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Leituras Feministas de Nietzsche
Laura Ferreira dos Santos
Nos anos oitenta, para a realização de uma prova académica na minha
Universidade, escolhi a temática da educação e cultura na primeira
fase do pensamento de Nietzsche, trabalho há largo tempo publicado
sob a forma de livro (Santos 1993). Embora a temática fosse relativamente restrita, o meu entusiasmo pelo autor fez-me ler toda a sua
obra e recolher inumeráveis apontamentos preciosos que ainda guardo religiosamente. Não pretendo, no presente texto, retomar temas
antigos dos meus estudos. Penso, porém, que, vinte anos depois, esta
é uma boa altura para aprender algo de novo sobre este autor da minha juventude, indo, finalmente, apreciar o que sobre ele se tem vindo
a publicar do ponto de vista dito ‘feminista’, tanto mais que eu já
escrevi nessa perspectiva noutras áreas de estudo (Santos 1999a,
1999b, 2000a, 2000b, 2000c). Deste modo, fui aos apontamentos
que guardara, convencida de que iria encontrar neles uma entrada para
o termo ‘mulher’ que muito facilitaria a minha reflexão. No entanto, a
convicção não tardou a mostrar-se falsa. Se havia folhas com entradas
para quase todas as temáticas importantes do pensamento de
Nietzsche – eterno retorno, ser sobre-humano, Diónisos, Apolo, verdade, religião, vontade de poder, educação, arte, nihilismo e muitos
outras, havendo mesmo uma página reservada ao que designei de
‘insultos’, ou seja, palavras ou expressões que considerei excessivas
Interacções número 2. pp. 11-41. © 2002 ISMT
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Interacções
por parte de Nietzsche, como dizer que David Strauss tinha uma imaginação de limpa-chaminés e um estilo de avestruz – o certo é que
nenhuma dessas entradas se referia ao termo ‘mulher’.
Afinal, perguntava-me agora, o que poderia tornar inteligível essa
ausência, quando, de facto, muitas passagens dos livros de Nietzsche
em que se referia à mulher e às mulheres de um modo pouco simpático – ou mesmo ‘insultuoso’ – se encontravam por mim sublinhadas
com traços intermitentes, sinalética pessoal usada para indicar surpresa, não-entendimento, distanciamento ou irritação? O que me levava a recalcar ou, no mínimo, ignorar, o que constatava no registo
imediato da leitura, mas que não conseguia encontrar o seu caminho
em direcção a um reconhecimento, ao nível do registo mediato e da
reflexão? Talvez variadas ordens de factores expliquem este aparente
enigma.
Em primeiro lugar, deve ser ressaltado que, tendo eu frequentado
uma Universidade Católica e tendo-me convertido ao cristianismo
nessa altura, a minha preferência por Nietzsche, mestre da suspeita
que aconselhava a pegar na Bíblia com luvas, queria significar que
pretendia um cristianismo ‘emancipado’ e ‘progressivo’, capaz de se
deixar criticar e regenerar por muitas das reflexões efectuadas por ele.
Nesta perspectiva, identificando a crítica a Nietzsche com um
posicionamento ‘conservador’, só podia ser-lhe uma discípula fiel,
remetendo inconscientemente para um limbo reflexivo tudo o que
pudesse pôr em causa a minha ‘fidelidade’, ou pretendendo sempre
dar uma interpretação benévola e ultra-compreensiva a afirmações que
exigiriam maior cautela interpretativa.
Quanto à questão concreta das mulheres, posso dizer que, por um
lado, ainda não despertara filosoficamente para o assunto, como se,
contrariamente ao que Nietzsche ensinava, eu acreditasse ainda numa
objectividade e num pensamento ‘puros’, neste caso libertos das
malhas das questões de género. Por outro lado, pode-se também afirmar que, nessa estratégia inconsciente, acabava por seguir a maior
parte da literatura existente sobre Nietzsche, que dava a entender que
o tema da mulher não era nele importante ou para ser tomado a sério,
reflectindo simplesmente a misoginia da época e do pensamento filosófico ocidental. É certo que Sarah Kofman, em Nietzsche et la Scène
Philosophique, livro originalmente publicado em 1979, abordava a
temática da mulher em Nietzsche, mas apenas num Annexe, podendo-se retirar daí que, afinal, o tema não tinha tanta importância quanto se poderia supor. Antes dessa publicação, já Derrida (1973), por
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exemplo, no Colóquio de Cerisy-la-Salle de 1972, falava de ‘La question
du style’, ligando-o estreitamente à questão da mulher, mas o certo é
que os textos que mais directamente abordavam a relação ambígua e,
por vezes, conflituosa e violenta, de Nietzsche com as mulheres não
constituíam uma linha bem demarcada de investigação do seu pensamento.
Como escreve Peter J. Burgard na sua excelente introdução ao livro
por ele organizado e intitulado Nietzsche and the Feminine (Burgard
1994: 3):
Embora o número de tais estudos tenha vindo a aumentar consideravelmente nos últimos anos, quando tomamos em consideração a
verdadeira explosão ocorrida nesta área, na última década, concluímos que as discussões em torno da mulher em Nietzsche são ainda
poucas e espaçadas.
É, aliás, o mesmo Peter Burgard quem esclarece o efeito altamente
negativo que, neste aspecto, teve a obra de Walter Kaufmann, não
obstante as suas óptimas qualidades noutros aspectos, possibilitando, com as suas traduções, que a obra de Nietzsche ficasse acessível
aos e às estudiosas de língua inglesa. No entanto, no seu livro
Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist (1968), escrevia: ‘Os
escritos de Nietzsche contêm juízos demasiado humanos – sobretudo em relação à mulher – mas trata-se de juízos filosoficamente
irrelevantes’ (citado in Burgard, 1994: 2-3). E tal era a importância intelectual de Kaufmann que, acrescenta Burgard, estas suas afirmações
tornaram-se ‘um interdito efectivo no que diz respeito a uma investigação mais aprofundada’ (ibid.: 3).
Está, assim, razoavelmente explicado, penso, o facto de nos
meus antigos apontamentos sobre Nietzsche não se encontrar uma
referência explicitamente tematizada sobre a mulher, numa espécie de desatenção colectiva pelo assunto. Por outro lado, o que
acabo de dizer pode também ajudar a perceber a razão pela qual,
depois da minha ‘fidelidade’ inicial a Nietzsche, tê-lo como que
deixado cair dos meus horizontes reflexivos: cada vez tinha mais
consciência das questões de género e o que eu lera de Nietzsche
sobre as mulheres era suficientemente desagradável e suscitador
de perplexidade para que os meus traços interrompidos e
descontínuos por baixo das suas frases mais desagradáveis tivessem também interrompido e descontinuado, aos níveis mais pro-
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Interacções
fundos, o meu gosto pelo seu pensamento. Os recalcamentos, como
se sabe, acabam sempre por se pagar ou, noutras palavras, por se
fazerem cobrar.
AS VERDADES DE NIETZSCHE SOBRE AS MULHERES
Continuando a recorrer a Peter Burgard, pode-se dizer que, perante a
temática ‘Nietzsche e as mulheres’, há duas atitudes fundamentais a
tomar: ou se afirma simplesmente que ele era misógino, encerrandose aí o assunto, ou percebe-se, de facto, que os seus comentários
sobre as mulheres são tão abundantes e tão relacionados com questões centrais da sua filosofia que encerrar dogmaticamente Nietzsche
na misoginia impede de se perceber melhor as dobras do seu pensamento. Neste aspecto, é, aliás, curioso e sintomático referir que os
próprios prefácios de dois dos seus livros mais importantes – Para
além do bem e do mal e Gaia ciência - referem explicitamente questões relacionadas com a mulher, enquanto que a terceira parte de A
genealogia da moral contém uma epígrafe de Assim falava Zaratustra
com iguais referências à mulher, podendo-se ler: ‘Insouciants, railleurs,
violents – ainsi nous veut la sagesse: elle est femme, elle n’aimera
jamais qu’un guerrier’.1
Quanto ao prefácio de Para Além do Bem e do Mal, escreve-se logo
no seu início:
A supposer que la vérité soit femme, n’a-t-on pas lieu de soupçonner
que toutes les philosophes, pour autant qu’ils furent dogmatiques,
n’entendaient pas grand-chose aux femmes et que l’effroyable sérieux,
la gauche insistance avec lequel ils se sont jusqu’ici approchés de la
vérité, ne furent que des efforts maladroits et mal appropriés pour
conquérir justement les faveurs d’une femme? 2
No que diz respeito ao prefácio de A Gaia Ciência afirma-se que,
depois de se ter descido à última prega das nossas profundezas, num
sofrimento extremo, ainda é possível amar a vida: amá-la como a uma
mulher de quem se duvida. E, mais adiante, pergunta-se: ‘Peut-être la
vérité est-elle une femme qui est fondé à ne pas laisser voir son
fondement? Peut-être son nom, pour parler grec, serait-il Baùbo?’ 3.
Em Nietzsche, a verdade e a mulher encontram-se inextricavelmente
ligadas, mesmo que, por vezes, numa relação de amor e ódio. A verdade e o pudor dito feminino. A sabedoria e a mulher. A verdade e os véus
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femininos. A mulher e a gravidez como força produtiva e criativa, a
gravidez da mulher mas, sobretudo, a gravidez espiritual do homem.
