.
Libelo;
Como o réu foi pronunciado, agora cabe ao Promotor dizer por qual crime ele
será julgado pela sociedade. No libelo, que também e uma peça quase
padronizada, a autoridade da Promotoria diz que irá provar que “em
determinada data houve um crime” e que o réu é o autor de tal crime. E pedirá,
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de acordo com o diploma legal (Processo Penal), que os jurados o julguem
culpado.
12.
Interrogatório
13.
Julgamento
Pela experiência retirada da leitura de mais de mil processos, pude perceber
que o julgamento na sessão do júri é o que de fato determina a sorte do réu.
Nada, ou muito pouco vale todos os procedimentos anteriores. Nos processos
lidos, percebe-se que o que é levado em conta nessas sessões são as
argumentações da defesa e da acusação. Infelizmente, não há as transcrições
dessas falas, mas infere-se que, dependendo do status do réu, da vítima ou das
famílias, ele é julgado culpado ou inocentado. É nessa fase que o juiz elabora os
quesitos pelos quais os jurados responderão e, consequentemente, decretará a
sorte do infeliz. Os quesitos são elaborados tendo o libelo como fonte, pois o
réu não será julgado pelo que não consta na tal peça (o Libelo).
14.
Apelação
15.
Novo Julgamento
16.
Sentença
Importante salientar que o Inquérito policial, existente na nossa
realidade desde 1871, remetido ao juiz, mesmo se após esse envio for
arquivado, a peça documental deixa de ser Inquérito e passa a terminologia de
Processo Crime e/ou Sumário Crime. Um Inquérito só permanece assim se ele,
por algum motivo não for enviado; se o delegado ou o responsável pela sua
execução não conseguir por termo às diligências e, assim, não o terminar. Nesse
caso, a peça ficará sob domínio da polícia e depois remetida às instancias
arquivísticas.
Em todas essas fases, é importante que tenha claramente o sentido de
que trata de um processo de construção, da busca da verdade. O produto final
dessa investigação, ou seja, o processo criminal só ganha essa forma quando os
trabalhos são efetivamente terminados. E mesmo assim, caso o réu tenha sido
condenado, ainda há os pedidos de livramento condicional, perdão de pena,
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soltura. O que eu quero chamar a atenção é que não devemos tomar o
processo como hoje e não levar em consideração que as personagens
envolvidas não tiveram a mesma consciência que nós agora já temos, ao
manuseá-los. Cada passo era dado sem o conhecimento dos resultados e tendo
que seguir as regras que os diplomas legais (Códigos de Processos)
determinavam. Nesse jogo1, em que cada uma das partes envolvidas jogava para
ganhar, há a possibilidade de entrever aspectos da sociedade e, por que não, do
crime que motivou a demanda.
Assim, acredito que um passo importante ao ler um documento
judicial é ater-se, primeiramente, ao que está dito de forma evidente. Embora
levando também em consideração a ressalva que Jacob GORENDER (1991. P.
24) faz quando diz que “Não cabe tomar o processo judicial ao pé da letra...”.
No entanto, por mais que tenhamos que ler nas entrelinhas, olhar por trás dos
documentos para ver as tramas escondidas, observar os não-ditos e todos os
procedimentos metodológicos exigidos, é imprescindível que, num primeiro
momento, nos atenhamos no que de fato está escrito, pois isso diminui a
possibilidade de trocar nomes, personagens, sentenças, procedimentos. Uma
boa leitura e anotação do processo até sua última folha pode minimizar esses
erros. Nada pior do que ler um trabalho historiográfico ou não e perceber que
o autor ou autora troca os nomes: o que era réu virou testemunha e vice versa2.
Ou diz que o réu foi condenado a tantos anos quando, na verdade, nem
julgamento houve. Enfim, a leitura densa deve começar, primeiramente, pela
parte mais visível do documento.
É importante também buscar o cruzamento de fontes, quando for
possível.
Sobre a relação entre o direito e o jogo, Johan Huizinga escreve: “A possibilidade de haver um
parentesco entre o direito e o jogo aparece claramente logo que compreendemos em que medida
a atual prática do direito, isto é, o processo, é extremamente semelhante a uma competição, e isto
sejam quais forem os fundamentos ideais que o direito possa ter”.
Ver supra, nota 7.
1
2
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FINALIZANDO
Retornemos ao conto de Akutagawa. Como disse acima, o conto
termina sem que tenhamos qualquer certeza sobre os fatos assinalados. Ficamos
com aquele gosto de falta de sentido, uma vez que não conseguimos detectar
quem fala a verdade no conto: o marido morto, o bandido ou a esposa.
Segundo alguns intérpretes da obra de Akutagawa, o conto pode ser descrito
como uma metonímia de julgamentos de crimes de guerra ocorridos após a 1ª
Guerra Mundial, em que os depoimentos dos acusados, analisados
individualmente, pareciam indicar sempre a própria inocência. Assim,
podemos inferir, aceitando a sugestão desses críticos, que Akutagawa não quis
escrever um conto expondo a incapacidade humana de descobrir a verdade, ou
pelo menos se aproximar dela, mas efetivar uma crítica bem circunstancial. Ou
seja, não era um convite ao abandono da busca, ou da impossibilidade da
verdade, mas uma denúncia.
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SOROCABA ÀS VÉSPERAS DA EMANCIPAÇÃO DE ESCRAVOS:
UMA ANÁLISE DA SEMANA NO DIÁRIO DE SOROCABA
Patrícia Leardine1
Resumo
A decisão de por fim à escravidão em Sorocaba ocorreu no Natal de 1887,
meses antes da abolição da escravidão no Brasil. Durante a semana da
emancipação, o jornal “Diário de Sorocaba” convida os proprietários para
discutir as futuras mudanças sobre trabalho. A preocupação quanto à vadiagem
atribuída aos escravos transborda por entre as páginas, enquanto proprietários
de escravos concedem “liberdade limitada”.
Palavras-chave
Emancipação de escravos, Brasil Império, escravidão em Sorocaba.
Abstract
The decision to put an end to slavery in Sorocaba occurred on Christmas of
1887, months before the abolition of slavery in Brazil. During the week of
emancipation, the newspaper “Diario de Sorocaba” invites the slaveholders to
discuss future changes about work. Concern about truancy attributed to the
slaves spills through the pages, while slaveholders grants “limited freedom”.
Keywords
Slaves emancipation, Brazil Empire, slavery in Sorocaba.
Graduada em História pelo Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio de Itu. Trabalho
de conclusão de curso orientado por Fábio Casemiro. Professora autônoma de História em
Sorocaba.
Correspondência: Rua Antídio de Oliveira Santos, 321 CEP: 18103-155 Sorocaba – SP.
E-mail: [email protected]
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INTRODUÇÃO
"(...) a ignorância do passado não se limita a prejudicar a
compreensão do presente; compromete, no presente, a
própria ação".
Marc Bloch
Perguntei-me o que poderia ter acontecido aos escravos em Sorocaba
após a emancipação. Inicialmente, percebia que compreender tal processo era
buscar por eventos muito específicos numa realidade feita no plural.
Decidi utilizar algumas edições do Diário de Sorocaba considerando
que, “A imprensa constitui um instrumento de manipulação de interesses e
intervenção na vida social”1.
Utilizar os jornais não é fazer uma pesquisa sem rigor, tampouco é
preciso verificar verdadeiro ou falso como a produção histórica tradicional
pedia. Segundo Capelato, "todos os documentos são ao mesmo tempo, falsos e
verdadeiros”2. A tarefa é chegar à construção do significado aparente, analisar as
condições de produção da fonte.
Através das edições do Diário de Sorocaba3 pretendo analisar como o
jornal vê o negro, escravo e liberto às vésperas do fim da escravidão. Durante a
pesquisa a novidade veio: Sorocaba havia emancipado seus escravos um ano
antes de maio de 1888. Mas por quê? Carlos Cavalheiro4 conta que,
"Às portas da abolição da escravatura, a cidade de Sorocaba
já possuía algumas fábricas, uma das quais era têxtil de
grande porte, uma estrada de ferro, capital obtido com o
CAPELATO, Maria Helena Rolin. A imprensa na história do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1988.
Ibid.
Publicações de 20 a 24 de dezembro de 1887 e de 27 a 28 de dezembro de 1887.
CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Scenas da escravidão: breve ensaio sobre a escravidão negra
em Sorocaba. Sorocaba: Crearte, 2008.
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tropeirismo (tanto no mercado de animais como na
prestação de serviços e no comércio em geral) e com a
produção e comércio de algodão".
Nesse contexto de firmamento capitalista os escravos eram mais
custosos porque correspondiam a um capital que, segundo Prado Junior1, dura
a vida de um indivíduo numa forma de “adiantamento em longo prazo” de seu
trabalho, enquanto que o assalariado trabalha sem o adiantamento, portanto, o
capitalismo dispensaria a escravidão.
Segundo Cavalheiro2, a modernização capitalista se intensificou em
Sorocaba a partir do cultivo do algodão, do surgimento de máquinas, do
processo de urbanização, e também do surgimento de outras indústrias, usando
o trabalho livre e assalariado. O cultivo também precisava do transporte por
ferrovia, o que implicou numa rede de modernizações na cidade.
Segundo Andrews3, anos depois da emancipação da colônia, o tráfico
de escravos é proibido (1831), mas a lei é desobedecida. Somente em 1850
acontece o fim do tráfico no Brasil, e o comércio de escravos continua
acontecendo internamente. Nesse momento, aumenta a pressão diplomática
para abolir a escravidão. Iniciam-se as concessões de liberdade: os escravos
passam ter a oportunidade de serem ouvidos em tribunais. Rebeliões, que
anteriormente já ocorriam, continuam existindo. Diante de uma população
escrava exigindo sua libertação, a elite se preocupa com revoltas e sobre um
"futuro" após a abolição.
Segundo Cavalheiro4, após a proibição do tráfico, Sorocaba começa a
receber escravos de outros estados brasileiros. Quanto ao número, Straforini1
PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Scenas da escravidão: breve ensaio sobre a escravidão negra
em Sorocaba. Sorocaba: Crearte, 2008.
ANDREWS, George Reid. Escravidão e abolição, 1800-1890. In Negros e brancos em São
Paulo (1888-1988). São Paulo: EDUSC, 1998.
CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Scenas da escravidão: breve ensaio sobre a escravidão negra
em Sorocaba. Sorocaba: Crearte, 2008.
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comenta que o abastecimento de escravos era menor, pois a sociedade estava
baseada na atividade tropeira e na pequena propriedade rural. O escravo negro
em Sorocaba foi usado tanto no campo como na cidade. Havia escravos de
ganho e artesãos. Na indústria, trabalharam na fábrica de ferro (Fábrica de
Ferro de São João do Ipanema), na produção de chapéus e têxtil, como
comenta Cavalheiro2.
No processo para alterar as condições escravistas, havia defensores da
causa como também os que eram inflexíveis. Porém, os escravos também
tentaram mudar essas condições. Segundo Cavalheiro3, exigiam melhoria no
trabalho, atraiam donos para conseguirem carta de alforria, acumulavam ganhos
para comprar a liberdade, fugiam, organizavam levantes, quilombos, ou então,
viam através da morte outra vida: contraiam doenças incuráveis ou cometiam
suicídio.
ÓCIO, VADIAGEM E DESORDENS
Pretendo começar esta pesquisa analisando os artigos que tratam sobre
as questões de ócio, vadiagem e desordens de negros, escravos e libertos.
O comentário do Jornal dos Economistas (Rio de Janeiro) publicado na
capa da edição de 20 de dezembro de 1887 em comemoração ao aniversário
do Diário de Sorocaba diz que, “(...)É um dos jornaes da provincia que muito
se sobresahe, pela parte activa que toma nas discussões dos problemas
economicos e sociaes que pendem de solução em nosso paiz". Esse é apenas
um artigo para podermos começar a compreender a existência de articulações
entre jornais de outras províncias: compartilhamento de questões políticas da
época.
STRAFORINI, Rafael. No caminho das tropas. Sorocaba: TCM, 2002.
CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Scenas da escravidão: breve ensaio sobre a escravidão negra
em Sorocaba. Sorocaba: Crearte, 2008.
Ibid.
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Ainda nessa edição, outro artigo traz uma citação do Jornal do
Commercio (Porto Alegre) sobre “as maiores necessidades que nos opprime”: a
questão dos escravos em meio às pressões de cessar a escravidão, enquanto se
perguntavam o que fariam com seus criados e futuros libertos:
Quando se trata de libertar os escravos que ainda existem
para provincia, è necessário que tambem alguma cousa so
faça no sentido de, garantindo o bem-estar social, obrigal-os,
libertos, ao trabalho1.
O mesmo artigo sugere a criação de colônias e estabelecimentos em
que libertos encontrem trabalho e "sejam a elle obrigados", é a ideia de que é
incorreto libertar escravos sem providências que garantam trabalho aos libertos,
pois se acreditava que eram inclinados ao ócio e desordem.
Há uma queixa sobre a "criadagem" que afirma que antes os escravos
não levantavam "clamores", mas agora com os libertos, "poucos elles servem",
retiram-se ou deixam a família (acreditavam que se o escravo não fugia era
porque tinha medo dos castigos).
Um abolicionista teria mencionado que a necessidade os levaria ao
trabalho, e que a província tampouco sofreria com a libertação. O artigo
discorda, “(...) poderiamos oppôr innumeros factos passados n'esta capital,
onde crescido numero de libertos preferem a ociosidade ao trabalho, tornandose assim elementos de desordens”2. Apesar dessa associação, o artigo concorda
com a libertação, sendo o trabalho livre “o único admissivel".
“(...) Acostumou-se a pensar que os escravos não estariam prontos para
a vida em liberdade. Entretanto, parece ser o contrário: os proprietários é que
não estavam preparados para viver sem eles”3. Era essa preocupação com a
Diário de Sorocaba, 20 de dezembro de 1887.
Diário de Sorocaba, 20 de dezembro de 1887.
CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Scenas da escravidão: breve ensaio sobre a escravidão negra
em Sorocaba. Sorocaba: Crearte, 2008.
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transição de trabalho que escorria dos artigos do Diário de Sorocaba às
vésperas da emancipação.
Contudo, não era somente através da obrigação ao trabalho que o
jornal representava o escravo e negro naquele momento. No artigo
Magistratura1, um juíz da comarca de Palma que “nunca julgou um só caso” é
retratado como um suplente de cor preta que mal escreve o nome. Não
coincidentemente, destacar a cor e a incapacidade era importante. Em outro,
trechos do Diário de Notícias da Corte contam sobre mulher que abandonou
parto por saber que a paciente era escrava. Dentre anúncios sobre presuntos,
sabonetes, querosenes, sandalhas, lampeões elétricos, cigarros, alguém
precisava de um quitandeiro “livre ou escravo”.
Na edição de 21 de dezembro de 1887, o artigo “Não temos policia”
opina sobre uma desordem ocorrida na Estação Sorocabana em que as pessoas
estavam armadas, e segundo Aluísio de Almeida2, tentavam embarcar os
escravos, mesmo contra a vontade de polícia:
A' sahida dos trens da manhã e uma hora agglomeram-se
grupos de mais de 300 pessoas armadas de cacetes,
garruchas e navalhas que ameaçam à entrada da estação
sorocabana, todos quantos presumiam que iam alli impedir
o embarque de escravos e depois percorrem a cidade em
gritaria infernal.
A policia, ou por sentir-se fraca, ou por ciminoso pacto com
os anarchistas, nem lá apareceu! Triste! Triste!
Ainda na edição, um aviso sobre a Reunião Emancipadora, que
acontecerá dia 25 de dezembro na Câmara Municipal, promete resolver a
Diário de Sorocaba, 20 de dezembro de 1887.
CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Scenas da escravidão: breve ensaio sobre a escravidão negra
em Sorocaba. Sorocaba: Crearte, 2008. Apud ALMEIDA, Aluísio de. A feira de 1852: as feiras e
os jornais da época. In Cruzeiro do Sul, 04 de janeiro de 1981, p.13.
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situação dos escravos e impedir a vadiagem “não se permittindo vagarem pelas
ruas sem occupação honesta individuos de qualquer côr ou nacionalidade”1.
Outro conflito, dessa vez entre duas mulheres, aparece na edição do dia
23 de dezembro. Na rua Santa Clara, uma “preta” teria atacado uma mulher
com um cabo de vassoura:
(...) a preta armada de uma cabo de vassoura convidou a
dita mulher a fim de receber - aquelle genero de pagamento;
a mulher, porem vendo a moeda, não quiz entrar. Após
algumas trocas de palavras, sahiu a dita preta enfurecida,
derrubou a mulher, que pelo que parece achava-se um
pouco alcoolisada, montou-a sobre a mulher que então
cahira de costas, e peguando-lhe na garganta pretendia
estrangular (...)2
MANUMISSÕES
Às vésperas de emancipação de escravos os artigos que anunciavam as
alforrias de escravos são publicados em todas as edições sob o título de
“Manumissões”. Francisco, Quirino, Vicente, Joanna e Paula são anunciados na
edição do dia 21 de dezembro como libertos. Estão sob a condição de
prestarem serviços por mais um ano. Sob as mesmas condições, David, José,
Candido, Brasilio, Amadeu, Firmino, Armindo, Antonio, Ignez, Elisa,
Gertrudes, Brasilia, Francisca "parda" e Francisca "preta". O artigo ainda
menciona o coronel Francisco Ferreira Prestes concedendo a liberdade a todos
os trinta escravos, inclusive aos já fugidos!
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2
Diário de Sorocaba, 21 de dezembro de 1887.
Diário de Sorocaba, 23 de dezembro de 1887.
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Mais declarações de manumissões são vistas em outras das edições
analisadas. Alguns ainda estavam sob a condição de prestarem serviços, tendo
escravos que receberam e não receberam suas cartas de alforria.
O dia 23 de dezembro anunciava a escrava Benedicta, 25 anos,
comprando sua liberdade por 100$000, e enquanto outros “libertos” estavam
sob prestação de serviços, um proprietário concedia liberdade sem cláusula a
sua escrava, Rita, 38 anos.
As alforrias ocorriam em massa (entre 1885 e 1887), conta Cavalheiro1.
As condicionais diziam que o escravo deveria servir por alguns anos, o que dava
"segurança" ao seu proprietário, "isso porque se acreditava que os escravos não
estavam preparados para a vida em liberdade dado suas más inclinações"2.
Até a edição de 25 de dezembro, as manumissões acompanham um
aviso aos proprietários de escravos na cidade. Os artigos anunciam e convidam
à “Reunião Emancipadora” que acontecerá no Natal, “afim de resolver-se
pacificamente a emancipação completa de escravos (...) sem desorganização do
trabalho”3. Na edição do dia da Reunião, o aviso ainda enfatiza que os
propósitos são “altamente humanitarios e civilisadores”.
A partir dos artigos do Diário, percebemos que o público que o jornal
se destinava fazia parte da classe proprietária da sociedade sorocabana, mas isso
não quer dizer que não pudessem existir outros leitores. Contudo, os avisos
eram exclusivos aos proprietários de escravos, e havia outros artigos de leitores
e correspondentes que discutiam assuntos econômicos, estrangeiros,
publicados, às vezes, misturando francês ou alemão ao português. Sem falar dos
“Folhetins”, capítulos de romances que prezavam “bons costumes” e
delineavam suas histórias à sociedade católica, como em “Como ella o amava”4,
CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Scenas da escravidão: breve ensaio sobre a escravidão negra
em Sorocaba. Sorocaba: Crearte, 2008.
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Ibid.
Diário de Sorocaba, 22 de dezembro de 1887.
Diário de Sorocaba, 21 de dezembro de 1887.
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Revista História
Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831
uma narrativa sobre soldados, tiros, Igreja e boas moças que foram possuídas
por demônios.
O artigo “Educação do Povo”1 valoriza o estudante segundo "idéias
adiantadas nos ramos que avançam para atingir a inteligência dos homens:
noção do justo (direito), princípios corretos (política), prolongar a vida
(medicina), riquezas do povo (artes)”. Já o Colégio do Santíssimo Coração de
Jesus, pago e somente para mulheres, baseia-se na “educação intelectual" tanto
para o lar como para a sociedade2. Esses artigos têm seu caráter liberal e elitista,
pois fazem parte de uma realidade muito diferente dos escravos, libertos e
trabalhadores pobres. Em exemplo de oposição à cultura religiosa popular, o
artigo "Spiritismo"3 declarava que um homem teria saltado de um navio no Rio
de Janeiro por conta de "perseguição dos espíritos", esse é colocado como
vítima da "perigosa monomania spirita".
Apesar do teor abolicionista, segundo Cavalheiro4, posição mais clara a
partir de 1885 quando o Diário está contra abolição apressada e formas ilegais
de tirar o escravo do cativeiro, o jornal ainda não cede espaço aos valores
culturais dos negros ou libertos.
SOROCABA REDIMIDA
O artigo “Sorocaba Redimida” dizia às vésperas da emancipação de
escravos que,
(...) Os genuinos sorocabanos, os legitimos herdeiros de um
nome glorioso, bem assim aquelles que vieram conviver
Ibid.
Diário de Sorocaba, 23 de dezembro de 1887.
Diário de Sorocaba, 28 de dezembro de 1887.
CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Scenas da escravidão: breve ensaio sobre a escravidão negra
em Sorocaba. Sorocaba: Crearte, 2008.
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Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831
comnosco na vida do trabalho honesto, nunca basearam as
suas fortunas no sólo regado com o alheio e sangrento suor1.
Porém, Sorocaba já havia sido regada sobre o alheio e sangrento suor.
Para Cavalheiro2,
"(...) é comum a tradição oral afirmar que como em
Sorocaba não havia grandes culturas agrícolas e, portanto, a
economia estava calcada na prestação de serviços, no
comércio e outras atividades (como artesanato, indústrias,
criação de gado...) os escravos ou eram chamados 'de ganho'
ou domésticos. Então, não eram maltratados, não sofriam
preconceito, não eram discriminados".
Construída por escravos, Sorocaba só estaria “redimida” a partir da
emancipação para o trabalho livre e assalariado. Em 27 de dezembro de 1887,
o artigo “Sorocaba Redimida” vem celebrar a libertação:
Calorosos bravos se ouviram de todos os angulos do salão, e
serenada a commoção electrica que produziram as palavras
eloquentissimas do illustre representante d'este districto,
muitos fazendeiros concederam liberdade incondicional a
seus escravos e outros reduziram a um anno o praso de
liberdade anteriormentes concedidas.
Segundo o artigo, essa decisão refletia a união entre senhores e
escravos. O texto glorificava a história sorocabana e o presidente da Assembleia,
Ferreira Braga, que discursou durante a Reunião. O mesmo artigo afirmava que
Diário de Sorocaba, 24 de dezembro de 1887.
CAVALHEIRO, Carlos C. A escravidão negra em Sorocaba. In Biblioteca Sorocabana História. v.1. Sorocaba: Crearte, 2005.
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foram declaradas 460 cartas de liberdade que seriam entregues aos escravos no
dia 1 de janeiro.
Quanto aos festejos de libertação de escravos, Capelato1 conta que,
“(...) os interesses que efetivamente nortearam o projeto
abolicionista não aparecem: as antigas e constantes pressões
da Inglaterra, as exigências dos setores mais dinâmicos da
economia (cafeicultores paulistas, em especial) aos quais
convinham novas relações de trabalho - estes e outros
fatores que explicam o movimento abolicionista não são
mencionados nas páginas dos jornais”.
Portanto, a “redenção” de Sorocaba se relacionava com a festividade do
Natal de 1887, e o acontecimento só foi possível graças aos libertadores de
escravos, o que legitimava os feitos dos abolicionistas e ex-proprietários de
escravos, desconsiderando, mesmo que implicitamente, a participação dos
próprios escravos nesse processo. No artigo “Festa de Natal”, a comemoração e
a missa "Concorreu sem duvida para isso o facto grandioso da Redempção da
cidade"2.
Ainda no artigo “Sorocaba Redimida”, a aposta ao trabalho do
imigrante é citada como a "concessão illimitada para a introducção de
immigrantes". Cavalheiro3 explica que ao mesmo tempo em que acontecem os
debates abolicionistas, surgem projetos que facilitam a entrada de imigrantes.
Segundo Fausto4, a opção pela mão-de-obra imigrante em regiões de economia
dinâmica refletiu em desigualdade social negra, pois o término da escravidão
não suprimiu o problema dos negros, pelo contrário, reforçou o preconceito.
CAPELATO, Maria Helena Rolin. A imprensa na história do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1988.
Diário de Sorocaba, 27 de dezembro de 1887.
CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Scenas da escravidão: breve ensaio sobre a escravidão negra
em Sorocaba. Sorocaba: Crearte, 2008.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2008.
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Azevedo diz sobre a transição de mão-de-obra que,
“Até meados da década de 1880 temos como enfoque
privilegiado a escravidão, o negro e sua rebeldia, o
movimento abolicionista e as sucessivas tentativas
imigrantistas, enfim, o chamado momento de transição para
o estabelecimento do trabalho livre. A partir da data
abolição, o tema da transição deixa subitamente de existir e
o negro, como que num passe de mágica, sai de cena, sendo
substituído pelo imigrante europeu. (...)”1.
Entretanto, a imigração incentivada era, essencialmente, a imigração
europeia. No artigo "A Loucura na China"2 afirma-se que os chineses não seriam
tão bons quanto os europeus, pois não possuíam "febre de ambição ou
especulação". Associada à libertação dos escravos, a imigração europeia era a
promessa de trabalho numa Sorocaba livre, já que o negro estava marginalizado
ao ócio.
Quanto às manumissões em seguida, é anunciada a liberdade “sem
condição alguma” ao escravo Delphino, e o Ministério da Agricultura passa a
dispensar a coletoria de impostos dos senhores que libertarem seus escravos.
Na próxima edição, dia 28 de dezembro de 1887, as manumissões anunciam
um senhor reduzindo em um ano o prazo de serviços dos escravos, enquanto
outro; retira a condição de prestação por mais cinco anos.
Nessa edição, a última que analisei durante a pesquisa, também pude
observar que o jornal passa a se preocupar em repudiar a ideia da venda de
escravos, ou melhor, agora trata de "homens livres vendidos como escravos"3,
AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das
elites do século XIX. São Paulo: Annablume, 2008.
1
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Diário de Sorocaba, 28 de dezembro de 1887.
Diário de Sorocaba, 28 de dezembro de 1887.
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como anuncia o artigo de capa, uma crítica à província do Amazonas que já
cantou seu "hymno da liberdade", mas que ainda vendia seus homens.
CONCLUSÃO
Considero esse trabalho com valor fundamental por contribuir na
minha experiência com a imprensa como fonte de pesquisa histórica. Deixoume outro olhar em relação à cidade em que moro: o alicerce de Sorocaba
parte, sem dúvida, de uma raiz negra e escrava. É muito comum que se
apresente o tropeiro e o bandeirante como agente formador da região,
omitindo, quase que sem querer, histórias de outros grupos.
Contudo, valorizar a identidade afro-brasileira também é considerar
que escravidão não é um elemento “do passado”. Se voltarmos há algumas
gerações constatamos memórias na própria família ou amigos sobre a
escravidão. Isso porque ela foi forte base para sociedade brasileira até o final do
século XIX.
Através da análise do Diário de Sorocaba observamos que às vésperas
da própria emancipação, os conteúdos de alguns artigos propõem atenção às
propensões de ócio e desordem do escravo e liberto para “educá-los ao
trabalho”, concomitante ao incentivo à entrada de imigrantes. Entretanto,
encerro a pesquisa sem me aprofundar nas relações entre o jornal e o
abolicionismo sorocabano, como a influência da loja maçônica Perseverança III
citada por Cavalheiro1. Acredito que dar continuidade a essa pesquisa permitiria
o estudo sobre a emancipação meses antes de maio de 1888. Encerro o
trabalho com a certeza de que muita coisa ficou à deriva, tanto nas páginas do
jornal como em outras fontes não analisadas, como as cartas de alforria e
inquéritos da época.
CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Scenas da escravidão: breve ensaio sobre a escravidão negra
em Sorocaba. Sorocaba: Crearte, 2008.
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Perguntas surgem: Sorocaba teria integrado seus escravos a partir da
preocupação com a desorganização de trabalho? Quais seriam as relações entre
o Diário de Sorocaba e os abolicionistas? Quem representava e quais investidas
tomaram os membros da Reunião Emancipadora1? Muitas hipóteses vêm à
tona me levando a imaginar a conclusão como outro ponto de partida.
Compreendo que os ideais civilizatórios da transição de século passam
a deslegitimar a escravidão, enquanto que a incerteza sobre a mudança se
apresentava, e esse temor vindo da elite reforçava a crença de que o negro era
ocioso, dando legitimidade ao trabalho forçado e castigos.
Se hoje presenciamos uma profunda desigualdade social é porque
existem raízes históricas para tanto, mas sua transcendência só pode acontecer
através do presente, por isso a importância da consciência junto à memória.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDREWS, George Reid. Escravidão e abolição, 1800-1890. In: Negros e
brancos em São Paulo (1888-1988). São Paulo: EDUSC, 1998.
AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no
imaginário das elites do século XIX. São Paulo: Annablume, 2008.
CAPELATO, Maria Helena Rolin. A imprensa na história do Brasil. São
Paulo: EDUSP, 1988.
CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. A escravidão negra em Sorocaba. In:
Biblioteca Sorocabana – História, v.1, Sorocaba: Crearte, 2005.
_________. Scenas da escravidão: breve ensaio sobre a escravidão negra em
Sorocaba. Sorocaba: Crearte, 2008.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2008.
PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense,
1994.
Nos artigos sob o título de “Reunião Emancipadora” são apresentados nomes como um abaixoassinado a favor da emancipação. Quais seriam as relações dessas pessoas no processo
abolicionista sorocabano?
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Dossiê Criminalidade
Revista História
Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831
STRAFORINI, Rafael. No caminho das tropas. Sorocaba: TCM, 2002.
DOCUMENTOS
Diário de Sorocaba. Periódico. 20 de dezembro de 1887. Gabinete de Leitura
Sorocabano, Sorocaba, SP.
Diário de Sorocaba. Periódico. 21 de dezembro de 1887. Gabinete de Leitura
Sorocabano, Sorocaba, SP.
Diário de Sorocaba. Periódico. 22 de dezembro de 1887. Gabinete de Leitura
Sorocabano, Sorocaba, SP.
Diário de Sorocaba. Periódico. 23 de dezembro de 1887. Gabinete de Leitura
Sorocabano, Sorocaba, SP.
Diário de Sorocaba. Periódico. 24 de dezembro de 1887. Gabinete de Leitura
Sorocabano, Sorocaba, SP.
Diário de Sorocaba. Periódico. 27 de dezembro de 1887. Gabinete de Leitura
Sorocabano, Sorocaba, SP.
Diário de Sorocaba. Periódico. 28 de dezembro de 1887. Gabinete de Leitura
Sorocabano, Sorocaba, SP.
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Dossiê Criminalidade
Revista História
Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831
IMPRESSÕES DO ILÍCITO: REPRESENTAÇÕES DO CRIME
NO JORNAL DE ITABUNA (1921-1923)
Bruno Alessandro Gusmão Moreira1
Resumo
Este trabalho analisou o entrelaçamento entre vida pública e privada influente
na produção do periódico Jornal de Itabuna. Foram examinadas interpretações
de crimes publicadas entre julho de 1921 e janeiro de 1923. Este trabalho
articulou duas temáticas amplas: imprensa e crime. Entretanto seu foco de
análise esteve mais direcionado para a primeira. As fontes de imprensa
apresentam especificidades. A história a partir da imprensa deve levar em
consideração a história da própria imprensa. Compreendemos a imprensa
escrita, em específico os jornais, como meios de propagação de representações
da sociedade. Representações estas resultantes de interpretações – realizadas a
partir de um lugar social – de aspectos do contexto no qual a mesma imprensa
está inserida. Os crimes interpretados e impressos no periódico Jornal de
Itabuna forneceram indícios para analisar a articulação e funcionamento deste
órgão de imprensa na sociedade itabunense no início da década de 1920.
Palavras-chave: Crime. Imprensa. Itabuna.
1
Graduando em História - UESC
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Dossiê Criminalidade
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Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831
Abstract
This work investigates the interconnectedness of public and private life in the
production of the influential Jornal de Itabuna. We examined published
interpretations of crime between July 1921 and January 1923. This work
articulated two broad themes: media and crime. However the focus of analysis
was more directed to the first. The media have specific sources. The story from
the media should take into consideration the history of the press itself. We
understand the print media, specifically newspapers, as a means of spreading
representations of society. Representations resulting from these interpretations made from a social - aspects of the context in which the same media is inserted.
Crimes interpreted and printed in the Jornal de Itabuna provided evidence to
analyze the joint operation of this body and of the press in society itabunense in
the early 1920s.
Keywords: Crime. Press. Itabuna.
***
INTRODUÇÃO
No início da década de 1920 existiam em Itabuna três órgãos de
imprensa: Jornal de Itabuna, propriedade de Lafayette Borborema; A Época,
propriedade de Gileno Amado e O Dia, propriedade de Antonio Tourinho. A
documentação encontrada indica que os três jornais tinham periodicidade
semanal e produção regular. Itabuna, no período abordado, possuía uma
imprensa consolidada e estável. A pesquisa que resultou este trabalho se deu na
análise do periódico Jornal de Itabuna.
A única obra que versa sobre a história da imprensa itabunense foi
produzida fora dos meios acadêmicos. Trata-se do livro De Tabocas a Itabuna:
100 anos de imprensa, de autoria do jornalista e memorialista itabunense
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Ramiro Aquino. Aquino (1999, p.52), ao se referir ao Jornal de Itabuna aponta
que “talvez este tenha sido um dos mais equilibrados jornais itabunenses, numa
época onde tomar partido de alguma facção política era praticamente obrigação
dos veículos e jornalistas.”
De fato o Jornal de Itabuna apresentava postura moderada se
comparado a outros periódicos da mesma época. A título de exemplo, cabe
lembrar que o proprietário do periódico “A Época”, Gileno Amado, era
membro do partido político situacionista na cidade de Itabuna no início da
década de 1920. O periódico A Época atuou enquanto instrumento político.
Se comparado a outros periódicos, a exemplo do A Época, cujo
posicionamento político é evidente, a tarefa de identificação da “parcialidade”
do Jornal de Itabuna não se apresenta enquanto tarefa fácil. Para darmos conta
deste objetivo analisamos dados aparentemente irrelevantes: representações de
crimes.
Notícias relacionadas à temática “crime” em geral não ocuparam lugar
privilegiado na distribuição interna de conteúdo (diagramação) do periódico
Jornal de Itabuna. Este fator, em um primeiro momento, pode levar o
historiador a descartar o exame das matérias sobre tal temática por acreditar
que estas sejam pouco pertinentes para se analisar a historicidade do periódico.
O exame de tais notícias foi revelador dos meios pelos quais se davam
as interpretações da sociedade levadas a cabo nas publicações do Jornal de
Itabuna Seguindo sugestões de Cruz e Peixoto buscamos trazer à luz a história
do órgão de imprensa com o qual estávamos trabalhando. Deste modo situamolo dentro do contexto em que atuou, a cidade de Itabuna na década de 1920.
O JORNAL E A CIDADE
O periódico Jornal de Itabuna começou a circular no ano de 1920. Seu
proprietário, diretor e redator, entre outras ocupações, era Lafayette de
Borborema. Nas obras de memorialistas locais Lafayette de Borborema é
freqüentemente lembrado como o primeiro advogado de Itabuna:
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Pioneiro no setor da sua atividade, quando fez 50 anos de
formatura, Itabuna prestou-lhe grandes homenagens; dentre
as muitas que recebeu há uma também muito bonita e
significativa, vinda de Salvador. Foi um pergaminho
assinado por todos os Juízes que passaram pela Comarca de
Itabuna, com os dizeres que bem retratam o advogado que
ele foi... (BORBOREMA, 1984, p.30)
Relação nominal dos PIONEIROS, de várias categorias,
chegados aqui nos princípios de TABOCAS-ITABUNA.
[...] Dr. Lafayette de Borborema – Décano dos advogados.
(GONÇALVES, 1960, p.35)
Certamente a advocacia foi a principal ocupação da vida de Lafayette
de Borborema. Exerceu esta atividade antes, durante e depois de suas vivências
e práticas como homem de imprensa. Todavia, para compreendermos seus
valores e ações não podemos nos deter apenas em um recorte profissional de
sua vida.
Lafayette Borborema enquanto sujeito histórico esteve presente em
espaços e grupos sociais diversos dentro da sociedade itabunense. Para
compreendê-lo em sua complexidade partilhamos do método onomástico
proposto pelo historiador Carlo Ginzburg. Este método consiste em utilizar o
“nome próprio” como fio condutor da investigação de sujeitos históricos,
reconstituindo o universo de forças diversas que os constituem. Para Ginzburg
(1989, p.175) “as linhas que convergem para o nome e que dele partem,
compondo uma espécie de teia de malha fina, dão ao observador a imagem
gráfica do tecido social em que o indivíduo está inserido.” Inicialmente
identificamos duas ocupações de Lafayette Borborema, a advocacia e a
imprensa. Outra ocupação social foi identificada a partir da investigação dos
esquemas de sustentação financeira do periódico. Lafayette de Borborema
também era comerciante.
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As leituras das obras dos memorialistas locais nos indicam que o
periódico A Época foi usado como instrumento político de seu proprietário.
Gileno Amado além de ser um político atuante pelo partido situacionista no
período estudado, como presidente do conselho municipal, também era
cacauicultor. Frente estes dois fatores não é difícil presumir o “conforto”
financeiro de que gozava este periódico, visto que:
Por ordem de importância, os principais produtos
exportados pela Bahia eram: cacau, fumo, açúcar, café,
couros curtidos e em salmoura (couro cru), peles, piaçava,
pedras preciosas, cera de carnaúba, borracha e madeiras.
[...] O cacau sempre esteve em primeiro lugar. [...] A
existência de terras férteis no sul baiano, suas condições
climáticas, mais a cobertura da floresta atlântica explicam o
rápido desenvolvimento da lavoura cacaueira naquela zona.
(TAVARES, 2001, p.362-363.)
No entanto, diferente de Gileno Amado, Lafayette de Borborema
esteve envolvido em atividades ligadas ao cultivo e comércio de cacau. O exame
das publicações do Jornal de Itabuna revelou que seu esquema de sustentação
financeira se assentava nas seguintes bases:

Venda de exemplares avulsos do periódico.

Venda de exemplares do periódico a partir de assinaturas.

Venda de espaços no corpo da publicação para publicidade.

Venda de materiais produzidos pela tipografia (faturas, circulares,
cartões de visita, recibos, entre outros) do periódico para o comércio
local.
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Apesar da maior parte da renda da cidade ser composta pelo comércio do
cacau, é necessário não perder de vista a expressividade do comércio local em
outras categorias. Carvalho, ao estudar a formação de Itabuna, afirma que:
A localização do distrito de Tabocas contribuía para que as
pessoas se fixassem no local, já que se situava na estrada
Ilhéus – Conquista, funcionando como pouso de tropeiros
que armavam feiras para venderem seus produtos.
(CARVALHO, 2007, p.109)
Itabuna, desde o início de sua formação se destacava enquanto
entreposto comercial. De sua emancipação política, em 1906, até o período
aqui estudado, início da década de 1920, Itabuna passa por transformações
significativas. Estas, segundo Carvalho (2007), ocorrem, sobretudo, a partir da
atuação dos latifundiários do cacau. A cidade gradativamente se transforma no
sentido de possuir infra-estrutura que atenda aos interesses da elite
cacauicultora. Neste sentido a cidade desenvolve um expressivo comércio
Cabe lembrar também que Itabuna na época dispunha de serviços
como telégrafo e ferrovia, que a ligava às cidades Ilhéus e Vitória da Conquista.
O esquema de sustentação financeira do periódico Jornal de Itabuna permite
compreender a, e se torna compreensível a partir da, dinâmica econômica da
cidade no período. Em específico, pode-se entender a venda de espaços no
corpo da publicação para publicidade e a venda de materiais diversos
produzidos pela tipografia como demandas do expressivo comércio local.
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DIAGRAMAÇÃO E HIERARQUIZAÇÃO DE CONTEÚDOS
As publicações do Jornal de Itabuna eram compostas por quatro
páginas, cada qual dotada de cinco colunas em que entrecortavam textos e
imagens. O periódico não apresentava uma hierarquização rígida de conteúdos.
A única regularidade observada ao se comparar as publicações foi a presença
maciça e constante das publicidades nas terceira e, em especial, quarta páginas.
As notícias das primeiras páginas, consideradas mais importantes
dentro na organização do conteúdo da publicação, variavam muito de tema a
cada publicação. Elas contemplam temas como: pleitos eleitorais, comércio,
embates políticos e até mesmo crime. Esta variação foi esclarecida ao
compreendermos o jornal enquanto gênero documental específico. O Jornal de
Itabuna enquanto órgão de imprensa de produção semanal buscava, a cada
publicação, dar conta de fatos e vivências ocorridos em um período de tempo
relativamente curto. As publicações do Jornal de Itabuna foram práticas sociais
delimitadas em uma temporalidade (semana), com exceção das publicações
voltadas à construção de memórias. Levando em consideração a especificidade
temporal do periódico é possível perceber uma coerência na alternância de
temas das notícias de primeira página do Jornal de Itabuna.
CRIME E IMPRENSA
A temática “crime” não ocupava um lugar privilegiado na hierarquia de
conteúdos deste periódico. Temas diversos se sobrepuseram à temática “crime”
de acordo com as especificidades temporais do periódico. O espaço destinado
ao tema “crime” raramente excedia metade de uma coluna e apresentava uma
linguagem descritiva e moderada. O acontecimento de uma situação atípica no
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período abordado nos permitiu ver “normas surdas” do funcionamento do
periódico.
