Baixar Catálogo - Kafka e o Cinema
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Organização dos textos: Luiz Garcia e Lucas Murari Ano de publicação: 2016 KAFKA E O CINEMA Mostra Kafta e o Cinema Luiz Garcia e Lucas Murari (orgs) 1ª Edição Maio de 2016 ISBN: 978-85-69488-02-6 Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução deste livro ou de parte de seu conteúdo sem prévia autorização da organizadora. 2 KAFKA E O CINEMA ÍNDICE Apresentação 5 Introdução, por Lucas Murari e Luiz Garcia 7 Kaftka: Metamorfoses da Leitura, por Maria Cristina Franco Ferraz 9 O Profeta e os Fantasmas, por Luís Alberto Rocha Melo 17 Filmar Kafka, por Cédric Anger 27 Kafka na Tela: Transduções Cinematográficas, por Hernán Ulm 37 Franz Kafka e o Cinema: O Tesouro Revelado, por Luiz Soares Júnior 43 Abecedário Kafkaniano Segundo Kundera, por Milan Kundera 51 Biografias 59 Filmes 60 Créditos 82 Parceiros 84 KAFKA E O CINEMA 3 A CAIXA Cultural tem a honra de apresentar ao público a mostra Kafka e o Cinema. Os projetos que ocupam os espaços da CAIXA Cultural são escolhidos através de seleção pública, uma opção da CAIXA para tornar mais democrática e acessível a participação de produtores e artistas de todo o país, e mais transparente para a sociedade o investimento dos recursos da empresa em patrocínio. A mostra Kafka e o Cinema coloca em evidência filmes relacionados à vida e à obra de um dos mais importantes escritores do século XX, Franz Kafka. É uma oportunidade do público conhecer e refletir a influência desse autor no campo do cinema. A mostra apresentará filmes de diferentes épocas e países, entre ficções, documentários e animações, destacando a multiplicidade de abordagens que o texto kafkiano suscita. A CAIXA é reconhecida como uma das empresas que mais investem e apóiam a cultura no Brasil, com um investimento superior a R$ 60 milhões de seu orçamento em patrocínio a projetos culturais. O patrocínio a esse projeto é mais um meio de proporcionar a reflexão e o entretenimento aos visitantes de seus espaços culturais, porque a vida pede mais que um banco. 4 KAFKA E O CINEMA 5 INTRODUÇÃO Lucas Murari Luiz Garcia (...) agradeço-te sinceramente, meu caro max, só que a falta de clareza dos fatos me é ainda mais clara do que tua explicação. a única coisa que posso dizer com convicção nisso tudo é que teremos de fazer visitas mais demoradas e numerosas ao cinema, à sala das máquinas e às gueixas, para poder compreender esse assunto, não só para nós, mas para o mundo. Kafka, Carta a Max Brod, 22 de Agosto de 1908 F ranz Kafka (1883 – 1924), escritor da língua alemã, nascido em Praga, capital da República Checa, é um dos autores estrangeiros mais conhecidos no Brasil. Seus livros vêm sendo publicados há décadas, despertando o interesse contínuo de novos leitores e influenciando várias gerações. Sua importância é tanta que o termo “kafkiano” é utilizado frequentemente como conceito, adjetivo para o ininteligível, labiríntico, características recorrentes em sua obra. Ele busca um texto claro e realista, mas que oculta uma atmosfera opaca e enigmática. A interpretação direta recai naquilo que o crítico literário Harold Bloom denomina como “armadilha de sua fuga idiossincrática da interpretabilidade”. Escreveu romances, contos, diários, cartas, aforismos, alguns desses inacabados. São narrativas sobre um mundo em crise, que muitas vezes figuram a opressão, o totalitarismo e a burocratização da vida. É um escritor essencial para compreender algumas das mudanças na literatura, no meio artístico e no pensamento das últimas décadas. 6 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 7 A mostra Kafka e o Cinema nasceu da constatação de olhares cinematográficos heterogêneos sobre seu legado. Foram selecionados curtas, longas-metragens, documentários e animações, que expõem a pluralidade de abordagens que foram dadas ao seu rico universo. Modesto Carone, tradutor brasileiro de Kafka e um dos especialistas em sua obra, no ensaio Alguns comentários pessoais sobre a tradução literária, publicado em seu livro Lição de Kafka (Companhia das Letras, 2009), argumenta sobre a dificuldade da tradução do idioma original do autor em questão. O célebre início de A Metamorfose, no original, utiliza três negações representadas pelo prefixo alemão "un": "unruhig" (in-tranquilo), "ungeheuer" (enorme, gigantesco, monstruoso) e "Ungeziefer" (inseto daninho que ataca pessoas, animais, plantas e provisões). Das três expressões, apenas uma foi possível de traduzir literalmente, a de “unruhig”, aqui traduzido por “intranquilo”. Por mais penoso que seja essa adaptação linguística, Carone vem realizando um trabalho formidável como tradutor de Kafka. Também buscamos que os filmes selecionados para essa mostra estejam além da fidedignidade dos textos publicados por ele. Foi valorizado o trânsito entre as diferentes expressões artísticas. A mostra buscou ressaltar como o escritor foi visto por cineastas transnacionais no decorrer da história do cinema. São adaptações, transposições ou obras que se inserem naquilo que denominamos como sensibilidade kafkiana. KAFKA: METAMORFOSES DA LEITURA Maria Cristina Franco Ferraz J udeu habitante de Praga, Franz Kafka projetou uma visada oblíqua sobre o universo e a cultura alemães, criando mundos bizarros e inquietantes. Seus relatos construíram espaços, seres e experiências tão precisas e realisticamente traçados quanto mais aparentemente “irrealistas” e labirínticos, delineados com a surpreendente nitidez e objetividade que em geral caracterizam os pesadelos. Esse efeito de “irrealização” não deve, entretanto, nos extraviar: não corresponde de modo algum a um descolamento com relação a processos históricos efetivamente em curso à época. Opera, ao contrário, uma lúcida e irônica desmontagem de mecanismos de poder, de regimes de valores efetivamente presentes. De início, cabe explicitar, de modo breve, a perspectiva de leitura adotada. Com esse fim, retomo a seguir algumas observações de Gilles Deleuze e Félix Guattari que confluem com a deste artigo. No livro Kafka: Por uma literatura menor, os autores afastam o escritor da neutralização efetuada por interpretações que insistem em considerá-lo afastado do “real”, lendo-o como um escritor intimista, simbolista, alegórico ou absurdo. Segundo Deleuze e Guattari, Kafka – tal como Nietzsche e Beckett, um “autor que ri” – é um escritor sobretudo “político, adivinho do mundo futuro” (Deleuze e Guattari, 1975, p. 75). Eis o que os autores escrevem em um pé de página esclarecedor: “Cólera de Kafka quando era tratado como um escritor intimista: assim, desde o início das cartas a Felícia, sua reação violenta contra os leitores ou os 8 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 9 críticos que falam, antes de mais nada, em vida interior. (…) Não é por acaso que toda interpretação de tendência neurótica insiste ao mesmo tempo em um lado trágico e angustiado e em um lado apolítico. A alegria de Kafka, ou do que Kafka escreve, não é menos importante que sua realidade e seu cunho políticos. (…) Não dispomos de outro critério para o gênio senão a política que o atravessa e a alegria que ele comunica. Chamamos de interpretação vil, ou neurótica, toda leitura que transforma a genialidade em angústia, em trágico, em ‘assunto ou questão individual’. Por exemplo, Nietzsche, Kafka, Beckett, tanto faz: os que não os leem com muitos risos involuntários e com frêmitos políticos, deformam tudo.” (Deleuze e Guattari, 1975, p. 75-76) A alegria referida pelos autores nessa citação pode ser aproximada da concepção nietzschiana do trágico, remetida à força afirmativa que não se esquiva do aspecto problemático da vida; antes, o acentua, intensifica e celebra, liberando o riso. Não se trata de uma gargalhada tola, mas de algo como o que Nietzsche chamou de “riso de ouro dos deuses”, impregnado de uma distância salutar com relação à comédia da existência e atravessado por uma agudeza capaz de liberar o vivente de pressões esmagadoras. Ainda segundo Deleuze e Guattari, Kafka se pretendia menos um espelho – metáfora privilegiada tanto do mimético, do ficcional, quanto do modelo de identidade prevalecente - do que um “relógio que avança” (Deleuze e Guattari, 1975, p. 107). Em seus textos, o escritor promove uma aceleração do pensamento e da percepção que põe a nu mecanismos políticos ainda não claramente identificáveis para os que recobrem o que aí está com amortecedoras camadas de senso comum. Em O processo, por exemplo, segundo Deleuze e Guattari, a máquina literária kafkiana procede a uma desmontagem efetiva e potente da máquina da lei, acoplada à da representação. Os autores esclarecem: 10 KAFKA E O CINEMA “Esse método da desmontagem ativa não passa pela crítica, que ainda pertence à representação. Consiste, antes, em prolongar, em acelerar todo um movimento que já atravessa o campo social: ele incide em um virtual já real sem ser atual (as potências diabólicas do futuro que, por ora, somente batem à porta).” (Deleuze e Guattari, 1975, pp. 88-89). A partir de Henri Bergson - autor muito presente no pensamento deleuzeano -, o real não se confunde com o visível, mas contém uma grande parcela de virtualidade, aninha camadas de virtualidade1. É na aceleração ficcional da realidade, por vezes ainda em estado de virtualidade, que reside a potência política e cômica da obra de Kafka. Imprimindo um ritmo mais acelerado ao relógio, suas obras dão a ver processos efetivamente em curso, em geral ainda não evidentes sob o modo de estados de coisas historicamente configurados. Tais processos são constante e insidiosamente neutralizados, naturalizados pelos hábitos e pelo senso comum. Assim é que certas “potências diabólicas do futuro” que na época apenas batiam à porta (fascismo, americanismo, burocracia) precipitam-se nos textos alquímicos de Kafka, minuciosamente esquadrinhadas, surpreendidas antes mesmo de alcançarem nitidez e até mesmo consistência histórica. A ficção revolucionária de Kafka nada tem, portanto, de absurda. Ela produz uma aceleração do real que termina por decodificar e desmontar-lhe as ardilosas engrenagens. Só na medida em que se confunde realidade com estados de coisa, na medida em que não se pressentem suas camadas de virtualidade é que se tende a inscrever a literatura de Kafka no confortável lugar do absurdo, no zoológico do onírico, desativando sua função corrosiva como dispositivo de desmonte de relações de poder e valores efetivamente operantes no mundo. Prova dessa eficácia e inserção política residiria, como veremos, em um dos textos mais conhecidos de Franz Kafka, não por acaso 1 A noção de virtualidade, definida como “real sem ser atual”, remete diretamente à obra de Bergson (Bergson, 2006). No sentido filosófico, “virtual” não se opõe a real, mas a “atual”, tal como, por exemplo, na palavra da língua inglesa actual. KAFKA E O CINEMA 11 um dos mais lidos na chave do absurdo ou do pesadelo: A metamorfose. Cabe assinalar que não estou pleiteando aqui uma leitura mais “verdadeira” de Kafka ou que tais interpretações estejam equivocadas. O que está em jogo não é a verdade, mas, ao que me parece, algo mais grave: o interesse da literatura para nós, sua potência de falar sobre este mundo. A fim de destacar a contundência política que também atravessa A metamorfose, retomo, a seguir, uma de suas expressões mais significativas, a rigor intraduzível em português, em todas as suas nuances. Trata-se justamente do inseto carapacento em que Gregor Samsa se vê (ou melhor, se percebe) metamorfoseado logo no início da novela. Na competente tradução de Modesto Carone (Kafka, 2011), o que se lê é “inseto monstruoso”; em alemão ungeheures Ungeziefer (Kafka, 1999). Em uma conferência proferida em 1983 e publicada em uma coletânea de textos de Kafka, Modesto Carone ressalta a dificuldade da tradução desses termos. Destaca, inicialmente, o adjetivo ungeheuer, que significa de fato “monstruoso” e que, na forma substantivada, das Ungeheuer, equivale a “monstro”. O tradutor acrescenta: “etimologicamente, ‘aquilo que não é familiar, aquilo que está fora da família, infamiliaris”, que se opõe a geheuer, o que é ‘manso, amistoso, conhecido, familiar’” (Kafka, 2011, p. 223). Esse sentido corrobora, portanto, de saída a situação tragicômica de Gregor Samsa, bom filho, cumpridor de deveres, que trabalhava para sustentar a família e resgatar dívidas dos pais. E que acorda transmutado em um antifamiliar Ungeheur. Tal sentido, no entanto, não esgota a expressão utilizada, pois vem acoplado a outra palavra repleta de historicidade. Vejamos algumas implicações do termo alemão usado para o inseto em que Gregor Samsa se transforma uma manhã em que despertara de sonhos inquietos. Na mesma conferência, o tradutor lembra o sentido original pagão de Ungeziefer: “animal inadequado ou que não se presta ao sacrifício”. Esclarece, por fim, que esse conceito alargou-se, passando “a designar animais nocivos, principalmente insetos, em oposição a animais domésticos como cabras, carneiros etc. (Geziefer)” (ibd., p. 223). A justaposição dos dois termos intensifica, assim, o aspecto não familiar e indomesticável que se torna, 12 KAFKA E O CINEMA certo dia, destino do obediente e torturado Gregor Samsa, que fica de início, comicamente, mais preocupado em perder o trem e a hora de ir trabalhar do que com sua estranha nova condição. Logo ele, que se sacrificava tanto pela família, se torna um inseto vil, sujo, ser abjeto e insacrificável. É inevitável articular, contemporaneamente, o sentido de “insacrificável” às teses de Giorgio Agamben a respeito da “vida nua”. Agamben recupera um velho conceito jurídico romano, o de “homo sacer”, remetido àquele que, sendo por demais vil para ser sacrificado, ficava à mercê de qualquer homem, que poderia matá-lo sem ser punido. Agamben lembra igualmente a diferença grega entre bios, vida politicamente qualificada, e zoé, vida nua, humanamente desqualificada. O autor vincula tal categoria a modos de vida modernos e contemporâneos, tanto no caso dos campos de concentração quanto no do prolongamento tecnologicamente equipado de “vidas vegetativas”, configurando o que chama de “neomortos”, seres ligados a máquinas que habitam CTI’s. A vida politicamente desqualificada, a vida nua, pautada mais no corpo biológico (com ênfase no cérebro, em hormônios e genes) do que no sujeito da ação coletivamente determinada, também está expressa no termo utilizado por Kafka (Ungeziefer), não deixando, portanto, de ter sido apontada e antecipada em A metamorfose. É entretanto ainda em outra direção que podemos atestar as camadas de virtualidade e a aceleração do relógio que se manifestam nessa novela de Kafka. Com efeito, a palavra Ungeziefer teve uma trajetória ominosa no século XX2, tornando-se atualmente um termo tabu, evitado por alemães politicamente conscientes ou corretos. Com efeito, esse era um termo recorrente no que se costuma chamar de “Retórica da violência”, acionada por Hitler e pela propaganda nazista, para desqualificar em especial os judeus: palavras como Parasit (parasita), Wanze (percevejo), Spulwurm (lombriga) e Ungeziefer (inseto). Trata-se, portanto, de um sentido mais do que pejorativo, aviltante, equivalendo a “praga”, menos que escória, e sugerindo uma 2 Devo tais indicações a meu professor Carlos Abbenseth. KAFKA E O CINEMA 13 espécie de ser que deveria ser eliminada, erradicada. A associação nazista entre o judeu e o inseto insacrificável cristalizou-se historicamente pelo menos de dois modos precisos: o gás utilizado nos campos de concentração era o Ziklon B, um inseticida; a redução à mais radical vida nua efetivava o processo de eliminação da humanidade daqueles confinados nos campos de concentração (como atualmente, em novos campos3). Aliás, também nesse sentido outro texto de Kafka apresenta uma cena antecipatória: no final de A colônia penal, o estrangeiro que foge da colônia tropical, pulando em um barco, rechaça violentamente com uma corda dois habitantes da ilha (o sentenciado e o guarda) que queriam escapar com ele dali4. A contaminação entre praga, verme, inseto e vida nua não deixa, evidentemente, de se manifestar na cultura e na história do Brasil. Nossos Ungeziefer são, em geral, negros e índios, favelados, pobres ou nordestinos. Em uma entrevista concedida ao finado Caderno Prosa e Verso do jornal O Globo, publicado em 12/04/2014, Maria Rita Kehl lembra que, embora evidentemente não haja confirmação oficial, durante a construção da BR-174 (Manaus-Boa Vista), no período da ditadura militar, os índios relatavam que aviões passavam jogando “uma coisa que não queimava o mato, mas queimava a gente por dentro”. Maria Rita Kehl acrescenta: “Obviamente não há documentos oficiais sobre isso, mas, pelos relatos, podia ser pesticida.” (Kehl, 2014, p. 3). Interpretar portanto o monstruoso inseto kafkiano sobretudo na chave do onírico ou do absurdo é desconhecer os ominosos crimes cotidianamente perpetrados, em geral contando com nossa conivência ou indiferença. Indiferença, aliás, claramente expressa no personagem do Pesquisador estrangeiro que visita a anacrônica colônia penal para relatar o que vê, agindo apenas de um modo: fugindo (Ferraz, 2015, p. 70). Em uma perspectiva mais diretamente ligada ao mundo em que Kafka viveu, assinalemos que a palavra Ungeziefer era utilizada de 3 Agamben considerou o “estado de exceção” como regra da política. 