Ripe 42 - Instituição Toledo de Ensino

Transcrição

Ripe 42 - Instituição Toledo de Ensino
ISSN 1413-7100
42
janeiro a abril de 2005
REVISTA DO INSTITUTO
DE PESQUISAS E ESTUDOS
Divisão Jurídica
Esta edição contém produções científicas desenvolvidas
no Centro de Pós-Graduação da ITE - Bauru.
REVISTA DO INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS (DIVISÃO JURÍDICA)
Faculdade de Direito de Bauru,
Mantida pela Instituição Toledo de Ensino (ITE).
Edição - Nº 42 – janeiro a abril de 2005
EDITE EDITORA DA ITE
Praça 9 de Julho, 1-51 - Vila Falcão - 17050-790 - Bauru - SP - Tel. (14) 3108-5000
CONSELHO EDITORIAL
Carlos Maria Cárcova, Cláudia Aparecida de Toledo Soares Cintra, Flávio Luís de Oliveira, Giselda Maria Fernandes
Novaes Hironaka, Iara de Toledo Fernandes, José Roberto Martins Segalla, Jussara Susi Assis Borges Nasser Ferreira,
Luiz Alberto David Araujo, Luiz Antônio Rizzato Nunes, Luiz Otavio de Oliveira Rocha, Lydia Neves Bastos Telles
Nunes, Maria Isabel Jesus Costa Canellas, Maria Luiza Siqueira De Pretto, Pedro Walter De Pretto, Pietro de Jesús
Lora Alarcón, Roberto Francisco Daniel, Rogelio Barba Alvarez, Thomas Bohrmann.
SUPERVISÃO EDITORIAL
Maria Isabel Jesus Costa Canellas
COORDENAÇÃO
Bento Barbosa Cintra Neto
Solicita-se permuta
Os textos são de inteira responsabilidade de seus autores
Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos : Divisão Jurídica.
Instituição Toledo de Ensino de Bauru. -- n. 1 (1966) - . Bauru
(SP) : a Instituição, 1966 v.
Quadrimestral
ISSN 1413-7100
1. Direito - periódico I. Instituto de Pesquisas e Estudos. II.
Instituição Toledo de Ensino de Bauru
CDD 340
Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos
n. 42 p. 1-563 2005
ÍNDICE
Apresentação
Maria Isabel Jesus Costa Canellas
9
DESTAQUE PARA PRODUÇÃO CIENTÍFICA INTERNACIONAL
COLABORAÇÃO DE AUTOR ESTRANGEIRO
La indeminidad como bien jurídico en el entorno sexual del menor e incapaz
Rogelio Barba Álvarez
13
PUBLICAÇÃO DE AUTOR NACIONAL NO EXTERIOR
As novas diretrizes internacionais dos Estados Unidos da América sob a perspectiva diplomática brasileira
D. Freire e Almeida
29
APRESENTAÇÃO NO IV CONGRESO MUNDIAL DE DERECHO E INFORMÁTICO
REALIZADO EM CUSCO/PERU
Proteção de dados pessoais no âmbito judicial
Carlos G. Gregório & Mário Antônio Lobato de Paiva
45
DOUTRINA NACIONAL
A arbitragem no Brasil – Evolução histórica e conceitual
José Augusto Delgado
67
O novo § 3.º do art. 5.º da Constituição e sua eficácia
Valério de Oliveira Mazzuoli
93
O direito adquirido e as emendas constitucionais
Luiz Alberto Gurgel de Faria
123
O início da reforma do Poder Judiciário - I
Renato Bernardi
137
A Emenda Constitucional 42/03 e o princípio da anterioridade tributária no imposto sobre a renda
André Murilo Parente Nogueira
143
Competência por prerrogativa de função. Desenho constitucional e hermenêutica jurisprudencial. Limites e possibilidades no tempo e no espaço
Roberto Luis Luchi Demo
157
A conta única dos depósitos judiciais, o direito financeiro e a economia do poder público
Marcílio Toscano Franca Filho
175
Da evolução histórica do tratamento da matéria econômica nas constituições
Carlo José Napolitano
183
O trust nos Estados Unidos da América e suas funções
Verônica Scriptore
199
Mérito administrativo e controle judicial da aplicação de conceitos indeterminados no direito brasileiro
Gerson dos Santos Sicca
219
Direitos humanos e processo civil
Gelson Amaro de Souza
235
Penhora on-line
Paulo Mazzante de Paula
271
Da valoração da prova e do ônus da prova
Soraya Regina Gasparetto Lunardi
281
O artigo 461 do CPC e a efetividade da prestação jurisdicional
Levi Rosa Tomé
297
Direito falimentar brasileiro
Celso Marcelo de Oliveira
307
Metodologia do estudo científico
Emerson Ike Coan
317
Da taxa de controle e fiscalização ambiental – TCFA – e seu estigma de inconstitucionalidade.
Eduardo Amorim de Lima
327
INCLUSÃO SOCIAL
DIREITO DAS MINORIAS
O Judiciário e as políticas de saúde no Brasil: o caso AIDS
Camila Duran Ferreira
Co-autores: Ana Carolina C. de Oliveira. Ana Mara F. Machado. André V. Nahoum. Brisa L. de M. Ferrão. Evorah L. C. Cardoso. Leandro A. Franco. Marcele G.
337
Guerra. Marco Aurélio C. Braga. Rafael D. Pucci. Vinícius C. Buranelli
A aplicação da proteção contratual do Código de Defesa do Consumidor aos
contratos de alienação fiduciária em garantia de bens imóveis
Aluna pesquisadora: Tereza Maria Amorim
Trabalho desenvolvido no Centro de Pós-Graduação da ITE – Bauru, sob orien375
tação e colaboração do docente Prof. doutorando José Luiz Ragazzi
Lei n.º 10.741/03 – Estatuto do idoso. Artigo 94: aplicabilidade absoluta ou interpretação stricto sensu?
389
Fabrício Dias de Oliveira
PARECER
Da vedação jurídico-constitucional de penhora de faturamento de instituição de
ensino e da inaplicabilidade da teoria da desconsideração da pessoa jurídica na
hipótese. Parecer
Ives Gandra da Silva Martins, Rogério Vidal Gandra da Silva Martins &
397
José Ruben Marone
NÚCLEO DE PESQUISA DOCENTE
ASSUNTO ESPECIAL
Pós-Graduação: o mestrado profissionalizante e o mestrado interinstitucional
413
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka
NÚCLEO DE INICIAÇÃO À PESQUISA CIENTÍFICA - NIPEC
Inquérito civil. Meio investigatório que antecede a propositura da ação civil pública
Aluna pesquisadora: Anna Carolina de Miranda
445
Professor orientador: José Luiz Ragazzi
ATIVIDADE PROFISSIONAL DE RELEVO
“Notificação supletiva”. Apropriação indébita dos créditos de empregados, por
seus próprios advogados
Colaboração: Olga Aida Joaquim Gomieri – Juíza togada do E. Tribunal
Regional do Trabalho da 15.ª Região – Campinas/SP
455
CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO
Resumos de dissertações defendidas no Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Direito (Área de Concentração: Sistema Constitucional de Garantia de Direitos), em nível de Mestrado, Instituição Toledo de Ensino
Das provas ilícitas e o sigilo das comunicações telefônicas
Raimundo Amorim de Castro
465
Do princípio constitucional da fundamentação das decisões judiciais no processo civil brasileiro
Rogerio Bellentani Zavarize
467
Progressivo extrafiscal – instrumento de efetivação da função social da propriedade urbana
Paulo Sergio Carenci
469
O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana como instrumento
de justiça social
Ivan José Abel
471
O estado como fornecedor de serviços públicos nas relações de consumo
Eduardo Toledo Arruda Galvão de França
473
Da legitimidade do Ministério Público na tutela de direitos individuais
Rodrigo Mazzilli Marcondes
475
Seguridade social: a previdência dos servidores públicos municipais e o federalismo brasileiro na Constituição Federal de 1988
Carla Cabogrosso Fialho
477
Da discricionariedade administrativa no estado de direito brasileiro atual
Luciana Maria Assad
479
A liberdade de iniciativa e os empreendedores econômicos estrangeiros na
Constituição Federal: uma análise do direito fundamental à propriedade à luz
das emendas constitucionais
Carlo José Napolitano
481
Princípio fundamental da proteção ao trabalhador diante da teoria da flexibilização da jornada de trabalho
Edison dos Santos Pelegrini
483
Ação popular ambiental
Rafael Reis Ferreira
487
Da moralidade administrativa: o princípio constitucional
Marlene Nunes Freitas Bueno
489
Da norma antielesiva e os direitos e garantias fundamentais
Luiz Fernando Maia
491
Dos contornos constitucionais do ato jurídico perfeito
Vail Altarugio Filho
493
Do direito à imagem como direito humano fundamental no ordenamento jurídico brasileiro
Vera Lucia Toledo Pereira de Gois Campos
495
A redução dos riscos de acidentes do trabalho como forma de proteção da dignidade e da saúde do trabalhador
Reinaldo César Rossagnesi
497
Município ambiental: competência e interesse
Antonio de Paiva Porto
499
Da responsabilidade civil por danos morais decorrentes da infringência dos
deveres matrimoniais
Ana Lúcia Fusaro
501
Dos alimentos trangênicos: sua relação com o direito fundamental à saúde e
ao meio ambiente
Isabela Esteves Cury
503
Direito social à moradia e o usucapião individual e coletivo
Érika Regina Spadotto
507
O tribunal do júri na ordem constitucional brasileira
Celso José Nogueira Pinto
509
Tutela específica das obrigações de fazer e não fazer
Fernanda Duarte Spindola
513
Efetividade mandamental e executiva Lato Sensu do pronunciamento que concede a tutela específica nas obrigações de fazer e não fazer
515
Willian Carlos Cruz
CONTRIBUIÇÃO ACADÊMICA
Aplicação da teoria da asserção na tutela dos direitos difusos
Josias Martins de Almeida Junior
Orientadora: Profª. Drª. Iara de Toledo Fernandes
519
A clonagem em seres humanos e seus reflexos nas questões éticas, jurídicas e morais
Cléofas Pires da Silva
527
Orientador: Prof. Ms. Ney Lobato Rodrigues
RESENHA & ARTIGOS
Homoafetividade: o que diz a justiça!
Maria Berenice Dias. Livraria do Advogado, Porto Alegre: 2003. 197 p.
José Carlos Teixeira Giorgis. Desembargador do Tribunal de Justiça do RS
551
Sigilo bancário. Lei Complementar 105/01 – Breves considerações
Ricardo Ribeiro Velloso
553
Falta grave em juízo
Mário Gonçalves Júnior
555
INFORMAÇÕES AOS COLABORADORES
561
APRESENTAÇão
Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive.
Ricardo Reis, 14-2-1933
(Fernando Pessoa)
Mais uma vez nos encontramos para comungar sobre a caminhada da Revista
do Instituto de Pesquisas e Estudos – Divisão Jurídica da ITE – da RIPE, como ficou
conhecida em sua segunda fase, que vem escrevendo uma história de mais ou menos quarenta anos.
Este é o 42.º número de nossa REVISTA, mas sua história se inicia em 1966,
momento em que foi criada pelo fundador de nossas escolas, o saudoso Reitor Antônio Eufrásio de Toledo, quando teve a sua primeira edição publicada.
Desde então, sua trajetória assinala vários percalços e, assim, em novembro de
1995, ela renasce em toda a sua magnitude, a partir do volume treze e, ininterruptamente, seus objetivos vêm se cumprindo passo a passo, como várias vezes corroborado nas apresentações anteriores.
Sua acolhida nos meios acadêmicos nacionais e internacionais constitui o reconhecimento de seu papel, tão bem atestado pelo interesse e dedicação que pesquisadores do Brasil e de outros países, como a Alemanha, Portugal, Espanha, França, México, Argentina e Colômbia, dentre outros, têm demonstrado em ver sua colaboração veiculada neste periódico.
Cremos, assim, que o ano que passou, repleto de conquistas e realizações,
consolidou um ciclo de amadurecimento da RIPE, quando mereceu o grau máximo
de excelência nacional pela CAPES (“QUALIS A”) – Portaria Capes 68. “Atingimos o
grau máximo nacional. No entanto, precisamos, é claro, melhorar e chegar ao
grau internacional,” para usar as palavras do Coordenador Acadêmico do Curso de
Pós-Graduação de nossa Instituição, Doutor Luiz Alberto David Araujo.
A consecução dos objetivos deste Periódico se plenifica na medida em que
podemos contar com o partilhar do saber que, fragmentado nos artigos doutos,
porque fundamentados, vai propiciando a aquisição do todo jurídico, evitando-se
qualquer forma de enrijecimento, alterando-se criteriosamente a produção, tanto no plano gráfico e das normas de publicação, quanto no plano da constituição
do Conselho Editorial, observando-se a cada momento as exigências do padrão
científico, visando aos interesses maiores da comunidade acadêmica, pois, como
se disse desde as primeiras publicações, o relançamento da RIPE haveria de se
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faculdade de direito de bauru
constituir em um ponto de encontro, de reflexão: um espaço aberto para repensar o Direito vivo.
Reiteramos, nesta primeira edição do ano de 2005, a gratidão e o comprometimento de todos os vocacionados que, certamente garantirão a permanência qualificada desta revista acadêmica, compartilhando com nosso ideal de servir.
O nosso olhar atento ao alvo nos diz, por fim, que esse é o resultado de todo
o esforço da Instituição Toledo de Ensino – Bauru: entidade mantenedora, diretoria da Instituição e da Faculdade de Direito, coordenação da RIPE, membros do Conselho Editorial, coordenadoria do Centro de Pós-Graduação, Departamento de Comunicação, Coordenadoria dos Núcleos de Pesquisa, nossos professores, acadêmicos, funcionários, amigos colaboradores dentro e fora do Brasil.
A oportunidade é igualmente generosa para registrar nossos mais sinceros agradecimentos pela participação, “quase invisível”, aos nossos leitores e colaboradores,
do caríssimo Professor Doutor Helio Requena da Conceição, não apenas na revisão da
RIPE, mas especialmente pela dedicação depositada e pela altíssima qualidade científica de seus pareceres de conclusão de cada um dos nossos artigos publicados.
O tempo há de revelar, no final da travessia, o grau de contribuição de cada um
de nós na tarefa de construção de um mundo mais feliz, porque humanizado. E a sabedoria se encarregará de guardar os nosso feitos e comunicá-los aos que hão de vir.
Reflitamos: esta obra é manifestação do sentido da vida e a vida, já disseram
outros, é criação construída, construção que se reconstrói a cada momento, em fé,
dedicação e comprometimento eternos.
Concluímos mais uma etapa... o ano de 2004 findou repleto de conquistas e realizações... Passou o Natal e o ano de 2005 se inicia, novos desafios, novas conquistas,
novas possibilidades. Para tanto, deixo aqui a mensagem magistral da pesquisadora e
estudiosa da psique humana, Ana Cristina Musa Minervino (USP Bauru, dez.2004):
“Reviver a cada ano a vinda do Menino Deus, nos possibilita acreditar na nossa infinita capacidade e habilidade de fazer escolhas.
A escolha mais significativa é o sim que dizemos a própria vida,
acreditando que ela seja um espaço maravilhoso de experiências
de crescimento e realização.
Assim, desejo que você aproveite esse momento de intensa magia,
para se comprometer...
Com a sua felicidade...
Com seus horizontes infinitos...
E, com as suas inúmeras possibilidades de vir a Ser...”.
Janeiro de 2005
Maria Isabel Jesus Costa Canellas
Destaque para
Produção Científica
Internacional
LA INDEMINIDAD COMO BIEN JURÍDICO EN EL
ENTORNO SEXUAL DEL MENOR E INCAPAZ
Dr. Rogelio Barba Álvarez
Profesor de La Universidad de Guadalajara, C. U. de la Ciénega.
Doctor en Derecho Penal y Especialista Universitario en Criminología
por el Instituto de criminología de la Universidad Complutense de Madrid.
INTRODUCCIÓN
El bien jurídico en los delitos relacionados al plano sexual, en el actual Código Penal del Estado de Jalisco, hace referencia a la Libertad sexual, indistintamente
para personas mayores, menores e incapaces. Nuestros legisladores no se han preocupado por marcar la diferencia abismal que existe entre bienes jurídicos de personas mayores, menores e incapaces, al no delimitar el objeto de tutela. Esto trae problemas al momento de la interpretación de la Ley, pues el menor al carecer de esa
libertad, queda desprotegido de los reales valores que afectan gravemente su desarrollo psicosexual de este gran sector de la sociedad que son los menores e incapaces. En este sentido el presente trabajo tiene la finalidad de proponer un bien jurídico bifronte, para los menores e incapaces será la indemnidad sexual, mientras que
para los mayores seguirá siendo la libertad sexual.
Otro de los problemas que desprotege a las víctimas de delitos sexuales es el
tradicional y caducado orden legal del mismo ordenamiento penal vigente para
nuestro Estado de Jalisco, es menester manifestar una inversión a este sistema, para
colocarlo en la tabla de valores en una alta jerarquía primando los valores indispensables para el disfrute de la vida en sociedad, dejando a los delitos que atenten contra la libertad e indemnidad sexuales en los primeros sitios del Segundo Libro del
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faculdade de direito de bauru
código Penal estatal, tal y como lo estiman distintos códigos penales de la República mexicana como el de Aguascalientes, y el Nuevo Código Penal para el Distrito Federal por mencionar algunos.
I.
CONJETURAS DOCTRINALES DEL BIEN JURÍDICO
El Derecho Penal vigente en México esta contenido fundamentalmente en los
códigos penales de las entidades federativas que conforman la República mexicana
como el que rige para toda ésta en materia federal, aunque también leyes que regulan las relaciones del derecho publico y derecho privado contemplan las posibilidades de imponer penas a determinadas infracciones de las mismas; v. gr. La Ley de
quiebras y de suspensión de pagos en él articulo 91 y siguientes establece la responsabilidad penal de la quiebra1.
En otras ocasiones ocurre este supuesto al revés, que el código penal obliga
penas a conductas descritas en leyes no penales; v. gr. Él articulo 177 del Código penal estatal menciona “Se impondrá de uno a tres años de prisión a la que, con el fin
de alterar el estado civil, incurra en alguno de los casos siguientes...”2, El estado civil se encuentra regulado en el código civil, por lo que el código penal se sujetará a
lo que estime por dicho concepto.
En este sentido el Código penal mantiene conductas calificadas como graves
en contra de los intereses más imprescindibles de la vida en sociedad, a estas conductas la doctrina penal las a calificado como tipo penal o delito, es decir, al conjunto de caracteres que hacen penalmente relevante una conducta humana3. Estos valores penalmente relevantes para el desarrollo de la vida en común, solo pueden ser
protegidos los que sean imprescindibles y que efectivamente interesen para alcanzar este cometido, v. gr., La vida, la libertad, el patrimonio, la salud, la seguridad de
la Nación etc. Bienes y valores contenidos en nuestra Carta Magna, donde el legislador agrupa los tipos delictivos en función de la necesidad social y de dichos valores
vulnerados.
1.1. Concepto de bien jurídico
Reiteradamente se ha venido utilizando el concepto de bien jurídico, cuya
captación (si bien tal vez, según se ha sostenido, al menos de forma muy impreci1
2
3
Art. 95 de la Ley de Quiebras y Suspensión de Pagos, impone la pena de uno a cuatro años de prisión al responsable de quiebra calificada de culpable. Así mismo él articulo 99 impone de cinco a diez años de prisión y
multa al comerciante declarado e quiebra fraudulenta
El “Estado civil” debe de entenderse la situación jurídica de una persona respecto a sus vínculos de familia determinados por el nacimiento, como puede ser la legitimación, el reconocimiento y el matrimonio, y de la que
deriva una serie de derecho y obligaciones tanto de Derecho Privado como de Derecho Público.
CUELLO CONTRERAS, J., El derecho penal español, curso de iniciación parte general, Madrid, 1993, p. 32.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
15
sa, pudiera intentarse intuitivamente) necesita desde luego de una ulterior determinación en aras de su utilización jurídica y sistemática y en especial para la presente propuesta.
La doctrina jurídico-penal entorno al bien jurídico ha sido históricamente entendido como un derecho subjetivo, no obstante, se trata de conceptos distintos,
Existen, como dice el gran jurista alemán Edmundo Mezger, “numerosos delitos en
los que no es posible demostrar la lesión de un derecho subjetivo4” y en los que, sin
embargo, se lesiona o pone en peligro un bien jurídico. El concepto técnico de derecho subjetivo implica que el derecho objetivo se pone, en cierto modo, a disposición de una voluntad o un interés particular5, Representa así un mecanismo de distribución y protección de los bienes jurídicos, pero no necesariamente se identifica
con ellos.
1.1.1. Diferencia entre interés y Valor
También se ha identificado el bien jurídico con la idea de interés. Algunos juristas, como Nawiasky, indican que en vez de bien jurídico se puede hablar de fin jurídico o interés jurídicamente protegido6. Para refutar esta teoría citamos a Bettiol
quien estima que “el interés es un termino que expresa una relación. No es un punto de llegada sino tramite hacia el punto de llegada7”. Para el maestro COBO DEL
ROSAL, el interés, en un sentido más propio, comporta la idea de utilidad, idea que
compartimos, pues todo estado de cosas que de cualquier modo beneficia a alguien
es, para él, un interés8.
Esta consideración puede ayudar a poner de manifiesto la diferencia existente entre interés y valor. La vida de una persona es un bien jurídico que el derecho le
reconoce; pero, a la vez, puede representar un interés para quienes dependen de él.
Sin embargo puede darse el caso de que el titular de la vida no se halle interesado
por ella (por que se trata de una vida desdichada o por cualquier otra razón). Y pueden imaginarse supuestos de bienes por los que nadie tenga interés, incluso tratándose de la misma vida propuesta como ejemplo. En este sentido, el concepto de
bien jurídico no puede tampoco modelarse sobre la idea de interés.
La doctrina penal italiana estima el concepto de bien jurídico como un apoyo
sobre la idea de valor, que expresa de modo mas adecuado las exigencias éticas que
se hallan (o habrían de hallarse) en la base de todo ordenamiento jurídico que merezca ese nombre9. Por lo tanto para el presente trabajo podemos definir el bien ju4
5
6
7
8
9
MEZGER E., Tratado de Derecho penal, Vol. I, México, pag. 399.
COBO Y VIVES, Derecho penal parte general, Valencia, 1995, pag. 292.
Diccionario Jurídico 2000, CD- Rom.
COBO Y VIVES, op.cit, pag.293.
Ibid.
Rocco A., L` oggeto del reato e della tutela giuridico penale en opere, citado por ZAMORA JIMENEZ, A., cuerpo del delito y tipo penal, México, pag. 73 y ss.
16
faculdade de direito de bauru
rídico como todo valor de la vida humana protegida por el derecho, o mejor aún en
palabras del maestro ARTURO ZAMORA10 en este sentido; “Que el bien jurídico
como objeto de protección del derecho penal es todo valor individual o de conjunto que merece la garantía de no ser vulnerado por la acción de otro”.
1.2. Sistema y orden legal en el Código penal del Estado de Jalisco
El legislador debe de observar la realidad criminal mediante estudios de política-criminal y dependiendo de la necesidad social debe de determinar cuáles son
los objetos a proteger, claro esto no sucede siempre, pues existe un déficit profundo por nuestros legisladores al momento de proponer medidas legislativas en materia penal para la protección de bienes jurídicos indispensables para el desarrollo
de la sociedad jalisciense, más bien se preocupan demagógicamente de demostrar
al ciudadano común, reformas con penas desmedidas bastante represivas para los
infractores de la norma, no nos podemos explicar como en un Estado Social y Democrático de Derecho, presumido reiteradamente por nuestros representantes populares, paradójicamente existen penas tan represivas que nos recuerdan los Estados absolutos de la edad media, como las penas indeterminadas y degradantes, v. gr.
el homicidio calificado penado por el actual Código Penal Federal En materia común
para el D. F. y federal para toda la República, estima en su artículo 320 una pena de
30 a 60 años de prisión, si una persona de 30 años comete este delito en el D. F. y
le imponen 50 años de prisión se vuelve automáticamente indeterminada, si nos basamos a las estadísticas de mortalidad del Instituto INEGI11 (ver tabla), donde se expone la edad máxima para vivir a un varón será de 70 años, por lo que con esta pena
morirá pagando su condena, sin motivos resocializadores sino más bien como penas absolutas y desproporcionadas12. Vulnerando un principio fundamental del derecho penal, el principio de proporcionalidad. Además se ha expuesto en investigaciones científicas que los efectos nocivos a nivel psicológico que sufre una persona
indeterminada en un centro penitenciario empiezan a los 15 años de recluido siendo irreversibles.
10 En Derecho Penal Parte Especial, México, 2001, pp. 17 y ss.
11 http://www.inegi.gob.mx/est/contenidos/espanol/tematicos/mediano/ent.asp?t=mpob56&c=3233, consultada el 11 de febrero de 2004.
12 Inaceptado es también las penas impuestas por el Nuevo Código Penal Para el Distrito Federal en materia Común donde las penas oscilan de 20 a 50 años para el delito referido, mientras que para los delitos de secuestro con resultado de muerta para la víctima será en iguales términos, la doctrina penal mexicana opina en el
mismo sentido de estas penas indeterminadas ver Carranca y Rivas en el Periódico Occidental, del 4 de julio
del 2004.
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n.
17
42
Esperanza de vida por entidad federativa según sexo, 2001 y 2002
2001
Entidad federativa
Total
Estados Unidos Mexicanos
Aguascalientes
Baja California
Baja California Sur
Campeche
Coahuila de Zaragoza
Colima
Chiapas
Chihuahua
D.F.
Durango
Guanajuato
Guerrero
Hidalgo
Jalisco
México
Michoacán de Ocampo
Morelos
Nayarit
Nuevo León
Oaxaca
Puebla
Querétaro de Arteaga
Quintana Roo
San Luis Potosí
Sinaloa
Sonora
Tabasco
Tamaulipas
Tlaxcala
Veracruz de Ignacio de la Llave
Yucatán
Zacatecas
75.7
76.6
76.6
76.6
75
76.5
76.6
72.8
76.1
77.5
75.2
75.4
73.6
74.5
76.6
76.6
75.1
76.1
75.5
77
72.9
74.4
75.6
76
74.6
75.7
76.4
75.3
75.8
75.7
74.3
74.7
74.7
2002
Hombres Mujeres
73.4
74.5
74.5
74.3
72.8
74.2
74.4
70.5
73.9
75.3
72.9
73.3
71.2
72.2
74.4
74.4
73
73.8
73.2
75
70.6
72
73.4
74
72.3
73.2
74
73.1
73.8
73.7
72
72.4
72.5
77.9
78.8
78.7
78.8
77.2
78.8
78.8
75.2
78.2
79.6
77.5
77.5
76.1
76.8
78.8
78.8
77.2
78.5
77.9
79.1
75.2
76.9
77.7
77.9
76.8
78.2
78.8
77.5
77.8
77.8
76.6
76.9
77
Total
76
76.9
76.9
76.8
75.3
76.8
76.9
73.2
76.3
77.7
75.5
75.7
74
74.8
76.8
76.9
77.4
76.4
75.8
77.3
73.2
74.8
75.9
76.2
74.9
76
76.6
75.6
76.1
76
74.6
75
75.1
Hombres Mujeres
73.7
74.8
74.8
74.6
73.1
74.5
74.7
70.8
74.2
76.6
73.2
73.6
71.6
72.6
74.7
74.7
73.4
74.1
73.5
75.2
71
72.3
73.7
74.3
72.7
73.5
74.2
73.4
74.1
74
72.4
72.8
72.8
78.2
79
78.9
79.1
77.5
79
79.1
75.5
78.5
79.9
77.7
77.8
76.4
77.1
79
79
77.4
78.7
78.2
79.3
75.5
77.2
78
78.2
77.1
78.5
79
77.8
78.1
78.1
76.9
77.2
77.3
FUENTE: CONAPO. Proyecciones de la población de México, 1995 - 2020. México D.F. 1999
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1.2.1. Sistema legal en Derecho Penal Mexicano
El orden legal establecido en los códigos penales mexicanos, se divide en dos;
por un lado hay códigos que siguen la tradición del actual código penal federal de
1931, esto es, en el libro segundo siguen manifestando como primordial el objeto
de tutela referido a la seguridad del Estado, de la Nación o en contra de la Constitución, como podemos desprender de los códigos penales que conforman la República Mexicana como lo son: Campeche, Chihuahua, Coahuila, Colima, Durango, Estado de México, Jalisco, Michoacán, Sonora, Nayarit, Nuevo León, Oaxaca, Zacatecas,
Tamaulipas, Tlaxcala, Yucatán y de Defensa Social de Puebla.
Mientras que por otro lado los restantes códigos penales mexicanos, estiman
a la vida como principal valor de protección por la norma penal, esto es el orden legal se encuentra invertido, pues lo que encontramos en el Libro Segundo, son los
valores más esenciales para el disfrute y convivencia social del ser humano, como lo
es la vida, en este sentido sigue el orden constitucional protegiendo la libertad, la
seguridad y otros valores de mayor jerarquía que los anteriores, así pues los códigos
penales con un orden legal jerarquizado y congruente con un Estado de Derecho en
el Derecho Penal Mexicano son: Aguascalientes, Baja California, Baja California Sur,
Chiapas, Guanajuato, Guerrero, Hidalgo, Morelos, Quintana Roo, San Luis Potosí, Sinaloa, Tabasco, Querétaro, Veracruz y el Nuevo Código del Distrito Federal.
1.2.2. Concepto de orden legal
Los Códigos Penales en el Derecho Penal Mexicano y en especial el del Estado de Jalisco se encuentran estructurados de dos libros, El libro Primero que contiene un titulo preliminar, conteniendo directrices para la aplicación del mismo, estima la responsabilidad penal en la autoría y participación, las eximentes penales, establece el concurso y la reincidencia, sanciones y las medidas de seguridad, por señalar elementos de esta primera parte, para nosotros, este primer libro presenta vicios que no han sido superados por anteriores reformas, hace falta estimar en esta
primer parte los principios de las garantías penales como: Principio de Legalidad,
Igualdad, Jurisdiccionalidad, y de prohibición de aplicación analógica, principios imprescindibles para la aplicación de la última ratio del Estado, no quiere decir que no
estén contenidos en el código, sabemos de antemano que dichos principios se encuentran diseminados en distintos artículos del mismo, pero sería importante ilustrar estos principios en esta primera parte como base irrestricta de aplicación.
La segunda parte del Código Penal contiene la parte especial del derecho penal,
conocida también como; Libro Segundo, delitos en particular, o figuras típicas. Ahora
bien el legislador implementa en razón de economía la jerarquización de los valores
imprescindibles para la convivencia social, que no pueden ser todos sólo los imprescindibles para lograr este cometido, y que están plasmados en esta segunda parte.
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En este sentido se ha determinado que sean: la vida, la libertad, la seguridad,
la propiedad, el patrimonio, la intimidad etc. La forma de proteger los bienes jurídicos determinados por el legislador es mediante el uso de la sanción que puede ser
civil o penal. Así, el legislador establece cuando una persona comete un acto ilícito
que consiste en violar los bienes jurídicos de otra, o como lo decía Séneca “Delito
es todo lo que estima el legislador”, por este hecho le será aplicada una sanción punitiva que consiste en irrogar coactivamente un mal, es decir, privarlo de un bien entorno a su libertad.
El legislador puede jerarquizar los bienes jurídicos, determinando cuáles tienen más valor sobre otros y, en consecuencia, cuáles prevalecen en caso de confrontación. Doctrinalmente esta jerarquización es utilizada en algunas figuras jurídicas,
especialmente en el derecho penal, y conforman lo que se conoce como Orden Legal entendiendo éste como: La clasificación de tipos penales que no obedecen a ningún rigor científico, sino más bien, a una técnica legislativa en razón de economía y
de operatividad para agruparlos, obedeciendo a la jerarquización de la tabla de valores colocando en preferente lugar los delitos más graves.
