cONfINtEA I

Transcrição

cONfINtEA I
REPORTAGEM
Podemos
sonhar
ao ler
Texto António Simões do Paço # Fotografias Paulo Figueiredo
“Novas Oportunidades a Ler+” é um projecto do Plano Nacional
de Leitura e da Agência Nacional para a Qualificação destinado
a apoiar o desenvolvimento do gosto pela leitura junto do
público adulto dos Centros Novas Oportunidades. Fomos a
Alcáçovas ver como funciona no terreno esta iniciatiiva.
AO LONGO DA VIDA 1
REPORTAGEM
«
P
Francisca Valério, Alexandra Correia e Elsa Branco.
odemos sonhar ao ler, imaginamos as situa­­ções contadas, os dra­mas
vividos, os acon­­te­cimentos, as mudan­ças», diz Marisa Ber­­rucho, de 27
anos, recepcionista no Cen­­tro Paro­quial de Torre de Coelheiros, no
concelho de Évora. Acrescenta Marisa que «faço parte do grupo que está
a fazer a fazer o processo de RVCC, em São Barto­lomeu do Outeiro»,
uma aldeia com pouco mais de meio milhar de habitantes no concelho
alentejano de Portel. «Com o processo de RVCC pesquisei imenso, li muitas páginas
na Internet», diz Marisa, que quer «ler bastante, para melhorar a minha escrita, a
minha pronúncia, a minha cultura, as minhas ideias…» O último livro que leu foi
O Crepúsculo, de Stephenie Meyer (Gailivro). Estou a pensar comprar Lua Nova», do
mesmo autor.
João Peralta, de 35 anos, é proprietário
de uma papelaria e na sua família sem­pre
se leu. «A minha mãe adora livros, e tem
uma autêntica biblioteca em casa. A última vez que os contámos já tinha mais de
cinco mil livros.» João reside em Aguiar,
uma freguesia de 700 habitantes no concelho de Viana do Alentejo, e aí frequentou o programa de validação do 12.º ano
em 2009, onde tomou con­tac­to com o
programa “Novas Opor­tu­nidades a Ler+”.
«O facto de estar ins­crito nas Novas Oportunidades», diz ele, «levou a que utilizasse
cada vez mais a Internet como meio de
pesquisa, logo criou em mim um novo
hábito de leitura. Actualmente, quando
preciso de saber alguma coisa ou fazer
algum trabalho recorro a este meio.» O
2 APRENDER
último livro que leu foi Margarida na Aus­
trália, de Margarida Vila-Nova (Guerra e
Paz): «Fascinou-me. Relatava uma viagem
à Austrália, em forma de diário, escrito de
uma forma simplesmente viciante, talvez
por ser um dos meus grandes sonhos viajar até lá.»
«Hoje não passo sem um livro
para ler»
«Quando iniciei o processo de
validação do 9.º ano, os meus hábitos
de leitura resumiam-se a apenas algu­
mas partes dos jornais desportivos.
Con­fesso que nunca me tinha ocorrido
ler um livro», admite logo de entrada
Paulo Manzoupo, de 42 anos, vereador
da Câmara Municipal de Viana do
Alentejo desde 11 de Outubro de 2009.
E prossegue: «Quando me informaram
de que para validar o 9.º ano devia ler
um livro, pensei que ia ser uma grande
“seca” e fui adiando essa tarefa, até que,
quando faltava pouco mais de uma
sema­na para entregar os trabalhos, deci­
di iniciar a leitura.» Como não sabia
por onde escolher, pediu à sobrinha
que lhe indicasse um livro. Ela trouxelhe A Saga de um Pensador, de Augusto
Cury (Pergaminho). «Nesse serão iniciei
a leitura.» Decidiu ler uma hora por dia,
«para não se tornar muito maçador», mas
deixou-se «envolver completamente pela
história» e nos «dias que se seguiram,
em vez de ler apenas uma hora, lia três
a quatro horas». O que pensava ser um
passatempo maçador «tornou-se um
hábito que me dava muito prazer, e
passados cinco dias do início da leitura
do livro já o estava a terminar».
«Assim que surgiu a oportunidade»,
prossegue Paulo, «inscrevi-me no pro­
grama de validação do 12.º ano. Senti
que não queria ficar por ali. Sentia muita
confiança em mim para ler e escrever
sobre qualquer coisa.» «O processo de
validação do 12.º ano foi bem mais
difícil, muito exigente a nível de escrita
e leitura. Isso levou-me a começar a ler
outro tipo de livros, nomeadamente
biografias. Das que li, a que mais gostei
foi a de Eric Clapton. Já o conhecia bem
como cantor, mas foi muito interessante
ficar a conhecer a história da sua vida.»
Hoje, remata, «não passo sem ter um
livro para ler».
O que há de comum entre Marisa
Ber­rucho, João Peralta e Paulo Man­
zou­po, além de viveram os três em
pequenas localidades do Alentejo, é
terem frequentado o processo de reco­
nhe­cimento, validação e certificação de
competências (RVCC) num centro do
programa Novas Oportunidades, e nesse
quadro terem entrado em contacto com
a iniciativa “Novas Oportunidades a
Ler+”, um projecto do Plano Nacional
de Leitura (PNL) e da Agência Nacional
para a Qualificação (ANQ) destinado,
como se diz numa brochura explicativa,
«a apoiar o desenvolvimento do gosto
pela leitura junto do público adulto
dos Centros Novas Oportunidades e,
através destes, junto dos seus círculos de
familiares e de amigos».
Para sabermos melhor como fun­
cio­nam no terreno as “Novas Opor­tu­
nidades a Ler+”, a Aprender ao Longo da
Vida deslocou-se à vila alentejana de
Alcáçovas para encontrar-se com ele­
men­tos da associação Terras Dentro,
aqui sedeada, cujos formadores pro­
cu­ram criar hábitos de leitura nos fre­
quentadores dos cursos das Novas
Oportunidades e de Educação e For­
ma­ção de Adultos (EFA) em diversas
loca­lidades do Alentejo e com for­man­
dos dos cursos do CNO. Eis algo do
que ficámos a saber à conversa com
Alexandra Correia e Elsa Branco, da
direcção da associação, Francisca Valé­
rio, profissional de RVC, e Fernando
Moital, animador cultural.
Ler em comum, debater
«Os formandos dos cursos das Novas
Oportunidades», afirma Francisca Valé­­­
rio, profissional de RVC, «devem esco­
lher um livro e lê-lo. Temos umas 200
pessoas em processos de RVCC – no
concelho de Viana do Alentejo (Alcá­
ço­vas), mas também nos concelhos
de Alvito, Évora (algumas freguesias),
Mon­temor-o-Novo, Portel e Vidigueira».
Além do livro, diz esta socióloga de 42
anos, mestre em Ciências da Educação,
natural de Portel e a viver em Beja, «lêem
em comum artigos, notícias, lendas …
e debatem-nos em grupos que oscilam
entre as seis e as 14 pessoas. Procuramos
que os grupos não ultrapassem as 15
pes­soas. Ao intervirmos nos debates
temos de ser não só professores, como
psicólogos, confidentes…»
«Também estamos a promover o gosto
pela leitura entre os formandos dos cursos
EFA. Temos actualmente 78 formandos
nos concelhos de Viana, Portel, Beja,
Vidi­­gueira, Montemor e Évora.»
«Numa zona de grande dispersão
geo­gráfica, como é o Alentejo», afirma
Alexandra Correia, da direcção da Terras
Dentro, «temos por estratégia estabelecer
parcerias com instituições locais em toda
a nossa zona de intervenção. Assim,
para podermos chegar aos adultos que
pretendam certificar o 4.º, 6.º ou 9.º ano
de escolaridade, e também o secundário,
partimos para um serviço itinerante
onde a relação com os parceiros é fun­
da­mental para os objectivos a que nos
propomos: contribuir para a valorização
pessoal e social de uma camada popu­la­
cional pouco escolarizada e para o desen­
volvimento do capital humano de uma
região deprimida e fortemente marcada
pelo envelhecimento». Os parceiros são
autarquias, escolas, bibliotecas, asso­cia­
ções de pais e outras. «Como nós, das
Terras Dentro, nos deslocamos muito»,
diz esta socióloga, «levamos livros con­
nosco. E emprestamo-los.»
Alexandra Correia nota que biblio­
tecas como a de Beja «têm grupos de
leitura e estão muito activos», e a de Évora
procura seguir pelo mesmo caminho,
mas lamenta que as bibliotecas fechem
às 17h30 e não abram aos fins-desema­na. «Estamos a tentar que abram
noutras alturas para que as pessoas que
trabalham as possam frequentar», diz.
«Embora seja necessário criar formas de
as utilizar, para que uma vez abertas não
fiquem às moscas.»
A Terras Dentro – Associação para o
Desenvolvimento Integrado, nasceu em
1991 em Alcáçovas, concelho de Viana
do Alentejo, onde tem a sua sede. O
objectivo inicial era apoiar e estimular
localmente o desenvolvimento integra­do
do mundo rural, mas depressa se esten­
deu a outros, como a criação do Centro
Uma biblioteca
numa cabine
telefónica
Uma aldeia de 800 habitantes no
Somerset (Sudoeste de Inglaterra),
Westbury-sub-Men­dip, decidiu salvar a
sua cabine tele­fó­nica vermelha, modelo
de 1935, e ao mesmo tempo criar uma
biblioteca que substituísse a falta da
biblioteca itinerante que deixou de visitar
a aldeia.
A cabine telefónica foi comprada pelo
parish council (equivalente a uma junta
de freguesia) de Westbury-sub-Mendip
à British Telecom por 1 libra, e os mora­
do­res trataram de instalar prateleiras
e guarnecê-las com livros usados, que
assim vão tro­can­do com os vizinhos. A
biblioteca tornou-se um grande sucesso,
noticiado pela impren­sa nacional, e
ofe­re­ce mais de 100 opções que vão
desde livros de receitas aos clássicos, e
incluindo também DVD e CD.
Apesar de o modelo K6 da tradicional
cabine telefónica vermelha datar já de
1935, esta pequena biblioteca é bastante
moderna: está aberta 365 dias por ano,
24 horas por dia, e mantém-se iluminada
durante a noite para os leitores mais noc­
tívagos. A fim de manter a selecção de
títulos fresca, há uma verificação perió­
dica para determinar que títulos são real­
mente procurados. Os indesejados pelos
habitantes locais são envia­dos para uma
loja de uma instituição caritativa. (ASP)
AO LONGO DA VIDA 3
REPORTAGEM
Novas Oportunidades Terras Den­tro e
a sua participação no projecto “Novas
Oportunidades a Ler+”, o tema que aqui
nos ocupa. Eis algumas das iniciativas
que se propõem realizar neste âmbito:
– organizar uma biblioteca itinerante
(ligada ao Centro de Documentação
da Terras Dentro, que funciona na
sede da associação, em Alcáçovas)
que permita o acesso aos livros e
revistas em todos os locais onde o
CNO realiza itinerâncias;
– fazer um boletim de sugestões de
leitura por área de competência
chave;
– fazer uma recolha e publicar um livro
de poemas dos adultos do CNO (a
Terras Dentro, entre outras iniciativas
editoriais, já publicou, em 1996, uma
antologia de poesia tradicional do
Alentejo, intitulada Em cada casa uma
porta, em cada porta um postigo);
– dinamizar o blogue do Centro, com
maior envolvimento dos adultos do
CNO.
– editar um boletim mensal do CNO
com notícias, artigos e trabalhos de
adultos, sugestões de leituras, etc.
– sessão «Os Pais gostam de ler histó­
rias», a dinamizar na feira do livro da
Quinzena Cultural de Alcáçovas;
– convidar o Teatro Azul a apresentar
a sua peça de teatro sobre a imple­
men­tação da República, integrada
nas comemorações do Centenário da
Repú­blica, no Cineteatro Vianense,
no dia 7 de Outubro de 2010.
O Plano Nacional de Leitura
«é desesperadamente necessário»
Num documento intitulado A Dimen­
são Económica da Literacia em Portugal:
Uma Análise, editado pelo Gabinete de
Estatística e Planeamento da Educação,
do Ministério da Educação, afirma-se
que «os resultados documentam clara­
mente o baixo nível médio de com­pe­
tências de literacia da população por­
tuguesa» (terceiro a contar do fim, numa
lista de 22 países membros da OCDE).
«O Plano Nacional de Leitura», pros­
se­gue esse documento, «lançado em
Junho de 2006 pelo Governo por­tu­­­­­­­­­­
guês para promover a leitura nas esco­
las, nas bibliotecas públicas e nou­tras
organizações sociais, é um elemento cru­
cial do esforço nacional para melhorar
4 APRENDER
Hélder Silva e Fortunata Monteiro.
«Quando era jovem»,
diz Fortunata, hoje com
46 anos, «li bas­tante:
Eça de Queirós, Júlio Dinis…
Li também Os Miseráveis,
de Victor Hugo».
Leu também um livro
sobre Os Segredos
da Atlântida.
a oferta de competências de literacia no
País e, por esse motivo, deve beneficiar de
apoio político e financeiro sustentado. O
Plano Nacio­nal de Leitura poderá vir ter,
opor­tu­namente, um impacto benéfico,
mas precisa de ser complementado por
um esforço concertado que também
melhore a qualidade do ensino inicial
e desenvolva um sistema eficaz de edu­­­
ca­­ção e de formação de adultos com
incen­tivos adequados para atrair os
mui­tos portugueses adultos que per­de­­
ram oportunidades educativas em fases
anteriores da sua vida. Melhorar a oferta
de competências de literacia é apenas
uma parte, embora importante, desta
equa­ção. A outra é a melhoria da pro­cura
de competências de literacia na eco­no­
mia e na sociedade portuguesas. O reco­
nhecimento, a validação e a remu­neração
das competências de literacia no mercado
de trabalho constituem, por isso, um
enorme desafio para o País.» (p. 10)
Sem algo como o Plano Nacional de
Leitura, conclui o documento citado,
que «é desesperadamente necessário» (p.
121), «Portugal terá grandes problemas
em manter a sua competitividade nos
mercados europeu e mundial e terá
cada vez mais dificuldades em atrair
investimento directo estrangeiro». E
reforça: «se Portugal não obtiver um
aumento rápido e substantivo no nível
de literacia funcional de toda a sua
população, o País terá dificuldades em
realizar os seus objectivos económicos
e sociais, e só transferências maciças da
União Europeia evitarão um declínio
relativo do seu nível de vida».
Levar a leitura a todos os recantos do
País não é fácil. Hélder Silva e Fortunata
Monteiro, um casal de agricultores com
quem falámos em Alcáçovas, fre­­quen­
tam o CNO local, mas afirmam que
lhes «falta o tempo» para ler. Hélder
confessa que lê pouco. No curso, leu
«um artigo da Dica da Semana sobre
carros eléctricos» e escreveu sobre o que
leu. De resto, as suas leituras ficam-se
pelos manuais de instruções das máqui­
nas agrícolas e pelos rótulos dos fitofár­macos. «Quando era jovem», diz
For­tunata, hoje com 46 anos, «li bas­
tante: Eça de Queirós, Júlio Dinis… Li
também Os Miseráveis, de Victor Hugo».
Leu também um livro sobre Os Segredos
da Atlântida. «Mas agora tenho menos
vagar», admite com alguma pena. E fala
com orgulho da filha de 12 anos «que
gosta de ler e que eu lhe leia».
Paulo Manzoupo, o vereador de
Via­na do Alentejo, considera que «foi
muito importante o incentivo que os
formadores me deram para ganhar
hábitos de leitura. Hoje não lhe restam
dúvidas de que «a mudança dos meus
hábitos de leitura permitiu-me validar o
12.º ano com relativa facilidade».
«Se hoje consigo desempenhar
melhor as minhas funções e encarar os
novos desafios com maior segurança,
posso agradecê-lo aos formadores que
me acompanharam e me incentivaram a
ler com regularidade», finaliza. n
DOSSIER
Na pátria dos clubes de leitura
campanhas, notícias, projectos e redes,
pesquisa e outros recursos, eventos
e links para outros sítios como o do
Reading For Life.
http://www.readingforlife.org.uk/home/
Neste site pode encontrar:
WikiReadia Uma enciclopédia editável
onde se pode fazer pesquisa sobre boas
práticas de literacia (ler, escrever, falar
e ouvir).
«Que filme, lançado em 1978 e
adaptado de um romance de Agatha
Christie, viu Peter Ustinov pela primeira
vez no papel de Hercule Poirot?
a) Morte no Nilo
b) Morte no Sena
c) Morte no Tamisa.»
Esta é a primeira pergunta de um
questio­nário – um exemplo, colhido no
site inglês Bookbite, de uma actividade
associada à leitura e bastante popular
entre nós: um concurso, no caso sobre
filmes e livros. (A resposta certa é, como
os fãs de Agatha Christie saberão, Morte
no Nilo.)
A «velha» Inglaterra é a pátria dos book
reading clubs, os clubes de leitura, que
envolvem milhares de pessoas por todo
o país e tanto são organizados pelos
vizi­nhos de uma rua como pelas maiores
cadeias nacionais de livrarias. Por isso,
visitámos alguns sites ingleses ligados
à leitura onde se podem colher ideias
– como a do concurso acima referido –,
boas e em quantidade.
http://www.literacytrust.org.uk/
Nos menus do site do National Literacy
Trust encontra informação sobre
Reading Gardens (Jardins de leitura)
É um projecto que o ajuda a encontrar
luga­res de inspiração para ler. Os jardins
públicos são excelentes lugares para ler,
mas aqui também pode encontrar ideias
sobre como arranjar um canto dedicado
à leitura no seu próprio jardim.
Teachers TV É um grande recurso on-line
com programas na TV e on-line. Pode ver
os episódios da Reading for Life sobre
os programas de leitura das escolas e
romances em banda desenhada.
Resources and downloads Uma área de
recursos e downloads.
Projects (Projectos) Dá-lhe hiperligações
(links) e descrições de todas as áreas
especializadas do National Literacy Trust,
abrangendo todas as áreas da leitura,
desde «Converse com o seu bebé» a uma
secção que procura captar a atenção dos
que só se interessam por futebol.
Reading Ideas (Ideias de leitura) São
listas de ideias com instruções passo-apasso, especificamente concebidas para
famílias, adultos, crianças, empresas,
autores, escolas e editoras.
http://www.bookbite.org.uk/
O site Bookbite, como se diz na sua
apresentação, pretende «ajudá-lo a obter
mais da leitura e da escrita».
«Quer tenha sempre o nariz metido
num livro ou se limite a folhear o jornal
local, quer escrever para si signifique
escrever histórias, manter um diário
ou uma simples nota num cartão
de cumprimentos», o site convida as
pessoas a participarem no seu clube de
leitura ou de escrita, em competições,
a fazerem buscas nas suas listas de
livros, dá conselhos sobre como escrever
histórias curtas, oferece ajuda para
investigar a história familiar e social,
sugere listas de livros, incluindo «O Livro
do Mês». E muito mais. (ASP) n
AO LONGO DA VIDA 5
Luís Maria Fernandes Areal
Rothes é doutor em Ciências
pela Faculdade de Psicologia
e Ciências da Educação da
Universidade do Porto. Na
mesma instituição tinha
já concluído, em 1995, o
Mestrado em Ciências de
Educação, Desenvolvimento
e Mudança Social). Em 1991,
obteve na Escola Superior
de Educação do Porto um
Diploma de Estudos Superiores
Especializados em Animação
Comunitária e Educação de
Adultos sendo, desde 1981,
Licenciado em Ensino da
História e Ciências Sociais pela
Universidade do Minho.
É professor adjunto na Escola
Superior de Educação do Porto.
Nesta escola é coordenador da
Área Cientifica de Sociologia
e Animação Comunitária e do
Departamento de Ciências de
Educação.
Tem vários trabalhos
publicados, designadamente
na área de educação e
formação de adultos tendo
participado, com apresentação
de comunicações, em
diversos colóquios, seminários
e conferências. Esteve
igualmente implicado em
diferentes projectos de
intervenção educativa, tendo
colaborado em projectos
nacionais e europeus de
investigação, nos domínios de
educação e da formação.
6 APRENDER
ENTREVISTA
Luís Rothes gosta de se definir como um optimista moderado. Nesta entrevista à
Aprender ao Longo da Vida, ele considera que a massificação da educação de adultos
promovida pela iniciativa Novas Oportunidades é um património conquistado que
deve ser valorizado. Mas não esquece o desafio de articular o que foi feito com outras
áreas de intervenção. E adverte para o risco sério de ficarmos dependentes, quase em
exclusivo, dos programas comunitários.
Luís
Rothes
Entrevista de Rui Seguro # Fotografias de Miguel Baltazar
Vamos valorizar
as competências dos adultos,
mas sempre assumindo
que são insuficientes
AO LONGO DA VIDA 7
Nunca houve um investimento tão grande do Estado na
Educação de Adultos. Quase poderíamos dizer que estamos
numa das primeiras fases de massificação da educação de
adultos. Que pensa desta realidade?
Acho que a quantidade é uma das dimensões da qualidade
de qualquer intervenção política na área da educação, mas não
esgota os critérios que a afirmam. Acolho essa massificação que
agora se verifica, com a iniciativa Novas Oportunidades, com mui­­
to bom grado. Significa que estamos a conseguir den­­si­ficar a inter­
venção neste campo e a conseguir chegar à peque­na fre­gue­sia.
É um património conquistado que deve ser valorizado. Os
desafios mais interessantes são pensar como vamos conseguir,
valorizando aquilo que foi feito, articulá-lo com outras áreas de
intervenção da educação de adultos para que se perca essa
sensação de que há muitas coisas que estão a ser negli­gen­
ciadas, subestimadas. Penso que esse é um desafio futu­ro,
mas parece-me estar perfeitamente ao nosso alcance. Vive­
mos muito um certo pensamento utópico, que é inerente ao
traba­lho na edu­ca­ção de adultos, e às vezes criamos a ideia
de que estamos sempre muito aquém do que seria desejado.
Penso que é positivo pensarmos essa utopia, termo-la sempre
presente, olharmos criticamente aquilo que fazemos; mas
também devemos ver o que aí há de positivo e é suporte para o
tra­balho que é necessário ver realizado. Desse ponto de vista,
tenho uma leitura positiva, estamos melhor agora para vencer
os desafios que temos pela frente do que estávamos antes
dessa massificação.
Como vê a evolução da articulação entre o Reconhecimento
de Competências e os Cursos EFA?
Se partimos daquilo que se desencadeou a partir de 2005,
das Novas Oportunidades, temos alguns problemas e desafios
a vencer, e um deles tem exactamente a ver com essa articulação entre os processos de reconhecimento e validação, e os
percursos formativos em que os adultos estão envolvidos.
Creio que temos de evoluir no sentido de pensar que todos
os adultos têm competências, vamos valorizar essas competências, reconhecê-las, validá-las mas, simultaneamente, temos sempre de assumir que são competências insuficientes,
sempre! Nesse sentido, acho que os percursos em que adultos
estão envolvidos, a partir do contacto que têm com as Novas
Oportunidades, têm de ser encarados como processos em que
há reconhecimento de competências, validação parcial dessas
competências, mas também articuladas com a construção de
projectos de vida que sejam também projectos de formação.
Isso é um desafio importante. Até porque se não o fizermos
nem sequer vamos conseguir avançar na validação, sobretudo
ao nível do secundário. A dificuldade que estamos a verificar
nos processos de reconhecimento e validação no secundário
só são ultrapassáveis com o reforço desta lógica de validação
parcial, e que é complementar com processos de formação.
Quando os Cursos EFA começaram, eram essencialmente
realizados por organizações locais. Neste momento, temos
uma situação completamente diferente.
A questão interessante é pensarmos que essas lógicas de
apropriação são, quer no início do processo quer hoje, plurais.
Tanto no início do processo como agora, encontramos essas várias lógicas de acção presentes no campo de educação e formação e na forma como os Cursos EFA são desenvolvidos. Admi­­to
que o peso destas diferentes lógicas de acção se vá alterando,
creio que nós, muito provavelmente com esta massificação, estaremos a reforçar lógicas que são muito de prevenção social, com
tudo o que isso significa.
Também admito que, em alguns casos, se esteja a alargar
uma certa lógica meritocrática de ver os Cursos EFA. Creio que
essas duas lógicas se estarão neste momento a reforçar e admito também que, com esta massificação, outras lógicas que tinham algum peso se possam estar a diluir, como sejam as mais
associadas ao desenvolvimento local. Mas não quero também
afirmar que se tenham diluído de todo, por exemplo esta lógica
de desenvolvimento local. Parece-me expectável que se estejam a reforçar essas lógicas da prevenção social e essas lógicas
meritocráticas, nalgum caso, isso admito que sim.
Como vê a entrada do mundo escolar nos Cursos EFA?
Parece-me incorrecto pensar que todas as escolas entram da
mesma forma nestas iniciativas. Não entram – em cada escola,
em muitos casos, está presente mais do que uma lógica de acção
que se combina de uma forma às vezes mais tensa, outras mais
fácil. Mas parece-me que não haverá grandes dúvidas de que, com
a entrada da escola, há um certo reforço dessa lógica meritocrática. Esta forma de encarar os Cursos EFA valoriza muito o mérito,
o esforço individual, valoriza muito os conteúdos que devem ser
Os percursos em que adultos estão envolvidos têm de ser
encarados como processos em que há reconhecimento de
competências, validação parcial dessas competências, mas também
articuladas com a construção de projectos de vida que sejam
também projectos de formação.
8 APRENDER
ENTREVISTA
transmitidos, persegue a avaliação de uma forma ainda muito selectiva, encara o formador numa lógica de transmitir saberes que
estão associados à escola; e portanto admito que estas lógicas se
reforcem com o peso crescente das escolas neste campo.
É um processo engraçado porque, apesar de os professores
que estão agora envolvidos nos Cursos EFA serem professores novos, que não viveram os cursos nocturnos de antigamente, notase uma saudade do tempo em que os alunos do ensino nocturno
eram alunos que se esforçavam, que se empenhavam, que estudavam muito, que é um tempo que hoje já não faz nenhum sentido,
porque o tipo de adultos que nessa altura se envolvia nesses processos não tem nada a ver os adultos que hoje se envolvem.
Com tudo isto, com a entrada da escola haverá o refor­ço dessa lógica mais meritocrática mas quero também deixar claro que
conheço muitas escolas em que isso não acontece, em que se
combina com outras lógicas. O facto de a escola entrar não condena que as coisas sejam assim, mas reforça a probabilidade de
isso acontecer.
Mas não corremos o risco de a escola reproduzir
com os adultos um modelo dirigido aos jovens, que já por si,
vem sendo largamente contestado?
Creio que é um problema central neste campo. Não podemos
subestimar o facto de esta expansão do campo da educação e
formação de adultos ter sido muito recente, e o facto de ser muito
recente significa que tivemos de ir buscar entidades, profissionais,
responsáveis cuja formação não foi feita neste campo.
Este campo constrói-se com o recurso a áreas adjacentes,
nuns casos muito viradas para a área social. Estão envolvidas
no campo da educação de adultos entidades, pessoas, pro­fis­
sionais que vieram de uma área de intervenção numa lógi­ca
de prevenção social, e que trazem para este campo lógi­cas e
perspectivas que foram construídas nesse campo como trou­
xe­ram, sobretudo nesta ultima fase, com as Novas Opor­tu­ni­
dades, as lógicas que estão presentes nas escolas.
Isso é uma realidade que nem sei se seria fácil evitar, porque
a expansão rapidíssima que se fez deste campo teve de recorrer
a áreas adjacentes com as lógicas que aí estavam presentes.
O problema que temos é uma falta de tradição consolidada na
educação de adultos, de reflexão construída neste campo, com
lógicas de trabalho consolidadas e isso é indesmentível, não
tenho a menor dúvida que esse risco existe.
Vamos sempre bater nesse ponto fraco. Na sua tese faz
uma análise da evolução da educação de adultos em vários
países e quando chegamos à realidade portuguesa os
resultados são sempre débeis.
Sou um optimista moderado e creio que há, apesar de tudo,
um aspecto interessante no que tem acontecido nos últimos
anos e sobretudo no que aconteceu a partir de 1998, com o
Grupo de Missão e depois com a ANEFA, que é o facto de se
estar a construir um campo profissional com jovens que fizeram
a sua socialização profissional neste campo.