4 Ver, a esse respeito, o capítulo 4 (“Na colônia penal: uma leitura dos trópicos”) do livro Ruminações: cultura letrada e dispersão hiperconectada (Ferraz, 2015, p. 61-77). 14 KAFKA E O CINEMA uma maneira específica na sociedade alemã, mesmo na Praga do tempo de Kafka ou (suprema ironia) entre judeus alemanizados. Vejamos, por exemplo, um trecho da Carta ao pai (Kafka, 2007) em que o missivista relata de que modo o pai destratava e aviltava seus amigos, judeus mais pobres, atores: “Bastava que eu demonstrasse um pouco de interesse por uma pessoa – o que não acontecia com muita freqüência, devido a meu modo de ser - para que, sem qualquer consideração por meu sentimento ou respeito por meu julgamento, você viesse com insultos, calúnias e aviltamento. Pessoas infantis e inocentes, como por exemplo o ator ídiche Löwy, tinham de pagar caro por isso. Sem conhecê-lo, você o comparava, de uma maneira tão terrível que eu já tinha esquecido, a um Ungeziefer (inseto), e assim como tão frequentemente com relação a pessoas que me eram caras, você tinha automaticamente à mão provérbios sobre cães e pulgas.” (Kafka, 2007, p. 13, tradução minha). Por esse exemplo, pode-se constatar tanto a difícil tradutibilidade do termo empregado por Kafka em A metamorfose quanto sua pregnância política e social. Nesse sentido, o autor realizou na novela um verdadeiro golpe de mestre, metamorfoseando um alemão bom filho, obediente e cioso de seus deveres no monstruoso inseto, fazendo com que incorporasse efetivamente um dos termos mais usados para desqualificar o outro. Ao mesmo tempo, revela de que modo a família, estrutura política de base, mostra toda a sua crueldade ante as transformações radicais, perante as possíveis viradas dos filhos. Mesmo a irmã, inicialmente próxima a Gregor Samsa metamorfoseado em inseto, e a mãe, de início conivente com sua alimentação, só ficam aliviadas e descortinam um nova vida, banhada de sol, depois que o Ungeziefer está morto, eliminado, em conseqüência da agressão (com uma maçã que se incrusta na carapaça) direta do pai. Eis assim mais um pesadelo que teima em se concretizar na história humana. KAFKA E O CINEMA 15 Referências Bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. O poder soberano e a vida nua – Homo Sacer. Lisboa: Editorial Presença, 1998. BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 2006. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka (pour une littérature mineure). Paris: Minuit, 1975. FERRAZ, Maria Cristina Franco. Ruminações: cultura letrada e dispersão hiperconecada. Rio de Janeiro: Ed. Garamond, 2015. KAFKA, Franz. Brief an den Vater. 2007. Frankfurt: Fischer Taschenbuch Verlag, 2007. ______. Die Verwandlung. Frankfurt: Suhrkamp, 1999. ______. Essencial Franz Kafka. Seleção, introdução e tradução de Modesto Carone. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011. KEHL, Maria Rita. Entrevista ao Caderno Prosa e Verso “Violações de ontem e hoje”. Jornal O Globo, 12/04/2014. O PROFETA E OS FANTASMAS Luís Alberto Rocha Melo N o futuro indeterminado em que se passa Quem é Beta? (Nelson Pereira dos Santos, 1973), uma guerra devastou a civilização e o mundo está dividido entre duas categorias de seres humanos: os contaminados e os não-contaminados. Enquanto estes se protegem em abrigos e trincheiras, aqueles vagam pela terra como zumbis, clamando por comida e água em meio a uma paisagem tropical exuberante. Vestem-se com trapos e panos coloridos, são magros e depauperados, andam a esmo, em bandos, e se tornam presas fáceis das balas disparadas pelos não-contaminados. No Brasil em preto e branco de O profeta da fome (Maurice Capovilla), cravado no ano de 1969, o horror é a medida de todas as relações. Num circo de arrabalde, um recurso extremo: a grande atração é o homem que come gente. Só assim o público pagante aumenta. A audiência exige o macabro espetáculo, mas um incêndio destrói o circo. Enquanto astronautas pousam na Lua, os lixões proliferam, os homens se matam por um pedaço de pão ou um naco de carne e um artista de circo descobre que só será possível escapar da miséria ganhando dinheiro com a própria fome. O profeta da fome estreou nas salas paulistanas em junho de 1970, durante a Copa do Mundo, um dos períodos mais tétricos da ditadura militar. Segundo o próprio Capovilla, “passou serenamente pela censura” e “não foi mal de bilheteria” (MATTOS, Carlos Alberto, 2006, p. 135). Quem é Beta? foi exibido na Quinzena dos Realizadores em Cannes e em seguida lançado em um único cinema no Rio de Janeiro (o Cinema-1), em abril de 1973, sendo friamente 16 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 17 recebido pela crítica e pelo público. Em um caso como no outro, verifica-se o descompasso entre o engajamento político, a necessidade de comunicação com o grande público e a fabulação alegórica como escape à atmosfera opressiva em que o meio cultural estava imerso. Ao mesmo tempo em que volta seu olhar para o passado recente, especificamente para o Cinema Novo e o fracasso de um projeto nacional-popular abortado pelo golpe de 1964, O profeta da fome incorpora os sinais de uma renovação latente no cinema brasileiro pós-1968 – seja a partir da presença de José Mojica Marins (então famosíssimo como o Zé do Caixão) interpretando o faquir Ali Khan, seja absorvendo na equipe técnica alguns dos primeiros alunos do curso de cinema da Escola de Comunicações e Artes da USP, como Roman Stulbach, Plácido de Campos Jr. e Aloysio Raulino. Não por acaso, o próprio Capovilla dirá que o filme, ao estrear em 1970, já chegaria “defasado em dois anos com relação às mudanças de linguagem no cinema brasileiro”, embora compartilhasse com outros filmes daquele momento o desencanto em relação à capacidade de mobilização popular. “Em seguida ao AI-5”, prossegue o cineasta, “vivíamos um processo tão destrutivo e sem esperanças que só me restava fazer um filme que jogasse tudo para o ar. Não mais adiantava louvar o revolucionário. A alegoria era uma forma de fugir ao confronto” (MATTOS, Carlos Alberto, 2006, pp. 135-136). Quem é Beta? era outra resposta às “mudanças de linguagem no cinema brasileiro” de que fala Capovilla. Atento ao trabalho de cineastas mais jovens como Rogério Sganzerla, Julio Bressane, Luiz Rosemberg Filho, Geraldo Veloso, Neville D’Almeida e Andrea Tonacci, entre outros, mas também dialogando com os companheiros da geração anterior – Paulo César Saraceni, Walter Lima Jr. e Joaquim Pedro de Andrade, por exemplo – , o realizador de Rio, 40 graus e Vidas secas sabia perfeitamente que o discurso cinemanovista havia entrado em curto-circuito e os instrumentos de análise da situação política brasileira estavam sendo implodidos por uma nova massa crítica, teórica e conceitual. 18 KAFKA E O CINEMA Quem é Beta? aceita o desafio contemporâneo, apostando em um curioso atravessamento da cultura pop pelos novos paradigmas filosóficos e históricos que então ecoavam da Europa para o mundo. Nada melhor do que o gênero da ficção-científica para estabelecer esse cruzamento – além, é claro, das mensagens cifradas para consumo local, recurso no entanto ironicamente negado pelo diretor desde o prólogo do filme, quando a tela preta e a voz over do próprio Nelson advertem1: Não procurem mensagem neste filme; se alguma houver será sempre contribuição de sua parte. Não acreditem no que os atores estão fazendo em cena. Nunca foi de nossa intenção dar realismo ao comportamento dos personagens, porque tudo acontece como numa história em quadrinhos: sem compromisso, absolutamente sem compromisso [...] Por isto encontrem uma posição confortável na sua poltrona, desatem os músculos, deixem a cabeça livre e os olhos também, como aliás deverão fazer em todo e qualquer filme. (AVELLAR, José Carlos, 1973, p.2) Em O profeta da fome a consciência do drama reflui em sentimento de horror e dilaceração, apenas em parte atenuado pelos elementos cômicos, aqui e ali sublinhados no roteiro. No mergulho existencial de Capovilla, a seriedade tem um peso trágico. É um fardo levado às costas, ainda que prestes a ser atirado no primeiro terreno baldio à sombra dos arranha-céus. Nelson Pereira dos Santos, por sua vez, olha de lado e sorri para o bode em que o Brasil havia se tornado. Inviável o projeto nacional-popular – aliás, retomado em nova chave no excepcional O amuleto de Ogum (1974) –, Nelson realiza com Quem é Beta? um filme ambíguo, irregular, balbuciante, absurdo, precário, sombrio. E no entanto, surpreendentemente bem-humorado. Tanto em O profeta da fome quanto em Quem é Beta? verifica-se uma violenta tensão entre o espetáculo do corpo aprisionado e 1 A cópia restaurada em 2007 e exibida no Canal Brasil não contém esse prólogo, constante da versão em 35mm lançada comercialmente na época. KAFKA E O CINEMA 19 o desejo de mobilidade e prazer. Para manter o interesse de um público cada vez mais escasso, Ali Khan aceita mastigar cacos de vidro e pregos enferrujados, enfiar espadas em seu corpo, ser enterrado vivo e até mesmo ensaiar comer a carne tenra de uma criança. Com exceção da antropofagia, que lhe provoca repulsa, todos os outros desafios o faquir cumpre com a máxima competência. A dor não o intimida, as vaias não o incomodam. Ali Khan é um despossuído de si próprio: alvo dos olhares de admiração ou desprezo, seu corpo ao mesmo tempo frágil e resistente é oferecido em sacrifício, já que todo sacrifício é também um espetáculo. Até aqui, a lógica do aprisionamento ainda é sutil: o circo, com sua lona esfarrapada e seu picadeiro miserável, é a arena na qual o artista a cada noite desfaz-se de sua própria identidade. Alienação consentida, porque parte necessária do jogo. Mas é contra essa espécie de prisão que Ali Khan lentamente se insurge. Após o incêndio no circo, O profeta da fome retoma a clássica trajetória do migrante: ao lado de sua companheira Maria (Júlia Miranda) e do domador de feras (Maurício do Valle), Ali Khan encontra um cego nordestino (Adauto Santos), mistura de oráculo e violeiro cantador. O grupo segue por uma floresta envolta em neblina; a canção-cordel cantada pelo cego que os acompanha narra toda a travessia. Por um pedaço de pão, o faquir perde um olho, extraído pela ponta da faca do cruel domador. Quando está prestes a ceder o outro olho, Maria atinge com uma enorme pedra a cabeça do domador, que morre. Ali Kahn, agora cego de um olho, resolve montar com a ajuda de Maria um espetáculo em uma cidadezinha do interior – curiosamente indefinida em termos regionais –, no qual ele é crucificado. O povo da cidade começa a peregrinar até o monte em que o faquir se exibe na cruz, e ele passa a incomodar a igreja e o coronel. Ali Khan e Maria são presos. Sozinho em sua cela, tendo pão e água como únicos alimentos oferecidos, Ali Khan passa os dias deitado, jejuando. Aos poucos, em aparente delírio, toma consciência de sua fome e percebe nela a única arma para superar a miséria. É então que se torna o “artista da fome”, sendo exibido nas ruas de São Paulo em uma urna, chegando mesmo a ganhar o reconhecimento 20 KAFKA E O CINEMA das autoridades. O paradoxo é duplamente irônico: para ganhar dinheiro e se livrar da fome, Ali Khan precisa cultivar o jejum; para libertar-se do imobilismo servil como empregado do circo, torna-se um corpo imóvel e aprisionado. Aqui verifica-se a ideia de resistência como resultado do cruzamento entre a conscientização do “personagem popular” – subtraída a revolta romântica – e a solidão torturada do herói de Um artista da fome. Nesse conto de Franz Kafka, no qual o roteiro de Maurice Capovilla e Fernando Peixoto foi parcialmente inspirado, o faquir busca superar sua própria perfomance como uma secreta resposta ao desprezo de que passa a ser alvo. Ir além significa ultrapassar o próprio corpo, desligar-se de um passado de glórias minado pelos novos tempos de consumo imediato e reificação. É esse cruzamento entre a tradição cinemanovista e o expressionismo kafkiano que faz de Ali Khan, magistralmente interpretado por José Mojica Marins, um personagem incomum no cinema brasileiro dos anos 1960-70. A capacidade de resistir é portanto um dado que não deve ser menosprezado na construção narrativa de O profeta da fome, e que também está presente em Quem é Beta?. No filme de Nelson Pereira dos Santos, o conflito que se estabelece entre os contaminados e os não-contaminados aponta, por um lado, para o abismo entre as classes sociais; por outro, para a dominação dos miseráveis pelos quem detêm a competência técnica e tecnológica. Os não-contaminados fazem parte desse último grupo. Possuem armas e radiotransmissores, alimentando com eles a máquina do poder. Mas também são vítimas desse sistema, já que se mantêm enclausurados em abrigos, em uma ilusória vantagem em relação aos contaminados. A forma arquitetônica desses abrigos – ou pelo menos do abrigo em que se instalam os não-contaminados Maurício (Frédéric de Pasquale), Regina (Regina Rozemburgo), Gama (Jean-Dominique Ruhle) e Beta (Sylvie Fennec) – é moderna, circular, arejada e bem iluminada, com grandes portas e janelas delimitando os territórios interior e exterior, não a partir da osbtrução de um ou de ouKAFKA E O CINEMA 21 tro lado, mas da quase total visibilidade que permite enxergar o “dentro” e o “fora” sem obstáculos significativos. Os habitantes desse abrigo são, por sua vez, monitorados por invisíveis estações de controle, acessadas pelos radiotransmissores. Aparentemente, os não-contaminados dominam o território, expulsando ou eliminando a tiros os contaminados. Mas na verdade são os não-contaminados que se encontram sitiados, peças de uma engrenagem de vigilância e autovigilância ininterrupta, introjetada e tanto mais eficaz quanto menos discernível. Não é difícil reconhecer aí a sociedade panóptica formulada por Michel Foucault em Vigiar e punir, que teria no projeto arquitetônico de Jeremy Bentham seu modelo inspirador: [...] se é verdade que a vigilância repousa sobre indivíduos, seu funcionamento é o de uma rede de relações de alto a baixo, mas também até um certo ponto de baixo para cima e lateralmente; essa rede “sustenta” o conjunto, e o perpassa de efeitos de poder que se apoiam uns sobre os outros; fiscais perpetuamente fiscalizados. (FOUCAULT, Michel. 