Para compreender como se dava a produção de interpretações no
Jornal de Itabuna, as sugestões do historiador inglês Edward Palmer Thompson
foram de grande importância:
A vida “pública” emerge de dentro das densas
determinações da vida “doméstica”. [...] Geralmente, um
modo de descobrir normas surdas é examinar um episódio
ou uma situação αtípicos. Um motim ilumina as normas dos
anos de tranqüilidade, e uma repentina quebra de
deferência nos permite entender melhor os hábitos de
consideração que foram quebrados. Isso pode valer tanto
para a conduta pública e social quanto para atitudes mais
íntimas e domésticas. (THOMPSON, 2001, p.235)
No dia 9 de outubro no ano 1922 aconteceu o assassinato, no distrito
urbano de Itabuna, do médico Oscar Augusto do Nascimento. A mando do
fazendeiro e comerciante de cacau Francisco Briglia, Oscar Augusto do
Nascimento, acusado de adultério com a mulher do referido mandante, foi
alvejado e morto por um pistoleiro. A série de notícias acerca deste fato, que
vão de outubro de 1922 a janeiro de 1923, pôs a temática “crime” em evidência
nas publicações. Mesmo as notícias sobre a categoria criminal “homicídio”,
ápice das relações de violência humanas, não ocupavam grande espaço nas
publicações do Jornal de Itabuna até então.
De onze notícias veiculadas no segundo semestre de 1922 sobre a
categoria criminal “homicídio” oito eram interpretações do assassinato de Oscar
Augusto do Nascimento. Seis ocuparam a primeira página com espaço e
destaque. A atipicidade deste homicídio está no fato de que a vítima em questão
fazia parte da rede de relações pessoais de Lafayette de Borborema.
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Como dito anteriormente, Lafayette de Borborema esteve presente em
espaços e grupos sociais diversos na sociedade itabunense do início da década
de 1920. Para compreendermos sua atuação a partir das práticas de imprensa
foi necessário identificar traços de sua vida que transcendem sua posição de
“homem de imprensa”. Passemos então à identificação das relações existentes
entre Lafayette de Borborema e Oscar Augusto do Nascimento.
A primeira relação identificada foi a de clientela. Como foi esclarecido
anteriormente, uma das fontes de renda do Jornal de Itabuna era a venda de
espaço no corpo da publicação para a propaganda. Oscar Augusto do
Nascimento usou o Jornal de Itabuna para propagandear seus serviços clínicos.
Uma segunda relação se deu nas práticas de imprensa propriamente
ditas. O Jornal de Itabuna freqüentemente publicava colaboração de sujeitos
exteriores ao periódico. Oscar Augusto do Nascimento chegou a escrever duas
matérias para o jornal no ano de 1921.
Outra proximidade entre os dois sujeitos se deu no Hospital Santa Cruz
e na Santa Casa de Misericórdia. Na década de 1920, Lafayette de Borborema
manteve proximidade com o segmento médico. Ocupou um dos cargos,
voluntários, administrativos de provedor das referidas instituições. Nestas
mesmas instituições trabalhou, até a sua morte, o médico Oscar Augusto do
Nascimento. Os dois conviveram constantemente e mantiveram relações
profissionais e pessoais em um mesmo espaço de trabalho.
Em função desta proximidade entre a vítima e o jornalista as notícias
sobre este homicídio o apresentaram um tom trágico e evocaram uma série de
interpretações antes não realizadas nas notícias sobre a temática “crime”. As
notícias sobre homicídios acontecidos em Itabuna, por exemplo, regularmente
apresentavam descrições factuais breves e considerações moderadas.
Foi uma affronta à sociedade, um desrespeito às nossas leis,
um attentado a ordem publica o nefando crime commetido
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em plena rua da cidade, aos olhos de todos, na segundafeira desta semana, 9 do corrente e do qual foi victima a
pessoa do Dr. Oscar Augusto do Nascimento. [...] O
barbaro e brutal assassinato perpetrado contra a vida do
illustrado e sympathisado medico e levado a effeito em
pleno dia , em uma das ruas de grande movimento, foi uma
scena que a todos revoltou, e a sociedade itabunense não
pode deixar de estar envergonhada deante de tão
monstruoso crime praticado acintosamente por um
bandido, a mando de terceiro, como si a sua victima não
fosse um ente humano cuja vida devera ser respeitada.
(QUE HORROR! Em plena rua, um bandido, cumprindo
as ordens do mandante, assassina miseravelmente o Dr.
Oscar Nascimento. Jornal de Itabuna, Itabuna, 12/10/1922.
p. 1)
Assim começam as interpretações do Jornal de Itabuna sobre o
homicídio cometido contra Oscar Augusto do Nascimento. Este trecho da
matéria é ilustrativo para percebermos a abordagem trágica dada a este crime
específico. É perceptível a atuação do periódico visando comover seus leitores
em torno de uma causa. Se os crime anteriores ao assassinato de Oscar Augusto
do Nascimento eram escritos de maneira breve e justificados a partir da
descrição de contendas individuais entre as partes envolvidas. Este homicídio,
em específico, é eleito pelo jornal como um crime contra o coletivo, um crime
contra a sociedade itabunense como um todo. Não somente nesta matéria
citada, mas em outras posteriores, o periódico usa termos como “clamor
público” como estratégias para convencer o público leitor a participar da causa.
O jornal tenta representar uma suposta indignação popular frente ao crime.
As notícias sobre este crime possuem grande extensão e linguagem
saturada de adjetivações. Os adjetivos ornamentam a narrativa e produzem o
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efeito de tragédia em torno do acontecimento. Destacamos o uso de termos
como “bárbaro” e “miserável” para caracterizar o crime e as atribuições
elogiosas à vítima. Neste sentido, freqüentemente o jornal reforça a imagem do
assassino desumano e da vítima bem querida popularmente e, em especial,
inocente.
O ferido devido o seu estado melindroso, não podia falar;
entretanto, momentos antes de fallecer, fez um esforço e
disse: “morro inocente, nada devo àquella mulher” (O
assassinato do Dr. Oscar Nascimento. Jornal de Itabuna,
Itabuna, 12/10/1922. p. 4)
Não pode haver justificativa para o procedimento do snr.
Francisco Briglia, porquanto não encontrou a sua esposa em
adulterio; pensou, reflectiu, premeditou e mandou executar
o seu plano; do inquerito policial já encerrado, não ficou
provado o adulterio. (ITABUNA SANGUINARIA! NÃO.
Jornal de Itabuna, Itabuna, 19/10/1922. p. 1)
O reforço dado à inocência da vítima foi ponto fundamental nesta
memória construída. O código penal da república velha aponta o adultério
como crime passível de punição de um a três anos. Em uma sociedade muito
afeita à moral da família, pode-se pensar na hipótese de que o adultério,
enquanto ofensa à honra, pudesse justificar o ato homicida.
A série de notícias acerca do crime constrói uma memória da vítima.
Entendemos aqui memória enquanto um processo; uma apropriação e
construção, consciente ou inconsciente do passado, que produz efeitos em um
dado momento presente (TODOROV, 2002). Entendemos a apropriação
enquanto uma prática delimitada por questões de caráter social, cultural,
institucional, entre outras (CHARTIER, 1988).
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A construção de uma memória enaltecedora do assassinado reforçava a
idéia de que crime cometido era uma “barbárie”. Assim propagava-se a idéia de
Oscar Augusto do Nascimento enquanto benfeitor e vítima.
[...] aquelle era um cidadão qualificado, de posição definida,
moço intelligente, medico illustre e humanitario, bem
relacionado, com vasta clientela, symphatisado, com
camarada, amigo e pae de familia. (ITABUNA
SANGUINARIA! NÃO. Jornal de Itabuna, Itabuna,
19/10/1922. p. 1)
A construção de memórias e interpretações teve como base interesses
em um dado momento presente. É importante também voltar a refletir sobre as
especificidades temporais do periódico. O Jornal de Itabuna, enquanto órgão
de imprensa de produção semanal, acompanhou os trâmites levados a cabo
pelos órgãos responsáveis pela investigação e punição do crime em questão.
Neste processo não buscou apenas informar seu público leitor1, mas também
intervir.
A decisão do Jury no julgamento do snr. Francisco Briglia
de Magalhães, accusado de haver mandado assassinar o
inditoso dr. Oscar Augusto do Nascimento, não repercutiu
bem na sociedade itabunense, que esperava do digno
tribunal, um outro “veredicum” que viesse desmentir o mau
conceito que se faz da índole da nossa população, quando
se diz - «Itabuna, a cidade do crime».. (A extrema
Na edição de 09/11/1922 foi publicada na primeira página do Jornal de Itabuna a peça de
acusação apresentada pela promotoria pública sobre o assassinato de Oscar Augusto do
Nascimento.
1
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benevolencia do Jury. Jornal de Itabuna, Itabuna,
14/12/1922. p. 1)
O Jornal de Itabuna buscou comover seu público leitor em torno de
uma causa e intervir nos processos legais de punição dos responsáveis pelo
assassinato de Oscar Augusto do Nascimento. Para isso, representou o crime
como um problema concernente a toda sociedade itabunense e pressionou os
órgãos responsáveis pelo julgamento e punição do mesmo. As notícias do
Jornal de Itabuna acerca deste crime findam no início do ano de 1923, quando
falece na cadeia pública Ruffino Augusto de Andrade, executante do assassinato
de Oscar Augusto do Nascimento.
A presença de Lafayette de Borborema em diferentes ambientes e sua
proximidade a indivíduos, como Oscar Augusto do Nascimento, de grupos
diversos da sociedade itabunense do início da década de 1920 influenciaram a
produção do periódico Jornal de Itabuna. Compreendemos que o jornal é uma
prática social e sua produção é influenciada pelo emaranhado de relações
públicas e privadas dos sujeitos que o produzem, seus membros responsáveis.
Concluímos que a interpenetração entre vida pública e privada se fez presente
na produção deste órgão de imprensa.
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NIETZSCHE: O NOVO MODO DE FAZER HISTÓRIA
Pablo Martins Bernardi Coelho
Resumo
No presente trabalho pretendemos analisar a abordagem de Nietzsche sobre a
história. Nosso autor empreende uma crítica ao modo de se fazer história, cuja
suas raízes são fundamentadas pelo pensamento filosófico socrático-platônico.
Desse modo, ao colocar o sentido histórico da modernidade em questão,
Nietzsche o fez movido pela crítica à racionalidade ocidental, na qual, a partir
de Sócrates, a sensação da veracidade e do conhecimento, adquiriu
um caráter universal e primordial, evidenciando uma vida, a partir da
qual, os instintos seriam avaliados, controlados e explicados.
Palavras-chave: Nietzsche; História; Modernidade; Razão
Abstract
In this paper we intend to analyze the approach of Nietzsche's history. Our
author undertakes a critique of the way to do history, whose roots are based by
the Socratic-Platonic philosophical thought. Thus, by placing the historical sense
of modernity in question, did Nietzsche moved by the critique of occidental
rationality, in which, from Socrates, the sense of truth and knowledge, acquired
a universal and primordial, showing a life from which the instincts would be
assessed, monitored and explained.
Keywords: Nietzsche; History; Modernity; Reason

Doutorando em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho –
UNESP/Franca
Brasil.
Orientador:
Héctor
Luis
Saint-Pierre.
Email:
[email protected]; Endereço: Rua Irmã Dulce n°25 Ap.201, Bairro Jardim Finotti,
Uberlândia/MG, Cep.38408-734.
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INTRODUÇÃO
Podemos considerar que a filosofia nietzschiana está pautada na crítica
a tradição metafísica da filosofia ocidental iniciada a partir do pensamento
socrático-platônico. A tradição metafísica considera a realidade a partir da
estrutura de pensamento racional, onde a consciência emerge como fonte, lócus
da racionalidade, trabalhando efetivamente com uma cisão entre coisa-em-si e
fenômeno, entre um mundo verdadeiro, essencial, imutável e outro aparente,
contingente. Nesse sentido, verifica-se que a metafísica gera uma cisão entre o
ente e aquilo que seria sua verdade, entre o ente e sua essência, ou como
Nietzsche trata, ora utilizando a terminologia kantiana, entre “fenômeno” e
“coisa em si”; ora utilizando sua própria terminologia, entre “mundo aparente”
e “mundo verdadeiro”.
Já em sua primeira obra, O nascimento da tragédia (1872),
Nietzsche inicia sua crítica à ra zão ocidental. Em tal obra o filósofo
mostra como a civilização grega pré -socrática foi o a u g e d a c u l t u r a
grega ao estar ainda sob a esfera do pensamento trágico,
q u e p r o p õ e u m a afirmação incondicional da vida, mesmo na dor e no
sofrimento. Mas essa atitude trágica diante da e x i s t ê n c i a p r e v a l e c e u a t é
o triunfo da razão socrática, a cabeça teórica, a partir do
q u a l a consciência e a razão passam a julgar e dominar a vida e os
instintos. Com Sócrates, a razão, a percepção da verdade e do
conhecimento, passou a ter um caráter prioritário e universal,
colocando-se como o interesse a partir da qual a vida e os instintos seriam
julgados, controlados e justificados. O o t i m i s m o d a d i a l é t i c a socrática
fulmina a dilaceração, dor e sofrimentos inerentes à vida, abrindo caminho para
dialética ascensional de Platão que nos promete o mundo perfeito das idéias e
deprecia esse mundo sensível. Ora, mas segundo Nietzsche esse mundo, é o único que
temos. Não há o outro mundo.
Para de certo modo criar uma erosão na filosofia tradicional, Nietzsche
utiliza de elementos da ciência que vão contrapor as verdades éticas ou
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epistemológicas fundadas na metafísica. Desafiador da verdade absoluta,
Nietzsche é anti-fundacionista, não tendo pretensão de encontrar fundamentos
metafísicos para a filosofia.
Nesse ínterim, Nietzsche considera que a essência do pensamento
socrático-platônico origina uma sociedade ocidental cujos membros têm uma
vida vazia de finalidade. A oposição razão/sentimentos foi o grande erro deste
pensamento ocidental, condenando o ser humano a uma vida submetida a
normas racionais e morais que lhe são estranhas (NIETZSCHE, 2003).
Assim, Nietzsche interpreta a metafísica como um movimento de
afirmação a valores que diminuem e ameaçam a vida, na medida em que a
mesma se apresenta como duplicação do mundo, como reflexão em torno de
um transcendente que desconhece o homem palpável, a realidade viva que se
consagra numa constante batalha e jogo de forças.
A partir dessa oposição – razão/sentimentos, Nietzsche conclui que a
sociedade ocidental se caracteriza pelo niilismo, ou seja, pela iniciativa de
recusar a vida, de menosprezar a existência. Neste caso, a vida é conduzida por
valores superiores, transcendentais, por um ideal ascético. O homem esboça
sua experiência em uma irrealidade, um além-mundo onde não existe tempo.
Pela crença neste mundo, a vida é recusada, eliminada e agrilhoada. A vida
admite-se, deste modo, como negadora de si mesma.
Nesse sentido, Nietzsche considera que a sociedade ocidental se
encontra em um estado de decadência, numa alusão a posição de debilidade e
fraqueza do espírito humano em seu comprometimento de evasão diante da
realidade. Para ele, todos os idealistas simbolizam o espírito de declínio por
anunciarem o instinto que corrompe e que se volta contra a vida, na medida em
que, inventando uma duplicação de mundo, conferem valor de veracidade real
a um hipotético mundo transcendental, e valor negativo e imaginário ao mundo
corporal. Nas palavras de Deleuze,
Sócrates é o primeiro gênio da decadência: ele opõe a idéia
à vida, julga a vida pela idéia, coloca a vida como devendo
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ser julgada, justificada, redimida pela idéia. O que ele nos
pede é que cheguemos a sentir que a vida, esmagada sob o
peso do negativo, é indigna de ser desejada por si mesma,
experimentada nela mesma (DELEUZE, 1976, p.12).
Nietzsche afirma que o niilismo é o pressuposto de toda metafísica, e a
luta para derrubar aquele, seria a derrubada da própria metafísica. Esta seria sua
grande empreitada. Porém, nas palavras de Deleuze “isto envolve uma nova
maneira de pensar, uma convulsão do princípio do qual depende o
pensamento, uma retificação do próprio princípio genealógico, uma
transmutação” (DELEUZE, 1976, p.28). Ou seja, um modo de discorrer
regulado na compreensão de que a vida é sofrimento/desgosto, mas que não
cabe negá-la, nem tramar outro fato a fim de justificá-la, incumbindo ao homem
vivê-la em toda sua veracidade:
Nova maneira de pensar significa um pensamento
afirmativo, um pensamento que afirma a vida e a vontade da
vida, um pensamento que expulsa enfim todo o negativo.
Acreditar na inocência do futuro e do passado, acreditar no
eterno retorno. Nem a existência é colocada como culpada
nem a vontade se culpa por existir: isto é que Nietzsche
chama sua alegre mensagem [...] A mensagem feliz é o
pensamento trágico, pois o trágico não está nas
recriminações do ressentimento, nos conflitos da má
consciência, nem nas contradições de uma vontade que se
sente culpada e responsável [...] Trágica é a afirmação,
porque afirma o acaso e a necessidade do acaso; porque
afirma o devir e o ser do devir, porque afirma o múltiplo e o
um do múltiplo. Trágico é o lance de dados. Todo o resto é
niilismo, pathos dialético e cristão, caricatura do trágico,
comédia da má consciência (DELEUZE, 1976, p.28).
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Dessa forma, na exaltação do trágico, nosso autor ressalta a força da vida em
oposição a toda e qualquer negativa:
O consolo metafísico – com que, como já indiquei aqui,
toda a verdadeira tragédia nos deixa – de que a vida, no
fundo das coisas, apesar de toda a mudança das aparências
fenomenais, é indestrutivelmente poderosa e cheia de
alegria, esse consolo aparece com nitidez corpórea como
coro satírico, como coro de seres naturais, que vivem, por
assim dizer indestrutíveis, por trás de toda a civilização, e
que, a despeito de toda a mudança de gerações e das
vicissitudes da história dos povos, permanecem
perenemente os mesmos (NIETZSCHE apud SILVA,
2005).
Enfim, “dar à irresponsabilidade seu sentido positivo”, este seria o
objetivo principal da filosofia de Nietzsche.
O NOVO MODO DE FAZER HISTÓRIA
Nietzsche afirma que a perspectiva da história não escapa aos cânones
da metafísica. Por isso, ele condenou as várias formulações do historicismo (três
modalidades de fazer história: monumental, tradicional, crítica) e pôs em
questão a validade do emprego do método histórico.
Em relação à história monumental, Nietzsche critica seu caráter de
generalizar arbitrariamente as particularidades históricas, visto que, aqueles que
praticam esse tipo de história procuram no passado, modelos para o presente.
Este seria o erro: “a eternização de tudo quanto houve de clássico e de raro no
passado oculta na verdade, nos historiadores monumentalistas, o aviltamento
do presente, talvez um ódio do presente, a impossibilidade de um futuro
diverso” (SOBRINHO, 2005, p. 28-29). Em relação à história tradicional,
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Nietzsche critica sua incapacidade de capturar os fenômenos históricos no seu
conjunto e profundidade, visto que, os historiadores dessa modalidade,
atribuem um mesmo valor a todas as coisas, e às vezes uma valorização maior
sobre as coisas consideradas insignificantes. Ou seja, o modo tradicionalista,
tem como objetivo capturar o passado nas especificidades e singularidades. Para
Nietzsche, essa concepção neutraliza a ação, o presente e a vida, além de
colocar obstáculos impeditivos e paralisar a disponibilidade do homem de ação:
O modelo clássico de abordagem do passado começa por
uma comparação e uma identificação impertinente do
passado com o presente, em que o passado aparece como
modelo e exemplo para o presente que deve ratificá-lo. O
modo tradicionalista, ao contrário, pretende capturar o
passado na sua especificidade e singularidade. Na primeira,
a versão, o sentido histórico – independentemente da
verdade que contenha – toma o passado como um impulso
para a vida; na segunda versão, ele quer o conhecimento e a
verdade; no primeiro caso, o historiador é um artista; no
segundo, é um cientista; no primeiro caso, o passado
histórico alimenta a vida; no segundo, ele está morto e não
leva mais nada (SOBRINHO, 2005, p.31).
Em relação à história crítica, Nietzsche recrimina seu caráter
exacerbado, afirmando que pode trazer muitos problemas para a vida, pois,
ao contrário do que pensam os historiadores críticos, é
impossível eximir-se da cadeia da história, com tudo o que
ela tem de justo e de injusto: quer queiram ou não, os
homens são herdeiros do seu passado e terão sempre de
viver a contradição entre a herança e a novidade [...] Uma
vez admitindo que não há nada de positivo no passado,
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como de resto o presente é testemunha, o historiador crítico
perde qualquer referência simbólica com os monumentos
da cultura, os homens e as experiências que construíram o
que há de mais elevado na história (SOBRINHO, 2005,
p.32).
No entanto, é importante frisar que Nietzsche não desqualifica a
perspectiva histórica como tal, que se determina por seu direcionamento ao
passado. A sua crítica se faz contra o historicismo fundamentado em preceitos
metafísicos.
Nesse sentido, ao negar o idealismo socrático-platônico, Nietzsche
desenvolveu uma genealogia da história, desqualificando a concepção de tempo
linear, sucessivo e encadeado para criar uma temporalidade circular e
instantânea, eliminando os suportes teóricos da crença na finalidade para
substituí-los pela noção de devir múltiplo do mundo. Genealogia não no
sentido de buscar a origem, mas sim de procurar o momento em que a história
toma determinada direção/sentido. Nas palavras de Foucault:
Fazer genealogia não será, portanto, partir em busca de sua
“origem”, negligenciando como inacessíveis todos os
episódios da história; será, ao contrário, se demorar nas
meticulosidades e nos acasos dos começos; prestar uma
atenção escrupulosa à sua derrisória maldade; esperar vê-los
surgir, máscaras enfim retiradas, com o rosto do outro; [...]
O genealogista necessita da história para conjurar a quimera
da origem, um pouco como o bom filósofo necessita do
médico para conjurar a sombra da alma. É preciso saber
reconhecer os acontecimentos da história, seus abalos, suas
surpresas, as vacilantes vitórias, as derrotas mal digeridas,
que dão conta dos atavismos e das hereditariedades; [...] A
história, com suas intensidades, seus desfalecimentos, seus
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furores secretos, suas grandes agitações febris como suas
síncopes, é o próprio corpo do devir (FOUCAULT, 1992,
p.14).
Todo raciocínio de Nietzsche parte do pressuposto de que não há nada
“escondido”, não há nada que fundamente aquilo que foi enunciado pela
sociedade, tudo é evidente. A essência é construída, ela não é essência no
sentido de ser fundamental. Tudo está sujeito ao acaso, tudo é muito instável,
ou nós desiludimos de tudo porque achávamos que existiam coisas certas, ou
nós acreditamos que as incertezas trazem a liberdade plena, abrindo-se muitas
oportunidades.
Nesse sentido, Nietzsche afirma que a história não suporta conceitos, o
que o ser humano é só pode ser apreendido no próprio movimento das coisas.
Assim, não existem as coisas mesmas, lidamos com as coisas interpretadas, e
elas não derivam de um esquema estático e invariável, mas sim de um jogo
social, no qual o poder se encontra disperso. Assim, a história não objetiva
restabelecer uma grande continuidade, muito menos buscar algo fundante, pelo
contrário, ela deve ser regida pela proveniência:
Seguir o filão complexo da proveniência é, ao contrário,
manter o que se passou na dispersão que lhe é própria: é
demarcar os acidentes, os ínfimos desvios – ou ao contrário
as inversões completas – os erros, as falhas na apreciação, os
maus cálculos que deram nascimento ao que existe e tem
valor para nós; é descobrir que na raiz daquilo que nós
conhecemos e daquilo que somos – não existem a verdade
e o ser, mas a exterioridade do acidente (FOUCAULT,
1992 p.15).
Assim, somos considerados uma confluência de identidades, e elas são
provisórias. Nossos parâmetros subjetivos são construídos a partir da sociedade,
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ou seja, somos parte da história. O Eu é instável, é dado historicamente. A
própria relação com o corpo tem associação com a história, ou seja, a história
“fala” e age sobre nossos corpos.
O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos [...]
lugar de dissociação do Eu [...], volume em perpétua
pulverização. A genealogia, como análise da proveniência,
está, portanto no ponto de articulação do corpo com a
história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de
história e a história arruinando o corpo (FOUCAULT,
1992, p.15)
Para Nietzsche esse seria o “sentido histórico”, onde o homem é o
próprio desdobramento da história, onde tudo está sujeito ao acaso, uma
história onde não existem conceitos mais sim interpretações que são tomadas
como verdades pactuais (Nietzsche, 2005). Um “sentido histórico” que não
supõe uma verdade eterna, uma consciência sempre idêntica de si mesma, um
“sentido histórico” que não apóia sobre nenhum absoluto, enfim, um
contraponto da metafísica.
A história “efetiva” se distingue daquela dos historiadores
pelo fato de que ela não se apóia em nenhuma constância:
nada no homem – nem mesmo seu corpo – é bastante fixo
para compreender outros homens e se reconhecer neles.
Tudo em que o homem se apóia para se voltar em direção à
história e apreendê-la em sua totalidade, tudo o que permite
retraçá-la como um paciente movimento contínuo: trata-se
de destruir sistematicamente tudo isto [...] A história será
“efetiva” na medida em que ela reintroduzir o descontínuo
em nosso próprio ser (FOULCAULT, 1992, p.18).
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Portanto, temos um sentido histórico onde o sujeito varia no tempo,
sem continuidades, sendo anti-fundacionista, não tendo pretensão de encontrar
fundamentos metafísicos. Assim sugere Foucault:
Há toda uma tradição da história (teleológica ou
racionalista) que tende a dissolver o acontecimento singular
em uma continuidade ideal – movimento teleológico ou
encadeamento natural. A história “efetiva” faz ressurgir o
acontecimento no que ele pode ter de único e agudo [...] De
modo que o mundo tal como nós conhecemos não é essa
figura simples onde todos os acontecimentos se apagaram
para que se mostrem, pouco a pouco, as características
essenciais, o sentido final, o valor primeiro e último; é ao
contrário uma miríade de acontecimentos entrelaçados [...]
Mas o verdadeiro sentido histórico reconhece que nós
vivemos sem referências ou sem coordenadas originárias,
em miríades de acontecimentos perdidos (FOUCAULT,
1992, p.18).
CONCLUSÃO
Para Nietzsche, não há verdade que antes de ser verdade, não seja a
efetuação de um sentido ou a realização de um valor. Temos a verdade
que merecemos ou suportamos, diria nosso autor. Nesse sentido,
jamais o pensamento encontraria por si mesmo o verdadeiro, pois este não
passa de um sentido e de um valor c o n f e r i d o à s c o i s a s p o r f o r ç a s
ativas ou reativas. A verdade de um pensamento deve ser,
p o r t a n t o , “interpretada e avaliada” segundo as forças e as vontades que o
determinam a pensar “isto e não aquilo”. Diante daquilo que se apresenta como
verdade, devemos sempre nos perguntar pelo “sentido e valor” das forças que
subjazem a tal fenômeno. Esse trabalho das forças é ocultado pelo pensamento
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dogmático, que é incapaz de estabelecer uma “tipologia” das forças (ativas ou
reativas) e uma genealogia que determine a origem dessas forças e dos valores
por elas instituídos (DELEUZE, 1976).
Nietzsche nos ensina, por exemplo, que por trás de cada verdade é preciso
aprender a vislumbrar o interesse prático que ela manifesta. Nesse sentido,
na perspectiva de nosso autor, a filosofia deveria tomar como tarefa
principal, não questões ontológicas ou gnosiológicas, mas questões
de valor. A filosofia deve estabelecer uma espécie de genealogia dos valores,
explicitando as condições de suas origens e os interesses que manifestam, pois,
em cada uma das épocas da história da filosofia, e mesmo por trás de todo
pensador, valor ou conceito, fala os sintomas de intensificação ou decadência da vida.
Assim, a história do homem não é uma totalidade, mas uma pluralidade de
processos de ascensão e declínio simultâneos, que não obedece, portanto, a
qualquer sucessividade, a quaisquer ordens, plano, razão ou fim. Assim, não há
uma história universal, como também não há um fim universal, ou pelo menos
não é possível conhecê-lo. O que há de fato são os indivíduos concretos e reais.
Dessa forma, com a genealogia, Nietzsche cria uma “supra-história”, na
qual investigar o passado consiste em estar fora do tempo linear, contínuo,
encadeado e progressivo. Por isso, “analisar genealogicamente é descobrir a
vontade de poder que se disfarça sorrateiramente na multiplicidade dos
símbolos que o pretérito nos traz e compõe uma tipologia dos valores e do
caráter, dos homens e de seus feitos” (SOBRINHO, 2005, p.56). Nietzsche
assim definiu o supra-histórico: “[...] forças que afastam o olhar do devir e o
orientam para aquilo que confere ao devir um caráter de eternidade e de
significação igual ao da arte e da religião” (NIETZSCHE, 1980, p.201).
[202]
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Revista História
Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831
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O CÔMICO
A SOCIEDADE GREGA PELO TEATRO DE ARISTÓFANES
Flávia Bruna Ribeiro da Silva Braga1
Resumo
Este trabalho trás uma análise acerca da sociedade grega pelas obras do
comediógrafo Aristófanes, autor da Comédia Antiga, tradicionalmente posta.
Neste trabalho utilizamos as obras Lisístrata, As Tesmoforiantes e A
Assembléia das Mulheres para tratar do tema político, social, de gênero, enfim,
de diversos aspectos da sociedade grega presentes nas obras.
Palavras-chave: Aristófanes; Comédia; Grécia.
1.
IMPORTÂNCIA DO TEATRO GREGO PARA A HISTÓRIA
De uma maneira geral, é da expressão dos artistas que os costumes e os
pensamentos de uma civilização se eternizam com mais afinco. Olhemos para
as estátuas esculpidas nas igrejas medievais e é quase palpável o sentimento de
apreensão do homem diante do desconhecido. O juízo final, o diabo, os
monstros, eternizados em expressões vivas. Os versos de Camões podem
reavivar a centelha portuguesa que há em nós, desse passado grandioso e
perdido. Enfim. As obras de artes demonstram como o homem comum e
individualizado percebe sua sociedade, como transporta essas idéias e como as
encara.
Mas falemos de teatro grego. Se engana quem pensa que peças gregas
são algo antiguíssimo apenas compreendida dentro de um contexto delimitado
1
Graduanda pela Universidade Federal de Pernambuco
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da Grécia Antiga. Qualquer dia, pegue a peça de Antígona de Sófocles ou
Lisístrata de Aristófanes e não mostre o nome dos autores para uma pessoa
leiga. É possível que perguntem se os autores eram brasileiros, se foram
lançados agora. E responda que foram escritos há mais de 2000 anos. A pessoa
levará um susto. A atualidade das obras gregas é algo realmente impressionante,
não recordo haver outra civilização que tenha logrado tal imortalidade.
Mas não apenas no âmbito artístico se vê a importância das obras
gregas. Autores como Sófocles, como já citei, trazem debates atuais sobre a
moral individual e a lei de Estado, ainda citado em muitos discursos políticos
congressistas e em muitos textos de direito. Críticas como a de Aristófanes
contra os maus políticos, contra a demagogia, são tão atuais como os meninos
do CQC1 ou o Casseta & Planeta Urgente2 que ainda utilizam do riso para falar
de coisa séria. As peças de teatro gregas nos dão um panorama geral de como
era ser grego há milhares de anos, e não apenas isso. Mas de como os próprios
atenienses lidavam com a cidadania e a democracia, como as relações entre
Estados se davam e como isso era refletido no dia-a-dia das pessoas. Assim
como nós e nossas constituições, aludem a esse passado político e faz
referência, como a formação da nossa democracia e da nossa consciência
cidadã é essencialmente grega. Heloisa Helena, por exemplo, política brasileira
anteriormente ligada ao PT, quando no congresso brasileiro rompe com esse
partido para fundar o PSOL, diz “Antes Sócrates a Galileu” numa referência
clara ao filósofo grego que morre em nome dos seus ideais. Esse mesmo
filósofo que será ridicularizado por Aristófanes em As Nuvens. Conhecer o
teatro grego é um estudo interdisciplinar que envolve de História à Filosofia.
Outro ponto, importante, é a grandíssima influência das obras gregas
para o mundo ocidental desde que a Grécia surgiu. Podemos dar exemplos
vários de filmes, series, novelas, livros, coleções, peças de teatro, arquitetura,
que aludem ao mundo grego. Nosso Maracanã é circuncêntrico de influência
Programa de TV da emissora RedeTV, Custe o Que Custar, em que repórteres se utilizam de
ridicularização e piadas para fazer críticas aos políticos brasileiros.
Programa de comédia exibida pela Rede Globo de Televisão.
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2
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grega e relembram os palcos onde eram apresentadas as peças, depois
influenciam os coliseus romanos até chegar em nós. Nossas novelas são
baseadas em tragédias gregas. Nossa literatura universal, Machado de Assis, José
Saramago, Freud, Nietzsche, Cervantes, pense em um escritor ocidental que
não tenha bebido das fontes gregas e provavelmente você não terá resposta. Isso
porque nós somos essencialmente gregos. Podemos ter influências
muçulmanas, portuguesas, romanas, germânicas. Mas somos gregos, antes de
tudo. Porque a nossa filosofia é aristotélica, nosso teatro é grego, nossa Olinda é
montanhosa como Atenas. As similaridades são muitas e ao mesmo tempo
sutis.
Mas não vamos nos restringir a importâncias políticas e culturais. O
teatro é importante para a própria constituição do ser humano. O riso das
comédias é curativo e o choque das tragédias ensina. O Teatro grego existiu
para nos relembrar das nossas fraquezas, das nossas angústias, dos nossos
medos e astúcias. Incrivelmente os autores gregos conseguiram transpor para
seus escritos a angústia de gerações milenares pois, quando vemos Antígona
agonizar pelo corpo do irmão, também nós choramos e nos revoltamos.
Quando Aristófanes apela pela paz, também nós desejamos. O teatro é uma
forma única de nos encontrarmos com nós mesmo e com o mundo. É uma
forma de lembrarmos que temos algo em comum. Não é a toa que o coro grego
se dirigia a seu público, pela ligação, pela catarse. Essa é uma palavra definidora
do teatro grego: catarse. As peças movimentam multidões a amarem
conjuntamente, odiarem conjuntamente, rirem conjuntamente. Uma herança
que os Antigos nos legou e que não podemos perder.
E um ultimo ponto, mais específico para o fazer histórico, é a recente volta da
discussão acerca da narrativa histórica. Os escritos gregos são fáceis de ler. São
narrados, são contemporâneos. É talvez mais fácil ler Platão que Saramago.
Ainda que 2500 anos os separe. Essa capacidade de tornar a escrita universal
(tanto em extensão territorial quanto nas camadas sociais) é de uma maestria
exclusiva grega. Estamos caminhando num processo de retorno do
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acontecimento, do relato. E estamos voltando a esses autores gregos para
fundamentar o fazer do historiador.
Por todos esses motivos e muitos outros que a ignorância socrática não nos
permite aludir, o estudo do Teatro Grego torna-se imperativo para um mundo
que tanto dele necessita e se agrada.
2. A COMÉDIA: ORIGEM E CARACTERÍSTICAS
As origens da comédia grega são tão confusas quanto às da
tragédia. E, por isso mesmo, são controversas. Quando J. de Souza Brandão,
citando o helenista Maurice Bowra, argumenta que o problema é complexo, ele
deixa claro que o assunto merece atenção.
Sobre o problema da gênese da comédia, abordado por M.
Bowra, Brandão diz o seguinte:
Não há dúvidas, acentua o mestre britânico, acerca da
origem da palavra comédia. Provém do grego, komoidía,
que significa canto de um grupo de foliões, mas isso não nos
esclarece muito, uma vez que o kômos, que significa, em
termos de teatro, uma procissão alegre, podia celebrar-se
em qualquer ocasião, convival ou festiva, sem relação
alguma com a comédia.
O que se deve deixar claro é que esta estava ligada, em suas
origens, a esses grupos de foliões e que conservou algumas
de suas características, mesmo depois de se haver tornado
uma forma de poesia. O gênero era conhecido em Atenas
nos inícios do séc. V a.C. e o nascimento da comédia ática,
na forma com que chegou até nós, deve-se a combinação de
dois elementos completamente díspares: o antigo kômos,
ou dança cômica e determinadas farsas literárias. A verdade
é que, originando-se, tanto quanto a tragédia, do culto
dionisíaco, a comédia é o antônimo da tragédia, já que sua
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finalidade é contemplar a vida de um ponto de vista
antitético1. (Adaptado por nós).
Para o autor, a afirmação de M. Bowra é irrefutável, porém
incompleta, pois, é preciso fazer uma distinção entre o kômos popular,
profano, e o kômos dionisíaco, religioso. Ele acredita que a comédia antiga seja
realmente formada a partir dos dois elementos: o kômos e a farsa, e a esse
respeito ele concorda com Paul Mazon que, segundo ele, oferece uma visão
pouco animadora:
A antiga Comédia Ática é um gênero desconcertante. Sua
origem nos parece, à primeira vista, um verdadeiro enigma.
O motivo é simples: a Comédia Antiga combina elementos
tão diversos, que a síntese, uma vez passadas as
circunstâncias que lhe permitiram o surto, não pôde durar
por muito tempo. De outro lado, a Comédia Antiga, no
curso de sua breve existência, revestiu-se de formas tão
flexíveis, que a unidade real do gênero é dificilmente
perceptível pela crítica2.
J. de Souza Brandão, tomando como base oito das dez comédias
de Aristófanes que chegaram até nós, conclui que a comédia antiga se divide em
duas partes. A primeira, o ágon, uma luta, um debate; a segunda é uma revista.
Aquela comporta uma ação, com o prólogo, párodo, o ágon, a parábase e o
êxodo; esta, uma série de sketches, que esclarecem o sucesso da ação
desenvolvida na primeira. Nesta, o coro desempenha o papel de um verdadeiro
ator; naquela, ele é somente o porta-voz do poeta. Encontramos, entretanto, a
farsa em ambas sob as mais diferentes formas. Segundo ele, a presença da farsa
Junito de Souza Brandão, Teatro Grego: tragédia e comédia, 1984, p. 71.
Paul Mazon, La Farce dans Aristhofane et les Origenes de la Comédie en Grèce. In: Revue de
la société d’histoire du théâtre. Paris, Jean Chaffiotte, 1951, I, 7-18. Apud: Junito de Souza
Brandão, Teatro Grego: tragédia e comédia, 1984, p. 72.
1
2
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é visível, sobretudo, na revista, onde surge, muitas vezes, um desfile de tipos
grotescos que vêm provocar o protagonista. Se suprimirmos o êxodo com que
se fecha a comédia, diz ele, e colocarmos a parábase, será perceptível que esta
funciona como um divisor de águas na comédia antiga. A parábase é como uma
chamada dos espectadores à realidade, uma parada na ação, ou seja, uma sátira
que o poeta faz contra os cidadãos, responsáveis política, social e religiosamente
pela polis. Enfim, o que nos importa, na interpretação de Brandão, é saber que,
quando a parábase foi introduzida para servir de divisor de duas partes
completamente diferentes da comédia: a primeira que provém do kômos, e a
segunda, de origem na farsa dórica1.
Em sua Poética, Aristóteles comenta que a comédia primitiva era
improvisada e originária dos cantos fálicos. Trata-se das faloforias, o cortejo em
que se escoltava um falo, símbolo da fecundidade e da fertilização da terra. O
vocábulo komoidía, que não é estranho à origem de comédia, apresenta um
elemento, kômos, que tem muitos sentidos, entre eles grupo de festas. Em
Atenas, o kômos, tinha um valor ritual, figurando nas procissões oficiais das
Grandes Dionísias, primitivamente chamadas de kômoi. Isso faz com que o
Brandão conclua que o nosso comédia vem de: kômos = procissão jocosa +
oidé = canto + ía, komoidía, pelo latim comoedia, dos kômoi dionisíacos2.
Como já foi dito, o teatro grego surgiu em volta das Grandes
Dionisíacas. A comédia seguiu a Tragédia após 50 anos, em 488ac quando foi
introduzida nos festivais. De acordo com Aristóteles a comédia teria surgido das
procissões phalliká ou kómos, mais bem traduzido por “canto dos kósmos”,
como um ato burlesco e religioso. Diacov & Kavalev irão traduzir como “O
Canto dos Camponeses cabeludos”. Esses cortejos têm, ainda de acordo com
Aristóteles, sentidos fálicos, que seriam o surgimento da comédia. Eram
compostas de 24 coreutas, em muitos casos representando animais com danças
e cantos vivazes pelas ruas. A Comédia (komoidia) tem um sentindo, então, de
1
2
Junito de Souza Brandão, Teatro Grego: tragédia e comédia, 1984, p. 73.
Idem.
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procissão, komoi, que se dividia em dois tipos. Uma os jovens vão às ruas
brincar com os cidadãos, pedindo prendas, em que a origem da comédia estaria
ligada a procissões com objetos fálicos e sentidos sexuais. Os cavaleiros da
Ática, em nome de Dionísio, invertiam a ordem da sociedade e lançavam-se à
dança e a saciação dos desejos. No século V veremos se juntar ao Kosmos os
comediantes dóricos, que introduzirão os falos e as barrigas falsas. E procissões
de celebração da fertilidade da natureza. Enquanto a Tragédia trata de temas
ligados aos deuses, heróis, destino e resignação, a comédia irá tratar do que
Aristóteles chamou de “homens inferiores”, homens comuns, temas mais
presentes e do convívio do espectador. Em 440ac a Comédia entra nas Lenéias,
festivais de honra a Dionísio no inverno. É possível perceber pelas obras que o
gênero da comédia era visto como inferior à tragédia. Um exemplo disso é que
no julgamento das obras dos concursos das Dionisíacas, o julgamento da
Tragédia era feito por aristocratas e o julgamento da comédia se dava com a
escolha de 5 membros da platéia quaisquer. Desse período só temos completas
as 11 obras de Aristófanes. A Comédia grega é dividida em três partes:
A Comédia Antiga (500-400ac) , marcada pela sátira política e pelos
ataques pessoais. Dessa época são representantes Aristófanes, Creatino,
Êupolis, Crates, Ferécrates e Magnes. A primeira obra de comédia conhecida é
de Epicarmo (VI-Vac).