Isto hoje já é uma realidade com muito significado, são pes­
soas que fizeram essa socialização profissional de uma forma
rápida, acelerada, com os riscos que isso também comporta
mas que, apesar de tudo, não vieram de outras áreas, construíram-se nesta área. Neste momento estão a fazer pós-graduações, e portanto também admito que estejam a fazer processos
de reflexão sobre as próprias práticas que estão a desenvolver.
Isso é que nos pode dar alguma esperança em termos futuros.
Vejo aqui um problema, que é o facto de estarmos a focalizar
muito a intervenção da educação de adultos em áreas que
con­duzem à certificação escolar, seja através de processos de
reconhecimento e validação, seja através de processos de for­
Tenho uma leitura positiva, estamos
melhor agora para vencer os desafios
que temos pela frente do que estávamos
antes dessa massificação.
AO LONGO DA VIDA 9
ma­ção. Significa que esta socialização profissional tem sido,
continua a ser, afunilada nesta área da certificação.
Só ganharíamos em termos estes profissionais, estas enti­
da­des envolvidas noutro tipo, noutras áreas tradicionais de
inter­venção da educação de adultos. Mas, para isso, nin­
guém se iluda, terá de significar uma aposta política clara, a
exis­tência de programas destinados a promover esse tipo de
práticas não-formais de educação de adultos. Se isso for feito,
se construirmos esta articulação entre este campo, com muitos
jovens, que têm estado mais vocacionados para a certificação,
com outras áreas de intervenção, isso pode alterar muito do
que acontece neste momento, isso é que me dá esse optimismo
moderado, mas esse optimismo.
Não podemos esquecer que os contributos que a educação
de adultos trouxe para o próprio pensamento educativo foram
contributos que resultaram muito do facto de ter sido um campo
com um lastro imenso de experiência no campo dessa educação
não-formal. E trouxe muitos contributos para todas as outras
áreas da educação. Só podemos continuar a enriquecer este
campo se reforçarmos esse lastro, se considerarmos este lastro
e enriquecermos a nossa reflexão em torno dessas práticas não
formais, com tudo o que isso significa e que conhecemos, que
é a valorização das experiências dos adultos, que é o carácter
dialógico das práticas que desenvolvemos, que é o considerar a
vida quotidiana das pessoas como os contextos mais interes­san­
tes para que os processos de formação se realizem. Todo esse
património que construímos e consolidamos, é um património
que tem agora de se estender a estes novos profissionais que
estão envolvidos neste campo.
Nos últimos anos houve uma grande preocupação
em certificar os Cursos EFA. Não considera que essa
preocupação foi excessivamente valorizada em detrimento de
uma educação mais preocupada com uma dimensão social?
Concordo consigo. Uma coisa de que consegui aperceber-me
no estudo, é que houve várias fases de adesão aos cursos EFA.
Inicialmente, o Grupo de Missão e depois a ANEFA chamaram
aquelas entidades que tinham esse tal lastro de intervenção
no campo da educação de adultos e que trouxeram para os
Cursos EFA essa visão que tínhamos consolidado. Mas é bom
não nos iludirmos, muito rapidamente esses Cursos EFA foram
promovidos por entidades que não tinham experiência na edu­
10 APRENDER
cação de adultos, entidades de cariz social, empresas de for­ma­
ção, que recorreram, em muitos casos, a professores, em que
todas as outras lógicas foram estando presentes.
E aí está o grande problema, a educação de adultos em Por­tu­
gal, mesmo depois do 25 de Abril, foi sempre muito dicotómica.
Tivemos meia dúzia de entidades, grupos muito limitados que
faziam intervenções na área da educação de adultos mas já
com grande suporte de reflexão teórica, programática; e depois
a iniciativa social no campo da educação de adultos, sendo meri­
tória, é uma iniciativa de pequenas associações, muitas vezes
muito periféricas que, desenvolvendo um trabalho interessante,
é muito pouco reflectido.
Quando os Cursos EFA surgem só pudemos contar, mesmo no
Grupo de Missão e depois na ANEFA, com um pequeno núcleo
de entidades. Sempre que procurámos estender a intervenção,
inevitavelmente tivemos de ir buscar entidades e pessoas
cujas lógicas de intervenção são diversas. Isso era inevitável,
acho que não tínhamos grandes alternativas e a única forma
de escapar a isto é assegurar um leque amplo de programas
e de intervenções, aí sim, podemos ir consolidando em todo
este campo estas lógicas diversas e estes contributos que
Vejo um problema –
o facto de estarmos
a focalizar muito
a intervenção
da educação de
adultos em áreas
que conduzem
à certificação
escolar, seja através
de processos de
reconhecimento e
validação, seja através
de processos de
formação. Significa
que esta socialização
profissional tem
sido, continua a ser,
afunilada nesta área
da certificação.
ENTREVISTA
fomos concretizando. O desafio passa por aqui e tem de haver
um esforço muito sistemático para promover essas dimensões
não formais. Creio muito francamente que se não o fizermos
estamos a condenar o esforço que estamos agora a realizar
para certificar adultos.
Quando digo que é preciso articular cada vez mais processos
de reconhecimento e validação com processos de formação, não
quero com isto dizer processos de formação certificada – o que
é preciso é articular o envolvimento de adultos em experiências
educativas mais diversas, que depois serão possivelmente vali­
dadas no contexto dos processos de RVC. Conhecendo o que se
passa noutros países, caminharemos inevitavelmente para isso.
Também não podemos esquecer que o nosso país tinha um
desafio distinto do dos outros países desenvolvidos. Temos uma
circunstância de uma população adulta com níveis de qualificação escolar absolutamente catastróficos. Nesse sentido, percebo que haja esta ênfase na certificação, é um desafio que era imprescindível, e quero ver, com esse meu optimismo moderado,
o lado positivo dos resultados destes esforços, mesmo quando
os processos se realizam de forma que não é a que mais me
agrada. Verifica-se, e os dados mostram isso sem a menor dis-
cussão, que as pessoas que passam por esses processos ficam
com uma vontade de continuar percursos educativos – uma coisa absolutamente fascinante. Muitas vezes significa passar para
etapas seguintes dos percursos de certificação escolar, mas em
muitos casos não. As situações de pessoas que passaram por
esses processos e desde aí começaram a ler regularmente, ou
que foram aprender línguas estrangeiras... Este tipo de situações pare­ce-me certa, o problema é como potenciamos isto, o
que significa, em articulação com a rede existente, criar essas
novas vias, essas novas soluções. Aí estaremos a conseguir fazer uma revolução na aprendizagem em Portugal.
Há dias um formador dizia-me que era muito importante
manter as pessoas estimuladas intelectualmente,
porque assim liam jornais, livros e tinham outro tipo de
preocupações.
Exactamente porque tínhamos essa realidade impensável
em termos de certificação escolar da população adulta,
conseguimos conquistar imensos adultos para um contacto
com entidades que promovem educação. Por isso é um erro
imperdoável se não utilizarmos esta conquista fantástica para
AO LONGO DA VIDA 11
alargar os âmbitos da intervenção. O que também obrigará
a um empenhamento muito mais forte neste esforço para o
concretizar, por parte das autarquias.
Que novas prioridades acha que precisamos de estabelecer?
Estas novas prioridades podem ser encaradas de várias
formas. Podemos pensar em novas prioridades em termos de
âmbitos de intervenção, e aí o alargamento é óbvio, mas mesmo
quem tem estado tradicionalmente envolvido na educação de
adultos também precisa de alargar um pouco a forma como isto
tem sido encarado.
Uma das coisas com que me tenho confrontado na minha
experiência como educador de adultos, é aperceber-me como é
cada vez mais importante ajudar as pessoas a fazer uma outra
leitura, não apenas do mundo social, que tem sido uma das
nossas preocupações interessantes, mas do próprio mundo
físico – por exemplo ao nível das ciências físicas e naturais.
Na educação de adultos sempre fizemos percursos muito próximos das humanidades, mas hoje, no contacto que tenho com
pessoas de todo o tipo, uma das ambições que encontro nelas é
encontrar a resposta. Por exemplo, porque estou, neste momento, a ver na televisão um jogo de futebol que decorre na África
do Sul? O que torna possível que esse jogo seja transmitido em
directo? O que é isto da televisão? O que permite que a electricidade funcione na minha casa? Isto tem dimensões sociais que
devem ser vistas, mas há estas outras dimensões de compreensão do mundo físico que me parecem imprescindíveis.
Estas novas prioridades têm a ver com uma marca fortíssima
da educação de adultos e que se tem perdido, que é renovar e
reforçar esta lógica mais comunitária do trabalho da educação
de adultos e que faz todo o sentido para as pessoas. Não quero
que um educador de adultos que faça trabalho comunitário faça
apenas um trabalho de proximidade, que ouça as pessoas; não
quero só isso. Conheço muitos animadores sem nenhuma formação que fazem esse trabalho de uma forma fantástica, mas o que
preciso é tornar esse trabalho comunitário uma oportunidade
que permita às pessoas, por exemplo, reforçar a aprendizagem
em termos de matemática para a vida, ou de com­­preensão do
mundo físico, ou de compreensão do mundo social, e isso é que é
difícil. Este trabalho comunitário é muito interessante, mas é um
trabalho também de assegurar uma intencionalidade educativa
nestes processos, e é esse contributo que o educador de adultos
pode dar relativamente a outros traba­lhadores da área social –
assegurar que estes processos se tornem o mais enriquecedores
possível para as pessoas. E isso também é algo fascinante.
Com encara a ligação dos Cursos EFA à componente de
formação profissional?
Quando se pergunta aos adultos o que ganharam, no fim desse
percurso, mesmo nos percursos de dupla certificação, é muito
curioso verificar que os ganhos fundamentais são os que têm
impacto na vida profissional mas que se adquirem não apenas
na formação profissional, mas na educação em geral – esse
gosto por aprender, a curiosidade sobre as coisas, a capacidade
de construir projectos. E esses são os desafios fundamentais
e que têm um impacto na vida profissional, mas também nas
outras dimensões da vida dos adultos enquanto cidadãos. Sem
menosprezar a importância da formação pro­fis­sional, mas se
perdemos de vista que é sobretudo isto que se ganha e que é
sobretudo isto que é importante também na vida profissional,
acho que se perde o essencial na educação de adultos.
Quero encarar este campo da educação de adultos como
um campo em que há experiências muito diversas, umas que
me agradam, outras que me agradam menos, não quero um
campo talhado à medida dos meus gostos, quero um campo
suficientemente multiforme para assegurar que não se esgota
na formação profissional, não se esgota na certificação escolar e
assegura aquilo que são as experiências da educação de adultos
que estes reconhecem como mais enriquecedoras. Mas não
tenho nada contra que se continue a fazer formação profissional,
porque admito que haja circunstâncias em que ela é válida.
ENTREVISTA
A educação de adultos acaba por estar muito dependente
economicamente do Estado e dos programas comunitários.
Como encara estas mudanças e que consequências
trouxeram?
Condiciona muito. Neste momento, os programas, designa­
da­mente os programas comunitários, condicionam muito aqui­lo
que se realizou no campo da educação e formação de adul­tos.
No caso português é mais sério do que noutros países, porque
o Estado não tinha uma intervenção tradicional neste campo.
Portanto o que acontece é que um campo que hoje vive muito
desses programas comunitários está muito dependente das
orientações desses programas. E essas orientações não são
apenas em termos das áreas de intervenção, mas são mes­
mo dos próprios protagonistas. Sabe-se, claramente, que as
transições dos quadros comunitários é que implicaram que se
considerasse que era necessário reforçar os grandes temas
públicos numa intervenção que se queria muito estendida.
Parece-me um risco sério, estarmos a ficar dependentes,
quase em exclusivo, desses programas, desses mecanismos
de financiamento. Só poderemos ultrapassar isso quando, ao
nível do Estado, se reforçar o peso quer das autarquias quer das
entidades regionais, quando elas se vierem a constituir. Não me
parece possível alargar a intervenção da educação de adultos
sem isso acontecer. Nos concelhos em que as autarquias
apostam nesta área começa a verificar-se uma clara diferença
relativamente aos restantes concelhos.
Vai acontecer o mesmo que se está a passar com as escolas?
A haver cada vez mais uma participação das autarquias?
Aqui vamos ter um problema. Acho que não devem ser as
autarquias a promover, acho que devem ser as autarquias a criar
mecanismos de apoio às iniciativas de educação de adultos. E
aqui temos uma dificuldade, que não vale a pena minimizar,
que é a realidade autárquica, uma realidade muito diversa, a
começar pela dimensão das autarquias. Creio que, em alguns
casos, os concelhos já têm uma dimensão que permite que a
autarquia crie programas interessantes nesta área, mas admito
que noutras autarquias isso seja muito mais difícil. Mas pareceme absolutamente fundamental um reforço das autarquias,
sem terem a tentação de querer controlar tudo. Não nos
iludamos: na área da acção cultural isso já se verificou – o papel
das autarquias revela-se decisivo, e nesta área de educação de
adultos vai ser decisivo também. Em Portugal há um patamar
regional que poderia ter muito significado, mas que tem sido
sistematicamente adiado e que torna difícil essa intervenção.
Neste número abordamos numa reportagem o trabalho
que a Associação Terras de Dentro começou a desenvolver
no âmbito de incentivo dos adultos à leitura, e deu para
perceber que apesar do trabalho meritório desenvolvido
ainda há um largo caminho a percorrer.
Em relação a esse plano nacional de leitura, agora vocacionado
para os adultos, começam a surgir em alguns CNO’s as pessoas
a tomar contacto com a possibilidade de constituir comunidades
de leitores. É algo de que não temos tradição nenhuma, mas
começa a perceber-se essa possibilidade, começam a pensar
noutras soluções. O que por vezes falta é o contacto, claro que a
revista já é interessante, mas mais interessante ainda é quando
começar a haver um intercâmbio de técnicos para conhecerem
estas experiências. Muitas vezes é isso que falta também, mas
acho que vai acontecer – cá está outra vez o meu optimismo
moderado – porque neste momento há já vários CNO’s que
começam a encarar a sério esta questão, – o que vamos fazer
com os adultos que fizeram percursos aqui, fizeram o B3 e agora
vamos envolvê-los no secundário, mas muitos deles já fizeram
também o secundário e qual será o passo seguinte? A vontade
de manter o contacto com estes adultos também vai ajudar a
que as pessoas pensem outros contextos, outros âmbitos, outros
projectos sem os quais também não há educação de adultos.
A educação de adultos é assumir que é bom mexer com as
pessoas. Se não, não se é educador de adultos, e para isso
necessariamente tenho de ser um optimista.
Para terminar. Há algum tema que gostasse de abordar, de
que ainda não tenhamos falado?
Por a educação de adultos ser um campo a que afluíram,
há muito pouco tempo, muitas pessoas, muitas entidades, um
dos problemas que temos é que muitas dessas pessoas têm
uma visão limitada das possibilidades que este campo tem.
Nesse sentido, uma das coisas interessantes é a existência de
associações como esta e de revistas como a Aprender ao Longo
da Vida. Um das coisas que se percebe nos Centros de Novas
Oportunidades e nas entidades que promovem Cursos EFA, uma
das curiosidades na leitura desta revista, não é tanto ver o que
conhecem já, mas exactamente perceber outras possibilidades
que, para muitas pessoas, não são visíveis. E este alargamento
de campo precisa muito de contributos como o da Associação e
o da Revista. Plataformas como estas são decisivas. n
Tem de haver um esforço muito sistemático para
promover essas dimensões não formais. Creio muito
francamente que se não o fizermos estamos a condenar
mesmo o esforço que estamos agora a realizar para
certificar adultos.
AO LONGO DA VIDA 13
E
RECOMPOSIÇÃO
INDUZIDA DO CAMPO
DA EDUCAÇÃO BÁSICA
DE ADULTOS
Lógicas de apropriação
local num contexto
político-institucional
redefinido.
LUÍS ROTHES, 2009
Fundação Calouste Gulbenkian,
Fundação para a Ciência
e Tecnologia. 556 pp
Por Olívia Santos Silva
Coordenadora da Equipa Novas
Oportunidades da DREN (Direcção Regional
de Educação do Norte)
14 APRENDER
m mais de 600 páginas muito
bem escritas, permeadas pelos
contributos teóricos de autores
consagrados e pelos discursos de
diversos actores, Luís Rothes desenha,
de modo dinâmico e abrangente, o percurso da educação de adultos (EA) em
Portugal, nas suas relações e con­tras­tes
com o contexto internacional, deten­do-se no período de duração da ANEFA, em
que os cursos EFA surgem como analisadores do processo de recomposição de
um campo que se tor­nou heterogéneo
e complexo e que raramente conseguiu
superar a sua fra­gi­lidade histórica e a
desvalorização social e política do direito dos adultos à educação.
Nesta tese, tecida numa trama con­
cep­tual eminentemente sociológica,
mas conhecendo outros contributos
dis­ci­plinares, é possível perscrutar o
campo da EA em múltiplos ângulos
de acção e organização, permitindo a
diferentes leitores ir em busca de esclarecimento para as suas
preocupações, questões e
inter­rogações. Nada parece
ter ficado de fora.
Não me querendo prender com a densidade dos
conceitos, sublinharia a
textura desta narrativa que
nos per­mi­te compreender
como é que, nos con­tínuos
movimentos de abertura
e retrai­mento, de crises e
resistências, o campo da
educação de adultos se foi reconfigurando, com marcas evidentes da visão
e do posicionamento do Estado face
às políticas educativas, mas também à
luz das grandes transformações sociais,
económicas e tecnológicas da moder­
nidade que não foi capaz de cumprir
todas as suas promessas de “afirmação
dos direitos sociais e edu­ca­tivos para
todos”.
Assumindo-se transversalmente com
o papel de Estado Avaliador, durante um
longo período, o tempo mais lon­go do
seu processo histórico, na sua rela­ção
com a educação de adultos, pre­dominou
um Estado Constrangente que fechou a
educação de adultos na forma escolar,
reservando-lhe um lugar marginal no sistema educativo, estreitou e entravou os
movimentos e as iniciativas sociais neste domínio. Num segundo momento, o
tempo da ANEFA inspirador da mudança, em que se reconhecia a importância
da qualificação no desenvolvimento
social e económico e se preconizava um
novo modelo de educação de adultos,
assistimos à sua deslocação para um Es­
tado Paradoxal marcado por hesitações,
ambiguidades e veladas resistências ao
abandono das lógicas escolarizantes até
aí dominantes. Mantém-se o ensino recorrente ligeiramente ajustado na rede
das escolas públicas, malgrado os frus­
trantes resultados anunciados pela avaliação encomendada pelo governo de
então, o IEFP apropria os cursos EFA de
acordo com a sua matriz racional, uniformizadora e centralizada, e as novas
ofertas são toleradas na iniciativa social,
suportada por e dependente dos fundos
comunitários, num campo que o autor
descreve como um “quase-mercado”.
Percebe-se que a proposta da ANEFA – orientada pelas lógicas de “serviço público” e de “programa”, alinhada
pelas políticas europeias e
desvinculada do modelo escolar – só haveria de encon­
trar eco no seio de operadores pri­vados atraídos
pelos fundos comu­ni­tários
onde, para responder com
a indispensável “lógica de
candidatura” num processo que se apresenta muito
concorrencial, jogam o seu
“capital de candidatura”,
enquanto incorporação do
capital social e do capital cultural detido pelos dirigentes e técnicos das dis­
tintas organizações.
Estes operadores, com diferentes
esta­­tutos institucionais e sociais e com
inten­sidade variável nas suas ligações à
educação de adultos, vão construindo,
estratégica e intencionalmente, a sua
acção entre privilegiadas relações “hori­
zontais” locais e num jogo hábil de articulações “verticais” com os ser­vi­ços públicos. Foram ingressando no cam­po da
EA por “vagas” que, sem obe­­decer a uma
sequência deliberada, aconteceram na
convergência das diver­sas, por vezes coexistentes, lógicas de acção que monitorizam os modos de agir das organizações
envolvidas, entre as quais se destacam a
lógica do serviço meritocrático, a lógica
de mercado, a lógica da transformação
social e do cres­ci­mento pessoal e a lógica
RECenSão
do desen­vol­vimento local. Deste modo,
se foi ampliando e complexificando o
leque de promotores de cursos EFA.
Os primeiros promotores foram desafiados pelo seu “mérito” ou pelo seu
envolvimento no “desenvolvimento
local”, porque se lhes reconheceu pro­
pó­sitos inovadores, se observou uma
intervenção abrangente mas com prá­
ticas consistentes na formação de adul­
tos e porque, com experiência noutros
programas europeus, detinham, simul­
ta­neamente, o imprescindível capital de
candidatura para acederem aos finan­cia­
mentos e executarem com suces­so e eficiência os projectos. Estas enti­da­des são
designadas pelo autor como “consolidados expectáveis”.
O reconhecimento do potencial ape­
la­­tivo das pessoas e das instituições do
modelo, que assegurava a existência de
interessados, e a credibilização social
dos cursos EFA que, pela valorização dos
saberes prévios dos sujeitos, pelo seu enraizamento na vida quotidiana e pela incorporação dos tempos e espaços da vida
comunitária, testemunhavam a sua capacidade para manter os adul­tos ao longo de
todo o processo for­ma­­­­tivo, conduziriam à
forte adesão de um segundo ciclo de entidades que viriam a organizar um universo
plural e heterogéneo, surgindo denominadas como “adjacentes aproximáveis”. São
“entidades locais institucionais”, “gran­des
entidades supra-locais” e empresas de formação, já existentes ou entretanto criadas,
com inequívocos fins lucrativos, agindo
portanto numa “lógica de mer­ca­do”, que
viriam a constituir um grupo de dimensão
apreciável no desen­vol­­­vimento desta oferta formativa. A neces­­sidade de financiamentos para sub­sis­tên­cia destas organizações fez com que o campo da educação e
formação de adul­tos se configurasse como
um espaço de mercado assistido.
No terceiro movimento de adesão,
carac­terizado por um carácter de incuba­
ção da formação, emergem promotores
sem capital de candidatura, colectividades ins­­ti­tucionais e periféricas, movidas
por preo­cupações de “transformação
social e cres­cimento pessoal”, que dependem de enti­dades acreditadas para elaborarem e executarem os projectos. São,
nesse sen­tido, intituladas como “dependentes pre­cá­rios”.
A interpretação das práticas das ins­­
ti­tuições promotoras dos cursos EFA, na
diversidade das suas concepções, da sua
natureza ideológica e da sua missão, é
realizada à luz de ambiguidades, limi­
tes, tensões e contradições que o autor
se propõe analisar através da cons­trução
teórica de dilemas, enquanto problemas
que se oferecem a soluções contrárias ou
encruzilhadas que desafiam à cria­ção de
regras nas quais os actores ins­ti­tucionais
se sustentam para tomar decisões orga­
ni­zacionais e pedagógicas. É, pois, entre
duas opções contraditórias que os distintos promotores apropriam e con­cre­
tizam um mesmo modelo forma­tivo.
São colocados três dilemas em obser­­­
vação. O primeiro remete para uma
“perspectiva programática”, que faz oscilar o cursor de análise entre a pre­ven­
ção social e a transformação social, opções respectivamente asso­ciadas ao papel
preponderante do estado, de um lado, e
do mercado, do outro, ou dito de outro
modo, entre a justiça e coesão social e os
interesses económicos.
O segundo dilema coloca-se na inter­
dependência externa das orga­ni­zações,
ora fechadas na formação que, entendida como unidade de exe­cu­­ção, visa acima de tudo superar as carências cognitivas e sociais dos formandos, independentemente dos seus contextos sociais e
profissionais, ora colocando o ênfase na
participação e na transformação social e
cívica, em que a comunidade e o território surgem como recursos educativos
fundamentais e em que a formação ganha conteúdo, significado e sentido no
olhar crítico sobre a realidade comunitária e na pro­ble­­matização das condições de exis­tên­cia dos sujeitos. Estamos,
assim, peran­te duas concepções limite,
uma que, suportada pelo princípio da
auto­no­mia relativa, se firma “em lógi­
cas de modernização tecnocrática da
edu­cação”, e outra que preconiza, para
a educação, uma abordagem con­tex­­
tualizada, comprometida com prá­ti­cas
de trabalho comunitário, que bus­que
um “sentido transformador e demo­
cratizante” da vida individual e social.
O terceiro dilema evocado prende-se
com as opções sobre a abordagem ao
currículo, apresentando duas visões divergentes. De um lado, o currículo pres­
crito, centralmente definido, des­ligado
dos contextos de acção e inter­acção dos
formandos, concebido como trans­missão
e acumulação passiva de conteúdos situados no interior das próprias dis­ci­plinas,
percebidas como de fronteiras fechadas, e
numa sequên­cia linear pré-estabelecida,
onde há pouco espaço para a construção
do conhecimento pelos pró­prios apren­
den­tes; o enfoque coloca-se nos resultados, enquanto produto da formação.
Do outro lado, perspectiva-se o currículo
como projecto aberto, flexível e inte­gra­
do, trabalhado no diálogo entre saberes
disciplinares, planificado pelos formadores e pelos formandos de modo colaborativo, em contextos demo­­cráticos e informados pelo conhe­cimento proveniente
de diversas fontes dentro e para além das
áreas disci­pli­nares, em que a aprendizagem se organiza em unidades temáticas
cen­tra­das em problemas, questões e situações emanados das percepções, crenças,
valores, preocupações e interesses dos
sujeitos, numa abordagem que recons­
trói, aprofunda e amplia a com­preensão
de si próprios e do seu mundo, apresentando-se como um desa­fio à imaginação e à descoberta, con­cretizando-se em
expe­riências cur­ri­culares construtivas e
refle­xivas, defendendo que, quanto mais
signi­­fi­cativa for a aprendizagem, mais
situa­da em contexto e mais enraizada no
conhecimento cultural, pessoal e meta­
cognitivo, mais rapidamente o conhe­
cimento é compreendido, apren­dido e
recordado; sem perder de vista os resultados, privilegiam-se os processos.
Por limitações textuais, nesta modesta síntese de um trabalho que nos concede um estudo amplo e denso da educação de adultos em Portugal, muito ficou
retido nas páginas de uma obra que é de
referência. Para aqueles se preocupam
com esta temática, fica o convite à sua
leitura integral. n
AO LONGO DA VIDA 15
C
ONFI
DOSSIER
SEXTA CONFERÊNCIA INTERNACIONAL
EDUCAÇÃO DE ADULTOS
16 APRENDER
INTEA
Este dossier é dedicado à CONFINTEA VI, que decorreu em Belém do Pará,
no Brasil, em Dezembro. Esta conferência, que é da responsabilidade da
UNESCO e só se realiza de dez em dez anos, é sempre um momento
importante para quem se interessa pela educação de adultos, trazendo
a lume discussões teóricas, promovendo o entendimento das pessoas
que trabalham para os governos e da sociedade civil. A Aprender ao Longo
da Vida reuniu opiniões de personalidades portuguesas e estrangeiras
que podem ajudar os nossos leitores a reflectirem sobre os caminhos
que se colocam à Educação de Adultos no mundo e particularmente em
Portugal.
AO LONGO DA VIDA 17
18 APRENDER
DOSSIER CONFINTEA VI
Timothy Ireland
Doutor em Educação na Universidade de Manchester, foi
Director Nacional de Educação de Jovens e Adultos no
Ministério da Educação, em Brasília. Actualmente, trabalha
na Representação da Unesco no Brasil onde coordenou a
organização da CONFINTEA VI pelo lado brasileiro.
A CONFINTEA
vista da cozinha:
viva o carimbó
*
Relato de quem trabalhou na ‘cozinha’ de uma CONFINTEA marcada, de um lado, pelo
fato de ser a primeira realizada no hemisfério sul e, de outro, gestada numa conjuntura de
múltiplas crises, a ameaça cada vez mais presente de aquecimento global e do colapso do
sistema financeiro mundial acompanhado por uma profunda recessão econômica.
A
organização de uma
con­fe­rência
inter­
nacional nun­ca é
tarefa fá­cil, uma
CON­FINTEA menos
ainda: esta, por ser
conferência intergovernamental (categoria II na classificação da UNESCO), já nasce complexa,
regida por um conjunto de regras e procedimentos formais (sem falar em questões cerimoniais e de segurança) que lhe
confere importância e, ao mesmo tempo, impõe certa rigidez e limita as possibilidades de inovação.