En base a este concepto y teniendo en cuenta el orden legal del Código Penal
del Estado de Jalisco, manifestamos que el orden legal no se encuentra jerarquizado
pues los delitos más graves para todo ser humano deben ser aquellos que atentan
contra la vida, siguiendo la libertad, la seguridad, etc., pues al no estimarlos en la tabla de valores como los primeros, para el legislador no son imprescindibles. Para el
creador de la Norma los Delitos Contra la Seguridad Interior del Estado, encontrados en el Titulo Primero del Libro Segundo, deben de ser penados y castigados, aún
por encima de los valores básicos de toda convivencia humana como lo es la vida
dado que se les da un lugar muy apartado de aquellos que atentan contra la Seguridad de la Nación con el Titulo decimosexto, por lo tanto para poder disfrutar de los
demás valores se necesita de la vida por lo que sería viable invertir los títulos, con la
finalidad de establecer la importancia y el significado de la vida para los beneficiados
por el código penal estimado, que somos todos los jaliscienses.
En relación con los delitos de orden sexual, el orden legal actual del código
Penal del Estado de Jalisco no se encuentra claro al no delimitar los valores imprescindibles de los sujetos pasivos. Para empezar, estos delitos se encuentran diseminados en distintos artículos bajo rubricas que nada tienen que ver con los verdaderos
intereses particulares de las personas, El Titulo Quinto mantiene a los delitos contra la moral pública y en su Capítulo II y III respectivamente contiene la corrupción
de menores y el Lenocinio, ahora bien el Título undécimo bajo la rubrica Delitos
contra la seguridad y libertad sexual, contiene los Capítulos I, II, y III, Atentados al
pudor, Estupro y violación respectivamente, y por último el Titulo decimosegundo
con la rubrica de los delitos contra el orden de la familia en su Capitulo III y V, substracción, robo y tráfico de menores y el incesto. En relación al orden legal de estos
delitos deberían de contenerse en un solo Titulo que nosotros propondríamos la ru-
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brica de los delitos contra la libertad e indemnidad sexual, que más adelante desarrollaremos.
1.2.3. El orden legal en el Sistema Penal Mexicano en referencia a la
Protección sexual del menor
Este segundo bloque de códigos penales, contiene a su vez la protección del
orden sexual de menores de la siguiente manera: Aguascalientes13 Libro II, Título
II Delitos en contra de la Libertad sexual, seguridad sexual y Normal desarrollo psicosexual, Capitulo I Violación, Capítulo II Estupro, Capitulo III Abuso sexual, Título
X De los delitos Contra la moral Pública, Capítulo I Corrupción de menores, Capitulo II Lenocinio, Capítulo III Ultrajes a la moral. Título III Delitos en contra de la familia, Capitulo I Incesto.
Baja California14, Libro II, Sección Primera, Delitos Contra el Individuo, Titulo cuarto, Delitos Contra la Libertad y Seguridad Sexual de las Personas, Capitulo
I Violación, Capitulo II Abuso sexual, Capitulo III Estupro, Segunda Sección, Delitos
Contra la Familia, Capitulo VI Incesto, Sección Tercera, Titulo Cuarto, Delitos Contra la Moral Publica y las Buenas Costumbres, Capitulo I Corrupción de Menores, Capitulo II Lenocinio, Capitulo III Ultrajes a la Moral Publica.
Baja California Sur15. Libro II. Titulo Cuarto, Delitos Contra la Libertad Sexual. Capitulo I Violación, Capitulo III Estupro, Titulo Septimo. Delitos Contra la Familia, Capitulo III Incesto, Titulo Octavo. Delitos Contra la Moral Publica y las Buenas Costumbre. Capitulo I Ultrajes a la Moral Publica, Capitulo II Corrupción de Menores e Incapaces y Pornografía Infantil, Capitulo III Trata de Personas y Lenocinio.
Chiapas16: Libro II Titulo Cuarto Delitos Sexuales. Capitulo I Hostigamiento
Sexual, Abuso Sexual, Estupro Y Violación. Capitulo III Incesto, Titulo Octavo Delitos Contra la Moral Publica. Capitulo II Corrupción de Menores o Incapacitados
(pornografía infantil. Art. 208bis) Capitulo III Lenocinio.
Guanajuato17: Libro II Sección Primera, Delitos Contra las Personas, Titulo
Tercero De los Delitos Contra la Libertad Sexual, Capitulo I Violación, Capitulo II Estupro, Capitulo IV Abusos Eróticos Sexuales, Segunda Sección Delitos Contra la Familia, Titulo Primero De los Delitos Contra el Orden Familiar, Capitulo V Trafico de
Menores, Capitulo IV Incesto.
Guerrero18: Libro II Sección Primera Delitos Contra el Individuo, Titulo Octavo Delitos Contra la Libertad Sexual. Capitulo I Violación, Capitulo II Abuso Desho13
14
15
16
17
18
Código penal de Aguascalientes. Editorial Porrua, México 1999
Código penal de Baja California, Editorial Porrua, México 1990
Código penal de Baja California sur, Editorial Porrua, México 1995.
Código penal de Chiapas, Editorial Porrua, México 1991
Código penal de Guanajuato, Editorial Porrua, México 2002
Código penal de Guerrero, Editorial Porrua, México 1997
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nesto, Capitulo III Estupro Sección Primera Delitos Contra la Familia. Titulo Unico
Delitos Contra la Familia. Capitulo III Trafico de Menores. Capitulo VI Incesto. Sección Tercera Delitos Contra la Sociedad. Titulo Cuarto Delitos Contra la Moral y la
Integridad de los Menores e Incapaces, Capitulo I Pornografía y pornografía de Menores e Incapaces, Capitulo II Corrupción y prostitución de Menores e Incapaces,
Capitulo III Lenocinio y Trata de Personas.
Hidalgo19: Libro II Titulo Cuarto Delitos Contra la Inviolabilidad del Secreto,
Capitulo I Violación, Capitulo IV Estupro. Titulo Octavo Delitos Contra la Moral. Capitulo III Trafico de Menores, Capitulo VII Incesto. Titulo decimotercero Delitos
Contra la Moral Publica, Capitulo I Corrupción de Menores, Capitulo II Lenocinio,
Capitulo IV Ultrajes a la Moral.
Morelos20: Libro II Delitos Contra el Individuo. Titulo Séptimo Delitos Contra la
Libertad y el Normal Desarrollo Psicosexual, Capitulo I Violación, Capitulo IV Estupro,
Capitulo V Abuso Sexual. Titulo Décimo Delitos Contra la Familia Capitulo III Trafico
de Menores, Capitulo VI Incesto, Titulo Décimo Primero Delitos Contra el Normal Desarrollo de Menores Capitulo Unico Corrupción de Menores. Titulo Décimo Segundo
Delitos Contra la Moral Publica, Capitulo i Ultrajes a la Moral Publica, Capitulo II Lenocinio y Trata de Personas, Capitulo III Corrupción de Menores e Incapaces.
Querétaro21: Libro II Delitos Contra el Individuo Titulo Octavo Delitos Contra la Libertad e Inexperiencia Sexual. Capitulo I Violación, Capitulo II Abusos Deshonestos Capitulo III Estupro. Sección Segunda Delitos Contra la Familia, Titulo
Unico Delitos Contra la Familia Capitulo III Trafico de Menores, Capitulo VII Incesto. Sección Tercera Delitos Contra la Sociedad Titulo Octavo Delitos Contra la Moral Publica Capitulo I Corrupción y Explotación de Menores e Incapaces, Capitulo II
Lenocinio, Capitulo IV Pornografía con Menores o Incapaces.
Quintana Roo22: Libro II Sección Primera Delitos Contra el Individuo, Titulo
Cuarto Delitos Contra la Libertad Sexual y su Normal Desarrollo, Capitulo I Violación
Capitulo II Abusos Deshonestos, Capitulo III Estupro, Sección Segunda Delitos Contra la Familia, Titulo Primero Delitos Contra el Orden de la Familia, Capitulo III Trafico de Menores, Capitulo VII Incesto, Sección Tercera, Delitos Contra la Sociedad,
Titulo Cuarto Delitos Contra la Moral Publica, Capitulo I Corrupción de Menores,
Capitulo II Lenocinio.
San Luis Potosí23: Parte Especial Titulo SEGUNDO Delitos Contra la Paz, Libertad y Seguridad de las Personas, Capitulo VI Trafico de Menores, Titulo Tercero
Delitos Contra la Libertad y el Normal Desarrollo Psicosexual, Capitulo I Abuso Sexual, Capitulo II Estupro, Capitulo III Violación. Titulo Quinto Delitos Contra la Fa19
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21
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23
Código penal de Hidalgo, Editorial Porrua, México 1999
Código penal de Morelos, Editorial Porrua, 1996
Código penal de Querétaro, Editorial Porrua, 1989
Código penal de Quintana Roo, Editorial Porrua, México 2000
Código penal de San Luis Potosí, Editorial Porrua, México 1999
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milia, Capitulo I Incesto. Titulo Sexto Delitos Contra la Moral Publica, Capitulo I Corrupción de Menores.
Sinaloa24: Libro II Sección Primera Delitos Contra el Individuo, Titulo Octavo
Delitos Contra la Libertad Sexual y su Normal Desarrollo, Capitulo I Violación, Capitulo IV Estupro Sección Segunda Delitos Contra la Familia, Titulo Unico Delitos Contra
el Orden de la Familia Capitulo III Trafico de Menores, Capitulo VI Incesto. Sección
Tercera Delitos Contra la Sociedad Titulo Cuarto Delitos Contra la Moral Publica, Capitulo I Corrupción y Explotación de Menores e Incapaces Capitulo II Lenocinio.
Tabasco25: Libro II Sección Primera Delitos Contra las Personas, Titulo Cuarto
Delitos Contra la Libertad y la Seguridad Sexual y el Normal Desarrollo Psicosexual, Capitulo I Violación, Capitulo II Estupro, Capitulo IV Abuso Sexual. Sección Segunda Delitos Contra la Familia, Titulo Segundo Delitos Contra el Ejercicio de los Derechos Familiares, Capitulo II Trafico de Menores. Titulo Cuarto Delitos Contra la Institución del
Matrimonio y el Orden Sexual, Capitulo III Incesto. Sección Tercera Delitos Contra la
Sociedad. Titulo Décimo Cuarto Delitos Contra la Moral Publica. Capitulo I Lenocinio
y Trata de Personas, Capitulo II Corrupción de Menores.
Veracruz26: Libro II Titulo Cuarto Delitos Contra la Libertad y Seguridad Sexual,
Capitulo I Violación, Capitulo III Abusos Deshonestos. Titulo Séptimo Delitos Contra
la Familia. Capitulo VI Incesto. Titulo Décimo Primero Delitos Contra la Moral Publica,
Capitulo II Corrupción de Menores Capitulo III Lenocinio.
Distrito Federal27: Libro II Titulo Cuarto Delitos Contra la Libertad Personal,
Capitulo V Trafico de Menores, Titulo Quinto Delitos Contra la Libertad y la Seguridad
Sexual y el Normal Desarrollo Psicosexual. Capitulo I Violación, Capitulo II Abuso Sexual, Capitulo IV Estupro, Capitulo V Incesto. Titulo Sexto Delitos Contra la Moral Publica. Capitulo I Corrupción de Menores e Incapaces, Capitulo II Pornografía Infantil,
Capitulo III Lenocinio.
II.
EL BIEN JURÍDICO EN LOS DELITOS RELATIVOS AL DERECHO
PENAL SEXUAL, CON ESPECIAL REFERENCIA AL MENOR E INCAPAZ
2.1. Fundamentación doctrinal
El bien jurídico con relación a los delitos de orden sexual del menor e incapaz
se ha analizado desde la óptica doctrinal especializada, que ha generado importantes modificaciones en el derecho penal adjetivo nacional y extranjero28, como tam24
25
26
27
28
Código penal de Sinaloa, Editorial Porrua, México 1997
Código penal de Tabasco, Editorial Porrua, México 1989.
Código penal de Veracruz, Editorial Porrua, México 2000
Nuevo Código penal para el Distrito Federal, Editorial Porrua, México 2003
En España el titulo VIII del Código penal de 1995 que antes de esa fecha se denominaba Delitos contra la libertad sexual, cambio a partir de la reforma del 11/1999 de 30 abril por la rubrica Delitos contra la libertad e in-
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bién ha provocado una opinión dividida entorno al bien jurídico, la doctrina penal
española estima en personas mayores, menores e incapaces la libertad sexual, y la
intangibilidad o indemnidad sexual, para la doctrina penal mexicana será además de
la libertad sexual, el normal desarrollo psicosexual y la seguridad sexual. En este sentido, la libertad sexual no puede ser el bien jurídico tutelado por la norma penal,
puesto que el menor e incapaz carecen de esa libertad, que se puede traducir en la
manifestación del ejercicio de la libertad en general, apegada al desarrollo de la propia sexualidad, la inmadurez y el desconocimiento de esa libertad que se ve más restringida que otras como la del libre transito, ideológica, y de conciencia, puesto que
se estará resguardando un valor jurídico mas allá de la libertad, inherente al desarrollo personal del individuo, y que si esta es dañada perjudica a las demás prerrogativas del ser humano.
La libertad sexual desenfoca el problema del bien jurídico a este grupo vulnerable de víctimas, siguiendo la doctrina de MANUEL COBO DEL ROSAL, en el sentido de que se le atribuye esa libertad sexual a toda persona, por lo que argumenta
que no es jurídicamente en el mundo real por muy avanzado que sea el planteamiento29, para este autor se trata de algo distinto, pues argumenta que al año de nacer no se tiene libertad sexual30, como tampoco se tiene libertad cuando es menor
de edad e incapaz. Mientras que el desarrollo psicosexual para este grupo vulnerable puede o no ser objeto de violación, v. gr. al menor que se le introdujo vía oral el
miembro sexual del padrastro en un cuarto oscuro y fue descubierto por la madre
del primero, al realizar el examen medico-psicológico correspondiente, se resolvió
que al no saber este menor lo que se le había introducido a la boca, no se encontró
daño a su salud integral, por lo que se argumento que no se violo ningún bien jurídemnidad sexuales. Zamora Jiménez, Arturo, Derecho Penal Parte especial, ob. cit. p. 163 y ss., Sánchez Tomas
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29 Cobo Del Rosal M., El Delito de Rapto, en Comentarios a la Legislación Penal Tomo II, EDERSA, Madrid, 1983,
p. 385. si se mantiene lo contrario a este planteamiento, se cae en el error de no saber lo que se entiende por
libertad sexual, minoría de edad e incapacidad.
30 Ibid.
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dico31, estamos frente a un vació legal por no especificar concretamente lo que se ha
vulnerado, es por ello que la Indemnidad sexual será el bien jurídico tutelado por la
norma penal en este tipo de delitos.
El término Indemnidad es acuñado por el Prof. Dr. Manuel Cobo Del Rosal, en
una brillante exposición publicada en un artículo publicado en los Comentarios a la
legislación penal T. II (1983). Donde aducía que la palabra indemne indica puntualmente que el menor de doce años es jurídicamente protegido de cualquier ataque
sexual, que tiene el derecho a estar exento o libre de cualquier daño de orden sexual de ahí que precisa con este termino el valor indemnidad sexual del menor de
doce años e incapaz que puede ser enunciado jurídicamente como un derecho a la
indemnidad sexual.
2.2. Elementos del tipo penal
Conforme a la descripción legal del Estado de Jalisco, en este delito, el sujeto activo puede serlo cualquier persona física, sea hombre o mujer. El sujeto
pasivo puede serlo también cualquier persona, sin importar sexo o característica alguna.
El bien jurídico tutelado en este delito, estimado por la normatividad penal
del Estado de Jalisco es la libertad sexual mientras que para algunas legislaciones de
otros Estados de la República es el normal desarrollo psicosexual. El delito en estudio atenta contra la libertad de actuar o abstenerse en él ámbito sexual así como, sobre todo en menores, el normal desarrollo psicosexual.
Cuando una persona no desea tocar o ser tocada en una parte de su cuerpo y
esta conducta es realizada por otra, contra su voluntad se afecta la libertad sexual y
el normal desarrollo psicosexual. Ahora bien, tal y como lo señalan algunos de los
autores antes citados, cuando el sujeto pasivo resulta ser un menor de 12 años o
persona que se halle privada de sentido o padezca un trastorno mental del que abusa el agresor, se evidencia que no puede hablarse en tales casos de la libertad sexual
como bien jurídico protegido, por la sencilla razón de que la libertad sexual sólo
puede apoyarse en la capacidad para conocer y entender el significado de la entrega sexual, y faltándole tal capacidad a menores, personas que padezcan trastorno
mental o que se hallen privadas de sentido, también estará ausente la libertad sexual
que no podrá ser menoscabada. Así y para tales supuestos, más que de la libertad se31 Argumentación donde participa el Juez de la Corte Suprema de Justicia Argentina, el Dr. Raúl Eugenio Zaffaroni, para rebajar la pena al supuesto agresor de la víctima, en el caso de un portero que abusó sexualmente de
una menor obligándola a practicarle sexo oral. En el fallo los jueces (eran 3 porque era la Cámara, y no sólo
Zaffaroni), debaten y analizan en cual de tres figuras delictivas encuadraba el hecho: violación, abuso deshonesto, o corrupción de menores. Se llega a la conclusión de que fue abuso deshonesto, el caso es que al no encontrar lesión psicológica del menor no existe agravante que influya en la penalidad del agresor, con una pena
de tres años para el infractor. Fuente: Fallo de la C.N.Crim. Sala VI (Def.) - Elbert, Donna, Zaffaroni - (Sent. “S”,
sec. 23).c. 17.415, TIRABOSCHI,J. Rta: 26/4/89
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xual como bien jurídico protegido, debería hablarse de la intimidad, la intangibilidad
o preferentemente la indemnidad sexual.
La conducta típica se describe a través de la expresión realizare actos atentatorios contra la libertad sexual de la otra persona, por lo que la dinámica comisiva
habrá de referirse a la ejecución de actos físicos – contactos corporales, caricias, tocamientos de inequívoco carácter sexual, sin ánimo de yacimiento, y constándole al
agente la inexistencia de consentimiento de la víctima. Tales actos físicos consistirán
generalmente en manipulaciones o contactos sobre zonas erógenas y deberán revestir cierta gravedad y trascendencia, atendidas, además, circunstancias de lugar y
momento, en forma que puedan considerarse atentatorios contra la libertad sexual
de la víctima.
La falta de consentimiento de la víctima ha de acompañar necesariamente al
acto lúbrico ejecutado por el agente, que ha de ser consciente de la falta de consentimiento.
En cuanto al aspecto subjetivo, el agente ha de actuar con la finalidad de someter a la víctima a una acción lúbrica, aun cuando el móvil no sea erótico, con plena conciencia y voluntad de ello y conocimiento de la ausencia o falta de consentimiento de víctima.
Tratándose de un delito de mera actividad, el delito se consuma en cuanto se
materialice el tocamiento o acción lúbrica de que se trate.
Consecuentemente, la apreciación de esta variedad del abuso sexual – una de
las figuras del estupro – exige, de una parte, que el sujeto activo ocupe una posición
de superioridad respecto al sujeto pasivo, cualquiera que sea el origen o motivo de
la misma, y que aquél se prevalga de ésta, se aproveche de esta situación, en la conciencia de que de no existir dicha relación y aprovecharse de lla, no obtendría el
consentimiento. La relación de superioridad ha de ser manifiesta, o, lo que es lo mismo, evidente y notoria y el prevalimiento probado.
Finalmente, se exige que la existencia de tal situación de superioridad coarte
o limite la libertad de la víctima.
El engaño ha de ser grave y eficaz, de tal modo que a través de él se obtenga
el consentimiento de la víctima. La gravedad habrá de hacerse derivar de la entidad
de los medios o artificios utilizados, medios que sean capaces de afectar a aspectos
relevantes para la víctima (promesa de matrimonio, estado civil...), y eficaz, esto es,
que el medio artificioso o engañoso empleado esté urdido de tal modo que induzca a error a la víctima. El agente ha de tener la clara conciencia y voluntad de engañar para obtener el consentimiento de la víctima.
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h t t p : / / w w w. i n e g i . g o b . m x / e s t / c o n t e n i d o s / e s p a n o l / t e m a t i c o s / m e d i a no/ent.asp?t=mpob56&c=3233
AS NOVAS DIRETRIZES INTERNACIONAIS DOS
ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA SOB A
PERSPECTIVA DIPLOMÁTICA BRASILEIRA
D. Freire e Almeida
Mestre em Direito da União Européia pela Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra em Portugal.
Pós-Graduado em Ciências Jurídico-Comunitárias pela Faculdade de Direito
da Universidade de Coimbra em Portugal.
Especialista em Política Externa dos EUA pelo Departamento de Estado
dos Estados Unidos da América.
Professor no Curso de Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Brasil.
Professor de Direito Internacional Público e Privado na Faculdade de Direito de Bauru – ITE – Brasil.
Presidente do Consórcio de Inovação Tecnológica.
Advogado. Coordenador da Comissão de Relações Internacionais e Direito na Internet,
da Ordem dos Advogados do Brasil.
Webmaster da Revista Jurídico-Internacional na Internet www.lawinter.com .
A recente eleição presidencial nos Estados Unidos da América acarretará reflexos em diversas áreas da diplomacia brasileira. De fato, se existe um país que deve
ser levado em conta na formulação da política externa do Brasil, este país é o Estados Unidos da América - EUA1.
1
O presente artigo é baseado em parte do nosso livro: FREIRE E ALMEIDA, D. Bioterrorism Act - A Nova Política Externa dos EUA e a Eleição Presidencial Sob a Perspectiva Diplomática do Brasil. In: SAVINO, LUIS MARÍA, Las Elecciones em los Estados Unidos y el Impacto Global, BUENOS AIRES: Fundación Centro de Estudios
Americanos, 2004.
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Maior exemplo em qualquer discussão internacional, os Estados Unidos apresentam-se ao mundo exterior com uma gama de formidáveis ferramentas diplomáticas, militares e econômicas.
Neste sentido, o presente estudo objetiva colocar em contexto o relacionamento entre a política externa e a campanha presidencial norte-americana e a visão
diplomática brasileira, no contexto do Bioterrorism Act. O trabalho visa a oferecer
uma perspectiva brasileira do impacto da política externa dos EUA, neste novo mandato presidencial.
Como geralmente ocorre durante o desenrolar de uma campanha presidencial, inúmeras questões são levadas à tona, mas nesta eleição presidencial de 2004
tivemos duas questões principais. Uma é o bem-estar da economia; isso significa
crescimento econômico, empregos, a situação geral da política fiscal dos EUA. Por
outro lado, a sensação de bem-estar dos norte-americanos é desafiada pelo terrorismo interno e internacional, em particular após o envolvimento militar no Afeganistão e no Iraque.
Dentro deste contexto, elegemos um ponto fundamental e que deve nortear
nossas discussões: O Bioterrorism Act na guerra contra o terrorismo. Com efeito,
ponto indispensável à reflexão no atual paradigma das relações internacionais dos
EUA, e que trazem reflexos à diplomacia brasileira, em sua vertente focada nas exportações de produtos agrícolas.
Neste sentido, um dos mais importantes desafios do momento diz respeito às
relações comerciais agrícolas entre os E.U.A. e o Brasil visando a atingir um objetivo
que, por ora, não se verifica, ou seja, o de encontrar melhor negociação de produtos agrícolas. Neste momento em que se prega a globalização e o livre comércio, verifica-se, em contrapartida, um incremento do número de barreiras para tal, como
se denota da aplicação do Bioterrorism Act.
Em contrapartida, ponto fulcral no desenrolar dos acontecimentos internacionais, apresenta-se o terrorismo internacional, que demonstrou, em 11 de setembro
de 2001, seu lado mais abominável, vitimando milhares de civis, e que serviu de estopim para uma nova formulação diplomática norte-americana.
A impactante grandiosidade dos ataques suicidas simultâneos do dia 11 de setembro separaram a história do futuro de tudo o que havíamos observado anteriormente.
Portanto, pretendemos discutir neste trabalho a política externa dos EUA, no
combate ao terrorismo, neste novo mandato presidencial, sob a perspectiva diplomática brasileira.
CAPÍTULO I
A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA E A ELEIÇÃO PRESIDENCIAL
As mais de cinco décadas transcorridas desde o final da Segunda Guerra Mundial, têm sido anos de transformações sem precedentes nas relações internacionais
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e nas políticas presidenciais, ao ponto que, em razão dos câmbios fundamentais e
de grande alcance que se colocam, o mundo de hoje surpreenderia aos diplomatas
que em 1945 redigiram e negociaram a Carta da Organização das Nações Unidas em
1945.
Neste lapso temporal, é possível perceber e destacar a presença de fatores que
têm condicionado as Relações Internacionais dos EUA, e que são os seguintes,
exemplificativamente:
1 A Guerra Fria, em que as Relações Internacionais estiveram dominadas pelo
enfrentamento ideológico, político e estratégico entre dois mundos, liderado cada um deles por uma grande potência, os Estados Unidos da América
e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
2 O Fim da Guerra Fria, com o desmoronamento do império soviético e a
emergência de um mundo único em que os princípios da economia de
mercado, com seus dogmas de liberalização, competitividade e desregulação, alcançaram vigência universal, caracterizada, principalmente, pela adesão da República Popular da China na Organização Mundial do Comércio, e
a solicitação, mesma, por parte da Federação Russa.
3 Relevância das Organizações Internacionais, universais e regionais, como
instrumentos de cooperação permanente e institucional entre os países,
bem como ao progresso comercial das nações nelas envolvidas.
4 Relevância de novos tipos de conflitos, e que é exemplo o terrorismo, distintos dos tradicionais, que se desenrolam no interior dos Estados e não entre Estados. Conflitos que são acompanhados por violações graves e massivas dos Direitos Humanos Internacionais e que podem colocar em perigo
a manutenção da paz e segurança internacionais.
Hodiernamente, a razão pela qual a política externa foi importante na eleição de 2004 é o 11/92. Depois do acontecimento terrorista, os republicanos abriram uma imensa vantagem nas pesquisas de opinião como o partido em que a
opinião pública confiava para lidar com a política de segurança nacional e manter
essa vantagem seria uma das chaves para a reeleição do presidente. A diminuição
dessa vantagem era, sem dúvida, uma das metas dos democratas em seu esforço
para voltar à Casa Branca.
O Partido Republicano e George Bush estavam concentrados nas suas conquistas na Guerra do Iraque e na luta contra o terror. Em um breve histórico,
eles não se concentraram nos desafios que enfrentam os EUA em uma era pósguerra Fria, em que os Estados Unidos agora se encontram no ápice da sua autoridade em todo o mundo em uma nova era global. Desafios internacionais,
2
Vide MANN, Thomas. Interview with Thomas Mann on Campaign 2004. USA: U.S. Department of State’s Bureau of International Information Programs, 2004.
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que exigem que os Estados Unidos lidem de forma mais eficaz com regiões do
mundo em conflito potencial. George Bush e seu partido, devemos enfatizar,
não demonstraram interesse em abordar os novos desafios de segurança na sua
origem.
Por outro lado, as decisivas vitórias militares das coalizões lideradas pelos EUA
no Afeganistão e no Iraque foram seguidas de um desafio muito mais complexo de
reconstrução pós-guerra, dando oportunidade aos críticos do governo para fazer
disso um assunto da campanha.
Dentro deste novo contexto, o Presidente George W. Bush iniciou a implementação de novas exigências no comércio com os EUA, promulgando em Junho de
2002 a Lei de Bioterrorismo dos EUA, em resposta à possibilidade de atentados bioterroristas, estabelecendo uma série de rigorosas regras para a comercialização e importação de alimentos destinados ao consumo nos EUA, tais como: necessidade de
registro junto a FDA (incluindo nomeação de agente norte-americano para empresas estrangeiras), exigência de manutenção de arquivos, necessidade de aviso prévio para cada partida de alimentos destinadas ao consumo nos EUA e, por último,
possibilidade de detenção administrativa dos alimentos importados em discordância com a presente legislação. Tais exigências vieram confrontar3 as exportações de
produtos agrícolas brasileiras aos EUA4.
CAPÍTULO II
BIOTERRORSIM ACT E A POLÍTICA AGRÍCOLA DOS EUA SOB A PERSPECTIVA DIPLOMÁTICA BRASILEIRA
1.
O Bioterrorism Act
As mudanças no ambiente internacional, após o final da Guerra Fria, trouxeram à tona novas questões que nos desafiam.
De fato, como os Estados Unidos são a potência mundial predominante, e estão sempre em uma posição de destaque, surge, pois, a necessidade de assumir a liderança nessas novas questões.
Neste passo, o enfrentamento destas questões nos leva freqüentemente a assuntos como o tráfico de drogas, a falta de respeito aos seres humanos, o terrorismo internacional, a proliferação nuclear. Essas questões sempre foram importantes,
3
4
Vide BRAZILIAN EMBASSY. Barreiras a Produtos e Restrições a Serviços e Investimentos nos EUA. Washington
DC, Novembro, 2003. Disponível em: http://www.brasilemb.org/trade_investment/Barreiras_2003.pdf .
Em prosseguimento à implementação da Lei de Bioterrorismo dos Estados Unidos da América (“Bioterrorism
Act”), e a FDA (Food and Drug Administration), Agência do governo norte-americano responsável pelo controle dos alimentos e medicamentos naquele país, divulgou, no dia 12 de outubro de 2003, as propostas de regulamentação final concernente às exigências de registro empresas e de aviso prévio de importações previstas no
“Bioterrorism Act”.
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mas elas ficavam em segundo plano devido à Guerra Fria. Agora, após 11 de Setembro, assumiram os papéis principais.
Freqüentemente, os regimes não-confiáveis são aqueles que estão mais envolvidos nessas áreas de má conduta internacional. As sanções são uma maneira
lógica de tentar lidar com essas situações particulares, embora elas não devam
ser o primeiro objetivo, devendo, pois, serem esgotados todos os meios diplomáticos e políticos antes de se apelar para elas.
Neste passo, o presidente George W. Bush assinou a Lei de Bioterrorismo
(Public Health Security and Bioterrorism Preparedness and Response Act) em
12 de junho de 2002, que elencou uma série de restrições às exportações àquele país, colocando os exportadores brasileiros diante de um novo desafio.
Primeiramente, no tocante ao registro de estabelecimentos de alimentos.
Como se verifica pela análise da referida normativa5, a “Public Health Security
and Bioterrorism Preparedness and Response Act” – Lei de Segurança da Saúde Pública e Prevenção e Resposta contra o Bioterrorismo (Lei de Bioterrorismo) - de 2002, orienta o Secretário de Saúde e Serviços Humanos a tomar medidas para proteger o público de ameaças ou reais ataques terroristas no fornecimento de alimentos nos EUA. Neste sentido, para colocar em prática as cláusulas da Lei do Bioterrorismo, o FDA publicou em 10 de outubro de 2003 uma
norma final (que ainda está sujeita a ajustes), o registro de estabelecimentos de
alimentos, que exige que os estabelecimentos dentro ou fora do território dos
Estados Unidos da América que fabricam, processam, empacotam ou armazenam alimentos para consumo humano ou animal no país, registrem-se no FDA.
Conforme esta regulamentação, todos os estabelecimentos afetados devem efetuar o registro até 12 de dezembro de 20036.