Tentou-se proibir as comédias de fazer inserções de personagens relacionados a
personalidades vivas, proibição de alusões jocosas aos mortos e a crítica contra
juízes. Pelas obras de Aristófanes percebemos que essas pretensões foram em
vão. A Comédia Antiga irá cair com Atenas, em 404ac no fim da Guerra do
Peloponeso. Esse período é visto como o de maior liberdade para os
comediantes pois vemos que até tentativas da sociedade de barra-los foram
insuficiente para sua escrita ácida. É em Atenas que a comédia será, digamos
assim, “profissionalizada”. A Comédia Antiga é reservada para os atenienses de
berço, não poderiam ser escritas por metecos. As obras desse período eram
apresentados em edifícios de parede de madeira pintada e tecidos e o coro,
assim como na tragédia, ficava próximo a orquestra. Para cenas de transporte
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aéreo utilizava-se o teto da skene. As máscaras usadas na comédia vão desde
animais até caricaturas de personagens vivos. Dizem que por ninguém querer
ter feito a máscara de Cléon, em os Cavaleiros, de Aristófanes, o próprio autor
teve que interpretar com o rosto pintado de vermelho, motivo que o teria feito
levar uma surra depois da peça. A dança das peças cômicas eram tão vivas e
obscenas que era visto como vergonhoso dança-las sem máscara. Talvez tenha
sido esse um dos motivos que levou a exclusão das mulheres na comédia por
tanto tempo. A diferenciação nas roupas da comédia se fazia mais
enfaticamente na divisão de gênero. Para o homem o phallus e para a mulher
seios simulados.
A Comédia Antiga tem muitas semelhanças com a organização da
tragédia. O párodo, a entrada do coro e o êxodos, a saída do coro. Tinha uma
sequencia obrigatória na sua construção. O prólogo, onde são demonstrados os
fatos. O párodo, primeiro canto do coro, o ágon, onde se desenrrola a disputa
entre os personagens e a parábase, onde o coro se dirige ao espectador e o
corifeu fala, geralmente aludindo aos pensamentos do autor.
A Comédia Intermediária tem como característica o desaparecimento
do coro. Incluem-se nesse período a obra Pluto de Aristófanes, as obras de
Aléxis e Antífanes. Nesse período a comédia passa a ser escrita também por
metecos.
A Comédia Nova (323 à 260ac) surge no período de Alexandre, o
Grande. Seu maior representante é Menandro que não trás mais o conteúdo
político para as suas peças como era de costume na Comédia Antiga, mas sim
enredos de costumes e fixação de tipos. Esse teatro será mais marcado por
enredos bem definidos e não por partes intercaladas, as vezes sem nexo, na
Comédia Antiga. Esse período grego é diferente. Na Comédia Antiga existia a
preocupação de sempre ressaltar o valor dos atenienses e da democracia.
Atenas vive agora um momento de helenização. É um teatro que irá se basear
mais nas intrigas íntimas e na vida privada.
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a. Aristófanes
A data do nascimento de Aristófanes é bastante discutida e pouco se
sabe sobre a sua vida. Teria nascido por volta de 445ac e vivido até 386ac, essa
datação não é precisa, mas nos ajuda a nortear o contexto grego que Aristófanes
teria vivido e assim compreender suas obras. Seria filho de Filípides e talvez
tenha sido criado no meio rural em uma propriedade na ilha de Egina. Teria
exercido cargo público e teria tido dois filhos, Araros e Filipos que também
teriam seguido o teatro cômico. Os escritos de Aristófanes são livremente
baseados na vida ateniense e têm como temas geralmente a crítica aos
governantes (lembrar que estamos vivendo o esplendor da democracia
ateniense em seu auge, momento bastante favorável para os escritores da
Comédia Antiga) em Os Cavaleiros e os Arcanenses, principalmente. Também
trata da educação dos sofistas em As Nuvens, sobre a guerra do Peloponeso,
em Lisístrata, sobre os escritores trágicos em As Tesmoforiantes. Aristófanes é
contrário a popularização da democracia ateniense e partidário de um sistema
de governo aristocrático e de proprietários de terra. Das 47 peças que escreveu,
só chegaram completas ao nosso conhecimento 11. Nessas busca elementos
que julgava serem responsáveis pela decadência ateniense. 10 peças são do
período da primeira metade da Guerra do Peloponeso das quais 7 têm
conteúdo político. Ganhou 4 primeiros lugares, 3 segundos lugares e 1 terceiro
lugar. Sua peça As Rãs foi a única comédia que temos notícia que foi reapresentada diante do público na abertura das Grandes Dionisíacas, prestígio
esse reservado apenas às tragédias. Em 427ac tem sua primeira obra encenada,
“Os Babilônicos” onde faz uma crítica à Cleon, sucessor de Péricles. Continua
sua crítica ao mesmo governante em “Os Cavaleiros” onde a crítica era tão
ácida que nenhum ator se dispôs a representá-la tendo o autor mesmo que
encenar. Dizem que a performance não teria agradado tanto. Cleon tenta
processá-lo nas duas apresentações, sem sucesso.
Aristófanes demonstra em suas obras o desejo ardente pela paz da
Grécia e seus primeiros escritos demonstram essa insatisfação com a guerra. As
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comédias antes de 400ac têm como características em geral fazer rir e criticar os
políticos e intelectuais de Atenas.
As peças Assembléia das Mulheres e Pluto já possuem um caráter de
transição, são geralmente classificadas como Comédia Intermediária pela
características de diminuição do coro, desaparecimento da sátira política e
redução da sátira pessoal. Sua peça Cocalos teria sido a única com aspectos da
Comédia Nova, pioneira, com aspectos da comédia romântica.
Aristófanes é citado por Platão, em O Banquete, como alguém
agradável, jovial e divertido.
“Na verdade, Erixímaco, disse Aristófanes, é de outro modo
que tenho a intenção de falar, diferente do teu e do de
Pausânias. Com efeito, parece-me os homens
absolutamente não terem percebido o poder do amor, que
se o percebessem, os maiores templos e altares lhe
preparariam, e os maiores sacrifícios lhe fariam, não como
agora que nada disso há em sua honra, quando mais que
tudo deve haver. É ele com efeito o deus mais amigo do
homem, protetor e médico desses males, de cuja cura
dependeria sem dúvida a maior felicidade para o gênero
humano. Tentarei eu portanto iniciar-vos em seu poder, e
vós o ensinareis aos outros. Mas é preciso primeiro
aprenderdes a natureza humana e as suas vicissitudes.”
(ARISTÓFANES in O BAQUETE, de Platão)
As obras de Aristófanes são geralmente divididas em algumas partes.
Inicialmente o prólogo, em que expõe os acontecimentos que se desenrolarão
na peça. Depois o Párodo, em que o coro faz sua intervenção inicial. Ágon, o
momento mais importante da peça, onde existe o debate/disputa que permeará
a questão central da obra. A parábase, em que o coro se direciona ao público
para falar sobre a ação ocorrida no Ágon ou para introduzir um assunto não-
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relacionado. Seguem-se episódios breves que desenrolarão a disputa e o êxodo,
em que os personagens se dispersam e o coro faz a intervenção final.
b. A sociedade grega por Aristófanes
Ninguém está à salvo das palavras ácidas desse autor. Aristófanes usa de
sua Comédia para demonstrar seu desgosto contra os demagogos, contra os
filósofos, contra os trágicos, contra a guerra, seu apreço por Esparta, sua revolta
contra a democracia, a genialidade feminina, a conduta dos homens, enfim. A
tragédia e a comédia têm objetivos diferentes, mas ambos trazem sentidos para
suas histórias. As peças gregas nunca dizem somente o que dizem, é preciso ler
mais vivamente. A tragédia, que se baseia na conduta moral, no temor aos
deuses, nos princípios humanos, difere da comédia porque essa comenta sobre
o cotidiano, sobre a vida presente, sobre o tempo presente, sobre a política,
sociedade, costumes que os espectadores vivenciam. A risada que ainda hoje
damos nas peças de Aristófanes é fruto dessa “cotidianidade” dos enredos,
esses aspectos da vida pública e privada que toda geração perpassa, por
questões que todo casal, que toda mulher, que todo cidadão, em qualquer
sociedade, passa. A comédia de Aristófanes se tornou eterna porque é possível,
hoje, compreender seu sarcasmo, sua ironia, sua revolta, quase como se ele
estivesse falando sobre nós, brasileiros.
Para fazer uma análise da sociedade grega por Aristófanes escolhemos
dentre as suas 11 conhecidas obras apenas 3. São elas “Lisístrata” 1 (411ac), “As
Tesmoforiantes” (411ac) e “Revolução das Mulheres” (392ac) porque é sobre a
visão da mulher que partiremos a nossa análise.
Na primeira obra, Lisístrata, Atenas e Esparta estão no meio da Guerra
do Peloponeso. Para acabar a guerra a trazer seus maridos e a paz de volta a
cidade, as mulheres reúnem-se e deliberam que é necessário buscar um meio
de impedir o prosseguimento da guerra. Essa medida é a greve de sexo. Através
1
Seu nome significa “a que dissolve/ separa exércitos” bem explicativo para a trama.
[214]
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da resistência feminina Atenas e Esparta conseguem chegar à paz e os maridos
retornam para suas mulheres.
No mesmo ano da apresentação de Lisístrata, 411ac, dois meses
seguintes Aristófanes apresenta a obra As Tesmoforiantes. Essa peça tem como
enredo o julgamento de Eurípedes. Escritor trágico, é acusado por uma
assembléia de mulheres de falar calúnias e atacar as mulheres em suas obras,
sempre diminuídas. A fim de que seja inocentado Eurípedes pede a seu colega
Agathon, também escritor trágico, que com jeitos afeminados se passe por uma
mulher e defenda Eurípedes diante das mulheres. Agathon termina por recusar
e Eurípedes envia seu primo, Mnesilochous para a assembléia das mulheres.
Eurípedes consegue, ao final, um acordo com as mulheres e resgata seu primo.
Na Revolução das Mulheres, obra geralmente enquadrada na Comédia
Intermediária, mulheres se fingem de homens e deliberam na assembléia que o
governo deveria ser dado as mulheres que seriam melhor administradoras. Suas
decisões incluem um governo popular, igualitário onde tudo seria de todo
mundo e não haveria diferença entre as pessoas.
De uma maneira geral é possível identificar (ainda que seja muito difícil separar
o que é de fato opinião de Aristófanes e o que é sarcasmo...) três posições
distintas acerca da mulher. A visão em geral, da sociedade ateniense, a visão dos
trágicos e a visão do autor. A mulher em geral é vista em Atenas:
Cleonice – Você não receia que os homens contra-ataquem
daqui a pouco?
Lisistrata – Não tenho medo deles. Só abriremos as...portas
quando aceitarem nossas condições.
Cleonice – Isso mesmo, ou então não mereceríamos a fama
de criaturas mais perigosas do mundo.
[...]
1º Velho – Não há fera mais indomável que a mulher, nem
fogo mais destruidor. Nem a pantera é mais traiçoeira.
(LISÍSTRATA)
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As mulheres são vistas em Atenas como traiçoeiras, como seres que
atuam por debaixo dos panos e que a tragédia as identificaria dessa mesma
forma. Outro trecho de A Revolução das Mulheres, encontramos essa mesma
visão sobre a figura feminina:
1ª mulher – e como nós, as mulheres, criaturas delicadas e de coração fraco,
iremos falar ao povo? (A REVOLUÇÃO DAS MULHERES)
Neste trecho percebemos também a visão de que as mulheres seriam
frágeis, delicadas diferentemente dos homens, corajosos e guerreiros e que
assim sendo podem governar o estado. Percebemos nessa simples linha que a
concepção de governo da época era de um governo autoritário e não para as
“criaturas delicadas”. Aristófanes também nos dá idéia do que seria a vida
cotidiana dessas mulheres, como se encaixavam dentro da sociedade.
Cleonice – mas queridinha, elas virão. Você sabe como é
difícil para a mulher sair de casa. Uma deve ter estado
muito ocupada com o marido; outra teve de acordar a
empregada; outra deve ter tido de fazer as crianças
dormirem; outra teve que lavá-las, outra deve ter tido
trabalho com o mingau... (Lisístrata)
Vemos que a vida feminina em Atenas girava em torno da casa, do
marido e dos filhos, como é tradicionalmente em muitas sociedades. Em As
Tesmoforiantes as mulheres se utilizam da administração da casa para basear
seu governo, pois seria o conhecimento que teriam sobre administração.
Os autores trágicos se mostram por Aristófanes como cheios de
preconceitos contra as mulheres. Eurípedes é ridicularizado em As
Tesmoforiantes, assim como Agathon que é visto como afeminado. Em várias
passagens encontramos referências a esse pensar dos trágicos acerca da mulher.
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Lisistrata – Ó sexo dissoluto! Não escapa uma! Não é sem
razão que somos assunto tudo quanto é tragédia. Quando
vocês não estão pensando num homem é porque estão
pensando em vários! [...] (Lisistrata)
[...]
1.º Velho – Eu lembro disso! Também ajudei a cercar o
homem! Seria uma vergonha se eu, só com minha presença,
não conseguisse impedir umas mulheres, essas criaturas
odiadas pelos deuses e pelos autores de tragédias, de
continuarem a fazer violências! Se eu não der um jeito nelas
jogo fora todos os meus troféus de guerra!
[...]
1.º Velho – Não há ninguém mais inteligente que os autores
de tragédias. Eles é que tem razão. Pode haver criatura mais
sem vergonha que a mulher?
[...]
1.º. Velho – Chegue para lá, aduladora! Os poetas têm
razão quando dizem que com essas pestes a coisa vai mal e
sem essas pestes pior. Pois bem! Agora faremos as pazes
com vocês. Não maltrataremos mais vocês, nem vocês nos
maltratarão. Vamos! Todo mundo junto para comemorar!
(Lisístrata)
De uma maneira geral percebemos que os autores trágicos de Atenas
costumavam diminuir as mulheres em suas peças e percebe-se que Aristófanes
se incomoda com tal comportamento pois pelo menos nas três peças analisadas
as mulheres são tomadoras de decisões e pensam por si próprias a ponto de
arranjarem soluções para seus problemas. É claro que o autor se utiliza da
sexualidade e de muitas alegorias para fazer entender sua visão, mas não
podemos destacar as críticas implícitas que existem nas suas peças. A
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dificuldade da Comédia está, justamente, em conseguir compreender o sentido
por detrás das alegorias e brincadeiras eróticas. Nas Tesmoforiantes é
importante uma passagem do texto em que uma mulher descreve sua raiva
contra o poeta Eurípedes de maneira vivaz e demonstra que esses insultos
contra o gênero feminino deveria ser bem mais freqüente do que se imagina na
tragédia:
FIRST WOMAN - Has he not hit us enough, calumniated
us sufficiently, wherever there are spectators, tragedians, and
a chorus? Does; he not style us adulterous, lecherous,
bibulous, treacherous, and garrulous? Does he not repeat
that we are all vice, that we are the curse of our husbands?
So that, directly they come back from the theatre, they look
at us doubtfully and go searching every nook, fearing there
may be some hidden lover. We can do nothing as we used
to, so many are the false ideas which he has instilled into our
husbands. […]Again, it is because of Euripides that we are
incessantly watched, that we are shut up behind bolts and
bars, and that dogs are kept to frighten off the adulterers.
(As Tesmoforiantes)
Através da voz de uma mulher Aristófanes demonstra que grande
parte da desgraça feminina é conseqüência da visão da tragédia, que perpetua
uma idéia de mulheres ardilosas e infiéis e que muitas permaneciam trancadas
pela popularização desse estereótipo. Nas três obras que analisamos,
encontramos partes em que poderiam demonstrar como Aristófanes via a
mulher e o quanto isso diferia da visão geral e da visão dos poetas trágicos.
Valentina – [...] Nem perguntemos o que elas irão fazer,
mas deixemo-las governar logo e bem! Pensemos um
pouco: sendo mães, elas pouparão de cuidar da vida de seus
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filhos, de nossos soldados, evitando as guerras; para arranjar
dinheiro, as mulheres são muito mais hábeis; nos cargos que
ocuparão, ninguém as enganará, pois elas que vivem
enganando os homens conhecem todos os truques e
saberão defender-se . Quanto ao resto, nem vou falar. Se
vocês acreditarem em mim serão felizes para o resto da
vida! (A Revolução das Mulheres)
1.ª Mulher – [...] Vocês não crêem que eu possa dar bons
conselhos à cidade? Não é crime Ter nascido mulher e o
sexo não me impede de ter idéias melhores que as que
andam por aí. Posso dar ao país outras coisas boas além dos
filhos que já dei! E vocês? Não dão mais nada! (Lisístrata)
De certa forma vemos uma visão de Aristófanes sobre a mulher, de
independência intelectual, de vigor e amabilidade. Infelizmente não temos
como afirmar categoricamente que essas passagens possam demonstrar a visão
do autor sobre as mulheres de fato. É possível que esteja sendo sarcástico sobre
isso, mas de acordo com as leituras quando Aristófanes é sarcástico ele deixa
explicito seu desgosto e geralmente ataca outra pessoa ou um grupo de pessoas
para demonstrar isso. Nessas passagens ele é claro e os personagens não estão
em situação ridícula o que nos dá mais segurança para acreditar que sejam
visões do próprio autor acerca das mulheres. Vemos através de Aristófanes que
na sociedade ateniense a mulher não tinha voz dentro dos espaços políticos
pois quando as mulheres pretendem entrar disfarçadas na assembléia não
sabem como se portar diante dos magistrados o que demonstra que muito
distantes deveriam estar das tomadas de poder. Esse “golpe” feminino é
bastante recorrente nas obras desse autor.
A crítica a tragédia ultrapassa o debate acerca do gênero feminino. A
Comédia é inferiorizada diante da Tragédia pela sociedade ateniense e
Aristófanes utiliza das suas obras para atacar esse gênero. É possível perceber
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uma visão da Tragédia acerca da mulher escrito por Aristófanes de maneira
sarcástica.
MNESILOCHUS - Because he has known and shown up two or three of our
faults, when we have a thousand? Are these not our everyday tricks? Why
certainly, by Artemis, and we, are angry with Euripides, who assuredly treats us
no worse than we deserve! (As Tesmoforiantes)
É claro que o personagem que Aristófanes utiliza para dar voz a visão
da tragédia acerca das mulheres é a do primo de Eurípedes que tem um papel
essencial na peça para demonstrar o embate das visões da comédia e da
tragédia. Esse personagem, parcial, demonstra a concepção da tragédia. Aliás,
Eurípedes é visto por Aristófanes como inferior a Ésquilo e a Sófocles sendo
esse autor o mais baixo de todos. Não sabemos qual o motivo de tamanha
aversão ao mesmo escritor mas é bastante evidente em suas obras que existia
alguma querela em relação a ele. Eurípedes será ridicularizado nas
Tesmoforiantes, Os Arcanenses e as Rãs das obras que conhecemos. Na obra
As Tesmoforiantes, Aristófanes faz parodização de personagens de Eurípedes
tais como Télefo, Palamedes, Helena e Andrômedra, o que nos mostra que
Aristófanes era bastante conhecedor das tragédias e não apenas um ignorante
enciumado do prestígio dos trágicos.
Mas partiremos para a discussão de outros pontos na obra de
Aristófanes. Outra das suas características está diante da visão dos deuses. Não
aparenta Aristófanes se sentir muito agradado acerca da fé incondicional nos
deuses, mas devoto de pessoas de espírito forte e tomadas de decisões. Vemos
no trecho seguinte essa idéia.
EURIPIDES Come, get yourself to the temple.
MNESILOCHUS No, by Apollo, not unless you swear to
me....
EURIPIDES What?
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MNESILOCHUS ....that, if anything untoward happen to
me, you will leave nothing undone to save me.
EURIPIDES Very well! I swear it by the Aether, the
dwelling-place of the king of the gods.
MNESILOCHUS Why not rather swear it by the sons of
Hippocrates?
EURIPIDES Come, I swear it by all the gods, both great
and small.
(As Tesmoforiantes)
Veja que Aristófanes generaliza entre deuses “grande e pequenos”
como se demonstrando que não há importância para qual deus jurar,
irrelevante. Em Lisístrata também encontramos referencias pejorativas a deuses.
A peça As Tesmoforiantes é muito rica para nos dar detalhes do
mundo grego. Por exemplo da existência de filhos trocados entre senhoras e
escravos:
MNESILOCHUS Have I told how you attributed to yourself the male child
your slave had just borne and gave her your little daughter?
A provável aparência comum entre os homens atenienses, que
deveriam usar barba e se orgulharem disso sendo sinal de virilidade (No início
de Assembléia das Mulheres, as mulheres para se disfarçarem de magistrados
usam barbas) (Agathon quando recusa ajudar Eurípedes em As Tesmoforiantes
interrompe um processo depilatório):
MNESILOCHUS This is pure invention! What man is fool enough to let
himself be depilated? As for myself, I don't believe a word of it.
Rituais pagãos sagrados que envolviam os mortos, em que a mãe
tenta guardar o sangue da criança:
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FIRST WOMAN Oh, my beloved daughter! Mania, hand me the sacred cup,
that I may at least catch the blood of my child.
Como era o sistema de denúncias na Grécia Antiga, que os crimes
deveriam ser relatados aos magistrados e julgados:
FIRST WOMAN That wretch. But as you are here, watch him well, while I go
with Clisthenes to the Magistrates and denounce him for his crimes.
As Tesmoforiantes, assim como todas as peças de Aristófanes por
tratarem de temas mais cotidianos nos dão uma visão individualizada do mundo
grego antigo e de como esses costumes (mumificados por nós Historiadores,
que só vemos o mundo antigo como uma tela pintada para ser admirada) como
gestos comum, diários, que têm espontaneidade e eram de visão geral entre
seus contemporâneos. Também encontramos passagens que nos revelam os
crimes que eram cometidos com certa freqüência em Atenas e que podemos
considerar em suas obras:
Valentina – Isso não terá importância. As crianças julgarão
seus pais todos os homens que tiverem idade para isso.
Blêpiro – Agora é que a rapaziada vai espancar os velhos à
vontade, pois até hoje, sabendo quem era o pai, eles
espancavam, quanto mais quando não souberem! (A
Revolução das Mulheres)
MNESILOCHUS ....Have I mentioned the woman who
killed her husband with a hatchet? Of another, who caused
hers to lose his reason wither potions? And of the
Acharnian woman....
FIRST WOMAN Die, you bitch!
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MNESILOCHUS ....who buried her father beneath the
bath? (As Tesmoforiantes)
Vemos por esses trechos que a sociedade Ateniense tinha uma vida
privada violenta, fraternal que envolvia diversos tipos de crimes.
Aristófanes também é mestre em utilizar-se de alegorias para
conceitos espirituais e idealizações, como a Conciliação, vista no corpo de uma
mulher, que une Atenas e Esparta, em Lisístrata:
Embaixador – Se soubéssemos que a Conciliação era assim
já estaríamos nos braços dela há muito tempo!
Ministro – Nós também queremos a Conciliação! Primeiro
nós!
Lisístrata – Calma! Calma! Ela será de todos! A Conciliação
dará tudo que vocês querem quando as negociações de paz
forem concluídas. Agora vão consultar todos os outros
gregos.
Ministro – Para quê? Quem não vai querer essa
Conciliação? (Lisístrata)
Vê-se pela passagem que a Conciliação é bonita, desejável. A paz, de
uma forma geral, é assim representada por Aristófanes, o desejo de ver Atenas
em seu esplendor é tanta que a personificação da Conciliação se faz através do
desejo e da beleza. E por falar em Atenas e Esparta, essa é outra questão
bastante vista dentre as peças de Aristófanes. Esse autor é contrário a
democracia, sua peça, A Revolução das Mulheres, é sarcástica quanto a um
governo popular. Aristófanes é amante de Esparta e deixa esse fato explítico.
Os personagens mais sensatos e fortes são espartanos, Esparta é modelo de
inteligência, determinação e cautela. Quando Lisistrata propõe a guerra de sexo
para salvar a Grécia, todas as atenienses parecem relutantes em deixar o prazer
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dos seus maridos, mas dentre todas a única, espartana, Lampito, se mostra
disposta a levar à Esparta a idéia da greve.
Lisístrata – [...] Mas minha querida espartana, você parece a
única que está comigo. Unamo-nos! Ainda poderemos
salvar a situação!
Lampito – É doloroso para uma mulher dormir sozinha,
sem uma certa coisa... Em todo caso, estou resolvida, pois
precisamos de paz!
Lisístrata – Querida! Você é a única mulher de verdade
entre todas essas aí!
Aristófanes é partidário de Esparta e isso fica claro, defende um
governo aristocrático ao modelo de Esparta. Talvez – e peço desculpas por
permanecer apenas no “talvez” – a visão da mulher de Aristófanes seja
decorrente do modelo social da própria Esparta onde não existia uma liberdade
extrema às mulheres, como em Creta, mas que em relação ao sistema
“democrático” ateniense elas tinham maior participação da administração
publica. As peças de Aristófanes, creio, deveriam causar rebuliço na sociedade
ateniense, apesar de algumas peças terem saído nos primeiros lugares. O pior
lugar em que Aristófanes teria ficado no concurso das Grandes Dionisíacas teria
sido o terceiro lugar, justamente na peça que ridiculariza Sócrates, As Nuvens.
Sobre essa dualidade entre Atenas e Esparta, ainda encontramos outro trecho
em Lisístrata acerca disso:
Lampito – Nós em Esparta convenceremos nossos homens
a votar por uma paz justa, leal. Mas os atenienses, que são
de briga, como vai ser possível aquietá-los?
Lisístrata – Não tenha receios quanto a isso. Daremos um
jeito neles...
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Lampito – Enquanto eles tiverem navios de guerra e o
Tesouro lá na Acrópole estiver cheio, acho difícil.
Vemos pelo comentário final da espartana que Atenas era vista como
“ladra” das finanças da Liga de Delos e que seu crescimento era visto como
desvio da verba. Motivos geralmente aceitos para o início da Guerra do
Peloponeso. Demonstra os espartanos como comedidos, justos e leais e os
atenienses como impulsivos e violentos. Acerca da oposição entre democracia e
ditadura também encontramos passagens que revelam a relação do governo
democrático com seus opositores.
2.º Velho – Para mim esse cheiro não é propriamente da
situação. É de coisa pior. Sinto no ar um cheirinho de...
ditadura!... Se há alguma coisa espartana nisso, na certa ela
está conspirando com as outras mulheres para por a mão
em nosso dinheiro! (lisístrata)
Cremes – Mas as mulheres, continuava o orador brancoso,
são um prodígio de bom senso; sabem guardar segredos,
são leais e honestas. Elas não denunciam ninguém, não
processam ninguém, não falam mal da vida alheia, não
entram em golpes contra a democracia, enfim, atribuía mil
qualidades às mulheres e não esgotava a fonte de elogios às
virtudes delas. (A Revolução das Mulheres)
Podemos ver que Aristófanes, ainda que partidário de Esparta, vê
aspectos positivos de uma democracia e considera os espartanos como
“ditadores”. O governo democrático, pelo que entendemos, é constantemente
ameaçado por golpes.
Um aspecto fundamental na obra de Aristófanes é a guerra que se desenrolava
entre Atenas e Esparta. É comum vermos referências à costumes de guerra,
embates políticos, enfim, a situação predominante na Grécia Antiga desse
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tempo. Podemos perceber por um trecho de Lisístrata como eram feitos os
julgamentos dos guerreiros
Cleonice – Que juramento você quer fazer, Lisístrata?
Lisístrata – Vamos todas jurar com as mãos em cima de um escudo, como
fazem os homens.
Cleonice – Ora, Lisístrata! Esse negócio de escudo cheira a guerra e nós
queremos paz.
Vemos também como esse exército estava incluso na vida de Atenas
e como eram vistos pelos cidadãos:
Lisístrata – Por haver feito que não haja mais soldados
fanfarrões desfilando sua vaidade nas ruas!
Cleonice – Isso mesmo!
Lisístrata – Pois atualmente as ruas estão repletas deles,
passeando cheios de armas e pose, mais duros que postes!
Comissário – É a atitude que convém aos bravos.
Lisístrata – Com toda bravura fica muito difícil andar por aí
de capacete e escudo fazendo comprinhas...
Cleonice – Exatamente! Um dia desses vi um comandante
de cavalaria parado perto de uma vendedora ambulante,
montado, tomando sopa de legumes no capacete. Vi outro
com suas armas treinando pontaria em figos e azeitonas,
assustando todo mundo...
O soldado fanfarrão é um dos tipos de personagens mais recorrentes
de Aristófanes. É mais um elemento que conjuntamente faz parte da crítica de
Aristófanes contra a guerra, a sociedade da guerra e os governos de guerra que
tanto é contra. É um exército que desfila vaidoso, orgulhoso de sua bravura,
mas que não passam de brutos e sem educação cidadã, pois comem em
capacetes e assustam o povo com seus modos. Ou pelo menos é isso que
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Aristófanes nos faz acreditar. Também demonstra como a guerra é capaz de
afetar a vida privada dos cidadãos e como a guerra não se restringe ao âmbito
político mas a própria organização da sociedade.
Lisístrata – Você é mesmo um retardado! O fato é que nós,
as mulheres, sofremos duplamente com a guerra. Primeiro,
quando levam nossos filhos para combater...
Comissário – Cale a boca, mulher! Não fique recordando
coisas tristes!
Lisístrata - ...Depois, quando o natural seria experimentar os
prazeres da vida e gozar a mocidade com nossos maridos,
ficamos em casa sozinhas por causa da guerra. Não quero
nem falar no que nós, as casadas, sofremos com isso, mas
para as solteiras ainda é pior, pois elas envelhecem solitárias
em seus quartos. Sabe lá o que deve ser isso?
Novamente Aristófanes faz referência a vida das mulheres para
exemplificar os males da guerra. Esses males os correlaciona com os afazeres
administrativos. Enfim, percebemos que Aristófanes demonstra uma
genialidade a respeito dos costumes e da guerra, pois, ele elenca dentro de suas
peças vários âmbitos que são correlacionados com as batalhas e como isso afeta
a polis grega. É preciso ser muito observador, conhecedor e perspicaz para
compreender todas as amarras sociais e expô-las de forma risível (e ambígua).
Vê-se pelo emaranhado das falas que Aristófanes compreende ser a guerra de
âmbito político, social, cultural, privado, de gênero, econômico, diplomático,
ou seja, enxerga a Grécia com uma certa “unidade” política, compreende que
para Atenas continuar com seu esplendor também o tem de acontecer para o
resto das ilhas e do continente grego. E é incrível enxergar isso pois, como
sabemos, a Grécia é dividida em cidades-estado, muitas vezes isoladas,
carregadas de patriotismo, tanto que existem rivalidades entre elas. Mas
Aristófanes, comicamente, nos ensina que para que Atenas não sucumba
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necessita das outras cidades-estado, ainda que com críticas. Não
pormenorizando a Tragédia – é claro, tem sua genialidade própria – mas a
comédia não é apenas uma ficção que faz rir, é um elemento político de
características um tanto livres que demonstram a “esperteza” daqueles que
ousam pensar diferente. Não é à toa que Cleon tenta processar Aristófanes duas
vezes. Para demonstrar essa correlação da economia, a administração e a
guerra, encontramos em Lisistrata:
Comissário – Então é por causa do dinheiro que fazemos
guerras?
Lisístrata – Sim senhor! Vocês e todos os outros. É para
poderem roubar nos cargos públicos que vocês vivem
armando encrencas. Vocês podem fazer o que quiserem
mas no dinheiro do povo, que está lá dentro, ninguém põe a
mão!
Comissário – E você! Que é que vai fazer?
Lisístrata – Você ainda pergunta? Agora somos nós, as
mulheres, que vamos administrar os dinheiros públicos.
Comissário – Vocês vão administrar o Tesouro?
Lisístrata – Que há de estranho nisso? Não somos nós que
administramos os bens de vocês em nossas casas?
Comissário – Mas não é a mesma coisa!
Lisístrata – Como não é a mesma coisa?
Comissário – Os dinheiros públicos são para a guerra.
Lisístrata – mas para início de conversa não é absolutamente
necessário que haja guerras.
Vemos claramente a correlação entre administração e tesouro, tesouro
e guerra, relações de causa e conseqüência. Observe a perspicácia de
Aristófanes ao perceber que o motivo das guerras não está em outra coisa a não
ser no tesouro. Além do mais, a visão de que as guerras não são necessárias. O
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ponto em que gira todas essa argumentação é a paz. A paz para Aristófanes é
um bem supremo, que deve ser buscado por Atenas. O autor demonstra
também perceber a unidade cultural existente entre Atenas e Esparta. Também
em Lisístrata podemos perceber nos últimos trechos do texto, tais falas:
Lisístrata – Vocês, espartanos, têm sido muito injustos com
os atenienses. Parecem até esquecidos de que são todos
gregos e muitas vezes foram ajudados e até salvos por eles.
[...]
Lisístrata – E vocês, atenienses, não se julguem melhores
que os espartanos. Se vocês pensassem um pouco
perceberiam que eles fizeram mais bem do que mal a vocês
até hoje!
Um ultimo âmbito da nossa análise trata-se a respeito da concepção de
cidadania, do governo e da justiça. Aristófanes também perpassa conceitos
existenciais e de filosofia política de sua época. São passagens curtas, espaçadas
mas que demonstram uma firmeza de conceitos do autor. Por exemplo, na
obra A Revolução das Mulheres,
Cremes – Bobo?
Um Homem – E não é? O maior bobo do mundo!
Cremes – Por fazer o que a lei manda?
Um Homem – Então um sujeito sensato tem de fazer tudo
o que a lei manda?
Cremes – Mais que os insensatos.
Um Homem – Isso é para os trouxas!
Nesse trecho podemos perceber a relação conflituosa que convivia o
ateniense entre fazer o que era moral pessoal e o que era lei de Estado.
Sófocles, em Antígona, também irá fazer uma exposição acerca desse ponto, de
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uma maneira trágica. Aristófanes o faz através do riso. Sobre as leis e a justiça,
encontramos algumas passagens que demonstram esse pensamento de
Aristófanes.
2.ª Mulher – Exatamente. A bebida forte! Todas as leis,
quando bem examinadas, parecem ter sido feitas por
bêbedos, bem perto da demência! E se não bebessem,
como se explicariam as xingações, os palavrões que eles
trocam?
[...]
Um Homem – Pode haver um terremoto ou alguma outra
calamidade, ou vir uma nova lei, e então fica tudo como
estava, idiota!
[...]
Um Homem – Conheço muito bem o nosso povo: votar,
todo o mundo vota, mas na hora de cumprir a lei... (A
Revolução das Mulheres)
Também encontramos passagens em que Aristófanes faz referência à
formação cidadã. Vendo-se que o autor tem domínio sobre a discussão da
liberdade e sobre as leis. Também em A Revolução das Mulheres
encontramos:
Um Rapaz – Que falta faz a liberdade!... Mas o meu broto é
muito legal!
Valentina põe a mão no queixo, refletindo sobre a situação.
Contempla novamente o rapaz; de repente põe as mãos nas
cadeiras, com ar de quem tomou uma decisão.
Valentina – Muito bem! Diante da intransigência das
cidadãs e tendo em vista o artigo da lei segundo o qual os
casos omissos serão resolvidos pela chefa do governo e,
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mais ainda, que o espírito da lei é mais importante que a sua
letra... (dirigindo-se ao Rapaz) Quantos anos tem o seu
broto?
Essa obra é muito importante para se perceber as concepções a
respeito do governo e seus governantes. É sabido que Aristófanes não era
partidário de governos populares e a obra da Revolução das Mulheres trata
justamente desse tema. É através desse livro que temos idéias bastante ácidas
acerca da do governo ateniense e sua formação:
Valentina – Quem nada trouxer terá de jurar que nada tem,
e ninguém vai querer cometer perjúrio.
Blêpiro – Mas foi com perjúrios que muita gente fez
fortuna!
[...]
Blêpiro – Só uma pergunta mais: quando alguém perder
uma questão na justiça, como vai arranjar dinheiro para
pagar o advogado e os escreventes? No fundo comum? Não
haveria dinheiro que chegasse!...
Valentina – Para início de conversa, não haverá mais
questões.
Blêpiro – Se você acabar com as questões o seu governo
não se agüentará por muito tempo.
Vê-se pela passagem acima que o governo se faz ao redor de mentiras e
intrigas e que esse é o principio formador de todo governo.
Bem, essa é nossa análise acerca das três obras de Aristófanes. Apenas
essas páginas nos foi capaz de demonstrar acerca da vida das mulheres, da
concepção das leis, do governo, da paz, da guerra, da unidade das cidades
gregas, costumes de guerra, personalidades históricas, governos populistas etc.
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São textos muito ricos que nos mostram que o Teatro grego está longe de ser
apenas uma demonstração artística.
COMO A COMÉDIA DE ARISTÓFANES
COMPREENDERMOS A GRÉCIA ANTIGA?
CONTRIBUI
PARA
Resposta: Aristófanes é um escritor que utiliza o seu ambiente, a sua cidade e
seus governantes para criar seus escritos. Através dele podemos compreender
como o ateniense via seus governantes. Como pensavam a sua própria
cidadania, como encaravam a guerra, como viam os outros povos da Grécia,
como lidavam com o exército, etc. Suas obras não falam de conceitos gerais
como o amor, o destino, a imortalidade. Elas falam do momento político que
vive. Utiliza do dia-a-dia, da vida cotidiana do ateninense para fazer os outros
rir. Se quisermos compreender a vida cotidiana do grego antigo, precisaremos
recorrer às comédias. São elas que nos mostram como se vestiam, como se
portavam, como as personalidades vivas eram introduzidas no meio urbano.
Conhecer a Grécia sem estudar as comédias é ter uma visão parcial, “de cima”,
que pouco diz sobre o homem comum grego. Dessa forma, o que temos com a
Comédia é uma visão panorâmica do mundo grego enquanto ele vivia. Os
comediógrafos, especialmente Aristófanes, precisava ter conhecimento de
mundo para escrever suas obras. Quando trata da guerra utiliza de argumentos
democráticos, econômicos, sociais, culturais para montar suas cenas.
Percebemos pelos escritos que era preciso ter domínio tanto do mundo,
quando da linguagem e do espírito humano, pois a risada na Comédia é
construída pelo autor pela percepção dos fatos humanos que são rizíveis, pela
observação dos costumes, dos gostos, da forma do ateniense se portar. Para
fazer rir é preciso conhecer o seu povo, a sua história, pois é a partir desses
topoi que se constrói o hilário. Graças a genialidade desse mestre somos
capazes de compreender como estava o ateniense diante da Guerra do
Peloponeso, como lidava com a sua própria formação cidadã, como via o
governo corrupto, como encarava seus ditados populares, como era vista a
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sexualidade, as intenções homossexuais, por exemplo, são percebidas em obras
como Lisístrata, quando os homens já não agüentam permanecer sem suas
esposas. Ou entender como se vestiam as pessoas, ao ver as mulheres da obra
A Revolução das Mulheres se caracterizarem de homens, imitar políticos e
apresentar costumes de guerra. Vemos por Aristófanes a consciência da
condição feminina na cidade de Atenas ou como ficava disposta a cidade
através da descrição nas obras. Enfim, o que queremos dizer é que a obra de
Aristófanes é a “fotografia” do passado grego. Não apenas da cidade-estado,
mas uma fotografia do dia-a-dia, o medidor da temperatura, o grau de liberdade
dentro da democracia, a relação dos comediantes ousados diante de um estado
belicoso. Essas mesmas obras influenciarão se não me arrisco a dizer todas, ou
quase todas, as obras da História do ocidente a partir de então. Todo grande
autor no mundo buscou nas fontes gregas a sua inspiração. A própria História
vive, hoje, um momento de volta a narrativa histórica que não por menos se
baseia nos cantos, nos ágon, nas peças gregas também. Somos um mundo
grego, isso é inegável. Romanos sim, mas gregos. Portugueses sim, mas gregos.
Toda civilização que com a Grécia viveu, grego ficou.
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LIBERDADE RELIGIOSA – UMA QUESTÃO MILENAR
Cristiano Rocha Santos1
Resumo
O objetivo deste artigo é apresentar o conceito de liberdade religiosa e como no
Brasil essa mesma liberdade foi tratada pelas autoridades desde a época
colonial. Veremos que apesar de mais de quinhentos e dez anos de história a
discussão a respeito da liberdade de crença é um tema ainda presente na
sociedade brasileira. Apresentarei os momentos históricos em que a busca pela
liberdade religiosa ganhou força a proporção. Uma análise cuidadosa de todas
as constituições brasileiras referentes ao tema servirá de fundamento para
comprovarmos que o Estado sempre se preocupou, seja positiva ou
negativamente, com essa temática. Por conta disso este artigo mantém constante
diálogo com o Direito, uma vez que a análise proposta requer respaldo jurídico
para discussão. Esse artigo é concluído com perspectivas sobre o assunto na
atualidade, sendo apresentado os ranços e avanços na sociedade brasileira.
Palavras-chave: Religião; Liberdade religiosa; Constituições brasileiras.
Abstract
The aim of this paper is to present the concept of religious freedom in Brazil
and how that freedom was treated by the authorities since colonial times. We
will see that despite more than five hundred and ten years of discussion about
the history of freedom of belief is an issue still present in Brazilian society.
Present the historical moments in which the quest for religious freedom gained
strength ratio. A careful analysis of all Brazilian constitutions on the subject will
Pós-graduando em História do Brasil- Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC
[email protected]
1
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serve as the foundation and to show that the state has always been concerned,
either positively or negatively, with this theme. Because of that this article
maintains constant dialogue with the law, since the proposed analysis requires
legal backing for discussion. This article concludes with perspectives on the
subject today, and presented the stuffiness and advances in Brazilian society.
Keywords: Religion, Religious Freedom; Brazilian Constitutions.
***
INTRODUÇÃO
A liberdade religiosa é um tema recorrente. Desde a antiguidade o
homem luta pelo direito de cultuar publicamente seu(s) deus(es). A história
está repleta de relatos de pessoas ou grupos que lutaram pelo direito de
acreditar numa força superior, desafiando muitas vezes o poder instituído.
Não seria exagero afirmar que toda religião em algum momento da
sua história enfrentou problemas envolvendo essa temática. Na Roma antiga o
teólogo Tertuliano já apelava em favor da liberdade religiosa. Ele escreveu: “É
um direito humano fundamental, um privilégio natural, que todo homem adore
segundo as suas próprias convicções.” 1 Tendo por base tal afirmação esse
assunto será discutido.
O Papa João Paulo II, no dia mundial da paz em 1999, deixou como
mensagem aos chefes de Estado uma definição de liberdade religiosa.
A liberdade religiosa constitui o coração dos direitos
humanos. Essa é de tal maneira inviolável que exige que se
reconheça às pessoas a liberdade de mudar de religião se
assim sua consciência demandar. Cada qual, de fato, é
1
Revista Despertai! , 08/01/1999, p. 6.