O relato apresentado aqui não pre­
tende avaliar o impacto da VI CON­
FINTEA, realizada em Belém do Pará,
Brasil, nem comparar os seus resultados
e processos com os da CONFINTEA
anterior, realizada em Hamburgo (será
que, no futuro, Belém terá o mesmo
status que Paris quando comparada com
Tóquio?).
Não pretende tampouco narrar o
lon­go processo formal de sua preparação, com as antecedentes mobilizações
tipo de confe­rências merece uma rápida
nacio­nais e conferências regionais, nem
explicação. A responsabilidade pela pro­
contar as anedotas dos seus bastidomo­ção das CONFINTEAs é da UNESCO.
res (as vís­ce­­ras de um complexo corpo
A Con­ferência Geral da Organização
multi­lin­­guístico, multicultural e de lógi­
delegou ao Instituto para Aprendizagem
cas bizan­­tinas). Pretende, muito modes­­
ao Longo da Vida (UIL), em Hamburgo,
ta­­mente, tentar externar a lógica de uma
como centro espe­cializado em apren­
parte da organização do evento, que prodi­zagem e educação de adultos, a res­
vavelmente os participantes não enxerpon­­sabilidade pela organização do
garam de fora. É o relato de quem trabaevento. Por meio de um acordo (Host
lhou na ‘cozinha’ de uma CON­­­FINTEA
Country Agreement) o governo do país
marcada, de um lado, pelo fato de ser
anfitrião responde pela infra-estru­tura
a primeira realizada no hemisfério sul,
da conferência. Por sua parte, o gover­no
num país emergente e numa região trobrasileiro, por intermediação do Minis­
pical e, de outro, gestada numa conjuntério da Edu­ca­ção, estabeleceu par­cerias
tura referenciada por múl­ti­plas crises, a
com a Repre­sentação da UNESCO
ameaça cada vez mais pre­sente de
no Brasil (conhecido cari­
aquecimento global e do co* Nota:
nho­samente como UBO –
lapso do sistema financeiCarimbó: género
UNESCO
ro mundial acompanhamusical de origem
do por uma profunda
indígena. O seu nome, em
reces­são econômica. tupi, refere-se ao tambor com o
E isso, sem men­cio­ qual se marca o ritmo, o carimbó.
nar a pandemia de Surgido em torno de Belém na zona do
gri­pe H1N1, temida à Salgado e na Ilha de Marajó, passou
época internacional- de uma dança tradicional para um
mente!
ritmo moderno, influenciando a
A organização desse
lambada e o zouk.
AO LONGO DA VIDA 19
No dia de abertura,
os participantes VIPS plantaram espécies de
árvores nativas da região amazônica no complexo
administrativo do HANGAR. Mais 156 árvores – uma
para cada delegação nacional – completaram o que será
conhecido como O Bosque das Nações.
Brasilia Office) e o Governo do Estado
do Pará, representado princi­pal­mente
pela Secretária Estadual de Educação
(SEDUC/PA),
que
for­ma­ram
a
coordenação nacional e criaram o comi­
tê organizativo local. É desse pro­cesso
organizativo que vamos falar aqui.
Contudo, antes disso, as questões
mais prementes eram: em qual cidade
bra­sileira realizar a CONFINTEA e
como escolher o anfitrião? De início
foi decidido que seria numa cidade das
regiões norte ou nordeste. Após convidar
todos os Estados das duas regiões a
enviarem propostas, a cidade de Belém
foi selecionada. Apresentava um exce­
len­te centro de convenções, um forte
compromisso com a educação de jovens
e adultos, uma rede hoteleira adequada,
e, acima de tudo, Belém, no coração da
região amazônica, exemplifica um dos
maiores desafios mundiais: a promoção
do desenvolvimento humano a partir de
paradigmas de sus­ten­tabilidade, um dos
prin­cipais temas da confe­rência.
As críticas não tar­da­ram em chegar,
resu­­midas na per­gun­­ta: por que esco­­­lher
uma cida­de tão distante da ‘civi­­li­za­ção’
(de São Paulo, do Rio, de Brasília, etc.)
e de difícil acesso? A resposta foi a de
que segurança, con­forto e bem-estar dos
participantes seriam cri­térios sempre pre­
sen­tes, porém, seria incon­cebível realizar
uma CON­FINTEA ‘pasteurizada’ no Bra­
sil – pelo contrário, a Ama­zônia pos­sui
uma diversidade cultural, linguística,
étni­ca e ecológica como poucos lugares
no mundo e são esses os desafios que a
apren­dizagem e educação de adultos têm
de abraçar.
Escolhida a sede, partimos para for­
mar o comitê organizador. O comitê
nas­ceu com uma missão incômoda:
como conciliar o tema (“aprendizagem e
educação de adultos”), o lema (“Vivendo
20 APRENDER
e aprendendo para um futuro viável – o
poder da aprendizagem de adultos”),
o local, a conjuntura geral de crise e a
organização interna da Conferência?
Três princípios básicos terminaram
se impondo para orientar as decisões:
respeito pela cultura de sustentabilidade,
pela participação democrática e solidária
e pela indissociabilidade entre educação
e cultura. Assim, a receita básica para a
Conferência emergiu do forno coletivo.
Em âmbito nacional, o UBO, o Minis­­­­­
tério da Educação e alguns outros Minis­
térios, com destaque para o Minis­tério
de Relações Exteriores, já esta­vam bem
articulados. Em Belém, repre­sentantes
do Governo do Estado, da Prefeitura, das
duas uni­ver­sidades públicas (esta­dual e
federal) e de outros órgãos públicos for­
maram sete gru­pos de trabalho – ceri­
monial, cultura, segurança, logís­tica,
uni­­versidades, comu­­ni­cação e ambien­
ta­­li­­zação. Os desafios: como preparar
a infra-estrutura da con­fe­rência de tal
maneira que seria possível mini­­mizar a
agressão ao meio ambiente da cidade;
como fazer da organização da con­fe­­
rên­cia um processo demo­crático e par­
ti­ci­pativo e, ao mesmo tempo, sem ferir
o seu status de conferência inter­go­ver­
na­mental, como permitir uma parti­
cipação mais ampla aproveitando as
novas tecnologias de comunicação e, por
último, como fazer da cultura uma parte
integral do programa da CONFINTEA?
Perpassando tudo, havia o desejo de
fazer do processo organizativo um
pro­­­fundo processo de aprendizagem
coletiva – a procura da coerência entre
forma e conteúdo!
Na busca pela cultura de susten­ta­
bilidade da conferência, adotamos algu­
mas medidas mais corretivas que inova­
doras. Um eficiente sistema de inscrição
on-line para as delegações nacionais,
articulado com uma boa base de dados,
minimizou o uso de correio e papel.
Durante a conferência os delegados
rece­beram um pen-drive no kit para
dimi­nuir a costumeira montanha de
papel e fotocópias. O local do evento
– Cen­tro de Convenções da Amazônia
– HANGAR - oferecia acesso à internet
gratuitamente por meio de wi-fi e
computadores espalhados pelo prédio.
Cada participante também recebeu um
squeeze para água, no afã de reduzir
aquele constante fluxo de copos de
plás­tico. Até os ministros presentes na
Conferência fizeram a sua parte – em
lugar de carros individuais colocamos
vans executivas à disposição.
Simbologia sempre desempenha
um papel necessário numa conferencia
inter­nacional. No dia de abertura, os
participantes VIPS plantaram espécies
de árvores nativas da região amazônica
no complexo administrativo do HAN­
GAR. Mais 156 árvores – uma para cada
delegação nacional – completaram o
que será conhecido como O Bosque das
Nações. Um inventário da emissão de
gases de efeito estufa (GEE) em toneladas
de CO2 gerados pela Conferência foi
con­­vertido em um número estimado
de árvores nativas regionais a serem
plantadas para minimizar o impacto de
aquecimento global. Os organizadores
locais da VI CONFINTEA estão prepa­
rando o plantio adicional de 144 espécies
nativas, para compensar a emissão de
GEE durante os quatro dias do evento.
Cada delegação foi convidada a plantar
o número de árvores nativas regionais
em seus próprios países, proporcional
ao tamanho da delegação e à distância
percorrida.
Argumentos de que a Confintea é
eli­tista não são estritamente verdade.
O pro­­cesso Confintea, em contraponto
DOSSIER CONFINTEA VI
ao evento Con­fintea, demanda estra­
té­­­gias amplas de mobilização e discus­
são. No Brasil, a mobilização abarcou
encon­tros estaduais, regionais e nacio­
nal. Ao levantarmos a bandeira da par­
ti­­cipação democrática e solidária, não
foi com a intenção de criticar, mas a
de buscar meios para viabilizar que o
maior número de pessoas pudesse acom­
panhar (sem intervir) as discussões e
deli­berações da conferência. Assim,
orga­­nizamos a transmissão on-line para
pon­tos de recepção no Estado do Pará e
para qualquer pessoa, em qualquer parte
do Brasil ou do mundo, acompanhar
o evento pelo seu computador. Como
com­ponente local da transmissão, as
universidades programaram o que ficou
conhecido como a Confintea Ampliada.
Além de poder acompanhar as mesas
redondas e palestras, foram organizadas
duas mesas redondas sobre EJA nos países
africanos de língua portuguesa e nos
países latino-americanos, aproveitando a
formaram o espaço para a tomada de
decisões e para diversos níveis de arti­cu­
lação com os governos (estadual e muni­
cipal) e a sociedade civil local. Ques­­­
tões como segurança exigiam com­ple­xa
coordenação de diferentes níveis de agen­
tes e atores – polícia federal, polícia militar,
polícia civil, polí­cia rodoviária, guarda
civil, etc. – cada um com suas respectivas
atri­bui­ções e hierarquias. Transporte e
rotas precisavam ser planejados com
os mínimos detalhes junto à Secretaria
de Trânsito da Prefeitura, sempre arti­
cu­lada com a Polícia Rodoviária que
faria a escolta dos VIPS. Discussões
sobre cerimonial tendem a ocupar um
tem­po desproporcional enquanto se
decide quem terá direito a discursar e
por quantos minutos (no fundo uma
discussão fútil porque VIPS, por serem
VIPS, tendem a se sentir no direito de
falar sem restrições temporais), em que
ordem as VIPS falariam e quem iria
sentar em qual lugar. Alimentação, saú­de,
REALIZAR UMA CONFINTEA
‘pasteurizada’ no Brasil é inconcebível – pelo contrário,
a Amazônia possui uma diversidade cultural, linguística,
étnica e ecológica como poucos lugares no mundo e são
esses os desafios que a aprendizagem e educação de adultos
têm de abraçar.
presença dos delegados na cidade.
A Influenza (gripe) A acrescentou
uma variável inesperada. A partir da
decisão prudente, em maio de 2009, de
o governo brasileiro adiar a conferência
como medida cautelar frente à pande­
mia (como os nossos dedos nos traem
– escrevi ‘pandemônio’ antes de me
corrigir!), tivemos, com efeito, que des­
fa­zer a organização para maio, re-fazer
para dezembro e, assim, na prática, foi
como organizar duas conferências segui­
das. Porém, ao retomar as atividades
da coordenação nacional e do grupo
orga­nizador local, a capacidade e deter­
mi­nação coletivas de superar o revés
transpareceram-se.
Os grupos de trabalho e as plenárias
transporte, hotéis, interpretação simul­
tâ­nea, sinalização adequada, vistos de
entrada, são todos motivos para noites
mal dormidas. Sem mencionar, por mais
boa vontade que exista, a complexidade
de articular vários níveis de governo,
dife­rentes ministérios e secretarias, ten­
dên­cias e partidos políticos, governo e
sociedade civil.
No espírito da participação demo­crá­
tica, ficou projetado que o enorme salão
de exposições, com quase 70 stands,
constituiria um espaço para a troca de
informações e experiências educacionais
sem o direito a comercialização. Era
obri­ga­tório formalizar a solicitação de
stand por meio de um sistema web espe­
cialmente desenvolvido para essa fina­
CONFINTEA I
Dinamarca, 1949
A primeira Conferência Internacional
de Educação e Adultos ocorreu em
1949, em Elsinore, na Dinamarca, num
contexto de pós-guerra e de tomadas de
decisões em busca pela paz.
Reuniram-se 106 delegados, 21
organizações internacionais e 27
países, sendo eles: Austrália, Áustria,
Bélgica, Canadá, China, Dinamarca,
Egipto, Finlândia, Fran­­ça, Alemanha,
Grã-Bretanha, Irão, Irlanda, Itália, Líbano,
Holanda, Nica­rágua, Noruega, Paquistão,
Suécia, Suíça, Síria, Tailândia, Turquia,
Estados Unidos. Quatro comissões de
delegados recomendaram:
• que os conteúdos da Educação
de Adultos estivesse de acordo
com as suas especificidades e
funcionalidades,
• que fosse uma educação aberta, sem
pré-requisitos;
• que os problemas das instituições e
organizações com relação à oferta
precisariam ser debatidos;
• que se averiguassem os métodos e
técnicas e o auxílio permanente
• que a educação de adultos seria
desenvolvida com base no espírito de
tolerância, devendo ser trabalhada de
modo a aproximar os povos, não só
os governos e,
• que se levasse em conta as
condições de vidas das populações
de modo a criar situações de paz e
entendimento.
Os delegados acordaram sobre a
continuidade da Conferência em razão
das premências da educação de adultos
em termos mundiais.
AO LONGO DA VIDA 21
lidade e todos os pedidos foram sub­me­
tidos à coordenação nacional para apro­
vação. Pesavam na análise um vín­culo
estreito com a aprendizagem e educação
de adultos e um equilíbrio entre regiões,
entre pedidos nacionais e internacionais,
entre governos e o terceiro setor. A orga­ni­
zação oferecia aos expo­sitores um estande
padronizado sem cobrança de taxas.
Em mais uma expressão da Confintea
Ampliada, duas oficinas de leitura foram
organizadas em uma escola pública. A
ofi­cina serviu ao mesmo tempo para lan­
çar um livro de leitura: O pequeno livro das
grandes emoções, preparado espe­cialmente
para neoleitores, cujos pri­meiros usuários
foram 60 jovens e adultos de Belém
matriculados em clas­ses de EJA da rede
estadual. As oficinas foram conduzidas
por uma das duas organizadoras do livro,
ela mesma uma autora de livros para esse
público, e ganhadora do Prêmio Jabuti
em 2009. Na primeira noite, a oficina
recebeu uma visita da Princesa Laurentien
dos Países Baixos, que, como Enviada
Especial da UNESCO, tem defendido a
bandeira da alfabetização como direito
humano fun­da­mental.
Uma conferência internacional, em
que mais de 150 paises participam, exi­
ge um pequeno exército de pessoas for­­­­
madas para oferecer serviços de infor­­
mação e apoio aos delegados. Coube
a nós descobrir como fazer des­sa
necessidade uma oportunidade de for­
mação e inclusão para jovens uni­­ver­si­
tários das duas universidades públi­cas,
sem correr o risco de explorar o tra­ba­
lho estudantil. No inicio de 2009, 204
estudantes com domínio de uma língua
estrangeira foram selecionados para um
curso, inicialmente previsto para durar
quatro meses, de formação para o even­
to, com encontros semanais a cada
sábado. O curso visava aperfeiçoar a
capacidade lingüística dos jovens, bem
como oferecer-lhes acesso a outra língua
estrangeira, além de tratar de temas
amplos como relações internacionais,
polí­­­ticas educacionais para jovens e
adul­­­­tos, a história das CONFINTEAS,
o papel da UNESCO e outras agências
inter­­­nacionais, diversidade cultural,
cida­­dania crítica, história da cidade e da
região e temas práticos voltados para a
hos­pedagem, alimentação, geografia da
cidade, como receber, segurança, saúde,
etc. Palestras foram proferidas em inglês,
22 APRENDER
Uma conferência
internacional, em que mais
de 150 paises participam,
exige um pequeno exército
de pessoas formadas
para oferecer serviços de
informação e apoio aos
delegados. Coube a nós
descobrir como fazer
dessa necessidade uma
oportunidade de formação
e inclusão para jovens
universitários.
espanhol e francês. Os estudantes – moni­­
tores bilíngües – receberam uma bolsa.
Com o adiamento da Con­fe­rên­cia, o
curso foi estendido por mais dois meses.
Durante o período da conferência,
esses monitores bilíngües atuaram na
recep­ção de delegados no aeroporto,
nos hotéis, nos museus e no próprio
Han­gar, informando, direcionando,
apoian­­do, sob a coordenação dos gru­
pos de trabalho a quem foram alocados.
Ajudaram a lembrar que em muitos paí­
ses em desenvolvimento são os jovens
que povoam os programas e projetos de
educação de ‘adultos’, ao tempo em que
alegraram o ambiente com a sua energia,
sorrisos, bom humor, irreverência e
curio­sidade frente ao desconhecido.
A programação cultural interna e
exter­na foi planejada para expressar a
rica diversidade cultural da região, para
interagir com a cidade e criar outro
meca­­nismo de participação demo­
crá­­tica, para criar um diálogo entre a
cultura popular e erudita e entre as dife­
ren­tes linguagens culturais – música,
dança, folclore, poesia, teatro – e, acima
de tudo, para dialogar com os debates
sobre a aprendizagem e educação ao
longo da vida como um componente
indis­­sociável e inegável do processo de
desenvolvimento humano e social e da
busca da liberdade.
Internamente, as apresentações ocu­pa­­
vam espaços temporais e espaciais inte­
gradas à geografia comum da conferência
– a escada, o restaurante, o auditório prin­
cipal, os espaços de circulação, a entrada
e saída e até o ‘fumódromo’. Criavam um
ambiente em que as pessoas se sentiam
acolhidas e confortáveis, questionadas e
acalmadas, surpreendidas e ‘estranhadas’.
Um ambiente propício para o diálogo e
debate.
Externamente, a cidade abria as portas
dos seus acervos e patrimônios históricos,
religiosos e culturais para os visitantes.
Os horários dos principais museus foram
estendidos para facilitar a visita dos
delegados depois do término diário da
Conferência. Os participantes receberam
um ‘passaporte’ para visitar gratuitamente
o parque ecológico Mangal das Garças. A
vida noturna cotidiana da cidade oferecia
um leque de opções gastronômicas, etíli­
cas e boêmias. O carimbó esquentava as
noites que a brisa da Baia do Guajará
tentava esfriar.
Na última noite, ao encerrar a Con­
fe­rência, o Cortejo da Diversidade
Cul­­tural cimentou esta integração da
cida­de com a diversidade linguística e
mul­ticulturalidade dos participantes
da CONFINTEA. Quase mil artistas da
cidade de Belém e da região desfilaram
informalmente, embalando os presentes
nos sons, cores, cheiros, ritmos e
sabores de uma noite encantada, mila­
gro­samente sem chuva, levando-os pela
Cidade Velha para o píer e os shows
finais da Banda do Arraial do Pavulagem
e do Cordel do Fogo Encantado. O
evento CONFINTEA terminava e o pro­
ces­so ganhou novas inspirações.
Ao refletir sobre esse processo interno
da CONFINTEA, tenho uma enorme
vontade de sair da cozinha e sentar-me
de novo junto aos comensais. Descobri
que, apesar de todos os seus encantos, a
cozinha é o lugar onde menos se alimenta
e onde mais se trabalha. Agora, só me
resta esperar a CONFINTEA VII. n
DOSSIER CONFINTEA VI
Carlos Alberto Torres
É Director fundador do Instituto Paulo Freire da Argentina (2003),
Director fundador do Instituto Paulo Freire da Universidade de Los Angeles desde
(2002) e Director fundador do Instituto Paulo Freire de São Paulo (1991).
É professor de Ciências Sociais e Educação Comparada, Director do Centro
Latino-americano e sociólogo político da educação.
Recriando
o Conceito
de Aprendizagem
ao Longo da Vida
A CONFINTEA VI foi uma tentativa de dar novo vigor à educação e aprendizagem de
adultos em todo o mundo, forçando os governos a aceitar que não fizeram o suficiente,
e sugerindo novos caminhos na educação e aprendizagem de adultos, especialmente ao
nível da implementação de políticas.
O
encontro tentou le­var
os go­ver­nos a pôr em
prá­tica as visões teó­
ricas pro­postas pela
CON­FINTEA V, em
Hamburgo. A declaração de Hamburgo avançou, há 12 anos,
os princípios mais progressivos para a
educação e aprendizagem de adultos. O
quadro seguinte sintetiza esses princípios:
Mais do que um direito, a educação
de adultos é a chave para o século XXI. É
uma consequência e uma condição para
uma cidadania activa.
A educação de adultos engloba
todo o corpo dos processos activos de
aprendizagem. A educação de adultos
engloba a educação formal e contínua,
a aprendizagem não formal e o espectro
da aprendizagem acidental, disponível
numa sociedade multicultural de apren­
dizagem.
A educação de adultos deverá con­
tribuir para a criação de uma cidadania
informada e tolerante, para o desenvolvimento económico e social, para a promoção da literacia, o alívio da pobreza e
a preservação do ambiente.
A Conferência reconheCE que a cir­
cunstância particular dos Estados Membros irá determinar as medidas que os
governos poderão introduzir para promover o espírito dos nossos objectivos.
A educação de adultos é concebida dentro da estrutura da aprendizagem
ao longo da vida.
O papel do Estado alterou-se: den­
tro das novas parcerias entre o público,
o privado e os sectores da comunidade, o papel do Estado é não só ser um
fornecedor de serviços de educação de
adultos, mas também um conselheiro,
um financiador e uma agência de moni­
torização e de avaliação.
A educação básica para todos não
é apenas um direito, mas um dever; é
o centro da aprendizagem de jovens e
adultos.
O objectivo principal da educação
de jovens e adultos é a criação de uma
sociedade de aprendizagem, dedicada à
justiça social e ao bem-estar geral.
A literacia, amplamente considerada
como o conhecimento e capacidade
bási­cos de que todos necessitam, num
mundo em constantes e rápidas mudan­
ças, é um direito humano fundamental.
O reconhecimento da educação e
do direito de aprendizagem ao longo da
vida é, mais do que nunca, uma neces­
sidade.
AO LONGO DA VIDA 23
A aprendizagem de jovens e adul­
tos deve dar prioridade à expansão de
oportunidades para mulheres.
A educação de adultos deve con­
tri­buir para a construção de uma cultura de paz e de educação para a cidadania e para a democracia.
A educação de adultos deve re­
flec­tir e respeitar a riqueza da diver­
sidade cultural e procurar alcançar a
igualdade.
A educação de adultos deve pro­vi­
denciar um acesso equitativo e sus­ten­
tável aos conhecimentos de saúde.
A educação ambiental de adul­tos
deve ajudar a promover a susten­ta­bi­li­
dade ambiental.
A educação de adultos deve pro­
vi­denciar oportunidades para a
apren­dizagem ao longo da vida a povos
indígenas e nómadas.
A educação de adultos deve tra­
balhar na promoção do desen­vol­vi­
mento de competências, no contexto das
novas políticas laborais para o emprego,
inseridas nas economias globais.
A responsabilidade da educação
de adultos é limitar o risco de exclusão numa crescente sociedade de
informação, e impedir que as sociedades
percam de vista a dimensão humana.
A educação de adultos deve reco­
nhecer os contributos das populações idosas e criar mais opor­
tunidades de aprendizagem, em termos
de igualdade.
A educação de adultos deve pro­
mo­ver a integração e acesso às pes­
soas portadoras de deficiência.
A educação de adultos deve ser
uma parte vital de um plano de
subsí­dios e de investimentos para o futuro.
A Conferência pede à UNESCO, como
a maior agência da ONU, que pro­mova e
facilite a educação de adultos como parte
de um sistema integral de aprendizagem.
Pede-se à UNESCO que encoraje os
Esta­dos Membros a adoptar legislação
que facilite às pessoas portadoras de
defi­ciência programas educativos e que
seja sensível à diversidade cultural, linguística, económica e de género.
A Conferência adopta a pro­pos­ta
de um movimento “uma hora de apren­
dizagem por dia”, e o desen­vol­vimento
de uma Semana da ONU para a Educação
de Adultos.
24 APRENDER
No entanto, aconteceram mudanças
dramáticas entre as duas Conferências,
bem sintetizadas por Richard Desjardins:
· “Há pelo menos duas grandes ten­
dên­cias, que rodeiam a educação de
adul­­tos, que se intensificaram nos últi­
mos anos. A primeira envolve o fenó­
meno da globalização e a sub­se­­quente
trans­­nacionalização das polí­ticas de
edu­cação, a qual tem uma série de
impli­cações para os estudos políticos.
A segunda envolve uma pressão reno­
vada para uma inves­tigação rele­­vante
em ter­mos estratégicos e políticos. As
duas estão relacionadas, mas suscitam dife­rentes tipos de questões, que
per­tencem ao campo da educação de
adultos e tam­­­bém à necessidade de diferentes res­postas.”1
Há uma tensão
conceptual e prática entre
a aprendizagem ao longo
da vida e a educação ao
longo da vida. No entanto,
qualquer reorganização
de conceitos sobre a
aprendizagem ao longo da
vida deve reconhecer uma
alteração importante no
discurso educacional das
duas últimas décadas, uma
passagem de “educação” para
“aprendizagem”.
· A conceptualização da aprendizagem
ao longo da vida faz parte de discursos hegemónicos, que são classificados em termos de raça e de género.2 A
ênfase num conjunto de capacidades,
resultados e competências instru­
men­­t­ais, técnicas e mecânicas tende
a seguir “construções neo-liberais
da aprendizagem ao longo da vida,
inse­­ridas num individualismo hierár­
quico.”3
· Há uma tensão conceptual e prática
entre a aprendizagem ao longo da vida
e a educação ao longo da vida. No entanto, qualquer reorganização de conceitos sobre a aprendizagem ao longo
da vida deve reconhecer uma alteração
impor­tante no dis­curso educacional
das duas últi­mas décadas, uma passagem de “edu­cação” para “aprendizagem”. Assim, o foco passou do professor para o aluno, e das expe­riências
for­mais de aprendizagem para as não
formais, dentro e fora de instituições
educativas, no ambien­te de trabalho e
por via de uma nova cultura cibernética, em prati­ca­­mente todo o lado. A
parte de “aprendizagem” da história é
tam­bém um novo desenvolvimento,
não neces­sariamente completamente
incor­po­rado ou praticado em todo o
lado.4
· Finalmente, a questão do “ao longo” é
importante. Quando a aprendizagem
passa a ser ao longo da vida, afastamo-nos de um período de tempo na
vida de um indivíduo, e afastamonos de um conjunto de instituições
muito cla­ra­mente definidas, que pro­
vi­den­­­ciam tal educação e facilitam tal
aprendizagem.
· A aprendizagem ao longo da vida
também aborda algumas das neces­­s­
idades mais básicas dos seres huma­
nos, incluindo o crescimento e
desen­­­­vol­­vi­­mento pessoal, a melhoria da saúde e do bem-estar, ligando
expli­­­­­­cita­men­te a aprendizagem e a
edu­cação a capacidades laborais e a
emprego, à com­petição numa eco­no­
mia global, à inovação e à socie­dade
do conhecimento como um novo factor produtivo.
· No entanto, o conceito é tão abran­
gente que inclui também contribuições para o desenvolvimento tecnológico e digital, as relações interculturais e linguísticas, as populações
mais ido­sas e as suas escolhas de vida
(tanto públicas como pri­vadas) para
a denominada “Terceira Idade”. Por
último, o conceito aborda o âmago
da socialização, participação e inte­
gração política de sociedades civis e
governação democrática, incluin­do
os desafios da emigração e do multi­
cul­turalismo.
· Se considerarmos o conjunto de res­
pon­sabilidades de aprendizagem e
DOSSIER CONFINTEA VI
de resultados de aprendizagem que
estão incluídos no conceito, ou seja,
o conhecimento, as capacidades
e as competências mais alargadas,
pode­mos perguntar-nos exactamente o que fica de fora do conceito de
apren­diza­gem ao longo da vida, para
além das experiências educativas e de
apren­dizagem da infância.
· A ‘evanescência’, a complexidade e a
heterogeneidade do objecto de estu­
do exigem uma reflexão e análise sérias de questões conceptuais e de ter­
minologia. Este enigma conceptual é
alimentado pelas tensões entre expe­
riências nacionais e supra-nacio­nais
em educação de adultos, e tensões
global-local e local-local no sistema
mundial.