Zaratustra é o homem grávido do ser sobre-humano, do Übermensch.
O eterno retorno do mesmo foi por Nietzsche comparado a uma cabeça
de Medusa (Pautrat 1973: 9-30). Os sinais de enfraquecimento são geralmente equiparados por Nietzsche a um fenómeno de ‘desvirilização’, e
mais relações poderiam ser efectuadas, de um modo concreto, entre
Nietzsche e as mulheres, se esse fosse o objectivo deste texto. Todavia,
como o estabelecimento dessas relações obrigaria a reler toda a obra de
Nietzsche numa perspectiva diferente daquela com que a li há anos
atrás, não avançarei muito mais nessa direcção.
De qualquer modo, para que não fiquem dúvidas sobre a dita
misoginia de Nietzsche, conviria ressaltar (mais) algumas dessa manifestações. Assim, Nietzsche considera a emancipação da mulher e a
sua busca de direitos iguais ao do homem, como o direito ao voto ou
o direito a exercer actividades científicas, como uma tentativa de tornar a Europa mais feia. Partindo da ideia de que há um antagonismo
radical entre os sexos, uma agonística sexual (Lungstrum 1994), pensa que aos dois competem papéis radicalmente distintos. Enquanto
que o homem deve ser educado para a guerra, a mulher deve ser educada
para o descanso do guerreiro. Para além disso, enquanto que a mulher
se sente feliz por servir o marido com devoção e fidelidade, essas não
são características que fiquem bem ao homem. Nietzsche chega mesmo a defender, neste campo, uma posição que designa de oriental:
conceber a mulher como propriedade, um objecto destinado a servir o
marido. Pode ser, admite, que a educação acabe por tornar as mulheres iguais aos homens em direitos e que a ‘mulher caixeira’ acabe de
facto por aparecer-nos no portão de uma nova sociedade. Mas Nietzsche
detestará essa evolução ou involução. Nesse caso, mulheres e homens
acabarão por perder: as mulheres perderão o faro excelente para conseguirem por meios indirectos e relativamente fáceis – os adornos, a
mentira, a aparência, a beleza, entre outros – aquela influência junto
dos homens que uma situação de igualdade não proporcionará decerto tão facilmente, de acordo com Nietzsche. Os homens, esses, perderão a sua crença num ‘eterno feminino’ em que poderiam descansar
das suas atribulações. No fundo, escreve Nietzsche, até quando as
mulheres ‘se dão’ a um homem, fazem o papel de se dar, como boas
comediantes (Schauspielerinnen) e artistas que são. E estas máscaras
de que as mulheres são especialistas alegram e distraem o homem
dos seus assuntos mais sérios ou pesados4. Portanto, é preciso que
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este animal feroz que é a mulher, com garras de tigre sob as luvas,
perigosa e bela ao mesmo tempo, não perca o temor do homem e não
perca os ‘dons’ que a natureza lhe deu para conseguir sobreviver melhor num mundo dominado por homens5.
Às breves notas que aqui ficaram registadas sobre a relação de
Nietzsche com as mulheres muito mais se poderia acrescentar, numa
tentativa de inventário que ficaria sempre imperfeita e que não se adequaria aos objectivos deste texto. No entanto, para que a posição de
Nietzsche, neste aspecto, possa aparecer, desde já, mais
complexificada, permito-me acrescentar dois comentários, mesmo que,
obviamente, não pretendam tentar esclarecer o que, eventualmente,
nunca poderá esperar ficar bem esclarecido.
Em primeiro lugar, referindo o conteúdo extremamente interessante do ponto 231 da obra Para Além do Bem e do Mal. Aí, Nietzsche
começa por falar de algo lá muito no fundo de nós próprios – da unten
– que resiste a todo o nosso esforço de transformação. Considera-o
mesmo um irresistível ‘granito de “fatum” espiritual’ que já escolheu
por nós as respostas que vamos julgando encontrar por nossa própria
iniciativa e vontade, por exemplo no caso das relações homem-mulher. Nessas alturas, respondemos a partir da fé e fatum que nos possuem, impotentes para lhes fazermos frente, mas estamos até dispostos e dispostas a elevar as nossas respostas ‘subterrâneas’ ao nível das ‘convicções’ bem seguras e assim as apresentar a quem fala
connosco. Só mais tarde nos vamos apercebendo de que essas respostas faziam afinal parte desse ‘intratável’ em nós, dessa nossa ‘estupidez’ (Dummheit), desse fatum espiritual que nos impossibilitava
empreender um processo de transformação, aberto a novas aprendizagens ou perspectivas. E concluindo esta sua ‘confissão’, escreve
Nietzsche:
Après cette politesse, cet aveu que je fais à mes dépens, on me
permettra peut-être d’ énoncer un certain nombre de vérités sur «la
femme en soi», puisqu’on sait maintenant que ce ne sont que mes
vérités’6.
Nietzsche falará portanto das ‘suas’ verdades sobre a mulher. Pode
ser que sejam apenas o reflexo do seu fatum espiritual granítico, do
subterrâneo que fala nele não obstante ele próprio ou precisamente
por causa dele próprio, mas são as ‘suas’ verdades, o que automaticamente as relativiza enquanto ‘verdades’. A este propósito, não deixará
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de ser interessante acrescentar o que Nietzsche escreve num outro
livro seu, desta vez em Humano, Demasiado Humano, um título que
se adequa bem àquilo de que estamos agora a falar, em que o humano, demasiado humano, está tão interligado a estas questões. Assim,
no ponto 380, escreve o seguinte:
Legs maternel. Tout homme porte en soi une image de la femme qui
lui vient de sa mère : c’ est elle qui le détermine à respecter les femmes
en général ou bien à les mépriser ou bien à ne ressentir pour toutes
qu’indifférence.7
Afinal, poderíamos perguntar, é da imagem de mulher que lhe vem
da sua mãe Franzisca que se pode explicar toda a ambivalência de
Nietzsche em relação às mulheres e todo o seu fatum granítico espiritual? Pergunta para deixar para já sem resposta, mas a que pretendo
voltar mais tarde.
Quanto ao segundo comentário que prometera fazer relativamente
às observações de Nietzsche sobre as mulheres, tem que ver com as
(poucas) partes das obras de Nietzsche em que ele reconhece as condições sociais extremamente pesadas que pesam sobre as mulheres.
Por exemplo, no ponto 71 da Gaia ciência, sobre ‘A castidade das
mulheres’, segue um raciocínio neste aspecto muito parecido com o
de Freud, quando este fala do modo como a mulher experiencia o
casamento, ela que sempre fora educada para a castidade e para a
assexualidade e que, de repente, tem de aprender a sobreviver num
território que lhe era tão estranho. Numa linha semelhante, Nietzsche
afirma que as mulheres pertencentes às classes sociais mais elevadas
e cultas sentem no casamento uma contradição enorme entre o amor
e o pudor, atendendo ao facto de terem sido mantidas na ignorância
in eroticis. Nessa altura – e o mais provável é Nietzsche estar aqui a
referir-se à primeira relação sexual – há nelas um choque enorme entre sentimentos contraditórios, provocados sobretudo pelo facto de o
homem, espécie de deus, lhes aparecer afinal tão perto da besta animal. E Nietzsche considera este choque tão grande que é nele que vai
alicerçar o que designa de extremo cepticismo da mulher. Afinal, poderíamos dizer, as ilusões das mulheres tinham sido tão severamente
abaladas e mesmo lançadas por terra que só esse cepticismo lhes
possibilitava sobreviverem a uma tal experiência, à experiência, como
afirma Nietzsche, de passarem a encarar o marido como um ponto de
interrogação no que dizia respeito à sua honra. Conclusão de
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Nietzsche: “–Bref, on ne saurait être assez tendre envers les femmes!
[– Kurz, man kann nicht mild genug gegen die Frauen sein!].
Mas ainda mais explícito sobre estas condições sociais pesadas
em que vivem as mulheres é o ponto 68 da Gaia ciência, intitulado
‘Vontade e Consentimento’ (‘Wille und Willigkeit’), que merece ser
citado integralmente:
On avait amené un jeune homme chez un sage: ‘En voici un, lui diton, qui se fait corrompre par les femmes!’. Le sage secouant la tête,
se mit à sourire : ‘Ce sont les hommes qui corrompent les femmes; et
toute faute commise par les femmes doit être expiée et redressée par
les hommes, — car l’homme se fait une image de la femme, et la
femme se forme selon cette image.’ — ‘Tu es trop charitable pour les
femmes, dit l’un des assistants, tu ne les connais point!’ Le sage
répondit : ‘La nature de l’homme est volonté, la nature de la femme
est consentement — telle est la loi des sexes en vérité! dure loi pour
la femme! Tous les êtres humains sont innocents de leur existence,
mais les femmes le sont au deuxième degré : qui donc pourrait avoir
assez d’onction et de charité pour elles?’ — ‘Onction! Charité! Qu’estce à dire? S’écria un autre parmi la foule : il s’agit de mieux éduquer les
femmes! —’ ‘Il s’agit de mieux éduquer les hommes’, dit le sage, et il
fit signe au jeune homme de le suivre. — Mais le jeune homme ne le
suivit point.8
Aqui temos, portanto, algo muito semelhante a duas das vivências
atribuídas a Cristo, como se este texto tivesse por inspiração duas
dessas supostas experiências: uma em que a multidão em fúria pretende apedrejar até à morte uma mulher apanhada a cometer adultério; uma outra em que um jovem rico, já muito perfeito no cumprimento da ‘Lei’, se recusa a dar um passo em frente, vendendo todos
os bens e seguindo a Cristo.