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obrigado a seguir sua consciência em todas as circunstâncias
e não pode ser constrangido a agir em contraste com ela.
Devido a esse direito inalienável, ninguém pode ser
obrigado a aceitar pela força uma determinada religião,
quaisquer que sejam as circunstâncias ou as motivações.1
As palavras acima do chefe supremo do Vaticano nos ajuda a
perceber quão importante é o tema ao mesmo tempo que aponta seu valor
enquanto um direito nato de todo ser humano uma vez que a motivação para
cultuar determinada divindade parte do intimo de cada pessoa.
A liberdade de religião engloba, na verdade, três tipos distintos,
porém intrinsecamente relacionados de liberdades: a liberdade de crença; a
liberdade de culto e a liberdade de organização religiosa. A primeira, segundo
José Afonso da Silva2:
Na liberdade de crença entra a liberdade de escolha da
religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a
liberdade (ou o direito) de mudar de religião, mas também
compreende a liberdade de não aderir à religião alguma,
assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser
ateu e de exprimir o agnosticismo. Mas não compreende a
liberdade de embaraçar o livre exercício de qualquer
religião, de qualquer crença, pois aqui também a liberdade
de alguém vai até onde não prejudique a liberdade dos
outros.
Se considerarmos a crença como algo subjetivo, o que na verdade é,
apesar de muitas vezes ser considerada objetiva, chegaremos à conclusão que
Boletim Jurídico - ISSN 1807-9008
http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=465 .
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo . São Paulo: Malheiros, 2004.
1
2
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impossível amputar a liberdade de crença. Citando Toma, Oliveira1 ratifica a
impossibilidade de um governante cercear a liberdade de crença tento por base
as palavras do rei persa Addashir do terceiro século a. C. :
Sabei que a autoridade somente se exerce sobre o corpo
dos súditos, e que o rei não tem poder algum sobre o
coração humano. Sabei que, ainda que se domine os
homens no que diz respeito a suas posses, não se dominará
nunca o fundo da suas mentes.2 [tradução livre]
Por mais ferrenha e organizada que seja uma perseguição ou
proscrição é impossível afirmar que tal ação tenha tido resultados duradouros e
verídicos na mentalidade individual e/ou coletiva. Um exemplo claro foi a
produção de um documento utilizado pelo regime nazista, a SS, contra judeus e
cristãos nos campos de concentração que os forçavam a renegar sua fé. Com
certeza muitos assinaram aquela declaração tendo em mente a liberdade
posterior, mas nada comprova que após a assinatura a pessoa passou a
desacreditar em suas convicções. Até mesmo quem não crê acaba crendo em
sua descrença. A consciência, sendo o juiz da ação humana, seria a verdadeira
reguladora das práticas encaradas como “certas” ou “erradas” pela sociedade.
Sendo assim, o que importa à liberdade religiosa é a “projeção da consciência”,
a possibilidade de sua exteriorização já que o pensamento é por natureza livre.
Entretanto, em muitas sociedades primitivas, modernas e até mesmo
contemporâneas a manifestação do pensamento não era, e não é, permitida.
OLIVEIRA, Neidsonei Pereira de. Liberdade Religiosa e o pleno exercício da cidadania:
Ponderações sobre o descanso semanal como dia sagrado a partir do sistema constitucional
brasileiro. Salvador 2007.
1
OLIVEIRA Apud TOMA. Liberdade Religiosa e o pleno exercício da cidadania: Ponderações
sobre o descanso semanal como dia sagrado a partir do sistema constitucional brasileiro, Salvador
2007; p. 36.
2
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A liberdade de culto, por sua vez, consiste na liberdade de orar e de
praticar os atos próprios das manifestações exteriores em casa ou em público,
bem como a de recebimento de contribuições para tanto. Assim, todas as
formas de exteriorização da fé devem ser respeitadas desde que não entrem em
conflito com a ordem. Entretanto, essa liberdade, em certos momentos causa
polêmica e divide opiniões. Um exemplo é a pratica da Imolação1. Religiões
como o Candomblé, a Umbanda e até mesmo o Islamismo utilizam-se
frequentemente dessa prática. Na visão biocêntrica2 os animais, assim como o
homem, são seres integrantes da natureza, logo seu direito a vida deve ser
respeitado. No ângulo religioso a prática da imolação ajuda a preservar a
identidade religiosa e contribui para o sustento de sua tradição. A questão é:
qual direito deve ser respeitado? Da tradição religiosa ou dos animais?
E, por fim, A liberdade de organização religiosa diz respeito à
possibilidade de estabelecimento de igrejas templos e suas relações com o
Estado. Ainda envolve a criação, organização, estruturação interna e o
funcionamento. Diante disso seria honesto afirmar que qualquer grupo social
poderia “dar luz” a uma nova organização religiosa sem a intervenção estatal,
exceto quando se tratar dos direitos legais tributários estipulados a qualquer
instituição religiosa; escolher livremente as regras de filiação e exclusão como
também as normas de distribuição interna do poder; e finalmente, ter a
liberdade para deliberar sobre a forma como será custeada possuindo controle
próprio sobre o fluxo de caixa.
Diante dessas análises, é possível concluir que a liberdade religiosa
pode ser classificada como plena, relativa e nula. Plena quando os três
princípios básicos são honrados, relativa, quando um ou dois são amputados, e
nula, quando os três são desrespeitados.
A Imolação consiste em se matar um animal como forma de sacrifício a um ente superior.
O princípio Biocêntrico se inspira na intuição do universo organizado em função da vida e
consiste em uma proposta de reformulação de nossos valores culturais que tomam como
referencial o respeito a vida.
1
2
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O discurso de Tertuliano, citado na parte inicial do artigo, aponta sua
ampla visão sobre o tema. Primeiro por sua crença que a liberdade religiosa é
um direito fundamental do homem. Segundo, porque ele encara o direito de
crê como um privilégio natural. Terceiro, pela defesa da exteriorização da
crença (culto) de acordo a consciência individual. E por fim, essa exteriorização
poderia resultar na formação de locais de adoração, indo do mais simples, a
saber, uma residência, a um mais complexo, um templo construído
especificamente para este fim.
Historicamente são três os grandes momentos em que a busca pela
liberdade religiosa cristã ganha as ruas. O primeiro encontra-se na Roma antiga.
A capital italiana era conhecida como uma cidade politeísta. Durante sua
expansão territorial, Roma absorveu influências culturais de diversas nações.
Pode-se destacar a etrusca, persa, síria e principalmente a grega. Dos últimos,
não apenas a forma de adoração, mas também muito do seu modo de vida. Os
deuses possuíam características humanas como virtudes e defeitos. Até certo
momento na história romana, os direitos espirituais foram respeitados, o que
nos leva a pensar numa liberdade religiosa plena. Os romanos exerciam o livre
arbítrio para acreditar em seus deuses. O direito de crença era levado em
consideração.
A liberdade de culto era uma constante. Os romanos poderiam
adorar seus deuses, e até mesmo aos povos conquistados era permitido prestar
homenagem a sua divindade. A princípio a adoração romana ocorria nas casas
e posteriormente em público através dos templos e santuários mediado pelos
sacerdotes, e estes, sob autoridade do Pontifex Maximus (Sumo Pontífice), a
maior autoridade religiosa romana.
A construção de santuários e templos comprova a existência da
liberdade de organização religiosa. O panteão, construído por Agripa com o
intuito de aglutinar os deuses é uma demonstração do interesse do Estado pela
adoração plural. Após o panteão ser destruído por um incêndio em 80 d. C. o
imperador Adriano o reconstruiu durante seu governo no segundo século.
Entretanto as coisas mudaram após o surgimento do cristianismo.
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A crença surgida na Palestina se espalhou por todo o império,
gerando desconforto e atritos com os adoradores politeístas que envolvia
diretamente o próprio Imperador. A recusa dos cristãos em cultuar o
imperador, defendendo claramente o monoteísmo levou a uma onda de
perseguição, martírio e intolerância religiosa no império. Muitos Imperadores
perseguiram com afinco os cristãos, tendo por destaque Nero, Juliano,
Diocleciano e Galério. Contudo, a força ideológica do cristianismo conseguiu
“tocar o coração” de um número cada vez maior de indivíduos gerando uma
verdadeira revolução religiosa no império romano. Com o passar dos anos, o
modo de pensar cristão aproxima-se das classes sociais mais abastadas de Roma
o que posteriormente levará sua aproximação com o Estado.
Essa aproximação ocorre em dois momentos. Primeiro, com o Edito
de Milão, quando o imperador romano Constantino libera o culto aos cristãos,
acabando com um longo período de perseguição, prisão, martírio e morte. A
partir daquele ano, 313 d. C, os seguidores de Cristo poderiam exteriorizar sua
crença, seja de forma simples através dos cultos nas casas e nas praças, como
em momentos mais complexos, a exemplo as grandes assembléias (eclésias) e
congressos.
Segundo, com a estatização do Cristianismo. A promulgação do
Edito de Constantinopla pelo imperador Teodósio I tornou o cristianismo a
religião oficial do Estado. A partir daí Igreja e Estado se entrelaçam jurídica e
administrativamente e juntos dão um novo fôlego ao quase derrotado império.
Por outro lado, a estatização do Cristianismo custou um preço caro para os
adoradores politeístas e seus deuses. Suas liberdades agora foram cerceadas, e
aos poucos, o paganismo foi sendo banido do seio do Império. A intolerância
estatal retira por completo a liberdade religiosa dos pagãos, sendo os mesmos
posteriormente perseguidos recebendo duras penalidades. O grande paradoxo
desse fato é a inversão dos papéis: A religião cristã deixa de ser perseguida,
enquanto a penalidade é transferida e executada nos pagãos, isto é, afaga-se uma
e maltrata-se a outra.
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Alguns séculos depois o segundo grande momento acontece: A
Reforma Protestante (Século XVI). Influenciado pelos escritos de João Wycliffe
e João Huss, Martinho Lutero, encabeça o movimento reformista na
Alemanha. Com uma atuação dúbia Lutero apóia e condena os que o
apoiaram. Além de defender a doutrina da justificação pela fé e a bíblia como
única fonte de autoridade nos assuntos de fé, o luteranismo negava a
infalibilidade do papa sustentando a necessidade da instituição de igrejas
nacionais e rejeitando as ambições políticas do papado. Calvino e Henrique
VIII também são exemplos de reformadores que lograram êxito em suas lutas
na Suíça e na Inglaterra respectivamente. Lembrando que o calvinismo pregava
a separação entre Igreja e Estado.
Esse “Não” ao dogma católico ganha toda a Europa e posteriormente
o mundo gerando toda uma gama de religiões. Percebe-se neste fato histórico
que a liberdade religiosa é ansiada por cristãos católicos descontentes com os
rumos que a administração papal tinha tomado. Por isso a Reforma é um
movimento cristão dentro do mundo cristão que como conseqüência gerou
novas interpretações da Bíblia e por extensão novas formas de culto e de
organização religiosa. A inflexibilidade católica frente às idéias protestantes gera
uma verdadeira batalha no campo intelectual, moral e físico. Como
conseqüências dessa intolerância guerras são travadas, a exemplo da Guerra dos
Cem anos, a contra-reforma é instaurada e a inquisição utilizada com maior
freqüência e rigidez.
A Revolução Americana (1776) é o terceiro grande momento.
Formada em seus primórdios por europeus fugidos devido perseguição
religiosa, a sociedade americana deu passos fundamentais para defender o
direito de consciência. Citando Aldir Guedes Soriano, Neidsonei Pereira de
Oliveira (2007,p.39) diz que “entre os perseguidos migravam cristãos, e também
os humanistas, os defensores do contrato-social e os deístas”. A constituição
americana é a primeira a propor a liberdade de crença. Nela a liberdade
religiosa se transforma num direto e a separação entre Igreja e Estado tornou-se
uma realidade protegida pela primeira emenda constitucional, a chamada Bill
[243]
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of rights de 1791. Segundo essa emenda o congresso não fará lei relativa a
instituição de religião ou que proíba o livre exercício desta; ou que restrinja a
liberdade de palavra ou de imprensa; ou o direito do povo de reunir-se
pacificamente e de dirigir petições ao governo para a reparação de suas lesões.
Vejamos agora o histórico da liberdade religiosa no Brasil e como
este país tratou esta questão.
LIBERDADE RELIGIOSA NO BRASIL
No Brasil, a liberdade religiosa pode ser analisada desde os
primórdios da colonização. Nesse período há o predomínio do preconceito
religioso. Prova disso é a imposição da fé cristã em detrimento da religião
indígena e posteriormente dos escravos africanos. Havia um empenho maciço
para manter a hegemonia da fé católica, sendo comum a propaganda
maniqueísta entre o bem (catolicismo) e o mal (demais religiões). Até mesmo
discussões se os indígenas teriam ou não alma foram travadas, sendo resolvida
posteriormente com a publicação da bula papal Sublimis Deus em 1537.
Na obra Viagem do Descobrimento (1998, p. 11), citada por
Ribeiro1, Eduardo Bueno afirma:
Pedro Álvares (diante da notícia do encontro da terra em 22
de Brasil de 1500) [...] ajoelhou-se em frente a imagem de
Nossa Senhor da esperança, que ele próprio escolhera para
ser padroeira da viagem e mandara entronizar num altar
erguido no convés da Capitania.
Esse fato revela a fé abrigada no coração do colonizador, o que, mais
tarde, iria naturalmente influenciar a orientação religiosa da nova colônia.
Outro fator de destaque é a quantidade de religiosos que compunha a esquadra
1
RIBEIRO, Milton. Liberdade religiosa: uma proposta para debate. São Paulo: Mackenzie, 2002.
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de Cabral., entre eles o erudito teólogo Frei Henrique Soares de Coimbra, que
rezou a primeira missa no Brasil.
Todavia, os primeiros ecos da liberdade religiosa foram sentidos ainda
nos séculos XVI e XVII. Além de muitas etnias indígenas que lutaram
bravamente contra o domínio ideológico-cristão português, podem-se destacar
dois “invasores” europeus, a saber, a França e a Holanda. Os primeiros durante
a tomada da ilha de Guanabara no Rio de Janeiro, chamada de França
Antártica, onde o comandante da expedição francesa Nicolas Durand, com o
intuito de colonizar o país, prometeu liberdade religiosa total a nova colônia
conseguindo “encher dois navios de guerra e um de carga com 600 homens que
partiram sob bênçãos cristãs, católicas e protestantes”. 1 Os segundos,
conquistando parte do Nordeste do Brasil, fundaram a colônia em Olinda
através de Maurício de Nassau. O mesmo se preocupou em praticar a política
da “boa vizinhança” mantendo pacífica convivência entre os locais e
principalmente com os senhores de engenho, incitando entre outras praticas “a
liberdade religiosa entre brasileiros (católicos), holandeses (protestantes) e
Judeus”. 2
Com a vinda da família real portuguesa para o Brasil, pode-se notar
referências legais sobre liberdade religiosa. O apoio inglês no deslocamento dos
navios lusitanos para o Brasil, fez com que Portugal abrisse as “portas” da
colônia para a crença inglesa. O tratado de Comércio e Navegação assinado em
1810, no artigo XII comprova tal fato
Sua Alteza Real , o príncipe regente de Portugal , declara e
se obriga no seu próprio nome, e no de seus herdeiros e
sucessores, que os Vassalos de Sua majestade Britânica...
não serão perturbados, inquietados, perseguidos ou
molestados por causa de sua religião, mas antes terão
1
NEIDSONEI apud Eduardo Bueno e Pedro Bial. É muita História. São Paulo: Objetiva, 1998.
2
http://marfaber.vilabol.uol.com.br/brasil/holandes.htm
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perfeita liberdade de consciência e licença para assistirem e
celebrarem o serviço divino em honra do Todo-poderoso
Deus, quer seja dentro de suas casas particulares, quer nas
igrejas e capelas, que Sua Alteza Real agora, e para sempre
graciosamente lhes permite a permissão de edificarem e
manterem dentro de seus domínios. Contanto, porém, que
as sobreditas igrejas e capelas sejam construídas de tal modo
que externamente se assemelhem as casas de habitação; e
também que o uso de dos sinos não lhes seja permitido para
o fim de anunciarem publicamente as horas do serviço
divino... Porém , se se provar que eles (Vassalos Britânicos)
pregam ou declamam publicamente contra a religião
católica, ou que eles procuram fazer prosélitas (sic), ou
conversões, as pessoas que assim delinqüirem poderão
manifestando-se seu delito, se mandada sair do país, em que
a ofensa tiver sido cometida. [...]1
É observado que a liberdade concedida pelo Rei lusitano aos ingleses
é controlada. A adequação física das edificações religiosas as casas de habitação;
A proibição do uso do sino como “sinal” do início das atividades públicas; a
não permissão de críticas a igreja Católica nas pregações como o desrespeito
pela liturgia da mesma são exemplos desse parcial cerceamento. Sendo assim,
pode-se afirmar que a liberdade religiosa no período é parcial, já que o Estado
Lusitano mantém controle sobre a forma de culto e organização religiosa dos
britânicos, apesar de não desrespeitar suas crenças.
1
REILY, Duncan A. História documental do protestantismo no Brasil. São Paulo: Aste, 1993.
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AS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS E A LIBERDADE RELIGIOSA
A análise de todas as constituições brasileiras oferece suporte prático
para a compreensão da liberdade religiosa no país. Como elas regiam e
continuam regendo (atualmente a de 1988) as ações do Estado torna-se
oportuno sua contemplação. Assim sendo, é imperativo apresentá-las.
A constituição imperial de 1824, a primeira do Brasil, claramente
expressa a cumplicidade entre Igreja e Estado. Adota certo tom liberal no
“tratamento da individualidade”1 conseqüência da formação intelectual de
muitos constituintes em Coimbra influenciados pelo liberalismo e reformas
pombalinas. O Império reafirma, na forma da lei, a coesão e o estreitamento
com a religião Católica. O artigo 52 reza:
A religião Catholica Apostólica Romana continuará a ser a
Religião do Império. Todas as outras religiões serão
permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas
para isso destinadas, sem forma alguma exterior ao templo.
Além de definir a religião oficial do Império, ato que por si só gera
preconceito direto e aberto às outras formas de adoração, o Estado brasileiro
impõe limites a forma de adoração. Percebe-se que a exteriorização dos cultos
estava limitada apenas aos locais anteriormente escolhidos para tal fim,
provavelmente de conhecimento prévio do próprio Estado, forma de manter
vigilância sobre os fatos.
A liberdade de organização religiosa existia indiretamente, já que os
lares eram os únicos e exclusivos locais de encontro. Era impedida a
padronização dos imóveis (formato ou aparência de igreja ou templo), já que
isso criaria representações sobre os locais, e provavelmente anúncios que
1
2
Idem, 2002, p.61
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao24.htm.
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divulgassem os momentos de reunião ou culto. Não existe artigo que fale do
poder de interferência do Estado frente a organização interna das demais
crenças. Isso seria inviável diante da relação exclusiva com o catolicismo
podendo gerar, se comprovado, embates sobre a real relação entre igreja e
Estado terminado em possíveis crises.
Entretanto, a mesma constituição impõe limites a liberdade religiosa
aqui praticada no que tange a relação política-religião. Era impossível eleger-se
ou votar caso o indivíduo não praticasse a religião do Estado. Diz o artigo 95:
Todos os que podem ser eleitores são hábeis para serem
nomeados deputados. Excentuam-se:
[...]
§ 3° – Os que não professam a religião do Estado.
Isso exclui parte da população do meio político, forçando a
interiorização da fé católica, muitas vezes momentaneamente não afetando
diretamente a crença pelo processo da moral provisória, como pré-requisito
para eleger e ser eleito. Os “não Católicos” estavam excluídos da vida pública
como Deputados e como eleitores.
A intolerância religiosa é uma verdade nessa constituição. A total
ausência de perseguição não é descartada. O artigo 179 § 5 da mesma nos
informa:
“Ninguém pode ser perseguido por motivo de religião, uma
vez que respeite a do Estado, e não offenda a moral
pública”.
Interpretamos a palavra “respeito” como obediência passiva e
incondicional as cláusulas apresentadas no Tratado de Comércio e Navegação
(Artigo XII) citado anteriormente. Esse pré-requisito era fundamental para a
continuidade da “vida normal” longe de boatos, desaprovação e perseguição.
Assim sendo, pode-se concluir que essa constituição não amputa a total
[248]
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liberdade religiosa do brasileiro e do estrangeiro, mas na prática invalida sua
eficácia já que a liberdade de culto em locais públicos e de organização religiosa
era restrita. Quer dizer, a crença distinta da oficial pode existir, até porque é
impossível combatê-la devido sua subjetividade, mas externá-la fora dos locais
estabelecidos era inconstitucional, sujeito possivelmente a repressões.
CONSTITUIÇÕES REPUBLICANAS
A primeira constituição republicana, 1891, deu os primeiros passos,
mesmo que lentos, para “separar” a Igreja romana do Estado brasileiro. Muitos
privilégios foram retirados do catolicismo, causando descontentamento de
diversos líderes da denominação religiosa. Entretanto, a Igreja também logrou
benefícios com essa separação. A título de exemplo, destaca-se a manutenção
intocável de suas propriedades, sejam em forma de Igrejas, paróquias, terrenos
e etc.
Encontramos no artigo 721, as disposições a respeito do tema religião.
A sua análise ratifica esse “rompimento”.
A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade dos direitos
concernentes à liberdade, à segurança individual e à
propriedade, nos termos seguintes:
§ 3º - Todos os indivíduos e confissões religiosas podem
exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para
esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do
direito comum.
§ 4º - A República só reconhece o casamento civil, cuja
celebração será gratuita.
1
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao91.htm
[249]
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§ 5º - Os cemitérios terão caráter secular e serão
administrados pela autoridade municipal, ficando livre a
todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em
relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral
pública e as leis.
§ 6º - Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos
públicos.
§ 7º - Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial,
nem terá relações de dependência ou aliança com o
Governo da União ou dos Estados.
Percebe-se na leitura acima algumas mudanças nessa Constituição em
relação a sua antecessora. Por exemplo, a liberdade de culto ganha maiores
proporções, as confissões religiosas passam a ter liberdade para cultuar
livremente sua divindade como também o direito de adquirir imóveis, gerando
certa liberdade de organização religiosa. Os cemitérios seriam administrados
não mais pela Igreja, mas sim pelas autoridades municipais; os casamentos civis
são os reconhecidos perante a lei; e o ensino laico seria uma prerrogativa nas
escolas públicas. Todavia, não se percebe mesmo diante de imposições a igreja
católica a plenitude da liberdade religiosa. São muitos os privilégios ainda
desfrutados por ela. Além dos citados acima, acrescente-se o financiamento de
seminários católicos por um ano pelo Estado.1 Sendo assim , contesta-se esse
chamado “rompimento” ou laicidade do Estado, porque se entende a liberdade
em sua plenitude quando na teoria e prática as relações de cumplicidade são
inexistentes entre Estado e qualquer denominação religiosa.
Promulgada em 15 de julho de 1934, durante o governo Vargas, a
terceira Constituição mantém a república federativa, o presidencialismo, o
regime representativo e institui o voto secreto. Ela foi a que menos durou em
toda a História Brasileira: apenas três anos, mas vigorou oficialmente apenas
1
Decreto nº. 119-A - de 7 de Janeiro de 1890, Art. 6.
[250]
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por um ano. Segue a linha separatista entre Estado e Igreja iniciada por sua
precedente. O artigo 171 é contundente neste aspecto.
É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios:
II - estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de
cultos religiosos;
III - ter relação de aliança ou dependência com qualquer
culto, ou igreja sem prejuízo da colaboração recíproca em
prol do interesse coletivo;
Quanto aos direitos fundamentais do homem, dando ênfase a
liberdade religiosa, o Artigo 113 diz:
A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade dos direitos
concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança
individual e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 1- Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios,
nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça,
profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza,
crenças religiosas ou idéias políticas.
§ 4 - Por motivo de convicções filosóficas, políticas ou
religiosas, ninguém será privado de qualquer dos seus
direitos, salvo o caso do art. 111, letra b .
§ 5 - É inviolável a liberdade de consciência e de crença e
garantido o livre exercício dos cultos religiosos, desde que
não contravenham à ordem pública e aos bons costumes.
1
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao34.htm
[251]
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As associações religiosas adquirem personalidade jurídica
nos termos da lei civil.
O uso do termo “Inviolabilidade” oferece subsídios jurídicos para
que o direito individual e coletivo de crença, culto e organização religiosa seja
respeitado. Lembrando que dentro dos limites estabelecidos (ordem pública e
bons costumes) pelo Estado conforme citado no parágrafo 5.
Quanto a liberdade de organização religiosa é tolerado dentro dos
limites citados no parágrafo anterior e as Associações religiosas passam a
adquirir personalidade jurídica, isto é, passam a ter direitos e deveres próprios,
não se confundindo com as pessoas naturais que nelas atuam.
Entretanto ocorre um fato curioso na constituição de 19371. A
ausência do termo “inviolabilidade” abria brechas para que o aparelho estatal,
segundo interesses políticos pudesse coibir a liberdade religiosa por meio do
direito.
Art. 122 - A Constituição assegura aos brasileiros e
estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à
segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
§ 4 - todos os indivíduos e confissões religiosas podem
exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para
esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do
direito comum, as exigências da ordem pública e dos bons
costumes;
Produzida no período conhecido como Estado Novo essa carta não
poderia deixar de espelhar a conturbada conjuntura que o mundo atravessava.
Muitos países ainda se reestruturavam economicamente após a grande
1
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao37.htm
[252]
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depressão de 1929; o mundo vivia na iminência da Segunda Guerra Mundial;
os regimes totalitários na Alemanha de Hitler, e na Itália de Mussolini
ameaçavam a hegemonia das então principais potências mundiais: Estados
Unidos e Inglaterra além de parte da Europa.
Internamente o Brasil passava por uma mudança radical no campo
político. Desde 1934 o país vivia sobre constante agitação política, greves e o
aprofundamento da crise econômica. Nesse quadro, ganham importância
movimentos como a Ação Integralista Brasileira (AIB) e a Aliança Nacional
Libertadora (ANL). Usando o poder que lhe conferiram como presidente,
Getúlio fecha o Congresso Nacional e torna o movimento da ANL ilegal. Para
difundir a ideologia do Estado Novo e censurar os eventuais descontentamentos
pelos meios de comunicação Vargas cria o Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP).
Passado o período de guerra e do Estado Novo, pensou-se em uma
nova constituição para o país. O presidente em curso, Eurico Gaspar Dutra
começa a governar a partir de 1945 e no ano seguinte, uma nova carta magna é
produzida. Esta perde o caráter fascista proveniente de sua antecessora.
(GARCIA, 2006, p. 150). A nova constituição restabelece o Estado de direito, a
forma federativa, as garantias aos direitos individuais, a autonomia dos poderes,
eleições diretas para todos os cargos e criou a liberdade partidária e de
imprensa.
Quanto à liberdade religiosa, não se percebe grandes mudanças,
entretanto alguns progressos são notados. O artigo 1411 aborda essa temática:
A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade dos direitos
concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à
propriedade, nos termos seguintes:
1
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao46.htm
[253]
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[...]
§ 7º - É inviolável a liberdade de consciência e de crença e
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos, salvo o dos
que contrariem a ordem pública ou os bons costumes. As
associações religiosas adquirirão personalidade jurídica na
forma da lei civil.
§ 8º - Por motivo de convicção religiosa, filosófica ou
política, ninguém será privado de nenhum dos seus direitos,
salvo se a invocar para se eximir de obrigação, encargo ou
serviço impostos pela lei aos brasileiros em geral, ou recusar
os que ela estabelecer em substituição daqueles deveres, a
fim de atender escusa de consciência.
Nota-se certa flexibilidade quanto à escusa de consciência. O brasileiro
poderia “compensar” sua recusa prestando serviços alternativos ao Estado. O
termo “inviolabilidade” retorna a nova carta após seu amputamento na
constituição passada. Contudo, ainda encontra-se arraigado nesta constituição a
questão da moral e dos bons costumes, cabendo o seguinte questionamento: O
que era considerado bons costumes no Brasil nesse período? Uma sociedade
fortemente influenciada pelo cristianismo católico concerteza refletia seus
valores. Assim sendo, a lei deixa brechas para a arbitrariedade, principalmente
onde a presença católica era mais visível.
As religiões Afros, a título de exemplo, foram e são as que mais sofrem
preconceitos no Brasil. Eram perseguidas com freqüência. As batidas policiais
ocorriam com determinada constância, fruto da colonização cristã católica que a
rotulou de várias maneiras, a saber, “religião do diabo”, “seita diabólica”, gente
do mal” e “lugar de encostos”. Como resultado, freqüentemente ocorriam
prisões, condenações, espaçamentos e até mesmo assassinatos de praticantes e
adeptos.
O Brasil vive sob essa constituição durante vinte e um anos. Durante
esse período, vários são os acontecimentos marcantes para o país. A criação da
[254]
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Petrobras, do BNDES, crescimento das ferrovias e rodovias e o incentivo a
industrialização, tendo por referência a automobilística são os destaques no
campo econômico.
No político, passa por um processo de redemocratização; recebe
Getúlio novamente e o “brasileiro” desdobra-se em choro diante de seu
suicídio; contempla o ambicioso plano de desenvolvimento de Juscelino; vê a
nova capital ser erguida; conhece o sistema Parlamentar com Jango; enfrenta
uma verdadeira convulsão entre os pretensos dirigentes e por fim, acaba
retornando a ditadura, agora nas mãos dos militares.
No plano social, os trabalhadores têm reconhecidos vários direitos
trabalhistas, com a construção de Brasília muitos nordestinos migram para o
centro-oeste chegando alguns a acumular capital. Claro que a situação não se
tornou ideal (se é que algum dia existiu!), greves eram constantes, reivindicações
idem.
No cultural, nota-se a influência do cinema norte-americano; a chegada
da Televisão; mudança nas estruturas das casas; altera-se o consumo e o
comportamento dos trabalhadores dos grandes centros, consolidando a
chamada “sociedade urbano-industrial”.
A nova carta magna, construída em 24 de Janeiro de 19671, tratou assim
o tema da liberdade religiosa:
Art. 150 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade dos direitos
concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
[...]
§ 5º - É plena a liberdade de consciência e fica assegurado
aos crentes o exercício dos cultos religiosos, que não
contrariem a ordem pública e os bons costumes.
1
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao67.htm
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§ 6º - Por motivo de crença religiosa, ou de convicção
filosófica ou política, ninguém será privado de qualquer dos
seus direitos, salvo se a invocar para eximir-se de obrigação
legal imposta a todos, caso em que a lei poderá determinar
a perda dos direitos incompatíveis com a escusa de
consciência.
Apesar de o Brasil viver num período político conturbado, com a
instauração do regime militar, consegue-se notar pouquíssimas mudanças.
Destacando a possibilidade da perda dos direitos incompatíveis com a escusa
de consciência. Sendo assim, era necessário cumprir a “pena” estabelecida pelo
Estado, mediante lei anteriormente aprovada. Mesmo com a emenda
constitucional nº. 1/1969, nada se alterou.
Fato notório é a permanência da expressão “bons costumes”. Este
também pode ser entendido como uma tradição já que foi construída ao longo
da existência do país canarinho. Destaca-se também a influência da
mentalidade. Como destacado pelo historiador Lê Goff ela muda de forma
gradual e lenta.
As liberdades de culto e organização religiosa não ganham maiores
dimensões. Novamente, como apresentado no parágrafo anterior, os bons
costumes são exigidos. Os cultos são permitidos obviamente com suas
limitações.
A atual constituição, promulgada em 19881, é conhecida pelo seu
caráter liberal, democrático e inclusivo. Por este motivo, muitos a batizaram de
“Constituição Cidadã”. Esta procura objetivar a realização dos direitos
fundamentais do homem pelo Estado. E muitos são os trabalhos realizados na
interpretação dessa Constituição na vertente da Liberdade religiosa.
O artigo 5 dessa Constituição aborda essa questão:
1
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm
[256]
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Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos
termos seguintes:
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença,
sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e
garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a
suas liturgias;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de
crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo
se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos
imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada
em lei;
Essa constituição trás mudanças notáveis. A priori, o direito inviolável
da liberdade de crença e consciência é consolidado. José Cretella Júnior afirma
“ser a liberdade de consciência um dos mais invioláveis e supremos valores do
ser humano, sendo que em tal “santuário” nenhum poder terrestre tem o
direito de penetrar”.
1
Outro fator interessante é a obrigação do Estado brasileiro de
proteger os locais de adoração e as liturgias dos grupos religiosos. Agora o
Estado teria que se comportar como um defensor dos direitos individuais e
coletivos da nação. Sendo assim, arbitrariedades cometidas pelas autoridades
pode tornar o Estado culpado de negligência e intolerância.
A liberdade de organização religiosa é defendida. As religiões
poderiam adquirir imóveis, quando registrados frente aos órgãos competentes,
recebem benesses do Estado, como a redução da carga tributária do Imposto
Predial.
1
CRETELLA JUNIOR, José, op. cit., p. 216
[257]
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Outra novidade é a criação de prestação alternativa a escusa de
consciência. Enquanto a constituição de 1967 não previa essa alternativa a nova
constituição oferece a oportunidade de reaver a pendência com o Estado.
Apenas a insistência em não cumprir a prestação alternativa estipulada pelas
autoridades competentes leva o indivíduo a perder alguns direitos fundamentais
de cunho civil sem interferência na sua opção religiosa.
Diante das abordagens algumas conclusões são válidas. Primeiro que
as cartas magnas brasileiras, apesar da atual adotar um caráter progressista,
nunca apontaram para uma liberdade religiosa plena. A permanência da
expressão “bons costumes” retira essa possibilidade já que arbitrariedades eram
cometidas a depender da influência católica, principalmente no interior, onde
as idéias de liberdade chegaram com certo atraso.
Segundo, mesmo nos dias atuais a sociedade brasileira continua a ser
influenciada pelo Cristianismo Católico através de feriados nacionais, estaduais
e municipais e ensino religioso escolar. Pensar em mudança num curto período
de tempo é complexo. A princípio pelo caráter ocioso dos dias comemorativos,
e por extensão, a afirmação da fé de uma das maiores colônias católicas do
mundo. Contudo, algumas críticas já são percebidas principalmente pelos
meios formadores de opinião, a saber, os meios de comunicação, que
costumam contabilizar os “prejuízos” das indústrias e empresários atingindo o
próprio Estado brasileiro com a redução na arrecadação de impostos.
Como as transformações são graduais, uma mudança de conjuntura
pode produzir novas formas de olhar esses dias comemorativos. Entretanto,
deve-se ressaltar a inviabilidade de novos dias comemorativos para cada
denominação religiosa, já que isso culminaria em conflito com os investidores e
com o próprio sistema capitalista ávido por produção, venda e consumo.
[258]
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ÍNDIOS XUKURU: O VIVIDO, O CONCEBIDO E O
EXPRESSADO.
A HISTÓRIA A PARTIR DAS MEMÓRIAS
Edson Silva
Resumo
Apesar do discurso oficial no início da década de 1980 sobre os índios Xukuru
na Serra do Ororubá (Pesqueira/PE), ter enfatizado as precárias condições
sociais, a falta de terras para trabalho, as perseguições de fazendeiros e ainda
uma suposta tendência ao desaparecimento indígena, por meio das memórias
orais constatamos que aqueles índios viviam intensas experiências de
sociabilidades com o trabalho em mutirões e expressões socioculturais, como a
dança do Toré e as festas religiosas em Cimbres que fora a sede de um antigo e
conhecido aldeamento. A pesquisa documental e também principalmente das
memórias Xukuru, revelou como a partir do vivido, do concebido e do
expressado, os Xukuru fizeram uma releitura dos acontecimentos históricos
para afirmarem a identidade indígena e os direitos à demarcação de terras
reivindicadas.
Palavras-chaves: história indígena; memórias Xukuru; Nordeste do Brasil

Doutor em História Social pela UNICAMP. É professor no Programa de Pós-Graduação em
História/UFPE, no Centro de Educação/Col. de Aplicação-UFPE/Campus Recife e no Curso de
Licenciatura Intercultural Indígena na UFPE/Campus Caruaru, destinado a formação de
professores/as indígenas em Pernambuco. E-mail: [email protected]
[259]
Dossiê Criminalidade
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Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831
Abstract
Despite the official discourse in the early 1980s on the Indians of the Sierra
Xukuru Ororubá (Pesqueira/PE), have emphasized the precarious social
conditions, lack of land for employment, harassment of farmers and even a
supposed tendency to disappear indigenous through oral memories of those we
find that Indians lived with intense experiences of social work in task forces and
social cultural expressions such as dance Toré and religious festivals in which
Trusses outside the headquarters of an old and well known resort. The desk
research and also mainly Xukuru memories, as revealed from the lived,
conceived of and expressed the Xukuru made a rereading of historical events to
assert indigenous identity and rights to the demarcation of lands claimed.
Key-words: aboriginal history; memories Xukuru; Northeast of Brazil
***
Uma publicação de 1981 do governo estadual traz informações de seis
dos sete grupos indígenas então oficialmente reconhecidos em Pernambuco.
Com o objetivo de conhecer a situação em que viviam os índios no Estado,
após uma pesquisa bibliográfica e contatos com pessoas vinculadas ao assunto,
com o apoio da Funai, posteriormente foram realizadas visitas para observações
e entrevistas nos locais de moradias indígenas, entre os meses de março a julho
do ano anterior a publicação. (Condepe, 1981).
O texto publicado repetiu as concepções, bem como o etnômio oficial
sobre a identidade indígena, para localizar e nomear “O aldeamento dos
remanescentes Xucuru”, na Serra do Ororubá. “Os Xucuru” foram
contabilizados em “2.228 caboclos”, apresentando uma situação peculiar em
relação aos demais grupos indígenas em Pernambuco, por serem oficialmente
reconhecidos, contarem com um Posto Indígena e não possuírem uma
“Reserva” com terras demarcadas. A pesquisa constatou que “os caboclos”
viviam em pequenas glebas de terras espremidas entre “propriedades de
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civilizados”, dificultando “o contato mais estreito entre os grupos familiares”
(Condepe, 1981, p.63).
Estas afirmações não correspondiam à situação vivenciada pelos
Xukuru1 como narraram índios que entrevistamos. As observações resultantes
da pesquisa oficial, realizada em tão curto período, não possibilitaram perceber
que, apesar das perseguições e pressões por parte dos fazendeiros e de poucos
índios possuírem pequenos pedaços de terras (“sítios”), os Xukuru mantinham
intensas relações sociais. Os então chamados “sítios” eram espaços de
sociabilidades sejam por meio de festas, novenas, ou com as “juntadas”, o
trabalho em mutirão nas roças dos que possuíam terras.
A pesquisa oficial constatou ainda a moradia de índios em diversas
localidades, nomeadas como “aldeias” e não mais sítios, significando o
reconhecimento da presença de uma população com identidade étnica
específica naqueles lugares, ainda que, contraditoriamente, a própria Funai, ao
nomeá-los “caboclos” ou “remanescentes”, e obviamente os fazendeiros
invasores negassem a existência de indígenas na Serra do Ororubá. O texto
publicado lista como “aldeias” onde moravam “descendentes da população”
indígena: Canabrava, Brejinho, Gitó, Boa Vista, Goiabeira, Afetos, Santana,
Lagoa, Trincheira, Matinha, Caetano, Caldeirão, Retiro, São Brás e Canivete.
Muitas dessas localidades são relacionadas em documentos históricos e foram
citadas ou visitadas, para realização de entrevistas, durante a pesquisa para
elaboração de nosso estudo sobre aqueles índios.
Após fazer uma retrospectiva histórica sobre a presença indígena na
Serra do Ororubá, o texto do Condepe abordou a situação socioeconômica dos
Xukuru. Foi constatado apenas um diminuto número de famílias indígenas
possuindo um pedaço de terra: “Do número total de famílias, apenas 160
Utilizamos a grafia atual Xukuru, seguindo a norma da “Convenção para a grafia dos nomes
tribais”, estabelecida pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA), em 14 de novembro de
1953 que determina o uso de maiúsculas para os nomes tribais, mesmo quando a palavra tem
função de adjetivo e o não uso do plural.
1
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dispõem de terra própria, em lotes de aproximadamente ½ ha”.1 As demais
trabalhavam em terras de outros índios ou de fazendeiros criadores de gado. O
texto colocou em oposição os índios e os fazendeiros, afirmando que os
primeiros usavam técnicas agrícolas rudimentares e nomeando os segundos
como “civilizados”. Ou seja, em plena década de 1980, um texto elaborado por
técnicos governamentais expressava concepções já então superadas pelos
estudos especializados sobre a temática indígena.
Segundo aquele levantamento (Condepe, 1981), com as terras em mãos
dos fazendeiros seu uso pelos índios, ocorria em regime de arrendamento, para
plantar o milho e feijão, e o capim, este último para os fazendeiros. O que
restava da roça era destinado à alimentação do gado. Contudo, o texto deixou
de informar em que condições isso ocorria. Vários depoimentos esclareceram
que o gado era solto dentro da roça indígena quando esta estava sendo colhida.
Como nos afirmou se sua entrevista “Seu” Gercino, morador na Aldeia Pedra
d’Água.
De acordo com a publicação, a escassez de terras influenciava nas
condições de pobreza dos Xukuru, com a desnutrição e doenças decorrentes da
fome. O Posto da Funai realizava o atendimento e distribuía remédios.
Todavia, na própria documentação que pesquisamos do Serviço de Proteção
aos Índios (SPI), estão registrados os constantes pedidos dos encarregados do
Posto, anteriormente a vigência da Funai, de remédios para a farmácia
destinada a atender os Xukuru.
Do ponto de vista das “Manifestações Culturais e Religiosas” a
publicação oficial do início da década de 1980, tratou os Xukuru a partir da
ênfase na idéia das perdas culturais. Eles foram denominados de caboclos que
estavam “totalmente aculturados”, isso porque as expressões culturais estavam
em acelerado processo de “desaparecimento”. Por essa razão a unidade do
grupo estava fragilizada, e não eram mais percebidos traços de vida comunitária.
Apenas na Aldeia Canabrava havia alguma coesão e apenas vestígios da língua
1
Condepe. Op. cit, p.65.