Na possibilidade de um real ou potencial incidente relacionado a bioterrorismo, ou de uma epidemia causada por alimentos estragados, as informações
contidas no registro ajudarão o FDA a determinar o local e a fonte do evento e
permitirá que a agência notifique rapidamente os estabelecimentos afetados. Os
estabelecimentos podem efetuar o registro via Internet, por formulário impresso, ou ainda por meio de um CD-ROM enviado ao FDA, fornecendo as informações necessárias para obter o registro.
Entretanto, o estabelecimento no estrangeiro deve designar um agente nos
Estados Unidos, que resida ou mantenha um endereço comercial nos Estados Unidos. O agente deve estar fisicamente presente no país para efetuar o registro. De
fato, tal procedimento vem a onerar e a prejudicar a exportação brasileira aos EUA,
5
6
Office of Agricultural Affairs (OAA). Exporting to the U.S. Bioterrorism act. Disponível em: http://www.usdabrazil.org.br/black1.html Acesso em: 02.09.2004.
Office of Agricultural Affairs (OAA). Exporting to the U.S. Bioterrorism act. Disponível em: http://www.usdabrazil.org.br/black1.html Acesso em: 02.09.2004.
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em razão da obrigação de possuir agente, que por ora foi imposta. Estima-se que a
figura do agente custará, pelo menos, US$ 700 anuais7. Ademais, soma-se o fato de
qualquer alteração de dados ensejar atualização imediata8.
Em prosseguimento, o FDA solicita certas informações opcionais no formulário
de registro sob o pretexto de que essas informações ajudarão o FDA a se comunicar com
maior eficiência com os estabelecimentos que possam ser alvos de uma real ou potencial ameaça terrorista ou de outras emergências relacionadas a alimentos ou produtos
alimentares9.
Neste passo, caso o estabelecimento fora do território dos Estados Unidos não
efetuar o registro ou não atualizar informações, ou não efetuar o cancelamento de seu
registro de acordo com o regulamento passa a ser considerado ilegal, segundo a Federal Food, Drug, and Cosmetic Act - Lei Federal de Alimentos, Drogas e Cosméticos.
Tal situação autoriza o governo federal a promover uma ação civil em um tribunal
federal solicitando a punição de pessoas que cometeram ato ilegal, ou entrar com uma
ação criminal em tribunal federal para processar as pessoas responsáveis pela prática de
ato ilegal. Sendo exigido de um estabelecimento estrangeiro o registro e este não sendo efetuado, os alimentos provenientes dele, importados pelos Estados Unidos, estão
sujeitos a apreensão no porto de entrada ou a remoção para um estabelecimento seguro10. Neste ponto, trata-se de medida um tanto exagerada por parte da legislação em análise ao tratar o exportador brasileiro como um potencial terrorista.
Outro ponto diz respeito à comunicação prévia ao embarque de alimentos importados exigida pela “Public Health Security and Bioterrorism Preparedness and
Response Act” – Lei de Segurança da Saúde Pública e Prevenção e Resposta contra o
Bioterrorismo (Lei de Bioterrorismo). Desde 12 de dezembro de 2003, o FDA deve
receber comunicação prévia do embarque de alimentos importados pelos Estados
Unidos11. A partir de agora, a Lei do Bioterrorismo exige que estas informações se7
BRAZILIAN EMBASSY. Barreiras a Produtos e Restrições a Serviços e Investimentos nos EUA. Washington
DC, Novembro, 2003. Disponível em: http://www.brasilemb.org/trade_investment/Barreiras_2003.pdf
8 Os interessados devem preencher o formulário 3537 tanto para efetuar o registro como para atualizá-lo. Cada registro deve incluir o nome, o endereço e o número do telefone do estabelecimento e de sua empresa controladora (se for o caso); o nome, o endereço e o número de telefone do proprietário, operador ou agente responsável;
todos os nomes comerciais que o estabelecimento utiliza; as categorias de produtos alimentares aplicáveis, conforme regulamentação do FDA 21 CFR 170.3; uma declaração atestando que a informação prestada é verdadeira e correta e que a pessoa que faz o pedido de registro, caso não seja o proprietário, operador ou agente responsável, está
autorizada a efetuá-lo. Estabelecimentos estrangeiros devem fornecer o nome, o endereço e o número de telefone de seu agente nos Estados Unidos. Deverá também fornecer o telefone de contato para casos de emergência.
Em princípio será seu agente norte-americano, a menos que outra pessoa seja designada para função.
9 Office of Agricultural Affairs (OAA). Exporting to the U.S. Bioterrorism act. Disponível em: http://www.usdabrazil.org.br/black1.html Acesso em: 02.09.2004.
10 Office of Agricultural Affairs (OAA). Exporting to the U.S. Bioterrorism act. Disponível em: http://www.usdabrazil.org.br/black1.html Acesso em: 02.09.2004.
11 Segundo o governo dos EUA, a maioria das informações exigidas na comunicação prévia, segundo a regulamentação, são dados geralmente fornecidos pelos importadores ou brokers ao Bureau of Customs and Border
Protection (CBP) - Serviço de Alfândega e Proteção de Fronteiras - quando os alimentos chegam aos Estados
Unidos.
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jam também fornecidas ao FDA antes da chegada do alimento aos Estados Unidos.
Assim, o FDA vai rever, avaliar e estimar as informações e determinar se deve inspecionar o alimento importado, ensejando possibilidades de barreiras aos alimentos
recusados12.
A lista de produtos cobertos é vasta, elencando laticínios, frutas frescas, produtos de pesca, biscoitos, ração bovina, pó de guaraná, água, bebidas alcoólicas, e
que, segundo estudos13, correspondem a 20% das importações totais dos EUA.
Sendo a área agrícola uma das únicas em que o produtor brasileiro possui vantagem comparativa em relação aos parceiros do norte, as exigências mencionadas
atingem em cheio as pretensões brasileiras de aumento de negociações comerciais.
De fato, a comunicação prévia se aplica a alimentos para humanos e para animais
que sejam importados ou oferecidos para importação para os Estados Unidos.
Contudo, como se não bastasse, o aviso de confirmação significa que a informação foi recebida e está aparentemente completa14, mas uma revisão subseqüente
e manual feita pela equipe do FDA pode exigir a inspeção do alimento importado
no momento de sua chegada.
A falta de registro, de aviso prévio ou a falta de adequação dos dados de importação transmitidos têm como penalidade a detenção da mercadoria no porto,
com cobrança do armazenamento e despesas ao proprietário até correção das falhas, com possíveis sanções penais15.
Como conseqüência, segundo projeções da FDA, 16% dos atuais exportadores para os EUA devem deixar o mercado, com destaque aos brasileiros e a pequenas empresas, para as quais os novos custos e exigências operacionais não justificam
a continuidade de suas transações.
Portanto, como já destacado, as regras elencadas aplicam-se aos produtos regulados pela FDA. Os produtos sob a jurisdição do Departamento de Agricultura,
seja da agência de sanidade animal e vegetal, seja da área humana, devem ser objeto de iniciativas ampliadas de fiscalização, tanto nos pontos de origem como em território norte-americano16.
12 A comunicação prévia deve ser recebida e confirmada eletronicamente pelo FDA em não mais de 5 dias antes
da chegada da mercadoria a um porto norte-americano.
13 BRAZILIAN EMBASSY. Barreiras a Produtos e Restrições a Serviços e Investimentos nos EUA. Washington DC,
Novembro, 2003. Disponível em: http://www.brasilemb.org/trade_investment/Barreiras_2003.pdf
14 O alimento importado ou disponibilizado para importação com comunicação prévia inadequada está sujeito a
ser recusado e armazenado no porto ou em local seguro. O FDA não só instruirá sua equipe sobre as políticas
de mandado judicial, denúncia e proibição relacionadas com o fornecimento preciso e completo de uma comunicação prévia como também sobre as políticas da agência relacionadas a recusas, de acordo com os parágrafos 801 (m)(1) e 801(1).
15 BRAZILIAN EMBASSY. Barreiras a Produtos e Restrições a Serviços e Investimentos nos EUA. Washington DC,
Novembro, 2003. Disponível em: http://www.brasilemb.org/trade_investment/Barreiras_2003.pdf
16 BRAZILIAN EMBASSY. Barreiras a Produtos e Restrições a Serviços e Investimentos nos EUA. Washington DC,
Novembro, 2003. Disponível em: http://www.brasilemb.org/trade_investment/Barreiras_2003.pdf
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O Agribusiness nos EUA e a Perspectiva Diplomática Brasileira
A recente eleição para presidente dos Estados Unidos da América acarretará
reflexos em diversas áreas da economia brasileira, sendo, uma delas, em relação à
exportação de produtos agrícolas para aquele país. A atividade agrícola constitui-se
em uma das mais antigas e fascinantes práticas humanas e em todos os tempos esteve envolvida em controvérsias.
Um dos mais importantes desafios do momento diz respeito às relações comerciais agrícolas entre os E.U.A. e o Brasil visando a atingir um objetivo que por
ora não se verifica, ou seja, o de encontrar melhor negociação de produtos agrícolas. Neste momento em que se prega a globalização e livre comércio, verifica-se, em
contrapartida, um incremento do número de barreiras para tal, como se verifica no
implemento do Bioterrorism Act17.
Com efeito, a agricultura é o setor mais protegido no mundo, com 1.366 cotas tarifárias, e por onde necessitam ocorrer os maiores avanços nas negociações da
Organização Mundial do Comércio, bem como na Área de Livre Comércio das Américas, mesmo porque, internacionalmente, corresponde o agribusiness a um mercado de US$ 1 trilhão.
2.1. A Política Agrícola dos Estados Unidos da América
A mais produtiva e moderna agricultura do mundo sempre esteve e permanece protegida pelo governo. Para entender a dinâmica da economia norte-americana
é necessário compreender o movimento de sua agricultura conforme demonstram
muitos autores.
MANN & DICKINSON, já em 1980, caracterizavam o papel do Estado norteamericano no processo de colonização do Oeste, ressaltando que a base da moderna agricultura, desde cedo, teve a intervenção estatal a constituí-la, tanto aportando
capital como principalmente viabilizando-a tecnologicamente18.
Por sua vez, FRIEDMANN & McMICHAEL19 ressaltam que as facilidades de
crédito e investimentos em infra-estrutura pelo Departamento da Agricultura,
criado em 1862, deram apoio aos colonos que, protegidos pela cavalaria, expulsaram os indígenas permitindo a transformação do meio oeste no maior celeiro
do mundo.
A tecnologia gerada nas estações experimentais e escolas agrícolas, estabelecidas no período, a química agrícola (fertilizantes) e o melhoramento genético ca17 FREIRE E ALMEIDA, D. Bush e o Futuro das Exportações. Gazeta Mercantil, 30.11.2000, p. 02, Gazeta Mercantil Interior Paulista.
18 FREIRE E ALMEIDA, D. A União Européia face ao Mercosul em relação à Política Agrícola. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Portugal, 1999.
19 FRIEDMANN, H. & McMICHAEL, P., Agriculture and the State System, Sociologia Ruralis, 29 (2): 93-117, 1989.
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racterizaram o processo de colonização do oeste e patrocinaram a base da moderna
agricultura que, desde cedo, teve a intervenção estatal a constituí-la.
Ainda, em 1862, era editado o Homestead Act, transformando a terra de domínio público em propriedade privada calcada na pequena e média unidade e não
no grande latifúndio. A economia americana produziria, no rastro da expansão da
fronteira agrícola, produtora de matérias-primas, a agroindústria - e surge, desde
cedo, a base de interesses para sustentar a política agrícola, os empresários do comércio e do armazenamento de produtos agrícolas, a indústria de insumos e máquinas e finalmente os grandes agricultores.
Em 1933, era adotado o Agricultural Adjustament Act (AAA), prevendo a paridade de preços produto/insumos e suporte de preços para produtos básicos. A seu
turno, a Commodity Credit Coorporation (CCC) atuaria no funcionamento da produção e seguro contra risco, praticaria a aquisição de safras ou adiantaria recursos
para a comercialização.
O resultado dessas políticas, associadas a vários instrumentos, reverteu a queda de preços. A superprodução não tardou a reaparecer e a necessidade de escoamento via exportação passa a ser a alternativa.
Neste passo, ENCISO & ESQUIVEL20 mostram que o desenvolvimento da agricultura protegida pelo Estado, envolvendo todo o agribusiness, levou a um predomínio incontestável na oferta mundial de produtos agrícolas dos EUA - calcada em
produtividade elevada crescente, o que produz uma superioridade expressiva em
termos “competitivos”.
FRIEDMANN21 apontando aspectos da política agrícola americana pós-2ª guerra, coloca que a agricultura dos EUA exportou o seu fordism e a forma de produzir
foi irradiada para todo o mundo no bojo da expansão capitalista. Esse agribusiness
gestado no final do século XIX respondia, no final dos anos 60, por 40% do Produto Nacional Bruto dos EUA (KENNEY et alii, 1987)22.
A tecnologia agrícola, tanto nos insumos como na biologia e processamento,
a política de suporte ao consumo (food stamps), e a de estímulo à exportação (PL
480), associadas a outras medidas, fizeram da agricultura americana a supridora do
mercado mundial de produtos agrícolas.
A expansão da forma de produzir trouxe consigo a disseminação do regime
alimentar calcado na cadeia de cereais e de carnes para todo o mundo, substituindo
os regimes alimentares nativos.
Por conseguinte, como exportadores de alimentos, os EUA criaram um tipo de
dependência de países de terceiro mundo, anteriormente inexistente, a dependên20 ENCISO & ESQUIVEL, J., La Política Agrícola dos Estados Unidos, Revista de Comércio Exterior, México, 40(2):
1204-1215, 1990.
21 FRIEDMANN, H., Changes in the International Division of Labor: Agri-food Complexis and Export Agriculture, in FIEDLAND, W., ed. Towards a New Political Economy of Agriculture, Oxford, Westevel Press, 1991.
22 KENNEY, M, et alii, Midwestern Agriculture in US Fordism, Sociologia Ruralis, Netherlands, 29(2): 131-148, 1987.
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cia alimentar face à necessidade de aquisição de alimentos. BURBACH & FLYNN23
afirmam que a supremacia produtiva e o regime alimentar cravado em todas as partes do mundo, derivam de que a política agrícola dos EUA usava de uma estratégia
de hegemonia em nível mundial, calcada na defesa persistente da ideologia liberal,
utilizando-se de cereais como arsenal de guerra, embora se tenha claro que o mais
típico da política agrícola dos EUA foi a participação profunda do governo na economia agrícola. Os norte-americanos invocam os princípios do livre comércio e da vantagem comparativa dos defensores do Império Britânico no século XIX.
Em 1947, além das medidas de sustentação à produção agro-pecuária, os EUA
adotam um instrumento chamado PL 480, por meio do qual o governo poderia fazer empréstimos comerciais e conceder vantagens nas transações com países “amigos”, de modo a abastecê-los de produtos agrícolas - a sustentação interna complementa-se com a agressividade política de ampliar o mercado na frente externa, daí
surgindo uma inexorável supremacia produtiva.
Portanto, a partir da 2ª guerra, a tônica dos mecanismos institucionais e da política agrícola dos EUA possui quatro aspectos principais, conforme destaca GONÇALVES24:
1. regulação do sistema produtivo agrícola, removendo as flutuações de renda e os riscos e promovendo uma demanda estável para insumos agrícolas
e indústrias de processamento;
2. incorporação dos fazendeiros ao circuito de consumo nacional;
3. incentivo à redução da área para evitar maiores excedentes e um teto para
paridade de preços para controlar gastos;
4. envolver força de trabalho, fortalecendo sua legitimidade.
3.
A Perspectiva Diplomática Brasileira
Ulteriormente, medidas protecionistas têm recebido incrementos, conforme
procuramos ressaltar pela análise da Lei norte-americana contra o Terrorismo.
Em seu desenrolar, as restrições protecionistas em relação ao Brasil, por
exemplo, através de seu sistema de cotas, reduziu em 80% as exportações de açúcar
brasileiras para os E.U.A. A cota reservada ao Brasil é igual à das Filipinas, que não
exportam açúcar. Em meados da década de 80, as exportações de etanol para os Estados Unidos foram tributadas e desabaram 87%. O governo norte-americano subsidia a produção local de etanol a partir do milho, com custo social muito mais caro
que o da cana-de-açúcar. Quanto à soja, o produtor local tem garantido um preço
23 BURBACH, R. & FLYNN, P., Agroindústria nas Américas, Rio de Janeiro, Zahar, 1982.
24 GONÇALVEZ, José S. Estado e desenvolvimento tecnológico: os resultados da pesquisa agro-pecuária paulista
e a acumulação de capital, Agricultura em São Paulo, SP, 37(2):1-73, 1990 e Agricultura e proteccionismo: semelhança dos resultados das políticas agrícolas dos Estados Unidos, da Comunidade Europeia e do Brasil, Agricultura em São Paulo, SP, 41(1):149-168, 1994.
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mínimo suportado pelo governo norte-americano e acima dos preços internacionais. O óleo de soja brasileiro, para adentrar nos E.U.A., paga uma alíquota de
19,27%, o que na prática inviabiliza os negócios. O governo norte-americano “bate”
na indústria do cigarro, mas protege os produtores de tabaco. Por Lei, 75% do fumo
usado na fabricação dos cigarros deve ser nacional. Mas, as proteções não param por
aí. Em relação às frutas, o artifício protecionista muda de nome: barreiras fito-sanitárias. Para adentrar o mercado, as frutas brasileiras são submetidas a análises que
podem durar cinco anos, como ocorreu com o mamão. Já o suco de laranja deve pagar, por litro, 8 centavos de imposto aos E.U.A. Como resultado, a participação do
Brasil no mercado norte-americano caiu 35% desde 1992.
No entanto, mesmo com a justificativa de proteção em razão da manutenção
da população agrícola, segundo dados da FAO (Food and Agriculture Organization
of the United Nations) o emprego no setor agrícola norte-americano decresce ano
a ano. Nos E.U.A., sua política agrícola visou sim a dar sustentação ao desenvolvimento da economia calcada na expansão da agroindústria, internamente num primeiro momento e, externamente, na irradiação do padrão industrial norte-americano no pós-Segunda Guerra; os dois momentos com presença ativa do Estado e com
proteção efetiva.
Tanto os EUA quanto a União Européia têm excedentes agrícolas e competem
no mercado mundial de grãos com exportações apoiadas pelos respectivos governos. Suas políticas são extremamente semelhantes, bem como os aspectos que poderiam ser tomados como negativos, como a concentração da terra sustentada pelas políticas adotadas, a confluência de montantes expressivos de recursos nas mãos
de poucos beneficiários, a presença de alguns produtos como os mais contemplados com recursos: cereais e alimentos do complexo protéico-animal. Portanto, tais
efeitos possam facilitar o desvelamento de que historicamente as forças do mercado, atuando livremente, não estão na base de sustentação das políticas agrícolas,
sendo o principal fator de entrave ao livre comércio, dando continuidade ao protecionismo agrícola nos países ricos do norte. Nas negociações da Área de Livre Comércio das Américas, o tema é fundamental.
A seu turno, a Organização Mundial do Comércio (O.M.C.) substituiu o GATT
em 1995, herdando um difícil caminho para tornar o comércio livre, no setor agrícola, uma realidade. Nas mesas de negociações, os assuntos fluem com enorme embaraço. É nesse desenrolar histórico da economia geral que as políticas agrícolas foram sendo implementadas e impregnadas cada vez mais por artifícios espúrios, num
crescente distanciamento e em contradição à retórica do livre mercado. Contrastando com a teoria da vantagem comparativa, encontra-se o protecionismo, com impostos alfandegários proibitivos, cotas de importação e restrições, como agora no
caso do Bioterrorism Act.
Com a recente eleição nos EUA, esperamos atitudes que transformem a expressão subjetiva, de vontade ou desejo, em compromisso formal de banir os subsí-
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dios e restrições internacionais. Mesmo reconhecendo as perspectivas para o Brasil,
esta, para prosperar, e não ficar em boas intenções, demanda um esforço contínuo
e de revisões freqüentes, principalmente quando estes parceiros são sabidamente
desiguais e as bases do acordo são sempre as mesmas.
Por conseguinte, há necessidade de mudanças, para um comércio sem barreiras, onde cada país deveria produzir aquilo que faz a custos e qualidade. mais eficazes, levando-nos a uma melhor situação mundial, para um comércio realmente livre
Em prosseguimento, as sanções comerciais não devem ser a primeira resposta aos atos de comportamento irresponsável de pessoas não-confiáveis, como no
caso do terrorismo. Como se sabe, o uso mais freqüente das sanções é uma conseqüência do fim da Guerra Fria; o uso, pelos Estados Unidos, de sanções unilaterais
resulta de suas exclusivas responsabilidades de liderança.
Neste sentido, de acordo com (EIZENSTAT, 1997), os Estados Unidos tentam
fazer com que as sanções sejam multilaterais, quando possível, e tentam impor sanções unilaterais que maximizem o impacto sobre os países-alvo e minimizem o impacto sobre as empresas norte-americanas e os aliados dos Estados Unidos25. Em
suas palavras, as sanções econômicas são uma importante ferramenta de política externa, ficando a meio caminho entre a diplomacia e o uso da força. Elas são usadas
quando outras medidas são insuficientes e quando a sua imposição tem a probabilidade de mudar o comportamento do estado transgressor. Elas devem ser usadas
quando os efeitos diplomáticos tradicionais, assim como outros esforços de persuasão, tiverem falhado, e não como a primeira atitude a ser tomada. Elas geralmente
devem ser dirigidas apenas a regimes não-confiáveis que não agem em conformidade com as normas internacionais.
No caso do Bioterrorism Act, acreditamos que a norma com efeitos difusos
tem prejudicado o Brasil, país alheio aos atos terroristas, principalmente no que diz
respeito aos relacionados a nações amigas.
Em conformidade, para (PATE, 2001)
As tendências terroristas durante os últimos quinze anos indicam
que redes internacionais com uniões fracas, motivadas principalmente por ideologias religiosas que querem vítimas em massa, estão substituindo os terroristas mais ‘tradicionais’, cuja motivação
principal é política26.
Neste mesmo passo, EIZENSTAT ressalta que sanções não são uma ferramenta de política externa que possa ser usada da mesma forma em todas as ocasiões.
25 EIZENSTAT, Stuart. USIA, Vol. 2, Nº 4, Setembro de 1997, disponível em: http://usinfo.state.gov/journals/ites/0997/ijep/toc.htm . Acesso em: 10.09.2004.
26 PATE, Jason. Antraz e Terrorismo em Massa: O Que Vem a ser a ameaça de Bioterrorismo depois do 11 de Setembro? Disponível em: http://usinfo.state.gov/journals/itps/1101/ijpp/ip110108.htm, Acesso em: 10.09.2004.
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Daí nossa colocação acima, pois se o governo tiver a flexibilidade necessária na aplicação das sanções, ele elabora o regime das sanções de modo a atingir, de maneira
eficaz, a vulnerabilidade e o comportamento ofensivo do país-alvo, e ao mesmo tempo minimizar os danos aos interesses dos Estados Unidos, e, no caso, do Brasil.
As restrições e sanções comerciais têm como objetivo chamar a atenção para
a má conduta dos regimes não-confiáveis, alterar o comportamento que ameaça os
interesses nacionais e a estabilidade da comunidade internacional. As restrições do
Bioterrorism Act deveriam se dirigir à má conduta no que diz respeito aos direitos
humanos, terrorismo, entorpecentes, armas de destruição em massa, e outras áreas
nas quais tal conduta é considerada inaceitável pelos padrões mundiais, e não generalizar as condutas comparando-as às dos exportadores brasileiros, in casu.
Para (PATE, 2001), há limites ao que os Estados Unidos podem fazer em escala nacional e internacional para lidar com o bioterrorismo. Portanto, os políticos deverão aceitar o fato de que é impossível eliminar completamente a ameaça terrorista ou a ameaça do bioterrorismo. Por conseguinte, é de extrema importância que os
Estados Unidos se preparem para detectar um incidente de bioterrorismo e reagir a
ele, mas entre as medidas elencadas por PATE para tal, nenhuma se refere às definidas pelo Bioterrorism Act27.
Ademais, para aumentar a eficácia das sanções, seriam melhores as que têm
apoio e participação multilaterais. As sanções multilaterais têm maior probabilidade de
serem eficazes contra um país-alvo, demonstrando que a comunidade tem um objetivo comum e incluindo um número máximo de empresas e interesses comerciais no
mundo inteiro. Além disso, as sanções multilaterais minimizam os danos à competitividade dos Estados Unidos, distribuindo o fardo entre os países responsáveis28.
Neste passo, deve-se atentar que certas restrições, como a que nos dedicamos
neste estudo, sofrem oposição por parte de países considerados pacíficos, e também por parte dos interesses comerciais recíprocos. Esta oposição advém da conclusão de que as sanções não têm levado em consideração a maximização da pressão sobre os regimes-alvo e não têm minimizado, ao mesmo tempo, as tensões com
as nações aliadas, prejudicando os interesses comerciais, de ambos.
27 “Melhorar imediatamente o sistema de saúde pública. Isso inclui aumento dos financiamentos e recursos
que permitirão ao sistema de saúde pública aumentar sua capacidade. Designar e implementar uma extensa rede de vigilância para erupções de doenças. Conectar todos os grandes provedores de Internet e criar
centros de informações online que servirão como depósito central de informações sobre doenças. Dados em
tempo real permitirão aos funcionários de saúde monitorar a saúde pública e identificar acontecimentos
críticos antes que eles se tornem incontroláveis. Melhorar a capacidades dos laboratórios, de forma que um
número maior deles fossem identificar doenças patogênicas, utilizando procedimentos unificados que também necessitarão ser desenvolvidos. Educar e informar todos os provedores de serviços de saúde para que
reconheçam os sintomas e sinais de erupções suspeitas.” PATE, Jason. Antraz e Terrorismo em Massa: O Que
Vem a ser a ameaça de Bioterrorismo depois do 11 de Setembro? Disponível em: http://usinfo.state.gov/journals/itps/1101/ijpp/ip110108.htm, Acesso em: 10.09.2004.
28 EIZENSTAT, Stuart. USIA, Vol. 2, Nº 4, Setembro de 1997, disponível em: http://usinfo.state.gov/journals/ites/0997/ijep/toc.htm . Acesso em: 10.09.2004.
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No mesmo sentido, deve-se reconhecer que as restrições têm um custo para
os interesses econômicos dos Estados Unidos, bem como dos países exportadores
agrícolas, neste caso o Brasil. As restrições podem também prejudicar sobremaneira as relações dos Estados Unidos com os países-alvo e criar desvantagens para os
exportadores nos setores afetados pelas sanções. Em prosseguimento, as sanções
multilaterais não são as que têm as maiores probabilidades de atender aos interesses anti-terrorismo. Uma opção lógica em diplomacia, portanto, é restringir esse
acesso aos regimes não-confiáveis. Entre eles, não vemos a figuração do Brasil.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No século XXI, necessitamos de relações internacionais que abordem as ameaças de segurança clássicas e também compreenda as novas, mas uma nova abordagem
para um novo século, baseada em interesses econômicos e de segurança, mas nivelada pelo que é certo no mundo. Há de se buscar uma nova política direcionada para o
futuro, abordando problemas no início do seu desenvolvimento antes que se tornem
crises, abordando-os da forma mais próxima da fonte possível, e tendo as forças e recursos para lidar com essas ameaças o mais breve possível após a sua emergência.
Mesmo com nenhuma ameaça concreta de bioterrorismo alimentar tendo
sido notificada pelas autoridades norte-americanas, a hipótese de contaminações intencionais provenientes de salmonela, e-coli, antraz, rícino e botulismo, levou o governo dos EUA a promulgar o Bioterrorism Act.
Como pudemos verificar, as sanções e restrições comerciais não devem ser a
primeira resposta aos atos de comportamento irresponsável de pessoas não-confiáveis, como no caso do terrorismo internacional.
Neste sentido, deve-se tentar impor sanções unilaterais que maximizem o impacto sobre os países-alvo e minimizem o impacto sobre as empresas norte-americanas e os aliados dos Estados Unidos. As restrições que trouxemos à tona neste estudo devem ser dirigidas apenas a regimes não-confiáveis que não agem em conformidade com as normas internacionais.
No caso do Bioterrorism Act, acreditamos que a norma com efeitos difusos
tem prejudicado o Brasil, país alheio aos atos terroristas, principalmente no que diz
respeito aos relacionados a nações amigas.
Portanto, com a recente eleição nos EUA esperamos atitudes que transformem a expressão subjetiva, de vontade ou desejo, em compromisso formal de banir as restrições internacionais. Mesmo reconhecendo as perspectivas para o Brasil,
esta, para prosperar, e não ficar em boas intenções, demanda de um esforço contínuo e de revisões freqüentes.
Por conseguinte, há necessidade de mudanças, para um comércio sem barreiras, onde cada país deveria produzir aquilo que faz a custos e qualidade mais eficazes, levando-nos a uma melhor situação mundial, para um comércio realmente livre.
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REFERÊNCIAS
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PATE, Jason. Antraz e Terrorismo em Massa: O Que Vem a ser a ameaça de Bioterrorismo
depois do 11 de Setembro? Disponível em: http://usinfo.state.gov/journals/itps/1101/ijpp/ip110108.htm, Acesso em: 10.09.2004.
Proteção de dados pessoais no
âmbito judicial*
Carlos G. Gregório
Doutor em Direito e Ciências Sociais e bacharel em Matemática pela Universidade de Buenos Aires.
Investigador do Instituto de Investigação para a Justiça e professor de jurimetría
da Universidade Torcuato Di Tella.
Consultor do Banco Mundial, PNUD e Unicef.
Tem sido consultor na área de sistemas estatísticos e de informação judicial
na América Latina, Marrocos, Eslováquia e Moldova.
Mário Antônio Lobato de Paiva
Advogado em Belém.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará.
Assessor da Organização Mundial de Direito e Informática.
Coordenador da Comissão em Estudos em Direito da Informática da Ordem dos Advogados do Pará.
Membro da Associação de Direito e Informática do Chile, do Instituto Brasileiro de
Política e Direito da Informática e do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico.
I.
INTRODUÇÃO
Nos dias 11 a 15 de outubro de 2004, realizou-se na cidade de Cuzco, no
Peru o IV Congresso Mundial de Direito Informático com a presença de especia*
O presente ensaio é uma transcrição das mais importantes considerações feitas em duas exposições apresentadas no IV Congreso Mundial de Derecho e Informático realizado em Cusco no Peru. São elas: La Ponência
Magistrale sobre “La difusion dela Información Judicial em América Latina y el Caribe (Las Reglas de Heredia)” e o Taller sobre “Protección de Datos Personales en el âmbito Judicial”.
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listas em Direito da Informática de mais de vintes países de todos os continentes do planeta.
Nele foram debatidos inúmeros temas de relevância para evolução e solução
das questões judiciais advindas das relações estabelecidas pela e na internet bem
como o impacto da informática no universo jurídico.
O tema que nos coube foi inserido, dada a sua relevância, na temática sobre
Direitos Humanos na era Digital e abordou a questão da proteção de dados pessoais
no âmbito judicial. Nele expusemos e comentamos as regras de Heredia que são
orientações sobre o modo de difusão de informações pessoais dos litigantes em sites oficiais dos poderes judiciais.
Buscamos com as referidas regras nortear governos e poderes judiciais do
mundo todo no que concerne ao tratamento de dados pessoais em seus sites com
vistas a nos aproximar ao máximo do equilíbrio entre o direito de todos os cidadãos
a transparência judicial não só dos julgados, mas de todas as atividades judiciais e o
resguardo da privacidade e intimidade daqueles que procuram o Poder Judiciário
para solucionar seus conflitos.
A seguir, exporemos e comentaremos as regras de Herédia com o intuito de
alertar a todos os profissionais do direito sobre sua importância bem como a necessidade de sua aplicação para o resguardo de direitos duramente conquistados ao
longo dos séculos.