Nietzsche não tira quaisquer conclusões pessoais da história que
narra — simplesmente, põe as personagens a falar. Como em algumas
outras circunstâncias em que as relações mulher-homem estão em
causa, recorre a discursos alheios. Assim, é bom que se note que as
famosas sentenças sobre as mulheres que encontramos em Assim
Falava Zaratustra no capítulo intitulado ‘Von Alten und Jungen
Weiblein’, aquele em que se afirma que, se o homem vai para junto
das mulheres, não se deve esquecer do chicote, são sentenças atribuídas a uma velha mulher, inclusive o conselho de não esquecer o
chicote. Algo de similar acontece no ponto 147 de Para Além do Bem
e do Mal: ‘Tiré de vieilles nouvelles florentines – tiré aussi de la vie :
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«Buona femmina e mala femmina vuol bastone». Sacchetti, nouv.
86.’9 Pode-se perguntar: é esta uma opinião de Nietzsche? Ou uma
opinião que coloca entre parêntesis à sua frente, precisamente para
que a distância das aspas o faça pensar melhor no assunto?
Fazendo agora um esforço para conjugar todos os elementos aventados até este momento, talvez possamos dizer pelo menos que
Nietzsche, na sua postura sobre a mulher, parece ter-se visto confrontado com três linhas de inspiração: por um lado, o sexismo da
sua sociedade e da tradição filosófica ocidental; por outro, o seu
fatum espiritual, em que as más relações com a mãe e a irmã devem
ter pesado demasiadamente em desfavor das mulheres; finalmente,
quando conseguia libertar-se um pouco do seu fatum e tradição, o
reconhecimento de que sobre as mulheres pesava de um modo excessivo a autoridade de uma sociedade patriarcal que não podia senão ser considerada injusta em relação a elas. No entanto, porque
esta última linha de inspiração foi a que pesou menos na sua vida, a
sua obra debate-se mais com a acusação de misoginia, pois é esse
tipo de textos que se encontra mais presente no seu pensamento,
não obstante o dito de Nietzsche de que, afinal, os próprios misóginos
se odeiam a si mesmos, como escreve no livro IV de Aurora:
346. Ennemis des femmes.
‘La femme est notre ennemie’ — par la voix de celui qui, en tant
qu’homme, parle ainsi à des hommes, s’exprime l’instinct indompté,
que non seulement se hait lui-même, mais hait aussi ses moyens. 10
Para além disto, haveria que analisar se a postura de Nietzsche não
se endureceu contra as mulheres depois das suas relações malogradas com Lou Saloumé. Mas essa será uma investigação que terá de
ficar para uma outra vez.
ALGUNS DISCURSOS FEMINISTAS SOBRE NIETZSCHE
Como é sabido, não há um, mas vários tipos de feminismo. No que se
segue, pretendo apenas dar conta dos aspectos que me pareceram
mais interessantes nos livros que consultei sobre a perspectiva feminista sobre Nietzsche, tendendo a não isolar cada um dos estudos,
mas a retirar deles o que me parece mais pertinente.
Desde logo, creio ser de assinalar que um dos livros estudados
para a elaboração deste texto – Feminist Interpretations of Friedrich
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Interacções
Nietzsche (Oliver & Pearsall 1988) – se insira numa série ou colecção
intitulada ‘Re-reading the canon’, dirigida por Nancy Tuana, em que já
foram editados estudos sobre variados filósofos e filósofas como
Platão, Simone de Beauvoir, Hannah Arendt, Hegel, Foucault, Derrida,
Kant, Kierkegaard e Aristóteles, entre outros nomes centrais da nossa
tradição filosófica. Como escreve Nancy Tuana no prefácio do livro
que mencionei,
As filósofas e os filósofos feministas começaram a olhar criticamente para os textos filosóficos canónicos e concluíram que os discursos da filosofia não são neutros em termos de género (ibid.: vii).
Esta é uma posição que, de modo algum, pretende eliminar ou
destruir o cânone existente, mas relê-lo à luz dos estudos de género
que foram sendo elaborados, pondo em causa a sua suposta ‘objectividade’. Recorrendo de novo a Nancy Tuana, pode-se dizer que
Uma re-leitura desta ordem desloca a nossa atenção para os modos
como a mulher e o papel do feminino são construídos no interior dos
textos da filosofia. Uma questão que devemos manter em aberto
diante de nós, durante este processo de re-leitura, é se os preconceitos herdados socialmente por um ou uma filósofa, em relação à
natureza e ao papel da mulher, são independentes do seu
enquadramento filosófico mais vasto. Colocando esta questão, a
atenção deve ser dirigida para os modos segundo os quais as definições de conceitos filosóficos centrais incluem ou excluem, implicitamente, traços que têm que ver com o género (ibid.: ix).
Mais concretamente, quanto ao discurso feminista sobre Nietzsche
por mim analisado, pode-se dizer que, de um modo geral, nem tende
a ignorar a misoginia deste autor, nem a fixar-se nela, embora esta
fixação possa parecer mais vincada em Luce Irigaray, na obra Amante
Marine de Friedrich Nietzsche (Irigaray 1980). Acima de tudo, diria
que estes discursos se esforçam por tentar compreender essa
misoginia de Nietzsche, ou, então, por contrapor-lhe o discurso que,
tendo sido elaborado pelo próprio Nietzsche, pode ser usado para
descontruir e minar a sua própria misoginia. E, enquanto a compreensão dessa tendência misógina tende a enfatizar elementos relacionados com a sua infância, a outra linha de investigação salienta sobretudo o que de melhor existe no pensamento de Nietzsche e que, nesta
perspetiva, menos caucionador será de um menosprezo pelas mulheres. Rapidamente, permito-me apontar alguns desses elementos.
Leituras Feministas de Nietzsche
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Como é sabido, Nietzsche falou da ‘mulher em si’ ‘das Weib an sich’
e encarou-se a si próprio como sendo ‘talvez o primeiro psicólogo do
eterno feminino’ ‘Wer weiss? Vielleicht bin ich der erste Psycholog des
Ewig-Weiblichen’; Nietzsche, in Ecce Homo, ‘Warum ich so Gute Bücher
Schreibe’, 5). No entanto, interrogam-se alguns discursos feministas,
como é possível falar da ‘mulher em si’, nova versão da ‘coisa em si’,
se um dos aspectos principais da filosofia de Nietzsche foi, precisamente, a tentativa de mostrar a inexistência essencializante da coisaem-si? A este respeito, concentremo-nos por exemplo no ponto 16 de
Para além do bem e do mal:
Il se trouve encore d’innocents adeptes de l’introspection qui croient
qu’il existe des ‘certitudes immédiates’, par exemple ‘je pense’ ou
comme l’imaginait Schopenhauer, ‘je veux’, comme si dans ce cas la
connaissance parvenait à saisir son objet dans un état pur et nu, en
tant que ‘chose en soi’, sans nul gauchissement ni de la part du sujet
ni de la part de l’objet. Mais je répéterai cent fois que des notions
telles que ‘certitude immédiate’, ‘connaissance absolue’ ou ‘chose
en soi’ comportent une contradictio in adjecto, et que l’on ferait bien
de ne plus se laisser abuser par les mots.11
Deste modo, como disse, muito do discurso nietzscheano assente
na ‘mulher-em-si’ encontrar-se-ia desconstruído pelo seu ataque às
‘coisas-em-si’ e às tendências essencializantes que permitem falar de
um eterno feminino ou masculino subtraídos aos condicionalismos
do espaço e do tempo. Por outro lado, a perspectiva genealógica desenvolvida por Nietzsche, numa inversão radical de todos os valores,
facilmente pode ser aproveitado para desmontar os valores patriarcais, ajudando a compreender por que as mulheres acabaram por desenvolver as estratégias denunciadas por Nietzsche e outros. Para além
disso, é a própria genealogia do feminismo que pode deste modo ser
elaborada ou esboçada, ajudando-o a ter um consciência mais
enriquecida sobre si próprio e os seus impasses. Numa vertente intimamente ligada às anteriores, a ideia de que a verdade é perspectivista
será também algo de muito útil a quem quer desmontar a noção de
que não só há apenas uma verdade como ela é neutra em termos de
género, evidenciando-se, assim, uma relação muito forte entre
epistemologia e política.
Quanto à insistência de Nietzsche no poder da ‘nomeação’, podese dizer que ela vem muito de encontro a preocupações feministas
que se têm manifestado em diversas das suas tendências. Ora, sabe-
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Interacções
se que, desde muito cedo, Nietzsche insistiu na ideia de que ser verídico era o equivalente de usar as metáforas mais usuais ou de que as
verdades são ilusões que nós já ingenuamente esquecemos que o são.
Mais tarde, no ponto 58 de A Gaia Ciência, far-se-á arauto do mesmo
tipo de pensamento:
En tant que créateurs seulement! – Voici qui me coûte et ne cesse de
me coûter toujours les plus grands efforts: comprendre qu’il importe
indiciblement plus de savoir comment se nomment les choses que
ce qu’elles sont. La réputation, le nom et l’ apparence, la valeur, le
poids et la mesure habituels d’une chose — qui à l’origine ne sont
que de l’erreur, de l’arbitraire dont la chose se trouve revêtue comme
d’un vêtement parfaitement étranger à sa nature et même à son
épiderme — la croyance à tout cela, transmise d’une génération à
l’autre, en a fait peu à peu comme le corps même de la chose, en
quelque sorte solidaire de sa croissance la plus intime: l’apparence
du début finit toujours par devenir essence et agit en tant qu’essence!