· “Porque as políticas e práticas da edu­
cação de adultos são essen­cialmente
nacionais, um grande leque de fac­tores
contribui para a condição da educação
de adultos em qualquer país, incluindo: a cultura sociopolítica vigente, que
engloba crenças e valores sobre o papel do Estado em geral, e em relação à
educação e formação em particular; os
pontos de vista vigen­tes sobre a função da educação e a for­ma­ção – neste caso, a educação de adul­­­­tos – em
relação aos objectivos e prioridades
sociais, culturais, polí­ti­­
­­cos e económicos de um país; os pontos de vista predominantes sobre a optimização de
equilíbrio de poder, papéis e actividades, entre as três maiores instituições
sociais: Esta­do, mercado e sociedade
civil; os sistemas da governação da
educação de adultos em operação, incluindo o papel dos parceiros sociais;
o nível de desenvolvimento social e o
nível de investimento na educação e
na for–mação.”5
· A Conferência CONFINTEA VI não
conseguiu abordar todos os impasses
teóricos. O relatório especial, escri­to
por um grupo de distintos espe­cia­
listas, o Relatório Geral sobre a Edu­
ca­ção e Aprendizagem de Adul­tos,
apenas foi distribuído no final do
encontro.
Os discursos de representantes gover­
namentais foram, quando muito,
super­ficiais, e apresentaram apenas
formas de referir no programa qual­
quer pessoa que conseguisse chamar
a atenção dos organizadores.
Para um encontro sobre educação de
adultos a ter lugar na América Latina,
o Continente onde o neoliberalismo
encontrou mais resistência e con­
tes­tação, e um local onde ocorreu a
maioria das experiências inovadoras
em educação de adultos, pouca ou
nenhuma representação foi feita acerca da forma como os movimentos sociais e governos progressistas agi­ram
neste campo de decisões polí­ticas.
· Apesar destas falhas, deixei a Con­
ferência com uma boa sensação. Estas Conferências do Sistema Mundial
têm uma importância simbólica.
Para quem se interessa pela educação
de adultos, a CONFINTEA VI foi um
sucesso porque teve lugar, agitou os
ambientes da educação de adultos,
refrescou o entendimento das pessoas
que trabalham para os governos, trouxe a lume algumas discussões teó­ri­cas e
compromissos políticos da Conferência de Hamburgo, e pode, finalmente,
ter dado novo vigor ao compromisso
de algumas pessoas, embora o número de participantes tenha sido baixo,
de procurar uma educação de adultos
que ajude a criar, na feliz frase de Paulo Freire, um mundo no qual será mais
fácil amar. O apelo à acção ainda está
por se ouvir. n
1
Richard Desjardins, Proposal for an ESREA
network on Policy Issues in Adult Education.
Copenhaga, Dinamarca, rascunho, 2008,
página 1.
2 Como afirma claramente Rosa María Torres
no seu relatório: “Qualidade e igualdade
continuam a ser temas chave por resolver,
relacionados, por ordem de importância,
com (a) condição socioeconómica, (b) zona
de residência (urbana-rural), (c) identidade
étnica, e (d) género, tal como confirmado
por inúmeros estudos e avaliações da
região.” Rosa María Torres, “Youth and Adult
Education and Learning in Latin American and
the Caribbean: Trends, Issues and Challenges, “
Rascunho de Documento, 2008, página. 3.
3 Burke e Jackson, op. cit. página 2.
4 O relatório de Rosa María Torres sobre as
sociedades latino-americanas e caribenhas
exprime claramernte este ponto.
5 Helen Keogh, “Adult Learning and
Education in the Unesco region of Europe,
North America and Israel. Rascunho de
relatório, 30 de Setembro de 2008, página 45.
CONFINTEA II
Canadá, 1960
A segunda Confintea aconteceu em
1960 em Montreal, Canadá. Sob a
premissa de um mundo em mudança,
de acelerado crescimento económico e
de intensa discussão sobre o papel dos
Estados frente à Educação de Adultos
reuniram-se 47 Estados-membros
da UNESCO, dois Estados como
observadores, dois Estados Associados
e 46 ONGs.
Cada país-membro elaborou o seu
relatório nacional com base nos
seguintes tópicos:
1. Natureza, objectivo e conteúdos da
Educação de Adultos;
2.Educação cidadã (in civics);
3. Lazer e actividades culturais;
4.Museus e bibliotecas;
5.Universidades;
6.Responsabilidade para com a
educação de adultos;
7.Urbanização;
8.Educação das mulheres.
O principal resultado desta segunda
Con­ferência foi a consolidação da
Decla­ração da Conferência Mundial de
Educação de Adultos que contemplava
um debate sobre o contexto do aumento
populacional, de novas tecnologias, da
industrialização, dos desafios das novas
gerações e a aprendizagem como tarefa
mundial, onde os países mais abastados
devessem cooperar com os menos
desen­volvidos.
AO LONGO DA VIDA 25
Maria do Carmo Gomes
Socióloga, doutoranda do Programa de Doutoramento
em Sociologia do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e
da Empresa. Investigadora do CIES -ISCTE desde 1998.
Vice-Presidente da Agência Nacional para a Qualificação, I.P.
e chefe da delegação portuguesa à Confintea VI,
em representação da Sra. Ministra da Educação.
Da retórica à acção
As cores vivas dos trajes tradicionais africanos, as diversas cores de pele, as fortes cores das
flores que decoravam as salas davam o mote para que um dos princípios da educação e
formação de adultos estivesse permanentemente presente – a diversidade!
O
colorido na sala fazia ante­ver uma das
ca­rac­terís­ti­­­­cas prin­­
ci­pais dos três dias
da
CON­FINTEA
VI. Cores vivas dos
trajes tradicionais
africanos chamavam a atenção, diversas
cores de pele tocavam-se em apertos de
mão, fortes cores das flores decoravam
as salas… cores, cores, cores! Estava
dado o mote para que um dos princípios da educação e formação de adultos
estivesse permanentemente presente – a
diversidade! E foi com esse espírito de
respeito pela diferença, de tolerância e
de solidariedade que se iniciaram e desenvolveram os trabalhos desta grande e
importante conferência internacional.
Concretizar as políticas públicas
A mensagem principal está na assina­
tura da CONFINTEA VI – passar da re­
tórica à acção. É essa a urgência, é esse o
caminho, e é essa a esperança para muitos adultos e jovens que devem ter uma
oportunidade de ini­ciar, prosseguir ou
desenvolver os seus estudos, independentemente da idade, sexo, religião ou
estatuto social. Os objectivos neste cam-
26 APRENDER
po são sempre definidos de modo muito
ambicioso. E estes não eram diferentes.
Reunidos os especialistas, académicos,
peritos, governantes, políticos, diplomatas era necessário discutir o modo como
se podem tirar esses ‘objectivos’ do papel.
Alguns documentos oficiais têm enun­
ciado essa ambição para as políticas de
educação e formação de jovens e adultos,
como forma de combate à pobreza, à
exclusão social, às desigualdades, pro­
movendo uma sociedade mais justa,
igualitária, informada e desenvolvida.
Esses objectivos, porém, não passam na
maioria das vezes de um conjunto de
enunciados teóricos ou de princípios
retóricos. A bondade dessas intenções e
princípios faz acreditar que a mudança
é possível, mas na prática os exemplos
demonstram que se mantém a urgência
de transformar a realidade.
Os Objectivos do Milénio foram tidos
como pano de fundo para essa mudança
e para os atingir será necessário que
cada país, cada governo, cada Estado, se
empenhe intensamente na concepção e
execução de medidas de política pública
que podem fazer a diferença. Passar da
retórica à acção é pois um imperativo
à escala global na área da educação e
formação de adultos e jovens.
Uma conferência, várias regiões,
um documento
Olhar para o campo da educação e
for­mação de jovens e adultos a partir da
CONFINTEA VI permite uma perspectiva global das configurações institucionais, práticas pedagógicas, currículos e
meto­do­logias, políticas públicas, entre
outros aspectos. Essa perspectiva mundial con­duz em primeiro lugar a uma
cons­tatação que traduz (e pode também
ser traduzida por) outras dinâmicas de
desenvolvimento social e económico
das diferentes regiões do nosso planeta.
Três regiões muito distintas surgem
neste contexto – a partir das regiões
habitualmente utilizadas pela UNESCO
neste domínio: África; América Latina e
Caribe; Ásia e Pacífico; Europa, América
do Norte e Israel; Estados Árabes – tra­
duzindo contextos diferentes de desen­
volvimento económico e de organização
social e política e enun­ciando problemas
diversos face às dinâmicas de educação e
formação de adultos e jovens.
Para as regiões mais desenvolvidas
– as chamadas sociedades modernas e
avançadas, segundo algumas con­cep­
tua­lizações sociológicas – a discussão
sobre as políticas na área da educação
DOSSIER CONFINTEA VI
reunidos os especialistas,
académicos, peritos, governantes, políticos,
diplomatas era necessário discutir o modo
como se podem tirar esses ‘objectivos’ do papel.
e formação de adultos e jovens centrase na construção de Sistemas Nacionais
de Qualificações e suas ligações e arti­
culações dentro dos espaços de decisão
e coordenação de diferentes Estados,
como é exemplo a União Europeia.
Neste conjunto de países (e de modo
muito vanguardista, poder-se-ia dizer)
definem-se políticas inovadoras e solu­
ções arrojadas que tentam res­pon­der
aos diferentes contextos e processos
de ensino-aprendizagem que pautam
a vida humana, tendo em conta que a
‘escola’ é hoje um conceito de grande
amplitude e de múltiplas formas coexis­
tentes e, em primeiro plano, entendido
como espaço gerador de igualdade de
oportunidades. Reconhecer compe­
tên­cias adquiridas em contextos for­
mais, não formais e informais (quer
esco­lares quer profissionais); conceber
currículos flexíveis, modulares, baseados
em resultados de aprendizagem e capi­
talizáveis entre diferentes moda­li­dades
de educação-formação; e diversificar as
possibilidades e opções para atingir os
mesmos objectivos de escolaridade e/
ou qualificação são os três pilares em
que assenta o estado da arte da educação
e formação de adultos e jovens nestas
regiões do mundo.
Num segundo conjunto podemos
encon­trar as regiões emergentes – América Latina, Oriente e Ásia1 – nas quais
as polí­ticas de educação e formação de
adul­tos assumem uma configuração
quase paradoxal. Ao mesmo tempo que
neces­sitam de resolver as situações de
analfabetismo de grande parte das suas
populações, estas tentam avançar com
um conjunto de intervenções que pretendem acompanhar o que se faz nos
países mais desenvolvidos, partilhando
e transferindo conhecimento em redes
de cooperação transnacional e obten­do
resultados mui­to interessantes com significativos efei­tos de catching-up relativamente aos seus parceiros num estádio de
desen­vol­vimento mais avançado.
Em terceiro lugar, encontramos as
que poderiam designar-se como regiões
de esperança – a África e o Médio Oriente.
Esperança por diferentes motivos. África
tem de assumir-se como o continente da
esperança por excelência, trazendo para
os seus diferentes países e populações
um horizonte de políticas que vão desde o combate à pobreza extrema até à
implantação de modelos democráticos
de governação e representação dos seus
povos, passando pela necessidade de definição e concretização de políticas que
CONFINTEA III
Japão, 1972
Em 1972, na cidade de Tóquio (Japão)
a terceira edição da CONFINTEA reuniu
82 Estados-membros, três Estados
na ca­te­goria de observador (incluindo
Cuba), três organizações pertencentes
às Nações Unidas, 37 organizações
inter­nacionais. Trabalhando as
temáticas de Educação de Adultos e
Alfabetização, Média e Cultura, apostou
nas premissas de que a Educação
de Adultos teria como elemento
essencial a aprendizagem ao longo da
vida e que seria importante rea­lizar
esforços para fortalecer a demo­cra­cia
e preparar o enfrentamento mun­dial
da não diminuição das taxas de anal­
fabetismo. Diante da constatação de
que a instituição escolar não dá conta
de garantir a educação integral, adoptase a ampliação do conceito sobre
sis­temas de educação que passam a
abarcar as categorias de ensino escolar
e extra-escolar, envolvendo estudantes
de todas as idades. O relatório final
concluiu que a educação de adultos
é um factor crucial no processo de
demo­cratização e desenvolvimentos da
educação, económico, social e cultural
das nações, sendo parte integral do
sistema educacional na perspectiva da
aprendizagem ao longo da vida.
AO LONGO DA VIDA 27
A RECÉM-CRIADA
iniciativa Novas Opor­tunidades tornou possível responder
em larga escala ao também imenso problema de baixas
qualificações da população portuguesa.
possibilitem a disponibilização de direitos e infraestruturas básicas (huma­­nas,
sociais e económicas). Destas últimas
fazem claramente parte as políticas de
educação e formação dos milhões de cidadãos africanos que ainda hoje a elas
não têm acesso. No caso dos Estados
Árabes, para além de partilharem nalguns casos os mesmos problemas que alguns países africanos, a questão religiosa
é determinante, nomea­­damente no que
se refere às dis­cri­minações no acesso à
educação pelas mulheres. São por isso
regiões com forte ambição e esperança
no futuro e na concretização de políticas
que possam efectivamente reduzir a pobreza extrema e as desigualdades sociais
de género e de classe.
É esta a imagem mundial do campo
das políticas de educação e formação.
É um mundo desigual, com ritmos de
desenvolvimento e prosperidade muito diferenciados, mas também com um
enorme potencial de evolução. Con­
gregar num único documento o espírito das diferentes políticas, a definir e a
concretizar, por todos os países pre­sen­
tes é, por isso, uma tarefa de enorme exigência. Mas a CONFINTEA VI con­se­guiu
também ser bem sucedida nesse aspecto, tendo sido produzido e aprovado o
Quadro de Acção de Belém, documento
que enforma as inter­venções a realizar
no domínio da educação e formação de
adultos e jovens nos próximos anos.
28 APRENDER
Um olhar a partir de Portugal
E Portugal? Onde estamos neste pa­
no­­­rama das políticas públicas no domínio da educação e formação de jovens e
adultos?
Foi um privilégio ter participado na
CONFINTEA VI e ter chefiado a dele­­gação
oficial portuguesa, como já afirmei. Mas
este atributo sobre a minha participação
é mais do que apenas uma formalidade,
é uma posição analítica baseada nos factos que caracterizam hoje as políticas de
qualificação de jovens e adultos no nosso país. As transformações ocorridas nos
últimos anos, em Portugal, são muito
relevantes, quer no que se refere à diversificação das vias de conclusão da esco-
laridade pelos jovens em idade escolar,
quer no que diz respeito à concepção e
desenvolvimento de um sistema de educação e formação de adultos que, desde
1999, com a introdução dos Cursos de
Educação e Formação de Adultos e do
Sistema Nacional de reconhecimento,
validação e certificação de competências,
nos coloca a par dos países com práticas
mais avançadas e inovadoras.
A recém-criada Iniciativa Novas Opor­
tunidades trouxe uma consolidação e
uma integração destas medidas de política, que tornou possível responder em
larga escala ao também imenso problema de baixas qualificações da população
portuguesa. Assente num esforço de concretização de objectivos muito ambicio-
DOSSIER CONFINTEA VI
Portugal colocou
no centro da sua agenda política as políticas
de qualificação dos jovens e adultos e esse esforço
é hoje reconhecido quer pela Comissão Europeia,
quer pela OCDE, quer também pela Unesco.
sos, de simultaneidade na concepção e
na intervenção, de legi­bilidade e “transferibilidade” no con­texto europeu e de
forte integração das políticas de educação
e formação profissional, esta Iniciativa é
hoje entendida como um movimento so­
cial a favor das qualificações, que está a
provocar uma revolução no modo como
os portugueses valorizam a educação e a
formação em qualquer idade e acessível
a todos.
É este o verdadeiro espírito que deve
nortear as políticas de aprendizagem ao
longo da vida, fazendo com que todos
os espaços de construção do saber, formais, não formais e informais, e todos
os dispositivos de educação-formação,
sejam pensados para que um cada vez
maior número de pessoas possa ter
oportunidades semelhantes de acesso,
frequência e conclusão.
Portugal colocou no centro da sua
agenda política as políticas de qua­li­
ficação dos jovens e adultos, e esse esforço
é hoje reconhecido quer pela Comissão
Europeia, quer pela OCDE, quer também
pela Unesco, identificando o nosso país e
a nossa estratégia como um caso de ‘boas
práticas’ a seguir com atenção.
reencontrar colegas de outros países, como
o Florêncio Varela, de Cabo Verde, o Timo­
thy Ireland, da Unesco, a Carmen Gatto, do
Brasil, a Francisca, da Guiné, o Filipe, de
São Tomé e Príncipe, e ter conhecido outros
como o Filomeno, de Timor-Leste. Em se­
gundo lugar, evocar alguns dos momentos de
descontracção vividos na cidade de Belém,
com o rio Amazonas e as suas águas turvas e
fortes a banhar uma cidade que tem muitas
influências portuguesas, e uma zona históri­
ca e portuária que em tudo se assemelha ao
que podemos encontrar em Portugal.
E por último, associado aos dois aspec­
tos anteriores, não podia deixar de referir a
língua e a cultura portuguesas como patri­
mónio comum entre todos os amigos citados,
espaços e contextos de interacção partilha­
dos – o privilégio de falar a mesma língua e
o fazer questão em falá-la foi, sem dúvida,
para mim, um outro marco da CONFIN­
TEA VI, que em muito poucas conferências
internacionais pode acontecer. Muito obri­
gada, Brasil. n
Algumas notas pessoais
1
Num outro registo gostaria de deixar
uma nota mais pessoal sobre a CONFIN­
TEA VI. Em primeiro lugar, foi um prazer
CONFINTEA IV
Paris, 1985
Sob a temática “Aprender é a chave do
mundo”, reuniram-se em Paris, França,
no ano de 1985, 841 participantes
de 112 Estados-membros, Agências
das Nações Unidas e ONGs. Este
encontro salientou a importância do
reconhecimento do direito de aprender
como o maior desafio da humanidade.
Entendendo por direito o aprender a
ler e escrever, o questionar e analisar,
imaginar e criar, ler o próprio mundo
e escrever a história, ter acesso aos
recursos educacionais e desenvolver
habilidades individuais e colectivas, a
conferência incidiu sobre as lacunas
das acções governamentais quanto ao
cumprimento do direito de milhares
de cidadãos terem as suas passagens
pelos bancos escolares com propostas
adequadas e com qualidade. Ao mesmo
tempo, o ICAE - Conselho Internacional
de Educação de Adultos cria, em para­
lelo à Conferência, um caucus de
ONG’s e governos progressivos que se
reúnem afim de concretizar a adesão à
Declaração sobre o direito a aprender.
Apoiaram este movimento os governos
da China, Canadá, Países Nórdicos,
Índia e Liga Árabe.
Alguns dos países pertencentes a estas
regiões estão numa situação que os coloca
mais perto das regiões avançadas como é
exemplo, a Coreia do Sul ou o Japão na
região asiática.
AO LONGO DA VIDA 29
Licínio Lima
Professor catedrático do Departamento de Sociologia da Educação e
Administração Educacional, do Instituto de Educação e Psicologia da
Universidade do Minho, departamento que dirigiu durante vários anos.
Actualmente é director do Curso de Mestrado em Educação e coordenador
da Área de Especialização em Organizações Educativas e Administração
Educacional. Director da Revista “Aprender ao Longo da Vida”
Notas breves
de um participante
Estamos a subordinar a aprendizagem e a educação ao longo da vida a um pedagogismo
de raiz económica e gerencial, baseados na crença ingénua de que, pela aprendizagem
ao longo da vida de cada indivíduo mudaremos a sociedade e a economia, em sentidos
pretensamente claros e estabelecidos de forma consensual.
C
onvidado pelo Con­­­­­­
selho Inter­na­cional de
Educação de Adultos
(ICAE) a participar no
FISC – Fórum In­ter­
nacional da Sociedade
Civil, que se realizou
em Belém do Pará, entre 28 e 30 de Novembro de 2009, integrei um painel temático sobre “O significado da educação
de jovens e adultos”, moderado por Alan
Tuckett (NIACE) e com intervenções de
Lola Cendales (Amé­rica Latina) e Cecilia
Soriano (Ásia). Aí apresentei uma comunicação intitulada “De Hamburgo, 1997
a Belém do Pará, 2009: a hegemonia da
aprendizagem para a produção de competências eco­no­­micamente valorizáveis”,
desen­vol­­­vendo alguns dos principais
argu­men­­tos que tinha exposto num debate promovido antes pelo ICAE, na
Internet (A Educação num Contexto de
Múltiplas Crises – http://www.icae2.org),
através de um pequeno texto intitulado
“Apren­dizagem? Que Aprendizagem?”.
Em ambos os casos, chamava a aten­
ção para o exagero do elogio da aprendizagem ao longo da vida, espe­ci­almente
quando conduzido a partir de lógicas
funcionalistas e adaptativas que, na
maioria das vezes, se colocam à margem
30 APRENDER
de uma concepção democrática, humanista e crítica de educação de adultos e
ao longo da vida. Ao procurar adaptarse perfeitamente às estruturas sociais, à
competitividade económica e à busca da
empregabilidade, as políticas públicas
de fomento da aprendizagem ao longo
da vida operaram uma transição radical
do conceito de educação para o conceito
de aprendizagem, atribuindo a este uma
conotação marcadamente individualista
e pragmatista.
A própria UNESCO tem admitido
esta espécie de efeito não desejado, particularmente presente em certas políticas
públicas após a CONFINTEA V (Hamburgo, 1997), seja contribuindo para
desresponsabilizar o Estado pela definição de políticas globais e integradas,
pelo financiamento e provisão de uma
rede pública suficientemente acessível e
diversificada em termos de ofertas, seja
também pelo crescente protagonismo
do mercado, para aí se remetendo as
respostas educativas a muitos cidadãos,
não obstante a sua falta de recursos enquanto clientes.
Frequentemente, as dimensões edu­
cativas de certos processos de formação,
aprendizagem, qualificação ou aquisição de competências, de acordo com a
lin­guagem dominante, encontram-se
ausen­­tes, ou diluídas, nos respectivos
pro­gramas. Consequentemente, a educação, considerada na sua globalidade
e inte­gralidade, compreendendo não
apenas saberes técnicos e instrumentais,
com­petências profissionais ou vocacionais, mas também dimensões culturais,
sociais e políticas orientadas para a interpretação crítica do mundo com­plexo
em que vivemos, e para a par­ti­cipação cívica??? cidadã no pro­cesso da sua transformação, surge sim­ples­mente secundarizada, quando não mesmo conotada
com escolarização e burocratização.
A súbita descoberta, por responsáveis
políticos e económicos, do potencial
das aprendizagens não formais e informais parece que originou uma alternativa à educação de adultos e à educação
popu­lar, ou educação liberal de adultos,
con­soante as tradições. Como se, quer a
educação, quer a aprendizagem, pudes­
sem fazer tudo e resolver todos os nossos problemas.
Estamos, com efeito, a subordinar
a aprendizagem e a educação ao lon­go
da vida a um pedagogismo de raiz económica e gerencial, baseados na crença
ingénua de que, pela apren­di­zagem ao
longo da vida de cada indivíduo mu-
DOSSIER CONFINTEA VI
A cada problema social
e económico a sua terapia, ou remédio, de aprendizagem,
requalificação, ressocialização, como se fosse possível
afrontar problemas estruturais apenas, ou sobretudo,
através de soluções biográficas, através da acção insular de
sujeitos úteis, eficazes, altamente competitivos e sós.
daremos a sociedade e a economia, em
sentidos pretensamente claros e esta­
belecidos de forma consensual. A cada
problema social e económico a sua terapia, ou remédio, de aprendizagem,
requalificação, ressocialização, como se
fosse possível afrontar problemas estruturais apenas, ou sobretudo, através de
soluções biográficas, através da acção insular de sujeitos úteis, eficazes, altamente competitivos e sós.
No contexto do FISC, não obstante a
sua diversidade, aquelas críticas foram
partilhadas por muitos sectores que, na
teoria e na prática, conhecem os impasses
das lógicas de modernização tecnocrática
e os insucessos das políticas e dos programas realizados à margem da promoção
do espírito crítico, da eman­cipação e da
transformação social. Ou seja, orientações que recu­sam, ou ignoram, o capital
de teorias edu­cativas e de metodologias
de tra­ba­lho, de par­ticipação e mobilização socio­edu­cativas, socialmente construído ao longo do século XX, em diferentes
geografias e per­meado por uma grande
diversidade cultural.
Na CONFINTEA VI (1-4 de Dezem­
bro), onde participei a con­vite da UNES­
CO, na qualidade de repre­sentante da
sociedade civil, pude observar posições
e discursos extre­mamente diversos, alguns dos quais muito bem informados
do ponto de vista teórico e respaldados
por ricas experiências de terreno, embora tenha sido dominante a tendência
para os discursos épicos, reproduzindo
muitas vezes, e de modo superficial, os
lugares-comuns conceptuais e terminológicos que hoje fazem fortuna à escala
global, da União Europeia à OCDE, e de
há muito afectando também, ainda que
tal­vez menos radicalmente, a própria
UNESCO.
O ambiente revelou-se demasiado
for­mal e as sessões plenárias chegaram
a inibir a participação dos próprios dele­
ga­dos governamentais. Estes, em muitos casos, intervieram para apresentar
as suas políticas e para elogiar as suas
medidas, não sendo raro um certo ufanismo, a contrastar com as críticas e a
impaciência dos participantes inconformistas. Trata-se, na verdade, de uma reunião mun­dial de escala impressionante
e os impac­­­­tos da divulgação e circulação
das suas recomendações não podem ser
desprezados. E, no entanto, fico com o
sentimento de que a Conferência contém alguns elementos estruturais contra­
ditórios relativamente a uma concepção
dialógica, de debate e de argumentação
em, e sobre, aprendizagem e educação
ao longo da vida.
Não se trata de um problema de
organização, pois aí os colegas brasi­
leiros foram inexcedíveis no sentido
de criar boas condições de trabalho e
de, especialmente, mobilizar o mundo
da educação e a sociedade civil através
de vários fóruns, bem como de tentar,
de múltiplas formas, evidenciar que a
educação é uma política cultural. Criativamente, realizaram ainda várias sessões no âmbito do que designaram por
“CONFINTEA Ampliada”, alargando a
reflexão às universidades de Belém do
Pará, por exemplo, através de um painel, que despertou muito interesse, sobre a situação da educação de adultos
nos países de língua oficial portuguesa,
em que intervim relativamente ao caso
português.
As contradições a que me refiro
prendem-se com o formato gigantesco,
o protocolo e respectivas formalidades, a ainda limitada possibilidade de
inter­venção dos representantes da sociedade civil face às autoridades governamentais, não obstante a retórica das
parcerias, do papel das organizações da
sociedade civil e do chamado “terceiro
sector”. Mesmo a vertente mais acadé-
AO LONGO DA VIDA 31
As contradições
a que me refiro prendem-se com o formato gigantesco,
o protocolo e respectivas formalidades, a ainda limitada
possibilidade de intervenção dos representantes da
sociedade civil face às autoridades governamentais.
mica, com maior tradição e, de resto,
indispensável numa realização deste nível, encontra-se relativamente invisível e
desvalorizada. Note-se que, não obstante a produção de um importante Relatório Global de Aprendizagem e Educação
ao Longo da Vida (GRALE), preparado
por conhe­cidos académicos com base
nos relatórios nacionais e regionais,
onde se formulam críticas e recomendações relevantes, tal documento não teve
o acolhimento necessário em termos de
divulgação e de debate, tal como con­
cluiu Carlos Alberto Torres, um dos seus
autores.
Para além do texto da Conferência,
que ainda não está disponível no momento em que escrevo estas linhas, e do
documento intitulado “Belém Frame­
work for Action”, talvez um dos resultados mais importantes seja o processo
de reflexão, o ponto de situação, a mobilização crítica que são conseguidos
antes e depois da Conferência, seja por
governos, seja por associações e outros
sectores da sociedade civil.