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materna falada somente pelos mais velhos. Permeia o texto, portanto, a idéia de
uma essência cultural expressa por meio de sinais distintivos, a exemplo do falar
pleno de uma língua original, cuja ausência entre os moradores na Serra do
Ororubá, significava o desaparecimento daqueles “remanescentes” indígenas.
Ainda que o Toré continuasse sendo dançado, como constatou a
equipe que visitou a Serra do Ororubá, o texto negava a existência de
expressões socioculturais indígenas. Os pesquisadores não conseguiram “ler”,
nas entrelinhas, o significado das queixas Xukuru sobre as humilhações dos
fazendeiros que ridicularizavam os “costumes” indígenas. Mesmo evidenciando
Cimbres como o “centro das manifestações comunitárias de cunho místicoreligiosas” indígenas, onde ocorriam grandes festejos em louvor a São João e
Nossa Senhora das Montanhas, o texto afirma não se tratar de uma festa
indígena, mas de uma festa regional da qual os “caboclos” participavam,
juntamente como os não-índios. Não foi levada em consideração a apropriação
e o sentido que os Xukuru sempre deram àquele local e as festas ali celebradas,
como constatamos em entrevistas realizadas.
O texto da publicação oficial não explorou o significado das narrativas
indígenas sobre o “achado da imagem” de N.Sra. das Montanhas, e igualmente
os rituais em que os indígenas se vestem com adereços de palhas próprios para
a ocasião, enquanto expressões das apropriações e reelaborações culturais
Xukuru. As narrativas e informações sobre as expressões socioculturais
indígenas foram relatadas pelo “caboclo Antero”, figura que não recebeu a
devida importância na pesquisa, não obstante tratar-se de Antero Pereira, o
Cacique Xukuru na época, morador na atual Aldeia Cana Brava, de onde se
originou o cacicado Xukuru e também um dos locais, na Serra do Ororubá, em
que a maioria das famílias indígenas sempre possuiu pequenos pedaços de
terras.
Ainda que, do ponto de vista oficial, continuassem sendo chamados de
caboclos e assim tivessem negada sua identidade étnica indígena, em meados
dos anos 1980 os Xukuru se mobilizaram e participaram ativamente dos
debates em torno da Assembléia Nacional Constituinte e da elaboração da nova
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Constituição aprovada em 1988. A participação Xukuru foi incentivada e
apoiada, durante todo tempo, pelo Cimi-NE (Conselho Indigenista
Missionário-Regional Nordeste, órgão anexo a CNBB). A discussão da
temática indígena na Constituinte em vias de convocação foi o motivo para o
Cimi se aproximar dos Xukuru, após várias tentativas anteriormente impedidas
pelos encarregados dos Postos da Funai, segundo afirmaram mais tarde os
índios. Em 1986, um casal de missionários foi morar na área urbana de
Pesqueira, de onde se deslocavam para a Serra do Ororubá, com o objetivo de
conhecer os índios e promover reuniões para discussões sobre a Constituinte.
Apoiados e custeados pelo Cimi-NE, grupos de Xukuru, juntamente
com os de outros povos indígenas no Nordeste, viajaram por diversas vezes a
Brasília para participar de encontros de estudos, seminários, e para pressionar
os deputados que discutiam a elaboração da nova Constituição. A presença dos
indígenas nordestinos na Capital Federal, em conjunto com índios vindos das
demais regiões do Brasil, em um momento político tão significativo, deu uma
considerável visibilidade às reivindicações dos índios no Nordeste. Nesse
processo, destacou-se e tornou-se bastante reconhecida, entre os índios no
Nordeste, a liderança de Francisco de Assis Araújo, o “Xicão”, que, retornando
de Brasília seria escolhido Cacique do povo Xukuru.1
A participação nos eventos em torno da Constituinte em muito
impulsionou a organização e mobilização Xukuru. Durante as várias estadas em
Brasília, o Toré foi dançado em diversas vezes e assumiu, além de um
significado político, um marco da identidade e mobilização Xukuru.
Promulgada a Constituição e retornando da Capital Federal, assessorados pelos
missionários do Cimi-NE os Xukuru promoveram, acompanhada de muito
Toré, uma reunião na Aldeia Cana Brava, com índios das diversas aldeias na
Serra do Ororubá. Para relatar os acontecimentos vivenciados em Brasília, bem
como tratar dos direitos indígenas garantidos na nova Constituição. Decidiram
Considerações sobre a etnicidade: os Xukuru do Ororubá. Recife, Cimi-NE, p. 2-6, dig.
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também pela realização de reuniões nas demais aldeias, para continuar
discutindo o assunto1
Ainda em 1988, como registrou a imprensa pernambucana, os Xukuru
se mobilizaram também ao tomarem conhecimento de que o fazendeiro Otávio
Carneiro Leão tivera um financiamento aprovado pela Sudene, para
implantação da Empresa Agropecuária Vale do Ipojuca S/A, no Distrito de
Cimbres. Os índios pressionaram a Superintendência Regional da Funai
sediada no Recife, para impedir a emissão do atestado negativo da existência de
uma população indígena no local destinado ao projeto agropecuário. Como
receio de que outros fazendeiros recebessem o mesmo benefício oficial,
exigiam, “em pé de guerra”, a devolução de suas terras.2 Instalou-se um clima
de tensão entre os Xukuru, que exigiam a demarcação de suas terras, baseados
nos direitos indígenas garantidos na então recém promulgada Constituição.3
As lideranças Xukuru reuniam-se diariamente, para discutir os direitos
indígenas fixados na nova Carta Magna do país e, ao final dos encontros,
dançavam o Toré, invocando a proteção e a força dos Encantados e de N. Sra.
das Montanhas. Reivindicavam a devolução de documentos de suas terras,
assinados pela Princesa Isabel, e uma túnica de capitão, uma espada e botões
de ouro pertencentes aos seus antepassados, ex-combatentes na Guerra do
Paraguai, pois tanto os papéis como os objetos tinham sido levados, em 1944,
pelo sertanista Cícero Cavalcanti, ainda trabalhando na Funai no Recife, mas
que, naquela época, estivera na Serra do Ororubá, a serviço do SPI. Por outro
lado, os fazendeiros ampliavam as plantações de capim e soltavam o gado, para
ocupar as terras reivindicadas pelos Xukuru, que prometiam reaver, baseados
nos preceitos constitucionais, o que lhes pertencia por direito.4
Relatório da Equipe Xukuru. Recife, Cimi-NE, p.3, dig.
“Em pé de guerra, índios Xukurus exigem devolução de terras” Folha de Pernambuco, Recife,
22/10/1988, p.1.
“Xucurus querem terras de seus antepassados”. Jornal do Comercio, Recife, 22/10/1988, p.5.
Idem
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2
3
4
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Com a destituição, em 1989, do Cacique José Pereira de Araújo,
conhecido por “Zé Pereira” ou ainda “Zé de Ismaé”, acusado de alianças com a
Funai e de não favorecer as reivindicações indígenas, os Xukuru escolheram,
para substituí-lo, Francisco de Assis Araújo, o Cacique “Xicão”. O carisma e a
liderança de “Xicão”, demonstrada em Brasília, durante a participação nos
eventos da Constituinte, deram um novo impulso à organização e mobilização
interna Xukuru, e na busca de apoio da sociedade civil, a exemplo do Cimi-NE,
para a conquista dos direitos indígenas sobre as terras reivindicadas. Após
pressões dos Xukuru, que ingressaram com uma ação judicial na Procuradoria
da República no Recife contra o Projeto Agropecuário Vale do Ipojuca, uma
portaria ministerial determinou a criação de um Grupo de Trabalho (GT),
formado por técnicos da Funai, para iniciar o processo de identificação e
delimitação da terra indígena Xukuru. O levantamento realizado pelo GT,
coordenado pela antropóloga Vânia Fialho Souza, cadastrou 281 imóveis rurais
na área delimitada em 26.980 hectares. O Prefeito de Pesqueira, secretários
municipais, pelo menos um vereador e familiares do então Vice-Presidente da
República Marco Maciel foram listados como posseiros.
O trabalho realizado pelo GT foi bastante significativo para os Xukuru,
uma vez que oficialmente as reivindicações indígenas estavam sendo
reconhecidas. Mas, por outro lado, aumentaram as tensões entre os índios e os
fazendeiros, que passaram a não mais ceder terras em regime de arrendamento
e não aceitar trabalhadores que se identificassem como Xukuru. A recusa dos
fazendeiros de utilizar mão-de-obra indígena agravou as condições de pobreza
dos Xukuru que, motivados pelo levantamento do GT, iniciaram o processo de
retomada de parte das terras em disputa. (OLIVEIRA, 2006, p.107-108).
A primeira área a ser retomada foi Pedra d’Água, em fins de 1990.
Pedra d’Água fora ocupada pelos índios, no início dos anos 1960 numa ação
conjunta com a Liga Camponesa. Cerca de 300 índios, em 1990 contando com
apoio jurídico do Cimi-NE, ocuparam 110 ha. em Pedra d’ Água, que estava
nas mãos de 15 posseiros arrendatários de Prefeitura da Pesqueira, em terras de
propriedade da União cedidas ao Município. Em nota distribuída à imprensa,
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assinada pelo Cacique “Xicão”, lideranças Xukuru e de outros povos indígenas
no Nordeste, parlamentares e entidades dos movimentos sociais, foi explicado
ser a mata em Pedra d’ Água um local de rituais sagrados e que tinha sido
destruída por posseiros. Além disso, as terras Xukuru estavam invadidas por
fazendeiros, pequenos e médios posseiros, impedindo o plantio para a
sobrevivência indígena, que exigiam providência à Funai.1
Em 1992, os Xukuru retomaram a Fazenda Caípe, uma área com 1450
ha, até então sob o domínio do posseiro e vereador municipal pelo PFL
Hamilton Didier. Contando sempre com o apoio conquistado de organizações
da sociedade civil, como o Cimi-NE, a Comissão Pastoral da Terra/PT, o
Conselho Mundial de Igrejas/CMI, sindicatos rurais e urbanos da região de
Garanhuns, parlamentares do PT-PE, como o então Deputado Estadual João
Paulo, professores/as da UFPE, UFPB, dentre outros órgãos e personalidades,
ocorreram outras retomadas. Se, por um lado, esse processo ampliou a
dimensão da visibilidade política da organização e mobilização Xukuru pela
demarcação de um território, por outro, aumentou a rejeição e negação por
parte dos fazendeiros sobre a existência de um grupo indígena na Serra do
Ororubá.
Os questionamentos sobre a identidade indígena e a disputa pelo
direito às terras ultrapassaram Pesqueira e ocuparam espaços na imprensa
pernambucana e de outras regiões do Brasil, como o importante jornal Folha
de São Paulo, que trouxe uma página inteira de uma edição de domingo, com
uma longa reportagem, incluindo vários depoimentos de índios xukurus e
fazendeiros. Os argumentos apresentados por índios e de fazendeiros
expressavam um confronto de concepções no presente, relacionado a um
passado que fundamentava a identidade indígena, conferindo o direito à
propriedade das terras em disputa.
Na citada reportagem, Evandro Maciel Chacon, Prefeito de Pesqueira,
primo do então Vice-Presidente da República, Marco Maciel, e posseiro na
Os Xukuru retomam área invadida. Porantim, Brasília, nº. 133/134, nov./dez. 1990, p.9.
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Serra do Ororubá, dizia estar procurando mediar o conflito. Para garantir os
mananciais que abasteciam a cidade de Pesqueira, localizados nas terras
reivindicadas pelos indígenas, o Prefeito recorrera à Justiça contestando o
relatório da delimitação do território Xukuru elaborado pela Funai. Evandro
Chacon questionou a existência Xukuru, quando afirmou: “Houve uma
aculturação. Se bobear, tem índio mais para São Paulo do que eu”.
Para o fazendeiro Hamilton Didier, que tivera as terras em seu poder
ocupadas pelos Xukuru, muitos estavam se passando por índios: “Eles estão
estudando o dialeto, para dizerem que são índios. Eu dou minha fazenda para
você, se você achar algum índio lá”. Ele também afirmou: “Aqui (em Pesqueira)
existem tantos índios quantos existem hoje na Avenida Paulista ou em
Copacabana”. E ironicamente, ainda acrescentou: “Eles, os que se dizem
índios, perderam o dialeto na estrada, talvez na subida da serra”. Ao que
respondeu Cacique “Chicão”: “Tomaram nossa língua. Isso foi até bom.
Imagine se a gente não soubesse falar português. Estávamos mortos”.1. Para o
fazendeiro, uma identidade indígena perdida e expressa, por exemplo, no falar
de uma língua nativa, era um dos critérios ausentes nos que se afirmavam índios
para exigir os direitos às terras. Para os Xukuru, as relações históricas
explicavam a condição até vantajosa em que se encontravam, para reivindicar o
que afirmavam ser de direito.
Foi a partir de suas memórias que os Xukuru do Ororubá lêem a
história para justificar a reivindicação de seus direitos (SILVA, 2008). As
memórias Xukuru foram por eles retomadas tanto no início dos anos 1950,
quando buscaram os benefícios da lei para familiares de ex-combatentes na
Guerra do Paraguai e o reconhecimento oficial para a instalação de um Posto
do SPI na Serra do Ororubá, como em fins dos anos 1980, quando, após
participarem nas discussões e mobilizações para a elaboração da nova
Constituição Federal que garantiu os direitos indígenas, passaram a reivindicar
as suas terras invadidas por fazendeiros. Naquela década quando os conflitos
“Caboclo, xucuru pode virar sem-terra”. Folha de São Paulo, São Paulo, 7/12/1996, p.11.
1
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por terras e os direitos indígenas em Pesqueira ocuparam o espaço público de
debates por meio da imprensa, os Xukuru do Ororubá recorreram as suas
memórias para contrapor as afirmações contrárias à existência indígena por
parte dos fazendeiros.
Por meio da pesquisa das memórias, percebemos elos de uma história
coletiva, de um pertencimento, em um conjunto de situações e experiências
históricas que conferem uma identidade, baseada em um espaço ancestral
comum: a Serra do Ororubá. Daí ser possível afirmar a existência de uma
memória coletiva: “A memória coletiva aparece como um discurso da
alteridade, no qual a posse de uma história que não se divide, dá ao grupo sua
identidade” (GODOI, 1999, p.147). Uma memória compondo um patrimônio
dinâmico e, a exemplo do ocorrido em outros lugares e situações, “Verifica-se
que ela é ativada num contexto de pressão sobre o território do grupo, atuando
como criadora de solidariedades, produtora de imaginário, erigindo regras de
pertencimento e exclusão, delimitando as fronteiras sociais do grupo”
(GODOI, 1999, p.147).
As memórias orais dos Xukuru do Ororubá sobre a Guerra do
Paraguai ocupam um lugar central nas leituras da História feitas pelos índios
para afirmarem o direito às terras. Elas foram conquistadas como recompensa
pela participação de seus antepassados naquela Guerra. Um entrevistado
lembrou o famoso batalhão “30 do Ororubá”, relatando como os Xukuru
voluntários da Pátria, após lutarem e vencerem a Guerra do Paraguai foram
recebidos pessoalmente, no Rio de Janeiro, pelo casal imperial. Estes, não
tendo como agradecer reconheceram o direito indígena as terras,
Chamavam o número Trinta dos Voluntários. Chama os
Trinta dos Voluntários porque foram pro Paraguai, lutaram
na guerra lá, venceram... Mas quando veio de volta,
passaram no Rio de Janeiro, o rei e a rainha não tinham
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com que agradecer a eles e disse: “Vocês faça sua divisão de
terra, é patrimônio que eu vou assinar pra vocês”.1
Moradora da Aldeia Gitó, Dona Josefa também ouviu do pai e do avô
que seus antepassados venceram a Guerra. No encontro com o Imperador
Pedro I e a Princesa Isabel, os índios não foram recompensados em dinheiro,
porque podiam ser enganados e roubados pelos brancos, mas receberam as
terras:
A pessoa que foi para a Guerra, naquele tempo eu não era
nascida, eu sei contar coisa assim, alguma coisa que eu já
ouvi meu avô falar, meu pai. Os parentes deles foram para a
Guerra, lutaram, venceram a Guerra. E depois que eles
lutaram e venceram a Guerra, a Princesa Isabel queria dar
dinheiro para eles. D. Pedro disse “Não dê, porque eles são
inocentes, os brancos vão roubar o dinheiro. A terra deles.
Dê terra a eles, não dê dinheiro, não”. Aí ela foi e deu a
terras a eles.2
Em uma alusão às abotoaduras de bronze do fardamento militar, a
entrevistada afirmou terem os Xukuru recebido ainda roupas com botões de
ouro. Ela falou ainda do chapéu. Destacando, em suas lembranças, o adereço
que completava o uniforme de combate. Enfatizou, porém, a importância das
terras, motivo de contínuas disputas, mas que foram conquistadas e
documentalmente registradas no Rio de Janeiro, em uma referência à
recompensa recebida pelos índios diretamente do casal imperial:
Entrevista com João Jorge de Melo. Área Indígena Xukuru, Aldeia Sucupira, Pesqueira/PE, em
30/03/2002.
Josefa Rodrigues da Silva. Área Indígena Xukuru, Aldeia Gitó, Pesqueira/PE, em 30/03/2002.
1
2
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Ganharam aquela roupa de ouro, com aqueles botão de
ouro, aquele chapéu, aquelas coisa, não é? E ganharam a
terra também. O principal foi a terra. Que justamente essa
terra que ainda hoje estão lutando, querendo acabar com os
índios, sabendo que a terra é dos índios porque foi ganha.
Está lá no Rio de Janeiro, essa cópia das terras está no Rio
de Janeiro.1
“Seu” Gercino morador na Aldeia Pedra d’Água também narrou o
encontro dos Xukuru com a Princesa Isabel ao retornarem da Guerra. Em seu
relato, foram os índios que, receando serem roubados pelos brancos,
recusaram dinheiro ou ouro oferecido, e pediram, como recompensa, as terras
onde habitam:
Ela queria dar o dinheiro prá pagar. Mas já tinha índio veio
que já entendia mais ou menos, ai disse: “Bem, se é da
senhora dar o dinheiro, o ouro nós não quer. Que a
senhora dá o ouro eles roubam. Os homem branco rouba,
dar a coroa eles carrega, dar espada eles toma. Assim nós
queremos em terra”. Ela deu a terra. É essa aldeia aqui.
Essa aldeia aqui foi dada por ela.2
A história contada pelos Xukuru do Ororubá é pontuada por
acontecimentos, momentos e marcos por eles considerados fundamentais tais
como: a participação na Guerra do Paraguai, a época da busca pelo
reconhecimento do SPI, nos anos 1950, e o período da mobilização para as
retomadas das terras, nos anos 1980, sob a liderança do Cacique Xicão. As
Idem.
Gercino Balbino da Silva. Área Indígena Xukuru, Aldeia Pedra d’Água, Pesqueira/PE, em
11/08/2004.
1
2
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memórias sobre a participação dos Xukuru na Guerra do Paraguai, portanto,
são relidas em diferentes contextos.
Nos relatos das memórias orais dos Xukuru do Ororubá, é possível
perceber outros momentos que expressaram o cotidiano, os espaços de
sociabilidades criados na Serra do Ororubá, o significado de Cimbres como um
espaço de referência da memória mítico-religiosa para a afirmação da
identidade do grupo, as relações de trabalho com os fazendeiros ou como
operários na indústria, em Pesqueira. E ainda nas atividades exercidas, para
sobrevivência, por falta de terras, e em razão da seca, na lavoura canavieira na
Zona da Mata Sul pernambucana e Norte alagoana, ou nas plantações de
algodão no Sertão paraibano. São fragmentos colhidos de relatos individuais, de
memórias autobiográficas, mas que fazem parte de uma história coletiva, na
medida em que toda memória individual se apóia na memória grupal, pois toda
história de vida faz parte da história em geral. (HALBWACHS, 2004, 59).
Analisando os relatos dos Xukuru do Ororubá, é possível afirmar,
como disse Michael Pollak, quando discutiu sobre memória e identidade social,
que, entre aqueles indígenas é “perfeitamente possível que por meio da
socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de
projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos
falar numa memória quase herdada”. (POLLAK, 1992, p.2). Compreender o
significado das memórias orais Xukuru do Ororubá é compreender a “história
de experiências”. Um debruçar sobre essas narrativas possibilita entender como
“pessoas ou grupos efetuaram e elaboraram experiências”. (ALBERTI, 2004,
p.25).
Essas experiências foram e são marcantes, porque foram intensamente
vividas. As narrativas das memórias orais do povo Xukuru nos ajudam ainda a
“entender como pessoas e grupos experimentaram o passado e torna possível
questionar interpretações generalizantes de determinados acontecimentos e
conjunturas”. (ALBERTI, 2004, p.26). As reflexões aqui apresentadas
procuraram evidenciar como os Xukuru do Ororubá, apoiados na memória e
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na história que compartilham sobre o passado, fazem à releitura de
acontecimentos que escolheram como importantes, para afirmarem seus
direitos, mesmo em meio às tantas perseguições, enquanto um povo indígena, a
partir do vivido, do concebido e do expressado.
A história de “Seu” Gercino, em 83 anos de vida, nascido sem-terra e
falecendo como morador na retomada Aldeia Pedra d’Água, um lugar míticoreligioso para os Xukuru do Ororubá, é bastante significativa: no período de
um século, ou seja, desde a extinção oficial do aldeamento de Cimbres em
1879, até o início dos anos 1980, quando os Xukuru do Ororubá iniciaram as
mobilizações para retomada de suas terras.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBERTI, V. Ouvir contar: textos em História Oral. Rio de Janeiro, FGV,
2004.
CONDEPE. Instituto de Desenvolvimento de Pernambuco. As comunidades
indígenas de Pernambuco. Recife, Governo do Estado de
Pernambuco/Secretaria de Planejamento, 1981.
GODOI, Emilia Pietrafesa de. O trabalho da memória: cotidiano e história no
Sertão do Piauí. Campinas, Editora da UNICAMP, 1999.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.
OLIVEIRA, Kelly. E. de. Guerreiros do Ororubá: o processo de organização
política e elaboração simbólica do povo indígena Xukuru. João Pessoa, UFPB,
2006. (Dissertação Mestrado Sociologia).
POLLAK, Michael. “Memória e identidade social”. Estudos Históricos. Rio de
Janeiro, 1992, 5(10), pp. 200-212.
SILVA, Edson. Xukuru: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá
(Pesqueira/PE), 1959-1988. Campinas, UNICAMP, 2008. (Tese Doutorado
História Social).
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SER PORTUGUÊS E SER CATÓLICO: DIFERENTES USOS
DA MEMÓRIA NA TENTATIVA DE CONFIGURAÇÃO DE UMA
IDENTIDADE NA AMÉRICA PORTUGUESA
Fábio Eduardo Cressoni1
Resumo
Este trabalho destina-se a compreensão dos diferentes usos da memória na
tentativa de constituição de uma identidade específica ao homem português
quinhentista no decorrer do processo de expansão marítima-comercial desse
Império. Nesse sentido, consideramos as diversas estratégias adotadas pelos
padres da Companhia de Jesus na ação constituinte desse processo, agindo,
com efeito, na elaboração, disseminação e manutenção de uma determinada
forma de ser na América portuguesa.
Palavras-Chave: Império português; Memória; Identidade.
Abstract
This work aims at understanding the different uses of memory in an attempt to
establish an identity specific to the man during the sixteenth century Portuguese
expansion process of maritime and commercial empire. Thus, we consider the
various strategies adopted by priests of the Society of Jesus in action component
of this process, acting, in effect, the development, dissemination and
maintenance of a particular way of being in Portuguese America.
Keywords: Portuguese Empire; Memory; Identity.
Doutorando em História e Cultura Social / UNESP campus Franca.
Docente da Fundação Hermínio Ometto (UNIARARAS)
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INTRODUÇÃO
Muitas vezes somos apenas um eco. Seguindo essa reflexão,
Maurice Halbwachs nos indica o papel da memória coletiva perante a memória
individual. Quantas ações (reflexões, idéias, sentimentos e emoções) as quais
acreditarmos sermos responsáveis são, na verdade, reflexos de um espelho que
emite uma construção coletiva, na qual estamos inseridos juntamente aos
demais membros de uma sociedade (2006, p. 64).
Apreendermos a rememoração de fatos compartilhados tornase, pois, mais fácil justamente pela socialização desses, enquanto que as
lembranças particulares dos eventos vivenciadas de forma única, destinadas
exclusivamente a nós, são, considerando essa ausência maior de participação,
com efeito, menos evocadas quando do uso da memória. O pensamento
coletivo ao qual estamos sempre em contato, ao qual estabelecemos um estreito
relacionamento, permite-nos essa distinção quanto às duas formas de memória
aqui identificadas. (Idem, p. 67).
Halbwachs inicia sua discussão acerca da memória coletiva e
memória individual conjugando a idéia de que, mesmo não estando presente,
podemos compartilhar uma determinada lembrança com outro indivíduo.
Fazemos isso justamente porque não estamos sozinhos. Estamos sempre em
contato com outros sujeitos. E, esse estar em contato, permite-nos a elaboração
de uma experiência coletiva determinante a constituição de nossa memória.
Lembramos individualmente também. Nosso ponto de vista
sobre uma determinada vivência faz-se presente nesta situação. No entanto, esse
é sempre constituído a partir do lugar e da temporalidade na qual lembramos.
Logo, o individual perpassa pelo coletivo em sua constituição.1
A esse processo de rememorar, conjugando as lembranças individuais em associação com as
recordações de outros indivíduos, fazendo-as, portanto, coletivas, no sentido do
compartilhamento de uma determinada experiência social, a partir de diferentes perspectivas,
sublinhamos seu caráter pedagógico. Esse compartilhamento social de outras vivências,
determinante a elaboração dessa nova memória, fecunda no estar com o outro, modifica o sujeito
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Feitas essas primeiras considerações, passamos a analisar o
funcionamento de uma memória coletiva entre os portugueses do século XVI,
memória esta destinada a constituição e manutenção de uma identidade
conjunta, específica a uma determinada forma de ser.1 A todo instante, como
demonstraremos, diferentes estratégias destinavam-se ao ato de lembrar o
significado de se ser português na sociedade quinhentista.
MÉMORIA E IDENTIDADE PORTUGUESA QUINHENTISTA
Não devemos perder de vista que o indivíduo, enquanto
membro de um grupo social, como afirma Halbwachs, é sempre o agente capaz
de se lembrar de algo (Idem, p. 69). Evidentemente que, ao sentirem as
experiências postas na sociedade portuguesa quinhentista, nem todos as
percebiam da mesma forma.
Uns mais, outros menos, a vivenciavam, conforme a realidade
desempenhada por cada um, em meio a esse quadro social, rememorando-a
nas suas mais diversas maneiras:
De bom grado, diríamos que cada memória individual é um
ponto de vista sob a memória coletiva, que este ponto de
que relembra, propondo-lhe um novo aprendizado. Aprende-se, com efeito, à medida que as
recordações resignificam a vida desse sujeito, fazendo da memória uma possibilidade desse
permanente transformar-se.
“Forma, numa primeira acepção, designa o padrão do agir humano, quase numa dimensão de
exterioridade. A acepção mais profunda, relativa à consistência, compreende ‘aquilo que faz de
um sujeito o que ele é’, ou seja, sua identidade. Em outras palavras, forma quer significar, de uma
vez, toda a realidade do sujeito (pessoa ou coisa)” (PAIVA, 2007, p. 07). A definição aqui
empregada nos remete a possibilidade de compreender o agir humano a partir de sua forma de
ser, revelando, pois, seus traços, aquilo que faz o ser ser o que é. Procura-se, com essa categoria,
identificar o ser na sua concretude, isto é, de maneira concreta – do latim cum crescere, ou seja,
crescer com. Todo sujeito está, constantemente, envolvido por essa realidade. Detentor de sua
forma social de ser, cada indivíduo desenvolve-a constantemente, moldando-a e transformando-a
a todo o momento. É a forma que caracteriza o ser, qualificando-o e revelando sua identidade.
Logo, essa categoria quer explicitar o ser por inteiro, expondo sua unidade.
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vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo
lugar muda segundo as relações que mantenho com outros
ambientes. Não é de surpreender que nem todos tirem o
mesmo partido do instrumento comum. Quando tentamos
explicar essa diversidade, sempre voltamos a uma
combinação de influências que são todas de natureza social
(Ibidem).
O fato a ser destacado aqui, diz referência ao reconhecimento
dessa experiência. Reconhecimento esse, dado em colaboração com a
memória. O dizer missa, as procissões e outros atos públicos de fé faziam
lembrar os lusitanos de sua condição, do dever ser ligado a sua identidade.
Tratamos de um estado permanente, fixo, imutável? Evidente
que não! A vida social, e sua dinâmica, impunham outros ditames, de toda
sorte. Mas o recordar, papel permeado por essa memória específica, constituída
no antigo regime português, capaz de influenciar também a memória individual
de cada membro do corpo social português, estava, a todo instante, presente,
cumprindo uma função própria: permitir recordar e, portanto, vivenciar uma
determinada experiência.
Reconhecemos a existência de lembranças compartilhadas,
adotadas entre si por diferentes sujeitos. A variabilidade da identificação dessas
permeia sua individualidade. Agora, os pontos vivenciados em comum indicam
seu estar conectado com o outro, de maneira ampla, coletiva.1
Seu exemplo de um passeio por uma cidade européia na primeira metade do século XX é
sugestivo nesse sentido. Sozinho fisicamente, a visualização de uma série de lugares sugere-lhe um
compartilhamento de sentimentos e sensações congênitas a mais de um sujeito, formando, pois,
um quadro de lembranças inerente a um mesmo grupo social: “Outras pessoas tiveram essas
lembranças em comum comigo. Mais do que isso, elas me ajudam a recordá-las e, para melhor
recordar, eu me volto a elas, por um instante adoto seu ponto de vista, entro em seu grupo, do
qual continuo a fazer parte, pois experimento ainda sua influência e encontro em mim muitas das
idéias e maneiras de pensar a que não me teria elevado sozinho, pelas quais permaneço em
contato com elas” (2006, p. 31).
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A idéia da pré-existência de um testemunho ocular de uma
história, na perspectiva de confirmar literalmente, via depoimento, uma
acontecimento, é desmontada por Halbwachs. Para ele, novas possibilidades
são reconhecidas. A junção de outras pessoas permite descrever uma
experiência, reconstituindo-a a partir de um compartilhamento comum.
Retomamos aqui a idéia inicial apresentada, da configuração de uma memória
coletiva inerente a um determinado grupo, memória esta capaz de ajustar a
configuração da identidade portuguesa no decorrer do antigo regime.
Por quais motivos torna-se provável essa possibilidade? Pela
vivência da mesma temporalidade e espacialidade, mas também pela
socialização de uma experiência comum. Neste caso, uma experiência de
organização pautada em um modelo social corporativo, de base políticoteológica. Dessa condição vemos emergir outra forma mentis, sustentada por
ações determinadas a partir de uma realidade diferente do mundo no qual
estamos inseridos hoje.1
A racionalidade, e afirmamos racionalidade no sentido de uma
consciência dessa condição, era sentida de outra maneira. O mercador, o
missionário, o oficial mecânico, o nobre situado no reino ou inserido na
Tratamos de uma sociedade com bases políticas alicerçadas nos moldes de uma antiga
experiência (medieval) em associação com uma nova possibilidade (moderna), na qual elementos
como mercancia e fé dispunham-se a associar-se no processo de expansão marítima do Império
português. Desenhamo-la tal qual a representação portuguesa quinhentista, isto é, como um
corpo social. Composta pelo rei (cabeça) e demais súditos – nobres, clérigos, comerciantes,
oficiais mecânicos, peões e escravos - (membros superiores e inferiores), noções como hierarquia
e ordem, advindas da organização cosmológica do mundo português, apresentavam uma
racionalidade político-teológica que se sustentava na figura do rei (representante da sacralidade de
todo o reino), em associação com o restante desse mesmo corpo social. Originário da idéia de
corpo místico, herdada do cristianismo, esse modelo de organização social se encontrava
amparado no Direito, sendo, com efeito, legitimado pelo Estado. A identidade, constituída pela
posição dos diferentes indivíduos nesse desenho socialmente posto aos portugueses, deveria ser
compartilhada pelo entendimento comum da colaboração das múltiplas partes com o todo,
interligando-as pelo sentimento de religiosidade a ser socializado pelos integrantes desse mesmo
reino. Era esse o entendimento existente, legitimado na forma da lei pelo Estado. Nesse sentido,
para uma visão específica do caso português, ver Xavier & Hespanha (1993). Considerando a
Europa em geral, observar Kantorowicz (1998).
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expansão marítima, todos, em maior ou menor escala, deveriam tomar essa
razão como forma de ser. Razão que possibilitava a mercancia em consonância
com a fé. Lembrar, portanto, desse Cosmos auto-regulador da vida social era
necessário a manutenção da hierarquia e da ordem. Consideremos hierarquia e
ordem apenas no sentido de submissão, subordinação ou sujeição, como na
sociedade contemporânea? Não! Tratemos essas com outro sentido, posto
como de arranjamento, organização. Aqui, o papel dessa memória coletiva,
sobressaindo e influenciando a memória individual, fazia-se necessário a
constituição e manutenção dessa identidade.
Enfim, queremos demonstrar que, entre uma multiplicidade de
atores, deveria perpassar um fio condutor comum a todos, sentido em
diferentes níveis de escala, conforme a condição e disposição de cada indivíduo,
experimentando-o de forma diferente (por conta da percepção de sua própria
memória individual, vez que esta mesma memória não atua como uma tabula
rasa, conforme lembra-nos Halbwachs).
A própria existência de uma multiplicidade não fere ou
infringe a unidade que acabamos de mencionar. Quando pensamos na palavra
unidade, tomamo-la enquanto capaz de dizer por inteiro, abranger o uno.
Agora, devemos pensar na composição desse uno: faz-se ele, sozinho,
composto de uma só característica? Não! Esse mesmo uno é, todo ele, múltiplo
e, por isso mesmo, total.
Com isto, queremos afirmar que o homem é formado por
inúmeros aspectos construídos ao longo de sua vida social. Todos nós nos
fazemos unos justamente pela nossa multiplicidade. O uno que forma a
unidade não é algo singular, mais que isso, têm-se aqui mil faces em seu
contorno. Sua variabilidade não esvazia sua unidade. Ao contrário: a
multiplicidade dá vida à unidade. O ser múltiplo não nega sua unidade, assim
como a unidade não nega sua multiplicidade. O estudo da forma de ser quer
atingir o homem em sua totalidade, apontando, pois, para sua vivência, que é,
dessa maneira, desenhada por diversos traços. Existem aspectos (traços) da
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realidade que perpassam por um mesmo grupo social, definindo sua forma
para todos os seres postos no mesmo quadro social.
Isso não significa dizer que todos esses seres traduzem a
realidade da mesma forma, a partir das perspectivas geradas por esses mesmos
aspectos. No entanto, essa multiplicidade não quebra a unidade, e por sua vez a
identidade, do grupo. E a colaboração dessa memória coletiva na integralização
dessa identidade ocupava papel preponderante nesse processo.
Essa memória resignificava o sentido dado ao passado. O
evento praticado por um só sujeito, como a batalha de Dom Sebastião contra os
mouros, é, não somente a experiência do rei desaparecido, mas, sobretudo,
uma vivência coletiva, à medida que os portugueses não só reconheciam, mas
ligavam seu passado ao passado do ato praticado por seu antigo monarca.
Evidente a presença da intuição sensitiva, proposta por Halbwachs, atuando
como um filtro ao receptor (Idem, p. 42-43). Mas, sobreposta, por outra forma
de lembrança neste caso.
Halbwachs nos fala do ponto de contato entre diferentes
memórias na constituição das lembranças. Identificações em comum, que
permitem aos indivíduos recordarem uma determinada experiência social
(Idem, p. 39). O ponto de contato aqui estabelecido, devendo ser praticado por
todos, sem distinção, era a religiosidade, marcada pelo ser português e dever ser
católico.1
A própria configuração da sociedade dada pelo Estado, ao fazer-se representar como um corpo
social, como anteriormente citado, expõe essa condição. Sentir-se português deveria ser sentir-se,
em sua forma de ser, católico, acompanhando o restante desse modelo de organização social. O
ponto comum entre todos, referendando pelo modelo era o cristianismo. Xavier e Hespanha
sintetizaram essa identidade a partir da seguinte percepção: “Uma identidade que se manifestava
positivamente no sentido da unidade da república dos crentes, quotidianamente veiculada na
liturgia, na pregação, na organização eclesial ou, mesmo, na ordem processual canônica, pois de
todo o orbe católico se podia apelar para o papa. Negativamente, este sentimento de identidade
promovia a recusa de tudo o que fosse estranho ou adverso a comunidade católica, desde os
pagãos, ou infiéis, aos judeus e hereges” (1993, p. 21).
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O compartilhamento de um mesmo ponto de contato permite,
por intermédio dessa rememoração coletiva, uma reconstrução de uma
determinada percepção ou lembrança inerente a um evento passado:
É preciso que esta reconstrução funcione a partir de dados
ou de noções comuns que estejam em nosso espírito e
também no de outros, porque elas estão sempre passando
destes para aquele e vice-versa, o que será possível somente
se tiverem feito parte e continuarem fazendo parte de uma
mesma sociedade, de um mesmo grupo. Somente assim
poderemos compreender que uma lembrança seja ao
mesmo tempo reconhecida e reconstruída (Ibidem).
É interessante considerarmos o fato de que o reconhecimento
e a reconstrução dessas lembranças ocorrem segundo as condições dispostas à
capacidade de nossa rememoração. Conforme apontamos no início desse
trabalho, a temporalidade e a espacialidade na qual os agentes desse processo
encontravam-se inseridos devem ser elementos a serem convalidados nessa
ação. Relembramos, a partir dessas pré-disposições, de acordo com nossas
probabilidades. Dizemos nossas, por que individuais, mas sempre em contato
com outros, portanto, coletivas também.
Feitas essas considerações, interessa-nos observar os chamados
pontos de convergência que permeiam essa experiência social coletiva na
América portuguesa. Tratamos dessa possibilidade a partir da análise de uma
série de práticas referendadas pelas cartas emitidas pelos missionários da
Companhia de Jesus quando da sua instalação nos trópicos.1 Da
Sob o conteúdo e função das cartas analisadas, devemos considerar o seguinte: “(...) a narrativa
jesuítica não é nunca apenas relatos de fatos passados ou diagnóstico de uma situação inalterável,
mas é sobretudo relato de expectativas de uma história futura, quer dizer, narração de práticas ou
projetos de intervenção da Companhia de Jesus nas coisas do Brasil, de modo a dispô-las
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correspondência epistolar inaciana observaremos o conteúdo simbólico de uma
escrita destinada a função de lembrar e ensinar os moradores dessa extensão do
Império o ordenamento social pré-estabelecido por Deus, por meio do dever
obrigatório da junção de todos em um só corpo social.1
USOS
DA
MÉMORIA
NA
RECONFIGURAÇÃO IDENTITÁRIA
AMÉRICA
PORTUGUESA:
A vivência posta em prática, ela toda, fazia referência ao
religioso na América portuguesa, quando da observação da documentação
jesuítica. O dizer missa, as procissões, a visita dos padres aos engenhos de moer
cana, enfim, o constante estar com o outro, em diversas ações, deveria ser
permeado pela referência ao sagrado. Nisso, cotidianamente, o português
deveria ir se adaptando, plasmando a antiga experiência a partir da nova
realidade que o cercava. Essa idéia deveria ser validada para as práticas em
concordância ou discordância com o estado permanente de fé proposto pelos
padres da Companhia de Jesus.
Sobre a necessidade do desenvolvimento da religião em novas
terras, considerava-se a construção de novas igrejas como algo fundamental a
rememoração do ser português, em consonância com esse dever ser católico:
“(...) acabamos a igreja e é a mais devota que agora há nesta costa. A capela é
segundo o mandato divino e a colher nelas os frutos católicos esperados” (PÉCORA, 1999, p.
395).
Justifica-se a escolha das fontes jesuíticas pelo fato de considerarmos os missionários como
mediadores desse processo. Como letrados, trabalhando em defesa da fé, da lei e do rei, estes
detinham essa condição. Nesse sentido, atuavam como mediadores culturais em meio à
sociedade colonial (GRUZINSKI, 1991; 2001), na perspectiva de garantirem a adoção e
continuidade do modelo social pretendido. Esse estar com o outro significava lembrar, a todo
instante, as conformidades do ser português com a identidade proposta. Complementando o uso
das fontes jesuíticas, optamos por também observar essa questão a partir de documentos que não
tivessem sido produzidos pelos padres da Companhia. Nesse sentido, fazemos uso das Atas da
Câmara Municipal da Vila de São Paulo de Piratininga, destacando um conjunto de informações
que nos auxiliam a interpretar o problema proposto.
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mui bem forrada e formosa e um terço da igreja, por causa dos altares, é
também forrado. Temos o Santíssimo Sacramento enquanto eu estou em casa
(...)” [São Vicente, 1551] (CARTAS II, 1988, p. 91).
Nesse espaço, as práticas religiosas eram inicialmente
desenvolvidas. Ainda recém desembarcados, acompanhados do primeiro
governador-geral, Tomé de Souza, os padres já se punham a atuar:
Achamos a terra de paz e quarenta ou cinquenta moradores
na povoação que antes era; receberam-nos com grande
alegria e achamos uma maneira de igreja, junto da qual logo
nos aposentamos os Padres e Irmãos em umas casas a par
dela, que não foi pouca consolação para nós para dizermos
missas e confessarmos. [Bahia, 1549] (CARTAS I, 1988, p.
71).
Ao dizer missa, no interior das igrejas, a parte considerada mais
importante era a pregação. Do alto do púlpito, os jesuítas tinham como função
lembrar, atuando de forma coletiva, o lugar destinado a cada indivíduo naquela
sociedade. Com efeito, a pregação fazia-se o momento mais significativo da
liturgia. A todo instante, as cartas fazem referência a esta questão, operando no
sentido de buscar posicionar cada qual conforme seu reconhecimento, fazendo
uso da memória por meio do verbo divino, resignificado na sociedade colonial
pelos inacianos: “Eu [Nóbrega] prego ao Governador e à sua gente na nova
cidade que se começa e o Padre Navarro à gente da terra. Espero em N.