Quelle folie n’y aurait-il pas à prétendre qu’il suffirait de dénoncer
cette origine, ce voile nébuleux du délire pour anéantir le monde tenu
pour essentiel, la soi-disant ‘réalité’! Ce n’est qu’en étant créateurs
que nous pouvons anéantir! — Mais n’oublions pas non plus ceci : il
suffit de créer de nouveaux noms, des évaluations, des vraisemblances
nouvelles pour créer à la longue de nouvelles ‘choses’.12
De facto, ter o direito de ‘nomear’ dá um poder extraordinário. Por
alguma razão, foi Adão, numa versão bíblica que o punha como primeiro ser humano da terra, quem teve o privilégio de poder nomear a
realidade que o envolvia. Mas se a realidade, que de facto ou supostamente nos envolve, é sempre nomeada no masculino, como não ficar
convencida ou convencido de que a verdadeira nomeação é, na verdade, masculina? Como escapar a esta ilusão? Como evitar pensar que
as mulheres também são homens, se o substantivo ‘homem’ quer, ao
mesmo tempo, ter o poder de designar o elemento masculino da espécie humana, mas ter também o poder de ser uma palavra neutra
que abrange sem mais o que tem que ver com as mulheres? Por alguma razão ficou bem conhecida a frase de Mary Daly segundo a qual ‘Se
Deus é masculino, então o masculino é Deus’ (If God is male, then
the male is God ). Por outras palavras: se Deus é nomeado sempre
como masculino, é ‘natural’ que a própria masculinidade seja revestida
de atributos divinos. Aliás, não deixa de ser sintomático que Nietzsche,
tão genealógico e perspectivista, numa passagem já aqui citada a propósito do casamento, tenha assimilado o homem a um quase Deus.
Leituras Feministas de Nietzsche
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Mero acidente de escrita ou antes interrupção genealógica e
perspectivística que pode acontecer aos e às melhores?
Finalmente, e para não me alongar aqui muito mais, o relevo dado
por Nietzsche ao corpo, por contraposição a uma insistência muito
deletéria na alma, soou a muitas e a muitos como uma libertação, em
relação a ideais ascetas nada saudáveis. No entanto, as dúvidas sobram por todos os lados: afinal, o corpo de que Nietzsche fala é simplesmente o corpo humano ou o corpo de um homem? Seria possível
ver Nietzsche dizer, à semelhança do que dissera sobre o homem,
que só apreciava a mulher que soubesse ler e escrever com o seu
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próprio sangue ? Não nos ensina a história que o sangue verdadeiramente redentor e heróico é o sangue vertido por um homem, de preferência em público? Terá acontecido com Nietzsche o mesmo que aconteceu com Freud na primazia dada ao corpo masculino, mas, desta
vez, sem reconhecimento dessa mesma primazia?
De facto, em 1925, no texto ‘Algumas Consequências Psíquicas da
Diferença dos Sexos ao Nível Anatómico’, Freud escreve que,
Quando examinámos as primeiras configurações psíquicas da vida
sexual na criança, tomámos regularmente por objecto a criança masculina, o menino. Na menina, supúnhamos, as coisas deviam passar-se de um modo semelhante, embora de algum modo, também
devessem ser diferentes14.
Mais tarde, reforçando a ideia de que, desde o início, pensara que a
vida sexual da mulher pudesse ser definida de um modo análogo ao
que acontecia com os homens, escreve numa nota de 1935 à sua
Selbstdarstellung:
As descobertas acerca da sexualidade infantil tinham sido obtidas a
partir do homem e a teoria daí derivada estava dirigida para a criança
masculina. Era muito natural esperar que houvesse um paralelismo
completo entre os dois sexos, mas isso revelou-se inexacto. Investigações e considerações ulteriores revelaram profundas diferenças
entre homem e mulher no desenvolvimento sexuado15.
Pergunta-se, portanto: que corpo é este de que fala Nietzsche, ele
que, por companheiros divinos, escolheu deuses masculinos – Apolo
e Diónisos – que foram abertamente colocados do lado dos homens e
não das mulheres, e que por companheiro escolheu Zaratustra, uma
mãe fálica?
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Interacções
O ‘OUTRO’ RASURADO PELOS DISCURSOS
QUE LHE PRETENDEM DAR A PALAVRA
No seu livro extremamente interessante intitulado Womanizing
Nietzsche: Philosophy’s Relation to the ‘Feminine’, Kelly Oliver (1995)
mostra e demonstra claramente como discursos tão poderosos como
os de Nietzsche, Freud ou Derrida, não obstante pretenderem abrir a
filosofia ao seu ‘outro’, e conseguirem-no, de facto, nalguns aspectos,
acabaram por não conseguir fazê-lo em relação à mulher. Há o ‘outro’
que é o corpo, há o ‘outro’ que é o inconsciente, há o ‘outro’ que é a
diferença e o diferente e todos estes outros foram procurados por estes autores. No entanto, segundo parece, o outro ‘feminino’ escapoulhes, mais especificamente a mulher-mãe, segundo Kelly. Mais ainda,
segundo ela, ‘no interior da cultura ocidental, que tem sido dominada
por patriarcalismos, apagar a diferença sexual equivale a apagar o feminino’ (Oliver 1995: 66). Afinal, o que será mais importante: a diferença ontológica ou a diferença sexual? Se se vem reclamando, desde
há séculos, que o espanto está no coração da filosofia, porque não se
espantar seriamente diante da diferença sexual? Afinal, o modo de ser
do Dasein não é a diferença sexual? A diferença sexual não poderá
estar escondida no fundo da diferença ontológica?
No entanto, as observações críticas de Kelly não a impedem de
fazer um certo elogio de Nietzsche, afirmando que
As tentativas efectuadas por Nietzsche, no sentido de abrir o discurso filosófico em direcção ao seu outro, são as mais poderosas na
história da filosofia. Mais do que qualquer outro escritor, as ideias e
palavras revolucionárias de Nietzsche impregnaram o meu pensamento acerca da subjectividade, da ética, da verdade e da alteridade.
Os textos de Nietzsche abrem a possibilidade de imaginar fazer filosofia de um outro modo (ibid: x).
Preocupando-se com as ligações da filosofia de Nietzsche com a
reflexão sobre a mulher, Kelly preocupa-se também com algumas leituras que foram feitas a propósito deste tema. Em particular, debruçase sobre Derrida e o seu texto Éperons: Les Styles de Nietzsche. Numa
crítica acerba, mas que me parece justa, Kelly escreve que, tanto da
parte de Nietzsche como da parte de Derrida, as estratégias de paródia e auto-paródia que utilizam acabam por feminizar a filosofia
Leituras Feministas de Nietzsche
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emasculando-a e, portanto, dando a entender que o feminino é a falta
do masculino. Neste sentido, ataca o facto de Derrida se apropriar de
vários modos do que é suposto ser feminino, inclusive quando pretende escrever como uma mulher. Mais ainda, pensa que ‘a redução
derridareana da diferença sexual e ontológica a uma indecidibilidade
apaga a diferença sexual’ (ibid.: xv). Para além disso, há muitas frases
no livro de Derrida que não deixam de surpreender pela negativa. Por
exemplo e recorrendo aqui a uma citação do próprio Éperons, obra
lida também por mim:
La question du style, c’est toujours la question d’un object pointu.
Parfois seulement une plume. Mais aussi un stylet, voire un poignard.
A l’aide des quels on peut, certes, attaquer cruellement ce à quoi la
philosophie en appelle sous le nom de matière ou de matrice, pour y
enfoncer une marque, y laisser une empreinte ou une forme, mais
aussi pour repousser une force menaçante, la tenir à distance, la
refouler, s’en garder - se pliant alors ou repliant, en fuite, derrière des
voiles.
Laissons ce dernier mot flotter, comme l’élytre entre masculin et
féminin. Notre langue nous en assure la jouissance, pourvu qu’on
n’articule pas.
Et quant aux voiles, nous y sommes, Nietzsche aura pratiqué
tous les genres.
Le style s’avancerait alors comme l’éperon, celui par exemple
d’un vaisseau voilé : le rostrum, cette saillie qui va au-devant pour
briser l’attaque et fendre la surface adverse.
Ou encore, toujours en termes de marine, cette pointe de rocher
qu’on appelle aussi éperon et qui ‘rompt les lames à l’entrée d’un
havre’. (Derrida 1973: 236-7).
E, mais adiante, escreve, acerca da suposta ‘operação feminina’:
Elle écrit. C’est à elle que revient le style. Plutôt : si le style était (comme
le pénis serait selon Freud ‘le prototype normal du fétiche’) l’homme,
l’écriture serait la femme. (ibid.: 246).