2009, p.170) As bases dessa vigilância são a visibilidade e o anonimato. Por isso, ver sem ser visto é tão necessário para os que de fato estão no controle do sistema. Os não-contaminados acreditam ocupar o lugar de mando, de quem vê sem ser visto, ou seja, daqueles que vigiam e estão sempre prontos a eliminar o perigo e a reinstituir a ordem – um perigo que de fato não os ameaça, e uma ordem que também não lhes interessa, mas que cultivam como escravos sem correntes. O preço dessa ilusão é o despertar compulsório e o ataque sem tréguas ao potencial subversivo das temporalidades subjetivas – incluindo aí a memória, os sonhos, os desejos. O ontem ou o amanhã deixam assim de fazer sentido. A perda da memória e a destruição das utopias são decorrências diretas de um presente intensificado e sempre renovado, ou seja, constantemente defasado. Eis a perversidade da operação: a ideia de passado é substituída pela fórmula do eterno atraso; o futuro torna-se sincronia impossível. Condenados ao presente e à visibilidade constantes, 22 KAFKA E O CINEMA os não-contaminados são apenas intermediários entre as torres de controle – verdadeiras instituições disciplinares ocultas pelas ondas de transmissão sonora – e as hordas de desnutridos que vagam pelo mundo. A ideia de uma sociedade panóptica é comum a Foucault e a Kafka, bastando citar em relação ao segundo os romances O processo e O castelo. Como salienta Margareth Rago a propósito de Vigiar e punir e do conto Um relatório para uma Academia, em Foucault e Kafka “o homem aparece como uma triste figura da Modernidade, pois sua origem, que tem uma data e uma história, advém de um encarceramento relativamente recente” e “resulta da supressão da liberdade animal, do confinamento em jaula, da territorialização.” (RAGO, Margareth, 2005, p.42). O faquir Ali Kahn e os não-contaminados pertencem a essa espécie de “humanos enjaulados”, como demonstram as semelhanças entre a circularidade do palco circense e a arquitetura panóptica do esconderijo futurista – ambas sublinhadas, aliás, no uso expressionista da lente grande-angular pelos fotógrafos Jorge Bodanzky e Dib Lutfi –, ou entre as estruturas devassadas da urna em que se imobiliza o jejuador e do abrigo em que se escondem os não-contaminados. A urna transparente e o abrigo exposto à luz solar e aos holofotes de segurança impõem a seus habitantes o regime das noites brancas, a vigilância incontornável, a atualização incessante do presente – seja no exercício de concentração que administra a fome, seja na paranoia que disciplina os corpos em guerra. Nesse processo, o apagamento do passado é etapa fundamental para a sobrevivência diária e para a docilidade dos subordinados. A representação da sociedade disciplinar contida em O profeta da fome e em Quem é Beta? se mantém atual e ecoa na formulação de Jonathan Crary a respeito do novo estágio da economia capitalista contemporânea, que o autor denomina de “24/7”, e que pressupõe, entre outras coisas, o trabalho e o consumo sem pausas em uma sociedade altamente informatizada: Um mundo 24/7 é desencantado, sem sombras nem KAFKA E O CINEMA 23 obscuridade ou temporalidades alternativas. É um mundo idêntico a si mesmo, um mundo com o mais superficial dos passados, e por isso sem espectros. Mas a homogeneidade do presente é um efeito da luminosidade fraudulenta que pretende se estender a tudo e se antecipar a todo mistério ou ao desconhecido. Um mundo 24/7 produz uma equivalência aparente entre o que está imediatamente disponível, acessível ou inutilizável e o que realmente existe. O espectral é, de alguma maneira, a intrusão ou irrupção no presente por algo que está fora do tempo e pelos fantasmas do que não foi descartado pela modernidade, de vítimas que não serão esquecidas, da emancipação não realizada. (CRARY, Jonathan, 2014, p.29) Como foi dito acima, o ato de resistir, evidente em O profeta da fome, também está presente no filme de Nelson Pereira. As “temporalidades alternativas” e os “fantasmas” de que falam Jonathan Crary surgem em Quem é Beta? de maneira cristalina. No primeiro caso, a irrupção do passado se torna possível quando Maurício apresenta a Regina um aparelho que ele mesmo construiu, em seus mínimos detalhes, e que consegue materializar “os pensamentos da cuca”. Maurício projeta as imagens desse aparelho em uma tela de fumaça. As imagens projetadas são as memórias afetivas dos personagens. O potencial transformador desse aparelho está no entanto limitado ao abrigo em que se encerram os não-contaminados e portanto tem um alcance ainda diminuto. Mas quando Beta, a personagem-chave do filme, se introduz no cotidiano de Maurício e Regina, não só o aparelho passa a ser usado como registro de um projeto futuro (Beta “grava”, nele, seu desejo de partir e de viver novas aventuras), como as imagens projetadas ultrapassam os limites do abrigo: quando ela parte, leva também as memórias de Maurício e Regina em sua bolsa. De certa forma, Beta é um fantasma, um espectro que desestabiliza a homogeneidade do presente, e o espectro é outra figura desafiadora e recorrente em Kafka. Beta é um fantasma como 24 KAFKA E O CINEMA também o são os contaminados, mas sua capacidade de romper as fronteiras eugênicas a singulariza em relação aos demais. Talvez uma questão de classe? O fato é que quando Beta retorna ao abrigo, Maurício dispara em sua imagem, mas ela reaparece duplicada nela mesma e em outra mulher, grávida (Ana Maria Miranda), lembrando o sol duplo de A máquina fantástica, de Adolfo Bioy Casares – romance com o qual, aliás, Quem é Beta? também guarda forte identidade. Beta e a mulher grávida são imagens produzidas e reproduzidas no interior/exterior dos desejos e das lembranças, passado/futuro eclipsando o presente, bomba-relógio de efeito desconhecido. Uma descontinuidade, um ruído na luminosidade opressora, interstício por onde penetra aquilo que ainda virá. Em Quem é Beta?, a capacidade inerente ao cinema de registrar a vida e transformar esses registros em fantasmas do passado que assombram o presente não deixa de ser vista como um instrumento de libertação. Outras possibilidades de resistência se apresentam no filme, a exemplo da comunidade hippie com a qual Maurício e Beta interagem. Os integrantes dessa comunidade procuram, subvertendo a temporalidade normativa, reconectar-se com a natureza e a espiritualidade, isto é, com um passado pré-industrial no presente da devastação capitalista. Curiosamente, essa comunidade alternativa também utiliza o aparelho de projetar memórias para se comunicar com um de seus membros (Arduíno Colasanti), que se encontra exilado. Mas não sejamos ingênuos: o aparelho que capta e reproduz imagens é similar ao fuzil. O olho que materializa os sonhos é o mesmo que mira impiedosamente nos contaminados. O simples gesto de fechar um olho e manter o outro aberto não deixa de reproduzir em escala mínima a tensão proposta por Capovilla e Nelson Pereira entre a vigília e a impossibilidade do sono, entre o autocontrole e a vigilância exterior, entre a subjetividade e a sujeição, entre aquilo que se vê e aquilo que não se pode (ou não se deve) projetar. Nesse sentido, o tapa-olho de Ali Khan é quase uma gag: em terra de cego, quem tem um olho é rei. A amargura de O profeta da fome e o humor quase cínico de Quem KAFKA E O CINEMA 25 é Beta? talvez não tenham sido devidamente valorizados ou compreendidos em sua época. Mas como objetos fantasmáticos, viajaram no tempo e chegaram até nós luminosos, desconcertantes e inspiradores. FILMAR KAFKA Cédric Anger1 Referências Bibliográficas AVELLAR, José Carlos. “As memórias na fumaça”. Jornal do Brasil (Caderno B). Rio de Janeiro: 13 jun 1973. CRARY, Jonathan. 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2009. MATTOS, Carlos Alberto. Maurice Capovilla: A imagem crítica. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006. RAGO, Margareth. “Rir das origens”. In: SILVEIRA, Rosa Maria Hessel [org.]. Cultura, poder e educação: um debate sobre estudos culturais em educação. Canoas: Ed. ULBRA, 2005. A obra literária de Franz Kafka não é as das mais adaptadas para o cinema. Errado. Além dos formidáveis O Processo (Le Procès, 1962) de Orson Welles e Relações de Classe (Klassenverhältnisse, 1984) de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, os cineastas da Europa Central de todas as épocas não param de se debruçarem sobre o seu trabalho. Muitos outros diretores, anglo-saxônicos e nórdicos, russos e sul-americanos são também inspirados pelo genial autor tcheco e fazem seus o mundo sufocante e absurdo pleno de questões sobre o indivíduo, a justiça, a lei e a culpabilidade. Suas adaptações ficam para serem descobertas. Enquanto aguardamos, vamos revisitar algumas ilustres adaptações de cineastas que têm introduzido em seus filmes textos do nosso autor, ou mesmo filmado o próprio escritor ou alguém muito próximo a ele. Filmar Kafka O Processo de Orson Welles. De todas as adaptações cinematográficas das obras de Kafka, O Processo de Orson Welles permanece a mais célebre e fiel ao espírito do livro que o originou. Que conta o romance? A história da angústia que um ser alimenta, preza, provoca, permanecendo até a autoculpabilidade mental. Esse desenvolvimento somente leva a um processo fatal que o indivíduo provoca em si mesmo. Joseph K. 1 Este texto foi publicado originalmente em BAX, Dominique. Théâtres au cinéma n. 8 – Milos Forman, Franz Kafka. Collection Magic Cinéma 1997. Todos os direitos reservados. Republicado com permissão dos detentores dos direitos autorais. 26 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 27 é a pura inteligência dilacerada entre a culpabilidade que ela se faz e a inocência que ela mesma procura provar. Alguém que se faz a cada vez seu próprio juiz e advogado, duplo que se torna cada vez mais arrepiante e monstruoso, pois, amando sua angústia como ele faz, K. não pode mais e nem quer mais, provar sua inocência. 28 de Orsay a Zagrebe, o cenário denota sistematicamente um espaço que não é preenchido, e não é por acaso que está sempre completamente vazio (só a sala do tribunal será um “lugar cheio”, mas totalmente desiquilibrada). Onde nos espantamos com as cenas finais entre Orson Welles e Perkins até o apagar da lanterna mágica. Permanece somente a grande tela vazia que chega a ser mais preenchida. Essa noção de vazio atrai a personagem e o obriga a se perder. O Processo é a encenação de uma perdição pelo vazio. K. vai em direção ao seu próprio vazio, a busca, a alimentação e a concretização para mergulhar de corpo e alma. Como sempre em Welles, o vazio e o desvario são também sonoros. As personagens nunca param de falar, são verdadeiros “moinhos de palavras”, provocando um tipo de desvario sonoro que leva K. em direção a sua perda. Homem de rádio, Welles trabalha bastante a diferenciação de voz, das sonoridades das cordas vocais e implantando um jogo de interação entre as vozes que se sucedem e se sobrepõem, se entrelaçam até perturbar e distorcer os pontos da percepção da ação (não sabemos mais quem fala)2. Como diz o advogado, “Os acusados são atraídos”. Em outras palavras, a personagem aqui é vítima do fenômeno da atração para a culpabilidade e angústia. O filme de Welles será antes de tudo a análise clínica da paranoia que segue tal situação. A paranoia é projetar sua angústia sobre o mundo para provar finalmente que é o mundo que está enfermo e não si mesmo. Assim, o primeiro plano do filme mostra como o mundo é visto pelo olho do paciente. Este será o desafio do filme: como o paciente vai criar uma objetividade para a sua doença e como vai procurar para provar que realmente é o mundo, o universo que está realmente doente e não ele. O Processo se desenrola nesse discurso mental doentio de um ser que se sente culpado e fabrica em seu espírito acusações e contra-acusações. O desenvolvimento mental de seu pensamento o faz culpar-se sempre um pouco mais, até que seja totalmente dominado, sugado, por essa culpabilidade que ele criou. O Processo mergulha em um espaço mental que se alimenta de sua própria angústia e prova de uma necessidade vital de alimentar-se desse medo. Inevitavelmente, esse espaço cerebral não pode ser preenchido permanentemente, pelo movimento até a angústia, é preciso esvaziar toda possibilidade de estabilidade de reintroduzir permanentemente a inquietude pelo vazio e pelo desvario. A direção de Welles nunca trabalha com o espaço pleno, não há sensação de plenitude, ao contrário, permanentemente o espaço está vazio. O estilo de Welles, na sua própria maneira de interpretar, Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) até A Marca da Maldade (Touch of Evil, 1958), geralmente “embaralha o espaço”. Ao escolher o magro e elegante Anthony Perkins para interpretar Joseph K. e a maneira que ele ocupa o plano/quadro dá repentinamente a impressão de um espaço que está constantemente vazio, de uma superfície que nunca chega a ser preenchida. Tal é a sensação trabalhada no filme: A impossibilidade de ter um espaço ocupado. O Processo é para Orson Welles o filme da perda do espaço. Do hall da estação 2 Invenção sonora que será repetida e retrabalhada mais tarde por Godard, cineasta moderno que costuma quebrar os marcadores comuns dos espaços visuais e sonoros. KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA Welles encontra também um equivalente cinematográfico ao deslocamento espacial Kafkiano utilizando metodicamente a focal curta que alonga as perspectivas e dá a impressão que o fundo do plano é muito mais distante do que é realmente. Em O Processo quando uma personagem vem do fundo, nos dá a sensação dela vir muito mais rápido que o normal uma vez que ela absorve toda distância ótica que a focal curta revela. Assim, temos a impressão da velocidade acelerada a cada deslocamento das protagonistas, a sensação de distorção permanente do espaço. Como todos os grandes cineastas, o procedimento técnico é para acentuar e reforçar o tema do filme (a sensação psicológica): traçando a impossibilidade de estar de qualquer maneira que seja estável. O espaço está permanentemente entrecortado. O cineasta, desse modo, traduz espacialmente as consequências da doença mental