II.
REGRAS DE HERÉDIA**
a) Histórico
Em julho de 2003, o Instituto de Investigación para la Justicia Argentina, com
o apoio da Corte Suprema de Justiça da Costa Rica e patrocínio da International Development Research Centre do Canadá, reuniu em Herédia na Costa Rica representantes de diversos países da América Latina para discutir o tema “Sistema Judicial e
Internet” com fulcro de analisar as vantagens e dificuldades dos sites dos poderes judiciais na rede, os programas de transparência e a proteção dos dados pessoais.
Nesta reunião, que contou com a participação de diversos ministros e magistrados de Cortes superiores de vários países da América do Sul e Central, foram desenvolvidas diversas teses e exposições que culminaram na formulação do mais importante documento já elaborado sobre a difusão de informação judicial em internet estabelecendo-se regras mínimas a serem adotadas pelos órgãos responsáveis
por esta divulgação.
** Recomendações aprovadas durante o seminário Internet e Sistema Judicial realizado na cidade de Herédia
(Costa Rica), nos dias 8 e 9 de julho de 2003, com a participação de Poderes Judiciais, organizações da sociedade civil e acadêmicos de Argentina, Brasil, Canadá, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, México, República Dominicana e Uruguai.
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Referidas regras têm o fulcro de servir como modelo a ser adotado pelos tribunais e instituições responsáveis pela difusão de jurisprudência de todos os países
da América Latina. Suas premissas auxiliarão os tribunais no trato de dados veiculados em sentenças e despachos judiciais em internet sem que haja prejuízos a transparência de suas decisões.
Como palestrantes do evento e elaboradores das regras juntamente com os
demais, fomos autorizados a propalar a Carta de Herédia no Brasil entendendo ser
extremamente útil para evolução das relações estabelecidas pela informática e sistema judicial o debate e a utilização destas regras para o aprimoramento da Justiça eletrônica que deve ser corretamente usufruída sob pena de causar sérios prejuízos aos
jurisdicionados.
A seguir, exporemos as regras comentadas por nós, explicando sua finalidade,
conseqüências, manuseio, aplicação dentre outras utilidades para o mundo jurídico.
b) Finalidade
Regra 1. A finalidade da difusão em Internet das sentenças, e despachos judiciais será:1
(a) O conhecimento da informação jurisprudencial e a garantia
da igualdade diante da lei;
(b) Para procurar alcançar a transparência da administração da
justiça.
Comentários:
A regra acima deixa clara a necessidade de permanência da publicidade e
transparência das decisões judiciais estabelecidas pelas legislações da grande maioria dos Estados latino americanos. No Brasil, o artigo 5º.da Constituição Federal de
1988 estatui regra específica quanto à propagação de seus atos assegurando que:
NOTAS (Sintetizam os documentos preparatórios, não fazem parte das Regras)
1 Praticamente nenhum site do Poder Judicial em Internet definiu a finalidade de acumulação e difusão da informação. As Leis de Transparência de Michoacán e Sinaloa (México) obrigam a fazer essa definição. A referência
mais relevante é a Recomendação n. R(95)11 do Comitê de Ministros da União Européia:
- facilitar o trabalho para as profissões jurídicas proporcionando-lhes dados rapidamente, completos e atualizados;
- informar a toda pessoa interessada em uma questão de jurisprudência;
- fazer públicas mais rapidamente as novas resoluções, particularmente nas matérias de direito em evolução;
- fazer público um número maior de decisões que afetem tanto ao aspecto normativo como ao fático (quantum das indenizações, das pensões alimentícias, das penas etc);.
- contribuir para a coerência da jurisprudência (segurança jurídica – “Rechtssicherheit”) mas sem introduzir rigidez;
- permitir ao legislador a análise da aplicação das leis;
- facilitar os estudos sobre a jurisprudência.
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IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes;
Podemos observar também na Constituição da Colômbia a garantia da publicidade das decisões judiciais estabelecida no artigo 31 que dispõe: “Toda a sentença judicial poderá ser apelada ou consultada, salvo as exceções consagradas em
lei” e, no artigo 74 que: “Todas as pessoas tem direito a acessar documentos públicos salvo nos casos que estabeleça a lei”
Outro exemplo de publicidade encontra-se previsto no artigo 6º. da Constituição do México reformada em 1977 que dispõe da seguinte forma: “o direito a informação será garantido pelo Estado”. Vale ressaltar que referido artigo inserto na
Constituição foi à base para sanção no ano de 2002 da Lei de Transparência e Acesso à Informação Governamental.
Regra 2. A finalidade da difusão em Internet da informação processual será garantir o imediato acesso das partes, ou dos que tenham interesse legítimo na causa, a seus andamentos, citações ou
notificações.
Comentários:
A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, dá ênfase ao princípio da publicidade dos atos judiciais quando diz que:
Art. 5º - .XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações do seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou
geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (grifado);
Verifica-se que a publicidade das informações processuais em internet constitui
uma espécie de serventia sem precedentes para todos aqueles que fazem parte do contexto jurídico. Para advogados, as informações são necessárias na fundamentação de
petições com jurisprudência dos tribunais, consulta de processos sem que haja necessidade de dirigir-se à vara, opção pelo peticionamento eletrônico, informações institucionais que permitem saber quem são os julgadores dentre outras. Para as partes que,
independentemente de qualquer ajuda, podem consultar seus processos para saber o
andamento ou tirar dúvidas, e para o judiciário, que expõe de uma forma clara e transparente o teor de suas decisões e de seu próprio trabalho institucional.
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C) Direito de oposição do interessado
Regra 3. Será reconhecido ao interessado o direito de opor-se, mediante petição prévia e sem gastos, em qualquer momento e por razões legítimas próprias de sua situação particular, a que os dados
que lhe sejam concernentes sejam objeto de difusão, salvo quando
a legislação nacional disponha de modo diverso. Em caso de decidir-se, de ofício ou a requerimento da parte, que dados de pessoas
físicas ou jurídicas estejam ilegitimamente sendo difundidos, deverá ser efetuada a exclusão ou retificação correspondente.
Comentários:
O tratamento de dados pessoais deve ser feito de forma segura, respeitando os
direitos à intimidade e privacidade do cidadão. No Brasil, ainda não temos leis de proteção de dados e por isso devemos nos utilizar, por enquanto, de mecanismos constitucionais para viabilizar a proteção desses direitos, como por exemplo, o instituto do habeas data assegurado no artigo 5º. Inciso LXII que permite ao indivíduo mecanismo:
a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de
entidades governamentais ou de caráter público;
b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por
processo sigiloso, judicial ou administrativo;
Além disso, a Carta Magna também assegura o direito de petição a todos os
que dele necessitam para defesa de seus direitos:
Art. 5 XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:
a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direito ou
contra ilegalidade ou abuso de poder;
d) Adequação ao fim
Regra 4. Em cada caso os motores de busca se ajustarão ao alcance e finalidades com que se difunde a informação judicial.2
2
O fundamento desta regra é a Lei relativa ao limite jurídico das tecnologias da informação (de Québec, Canadá), artigo 24. “A utilização de funções de investigação extensiva em um documento tecnológico que contém
informações pessoais e que, por uma finalidade particular, se torna público, deve ser restrita a essa finalidade”.
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Comentários:
Através das palestras realizadas no Congresso Mundial e de nossa própria exposição, entendemos que a busca livre realizada nos sites de tribunais apesar de trazer uma publicidade profunda dos processos e julgamentos acaba também trazendo sérios prejuízos à intimidade e privacidade aqueles que procuram as cortes judiciais. Na oportunidade, demonstramos um desses prejuízos ocorridos na Justiça do
Trabalho brasileira justamente na hora da admissão do empregado na empresa o
empregador se valia da pesquisa livre disposta no site do tribunal do trabalho para
vetar o acesso ao emprego, entendendo que o empregado já tivesse ajuizado ação
na justiça do trabalho não poderia fazer parte de seu quadro de empregados por já
estar “viciado”.
Por isso, a necessidade da adequação dos motores de busca vedando em alguns casos os tipos de busca que trazem prejuízo à intimidade e privacidade do cidadão e, em outros, resguardando o anonimato dos litigantes.
Nesse aspecto, a Constituição Peruana estabelece em seu artigo 2º. em capítulo que aborda a questão de Direitos fundamentais da pessoa no item seis: Que os
serviços informáticos, computadorizados ou não, públicos ou privados, não disponibilizem informações que afetem a intimidade pessoal e familiar”.
Sobre a necessidade de explicitar a finalidade da Constituição da Guatemala, de 1985, seu artigo 31 (Título II- Direitos Humanos; Capítulo I – Direitos Individuais) garante que: “Toda pessoa tem o direito de conhecer o que dela conste em arquivos, fichas ou qualquer outra forma de registros estatais e, a finalidade a que se dedica esta informação, assim como a correção, retificação e
atualização”
e) Equilíbrio entre transparência e privacidade
Regra 5. Prevalecem os direitos de privacidade e intimidade,
quando tratados dados pessoais que se refiram a crianças, adolescentes (menores) ou incapazes; ou assuntos familiares; ou que revelem a origem racial ou étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, a participação em sindicatos; assim
como o tratamento dos dados relativos à saúde ou à sexualidade;3
3
A regra é inspirada no artigo 8.1 da Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho da Europa assim
como nas leis que definem dados sensíveis na Argentina (art. 2), Chile (art.2.g.), Panamá (art. 1.5.), Paraguai
(art. 4), e nos projetos de Costa Rica, Equador, México e Uruguai. Ver também a Recomendação 01-057 de 29
de novembro de 2001, da Comissão Nacional da Informática e das Liberdades:
(1) os editores de bases de dados e decisões judiciais, livremente acessíveis em sítios de Internet, se abstenham
de fazer figurar os nomes e os domicílios das partes e das testemunhas.
(2) os editores de bases de dados de decisões judiciais acessíveis em Internet, mediante pagamento por assinatura, se abstenham de fazer figurar os domicílios das partes e das testemunhas.
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ou vítimas de violência sexual ou doméstica; ou quando se trate de
dados sensíveis ou de publicação restrita segundo cada legislação
nacional aplicável4 ou tenham sido considerados na jurisprudência emanada dos órgãos encarregados da tutela jurisdicional dos
direitos fundamentais.5
Neste caso, considera-se conveniente que os dados pessoais das
partes, coadjuvantes, aderentes, terceiros e testemunhas intervenientes sejam suprimidos, anonimatizados ou inicializados6, salvo
se o interessado expressamente o solicite e seja pertinente de acordo com a legislação.
Comentários:
Equilíbrio foi à palavra-chave da palestra magistral apresentada no Congresso
Mundial. A busca de uma forma de harmonizar os institutos da intimidade e privacidade com a publicidade das decisões judiciais foi o desafio principal. Daí a recomendação de anonimato e supressão do nome das partes envolvidas em litígios dentre
4
5
6
A proteção das crianças e dos adolescentes é unânime em todas as legislações da América Latina. Muitos países da região têm suas próprias categorias de dados sensíveis, outros os estão desenvolvendo em novos projetos de lei. Em alguns casos a enumeração é mais ampla como as “atitudes pessoais” no Panamá, ou os “antecedentes penais” no projeto da Cosa Rica. Também em alguns países é muito rica a jurisprudência constitucional.
Por exemplo, a Lei sobre a Síndrome de Imunodeficiência Adquirida – SIDA (AIDS) (Argentina) – Artigo 2 (d)
e (e) – restringe a publicação dos nomes de portadores de HIV; a Lei sobre Expressão e Difusão do Pensamento (República Dominicana), “Artigo 41. Fica proibido publicar textualmente a denúncia e as demais atas de pronúncia criminal ou correcional antes que tenham sido lidas em audiência pública”e outras Leis de Imprensa
restringem a publicação de acusações penais (por exemplo, México (art. 9) que inclui divórcios e investigação
de paternidade.
Ver Acórdão do Pleno da Suprema Corte de Justiça da Nação 9/2003 (27 de maio de 2003) que estabelece os
órgãos, critérios e procedimentos para a transparência e acesso à informação pública desse alto tribunal:
Artigo 41. As sentenças executórias da Corte Suprema têm caráter de informação pública e serão difundidas
através de qualquer meio, seja impresso ou eletrônico, ou por qualquer outro que seja permitido por inovação
tecnológica.
Artigo 42. Com o fim de respeitar o direito à intimidade das partes, ao fazerem-se públicas as sentenças, omitir-se-ão seus dados pessoais quando constituam informação reservada em termos do disposto nas diretrizes
que a Comissão expeça sobre o caso, sem prejuízo de que aquelas possam, dentro da instância seguinte à desta Corte e até antes de proferir-se a sentença, opor-se à publicação de referidos dados, em relação a terceiros,
o que provocará que adquiram eles o caráter de confidenciais.
Em todo caso, durante o prazo de doze anos contado a partir da entrada em vigor deste Acórdão, nos termos
do previsto nos artigos 13, inciso IV, e 15 da Lei, os autos relativos a assuntos de natureza penal ou familiar
constituem informação reservada, em razão do que nos meios em que se façam públicas as sentenças respectivas deverão ser suprimidos todos os dados pessoais das partes.
Nos assuntos da competência deste Alto Tribunal, cuja natureza seja diversa da penal e da familiar, o primeiro
acórdão que neles se profira deverá esclarecer às partes o direito que lhes assiste de opor-se, em relação a terceiros, à publicação de seus dados pessoais, com o entendimento de que a falta de oposição configura seu consentimento para que a sentença respectiva se publique sem supressão de dados.
As referidas restrições à difusão das sentenças emitidas por este Alto Tribunal não operam conseqüências a
quem, nos termos da legislação processual aplicável, esteja legitimado para solicitar-lhes cópia.
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outras medidas que tendam a resguardar direitos constitucionalmente protegidos
como o da intimidade estatuído no artigo 5º. Inciso X que dispõe:
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das
pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
A Constituição Política do Peru, no artigo 2º, estabelece sobre o assunto o seguinte:
Diretos fundamentais da pessoa: 5. A solicitar sem expressão de
causa a informação que requeira e recebê-la de qualquer entidade pública, no prazo legal, com o custo que inerente ao pedido. Se
exceptuando as informações que afetem a intimidade pessoal e as
que expressamente se excluam por lei ou por razões de segurança
nacional.
No mesmo sentido, a Constituição da República Bolivariana da Venezuela
quando estabelece em seu artigo 60 que:
Toda pessoa tem direito à proteção de sua honra, vida privada, intimidade, própria imagem, confidencialidade e reputação. A lei limitará o uso da informática para garantir a honra e a intimidade pessoal e familiar dos cidadãos e cidadãs e o pleno exercício de
seus direitos.7
Existem ainda as leis gerais de proteção de dados pessoais que guardam estreita semelhança com a legislação européia, na Argentina (2000) Chile (1999), Panamá (2002), Brasil (1997),8 Paraguai (2000). Outros países têm avançado consideravelmente no que diz respeito à elaboração de leis sobre proteção de dados tais
como a Costa Rica, Colômbia, Equador, México e Uruguai.
A proteção da difusão de dados pessoais de crianças e adolescentes encontrase amplamente difundida na legislação latino americana, que alcança, inclusive, os
infratores da lei penal. No Chile, por exemplo, a lei sobre Liberdades de Opinião e
Informação e Exercício do Jornalismo, em artigo 33 dispõe:
É proibida a divulgação, por qualquer meio de comunicação social, da identidade de menores de idade que sejam autores, cúmplices ou testemunhas de delitos ou de qualquer outro antecedente
7
8
Cf. Constituição Espanhola de 1978, artigo 18.4: “A lei limitará o uso da informática para garantir a honra
e a intimidade pessoal e familiar dos cidadãos e o pleno exercício de seus direitos”.
Lei que regula o direito de acesso a informações e disciplina o rito processual do habeas data.
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que conduza a ela. Esta proibição se estenderá também no que diz
respeito às vítimas e algum dos delitos contemplados no Título VII,
“Crimes e simples delitos contra a ordem das famílias e contra a
moralidade pública”, do Livro II do Código Penal, a menos que
consintam expressamente a divulgação.
Nos Estados Unidos da América do Norte, existe o costume judicial de proteger as partes que, mediante a solicitação, requerem a substituição de seus nomes em
processos judiciais pelos de pseudônimos. A Concessão desta proteção foi inicialmente limitada a casos exclusivamente envolvendo menores, divórcios, custódia e
manutenção de filhos ou paternidade; porém, nos últimos anos, tem sido aplicado
também a pessoas jurídicas a exemplo dos seguintes casos: United States vs. Microsoft Corp.,9 foi permitida às três companhias a participação como amici curiae em
forma anônima sob o pseudônimo de “Doe Companies” e no caso todo o Federal
Bureau of Investigation (F.B.I.) como “John Doe Government Agency” em John Doe
Agency et al. vs. John Doe Corp.10
Regra 6. Prevalecem a transparência e o direito de acesso à informação pública quando a pessoa concernente tenha alcançado voluntariamente o caráter de pública e o processo esteja relacionado com as razões de sua notoriedade.11 Sem embargo, consideramse excluídas as questões de família ou aquelas em que exista uma
proteção legal específica.
9 56 F.3d 1448 (1995).
10 493 U.S. 146 (1989). Ver Adam A. Milani, ‘Doe vs. Roe: an argument for defendant anonymity when a pseudonymous plaintiff alleges a stigmatizing intentional tort’, 41 Wayne Law Review (1995) 1659-712. Um aspecto similar é o da proteção de segredos comerciais; no México pela Lei Federal de Transparência e Acesso a Informação Pública inclusive (artigo 14) “Também se considerará como informação reservada: ....II. Os segredos comercial, industrial, fiscal, bancário, fiduciário e outro como tal por uma disposição legal”.. Também nos EE.UU.
A Lei de Liberdade de Informação (FOLA) estabelece na Seção 552 ‘Informação Pública; ....(a) Toda a divisão
do governo deverá pôr a disposição do público sua informação de modo que se estipule a continuação:... (b)
A presente Seção não se aplicará a questões que fossem ou estivessem:...(4) segredos comerciais e informação
comercial ou financeira obtida de uma pessoa que seja considerada informação privilegiada e confidencial”. Na
Europa a Diretiva 95 protege somente as pessoas físicas apesar das leis existentes na Áustria Dinamarca, Itália
e Luxemburgo terem estendido a proteção às pessoas jurídicas.
11 A Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos
da OEA utiliza o conceito de “pessoas volutariamente públicas”: “10. As leis de privacidade não devem inibir
nem restringir a investigação e difusão de informação de interesse público. A proteção da reputação deve estar garantida somente através de sanções civis, nos casos em que a pessoa ofendida seja um funcionário público ou pessoa pública ou particular que se tenha envolvido voluntariamente em assuntos de interesse público.
Ademais, nestes casos, deve provar-se que na difusão das notícias o comunicador teve intenção de causar dano
ou pleno conhecimento de que se estava difundindo notícias falsas ou se conduziu com manifesta negligência
na busca da verdade ou falsidade das mesmas”.
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Comentários:
O artigo ressalta a importância da transparência judicial que deve ser mantida
de acordo com as necessidades coletivas dos jurisdicionados sendo regida pelo interesse público em detrimento do particular desde que respeite a intimidade do afetado. No caso específico, diz respeito à pessoa notória e pública onde o interesse público na divulgação dos fatos relacionados é necessário, evitando, no entanto, a publicidade de dados irrelevantes como o domicílio dos litigantes.
Nestes casos, poderão manter-se os nomes das partes na difusão da informação judicial, mas se evitarão os domicílios ou outros dados identificatórios.
As regras tratam de criar categorias nas quais é possível estabelecer uma preferência, prevalecendo a proteção da intimidade ou garantindo o pleno acesso à informação pública. As categorias utilizadas na regra 5 se assemelham às enumeradas
na Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho da Europa assim como
nas previstas nas leis que definem dados sensíveis na Argentina (art.2), Chile
(art.2.g.), Panamá (art. 1.5.), Paraguai (art. 4), e os projetos da Costa Rica, Equador
e México. Também se tem reconhecido na Regra 5 que existem categorias de pessoas que recebem proteção na jurisprudência constitucional, estabelecendo com
isso considerável dificuldade para que os textos legislativos possam resolver todos
os casos através de uma só norma de caráter geral. Apesar do que as vítimas estariam incluídas no segundo parágrafo da regra 5, uma vez que os redatores enfatizaram a questão referente às vítimas de violência sexual ou doméstica no primeiro parágrafo.
A definição dada à categoria de pessoas voluntariamente públicas é relacionada diretamente com o ponto 10 da Declaração de Princípios sobre a Liberdade de
Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da O.E.A. e com alguns Códigos de Ética Jornalística. Também parece afastar-se da jurisprudência da
Califórnia, que considera também que as pessoas involuntariamente públicas perdem parte de sua privacidade.12
Porém, nos dois extremos (ver dados sensíveis e pessoas voluntariamente públicas) das regras 5 e 6, podemos observar uma prevalência, para a situação residual, estimando-se necessária limitação da capacidade de busca existente em sites oficiais dos Poderes judiciais (Regras 4 e 7). A adequação dos motores de busca, a finalidade tem como
antecedente a lei relativa ao marco jurídico das tecnologias da informação (de Quebec,
Canadá), que em seu artigo 24 prevê: “A utilização de funções de investigação extensiva em um documento tecnológico que contenha informações pessoais e que, por
uma finalidade particular, se público, deve ser restringida a esta finalidade”
12 Gary Williams, ‘El derecho constitucional a la privacidad en California ¿Protege a las figuras públicas de la publicacion de informacion confidencial personal?’, en Internet y Sistema Judicial en América Latina, C. Gregorio & S. Navarro (eds.) (2004) 325-338, Ad-Hoc, Buenos Aires.
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Durante a discussão das Regras, seus redatores rejeitaram outras categorias
para precisar o equilíbrio entre acesso à informação e à intimidade. Por exemplo,
não existiu consenso em distinguir em função da instância processual, como se propunha em alguns documentos preparatórios (esta proposta incluía na Regra 6 as
sentenças ditadas em via recursal pelo mais alto Tribunal de cada Estado).
Regra 7. Em todos os demais casos se buscará um equilíbrio que
garanta ambos os direitos. Este equilíbrio poderá instrumentalizar-se:
(a) nas bases de dados de sentenças, utilizando motores de busca
capazes de ignorar nomes e dados pessoais;
(b) nas bases de dados de informação processual, utilizando como
critério de busca e identificação o número único do caso.
Comentários:
A regra especifica as medidas a serem adotadas pelos tribunais no sentido de
assegurar a publicidade e resguardar os direitos de intimidade dos litigantes através
de procedimentos deixem no anonimato o nome das partes bem como seus dados
pessoais. A criação de número que identifique a lide, podendo, então, a parte interessada ter informações sobre o processo desde que conheça a numeração, evitando, assim, exposição indiscriminada dos litigantes para fins abusivos e contrários ao
direito do país.
As Regras de Herédia são linhas de discussão judicial e acadêmica, porém provavelmente o êxito que lhe é reconhecido é justamente de haver explicitado o dilema que existe entre o direito de acesso à informação judicial, e que tipo de equilíbrio que se quer alcançar entre esses direitos que podem vir a causar conflitos e gerar atos discriminatórios.13
É natural que os legisladores não imaginaram a existência e o impacto da internet a partir da interpretação de acadêmicos e, portanto, é possível que este seja
um caso de lacuna axiológica (presença de uma solução insatisfatória) e não de uma
lacuna normativa (ausência de uma solução). Em outros campos do direito, tem-se
observado que a generalização da internet – ou de outros avanços tecnológicos –
tem produzido uma “necessidade” de modificar o direito, levando-se em consideração a circunstância que não existiam até então – porque até aquele momento não
poderia ter havido - além de não terem sido vistas pelo legislador.
13 Provavelmente não existiu suficiente consenso entre os que firmaram a Declaración de Copán—San Salvador
emitida pela VIII Encontro Iberoamericano de Presidentes de Cortes Supremas e Tribunais Supremos de Justiça —realizada de 21 a 25 de junho de 2004 em Honduras e El Salvador— pois não vinculou as novas tecnologias de informação com a transparência judicial e somente recomendou ações sobre a proteção de dados pessoais em relação aos centros de Documentação Judicial.
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faculdade de direito de bauru
Quiçá, para resolver este desacordo, faz-se necessário discutir qual o sentido
da palavra “público” nos textos constitucionais e nas leis. Antes da internet, era comum a interpretação de que os expedientes judiciais eram públicos significando que
qualquer pessoa podia solicitar o julgado, lê-lo, e - salvo algumas poucas exceções
legais - conferir-lhe a publicidade. Depois da internet, multiplicaram-se os sentidos
atribuídos à palavra ou o caráter “público” (i) posto à disposição do público; i.e, incluídos no direito de acesso à informação; (ii) dar publicidade; i.e. forçar o conhecimento por parte do maior número de pessoas possível - ou de determinadas pessoas. E neste contexto, resulta – por exemplo - razoável que os juízes dêem publicidade dos julgados, cuja finalidade é notificar ou criar a presunção de notificação.14
Hoje, a condição de “público” é vinculada à necessidade de deixar determinado documento acessível ao público com a finalidade de facilitar o controle por parte do cidadão dos atos de governo. Sem embargo, a existência de bases de dados no
âmbito dos Estados chamados “públicos” e bases de dados em mãos de pessoas ou
organizações privadas ou não estatais, denominadas, seguindo o mesmo critério
“privados”, como afirma Cosentino não necessariamente transformam a condição
dos dados pessoais que podem conter ou não diminuição do nível de proteção que
a lei lhe assina.15
Se enfocarmos como uma lacuna axiológica, como um desacordo valorativo
ou como uma questão semântica, resulta necessário redimensionar o caráter público da informação frente às novas tecnologias, as novas finalidades, os riscos e os
conflitos de normas, e reestruturar o equilíbrio perdido.
Regra 8. O tratamento dos dados relativos a infrações, condenações penais ou medidas de segurança somente poderá efetuar-se
sob controle da autoridade pública. Somente poderá ser realizado
um registro completo de condenações penais sob o controle dos poderes públicos.16
Comentários:
Referidos casos foram também amplamente discutidos no Congresso Mundial
por trazerem todo tipo de segregação social quando descobertos ou dispostos de
forma pública a todos. Por isso, a necessidade de ser mantido um controle por au-
14 Victoria S. Salzmann, ‘Are Public Records Really Public?: the collision between the right to privacy and the release of public court records over the Internet’, 52 Baylor Law Review (2000) 355-79.
15 Guillermo Cosentino, ‘La información judicial es pública pero contiene datos privados, como enfocar esta dualidad’, en Internet y Sistema Judicial en América Latina, C. Gregorio & S. Navarro (eds.) (2004) 211-233, AdHoc, Buenos Aires.
16 Praticamente coincide com o Artigo 8.5 da Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e é coerente com a maioria das leis nacionais sobre registros penais e com a jurisprudência constitucional.
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toridades públicas para que o controle, manuseio e armazenamento desses dados
são sejam utilizados de forma indevida e prejudicial ao afetado.
Sem embargo, a Regra 5 não inclui explicitamente os antecedentes penais
(por exemplo, o projeto de Lei de Proteção das Pessoas Frente ao Tratamento de Dados Pessoais da Costa Rica (artigo 2) que inclui, entre os dados sensíveis, os antecedentes delitivos). Indiretamente, a Regra 8 impediria uma difusão indiscriminada
dos dados pessoais de acusados ou condenados por delitos, e à medida que - a partir dessa difusão - qualquer particular poderia construir bases de dados de antecedentes penais. Entre as alternativas que não contaram com consenso estavam a de
incluir a Regra 5 aos condenados primários (excluindo os reincidentes).
A difusão, no início, de casos penais (por exemplo, os sorteios dos julgados
parecem ser a que representam maior vulnerabilidade por duas razões: (i) as estatísticas assinalam que grande parte das ações penais terminam sem sentença definitiva; e (ii) que difundir ações penais obrigará a difundir brevemente a decisão judicial que dá por encerrado o processo (seja absolvição, condenação, sobrestamento,
ou arquivamento), se não for assim estaríamos difundindo informação incompleta e
não se ofereceria aos imputados à possibilidade de estabelecer com o mesmo nível
de publicidade que a ação não prosperou (situação que violaria a presunção de inocência)
Nos Estados Unidos da América, o tema de acesso aos antecedentes penais é
motivo de ampla discussão.17 Levando-se em consideração as opiniões dos cidadãos,
o problema começa a complicar-se, por exemplo, se se tratar de informação sobre
arrestos, sobre condenações, inclusive quanto aos adolescentes, também é complexo discutir sobre se o acesso depende do tipo de delito. A complexidade do equilíbrio entre esses direitos e a mencionada discussão se agrega aqui a segurança pública que é parte normalmente de um debate muito mais amplo.
Regra 9. Os juízes, quando redijam suas sentenças, despachos e
atos,18 farão seus melhores esforços para evitar mencionar fatos
inócuos ou relativos a terceiros, buscarão somente mencionar os
fatos ou dados pessoais estritamente necessários para os fundamentos de sua decisão, tratando de não invadir a esfera íntima
das pessoas mencionadas. Excetua-se da regra anterior a possibilidade de consignar alguns dados necessários para fins meramente
estatísticos, sempre que sejam respeitadas as regras sobre privacidade contidas nesta declaração. Igualmente se recomenda evitar
17 U.S. Department of Justice, ‘Privacy, Technology and Criminal Justice Information: Public Attitudes Toward
Uses of Criminal History Information’
57 Poderiam também considerar-se os editais (por exemplo, são comuns os editais em que se cita a um dos pais
para autorizar a crianças ou adolescentes a viajar ao exterior do país, os editais contêm os dados pessoais das
crianças e dos pais, e ademais estão Internet, nos sites de internet de jornais, com facilidade de busca.
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os detalhes que possam prejudicar a pessoas jurídicas (morais) ou
dar excessivos detalhes sobre o modus operandi que possam incentivar alguns delitos.19 Esta regra se aplica, no pertinente, aos editais
judiciais.
Comentários:
A regra traz consigo recomendação aos prolatores das decisões para que tenham maior zelo no ato de redigir decisões evitando a inserção de dados dos litigantes que não tenham necessariamente importância para o deslinde da questão.
Se forem mantidas as tendências atuais, o número de sentenças judiciais acessíveis em bases de dados será cada vez maior e, em conseqüência, será também possível manter a indexação da sentença (com palavras chave ou com sumários). A falta de seleção introduz o problema e o conceito da saturação, ou seja, a “destruição
de um corpo coerente de jurisprudência pela inundação criada pelos precedentes
redundantes”.
A redundância derivada da saturação poderia ser resolvida com o desenvolvimento da inteligência artificial, ou com a informação adicional que por hora significa maiores custos. Outra opção é tender para as decisões judiciais relativamente estandartizadas – porém, isto é hoje provavelmente utópico para a tradição judicial latino-americana.
Regra 10. Na celebração de convênios com editoriais jurídicos deverão ser observadas as regras precedentes.
Comentários:
Como a difusão da jurisprudência não é propagada apenas pelos tribunais estendendo-se também à revista e outros periódicos, recomendamos a revisão por
parte das cortes das autorizações concedidas às editoras no sentido de que suas publicações sejam adequadas às regras estabelecidas na Carta de Herédia.
A edição de revistas de jurisprudência tem sido um negócio editorial em vários países da América Latina. Supõe-se um árduo trabalho para a obtenção das sentenças - normalmente em papel - selecionadas e editadas em volumes. Hoje, os custos têm sido reduzidos notavelmente, pois as sentenças podem se obtidas em formato eletrônico, sendo a seleção feita a partir da geração de grandes bases de dados
e a edição tem optado também pelos suportes informáticos e os buscadores em si20 Para o caso das pessoas jurídicas (morais) busca-se evitar difundir informação sobre propriedade industrial ou
segredos comerciais. No caso dos moda operandi, o fundamento está em comentários realizados em relação
com delitos que requerem sofisticação (por exemplo, seqüestros ou estelionatos).