No que concerne ao documento referido, a UNESCO continua, mui­to positivamente, a insistir, embora pou­­co escutada por muitos gover­nos, na necessidade
32 APRENDER
de: basear a apren­di­zagem e educação de
adultos em valo­res inclusivos, emancipatórios, huma­nis­tas e democráticos; desenvolver esfor­ços sistemáticos no domínio
da alfa­betização; conceber e executar polí­
ticas compreensivas e integradoras, não limitadas à agora designada educação e formação vocacional; garantir a par­ti­cipação
da sociedade civil, não apenas em termos
de parcerias e de prestações em nome do
Estado, mas desde logo na definição das
políticas públicas, o que está muito longe
de acontecer; aumentar substancialmente
o financiamento para a educação, tendencialmente para cerca de 6% do Produto
Nacional Bruto; expandir a oferta e a rede
públicas e definir gru­pos prioritários; aumentar o acesso, a qualidade, as taxas de
participação e as estruturas disponíveis a
nível comunitário.
Quanto à mobilização propiciada
pela Conferência, a situação vivida em
DOSSIER CONFINTEA VI
CONFINTEA V
Talvez
Alemanha, 1997
um dos resultados mais importantes seja o processo de
reflexão, o ponto de situação, a mobilização crítica que
são conseguidos antes e depois da Conferência, seja
por governos, seja por associações e outros sectores da
sociedade civil.
Portugal só pode ser considerada como
francamente negativa, até mesmo num
contexto em que o Programa Novas
Oportunidades apresenta gran­de visibilidade pública e os discursos governativos
atribuem grande centra­li­dade à lógica
das qualificações dos portugueses. O governo nada fez de subs­tancial, até mesmo durante o pro­cesso de produção do
respectivo rela­tório nacional que apresentou, sem divul­gação e sem debate, de
resto inci­dindo sobre vectores de actuação relevantes, mas muito limi­tados face
a um conceito amplo, e a práticas que
apesar de tudo continuam a ocorrer, de
educação de adultos. Para encontrar uma
visão global e integrada de educação de
adultos e suas relações privilegiadas com
a educação popular, liberal, comunitária,
e a promoção da cidadania democrática,
o leitor terá de ir ler relatórios de outros
países, e não apenas do chamado “terceiro mundo”, mas por exemplo de França,
de Espanha, ou da Suécia.
Quanto ao ensino superior, a situação é a clássica, uma vez que não temos
tradição, nem estruturas, nem políticas
institucionais, mas apenas alguns docentes e investigadores interessados e,
quase sempre, isolados.
Finalmente, quanto à sociedade civil,
houve o esboçar de algum interesse pon­
tual, porém sem dinâmica e sem escala,
confirmando que o papel de organizações da sociedade civil, ou de movimentos sociais, intervindo em educação de
adultos, nunca chegou a emergir de forma minimamente continuada e organizada em Portugal.
Pode ser que a recepção da Declaração de Belém encontre mais eco entre
nós, a todos os níveis, no futuro próximo, contribuindo para mobilizar os
dife­rentes actores em torno de políticas
e práticas de aprendizagem e educação
ao longo da vida, expressão que sai
refor­çada da CONFINTEA VI e que, pelo
menos, tem a vantagem de retornar aos
conceitos de educação e de formação
de adultos, conceitos esses francamente
desvalorizados ao longo da última década no âmbito de discursos e de orientações políticas nacionais e transnacionais, a favor das qualificações, competências e habilidades economicamente
valori­zá­veis. Mas, como se sabe, estas
podem, no limite, não representar necessariamente experiências educativas,
bem pelo con­trário. n
Realizada em 1997, em Hamburgo
(Alemanha) num contexto de con­
ti­nuidade de outras Conferências
Internacionais que vinham a acontecer
na mesma década, realizou-se a V
CONFINTEA. Esta con­fe­rência consta
na história da EJA de maneira singular,
por ter posto em marcha um intenso
movimento de preparação mundial
com certa antecedência. Ela acontece
a partir de um amplo processo de
consultas preparatórias realizadas
nas cinco grandes regiões mundiais
consideradas pela UNESCO, acrescidas
da Consulta Colectiva às ONGs, de onde
foram consolidados relatórios para a
Conferência Internacional.
Sob o tema da aprendizagem de
adultos como ferramenta, direito,
prazer e responsabilidade, o evento
contou com a participação de mais
de 170 estados membros, 500 ONGs
e cerca de 1.300 participantes. Foi
uma conferência onde a mobilização
atravessou fronteiras temáticas e de
acção: através da liderança do ICAE e
alianças com governos progressivos,
houve uma intensa mobilização de ONGs
e do movimento de mulheres (REPEM E
GEO),mesmo que sem direito a voto.
AO LONGO DA VIDA 33
Controlando o poder e o potencial Da educação e aprendizagem
de adultos Para um futuro viável
Quadro de Acção
de Belém
Tradução: Daniela Silveira
Preâmbulo
1
Nós, os 156 Esta­dos Membros
da UNESCO, representantes das
orga­­ni­zações da socie­da­de ci­
vil, dos parceiros sociais, das
agências das Nações Unidas, das agên­
cias intergovernamentais e do sector
privado, reunimo-nos em Belém do
Pará, no Brasil, em Dezembro de 2009,
como participantes da Sexta Con­fe­
rência Internacional de Educação de
Adultos (CONFINTEA VI), para ava­liar
o progresso feito na educação e apren­
dizagem de adultos desde a CON­FINTEA
V. A educação de adultos é reconhecida
como um elemento essencial do direito
à educação, e temos de traçar um novo e
urgente plano de acção para permitir aos
jovens e adultos o exercício deste direito.
2
Reiteramos o papel fun­da­men­
tal da educação e apren­dizagem
de adultos, con­forme estabelecido durante as cinco Conferências Internacionais de Educação de
Adultos (CONFINTEA I-V), desde 1949,
e comprometemo-nos unanimemente a
fazer progredir, com um sentido de urgência e em passo acelerado, a agenda da
educação e apren­dizagem de adultos.
3
Confirmamos a definição de
educação de adultos que foi
descrita pela primeira vez na
Recomendação de Nairobi para o
Desenvolvimento da Educação de Adultos,
de 1976, e posteriormente desenvolvida
na Declaração de Hamburgo, de 1997,
nomeadamente, a educação de adul­
34 APRENDER
tos denota “todo o corpo de pro­ces­­sos
decorrentes de processos de apren­di­za­
gem, formais ou não, através dos quais
as pessoas consideradas adultas pela
sociedade à qual pertencem desen­
volvem as suas capacidades, enriquecem
o seu conhecimento e melhoram as suas
qualificações técnicas ou profissionais,
ou as voltam para uma nova direcção,
para dar resposta às suas próprias
necessidades ou às da sua sociedade”.
4
Afirmamos que a literacia é
a mais significativa fundação
sobre a qual se deve construir
uma aprendizagem integral,
inclu­siva e integrada, para todos os jovens
e adultos. Dada a magnitude do desa­fio
global de literacia, consideramos vital que
redobremos os esforços para assegurar
que os objectivos e prioridades existentes
para a literacia para adultos, como foram
definidos pela Educação para Todos
(EFA), a Década de Literacia das Nações
Unidas (UNLD) e a Iniciativa de Literacia
para Fortalecimento (LIFE), são atingidos,
através de todos os meios disponíveis.
5
A educação de jovens e adultos
per­mite aos indivíduos, espe­­
cial­mente às mulheres, lidar
com diferentes crises sociais,
económicas e políticas, e com as alterações
climatéricas. Assim, reconhecemos o
papel chave da educação e aprendizagem
de adul­tos no sucesso dos Objectivos
para o Desenvolvimento do Milénio
(MDGs), Educação para Todos (EFA)
e da agenda das Nações Unidas para o
desenvolvimento sustentável em termos
humanos, sociais, económicos, culturais
e ambientais, incluindo a igualdade
entre os sexos (CEDAW e a Plataforma
para Acção de Pequim).
6
Assim, adoptamos este Quadro
de Acção de Belém para nos
guiar no controlo do poder e
potencial da educação e apren­
dizagem de adultos, para um futuro
viável para todos.
Em direcção à Aprendizagem
ao Longo da Vida
7
O papel da Aprendizagem
ao Longo da Vida é crítico na
abordagem às questões e desa­­
fios educativos globais. A Apren­­
dizagem ao Longo da Vida “do berço até à
cova” é uma filosofia, um enquadramento
conceptual e um prin­cípio organizativo
de todas as formas de educação, baseadas
em valo­res de inclusão, emancipação,
huma­ni­dade e democracia; é abrangente
e parte integrante da visão de uma
socie­dade baseada no conhecimento.
Reafirmamos os quatro pilares da apren­
dizagem, recomendados pela Comissão
Internacional de Educação do Século
XXI, nomeadamente aprender a saber,
aprender a fazer, aprender a ser e apren­
der a viver em comunidade.
8
Reconhecemos que a educação e
aprendizagem de adultos repre­­
senta uma componente signi­
ficativa do processo de Apren­
diza­gem ao Longo da Vida, que abraça
DOSSIER CONFINTEA VI
ANEXO
Declaração de Prova
Abordando questões e desafios globais e educativos
1.
A educação e formação de adultos desempenham um papel crítico na
resposta aos desafios culturais, económicos, políticos e sociais contemporâneos. O nosso mundo globalizado abriu caminho a muitas oportunidades, entre as quais a possibilidade de aprender com culturas ricas e diversas, que transcendem as fronteiras geográficas. No entanto, as desigualdades
passaram a ser características dominantes da nossa era. Muita da população
mundial vive na pobreza, com 43,5% a subsistir com menos de US $2 por
dia. A maioria dos pobres do mundo vive em zonas rurais. Os desequilíbrios
demográficos, com populações jovens florescentes no Sul e populações envelhecidas no Norte, são exacerbados por uma migração em grande escala, das
zonas pobres para as zonas ricas – dentro e entre países – e fluxos de números
significativos de pessoas deslocadas. Somos confrontados com o acesso desigual a alimentos, água e energia, e a degradação ecológica ameaça a nossa
existência a longo prazo. Juntamente com a privação de materiais está a muito vista pobreza de capacidades, que impede um funcionamento eficaz da
sociedade. Um número inaceitável de crianças encara a perspectiva de desemprego na juventude, enquanto um número crescente de jovens “desligados”
social, económica e politicamente sente que não tem papel na sociedade.
Enfrentamos mudanças estruturais na produção e nos mercados de
trabalho, inseguranças e ansiedades crescentes na vida quotidiana, dificuldades em conseguir uma compreensão mútua e, agora, uma profunda
crise económica e financeira no mundo. Ao mesmo tempo, a globalização e
a economia de conhecimento forçam-nos a actualizar e a adaptar as nossas
capacidades e competências a novos ambientes de trabalho, formas de organização social e canais de comunicação. Estas questões, e as nossas exigências
urgentes de aprendizagem, colectivas e individuais, questionam os nossos
dogmas e princípios nesta área e em alguns aspectos das fundações dos nossos sistemas e filosofias educativas estabelecidas.
Em muitos países, a literacia de adultos continua a ser um grande desafio: 774 milhões de adultos (dois terços dos quais são mulheres) não
possuem capacidades básicas de literacia, e não existe uma provisão suficiente
de programas de literacia efectiva e de conhecimentos para a vida. Na Europa,
quase um terço da força de trabalho tem apenas o equivalente ao ensino básico, sendo que dois terços dos novos empregos exigem qualificações ao nível do
ensino secundário ou superior. Em muitos países do Sul, a maioria da população nem sequer tem o nível de instrução do primeiro ciclo do ensino básico.
Em 2006, cerca de 75 milhões de crianças (a maioria das quais eram meninas)
tinham abandonado a escola muito cedo, ou nunca a tinham frequentado.
Quase metade destas crianças era da África subsaariana e mais de 80% era
do meio rural. A falta de relevância social do currículo educativo, os números
inadequados e, em alguns casos, a insuficiente formação dos educadores, a
pobreza de materiais e métodos inovadores, e barreiras de todo o tipo minam
a capacidade dos sistemas educativos existentes para fornecer uma aprendizagem de qualidade, que possa lidar com as disparidades nas nossas sociedades.
Houve esforços internacionais concertados para encarar estes desafios.
O progresso tem sido feito no sentido de atingir os seis objectivos da
Educação para Todos (EFA) (2000) através de uma cooperação liderada pelos governos com as agências das Nações Unidas, organizações da sociedade
civil, fornecedores privados e mecenas. Foram disponibilizados recursos crescentes para a Educação Primária Universal, através da Fast Track Initiative da
2.
3.
4.
AO LONGO DA VIDA 35
uma continuidade de aprendizagem, que
vai desde a educação formal à edu­cação
não formal e à educação informal.
A educação e aprendizagem de adul­­
tos servem as necessidades de apren­
dizagem de jovens, adultos e idosos. A
educação e aprendizagem de adultos
cobre um largo espectro de conteúdos
– temas gerais, questões vocacionais,
literacia familiar e educação familiar,
cidadania e muitas outras áreas – com
prioridades que dependem de neces­si­
da­des específicas de cada país.
9
Estamos convictos e ins­pi­ra­dos
pelo papel crítico da apren­
dizagem ao longo da vida, na
resposta a questões e desafios
globais e educativos. É também nossa
convicção que a educação e apren­di­
zagem de adultos deve equipar as pes­
soas com o necessário conhecimento,
capacidades, competências e valores
para exercer e fazer progredir os seus
direitos e controlar os seus destinos. A
educação e aprendizagem de adultos é
também um imperativo para o sucesso
da equidade e da inclusão, para o alívio
da pobreza e para a construção de sociedades equi­­tativas, tolerantes, sustentáveis e baseadas no conhecimento.
Recomendações
10
Embora reconheçamos
os nossos sucessos e
progresso desde a CON­
FIN­TEA V, estamos cien­
tes dos desafios com os quais ainda
nos confrontamos. Reconhecendo que
o cumprimento do direito à educação
36 APRENDER
para adultos e jovens é condicionado
por considerações políticas, de governa­
ção, patrocínios, participação, inclusão,
equidade e qualidade, como definidas
no anexo Declaração de Evidência,
esta­­mos determinados em perseguir as
seguintes recomendações. Os desa­fios
particulares enfrentados pela lite­ra­cia
levam-nos a trazer à discussão reco­
mendações sobre literacia de adultos.
Literacia de adultos
11
A literacia é um alicerce
indispensável, que per­
mi­te aos jovens e adultos
envolverem-se em opor­
tu­nidades de aprendizagem em todas as
fases da aprendizagem contínua. O direito à literacia é uma parte inerente do
direito à educação. É um pré-requi­sito
para o desenvolvimento do potencial
pessoal, social, económico e político.
A literacia é um meio essencial para a
construção das capacidades das pessoas
para lidar com os desafios e complexidades da vida, da cultura, da economia e
da sociedade.
Dada a persistência e escala do desa­
fio da literacia, e o desperdício con­co­
mitante de recursos e de potencial humanos, é imperativo que redobremos
os esforços para reduzir, até 2015, a
iliteracia em 50% em relação aos níveis
de 2000 (Objectivo EFA 4 e outros com­
promissos internacionais), com o objectivo final de prevenir e quebrar o ciclo de
baixa literacia e de criação de um mundo completamente alfabetizado.
Para estes fins, comprometemo-nos a:
a) Assegurar que todas as pesquisas e
recolha de dados reconhecem a lite­
racia como um continuum.
b)Desenvolver um mapa com objectivos
e prazos claros, para dar resposta a
este desafio, baseado nas avaliações
críticas dos progressos realizados,
obs­táculos encontrados e fraquezas
identificadas;
c) Mobilizar e aumentar recursos e espe­
cialidades internos e externos, para levar a cabo programas de literacia com
maior escala, alcance, cobertura e
qualidade, para patrocinar pro­cessos
integrais e de meio-termo, para assegurar que os indivíduos obtêm uma
literacia sustentável;
d)O desenvolvimento da provisão da
literacia, que é relevante e adaptada
às necessidades dos alunos, e que
leva ao conhecimento funcional e
sus­tentável, às capacidades e com­pe­
tências dos participantes, dan­do-lhes
ânimo para continuar a apren­der ao
longo da vida, cujos sucessos são reconhecidos através de métodos e instrumentos de avaliação apropriados;
e) Concentrar as acções de literacia nas
mulheres e em populações com gran­
des desvantagens, incluindo povos
indí­genas e prisioneiros, com um
enfo­que especial nas populações rurais;
f) Estabelecer indicadores e objectivos
internacionais para a literacia;
g) Rever e reportar o progresso, de for­ma
sistemática, entre outros, no inves­
timento e na adequação de recur­sos
na literacia em cada país e a nível
global, incluindo uma secção espe­
cial no Relatório Global de Moni­
torização da EFA;
h)Planear e implementar a edu­ca­
DOSSIER CONFINTEA VI
EFA. A Década de Literacia das Nações Unidas (UNLD) (2003-2012) fornece
apoio para atingir o objectivo de literacia da EFA, através do apoio e tomada de consciência internacional. A Iniciativa de Literacia para Fortalecimento
(LIFE) fornece um enquadramento global dentro da UNLD para apoiar países
com maiores necessidades em termos de literacia. Dois dos Objectivos para
o Desenvolvimento do Milénio (2000) abordam explicitamente a educação:
conseguindo a educação primária universal e paridade de sexos. No entanto,
em nenhum destes esforços houve um papel específico para a educação e
aprendizagem de adultos para além das capacidades básicas de literacia e de
vida. De forma encorajadora, a Década de Educação para o Desenvolvimento
Sustentável (2005-2014) estabelece um largo mandato no qual a educação e
aprendizagem de adultos podem desempenhar um papel altamente visível.
A educação e aprendizagem de adultos é uma resposta crítica e necessária
aos desafios com que nos confrontamos. É um componente chave de um
sistema de educação e aprendizagem ao longo da vida holístico e abrangente,
que integra a educação formal, não-formal e informal, e que aborda, explícita
ou implicitamente, os alunos jovens e adultos. Afinal, a educação e aprendizagem de adultos tratam de providenciar contextos e processos de aprendizagem
que sejam interessantes e que respondam às necessidades dos adultos como
cidadãos activos. Tratam de desenvolver indivíduos auto-confiantes e autónomos, que constroem e reconstroem as suas vidas em culturas, sociedades e
economias complexas e em rápida mudança – no emprego, na família e na comunidade e vida social. A necessidade de avançar para diferentes tipos de emprego no decurso da vida, a adaptação a novos contextos em situações de deslocação ou migração, a importância de iniciativas empresariais e a capacidade
de sustentar melhorias na qualidade de vida – estas e outras circunstâncias
socioeconómicas pedem uma educação continuada ao longo da vida. A educação e aprendizagem de adultos não só oferecem competências específicas,
mas são também um factor chave no sentido de melhorar a auto-confiança, a
auto-estima e uma sensação de identidade e apoio mútuo.
Estima-se hoje que, por cada ano que o nível médio de educação da
população adulta sobe, há um aumento correspondente de 3,7% no
crescimento económico a longo prazo e um aumento de 6% no rendimento
per capita. Ainda assim, a educação e aprendizagem de adultos é muito mais
do que um item para gastos sociais ou despesas financeiras. É um investimento na esperança do futuro.
5.
ção contínua, formação e desen­vol­
vimento de capacidades, para além
das capacidades básicas de literacia,
apoiadas por um ambiente literário
enriquecido.
Política
12
As políticas e medidas
legislativas para a edu­
ca­ção de adultos têm
de ser abrangentes,
inclu­­sivas e integradas numa perspectiva
de aprendizagem ao longo e ao largo da
vida, baseadas em abordagens inter- e
trans-sectorais, que cobrem e ligam todos os componentes da aprendizagem e
da educação.
Com este fim, comprometemo-nos a:
a) Desenvolver e implementar políticas
sub­sidiadas, planos objectivos e legis­
lação para abordar a literacia de adul­
tos, a educação para jovens e adultos
e a aprendizagem ao longo da vida;
b)Desenhar planos de acção específicos e concretos para a aprendizagem
e educação de adultos, que são inte­
gra­dos nos MDG, EFA e UNLD, assim
como outros planos de desen­vol­vi­
men­to, nacionais e regionais, e com
acti­vidades da LIFE, onde estas exis­
tam;
c) Assegurar que a educação e apren­di­
zagem de adultos são incluídas na
iniciativa “ONE United Nations”;
d)Estabelecer mecanismos de coorde­
nação apropriados, tais como comités
de monitorização, envolvendo todos
os participantes activos na educação e
aprendizagem de adultos.
e) Desenvolver ou melhorar estruturas
6.
Progresso na educação e aprendizagem de adultos desde a CONFINTEA V
Os relatórios nacionais submetidos por 154 Estados Membros, em preparação para a CONFINTEA VI e em discussão sobre práticas eficazes
durante as conferências preparatórias regionais, mostraram algum progresso
e inovação na educação e aprendizagem de adultos, dentro de uma perspectiva de aprendizagem ao longo da vida. Exceptuando o exemplo da Estratégia
de Aprendizagem ao Longo da Vida da União Europeia, introduzido no ano
2000, e políticas nacionais relacionadas nos Estados Membros, alguns Estados Membros do Sul introduziram políticas e legislação abrangente sobre
educação e aprendizagem de adultos, e alguns até contemplaram a educação
e aprendizagem de adultos nas suas constituições. Abordagens sistemáticas
à educação e aprendizagem de adultos, orientadas por enquadramentos políticos, estão a ser desenvolvidas, e houve casos de reformas políticas sem
precedentes.
Os planos, programas e campanhas de literacia foram reactivados e acelerados em alguns Estados Membros. O período 2000-2006 assistiu a
um aumento das taxas globais de literacia, de 76% para 84%. O progresso
foi especialmente marcado nos países em desenvolvimento. Alguns governos procuraram activamente trabalhar com a sociedade civil para fornecer
7.
8.
AO LONGO DA VIDA 37
e mecanismos para reconhecimento,
validação e certificação de todas as
formas de aprendizagem, estabe­le­
cendo molduras de equivalências.
Governação
13
Uma boa gover­na­
ção facilita a imple­
mentação da política
de educação e apren­
di­zagem de adul­tos de forma eficaz,
transparente, res­ponsável e justa. A
repre­sentação e par­ticipação de todos
os intervenientes é indispensável para
garantir a resposta às necessidades de
todos os alunos, em especial os mais
desfavorecidos.
Com este fim, comprometemo-nos a:
a) Criar e manter mecanismos para o
envolvimento de autoridades públicas em todos os níveis administrativos, nas organizações da sociedade
civil, parceiros sociais, sector privado,
orga­nizações comunitárias e de alu­­
nos e edu­cadores adultos, em desen­­
volvimento, implementação e ava­
lia­ção das políticas e programas da
educação e formação de adultos.
b)Adoptar medidas de construção de
capa­cidades que apoiem o envol­vi­­
mento construtivo e infor­mado das
orga­nizações da sociedade civil, das
orga­nizações comunitárias e de alunos adultos, como apropriadas, no
desen­volvimento, implementação e
ava­liação das políticas e dos pro­gra­
mas.
c) Promover e apoiar a cooperação inter-sectorial e inter-ministérios.
d)Apoiar a cooperação transnacional
38 APRENDER
através de projectos e redes para
parti­lha de saberes e de práticas ino­
vadoras.
Patrocínios
14
A educação e apren­di­­
zagem de adultos repre­
s­enta um inves­ti­mento
valioso, que traz benefícios sociais, ao criar sociedades mais
democráticas, pacíficas, inclusivas, produtivas, saudáveis e sustentáveis. Um investimento financeiro significativo é essen­cial
para assegurar a provisão de qua­lidade da
educação e aprendizagem de adultos.
Com este fim, comprometemo-nos a:
a) Acelerar o progresso em direcção ao
sucesso da recomendação da CON­
FINTEA V, para procurar um investimento de pelo menos 6% do PIB na
educação, e trabalhar para o aumento
do investimento na edu­ca­ção e aprendizagem de adultos;
b)Expandir os recursos e orçamentos
educativos existentes através de todos
os departamentos governamentais,
para ir ao encontro dos objectivos de
uma estratégia integrada de educação
e aprendizagem de adultos;
c) Considerar novos, e aumentar os já
existentes, programas transnacionais
de fundos para a literacia e a educação
de adultos, nas linhas das acções do
Programa de Aprendizagem ao Longo
da Vida da UE.
d)Criar incentivos para a promoção de
novas fontes de fundos, por exem­
plo, do sector privado, ONGs, comu­
nidades e indivíduos, sem pre­ju­dicar os
princípios da equidade e da inclusão;
e) Dar prioridade ao investimento na
aprendizagem ao longo da vida a
mulheres, populações rurais e pes­
soas com deficiência.
Para apoiar estas estratégias, pedimos
aos parceiros internacionais de desen­
volvimento que:
f) Cumpram o seu compromisso de
preencher os vazios orçamentais que
impedem o sucesso dos objectivos da
EFA, especialmente os objectivos 3 e
4 (aprendizagem de jovens e adultos,
literacia de adultos);
g) Aumentem os fundos e o apoio
técnico para a literacia, aprendizagem
e educação de adultos e explorem a
praticabilidade de usar mecanismos
alternativos de financiamento, tais
como alteração ou perdão de dívidas;
h)Exijam que os planos do sector
educativo, submetidos à Fast Track
Initiative (FTI) incluam acções
credíveis e investimento na literacia
de adultos.
Participação,
inclusão e equidade
15
A educação inclusiva
é fundamental para o
sucesso do desen­vol­
vimento humano, social e económico. Equipar todos os indivíduos para desenvolver o seu potencial
contribui de forma signi­fi­cativa para os
encorajar a viver em comunidade, em
harmonia e com dignidade. Não pode
haver exclusão baseada na idade, sexo,
etnia, estatuto de imigrante, língua, religião, deficiência, ruralidade, identidade
DOSSIER CONFINTEA VI
oportunidades de aprendizagem não-formal em abordagens como faire-faire,
com um amplo leque de conteúdos, objectivos e grupos alvo. A abrangência
da educação não-formal diversificou-se, cobrindo tópicos como os direitos
humanos, cidadania, democracia, fortalecimento das mulheres, prevenção
da SIDA, saúde, protecção ambiental e desenvolvimento sustentável. Eventos
informativos tais como as Semanas dos Alunos Adultos e festivais de aprendizagem, bem como movimentos abrangentes, tais como as Cidades de Aprendizagem e as Regiões de Aprendizagem, contribuem substancialmente para a
educação e aprendizagem de adultos.
Houve sinais convincentes e um aumento do reconhecimento, entre os
Estados Membros, dos benefícios de uma provisão consciente de género
na educação e aprendizagem de adultos, especialmente no que diz respeito
às mulheres. As tecnologias de informação e comunicação e a aprendizagem
aberta e à distância estão a ser adoptadas e estão a responder lentamente às
necessidades específicas dos alunos que, até há pouco tempo, tinham sido
excluídos. A aprendizagem da língua materna está a ser abordada, de forma
crescente, nas políticas nacionais em contextos multilingues e multiculturais,
embora poucos tenham implementado políticas abrangentes.
Foram introduzidos sistemas de informação, documentação, monitorização e avaliação da educação e aprendizagem de adultos. Estão a
ser criados, gradualmente, instrumentos e sistemas eficazes de reconhecimento, validação e acreditação da aprendizagem, incluindo corpos de controlo
de qualidade e de procedimentos. Está provado que criar sinergias entre a
educação e a aprendizagem formal, não-formal e informal obtém melhores
resultados, para os alunos individuais e sistemas de educação, conforme os
recursos e competências existentes são usados de forma mais eficaz.
A educação de adultos floresce quando os estados implementam
iniciativas decisivas em aliança com instituições chave da sociedade
civil, o sector empresarial e associações de trabalhadores. As parcerias público-privado estão a ganhar força, e a cooperação Sul-Sul e triangular está a
dar resultados tangíveis na criação de uma nova forma de aprendizagem de
adultos para um desenvolvimento, paz e democracia sustentáveis. Os corpos
e agências regionais e supranacionais têm papéis cruciais e transformadores,
influenciando e complementando os estados.
9.
ou orientação sexual, pobreza, deslocação ou privação de liberdade. Combater
os efeitos cumu­lativos de desvantagens
múltiplas é de especial importância. Devem ser tomadas medidas para aumentar a motivação e o acesso para todos.