Por causa desta e doutras afirmações, Kelly considera que as metáforas de indecidibilidade usadas por Derrida são uma apropriação do
feminino pelo masculino. A seu ver, para ultrapassar a oposição binária entre o homem e a mulher, não é uma boa estratégia confundir ou
identificar a mulher com a indecidibilidade, ainda para mais dizendo
que o ‘tropo’ primário da indecidibilidade é o hímen. É que não é preciso recorrer aqui a citações feministas para acordar em que o hímen
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Interacções
sempre esteve envolvido numa história desonrosa de apropriação e
domínio do feminino pelo masculino. O hímen não rompido foi, durante séculos, um dos elementos principais que decidiam da honra ou
da desonra de uma mulher. Invocá-lo agora como se esta história não
existisse é, como escreveu Keith Ansell-Pearson a propósito de outras
afirmações de Derrida, num artigo intitulado ‘Nietzsche, Woman and
Political Theory’ (Ansell-Pearson 1993), algo ‘inquietante’ (disquieting)
e ‘politicamente perigoso’ (politically dangerous). Mais ainda, afirma
Keith Ansell-Pearson que ‘É Derrida quem castra a mulher, reduzindo
a questão da emancipação da mulher a uma questão de estilo, em vez
de a manter como uma questão política (de poder)’ (ibid.: 36).
Através do recurso à retórica da indecidibilidade, corta-se a reflexão sobre uma possível especificidade da mulher. Como escreve Kelly
Oliver, ela é então ‘valorizada como uma metáfora para a impossibilidade de dizer a sua especificidade’ (Oliver 1995: 70).
Num outro livro, segundo Kelly Oliver, Derrida vai ao ponto de dizer
que ‘A escrita, entre outras coisas, penetra o texto feminino’, referindo
também ‘ “facas brandidas para romperem as dobras virginais do texto”. Ele fala acerca de dispositivos para abrir cartas que “separam os
lábios do texto” ’ (citado in Oliver 1995: 72). Mas o que ganham as
mulheres, ou o feminino, com este tipo de comparações? A mulher, o
feminino e a indecidibilidade já têm sido o verdadeiramente excluído da
tradição filosófica, ocidental e não só. Como alerta a mesma Kelly Oliver,
‘É muito diferente retirar o poder aos poderosos ou retirar o poder aos
que já não têm poder’ (ibid.: 31). Ora, reduzir ou identificar a mulher e o
feminino com a indecidibilidade é retirar força a quem já a tem em
pouca medida, contribuindo, de facto, para o apagamento da reflexão
que se debruce de um modo sério e profundo sobre a sua especificidade,
mesmo que numa vertente não essencializante. Afinal, se os homens,
para escreverem de um modo emancipatório, têm de escrever de um
modo dito semelhante a uma mulher, como Derrida pretende fazê-lo,
necessitando para isso de parecer fazer apelo a uma filosofia emasculada,
isso pode querer dizer que passa apenas a haver o masculino e o
emasculado ou castrado, não uma verdadeira diferença sexual. Mas se
os homens passam a actuar segundo a dita ‘operação feminina’ da
máscara paródica, sendo esse o melhor modo de ir ao encontro do
‘outro’, que espaço, afinal, resta para esse outro-mulher ou feminino a
quem era suposto quererem dar a palavra?
Disto mesmo se queixa Ariadne pela boca de Luce Irigaray no livro
Amante Marine de Friedrich Nietzsche, obra muito complexa de que
Leituras Feministas de Nietzsche
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aqui irei fazer apenas uma breve referência. Queixa-se Ariadne de que
Diónisos a tenha presa no círculo da mesmidade, querendo-a ou expulsando-a, de acordo com os seus caprichos do momento, nunca
ouvindo, verdadeiramente, a sua voz, mas apenas a sua própria. Mas
se o lamento de Ariadne é aqui tão poderoso é porque ele não se dirige
apenas a Diónisos ou Nietzsche, mas a toda a tradição filosófica patriarcal que se assumiu facilmente como a única ‘verdade’ existente.
Identificando as águas marinhas com a mulher e o seu útero gerador,
Irigaray fala de um suposto afastamento de Nietzsche e Zaratustra
destas águas, procurando as árvores e os picos das montanhas15. Na
sua obra, apresenta o eterno retorno do mesmo e o Übermensh como
formas de matricídio que negam o dom da vida que nos surge do lado
da mulher-mãe. Mais ainda, as mulheres consideradas mais afirmativas em Nietzsche, com as quais se identifica, ao mesmo tempo que
as teme, como reconhece Derrida, são as mulheres-mães, de cujo poder
procriativo se possa apoderar. Por isso, Diónisos e Zaratustra representarão a capacidade de procriar, de engravidar e de dar à luz, mães
masculinas ou fálicas que nesse seu poder procriativo parecem pretender rasurar ou colocar em lugar secundário o verdadeiro poder
procriativo das mulheres. Aliás, Derrida já escrevia em Éperons que
Nietzsche, on peut le vérifier partout, c’est le penseur de la grossesse.
Qu’il loue chez l’homme non moins que chez la femme. Et comme il
pleurait facilement, comme il lui est arrivé de parler de sa pensée
comme une femme enceinte de son enfant, je l’imagine souvent
versant des larmes sur son ventre (Derrida 1973: 250).17
O inconsciente de que Freud falava era, segundo Pierre Bourdieu
em La Domination Masculine (1998) um inconsciente androcêntrico.
O corpo de que ele e Nietzsche falavam era também, em primeiro
lugar e antes de mais, um corpo masculino. O outro-diferente e feminino a que Derrida pretendia abrir a sua filosofia era um outro parodiado pelo masculino, no que parece ser uma clara postura de apropriação. Pergunto-me: é este, afinal, o eterno retorno do mesmo? …
O VERDADEIRO DIVINO DECLINA-SE NO MASCULINO
Muito se tem escrito, do ponto de vista de uma teologia ou
espiritualidade feminista, sobre a necessidade de ‘nomear’ a divindade de uma forma que não a hipoteque constantemente ao masculino.
28
Interacções
Eu própria já escrevi sobre o assunto, limitando-me, neste momento,
a remeter para a Bibliografia contida nesse texto (Santos 1999a). Especialmente do lado cristão e judeu, muitas obras têm sido elaboradas
no sentido de libertar a divindade de conotações androcêntricas. E
todas e todos nos lembraremos decerto da antiga e conhecida obra de
Alice Walker, The Color Purple, em que a narradora era constantemente assediada por um deus velho, masculino e branco que parecia apostado na sua infelicidade.
Quanto à obra de Nietzsche, somos sobretudo confrontadas e confrontados com dois deuses masculinos: Apolo e Diónisos. Embora
saiba antecipadamente que os deuses e as deusas gregas têm histórias complexas de que a mitologia nem sempre nos pode dar uma versão única, ou versões pelo menos não contraditórias, e que muito há
ainda a estudar neste campo, permito-me ressaltar algumas características destes deuses que poderão contribuir para uma melhor compreensão do seu significado na obra de Nietzsche. Não que esse trabalho mais extenso vá ser por mim agora realizado, mas apenas pretendendo abrir pistas que outros e outras investigadoras poderão mais
tarde desenvolver.
Comecemos por Apolo, engendrado por Leta e Zeus. Nessa altura,
a deusa Hera, mulher de Zeus, muito ciumenta como parecia ser costume, encarrega uma personagem masculina de perseguir Leta e de
não a deixar ter o parto num local onde houvesse a luz do sol. Já no
fim do seu tempo de gravidez, assustada por essa personagem masculina, Leta, em fuga, dá à luz Ártemis, que logo ajuda a mãe a atravessar as águas em direcção à ilha de Delos, onde, por alguma razão,
estariam mais a salvo. Chegadas a essa ilha, Ártemis, que, ainda por
cima, não causara dor alguma à mãe no seu parto e, assim, se tornará
a deusa protectora das mulheres grávidas, ajuda Leta a dar à luz o seu
irmão gémeo, Apolo, que lhe fica a dever a vida. No entanto, não se
pode dizer que Apolo seja um deus reconhecido em relação às mulheres. Vejamos mais alguns pormenores rápidos sobre este deus, presentes na Oresteia, de Ésquilo.
Nesta obra, Agaménon, para ser bem sucedido na conquista e destruição de Tróia, sente-se na obrigação de sacrificar a sua filha Ifigénia.
Regressado a casa, para junto da sua esposa Clitemnestra, a mãe não
consegue aguentar viver com o homem que lhe matou a filha e assassina-o. Perante tal gesto, Orestes, filho de Clitemnestra, é encarregado por Apolo de dar, por sua vez, morte à mãe, algo que ele acaba por
cumprir, não obstante as dúvidas. Mas que fazer a um filho que mata
Leituras Feministas de Nietzsche
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a própria mãe? Eis o discurso de Apolo, em resposta às observações
do Corifeu, segundo as quais seria difícil alcançar a absolvição de Orestes, na medida em que, ao derramar o sangue da mãe, fora também o
dele próprio que derramara:
Vou responder às tuas perguntas e tu verás se o meu raciocínio é
correcto. Aquela a quem chamam mãe não é a geradora do seu filho,
mas tão só a alimentadora do germe nela recentemente semeado.
Quem gera é o semeador; ela, como estrangeira a estrangeiro, limitase a conservar o jovem rebento, a menos que um deus o impeça.
Vou dar-te uma prova do que afirmo e é que se pode ser pai sem
a ajuda da mãe. Pode testemunhá-lo alguém aqui presente, a filha do
Zeus Olímpico, que não foi criada nas trevas do seio materno e, no
entanto, nem uma deusa seria capaz de dar à luz um tal rebento.