e das angústias (agorafobia e claustrofobia) de 29 K. Onde quer que vá, Joseph se sente aprisionado e procura escapar deste aprisionamento através de um movimento incessante. Daí a extrema mobilidade do filme e a descontinuidade resultante da narrativa. O filme funciona como uma viagem, e cada sequência é tratada como uma etapa dessa viagem. Não esqueçamos que o puzzle, presente desde Cidadão Kane, é o recurso principal da construção dos filmes de Welles que não trabalha a história continuamente, mas, rompe-a constantemente. Welles é o cineasta da continuidade quebrada, da ruptura dentro da continuidade. Influenciado principalmente pelo expressionismo, o seu sistema também é baseado no tratamento particular de luz e sombra. Para o autor de Mr. Arkadin (1955), a sombra é a zona onde reside o espaço do poder. Toda pessoa que deseja o poder, coloca-se na sombra e lá permanece. Assim, o cineasta liga a noção de poder com aquele mau. O poder, a sombra em Welles, antes de tudo é o dinheiro (como em Balzac) sempre obscuro e escondido. Lembremos em Cidadão Kane a cena chave das memórias do banqueiro Thatcher que nos mergulha em um tipo de fortificação com entrada subterrânea onde o que se esconde são lembranças financeiras, como chega o dinheiro, se faz e o fabrica. Essa ideia do dinheiro ligado ao poder é o coração de toda a obra de Welles, baseada na noção de corrupção e de deterioração do poder. O Processo não foge a esta fascinação de decrepitude na cena muito bonita com Suzanne Flon, que interpreta a mulher que carrega a mala. Aqui é retomada a atração de Welles por tudo o que é degradação corporal sempre associado, por ele, a perda do poder (A Marca da Maldade) onde o constante trabalho do autor-ator sobre a deformidade física, a desgraça física se opõe a tudo o que é sedutor. Mas, retornemos a essa vontade de poder que anima a todos os personagens de Welles e trair fazendo sua impotência profunda. Pois, a encenação do poder implica outro tanto da impotência. O imaginário do nosso autor, se baseia na lógica dialética da oposição permanente entre poder e impotência como entre o negro e o branco. O poder projeta a impotência assim como o negro projeta o branco. De onde o combate no final do filme entre Welles e Perkins, aqui será mais da sombra em relação à Fautre. Aqui tere30 KAFKA E O CINEMA mos menos luz, tão exposto e vulnerável. Pois a luz revela as pessoas, as fazem sair da sombra, as colocam em posição de se expor e daí perdem o poder. No início do filme, K. está totalmente na sombra, ele tem o poder de imaginar que se coloca em atividade e deslancha o fenômeno da culpabilização. À medida que o filme avança, Perkins vai saindo da sombra, se expondo cada vez mais, pois dominado pelas forças das sombras e seu poder. Welles apresenta a paranoia de K. até no seu sistema expressionista. Se toda angústia projetar outra nova, todo poder, toda sombra projeta luz e outro poder que vem destruí-los. Assim, o fim do filme será do modo contrário ao início, fazendo K. passar da sombra para a luz. Tudo é invertido, mesmo o comportamento da personagem é mudado, o pijama negro, agora dá lugar a uma camisa branca... Quando o filme começa, Joseph K. tem o poder, ele esconde sua angústia e sua culpabilidade. Ele desencadeia a narrativa. Assim K. prepara o primeiro policial, os três colegas de escritório... No fim, ele vai esconder um sistema, mesmo que mental, que vai estar preso no poder desta paranoia e totalmente dominado, absorvido por ela. Pode-se dizer que a primeira parte, subjetiva, do Processo nos mostra K. amando sua angústia, tendo prazer em ter uma profunda emoção sobre seu próprio caso e que a segunda parte é a objetivação desse medo. De um só golpe, esse mundo secretamente existe e ele não passa de uma engrenagem desse sistema. Nesse momento a música cessa, aliás, deixa de ser uma melodia xaroposa para tornar-se completamente dramática. Esta encenação da paranoia será, também, reforçada por todo um trabalho de oposição entre os diferentes olhares das personagens do filme. Entre os olhares quase icônicos, fixos daqueles que o julgam, e o de Perkins, agudo, inquieto e retrocedente, rápido em relação aos olhos fixos das garotas. Tudo se passa como se fosse espionado permanentemente e não pudesse escapar desses olhares que lhe fitam. O Processo se desenrola como um diálogo interior, que mostra um ser que faz e responde questões, juiz e advogado. O filme é somente a encenação de uma projeção abstrata que uma personagem faz sobre o mundo, e nos faz entrar no sistema onde o principio da KAFKA E O CINEMA 31 lógica é se autodestruir. No centro do sistema, do modo de pensar, de uma inteligência doente que adora sua angústia e tem necessidade dessa angústia destrutiva para existir. É aqui que o filme restitui de maneira única, o imaginário de Kafka, nesta encenação de um processo mental que esconde o medo, o apreço, e o alimenta permanentemente até que ela o leve à ruína. Relações de Classe de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet Com os Straub e a adaptação de Amérique, rebatizado Relações de Classe, um novo horizonte se desenha quanto à maneira de compreender a obra de Kafka. Para ver o filme (filme singular dentro de sua obra, sem ser um produto, no entanto, fundamentalmente estranha a ela) diremos que não é aqui uma questão de uma boa ou ruim adaptação ou de uma boa ou ruim leitura de Kafka, mas de uma intimidade maior entre os dois autores, um acordo mais profundo, tanto de tema como de escrita. E as adaptações são tão belas quanto ao do escritor original, essa proximidade essencial pode-se dar o nome de ressonância estética. Ela existe em Bresson e Bernanos ou Mizoguchi e Dostoievski, aqui ela se impõe com evidência entre Straub e Kafka. É de tal modo evidente, que pensamos que os cineastas mais próximos a Kafka (apesar da boa vontade dos autores) são quase, apesar deles mesmos, por atavismo. Portanto, O Processo de Orson Welles (também poderoso) não constitui o melhor filme e nem a melhor adaptação de Kafka. Se não for para ser ressonância estética, na obra dele, isso é em Shakespeare, do qual fez seus melhores filmes, salvo Mr. Arkadin e A Marca da Maldade. Welles tem certeza de um demiurgo amarrado à mesma ideia do labirinto, a mesma noção de absurdo que Kafka, mas permanece, contudo, como um ogro que abraça toda a desordem do mundo. Ele é o castelo, por si só, um castelo ainda muito habitado para ser unicamente Kafkiano, mesmo em relação à arquitetura. O imaginário de Kafka e de Welles encontrou as leis geométricas similares para exprimir estados ainda distintos (o totalmente cheio reúne-se ao vazio, e Deus a Marx). Os Straub, ao contrário desse mágico, tomam Kafka pela outra extremidade. Eles não mistificam, ao contrário, desmistificam, e encontram Kafka onde ele está, na matéria. Eles têm uma expressão que é adaptada 32 KAFKA E O CINEMA de Kafka ao seu trabalho: “É preciso mostrar as coisas como estranhas”. Fazer as coisas à sua estranheza, ir em direção à atribuição e a dissonância em vez do acordo perfeito onde persiste a nos dizer que é harmonioso e natural, ao mesmo tempo em que caracteriza o materialismo dos Straub e de Kafka. Estranho, definitivamente, é o mundo que Karl Rossmann, jovem alemão de boa família, encontra chegando a América. E não são somente os seus olhos, ainda mais estranhamente, os habitantes dessa América industrial do começo do século se ofuscando da selvageria das relações de poder. E é somente pelo olhar de Rossmann e também, por aquele que o Outro leva sobre ele, que se revela, em sua verdadeira luz, a monstruosidade desse mundo. Rossmann é um corpo exposto e tomado como refém, submisso a todos os desejos e abusos aos corpos estranhos que vêm cristalizar todas as paixões humanas. Tomado, alternadamente, no funcionamento de um hotel e sob o jugo de uma mulher auxiliada por dois bandidos, sua consciência triunfante de intelectual acaba mal, até o inconsciente (como na bela cena onde Rossmann mora, preso na varanda) pouco a pouco dá lugar a uma serena lucidez do desastre. Poderíamos nos estender sobre o título do filme. Por que os Straub substituíram o título do romance para Relações de Classe? Ainda que as confrontações de classes não sejam estranhas ao mundo de Kafka – cada um afirma exclusivamente sua posição sobre o problema social, e todo ato é, antes de tudo, uma maneira de reivindicação – esta focalização dos Straub rever diretamente a ideia que eles fazem de cinema: no cinema não se trapaceia. O julgamento não pode ser colocado em suspenso porque um plano é imediatamente político, imediatamente um assunto distante. E essa distância ao qual colocamos o sujeito é inexoravelmente um ângulo de ataque pessoal em relação à obra de Kafka. Discursar, para os Straub, da condição humana não é suficiente, há montagem mais perversa entre o homem e aquele que o produz (que já escapou) a justiça em O Processo ou o capitalismo aqui, mais abstrato, mas as consequências bem concretas: As relações de classes. E os Straub as fazem existir. Une villa aux environs de New York de Benoît Jacquot Cineasta da angústia visceral e íntima, Benoît Jacquot se confronta KAFKA E O CINEMA 33 à América. Seu episódio da série “Télévision de chambre”, Une villa aux environs de New York (1983), filmado em 1982, é a adaptação fiel do terceiro capítulo do romance de Kafka. Com base na exploração de um local, a “vila” do título, o filme desenrola toda a narrativa labiríntica onde Karl Rossman (Nicolas Baby) se perde nos longos corredores do lugar, corredores escuros, pouco claros, em inúmeros quartos e salas contíguas... Precisa, a direção de Jacquot estuda minuciosamente, como um microscópio, os sinais e pistas da angústia que gradativamente cresce resultante de divagações e desregramentos do jovem em um lugar misterioso e pouco a pouco maléfico (o tratamento espacial e labiríntico da vila já evoca o estabelecimento no qual evoluirá alguns anos mais tarde em La Fille Seule (1995). A direção despojada, apurada ao máximo, e sua exploração inquieta e angustiante desse lugar que parece sem limites, faz nascer pouco a pouco e sem “efeitos” um tipo de fantástico inédito que pinta toda a adaptação literária do texto de Kafka de um onirismo frio e seco próprio do estilo de Jacquot. Entrevista de Federico Fellini Ainda se trata de América em Entrevista (Intervista, 1987) de Federico Fellini. O mestre italiano se prepara para filmar uma adaptação do romance de Kafka que ele não escolheu por acaso: Entrevista retoma a crítica kafkiana ao capitalismo americano e o aplica ao declínio fatal do cinema. Fellini faz assim uma viagem nostálgica nas antigas mitologias do grande cinema que se passava alegremente da América (aqui nos grandes estúdios italianos, o planeta cinecittà) longe do caos sem graça do audiovisual ocidental. Ele relata a um canal de televisão japonês que chega ao set de filmagem, o que era o cinema, e o que era o imaginário coletivo que ele divulgava. A narrativa de Entrevista apresenta também, várias analogias com aquelas de América: mesma construção em capítulos sem ligações lógicas, alternância de cenas fantásticas e oníricas com outras realistas e descritivas, bifurcações repentinas em direção ao imaginário e a digressão permanente, viagem no espaço (do estúdio do 34 KAFKA E O CINEMA filme para a América do romance) personagens transportados ao longo de uma viagem inicial. Fellini, desse modo, justapõe tempo e ação, testemunha de um cinema do passado do qual ele é um dos últimos representantes. Milena de Véra Belmont e Kafka de Steven Soderbergh As adaptações ou citações colocadas à parte, alguns cineastas tiveram a ideia de trabalhar as personagens reais próximos ao escritor. Assim, Véra Belmont se lança em 1990 na direção arriscada e perigosa sobre a vida de Milena Jesenska e saindo-se muito bem. O filme nos leva na Europa central do início do século e toma partido, conseguindo sucesso da seguinte forma: mostrar Milena como uma mulher simples e uma personagem normal de ficção para fora de toda consideração literária e mitológica. Comunista, feminista, resistente clandestina na ocupação nazista, Véra Belmont poderia ter feito facilmente de Milena uma figura histórica exemplar. Mas, não. Crítica, tradutora, confidente e depois amante de Kafka, envolvida em escândalos por ser usuária de drogas e seus costumes, teria sido muito fácil criar uma lenda artística e sentimental. Mas, a cineasta não caiu nem nas armadilhas da reconstrução histórica e nem na mitologia literária. O sucesso de Milena (1991) detém, a sua maneira, de acabar em cena uma história banal de amor e sua aventura física sem se preocupar com a figura central de Lettres à Milena de Franz Kafka. O escritor e sua musa nos parecem assim surpreendentemente autênticos e liberados do fardo do destino literário que pesam sobre eles. O filme não ignora a história para tanto, e evoca fielmente o espírito da época, as conversas entre intelectuais tchecos eslovacos e austríacos. É necessário tomar o filme de Véra Belmont como o retrato de um ser e de sua personalidade, uma tentativa bem sucedida de fazer viver plenamente uma personagem que não existe somente em relação a outro (“mulher de...”). Assim, Milena escapa aos arquétipos e convenções de uma biografia santificada. Não se pode dizer, infelizmente, muito de Kafka (1991) de Steven Soderbergh. Nem biográfico, nem filme de gênero, o filme, forKAFKA E O CINEMA 35 çado a hesitar entre as duas opções, os mistura curiosamente em uma só: mergulha Kafka em um thriller-catálogo de seus temas mais evidentes (o sufocamento, as alucinações, a perda da lucidez...). Assim, o escritor sofre uma série de aventuras em um universo de pesadelo que inunda sob os pés de numerosas referências cinéfilas do cineasta, de Welles a Murnau, do expressionismo ao cinema fantástico. Steven Soderbergh não traz assim grande coisa para o conhecimento do autor do qual ele guarda somente a imagem oficial e reduzida. Seu Kafka e seus numerosos efeitos (mistura cor e preto e branco, clichés expressionistas, piruetas no roteiro) propõem somente ao espectador, como um guia turístico, “um pequeno mundo kafkiano”, um antiquado que nunca passa do imaginário convencional. © Cédric Anger, Janeiro de 1997 Tradução: João Ulisses de Melo Filho KAFKA NA TELA: TRANSDUÇÕES CINEMATOGRÁFICAS 1 Hernán Ulm A distância inacessível T alvez uns dos rasgos mais notados pelos críticos de Kafka seja o caráter inconcluso da “obra” (mas há uma “obra” kafkiana ou, na verdade, o trabalho de Kafka impugna precisamente esse conceito?). Ao longo de breves relatos, aforismos, correspondências e romances inacabados, o escritor checo parece afirmar, em cada momento, o caráter peremptoriamente incompleto da literatura. Mas também, rabiscada no umbral do que somos, esse trabalho afirmaria – em sua insistência não conclusiva – o caráter radicalmente fragmentário da experiência de nossa contemporaneidade: a recusa da totalidade não seria, na verdade, o índice da impotência de escrita, mas a única possibilidade que cabe a quem quer escrever. Desse modo, a incompletude não assinalaria tanto para a incapacidade da literatura para fazer um mundo fechado (como almejava a velha teoria romântica das artes), mas para a revelação de um mundo que tem explodido e do qual apenas ficam cacos. A escrita kafkiana vem a oferecer o testemunho do limite no qual a narração esbarra contra ela mesma e, assim, seria a constatação de que a unidade das coisas tem se quebrado: os fragmentos não seriam já as “partes” de uma “tota- 1 O conceito de “transdução” foi criado por Gilbert Simondon como um modo de pensar a evolução dos objetos técnicos. Segundo o filósofo francês tais objetos, para além da oposição entre continuidade e descontinuidade, evoluem segundo um processo pelo qual parte de um objeto passa a funcionar num outro modificando-o e permitindo a criação de novas funções que não estavam pensadas no objeto anterior. As relações entre literatura e cinema poderiam desse modo compreender-se como transduções: alguma coisa da literatura é apropriada pelo cinema e configurada numa lógica que não é já a literária. 