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tes na web. Muitos poderes judiciais têm tido dificuldades ao negociar com estas empresas, no que diz respeito ao envio para editoração de decisões impressas e/ou em
suportes informáticos, no sentido de saber a maneira de pagamento e/ou parceria
advinda da publicação de coleções impressas ou do fornecimento de chaves de
acesso de dados na internet. A Regra 10 poderia ser o começo para reequilibarar
esta negociação.
f ) Definições
f.1) Dados pessoais: os dados concernentes a uma pessoa física ou moral,
identificada ou identificável, capaz de revelar informação sobre sua personalidade,
suas relações afetivas, sua origem étnica ou racial, ou que se refiram às características físicas, morais ou emocionais, à sua vida afetiva e familiar, domicílio físico e eletrônico, número nacional de identificação de pessoas, número telefônico, patrimônio, ideologia e opiniões políticas, crenças ou convicções religiosas ou filosóficas, estados de saúde físicos ou mentais, preferências sexuais ou outras análogas que afetem sua intimidade ou sua autodeterminação informativa. Esta definição se interpretará no contexto da legislação local sobre a matéria.
f.2) Motor de busca: são as funções de busca incluídas nos sites de Internet
dos Poderes Judiciais, que facilitam a localização e recuperação de todos os documentos no banco de dados, que satisfazem as características lógicas definidas pelo
usuário, que possam consistir na inclusão ou exclusão de determinadas palavras ou
família de palavras; datas; e tamanho de arquivos, e todas suas possíveis combinações com conectores booleanos.
f.3) Pessoas voluntariamente públicas: o conceito se refere a funcionários públicos (cargos efetivos ou hierárquicos) ou particulares que tenham se envolvido voluntariamente em assuntos de interesse público (neste caso, se julga necessária a
manifestação clara de renúncia a uma área determinada de sua intimidade).
f.4) Anonimizar: todo tratamento de dados pessoais que implique que a informação que se obtenha não possa associar-se a pessoa determinada ou determinável.
g) Alcances das regras de Herédia
Alcance 1. Estas regras são recomendações que se limitam à difusão em Internet ou em qualquer outro formato eletrônico de sentenças e informação processual.
Portanto, não se referem ao acesso a documentos nos cartórios judiciais nem a edições em papel.
Alcance 2. São regras mínimas no sentido da proteção dos direitos de intimidade e privacidade; por isso, as autoridades judiciais, ou os particulares, as organizações ou as empresas que difundam informação judicial em Internet poderão utilizar procedimentos mais rigorosos de proteção.
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Alcance 3. Embora estas regras estejam dirigidas aos sites em Internet dos Poderes Judiciais, também são extensivas – em razão da fonte de informação – aos
provedores comerciais de jurisprudência ou informação judicial.
Alcance 4. Estas regras não incluem nenhum procedimento formal de adesão
pessoal nem institucional e seu valor se limita à autoridade de seus fundamentos e
sucessos.
Alcance 5. Estas regras pretendem ser hoje a melhor alternativa ou ponto de
partida para obter um equilíbrio entre transparência, acesso à informação pública e
direitos de privacidade e intimidade. Sua vigência e autoridade no futuro podem estar condicionadas a novos desenvolvimentos tecnológicos ou a novos marcos regulatórios.
III. DANOS CONCRETOS
Ao longo dos debates, pudemos perceber que, em vários casos ocorridos em
tribunais da América Latina, houve prejuízos efetivos com a vinculação indiscriminada de dados pessoais do cidadão que pode ter sua privacidade e intimidade devassadas por qualquer indivíduo que tenha acesso à rede mundial de computadores.
No Brasil, por exemplo, vários trabalhadores tiveram o seu direito a livre acesso ao emprego vetado pelo futuro empregador em virtude da disponibilização de
consulta por nome dos reclamante nos sites dos tribunais. Tal procedimento trouxe
reconhecidos e concretos prejuízos a milhares de trabalhadores tanto que foi admitido pelos próprios tribunais que alguns anos mais tarde resolveram abolir este tipo
de pesquisa.
Vários tribunais de justiça comuns continuam a trazer prejuízos aos jurisdicionados ao veicularem em processos judiciais dados que invadem a esfera íntima do
indivíduo, como, por exemplo, seu estado de saúde ou doenças que levam a pessoa
a sofrer situações discriminatórias como AIDS.
Sendo assim, consideramos que este tipo de violação do direito à intimidade
e privacidade daquele que procura a Justiça Estatal para solucionar suas inquietações gera o direito a pleitear uma indenização respectiva e proporcional ao dano
causado por intermédio da teoria do risco administrativo que responsabiliza civilmente o Estado a ressarcir o lesado pelos danos ocasionados em virtude de sua conduta.
IV. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
Teoria adotada atualmente pela grande maioria dos doutrinadores é a de que
a responsabilidade estatal é de natureza objetiva compreendendo atos omissivos ou
comissivos que independem de prova de culpa. A Constituição Federal do Brasil
1988 não deixa dúvidas quanto à sua responsabilidade quando dispõe que:
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Art. 37, § 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que
seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Em seu artigo 5º, que prevê a indenização por dano moral que deverá ser fixada conforme o prudente arbítrio do juiz:
Art.5. X- são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a
imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo
dano material ou moral decorrente de sua violação.
José Cretella20 ao abordar a questão da responsabilidade civil do Estado,
entende que:
a) a responsabilidade do Estado por atos judiciais é espécie do
gênero responsabilidade do Estado por atos decorrentes do serviço público; b) as funções do Estado são funções públicas, exercendo-se pelos três poderes; c) o magistrado é órgão do Estado;
ao agir, não age em seu nome, mas em nome do Estado, do qual
é representante; d) o serviço público judiciário pode causar danos às partes que vão a juízo pleitear direitos, propondo ou contestando ações (cível); ou na qualidade de réus (crime); e) o julgamento, quer no crime, quer no cível, pode consubstanciar-se
no erro judiciário, motivado pela falibilidade humana na decisão; f ) por meio dos institutos rescisórios e revisionista é possível
atacar-se o erro judiciário, de acordo com as formas e modos
que alei prescrever, mas se o equívoco já produziu danos, cabe
ao Estado o dever de repará-los; g ) voluntário ou involuntário,
o erro de conseqüências danosas exige reparação, respondendo
o Estado civilmente pelos prejuízos causados; se o erro foi motivado por falta pessoal do órgão judicante, ainda assim o Estado
responde, exercendo a seguir o direito de regresso sobre o causador do dano, por dolo ou culpa; h) provado o dano e o nexo causal entre este e o órgão judicante, o Estado responde patrimonialmente pelos prejuízos causados, fundamentando-se a responsabilidade do Poder Público, ora na culpa administrativa, o
que envolve também a responsabilidade pessoal do juiz, ora no
acidente administrativo o que exclui o julgador, mas empenha o
20
JÚNIOR, José Cretella. Responsabilidade do Estado por Atos Judiciais, RF, 230:46.
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Estado, por falha técnica do aparelhamento judiciário, ora no
risco integral, o que empenha também o Estado, de acordo com
o princípio solidarista dos ônus e encargos públicos
Basicamente, para a caracterização da responsabilidade, deve existir o nexo
causal, ou seja, a relação entre o dano causado a ser reparado e a conduta do agente. A conduta lesiva no caso dos tribunais do trabalho brasileiro foi á disposição do
nome do reclamante no site por intermédio do instrumento de pesquisa processual
eletrônica e o dano é a vedação de acesso ao emprego em decorrência daquela disposição de dados.
Nos tribunais comuns de vários países, existem inúmeros exemplos de condutas que trazem lesão ao cidadão por intermédio da busca processual pelo nome dos
litigantes que vão desde o abalo ao crédito até situações vexatórias que expõem os
litigantes como no caso do mesmo ter contraído doença grave que tenha sido ventilada ou discutida no mérito do processo.
Podemos observar uma clara violação da intimidade e privacidade dos jurisdicionados que têm em muitos casos sua vida invadida em questão de segundos por
qualquer pessoa que tenha acesso ao site do Tribunal, violando estes direitos assegurados na Constituição Federal Brasileira, no título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais, artigo 5°.
Portanto, é plenamente viável a ação de indenização por danos morais e materiais contra o Estado que, através dos sites oficiais dos tribunais, divulgue indiscriminadamente informações judiciais pela internet que venham a lesar direitos constitucionalmente assegurados ao cidadão como o direito à intimidade, privacidade e
livre acesso ao emprego.
V.
APLICAÇÃO DAS REGRAS
A Regra 5 faz referência ao conceito de “dado sensível”, porém não se incluiu definição explicita para este conceito. Na Itália, o Codice in materia di protezione dei dati personali (de 30 de junho de 2003) criou (artigo 4) categorias
mais precisas: define em primeiro lugar “dado pessoal” criando três subcategorias, dado identificatório, dado sensível e dado judicial. Quando se trata de dados – não enumerados entre os sensíveis nem judiciais – porém, cujo tratamento pode gerar um risco para os direitos fundamentais e para a dignidade do interessado, o artigo 17 estende as garantias de proteção dadas pelo Codice. Este
conceito traz resultados de muita utilidade na aplicação das Regras, por exemplo, sobre a publicidade de ações trabalhistas. É neste sentido a tendência atual
para definir dados sensíveis e complementar a enumeração que faz a regra 5 e
agregar “qualquer outra informação cujo tratamento possa gerar algum tipo de
discriminação”.
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Os alcances estabelecem um conceito também relevante: é impossível regular
as novas tecnologias da informação em forma definitiva, uma vez que estas se transformam permanentemente e, em função dessas transformações, são criados novos
tratamentos para os dados. Sua necessidade de adaptar-se a novos desenvolvimentos tecnológicos ou normativos concorre com a restrição posta para sua adesão.
Sem embargo, cremos que os poderes judiciais consideram necessário estabelecer
um regulamento interno para o tratamento dos dados, segundo informação de que
dispomos, os poderes judiciais da Costa Rica, do Estado de Rio Grande do Sul (Brasil) e da província de Rio Negro (Argentina), tem deliberado sobre as Regras. Um
exemplo interessante de incorporação das Regras como regramento interno é a
Acordada 112/2003 do Poder Judicial da Província de Río Negro que resolveu “declarar de aplicação obrigatória no Poder Judicial da Província a partir de 1° de fevereiro de 2004 as ‘Reglas de Heredia’”.
VI. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Devemos nos conscientizar que passamos por uma intensa fase de transformação, prosperidade e evolução. Deparamo-nos com uma nova Civilização, a da Informação, com modos inteiramente distintos daqueles vividos há alguns anos, que precisam
ser bem compreendidos sob pena de gerar conseqüências graves à humanidade.
Assim como a Civilização Inca adorava a terra, o puma e o sol acreditando em
seu poder, nós devemos acreditar na informática como um instrumento de socialização e inclusão que facilitará e transformará a vida de milhares de pessoas desde
que seja acompanhada de medidas que previnam, ao máximo, os impactos negativos inerentes a toda mudança ocorrida na sociedade.
Portanto, podemos afirmar que todas as inovações tecnológicas possuem efeitos positivos e negativos. No caso, vimos que o efeito positivo é justamente a intensificação da publicidade das informações judiciais dispostas virtualmente e o negativo é o da vunerabilidade imposta por esta difusão indiscriminada de direitos fundamentais como o da privacidade e intimidade dos afetados. Por isso, para que haja
efetiva conciliação entre esses dois direitos, necessitamos de orientações que definam quais os dados que devem ser dispostos gerando um equilíbrio de direitos que
deve ser alcançado com aplicação das regras de Herédia.
doutrina Nacional
A ARBITRAGEM NO BRASIL – EVOLUÇÃO HISTÓRICA
E CONCEITUAL
José Augusto Delgado
Ministro do Superior Tribunal de Justiça.
Professor de Direito Público (Administrativo, Tributário e Processual Civil).
Professor Universidade Federal do Rio Grande do Norte (aposentado).
Ex-professor da Universidade Católica de Pernambuco.
Sócio Honorário da Academia Brasileira de Direito Tributário.
Sócio Benemérito do Instituto Nacional de Direito Público.
Conselheiro Consultivo do Conselho Nacional das Instituições de Mediação e Arbitragem.
Integrante do Grupo Brasileiro da Sociedade Internacional do Direito Penal Militar e Direito Humanitário.
Sócio Honorário do Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos.
1.
INTRODUÇÃO
A análise da evolução histórica e conceitual da arbitragem no ordenamento jurídico brasileiro há de ser antecedida com a visão da sua prática pelos povos antigos.
Alguns doutrinadores afirmam ser inútil procurar compreender-se a arbitragem nas civilizações do passado, em face das diferentes configurações que ela assumia, como via de solução de conflitos.
Sálvio de Figueiredo Teixeira1, em perfeita síntese, relata o resultado de aprofundado estudo que realizou sobre a presença da arbitragem em várias ordens jurídicas dos povos antigos. Eis a sua manifestação:
1
Sálvio de Figueiredo Teixeira, in “A arbitragem no Sistema Jurídico Brasileiro”, trabalho apresentado na obra coletiva “A Arbitragem na Era da Globalização”, coordenação de José Maria Rossini Garcez, Forense, pág. 25.
68
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Historicamente, a arbitragem se evidenciava nas duas formas do
processo romano agrupadas na ordo judiciorum privatorum: o processo das legis actiones e o processo per formulas. Em ambas as espécies, que vão desde as origens históricas de Roma, sob a Realeza
(754 a.C.) ao surgimento da cognitio extraordinaria sob Diocleciano (século III d.C.), o mesmo esquema procedimental arrimava o
processo romano: a figura do pretor, preparando a ação, primeiro mediante o enquadramento na ação da lei e, depois, acrescentando a elaboração da fórmula, como se vê na exemplificação de
Gaio, e, em seguida, o julgamento por um iudex ou arbiter, que não
integrava o corpo funcional romano, mas era simples particular
idôneo, incumbido de julgar, como ocorreu com Quintiliano, gramático de profissão e inúmeras vezes nomeado arbiter, tanto que
veio a contar, em obra clássica, as experiências do ofício.
Esse arbitramento clássico veio a perder força na medida em que
o Estado romano se publicizava, instaurando a ditadura e depois
assumindo, por longos anos, poder absoluto, em nova relação de
forças na concentração do poder, que os romanos não mais abandonaram até o fim do Império.
Nesse novo Estado romano, passa a atividade de composição da
lide a ser completamente estatal. Suprime-se o iudex ou arbiter, e as
fases in jure e apud judicem se enfeixam nas mãos do pretor, como
detentor da auctoritas concedida do Imperador - donde a caracterização da cognitio como extraordinária, isto é, julgamento, pelo
Imperador, por intermédio do pretor, em caráter extraordinário.
Foi nesse contexto, como visto, que surgiu a figura do juiz como órgão estatal. E com ela a jurisdição em sua feição clássica, poderdever de dizer o Direito na solução dos litígios.
A arbitragem, que em Roma se apresentava em sua modalidade
obrigatória, antecedeu, assim, à própria solução estatal jurisdicionalizada.
Com as naturais vicissitudes e variações históricas, veio ela também
a decair importância no Direito europeu-continental, ou civil-law,
persistindo forte a técnica de composição puramente estatal dos conflitos. Mas subsistiu como técnica, em razoável uso, paralelamente à
negociação e à mediação, no âmbito do common law, o direito anglo-americano – marcado por profunda influência liberal, fincada
no empirismo de Francis Bacon e de juristas do porte de Blackstone,
Madison, Marshall, Holmes e Cardozo, aos quais jamais seria infensa a utilização de válida forma de solução de litígios, como o arbitramento –, até chegar aos tempos contemporâneos, em que retoma
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69
força e passa a ser verdadeiro respiradouro da jurisdição estatal,
como observou com a acuidade de sempre Sidnei Agostinho Beneti,
para quem “a arbitragem vem sendo largamente utilizada no âmbito do comércio internacional, que dela atualmente não poderia
prescindir ‘em sua modalidade contratual, à vista da inexistência de
jurisdição estatal que sobrepaire sobre as relações internacionais’,
experimentando-se desenvolvimento extraordinário do instituto no
âmbito interno de cada país.2
Nesse sentido, as experiências de utilização da arbitragem nos Estados Unidos, bem relatadas em coletânea de estudos especialmente a ela destinados pelo The Justice System Journal (1991, vol. 14,
pág. 2,), a exibir as várias formas de arbitramento, inclusive as denominadas Court-Annexed Arbitration e Court Ordered Arbitration, vale dizer, com determinação judicial de uso do arbitramento, realizada pela própria Corte, em substituição ao próprio julgamento.3 Daí, o rental judge (‘juiz de aluguel’), a mostrar, segundo
o relato norte-americano, o acerto das partes em torno da submissão do conflito ao julgamento de cidadão contratualmente investido na função de dirimir-lhes o conflito - atuando, ao que se noticia, nesses casos, profissionais respeitáveis do Direito, entre os
quais advogados, promotores e juízes aposentados.
Está-se, no âmbito do Direito anglo-americano, no campo da ADR
(Alternative Dispute Resolution), isto é, mecanismos paraestatais
de solução de controvérsias jurídicas ou, se se quiser o encaixe na
pura doutrina processual de filiação peninsular, mecanismos paraestatais de composição da lide, já se falando até mesmo na substituição da expressão ‘meios alternativos de soluções de conflitos’
por ‘meios propícios a soluções de conflitos’.4
Pedro A. Batista Martins5, em exame também valioso sobre a prática da arbitragem no passado pelos povos antigos, afirma que ela
foi “utilizada pelos povos desde a mais remota antigüidade, quando a desconfiança recíproca e as diferenças de raça e religião tornavam precárias as relações entre os povos.
2
3
4
5
O autor cita, na nota de rodapé de nº 2, o trabalho de Sidnei Agostinho Beneti, de onde extraiu a referência:
“A arbitragem: Panorama e Evolução”, JTACSP, Lex, vol. 138, pág. 6.
Em nota de rodapé, nº 3, esclarece o autor: “Sobre suas principais características e sucesso, por todos”, Beneti, ob. cit., págs. 10-11.
Em nota de rodapé, a de nº 4, o autor esclarece: “Judicial Reform Roundtable II”, Williamsburg, Va., Estados
Unidos, maio, 1996.
Pedro A. Batista Martins, Prof. de Direito Comercial na Faculdade Cândido Mendes, in “Arbitragem Através dos
Tempos. Obstáculos e Preconceitos à sua Implementação no Brasil”, artigo publicado na obra coletiva “A arbitragem na Era da Globalização”, já citada, págs. 35 e segs.
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faculdade de direito de bauru
Do estudo que efetuou sobre a evolução histórica da arbitragem, firmou a
convicção de que a arbitragem é um instituto que existiu e produziu efeitos mesmo
antes que surgisse o legislador e o juiz estatal.
O referido autor identifica a presença da arbitragem, nos séculos pretéritos:
a) na Grécia antiga, em face de ter constatado que o “tratado firmado entre
Espanha e Atenas, em 455 a. C., já continha cláusula compromissória, o
que evidencia a utilização desse instituto por aquele povo e, também, a sua
eficácia como meio de solução pacífica dos conflitos de interesse”;6
b) na Roma antiga, em razão do sistema adotado de se estimular o iudicium
privatum-judez (lista de nomes de cidadãos idôneos), cujo objetivo era de
solucionar, em campo não judicial, os litígios entre os cidadãos;
c) nas relações comerciais assumidas durante o séc. XI, pela posição dos comerciantes em resolver os seus conflitos fora dos tribunais, com base nos
usos e nos costumes.
O autor observa, ainda, que a arbitragem não foi muito considerada durante o
transcorrer dos séculos XVI e XVII, tendo, porém, retomado o seu prestígio no século
XVIII, para, finalmente, ter sofrido restrições no curso do Século XIX, por haver assumido, em decorrência das reformas legais instituídas por Napoleão, forma burocratizada
exagerada.
Pedro A. Batista Martins, concluindo essa parte dos seus estudos sobre o
tema, afirma:
Contudo, já no final do século XIX, o interesse pela arbitragem
é renovado, e sua utilização plenamente revigo0rada no século XX, com a ratificação de tratados sobre a matéria e a inserção do instituto na grande maioria dos sistemas jurídicos nacionais.7
Na era contemporânea, a arbitragem é instituto utilizado, com êxito, em
vários países.
Na Argentina, em decorrência da vigência da Lei nº 24.573, há o estabelecimento da exigência da mediação, em caráter obrigatório, antes do ingresso de qualquer ação em sede civil ou comercial.
Saliente-se que o Código Processual Civil e Comercial da Argentina, em seus
arts. 736 a 773, e os Códigos de Procedimentos Civil e Comercial de cada uma das
Províncias Argentinas prevêem a arbitragem.
No Paraguai, a arbitragem está inserida no seu Código de Processo Civil, por
via dos arts. 774 a 835.
6
7
Idem, pág. 36.
Ibidem, pág. 37.
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71
O Código Geral de Processo da República Oriental do Uruguai regula a arbitragem nos arts. 472 a 507.
A arbitragem, nos EE. UU., tem expansão de longo alcance.
José Maria Rossine Garcez8, ao analisar as regras de arbitragem do “American
Arbitration Association - AAA”, escreveu (pág. 170, ob. citada, no rodapé):
A prática da arbitragem se expandiu invulgarmente nos Estados
Unidos graças ao trabalho que desenvolve naquele país a American Arbitration Association - AAA, que conta com um grupo de
mais de 57.000 árbitros e 35 sedes físicas que oferecem a logística
adequada para o desenvolvimento dos procedimentos arbitrais
em todos os estados norte-americanos. A AAA é uma instituição privada, sem fins lucrativos, que oferece serviços ao público na administração de arbitragens, em que têm sido predominantes os casos
laborais e de responsabilidade civil, além das disputas em questões
internacionais de natureza comercial.
As regras de arbitragem internacional da AAA foram revisadas e se
encontram em vigor desde 1º de março de 1992, dispondo, em 37 artigos, sobre os procedimentos a serem adotados nessas arbitragens.
No preâmbulo, o Regulamento recomenda que as partes que queiram submeter suas controvérsias às regras administradas pela
AAA introduzam em seus contratos uma cláusula cuja redação indique, simplesmente, que se aplicam à solução controvérsias deles
originadas as International Arbitration Rules of the America Arbitration Association. As partes, segundo sugere a AAA, podem ainda
acrescentar: a) o número de árbitros que atuarão (um a três); b)
o local onde a arbitragem se realizará (cidade e/ou país); c) a língua em que a arbitragem será expressada.
Sob as regras da AAA, as partes acham-se livres para adotar qualquer acordo mutuamente aceitável para a indicação futura dos
árbitros ou podem, desde logo, nomear tais árbitros. Podem as partes indicar também que a controvérsia será resolvida por um árbitro único ou por um tribunal de três ou mais árbitros, sempre em
número ímpar. Elas também podem preferir que a AAA designe os
árbitros, ou que cada parte escolha um árbitro e que estes, entre si,
nomeiem um terceiro, verificando a AAA se o tribunal arbitral assim formado está conforme as regras aplicáveis. Podem também as
partes ajustar que a AAA submeta a elas uma lista de árbitros, da
8
José Maria Rossini Garcez, em trabalho intitulado “Arbitragem Internacional”, publicado na obra por ele coordenada “A Arbitragem na Era da Globalização”, Forense, págs. 162 e segs.
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faculdade de direito de bauru
qual elas retirarão os nomes que lhes pareçam inaceitáveis, ou,
ainda, podem delegar à AAA a escolha dos árbitros, sem exigir lhes
que seja submetida qualquer lista.
De acordo com o art. 2º das Regras da AAA, os procedimentos da arbitragem começam na data em que o requerimento da parte que deseja iniciá-lo é recebido pelo administrador da AAA, o qual enviará
comunicado às partes a respeito, dando-lhes ciência deste início. A
defesa deverá então ser apresentada nos 45 dias seguintes. Conforme o art. 15, o tribunal arbitral tem o poder de decidir sobre a existência ou validade da Convenção de Arbitragem, ou de determinar
sobre a validade do contrato no qual a cláusula arbitral tenha sido
inserida, dispondo ainda tal artigo que as objeções à arbitrabilidade de uma reclamação devem ser apresentadas num prazo não superior a 45 dias do início do procedimento arbitral.
No art. 28, encontra-se prevista a regra de que o tribunal (2) exporá as razões em que se baseia a decisão, exceto se as partes houverem convencionado que tais razões não devam ser reveladas e (3)
somente tornará pública a decisão arbitral se as partes convencionarem neste sentido ou caso tal providência resultar da lei.
Conforme o art. 29 (1), o tribunal arbitral aplicará a lei substantiva que as partes tenham designado para a solução da controvérsia e na hipótese de não ter sido indicada qualquer lei ou caso o
tenha sido feita imperfeitamente, o tribunal poderá aplicar a lei
que julgar conveniente. De acordo com o mesmo artigo, no numeral 2, nas arbitragens envolvendo contratos o tribunal decidirá de
acordo com os termos do contrato, levando em consideração a feição dos negócios ao mesmo aplicáveis. O tribunal não decidirá
como compositor amigável (amiable compositeur) ou ex aequo et
bono (3) exceto se as partes assim o autorizem.
Na conformidade do art. 31, dentro de 30 dias da ciência da decisão, a parte poderá requerer ao tribunal que a interprete ou que
corrija algum defeito decorrente da atividade da secretaria, erro
tipográfico ou de computação, ou que apresente uma decisão aditiva à mesma sobre pontos requeridos mas não abrangidos pela
decisão.
Demonstrando o alto conceito atual da arbitragem nos países de maior expressão no planeta, o mesmo autor explicita (fls. 171 e 172 da obra citada):
Além da CCI e da AAA, diversas outras entidades dedicadas à organização e administração de arbitragens podem ser citadas,
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como a London Court of Arbitration; a Câmara de Comércio de Estocolmo; a Câmara de Comércio de Tóquio; o Tribunal Arbitral da
Bolsa de Comércio de Buenos Aires; a Câmara de Comércio, Indústria e Produção da República Argentina; o Tribunal Arbitral do Colégio Público de Advogados de Buenos Aires.
No Brasil, se podem contar, dentre outras, a Comissão de Arbitragem da Associação Comercial do Rio de Janeiro; a Comissão de Arbitragem da Câmara de Comércio do Paraná; a Câmara de Mediação e Arbitragem de São Paulo (FIESP); a Comissão de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional de Minas Gerais e a
Comissão de Arbitragem da Câmara de Comércio Brasil-Canadá).”94-5
Ao comentar, a seguir, a decisão da UNCITRAL10 que, em 11/12/1985, pela Resolução nº 40/72, em sua Assembléia Geral na 112ª Reunião, aprovou uma Lei Modelo de Arbitragem11, afirmou, ainda, José Maria Rossani Garcez, pág. 172, ob. citada, que:
Além das Regras sobre Arbitragem antes referidas, a Uncitral aprovou, pela Resolução nº 40/72, em sua Assembléia Geral na 112ª
Reunião Plenária, de 11 de dezembro de 1985, uma Lei-Modelo de
Arbitragem, preparada em regime de consultas com entidades arbitrais e experts internacionais da área, com o objetivo de poder
ser aceita e adaptada pelos Estados e assim contribuir para o desenvolvimento harmônico das relações comerciais e a criação de
um framework internacional. A Lei-Modelo, em 36 artigos, se aplica à arbitragem comercial internacional, ficando esclarecido, em
nota de rodapé ao numeral (1) do artigo primeiro, que ao termo
‘comercial’ é dada uma ampla interpretação, para cobrir todas as
relações de natureza comercial, sejam elas contratuais ou não.
Um estudo levado a efeito pelo Professor Pieter Sanders (Professor
emeritus na Universidade de Rotterdam, artigo constante do vol. II
9
José Maria Rossani Garcez, nas notas de rodapé de nºs 4 e 5, pág. 172, ob. cit., explicita: “O Prof. Guido F. S.
Silva, na obra acima referida, comenta que a Comissão de Arbitragem da Câmara de Comércio Brasil-Canadá foi
a primeira entidade tipicamente do gênero criada no Brasil, em 1978, na cidade de São Paulo, ficando aberta a
qualquer pessoa interessada pela solução arbitral de seus litígios, de ordem interna ou internacional (inclusive, nas relações comerciais além Canadá).” A seguir, na nota 5: “Ob. cit. pág. 68. O Prof. Guido Soares acrescenta que os procedimentos arbitrais dessa Câmara fazem lembrar os mecanismos da CCI, adaptados às exigências à época de nosso Código de Processo Civil.”
10 UNCITRAL – United Nations Comission for International Trade Law (Comissão das Nações Unidas para a Legislação Comercial Internacional)
11 Essa lei modelo é conhecida como LEI-MODELO UNCITRAL.
74
faculdade de direito de bauru
nº 1 do Arbitration International, LCIA, 1995), registra que o impacto da Lei-Modelo é tão elevado que praticamente nenhum Estado que tenha modernizado seu sistema legislativo sobre arbitragem, após a sua edição, teria, inter alia, deixado de levá-la em consideração. Alguns Estados adotaram a Lei-Modelo por inteiro, outros se adaptaram a maior parte de suas provisões, de forma que
existem países que podem ser caracterizados como países da LeiModelo (Model Law countries). Uma lista de 14 desses países que
adotaram os standards da Lei-Modelo no período compreendido
entre 1986 e 1994 é apresentada nesse estudo como adiante se reproduz, com registro do ano da adoção: Canadá (1986); Chipre
(1987); Bulgária e Nigéria (1988); Austrália e Hong Kong (1989);
Escócia (1990); Peru (1993); Bermuda, Federação da Rússia, México e Tunísia (1993); Egito e Ucrânia (1994). Além desses países, oito
Estados norte-americanos adotaram também os padrões da LeiModelo: Califórnia, Connecticut, Florida, Georgia, North Carolina, Ohio, Oregon e Texas.12
Até 1995, quando o estudo do Professor Pieter Sanders foi realizado, 22 países haviam promulgado leis internas sobre arbitragem
adaptando-as, substancialmente, aos padrões da Lei-Modelo.
Uma interessante nota sobre o tema é a de que, embora a Lei-Modelo haja sido concebida para arbitragens comerciais internacionais, isto não representa qualquer obstáculo a que os países utilizem seus standards para arbitragens domésticas. A adoção da LeiModelo num padrão idealizado para as arbitragens internacionais e em outro para as domésticas foi feita pela Bulgária, México,
e Egito. Para o Canadá, este critério também se aplica, mas somente a nível federal e para a Província de Quebec.
Outra possibilidade é a de que, quando tenham adaptado a LeiModelo, os Estado criem a possibilidade de que as partes optem por
seu regime, mediante ajuste entre elas, em relação às arbitragens
domésticas. Isto atua de forma que se deva reordenar os dispositivos do art. 1º (3) (c) da Lei-Modelo, que se aplicam à arbitragem
internacional. A lei de arbitragem da Escócia, por exemplo, permi12 Em nota de rodapé, a de nº 7, pág. 173, José Maria Rossani Garcez, in art. já citado, registra: “O Prof. Pieter Sanders acrescenta em seu estudo que alguns Estados têm promulgado uma nova lei sobre arbitragem comercial
internacional simplesmente copiando a Lei-Modelo ou seguindo-a em todos os seus termos, enquanto outros
a tem adaptado com maior ou menor modificação. A lei de Chipre de 1987 reproduz praticamente os 36 artigos da Lei-Modelo, somente rearranjando os seis primeiros numa maneira diferente. O Estado norte-americano de Connecticut incorporou integralmente o texto da Lei-Modelo adicionando ao mesmo simplesmente um
artigo, de nº 37, que dispõe: “Esta lei pode ser citada como o Modelo de Lei da Uncitral sobre arbitragem comercial internacional”.