(Ésquilo, 1990: 218-9).
Esta filha do Zeus Olímpico é a deusa Pallas Athena. Vejamos, de
imediato, a sua resposta a esta espécie de interpelação de Apolo:
Cabe-me pronunciar-me em último lugar. Juntarei o meu voto aos
que foram dados a Orestes. É que eu não tive mãe que me desse à luz
e, por isso, sou em tudo e de todo o coração pelo homem, pelo
menos até que um dia eu venha a celebrar as minhas núpcias. Sou
inteiramente a favor do pai. Assim não terei em conta especial a
morte de uma mulher, que matou o marido, guarda do seu lar. Orestes será absolvido, mesmo em caso de igualdade na votação. (ibid.:
223).
É verdade que Nietzsche, que eu saiba, não fala da deusa Pallas
Atenha, ou talvez o faça de um modo episódico. Mas não deixa de ser
interessante que um deus da sua preferência, Apolo, invoque em seu
favor a opinião desta deusa que, como ele, também favorece a paternidade em detrimento da maternidade. E não deixa também de ser interessante que um outro mestre da suspeita como Freud se interessasse tanto por esta deusa, como já escrevi noutro texto (Santos 2000b).
Aliás, de toda a sua vasta colecção de estatuetas, a de Pallas Athena
era aquela que Freud mais venerava, a sua favorita, como confessou à
poetisa Hilda Doolittle (Doolittle 1956: 103-4).
Dando Apolo mostras explícitas de camaradagem divina com uma
deusa saída apenas da cabeça do pai, já não nos surpreenderá, decerto, tomar conhecimento de que também Diónisos foi dado à luz por
um ser masculino, o mesmo deus Zeus que dera à luz Athena. Agora,
30
Interacções
Zeus, disfarçado de humano, engravidara uma mortal chamada Sémele.
Mas, mais uma vez, a sua mulher Hera não gostou da aventura do
marido. Por isso, disfarçando-se de velha, Hera convence Sémele a
pedir a Zeus que lhe apareça como ele é verdadeiramente. Feito o
pedido a Zeus, o deus acede a ele, mas, aparentemente sem intenção,
acaba por matar Sémele com o seu esplendor divino. Mas se a mãe
morre, não morre o filho Diónisos, ainda nas entranhas da mãe. É,
então, altura de Zeus cortar o ventre da mãe de modo a retirar dela o
filho e cosê-lo na sua coxa de modo a acabar o processo de gestação.
E, assim, Diónisos nascerá do pai, castigará as mulheres de Tebas,
quando ouvir o rumor de que Zeus não é o seu verdadeiro pai, e terá
como símbolos o vinho vermelho cor de sangue e o falo entumescido.
Depois destas histórias, talvez nos habituemos a olhar para Apolo
e Diónisos com outros olhos. E a reler Nietzsche com mais atenção.
ECCE HOMO: O ROMANCE FAMILIAR DE NIETZSCHE
Já muito deu que falar a terceira parte do primeiro capítulo de Ecce
Homo, ‘Warum ich so weise bin’. De facto, sabe-se que a edição inicial desta obra, promovida por Peter Gast e a irmã de Nietzsche, não
respeitou algumas alterações que o próprio Nietzsche entretanto introduzira, em particular a substituição completa que fizera da terceira
parte desse capítulo. Na primeira versão, pode-se dizer rapidamente
que tenta afastar-se de uma origem alemã, afirmando mesmo que,
muitas vezes, é tomado por um polaco e não por um alemão. Pelo
contrário, a sua mãe, afirma, Franziska Oehler, é inconfundivelmente
alemã. Por outro lado, todo o subcapítulo tende a elogiar o pai, ligando-o às coisas delicadas e elevadas, tendo-lhe feito a passagem dessa
herança. Por isso, tinha sido um privilégio ter um pai assim.
Na segunda versão, mantendo-se o elogio do pai, o afastamento da
mãe e da irmã é feito em termos de uma extrema dureza. E para que,
desta vez, não restem dúvidas sobre a sua separação radical destes
seus parentes, Nietzsche afirma que é um nobre puro sangue, sem
uma única gota de sangue alemão. No exacto oposto de si mesmo
coloca a sua mãe e a sua irmã, de tal modo mergulhadas numa extraordinária baixeza de instintos que, segundo diz, imaginar ter alguma
relação de parentesco com esta canaille (em francês, no texto) seria
idêntico a emitir uma blasfémia em relação à sua natureza divina.
Precisando ainda mais o seu pensamento, recorramos à citação:
Leituras Feministas de Nietzsche
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La manière dont, jusqu’à l’instant présent, ma mère et ma soeur me
traitent, m’inspire une indicible horreur : c’est une véritable machine
infernale qui est à l’oeuvre, et cherche avec une infaillible sûreté le
moment où l’on peut me blesser le plus cruellement — dans mes
plus hauts moments… car aucune force ne permet alors de se défendre
contre cette venimeuse vermine… La proximité physiologique rend
possible une telle disharmonia praestabilita…[…] C’est avec ses parents
que l’on a le moins de parenté : ce serait le pire signe de bassesse que
de vouloir se sentir ‘apparenté’ à ses parents. Les natures supérieures
ont une origine qui remonte infiniment plus haut : c’est pour leur
donner naissance qu’il a fallu le plus longtemps accumuler, retenir,
amasser… 18
Neste contexto, aproveita mesmo para afirmar que a objecção maior que encontra ao seu pensamento ‘abismal’ do eterno retorno é,
precisamente, a sua mãe e a sua irmã – também elas voltariam, para
estabelecer de novo junto de Nietzsche a tal máquina infernal a que se
refere.
Por variadas vezes, Nietzsche enalteceu as qualidades do seu pai e
colocou-se na proximidade psicológica, se assim se pode dizer, de
homens ilustres: entre outros, Napoleão, Frederico IV, Goethe, César
e Alexandre, de quem se dizia, aliás, ser uma reincarnação de Diónisos.
Como sabemos, Nietzsche queixou-se de que lhe faltara a ‘direcção
forte e superior de um intelecto masculino’19. Será, talvez, a altura de
recordar que o seu pai morreu aos trinta e seis anos, quando Nietzsche
tinha apenas quatro, tendo depois vivido rodeado sobretudo por mulheres. No ponto 429 de Humano, Demasiado Humano, intitulado ‘O
berço de ouro’, falará da necessidade de o espírito livre sacudir de
cima de si os cuidados maternos de que as mulheres o rodeiam. De
outro modo, escreve, facilmente o leite da solicitude provindo das
mulheres poderá tornar-se em fel. Não será isso precisamente o que
aconteceu com ele? Por outro lado, na mesma obra, mas agora no
ponto 422, afirma não ser raro que as crianças com tendências ‘nobres e elevadas’ tenham uma infância difícil, lutando duramente com
um dos progenitores. Depois de uma tal experiência, Nietzsche escreve um pouco enigmaticamente que a pessoa já não terá dificuldades
em identificar qual terá sido o maior e mais temido inimigo da sua
vida. No seu caso concreto: a mãe?
Kelly Oliver, tanto no livro já mencionado, como no artigo ‘Nitzsche’s
Abjection’, serve-se da obra de Julia Kristeva, Powers of Terror, para
32
Interacções
tentar aplicar a Nietzsche a teoria da abjecção desenvolvida por esta
autora e de que irei apenas tentar dar uma ideia muito rápida. Segundo
ela, a ameaça à sua identidade que a criança, ainda numa fase préedipiana, experimentaria em relação à mãe, deveria levá-la a abjectá-la,
de forma a adquirir a sua autonomia. Mas não deveria ficar só por aí,
pois, nesse caso, se a mãe é apenas sentida como abjecta, transformase para a criança em objecto fóbico e a própria criança acaba por ter
sentimentos de abjecção em relação a si própria, sobretudo na ausência de um pai amoroso, de facto ou na imaginação. A mãe deveria poder
ser ‘dividida’ numa parte abjecta e numa parte sublime, de modo a que
a criança pudesse afastar-se dela, mas sem, por isso, ficar a odiar a
mulher-mãe e as outras mulheres20. Ora, o que parece ter acontecido
com Nietzsche é que ele não conseguiu separar-se da influência
claustrofóbica da mãe, sentindo-se, ao mesmo tempo, atraído e horrorizado por este corpo materno, cuja parte sublime não consegue encontrar. Portanto, irá identificar-se com estes poderes procriativos – daí,
poderíamos dizer, a profusão das imagens de gravidez na obra de
Nietzsche, mas uma gravidez masculina –, ao mesmo tempo que é
incapaz, de um modo geral, de ter uma boa ideia das mulheres, apenas
as olhando na perspectiva de futuras mães. As outras, quando amam,
devoram, afirma em Ecce homo.
É, então, altura de nos defrontarmos com uma frase de Nietzsche
situada no início do capítulo de Ecce Homo, ‘Warum ich so Weise
Bin’, frase que acabou por estar implicitamente subjacente a toda a
escrita deste texto, como se o seu carácter enigmático tivesse posto
em movimento tudo o que aqui se tentou transmitir:
La chance de mon existence, ce qu’elle a d’unique peut-être, tient à ce
qu’elle a de fatal. Pour l’exprimer sous forme d’énigme, en tant que
mon propre père, je suis déjà mort, c’est en tant que je suis ma mère
que je vis encore et vieillis21.