36 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 37 lidade” perdida ou de uma “totalidade por vir” (e que o livro viria a restituir). Os fragmentos não são as “partes” de uma unidade quebrada, mas a afirmação de que já não pertencemos a unidade nenhuma. Eminência dos fragmentos que constituem a condição do que somos e do que temos que confrontar. Já não há “partes” (já não “fazemos parte”: não se trata da “partilha” do sensível e dos que não “fazem parte” dessa partilha): se há fragmentação é porque cada pedaço do que experimentamos se apresenta isolado e incongruente; sem relação com os outros, afirmando sua “in-comunidade”. E, por isso, entre fragmento e fragmento tem se aberto uma distância irreversível, irrevogável, não ultrapassável. Distância pela qual os fragmentos, por mais próximos que eles pudessem estar, aparecem sempre na forma de uma exterioridade radical. Voltados para um Exterior que não é possível já interiorizar, um Exterior sem intimidade, esses fragmentos se instalam numa distância sem medidas, sem mesura (nem jurídica, nem territorial, nem moral, nem afetiva): Distância Pura e Inacessível na que o mundo agora torna-se o Desmesurado. No caso de Welles, o caráter desmesurado das distâncias fica indicado pelas desproporções das relações. Tudo parece ficar fora das medidas certas. As portas, as chaves, os casacos, os ambientes no escritório e no departamento e nas ruas, mas também os afetos, os amores, os desejos repentinos e também os esforços por levar um baú, por alcançar a uma mulher, por encontrar um expediente... Nada parece ter uma “boa medida”. Mas também há a desproporção dos meios cinematográficos que acrescentam a distância entre o olho e o que a imagem dá a ver: desmesura da profundidade de campo que alonga os planos de referência desde onde e para onde as personagens se afundam na procura do que não podem encontrar, excentricidade dos pontos de vista pelo qual Essa ausência de referência, essa desorganização dos espaços é também parte central do filme de Haneke, na procura de um mundo em que a distância tem se feito distância pura: se o Agrimensor não tem o que medir, não é apenas por falta dos instrumentos necessários para executar a tarefa, mas porque ele não tem um espaço de referência com o qual se confrontar (não há visão possível do Castelo, mas também não há visão possível do vilarejo, nem das casas que o compõem, nem dos interiores das casas, nem dos objetos que fazem parte das casas. Não tendo espaço de referência, o filme se desenvolve ao redor da não comunicabilidade dos espaços, de sua não presença comum, de sua recíproca não proporcionalidade (os espaços, sem medida comum, não podem se comparar e, assim, cada um deles se fecha sobre si mesmo cancelando também a oposição entre interior e exterior): inútil o ir e vir do mensageiro, inúteis as comunicações telefônicas, inútil as pesquisas entre a multidão dos expedientes. E até os corpos, na proximidade de uma intimidade iminente, parecem se afastar sempre que alguma coisa ameaça atingi-los. Nesse mundo da incomunicabilidade, não há como desenhar um plano desse território despido de uma marca unificadora. Assim, na ausência de uma imagem que outorgue consistência à entidade mágica que regulamenta nossas vidas, se faz impossível toda e qualquer identidade dos espaços. Desse modo, ora estamos no interior de um estábulo, ora atravessamos uma paisagem invernal; ora assistimos uma festa no interior de uma taverna, ora estamos na sala de aulas da escola. Espaços todos que são utilizados de modos diversos e não acabam de dar unidade ao frio drama do Agrimensor. Este, por sua vez, perambula entre esses espaços sem encontrar nunca a passagem que o conduza às portas de O Castelo ou, no mínimo, ante a porta que permita que ele finalmente consiga estabelecer uma ligação com Aquele. Tudo, a escola, a casa do prefeito, a taverna, KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA Esse mundo desmesurado e fragmentário, esse mundo sem unidade, parece ser o alvo das transduções cinematográficas da escrita kafkiana nos filmes de Orson Welles (O Processo, 1962) e Michael Haneke (O Castelo, 1997). Esses realizadores, por meios nem sempre semelhantes, teriam feito dessa distância inacessível o objeto de suas apresentações. 38 a câmera produz uma visibilidade impossível, estranhamento das organizações das sequências por uma montagem que tende a se contrapor à intensidade do drama. Tudo isso faz com que se apaguem as referências que organizariam os espaços que percorrem as personagens: estamos sempre no meio de um labirinto cujas portas não param de se abrir para locais inesperados. 39 tudo está numa relação de desconexão. Tudo tem se desligado. Nessa solidão, nessa não ligadura, a imagem cinematográfica se deixa desligar ela também da história do protagonista. A mesma ausência de imagem percorre O Processo de Welles: no filme, não temos nunca a possibilidade de organizar a unidade dos espaços que K tem que atravessar na procura de uma chave que o absolva de uma acusação que ignora. E, assim, na ausência de uma imagem que ajude a dar ideia totalizante do espaço, de cena em cena se elabora uma lógica que, se alguns críticos interpretam como a figuração de um espaço onírico, bem poderia se interpretar como a inquietação desse mundo alucinado onde não temos referências para nos encontrarmos. Assim, a decisão sobre os acusados é perpetuamente adiada porque o espaço no qual transitamos está perpetuamente deslocado: o estrado judicial conduz para a casa do advogado que, por sua vez conduz para o ateliê do pintor que, por sua vez conduz para o estrado. Por sua vez, o edifício de oficinas tem um quarto para punir alguns oficiais de justiça sobre os quais não há acusação concreta nenhuma. Mais uma vez, os espaços são desmesurados pela ausência de um lugar comum: eles resultam incomparáveis porque cada um deles se apresenta afastado dos demais e sem comunicação (ou numa relação na qual toda comunicação fracassa ou é inventada). Essa incongruência espacial provoca a sensação de que, na verdade, tudo é um grande erro, tudo é uma grande errância: mas isso é assim porque o próprio espaço tem se constituído como errância: errar não é um acaso, senão a condição da vida na era da fragmentação cinematográfica. Mais uma vez, teremos que perambular (nós, os personagens, a câmera) por entre um espaço descontínuo e fragmentário que, para além de toda lógica administrativa, para além de toda causalidade, se parece bem mais com os corredores dispersos de uma toca: espaço não euclidiano da exclusão contemporânea que não permite a conclusão dos processos e segundo a qual todos somos culpados. Essa descontinuidade dos espaços, essa continuidade ilógica, garante, no final das contas, a impossibilidade de conectar, de aproximar o crime da punição, a falta da culpa, o afeto do amor, a amizade da traição (disjunção que é acrescentada no filme do Haneke pelos cortes entre as cenas que desligam as relações 40 KAFKA E O CINEMA quebrando a continuidade das ações das personagens). Nesse mundo feito de distâncias inacessíveis não adianta querer fugir. Não há onde voltar (O Castelo); não há para onde ir (O Processo). Aos poucos, os filmes vão descobrindo que tanto faz correr como ficar aguardando num lugar: os movimentos, as corridas, as tentativas conduzem sempre à mesma ausência de centro. Talvez por isso não nos surpreenda que tanto no filme de Haneke como no de Welles, nos deparamos com personagens que parecem estar numa perpétua espera. Eles estão lá aguardando. Só isso. Uma sentença, uma absolvição, alguma coisa que eles mesmos já nem sabem: não importa o que poderiam fazer; sempre estarão na espera de alguma coisa que não vai acontecer. O quanto se espera? Ninguém sabe: o tempo já não é o “número do movimento” porque todos os movimentos, por mais esforçados que eles sejam, conduzem-nos a uma repetição infinita do sempre já feito. O tempo da espera: “faz muito tempo”. Tempo que só permite envelhecer e, na maior das liberdades, morrer. Por isso, nesse mundo de distância pura, de puro Exterior, a única coisa que acontece é a extrema banalidade. Mundo niilista e sem crença. Mundo no qual não importam os fatos que se sucedem. Em O Castelo, essa banalidade se apresenta como indiferença diante dos fatos, marcado pela persistência da fria dramaticidade que rodeia todo o filme (do clima, da atmosfera, dos relacionamentos, da ambiência): nem nós, nem a câmera, nem os personagens nos encontramos concernidos pelos acontecimentos que se desenvolvem nas imagens: nem o amor, nem a amizade, nem os ódios parecem nos atingir (a voz em off que acompanha o desenvolvimento da trama parece acrescentar ainda mais esse efeito). Banalidade do processo que ficará adiado infinitamente no filme de Orson Welles e que só acabará como morte indiferente da personagem: a este já nem cabe a honra de uma morte sacrificial, pessoal, direta: os carrascos são tão indiferentes como o próprio K perante o final imediato. Até a morte foi atingida pela banalidade do cotidiano inacessível. Nessa extrema banalidade, todas as coisas parecem ter perdido a noção de justiça. Num mundo feito de cinza e escuridão, a luz nos coloca sob suspeita. KAFKA E O CINEMA 41 ******** Há alguma coisa mais fragmentária que a experiência cinematográfica? Não são os filmes o resultado dessa fragmentação pela qual a obra é sempre adiada na montagem e, aí, sempre dissolvida em outras montagens? Não são os filmes a recusa da totalidade? Diante da tela, como diante da lei, estamos aí, na espera disso que foi nos destinado e que nos recusa (nas cenas que antecedem o final de O Processo K, frente as imagens de “Ante a lei” que abriu o filme, é interrogado pelo juiz e acossado pelo advogado – o próprio Welles –, mas K. já não pode nem sequer ingressar nesse reino de luzes cinematograficamente preparado – toda a cena, se parece com um estudo de cinema que vira catedral quando K. foge dele: eis o mistério do cinema para Welles, sua incongruência, sua banalidade: se converter num estranho lugar de culto onde nada acontece? Quanto mais nos aproximamos da imagem, mas ela nos afasta delas próprias. Quanto mais nos aprofundamos em sua luz, mais ficamos fora do visível que ela dá a ver. Distância inacessível ante a lei. Distância pura do inacessível ante a imagem do cinema. Nem a câmera pode ultrapassar essa distância feita de luz. E, pelo contrário, tudo indica que ele mesmo (que o cinema) cria essa distância entre nós e as imagens. Assim, o cinema de Welles e Haneke (se compondo na transdução kafkiana) teria nos dito: “ante as imagens vocês não entrarão” “vocês ficarão sempre fora das imagens”. E, talvez: “essas imagens foram feitas para vocês, e agora elas se apagarão”. 42 KAFKA E O CINEMA FRANZ KAFKA E O CINEMA: O TESOURO REVELADO Luiz Soares Júnior A obra de Franz Kafka e o cinema em suas origens tem em comum a assombração recíproca entre o realismo e o expressionismo; no caso do cinema, essa conflagração irreconciliada se manifesta na oposição, nunca inteiramente resolvida, entre o “olhar ontológico”, dito documental, dos irmãos Lumière e o cinema artificial, efeito de prestidigitações (truques de câmera, montagem) de Georges Méliès. O expressionismo foi um movimento que deu, nos primórdios dessa arte, as cartas de nobreza a um mágico “de feira” como Méliès, por suas referências pictóricas e literárias evidenciadas na forma do filme, seu verniz decadentista de “arte pela arte”,e essas talvez sejam paradoxalmente as razões do movimento passar hoje a impressão de ser uma arte “fanada”, excessivamente calculada, cuidadosa de seus efeitos. Kafka, à sua maneira, foi um intérprete do expressionismo: a importância do Gesto, a iconicidade de suas imagens, devedora segundo Panofsky dos alto-relevos das catedrais medievais; o stacatto do encadeamento das sequências, que cristaliza as durações em imagens fulminantes; mas também um credor do realismo, embora seja necessário encarecer ambas as expressões com o devido cuidado, pois um grande artista como esse não se deixa facilmente aprisionar em categorias a priori ou horizontes de significação delimitados de antemão. O realismo de Kafka, chamado por Gunther Anders de “cara de pau”, aparece nas situações cotidianas (devidamente destacadas por um excesso de burocratismo, levado ao pé da letra, o que lhes dá uma aura de unheimlich freudiano), no uso taquigráfico da linguagem e na forma como os personagens KAFKA E O CINEMA 43 tentam excessivamente se explicar, se justificar perante uma impossível Lei que os acabrunha. Tais injunções de poder nunca revelam diretamente os princípios de seu funcionamento, deixando portanto as tentativas de subtração e refutação a elas, empreendidos pelos personagens, adquirirem um ar espectral, surrealista (no sentido de supra-realista, para além do realismo): se a Lei contra a qual me oponho a rigor não existe, não possui uma res (afinal, saio e entro em casa todos os dias sem sequer dar por isto; vou a jantares e bibliotecas e ninguém me impede), agir sob seus vaticínios ou opor-se a ela, que não possui nenhuma substância ou poder objetivo de coerção, é o cúmulo do absurdo. Mas a base de seu “trabalho” é realista: um realismo expressionista, um realismo eivado de detalhes, de ícones, de rubricas expressionistas. Mas de um expressionismo que se libertou da retórica extremamente codificada, simbolista, do expressionismo originário, e adquiriu diapasão cartorialmente moderno. É nesse sentido que o cinema pode abordar Kafka: na medida em que é uma arte eminentemente materialista, com um fundo realista “de base” devido aos seus meios fotográficos de apreensão do mundo, o cinema se serve do realismo de Kafka como de um dado infra-estrutural sobre o fundo do qual é possível enfileirar seus personagens e situações metafóricos sem perverter as características ontológicas dessa arte: realismo e artifício em Kafka não se opõem, pois as figuras de retórica de que se serve se situam em um cenário realista rigorosamente detalhado. Nesse sentido, a adaptação de seus textos para o cinema se torna um paradigma do uso do fora de quadro e do fora de campo (memória, imaginação), por exemplo, na medida em que reivindicam uma posição ativa por parte do espectador, que deve ser o encarregado de traduzir em sua tela mental as potentes metáforas estruturantes da maquinaria kafkiana: qual grande cinema não vive da