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te que as partes acordem que a Lei-Modelo possa aplicar-se, não
obstante não se trate de uma arbitragem internacional comercial.
A Nigéria, através do Decreto de 1988 sobre Conciliação e Arbitragem, mudou a definição “internacional” contida na Lei-Modelo e,
segundo tal mudança, as partes podem expressamente ajustar que,
a despeito da natureza do contrato, a arbitragem seja tratada à
feição da arbitragem internacional.
Ainda uma outra alternativa aplicada em vários países que adotaram a Lei-Modelo é que as partes possam, contrariamente, optar
por solucionar suas pendências de natureza internacional comercial de acordo com regras expressamente excludentes da Lei-Modelo, utilizando-se das regras editadas para as arbitragens domésticas. Na Austrália, que adotou a Lei-Modelo, podem as partes excluir sua aplicação a tais casos, por escrito. Nas Bermudas, o Arbitration Act de 1993 contém disposição neste sentido, ainda com
maior detalhamento.
Essa notícia bem representa a importância da arbitragem para a solução dos
conflitos, o que justifica o culto que a ela está sendo devotado por quase todas as
Nações.
2.
A ARBITRAGEM NO BRASIL – EVOLUÇÃO
A doutrina brasileira identifica a presença da arbitragem em nosso sistema jurídico desde a época em que o País estava submetido à colonização portuguesa.
Em ambiente puramente brasileiro, a arbitragem surgiu, pela primeira vez, na
Constituição do Império, de 22/03/1924, em seu art. 160, ao estabelecer que as partes podiam nomear juízes–árbitros para solucionar litígios cíveis e que suas decisões
seriam executadas sem recurso, se as partes, no particular, assim, convencionassem.
A CF de 24 de fevereiro de 1895, a primeira Carta Republicana, não cuidou
de homenagear a arbitragem entre pessoas privadas. É certo que não deixou de
incentivar a sua prática como forma útil para pacificar conflito com outros Estados soberanos.
A Carta de 16 de julho de 1934 voltou a aceitar a arbitragem, assegurando
à União competência para legislar sobre as regras disciplinadoras do referido instituto.
A Constituição de 1937 não valorizou essa entidade jurídica. A Carta Magna de
1946, de 18 de julho, também não fez qualquer referência à arbitragem privada, tendo o mesmo comportamento a Lei Maior de 1967.
A atual CF, de 05/10/88, referiu-se sobre a arbitragem no art. 4º, § 9º, VII, bem
como no art. 114, § 1º.
76
faculdade de direito de bauru
Saliente-se, contudo, que a Carta de 1988, no seu preâmbulo,13 faz, a nível de
princípio fundamental, homenagem à solução dos conflitos por meio de arbitragem,
no pregar a forma pacífica de serem resolvidos, quer na ordem interna, quer na ordem internacional.
Pedro A. Batista Martins revela, no artigo já mencionado, que, em âmbito infraconstitucional, a arbitragem foi, pela primeira vez, introduzida no Brasil, no ano
de 1831 e, em seguida, em 1837, para solucionar litígios relativos à locação de serviços, em caráter impositivo ou obrigatório; informa, a seguir, que ela foi regulada, em
1850, pelo Decreto nº 737, de 25 de novembro, para ser aplicada em dissídios existentes entre comerciantes, para ser consagrada no Código Comercial:
Ainda nesse mesmo ano, o Código Comercial traz em seu bojo a figura do juízo arbitral e, seguindo a tendência já delineada no
passado, prescreve-o de modo obrigatório às questões (i) resultantes de contratos de locação mercantil, (ii) suscitadas pelos sócios,
entre si, ou com relação à sociedade, inclusive quanto à liquidação ou partilha, (iii) de direito marítimo, no que toca a pagamento de salvados e sobre avarias, repartição ou rateio das avarias
grossas e (iv) relacionadas à quebra ( fl. 43).
A arbitragem foi regulada no Código de Processo Civil de 1939, com reprodução
no atual Código de 1973. Tomou uma nova feição com a Lei nº 9.307/96, a denominada
Lei Marco Maciel, por ter permitido que desenvolvesse a solução dos litígios fora do âmbito do Poder Judiciário. A atuação deste Poder ficou limitada, apenas, a situações determinadas para garantir o êxito da arbitragem como solução pacífica dos conflitos, por meio
da mediação, da conciliação e do pronunciamento dos árbitros, tudo na área privada.
3.
A LEI Nº 9.307/96. ASPECTOS GERAIS
No momento contemporâneo, a arbitragem no Brasil está regulada pela Lei nº
9307, de 23 de setembro do ano 1996, publicada no DOU de 29/09/96. Entrou em
vigor 60 (sessenta) dias depois.14
13 O inteiro teor do Preâmbulo da CF: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional
Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida,
na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de
Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.” Significativo o propósito do Constituinte, no preâmbulo, haver registrado que ... “para instituir um Estado democrático ... fundada na harmonia
social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias ...”
14 A história recente registra que a Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, teve origem no Projeto de Lei do Senado de nº 78, de 1992. Antes, três projetos tinham sido apresentados e foram arquivados. A aprovação da lei
resultou de um movimento iniciado pela denominada operação Arbiter, comandada pelo Instituto Liberal de
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77
Há um esforço doutrinário de larga escala para que esse diploma legal produza efeitos concretos e de alta intensidade na busca do seu objetivo principal, que é
a solução dos conflitos patrimoniais por vias não judiciais.
A utilização da arbitragem, no Brasil, está recebendo, em progressão geométrica, preferência de vários estamentos sociais.
As denominadas Cortes de Conciliação e Arbitragem, pela eficácia e efetividade demonstrada em suas atividades, considerando-se seus resultados, têm determinado a criação de um novo panorama para a solução dos litígios.
Exemplo de grande significação é o que está ocorrendo no Estado de Goiás.
A 1ª CCA de Goiânia, instalada em 1996, funcionando na Associação Comercial e Industrial, recebeu até junho de 1998, 3.718 reclamações; a 2ª Câmara de Goiânia, que funciona no Secovi-Goiás, no mesmo período, 8.036 reclamações; a 3ª, sediada na Sociedade Goiana de Pecuária e Agricultura, atendeu a 344 reclamações.
No Estado de Goiás, há, ainda, Câmaras de Conciliação e Arbitragem instaladas nos Municípios de Anápolis, Caldas Novas, Catalão.
Segundo dados estatísticos fornecidos pela Revista Indústria Imobiliária, em
dois anos e meio de atividades, até julho de 1998, nas Cortes instaladas no Estado
de Goiás, foram atendidas mais de 15 mil reclamações.
Convém registrar que as Cortes de Conciliação e Arbitragem, no Estado de
Goiás, foram instaladas com apoio integral do Poder Judiciário, especialmente, do
Des. Lafaiete Silveira, Presidente do TJ na época, e do Juiz José Arlindo Lacerda.
Considere-se, também, a defesa que parte da doutrina faz, hoje, da aplicação
da arbitragem para solucionar conflitos trabalhistas.
O Jornal dos Advogados, março de 99, revelou (pág. 28) os pronunciamentos
que a favor da arbitragem, na Justiça do Trabalho, fizeram ilustres e conceituados
doutrinadores.
Os trechos da notícia em destaque merecem ser transcritos:
O professor Cássio disse ser muito simpático ‘à idéia da arbitragem
privada, porque: “uma breve análise dos sistemas jurídicos vai
mostrando que, no mundo de nossos dias, nas sociedades mais desenvolvidas, a legislação é mínima e cabe às próprias partes estabelecerem os métodos de solução dos conflitos. Na área trabalhista, a negociação, atualmente, está desempenhando um papel preponderante, e a competência da Justiça do Trabalho nesses países,
Pernambuco, tudo coordenado pelo Dr. Petrônio Muniz, advogado. O Projeto em referência foi apresentado
pelo então Senador Marco Maciel. Contribuíram para o aperfeiçoamento do texto da Lei, valiosas sugestões, de
juristas estudiosos do tema, incluindo-se os Drs. Carlos Alberto Camona e Pedro Batista Martins, bem como, a
Dra. Selma M. Ferreira Lemes. O autor do projeto, na exposição de motivos, esclareceu que a proposta legislativa apresentada levava em conta diretrizes da comunidade internacional, especialmente as fixadas pela ONU
na Lei-Modelo sobre Arbitragem Comercial Internacional formulada pela UNCITRAL.
78
faculdade de direito de bauru
quando ela existe, se limita aos conflitos de Direito, porque se acredita que os juízes estão mais preparados para resolver conflitos decorrentes de interpretação e aplicação da Lei aos casos concretos
do que questões que são, na verdade, estranhas ao Direito, como
salário, produtividade, conjuntura econômica etc.’.
Para ele, nessas sociedades mais desenvolvidas, há uma consciência clara de que as regras jurídicas não são mais um solução satisfatória para os conflitos sociais, que são resolvidos pelas próprias partes envolvidas. Já, nas sociedades menos desenvolvidas há
uma predominância quase absoluta da lei. O campo de negociação é mínimo e a solução do conflito cabe ao Judiciário, como
acontece no Brasil. Esse esquema, segundo o referido professor,
não corresponde à atual dinâmica das relações de trabalho. Cássio afirmou que a Organização Internacional do Trabalho (OIT)
vem, há tempos, recomendando a adoção, nos casos de conflitos
trabalhistas, da conciliação, da mediação e da arbitragem em vez
da justiça pública. No Brasil, os conflitos coletivos de trabalho continuam sendo resolvidos pelo Judiciário, gerando perplexidade
nos países desenvolvidos. A busca de soluções, em nosso País, conduziu ao estímulo para as negociações coletivas de trabalho, com
a presença do mediador. O conciliador e o mediador, na prática,
continuam exercendo as mesmas funções.
A arbitragem, que é privada e facultativa, segundo a Constituição,
afirma: frustradas as negociações coletivas, as partes poderão eleger árbitros e, não alcançando essa conciliação, poderão instaurar o dissídio coletivo. “A nosso ver, parte considerável do processo
civil e todo o Direito Comercial pode ser resolvida por meio da arbitragem que, por ser privada, tem inúmeras vantagens. A questão
é saber se a Lei nº 9.307/96, como ela está, é aplicável ao Direito do
Trabalho?” Perguntou o professor. Ele se disse favorável a essa aplicação, citando o exemplo espanhol, que já inclui a possibilidade
de existência da arbitragem, em caso de conflito, quando da celebração dos contratos de trabalho.
O segundo expositor foi o Professor Renato Rua, que também é advogado do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. Rua fez um
histórico dos princípios do Direito do Trabalho, iniciando pela Revolução Francesa e indo até a Comuna de Paris, passando pelo
“Manifesto Comunista”, de Marx e Engels, até o fortalecimento dos
sindicatos, principalmente após a 2a. Guerra Mundial e, finalmente, a atual globalização da Economia. Tudo isso, para chegar
à atual primeira preocupação dos trabalhadores, que é a manu-
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tenção do emprego e a flexibilização das normas trabalhistas. Ele
disse que existem duas vertentes, atualmente, para solucionar os
conflitos trabalhistas: uma é a jurisdicional, por meio da Justiça
do Trabalho; a outra é o entendimento entre as partes, por meio de
conciliação, mediação ou arbitragem. Segundo o professor Rua, a
conciliação pode se dar por duas maneiras: negociação direta ou
atuação de um conciliador, que vai aproximar as partes. Não resolvido o conflito pela conciliação, se estabelece o mediador, que
vai apresentar uma proposta. Ainda desta vez, não se conseguindo um acordo, vem a solução da arbitragem, por meio de um laudo arbitral.
Mais adiante, o articulista registra:
O terceiro expositor; professor Octávio Bueno Magano, que começou sua explanação com um poema de Camões, para ilustrar o
tempo excessivo para que um trabalhador receba o veredicto de
seu litígio trabalhista, disse que, para haver solução para esse problema, existiriam dois caminhos: a adoção da Súmula Vinculante
ou a arbitragem. No caso da Súmula Vinculante, ele considera
essa saída inconstitucional, pois o Judiciário estaria usurpando
‘poderes’ do Legislativo. Restando, assim, a arbitragem. Para Magano, a arbitragem não deve ser confundida com o arbitramento.
Arbitragem é a decisão, a respeito de um litígio, tomada por pessoa
ou pessoas, que hajam sido escolhidas pelos litigantes, enquanto
arbitramento é a fixação de valores de determinado litígio, realizado por perito. A arbitragem tem três momentos bem distintos: a
cláusula compromissória; o compromisso; e o laudo arbitral. Ela
pode ser voluntária ou compulsória. Nos Estados Unidos, existem
entidades especializadas em arbitragem e os contratos de trabalho
prevendo que, em caso de litígio, haverá a atuação de uma delas.
O Professor falou dos empecilhos que existiam para a adoção da arbitragem no Brasil, um deles era o costume brasileiro querer uma
solução governamental para todo e qualquer problema, o outro era
a falta de força coercitiva do laudo do árbitro que, para se tornar
obrigatório, tinha de ser homologado, não valendo como título executório e, de qualquer forma, sujeito a recurso. Para ele, essas inconveniências foram sanadas pela Lei nº 9.307/96, que dispôs que
cláusula compromissória vale como compromisso. Outro tópico que
precisa ser registrado é que o laudo dispensa homologação e não
cabe recurso. Magano discutiu, ainda, a constitucionalidade da
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aplicação da arbitragem no campo trabalhista, dizendo que, se foi
objeto de convenção ou acordo coletivo, ela pode ser utilizada.
Cláudio Viana de Lima, em artigo publicado no Jornal do Comércio – RJ, de
29/05/98, noticia que a Medida Provisória nº 1.619/42, de 13/03/98 (DOU de
14/03/98), que dispõe sobre a participação dos trabalhadores nos lucros ou resultados da empresa, regulamentando o art. 7º, XI, da CF, assegurou, em seu art. 4º, a
prática da arbitragem. Transcrevo o comentário do autor: “A Medida Provisória nº
1.619, de 13.03.98 (DOU de 14/03/98, pág. 3), “dispõe sobre a participação dos trabalhadores nos lucros ou resultados da empresa e dá outras providências”, convalidando os atos praticados com base na Medida Provisória nº 1.619-41, de 12/02/98 e
a revogando. É regulamentação do art. 7º, XI, da Constituição Federal. Deseja-se focalizar, neste texto, o art. 4º da Medida Provisória referida, que vem sendo reproduzido das antecedentes. Está assim escrito:
Art. 4º: Caso a negociação visando à participação nos lucros ou resultados da empresa resulte em impasse, as partes poderão utilizar-se
dos seguintes mecanismos de solução do litígio: I. mediação – II. arbitragem de ofertas finais.
O artigo define em seu § 1º: “Considera-se arbitragem de ofertas finais aquela em
que o árbitro deve restringir-se a optar pela proposta apresentada, em caráter definitivo, por uma das partes.” Dispõe mais, o art. 4º, em exame, sobre a liberdade de escolha (por comum acordo entre as partes) do mediador ou do árbitro (§ 2º), a inadmissibilidade da desistência unilateral de qualquer das partes (§ 3º) e a força normativa, independentemente de homologação judicial, do laudo dos árbitros (§ 4º).”
Abre-se, portanto, na lei uma oportunidade para que os litígios decorrentes da
participação dos trabalhadores nos lucros das empresas sejam resolvidos por meio
da arbitragem.
4.
A ARBITRAGEM E A EVOLUÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL
Em artigo anterior que escrevi sobre o tema, denominado “Arbitragem: um direito da cidadania”, afirmei o que transcrevo:
O Direito Processual Civil, no decorrer dos últimos cem anos, alcançou o seu apogeu científico, especialmente, neste final de Século. Não se pode deixar sem reconhecimento a fortaleza dos princípios que o regem, tudo em decorrência dos resultados obtidos pelas investigações científicas na busca de encontrar a melhor estrutura para o seu funcionamento.
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Estarrecedor, porém, é a constatação, especialmente, no Brasil, de
um fato que causa profundas preocupações ao jurista. Tal se caracteriza pelo retrato de que quanto mais avançou a Ciência do
Direito Processual mais ela se afastou dos anseios do cidadão. O
seu envolvimento com princípios burocráticos levou-a a se afastar
da adoção de uma metodologia de caráter gerencial e com resultados compatíveis com as reais necessidades de urgência impostas
pelo mundo contemporâneo no referente a solução dos conflitos.
O Direito Processual Civil, na verdade, esqueceu-se de que ele é instrumento para servir ao cidadão na busca de se identificar com a
paz. É apenas caminho e que necessita ser trilhado com segurança e rapidez.
As idéias de Noberto Bobbio não chamaram atenção desse campo
do direito formal. O seu apego aos rigores da Ciência, o que se justifica pela necessidade de sua afirmação, afastou a sua preocupação de que, neste final de Século XX, o jurista há de se preocupar,
de modo intenso, com o respeito aos direitos do homem.
Considere-se, em razão do afirmado, o registro de que Noberto
Bobbio, na obra intitulada “A Era dos Direitos”, Tradução de Carlos Nelson Coutinho, observa com absoluta precisão, por dominar
inteiramente o campo explorado pela sua inteligência, que o homem do mundo atual está a exigir maior consciência da justiça,
por aumentarem as situações em que os Direitos dos Homens são
desrespeitados.
As novas dimensões do direito que são perseguidas por Noberto
Bobbio, na obra referida, foram examinadas pelo Professor Vicente Barreto, da Universidade Gama Filho e da UERJ, em campo de filosofia política, em artigo publicado no Caderno/Idéias,
pelo Jornal do Brasil de 21/03/92, de onde destaco a afirmação
de que:
A leitura do livro do professor Bobbio permite que se possa redimensionar o significado e a abrangência dos direitos fundamentais da pessoa humana, passados mais de 200 anos das primeiras
declarações de direitos do homem e do cidadão. Nesses dois séculos, ocorreu um processo de explicitação de valores morais da humanidade, que para Bobbio faz com que o atual debate sobre os
direitos do homem possa ser interpretado como um “sinal premonitório” desse progresso moral. Bobbio sustenta que, independentemente da discussão sobre o que se entende por moral, houve na
doutrina dos direitos do homem uma grande evolução, ainda que
submetida a negações e limitações.
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faculdade de direito de bauru
A leitura vagarosa da obra de Bobbio revela, o que é bem destacado por Vicente Barreto, no artigo já citado, que a palavra “direitos” vem sendo usada somente com o efeito de se atribuir dignidade a ideais que, na prática, não são respeitados. Suficiente para se
confirmar quanto irrepreensível é essa afirmação, basta ver o
quadro levantado por Vicente Barreto, no curso do artigo citado,
de Países que, atualmente, se encontram desrespeitando flagrantemente os direitos humanos.
A arbitragem, como meio processual para a solução dos conflitos,
sem a presença do Poder Judiciário, visa a consolidar os anseios daqueles que estão insatisfeitos com a demora na entrega da prestação
jurisdicional, não só porque contribui para aumentar o grau de discórdia com o seu semelhante, mas, também, pelo fato de lhe ser negado o direito constitucional de ver o seu direito reconhecido em
tempo razoável de ser possível o seu gozo e a sua fruição.
Tenho que a arbitragem é um direito processual de quarta geração. Ele se contrapõe aos sistemas até então adotados para solução de conflitos, onde a presença do Poder Judiciário era considerada indispensável.
O Direito Processual de primeira geração caracteriza-se pelo profundo apego ao formalismo, com regras inspiradas em aumentar
o grau da segurança jurídica, porém possibilitadoras de manobras processuais que favoreciam, especialmente, ao litigante de
maior poder aquisitivo e que tinha interesse em fazer demorar o
resultado da demanda.
O Direito Processual de segunda geração é representado pelo sistema que tentou, embora não tenha conseguido, romper com a burocracia processual. O seu mérito consiste em ter abolido determinadas formalidades processuais inúteis e ter consagrada a figura
do Juiz ativo, isto é, comprometido com o apanhado das provas e
com a justiça da decisão.
O Direito Processual de terceira geração é o que enfatiza a necessidade de se prestigiarem as ações coletivas, especialmente, na proteção dos direitos difusos, estes voltados à proteção do meio ambiente, paisagístico, do consumidor, etc.
Por fim, vive-se, na época contemporânea, o Direito Processual de
quarta geração, onde a arbitragem se situa. É a utilização de um
instrumento voltado para a solução dos litígios sem a presença
obrigatória do Poder Judiciário. É a própria sociedade, de modo
organizado, aplicando o direito, utilizando-se das associações que
a compõem. É uma nova era do Direito Processual que necessita
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evoluir até alcançar os denominados Tribunais de Vizinhança. É
a busca de intensificação de outros meios de acesso do cidadão ao
encontro da Justiça, por essa reivindicação se constituir em um direito constitucional de natureza subjetiva.
Em “ACESSO À JUSTIÇA - DIREITO CONSTITUCIONAL DO CIDADÃO”, de minha autoria, escrevi:
Cristaliza-se, no âmbito do moderno Direito Constitucional, a
idéia de que o acesso à Justiça pelo cidadão se constitui um direito fundamental a ser protegido pelo Estado.
Fiel a essa evolução garantidora da cidadania, a nossa Carta
Magna de 1988, seguindo tradição anterior, consagrou o acesso à
Justiça, com esse teor axiológico, de modo explícito, ao determinar
que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça a direito” (art. 5º, XXXV) e que “O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (art. 5º, LXXIV).
O final do século XX tem revelado uma constante preocupação da
comunidade jurídica com o direito do cidadão de buscar, no âmbito do Poder Judiciário, a solução para a entreg0a rápida da
prestação jurisdicional, hoje erigida, em nosso ordenamento legal,
como direito substancial de caráter individual ou coletivo. A eficácia da prestação jurisdicional, ao lado da rapidez, tem sido, também, uma garantia do cidadão que se consagra como de natureza elevada no corpo de qualquer Carta Magna.
O legislador ordinário, preocupado em aprimorar o acesso à Justiça, pela constante reivindicação que em tal sentido é feita pela
sociedade, tem criado ambiente de proteção à exeqüibilidade desse direito fundamental. Destaque merece, no particular, a conduta legislativa posta, como princípio, nos artigos 2º e 9º, da Lei nº
7.244/84 e nos artigos 5º, IV e 6º, VII, da Lei nº 8.078/90, visando facilitar o ingresso das partes na via judiciária e a rápida solução
dos litígios.
O denominado direito constitucional à jurisdição tem sido defendido, no campo doutrinário, como sendo o mais “fundamental das obrigações estatais, cujo relevo é inconteste para que o
indivíduo veja garantidos todos os seus direitos reconhecidos
normativamente”.
Essa a razão pela qual a doutrina contemporânea tem se preocupado, com forte intensidade, em abordar o tema e a difundir as idéias
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faculdade de direito de bauru
construídas a respeito, no sentido de sensibilizar o Estado para o
cumprimento dessa suprema garantia do direito do cidadão.
Releva notar que a publicação de “Acess to Justice, Milão, Giuffré,
1978, em seis volumes, da autoria de Mauro Cappelletti e outros,
representa um marco inovador na abordagem do assunto, a se
considerar a mensagem fixada na obra de serem estabelecidas regras jurídicas, a partir da Constituição Federal de cada Nação,
que contenham real efetividade no garantir o acesso à Justiça.
Não se pode deixar de registrar que o tema já tinha sido tratado
por outros autores. Não obstante o valor das idéias plantadas e as
reivindicações apresentadas para se buscar um aperfeiçoamento
no tocante ao ingresso do jurisdicionado à Justiça, tenho que, só a
partir dos últimos três decênios deste século, com o aumento da
preocupação das Constituições Modernas com o cidadão, é que se
formou uma conscientização metodológica sobre tal direito.
Nas meditações de Carmen Lúcia Antunes, a garantia do alcance
aos órgãos jurisdicionais tem merecido uma abordagem constante, o que a levou a afirmar, com absoluta propriedade que “O primeiro passo para que a jurisdição seja um direito vivo é a garantia plena, facilitada e desembaraçada do acesso de todos aos órgãos competentes para prestá-la. A jurisdição é direito de todos e
dever do Estado, à maneira de outros serviços públicos que neste
final de século se tornaram obrigação positiva de prestação afirmativa necessária da pessoa estatal. A sua negativa ou a sua oferta insuficiente quanto ao objeto da prestação ou ao tempo de seu
desempenho é descumprimento do dever positivo de que se não
pode escusar a pessoa estatal, acarretando a sua responsabilidade
integral.
Inspirado em tais ensinamentos, ouso firmar o entendimento de que qualquer dificuldade imposta pelo Estado ou surgida de sua atuação ineficiente no campo da entrega da prestação jurisdicional, quer ocorra no momento inicial do acesso
à Justiça, quer ocorra na demora em decidir a causa, desde que ocasione dano ao jurisdicionado, gera responsabilidade civil.
O Estado, na época contemporânea, não pode amesquinhar a natureza da função jurisdicional. Consciente dessa realidade, afirmei, no ano de 1983, em trabalho
identificado na nota abaixo15, que
15 Responsabilidade do Estado pela Demora na Entrega da Prestação Jurisdicional. Este trabalho está publicado
em várias revistas jurídicas.
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Não há, portanto, que se polemizar, na atualidade, sobre a responsabilidade potencializada do Estado em assegurar aos indivíduos as
condições necessárias para a consecução do bem comum.
Para tanto, entre outras atividades que desenvolve, há de ser elencada
a de entregar a prestação jurisdicional dentro dos prazos e limites que
o sistema jurídico positivo instituiu. No particular, destaque-se que tal
dever surge como conseqüência do princípio da legalidade, dogma a
que está vinculada toda a ação estatal, por ser certo o axioma de direito de que a lei deve ser suportada, em primeiro plano, por aquele que
a fez. Sendo a lei uma regra de conduta genérica oriunda do Estado, a
este cabe o dever do seu integral cumprimento.
Mais adiante, no mesmo trabalho, acrescentei:
A essência da atividade jurisdicional é ‘aplicar contenciosamente
a lei a casos particulares, no dizer conhecido de Pedro Lessa. Acrescento, apenas: visando estabilizar o conflito através de uma solução de efeito pacificador. No contexto do que seja bem comum,
não é possível afastar a exigência de uma convivência pacífica entre os indivíduos, situação a que o Estado está obrigado a garantir, quer aplicando fisicamente a lei, em o contraditório jurisdicional, função do Executivo, quer contenciosamente, modo pelo qual
atua o Poder Judiciário.’
Mário Carlos Velloso, Ministro do Supremo Tribunal Federal, no
trabalho “Princípios Constitucionais do Processo”, escrito em memória do Ministro Carlos Coqueijo Torreão Costa, enfatiza que
“Mauro Cappelletti e B. Garth acentuam que os países ocidentais
têm-se não só se esforçado no sentido de afastar os óbices ao acesso à Justiça, como, também, procurado estimular esse acesso, proporcionando, principalmente, serviços jurídicos para os necessitados que, ‘na maior parte das modernas sociedades, o auxílio de
um advogado é essencial, senão indispensável para decifrar leis
cada vez mais complexas e procedimentos misteriosos, necessários
para ajuizar uma causa. Os métodos para proporcionar a assistência judiciária àqueles que não a podem custear são, por isso
mesmo, vitais.” (Em nota de pé de página registra a fonte da citação: “Cappelletti, Mauro, Garth, B. Acesso à Justiça. Trad. de Ellen
Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1988, pág. 31-32).
Ao Estado, não é permitido criar nenhuma barreira que dificulte
o trânsito do cidadão ao Judiciário. Deve facilitar a atividade daqueles que procuram o órgão julgador, considerado, na atualida-
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de, como a última trincheira a ser ocupada para que se possa, com
o uso dos instrumentos que a compõem, solucionar os ataques aos
direitos individuais e coletivos.
A garantia desse direito se constitui em forma expressiva de se valorizar a cidadania, fato que, em todas as civilizações, está sendo reconhecido como uma das grandes conquistas em benefício do homem a ser cultivada, de modo profundo, no próximo Século XXI.
Os fluidos dessas idéias levaram a Convenção Européia para Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais a reconhecer, de modo explícito, no texto do art. 6º, § 1º, que a Justiça
que não cumpre suas funções dentro de um prazo razoável é, para
muitas pessoas, uma justiça inacessível.
A arbitragem busca valorizar o princípio constitucional acima destacado. Ela, na atualidade brasileira, de acordo com o que dispõe a
Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, preenche vazio cultural jurídico até então existente em nosso sistema processual. Caracterizase como instrumento processual constituído de princípios que se
harmonizam com as exigências de desenvolvimento econômico, financeiro e social presentes neste final de Século XX, onde o tempo
passou a ser fator considerado na realização dos negócios por exercer influência positiva ou negativa em seus resultados.
Dada a sua importância no cenário institucional processual,
há de ser cultuada com intensa profundidade, a fim de se firmar uma cultura que leve os variados setores da sociedade a
aceitá-la e nela confiar.
Com absoluta razão, a respeito da necessidade de ser criada uma
cultura da arbitragem no País, as observações feitas por Cláudio
Vianna de Lima,16 em artigo publicado no Correio Braziliense, Caderno “Direito & Justiça”, de 27 de julho de 1998, no sentido de que:
Até o advento da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, a arbitragem foi, notoriamente, maltratada pelo Direito Positivo no Brasil.
A conseqüência é a falta de uma prática do instituto e de uma
“cultura arbitral” em nosso país. Não se acredita na arbitragem.
Só se admite a justiça feita pelo Estado, nada obstante a crise universal, do Judiciário, a delonga das decisões judiciais, a injustiça
manifesta que representam as decisões retardadas, a conseqüente
inocuidade, na maioria das vezes, dessas sentenças e a impunidade freqüente de infrações penais.
16 Cláudio Vianna de Lima, Desembargador aposentado do TJ/RN e membro da Comissão de Arbitragem da Associação Comercial do Rio de Janeiro.
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Os ensinamentos colhidos no exterior sinalizam na direção de
uma pesada campanha de marketing para mudanças de mentalidade geral e garantia de que, com a nova lei, se vá, efetivamente,
alcançar a série de benéficos efeitos de arbitragem, à semelhança
de outros países.
Assim, foi recomendado em recente encontro em Barcelona (designado Euramer), promovido pela Associação Ibero-Americana de
Câmaras (ou associações) Comerciais - AICO, e se instituiu em encontros preparatórios e no próprio Congresso da Comissão Interamericana de Arbitragem Comercial - CIAC, organizado pela Associação Comercial do Rio de Janeiro, em maio de 1997.
O fortalecimento da arbitragem, no Brasil, depende, unicamente,
ao meu entender, da formação de uma cultura para a sua prática. Para tanto, há necessidade da divulgação dos propósitos da Lei
nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, enfatizando-se os seus princípios e regras nas Universidades, nos Sindicatos, nas Associações
Comerciais, nas Associações de Bairros e demais órgãos públicos e
privados da sociedade.
Há, também, de se educar a população para o atual estágio da denominada entrega da prestação jurisdicional, quando não mais
se constitui privilégio absoluto do Estado a responsabilidade pelo
seu manejo.
Há de se ter em consideração que os direitos e garantias fundamentais vistos na era contemporânea não podem receber interpretação idêntica a que se fazia em épocas passadas. Vivencia-se, na
atualidade, uma transformação do modelo até então adotado
para o Estado, buscando-se novas estruturas para o seu funcionamento .
O juízo arbitral, na forma concebida pela Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, não vai ao encontro aos princípios da jurisdição
única ou da inafastabilidade da jurisdição (CF, art. 5º, XXXV), da
essencialidade do juiz natural, com banimento do Juízo ou Tribunal de Exceção (CF, art. 5º, XXXVII) e da ampla defesa (CF, art. 5º,
LIV e LV).