Senhor fazer-se fruito, posto que a gente da terra vive toda em pecado mortal
(...)”(apud LEITE, 1956, p. 110).
O trecho final da última carta citada expõe ainda a situação da
América aos olhos dos membros da Companhia de Jesus. O estado
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permanente, por mais que atuassem, era de constante pecado. Essa situação era
praticamente imutável em diferentes povoações da Colônia:
(...) quiseram tratar mal o nosso Padre e o ameaçaram com
um pau, e o ameaçador foi um homem que há 40 anos que
está nesta terra [João Ramalho] e tem já bisnetos e sempre
viveu em pecado mortal e anda excomungado. E o padre
não quis dar missa com ele e daqui veio, depois da missa
acabada, a querê-lo maltratar. [São Vicente, 1551]
(CARTAS II, 1988, p. 118).
Nesta capitania a mor parte da gente estava em pecado (...)
[Espírito Santo, 1550] (CARTAS II, 1988, p. 84).
(...) os cristãos que aqui viviam em conformidade com eles
[índios] e talvez em piores costumes [Bahia, 1550]
(CARTAS II, 1988, p. 75).
Logo, os jesuítas atuavam no sentido de lembrar e também
inserir no corpo social português os novos participes, determinando suas
funções. Todos deveriam pertencer ao mesmo corpus, postos que estavam pelo
pacto de sujeição, sendo que a presença jesuítica nesse processo tinha como
finalidade (re) atualizar “(...) a memória da alienação coletiva ao poder no ato
mesmo em que a enunciação produzia o destinatário e nele a audição
adequada” (HANSEN, 2000, p. 35).
Nesse sentido, os jesuítas traçavam diferentes estratégias,
considerando a permanente necessidade de garantir a manutenção da ordem e
da hierarquia pré-existentes, entre os habitantes da Colônia, procurando fazer
da religiosidade um elemento presente nessa identidade, reconfigurada na
América. Entre as formas propostas, a devoção por meio dos atos públicos de
fé também era utilizada, no sentido de atuar na elaboração de uma memória
coletiva, voltada a tarefa de unificar a todos.
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As cartas fazem referência a ações desse gênero a todo o
momento, como nas comemorações alusivas a Semana Santa: “Chegado o
tempo da Semana Santa, determinou-se que se fizesse o monumento mais
concertado e devoto que se pudesse, e dele tomou o encargo um devoto
ourives que viera aquele ano de Lisboa, mui afeiçoado à Companhia (...)”
[Bahia, 1561] (CARTAS II, 1988, p. 335).
Na Vila de São Paulo de Piratininga, os vereadores se reuniam
para designar a assistência do poder público em relação à festa, determinando a
organização das ruas dessa localidade: “(...) a limpem a longo do campo (...)
para os caminhos estarem limpos e que isto façam e cumpram esta semana que
vem que é a semana santa ( ...)” [14.04.1585] (ACTAS I, 1914, p. 263).
As recordações da forma de ser portuguesa também aparecem
nas narrativas alusivas às procissões. Aqui observamos o exemplo do Corpus
Christi português na América: “Outra procissão se fez dia de Corpus Christi,
mui solene, em que jogou toda a artilharia que estava na cerca, às ruas muito
enramadas, houve dança e invenções à maneira de Portugal” (apud LEITE,
1956, p. 129). Aqui, destacamos a referência ao fato da representação ocorrer
conforme o modelo praticado no reino, isto é, na rememoração do ato original,
refeito novamente em outro espaço e em outra temporalidade, mas com o
mesmo significado inicial.
Aos ausentes nas procissões, por vezes eram aplicadas penas,
como cobrança de multas. O mais interessante diz respeito ao fato de tais
cobranças serem arbitradas e executadas, ou desconsideradas, não pela Igreja.
Não era encargo dos padres fiscalizarem, punirem, ou dispensarem do
pagamento os faltantes. Faziam-no os vereadores, registrando suas ações nas
atas das Câmaras.
Isso ocorria justamente pelo motivo dessa prática fazer parte
do conjunto de ações inerentes a identidade portuguesa. E a punição, neste
caso, atuava no sentido de lembrar ao indivíduo ausente seu papel no corpo
social instalado em novas terras. Observemos o caso da Vila de São Paulo de
Piratininga:
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(...) os senhores vereadores condenaram os que não vieram
a procissão de Santa Isabel, conforme a ordenação do Rei,
em duzentos réis cada um (...) [03.07.1581] (ACTAS I,
1914, p. 180).
Os vereadores deram juramento dos Santos Evangelhos a
Antonio de Proença, para que declarasse que se ao dia de
Santa Isabel e véspera se estava doente de doença que não
pudesse vir a procissão; ele disse e declarou que pelo
juramento que tinha recebido que a tal tempo estava doente
e os ditos vereadores o absolveram de duzentos réis por não
vir a procissão [03.07.1581] (ACTAS I, 1914, p. 184).
As procissões, assim como outros atos públicos de fé, excluíam
os indígenas e os negros da participação em conjunto com os brancos.
Acompanhando as concepções de ordem e hierarquia do corpo social
quinhentista português, a separação e o ordenamento do desenvolvimento
dessas ações expunham a lógica lusitana no arranjamento dos diferentes
indivíduos em meio à sociedade colonial.
Assim o era em Pernambuco, e também nas demais capitanias,
ficando a cargo dos jesuítas esse modelamento, que dava forma a nova
experiência praticada nestas terras, resignificando o antigo modo de ser por
meio do contato com o outro. Observamos essa condição a partir da descrição
de uma das correspondências elaboradas por Nóbrega:
Fiz procissão com eles [indígenas e negros] todos os
domingos da Quaresma, e entre homens e mulheres seriam
perto de mil almas, afora muitos que ficam nas fazendas,
não entrando nela os brancos, porque mais à tarde faziam
os brancos a sua; e o que ia de uma à outra de diferença era
que os brancos, a poder de varas, juízes e meirinhos e
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almotacéis, se não podiam meter em ordem, sempre
falando; e os escravos iam em tanta ordem e tanto concerto,
uns atrás dos outros, com as mãos sempre alevantadas,
dizendo todos “ora pro nobis”, que faziam grande devoção
aos brancos (...) [Pernambuco, 1552] (CARTAS I, 1988, p.
149-150).
As romarias também aparecerem na narrativa jesuítica como
acontecimentos destinados a rememoração da cultura portuguesa. A
peregrinação a um determinado local, considerado sagrado, explica-se pela
inserção de um elemento da natureza, valorizado pelo caminhante.
Deslocando-se sozinho ou em grupo, o peregrino reafirmava determinadas
práticas por meio de um ato devocional, associando a fé a determinados
espaços físicos, havendo ainda a possibilidade da veneração a um determinado
santo.
Dessa maneira, os romeiros surgem nas cartas elaboradas pelos
inacianos, sempre os apresentando a partir de uma perspectiva que procura
preencher os elementos aqui citados:
A primeira [celebração] em uma ermida da casa, que se
chama Nossa Senhora da Ajuda, em que estiveram os
padres antigamente e, por estar agora longe da vila, não
residem nela: é casa de muita devoção e romagem, pelos
muitos milagres que tem feito e faz, e eu sou testemunha de
vista de alguns, como é sarar pessoas que eram quebradas e
de outras muitas diversas enfermidades quase incuráveis,
encomendando-se a Nossa Senhora e lavando-se em uma
fonte que miraculosamente nasceu ao pé dela. E outras
pessoas, mandando buscar água e bebendo-a, por sua
intercessão o Senhor é servido dar-lhe saúde, e dos milagres
que Nossa Senhora tem feito há aí um instrumento público,
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ainda que não de todos, porque cada dia se fazem. Não
duvido que, se fora nesse Reino, fora de grande concurso
de gente (...) [Porto Seguro, 1566] (CARTAS, II, 1988, p.
502).
Assim como as demais práticas mencionadas ao longo do texto,
esse deslocamento realizado como ato público de fé, era estimulado pelos
padres da Companhia, sempre na direção de permitir o compartilhamento de
uma memória coletiva a partir de um presente vivido como experiência sacra,
possível a partir da reprodução de determinados gestos.
Essa reconfiguração da realidade marcaria a formatação das
experiências sociais praticadas nessa nova dimensão do Império português,
ficando a cargo dos padres, como letrados maiores dessa sociedade, atuar em
conformidade com as concepções de ordem e hierarquia, buscando fazê-las
funcionais pela rememoração da religiosidade como elemento preponderante
ao significado social do ser português no mundo colonial quinhentista.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nosso objetivo foi demonstrar o uso de diferentes práticas
adotadas pelos padres da Companhia de Jesus para tentarem efetivar uma
determinada forma de ser, pautada por um modelo de organização social
estabelecido pelo reino português na sede e nas demais dimensões do Império.
Pautado pela concepção de ordem e hierarquia no arranjo de um grande corpo
social, pré-estabelecido por Deus, essa cosmologia procurava garantir uma
identidade uniforme aos portugueses e demais habitantes submetidos a este
modelo de organização, caso dos indígenas e negros da América portuguesa.
No interior dessa identidade, observamos uma característica
comum em meio à multiplicidade dos habitantes da Colônia. O fio condutor
proposto a todos era a religiosidade (leia-se catolicidade), como tentativa de
aceitação de um modo tido como correto de se viver. Das ações cotidianas
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públicas, narradas a partir da análise da documentação epistolar inaciana,
notamos esse constante vigiar jesuítico, disposto a modificar a forma social
adotada pelos moradores da Colônia, propondo-lhes, por intermédio de
diferentes mecanismos, uma transformação, na perspectiva de moldá-los,
conforme os parâmetros aqui identificados.
As ações citadas visavam rememorar os gestos culturais
portugueses experimentados na sede do Império. Evidente que não se
reproduzia fielmente a forma de ser reinícola. A realidade social quinhentista
variava muito. A distância guardada entre duas terras separadas pelo Atlântico
mediava não somente uma extensão física. A diversidade geográfica e os
contatos com o outro (colono, índio, negro) constituíam uma nova experiência.
Com certeza, havia modificações. Mas, essas ocorriam sempre tomando como
base o modo de vida anterior, reorientado pela condição diferenciada do novo
momento.
A ação jesuítica em meio a esse processo visava atuar no
sentido de proporcionar a rememoração da identidade portuguesa quinhentista,
lembrando a todo instante o lugar de cada indivíduo nesse desenho social.
Nesse sentido, consideramos que as diferentes ações mencionadas ao longo de
nosso texto – construções de igrejas, dizer missa, pregação aos diferentes
grupos, combate aos maus costumes e pecados, punições, comemorações,
procissões e romarias - podem ser lidas como símbolos de uma estratégia de
compartilhamento de uma cultura, a partir da constituição de uma memória
coletiva frente à memória individual dos portugueses. Trata-se, pois, de uma
tentativa de configuração, ajustada a partir das novas experiências realizadas
além-mar.
Das sensações provocadas pelas manifestações de fé na
Colônia, procurava-se, portanto, realinhar a vida social, fazendo uso dessas
ações como formas de memória destinadas não só a lembrar, mas, sobretudo,
tentar manter uma lógica social tida como ideal. Assim, ficando a cargo da
Companhia de Jesus, esse processo fora praticado nas diferentes extensões do
Império português, tecendo uma série de representações sacras destinadas a
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lembrar que o ser português deveria o ser em consonância com o ser católico,
fazendo de cada gesto social uma referência a Deus. Essa terra, na ação
missionária jesuítica, deveria construir-se a partir da experiência anterior,
despertada na memória de seus habitantes como vivência do sagrado em
permanente associação com todas as demais práticas sociais, procurando, por
meio dessa mesma memória, tentar definir a forma de ser de toda a gente que a
habitava.
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[291]
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HISTÓRIA DA LOUCURA NA OBRA “O ALIENISTA” DE
MACHADO DE ASSIS: DISCURSO, IDENTIDADES E
EXCLUSÃO NO SÉCULO XIX
Márcio José Silva Lima1
Resumo
Este trabalho tem por finalidade analisar a loucura a partir dos discursos da
construção de identidade do louco. Para tanto, relacionamos a pesquisa
historiográfica com a obra “O Alienista” que traz uma abordagem contundente
sobre a forma como a sociedade e a ciência do século XIX, tratava o problema
da loucura no Brasil. Neste período, a loucura esteve permeada por uma
relação de poder que ao produzir discursos acabava por recorrer à exclusão
como solução do problema. A partir daí foram construídos os primeiros
hospícios que tinham como função excluir um “transtorno” que se fazia cada
vez mais presente. Não apenas o indivíduo cientificamente diagnosticado como
doente mental, mas também, o morador de rua, o órfão, o “diferente”, o
alcoólatra... Todos deveriam ser escamoteados e afastados do convívio social.
Palavras chaves: Loucura. Discurso. Identidades.
Graduado em História pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA).
Especialista em história do Brasil e da Paraíba pela Universidades Integradas de Patos (FIP).
Atualmente mestrando em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
E-mail: [email protected]
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Abstract
This study aims to analyze the madness from the speeches of the construction
of identity of the madman. For this, we relate the historical research with the
book "O Alienista" that brings a forceful approach on how society and science of
the nineteenth century was the problem of madness in Brazil. During this
period, the madness was permeated by a balance of power to produce speech
ended up resorting to exclusion as a solution to the problem.From there the
first hospices were built which had the function to delete a "disorder" that was
increasingly present. Not only the individual scientifically diagnosed as mentally
ill, but also the homeless, the fatherless, the "different", the alcoholic ...
Everyone should be palmed and away from social life.
Keys words: Madness. Discourse. Identities.
INTRODUÇÃO
No século XIX, o Brasil passava por transformações no campo da
esfera política, econômica, social e cultural. Entre 1841 e 1889 tivemos a
consolidação do Estado Monárquico conhecido como Segundo Reinado. Seus
objetivos principais eram reforçar a figura do Imperador – D. Pedro II, recém
coroado – e restaurar o Poder Moderador criado outrora pelo seu pai D. Pedro
I. Dessa forma, o Império brasileiro almejava a implementação de novas
práticas políticas e institucionais, uma vez que a população aumentava nas
cidades de forma desordenada.
Com o crescimento das cidades aumentava também os seus problemas
de ordem social. Era preciso, portanto, uma série de transformações por parte
das autoridades a fim de sanar tais problemas. É neste contexto que a medicina,
inspirada no ideal positivista e pelas práticas médicas francesas, vai servir como
meio neste processo de transformação, defendendo a moral e o progresso dessa
sociedade. Em meio a tantas transformações, uma delas acabou sendo a
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produção de um discurso que iria qualificar e excluir aqueles que estivessem
fora do padrão social da época, identificando-os como loucos. “O doente
mental, o excluído do convívio dos iguais, dos ditos normais, foi então afastado
dos donos da razão, dos produtivos e dos que não ameaçavam a sociedade”.
(GONÇALVES E SENA, 2001, p. 49).
A loucura como doença psicossomática não é uma adversidade
contraída pelo homem apenas na modernidade. Desde muito tempo relata-se a
presença da doença mental. Entretanto, o seu tratamento ao longo da história
foi deveras questionável. Sua cura muitas vezes este ligada à extrema exclusão
ou até mesmo a rituais religiosos e cerimônias de exorcismo. A loucura
enfocada pela ciência, tendo a psiquiatria como uma especialidade médica, só
ocorreu a partir do século XVIII, quando em 1793, o médico francês Philipp
Pinel, libertou os doentes mentais que estavam acorrentados no Hospital
Bicêtre. Desde então, a abordagem de cunho científico, passou a fazer parte do
tratamento da doença mental. (PERES; BARREIRA, 2009)
Porém, esta nova abordagem materializou também o olhar da
indiferença. Aquele que não seguia o padrão comportamental que a sociedade
determinava como uma pessoa sã, passou a ser “diferente” e caracterizado
como louco. A loucura foi transformada em uma identidade para representar
não apenas o louco de origem psicossomática, mas todos aqueles que
estivessem para além do padrão social estabelecido. O louco, a partir dos
discursos de poder-saber estipulado pela religião, política e ciência, foi excluído
do convívio social e afastado daqueles que eram ditos normais, racionais, os que
não ameaçavam a ordem da sociedade.
Diante do quadro acima citado, buscamos nesta pesquisa aproximar os
fatos relatados pela historiografia com a narrativa da Literatura. Encontramos na
obra “O Alienista” de Machado de Assis, um retrato do Brasil no século XIX,
no que concerne ao comportamento social em relação à loucura. A nosso ver,
História e Literatura não se opõem, mas podem se relacionar. Nelas o fato
histórico se amplia com a narração e o trabalho científico se valoriza com o
estilo literário sem que se comprometa à totalidade dos fatos.
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O uso da Literatura como fonte de pesquisa pode ser de fundamental
importância para o historiador em sua labuta. Não queremos dizer com isso
que a literatura documenta o real ou constitui representações semelhantes
àquelas produzidas pelos discursos científicos, filosóficos, políticos, jurídicos.
Mas o que deve ser considerado na literatura é que toda sua ficção de algum
modo está sempre enraizada na sociedade. Pois o contexto em que ela é escrita
abarca determinadas condições de tempo, espaço, cultura e relações sociais em
que seu autor está inserido a criar suas fantasias. (FERREIRA, 2009)
Desse modo, a Literatura constitui uma fundamental ferramenta na
pesquisa histórica. Sua utilização permite ao pesquisador refletir as condições
sociais, bem como todo o contexto em que a obra fora escrita. Segundo
Ferreira:
Afora tal propósito específico, perseguido também pela
Sociologia, devem interessar à pesquisa histórica todos os
tipos de textos literários, na medida em que sejam vias de
acesso à compreensão dos contextos sociais e culturais:
literatura maior ou literatura menor, escritos clássicos ou
não, eruditos ou populares, bem-sucedidos no mercado ou
ignorados, incensados ou amaldiçoados. (FERREIRA,
2009, p. 71)
Assim, mesmo que a Literatura não tenha a pretensão de representar
fielmente o passado – tal como almeja a História – ela nos fornece informações
de grande utilidade acerca da época em que ela foi abordada. Como diz Roger
Chartier: “a ficção é “um discurso que ‘informa’ do real, mas não pretende
representá-lo nem abonar-se nele”, enquanto a História pretende dar uma
representação adequada da realidade que foi e já não é”. (CHARTIER, 2009,
p.24).
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Portanto, neste trabalho procuramos buscar uma aproximação da
Literatura – no caso a obra machadiana O alienista – com a pesquisa
historiográfica, pois concordamos com Ferreira quando declara que:
Afirmar que a literatura integra o repertório das fontes
históricas não provoca hoje qualquer polêmica, mas nem
sempre foi assim. Mais que isso, nas últimas décadas, os
textos literários passaram a ser vistos pelos historiadores
como materiais propícios a múltiplas leituras, especialmente
por sua riqueza de significados para o entendimento do
universo cultural, dos valores sociais e das experiências
subjetivas de homens e mulheres no tempo. (FERREIRA,
2009, p.61).
Quanto ao referencial teórico, ainda nos apoiamos em Michel Foucault
por este ter produzido um vasto trabalho sobre o tema abordado,
principalmente no que diz respeito à análise do discurso. A leitura de Foucault
nos possibilitou compreender as relações de poder1 que permeavam os
discursos das autoridades que administravam o Brasil em meados do século
XIX. Época em que as transformações políticas e econômicas, bem como o
desenvolvimento científico, fizeram com que a Medicina interviesse na
sociedade, sendo a partir daí construído os primeiros discursos em relação ao
tratamento da doença mental.
A partir de sua obra Vigiar e punir, Michel Foucault passa a examinar as relações entre poder,
saber, ciência, controle e dominação na sociedade contemporânea. Seu estudo, baseado na
filosofia de Nietzsche, é denominado “Genealogia do Poder”. Nele Foucault parte da constatação
de que o poder é exercido na sociedade não apenas através do Estado e das autoridades, mas em
todas as relações sociais de maneira distinta e variada. Mesmo que por muitas vezes não nos
demos conta, vivemos permeados por relações de poder. Ver mais em: FOUCAULT, Michel.
Microfísica do poder. Tradução e organização de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
1
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MACHADO DE ASSIS E A LOUCURA
Em 1882 o escritor brasileiro Machado de Assis publica em Papéis
Avulsos, o conto “O Alienista”. Nesta obra o autor lança uma crítica
desenfreada ao cientificismo, à sociedade da época e às relações de poder,
sobretudo naquilo que diz respeito à loucura. A narrativa se passa numa vila
brasileira do século XIX, chamada Itaguaí. Conta a história do Dr. Simão
Bacamarte, um grande estudioso brasileiro, que aos trinta e quatro anos, após
concluir seus estudos nas universidades de Coimbra e Pádua, retorna ao Brasil
para se dedicar totalmente às atividades científicas. Ao chegar às terras
brasileiras, Simão Bacamarte casa-se com D. Evarista da Costa e Mascarenhas e
continua seus estudos sobre as ciências médicas.
Percebendo que em Itaguaí os doentes mentais são afastados da
sociedade e vivendo no mais completo isolamento em suas residências, Simão
Bacamarte tem a ideia de construir uma casa especial onde toda população com
problemas de loucura pudesse ser assistida. A partir daí, pediu licença às
autoridades para realizar a construção daquilo que seria o primeiro asilo
brasileiro.
Apesar de alguns comentários contra, em pouco tempo o asilo havia
sido construído. Localizado na Rua Nova, uma das mais belas ruas de Itaguaí, o
asilo recebera o nome de Casa Verde. Os loucos passaram a ser capturados, e
todos os tipos de “maluquices” havia naquela casa. Porém, conversando com
seu amigo boticário, Simão Bacamarte fez uma interessante confidência:
revelou ao boticário que como homem de total dedicação à ciência, sua
finalidade na construção da Casa Verde não era prestar assistência à população
psicossomática, mas tão somente, estudar profundamente a loucura.
Simão Bacamarte dá continuidade aos estudos e a administração da
casa verde, entretanto, com o passar do tempo, qualquer atitude suspeita dos
moradores de Itaguaí é motivo para conduzi-los ao asilo. O primeiro da lista foi
o Sr. Costa, um dos mais estimados cidadãos da vila que após ter recebido uma
herança, não tratou de administrá-la corretamente vindo a ficar pobre
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novamente. Sendo atestada sua insanidade, foi recolhido ao asilo cinco meses
depois. Simão Bacamarte levou ao asilo seu amigo boticário, o padre da Vila,
entre outras figuras ilustres, e não poupou nem a sua esposa.
Daí em diante, qualquer suspeita era motivo para se levar alguém à
Casa Verde. De tantos recolhimentos Itaguaí sofreu uma Revolução seguida de
um golpe de Estado, pois a população começava a demonstrar insatisfação
diante de tais fatos. Contudo, de nada adiantou.
Em seus estudos Simão Bacamarte concluiu que quatro quintos da
população itaguaiense estava hospedada naquele asilo e que a sua teoria, bem
como suas experiências avançava a um novo estágio. Os hóspedes da Casa
Verde deveriam ser libertados e consequentemente, o Dr. Bacamarte conseguiu
junto à câmara uma nova permissão para recolher o restante da população que
antes era considerada em perfeito estado mental: os simples, os leais, os
desprendidos e os sinceros. A situação fora invertida.
Após muito tempo de estudos e pesquisas, Simão Bacamarte induzindo
os pacientes da casa verde à transgressão, imaginou ter sanado suas doenças,
vindo a libertar todos eles. Porém, não ficou satisfeito. Apesar dos resultados
alguma coisa incomodava o Dr. Bacamarte que continuou os estudos e chegou
à seguinte conclusão: ele era quem estava doente. Acreditava que era uma
questão científica e reunia em si mesmo a teoria e a prática, por isso deveria se
reclusar na Casa Verde e continuar com a busca pela cura de si mesmo.
Morreu em sete meses sem ter encontrado a cura que tanto procurava.
Podemos relacionar a obra machadiana, bem como os acontecimentos
ocorridos no Brasil, num processo social permeado pelo discurso psiquiátrico.
Época em que este discurso (Séc. XIX) levava a cabo um novo modo de
exclusão e de inserção do louco no hospital psiquiátrico. A loucura como um
empecilho deveria ser erradicada da esfera social e escamoteada para além da
sua presença.
No século XIX, a loucura transformava-se em um “problema” de
ordem social para as autoridades brasileiras. A sociedade médica apontava
como solução, a criação de estabelecimentos que pudessem atender de forma
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adequada os portadores de tal patologia. As autoridades por sua vez tentavam
resolver a adversidade trancafiando os doentes em cadeias públicas ou
hospitais. As fugas eram constantes, os loucos de baixo poder aquisitivo ficavam
na condição de moradores de rua, às margens da sociedade. Já aqueles que
pertenciam às famílias mais abastadas, eram prontamente camuflados no seio
de seus parentes, mas eram também, descentrado do convívio social.
A CRIAÇÃO DO PRIMEIRO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO DO BRASIL
Na obra machadiana, o Dr. Simão Bacamarte é apresentado como um
autêntico filho da nobreza brasileira, um dos maiores médicos não só do Brasil,
mas também de Portugal e da Espanha. Um homem ilustre que após ter
rejeitado o glorioso convite de trabalhar lecionando na Universidade de
Coimbra ou expandindo os negócios da monarquia em Lisboa, decide retornar
à pátria e dedicar-se ao estudo das ciências. Saindo da ficção e retornando ao
nosso recorte histórico, devemos relacionar a criação do primeiro hospício do
Brasil à pessoa de José Clemente Pereira.
Tal como o personagem Dr. Simão Bacamarte, Jose Clemente Pereira
estudou na Universidade de Coimbra vindo a graduar-se em Direito e Cânones.
Veio para o Brasil seguindo a corte portuguesa que na época fugia das invasões
napoleônicas, chegando aqui aos 12 de outubro de 1815. Na capital do Rio de
Janeiro viveu como advogado até iniciar carreira pública e política. Em 25 de
julho de 1838, através de manobras astutas foi eleito provedor do Hospital da
Santa Casa da Misericórdia, onde tornou sua gestão vitalícia, administrando
aquela instituição até sua morte em 10 de março de 1854. (RAMOS E
GEREMIAS, s/d, p.01).
Antes mesmo de ter conquistado a administração do hospital,
Clemente Pereira já havia apresentado um projeto no qual propunha uma
reforma significativa àquela Instituição. Reforma esta que também já havia sido
preconizada pelos membros da Academia Imperial de Medicina. A partir da
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reforma deveriam ser criadas unidades especializadas que fossem responsáveis
pelo tratamento específico de cada doença.
Todavia, perante o aumento desordenado da população e de seu
rápido crescimento urbano, a cidade do Rio de Janeiro, que havia sido
transformada em Capital, não conseguia mais dar conta da saúde daquela
crescente população, principalmente ao que concerne aos doentes mentais. O
número de “alienados” 1 aumentava diariamente sendo recolhidos às
degradáveis Santas Casas ou até mesmo às prisões. Dessa forma, a situação em
que se encontravam os doentes mentais no Brasil do século XIX, era a
seguinte: aqueles de famílias mais abastadas ficavam trancafiados em seus
próprios domicílios, os mais carentes, que por sua vez estavam no estado mais
alterado da doença, eram enviados às prisões ou às Santas Casas, e os mais
mansos espalhavam-se pelas ruas das cidades. Machado de Assis narra isto no
seu romance:
A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é
argüida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos
dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em
uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado,
até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os
mansos andavam á solta pela rua. Simão Bacamarte
entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu
licença à câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia
construir todos os loucos de Itaguaí e das demais vilas e
cidades, mediante um estipêndio, que a câmara lhe daria
O termo “alienado” utilizado ao longo do texto concerne aquele que sofre de alienação mental;
louco, maluco, doido. Difere, portanto, do termo marxista em que alienado se refere a quem vive
sem conhecer ou compreender os fatores sociais, políticos e culturais que o condicionam e não se
reconhece naquilo que faz, mantendo-se voluntariamente ou não, afastado da realidade que o
cerca. Contudo, no Brasil dos séculos XIX e XX, nem todos aqueles taxados pelas autoridades
como alienados eram de fato, doentes mentais.
1
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quando a família do enfermo o não pudesse fazer. (ASSIS,
2010, p. 15)
Diante da situação de descaso para com o doente mental em nosso
país, em 1830, a Comissão de Salubridade da Sociedade de Medicina do Rio
de Janeiro foi a primeira Instituição a se manifestar a respeito do tratamento
dado aos alienados brasileiros. Os protestos da referida Comissão receberam o
respaldo da população, e permaneceram ininterruptamente nos anos
subsequentes sendo legitimados por autoridades médicas e políticas.
Entretanto, ao analisarmos os livros, revistas e artigos1 referentes a este período,
o questionamento que se plasma é se a sociedade em todo seu conjunto estava
sensibilizada com a situação dos alienados ou se estava apenas procurando uma
forma de escamotear um determinado grupo que não se adequava aos padrões
sociais? Seria uma questão de solidariedade ou uma questão de “limpeza”
social? Foucault vai mais além afirmando que:
Existe em nossa sociedade outro princípio de exclusão: não
mais a interdição, mas uma separação e uma rejeição. [...]
Desde a alta Idade Média, o louco é aquele cujo discurso
não pode circular como o dos outros: pode ocorrer que sua
palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo
verdade nem importância, não podendo testemunhar na
justiça, não podendo autenticar um ato ou um contrato, não
podendo nem mesmo, no sacrifício da missa, permitir a
transubstanciação e fazer do pão o corpo [...]
(FOUCAULT, 2007, p. 10-11)
Esta discussão é deveras pertinente, pois como já fora dito antes, os
hospícios que vieram a seguir não eram dedicados apenas aos alienados, mas
1
Ver referências ao final do texto.
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também, aos epilépticos, alcoólatras, idosos, paralíticos, e até moradores de rua.
Caso também retratado por Machado de Assis:
Nunca nenhuma opinião pegou e grassou tão rapidamente.
Cárcere privado: eis o que se repetia de norte a sul e de
leste a oeste de Itaguaí – a medo, é verdade, porque durante
a semana que se seguiu a captura do pobre Mateus, vinte e
tantas pessoas – duas ou três de consideração – foram
recolhidas à casa verde. O alienista dizia que só eram
admitidos os casos patológicos, mas pouca gente lhe dava
crédito. (ASSIS, 2010, p. 39-40)
Podemos analisar este fenômeno inserido num discurso próprio
daquilo que Foucault chama de sociedade disciplinadora, pois, “a disciplina é
um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo
jogo de uma entidade que tem a forma de uma reatualização permanente das
regras”. (FOUCAULT, 1996, p. 36)
A trajetória dos alienados no Brasil – séc. XIX esteve inserida numa
relação de poder. Poder este que disciplina de acordo com os parâmetros
“legais” do Direito constituído, mas não só isso, posto que este poder
disciplinador não diz respeito APENAS àquele que advém de cima para baixo,
conforme cita Thomas Hobbes em seu Leviatã. Este poder é um poder que age
nas relações sociais. Desta forma:
O poder não deve ser pensado como fundamentalmente
emanado de um ponto (em geral identificado com o
Estado). Deve-se ter, pois, em mente na procura de uma
compreensão da dinâmica das relações de poder, a ideia de
uma rede. Rede esta que permeia todo o campo social,
articulando e integrando os diferentes focos de poder
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(Estado, escola, prisão, hospital, asilo, família, vila operaria,
etc.) que se apóiam uns nos outros. (MAIA, 1995, p. 88.)
Ainda no que diz respeito a este contexto em que a dinâmica das
relações de poder encontra-se vinculada em todos os segmentos sociais, dois
anos após José Clemente ter assumido o cargo de provedor da Santa Casa de
Misericórdia, D. Pedro II era declarado rei do Brasil onde sua maioridade
havia sido decretada. Como parte das comemorações e em homenagem ao
novo rei, fora determinado pelo conselho do Império, apoiado pelo ministro
do Estado e pelo provedor da Santa Casa de Misericórdia, o decreto imperial n°
82 que afirmava a criação do primeiro hospital psiquiátrico brasileiro e latino
americano. O hospício recebeu várias nomenclaturas: Hospício de D. Pedro II,
Hospício D. Pedro II, Hospício D. Pedro Segundo e Hospício de alienados D.
Pedro II. A verdade é que apenas 11 anos depois, aos 05 de dezembro de
1852, é que o hospício foi inaugurado com honras e festas pomposas. (RAMOS
E GEREMIAS, s/d, p. 07).
É preciso considerar aqui que a criação do Hospício D. Pedro II estar
longe de ter sido uma simples homenagem ao novo Imperador, nem tampouco
teve a finalidade de ajudar aqueles pobres miseráveis alienados. Várias eram
suas razões, principalmente a disputa de poder médico-político entre a junta de
Higiene Pública e a Santa Casa de Misericórdia. A disputa se dava pelo fato da
Junta denunciar alguns proprietários de moradias por falta de cuidado com suas
casas, sendo, portanto, consideradas focos de doenças e pragas. O problema é
que estes proprietários eram benfeitores da Casa de Misericórdia. Neste caso,
foram prevalecidos aqueles de poder político e econômico dominante, a saber,
os proprietários e a Santa Casa. (RAMOS E GEREMIAS, s/d, p. 04).
Dessa forma, a intenção de manipular era maior que a intenção de
prestar assistência àqueles que necessitavam. Por um lado os médicos, que
representando a Junta de Higiene Pública, visavam legitimar a loucura como
objeto do discurso científico, por outro, a Santa Casa de Misericórdia, que
respaldada pelos proprietários de moradias, almejava continuar a gestão de
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acordo com suas metas e satisfações. Sobre tal relação entre ciência (medicina)
e política Foucault expõe o seguinte:
Consideremos o exemplo da medicina clínica, cuja
instauração no final do século XVIII é contemporânea de
um certo número de acontecimentos políticos, de
fenômenos econômicos e de mudanças institucionais. É
fácil suspeitar, pelo menos intuitivamente, que existam laços
entre estes fatos e a organização de uma medicina
hospitalar. (FOUCAULT, 2007, p. 183)
Segundo o próprio Foucault, este fenômeno pode ser analisado de duas
formas distintas. Uma primeira análise seria do tipo simbólica onde se percebia
na organização da medicina clínica, assim como no processo histórico em
questão, duas expressões que agindo de formas simultâneas, refletem e
simbolizam uma a outra. Elas funcionariam reciprocamente como se fossem
espelhos, Medicina e Política funcionando em um jogo de mutualidade numa
esfera de interesses.
Assim as idéias médicas de solidariedade orgânica, de
coesão funcional, de comunicação tissular – e o abandono
do princípio classificatório das doenças em proveito de uma
análise das interações corporais – corresponderiam (para
refleti-las, mas também para nelas se mirar) a uma prática
política que descobre, sobre estratificações ainda feudais,
relações de tipo funcional, solidariedades econômicas, uma
sociedade cuja dependência e reciprocidade deviam
assegurar, na forma da coletividade, o analogon da vida.
(FOUCAULT, 2007, p. 183)
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A outra análise seria casual. Teria por finalidade procurar saber até que
ponto a conjuntura política da época, bem como o seu contexto econômico
determinou o nível de consciência daqueles que exerciam a atividade científica.
Seria então, uma análise que procurasse compreender o posicionamento, o
sistema de valores, a percepção das coisas e o estilo de racionalidade daqueles
homens “dotados” de ciência dos séculos XVIII e XIX.
De uma forma ou de outra, aplicando tais análises ao tratamento
aplicado aos loucos no Brasil do século XIX, percebemos que ambas as
Instituições, Medicina e Política, estavam mais interessados na ação em
benefícios próprios do que em atender as necessidades daqueles que mais
precisavam: os doentes mentais. Por outro lado, tudo o que a sociedade queria
era se manter livre daquela escória nem que para isso fosse preciso trancafiá-los
como se presos fossem. Segundo Freitas, “as pretensões de poder do alienista
sobre o alienado correspondiam às pretensões da sociedade (moderna) de ser
senhora de si mesma, decidir o seu destino, buscar nela própria os seus
fundamentos, ser soberana sobre o bem e o mal”. (FREITAS, 2004, p.90).
Portanto, o interesse político e o discurso da Medicina, de certa forma,
acabaram por receber o respaldo da sociedade.
SOBRE O TRATAMENTO APLICADO
CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
À
LOUCURA
E
A
Sendo a doença mental uma psicopatologia possível ao ser humano,
não nos causa estranheza saber que em outros lugares fora da Capital Imperial,
o impasse dos loucos também se fazia presente. Em várias localidades
ocorreram movimentos em prol de uma segregação institucionalizada. Os
loucos formavam um grupo que aos olhos da sociedade, não deveriam manter
qualquer relações, estavam, portanto, fora da esfera social. Segundo Oda e
Dalgalarrondo (2005, p. 1005):
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Há ainda, nos documentos, clara indicação da existência de
uma pressão social no sentido da internação dos alienados,
de sua retirada das ruas, ação operacionada através das
autoridades policiais, nas capitais e no interior das
províncias. [...] Desta maneira, nossa análise dos
documentos indica que, no Brasil, o processo de
institucionalização dos alienados foi marcado pela
construção de uma opinião pública consensual quanto à
necessidade e, sobretudo, quanto à legitimidade de sua
reclusão em hospícios próprios.
Durante o Segundo Reinado não foi apenas o Hospício de alienados
D. Pedro II o único responsável pelo tratamento dos doentes mentais. Como a
loucura havia se tornado um “problema” de ordem nacional, outras instituições
objetivando o tratamento psicossomático foram construídas em algumas
províncias brasileiras como, por exemplo: Pernambuco (1864 – Hospício
Provisório de Recife-Olinda), Pará (1873 – Hospício Provisório de Alienados),
Bahia (1874 – Asilo de Alienados São João de Deus), Rio Grande do Sul (1884
– Hospício de Alienados São Pedro) e Ceará (1886 – Asilo de Alienados São
Vicente de Paulo). (ODA E DALGALARRONDO, 2005).
Entretanto, após terem sido inaugurados, longe de oferecer condições
de igualdade aos enfermos, estes lugares pareciam mais um antro de
proporções infernais. Eram desprovidos de ambientes específicos para
enfermos e funcionários, não havia infraestrutura e saneamento, ausência de
tratamento humanitário, sem tratamento médico específico, apresentavam
problemas de superlotação e, sobretudo, sem condições básicas de higiene.
Dessa forma, os hóspedes destes “hospícios” agonizavam em uma dor que
parecia não ter fim. Diante desse quadro, as doenças se espalhavam como
peste e o aumento no índice de mortalidade era inevitável, vindo a óbito até
mesmo os funcionários destes hospícios.
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Um fato importante de se levar em consideração é que mesmo sendo
uma época cujo conhecimento científico estava em ascensão, o conceito de
doença mental parecia ainda não estar completamente definido. Os hospícios
que a princípio tinha a função de receber pacientes de natureza psicossomáticas
acolhiam também pessoas acarretadas por problemas de diversas naturezas:
paralíticos, caducos, epilépticos, alcoólatras, mulheres apaixonadas, etc. De
modo que passou a ser construído uma matriz identitária capaz de definir estas
pessoas como “loucas” e assim poder escamoteá-las para as margens da
sociedade, trancafiando-as e condenando-as à exclusão.
Tanto na obra “O Alienista” quanto no tratamento dado aos loucos no
Brasil, a problemática da Identidade se faz presente. O que é ser louco? Quais
são os parâmetros utilizados para se classificar a loucura? O que deve ser
seguido para se diagnosticar alguém como louco? De acordo com a ficção
machadiana, para que o individuo fosse considerado louco bastava apenas uma
simples mudança no seu comportamento ou simplesmente, a emissão de
alguma fala “indevida”.
No contexto da obra machadiana, bem como ao tratamento aplicado a
doentes mentais no século XIX, percebemos uma invenção de identidade
construída em torno de um discurso baseado nas relações de poder por parte
das autoridades. A classificação da loucura, ou seja, a sua identidade é
estipulada levando em consideração não o diagnóstico médico fundamentado
pela ciência, mas tão somente, a possibilidade do sujeito, seja ele
esquizofrênico, idoso, morador de rua, apaixonado ou ladrão, ser retirado do
convívio social.
Assim, a identidade “loucura” se expande para todos os casos que
estejam descentrados do “padrão” social. Nas palavras de Stuart Hall, sobre o
processo de construção da identidade,
É precisamente porque as identidades são construídas
dentro e não fora do discurso que nós precisamos
compreendê-las como produzidas em locais históricos e
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institucionais específicos, no interior de práticas discursivas
especificas, por estratégias e iniciativas específicas. Além
disso elas emergem no interior do jogo de modalidades
específicas de poder e são, assim, mais o produto da
marcação da diferença e da exclusão do que o signo de uma
identidade idêntica, naturalmente constituída, de uma
“identidade” em seu significado tradicional – isto é, uma
mesmidade que tudo inclui, uma identidade sem costuras,
inteiriça, sem diferenciação interna. (HALL, 2000, p. 109.)
Tomaz Tadeu da Silva analisando esta atuação identitária vai mais além
e afirma que “a identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso
significa que sua definição – discursiva e linguística – está sujeita a vetores de
força, a relação de poder. Elas não são simplesmente definidas; elas são
impostas”. (SILVA, 2000, p. 81). Exatamente como aconteceu em Itaguaí e no
Brasil do século XIX.
Desta forma, fica fácil perceber que a loucura no período estudado –
século XIX – foi uma identidade construída por um discurso que visava não só
à cura, mas que ia além, procurava através de uma relação de poder conquistar
méritos, escamotear problemas sociais e alcançar glórias políticas. Em sua
crítica à sociedade e a ciência de sua época, Machado de Assis evidencia este
fato:
O barbeiro tornou logo a si, e, agitando o chapéu, convidou
os amigos a demolição da casa verde; poucas vozes e
frouxas lhe responderam. Foi nesse momento decisivo que
o barbeiro sentiu despontar em si a ambição do governo;
pareceu-lhe então que, demolindo a Casa Verde, e
derrocando a influencia do alienista, chegaria a apoderar-se
da Câmara, dominar as demais autoridades e constituir-se
senhor de Itaguaí. Desde alguns anos que ele forcejava por
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ver o seu nome incluído nos pelouros para o sorteio dos
vereadores, mas era recusado por não ter uma posição
compatível com tão grande cargo. A ocasião era agora ou
nunca. (ASSIS, 2010, p. 54).