utilização do fora de quadro, e sobretudo do fora de campo para a emissão de significação cinematográfica específica? A literatura de Kafka também exige esse domínio, por parte do decifrador de seus encadeamentos causais nonsense, do fora de campo do imaginário. Esse é um rincão particularmente apto a suscitar a invenção fantasista cinematográfica, pois o cinema é uma arte que se destina exemplarmente a uma 44 KAFKA E O CINEMA vocação, digamos, erótica, na medida em que o seu materialismo de princípio é ativado retrospectivamente por uma relação com o invisível do fora de campo, engendrando assim um jogo de desvelamento e ocultação que é característico, na visão de Barthes, da “fresta cintilante” da mise en scène erótica, na qual tudo o que nos aparece se encontra situado em um Todo que se oculta, e tão mais atraente se nos afigura justamente na medida em que oblitera ou vela partes de um Organismo maior, que jamais vai se revelar inteiramente, imantando de Eros por essa precisa razão à superfície do que vem à luz. Como a literatura de Kafka, portanto, os acidentes de percurso da carne e da luz, manifestos no plano cinematográfico, nada seriam sem as anfractuosidades do imaginário e da sombra, os declives do não-ser, da potência ou do virtual, recolhidos na camara obscura do Desejo do leitor e do espectador; as parábolas alegóricas de Kafka tem no leitor um parceiro essencial, rabino oculto cuja função é decodificar o sentido críptico de seus itinerários, traduzindo o alegórico para o existencial, convertendo a letra para o espírito, precisamente como em um teorema espiritual, no qual substituímos devidamente as letras por números que irão iluminar significativamente o que antes se comprazia no hermetismo de seus imbróglios secretos, tesouro a que enfim é oferecida a dádiva da Revelação. A colônia penal (Raul Ruiz, La Colonia Penal, 1970) e Relações de classe (Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, Klassenverhältnisse, 1985) trabalham, o primeiro segundo uma forma ludicamente performática, o segundo sob um prisma “expressionista-classicista”, esse dualismo, tão fecundo para o cinema e a obra de Kafka, entre quadro e fora de quadro, campo e fora de campo, Matéria e Imaginário, Significante e Significado. São velhas querelas metafísicas que no grande cinema são destinadas a se encarnar em inflexões de gestos, posições e contraposições de corpos, embates entre a luz e a sombra; mas o que nos importa é designar a forma como esses dualismos, de que o cinema como o teatro e a pintura são herdeiros, em ambos os filmes se manifesta e se vela de maneira absolutamente idiossincrática, servindo ambos como ilustrações excelentemente demonstrativas de como a obra de Kafka, por se centrar justamente nesse flexível jogo entre “revelação e ocultaKAFKA E O CINEMA 45 mento”, pode inspirar no cinema obras tão diversas quanto essenciais, em matéria de gênio cognitivo, visual e fantasmático. A colônia penal: A sombria ludicidade da viagem Raul Ruiz a princípio naturaliza Kafka, apresentando-nos o que parece ser um documentário de montagem acidentada sobre um país de terceiro mundo; mas à medida em que a metáfora vai se clarificando- e percebemos que se trata de uma alegoria minimalista sobre o Chile conflagrado de Allende-, a clareza da linha diretiva documental vai sendo nublada pelo humor sombrio que é o ponto de vista do carrasco, e que alitera o filme em performances mortificadas, intromissões duramente nevrálgicas do teatro da tortura na transparência do documento. Ruiz, em muitos pontos de sua carreira e de sua reflexão sobre arte em geral, é um humorista- e por que não ver aí um ponto de contato com Swift e Kafka, para quem a condição humana, traduzida em metáforas sub e supra-humanas, sempre apresentou-se singularmente como um exercício do patético? A colônia penal pega aquela que talvez seja uma das novelas mais sombriamente góticas do escrevente de Praga- em todo caso, o marco através do qual as fantasmagorias ligadas ao Pai vão se institucionalizando, se objetivando em um sistema de mundo- e a devolve com um olhar macerado pelo zeitgeist corrupto e dolorido dos golpes que assolavam a América latina à época, apresentando uma cartografia do Chile que estrutura o psiquismo daquele estado de coisas, objetivando-o (como a novela original) em um palimpsesto no qual se estratificam o ego da evidência documental com o submundo “id” das câmaras de tortura e delação, chanchada sinistra onde a Verdade inconsciente da nação e a presciência do artista (estamos em 1970, e o horror só viria a eclodir atualmente em 73) se aliam em um cristal de ressonâncias furtivas e rimas intimidantes: o longa complexifica, com seu imbroglio de fake documentário e alegoria realista, os princípios dados em Militarismo e tortura (Raul Ruiz, Militarismo y tortura, 1969). 46 metáforas coercitivas, nó górdio da frase- de que algo de mal se engendra nas caves do plano e do país, e esse mal vai progressivamente infectando o olhar da viajante, emergindo à superfície, como em um processo químico a que só o tempo do plano sequência pode deflagrar devidamente; o país visitado ainda vive sob os auspícios de sua função de prisão, o seu fantasma institucional fascista: o passado ainda se presentifica como um corpus de regras e de práxis vigentes na “República liberal” que o país atualmente promulga existir em seus domínios; e o passado é Brincadeira, Jogo, Significante, mortíferos embora: as mises en scènes fantasistas dos “porões”. É a ficção que se encarrega de manifestar o verdadeiro sentido do que se passa ali, pois Ruiz nos apresenta o factício e o irreal (o discurso oficial de que o país “é” uma República democrática) com o realismo do aparente documentário: voz off das entrevistas, câmera na mão. E reserva a encenação fantasmática para traduzir a Verdade subterrânea do país (o lugar ainda “é” uma colônia penal, embora se diga república democrática); assim como é jogando que a criança se liberta das agruras da existência deficitária a que é condenada pelas limitações da linguagem, e adquire Ser e Nada ricamente significativos, é ao encenar os informes relatoriais e os interrogatórios seviciantes dos porões que Ruiz nos dá a ver a Colônia penal sob a República democrática, o id sob o ego como a mise en scène sob o filme documental- e quem disse que a Verdade não está sempre sob o invólucro do Significante, como o verme sob o fruto no dito de Jesus, filho de Sirach? À imagem do psiquismo freudiano, um estágio ou estrato se funda sobre outro mais antigo (mítico, arquetípico), que estrutura seus prolongamentos como o Mesmo dos dialetas às suas circunvoluções diferenciais, que carregam a cicatriz de sua origem onipresente. A performance “marcial”no filme de Ruiz, severamente codificada por um plano fixo inquisitorial, é o révelateur- como em Kafka as Mas para Ruiz e Kafka, ao contrário da tendência presente nos primórdios realistas do cinema, é a ficção que suscita a Verdade: a encenação, o jogo, o traço são o mesmo, e o documento verossímil seu prolongamento exterior, a “verdade superficial para um outro”, que antes mascara que revela, acoberta que expõe. Nesse sentido, A colônia penal é uma lição, pois nos habilita a ver sob a superfície superfluida do olhar documental o núcleo irredutível de uma essência que, paradoxalmente, só se mostra sob os auspícios KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 47 daquilo que na metafísica ocidental era o opróbrio da falsidade ou da ilusão: o simulacro. É no teatrinho dos porões que a colônia penal (sob a República) ainda vige, e aparece enquanto tal; é a este fora de campo, encarnado na simulação primordial, que o documental se submete como o invisível, o ocluso, o recalcado a que todo visível, demasiado visível, terá de prestar contas como sendo o âmago de sua radical veracidade. Relações de classe: o gesto cindido Em algum momento de Relações de Classe, o jovem exilado Karl Rossmann tem a boca tapada pelo servo Delamarche, em advertência e admoestação para que se cale, mas este gesto violento é a estrutura atômica em torno do qual se organizam os contracampos do filme, súbita invocação do gesto como cisão ou fratura irremediável que exprime formalmente a comunhão entre a démarche materialista straubiana e a expressionista de Kafka: irreconciliação. Esse gesto que cinde o campo e o contracampo é a transposição, em uma arte de princípio materialista e “a posteriori” imaginária, da iconicidade estatuária do gesto em Kafka, sempre detalhado com um tal rigor de insert compositivo na cena que nos chama a atenção para o seu caráter não apenas expositivo mas nuclear, essencial à pregnância da mesma. Os Straub concentram no contracampo repentino, onde o gesto se imprime (tanto mais repentino se pensarmos que a maior parte do filme se funda sobre linhas retas e raccords diretivos antes clássicos),o conjunto metódico de descrições kafkianas, Summa instantânea onde tudo converge para o cristal imagético. O gesto é um elemento de choque que reconfigura o classicismo do filme sob o signo da ruptura, infiltrando portanto a violência das “relações de classe” – e em um sentido maior, sociais e de enunciação: tomar a palavra do outro, falar em nome do outro, como acontece com frequência com Karl e com o foguista, no início- no espaço intersticial de significação do cinema: o inter-planos. O contracampo, demarcado em sua distância de significante pelo gesto, é no filme dos Straub uma intrusão de rubrica modernista na clareza e distinção cartesianas do campo, mas sobretu48 KAFKA E O CINEMA do um abalo sísmico em sua monumentalidade clássica; alguma diferença irredutível se instalou aqui, e aquele mundo senhorial e cartográfico dos pais substitutos (o Tio, a senhoria) e dos burocratas inflexíveis não será mais o mesmo: o final de Relações de classe transcorre em uma paisagem totalmente outra (a natura), com outro corpus comunitário (os artistas) e regrado pelo diapasão de um silêncio primordial entre Karl e o jovem groom, que talvez demarque enfim o espaço de uma possível reconciliação, com o mundo e pelo outro. Relações de classe é, aqui como em Kafka, um romance de formação (Bildungsroman) clássico pervertido por sinais de pontuação modernistas e raccords transgressores (pelo menos nos momentos decisivos com personagens “privilegiados”, que determinam uma evolução ou inserem uma dissidência na maneira com que Karl se relaciona com seu meio, modulando o Eu de acordo com a melodia do mundo: o tio, a senhoria,Thèrese).O Whilhelm Meister de Goethe, romance de formação paradigmático do romantismo, e portanto de nossa representação subjetivista, também se encerrava com a integração do jovem no mundo artístico, um espaço de aprendizado menos sequioso da letra que do espírito, mais hermenêutico que ontológico: o teatro de Oklahoma aqui é uma citação do livro de Goethe, e a forma peremptória com que Straub filma o cartaz do anúncio - plano fixo avidamente atencioso na decifração de sua inscrição em letra senhorial, música barroca de parada - nos mostra que chegamos ao porto da linguagem, lugar de onde pelo menos se pode ascender ao promontório de vidência da mediação, e adquirir sobre a vida um ponto de vista mais distanciado que é tudo o que teremos para nomeá-la: o teatro de Oklahoma é o começo da vida adulta para Karl, e é por isto que ele anuncia o fim do filme, com a bem-aventurada conquista do silêncio reconciliado. Se a cena Mutual Comedy1 da perseguição do policial suprassumia cem anos de comédia física em um par de campos e contracampos eriçados pelas arestas do Gestus brechtiano, é porque o genealogista Straub viu no cinema humorístico primitivo a oportu1 Nota dos editores: Mutual Comedy é uma referência a produtora responsável por alguns curtas-metragens de Charles Chaplin. KAFKA E O CINEMA 49 nidade de uma síntese primorosa: os encontros que perfazem o itinerário “Bildungsroman” de Karl não constituem exatamente um aprendizado, mas um movimento desarrazoado, feito de diferenças, desacordes de tom e de dicção, como se Kafka estivesse interessado em uma paródia do romance de aprendizado, na qual não assistimos uma evolução (um movimento ascendente em direção ao conhecimento de si mesmo), mas as agruras de um “ser lançado” (Geworfenheit), objeto para forças contraditórias que o jogam para cá e para lá, sem jamais assinalar um rumo ou estágio “superior”; o Karl de Kafka, ao contrário do modelo clássico, não se altera/alteriza por intercessão dos encontros com o outro, não sai do lugar: ele é meramente o plano de front contra o qual se projetam as relações de força (de classe, de enunciação, de poder simplesmente) que os personagem protagonizam, contracampo com a boca tapada, os olhos cativos ou a ausculta apassivadora do discurso. O tom monocórdico e a impassibilidade keatoniana do “modelo” Christian Heinisch mostram-no justamente como este móbil “situado”,cadenciado por percussões de ser que não são as suas, que jamais serão suas; é por isto que o final parece nos deixar entrever o começo de uma reconciliação consigo mesmo, diferida ao longo de sua trajetória abortada de aprendizado, na medida em que o personagem finalmente conhece o luxo de assenhorar-se de uma paisagem e do próprio silêncio. Todo um mundo parece enfim solevar-se sob o influxo deste silêncio, que Straub distribui ao longo da paisagem conquistada por Karl: a natura revelada, como o campo pelo fora de campo, a música pelo silêncio e o menino pelo homem (Wordsworth). Kafka, em Ruiz e em Straub, encontrou no cinema um lócus de manifestação privilegiado para seus fantasmas, ditos como oclusos. ABECEDÁRIO KAFKIANO SEGUNDO KUNDERA 1 Milan Kundera A. Autonomia O encontro do universo real dos estados totalitários e do “poema” de Kafka manteve sempre algo de misterioso, e demonstrou que o ato do poeta, pela sua própria essência, é incalculável e paradoxal; a enorme porta social, política, “profética” dos romances de Kafka consistem justamente em seu “não-engajamento”, isso quer dizer na sua total autonomia no que se refere a todos os programas políticos, conceitos, ideologias, prognósticos futurológicos. Se eu me ater calorosamente ao legado de Kafka, se eu o defendo como meu legado pessoal, não é porque creio ser imitar o inimitável (e de descobrir mais uma vez o kafkiano), mas por causa desse maravilhoso exemplo de autonomia radical do romance (da poesia que é o romance). Através dele, Franz Kafka disse sobre nossa condição humana (como ela se revela em nosso século) o que nenhuma reflexão sociológica ou política não poderá nos dizer. B. Bobeira Segundo Kafka, encoberto por uma manta de mistério, a bobeira adquire ares de uma parábola metafísica. Ela intimida. Em suas ações, em suas palavras ininteligíveis, Joseph K. se esforçou a todo custo a decifrar um sentido. Pois se é terrível ser condenado à morte, é absolutamente insuportável ser condenado por nada, como um mártir do nonsense. K, logo, consentirá sua culpa e buscará sua falha. No último capítulo, ele protegerá seus carrascos 1 Este texto foi publicado originalmente em BAX, Dominique. Théâtres au cinéma n. 8 – Milos Forman, Franz Kafka. Collection Magic Cinéma 1997. Todos os direitos reservados. Republicado com permissão dos detentores dos direitos autorais. 