Tais direitos e garantias são fundamentais para o cidadão. Eles
continuam sendo respeitados pela arbitragem em sua total integridade, haja vista que ela é, apenas, caminho encontrado, com
apoio na lei, pela vontade das partes, expressando com liberdade
o seu querer, de solucionar os conflitos.
Não se pode deixar sem consideração que a solução dos conflitos
é o objetivo maior a ser alcançado pelo Estado Brasileiro, confor-
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me disposto está no Preâmbulo da Constituição Federal de 1988,
ao assim dispor:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia
Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a
liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e contemporânea, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a
seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
Ora, no preâmbulo da Constituição Federal de 1988, está a síntese
dos objetivos fundamentais a serem alcançados pelo Estado Brasileiro, entre eles o de proporcionar aos administrados uma convivência baseada na harmonia social e na solução pacífica das controvérsias. Evidente que, em face de tal posicionamento do constituinte brasileiro, não se confiou, de modo exclusivo, ao Poder Judiciário, a entrega da prestação jurisdicional.
O art. 5º, inciso XXXV, da CF/88, ao dispor que “a lei não excluirá
da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” não
invalida o disposto no art. 1º, da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de
1996, ao determinar que “As pessoas capazes de contratar poderão
valer-se de arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.” No dispositivo em apreço há uma faculdade outorgada ao cidadão capaz de contratar e de dispor a respeito do seu patrimônio. Não consta qualquer impedimento do litígio
deixar de ser apreciado pelo Poder Judiciário.
O artigo comentado respeita, conseqüentemente, a manifestação
da vontade do cidadão, valorizando a sua dignidade humana, em
face do que dispõe o art. 1º, incisos II e III, da Constituição Federal,
cuja redação transcrevo:
Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituise em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:
I - ................;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - ...............;
V - o pluralismo político.
A solução dos conflitos por meios alternativos processuais, como é
o caso da arbitragem, que atua, apenas, no campo patrimonial,
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constitui, portanto, um direito subjetivo fundamental do cidadão
e que merece o apoio de toda a comunidade jurídica. Esse entendimento decorre da interpretação sistêmica da Constituição Federal, quando vincula-se à mensagem contida em seu preâmbulo,
na parte que prega a harmonia social e a solução pacífica dos
conflitos, com os arts. 1º, II e III, e 5º, inciso XXXV, da mesma Carta Magna.
Há plena liberdade do homem, em situação de conflito patrimonial, optar pela solução via arbitragem. Esta, por sua vez, se ofender, na sua prática, a quaisquer princípios garantidores dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, poderá ser anulada,
pela via do Poder Judiciário, conforme dispõe o art. 33, da Lei nº
9.307, de 23 de setembro de 1996.
A arbitragem, na forma instituída no Brasil, atende, conseqüentemente, aos propósitos fundamentais veiculados na Carta Magna e
se aproxima dos anseios do povo de conviver com uma justiça rápida, segura, desburocratizada e de fácil acesso, especialmente,
por não exigir maiores despesas financeiras.
A minha convicção cada vez mais está fortalecida pela necessidade de se fazer
aplicar, no Brasil, a arbitragem como meio de solução dos litígios, expandindo-a para
o âmbito das controvérsias trabalhistas. Há necessidade, porém, de que o Estado estimule a criação de órgãos arbitrais, facilitando o seu funcionamento e criando condições materiais para que cumpram a missão a que estão destinados.
5.
CONCLUSÕES
Formulo, finalmente, alguns enunciados que, no trato do tema arbitragem,
merecem ser sempre considerados, para que bem possa se compreender a sua evolução histórica e conceitual, especialmente, a sua estrutura atual no ordenamento
jurídico nacional.
Os enunciados abaixo registrados são sínteses do que tenho como pacificadas
a respeito da arbitragem no campo doutrinário.
Enunciado 1 - Um tribunal arbitral nunca age com plena independência perante a justiça estatal, em face de determinadas medidas estarem reservadas ao Poder
Judiciário.
Enunciado 2 - Em regra, conforme legislação da maioria dos países, o tribunal
arbitral não pode expedir medidas coercitivas. O nosso sistema segue essa linha: ver
art. 22, § 4º, da Lei nº 9.307, de 23/09/96 “... havendo necessidade de medidas coercitivas ou cautelares, os árbitros poderão solicitá-las ao órgão do Poder Judiciário
que seria, originariamente, competente para julgar a causa.”
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Enunciado 3 - As partes, podem, contudo, quando acertarem o procedimento
arbitral, permitir a adoção de medidas cautelares.
Enunciado 4 - A tendência moderna, em vários países, é seguir a Lei Modelo
da United Nations Commission on International Trade Law (UNCITRAL), de
21/06/1985: Canadá, Chipre, Austrália, Bulgária, México, Escócia, Federação Russa,
Peru, Nigéria, Tunísia, Hong Kong, Ucrânia, Hungria, Egito, Cingapura e vários Estados dos Estados Unidos incorporaram a Lei Modelo da UNCITRAL, na sua íntegra ou
pelo menos em grande parte, na sua legislação interna.
Enunciado 5 - A Lei Modelo da UNCITRAL é aplicável, tão-somente, à arbitragem comercial internacional. Foi aprovada pela Comissão das Nações Unidas para o
Direito Comercial Internacional, visando à maior uniformidade para essa espécie de
arbitragem.
Enunciado 6 - Os mentores da Lei nº 9.307, de 23/09/96, foram inspirados pelo
trabalho elaborado pela UNCITRAL, sem se deixar de anotar que, também, receberam
influências da Convenção de Nova Iorque de 10/06/1958 sobre o Reconhecimento e a
Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, como também a Convenção Interamericana sobre Arbitragem Comercial Internacional do Panamá de 30/01/1975, conforme anota Pedro Batista Martins, in Anotações sobre a Arbitragem no Brasil e o Projeto de Lei do
Senado nº 78/92, Revista de Processo, 77;1995, pág. 58-59.
Enunciado 7 – O reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras, no Brasil, obedecem às regras seguintes:
- o tema é regulado pelos arts. 34 a 40, da Lei nº 9.307, de 23/09/1996;
- princípios a serem obedecidos: a) só será reconhecida e executada no Brasil se se apresentar conforme com os tratados internacionais com eficácia
no ordenamento jurídico interno; b) na ausência de tratados só se estiverem de acordo com os termos da Lei nº 9.307, de 23/09/1996;
- ser homologada pelo Supremo Tribunal Federal;
- a homologação pelo STF obedece, no que couber, aos arts. 483 e 484, do
CPC, e ao regimento Interno daquela Corte;
- há necessidade de ser requerida pela parte, em petição (art. 282, do CPC),
acompanhada de: a) original da sentença arbitral ou cópia devidamente certificada, autenticada pelo consulado brasileiro e acompanhada de tradução
oficial; b) - o original da convenção de arbitragem ou cópia devidamente
certificada, acompanhada de tradução oficial.
Enunciado 8 - A homologação de sentença estrangeira somente será negada
se o réu comprovar :
- a incapacidade das partes em face do nosso C. Civil ou conforme fixado em
tratados;
- invalidade da convenção da arbitragem segundo a lei à qual as partes a submeteram, ou, na falta de indicação, em virtude da lei do país onde a sentença arbitral foi proferida;
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- que não foi notificado da designação do árbitro ou do procedimento da arbitragem, ou tenha sido violado o princípio do contraditório, impossibilitando a ampla defesa;
- que a sentença tenha extrapolado os limites da convenção e haja impossibilidade de se separar a parte excedente do que foi convencionado ser submetido ao procedimento de arbitragem;
- a não-obrigatoriedade, ainda, da sentença arbitral, ou que tenha sido anulada
ou suspensa por órgão judicial do país onde a sentença arbitral foi prolatada;
- que o objeto do litígio não é suscetível de ser resolvido por arbitragem;
- que a decisão ofende a ordem pública nacional.
Enunciado 9 - Se o vício formal existente for corrigido, novo pedido de homologação pode ser formulado.
Enunciado 10 – A Convenção Interamericana. O Dec. Legislativo nº 93/95
(DOU de 23/06/1995, pág. 9197), aprovou o texto da Convenção Interamericana sobre Eficácia Extraterritorial das Sentenças e Laudos Arbitrais Estrangeiros, concluído
em Montevidéu, em 08/05/1970. O texto integral da convenção encontra-se publicado no Diário do Congresso Nacional (Seção II, de 23/06/1995).
Enunciado 11 - O Decreto nº 1476/95 (DOU de 03/05/1995, pág. 6153) promulgou o Tratado Relativo à Cooperação Judiciária e ao Reconhecimento e Execução de
Sentenças em Matéria Civil, entre a República Federativa do Brasil e a República Italiana,
de 17/10/1989. O procedimento para o reconhecimento, homologação e execução da
sentença italiana no Brasil está previsto no Decreto nº 1476/95, arts. 18 a 21.
Enunciado 12 – A homologação de sentença estrangeira é atividade privativa
do STF, sendo via de expressão da soberania(CF. art. 102, I, h. RISTF, arts. 217 a 224).
Enunciado 13 – A execução da sentença estrangeira obedece às linhas do art.
484, CPC - A execução far-se-á por carta de sentença, extraída dos autos da homologação e obedecerá às regras estabelecidas para a execução da sentença nacional da
mesma natureza.
Enunciado 14 - É da justiça federal comum de primeiro grau a competência
para a execução. CF, art. 109, X. Procedimento de homologação no STF. Ver arts. 215
a 224, do RISTF.
Por fim, enumero os Tratados multilaterais mais importantes sobre a arbitragem privada. São:
1. Protocolo de Genebra sobre Cláusulas Arbitrais de 24/09/1923 (Protocolo
de Genebra). Ele reconhece a validade da cláusula compromissória como
juridicamente válida quando a arbitragem for internacional. O Brasil ratificou-o em 22/03/1932, pelo Dec. nº 21.187, de 22/03/1932.
2. Convenção de Genebra concernente à Execução de Laudos Arbitrais Estrangeiros de 26/09/1927. Cuidou da execução de laudos arbitrais estrangeiros e que foram elaborados conforme o Protocolo de Genebra sobre
Cláusulas Arbitrais de 24/09/1923. O Brasil não o ratificou.
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3. Convenção de Nova Iorque de 10/06/1958 sobre o Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras. Elaborada sob o patrocínio das
Nações Unidas. Substituiu a Convenção de Genebra acima noticiada. Mais
de cem países de todos os continentes. É o tratado multilateral mais significativo (Ratificado em 01/01/1995).
4. A Convenção Européia sobre Arbitragem Comercial Internacional de
10/04/1961 (Convenção de Genebra de 1961) destinava-se a facilitar o comércio entre os países da Europa Ocidental e do Leste Europeu.
5. A Convenção de Washington de 18/03/1965 para a Solução das Lides concernentes a Investimentos entre Estados e Nacionais de outros Estados levou à constituição do Centro Internacional para a Solução das Lides em Relação a Investimentos.
6. Convenção Interamericana sobre Arbitragem Comercial Internacional do
Panamá de 30/01/1975 - ratificada pelo Brasil pelo Dec. nº 1.902, de
09/05/1996.
7. No Brasil, cumpre realçar a Convenção de Cooperação Judiciária, em Matéria Civil, Comercial, Trabalhista e Administrativa, celebrada com a França
em 30/01/1981 e promulgada no país pelo Dec. nº 91.207, de 29/04/1985,
aplicável, expressamente, à sentença arbitral, sendo esse aspecto de suma
importância prática com relação aos laudos proferidos no âmbito da Câmara Internacional do Comércio de Paris (CCI), quando a sede do tribunal arbitral tem localização dentro do território da França.
O culto que a doutrina brasileira promove, na época contemporânea, à arbitragem, decorre das transformações vividas pela cidadania brasileira. A sua consagração como meio alternativo de solução de conflitos deve ser considerada como passo importante para o aperfeiçoamento dos direitos do homem na busca de encontrar a paz com a solução dos seus conflitos.
O NOVO § 3.º DO ART. 5.º DA CONSTITUIÇÃO
E SUA EFICÁCIA
Valerio de Oliveira Mazzuoli
Mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da
Universidade Estadual Paulista (UNESP).
Professor Honorário da Faculdade de Direito e Ciências Políticas da
Universidade de Huánuco (Peru).
Professor de Direito Internacional Público e Direitos Humanos no Instituto de Ensino Jurídico
Professor Luiz Flávio Gomes (IELF), em São Paulo, e de Direito Constitucional Internacional
nos cursos de Especialização da Universidade Estadual de Londrina (UEL-PR).
Membro da Sociedade Brasileira de Direito Internacional (SBDI), da Associação Brasileira
de Constitucionalistas Democratas (ABCD) e coordenador jurídico da Revista de
Derecho Internacional y del Mercosur (Buenos Aires).
Advogado no Estado de São Paulo.
1.
INTRODUÇÃO
A promulgação da Constituição brasileira de 1988 foi, sem dúvida, um marco significativo para o início do processo de redemocratização do Estado brasileiro e de institucionalização dos direitos humanos no país. Mas se é certo que
a promulgação do texto constitucional significou a abertura do nosso sistema jurídico para essa chamada nova ordem estabelecida a partir de então, também
não é menos certo que todo esse processo desenvolveu-se concomitantemente
à cada vez mais intensa ratificação, pelo Brasil, de inúmeros tratados internacionais globais e regionais protetivos dos direitos da pessoa humana, os quais perfazem uma imensa gama de normas diretamente aplicáveis pelo Judiciário e que
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agregam vários novos direitos e garantias àqueles já constantes do nosso ordenamento jurídico interno.
Atualmente, no Brasil, já se encontram ratificados e em pleno vigor praticamente todos os tratados internacionais significativos sobre direitos humanos pertencentes ao sistema global, de que são exemplos a Convenção para a Prevenção e
a Repressão do Crime de Genocídio (1948), a Convenção Relativa ao Estatuto dos
Refugiados (1951), o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados (1966), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), o Protocolo Facultativo Relativo
ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), o Pacto Internacional
dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), a Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (1979), o
Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (1999), a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984), a Convenção sobre os
Direitos da Criança (1989) e ainda o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (1998).
No que tange ao sistema interamericano de direitos humanos, o Brasil também já
é parte de praticamente todos os tratados existentes, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1988), o Protocolo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos Referente à Abolição da Pena de Morte (1990), a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985), a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994), a
Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de Menores (1994) e a Convenção
Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas
Portadoras de Deficiência (1999).
A Constituição de 1988, dentro desse contexto internacional marcadamente humanizante e protetivo, erigiu a dignidade da pessoa humana (art. 1.º, inc. III) e a prevalência dos direitos humanos (art. 4.º, inc. II) a princípios fundamentais da República Federativa do Brasil. Este último passou a ser, inclusive, princípio pelo qual o Brasil deve se reger no cenário internacional. A Carta de 1988, dessa forma, instituiu no país novos princípios jurídicos que conferem suporte axiológico a todo o sistema normativo brasileiro e
que devem ser sempre levados em conta quando se trata de interpretar quaisquer normas do ordenamento jurídico pátrio.
Dentro dessa mesma trilha, que começou a ser demarcada desde a Segunda
Guerra Mundial, em decorrência dos horrores e atrocidades cometidos pela Alemanha Nazista no período sombrio do Holocausto, a Constituição brasileira de 1988
deu um passo extraordinário rumo à abertura do nosso sistema jurídico ao sistema
internacional de proteção dos direitos humanos, quando, no § 2.º do seu art. 5.º,
deixou bem estatuído que:
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n.
42
95
Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou
dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil
seja parte. [grifo nosso]
Com base nesse dispositivo, que segue a tendência do constitucionalismo
contemporâneo, sempre defendemos que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil têm índole e nível constitucionais, além de aplicação
imediata, não podendo ser revogados por lei ordinária posterior. E a nossa interpretação sempre foi a seguinte: se a Constituição estabelece que os direitos e garantias nela elencados “não excluem” outros provenientes dos tratados internacionais
em que a República Federativa do Brasil seja parte, é porque ela própria está a autorizar que esses direitos e garantias internacionais constantes dos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil “se incluem” no nosso ordenamento jurídico interno, passando a ser considerados como se escritos na Constituição
estivessem. É dizer, se os direitos e garantias expressos no texto constitucional “não
excluem” outros provenientes dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte, é porque, pela lógica, na medida em que tais instrumentos passam a assegurar
outros direitos e garantias, a Constituição “os inclui” no seu catálogo de direitos protegidos, ampliando o seu “bloco de constitucionalidade”.1
1
São inúmeros os outros argumentos em favor da índole e do nível constitucionais dos tratados de direitos humanos no nosso ordenamento jurídico interno, que preferimos não tratar neste estudo, por já terem sido detalhadamente estudados em vários outros trabalhos sobre o tema, os quais se recomenda a prévia leitura para
a melhor compreensão deste texto. São eles: MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, “A incorporação dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos no ordenamento brasileiro”, in Revista de Informação Legislativa, ano 37, n.º 147, Brasília: Senado Federal, jul./set. 2000, pp. 179-200; “Hierarquia constitucional e incorporação automática dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos no ordenamento brasileiro”,
in Revista de Informação Legislativa, ano 37, n.º 148, Brasília: Senado Federal, out./dez. 2000, pp. 231-250; e
também MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Direitos humanos, Constituição e os tratados internacionais: estudo analítico da situação e aplicação do tratado na ordem jurídica brasileira, São Paulo: Juarez de Oliveira,
2002, pp. 233-252; Prisão civil por dívida e o Pacto de San José da Costa Rica: especial enfoque para os contratos de alienação fiduciária em garantia, Rio de Janeiro: Forense, 2002, pp. 109-176; e ainda, do mesmo
autor, Tratados Internacionais: com comentários à Convenção de Viena de 1969, 2.ª ed., rev., ampl. e atual.,
São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, pp. 357-395. Nesse exato sentido, defendendo o status constitucional e a
aplicação imediata dos tratados de direitos humanos, pela interpretação do § 2.º do art. 5.º da CF, vide também: CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, “A interação entre o direito internacional e o direito interno na
proteção dos direitos humanos”, in A incorporação das normas internacionais de proteção dos direitos humanos no direito brasileiro, 2.ª ed., San José, Costa Rica/Brasília: IIDH (et all.), 1996, pp. 210 e ss; e PIOVESAN, Flávia, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, 5.ª ed., rev., ampl. e atual., São Paulo: Max Limonad, 2002, pp. 75-98 (onde, pioneiramente, se defendeu com clareza a hierarquia constitucional
e a aplicação imediata desses tratados no direito interno brasileiro); e ainda seu Temas de direitos humanos,
2.ª ed., rev., ampl. e atual., São Paulo: Max Limonad, 2003, pp. 44-48. Também defenderam esta tese, en passant, SILVA, José Afonso da, Poder constituinte e poder popular: estudos sobre a Constituição, São Paulo: Malheiros, 2000, pp. 195-196; MAGALHÃES, José Carlos de, O Supremo Tribunal Federal e o direito internacional: uma análise crítica. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2000, pp. 64 e ss; e VELLOSO, Carlos Mário da Silva, “Os tratados na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”, in Revista de Informação Legislativa, ano 41, n.° 162, Brasília, abr./jun./2004, p. 39.
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faculdade de direito de bauru
Da análise do § 2.º do art. 5.º da Carta brasileira de 1988, percebe-se que três
são as vertentes, no texto constitucional brasileiro, dos direitos e garantias individuais: a) direitos e garantias expressos na Constituição, a exemplo dos elencados
nos incisos I ao LXXVIII do seu art. 5.º, bem como outros fora do rol de direitos mas
dentro da Constituição, como a garantia da anterioridade tributária, prevista no art.
150, III, b, do Texto Magno; b) direitos e garantias implícitos, subentendidos nas regras de garantias, bem como os decorrentes do regime e dos princípios pela Constituição adotados, e c) direitos e garantias inscritos nos tratados internacionais em
que a República Federativa do Brasil seja parte.2
A Carta de 1988, com a disposição do § 2.º do seu art. 5.º, de forma inédita,
passou a reconhecer claramente, no que tange ao seu sistema de direitos e garantias, uma dupla fonte normativa: a) aquela advinda do direito interno (direitos expressos e implícitos na Constituição, estes últimos decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados), e; b) aquela outra advinda do direito internacional (decorrente dos tratados internacionais de direitos humanos em que a República Federativa do Brasil seja parte). De forma expressa, a Carta de 1988 atribuiu aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos devidamente ratificados pelo
Estado brasileiro a condição de fonte do sistema constitucional de proteção de direitos. É dizer, tais tratados passaram a ser fonte do sistema constitucional de proteção de direitos no mesmo plano de eficácia e igualdade daqueles direitos, expressa
ou implicitamente, consagrados pelo texto constitucional, o que justifica o status de
norma constitucional que detém tais instrumentos internacionais no ordenamento
jurídico brasileiro. E esta dualidade de fontes que alimenta a completude do sistema significa que, em caso de conflito, deve o intérprete optar preferencialmente
pela fonte que proporciona a norma mais favorável à pessoa protegida, pois o que
se visa é a otimização e a maximização dos sistemas (interno e internacional) de
proteção dos direitos e garantias individuais.3
Para nós, cláusula aberta do § 2.º do art. 5.º da Carta da 1988, sempre admitiu
o ingresso dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos no mesmo
grau hierárquico das normas constitucionais, e não em outro âmbito de hierarquia
normativa. Portanto, segundo sempre defendemos, o fato de esses direitos se encontrarem em tratados internacionais jamais impediu a sua caracterização como direitos de status constitucional.4
2
3
4
Cf. VELLOSO, Carlos Mário da Silva. “Os tratados na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”, cit., pp. 3839.
Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados Internacionais: com comentários à Convenção de Viena de
1969, 2.ª ed., cit., pp. 359-360; e BIDART CAMPOS, German J. Tratado elemental de derecho constitucional
argentino, Tomo III. Buenos Aires: Ediar Sociedad Anónima, 1995, p. 282.
Cf., neste exato sentido, ARNOLD, Rainer, “El derecho constitucional europeo a fines del siglo XX: desarrollo y
perspectivas”, in MANCHEGO, José F. Palomino & GARBONELL, José Carlos Remotti (coords.), Derechos Humanos y Constitución en Iberoamérica (Libro-Homenaje a Germán J. Bidart Campos), Lima: Instituto Iberoamericano de Derecho Constitucional, 2002, p. 22.
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n.
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Ainda em sede doutrinária, também não faltaram vozes que, dando um passo
mais além do nosso, defenderam cientificamente o status supraconstitucional dos
tratados de proteção dos direitos humanos, levando-se em conta toda a principiologia internacional marcada pela força expansiva dos direitos humanos e pela sua caracterização como normas de jus cogens internacional.5
Em sede jurisprudencial, entretanto, a matéria nunca foi pacífica em nosso
país, tendo o Supremo Tribunal Federal tido a oportunidade de, em mais de uma
ocasião, analisar o assunto, não tendo chegado a uma solução uniforme e tampouco satisfatória.6
Em virtude das controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais existentes até então no Brasil, e com o intuito de pôr fim às discussões relativas à hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico pátrio, acrescentou-se um parágrafo subseqüente ao § 2.º do art. 5.º da Constituição, por meio da
recente Emenda Constitucional n.º 45, de 8 de dezembro de 2004, proveniente da
PEC 29/2000 relativa à “Reforma do Judiciário”, com a seguinte redação:
§ 3º. Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional,
em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros,
serão equivalentes às emendas constitucionais.
A redação do dispositivo, como se percebe, é materialmente semelhante à
do art. 60, § 2.º da Constituição, segundo o qual toda proposta de emenda à
Constituição “será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional em
5
6
No Brasil, a tese da supraconstitucionalidade dos tratados internacionais de direitos humanos é muito bem defendida pelo Prof. Celso D. de Albuquerque Mello, que se diz “ainda mais radical no sentido de que a norma
internacional prevalece sobre a norma constitucional, mesmo naquele caso em que uma norma constitucional
posterior tente revogar uma norma internacional constitucionalizada”, tese esta que “está consagrada na jurisprudência e tratado internacional europeu de que se deve aplicar a norma mais benéfica ao ser humano, seja
ela interna ou internacional”. (Cf. “O § 2º do art. 5º da Constituição Federal”, in TORRES, Ricardo Lobo [org.],
Teoria dos Direitos Fundamentais, 2.ª ed. rev. e atual., Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 25).
Vide, sobre a posição majoritária do STF até então – segundo a qual os tratados internacionais ratificados pelo
Estado (inclusos os de direitos humanos) têm nível de lei ordinária –, o julgamento do HC 72.131-RJ, de
22.11.1995, que teve como relator o Min. Celso de Mello, tendo sido vencidos os votos dos Ministros Marco Aurélio, Carlos Velloso e Sepúlveda Pertence. Em relação à posição minoritária do STF, destacam-se os votos dos
Ministros Carlos Velloso, em favor do status constitucional dos tratados de direitos humanos (v. HC 82.4242/RS, relativo ao famoso “caso Ellwanger”, e ainda seu artigo “Os tratados na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”, já cit., p. 39), e Sepúlveda Pertence, que, apesar de não admitir a hierarquia constitucional desses tratados, passou a aceitar, entretanto, o status de norma supralegal desses instrumentos, tendo assim se
manifestando: “Se assim é, à primeira vista, parificar às leis ordinárias os tratados a que alude o art. 5.º, § 2.º,
da Constituição, seria esvaziar de muito do seu sentido útil a inovação, que, malgrado os termos equívocos do
seu enunciado, traduziu uma abertura significativa ao movimento de internacionalização dos direitos humanos.
Ainda sem certezas suficientemente amadurecidas, tendo assim (…) a aceitar a outorga de força supra-legal às
convenções de direitos humanos, de modo a dar aplicação direta às suas normas – até, se necessário, contra a
lei ordinária – sempre que, sem ferir a Constituição, a complementem, especificando ou ampliando os direitos e garantias dela constantes” (v. RHC 79.785-RJ, in Informativo do STF, n.º 187, de 29.03.2000).
98
faculdade de direito de bauru
dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos
votos dos respectivos membros”. A semelhança dos dispositivos está ligada ao
fato de que, antes da entrada em vigor da Emenda n.º 45/2004, os tratados internacionais de direitos humanos, antes de serem ratificados pelo Presidente da República, eram exclusivamente aprovados (por meio de Decreto Legislativo) por
maioria simples, nos termos do art. 49, inc. I, da Constituição, o que gerava inúmeras controvérsias jurisprudenciais (a nosso ver infundadas) sobre a aparente
hierarquia infraconstitucional (nível de normas ordinárias) desses instrumentos internacionais no nosso direito interno.
A inspiração do legislador constitucional brasileiro talvez tenha sido o art. 79,
§§ 1.º e 2.º da Lei Fundamental alemã, que prevê que os tratados internacionais, sobretudo os relativos à paz (com a observação de que a Lei Fundamental alemã não
se refere expressamente aos tratados “sobre direitos humanos” como faz agora o
texto constitucional brasileiro), podem complementar a Constituição, uma vez que
esta seja emendada por lei, aprovada por dois terços dos membros do Parlamento
Federal e dois terços dos votos do Conselho Federal, nestes termos:
Artigo 79 [Emendas à Lei Fundamental]
1. A Lei Fundamental só poderá ser emendada por uma lei que altere ou complemente expressamente o seu texto. Em matéria de
tratados internacionais que tenham por objeto regular a paz, prepará-la ou abolir um regime de ocupação, ou que objetivem promover a defesa da República Federal da Alemanha, será suficiente, para esclarecer que as disposições da Lei Fundamental não se
opõem à conclusão e à entrada em vigor de tais tratados, complementar, e tão-somente isso, o texto da Lei Fundamental.
2. Essas leis precisam ser aprovadas por dois terços dos membros
do Parlamento Federal e dois terços dos votos do Conselho Federal
[grifo nosso].7
A alteração do texto constitucional brasileiro, sob o pretexto de acabar com as
discussões referentes às contendas doutrinárias e jurisprudenciais relativas ao status
hierárquico dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro, veio causar, como veremos no decorrer deste estudo, graves problemas interpretativos relativos à integração, eficácia e aplicabilidade desses tratados
no nosso direito interno, sendo que o primeiro e mais estúpido deles foi o de ter
feito tabula rasa de uma interpretação do § 2.º do art. 5.º da Constituição, que já es7
Para detalhes, vide VON SIMSON, Werner & SCHWARZE, Jorge, “Integración europea y Ley Fundamental: Mastrique y sus consecuencias para el Derecho Constitucional alemán”, in BENDA, Ernst (et all.), Manual de derecho constitucional, Madrid: Marcial Pons Ediciones Jurídicas y Sociales, 1996, pp. 33 e ss.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
99
tava sedimentada na doutrina humanista mais abalizada, bem como na jurisprudência de vários tribunais de diversos Estados brasileiros.8
Na medida em que a nova alteração constitucional prevê que os tratados e
convenções internacionais sobre direitos humanos somente equivalerão às emendas constitucionais uma vez que sejam aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos seus respectivos membros,
fica a questão de saber se o novo § 3.º do art. 5.º da Constituição, acrescentado pela
Emenda n.º 45/2004, prejudica ou não o entendimento que já vinha sendo seguido
em relação ao § 2.º do mesmo art. 5.º da Carta de 1988, no sentido de terem os tratados de direitos humanos status de norma constitucional.
Antes de estudarmos todas as facetas do novo § 3.º do art. 5.º da Constituição,
mister verificar como se encontra a situação dos tratados de direitos humanos nas
Constituições latino-americanas. Esse panorama comparado auxiliará na contextualização do problema e ajudará o intérprete na sua resolução.
2.
A SITUAÇÃO CONSTITUCIONAL ATUAL NA AMÉRICA LATINA
Vários países latino-americanos têm concedido status normativo constitucional aos tratados de proteção dos direitos humanos, sendo crescente a preocupação
dos mesmos em se deixar bem assentado, em nível constitucional, a questão da hierarquia normativa de tais instrumentos internacionais protetivos dos direitos da pessoa humana.9
Abstraindo-se a Constituição brasileira de 1988, podem-se verificar várias
Constituições de países latino-americanos que, seguindo a tendência mundial de integração dos direitos humanos ao direito interno, passaram a incorporar em seus
respectivos textos regras bastante nítidas sobre a hierarquia desses instrumentos
nos seus ordenamentos internos. Nesse sentido, a Constituição peruana anterior, de
1979, estabelecia no seu art. 101 que “os tratados internacionais, celebrados pelo
Peru com outros Estados, formam parte do direito nacional”, e que, “em caso de
8
9
Em sede jurisprudencial, vale destacar um dos votos precursores em relação ao tema no país, do então Juiz Antonio Carlos Malheiros, proferido no julgamento do Habeas Corpus n.º 637.569-3, da 8.ª Câmara do 1.º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, onde ficou bem colocado que “os princípios emanados dos tratados internacionais, a que o Brasil tenha ratificado, eqüivalem-se às próprias normas constitucionais”. No mesmo sentido, vide o voto proferido na Apelação n.º 483.605-0/1 do 2º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São
Paulo, 5ª Câm., rel. Juiz Dyrceu Cintra, julg. em 23.04.97 (voto n.º 781).
Cf., para um estudo mais amplo do tema, BUERGENTHAL, Thomas, “Modern constitutions and human rights
treaties”, in Columbia Journal of Transnational Law, n.º 36, 1997, pp. 216-217; e FIX-ZAMUDIO, Héctor, “El
derecho internacional de los derechos humanos en las Constituciones latinoamericanas y en la Corte Internamericana de Derechos Humanos”, in Revista Latinoamericana de Derecho, año 1, n.º 1, enero./junio de 2004,
pp. 141-180. Aliás, como destaca Fix-Zamudio: “En los ordenamientos constitucionales latinoamericanos se observa una evolución dirigida a otorgar jerarquía superior, así sea con ciertas limitaciones, a las normas de derecho internacional, particularmente las de carácter convencional, sobre los preceptos de nivel interno, inspirándose de alguna manera la evolución que se observa en los países de Europa continental con posterioridad a la
Segunda Guerra Mundial” (idem, p. 175).