Com estes fins, comprometemo-nos a:
a) Promover e facilitar um acesso e par­
ticipação mais equitativos na apren­
dizagem e educação de adul­tos,
pro­movendo uma cultura de apren­
di­za­gem e eliminando as barreiras à
participação;
b)Promover e apoiar um acesso e par­
ticipação mais equitativos na educação e aprendizagem de adul­tos,
através de uma orientação objectiva e
bem definida, bem como de actividades e programas como a Semana do
Aluno Adulto e festivais de aprendizagem;
c) Antecipar e responder a grupos iden­
tificáveis que entram na trajectória de
múltiplas desvantagens, em especial
no início da idade adulta;
d)Criar espaços e centros comunitários
de aprendizagem e melhorar o aces­so
e a participação no leque com­pleto de
programas de educação e aprendizagem de adultos para mulhe­res, registando as exigências parti­culares de um
percurso de vida no feminino;
e) Apoiar o desenvolvimento da escrita
e da literacia nas várias línguas indí­
genas, desenvolvendo programas,
métodos e materiais relevantes, que
reconheçam e valorizem as culturas,
conhecimentos e metodologias indí­­
genas, ao mesmo tempo que desen­­
volvem de forma adequada o ensi­no
da segunda língua, de maior comu­
nicação;
10.
11.
Desafios para a educação e aprendizagem de adultos
Apesar deste progresso, os relatórios nacionais e o Relatório Global
de Educação e Aprendizagem de Adultos (GRALE) produzido para a
CONFINTEA VI mostram novos desafios sociais e educativos que emergiram
juntamente com problemas existentes, alguns dos quais se agravaram no interregno, a nível regional, nacional e global. De forma crucial, a expectativa
de que reconstruíssemos e reforçássemos a educação e aprendizagem de adultos, na sequência da CONFINTEA V, não se concretizou.
O papel e o lugar da educação e aprendizagem de adultos na aprendizagem ao longo da vida continuam a ser minimizados. Ao mesmo
tempo, os domínios da política, fora da educação, não conseguiram reconhecer e integrar as contribuições distintivas que a educação e aprendizagem de
adultos podem oferecer para um maior desenvolvimento económico, social
e humano. O campo da educação e aprendizagem de adultos continua fragmentado. Os esforços de apoio dissipam-se num sem número de frentes, e
a credibilidade política dilui-se precisamente porque a natureza díspare da
educação e aprendizagem de adultos impede uma identificação próxima com
uma arena de políticas sociais específica. A frequente ausência da educação
de adultos das agendas das agências governamentais vai ao encontro da parca
cooperação inter-ministerial, de fracas estruturas organizacionais e de ligações pobres entre a educação (formal e não-formal) e outros sectores. No
12.
13.
AO LONGO DA VIDA 39
f) Apoiar financeiramente um enfoque
sistemático em grupos desfavorecidos (por exemplo, povos indígenas,
imi­grantes, pessoas com necessidades especiais e pessoas que vivem em
zonas rurais) em todas as políticas e
abordagens educativas, que podem
incluir programas livres de encargos
ou subsidiados pelos governos, com
incentivos para a aprendizagem tais
como bolsas de estudo, perdão de
propinas e licenças sabáticas pagas;
g) Fornecer educação de adultos nas prisões, em todos os níveis apro­priados;
h)Adoptar uma abordagem holística e
integrada, incluindo um mecanismo
de identificação dos intervenientes
e das responsabilidades do estado
na parceria com as organizações da
socie­dade civil, os intervenientes do
mercado de trabalho, alunos e edu­­
cadores;
i) Desenvolver respostas educativas eficazes para imigrantes e refugiados,
como ponto-chave para um trabalho
de desenvolvimento.
Qualidade
16
A qualidade na edu­
caç­ão e apren­diza­gem
é um conceito e uma
prática holís­ti­ca e multidimensional que exige uma aten­ção
constante e um desenvolvimento contínuo. Patrocinar uma cultura de qualidade
na educação de adultos requer um conteúdo e modos de transmissão relevantes,
uma avaliação centrada nas necessidades
do aluno, a aquisição de múltiplas competências e conhecimentos, o profissiona-
40 APRENDER
lismo dos educadores, o enriquecimento
dos ambientes de apren­dizagem e o fortalecimento de indivíduos e comunidades.
Com estes fins, comprometemo-nos a:
a) Desenvolver critérios de qualidade para os currículos, materiais de
apren­­dizagem e metodologias de ensino nos programas de educação de
adultos, registando os resultados e
medidas de impacto;
b)Reconhecer a diversidade e plu­ra­
lidade de fornecedores;
c) Melhorar a formação, construção de
capacidades, condições de empre­go e
a profissionalização dos educa­dores
de adultos, por exemplo através do
estabelecimento de par­ce­rias com
instituições de ensino supe­rior, associações de professores e organizações
da sociedade civil;
d)Elaborar critérios para avaliação dos
resultados da aprendizagem de adultos em vários níveis;
e) Pôr em prática indicadores precisos
de qualidade;
f) Prestar maior apoio à investigação
interdisciplinar sistemática na edu­ca­
ção e aprendizagem de adultos, com­
plementada com sistemas de gestão
de conhecimentos para a recolha,
aná­lise e disseminação de dados e
boas práticas.
Monitorizar a
implementação do Quadro
de acção de Belém
17
Retirando forças da
nos­sa vontade colec­
ti­va para revigorar a
edu­cação e apren­di­­za­
gem de adultos, nacional e inter­na­­cio­
nal­­mente, comprometemo-nos com as
seguintes medidas de res­pon­sa­bilização
e monitorização. Reco­nhe­cemos a ne­
ces­­­sidade de dados qua­­li­tativos e quan­­
titativos válidos e confiá­veis para infor­
mar os legisladores de educação e aprendizagem de adultos. Trabalhar com
os nossos parceiros para criar e imple­
mentar mecanismos de registo regu­lar a
nível nacional e internacional é impres­
cindível na rea­li­zação do Quadro de Acção de Belém.
Para estes fins, comprometemo-nos a:
a) Investir num processo de desen­vol­
vimento de um conjunto de indi­
cadores comparáveis de dados para a
literacia, como um contínuo e para a
educação de adultos;
b)Recolher e analisar regularmente os
dados e informações sobre parti­ci­
pação e progressão de programas de
educação de adultos, desagregados
por sexo e outros factores, para ava­
liar a mudança com os tempos e partilhar boas práticas;
c) Estabelecer um mecanismo regular de monitorização para avaliar a
imple­mentação dos compromissos
da CONFINTEA VI;
d)Recomendar a preparação de um
rela­tório de progresso, trienal, para
ser submetido à UNESCO;
e) Iniciar mecanismos regionais de moni­
torização com avaliações e indi­cadores;
f) Produzir um relatório nacional de
progresso para uma Revisão de Meio
Termo da CONFINTEA VI, que coincida com a EFA e o MDG de 2015;
g) Apoiar a cooperação Sul-Sul para o
acompanhamento do MDG e da EFA
DOSSIER CONFINTEA VI
que diz respeito ao reconhecimento e acreditação da aprendizagem, os mecanismos nacionais e os esforços internacionais dão uma ênfase indevida a
capacidades e competências formalmente acreditadas, raramente incluindo a
aprendizagem não-formal, informal e experiencial. O fosso entre a política e
a implementação aumenta quando o desenvolvimento de políticas é levado
a cabo isoladamente, sem participação ou opiniões externas (do campo e de
instituições de ensino superior) e de outras organizações de educadores de
jovens e de adultos.
Não foi estabelecido um planeamento financeiro suficientemente
alargado ou financeiramente adequado para permitir à educação e
aprendizagem de adultos fazer contribuições significativas para o nosso futuro.
Além disso, a tendência corrente e crescente de descentralização na tomada de
decisões nem sempre tem paralelo em distribuições financeiras adequadas a
todos os níveis, ou por uma delegação apropriada com autoridade orçamental.
A educação e aprendizagem de adultos não figura grandemente nas estratégias de ajuda de mecenas internacionais e não foi sujeita a esforços actuais de
coordenação e harmonização de doadores. Até agora, o perdão da dívida não
beneficiou de forma marcada a educação e aprendizagem de adultos.
Embora presenciemos uma variedade crescente de programas de
educação e aprendizagem de adultos, o foco primário de tal provisão está agora na educação e formação vocacional e profissional. Estão em
falta abordagens mais integradas à educação e aprendizagem de adultos para
lidar com o desenvolvimento, em todos os seus aspectos (económico, sustentável, comunitário e pessoal). Iniciativas mainstream nem sempre levaram
a programas mais relevantes para uma maior participação das mulheres. De
forma semelhante, os programas de educação e aprendizagem de adultos raramente dão resposta a povos indígenas, populações rurais e migrantes. A
diversidade de alunos, em termos de idade, sexo, background cultural, estatuto
económico, necessidades específicas – incluindo deficiência – e língua, não se
reflecte nos conteúdos e práticas programáticas. Poucos países têm políticas
multilingues consistentes, que promovam a língua materna, mas isso é muitas vezes crucial para a criação de um ambiente de literacia, especialmente
para as línguas indígenas e/ou de minorias.
A educação e aprendizagem de adultos, quando muito referida apenas em traços muito gerais, surge poucas vezes em muitas agendas e
recomendações internacionais de educação, e é muitas vezes vista como um
sinónimo de aquisição básica de literacia. No entanto, a literacia tem, indiscutivelmente, uma enorme importância, e o imenso e persistente espectro do
desafio da literacia representa uma denúncia da adopção desadequada das
medidas e iniciativas lançadas em anos recentes. As consistentemente elevadas taxas de iliteracia, colocam a questão sobre se se terá feito o suficiente, em
termos políticos e financeiros, pelos governos e agências internacionais.
A falta de profissionalização e de oportunidades de formação para
educadores tem tido um impacto negativo na qualidade da provisão
da educação e aprendizagem de adultos, tal como a fraca qualidade do ambiente de aprendizagem, em termos de equipamento, materiais e currículos.
Só raramente é que a avaliação e investigação de necessidades são conduzidas
de forma sistemática no processo de planeamento, para determinar os conteúdos, pedagogia, modo de transmissão e infra-estrutura de apoio adequada.
Os mecanismos de monitorização, avaliação e feedback não são uma característica consistente no horizonte de qualidade da educação e aprendizagem de
adultos. Onde existem, os seus níveis de sofisticação estão sujeitos à tensão de
equilibrar qualidade com quantidade de provisão.
Esta Declaração de Prova fornece o argumento de apoio para as
recomendações e estratégias acima delineadas no Quadro de Acção
de Belém. n
14.
nas áreas da literacia de adultos, educação de adultos e aprendizagem ao
longo da vida;
h)Monitorizar a colaboração na edu­
cação de adultos através das dis­ci­
plinas e dos sectores, tais como agri­
cultura, saúde e emprego.
Para apoiar o acompanhamento e moni­
torização a nível internacional, pedimos
à UNESCO e às suas estruturas:
i) Que providencie apoio aos Estados
Membros, desenhando e criando um
sistema de livre acesso de gestão de
conhecimentos para compilar dados e estudos de caso de boas práticas, para o qual os próprios Estados
Mem­bros irão contribuir;
j) Que desenvolva linhas de orientação
sobre todos os resultados de apren­
di­zagem, incluindo os adquiridos
através da aprendizagem não-formal
e informal, para que possam ser reconhecidos e validados;
k)Que coordene, através do Instituto
da UNESCO para a Aprendizagem
ao Longo da Vida, em parceria com
o Instituto de Estatística da UNESCO, um processo de monitorização a
nível global, para avaliar e informar
periodicamente o progresso na educação e formação de adultos;
l) Que produza, nesta base, o Rela­tório
Global sobre Educação e Apren­dizagem
de Adultos (GRALE), a intervalos regulares;
m) Que reveja e actualize, até 2012, a Re­
comendação de Nairobi sobre o Desen­
vol­vimento da Educação de Adultos
(1976). n
15.
16.
17.
18.
AO LONGO DA VIDA 41
Celita Eccher
Secretária-Geral do Conselho Internacional
de Educação de Adultos (ICAE), uma ONG
internacional que representa mais de 700 associações
dedicadas à literacia, educação de adultos e
aprendizagem ao longo da vida.
O FISC,
uma plataforma
de lançamento
O Fórum Internacional da Sociedade Civil (FISC) foi um encontro de carácter mundial,
que se realizou em Belém do Pará, Brasil, nos dias 28, 29 e 30 de Novembro de 2009.
O
s seus objectivos
eram: A) pre­pa­rar
a par­ti­ci­pação da
socie­dade civil na
Conferência Inter­
nacional de Edu­
cação de Adultos
(CONFINTEA VI); B) articular os diferentes movimentos, redes e organizações da sociedade civil de diversos países para aprofundar a refle­­xão, o debate
democrático de ideias, a formulação de
propostas, o inter­­câmbio livre de experiências e a arti­cu­lação para obter acções
eficazes na inci­dência de políticas públicas que for­taleçam o exercício do direito
à edu­cação ao longo da vida.
A CONFINTEA é a mais importante
conferência internacional no campo da
edu­cação de pessoas jovens e adultas
(EPJA). É coordenada pelo Instituto da
UNES­CO para a Educação ao Longo da
Vida e tem lugar a cada 12 anos. A sexta
edi­ção teve lugar em Belém, entre os
dias 1 e 4 de Dezembro. Foi a primeira
42 APRENDER
vez que a Conferência se realizou num
país do Sul.
As “CONFINTEAS” reúnem os Esta­
dos-membros da UNESCO, que estão
repre­sentados pelos Ministérios da Edu­­
cação, e procura obter directivas inter­
nacionais para as políticas educa­tivas no
campo da EPJA.
A sociedade civil organizada procura
incidir sobre as diferentes etapas des­te
processo, com vista a influir no docu­
mento final e nos compromissos assu­
mi­dos pelos governos.
É neste sentido que o FISC surge
como espaço de encontro, plural, não
con­­­fessional, não governamental e não
par­tidário, aberto à diversidade de iden­
tidades e temas presentes nas prá­ticas
da EPJA, que advoga o respeito pelos
Direitos Humanos, a prática de uma
demo­cracia participativa e um mode­lo
de desenvolvimento que seja sus­ten­tá­
vel em relação aos recursos naturais e à
preservação da diversidade, por rela­ções
igualitárias, solidárias e pací­fi­cas entre
pessoas, etnias, géneros e povos, con­de­
nando todas as formas de domi­nação,
assim como a sujeição de um ser humano
por outro.1
É necessário que as Organizações da
Sociedade Civil gerem amplas alian­ças.
Se aprendemos com as redes, movi­
mentos e outras organizações da socie­
dade civil, desde a década social das
conferências das Nações Unidas, nos
anos 90, que um bom documento é
muito importante para o trabalho de
influência nas políticas públicas, tam­
bém aprendemos que o processo pre­
pa­ratório destas conferências é uma boa
motivação para fortalecer e intensificar
as organizações da sociedade civil.
É nesse sentido que o processo
preparatório da CONFINTEA VI foi um
exce­lente pretexto para promover uma
movimentação das organizações que
trabalham pelo direito a uma educação
ao longo de toda a vida.
Podemos organizar este processo em
três fases sucessivas e inter-relacionadas:
DOSSIER CONFINTEA VI
o processo preparatório
destas conferências é uma boa motivação
para fortalecer e intensificar as organizações
da sociedade civil.
1. A fase preparatória do FISC, na qual
se realizou um Seminário Virtual com
participação aberta de todas as regiões
do mundo, que teve o seu ponto alto
num seminário presencial em Leicester,
em Maio de 2008.
Neste seminário participaram, para
além do ICAE, a Campanha Lati­no-ame­
ricana pelo Direito à Edu­ca­ção, Action
Aid, o Gabinete de Género e Educação
do ICAE, peritos especialmente convi­
dados, e a Pla­ta­forma Africana.
Ali deu-se prioridade às principais áreas
de influência e elaborou-se um pri­meiro
documento de dis­cus­são, para ser submetido a debate com todas as redes e organizações que assim o desejassem, funda­
men­­talmente através da ordem de tra­ba­
lhos: (CONFINTEA) espe­cial­mente cria­da
para debater e pro­mover a par­­ticipação a
todos os níveis, assim como bole­tins elec­
tró­nicos e websites das diversas organizações promotoras, ao que se jun­tou o website do FISC, o blog, Facebook e Twitter,
no momento da sua realização.
A plataforma africana2 é, sem dúvi­da,
um dos sucessos visíveis deste pro­cesso:
depois de mais de uma década, África
pôde acordar um tra­ba­lho conjunto das
suas redes com a criação desta Plata­
for­ma, utilizando os espaços gerados
pelos seminários regionais africanos,
organizados pelo ICAE no processo pre­
pa­ratório da CONFINTEA.
Também, e como outro exemplo, a
partir desses seminários presenciais cria­
ram-se redes nacionais que per­mi­tiram
avançar na sensibilização dos governos
e da sociedade civil em diversos países,
em várias regiões e, sobretudo, fortalecer
a socie­dade civil, na sua luta pelo direi­to
à educação. Em outras regiões, as asso­
ciações realizaram diversas acti­vi­dades e
apresentaram também as suas tomadas
de posição.
Como resultados da organização da
CON­FINTEA, formaram-se três comis­
sões:3
Uma de nível internacional, outra regional, formada por redes, movi­mentos
e ONGs da América Latina e do Brasil, e
outra local, em Belém.
Isto permitiu a inter-relação dos di­
ver­­sos níveis de participação.
A segunda fase foi composta por duas
partes:
2.1 O FISC propriamente dito, que
per­mitiu a participação de uma ampla
representação mundial de diversos
actores da educação e de movimentos
sociais.
Procurou-se que fossem abordados
no FISC os temas mais importantes que
são hoje uma preocupação do EPJA,
num esforço de pôr em prá­tica a interseccionalidade e res­sal­tar as múltiplas
esferas onde a educação tem um papel
importante, através de painéis com especialistas convidados.4
O segundo dia foi dedicado a acti­vi­
dades de auto-gestão, nas quais assegurámos a inclusão de outras propostas e a
diversidade de visões sobre as temáticas,
uma vez que foram os próprios participantes a decidir qual a actividade a apresentar, nos diversos ateliers.
Este evento anterior à CONFINTEA
permitiu não só conhecer, partilhar e
reconhecermo-nos como actores que
trabalham pelo direito à educação, mas
também uma coordenação assegurada
na conferência, com um documento
emanado da sociedade civil, a partir
dos contributos de vários grupos (de
mulheres, regio­nais, temáticos) que
se consolidou no grupo da sociedade
civil.5
2.2 Na conferência propriamente dita,
esta preparação permitiu muitas coisas:
A principal foi o ganho político: a
sociedade civil esteve presente, aliada
e com força, pressionando a cada momento que considerou necessário, por
exemplo, fazendo advocacia com o documento, que foi referendado por muitos países num todo, e por muitos outros com algumas modificações, como
emenda ao documento original, ou exigindo respeito pelos procedimentos do
Comité de Redacção.
Foi uma aprendizagem de como é
possível ter uma presença efectiva e uma
acção coerente e consistente na sociedade civil, na conferência.
Não menos importante, a mobi­li­za­
ção e o entusiasmo do FISC transmitiuse à CONFINTEA, e deu-lhe um impulso
para ser um espaço onde ocorrem certos
AO LONGO DA VIDA 43
DOSSIER CONFINTEA VI
debates que não teriam acontecido sem
a presença da sociedade civil, concretamente no debate do Quadro de Acção
de Belém.
Este processo levou-nos a essa pla­ta­
forma imaginária de lan­ça­mento, para
fortalecer um movimento de defesa do
direito humano à educação em todas as
idades e em todo o mundo.
Hoje, preparámos um caminho e temos uma oportunidade de cultivá-lo e
alargá-lo. Temos a oportunidade de continuar a estabelecer alianças com os movimentos sociais, de ter uma presença
mais importante em algumas temáticas,
como as alterações climatéricas e outras,
que têm a ver com a sobrevivência da
humanidade no planeta.
Já está aberto o processo de con­ti­
nuidade através da comissão do Grupo
da Sociedade Civil, que criou um grupo
de trabalho com o objectivo de processar a enorme e rica produção de material
que se deu durante o processo, através
dos seminários virtuais, da ordem de
trabalhos da CONFINTEA e durante a
própria conferência. n
A mobilização
e o entusiasmo do FISC transmitiu-se à CONFINTEA,
e deu-lhe um impulso para ser um espaço onde ocorrem
certos debates que não teriam acontecido sem a presença
da sociedade civil.
1
Ver Carta de Princípios: http://www.fisc2009.org/index.php?option=com_content&
view=article&id=29&Itemid=8
2 Mais informação: http://www.africacsplateforme.org /
3 Mais informação: http://www.fisc2009.org/esp/index.php?option=com_content&vi
ew=article&id=13&Itemid=12
4 Ver PROGRAMA: http://www.icae2.org/files/portugues.pdf
5 Ver Documento da Sociedade Civil: http://www.fisc2009.org/images/CS_Advocacy_
Paper_FINAL_DRAFT_16_Sept_POR.pdf
LINKS
Pagina web FISC: www.fisc2009.org
BLOG FISC:
http://www.fisc2009.wordpress.com
Pagina web ICAE: www.icae.org.uy
DA RETÓRICA À AÇÃO COERENTE
Documento com as contribuições da sociedade civil ao Quadro de Acção de Belém,
apresentado no dia 1° de dezembro de 2009.
http://fisc2009.wordpress.com/2009/12/02/sociedade-civil-apresenta-propostaspara-a-declaracao-de-belem/
Reacções finais do caucus da sociedade civil. Documento apresentado no dia 4 de
Dezembro de 2009.
http://fisc2009.wordpress.com/2009/12/07/sociedade-civil-apresenta-suasconsideracoes-finais-sobre-a-confintea-vi/
44 APRENDER
AO LONGO DA VIDA 45
artigo
Ao reatar os laços teórico-analíticos com a tradição crítica da educação de adultos encontramos as bases
para reinventar uma praxis que possibilite esgravatar um pouco mais fundo os contextos educacionais.
Investigar e Agir para Desafiar
o Carácter Instrumental da
Nova EFA
Pistas para Reanimar a Educação
de Adultos como Pedagogia de Oposição
Texto de Rosanna Barros, Universidade do Algarve # Ilustração Luis Miguel Castro
A
consideração de um modo alternativo de reflexão global na investigação sobre educação
de adultos, que valorize o seu legado crítico
e radical e a sua divulgação na academia e
fora dela implica já, por si só, um desafio, na
medida em que estamos num momento em
que há uma inflação de novos discursos tecnicistas, maioritariamente elaborados em torno de um entendimento instrumental
dos conceitos de aprendizagem e de competências, que possuem um grande potencial para encobrir e ocultar do debate
público as estratégias contidas nas agendas políticas sobre
educação (Barros, 2009). Ao reatar os laços teórico-analíticos
com a tradição crítica da educação de adultos encontramos
as bases para reinventar uma praxis que possibilite esgravatar
um pouco mais fundo os contextos educacionais e pensar um
pouco mais criticamente a realidade social, partindo do legado
dos pedagogos críticos e radicais, de onde sobressai a filosofia
político-pedagógica de Paulo Freire. Trata-se sobretudo de procurar construir para a época actual uma ontologia e uma epistemologia educacional que retome a politização dos conceitos e a
dignidade universal e ética da condição humana.
Uma ontologia radical que significa indagar acerca do significado de ser-se um ser humano e humanizado no âmbito dos
limites actuais criados pelo capitalismo neoliberal, uma reflexão crítica de base, fundamental para compreender que, sendo
a história uma construção social, há sempre alternativas para
as ‘situações limite’ de opressão, e tal como enfatizam Allman
e Wallis mesmo com as mais fortes limitações “um potencial
46 APRENDER
para nos tornarmos mais humanos pode ser alcançado – um
potencial que podia ser entendido e desenvolvido por toda a
humanidade se quiséssemos transformar as actuais relações
sociais, criando outras novas” (Allman e Wallis, 1997: 20). Colocada desta forma, uma ontologia radical de inspiração freiriana
é tanto crítica como esperançosa porque exige que se analise
o ‘estar sendo menos’, presentemente, com os critérios e pressupostos derivados de uma visão humanista, democrática e
socialmente justa do que pode vir a significar ‘ser-se mais’, no
futuro.
Uma epistemologia educacional de cariz radical pressupõe,
por seu turno, que se aprofunde a crítica ao modo ainda dominante de pensar a realidade, que a fracciona e dicotomiza,
bem como à forma instrumental segundo a qual educadores
e educandos se relacionam actualmente com o conhecimento,
nos contextos hegemónicos, para poder criar as condições teóricas possibilitadoras da concepção de caminhos alternativos.
Isto porque se desejarmos, verdadeiramente, que a pesquisa
científica e a educação possam contribuir para a apreensão do
real, de modo a propiciar um ganho de consciência crítica que
facilite a transformação social, então é necessário um engajamento, por parte dos intelectuais e dos educadores, com o
outro, numa procura partilhada de relações sociais, económicas e políticas alternativas, que visando um entendimento mais
radicalmente democrático da democracia, represente as bases
e os fundamentos para a organização de um movimento global
de resistência à opressão. Um movimento global e contra-hegemónico que, como acentuam Allman e Wallis, “ergue-se pela
Uma epistemologia educacional de cariz
radical pressupõe que se aprofunde a crítica
ao modo ainda dominante de pensar a
realidade, que a fracciona e dicotomiza.
união entre saber e ser, de maneiras completamente diferentes e humanizadas” (Allman e Wallis, 1997: 21). Isto significa
ter a responsabilidade de aprender e ensinar a compreender a
nossa realidade de forma dialéctica, o que implica desde logo
que uma epistemologia radical é impossível de ser elaborada
na ausência de uma também radical ontologia. Ora, uma das
consequências que se podem destacar do exercício dialéctico
entre uma ontologia e uma epistemologia radicais é o resgate
da dimensão colectiva da educação de adultos atribuindo-selhe um valor simbólico de bem colectivo, que faz com que, para
muitos, o conceito de educação não possa ser entendido sem a
sua base humanista e democrática que lhe serve de essência.
Posto isto, na reflexão acerca das relações de poder envolvidas na relação entre educação e sociedade, há que começar
por restituir à esfera pública o debate de ideias para poder
pensar criticamente a trilogia que relaciona a questão dos valores e bens comuns, a questão da cidadania democrática e a
questão da ideologia, questões que nos parecem fundamentais
para estruturar uma agenda radical para a educação de adultos
que vá assumidamente em contra-mão da actual perspectiva
hegemónica da aprendizagem ao longo da vida. Insistir em restituir o debate crítico de ideias associado à educação, ou seja,
o debate de princípios e ideologias que enformam e justificam
as finalidades passíveis de ser atribuídas à educação, é já uma
atitude radical face ao actual contexto que tende a uniformizar
os discursos e o pensamento educativo em torno de uma perspectiva geral assente numa pretensa neutralidade da educação
e na importância da aquisição funcional de competências.
Admitir que muita da oferta educativa para adultos se transformou hoje numa mera mercadoria transaccionada nos termos
do mercado (numa lógica vocacional) implica também reconhecer que há uma crescente comunidade de práticas que tem vindo a aderir à abordagem baseada na lógica das competências.
Resta investigar se essa adesão é feita com a real consciência
crítica de que este tipo de abordagem é limitativa de uma visão
que procure encarar a educação enquanto projecto libertador,
ou se se trata de uma adesão assente numa ‘consciência ingénua’ e conseguida através dos mecanismos de sedução e manipulação próprios da sociedade de consumo em que actualmente vivemos. O sintoma deste cenário, que se alastra hoje no
campo da educação de adultos, é visível quando cada vez mais,
como notam Shaw e Crowther, “os debates intelectuais, sociais
e morais próprios da prática educacional são banidos para dar
lugar a uma ‘educação’ vista como um exercício técnico” (Shaw
e Crowther, 1997: 210). Nesta mesma linha de argumentação
crítica Melo, Lima e Almeida referem que quando indagamos
AO LONGO DA VIDA 47
acerca do papel atribuído à educação e formação de adultos
no âmbito das transformações ocorridas no contexto mundial
“transparece por vezes uma perspectiva mais do tipo ‘reactivo’,
ou seja, visando facilitar a adaptação dos indivíduos e sociedades às novas exigências, do que ‘pró-activo’, isto é, de capacitação para interagir criativamente e influenciar as circunstâncias
condicionantes, individuais e colectivas” (Melo, Lima e Almeida,
2002: 21). Canário, por seu turno, critica também este estado
da arte afirmando que actualmente “à educação é reservado o
papel de promover seres adaptáveis e não interventores (…) o
consenso em torno da aprendizagem ao longo da vida corre sérios riscos de a transformar numa espécie de cartilha repetida à
exaustão por funcionários zelosos” (Canário, 2003: 205).