Portanto, no Brasil do século XIX, em relação ao problema da loucura,
o fenômeno não ficou limitado apenas ao campo científico como doença
psicossomática, mas foi expandido para outros problemas de ordem social
como o crime, a pobreza, a miséria, entre outros, e se cristalizando através do
discurso permeado por relações de poder. Discurso esse que narrava e definia
vários problemas sociais a partir de uma única identidade: o louco. Nessa
construção de identidade Tomaz Tadeu constata que:
Primeiramente, a identidade não é uma essência; não é um
dado ou um fato – seja da natureza, seja da cultura. A
identidade não é fixa, estável, coerente, unificada,
permanente. A identidade tampouco é homogênea,
definitiva, acabada, idêntica, transcendental. Por outro lado,
podemos dizer que a identidade é uma construção, um
efeito, um processo de produção, uma relação, um ato
performativo. A identidade é instável, contraditória,
fragmentada, inconsistente, inacabada. A identidade está
ligada a estruturas discursivas e narrativas. A identidade está
ligada a sistemas de representação. A identidade tem
estreitas conexões com relações de poder. (SILVA, 2000, p.
96-97).
A identidade se torna um conceito criado a partir de um discurso cuja
finalidade é exercer sobre o outro o controle e a exclusão. Segundo Foucault
(1996, p. 8-9),
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[...] em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo
tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída
por certo número de procedimentos que têm por função
conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível
materialidade.
Em O Alienista também fica perceptível a construção de identidades
em torno de um discurso no qual estão presentes as relações de poder. Afinal,
Simão Bacamarte não teria ido além do seu projeto se não fosse a partir de um
discurso que identificasse as pessoas “diferentes” como loucas. No Brasil não
foi diferente. No Rio Grande do Sul, por exemplo, os alienados eram
remetidos para o Hospício São Pedro, dirigido pela Santa Casa de Misericórdia
que também tinha como atividade criar menores abandonados, acolher pessoas
pobres, providenciar burocracias funerais aos menos favorecidos e realizar
curativos nos presos. Em 1859, do total de 860 enfermos atendidos, apenas 48
eram doentes mentais. (ODA; DALGALARRONDO, 2005). Isto revela
estatisticamente que a principal função da Casa estava longe de ser o tratamento
dos alienados. Um problema quanto à identidade ali se fazia presente, pois
quem era louco? Os menores abandonados? Os presos? Os pobres?
A situação nos hospícios era tão precária que devido à falta de
acomodações dignas para os hóspedes, estes eram enviados às cadeias públicas,
o que a nosso ver, não trazia tantos benefícios em relação ao tratamento.
Apenas retirava os doentes das ruas e do convívio social. Os doentes eram
semelhantes aos mendigos, aos moradores de rua, aos ladrões e criminosos que
aos olhos dos administradores públicos, precisavam ser tirados da sociedade.
Quanto ao tratamento dado aos doentes mentais nos Hospícios, este
não era dos melhores. Na Província de Pernambuco os alienados eram
separados dos demais doentes, ficando em cubículos com pouca higiene e
solidão. Ainda em 1883, o Hospício da Tamarineira (Pernambuco), abrigava
244 internos que eram acompanhados por apenas dois médicos e sete guardas.
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Neste lugar, o único motivo de saída do doente era o óbito. Em 1884, o
Hospício apresentou problemas sanitários, ficando seus hóspedes infeccionados
pelo mau cheiro advindo do depósito de dejetos fecais e pela água contaminada
retirada da cacimba. (ODA; DALGALARRONDO, 2005).
Nestes hospícios os médicos representavam instrumentos de poder
responsáveis pela rejeição e discriminação dos loucos. Eram os médicos quem
classificavam os loucos como terríveis, traiçoeiro, mansos, perigosos... Na
maioria dos casos esta classificação tinha estreita relação com a condição social
do doente. A vida nos hospícios era tão caótica que os moradores das cidades,
onde eles se situavam, evitavam passar pelas suas proximidades só para não ver
ou ouvir o clamor de seus moradores que presos às grades de ferro, gritavam e
gesticulavam clamando em agonia por socorro.
CONCLUSÃO
Observamos aqui que o tratamento aplicado aos alienados no Brasil do
século XIX, esteve longe de ser uma atitude humanitária. Poderíamos dizer que
aquele foi um período diferente do atual, que nossa mentalidade é distinta e
que o homem é fruto do seu tempo. Mas, a verdade é que desde o início do
seu tratamento pelas vias científicas, até o final dos anos 1980, a loucura foi
tratada a partir de processos de exclusão, através de asilos, manicômios,
presídios ou instituições especializadas em serviços desta natureza.
A loucura foi legitimada pela Medicina a partir de um discurso
científico respaldado tanto pelas autoridades quanto pela sociedade. Com a
Medicina, a loucura passou a ser identificada como patologia moral ou
somática, o médico passou a definir o estatuto do louco. Tal como o
protagonista de O Alienista, era o médico que determinava quem era louco,
doente ou incapaz. Diagnóstico este que na maioria das vezes se plasmava em
prol de interesses particulares.
A partir do discurso científico foi possível criar um processo identitário
para qualificar aqueles que deveriam ser excluídos do convívio social. Para
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tanto, foram criadas as Instituições destinadas a alienados sendo o Hospício D.
Pedro II, a primeira delas. Entretanto longe de oferecer soluções contundentes
para os doentes mentais, aqueles que mais necessitavam, os hospícios serviram
como ferramenta de exclusão onde os direitos humanos eram abolidos e a
dignidade era uma palavra vazia de sentido.
Neste contexto, a obra machadiana torna-se um importante veículo de
reflexão sobre o tema. O Alienista não é apenas uma crítica ao cientificismo do
século XIX, a narrativa é antes de tudo, uma ironia aplicada à sociedade
brasileira que na época esperava da Medicina a das ciências a solução para a
loucura. Em um problema que se tornava cada vez mais presente no convívio
social, tal solução foi a exclusão. E, para excluir era necessário primeiro
produzir um discurso capaz de legitimar a ação. Com o discurso produziram-se
identidades e com a identificação do pobre, do alcoólatra, do mendigo e do
doente mental como louco, obtinha-se carta branca para a exclusão.
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O ARCO DO PASSADO, A FLECHA DO FUTURO: PRIMEIRA
GUERRA MUNDIAL E AS RELAÇÕES LUSO-BRASILEIRAS NA
REVISTA ATLÂNTIDA (1915-1920).*
Livia Pires Claro
Resumo
O presente artigo pretende examinar a maneira como a Primeira Guerra
Mundial foi exposta no mensário Atlântida: mensário artístico, literário e social
para Portugal e Brasil. De caráter binacional e pretendo promover o
estreitamento das relações luso-brasileiras, a revista foi publicada entre os anos
de 1915 e 1920, cobrindo o período do desenrolar da Grande Guerra.
Procurando articulá-lo ao objetivo de aproximação política, cultural e
econômica de Brasil e Portugal, o conflito europeu foi representado em
diferentes estratégias por seus colaboradores e editores.
Palavras-chave: Primeira Guerra Mundial – relações luso-brasileiras – relações
culturais.
Abstract
The paper examines the way as First World War was represented by Atlântida:
mensário artístico, literário e social para Portugal e Brasil. With a Binational
character and intend to promote the narrowing of the Luso-Brazilian relations,
the magazine was published between 1915 and 1920, covering the period of the
development of the Great War. Trying to relate it to the goal of closer political,
cultural and economic relation between Brazil and Portugal, the European
conflict was represented at different strategies for its contributors and editors.
Keywords: First World War - Luso-Brazilian relations – cultural relations.
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“Porque é a ocasião de mais uma vez ligarmo-nos em
acorde uníssono, brasileiros pelos portugueses, mostrandonos patriotas, certos do futuro, fiéis à nossa raça.”
Paulo Barreto
Revisitar, reconstruir, reunir. O uso contínuo do prefixo “re” – signo
do fazer de novo, no novo olhar – é um indicativo claro dos objetivos da revista
que se denominou Atlântida para trazer novamente a um denominador comum
dois países. A Atlântida: mensário artístico, literário e social para Portugal e
Brasil foi um periódico que se propôs resignificar e retomar toda uma pretensa
tradição de união e convergência entre Brasil e Portugal, outrora colônia e
metrópole, ao mesmo tempo em que não perdia do seu horizonte o futuro. E
tudo isso acontecia num momento considerado decisivo para o destino do
mundo moderno.
A Primeira Guerra Mundial (1914-1918)
punha em pauta para
as sociedades a sensação escatológica de fim de um tempo, da chegada da
decisão inadiável a ser tomada sobre o rumo do mundo. Afinal, era a guerra
que acabaria com todas as guerras. Do fim ao recomeço, a revista Atlântida
pretendia fazer ressurgir dos rastros da batalhas um novo continente, reviver um
elo para a união luso-brasileira.
No início do século XX, as relações diplomáticas, políticas e
econômicas entre Brasil e Portugal não eram a das mais próximas. No âmbito
econômico, a supremacia inglesa fazia dos produtos portugueses e brasileiros
secundários em ambos os mercados. Em terras tupiniquins, a Grã-Bretanha
mantinha o domínio sobre o comércio externo, secundada pela presença
progressiva dos Estados Unidos. Situação semelhante via-se em Portugal.
Economias eminentemente agrárias, pouco industrializadas, enfrentavam ainda
a presença dos produtos vindos das colônias portuguesas na África, turvando a
possibilidade de acordos econômicos. As relações diplomáticas e políticas não
seguiam uma orientação diferente. Uma série de pequenas contendas políticas,
iniciadas no século XIX com a declaração da independência brasileira,
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passando pelo rompimento das relações entre os dois países no governo de
Floriano Peixoto, fragilizou os laços políticos que toscamente os uniam.1
Se faltava iniciativa por parte dos governos instituídos, entre os
intelectuais2 de ambos os países, as relações luso-brasileiras eram comumente
tematizadas, para o bem e para o mal3. Em 1898, Sílvio Romero realizou uma
conferência no Real Gabinete Português de Leitura, onde exaltou a participação
do português na construção e preservação da nacionalidade brasileira contra
possíveis recolonizações - notavelmente a alemã. Afirmava ser o Brasil um
“prolongamento da civilização lusitana, um povo luso-americano” 4,
descendente direto e incontestável de Portugal. Seu opositor regular e lusófobo
agressivo, Manoel Bonfim, apontava na colonização portuguesa as raízes das
deficiências brasileiras, herdeiro do parasitismo predador5 comum às nações
ibéricas, num discurso compartilhado por outros intelectuais brasileiros.
Em Portugal, as relações com a antiga colônia ganharam ações mais
positivas. Em 1909, o presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa, Zófimo
Consiglieri Pedroso, propôs a elaboração do “Acordo Luso-Brasileiro”, que
estabeleceria a cooperação comercial, diplomática, legislativa e intelectual entre
os dois países. A morte do seu idealizador impediu a conclusão deste projeto. 6
Cerca de sete anos se passaram até surgir outra iniciativa com a
concretude da de Consiglieri Pedroso. Em 1915, a revista Atlântida foi lançada
Ver Zília Osório de Castro, “Do carisma do Atlântico ao sonho da Atlântida”, Lucia Guimarães
(org) Afinidades Atlânticas: impasses, quimeras e confluências, Quartet, Rio de Janeiro, 2009, p.
64 e 65. Ver também Lúcia Maria Paschoal Guimarães, “Redemoinhos da Atlântida (19151920)”, História Revista, Vol. 16, nº 1, 2011, p. 136.
No presente artigo, é utilizado o conceito de intelectual proposto por Jean François Sirinelli em
Jean François Sirinelli, “Os intelectuais”, René Remond (org) Por uma história política, Rio de
Janeiro, Editora FGV, 2002, p. 242.
Cf. Lúcia Maria Paschoal Guimarães, Op. Cit., p. 136.
Silvio Romero, O elemento português no Brasil, Tipografia da Companhia Nacional Editora,
Lisboa, 1902, p. 11
Ver Manoel Bonfim, A América Latina: males de origem, Rio de Janeiro, Topbooks, 2005.
Cf. Lúcia Guimarães, “A campanha da revista Atlântida e o projeto de uma nova Lusitânia
(1915-1920)”, Silvia Carla Pereira de Brito Fonseca e Maria Letícia Corrêa (org), 200 anos de
imprensa no Brasil, Rio de Janeiro, Contra Capa, 2009.
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no Rio de Janeiro e em Lisboa, com o intuito declarado de promover o
estreitamento dos laços políticos, culturais e econômicos entre Brasil e Portugal.
A Atlântida foi um projeto idealizado pelo político e pedagogo português João
de Barros e pelo escritor brasileiro Paulo Barreto, ambos entusiastas declarados
da aproximação entre a metrópole e sua ex-colônia. Dos encontros ocorridos
entre os dois, tanto no Brasil quanto em Portugal1, surgiria a ideia da publicação
da revista.
O objetivo do periódico foi exposto logo no seu primeiro número, no
manifesto de abertura escrito por João de Barros. A intenção dos seus
fundadores era a de criar um órgão em que se representassem os dois povos,
dessa forma aproximando-os, ao acabar com a completa ignorância entre
brasileiros e portugueses sobre os assuntos a respeito de ambos. Para os
idealizadores da Atlântida, imperava nas relações luso-brasileiras não apenas o
afastamento, mas o completo desconhecimento sobre aspectos e notícias dos
dois países – uma séria impertinência para duas nações que compartilhavam a
mesma raça, a mesma língua e o mesmo modo civilizacional. Para pôr um fim a
esse estado de ignorância mútua que a revista foi edificada, tomando este
objetivo como uma missão.
No manifesto de abertura, afirmou João de Barros:
“A verdade, porém, é que só um motivo nos guiou – a
Paulo Barreto e a mim – e um motivo d’ordem moral: erguer até ao conhecimento perfeito e amorável das suas
tendências e dos esforços as duas nacionalidades. Mais
nada” 2
Sobre o encontro entre João de Barros e Paulo Barreto, ver Lúcia Guimarães, “Redemoinhos
da Atlântida (1915-1920)”, História Revista, Vol. 16, nº 1, 2011.
João de Barros, “Atlântida”, Atlântida: mensário artistico, literário e social para Portugal e Brasil,
Vol.I, nº 1, 1915, p. 9.
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As intenções de Barros e de Barreto não eram meramente aproximar
os dois países, mas formar uma “comunidade luso-brasileira”, onde interesses e
ações políticas e econômicas de Brasil e Portugal estariam alinhadas,
respeitando, ainda assim, a independência formal entre ambos.
Também neste manifesto de abertura, João de Barros esclarece a quem
se dirigia os esforços e as mensagens a serem veiculadas na Atlântida. A revista
não falava apenas aos cidadãos comuns; sua mensagem era ligeiramente mais
específica. Segundo o pedagogo português, escritores, artistas, industriais,
comerciantes, homens de ciência e políticos eram as figuras a quem o
empreendimento do mensário pretendia convencer da importância da
aproximação entre Brasil e Portugal, com especial ênfase na última categoria. A
fala de João de Barros permite entrever a relevância da participação dos
governos de ambos os países nas ambições da revista, ao afirmar que tal
aproximação se dava sob os auspícios dos seus respectivos representantes
políticos. A missão do mensário não era algo que se restringia ao plano das
ideias; afinal, o autor do manifesto afirma ter a esperança de realizar suas
intenções “com a cooperação de todos aqueles que hoje constituem, pelas suas
obras e pelo seu talento, as maiores razões de existir para o Brasil e para
Portugal.” 1
Os clamores de João de Barros, de fato, alcançaram alguns ouvidos
importantes. Na folha de rosto da revista, abaixo do subtítulo, lê-se a seguinte
frase, que acompanha quase toda a coleção da Atlântida: “Sob o alto patrocínio
de S. Ex. os ministros das Relações Exteriores do Brasil e dos Estrangeiros e do
Fomento de Portugal”. Ainda no primeiro número, as respectivas autoridades
políticas de então, Lauro Müller, Augusto Soares e Manuel Monteiro, deixam
suas mensagens de apoio aos objetivos declarados do mensário, evidenciando
ser este não apenas um esforço de aproximação literária, mas político e
econômico, inclusive.
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Idem, ibidem.
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Os colaboradores da Atlântida espalhados ao longo dos seus 48
números exemplificam os diferentes âmbitos aos quais a revista se propôs a
alcançar. Historiadores, diplomatas, economistas, poetas, romancistas, músicos,
médicos, pedagogos, dentre muitos outros, são algumas das profissões
representadas nos índices da revista, contribuindo com artigos das mais
variáveis temáticas. Poemas, contos, ensaios acadêmicos, críticas literárias,
teatrais e musicais, entrevistas, análises políticas e econômicas eram publicadas
sem qualquer distinção, uma após a outra.1 O eixo estrutural, porém, parece
apontar para um republicanismo latente, pertinente a duas nações recémadentradas no regime e que já guardavam algumas desilusões com a nova forma
de governo. A revista conformou sob a égide da adesão à República e às
relações luso-brasileiras, diferentes correntes políticas, diversos entendimentos
acerca da sociedade, da economia e da cultura. Era um “lugar de fermentação
cultural” 2, num momento considerado crítico pelos intelectuais da época.
A GUERRA E A REVISTA
A Primeira Guerra Mundial foi uma temática constante nos artigos do
mensário. Para Zília Osório de Castro, “curiosamente a guerra – a 1ª Grande
Guerra – viria a servir de catalisador a ideias e sentimentos [...]” 3 Por certo, o
conflito nas páginas da Atlântida assumiu o caráter aglutinador de diferentes
interesses, considerado como o pólo irradiador de diversas ações, benéficas
tanto para as relações luso-brasileiras, quanto para Brasil e Portugal, em
separado.
Os autores dos artigos eram jornalistas, diplomatas, historiadores,
filósofos, poetas, políticos e militares. Em sua maioria, eram portugueses,
Além do corpo principal de artigos, a revista contava ainda com as seções “Revista do Mês” e
“Notícias e Comentários”.
Para o entendimento das revistas como espaço de fermentação cultural, ver Jean François
Sirinelli, Op. Cit.
Zília Osório de Castro, Op. Cit.
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2
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seguindo a tendência da revista em ter em maior número colaboradores dessa
nacionalidade. A gama diversificada de escritores demonstra o impacto sobre
diferentes grupos de interesses que o conflito teve. A forma dos textos também
variava: eram cartas, ensaios, relatórios, entrevistas e conferências que tinham a
Primeira Guerra como seu tema específico. A freqüência é igualmente digna de
nota. Durante a guerra, entre 1915 e 1918, foram publicados 32 números da
Atlântida, dos quais tiveram no seu corpo principal um ou mais textos sobre o
assunto, totalizando 21 artigos. 1
Foram variadas as estratégias que editores e colaboradores da Atlântida
usaram para representar a Primeira Guerra Mundial2. A entrada de Portugal no
conflito ao lado dos Aliados, logo em 1914, deu o tom dos artigos publicados
no mensário, que, obviamente, tendeu nitidamente a organizar as simpatias em
prol desse grupo de beligerantes. Uma das maneiras com que alguns autores
abordaram o conflito foi a perspectiva de tê-lo como um momento inédito e
crítico do mundo moderno. A consciência da sua grandiosidade, do alcance de
suas consequências era algo tido como certo, e não apenas por conta de seus
efeitos econômicos. Ao longo dos artigos publicados entre 1915 e 1918,
percebe-se o destaque dado ao aspecto moral da guerra. Era lamentada a
tragédia e o derramamento de sangue, as perdas materiais irreparáveis, as
mortes, os horrores de batalhas, mas, principalmente, a ameaça a valores
morais caros aos homens. Civilização, progresso, fraternidade, e, em especial,
liberdade, eram postos em risco por atitudes enumeradas como egoístas,
fazendo com que a humanidade e o mundo moderno entrassem em convulsão.
E como tratava-se de um periódico cujo posicionamento diante do conflito
estava bem definido, a culpa de todo o colapso moral da guerra era delegado ao
inimigo, no caso, à Alemanha.
No presente trabalho, serão analisados apenas os textos publicados no corpo principal da revista,
sem contar aqueles que se encontram nas seções. Vale lembrar que, a partir do seu 18º número,
a Atlântida passou a publicar a seção “Portugal em guerra”.
Para o conceito de estratégia e representação, ver Roger Chartier, História Cultural: entre
práticas e representações, São Paulo, Bertrand Brasil/DIFEL, 1990.
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Na grande maioria dos textos publicados sobre a Primeira Guerra
Mundial, o Império do kaiser Guilherme II era representado de maneira
constante e delimitada. Era o inimigo público número 1 e, por conseguinte, o
grande responsável pelo desencadear do confronto; nesse aspecto, os
colaboradores do mensário foram unânimes ao manterem o tom acusatório. A
guerra era, na visão destes escritores, uma reação ao ataque germânico, do qual
toda a Europa fora vítima. Os dedos eram apontados para esse país, como o faz
José de Macedo, em que, numa análise sobre a corrida armamentista que
antecipara o confronto, afirmou:
“A Europa era vítima inocente da loucura dos dirigentes
germânicos, que não esqueciam as menores particularidades
que pudessem auxiliá-los nesse formidável choque de
massas humanas contra verdadeiras muralhas vivas,
oscilando aos embates de semelhantes forças em
desequilíbrio, como sucedeu no Marne e depois em
Verdun.” 1
O sentimento de defesa contra algo que ameaçava uma ordem
instituída, ou um determinado entendimento destas diretrizes, também é visto
na fala do Henrique Lopes D’Oliveira, que compara a guerra desencadeada
pela Alemanha com uma reação biológica do corpo humano.
“Os povos vivos logo reagiram perante o insólito ataque
germânico. Ferido ou ameaçado, todo o corpo sofre
imediatamente o alarme sensorial da defesa. O indivíduo
José de Macedo, “A guerra e a mobilização financeira”, Atlântida: mensário artístico, literário e
social para Portugal e Brasil, Vol. II, nº 8, Lisboa, p. 766.
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são como a sociedade sã em todos os seus elementos logo
se apresta à luta.” 1
Nesse jogo de representações, a Atlântida e seus colaboradores
pintavam a Alemanha com as tintas do barbarismo, do irracionalismo, da
megalomania. O Império era tido como um país irresponsável, que não
prezava moralidades ou valores caros ao mundo civilizado, como Justiça e
Direito. Eram representados como irracionais, selvagens e cruéis em suas
atitudes. Se o Império Alemão era a representação do mal, os Aliados eram os
paladinos do bem. A comparação tendenciosa dos dois lados que se batiam nos
campos de batalha era comumente realizada por aqueles que se propunham a
escrever sobre a guerra. Opondo-se à selvageria alemã, estava a Virtude, o
Direito, a Civilização, a Razão, resumidas na figura da Tríplice Entente e seus
partidários, no qual se incluía Portugal. Nesse aspecto, a guerra moral que os
colaboradores da Atlântida desenhavam assumia o seu contorno mais nítido. “É
a luta pelo direito dos povos, pela liberdade, pela civilização, contra as forças
obscuras do despotismo e da barbárie”, escrevia Henrique Lopes de
Mendonça, da Academia de Ciências de Lisboa. Mais do que isso, a Atlântida
tornava a guerra uma luta que ia além de uma disputa entre nações e interesses
econômicos: era uma disputa entre civilizações.
De um lado estavam os latinos, do outro, os germânicos, com os seus
ideários de civilização diferentes e opostos. A latina havia contribuído para a
iluminação da humanidade, para o seu progresso material e intelectual. A
germânica, inferior, era negada em todas as suas contribuições, de duas
maneiras distintas: ora pregando a corrupção pela influência prussiana dos
postulados de Kant e Wagner, dentre outros expoentes da intelectualidade
alemã, ora simplesmente desmerecendo qualquer desses intelectos, taxando-os
como meras cópias das edificações latinas. O direcionamento da análise da
guerra para uma oposição entre latinos e germânicos é vista nas falas fora do
1
Henrique Lopes D’Oliveira, “Camões, Portugal e a Guerra”, Ob. Cit., p. 708.
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mensário, de seus principais nomes, como Paulo Barreto, diretor e co-fundador
do mensário. Afirmou:
“Os povos mediterrâneos, possuidores do espírito
entusiástico e criador, sempre tiveram esse inimigo – a
morte [...]. Os dois espíritos, o mediterrâneo e o germânico,
não se puderam nunca compreender, desejando ambos o
domínio – um, despreocupado e heróico, contentando-se
com o que é seu; outro, tenaz, formidável, fanático a frio,
consciente do seu poder, querendo dominar tudo,
transformar tudo, moldar à sua feição a terra”1
Paulo Osório afirmou: “O alemão afivelou a máscara da civilização;
mas a sua alma ficou sempre a alma de um bárbaro.”2 Se a civilização latina
prezava a liberdade dos povos, a germânica apregoava a dominação pela força.
Vinculado a essa suposta característica da cultura alemã, estava a ideia
de dominação mundial por esse país. Em diversos artigos, ao lado da ameaça
germânica à liberdade, estava a afirmação da ambição de subjugar as nações,
escravizar a humanidade, inscrever uma paz baseada no medo. Sobre isso,
Hermano Neves nos fala:
“Dada a hipótese, o programa alemão encontra-se definido
numa recente brochura do dr. Franz Liszt, que preconiza a
formação de um novo império germânico, mais forte que o
antigo, de mais dilatas fronteiras, com uma extensão
imensamente considerável de domínios coloniais.”3
Paulo Barreto, Sésamo, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1917.
Paulo Osório, “Esta Guerra”, Ob. Cit., Vol. IV, nº 16, Lisboa, p. 307.
Hermano Neves, “Algumas profecias sobre a grande guerra”, Ob. Cit, Vol. I, nº II, Lisboa, p.
170.
1
2
3
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Tornou-se recorrente, inclusive, comparar os alemães e seu exército a
Àtila e os hunos, como o fez Paulo Osório, na seguinte passagem:
“Cada homem deixava de ser ali um indivíduo capaz de
raciocinar, de agir segundo a sua inteligência, de querer
fosse o que fosse: era uma peça desse maquinismo
complexo de que faz parte integrante, indispensável, mas
fora do qual ele é inútil. Era a Alemanha moça e guerreira
que passava ao longo das estradas. [...] Assim eles passavam,
terríveis, cruéis, formidavelmente armados, como os hunos
de Átila.” 1
Na comparação com o antigo general que estendeu seus domínios até a
Europa, governando-a com mão-de-ferro, encontra-se a tentativa de imprimir o
caráter devastador e tirano que atribuía-se à Alemanha e seu desejo de
apoderar-se do mundo. Em outros artigos, a premissa é tomada como
verdadeira e a guerra é entendida como o desenvolvimento de um plano
alemão para apossar-se dos territórios internacionais. Assim o afirma Teófilo
Braga:
“Como o maior crime da História será designado na
memória das gerações vindouras esta guerra de invasão, de
assalto, de devastação e de retrocesso à animalidade bruto,
organizada, estudada e posta em efeito sem motivo pelos
dois impérios alemães do norte e do sul, prosseguindo nas
suas tradições de barbárie e fortalecidas pelos recursos
científico da civilização européia.”2
1
2
Paulo Osório, Op. Cit., p.306.
Teófilo Braga, “Portugal e os aliados”, Ob. Cit., Vol. III, nº 25, Lisboa, p. 7.
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Tamanha insistência no assunto tinha uma razão de ser. No início do
século XX, Portugal estava numa posição delicada diante das grandes potências.
A corrida imperialista nos continentes africano e asiático, que começou no
século XIX e se estendeu ao século XX, lançou os olhos das nações
colonialistas sobre os territórios portugueses nesses locais. Embora
reconhecessem Portugal como uma nação européia e soberana, sua capacidade
colonizadora era posta em xeque, ao ser acusado de não corresponder aos
ideais liberais que delimitavam as funções de uma potência colonizadora,
conforme as determinações da Conferência de Berlim1, tanto em suas colônias,
quanto em território europeu. Ao mesmo tempo, era considerado um país
pequeno e sem importância para manter suas posses extracontinentais.
Ameaçado constantemente no controle de seus territórios coloniais por
França, Inglaterra e, sobretudo, Alemanha, o país desenvolveu tentativas para
manter suas colônias e conseguir seu status de potência e nação independente,
conformadas na ideia de um Terceiro Império Português. O objetivo era
transformar a África em um “Novo Brasil” e estabelecer relações comerciais e
imigratórias em ambas as margens do Atlântico.2 Visando esse direcionamento
que foi produzido o “Mapa Cor-de-Rosa”, que instituiria um território
português interligando Angola e Moçambique. A divulgação do Mapa acabou
criando uma contenda com a Inglaterra, fazendo com que Portugal recuasse e
passasse a ser mencionado como um protetorado da Grã-Bretanha. O tratado
luso-britânico de 1891 veio a garantir a presença portuguesa no continente
africano, não impedindo, porém, a ilha de realizar tratados secretos com a
Alemanha, repartindo entre ambas as colônias portuguesas.
A Conferência de Berlim, ocorrida entre 15 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885,
determinou o teor da legitimidade de um país europeu em reivindicar posse e exploração sobre
um determinado território. Sobre a Conferência de Berlim e a participação portuguesa, ver Omar
Ribeiro Thomaz, Ecos do Atlântico Sul: representações sobre o terceiro império português, Rio
de Janeiro, Editora UFRJ/FAPESP, 2002.
Cf. Omar Ribeiro Thomaz, Op. Cit.
1
2
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Dessa forma, o prestígio português tanto na Europa quanto no resto do
mundo estava em baixa. Internacionalmente, Portugal era visto como uma
nação de segunda categoria, sem força política ou peso econômico no cenário
externo; manter suas colônias era uma questão de assegurar importância e
soberania nacional. E a Primeira Guerra Mundial será entendida como a
oportunidade perfeita para a recuperação desse prestígio, ao menos nas páginas
da revista Atlântida. Era preciso reagir às ambições alemãs de tomar para si as
colônias portuguesas, da mesma forma que o faria com o restante do mundo.
Era preciso reconquistar o respeito internacional. Os colaboradores do
mensário tratam a guerra como a grande chance portuguesa de realizar ambos,
juntando o útil ao agradável. Pondo-se ao lado da Grã-Bretanha, a esperança
era de obter o reconhecimento e as vantagens que tal posicionamento
certamente traria.
Para a Atlântida, tal relação estava clara. Termos como “renascimento”,
“renascença”, “retorno” e “reviver” são comumente encontrados nos textos que
abordam o conflito. Portugal renasceria, reviveria antigas glórias, recuperaria o
seu prestígio, consolidaria-se como nação, pois existia a convicção de que a
guerra traria um mundo, melhor, expurgado de males. O país era representado
como acordando de um longo sono, despertado e energizado pelo clamor do
conflito, conforme escreve Henrique de Vasconcelos:
“Para os portugueses, rompeu a manhã heróica. Cansada
dos sucessos, a nobre raça adormecera, num longo sono,
por vezes convulso. Dir-se-ia que a nossa história se
quebrara, que o livro de bronze em suma se transformara.”
Mais adiante, completa: “Portugal ressurge, forte e belo
como um deus antigo, na manhã heróica que abrasa de sol a
estrada do seu futuro glorioso.”1
Henrique de Vasconcelos, “Manhã heróica”, Atlântida: mensário artístico, literário e social para
Brasil e Portugal, Vol. VII, nº 25, Lisboa, p. 15 e 16.
1
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A guerra era entendida como um instrumento da história religando
futuro e passado, estabelecendo um elo de continuidade entre ambos, uma vez
que proporcionaria o retorno às glórias passadas para garantir e consolidar o
futuro português. Tal entendimento da guerra e visão historiográfica fica
entendido na seguinte passagem, na saudação destinada pela redação da revista
às tropas portuguesas:
“Portugal, enviando tropas para o campo de batalha onde
vai combater ao lado da sua velha e nobre aliada, a
Inglaterra, soube impor-se à admiração e à consideração de
todos os países. Faz um sacrifício que o reabilita, que o
honra, que o exalta. E mais uma vez acende, como um
clarão que ilumina o futuro, esse facho de epopéia
deslumbrante que o tomou grande e forte no passado.”1
Não à toa, a história nacional portuguesa é comumente evocada nos
artigos sobre a guerra, como uma trajetória de tempos áureos que passaram por
momentos difíceis, findados a partir do posicionamento português no conflito
de 1914. Alguns colaboradores, como Henrique Lopes de Mendonça,
chegaram até mesmo a afirmar a traição ao seu passado caso Portugal não
pegasse em armas. E os se opor à entrada do país no conflito era taxado como
falta de patriotismo. Percebe-se nesses artigos a intenção de ressaltar a guerra
como um divisor de águas para a história portuguesa, recuperando prestígios e
consolidando a recém-proclamada república. João de Barros afirma:
“Mais uma vez, e numa hora excepcional para a história da
Europa, a República dignificará a Pátria, erguendo-a no
Redação, “Ao exército português”, Atlântida: mensário artístico, literário e social para Brasil e
Portugal, Vol. IV, nº 16, Lisboa, p. 244.
1
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conceito dos povos cultos, enobrecendo-a pela força dum
ideal civilizados, consolidando-a pela certeza dum Futuro
longo e próspero!” 1
Este aspecto – a estabilização do novo regime através da participação
no conflito – é outra nuance extraída dos textos sobre a guerra, vista como
elemento legitimador contra opositores monarquistas. Um direcionamento
previsto, uma vez que João de Barros e Paulo Barreto eram republicanos
convictos e a Atlântida, em diferentes artigos, exaltava a República como um
passo português em direção à modernidade, amparado pelas vantagens que a
guerra traria. Nesse momento, a revista torna-se um lugar de propaganda do
governo português, com a presença dos seus representantes.
O mensário tinha seu tom afinado ao discurso oficial, apoiando o
governo. Em um dos números publicados, reproduziu a declaração do governo
português para o Congresso, onde eram expostos os ofícios trocados entre os
ministérios das Relações Exteriores de Portugal, Inglaterra e Alemanha, que
culminou na declaração de guerra portuguesa ao Império do kaiser Guilherme
II. A Atlântida apoiava o novo regime. Dos 21 artigos publicados sobre a
Grande Guerra, seis eram entrevistas ou declarações dos estadistas portugueses
e do embaixador brasileiro em Portugal, Gastão da Cunha. Antecedendo a
preleção, palavras de exaltação da figura pública e pessoal dos entrevistados,
assim como do regime. Deram o seu depoimento o então ministro dos
Negócios Estrangeiros, Augusto Soares, o ministro da Guerra português e o
próprio presidente de Portugal à época, Bernardino Machado. Nas suas falas,
uma constância: a guerra, a República e futuro português estavam
irremediavelmente entrelaçados.
1
João de Barros, Op. Cit., p. 613.
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AS RELAÇÕES LUSO-BRASILEIRAS E A PRIMEIRA GUERRA NA
ATLÂNTIDA
Nos textos da Atlântida, a Primeira Guerra Mundial serviu para
destacar tanto a necessidade de fortalecimento dessa união, quanto os aspectos
que a justificava e a tornava possível. Para João de Barros, ao publicar o
pronunciamento do governo português que declarava guerra à Alemanha,
afirmou:
“A Atlântida pretende não só mostrar que vive e
acompanha a magnífica ansiedade da nação portuguesa,
como também lembrar que a sua missão é hoje mais do que
nunca necessária, para que através do conflito que põe à
prova a coragem, a serenidade e a grandeza da nossa raça,
se sinta sempre, e cada vez mais ardente e mais forte, a
velha amizade fraterna do Brasil e de Portugal.” 1
Era o momento de legitimar a solidariedade que os uniam. O perigo
que a Alemanha representava para Portugal estendia-se ao Brasil. Circulava na
Atlântida e no meio intelectual luso-brasileiro a crença na ameaça do
pangermanismo. Este consistia na ideia que o Segundo Reich reuniria sob o seu
domínio todos os territórios onde se encontrassem indivíduos da raça
germânica ou que julgasse seu por direito, o que incluiria parte do território
brasileiro, e as colônias portuguesas na África, dando à Alemanha o controle
sobre o Atlântico sul. No Brasil, a ideia da perda do território sul do país para
o Segundo Reich através das colônias alemãs no local foi discutida nos salões da
intelectualidade brasileira antes mesmo da eclosão da Primeira Guerra
Mundial. Sílvio Romero, na conferência anteriormente mencionada, expôs sua
1
João de Barros, “Portugal na Grande Guerra”, Atlântida: mensário artístico, literário e social
para Portugal e Brasil, Vol. I, nº 5, Lisboa, p. 1.
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desconfiança com relação à concentração maciça de imigrantes alemães no sul
do Brasil e sua predominância nas atividades econômicas da região. Assim
denunciou:
“Deve ser com mágoa [...] que os espíritos amantes desta
terra em Portugal e Brasil hão de ler investidas como esta
contra a autonomia do país: “Berlim – Os pangermanistas
estão atualmente ocupados com um projeto de organização
mais sólida de um acordo entre os colonos alemães no
Brasil.” Tem havido em diversas cidades da Alemanha
conferências cujo fim é enviar alguns pastores, padres e
mestres a escolas do sul do Brasil. Na cidade de
Magdeburgo, um dos oradores declarou que parte do sul do
Brasil é uma terra alemã, que deverá mais tarde pertencer
ao império alemão.”1
Posteriormente, em 1915, com a Primeira Guerra já iniciada, o escritor
Raul Darcanchy publicou o livro O plano pangermanista no sul do Brasil, onde
denunciou o isolamento dos colonos alemães em Santa Catarina. Darcanchy
reuniu uma série de documentos que comprovariam a intenção alemã de
germanizar não apenas o Brasil, como o mundo. Proclamando sua obra como
um serviço ao país, afirmou tratar de um problema que afeta diretamente a
integridade nacional.2
Nas páginas da Atlântida, a insistência na veracidade da ameaça
pangermânica às nacionalidades e liberdades de Brasil e Portugal era pertinente
à forma como as relações luso-brasileiras eram definidas no mensário.
Respeitando a independência política e territorial de ambos, Brasil e Portugal
Sílvio Romero, O elemento português no Brasil, Lisboa, Tipografia Nacional Editora, 1902. p.
35.
“Raul Darcanchy: o pangermanismo no sul do Brasil – 1915”, Jornal do Commércio, Rio de
Janeiro, 7 de janeiro de 1916, p. 2.
1
2
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eram países interligados pela raça lusa, pelo compartilhamento da cultura latina,
da tradição histórica e da língua portuguesa. Além disso, possuíam uma filiação
natural: Portugal é definido como a pátria-mãe de sua antiga colônia, seu único
genitor. Partilhavam, assim, a mesma raiz moral, advinda da civilização latina.
Além disso, definir a Primeira Guerra como a execução do pangermanismo foi
uma forma de reforçar os laços que o mensário destacou e pretendia atar de
vez. Mais do que um perigo à integridade do território desses países, o
pangermanismo era definido como uma intimidação à nacionalidade brasileira,
tida como ainda em estágio de formação. A aproximação com Portugal, sua
matriz cultural e racial, nesse momento belicoso, seria um bálsamo contra as
ambições germânicas de destruírem essa nacionalidade recém-instituída,
substituindo sua raiz natural latina por outra, oposta e adversária. A aliança com
Portugal assume, dessa forma, caráter de urgência.
Dessa forma, a Primeira Guerra Mundial legitimava a união lusobrasileira, nos termos práticos em que a Atlântida pretendia instituir. A
realização de tratados econômicos que favorecessem as trocas comerciais entre
os dois países, tão reclamada em inúmeros artigos no mensário, foi reforçada
no cenário de guerra e na perspectiva do momento pós-conflito. A aproximação
dos mercados portugueses e brasileiros era interpretada como uma forma de
fortalecer ambas as economias para a futura batalha econômica que se iniciaria
ao cessar dos canhões. Vale lembrar a constante inquietação da revista com a
situação econômica portuguesa, temática sempre presente nos índices da
publicação e considerada sempre aquém de suas possibilidades.
Quando em fins de 1917 o Brasil rompe relações com a Alemanha e
entra de vez no conflito, a decisão é utilizada pelos editores e colaboradores da
revista para afirmar o caráter solidário que aproximava brasileiros de
portugueses. João de Barros afirmou, em mais um argumento comprobatório
da justeza da união luso-brasileira e dos aspectos que a viabilizavam:
“E saber, e sentir que o Brasil, na hora que atravessamos
[...] vinha enfileirar ao lado das nações aliadas, dando-lhes, e
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dando-nos, o seu concurso moral e a adesão da sua
consciência – comoveu-nos profundamente, trazendo-o a
consoladora alegria do seu apoio, [...], sobretudo por ser
mais uma afirmação latina do nosso sangue, da nossa raça e
das nossas tradições, sempre triunfantes no Brasil...” 1
E, em um número mais adiante, reafirmou:
“O Brasil está em guerra, o Brasil rompeu as suas relações
com o Império Germânico, o Brasil está virtualmente em
beligerância, desde o dia em que os seus jornais publicaram
os telegramas de Lisboa, anunciando a guerra entre
Alemanha e Portugal; beligerância de corações, beligerância
de sentimentos, beligerância de espíritos [...]” 2
O final do conflito e a vitória dos Aliados trouxeram para a Atlântida
uma série de artigos que reforçavam as afirmações feitas ao longo dos 32
números publicados durante a guerra. A Alemanha derrotada era a prova da
superioridade da cultura latina sobre a germânica, dos Aliados sobre os
inimigos vencidos. A guerra é agora representada como um plebiscito moral,
onde o mundo havia optado pela latinidade. O Império Alemão era
confirmado como o responsável único pelo confronto, embate este que
renovaria o cenário internacional. Essa quase esperança é vista na fala de
Manoel de Sousa Pinto:
“À Germânia rapace ficará cabendo a glória negra de ter,
com seu bélico delírio [...] com o hohenzolérnico suicídio
duma casta de megalômanos, mudado o rumo dos povos,
João de Barros, “A ruptura das relações diplomáticas”, Atlântida: mensário artístico, literário e
social para Portugal e Brasil, Vol. V, nº 18, Lisboa, p. 493 e 494.
1
2
Idem, “O Brasil e a guerra”, Ibidem, volume VII, número 25, Lisboa, p. 158.
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alterado os planos do destino, não no sentido do seu
tentacular imperialismo, mas conforme a uma aliança de
velhas, renascidas forças e esperançosas forças novas, cujo
poder transformados é ainda ilícito prever.” 1
Era tempo de preparar-se para os novos rumos e novos tempos que
viriam.