Como se trata de uma formulação enigmática, serei, com certeza,
desculpada, se a minha hipótese interpretativa for pouco convincente.
Aliás, na minha perspectiva, as interpretações que fui encontrando
em diversos textos, nem sempre eram harmonizáveis ou satisfatórias
e não posso dizer que a minha própria interpretação me satisfaça inteiramente. É, no entanto, aquilo a que pude chegar de momento.
A meu ver, é a primeira parte da frase que coloca mais dificuldades.
Tratando-se o Ecce Homo de um livro exaltado, escrevendo aí Nietzsche
que até é de natureza divina, dizer que, como seu próprio pai já está
Leituras Feministas de Nietzsche
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morto, poderá querer significar que, na sua identificação ao pai, já
está de facto morto, na identificação à sua baixa vitalidade e à sua
nobreza de algum modo decadente. Aliás, na primeira versão da terceira parte deste capítulo, aquela que fora depois inteiramente transformada, afirma-se que do pai recebeu quase todos os grandes privilégios da sua existência, com uma grande excepção: a do grande ‘sim’ à
vida. Esse é um sim que, não podendo provir directamente do pai ou
da mãe, foi condenado a retirar de si próprio, como sua própria mãe
que continua a querer protegê-lo da decadência e do pior nihilismo.
Por isso, como sua própria mãe, vive ainda e vai envelhecendo. Mas
avancemos um pouco mais, um pouco como uma bailarina que se
apoia sobre a ponta de um só pé, segundo a velha imagem usada por
Freud no Prefácio que, em Junho de 1938, vivendo já em Londres, escreveu para o seu Moisés e a religião monoteísta22.
DO ESQUECIMENTO DE UM GUARDA-CHUVA
Nos Fragmentos Póstumos do Outono de 1881, encontramos, sem
mais, numa simples linha, entre aspas, a seguinte frase enigmática de
Nietzsche: ‘ich habe meinen Regenschirm vergessen’ (KSA, IX, 12 [62]).
O esquecimento do guarda-chuva e o do ser chegaram a ser equiparados, embora se dissesse que o esquecimento do ser fazia, afinal, parte
do seu próprio ‘destino’. Mas se entramos em linha de conta com
outros elementos, alguns deles presentes neste artigo, talvez possamos fazer uma interpretação distinta, com conotações de alguma psicanálise selvagem, como no início deste texto, acerca do enigma do
desaparecimento de uma folha nos meus apontamentos, . Afinal, nós
sabemos que foi a mãe de Nietzsche quem lhe deu o primeiro guardachuva, com a recomendação expressa de que não deveria esquecer-se
dele, sobretudo – como é óbvio – quando chovesse. Portanto, esquecer-se do guarda-chuva que uma mãe tão alemã e ‘canaille’ lhe dera e
registar esse esquecimento nas suas notas, talvez pudesse, no fundo,
significar toda a sua luta contra o feminino-materno e, afinal, contra
todas as mulheres, embora pretendendo apropriar-se das suas qualidades procriativas, as únicas que reconhecia como legítimas numa
mulher, melhor ainda se se concretizassem num homem. Por isso,
escrever que se esqueceu do guarda-chuva não será uma outra maneira de dizer que terá de ser a sua própria mãe e de que as suas relações
com a mulher e o feminino hão-de ser sempre complicadas, como é
complicada a situação de quem enfrenta a chuva torrencial sem um
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Interacções
guarda-chuva minimamente protector? E, por causa dessas complicações, não se sentirá Nietzsche impelido a sentir-se já morto enquanto
seu próprio pai, incapaz de ser ele próprio pai, de si ou de crianças
suas, incapaz de assumir uma masculinidade que o libertaria para o
relacionamento íntimo com mulheres em que não visse apenas futuras mães?
O guarda-chuva, como diria Freud, é um objecto fálico. Esquecer-se
dele não pode ser algo de semelhante a esquecer-se da sua própria
masculinidade trágica, sendo, então, lógico pensar-se que Nietzsche,
nessas circunstâncias, se sentiria ainda mais incapaz de se sentir pai
de si próprio? Esperemos que esta interpretação possa ser ainda mais
aprofundada e legitimada, fazendo com que a bailarina de que falei
invocando Freud, dançando na ponta de um só pé, possa ganhar mais
equilíbrio apoiando-se finalmente sobre os seus dois pés.
NOTAS
1 As citações de Nietzsche serão feitas em francês no corpo do texto,
aparecendo em nota o texto original. Optou-se por esta estratégia
atendendo à qualidade da tradução e ao facto de o francês ser, em
Portugal, uma língua de mais fácil compreensão do que o alemão.
Tanto num caso como no outro, será utilizada a edição das obras
completas de Nietzsche organizadas por Giorgio Colli e Mazzino
Montinari.
2 F. Nietzsche, Jenseits von Gut und Böse, KSA, V, ‘Vorrede’, 11:
‘Vorausgesetzt, dass die Wahreit ein Weib ist —, wie? Ist der
Verdacht nicht gegründet,dass alle Philosophen, sofern sie
Dogmatiker waren, sich schlecht auf Weiber verstanden? Dass der
schauerliche Ernst, die linkische Zudringlichkeit, mit der sie bisher
auf die Wahrheit zuzugehen pflegten, ungeschickte und
unschickliche Mittel waren, um gerade ein Frauenzimmer für sich
einzunehem?’.
3 F. Nietzsche, Die Fröliche Wissenschaft, KSA, III, ‘Vorrrede zur
zweiten Ausgabe’, 4, 352: ‘Vielleicht ist die Wahrheit ein Weib, das
Gründe hat, ihre Gründe nicht sehn zu lassen? Vielleicht ist ihr
Name, griechisch zu reden, Baubo?…’. Acerca de uma possível interpretação destas frases, cf., por exemplo, Sarah Kofman, ‘Baubô.
Perversion théologique et fétichisme’, in Id., 1979, 225-259.
4
Cf. F. Nietzsche, Die Fröliche Wissenschaft, KSA, III, 5 (361): ‘[…]
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zuletz, man liebe sie, — man lasse sich von ihnen «hypnotisieren»!
Was kommt immer dabei heraus? Dass sie «sich geben», selbst
noch, wenn sie — sich geben. …Das Weib ist so artistisch…’.
Cf. F. Nietzsche, Jenseits von Gut und Böse, KSA, V, 7 (239): ‘Das,
was am Weibe Respekt und oft genug Furcht einflösst, ist, seine
Natur , die «natürlicher» ist als die der Mannes, seine ächte
raubthierhafte listige Geschmeidigkeit, seine Tigerkralleunter dem
Handschuh, seine Naivetät im Egoismus, seine Unerziehbarkeit
und innerliche Wildbeit, das Unfassliche, Weite, Schweifende seiner
Begierden und Tugenden . . . Was, bei aller Furcht, für diese
gefährliche und schöne Katze «Weib» Mitleiden macht, ist, dass es
leidender, verletzbarer, liebebedürftiger und zur Enttäuschung
verurtheilter erscheint als irgend ein Thier. Furcht und Mitleiden:
mit diesen Gefühlen stand bisher der Mann vor dem Weibe, immer
mit einem Fusse schon in der Tragödie, welche zerreisst, indem
sie entzückt’.
F. Nietzsche, Jenseits von Gut und Böse, V, 7 (231): ‘Auf diese
reichliche Artigkeit hin, wie ich sie eben gegen mich selbst begangen
habe, wird es mir vielleicht eher schon gestattet sein, über das «Weib
an sich» einige Wahrheiten herauszusagen: gesetzt, dass man es
von vornherein nunmehr weiss, wie sehr es eben nur — meine
Wahrheiten sind’.
F. Nietzsche, Menschliches, Alzumenschliches I, KSA, II, 7 (380):
‘Von der Mutter her. — Jedermann trägt ein Bild des Weibes von
der Mutter her in sich: davon wird er bestimmt, die Weiber überhaupt
zu verehren oder sie geringzuschatzen oder gegen sie im
Allgemeinen gleichgültig zu sein’.
F. Nietzsche, Die Fröliche Wissenschaft, KSA, III, 2 (68): ‘Wille und
Willigkeit. — Man brachte einen Jüngling zu einem weisen Manne
und sagte: ‘Siehe, das ist Einer, der durch die Weiber verdorben
wird!’ Der weise Mann schüttelte den Kopf und lächelte. ‘Die Männer
sind es, rief er, welche die Weiber verderben: und Alles, was die
Weiber fehlen, soll an den Männern gebüsst und gebessert werden,
— denn der Mann macht sich das Bild des Weibes, und das Weib
bildet sich nach diesem Bilde’ — ‘Du bist zu mildherzig gegen die
Weiber, sagte einer der Umstehenden, du kennst sie nicht!’ Der
weise Mann antwortete: ‘Des Mannes Art ist Wille, des Weibes Art
Willigkeit, — so ist es das Gesetz der Geschlechter, wahrlich! ein
hartes Gesetz für das Weib! Alle Menschen sind unschuldig für ihr
Dasein, die Weiber aber sind unschduldig im zweiten Grade: wer
könnte für sie des Oels und der Milde genug haben. — Was Oel!
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Was Milde! rief ein Anderer aus der Menge; man muss die Weiber
besser erziehen! – ‘Man muss die Männer besser erziehen,’ sagte
der weise Mann und winkte dem Jünglinge, dass er ihm folge. —
Der Jüngling aber folgte ihm nicht’.