50 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 51 contra o olhar da polícia municipal (que poderiam tê-lo salvado) e, segundos antes de sua morte, ele se culpará de não ter forças o suficiente para se matar e lhes poupar o trabalho sujo. C. Cômico Quando Kafka leu para seus amigos o primeiro capítulo de O Processo, todos riram, inclusive o autor. Eles simplesmente riram: o cômico é inseparável da própria essência do Kafkiano. No mundo Kafkiano, o cômico não apresenta um contraponto ao trágico (o tragi-cômico) como é o caso em Shakespare; ele não está lá para fazer o trágico mais suportável graças a leveza do tom; ele não acompanha o trágico, não, ele destrói pela raiz privando as vítimas do único consolo que ainda podem ter esperança: aquilo se encontra na grandeza (verdadeira ou suposta) da tragédia. O engenheiro perdeu sua pátria e todos no auditório riram. D. Densidade É bastante difícil de descrever, definir, de nomear este tipo de imaginação com a qual Kafka nos envolve. Fusão de sonho e realidade, esta fórmula que Kafka, com certeza, não conheceu me parece iluminadora. Da mesma forma que outra frase cara aos surrealistas, aquela de Lautréamont sobre a beleza do encontro fortuito de um guarda-chuva e uma máquina de costura: quanto mais as coisas são estranhas entre elas, mais mágica é a luz que se encarrega de promover o seu contato. Eu gostaria de falar de uma poética da surpresa; ou da beleza como um assombro perpétuo. Ou então utilizar como critério de valor a noção de densidade, densidade da imaginação, densidade dos encontros inesperados. F. Fantástico Graças ao fantástico que ele soube perceber no mundo burocrático, Kafka conseguiu o que pareceria impensável antes dele: transformar uma matéria profundamente antipoética, a da sociedade burocratizada ao extremo, em grande poesia de romance; transformar uma história extremamente banal, a de um homem que não pode obter o cargo prometido (que é realmente a história de O Castelo), em mito, epopeia, em beleza jamais vista. H. Vergonha (honte) O último substantivo de O Processo: a vergonha. Sua última imagem: rostos estranhos, perto de seu rosto, quase se tocando, observando o estado mais íntimo de K., sua agonia. No último substantivo, na última imagem, a situação fundamental de todo romance é condensado: ser, a qualquer momento, acessível em seu quarto a deitar; tomar o café da manhã; estar disponível, dia e noite, para ser chamado à intimação; se ver confiscar as cortinas que cobrem a janela; não poder frequentar o que se quer; não mais pertencer a si mesmo; perder o status de indivíduo. Sobre esta transformação de um homem de sujeito em objeto, é possível experimentá-la como uma vergonha. I. Imaginação Segundo Kafka, tudo é claro: o mundo Kafkiano não se parece com nenhuma realidade conhecida, é uma possibilidade extrema e não realizada do mundo humano. É verdade que essa possibilidade se espelha atrás do nosso mundo real e parece prefigurar nosso futuro. É por isso que estamos a falar da dimensão profética de Kafka. A imaginação kafkiana, revelada por esta “velocidade metódica”, curta como um rio, rio onírico que encontra pausa apenas no final de um capítulo. Este longo suspiro de imaginação se reflete na característica da sintaxe: nos romances de Kafka, existe uma quase-ausência de dois pontos (exceto quando de rotina para introduzir o diálogo) e uma presença excepcionalmente modesta de ponto e vírgula. KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA E. Existência 52 Mas mesmo que seus romances não tivessem nada profético, eles não perderiam o seu valor, porque eles inserem uma possibilidade de existência (possibilidade do homem e de seu mundo) e nos fazem assim ver o que somos e do que somos capazes. 53 J. Joia A joia erótica de América é Brunelda. Ela fascinou Federico Fellini. Desde muito tempo, ele sonha em fazer de América um filme, e em Intervista ele nos fez ver a cena de seleção do elenco para esse filme-sonho: produzem-se várias candidatas incríveis para o papel de Brunelda, escolhidas por Fellini com este prazer exuberante que nós conhecemos. (Mas insisto: este prazer exuberante, também foi aquele de Kafka. Porque Kafka não sofreu por nós. Ele se divertiu por nós!) K. Kafka Que ele se chame Joseph K., Rohan, Samsa, o Agrimensor, Bendemann, Josefina - a cantora, o andarilho ou o Trapezista, o herói dos livros não é outro senão o próprio Kafka. A biografia é a chave principal para a compreensão do sentido da obra. Pior: o único sentido da obra é de ser uma chave para compreender a biografia. L. Labirinto O engenheiro é confrontado com o poder que tem o caráter de um labirinto a perder de vista. Ele nunca chegará ao fim de seus corredores infinitos e não conseguirá jamais encontrar quem formulou a sentença fatal. Portanto, se encontra na mesma situação que Joseph K. diante da tribunal ou o agrimensor K. diante do castelo. Estão todos no meio de um mundo que é apenas um só, uma imensa instituição labiríntica à qual não podem escapar e não podem compreender. N. Nome K. no texto de O Castelo não é nunca nada além do que K. No diálogo os outros podem o chamar de “o agrimensor”, e talvez mesmo de outra forma ainda, mas o próprio Kafka, o narrador, nunca designou K por palavras: estrangeiro, recém-chegado, jovem homem ou não sei o que. K é apenas K. E não só ele, mas todos os personagens de Kafka, sempre tem apenas um nome, uma só designação. O. Sombras (ombres) No mundo Kafkiano o arquivo se parece com a ideia platônica. Representa a verdadeira realidade, enquanto que a existência física do homem é apenas um reflexo projetado sobre a tela das ilusões. Na verdade, o agrimensor e o engenheiro de Praga são apenas as sombras de seus registros. E eles são ainda muito menos que isso: eles são as sombras de um erro em um dossiê, isto é, as sombras não tendo mesmo o direito a sua existência enquanto sombra. Mas se a vida do homem é apenas uma sobra e se a verdadeira realidade se encontra inacessível em outro lugar, no inhumano e no sobre-humano, entramos instantaneamente pela teologia. P. Privado – Público M. Metáfora É preciso corrigir a ideia afirmando que Kafka não gostava de metáforas, ele não gostava de metáforas de um certo gênero, mas foi um dos grandes criadores da metáfora que qualifico de existencial ou fenomenológica. Quando Verlaine disse: “a esperança brilha como uma palha no estábulo”, é uma imaginação lírica soberba. Ela é no entanto impensável na prosa de Kafka. Pois, o que, cer54 tamente, Kafka não gostava era o lirismo da prosa romanesca. A imaginação metafórica de Kafka não era menos rica que a de Verlaine ou de Rilke, mas não era lírica, a saber: ela era animada exclusivamente pelo desejo de decifrar, de compreender, de colocar o sentido da ação dos personagens, o sentido das situações onde eles se encontram. KAFKA E O CINEMA Nos perguntamos às vezes se os romances de Kafka são a projeção dos conflitos mais pessoais e privados do autor, bem descrito como a “máquina social” objetiva. O Kafkiano não se limita nem à esfera íntima, nem à esfera pública; ele engloba ambas. O público é o espelho do privado, o privado reflete o público. KAFKA E O CINEMA 55 R. Real/Sonho A imaginação adormecida do século XIX foi subitamente acordada por Frankz Kafka, que conseguiu o que os surrealistas postularam depois dele sem verdadeiramente realizar: a fusão de sonho e real. Essa grande descoberta é menos o encerramento de uma grande evolução do que uma abertura inesperada que dá a saber que o romance é o lugar onde a imaginação pode explodir como um sonho e que o romance pode se libertar do imperativo aparentemente inevitável da verossimilhança. redito em uma só noite, sem interrupção, ou seja, em uma velocidade extraordinária, deixando-se levar por uma imaginação quase incontrolada. A velocidade que se tornou mais tarde para os surrealistas o método programático (escritura automática), permitindo liberar o subconsciente do monitoramento da razão e fazendo explodir a imaginação, teve mais ou menos um papel semelhante em Kafka. Tradução: Lucas Murari Revisão de tradução: Leonardo Esteves S. Sexualidade Nas primeiras décadas do século XX, a sexualidade veio das névoas da paixão romântica. Kafka foi um dos primeiros (assim como Joyce, certamente) a tê-la descoberto em seus textos. Ele não revela a sexualidade como um terreno de jogo destinado aos pequenos círculos de libertinagem (à maneira do século XVII), mas como uma realidade por sua vez banal e fundamental da vida de cada um. Kafka apresenta os aspectos existenciais da sexualidade: sexualidade se opondo ao amor; a estranheza do outro como condição, como exigência da sexualidade; a ambiguidade da sexualidade: seus aspectos excitantes que ao mesmo tempo causam repugnância; sua terrível insignificância que não diminui o seu poder assustador, etc. T. Tribunal O tribunal: não se trata da instituição jurídica destinada a punir aqueles que transgrediram as leis de um Estado; o tribunal no sentido dado por Kafka é uma força que julga, e que julga porque é força; é essa força e nada mais que confere legitimidade ao tribunal; quando ele vê os dois intrusos entrarem em seu quarto, K. reconhece essa força desde o primeiro momento e se submete a ela. V. Veredito/Velocidade Pelas suas próprias palavras, Kafka escreveu sua longa novela O Ve56 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 57 BIOGRAFIAS Cédric Anger é cineasta e roteirista francês. Colaborou com a revista Cahiers du Cinéma entre 1993 e 2001. Hernán Ulm é professor e mestre em Filosofia pela Universidade Nacional de Salta, Argentina e Doutor em Literatura pela Universidade Federal Fluminense de Rio de Janeiro. É professor de Estética e História das Artes. Publicou os livros “Cuestión de imagen” e “Historia ética y actualidad em Michel Foucault” e vários artigos sobre temas relativos às relações entre estética e política no pensamento contemporâneo. É coordenador da Área de Experimentação em Arte e Cultura da Universidade Nacional de Salta. Lucas Murari pesquisador, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Comunicação pela mesma instituição. Atua como programador e curador de cinema. Membro do núcleo de cinema experimental Risco Cinema. Luís Alberto Rocha Melo é cineasta, pesquisador e professor adjunto do Curso de Cinema e Audiovisual e do Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e Linguagens no Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), onde desenvolve pesquisas sobre História do Cinema Brasileiro. É produtor, diretor, roteirista e montador de filmes independentes. Luiz Soares Júnior nascido em Recife em 1976. Formado em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco em 2004; mestrado com a tese “O advento da Verdade na obra de arte heideggeriana”. Escreve na revista eletrônica Cinética e no site português À pala de Walsh; tem textos publicados no site da revista Lumière. Mantém um blog de tradução de crítica francesa de cinema, o Dicionários de cinema (http://dicionariosdecinema.blogspot.com.br/). Maria Cristina Franco Ferraz é professora titular de Teoria da Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutora em Filosofia pela Sorbonne, com três estágios de pesquisa pós-doutoral em Berlim. Pesquisadora do CNPq, foi professora visitante nas universidades de Paris 8-Saint-Denis e Perpignan (França), Richmond (EUA), Nova de Lisboa (Portugal) e Saint Andrews (Escócia). Milan Kundera é pesquisador, doutorando do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal Fluminense, com doutorado sanduíche na Sor- é um dos maiores escritores do pós-guerra. Nascido em Brno, na região da Morávia, antiga Tchecoslováquia (hoje República Tcheca). Refugiou-se em Paris em 1975, onde lecionou a disciplina arte do romance na École des Hautes Études en Sciences Sociales. É autor de “A Brincadeira” (1967), “Risíveis Amores” (1970), “A Insustentável Leveza do Ser” (1984), entre outros. KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA Luiz Garcia 58 bonne Nouvelle - Paris 3 (bolsa CAPES), mestre em Comunicação pela UFF (2012). Desenvolve atualmente pesquisa sobre reemprego de imagens no cinema experimental, é um dos idealizadores do projeto “Inventar com a Diferença: Cinema e Direitos Humanos” (2013-2014), realizado pela UFF e a Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, do projeto “Experimentar o cinema” (UFF/Faperj, 20122013). Membro do núcleo de cinema experimental Risco Cinema. 59 FILMES A METAMORFOSE DO SR. SAMSA RT CU Sinopse: animação baseada no conto A Metamorfose. Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. AS The Metamorphosis of Mr. Samsa Canadá/Estados Unidos, cor, 1978, 10 min Formato original: 35mm Direção e Roteiro: Caroline Leaf Som: Michel Descombes, Normand Roger Animação: Caroline Leaf 60 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 61 RT AS Direção: Claudinei Morais Roteiro/animação/edição/Som: Claudinei Morais 62 KAFKA E O CINEMA Sinopse: Curta-metragem baseado em trecho de conto homônimo de Franz Kafka. AS CU Sinopse: curta-metragem de animação baseado no conto A Ponte, do escritor tcheco Franz Kafka. O filme é um tributo pessoal ao autor, concebido a partir de uma interpretação imagética e literal da obra. Schakale und Araber Suíça, cor, 2011, 11min Formato original: Vídeo RT Brasil, cor, 2014, 7min Formato original: Animação em digital 3D CHACAIS E ÁRABES CU A PONTE Direção: Jean-Marie Straub Fotografia: Christophe Clavert Elenco: Giorgio Passerone, Barbara Ulrich, JeanMarie Straub (voz) KAFKA E O CINEMA 63 AS KAFKA E O CINEMA Sinopse: curta-metragem inspirado no conto A Metamorfose, de Franz Kafka. Direção e Roteiro: Fran Estévez Produção: Casimiro Estévez; Fernando Marcote; Manuel Pena Música: Fran Estévez Fotografia: David Hernández Montagem: Fran Estévez Direção de arte: Hugo Gonzalez Elenco: Nacho Castaño; Cristal Álvarez KAFKA E O CINEMA AS RT 64 Direção e Roteiro: Ebbëto Produção: Ebbëto Montagem: Cláudio Dillitzer Perricelli – PIMENTA STUDIO Fotografia: Ebbëto Assistente de Direção: Antônio Paschoalique Assistente de Produção: Sidnei Amaral Animação 3D: Renato Sbardelotto Editor de Som e compositor: Celio Barros – PCM Studios Música: Celio Barros com STRANGE MEETINGS Produtor Executivo: Elim Dutra Elenco: Nathalie Fari Metamorfosis Espanha, P&B, 2004, 20 min Formato original: Vídeo RT CU Sinopse: um filme preto e branco que se aproxima de um mundo misterioso por meio dos pesadelos e experiências de uma mulher no banheiro. “E como não pintar monstros se o sono da razão gera-os e com eles preenche o mundo” Giulio Carlo Argan. METAMORFOSE CU LAGARTIJA NIKA Brasil, P&B, 2004, 21min 65 CU RT AS 66 Direção e Roteiro: Sibel Guvenc Produção: Hartley Gorenstein; Murat Guvenc; Sibel Guvenc; Francesco Mozzone Música: Sibel Guvenc; Sevgi Karacasulu Fotografia: Tico Poulakakis Montagem: Sibel Guvenc Direção de arte: Tamara Rushlow Assistente de Direção: Mark Wilson; Anthony Wong Som: Steven Budd; Shari Cain; Sarah Clark; Alan Code; Steve Dranitsaris Efeitos especiais: Nathan Ouwehand Música: Magdalena Balint; Ludger Bockenhoff; Sevgi Karacasulu Elenco: Steve Rankine, Rachelle Benzce, Eran Schwartz, Balazs Hollosy, Ilayda Sezer, Umit Eseryel, Ege Eseryel, Lukazs Orwinski KAFKA E O CINEMA Sinopse: por toda sua vida, um homem esperou do lado de fora