Assumindo que a educação de adultos
está hoje numa encruzilhada, parece-nos
fundamental que se convoquem todos os
agentes e actores da educação de adultos
para a criação de um movimento políticofilosófico, que sendo teoricamente robusto e
empiricamente activo, possa conferir carácter
e identidade endógeno à agenda da educação
de adultos.
Este contexto educacional (desenvolvido desde o último
quartel do século XX) basicamente representa, no nosso entender, um episódio nebuloso na história da educação de adultos.
Trata-se de um cenário de instrumentalização do campo causado
por dois factores principais que são: por um lado, a erosão dos
pilares modernos do pensamento ocidental, em que a educação
de adultos foi no essencial erigida; e por outro lado, o deliberado esvaziamento da dimensão política da educação, operado na
esfera pública internacional pelas instâncias políticas e económicas supranacionais. Estes são dois factores que, em conjunto,
parecem indicar que mais do que uma recomposição do campo
estamos talvez a testemunhar presentemente a sua mutação.
Ora, neste contexto há, pois, certamente uma responsa­bi­
lidade acrescida para os investigadores e educadores, movidos
por uma consciência crítica, que consiste em reflectir, debater e
posicionar-se acerca das diversas possibilidades que as principais ideias e problemáticas-chave existentes no âmbito da educação de adultos sugerem. Se optarmos por resistir e com­bater
esta rápida instrumentalização da educação de adultos, tornarse-á crucial pensar na maneira de desenvolver, sempre que possível em rede, um novo sentido, de carácter mais humanista,
para a educação, que possibilite construir uma nova missão e
agenda para a educação de adultos, baseada no compromisso
com valores opostos à competição e ao lucro, como suportes da
nossa vida colectiva. Para tal parece-nos ser imprescindível res-
48 APRENDER
tituir, ao campo da educação de adultos, o debate de princípios
que tem vindo a ficar refém da presente perspectiva dominante.
Para este debate, a investigação crítica pode dar um significativo contributo, resgatando a história dos conceitos e perspectivas da educação de adultos ao mesmo tempo que se revisita
neste exercício abordagens e correntes de pensamento social
de autores que exploraram a dimensão política da educação,
de modo a instituir um debate de ideias esclarecido e inspirador
de novos caminhos que podem pers­pec­tivar um novo futuro.
Não se trata de essencializar e imo­bi­lizar o passado, mas de
o conhecer e convocar para melhor interpretar o quadro actual
existente neste sector, e assim definir linhas analíticas relevantes para uma construção crítica de conhecimento que se afirme
e oponha a um estado da arte que hoje tende a celebrar como
pertinente apenas aquele conhecimento que se revela pragmático, segundo os critérios económico-financeiros que dominam
o panorama das políticas sócio-educativas.
Na «educação e formação de adultos», defendemos que ao
actual consenso vocacionalizante imposto há, pois, que contrapor ideias e opiniões, de um cariz humanizante, como forma de
alargar o leque de possibilidades críticas pers­pec­tivadas no projecto de construção de uma cidadania radi­cal­mente democrática e respeitadora dos direitos humanos. Como, por exemplo, sugere Fieldhouse quando apela para o necessário engajamento
“com os novos movimentos sociais pela paz, direitos femininos,
justiça racial, direitos homossexuais e os assuntos ambientais
(…) para [construir] um conceito menos restrito e mais crítico de
cidadania (…) que confronte a redefinição de ‘cidadania’ operada pela ‘Nova Direita’ com a sua maior ênfase nos deveres
sociais do que nos direitos” (Fieldhouse, 1998: 400).
Deste modo, o desafio essencial está, insistimos, em tra­zer
para a esfera pública um debate de ideias que revalorize a dimensão político-filosófica da educação de adultos, incen­ti­vando
a disseminação de práticas reflexivas no campo que problematizem as implicações do acto educativo. Indagando sobre a questão dos valores e do bem comum, numa óptica tribu­tária da
velha educação permanente, que pense a edu­ca­ção de adultos
promovendo-a enquanto projecto educativo integral, para deliberadamente contrariar esta nova ortodoxia educacional que
pode reduzir o campo a um mero serviço privado ao dispor das
necessidades económicas, sociais e culturais do novo capitalismo e dos interesses da elite domi­nante. No fundo, trata-se de
reinventar para a época actual as velhas preocupações de uma
educação de adultos crítica e radical relacionadas com a defesa
da igualdade, da democracia, da participação e da justiça social, postas de novo na ordem do dia, mas de uma nova maneira, compatível com as características da sociedade actual.
Na chamada sociedade da informação, cabe também à
educação de adultos contribuir para organizar um movimento
global de renovação cultural, instaurador de uma cultura de problemas, de debate e diálogo, de praxis crítica, capaz de “servir
de bússola ao educando para navegar nesse mar de conhecimento, superando a visão utilitarista de só oferecer informações
‘úteis’ para a competitividade” (Gadotti, 2001: 35). No mundo
contemporâneo vivemos na era do acesso fácil à informação,
mas não na era do conhecimento e da comunicação, na medida
em que as tecnologias da informação e comunicação (TIC) não
significam comunicação humana, pelo que temos necessidade,
artigo
por isso mesmo, de construir uma “esfera pública cidadã” (Habermas, 1988).
Assumindo que a educação de adultos está hoje numa
encruzilhada que, ou significará a sua recomposição crítica e
radical ou a sua mutação para algo substancialmente diverso,
parece-nos fundamental que se convoquem todos os agentes
e actores da educação de adultos para a criação de um movimento político-filosófico, que sendo teoricamente robusto e
empiricamente activo, possa conferir carácter e identidade endógeno à agenda da educação de adultos, que se encontra presentemente repleta de contradições teórico-conceptuais e fortemente dominada por factores político-económico-financeiros de
cariz exógeno ao campo.
Trata-se de reinventar a linguagem do social,
o que é incumbência de actores sociais e
pedagogos críticos capazes de perceber e
assumir coerentemente uma tomada de
consciência da politicidade da educação e da
história como construção social e fonte de
possibilidades.
truir, desconstruindo primeiro as falsas evidências, uma nova
agenda para a educação de adultos, assumidamente contra-hegemónica. Esta agenda de reflexão-acção terá de ser construída
desde um ponto de vista que recoloque o indi­víduo no contexto
colectivo, sem isolar as necessidades e particularidades individuais dos objectivos e efeitos mais amplos partilhados no âmbito de um colectivo social.
Uma forma de iniciar este processo pode muito bem ser
demonstrando, pela investigação científica e crítica, que há já
um legado radical no corpus teórico da educação de adultos
que se orienta pelos princípios da justiça social e de uma ética
universal do ser humano que interessa resgatar, sobretudo para
ressuscitar a velha luta engajada de intelectuais e educadores
pela dignidade humana, que se encontra hoje de novo ameaçada de ruir pelo poder das forças da globalização neoliberal em
curso. Trata-se de reinventar a linguagem do social, o que é incumbência de actores sociais e pedagogos críticos capazes de
perceber e assumir coerentemente uma tomada de consciência
da politicidade da educação e da história como construção social e fonte de possibilidades.
No resgate e reconstrução crítica da versão humanista do
papel da educação de adultos há, pois, que enfrentar o desafio
difícil de desenvolver ideias fecundas no âmbito do pensamento
transformador, que permitam imaginar novas e múltiplas soluções político-educativas, essenciais para o nosso tempo. Novas
propostas que recoloquem o ser humano no centro da relação
entre o viver, o aprender e o trabalhar, e que rompendo com a
doxa instituída da ideia da aprendizagem ao longo da vida como
um item educativo contribua para a reintroduzir no debate como
aquilo que realmente ela é, um item político. n
ReferÊncias Bibliográficas:
Com efeito, a aceitação generalizada da agenda técnico-instrumental para a educação de adultos só pode ser compreendida tendo em consideração a actual fase do desenvolvimento
histórico do capitalismo. Trata-se de uma fase de reestruturação
que, tal como noutros momentos do passado, visa assegurar a
sobrevivência do sistema capitalista, actualmente em moldes
que geram uma absoluta opressão social global (Petrella, 1998;
Chomsky, 2000). Para fazer face a este capitalismo selvagem,
como vem sendo designado, é fundamental desocultar os mecanismos que o sustentam, o que implica, desde logo, que os
educadores necessitam desenvolver, não tanto um variado
leque de competências técnicas, mas sim uma compreensão
crítica e dialéctica da realidade e do modo segundo o qual o
capitalismo funciona no mundo contemporâneo.
O contributo da investigação crítica pode, pois, representar,
nesta fase da nossa história, uma fonte de ligação para o desenvolvimento de um movimento contemporâneo na edu­ca­ção
de adultos capaz de fazer face à actual realidade de opressão,
concentrando-se em intervir nas suas causas e não nos seus
sintomas e em interrogar as assumpções e estratégias em que
se fundamentam as actuais políticas (educativas?) para o sector. Trata-se de promover uma reflexão que apoiada numa retrospectiva intenta identificar qual o estado da arte actual do
campo para prospectivamente pensar e contribuir para cons-
Allman, P. & Wallis, J. (1997). Challenging the Postmodern Condition. Radical
Adult Education for Critical Intelligence. In Marjorie Mayo & Jane Thompson
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AO LONGO DA VIDA 49
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Artigo
A educação de adultos na Andaluzia percorreu um longo caminho desde os jovens que aspiravam
a “dar-se aos outros” até agora. Um caminho que não fez a administração educativa, mas sim as
pessoas e comunidades, e que continua vivo em experiências concretas.
Evolução
da Educação de Adultos
na Andaluzia (Espanha)
Texto: Emilio Lucio-Villegas, Universidade de Sevilha (Espanha) # Tradução: Daniela Silveira
Introdução
A
grande caminhada em direcção à democracia,
em Espanha, possui um elemento que não deve
ser esquecido. Essa longa, penosa e muitas
vezes sangrenta marcha está indissoluvelmente
ligada à recuperação da diversidade cultural
e social dos diferentes e variados territórios que a Ditadura
tentou eliminar, física, geográfica, idiomática ou culturalmente.
Assim, a construção do Estado Constitucional, a partir de 1978,
culmina – ou talvez está ainda por culminar – na explosão
imparável da diversidade dentro do Estado.
Falar de um modelo unificado de educação no conjunto do
Estado – e de outros elementos, como os serviços de saúde ou
de transporte, incluídos nos impostos – é um pouco complicado.
Por exemplo, falando de educação, e antes de se chegar à
Educação de Adultos, existe uma Lei de Educação (2006) a
nível do conjunto do Estado, mas a Andaluzia tem uma lei de
educação própria, desde 2007. Se considerarmos a educação
de adultos, a questão diversifica-se ainda mais: não existe uma
Lei de Educação de Adultos no conjunto do Estado, existem
leis: Galiza (1992); Comunidade de Valência (1995); Canárias
(2003); ou Ilhas Baleares (2006). Curiosamente, a Andaluzia,
que foi o primeiro território a possuir uma Lei de Educação de
Adultos (1990), aboliu-a em 2008.
Isto não quer dizer que o Estado perdeu a sua capacidade
de legislar – não mais do que a perda de soberania legislativa
que supõe, em muitos âmbitos, a entrada na União Europeia. O
AO LONGO DA VIDA 51
que sucede é que, partindo de um marco legislativo geral – a Lei
de Educação, por exemplo - os governos dos diversos territórios
têm uma ampla capacidade para legislar.
Apesar dessa afirmação – ou talvez em consonância com ela
– num Estado que apresenta uma grande diversidade nacional
e territorial é muito difícil – ou talvez impossível – apresentar um
território como exemplo dos restantes. Assim, devemos clarificar
que não é nossa intenção apresentar a Andaluzia como exemplo
do restante Estado, mas tão simplesmente como mais uma
singularidade no seio de um Estado plural.
Após esta breve introdução, vamos dividir a nossa revisão em
três elementos: a) algumas características socioeconómicas,
educativas e culturais da Andaluzia; b) algumas experiências
de educação de adultos, que se situam entre a ditadura e a
democracia, e que têm influência nos diversos territórios – a
Andaluzia entre eles –; e c) a evolução da educação de adultos
na Andaluzia desde 1982 até à actualidade.
Alguns dados sobre a situação da Andaluzia
Com uma superfície de 87.268 km², a Andaluzia é maior do
que a Irlanda, a Áustria ou a Dinamarca, e três vezes maior do
que a Holanda. A sua situação geográfica condicionou historicamente o seu desenvolvimento. Esta situação geográfica facilitou
o surgimento de uma série de elementos gerais que a caracterizam, no nosso entendimento, de uma forma muito ampla:
– uma importante posição geoeconómica, que a converte em
paragem obrigatória para as rotas de transporte, e como
ponte natural entre a Europa e o Norte de África, no transporte
de pessoas e mercadorias, mas nunca como ponte cultural.
– uma posição geoestratégica como fronteira meridional da
NATO para o controlo do Mediterrâneo ocidental e oriental.
Assim, existem na Andaluzia duas das bases militares mais
importantes do Estado: Morón de la Frontera (Sevilha) – de
onde partiram os bombardeiros dos EUA para bombardear
Bagdad, e outros alvos nas duas guerras – e Rota, em Cádis.
Exceptua-se a utilização do porto de Gibraltar como base de
abastecimento de submarinos nucleares da NATO.
52 APRENDER
Podem considerar-se diversas Andaluzias dentro da Andaluzia. Geralmente, distinguem-se três grandes zonas. Em primeiro lugar, o que poderemos chamar – embora este termo possa
referir-se a todo o conjunto – a Andaluzia marginalizada, caracterizada por uma deterioração crescente, do ponto de vista ecológico, demográfico e cultural. Ocupa aproximadamente metade
do território, mas concentra apenas 20% da população. Seria
uma periferia dentro da periferia (Wallerstein, 1984). No outro
extremo, encontra-se a Andaluzia próspera, caracterizada por
uma grande densidade populacional e um rendimento aceitável.
Trata-se dos grandes núcleos urbanos e da cada vez mais devastada, ecológica, social e culturalmente, costa dedicada apenas
ao turismo. Concentra cerca de 60% da população e quase 75%
do rendimento global.
No meio, num difícil equilíbrio entre uma e outra, querendo
unir-se à segunda, mas cada vez mais perto da primeira, encontra-se uma Andaluzia indefinida, cada vez mais marginal e unida
ao mundo exterior apenas pelo cordão umbilical de uma televisão devastadoramente embrutecedora, contra a qual se insurge
a educação de adultos.
Dentro do conjunto do Estado Espanhol, o rendimento per capita é a penúltima de todas as Comunidades Autónomas. Assim,
tradicionalmente, a Andaluzia tem sido uma zona fornecedora
de força de trabalho a outras regiões do Estado e a outros Estados do conjunto europeu.
A estrutura económica encontra-se configurada por um aumento do desemprego. Em épocas de crise, e fora delas, a taxa
de desemprego da Andaluzia – 24,63% de acordo com os dados
do terceiro trimestre de 2009 – duplica em relação à média do
conjunto do Estado. Paralelamente, a estrutura económica e de
emprego fundamentam-se na agricultura e no turismo, que são
o paradigma dos mercados de trabalho temporário e de elevada precariedade. A criação de focos turísticos ou de agricultura
intensiva fez com que, por outro lado, os desequilíbrios entre
as três Andaluzias aumentem ainda mais, criando centros nas
periferias (Gualda et al, 2009).
Para terminar, faremos algumas referências à população e
artigo
A Espanha entrou no século XX com 60% de
pessoas analfabetas. É uma percentagem mais
elevada do que a Suécia, o Reino Unido ou
outros países europeus no século XVIII.
ao nível de instrução. A população total da Andaluzia, segundo
o Padrão Municipal de Habitantes, a 1 de Janeiro de 2009, é
de 8.302.923 habitantes, dos quais 4.113.383 são homens e
4.189.540 são mulheres. A evolução demográfica caracterizase pelo envelhecimento da população: existem já mais pessoas
com mais de 75 anos do que com menos de 5 anos.
O nível de instrução é um dos elementos que nos interessa
particularmente. Segundo o Censo de População de 2001, os
números são os seguintes: sobre uma população de 5.956.718
(com 16 ou mais anos) 260.125 pessoas indicam não saber ler
ou escrever; 1.016.072 tem menos de 5 anos de escolaridade;
e 1.319.889 não possui o Título de Graduado do Ensino Secundário. Esse total compreende 2.596.086, 43,58% da população
com mais de 16 anos. Os dados mais actuais não estão organizados desta forma, mas podemos considerar algumas questões: i) o índice de analfabetismo absoluto – se tal coisa existe –
é de 4,1% nas mulheres e de 2,4% nos homens – em 2006; ii) a
percentagem de pessoas analfabetas e pessoas consideradas
sem estudos é, também em 2006: 17,1% - 19,9% são mulheres
e 14,2% são homens. Assim, podemos ver que os números não
variam muito. Devemos somar a tudo isto as pessoas que abandonaram os estudos ou que foram abandonadas pela escola.
Podemos dizer, para terminar, que a sociedade andaluza está
caracterizada por grandes desequilíbrios territoriais, uma situação laboral marcada pelo desemprego, o trabalho temporário e
o trabalho subsidiado – ou melhor, o trabalho não subsidiado – ;
e por um manifesto abandono, por parte dos poderes públicos,
da construção de um discurso e de práticas que assentem na
reconstrução da cultura autóctone, mais além da venda estereotipada para o turismo.
A Educação de Adultos em Espanha
A primeira consideração surpreendente é que Espanha
entrou no século XX com 60% de pessoas analfabetas. É uma
percentagem mais elevada do que a Suécia, o Reino Unido
ou outros países europeus no século XVIII (Viñao, 1990).
Ainda mais surpreendente é que apenas existe um esforço
importante nos primeiros 75 anos do século passado, para
alterar esta tendência: trata-se dos anos da Segunda Republica,
incluindo os da Guerra Civil. Estabelecida a ditadura, a noite
escura instaura-se em todos os recantos, e algo semelhante a
educação e cultura populares apenas volta a florescer a partir
de 1975/76. É importante assinalar que, entre 1970 – a última
lei educativa da Ditadura (Lei Geral da Educação) – e 1990 – Lei
de Ordenação Geral do Sistema Educativo (LOGSE) – não existe
um desenvolvimento legislativo amplo – com independência da
utilização da educação como arma política e outras constantes
alterações em função da cor política do governo do Estado.
Além disso, até 1981, o risco de regressão era certo e, até
princípios dos anos 90 do século passado, outras preocupações
estavam na mente das pessoas: desemprego, crise económica,
etc. Assim, não é demasiado rebuscado dizer que a educação
de adultos – até um certo momento – se desenvolveu sozinha,
sem demasiado controlo por parte do Estado – a qualquer dos
seus níveis – e partindo mais dos interesses das pessoas do
que de um currículo definido. A Educação de Adultos explode
com a democracia e converte-se num elemento de referência
da própria democracia. Esta hipotética falta de controlo permitiu o surgimento e desenvolvimento de experiências muito interessantes e sugestivas, no conjunto do Estado. Destacamos
três:
As Escolas Campestres: Fundamentalmente em Castela e
Leão, mas também em outros locais, são uma referência imprescindível para entender a conexão entre o mundo rural, os
sistemas produtivos rurais, a preocupação com a segurança e
a qualidade alimentar, etc. As Escolas Campestres foram uma
referência para as pessoas que trabalharam em educação de
adultos no meio rural.
Serviço de Educação Permanente de Trabalhadores. Tratase de um importante movimento na Catalunha. O seu objectivo
era levar aos trabalhadores os níveis elementares de educação
e potenciar uma alfabetização comunitária. É essencial para entender grande parte da tradição que une a Educação Popular e
o Trabalho Comunitário.
Movimentos de Renovação Pedagógica. Foram colectivos
muito importantes na pressão para explorar, primeiro, e para
integrar, depois, muitas inovações educativas. A partir dos anos
80 do século passado, com a chegada de governos do Partido
Socialista Operário Espanhol (PSOE) a diversas administrações
do Estado, muitos dos seus dirigentes foram preteridos e o movimento ficou órfão.
A educação de Adultos na Andaluzia
Vamos dividir a sua evolução em três momentos diferentes.
Primeira fase.
O início.
Não existe uma história – ou, melhor dizendo – diversas
histórias locais que nos ajudem a reconstruir os processos
de início e de desenvolvimento da educação de adultos na
Andaluzia, em especial a partir de 1981. A versão oficial diz
que o programa de Educação de Adultos começou com 36
professores e 1990 estudantes adultos, e apresenta-o como um
êxito – o que é coerente com um certo elogio triunfalista que
sempre perseguiu a Educação de Adultos na Andaluzia. Se se
AO LONGO DA VIDA 53
Se houve algo que caracterizou o início e o desenvolvimento
da educação de adultos na Andaluzia – e, possivelmente,
de norte a sul do Estado – foi a ligação permanente entre as
escolas de adultos e os territórios onde se encontravam.
quer fazer a divisão, estamos a falar de 52 estudantes adultos
por professor, o que, a princípio, não parece ser um grande
êxito, sobretudo se formos ao nível das histórias locais. No
período compreendido entre 1980 e 1982/84, o nascimento
dos Centros de Educação de Adultos teve pouco a ver com
as iniciativas propostas pelo Governo – Central ou Autónomo
– e mais com um encontro histórico e maravilhosamente
criativo entre determinados Movimentos Sociais – sobretudo
Associações de Moradores nos bairros das grandes cidades
– e jovens que queriam trabalhar em educação, e para
quem a educação de adultos pressupunha o grande desafio
de desenvolver um trabalho social criativo e produtivo, com
um certo espírito de missão ou, quem sabe, de revolução,
mas que, em todo o caso, dava resposta a essa expressão
mágica de Orlando Pineda: “dar-se aos demais”. No meio
rural, o casamento aconteceu mais entre jovens professores
e munícipes preocupados com a educação de adultos, no
calor dos processos de transformação social que o conjunto
do Estado vivia na época e que viveu pelo menos até 1986.
De facto, uma expressão percorria a Andaluzia, não como um
fantasma, mas sim como um relâmpago de esperança: “numa
vila, há dois lugares abertos às 9 da noite: o bar e o centro de
educação de adultos”. Isto não acontecia só na Andaluzia. Em
outros territórios, outros professores, ligados à comunidade,
faziam semelhantes trabalhos libertadores.
Este período culmina com o chamado “Novo Desenho
Curricular” (1985), um currículo específico para a educação
de adultos, que se definia por uma metodologia sustentada
na Investigação Participativa e que aspirava a ser: i) activa,
considerando cada pessoa como um sujeito activo do seu
próprio processo de aprendizagem; ii) dialogante, não tanto
num sentido “freireano”, mas sim seguindo as directivas de
Francisco Gutiérrez; e iii) participativa. A pressão sustentada de
educadores e educandos leva à aprovação da “Lei da Educação
de Adultos da Andaluzia”, em 1990 (lei agora abolida). A
aprovação da lei é o canto de cisne deste processo.
54 APRENDER
Segunda fase.
A partir da comunidade, de volta à escola.
Se houve algo que caracterizou o início e o desenvolvimento
da educação de adultos na Andaluzia – e, possivelmente, de
norte a sul do Estado – foi a ligação permanente entre as escolas de adultos e os territórios onde se encontravam. De facto,
o modelo andaluz foi apelidado de modelo territorial, porque
ligava intimamente o território às escolas. Mas, mais importante do que isso, era que os temas de trabalho, os núcleos geradores, estavam ligados ao meio ambiente, eram derivados da
vida quotidiana das pessoas. Isso supunha uma grande potência transformadora na educação de adultos, potência que, até
meados dos anos 80, não tinha sido controlada pelo poder. Por
detrás do controlo, o passo seguinte era desmontar essa estrutura educativa transformadora e libertadora. Curiosamente, o
primeiro passo foi a aprovação da Lei de Ordenação Geral do
Sistema Educativo, que aumentava a escolaridade obrigatória
em dois anos – até aos 16 -, instituía um Ensino Secundário
Obrigatório e criava um novo título mínimo: Graduado do Ensino
Secundário Obrigatório. Imediatamente, a preocupação fundamental passou dos problemas ocasionados pela falta de alfabetização para a exigência de conceder esse novo título a toda a
população. Este desequilíbrio supõe, no mínimo: a) o abandono
dos sectores educativamente mais desfavorecidos, processo
que culmina num novo Currículo (1997), e uma nova estrutura educativa que supõe, entre outras coisas, que uma pessoa
pode permanecer na Formação Inicial de Base (alfabetização)
apenas dois anos, sendo depois necessário progredir ou abandonar; b) o abandono do modelo territorial e socioeducativo. O
fundamental são os conteúdos, que devem ser partilhados na
escola, incluindo o desenvolvimento comunitário, aos quais devem ser dedicadas quatro horas semanais.
O culminar de todo este processo é o já citado Currículo de
1997, que abandona o modelo socioeducativo, retira todo o
poder de deliberação à educação de adultos e regula até ao
mais pequeno pormenor do currículo, para que a realidade, a
comunidade e as pessoas se mantenham fora da escola.
ARTIGO
Uma expressão percorria a Andaluzia, não como um
fantasma, mas sim como um relâmpago de esperança:
“numa vila, há dois lugares abertos às 9 da noite:
o bar e o centro de educação de adultos”.
Terceira Fase.
Existe uma educação de adultos?
Não obstante, a educação de adultos continuava a ser um
campo específico. O passo seguinte era fazê-la desaparecer,
escondida sob uma miríade de regulamentações, normativas,
decretos, etc., sempre ao serviço da emergente “Aprendizagem
ao longo da vida”, ou seja, do mercado.
Existem três elementos essenciais para explicar o processo.
Primeiro, a estabilização, em muitos casos acesso à condição
de funcionário, dos docentes. O que era um passo em frente
– recordemos que deixámos muitos educadores, umas linhas
mais acima, a fazer trabalho voluntário, depois passaram a
ser contratados por diversas administrações e municípios – e
o que pressupunha alcançar estabilidade laboral, converteu-se
– por parte da administração – na possibilidade de transferir
muitos professores para outros âmbitos educativos, retirando
da educação de adultos muitos professores com vinte anos
de experiência, e não os substituindo, ou substituindo-os por
pessoas sem formação e/ou sem experiência específica neste
campo.
Em segundo lugar, com a ruptura definitiva com o modelo
territorial. Uma ordem de Julho de 2006 organizava os Centros –
já chamados de Educação Permanente – com base nas grandes
estruturas burocráticas e não nos territórios – aldeias e bairros
– nos quais assentavam. O poder de actuação dos centros
ficava assim diminuído ou, simplesmente, desaparecia sob uma
montanha de documentos burocráticos, reuniões, normas, etc.
Em último lugar, aprovou-se em 2007 a Lei de Educação da
Andaluzia, que supõe: a) a revogação da Lei de Educação de
Adultos da Andaluzia; e b) a não utilização do termo Educação
de Adultos – ou da sua utilização numa mistura estranha, que
fala de Educação Permanente de Adultos. De facto, a Educação de Adultos insere-se na Direcção Geral da Formação Profissional e Educação Permanente. No final, o artigo 111.4 da
Lei de Educação da Andaluzia afirma: “Podem estabelecer-se
casos de colaboração entre os centros que integram as redes
de aprendizagem permanente e aqueles que incluem, na sua
oferta formativa, acções de inserção e de reinserção laboral dos
trabalhadores, e outras orientadas para a formação contínua
das empresas, que permitam a aquisição e actualização permanente das competências profissionais”.
Num artigo (Chaves, 2008), o então presidente da Junta
da Andaluzia, indica que a principal finalidade da educação
de adultos na Andaluzia é adaptar as pessoas à sociedade do
conhecimento e às novas exigências que surgem, derivadas
de uma economia global e de um mundo globalizado. Não
há melhor epitáfio para enterrar um projecto educativo que
se baseou, durante muito tempo, em enfrentar as tendências
homogeneizadoras e despersonalizadas do mercado, para se
centrar na vida quotidiana e nos problemas, necessidades,
interesses e desejos das pessoas e comunidades.
E no entanto, move-se.