F. Nietzsche, Jenseits von Gut und Böse, KSA, V, 4 (147): ‘Aus alten
florentinischen Novellen, überdies — aus dem Leben: buona
femmina e mala femmina vuol bastone. Sachetti Nov. 86’.
F. Nietzsche, Morgenröthe, KSA, III, 4 (346): ‘Weiberfeinde. — “Das
Weib ist unser Feind” — wer so als Mann zu Männern spricht, aus
dem redet der ungebändigte Trieb, der nicht nur sich selber, sondern
auch seine Mittel hasst’.
F. Nietzsche, Jenseits von Gut und Böse, KSA, V, 1 (16): ‘Es giebt
immer noch harmlose Selbst-Beobachter, welche glauben, dass es
“unmittelbare Gewissheiten” gebe, zum Beispiel “ich denke”, oder,
wie es der Aberglaube Schopenhauer’s war, “ich will”: gleichsam
als ob hier das Erkennen rein und nackt seinen gegenstand zu fassen
bekäme, als “Ding an sich”, und weder von Seiten des Subjekts,
noch von Seiten des Objekts eine Fälschung stattfände. Dass aber,
“unmittelbare Gewissheit”, ebenso wie “absolute Erkenntniss” und
“Ding an sich”, eine contradictio in adjecto sich doch endlich von
der Verführung der Worte losmachen!’.
F. Nietzsche, Die Fröliche Wissenschaft, KSA, III, 2 (58): ‘Nur als
Schaffende! — Diess hat mir die grösste Mühe gemacht und macht
mir noch immerfort die grösste Mühe: einzusehen, dass unsäglich
mehr daran liegt, wie die Dinge heissen, als was sie sind. Der Ruf,
Name und Anschein, die Geltung, das übliche Maass und Gewicht
eines Dinges — im Ursprunge zuallermeist ein Irrthum und eine
Willkürlichkeit, den Dingen übergeworfen wie ein Kleid und seinem
Wesen und selbst seiner haut ganz fremd — ist durch den Glauben
daran und sein Fortwachsen von Geschlecht dem Dinge allmählich
gleichsam an- und eingewachsen und zu seinem Leibe selber
geworden: der Schein von Anbeginn wird zuletz fast immer zum
Wesen und wirkt als Wesen! Was wäre das für ein Narr, der da meinte,
es genüge, auf diesen Ursprung und diese Nebelhülle des Wahnes
hinzuweisen, um die als wesenhaft geltende Welt, die sogenannte
Wirklichkeit, zu vernichten! — Aber vergessen wir auch diess nicht:
es genügt, neue Namen und Schätzungen und Wahrscheinlichkeiten
zu schaffen, um auf die Länge hin neue “Dinge” zu schaffen’.
a
Esta afirmação surge-nos na 1 parte de Assim Falava Zaratustra,
no discurso de Zaratustra intitulado ‘Von Lesen und Schreiben’:
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‘Von allem Gescherienen liebe ich nur Das, was Einer mit seinem
Blut Schreibt. Schreibe mit Blut: und du wirst erfahren, dass Blut
Geist ist’. Mesmo defendendo-se a posição de que o termo ‘Einer’
aqui utilizado por Nietzsche pode remeter simultaneamente para
homens e mulheres, a continuação do discurso, em que a certa
altura se escreve que a sabedoria é mulher, apenas podendo amar a
um guerreiro, assumindo-se o sujeito da frase como um masculino plural, leva-me a pensar que Nietzsche parte de facto de uma
posição masculina, aparecendo a mulher como o seu ‘outro’.
S. Freud, 1989a (Studienausgabe), V, Einige psychische Folgen des
anatomischen Geschlechtsunterschied: 258: ‘Wenn wir die ersten
psychischen Gestaltung des Sexualleben beim Kinde untersuchten,
nahmen wir regelmässig das männliche Kind, den kleinen Knaben,
zum Objekt. Beim kleinen Mädchen, meinten wir, müsse es ähnlich
zugehen, aber doch in irgendeiner Weise anders’.
S. Freud, 1989b: 66, nota 43: ‘Die Ermittlungen über die infantile
Sexualität waren am Mann gewonnen und die aus ihnen abgeleitet
Theorie für das männliche Kind zugerichtet worden. Die Erwartung
eines durchgehenden Parallelismus zwischen den beiden
Gesclechtern war natürlich genug, aber sie erwies sich als
unzutreffend. Weitere Untersuchungen und Erwägungen deckten
tiefgehende Unterschiede in der Geschlechtentwicklung zwischen
Mann und Weib auf’.
Para matizar a posição de Irigaray, ler David Farrell Krell (1994).
Cf. também F. Nietzsche, Die Fröliche Wissenschaft, KSA, III, 2
(72), sobre ‘As mães’, que termina do seguinte modo: ‘Die
Schwangerschaft hat die Weiber milder, abwartender, furchtsamer,
unterwerfungslustiger gemacht; und ebenso erzeugt die geistige
Schwangerschaft den Charakter der Contemplativen, welcher dem
weiblichen Charakter verwandt ist: — es sind die männlichen Mütter.
— Bei den Thieren gilt das männliche Geschlecht als das schöne’
[‘La grossesse a rendu les femmes plus tendres, plus patientes,
plus craintives, elle les a mieux disposées à la soumission; et de
même la grossesse spirituelle développe le caractère des
contemplatifs, apparenté au caractère maternel: — ceux-là sont des
mères masculines. — Chez les animaux le sexe mâle est tenu pour
le beau sexe’].
F. Nietzsche, Ecce Homo, KSA, VI, ‘Warum ich so Weise Bin’ (3):
‘Die Behandlung, die ich von Seiten meiner Mutter und Schwester
erfahre, bis auf diesen Augenblick, flösst mir ein unsägliches Grauen
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ein: hier arbeitet eine vollkommene Höllenmaschine, mit unfehlbarer
Sicherheit über den Augenblick, wo man mich blutig verwunden
kann — im meinen höchsten Augenblick… denn da fehlt jede Kraft,
sich gegen giftiges Gewürm zu wehren…Die physiologische
Contiguität ermöglich eine solche disharmonia praestabilita…[…].
Man ist am wenigsten mit seinen Eltern verwandt: es wäre das
äusserste Zeichen von Gemeinheit, seinen Eltern verwandt zu sein.
Die höheren Naturen haben ihren Ursprung unendlich weiter zurück,
auf sie hin hat am längsten gesammelt, gespart, gehäuft werden
müssen’.
Cf. F. Nietzsche, 1956: 151: ‘[…] mir fehlte die strenge und überlegne
Leitung eines männlichen Intelekts’.
Pelo contrário, se a mãe só é experimentada como sublime, a criança
identificar-se-á com ela e também não conseguirá a sua autonomia.
F. Nietzsche, Ecce Homo, KSA, VI, ‘Warum ich so Weise Bin’ (1):
‘Das Glück meines Daseins, seine Einzigkeit vielleicht, liegt in
seinem Verhängniss: ich bin, um es in Räthselform auszudrücken,
als mein Vater bereits gestorben, als meine Mutter lebe ich noch
und werde alt’. A propósito da interpretação desta frase, cf., por ex.,
Klossowski, 1978.
Cf. S. Freud, Der Mann Moses und die monotheitische Religion,
Studienausgabe, IX, III, Vorbemerkung II: ‘Meiner Kritik erscheint
diese vom Manne Moses augehende Arbeit wie eine Tänzerin, die
auf einer Zehenspitze balanciert’.
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Interacções
Leituras Feministas de Nietzsche
Feminist Readings of Nietzsche
Sumário
Summary
Reconhecendo existir nos textos de Nietzsche
uma relação complexa com o significante mulher, algumas investigações oriundas da crítica feminista têm procurado fazer o estudo
dessa vertente, permitindo ler a sua obra numa
perspectiva ignorada durante muito tempo.
Qual a razão de a mulher afirmativa ser
identificada, por Nietzsche, com a mãe, por
sua vez identificada com uma mãe masculina?
Que razão explica o facto de autores como
Nietzsche e Freud continuarem a fazer o
sacrifício do ‘outro’ feminino na sua reflexão,
sobretudo o feminino-mãe? Através da exploração de textos que se têm vindo a debater
com estes temas - por exemplo, de Kelly Oliver,
Derrida, Luce Irigaray e Ansell-Pearson -, pretende-se fazer um primeiro levantamento e
ponto da situação sobre o assunto, de modo a
tentar captar os contornos da relação ambígua que Nietzsche mantém com as mulheres,
identificadas sobretudo com o materno.
Acknowledging a complex relationship with
the signifier woman in the Nietzsche’s texts,
several studies inspired by feminist critical
theory have focused on this aspect, allowing
the Nietzschen philosophy to be read from a
perspective that has mostly been ignored. What
is the reason for the affirmative identification,
by Nietzsche, of the mother with a masculine
mother? What can explain the fact that authors
such as Nietzsche and Freud continue to sacrifice the ‘other’ feminine, predominantly the
feminine-mother, in their thought? Following
an exploration of authoritative critical texts that
discuss these themes – for example, those of
Kelly Oliver, Luce Irigaray, Sarah Kofman and
David Farrell Krell - this paper establishes a
preliminary hypothesis within the contours of
the ambiguous relationship that Nietzsche had
to women, primarily identified with the maternal.