de uma porta. O que está por trás? Ele busca a verdade ou outra porta? AS Sinopse: uma mulher é convidada para uma colônia penal para investigar o sistema de justiça, onde o condenado é executado sem qualquer defesa. L’homme qui attendait/The Man Who Waited Canadá, cor/P&B, 2006, 7 min Formato original: Digital (sugerindo técnica da lineogravura) RT In the Penal Colony Canadá, cor, 2006, 24 min Formato original: Vídeo O HOMEM QUE ESPERA CU NA COLÔNIA PENAL Direção: Theodore Ushev Roteiro: Chloé Cinq-Mars Produção: Marc Bertrand; Susan Fuda; Robert Bruce Johnson Animação: Theodore Ushev Elenco: Pierre Lebeau (narrador); Tony Robinow (narrador) KAFKA E O CINEMA 67 AS A Country Doctor/Inaka Isha Japão, cor, 2007, 21min Formato original: Animação em digital 2D Sinopse: São Paulo, 1969. Um rapaz leva um frango assado para um colega. Lá encontra dois homens que fazem perguntas que ele não pode responder. Sinopse: adaptação do conto “Um Médico Rural”, de Franz Kafka. Narra a história de um médico que, numa fria noite de inverno, recebe um chamado para socorrer um garoto do outro lado da aldeia. É nesse ambiente que ele é levado a pensar sobre os mais diversos aspectos de sua profissão, de seu paciente e da sociedade local. A história, contada totalmente do ponto de vista do médico, introduz elementos surrealistas para melhor descrever como o homem vê o mundo e as pessoas ao seu redor. Direção e Roteiro: Bruno de André Produção: Carla Kohn Sprinz; Selda Honda Direção de Produção: Michael Ruman Produção executiva: Bruno de André Montagem: Bruno de André Direção de arte e cenografia: Antonio de Freitas Figurinos: Alexandre Cunha Story-board: José Marcio Nicolosi Direção de fotografia e câmera: Adrian Cooper Assistência de câmera: Cristiano Conceição Trucagens: Rudi Böhm; Wanderlei Gomes Mixagem e montagem de Som: José Luiz Sasso Operador de microfone: Gabriela Cunha Arranjos musicais: José Augusto Mannis Música: Peter Roloff Elenco: Roberto Bonfim (O gordo), André Guerreiro Lopes (Carlos Pereira), Jesse James (Garcia) KAFKA E O CINEMA AS RT Die Genossen Brasil/Alemanha, cor, 1997, 15min Formato original: 35mm RT CU 68 UM MÉDICO RURAL CU OS CAMARADAS Direção e Roteiro: Koji Yamamura Produção: Mariko Seto; Fumi Teranishi Distribuidora: Shochiku Música: Hitomi Shimizu Montagem: Koji Yamamura Som: Koji Kasamatsu Elenco (vozes): Sensaku Shigeyama; Shigeru Shigeyama; Doji Shigeyama KAFKA E O CINEMA 69 NG AS Direção e Roteiro: Vladimír Michálek Produtor: Jaroslav Boucek Fotografia: Martin Duba; Pavel Brynych Montagem: Jirí Brozek Figurino: Petra Jachimová; Vera Linhartova; Ivana Rezacova Direção de arte: Jaroslav Róna Música: Michael Dvorak; David Koller; Radim Hladík Jr. Elenco: Olga Charvatova; Martin Dejdar; Oldrich Kaiser; Katerina Kozakova 70 KAFKA E O CINEMA Sinopse: homem religioso vai para o Vaticano na tentativa de um encontro particular com papa para lhe fazer uma pergunta. A partir daí ele é constantemente impedido pela burocracia e pela hierarquia da igreja. Direção: Marco Ferreri Argumento: Rafael Azcona; Marco Ferreri Roteiro: Dante Matelli; Marco Ferreri Produtor: Franco Cristaldi Música: Teo Usuelli Fotografia: Mario Vulpiani Câmera: Mario Bagnato; Filippo Neroni Montagem: Giuliana Trippa Assistente de Direção: Verena D’Alessandro; Michele Guidugli Arte: Paolo Zacchia Som: Carlo Diotallevi; Adriano Taloni Elenco: Enzo Jannacci; Claudia Cardinale; Ugo Tognazzi; Michel Piccoli; Vittorio Gassman; Alain Cuny; Daniele Dublino KAFKA E O CINEMA AS LO Sinopse: Karl Rossmann, jovem emigrante europeu de 16 anos, é forçado a emigrar para Nova York para escapar do escândalo de sua sedução por uma empregada doméstica. Quando o navio chega à América, ele se torna amigo do funcionário responsável por alimentar o fogo das caldeiras de máquina a vapor, que está prestes a ser demitido. Baseado em um romance inacabado de Franz Kafka. L’Udienza Itália/França, cor, 1971, 110 min Formato original: 35mm NG República Checa, cor, 1994, 87 min Formato original: 35mm A AUDIÊNCIA LO AMERIKA 71 NG AS 72 Direção: Martin Scorsese Roteiro: Joseph Minion Produção: Robert F. Colesberry; Griffin Dunne; Amy Robinson; Fotografia: Michael Ballhaus Montagem: Thelma Schoonmaker Direção de arte: Stephen J. Lineweaver Assistente de Direção: Sarah M. Brim; Christopher Griffin; Stephen Lim; Tomaz Remec; Jeffrey Townsend Música: Howard Shore Som: Michael Berenbaum; Louis Bertini; Marko A. Costanzo; Tom Fleischman; Elenco: Griffin Dunne, Rosanna Arquette, Verna Bloom, Tommy Chong, Linda Fiorentino, Teri Garr, John Heard, Cheech Marin, Catherine O’Hara, Dick Miller KAFKA E O CINEMA Sinopse: Henry Spencer tenta sobreviver da indústria de vírus, de sua raivosa namorada e dos gritos de seu filho, um bebê mutante. Direção e Roteiro: David Lynch Produção executiva: Fred Baker Fotografia: Herbert Cardwell, Frederick Elmes Assistente de câmera: Catherine E. Coulson Assistente de Direção: Catherine E. Coulson Montagem: David Lynch Direção de arte: David Lynch Música: David Lynch Efeitos especiais: Frederick Elmes; David Lynch Elenco: Jack Nance, Charlotte Stewart, Allen Joseph, Jeanne Bates, Laurel Near, Jack Fisk, Jean Lange, Darwin Joston KAFKA E O CINEMA AS LO Sinopse: Paul, um operador de computador, conhece e sai com uma garota estranha, que mora no bairro do Soho, em Nova York. Após o encontro, ele passa por uma série de imprevistos e situações que o impedem de voltar para casa. ERASERHEAD Estados Unidos, P&B, 1977, 89 min Formato original: 35mm NG After Hours Estados Unidos, cor, 1985, 97 min Formato original: 35mm LO DEPOIS DE HORAS 73 AS Casting: Susie Figgis Efeitos especiais: Philip Elton; Terry Glass; Jirí Matolín; Ian Wingrove Efeitos visuais: Mike Heaviside; Brian Orris; Charles Staffell Direção de arte: Leslie Tomkins Música: Cliff Martinez Elenco: Jeremy Irons, Theresa Russell, Joel Grey, Ian Holm, Jeroen Krabbé, Armin MuellerStahl, Alec Guinness, Brian Glover, Keith Allen, Simon McBurney KAFKA E O CINEMA Sinopse: a escalada de uma imensa escadaria composta pelos mais variados degraus. Cenas simbólicas ocorrem em diferentes níveis em que personagens parecem ser prisioneiros de seus atos e de suas próprias insensatezes. Ataques, explosões maníacas e a busca desesperada; objetos que se movem independentes: paredes, pisos e tetos se formam e dispersam. A escadaria íngreme leva pouco a pouco para as zonas da grande luz, onde seres humanos e não-humanos se encontram. AS NG 74 Direção: Steven Soderbergh Roteiro: Lem Dobbs Produção: Harry Benn; Stuart Cornfeld Produção executiva: Mark Johnson; Barry Levinson; Paul Rassam Direção de Fotografia: Walt Lloyd Montagem: Steven Soderbergh Assistente de Direção: Lee Cleary; Steve Harding; Zbynek Honzík; Nick Laws; Mirek Lux; Jirí Ostry; Alice Ronovska; Guy Travers L’ange França, cor, 1982, 64 min Formato original: 35mm NG LO Sinopse: Praga, 1919. Num castelo que pende para a cidade, numerosas experiências efetuadas em cobaias humanas inspiram o terror. Kafka, um modesto funcionário do estado de dia e escritor à noite, leva uma vida monótona até que seu colega e amigo Eduard Raban some e ele decide investigar o que está por trás desse desaparecimento. O ANJO LO KAFKA Estados Unidos/França, P&B, 1991, 98 min Formato original: 35mm Direção: Patrick Bokanowski Produção: Jean-Daniel Yver; Claude Nessi; Christian Daninos; Guy Coda; Patrick Bokanowski Assistente de Direção: Jacques Faure; Michel Monteaux Fotografia e Montagem: Patrick Bokanowski Música: Michèle Bokanowski Elenco: Maurice Baquet, Jean-Marie Bon, Martine Couture, Jacques Faure, Mario Gonzáles, René Patrignani, Rita Renoir KAFKA E O CINEMA 75 Sinopse: K. é um agrimensor enviado a um vilarejo, a trabalho. Lá, descobre a existência de um castelo misterioso, ao qual apenas alguns privilegiados têm acesso. Ele decide conhecer o lugar a todo custo, mas logo percebe que a tarefa não será fácil. Sinopse: numa certa manhã, Josef K. é acusado de um crime que, supostamente, sequer sabe que cometeu. Porém luta para se defender. AS KAFKA E O CINEMA Direção: Orson Welles Adaptação: Pierre Cholot Roteiro: Orson Welles Produção: Robert Florat; Alexander Salkind; Michael Salkind Música: Jean Ledrut Direção de Fotografia: Edmond Richard Operador de câmera: Adolphe Charlet Montagem: Yvonne Martin; Frederick Muller; Orson Welles (não creditado) Direção de arte: Jean Mandaroux Assistente de Direção: Marc Maurette; Sophie Becker; Paul Seban Arte: Jean Bourlier; Jacques Brizzio; Madame Brunet; Jean Charpentier Som: Jacques Lebreton; Guy Villette; Julien Coutelier; Urbain Loiseau; Guy Maillet Efeitos especiais: Denise Baby Elenco: Anthony Perkins, Arnoldo Foà, Jess Hahn, Billy Kearns, Madeleine Robinson, Jeanne Moreau, Maurice Teynac, Romy Schneider, Orson Welles KAFKA E O CINEMA AS NG Le Procès França, Itália e Rep. Federal da Alemanha, P&B, 1962, 118 min Formato original: 35mm NG LO Das Schloß Alemanha/Áustria, cor, 1997, 123 min Formato original: 35mm Direção e Roteiro: Michael Haneke Produção: Veit Heiduschka; Christina Undritz Fotografia: Jirí Stibr Montagem: Andreas Prochaska Casting: Sabine Schroth Assistente de Direção: Hanus Polak Jr. Arte: Peter Ecker; Hans Wagner Som: Hannes Eder; Hubert Henle; Hans-Walter Kramski; Marc Parisotto; Andreas Schneider; Max Vornehm Elenco: Ulrich Mühe, Susanne Lothar, Frank Giering, Felix Eitner, Nikolaus Paryla 76 O PROCESSO LO O CASTELO 77 NG AS Direção: Maurice Capovilla Argumento e Roteiro: Maurice Capovilla; Fernando Peixoto Direção de Produção: Hamilton de Almeida Produtor associado: Odécio Lopes dos Santos Assist. de Produção: Roman Stulbach; Jan Koudela; Alexandre Solnick Assistência de Direção: Hermano Penna Direção de Fotografia: Jorge Bodanzky Câmera: Jorge Bodanzky Montagem: Sylvio Renoldi Técnico de Som: Julio Peres Cabalar Figurinos e Cenografia: Flávio Império Elenco: José Mojica Marins, Maurício do Valle, Júlia Miranda, Sérgio Hingst, Jofre Soares, Flávio Império, Silvio Evangelista, Fuxico. KAFKA E O CINEMA Brasil/França, cor, 1972, 85 min Formato original: 35mm Sinopse: um casal vive uma estranha e indecifrável aventura, mesclado de drama e comédia, em lugar e época indeterminados, após uma catástrofe que modificou o estado natural do mundo e destruiu até o último vestígio a sociedade humana. Direção e Roteiro: Nelson Pereira dos Santos Argumento: Gerald Levy-Clerc; Nelson Pereira dos Santos Direção de Produção: Carlos Alberto Diniz Produção executiva: Ariane Lopez Huici Assistência de Direção: Pierre-Henry Deleau; Luiz Carlos Lacerda de Freitas Direção de Fotografia: Dib Lutfi Assistência de câmera: Antônio Luiz Soares Técnico de Som: Nelson Ribeiro Sonoplastia: Geraldo José Montagem: André Delage Elenco: Frédéric de Pasquale, Sylvie Fennec, Regina Rosemburgo, Jean-Dominique Ruhle, Noelle Adam, Manfredo Colasanti, Arduíno Colasanti KAFKA E O CINEMA AS LO 78 Sinopse: a história de um faquir que trabalha em um circo paupérrimo do interior. Quando o circo pega fogo ele inicia com sua mulher uma longa caminhada acompanhado pelo domador do circo, um homem violento e mau. Ao chegar em uma cidade em festa ele apresenta um número sensacional: o de um crucificado vivo. Ele atrai muita gente com o espetáculo mas é preso, e na prisão descobre a chave do sucesso: o jejum. QUEM É BETA? NG Brasil, P&B, 1969, 93 min Formato original: 35mm LO O PROFETA DA FOME 79 AS Klassenverhältnisse República Federal da Alemanha/França, P&B, 1984, 130 min Formato original: 35mm Sinopse: documentário sobre Franz Kafka narrado por alguns de seus melhores amigos, usando atores para interpretar pessoas que o conheciam, incluindo Max Brod, Milena, Felice Bauer, Gustav Janouch, entre outros. Sinopse: baseado em O Desaparecido ou Amerika, obra inacabada de Franz Kafka, trata das relações de classe e da sociedade criada pelo capitalismo — cruel, caprichosa e absurda. Um burguês alemão é forçado a sair de sua terra após um escândalo, mudando-se para a Amerika. No entanto, é incapaz de se adaptar à realidade do trabalho, no novo continente alegórico construído por Kafka. Direção e Roteiro: Richard Dindo Produtora: Lea Produktion GmbH, Les Films d’Ici, Schweizer Radio und Fernsehen, ARTE France – Unité de Programmes Documentaires Produção executiva: Richard Dindo, Serge Lalou Fotografia: René Baumann Montagem: Anne Lecour; René Zumbühl Som: Martin Witz; Dieter Meyer; Florian Eidenbenz; Música: Maurice Ravel Casting: Corinna Glaus Elenco: Alexander Wachholz (Max Brod), Carl Achleitner (Gustav Janouch), Irene Kugler (Felice Bauer), Peter Kaghanovitch (Max Pulver), Hana Militká (Milena Jesenská), Renata Stachowicz (Dora Diamant) KAFKA E O CINEMA AS NG Wer War Kafka? Suíça / França, cor, 2006, 96 min Formato original: 35mm NG LO 80 RELAÇÕES DE CLASSE LO QUEM FOI KAFKA? Direção: Jean-Marie Straub e Danièle Huillet Argumento baseado em “O Desaparecido ou Amerika”, de Franz Kafka Montagem: Jean-Marie Straub e Danièle Huillet Assistência de Direção: Klaus Feddermann; Alf Olbrisch; Berthold Schweiz; Manfred Sommer Câmera: Caroline Champetier; William Lubtchansky; Christophe Pollock Som: Manfred Blank; Louis Hochet; Georges Vaglio Elenco: Christian Heinisch, Nazzareno Bianconi, Mario Adorf, Laura Betti, Harun Farocki, Manfred Blank, Reinald Schnell, Anna Schnell, Klaus Traube KAFKA E O CINEMA 81 CRÉDITOS Realização Insensatez Audiovisual Luzes da Cidade – Grupo de Cinéfilos e Produtores Culturais Tradução dos textos João Ulisses de Melo Filho Leonardo Esteves Lucas Murari Curadoria Lucas Murari Luiz Garcia Revisão de Textos Lucas Murari Coordenação de Produção Aleques Eiterer Marília Lima Pedro Nogueira Produção de Cópias Raquel Rocha Editoração do Catálogo Lucas Murari Luiz Garcia Textos Cédric Anger Hernán Ulm Luís Alberto Rocha Melo Luiz Soares Júnior Maria Cristina Franco Ferraz Milan Kundera Mesa de debates Hernani Heffner Lucas Murari Maria Cristina Franco Ferraz 82 Tradução e Legendagem dos Filmes Felipe Gonçalves Projeto Gráfico, Web Designer e Vinheta Inhamis Studio Assessoria de Imprensa Isabelle Lindote Redes Sociais e e Assistência de Produção Fausto Junior Registro Fotográfico e Videográfico Louise Ralola Pedro Nogueira Projecionista Luiz Guilherme Richard Fotografias Divulgação KAFKA E O CINEMA Agradecimentos Alex Sandro Martoni Amandine Claude Amélie Rayroles Amy Solan Antonio Laurindo Arndt Röskens Barbara Ulrich Bernard Payen Christian Caselli Daniel Pérez Diana Dominique Bax Eleni Gioti Eliška Kaplicky Fuchsova Éric Séguin Fabricio Felice Flávio Pougy Francesca Tripodi Guelfo Ascanelli Hernani Heffner Juliana Azzouz Karen Lima Louise Ralola Marcia Pereira dos Santos Margot Rossi Maria Chiaretti Mariana Marques Marine Goulois Mark Johnson Massimo Cristaldi Mateus Araújo Silva Renato Bissa Vanda Eiterer Zeudi Araya Cristaldi e os cineastas com filmes presentes na mostra e todas outras pessoas que nos ajudaram neste projeto KAFKA E O CINEMA 83 Cuide da natureza. Recicle! Alvará de Funcionamento da CAIXA Cultural RJ: nº 041667, de 31/03/2009, sem vencimento. Acesse caixacultural.gov.br Curta facebook.com/CaixaCulturalRioDeJaneiro Baixe o aplicativo CAIXA Cultural #ZikaZero. Um mosquito não é mais forte que um país inteiro. Participe da luta contra o Aedes aegypti. Realização Apoio Patrocínio 84 KAFKA E O CINEMA 85 86 KAFKA E O CINEMA