A Primeira Guerra Mundial nas páginas da revista Atlântida ganhou
novos significados e representações. De um confronto de razão econômica e
política entre blocos de países, ganha a representatividade de um duelo entre
culturas e projetos de mundo. A forma como o mensário abordou a guerra que
dilacerou a Europa por quatro anos, revela a extensão das ambições dos seus
idealizadores e daqueles que colaboraram para a sua existência: para além de
um projeto cultural, de aproximação artística entre Brasil e Portugal, a
exposição da Primeira Guerra ilumina um projeto político determinado,
reforçando afirmação de Ana Luíza Martins de que revistas estão a serviço de
construções de tradições. No caso da Atlântica, a tradição a ser edificada tem
em seu bojo passado e futuro, onde Brasil e Portugal olhariam para o seu
passado comum, para a sua história buscando o apoio para lançar-se no futuro,
tendo a Primeira Guerra como sua mola propulsora, atendendo à metáfora de
Paulo Barreto: “o presente, para caminhar e crer no futuro, precisa apoiar-se no
passado, como a flecha que se finca no arco para projetar-se no futuro.”
1
Manoel de Sousa Pinto, “Vitória!”, Ibidem, Vol. IX, nº 33-34, Lisboa, p. 853.
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[336]
Dossiê Criminalidade
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D. PEDRO II NA MARGEM DIREITA DO SÃO FRANCISCO
Marcello Eduardo K.L.Campos*
Resumo
O presente artigo resgata a História da passagem de D. Pedro II por cidades de
Sergipe localizadas na margem do Rio São Francisco no ano de 1859 e pesquisa
o conhecimento que hoje existe a respeito e a importância que as pessoas dão a
esta visita, além de percorrer, nos dias atuais, os locais que o Imperador visitou
e que ainda existem nestas cidades.
Palavras Chave: Pedro II . Sergipe . Rio São Francisco
Abstract
The present article rescue the History of the passage of D. Pedro II for
Sergipe´s cities localized in São Francisco River´s bank at the 1859 year and
research the knowledge that exists today about and the importance that people
gave to this visit, beyond go through, in the actual days, the places that Emperor
visited and still exists in this cities.
Keywords: Pedro II . Sergipe . São Francisco River
*
Licenciado em História – UFS – [email protected]
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Hoje adentramos uma máquina do tempo, e convidamos os distintos
leitores e leitoras a embarcar conosco. Vamos para os tempos do império, dos
barcos a vapor, das princesas e príncipes, dos barões e cavaleiros. Vamos
acompanhar a viagem de D. Pedro II realizada em 1859 rumo à Cachoeira de
Paulo Afonso, especificamente seus desembarques na margem direita do Rio
São Francisco, em cidades de Sergipe.
A passagem do monarca foi o evento mais importante da História de
muitas das cidades por onde passou. Como ela é lembrada hoje? Ainda existem
lugares de memória desta visita? Qual seu estado hoje? Como a vinda do
Imperador é tratada pelo poder público, enquanto evento cívico? Nós
investigamos.
Qual o nível de conhecimento que as atuais gerações, notadamente os
jovens, possuem sobre o evento? Entrevistamos quase 117 estudantes para
saber. Embarque conosco, caro leitor, sigamos juntos os caminhos do
Imperador.
QUEM ERA D. PEDRO II?
D. Pedro II governou o Brasil por quase 50 anos, de 23/07/1840 a
15/11/1889 e, para conhecer nosso hóspede tão ilustre, vamos recorrer a José
Murilo de Carvalho e sua obra D. Pedro II – Ser ou Não Ser1. Neste livro, que
consideramos fascinante e obrigatório para quem deseja saber quem foi D.
Pedro II, Carvalho apresenta uma imagem do imperador algo diferente da que
foi construída ao longo das décadas. Aqui vamos ver uma pessoa em
permanente conflito entre seus deveres como monarca e suas vontades como
ser humano comum. O autor separa o personagem histórico em dois homens:
D. Pedro II e Pedro d'Alcântara, o imperador e o homem.
1
CARVALHO, José Murilo de. D. Pedro II – Ser ou Não Ser, São Paulo, Companhia das Letras,
2007, p. 312.
[338]
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Pedro d'Alcântara nasce em 02/12/1825 após 5 horas de trabalho de
parto. Chega ao mundo robusto e medindo 47cm. Foi o primeiro filho homem
do casal Pedro I e Leopoldina a sobreviver após a morte dos dois primeiros
meninos e o nascimento de outras quatro irmãs. (CARVALHO, 2007, pg.12)
Crescendo com a saúde frágil, logo torna-se órfão de mãe com um ano
de vida, separa-se do pai aos 5, ficando órfão também deste aos 9. Por
conseguinte, da figura paterna guardava algumas boas lembranças, da mãe sabia
o que dela lhe contavam. (pg.13)
Carvalho nos diz que sua educação foi rígida, buscando eliminar os
defeitos da linhagem paterna, forjando um governante perfeito, “sem paixões,
escravo das leis e do dever, quase uma máquina de governar” (pg. 10), um
modelo de governante ao qual Pedro passaria a vida tentando ajustar-se.
Sua rotina diária consistia em levantar-se às 07hs, almoçar às 08hs sem
comer muito, estudar entre 09 e 11:30hs, divertir-se entre 11:30 e 13:30hs,
jantar às 14hs, (quando as conversas deveriam girar apenas sobre ciência e
beneficiência), passear nos jardins ou ler às 16:30hs, cear às 21hs e deitar-se às
21:30hs. Os banhos e a temperatura da água eram acompanhados por um
médico e o contato com as irmãs era restrito. (pgs. 26-27)
A instrução literária e moral era uma mistura de iluminismo,
humanismo e moralismo, uma “receita” de bom Imperador, conforme se pode
ver neste trecho das instruções do Marquês de Itanhaém:
“[...] discernindo sempre do falso o verdadeiro, venha em último resultado a
compreender bem o que é a dignidade da espécie humana, a qual o monarca é
sempre homem sem diferença natural de qualquer outro indivíduo humano...”
(pg. 28)
O resultado foi que o menino Pedro, segundo o autor, aos 8 anos de
idade, já falava Francês, Inglês e escrevia em Latim, mas não era uma criança
feliz. Sua timidez não ajudava e o marcou para o resto da vida. Carvalho afirma
que sua voz não chegou a engrossar, causando constrangimentos por não
[339]
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combinar com seu porte avantajado. D. Pedro II media 1,90 metro de altura!
Na vida pública limitava-se a missas, procissões, estudos. (pg. 29-30)
O peso do poder lhe é colocado nas mãos com apenas 14 anos de
idade! Em meio a mais uma crise gerada pelos desentendimentos entre os
grupos que disputavam o poder, a antecipação da maioridade do Imperador foi
colocada como solução para os conflitos. (pg. 38)
Os primeiros anos foram, como era de se esperar, de insegurança.
Governar significava encontrar uma forma de convivência entre liberais e
conservadores, a pacificação de revoltas, a unificação de fato do país e uma
resposta às pressões inglesas pelo fim do tráfico de escravos, dentre infinitas
outras obrigações. (pgs. 44-48)
Aos poucos, contudo, equilibrando-se entre os dois grupos políticos,
hora pendendo para os liberais, ora para os conservadores, e utilizando-se do
Poder Moderador, o jovem monarca foi dominando as rédeas do poder,
embora isso lhe custasse grandes sacrifícios por ter de conviver com aquelas
disputas.
D. Pedro II, conforme nos diz Carvalho, parecia não suportar o dia-adia mesquinho da política onde muito se falava e pouco se fazia: “É preciso
trabalhar e vejo que não se fala quase senão em política que é as mais das vezes
guerra entre interesses individuais.” (pg.82).
O casamento, segundo Carvalho, contribuiu para trazer experiência,
embora tenha se iniciado sob circunstâncias tragicômicas, com o envio de uma
pintura da noiva que não a retratava com fidelidade, na verdade a mostrava
muito mais bonita do que realmente era, o que se revelou quando esta chegou e
foi apresentada ao monarca, o que, logicamente lhe aborreceu profundamente.
(pg. 52)
Criado para ser Imperador, sem jamais ter conhecido uma vida
comum, D. Pedro II vivia, de fato, dividido entre o Imperador e o Homem.
Carvalho nos diz que um sentimento, porém, unificava os dois:
[340]
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… a paixão pelo Brasil. Ela marcou a vida de d. Pedro II e
de Pedro d'Alcântara, possibilitando que o homem que os
abrigava se dedicasse integral e persistentemente à tarefa de
governar o Brasil por meio século. Ele o fez com os valores
de um republicano, com a minúcia de um burocrata e com
a paixão de um patriota. (pg. 10)
Assim, pois, seria o Imperador que embarcou para visitar as províncias
ao Norte do Rio de Janeiro.
A VIAGEM
Durante o recesso legislativo de 1859 D. Pedro II programou uma
viagem ao Espírito Santo, Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco e Paraíba, não
avançando mais ao norte justamente por conta do tempo do recesso, pois não
queria estar ausente da capital em período legislativo.
Nossa fonte agora é o diário do Imperador sobre esta viagem, publicado em
1959 por Lourenço Luiz Lacombe1 e republicado em 20032, que traz
informações sobre a jornada.
A viagem começou a ser preparada no início de setembro com a tarefa
de organização cabendo ao Mordomo Imperial, Sr. Paulo Barbosa. O
deslocamento de Suas Majestades, D. Pedro II e Tereza Christina, demandava
uma enorme logística que ia desde a nomeação dos acompanhantes, tais como
dama de companhia, reposteiro, varredor, mestres de copa e cozinha,
1
Pesquisador especializado (1940-46), chefe da divisão de documentação (1946-1967) e diretor
(1967-1990) do Museu Imperial.
2
LACOMBE, Lourenço Luis & LEMOS, Renato. Viagens pelo Brasil: Bahia, Sergipe e Alagoas 1859, Rio de Janeiro, Editora Letras & Expressões e Bom Texto, 2003.
[341]
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cozinheiros de primeira e segunda classe, padeiro, cocheiros, serventes,
estribeiros, escravos, etc, até às questões econômicas como o pagamento de
todas essas pessoas.
Detalhe: tudo pago do bolso do próprio Imperador que não dispunha
de recursos suficientes e, para cobrir o total das despesas, contraiu um
empréstimo de “30 contos de réis na praça da Bahia e 30 na de Pernambuco”
(LACOMBE, 2003. p. 22).
Em 11 de setembro de 1859, D. Pedro II anunciara a viagem durante a sessão
final legislativa daquele ano, na Assembléia Geral, justificando-a com a
necessidade de conhecer o país:
Para melhor conhecer as províncias do meu Império, cujos
melhoramentos morais e materiais são o alvo de meus
constantes desejos e dos esforços do meu governo, decidi
visitar as que ficam ao Norte da do Rio de Janeiro, sentindo
que a estreiteza do tempo que medeia entre as sessões
legislativas me obrigue a percorrer somente as províncias do
Espírito Santo, Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco e
Paraíba, reservando a visita das outras para mais tarde. (pg.
22)
A partida deu-se em 01/10/1859, às 8:45hs e a frota do
Imperador consistia do vapor Amazonas, corveta a vapor
Paraense, canhoneira a vapor Belmonte e vapor APA onde
viajavam Suas Majestades e o Comandante da frota
imperial, Almirante Joaquim Marques Lisboa, futuro
Marquês de Tamandaré.
O Imperador relata os enjôos, noites mal dormidas,
refeições, movimento dos navios, chuvas e as atividades de
tripulação e passageiros. Comenta, ainda, de que esta época
[342]
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é a de baleias paridas vagarem naquela região, já no litoral
baiano. (pg. 44).
A chegada à Salvador dá-se na manhã de 06 de outubro
onde, dentre outras anotações, o Imperador elogia o
chafariz do Terreiro de Jesus e o atual Palácio Rio Branco,
mas escreve também sobre a estreiteza e a lama das ruas, o
gosto de ferro da água e a ausência de tantas “caras escuras”
como esperava ver. (pgs. 53-57).
Em 12 de outubro a comitiva parte de Salvador rumo ao Rio São
Francisco e D. Pedro II comenta a vista da torre do forte de Garcia D’Ávila e
os novos enjôos. No dia seguinte, 13 de outubro, após passar por todo litoral
sergipano a frota entra pela foz do Velho Chico, sendo recebido por
autoridades e a escolta de um navio sergipano, o vapor de reboque Aracaju.
Subindo o rio e hospedando-se em Penedo, o Imperador atravessa o
São Francisco em 15 de outubro para pisar, pela primeira vez, na margem
direita do Rio São Francisco, o solo sergipano.
VILA NOVA - NEÓPOLIS
Houve muitos vivas e foguetes, e mostraram-me um lugar pedregoso
onde os holandeses tiveram um curtume,... - D. Pedro II (LACOMBE, 2003.
p. 113)
Neópolis, primeira localidade de Sergipe visitada pelo Imperador D.
Pedro II, surge no século XVII, em 1679, com o nome de Santo Antônio de
Vila Nova e com esta fundação completava-se o período da conquista do
território sergipano.
[343]
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Em 1733 passa a chamar-se Vila Nova Del Rei e em 1835 recebe o
nome com o qual recepciona a comitiva imperial: Vila Nova do Rio São
Francisco.
Hospedado em Penedo, onde faz diversas visitas, D. Pedro II manda
avisar ao Presidente da Província, Dr. Galvão, que visitaria Vila Nova após as 14
horas do dia 15 de outubro, um Sábado.
Aqui adicionamos uma nova fonte às nossas pesquisas: trata-se do livro
Viagem Imperial à Província de Sergipe1, escrito por Luiz Álvares Santos por
ordem do Presidente da Província de Sergipe, Manoel da Cunha Galvão. Na
obra o povoado é descrito de forma nua e crua como um dos mais pobres de
Sergipe:
Villa-Nova, além de ser uma das Villas mais pobres da
Província e sem nenhuns recursos, caminha a passos largos
para sua ruína: além d'isto não tinha sido precedentemente
avisada de que receberia tão honrosa visita. Não obstante S.
Magestade o Imperador foi ahi recebido com as maiores
demonstrações de regosijo. (SANTOS. 1860. pg. 158)
O monarca desembarca em solo sergipano às 14:15hs, recepcionado
pelas autoridades civis, militares, religiosas, o povo e 321 praças da Guarda
Nacional, Corpo de Polícia e banda de música, todos postados desde o porto
até a Igreja do Rosário. Dirigindo-se para lá o Imperador faz uma oração e vai
visitar as obras da matriz sobre a qual anota em seu diário:
...fui ver as obras da nova matriz que é vasta, e onde se lê,
bastante alto sobre a porta, a seguinte inscrição: “Demolida
1
SANTOS, Luiz Álvares. Viagem Imperial à Província de Sergipe, Salvador, Tipografia do
Diário, 1860. p. XXX
[344]
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em 1813 […]. Está em osso e apenas há a talha de um altar
lateral junto ao cruzeiro. (LACOMBE. 2003. pg. 112)
Dentre as raríssimas informações que se pode encontrar sobre a
História de Neópolis na internet, levantamos que a Igreja do Rosário1 seria
uma das mais antigas de Sergipe, tendo servido como quartel-general das tropas
do Conde de Bagnuolo, que enfrentara Maurício de Nassau em 1638.
A atual Matriz, Igreja de Santo Antônio, que também o era no início do
século XIX, desabou em 1813, por conta do inverno rigoroso, fazendo com
que a Igreja do Rosário voltasse a ocupar a condição de matriz vila-novense,
posição que detinha quando da visita do Imperador.
Um requerimento de ajuda para reconstrução da Matriz foi entregue a D.
Pedro II e o artigo registra que no ano seguinte chegou à vila um emissário da
Imperatriz que levantou custos e ordenou a reconstrução. Esta, porém, só foi
concluída 100 anos depois, em 1959, quando a igreja retornou à condição de
Matriz da cidade.
Seguindo em sua visita, D. Pedro II dirige-se a uma escola onde
estudam apenas 6 ou 8 meninos. Anota que a construção é imprópria. Na
escola das meninas fica mais satisfeito pois as alunas demonstram alguma
habilidade nas contas e na leitura, anotando ainda que a professora é muito
jovem, casada com um velho major reformado. Fato curioso é que o professor
de primeiras letras, mesmo tendo sido avisado da visita, não compareceu, sendo
punido de forma rigorosíssima, “Por semelhante omissão S.Ex. O Sr. Dr.
Galvão o suspendeu por 30 dias com perda dos respectivos vencimentos”.
(SANTOS. 1860. pg. 159)
1
João Manoel “Neópolis, a capital sergipana do frevo.”
Disp. em: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=443956 – Acesso em 31/05/2011
[345]
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Após uma refeição, em visita a aula de francês, que dominava, D. Pedro II nota
que há 14 alunos, registrando que um deles traduz de forma razoável uma
fábula de La Fontaine e que outro responde mal sobre gramática.
Às 16 horas o monarca embarca de volta a Penedo onde dormiria para,
após a missa, partir rio acima. Na ocasião o Imperador doa 300 mil réis ao
padre Antônio de Santa Maria Madalena para praticar caridade.
Em nossas andanças pela cidade, realizadas em agosto de 2010, visitamos as
duas igrejas. Notamos a beleza e a vitalidade da Igreja Matriz, em total contraste
com o abandono da Igreja do Rosário, fechada ao público e com os altares
vazios.
Na ocasião, e em todas as demais cidades, visitamos uma escola e
entrevistamos dezenas de estudantes em cada uma delas. Apresentamos a eles
uma pesquisa para aferir o conhecimento que possuiam a respeito da visita e do
ilustre visitante.
Em Neópolis entrevistamos 39 alunos com idade média de 13 anos.
Quando perguntados sobre a pessoa mais importante a visitar sua cidade em
todos os tempos, 18 (46,15%) responderam que foi o Imperador, 10 (25,64%)
que foi o Governador e 01 (2,56%) que foi o Presidente.
Dentre os alunos, 35 (89,74%) acertaram o cargo de D. Pedro II, Imperador,
enquanto 4 (10,26%) o classificaram de Presidente. Sobre o ano da visita, 21
(53,85%) acertaram escolhendo 1859, enquanto 13 (33,33%) optaram por 1860
e 4 (10,26%) marcaram o ano 2000.
Perguntados onde obtiveram o conhecimento sobre a visita do Imperador, 26
(66,67%) responderam que estava sendo ali na escola, naquele momento, 12
deles (30,77%) afirmaram que adquiriram o conhecimento em livros e 1
(2,56%) que foi na TV. A grande maioria, 31 (79,49%) declararam-se
orgulhosos com a passagem do monarca por Neópolis, enquanto 8 (20,51%)
disseram não ligar para o fato.
[346]
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Por fim, a importância que atribuem à visita dividiu as opiniões, 12
(30,77%) assinalaram a visita como “Muito Importante”, 11 (28,21%) como de
“Média Importância, 7 (17,95%) como de “Pouca Importância” e 9(23,08%)
não viram “Nenhuma Importância” na passagem de D. Pedro II por Neópolis.
Não encontramos um site da Prefeitura de Neópolis que pudesse nos
permitir verificar como a visita do Imperador é tratada oficialmente.
PROPRIÁ
Propriá é uma vila de 3.000 habitantes com algumas casas
boas e de sobrado...
D. Pedro II (LACOMBE, 2003. p. 115)
No Domingo, 16 de outubro, Sua Majestade madrugou para assistir a
missa na Igreja de Nossa Senhora da Corrente em Penedo, localizada em frente
ao Paço Imperial. A celebração inicia-se às 04:00 e às 05:30 a frota imperial
parte rio acima, rumo a Propriá/SE.
A cidade é avistada e o Imperador “com seu óculo de alcance apreciou
a bella vista […] e reconheceu que achava-se apinhada de povo” (SANTOS,
1860. pg. 160) fato que pareceu impressionar o escritor do relato:
...nunca nos persuadimos que em Propriá, uma Villa central
outrora florescente, mas já decadente, houvessemos de ver
tanto povo reunido, e tanta effusão de prazer. (SANTOS.
1860. pg. 160)
Para saber como era a Propriá que D. Pedro II encontrou, recorremos
à História da cidade tal como é contada no site da prefeitura1, uma História
oficial, por assim dizer. Procedemos assim em todas as cidades por três
1
Disp em: http://www.propria.se.gov.br/ - Acesso em 20/08/2010
[347]
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motivos: primeiro que nossa meta neste trabalho não são as Histórias das
cidades, mas, sim, a visita do Imperador em si, de modo que um
aprofundamento nas questões históricas municipais tornaria o trabalho por
demais extenso.
Em segundo lugar, a escolha das histórias extraídas dos sites das
prefeituras proporciona verificar a forma como o poder público e, por tabela, o
povo, valoriza (ou não) a História de suas próprias cidades.
Por fim, em terceiro, nos permite verificar o grau de importância que é dado
pelos poderes públicos municipais à visita do Imperador D. Pedro II às suas
cidades, se o fato é explorado de alguma forma ou se é esquecido.
Segundo nossa fonte, os primeiros contatos do homem branco com os
indígenas na região de Propriá deu-se através dos franceses que faziam trocas
comerciais. Já no século XVII, por conta de uma missão jesuíta de catequese
enviada aos índios chefiados pelo cacique Pacatuba, os contatos intensificaramse.
A localização estratégica permitiu um rápido crescimento da povoação
e já em 1718 a localidade é elevada à sede de freguesia com o nome de Santo
Antônio do Urubu de Baixo, ao ser desmembrada de Vila Nova, e em 18021
sobe à categoria de vila englobando o território de várias das cidades ribeirinhas
atuais.
Em 1821, quando perde a maior parte do território para a nova
freguesia de São Pedro do Porto da Folha, já temos um novo nome: Santo
Antônio de Propriá. Em 1866 a vila chega à classificação de cidade.
No site da prefeitura, acessado em Agosto de 2010, não havia, na seção
destinada à História da cidade, qualquer referência à passagem do Imperador
D. Pedro II por lá, o que demonstra que o Poder Público não a considera
importante a ponto de figurar como informação. Esta ausência ocorre apesar de
1
O ano de 1802 é a data informada ao Imperador como sendo a de fundação da cidade.
[348]
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constar o fato de que a cidade recebeu a nomeação de um Barão, conforme se
pode ver a seguir:
José da Trindade Prado - agraciado com o título (Dec 14.03.1860 ) de
Barão de Propriá. Filho do Capitão-Mor José da Trindade Pimentel e de Maria
Francisca de Menezes. Nasceu em 1804, na Freguesia de Santo Amaro de
Brotas-SE e faleceu a 25.06.1875 no Engenho Várzea Grande, hoje usina Santa
Clara. Deputado, Vice-presidente do Sergipe, exercendo o governo cinco
vezes1.
Como vemos, nem na informação sobre a nomeação de um Barão o nome de
D. Pedro II surge na História oficial de Propriá apresentada em seu site. Tal
informação será encontrada apenas no breve resumo da História da cidade que
encontra-se no endereço eletrônico da Câmara Municipal2. Neste caso, porém,
surge como um dos destaques: “Chegada da comitiva do Imperador D. Pedro
II, em 16 de outubro de 1859;”.
Retornando à comitiva imperial, o desembarque se dá em uma ponte
especialmente preparada, o que nos faz pensar que Propriá, assim como
Aracaju, também teve a sua Ponte do Imperador, embora não conste que tenha
sido construída especialmente para ocasião.
O Presidente da Câmara entrega ao visitante uma chave de prata com
laço de fita verde. O Imperador é recebido por autoridades civis, religiosas,
militares, irmandades, pela multidão e pela guarda de honra, além de duas alas
do Batalhão da Guarda Nacional, postados desde o porto até a matriz, descrita
como “...bella e elegante Matriz com duas elevadas torres...” (SANTOS. 1860.
pg. 160), para onde a comitiva se dirige.
1
Disp em: http://formaecor.com.br/wc2b/_download_baixa.php?sa=1&lay=N&cod=4 - Acesso
em 20/08/2010
2
Disp em: http://www.camaradepropria.com.br/pagina.php?sa=1&tit=Conhe%E7a%20Propri%E1
- Acesso em 03/06/2011
[349]
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Após a cerimônia religiosa, D. Pedro II visita as aulas de meninos e
meninas e a aula de latim, considerando os professores despreparados,
conforme anota em seu diário: “...e o professor julgo-o pouco apto.”,
“...parecendo-me a professora sofrível...”, “O professor parece-me muito
medíocre e a aula é inteiramente inútil.”. (LACOMBE. 2003. pg 115).
Sua Majestade visita ainda a Igreja do Rosário, que considera pobre, e a
casa da Câmara, onde é informado que Propriá fora criada em 1802.
Dirigindo-se à casa especialmente preparada para a visita, que pertencia
ao Juiz de Direito Dr. Hugolino Aires de Freitas Albuquerque, o Imperador
almoça, concede audiências e às 14hs parte rumo a Porto Real de Colégio
deixando na cidade 50 mil réis para ajudar a compra da alforria de uma escrava
e 400 mil réis para doações de caridade.
Com a partida do Imperador, o Presidente Galvão prepara o retorno a
Aracaju, onde vai inspecionar as obras que determinara antes da vinda ao São
Francisco, optando por não seguir até o próximo povoamento sergipano
visitado por D. Pedro II.
Em nossas andanças por Propriá, localizamos 3 lugares de memória da
passagem de D. Pedro II por lá. A Igreja Matriz, a Igreja do Rosário e o Paço
Imperial, casa do Dr. Hugolino Aires de Freitas Albuquerque, situada na frente
da Matriz, e que em agosto de 2010 abrigava uma lojinha de artesanato.
Defronte à casa, na praça em frente à Matriz, avistamos um obelisco
erguido pelo ex-Prefeito Pedro Chaves em 1952, para comemorar os 150 anos
da cidade. Descobrimos que o monumento abriga uma placa recente,
comemorativa dos 150 anos da vinda de D. Pedro II, completados em 2009,
que foi inaugurada em presença do Príncipe de Orleans e Bragança, que refazia
a viagem de seu ilustre antepassado pelo Rio São Francisco.
Apesar da recente passagem de um dos familiares de D. Pedro II pela
cidade, porém, o desconhecimento da visita é relativamente grande.
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Entrevistamos 39 alunos com idade média de 13 anos. Quando
perguntados sobre a pessoa mais importante a visitar sua cidade em todos os
tempos, 19 (48,72%) responderam que foi o Imperador, 6 (15,38%) que foi o
Governador, 2 (5,13%) apontaram o Presidente e 09 (23,08%) indicaram
Outros, Roberto Carlos entre estes.
Dentre os alunos, 22 (56,41%) acertaram o cargo de D. Pedro II,
Imperador, enquanto 3 (7,69%) disseram-no Rei, 4 (10,26%) o classificaram de
Presidente e nada menos que 10 (25,64%) responderam que era Papa.
Sobre o ano da visita, 17 (43,59%) acertaram escolhendo 1859,
enquanto 11 (28,21%) optaram por 1860, 3 (7,69%) optaram por 2009, talvez
confundindo-se com a visita do Príncipe de Orleans e Bragança e 8 (20,51%)
marcaram o ano 2000.
Perguntados onde obtiveram o conhecimento sobre a visita do
Imperador, 26 (66,67%) responderam que estava sendo naquele momento, na
escola, 3 (7,69%) que foi em livros, 4 (10,26%) indicaram a TV e 6 (15,38%)
afirmaram ter sido na rua. Notamos a ausência de alunos que receberam a
informação em casa, o que demonstra que as gerações anteriores também não
estão informadas ou não estão considerando importante retransmitir a seus
filhos e netos o conhecimento da visita.
A grande maioria, contudo, 34 (87,18%) declararam-se orgulhosos com
a passagem do monarca por Propriá, enquanto 5 (12,82%) disseram não ligar
para o fato.
Por fim, quanto à importância que atribuem à visita, 29 (74,36%)
assinalaram a visita como “Muito Importante”, 5 (12,82%) como de “Média
Importância, 3 (7,69%) como de “Pouca Importância” e apenas 2 (5,13%) não
viram “Nenhuma Importância” na passagem de D. Pedro II por Propriá.
[351]
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CURRAL DE PEDRA - GARARU
Às 101/2 horas fui ao Curral de Pedra, vila de recente
criação[...]. É povoação muito pequena com capela
decente... - D. Pedro II (LACOMBE, 2003. p. 120)
A história de Gararu (Curral de Pedras), disponibilizada no site de sua
Prefeitura, nos conta que a cidade foi criada como um distrito em 16/04/1875 e
elevado à categoria de vila em 15/03/1877, mesma ocasião da criação do
município de Gararu, desmembrado de Ilha do Ouro, mais tarde Porto da
Folha.
O nome é modificado para Vila do Gararu em 18/04/1888 e “A leitura
dessa Resolução permite concluir que a referida comarca foi criada com nome
do cacique Gararu, mas o município ainda era conhecido por Curral de
Pedras...”1
Não há qualquer referência à passagem de D. Pedro II e não é para
menos. Não fosse pela disciplina do Imperador em anotar suas paradas e
impressões sobre cada um dos lugares visitados, jamais saberiamos da passagem
do Imperador por aquele povoado. O livro Viagem Imperial não cita a visita
em nenhum momento, em que pese nos parecer que na comitiva que chega ao
povoado, insinuar o Imperador, em seu diário, ter a companhia do Juiz de
Propriá:
Trabalhava o juri, tendo sempre vindo o juiz de direito,
Hugolino de Freitas e Albuquerque, que precisou de minha
insinuação para fazer uma viagem de rio de 5 léguas a fim
de presidir a um juri, que tem de julgar um só processo.
(LACOMBE. 2003. pg. 121)
1
Disp em: http://www.gararu.se.gov.br/portal1/municipio/historia.asp?iIdMun=100128022 Acesso em 31/08/2010
[352]
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Desembarcando, D. Pedro II passa pela capela, que considera decente
e vai à aula de meninos onde nota atraso nas leituras e contas.
A presença é breve, sendo digno de nota que o imperador avista os sertanejos
em seus trajes típicos, todos de couro: “No Curral de Pedra vi uns poucos de
sertanejos com seus trajes e chapéu todo de couro.” (LACOMBE, 2003. pg.
121). Certamente referia-se aos vaqueiros, que ainda hoje usam os seus gibões e
demais acessórios para lidar com o gado dentro da caatinga.
Curioso, ainda, é o encontro com um velho que “disse que tendo
chegado o homem do mundo este estava para acabar [?], o que não sentia
muito por ser velho.” (LACOMBE, 2003. pg. 121).
Após curto período na vila, o Imperador parte, anotando em seu diário a
passagem por Porto da Folha, que também não consta no livro “Viagem
Imperial”, com a exceção do trecho em que resume as localidades visitadas:
Cidades 5 – Aracaju (Capital), Maroim, Larangeiras, S.
Christovão, e Estancia.
Villas 4 – Propriá, Villa-Nova, Porto da Folha, e Itaporanga.
Povoado 1 – Barra dos Coqueiros.
(SANTOS. 1860. pg. 143)
Em nossas andanças seguindo os passos de D. Pedro II, também fomos
a Gararu e pudemos caminhar por sua orla de vista estonteante, por suas ruas
limpas e pitorescas.
Notamos que a Matriz, dedicada ao Bom Jesus dos Aflitos, traz
inscrição com a data de 1910, o que dá a entender que foi construída mais de
50 anos após a passagem do Imperador, porém, segundo o site da Prefeitura1,
1
Disp em: http://www.gararu.se.gov.br/portal1/municipio/historia.asp?iIdMun=100128022 Acesso em 31/08/2010
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a capela, a qual ela substituiu, foi erguida no tempo do Marques de Pombal
(séc. XVIII), quando sitiantes do morgado de Porto da Folha ocuparam a
região. Portanto, a atual matriz foi visitada por D. Pedro II quando ainda era
uma simples capela, antes da obra de 1910, que a deixou com a aparência atual.
Em Gararu entrevistamos 39 estudantes com idade média de 13 anos.
Quando perguntados sobre a pessoa mais importante a visitar sua cidade em
todos os tempos, apenas 14 (35,9%) responderam que foi o Imperador. Do
total apenas 1 (2,56%) disse ter sido o Presidente, 5 (12,82%) apontaram o
Governador e 15 (38,46%) optaram por outros nomes, a esmagadora maioria
destes lembrando do Cacique Gararu, patrono da cidade. Os restantes não
indicaram ninguém.
Dentre os entrevistados, 30 (76,92%) acertaram o cargo de D. Pedro II,
Imperador, enquanto 1 (2,56%) o classificou de Presidente, mesma quantidade
que optou por Governador, 2 (5,13%) responderam que era rei e 4 (10,26%)
disseram-no papa. Sobre o ano da visita, 21 (53,85%) acertaram escolhendo
1859, enquanto 11 (28,21%) optando por 1860 e 2 (5,13%) marcaram o ano
2010 e 5 (12,82%) marcaram o ano 2000.
Perguntados onde obtiveram o conhecimento sobre a visita do
Imperador, 23 (58,97%) responderam que fora na escola, 6 (15,38%) que foi
em livros e 4 (10,26%) que foi na TV, mesmo número que optou pela Rua
como local de conhecimento sobre a visita, para 2 (5,13%) dos entrevistados
esse conhecimento foi adquirido em casa.
A maioria esmagadora, 36 (92,31%) declarou-se orgulhosa com a
passagem do monarca por Gararu, enquanto apenas 3 (7,69%) disseram não
ligar para o fato.
Por fim, a importância que atribuem à visita dividiu as opiniões: 14
(35,9%) assinalaram a visita como “Muito Importante”, 8 (20,51%) como de
“Média Importância, 6 (15,38%) como de “Pouca Importância” e 11 (28,21%)
não viram “Nenhuma Importância” na passagem de D. Pedro II por Gararu.
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PORTO DA FOLHA – ILHA DO OURO
1 menos 7' – Passamos pelo porto da Folha, em Sergipe... D. Pedro II
(LACOMBE, 2003. p. 121)
Em Porto da Folha D. Pedro II não visitou a atual área urbana da
cidade. Seu contato com a região deu-se apenas na Ilha de São Pedro, onde
encontrou-se com os índios que ali habitavam.
O site da Prefeitura, na seção Histórico1, não faz qualquer referência à
visita. A tradição oral dos Xocó nos diz que, atendendo à reclamação dos índios
e comovido com a dança destes, o soberano lhes concedeu a posse das terras,
conforme nos relata o texto de Avelar Araujo Santos Junior2:
Os índios levaram reivindicações ao Imperador, queixando-se da
violência e da expropriação de suas terras pelos fazendeiros. Segundo a tradição
oral, o soberano teria confirmado a doação da terra aos índios, autorizando a
ida de um grupo à Bahia para buscar os devidos documentos. Ao retornarem,
os índios se depararam com o cel. João Porfírio, que já estava ciente de toda a
situação. O posseiro ofereceu bebida e comida aos viajantes e, aproveitando-se
da embriaguez e do descuido dos índios, roubou-lhes os documentos. E mais
uma vez eles ficavam impossibilitados de reaverem suas terras.3
Em seu texto, Araujo descreve ainda o relato do Cacique Bá, onde o
Imperador, hospedado na aldeia, lhes concede a posse do terreno:
1
Disp em: http://www.portodafolha.se.gov.br/portal1/municipio/historia.asp?iIdMun=100128055
- Acesso em 09/06/2011
2
Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Sergipe, Mestre em “Estudios Ameríndios”
pela Universidad Complutense de Madrid.
3
Avelar Araujo Santos Junior, “O Povo Xocó”, Disp. em:
http://www.sulanca.com/pesquisa.asp?pag=17 – Acesso em 07/06/11
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Dom Pedro II foi quem demarcou. Ele disse que a gente
tem o direito a esse tanto de terra. Ele passou um tempo lá
dentro da Ilha, lá no “Império”. Alí ele ficou hospedado, aí
umas horas ele viu os caboclos cantar, os nossos parentes, aí
ele perguntou a outra pessoa se ali tinha índio; aí outro
cidadão disse que sim. Aí ele mandou chamar: “vocês,
cantem e dancem”; aí os índios cantaram, ele ficou
emocionado, ficou encantado, e disse: “de hoje em diante,
vocês têm uma légua em quadra de terra, vão pegar os
documentos lá na Bahia”. (Cacique Bá, Xokó, 21 anos)1
Os registros da passagem do monarca pela ilha são escassos. Pelo que
consta, Luis Alvares Santos, narrador da viagem, não registrou nada dessa visita
e sequer acreditamos que tenha acompanhado o Imperador até o local, embora
o resumo da viagem cite a ida à Vila: “Villas 4 – Propriá, Villa-Nova, Porto da
Folha, e Itaporanga.” (SANTOS. 1860. pg. 143)
O Relatório enviado à Assembléia Provincial pelo Presidente Galvão
também faz apenas uma breve referência ao acontecimento2 e o diário de D.
Pedro II, que destacava-se por registrar todos os momentos, traz apenas o
trecho do qual reproduzimos parte na citação que abre este tópico.
No livro de Lacombe consta, ainda, citação (inserida no resumo da
viagem à Bahia) da passagem, ocorrida no dia 17/10/1859 quando “Às 61/4
passou pelo povoado de São Pedro, aldeia de índios, situada na ilha de mesmo
nome.” (pg. 251). Este dia é o mesmo da passagem por Curral de Pedra
1
Avelar Araujo Santos Junior, “O Povo Xocó”, Disp. em:
http://www.sulanca.com/pesquisa.asp?pag=17 – Acesso em 07/06/11
2
“Em sua viagem à Cachoeira de Paulo Affonso, Sua Majestade o Imperador se dignou tocar em
Villa Nova e Propriá nos dias 15 e 16 de Outubro, bem como no Porto da Folha” (pg. 4)
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(Gararu), de onde o Imperador partiu às 12hs. Às 20hs, segundo
Lacombe1(pg.251), o navio chega à Pão de Açúcar.
Ora, se a comitiva passou na aldeia às 61/4 (18:15hs) e às 20hs já estava em Pão
de Açúcar, localizada há considerável distância de navegação contra a
correnteza do rio, o contato com os índios foi brevíssimo, tempo suficiente
apenas para uma caminhada pelo povoado e uma parada breve na referida
“Casa do Império” onde teria sido ouvida e acatada a reivindicação.
Essa disputa de terras entre índios e fazendeiros já vinha de longos anos
e é relatada na obra de Beatriz Góis Dantas e Dalmo Dallari2 onde nos
informam que:
...persiste a ocupação das terras dos índios e quando, em
1859, D. Pedro II visita a aldeia, eles se queixam que os
“portugueses” lhes aproveitam as terras, argumentando o
Frei Doroteu que como os índios são indolentes e como
não plantam, dá a terra dos pobres...
(DANTAS, DALLARI, 1980. pg. 16)
A mesma obra mostra a resposta à reivindicação indígena:
Oficio da Repartição geral de terras Públicas do Ministério
dos Negócios do Império ao Presidente da Província de
Sergipe. 21 de Abril de 1860, APES – 426
1
“Às 8 horas cheou o Pirajá à vila do Pão de Açúcar, onde S.M. desembarcou, estando a vila
toda iluminada, e o povo apinhado na praia a dar vivas.”
2
DANTAS, Beatriz Góis; DALLARI, Dalmo de Abreu. Terra dos índios xocó: estudos e
documentos. SP, Comissão Pró-Índio, 1980, p. 186
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Sua Majestade o Imperador Houve por bem indeferir o requerimento,
em que o Índio Lourenço Francisco de Souza pede se lhe confira o título de
Capitão da missão de São Pedro do Rio de São Francisco, e se lhe garanta a
posse das suas terras, em que diz achar-se ameaçado.
O que comunico a V.Exa. em resposta ao seu ofício de 27 do passado,
e para que o faça constar ao suplicante. (DANTAS, DALLARI, 1980. pg. 35)
Anos depois, no final da década de 80 do século XIX, alegada a
extinção do aldeamento indígena, as terras foram entregues à Câmara
Municipal que as colocou em aforamento. Apenas várias décadas depois a luta
dos índios teria um fim.
Assim, partindo a frota da região de Porto da Folha em direção a
Piranhas, onde desembarcaram para seguir a cavalo até a Cachoeira de Paulo
Afonso, terminamos a etapa do Rio São Francisco da viagem. Em seu retorno
de Paulo Afonso D. Pedro II vai prosseguir em suas viagens por outros estados,
retornando apenas em Janeiro do ano seguinte a Sergipe, quando, no dia 11,
desembarca em Aracaju, capital em construção do Estado.
Essa visita à nova capital de Sergipe e à velha (São Cristóvão), serão
tema de outro artigo, assim como a ida do Imperador ao Vale do Cotinguiba, o
cinturão do açúcar do Estado naqueles anos.
Após estas pesquisas, visitas e entrevistas nas cidades sergipanas da
margem do Velho Chico, ficamos com a certeza de que a passagem do
Imperador D. Pedro II foi o fato mais importante da História destas localidades
pois jamais ocorreu, outra vez, que alguém de tamanha importância política e
poder tenha por ali passado, mesmo que Presidentes da República.
Considerando as dificuldades de deslocamento da época, as
circunstâncias da viagem e a aura de poder e simbolismo que cercavam a figura
do Imperador, foi um fato extraordinário que balançou as estruturas de vida
dos ribeirinhos.
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Imagine o leitor um povoado como Vila Nova, com menos de 2000
habitantes, com seus moradores na margem do rio, observando aquela frota de
grandes navios ancorados na margem oposta e assistindo, bem ali, o
desembarque daquele homem de 1,90m de altura, seguido por uma comitiva
de pessoas distintas, todos em seus vistosos uniformes, caminhando por suas
ruas, visitando suas igrejas e conversando com seus filhos.
Foi um acontecimento único e que, certamente, jamais apagou-se da
memória dos que puderam testemunhá-lo. Nos dias atuais, porém, esse
momento ímpar das Histórias destas cidades está apagado e não é devidamente
ensinado nas escolas.
Seu potencial de incentivar o amor cívico, o interesse pela própria
cidade e até mesmo o turismo, não é aproveitado. O que é algo a ser lamentado
profundamente em um momento em que se discute tanto a educação como
garantia de cidadania e de identidade cultural.
Será que nas outras cidades verificamos o mesmo? A conferir!
OBSERVAÇÃO: Nas páginas a seguir, fotos recentes (2010) dos locais
visitados pelo Imperador nas cidades deste artigo e que ainda existem.
Lugares de memória da passagem de D. Pedro II por Vila Nova (Neópolis)
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Lugares de memória da passagem de D. Pedro II por Propriá
Lugares de memória da passagem de D. Pedro II por Curral de Pedra (Gararu)
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