Mas não é fácil enterrar os desejos e aspirações de libertação das pessoas. A educação de adultos na Andaluzia percorreu
um longo caminho desde os jovens que aspiravam a “dar-se aos
outros” até agora. Um caminho que não fez a administração
educativa, mas sim as pessoas e comunidades, e que continua
vivo em experiências concretas que mantêm a relação, a estreita e frutífera ligação, entre a educação e a vida quotidiana das
pessoas, nas suas comunidades. Isso é hoje visível quando os
moradores de uma aldeia tentam resistir à passagem de um
comboio que altera alguns dos seus modos de vida e de subsistência tradicionais; quando outros tentam recuperar a sua história perdida, cancelada e reprimida pelos horrores da Guerra Civil
e pela feroz repressão; ou outros se comprometem em tarefas
de participação cívica na educação de adultos. Nos resquícios
do sistema do pensamento único depredador, a promessa que
promovem e encerram as actividades libertadoras encontraram
o seu abono e florescem – nunca deixaram de fazê-lo – como
espaços de esperança.
A evolução que relatámos não é semelhante em todos os
territórios do Estado. Se bem que as pressões homogeneizadoras
do pós “Aprendizagem ao Longo da Vida” são semelhantes,
os movimentos de resistência são diferentes nos diferentes
territórios e inclusive dentro destes. n
AO LONGO DA VIDA 55
REPORTAGEM
Ateliers de cerâmica
Trabalhar
a própria terra
Nos ateliers do Museu de Cerâmica das Caldas da Rainha, adultos
aprendem a moldar o barro e a transformá-lo em peças de cerâmica.
Um ofício ancestral, que é quase como trabalhar a própria terra.
Texto Luis Leiria # Fotografias Sara Matos
S
ão nove peças belíssimas, de grandes dimensões,
de cerâmica vidrada, da autoria de Rafael Bordalo
Pinheiro, que compõem a exposição “Uma flor e oito
bichos” no espaço de exposições temporárias do
Museu de Cerâmica das Caldas da Rainha. O grupo de visitantes observa com atenção o girassol, o caracol, o
lagarto, o caranguejo, o cavalo marinho, o peixe, a andorinha, a
cobra, a cabeça de burro, antes de passar ao atelier para sujar
as mãos de barro e reproduzir algumas daquelas peças.
São oito idosos, utentes do Centro de Dia da Associação de
Solidariedade Social da Foz do Arelho, que vieram numa tarde
do início da Primavera aprender as técnicas básicas de modelar
o barro e dar forma à flor e aos bichos apreciados antes.
“Estas peças foram feitas recentemente na fábrica, a partir
da recuperação do moldes iniciais do Rafael Bordalo Pinheiro.
São todas peças de grande dimensão”, explica-lhes Teresa Leal,
ceramista dos serviços educativos do museu.
Já no atelier, vestem os aventais e sentam-se em torno de
uma mesa, orientados pela ceramista. Alguns já lá tinham estado antes, e mostram algum desembaraço a dar a primeira forma
às bolas de barro distribuídas a todos. Outros, mais tímidos, precisam de incentivo para superar o bloqueio inicial. “Eu não vou
fazer nada!”, exclama, num tom rezingão, a D. Piedade. Mas em
pouco tempo já está a conseguir dar forma a um dos bichos que
nem sequer é dos mais fáceis de modelar: o caranguejo.
56 APRENDER
A distribuição dos “bicharocos” entre os aprendizes é combinada no início. De comum acordo, decidem não fazer a cobra,
porque “é fácil demais”. Os que vão fazer o caracol ou o caranguejo começam com uma bola de barro, os que ficaram com o
lagarto e o cavalo-marinho começam com uma forma mais estirada, em canudo. Para ajudar, há fotografias das peças originais
que servem de modelo.
Quarenta e cinco minutos depois, já todos têm diante de si
uma peça modelada, e só falta incrustar a assinatura de cada
um para mais tarde continuarem o trabalho, pintando a peça
– que entretanto passará pelo forno –, o que lhe dará depois o
aspecto vitrificado. Durante esse tempo, Teresa Leal explicou a
técnica de dar mais robustez à ligação das patas do caranguejo,
ajudou nos acabamentos, mostrou como se fazem as incisões
para dar forma ao corpo do cavalo-marinho.
Para Sheila Filipa dos Santos, assistente social da associa­
ção, o resultado destes ateliers é muito interessante: “Mesmo
as pessoas que se sentem mais oprimidas no princípio acabam
por ficar muito satisfeitas e a auto-estima delas acaba por
subir”, observa. Passam assim a ver a vida com outros olhos:
“Não que estão no fim, mas que estão no princípio e ainda
podem aprender muito”.
A associação tem 48 utentes, em centro de dia e lar. O grupo
que veio às Caldas é composto pelas “pessoas mais autónomas
que nós temos e que participam mais das actividades”, explica
Quarenta e cinco minutos depois,
já todos têm diante de si uma peça modelada,
e só falta incrustar a assinatura de cada um
para mais tarde continuarem o trabalho.
Sheila dos Santos, que organiza com frequência visitas dos
utentes a museus e igrejas.
Manuela Maria de Melo, uma das participantes da visita,
gostou muito da experiência. “Fiz um girassol e um caracol.
Quando cheguei, pensei que era mais difícil, mas consegui
fazer as peças.” Ela gostaria de voltar a trabalhar com o barro.
“Vamos ver a peça depois de cozida, depois de pintada.”
Henrique Bernardino dos Santos é o único do grupo que
tem uma ligação à indústria de cerâmica. Antes de se reformar,
trabalhava na fábrica Secla, onde “abastecia a passadeira,
para as senhoras embalarem a loiça”. Já tinha frequentado
um atelier anterior, onde modelara um girassol. Mesmo assim,
“pensava que não ia conseguir fazer o lagarto, mas com a ajuda
da senhora, fiz, e ficou bonito.” Foi um tempo bem passado.
Vinte rãs todas diferentes
Há 12 anos que Teresa Leal está envolvida com o museu.
Responsável pelos ateliers de cerâmica, tem de gerir muito bem
o tempo disponível porque chega a ter dois ou três grupos numa
tarde, e com mais do que as oito pessoas daquele dia. “Chegam
a estar 20 nesta sala”, diz, com um sorriso, “têm de se apertar
todos um pouco”.
Para a ceramista, o atelier do dia correu bem: “Eu tinha tra­
balhado há dois anos com alguns elementos deste grupo. Mas
dois anos, é muito tempo, quando eles regressam, é começar
AO LONGO DA VIDA 57
Os “aprendizes” do Centro de Dia da Foz do Arelho exibem as suas obras.
As peças vão ser criadas aqui,
para depois serem pintadas
no centro de artes.
58 APRENDER
REPORTAGEM
tudo de novo. De qualquer forma, eles hoje já utilizaram aqui algumas das técnicas, dessas pequenas regras. No fundo é este
o meu trabalho: ajudá-los com as colagens, para que a peça
depois tenha resistência, para tornar-se mesmo uma peça”, explica.
Nem sempre o atelier decorre da mesma maneira. “Há vezes”, recorda Teresa Leal, “que seleccionamos um elemento,
eu mostro como é que faço a minha rã, e depois cada um deles
faz a sua rã, e ficamos com 20 rãs todas diferentes, umas muito
magras, outras mais cheiinhas, enfim... Só para perceberem o
processo do modelar.”
Outras vezes o tempo não rende da melhor forma: “Acontece muitas vezes que estamos aqui 45 minutos, e eles andam
ali à volta de qualquer coisa, e não sai nada. E depois quando
chega a altura de terminar, é que estão muito interessados, e
muito empenhados, às vezes precisam desse tempo, que nós
não temos.”
O tempo limitado também condiciona voos mais altos,
quando os ateliers se enchem de estudantes de escolas secun­
dárias: “Vêm cheios de ideias, querem modelar um carro, uma
moto, mas eu tenho os tais 30 a 45 minutos.” Além disso, a
regra é sempre fazer os ateliers em torno de peças do acervo
do museu. “Vamos sempre ao encontro das nossas colecções...
Muitas vezes eles perguntam se, em vez do lagarto, não podem
fazer uma águia, porque ‘eu gosto mais da águia’... Mas a águia
não faz parte das nossas colecções”, explica Teresa Leal.
Os adultos, em geral, reagem muito bem aos ateliers. “Por
exemplo, as senhoras, habitualmente, rejeitam fazer o lagarto.
Mas a rã, toda gente faz sem problema. Também o caracol, ou
uma flor, uma folha, um fruto”. Com as escolas realizam-se por
vezes projectos mais longos: “Demoram três meses, e o grupo
vem de 15 em 15 dias. Começam o projecto na escola, e depois
vão desenvolvendo todas as fases, até chegarmos ao produto
final”, relata a ceramista, que recorda um trabalho com uma
turma do 9º ano, em que os alunos fizeram peças todas com
uma finalidade: “porta-CDs, um cabide para colocar numa porta, queimadores de incenso, molduras...”
Museu da Cerâmica
das C aldas da R ainha
Foi criado oficialmente em 1983 e está instalado na
Quinta Visconde de Sacavém, adquirida para o efeito pelo
Estado em 1981 e situada na zona histórica da cidade,
próximo da antiga fábrica de Bordalo Pinheiro.
A Quinta foi mandada construir, na década de 90
do século XIX, pelo 2º Visconde de Sacavém, sendo
constituída por um Palacete em estilo romântico
revivalista, um edifício secundário e uma área ajardinada.
Os jardins, de traçado romântico, constituem um
conjunto evocativo do gosto do final do século XIX, com
as suas alamedas, floreiras e lagos. Decorações cerâmicas
ornamentam todo o conjunto.
A cerâmica das Caldas da Rainha está representada por
peças desde o século XVII até à 1ª metade do séc. XX, com
especial destaque para o núcleo dedicado a Rafael Bordalo
Pinheiro, um dos conjuntos mais representativos da
produção do grande mestre caldense.
Da produção nacional, o museu integra núcleos de
faianças da Fábrica do Rato (1767- 1779), de olaria
tradicional e de produção local de escultura e miniatura
cerâmicas dos séculos XIX e XX, representativos dos
principais centros cerâmicos portugueses (Fábricas
Bandeira, Rocha Soares, Gaia, Darque, Barcelos, Ratinho,
Juncal, Estremoz, Sacavém, Viúva Lamego, Vista Alegre,
Aleluia, Santana) e estrangeiros (França, Espanha, Itália,
Holanda, Bélgica, China).
O núcleo de cerâmica contemporânea de autor inclui
peças de Llorens Artigas, Júlio Pomar e de Manuel
Cargaleiro, entre outros. Existe ainda uma colecção de
azulejaria portuguesa, hispano-mourisca e holandesa, do
séc. XVI ao séc. XX, constituída por cerca de 1200 azulejos
e por 40 painéis. n
AO LONGO DA VIDA 59
Teresa Leal orienta os trabalhos.
“Neste momento dá-me mais gozo isto,
fazer essa troca com as pessoas, e ajudá-los a construir
as peças, do que eu fazer uma peça do início ao fim.
Quando terminou o 12º ano, Teresa Leal fez curso de cerâmica, no CENCAL - Centro de Formação Profissional para a Indústria Cerâmica, uma instituição de formação e de apoio técnicopedagógico, sediada nas Caldas da Rainha, vocacionada para o
sector da indústria cerâmica portuguesa, criada em 1981. Foi lá
que fez a formação específica em cerâmica. Depois, como parte
do curso ainda fez um estágio, que, por acaso, já foi no museu.
“O meu primeiro contacto com o museu foi esse, no estágio”.
Assim, há 12 anos que está envolvida com o museu.
“Logo durante o estágio”, recorda, “foi-me proposto que fizesse algumas actividades com crianças. Acho que tenho aprendido também muito com o facto de trabalhar com todos os tipos
de público, isso tem sido muito estimulante e importante.” O
trabalho com as pessoas no dia-a-dia ajudou-a muito: “Dão-me
muitas sugestões, que eu aproveito e uso no dia-a-dia.”
Quando fez o curso, Teresa Leal chegou a pensar que ia
abrir um pequeno atelier, decisão deixada de lado depois do
convite de ir para o museu. “Neste momento dá-me mais gozo
isto, fazer essa troca com as pessoas, e ajudá-los a construir
as peças, do que eu fazer uma peça do início ao fim. Há muito
60 APRENDER
Sheila Filipa dos Santos: “a auto-estima deles sobe”
tempo que eu não faço uma peça começada e terminada, e não
sinto essa necessidade, conclui a ceramista.
“A cerâmica é quase trabalhar a própria terra, e transformá-la”
O atelier de cerâmica do museu foi criado no final dos
anos 90. “Houve uma iniciativa muito interessante e de muita
visibilidade que foi a criação de placas de ruas”, recorda a
directora do Museu de Cerâmica das Caldas da Rainha, Matilde
Tomaz do Couto.
“Temos duas formas de criar os grupos”, explica. “Esta
oficina já é bastante conhecida, e muitas vezes pedem-nos
visitas escolares, das associações, do Lar de 3ª Idade, visitas
que tenham ateliers, e há um calendário em que se procura
satisfazer esses desejos.” Por outro lado, prossegue, há a
oferta regular de ateliers temáticos. “Agora estamos a organizar
REPORTAGEM
Matilde Tomaz do Couto, Directora do Museu.
“Quando fazemos as nossas intervenções,
o nosso trabalho questiona o trabalho dos
outros. Por isso, quanto mais autónomos
formos, mais poderemos fazer o nosso
trabalho.
um atelier para a Páscoa, chamado Prendas de Páscoa, em
colaboração com o centro de artes. As peças vão ser criadas
aqui, para depois serem pintadas no centro de artes. Há
também um protocolo com o Centro Social Paroquial local.
Matilde Tomaz do Couto tem consciência da crise por que
passa o sector da cerâmica das Caldas da Rainha: “a fábrica
Secla fechou, outras foram fechando ao longo dos anos, a
fábrica Bordalo Pinheiro persistiu graças à intervenção do
Estado. A Molde ainda está a funcionar. Mas acho que há
um esforço das Caldas da Rainha para que a cerâmica possa
persistir como um rosto desta cidade, e como história, como
memória também.”
A directora tem confiança em que a cerâmica vai permanecer
viva na cidade: “A cerâmica tem muito a ver com a terra, que
é um dos três elementos – os outros são a água e o fogo. A
cerâmica é quase trabalhar a própria terra, e transformá-la.”
Para Matilde Tomaz do Couto, “o ofício do oleiro é um ofício
ancestral, que tem a ver também com o quotidiano, com
objectos de uso comum, que depois vai recebendo decoração ou
vai-se transformando em objecto ele próprio decorativo.” Esse
percurso da cerâmica continuará a ser popular nesse função e
nos elementos decorativos, “mas depois vai envolvendo outros
sectores não artesanais, mas artísticos, onde vamos encontrar
cerâmica de autor, onde vamos encontrar o designer, os
grandes nomes que trabalharam a cerâmica”, diz, recordando
que na Secla e nas Caldas trabalharam artistas, como Júlio
Pomar, António Quadros, Ferreira da Silva... “Temos, portanto,
um percurso da cerâmica que é popular, que é utilitário, e, por
outro lado, há a cerâmica artística, a cerâmica de artista, que
invade a escultura”, conclui. n
AO LONGO DA VIDA 61
LIVROS
DOSSIER
Mundos do Trabalho e Aprendizagem
Canário, Rui e Rummert, Sónia Maria (org.) 2009
Lisboa, Educa, 188 pp
N
este livro reúnem-se onze artigos de investigadores portugueses e brasileiros que perspectivam as relações entre o Trabalho e
a Educação identificando especificidades
e convergências com o «objectivo éticopolítico de construir colectivamente um
novo projecto societário» (Canário e
Rummert, p. 16). São, portanto, autores
comprometidos social e politicamente,
que assumem uma não neutralidade
na investigação que produzem. Os textos reunidos representam o testemunho
do intercâmbio entre universidades de
Portugal e Brasil no quadro de projectos
comuns de pesquisa, que se têm vindo a
desenvolver desde os anos 90.
O título desta obra remete-nos para
‘mundos’ diferentes, com narrativas e
tensões entre e ‘intra’ as respectivas áreas
de produção de conhecimento, os campos empíricos, as evoluções e tendências
societárias; o seu conteúdo dá-nos pistas
reflectidas de reais possibilidades, não
só de interligação entre os dois ‘mundos’
tradicionalmente opostos, mas também
(ou sobretudo) de superação dos actuais
modelos de sociedade capitalista e particularmente, dos conceitos já reformados de educação de massas e de workfare. Esta abordagem comum entre os
investigadores dos dois paises acentua
o carácter internacional das transformações do mundo do trabalho e do discurso neo-liberal que o suporta e que tem
justificado os programas políticos de inclusão e alargamento da escolaridade.
As perspectivas reunidas nesta obra
são olhares que, apesar da sua transversalidade temática, analisam inequivocamente a partir da Educação e questionam
o carácter marginal atribuído à educação
de jovens e adultos trabalhadores e a
subordinação da Educação às necessidades de controlo social ou ortopedia
social, pontuando a divergência entre o
conceito de Educação como um direito
universal (que todos os autores defendem) e Educação como um obrigação
e responsabilização individual, numa
lógica da gestão de si.
Numa primeira parte são questiona-
62 APRENDER
das as políticas de inclusão e de elevação da escolaridade face ao aumento das
desigualdades no quadro do capitalismo
contemporâneo, enquanto numa segunda parte, são associados os artigos que
reflectem sobre os Movimentos Sociais
Populares na óptica dos trabalhadores,
evidenciando a importância decisiva de
«processos educativos não formais, que
se combinam e confundem com formas
de acção e de luta pela transformação social» (Canário, 2007, in: Tiriba, p. 158).
Os autores que construíram os artigos
da primeira parte colocam-se se em perspectivas de superar o capitalismo, ultrapassando os determinismos e as abordagens estruturalistas e fazendo a apologia
de processos formativos e peda­gógicos
que transformam os trabalhadores em
sujeitos com consciência de classe. Nestes processos de luta contra-hegemónica
– Gramsci é, sem dúvida, um autor de
referência para estes autores – é dada
uma importância maior às questões
da cultura e da linguagem. Gaudêncio
Frigotto refere uma ‘novlangue’, aparentemente sem origem que, ao mesmo
tempo que institui um vocabulário e
ideário que naturaliza conceitos (globalização, flexibilidade, governabilidade, exclusão, inclusão, competência,
empregabilidade, qualidade total, empreendedorismo, capital humano) constitui um condicionamento de classe numa
doutrina neoliberal.
Este vocabulário faz parte de um novo
paradigma pós-classista e pós-industrial,
de uma sociedade do conhecimento que
rompe com o paradigma da modernidade e as suas meta-narrativas. Neste
quadro, Natália Alves situa criticamente
o novo mandato da educação – o de
combater as exclusões e fomentar a empregabilidade. Partindo das expressões
exclusão social e empregabilidade (difundidas como categorias universais e
ideologicamente neutras) faz um percurso fundamentado em Castel, Schnapper,
Laville, Méda, Touraine e Paugam para
desconstruir os discursos actuais sobre a
sociedade e o indivíduo, deixando claro
que os novos quadros cognitivos foram
criados para que o desemprego estrutural deixe de ser considerado como um
problema económico e político e passe
a ser concebido como um problema individual cuja origem reside num défice
de competências de empregabilidade.
Nesta linha, Cármen Cavaco interroga
os processos RVCC e evidencia os paradoxos que os atravessam: se por um
lado a argumentação remete para uma
visão utopista de valorização da pessoa,
a sua operacionalização aponta explicitamente para a empregabilidade como
principal preocupação.
Os artigos que compõem a segunda
parte deste livro partem de experiências de
movimentos sociais, tão variados quanto:
o trabalho associado e de autogestão, a
partir da herança da Ergologia; os processos educativos e de trabalho no tempo
revolucionário do PREC, em Portugal no
pós-74; o associativismo popular no caso
particular de Almada enquanto processo
de autonomia das classes trabalhadoras e de superação da questão social por
contraponto à análise crítica do actual
terceiro sector; a educação do campo e o
Movimento dos Trabalhadores Rurais sem
Terra (MST) no Brasil; as escolas rurais em
Portugal; e o Movimento Operário e do
Movimento Camponês. Estes autores en-
NOTÍCIAS
DOSSIER
Projecto PALADIN
tendem a educação como «auto-produção
na qual o ser humano transformando-se a
si mesmo, criando conhecimento, ciência
e cultura, como auto-produção na qual
o ser humano transforma o mundo e se
transforma com este mundo» (Marlene
Ribeiro, p. 120).
Nesta parte para além de ser evidenciada a possibilidade de correspondência entre os movimentos sociais de base
educativa constituídos em Portugal e no
Brasil, ressaltam as possibilidades revolucionárias de entender os Mundos do
Trabalho e Aprendizagem: um Trabalho
que educa na medida em que pressupõe
uma nova organização e uma nova cultura, o trabalho socialmente útil, o que
tem vitalidade para articular a teoria e a
prática, que possibilita a ressignificação
e reconstrução dos elementos materiais
e simbólicos para novos sentidos do trabalho e da produção de saberes. E uma
Escola que contenha em si um projecto
de mudança, que possibilite o desenvolvimento total, completo, das potencialidades humanas, com base na formação
experiencial e com uma democratização
do conhecimento.
A distinção de Stephen Stoer entre
alfabetização e poder popular faz presente que o controlo operário tinha
como desafio lutar contra o monopólio
do saber e reconstruir os saberes sobre o
mundo através das experiências vividas
e percebidas. Dizia Stoer (2008, p.107)
que «atribuir à educação a necessidade
de responder às exigências da economia
permanece uma componente central
da política de educação […]. Todavia, a
questão de responder ao apelo de maior
correspondência ensino-trabalho e de
maior qualidade no ensino, tem privilegiado, de acordo com a formação política no poder, ora os mecanismos do mercado ora a intervenção do Estado». É esta
a discussão que atravessa todo o livro. n
Por Isabel Passarinho, doutoranda em formação
de adultos no Instituto de Educação, UL
Referência Bibliográfica:
Stoer, Stephen (2008). Textos escolhidos. Porto:
Edições Afrontamento, Lda./CIIE
O
Projecto PALADIN –
Promover a Aprendizagem e Envelhecimento Activos de Cidadãos Seniores em Situação de
Desvantagem – visa capacitar os
maiores de 50 anos possuidores
de baixas qualificações, através
do desenvolvimento das suas capacidades de auto-formação em
5 áreas: Actividades (Empre­go e
Voluntariado), Saúde, Finanças,
Cidadania e Educação (Formal,
Não-Formal e Informal).
Sobre o PALADIN
O Projecto PALADIN (Promover a Aprendizagem e o Envelhecimento Activo dos Seniores em
Situações de Desvantagem) visa
capacitar os seniores em situações de desvantagem (maiores de 50
anos com baixas qualificações) através
do desenvolvimento das suas capacidades de auto aprendizagem em 5 áreas:
Objectivos Gerais
– Desenvolver e testar um conjunto
de instrumentos e metodologias
de modo a facilitar o processo de
auto aprendizagem dos seniores
em situações de desvantagem
(acima dos 50 anos com baixas
qualificações);
– Estabelecer uma rede de actividades
inovadoras, centradas na autoaprendizagem a nível local.
Objectivos Operacionais
– Produzir um índex de autoaprendizagem para seniores;
– Produzir 20 ferramentas didácticas
de auto aprendizagem;
– Desenvolver 5 escalas de prontidão
para a auto aprendizagem em 5
áreas específicas;
– Organizar 25 debates públicos em 5
países;
– Organizar 4 Eventos Científicos
Internacionais
– Produzir um Memorandum de
“Lições e recomendações para
decisores políticos em matéria de
aprendizagem ao longo da vida”.
A parceria do PALADIN, é constituído por 8 Instituições de 6 países: Portugal, Espanha, Bulgária, Grécia, Malta
e Hungria.
É uma parceria multidisciplinar que
inclui centros/organizações de investigação, comunidade educativa e autoridades locais/decisores políticos. Envolve países Mediterrânicos e da Europa
Central que apresentam baixos índices
de participação na aprendizagem ao
longo da vida.
* INFORUM irá desempenhar o
papel originalmente destinado ao Instituto Nacional de Telecomunicações
(Polónia)
Saiu recentemente a primeira news­­
letter deste Projecto, em língua portu­
guesa, que pode ser consultada em
http://www.projectpaladin.eu/ n
AO LONGO DA VIDA 63
NOTÍCIAS
DOSSIER
A
luta contra a pobreza e a exclusão social figura entre
os principais objectivos da
União Europeia e dos seus Estados Membros.
Em Março de 2000, por ocasião do
lançamento da estratégia de Lisboa, os
Chefes de Estado e de Governo comprometeram-se a dar «um impulso decisivo à eliminação da pobreza» até 2010.
Apesar dos esforços desenvolvidos, uma
parte significativa da população europeia vive ainda em profunda carência e
não tem acesso a serviços de base, como
os cuidados de saúde. Esta situação está
em contradição com os valores comuns
da União Europeia de solidariedade e de
justiça social.
Porquê este Ano Europeu 2010?
A pobreza e a exclusão não só afectam
o bem-estar das pessoas e a possibilidade de participarem na vida da sociedade
como também prejudicam o desenvolvimento económico. A União quer reafirmar a importância da responsabilidade
colectiva na luta contra a pobreza, o que
envolverá, não só os decisores, mas também os demais intervenientes dos sectores público e privado. O Ano Europeu
vai, nomeadamente, procurar dar a palavra a quem vive, no dia a dia, a pobreza
e a exclusão social. Desde 1983, a Europa
lança todos os anos uma campanha de
sensibilização chamada «Ano Europeu»,
visando informar e promover o diálogo
com os cidadãos europeus, a fim de fazer
evoluir as mentalidades e os comportamentos. Esses anos são também ocasiões
para atrair a atenção dos governos nacionais para as temáticas de natureza «societal». Em 2008, a União celebrou o Ano
Europeu do diálogo multicultural, em
2007 a igualdade de oportunidades, em
2006 a mobilidade dos trabalhadores.
2010, Ano Europeu de luta contra a pobreza e a exclusão social.
64 APRENDER
Alguns números.
Os nossos sistemas de protecção social
contam-se entre os mais desenvolvidos
no mundo e, contudo, ainda hoje existem demasiados europeus a viver na
pobreza. Este fenómeno reveste formas
complexas mas alguns números falam
por si mesmos:
– 78 milhões de pessoas vivem aquém
do limiar de pobreza (fixado em 60
% da mediana de rendimento do respectivo país); o que representa 16 %
da população europeia.
– Um europeu em cada dez vive numa
família onde ninguém trabalha.
Aliás, o trabalho nem sempre previne
contra o risco de pobreza.
– Para 8 % dos europeus, o emprego
não é suficiente para sair da pobreza.
– Na maioria dos Estados Membros,
as crianças estão mais expostas a este
problema do que o resto da população. Com efeito, 19% delas estão
ameaçadas de pobreza, ou seja, 19
milhões de crianças.
Os objectivos
Quatro objectivos transversais vão estar no cerne do próximo Ano Europeu:
– Reconhecimento: reconhecer o direito
fundamental das pessoas em situação de pobreza e de exclusão social
a viverem na dignidade e a tomarem
uma parte activa na sociedade;
– Responsabilidade partilhada e participação: aumentar a adesão do público
às políticas de inclusão social, sublinhando a responsabilidade colectiva
e individual na luta contra a pobreza e a exclusão social, promovendo
o envolvimento de todos os actores
públicos e privados;
– Coesão: promover uma maior coesão
na sociedade e assegurar que ninguém duvide das vantagens que resulta, para todos, de uma sociedade
sem pobreza;
– Envolvimento e acção concreta: renovar o envolvimento da UE e dos Estados Membros de lutarem contra a
pobreza e a exclusão social e de associaram, para isso, todos os níveis de
poder.
Ver www.2010combateapobreza.pt
Pobreza: uma pessoa vive na pobreza se o
seu rendimento e recursos são insuficientes
e a impedem de ter um nível de vida
considerado como aceitável na sociedade
em que vive. Devido à pobreza a pessoa
pode enfrentar múltiplos problemas:
desemprego, fraco rendimento, alojamento
desconfortável, falta de benefícios de
saúde e enfrenta obstáculos nos acessos à
aprendizagem ao longo da vida, à cultura,
ao desporto e aos lazeres. Ela encontrase portanto marginalizada e excluída da
participação nas actividades (económicas,
sociais e culturais) que são norma para as
outras pessoas e o seu acesso aos direitos
fundamentais pode ser restrito.
(Tradução do Relatório Conjunto Sobre
Inclusão Social, COM 2003, 773 Final). n

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