100
faculdade de direito de bauru
conflito entre o tratado e a lei, prevalece o primeiro”.10 No art. 105, a mesma Carta
determinava que os preceitos contidos nos tratados de direitos humanos têm hierarquia constitucional, não podendo ser modificados senão pelo procedimento
para a reforma da própria Constituição, o que, infelizmente, não mais se encontra
na atual Constituição do Peru de 1993,
a qual se limita a determinar (4.ª disposição final e transitória)
que os direitos constitucionalmente reconhecidos se interpretam
de conformidade com a Declaração Universal de Direitos Humanos e com os tratados de direitos humanos ratificados pelo Peru.11
A Constituição da Guatemala também atribui aos tratados internacionais de
direitos humanos condição especial (art. 46), diferindo, contudo, da Carta peruana de 1979, na medida em que esta dava a ditos tratados a hierarquia de norma
materialmente constitucional, enquanto aquela atribuía a estes preeminência sobre a legislação ordinária, bem como sobre o restante do direito interno. A Constituição da Nicarágua, por sua vez, integra à sua enumeração constitucional de direitos, para fins de proteção, os direitos consagrados nos seguintes instrumentos:
Declaração Universal dos Direitos Humanos, Declaração Americana dos Direitos
e Deveres do Homem, Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
A Constituição do Chile, reformada em 1989, passou a dispor, no seu art. 5.º,
inc. II, que: “É dever dos órgãos do Estado respeitar e promover tais direitos garantidos por esta Constituição, assim como pelos tratados internacionais ratificados pelo
Chile e que se encontrem vigentes”. Nessa mesma linha, encontra-se a Constituição da
Colômbia de 1991, reformada em 1997, cujo art. 93 traz disposição no sentido de que
os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos devidamente ratificados
pela Colômbia têm prevalência na ordem interna, e que os direitos humanos constitucionalmente assegurados serão interpretados de conformidade com os tratados de
direitos humanos ratificados pela Colômbia. Acrescenta ainda o seu art. 94 que a
“enunciação dos direitos e garantias contidos na Constituição e em convênios internacionais vigentes, não deve ser entendida como negando outros que, sendo inerentes
à pessoa humana, não figurem expressamente neles”.12 E ainda, segundo o art. 164 da
10 Cf., a esse respeito, FIX-ZAMUDIO, Héctor, Proteccion juridica de los derechos humanos, México: Comision
Nacional de Derechos Humanos, 1991, p. 173.
11 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. “Direito internacional e direito interno: sua interação na proteção
dos direitos humanos”, in Instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, São Paulo: Centro
de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 1996, p. 19.
12 Estas disposições já são suficientes, segundo Sandra Morelli Rico, para atribuir um caráter “supranacional” aos
tratados internacionais em matéria de direitos humanos, tendo esta interpretação sido reconhecida inslusive
pela Corte Constitucional colombiana. Cf. RICO, Sandra Morelli, “Reconocimiento y efectividad de la carta de
Revista do instituto de pesquisas e estudos
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42
101
Carta colombiana, “o Congresso dará prioridade ao trâmite de projetos de lei aprobatórios dos tratados sobre direitos humanos que sejam submetidos à sua consideração
pelo governo”.
Seguindo essa nova tendência das Constituições latino-americanas, a Constituição Argentina, reformada em 1994, estabelece em seu artigo 75, inc. 22, que determinados tratados e instrumentos internacionais de proteção de direitos humanos nele enumerados têm hierarquia constitucional, só podendo ser denunciados
mediante prévia aprovação de dois terços dos membros do Poder Legislativo. A Carta Magna Argentina indica que têm essa hierarquia os seguintes instrumentos: a)
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem; b) Declaração Universal
dos Direitos Humanos; c) Convenção Americana sobre Direitos Humanos; d) Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos; e) Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos; f) Convenção para a Prevenção e Repressão
do Crime de Genocídio; g) Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as
Formas de Discriminação Racial; h) Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher; i) Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, e a j) Convenção sobre os
Direitos da Criança.
A reforma constitucional argentina de 1994 foi grandemente influenciada por
uma inovadora jurisprudência que começava a se formar, reconhecendo a primazia dos
tratados internacionais de proteção dos direitos humanos sobre a legislação interna
(exatamente o que o poder reformador brasileiro deveria ter feito, seguindo a doutrina mais especializada, mas que infelizmente não fez). A Carta Argentina frisa ainda que
tais direitos são “complementares” aos direitos e garantias nela reconhecidos.13
Segundo Cançado Trindade, uma outra técnica seguida pelas recentes reformas constitucionais latino-americanas
derechos contenida en la Constitución colombiana de 1991”, in MANCHEGO, José F. Palomino & GARBONELL,
José Carlos Remotti (coords.), Derechos Humanos y Constitución en Iberoamérica (Libro-Homenaje a Germán J. Bidart Campos), Lima: Instituto Iberoamericano de Derecho Constitucional, 2002, pp. 208-209.
13 Como leciona Bidart Campos, o termo “complementares” inserido no inciso 22 do art. 75 da Carta Magna argentina reformada, não significa que aqueles instrumentos por ela elencados têm hierarquia inferior à Constituição, e muito menos que eles têm mero caráter secundário ou acessório; “complementário” não quer dizer
“supletório”. “Complementário”, para Bidart Campos, quer dizer que “algo” deve agregar-se a outro “algo” para
que este esteja completo. De sorte que aqueles instrumentos internacionais com hierarquia constitucional
conferem completude ao sistema de direitos da Constituição gerando uma dupla fonte: a interna e a internacional, para que só assim o sistema argentino de direitos esteja abastecido. Do contrário, segundo ele (e
com absoluta razão, a nosso ver), o texto constitucional não estará completo. Cf. BIDART CAMPOS, German J.
Tratado elemental de derecho constitucional argentino, Tomo III, cit., pp. 277-278. Cf. também, FIX-ZAMUDIO, Héctor, “La protección procesal de los derechos humanos en la reforma constitucional argentina de agosto de 1994”, in MANCHEGO, José F. Palomino & GARBONELL, José Carlos Remotti (coords.), Derechos Humanos y Constitución en Iberoamérica (Libro-Homenaje a Germán J. Bidart Campos), Lima: Instituto Iberoamericano de Derecho Constitucional, 2002, pp. 524-528.
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faculdade de direito de bauru
tem consistido em dispor sobre a procedência do recurso de amparo para a salvaguarda dos direitos consagrados nos tratados de direitos humanos (Constituição da Costa Rica, reformada em 1989,
artigo 48; além da Constituição da Argentina, artigo 43); outras
Constituições optam por referir-se à normativa internacional em relação a um determinado direito, para o qual ‘a fonte internacional
adquire hierarquia constitucional’ (Constituições do Equador, artigos 43 e 17; de El Salvador, artigo 28; de Honduras, artigo 119, 2).
E continua:
As Constituições latino-americanas supracitadas reconhecem assim
a relevância da proteção internacional dos direitos humanos e dispensam atenção e tratamento especiais à matéria. Ao reconhecerem
que sua enumeração de direitos não é exaustiva ou supressiva de
outros, descartam desse modo o princípio de interpretação das leis
inclusio unius est exclusio alterius. É alentador que as conquistas do
direito internacional em favor da proteção do ser humano venham
a projetar-se no direito constitucional, enriquecendo-o, e demonstrando que a busca de proteção cada vez mais eficaz da pessoa humana encontra guarida nas raízes do pensamento tanto internacionalista quanto constitucionalista. (…) A tendência constitucional contemporânea de dispensar um tratamento especial aos tratados de direitos humanos é, pois, sintomática de uma escala de valores na qual o ser humano passa a ocupar posição central.14
Entretanto, a Constituição latino-americana que mais evoluiu em termos de
proteção dos direitos humanos, foi a recente Carta venezuelana de 1999, verdadeiro “modelo” de constitucionalismo democrático e protetor de direitos e que deveria ser seguido pelo legislador constitucional brasileiro (e que, lamentavelmente,
também não foi). De fato, a Constituição da Venezuela dispõe agora, em seu art. 23,
que os tratados, pactos e convenções internacionais relativos a direitos humanos,
subscritos e ratificados pela Venezuela,
têm hierarquia constitucional e prevalecem na ordem interna, na
medida em que contenham normas sobre seu gozo e exercício mais
favoráveis às estabelecidas por esta Constituição e pela Lei da República, e são de aplicação imediata e direta pelos tribunais e demais
órgãos do Poder Público [grifo nosso].
14 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. “Direito internacional e direito interno…”, cit., pp. 21-22.
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Trata-se da consagração, em sede constitucional, das regras que vários internacionalistas vêm defendendo há vários anos, tendo em vista que dá aos tratados de
direitos humanos hierarquia constitucional e incorporação automática, além, é
claro, de erigir expressamente o princípio da primazia da norma mais favorável
a princípio hermenêutico constitucional.
Tais textos constitucionais latino-americanos são, portanto, reflexo do constitucionalismo que vem se desenvolvendo em todos os países democráticos do mundo. O Brasil, como se verá, ficou atrasado em relação aos demais países da América
Latina, em relação à eficácia interna dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, não obstante ter tido a oportunidade de rever alguns dos conceitos
equivocados que a jurisprudência atual veio sedimentando através dos tempos,
quando promulgou a Emenda Constitucional n.º 45/2004, que não incorporou sequer os avanços doutrinários que há tempos vêm sendo desenvolvido no país, tendo preferido seguir o que diz a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em relação ao tema.
3.
AS INCONGRUÊNCIAS DO NOVO § 3.º DO ART. 5.º DA CONSTITUIÇÃO
DE 1988
Sempre entendemos inevitável a mudança do texto constitucional brasileiro,
a fim de se eliminar as controvérsias a respeito do grau hierárquico conferido pela
Constituição de 1988 aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos.
Entendíamos ser premente, mais do que nunca, incluir em nossa Carta Magna não
um dispositivo hierarquizando os tratados de direitos humanos, mas sim um dispositivo que reforçasse o significado do § 2.º do art. 5.º, dando-lhe interpretação autêntica. Por esse motivo também havíamos proposto, como alteração constitucional,
a introdução de mais um parágrafo no art. 5.º da Carta de 1988, mas não para contrariar o espírito inclusivo que o § 2.º já tem. A redação que propusemos, publicada
em nosso livro Direitos humanos, Constituição e os tratados internacionais, foi a
seguinte:
§ 3º. Os tratados internacionais referidos pelo parágrafo anterior,
uma vez ratificados, incorporam-se automaticamente na ordem
interna brasileira com hierarquia constitucional, prevalecendo,
no que forem suas disposições mais benéficas ao ser humano, às
normas estabelecidas por esta Constituição.15
Como se vê, a redação que queríamos, já há algum tempo, para um terceiro
parágrafo ao rol dos direitos e garantias fundamentais, não invalida a interpretação
15 Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direitos humanos, Constituição e os tratados internacionais…, cit., p. 348.
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faculdade de direito de bauru
doutrinária relativa aos §§ 1.º e 2.º do art. 5.º da Carta de 1988, que tratam, conjugadamente, da hierarquia constitucional e da aplicação imediata dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos no ordenamento brasileiro. Neste caso,
a inserção de um terceiro parágrafo ao rol dos direitos e garantias fundamentais do
art. 5.º da Constituição, valeria tão-somente como interpretação autêntica do parágrafo anterior, ou seja, do § 2.º do elenco constitucional dos direitos e garantias.
Essa proposta que fizemos, inspirada no legislador constitucional venezuelano de 1999, teria a vantagem de evitar os graves inconvenientes sofridos pela atual
doutrina, no que tange à interpretação do efetivo grau hierárquico conferido pela
Constituição aos tratados de proteção dos direitos humanos. Afastaria, ademais, as
controvérsias até então existentes em nossos tribunais superiores, notadamente no
Supremo Tribunal Federal, relativamente ao assunto.
Uma tal mudança, ao nosso ver, era o mínimo que poderia ter sido feito pelo
legislador constitucional brasileiro, retirando a Constituição do atrasado de muitos
anos em relação às demais Constituições dos países latino-americanos e do resto do
mundo, no que diz respeito à eficácia interna das normas internacionais de proteção dos direitos humanos.
A Emenda Constitucional n.º 45, entretanto, não seguiu essa orientação, e estabeleceu, no § 3.º do art. 5.º da Carta de 1988, que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos serão equivalentes às emendas constitucionais,
uma vez aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três
quintos dos votos dos seus respectivos membros (que é exatamente o quorum para
a aprovação de uma emenda constitucional).
Esta alteração do texto constitucional, que pretendeu pôr termo ao debate
quanto ao status dos tratados internacionais de direitos humanos no direito brasileiro, é um exemplo claro de falta de compreensão e de interesse do nosso legislador, no que tange à normatividade internacional de direitos humanos. Além de demonstrar total desconhecimento do direito internacional público, notadamente das
regras basilares da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, em especial as
de jus cogens, traz o velho e arraigado ranço da já ultrapassada noção de soberania
absoluta. Com o texto proposto, as convenções internacionais de direitos humanos
equivaleriam, em grau hierárquico, às emendas constitucionais, desde que aprovadas pela maioria qualificada que estabelece.
A redação do dispositivo induz à conclusão de que apenas as convenções assim aprovadas teriam valor hierárquico de norma constitucional, o que traz a possibilidade de alguns tratados, relativamente a esta matéria, serem aprovados sem este
quorum, passando a ter (aparentemente) valor de norma infraconstitucional, ou
seja, de mera lei ordinária. Como o texto proposto, ambíguo que é, não define quais
tratados deverão ser assim aprovados, poderá ocorrer que determinados instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, aprovados por processo legislativo não qualificado, acabem por se subordinar à legislação ordinária, quando de
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sua efetiva aplicação prática pelos juízes e tribunais nacionais (que poderão preterir
o tratado a fim de aplicar a legislação “mais recente”), o que certamente acarretaria
a responsabilidade internacional do Estado brasileiro.16
Surgiria ainda o problema de saber se os tratados de direitos humanos ratificados anteriormente à entrada em vigor da Emenda n.º 45, a exemplo da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos, do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e tantos outros, perderiam o status de norma constitucional que aparentemente detinham em virtude do § 2.º do art. 5.º da Constituição, caso agora não aprovados pelo
quorum do § 3.º do mesmo art. 5.º.
Como se dessume da leitura do novo § 3.º do art. 5.º do Texto Magno, basta
que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos sejam aprovados pela maioria qualificada ali prevista, para que possam equivaler às emendas
constitucionais. Não há, no citado dispositivo, qualquer menção ou ressalva dos
compromissos assumidos anteriormente pelo Brasil e, assim sendo, poderá ser interpretado no sentido de que, não obstante um tratado de direitos humanos tenha
sido ratificado há vários anos, pode o Congresso Nacional novamente aprová-lo, mas
agora pelo quorum do § 3.º, para que esse tratado mude de status. Mas de qual status mudaria o tratado? Certamente, daquele que o nosso Pretório Excelso sempre
entendeu que têm os tratados de direitos humanos – o status de lei ordinária –,
para passar a deter o status de norma constitucional. O Congresso Nacional teria, assim, o poder de, a seu alvedrio e a seu talante, decidir qual a hierarquia normativa
que devem ter determinados tratados de direitos humanos em detrimento de outros, violando a completude material do bloco de constitucionalidade.
O nosso poder reformador, ao conceber este § 3.º, parece não ter percebido
que ele, além de subverter a ordem do processo constitucional de celebração de tratados, uma vez que não ressalva (como deveria fazer) a fase do referendum congressual do art. 49, inc. I da Constituição (que diz competir exclusivamente ao Congresso Nacional “resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais
que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”), também rompe a harmonia do sistema de integração dos tratados de direitos humanos
no Brasil, uma vez que cria “categorias” jurídicas entre os próprios instrumentos internacionais de direitos humanos ratificados pelo governo, dando tratamento diferente para normas internacionais que têm o mesmo fundamento de validade, ou
seja, hierarquizando diferentemente tratados que têm o mesmo conteúdo ético,
qual seja, a proteção internacional dos direitos humanos.
Por tudo isto, pode-se inferir que o recém-criado § 3.º do art. 5.º da Constituição seria mais condizente com a atual realidade das demais Constituições latino-ame16 Nesse sentido, assim já se referia BARRAL, Welber, “Reforma do judiciário e direito internacional”, in Informativo Jurídico do INCIJUR, n.º 04, nov./1999, pp. 03-04.
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ricanas, bem como de diversas outras Constituições do mundo, se determinasse expressamente que todos os tratados de direitos humanos pelo Brasil ratificados têm
hierarquia constitucional, aplicação imediata, e ainda prevalência sobre as normas
constitucionais no caso de serem suas disposições mais benéficas ao ser humano.
Isso faria com que se evitassem futuros problemas de interpretação constitucional, bem como contribuiria para afastar de vez o arraigado equívoco que assola
boa parte dos constitucionalistas brasileiros, no que diz respeito à normatividade internacional de direitos humanos e sua proteção.
Na verdade, tal fato não seria necessário, se fosse aplicável no Brasil o princípio de que a jurisprudência seria a lei escrita, atualizada e lida com olhos das necessidades prementes de uma sociedade. Apesar de já existirem os “princípios” do art.
4.º da Constituição, ao nosso ver, para a Excelsa Corte nada valem, mesmo que tenham sido colocados pelo legislador constituinte em nosso texto constitucional.
Como o novo § 3.º do art. 5.º da Constituição já está em vigor (e, aparentemente, não se vislumbra uma reforma breve de seu texto), cabe à doutrina interpretá-lo segundo os princípios constitucionais garantidores da dignidade da pessoa humana e da prevalência dos direitos humanos. Mas antes de se verificar qual a interpretação mais condizente do novo § 3.º do art. 5.º da Constituição, uma questão que
tem que ser obrigatoriamente colocada (embora não tenhamos visto ninguém fazêlo até agora), diz respeito ao momento em que deve se manifestar o Congresso Nacional quando pretender aprovar um tratado de direitos humanos nos termos do §
3.º do art. 5.º da Constituição, bem como se esta manifestação congressual poderia
suprimir a fase constante do art. 49, inc. I, da Constituição, que trata do poder do
Parlamento em decidir definitivamente sobre os tratados internacionais (quaisquer
que sejam) assinados pelo Presidente da República.
4.
EM QUE MOMENTO DO PROCESSO DE CELEBRAÇÃO DE TRATADOS TEM LUGAR O NOVO § 3.º DO ART. 5.º DA CONSTITUIÇÃO?
A Constituição de 1988 cuida do processo de celebração de tratados em tãosomente dois de seus dispositivos (arts. 84, inc. VIII e 49, inc. I), que assim dispõem:
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
(…)
VIII – celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos
a referendo do Congresso Nacional; (…)
Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
I – resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao
patrimônio nacional; (…)
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Como se percebe pela leitura dos artigos transcritos, a vontade do Executivo,
manifestada pelo Presidente da República, não se aperfeiçoará enquanto a decisão
do Congresso Nacional sobre a viabilidade de se aderir àquelas normas internacionais não for manifestada, no que se consagra, assim, a colaboração entre o Executivo e o Legislativo no processo de conclusão de tratados internacionais.17
Este procedimento estabelecido pela Constituição vale para todos os tratados
e convenções internacionais de que o Brasil pretende ser parte, sejam eles tratados
comuns ou de direitos humanos. Nem se diga que a referência aos “encargos ou
compromissos gravosos ao patrimônio nacional” exclui da apreciação parlamentar
os tratados de direitos humanos, uma vez que o art. 84, inc. VIII, da Constituição é
claro em submeter todos os tratados internacionais assinados pelo Presidente da República ao referendo do Parlamento, como já pacificado na melhor doutrina.18
Assim, uma primeira interpretação que poderia ser feita é no sentido de que
a competência do Congresso Nacional para referendar os tratados internacionais assinados pelo Executivo, autorizando este último a ratificação do acordo, constante
do art. 49, inc. I, da Constituição, não fica suprimida, em absoluto, pela regra do
novo § 3.º do art. 5.º da Carta de 1988, posto que a participação do Parlamento no
processo de celebração de tratados internacionais no Brasil é uma só: aquela que
aprova ou não o seu conteúdo, e mais nenhuma outra. Não há de se confundir o referendo dos tratados internacionais, de que cuida o art. 49, inc. I, da Constituição,
materializado por meio de um Decreto Legislativo (aprovado por maioria simples)
promulgado pelo Presidente do Senado Federal, com a segunda eventual manifestação do Congresso para fins de pretensamente decidir sobre qual status hierárquico
deve ter certo tratado internacional de direitos humanos no ordenamento jurídico
brasileiro, de que cuida agora o novo § 3.º do art. 5.º da Constituição.
A segunda interpretação que poderia ser dada é no sentido de que o § 3.º do
art. 5.º da Carta de 1988 excepcionou a regra do art. 49, inc. I, da Constituição e, dessa forma, poderia, no caso da celebração de um tratado de direitos humanos, fazer
as vezes desse último dispositivo constitucional. Mas caso seja este o entendimento
adotado, deve-se fazer a observação de que o referido § 3.º foi mal colocado ao final
do rol dos direitos e garantias fundamentais do art. 5.º da Constituição, uma vez que
seria mais preciso incluí-lo como uma segunda parte do próprio art. 49, inc. I. Será
difícil entender como correta esta segunda interpretação, sob pena de o processo
de celebração de tratados ficar com a ordem desvirtuada, uma vez que o § 3.º do art.
5.º não diz que cabe ao Congresso Nacional decidir sobre os tratados assinados pelo
Chefe do Executivo, como faz o art. 49, inc. I, deixando entender que a aprovação
17 Para um estudo detalhado do processo constitucional de celebração de tratados no Brasil, vide MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Tratados internacionais: com comentários à Convenção de Viena de 1969, 2.ª ed., cit., pp.
265-336.
18 Vide, a propósito, CACHAPUZ DE MEDEIROS, Antônio Paulo, O poder de celebrar tratados, Porto Alegre: Fabris, 1995, pp. 395-398.
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ali constante serve tão-somente para equiparar os tratados de direitos humanos às
emendas constitucionais, o que poderia ser feito após o tratado já estar ratificado
pelo Presidente da República e depois deste já se encontrar em vigor internacional.
Perceba-se que o § 3.º do art. 5.º não obriga o Poder Legislativo aprovar eventual tratado de direitos humanos pelo quorum qualificado que estabelece. O que o
parágrafo faz é tão-somente autorizar o Congresso Nacional a dar, quando lhe convier e a seu alvedrio e a seu talante, a “equivalência de emenda” aos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil. Isto significa que tais instrumentos internacionais poderão continuar sendo aprovados por maioria simples no Congresso Nacional (segundo a regra do art. 49, inc. I, da Constituição), deixando-se para um momento futuro (depois da ratificação) a decisão do povo brasileiro em atribuir a equivalência de emenda a tais tratados internacionais.
Assim, o iter procedimental de celebração dos tratados de direitos humanos,
nos termos da nova sistemática introduzida pelo § 3.º do art. 5.º da Constituição, poderia, em princípio, se dar de duas formas, eleitas à livre escolha do Poder Legislativo, quais sejam:
1ª) Depois de assinados pelo Executivo, os tratados de direitos humanos seriam aprovados pelo Congresso nos termos do art. 49, inc. I, da Constituição (maioria simples) e, uma vez ratificados, promulgados e publicados no Diário Oficial da
União, poderiam, mais tarde, quando o nosso Parlamento Federal decidisse por
bem atribuir-lhes a equivalência de emenda constitucional, serem novamente apreciados pelo Congresso, para serem dessa vez aprovados pelo quorum qualificado do
§ 3.º do art. 5.º, ou;
2ª) Depois de assinados pelo Executivo, tais tratados já seriam imediatamente
aprovados (seguindo-se o rito das propostas de emenda constitucional) por três
quintos dos votos dos membros de cada uma das Casas do Congresso Nacional em
dois turnos, suprimindo-se, em face do critério da especialidade, a fase do art. 49,
inc. I, da Constituição, autorizando-se a futura ratificação do acordo já com a aprovação necessária para que o tratado, uma vez ratificado pelo Presidente da República e já se encontrando em vigor internacional, ingresse no nosso ordenamento jurídico interno equivalendo a uma emenda constitucional, dispensando-se, portanto,
segunda manifestação congressual após o tratado já se encontrar concluído e produzindo seus efeitos.
Perceba-se que esta segunda hipótese é perigosa e pode ser mal interpretada
lendo-se friamente o § 3.º do art. 5.º, que, à primeira vista, leva o intérprete a entender que a partir da aprovação congressual, pelo quorum que ali se estabelece, os tratados de direitos humanos já passam a equivaler às emendas constitucionais, o que
não é verdade, posto que para que um tratado entre em vigor é imprescindível a sua
futura ratificação pelo Presidente da República e, ainda, que já tenha a potencialidade para produzir efeitos na órbita interna, não se concebendo que um tratado de direitos humanos passe a ter efeitos de emenda constitucional – e, conseqüentemente,
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passe a ter o poder de reformar a Constituição – antes de ratificado e, muito menos,
antes de ter entrado em vigor internacionalmente. Esta falsa idéia surge da leitura desavisada do texto do referido parágrafo, segundo o qual os tratados e convenções internacionais “sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros,
serão equivalentes às emendas constitucionais”. A colocação que se pode fazer é seguinte: uma vez aprovado eventual tratado de direitos humanos, logo depois de sua
assinatura, nos termos do § 3.º do art. 5.º da Constituição (suprimindo-se, portanto, a
fase do art. 49, inc. I), já seria ele equivalente a uma emenda constitucional? É óbvio
que não. Jamais uma convenção internacional, aprovada neste momento do iter procedimental de celebração de tratados, poderá, desde já, ter o efeito que pretende atribuir-lhe o § 3.º em exame, a menos que se queira subverter a ordem constitucional
por completo, pois é impossível que um tratado tenha efeitos internos antes de ratificado e antes de começar a vigorar internacionalmente.
Como se já não bastasse esse fato constatado, pode-se agregar ainda um outro: um tratado, mesmo já ratificado, poderá jamais entrar em vigor dependendo de
determinadas circunstâncias, como, por exemplo, nos casos dos tratados condicionais ou a termo, em que se estabelece um número mínimo de ratificações para a sua
entrada em vigor internacional. Imagine-se, então, que o Brasil aprova determinado
instrumento internacional de direitos humanos, pelo quorum do § 3.º do art. 5.º,
na fase que seria, em princípio, do art. 49, inc. I, da Constituição, e que o ratifique,
promulgue o seu texto e o publique no Diário Oficial da União. Esse tratado já
pode ser aplicado no Brasil? A resposta somente poderá ser dada verificando-se o
que dispõe o próprio tratado. Tomando-se como exemplo o Estatuto de Roma do
Tribunal Penal Internacional de 1998, lê-se no seu art. 126, § 1.º que o
presente Estatuto entrará em vigor no primeiro dia do mês seguinte
ao termo de um período de 60 dias após a data do depósito do sexagésimo instrumento de ratificação, de aceitação, de aprovação ou de
adesão junto do Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas.
Assim, mesmo que o Brasil tenha sido o primeiro país a ratificar dito tratado,
caso ainda não tivessem sido depositados os sessenta instrumentos de ratificação
exigidos para sua entrada em vigor internacional, não haveria de se falar que o seu
texto já equivale a uma emenda constitucional em nosso país, uma vez que não se
concebe (por absurda que é esta hipótese) que algo que sequer existe juridicamente (e que pode levar anos para vir a existir) já tenha valor interno em nosso ordenamento jurídico, inclusive com poder de reformar a Constituição.
Estas colocações já bastam para, cientificamente, rechaçar a aplicação do § 3.º
do art. 5.º em supressão da fase do art. 49, inc. I, da Constituição, podendo-se concluir que o único momento do processo de celebração de tratados em que poderá
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faculdade de direito de bauru
ter lugar o referido § 3.º, será depois de ratificado o acordo e depois de o mesmo já
se encontrar em vigor internacional. Ou seja, caso o Congresso Nacional decida integrar formalmente o tratado à Constituição, para além do seu status materialmente constitucional, deverá aguardar a ratificação do acordo e o seu início de vigência
internacional. Mas caso assim não entenda o Congresso Nacional, a nossa opinião é
a de que se deve então deixar expresso no instrumento congressual aprobatório do
tratado que o mesmo apenas terá o efeito que prevê o § 3.º do art. 5.º depois de ter
sido o instrumento ratificado e depois de o mesmo se encontrar em vigor, a fim de
que se evite uma subversão completa da ordem constitucional e dos princípios gerais do Direito dos Tratados universalmente reconhecidos.
Como se vê, este tipo de procedimento de aparência dúplice agora estabelecido pelo texto constitucional não é salutar nem ao princípio da segurança jurídica,
que deve reger todas as relações sociais, nem aos princípios que regem as relações
internacionais do Brasil. Seria muito melhor ter a jurisprudência se posicionado a favor da índole constitucional e da aplicação imediata dos tratados de direitos humanos, nos termos do § 2.º do art. 5.º da Constituição, do que criar um terceiro parágrafo que só traz insegurança às relações sociais e, ademais, cria distinção entre instrumentos internacionais que têm o mesmo fundamento ético.
Ademais, deixar à livre escolha do Poder Legislativo a atribuição aos tratados
de direitos humanos de equivalência às emendas constitucionais é permitir que se
trate de maneira diferente instrumentos com igual conteúdo principiológico, podendo ocorrer de se atribuir equivalência de emenda constitucional a um Protocolo de um tratado de direitos humanos (que é suplementar ao tratado principal) e
deixar sem esse efeito o seu respectivo Tratado-quadro. Admitir uma tal interpretação seria consagrar um verdadeiro paradoxo no sistema, correspondente à total inversão de valores e princípios dentro do nosso ordenamento jurídico. Daí o porquê
de se entender que o novo § 3.º do art. 5.º da Constituição não pode, de qualquer
maneira, prejudicar o entendimento que vinha sendo seguido por boa parte da doutrina brasileira em relação ao § 2.º do mesmo art. 5.º da Constituição, como veremos
no tópico subseqüente deste estudo.
5.
HIERARQUIA CONSTITUCIONAL DOS TRATADOS DE DIREITOS
HUMANOS INDEPENDENTEMENTE DA ENTRADA EM VIGOR DA
EMENDA N.º 45/2004
Transita-se, agora, à quinta parte desse estudo, onde buscaremos interpretar
o § 3.º do art. 5.º da Constituição conjugadamente com o § 2.º do mesmo dispositivo, uma vez que ambos os parágrafos encontram-se dentro de um mesmo contexto jurídico, devendo assim ser interpretados.
Neste estudo,0 defendemos que os tratados internacionais de proteção dos
direitos humanos ratificados pelo Brasil já têm status de norma constitucional, em
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virtude do disposto no § 2.º do art. 5.º da Constituição, segundo o qual os direitos
e garantias expressos no texto constitucional “não excluem outros decorrentes do
regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte”, pois na medida em que a Constituição
não exclui os direitos humanos provenientes de tratados, é porque ela própria os
inclui no seu catálogo de direitos protegidos, ampliando o seu “bloco de constitucionalidade” e atribuindo-lhes hierarquia de norma constitucional, como já assentamos no início deste trabalho. Portanto, já se exclui, desde logo, o entendimento de
que os tratados de direitos humanos não aprovados pela maioria qualificada do § 3.º
do art. 5.º equivaleriam hierarquicamente à lei ordinária federal, uma vez que os
mesmos teriam sido aprovados apenas por maioria simples (nos termos do art. 49,
inc. I, da Constituição) e não pelo quorum que lhes impõe o referido parágrafo. O
que se deve entender é que o quorum que tal parágrafo estabelece serve tão-somente para atribuir eficácia formal a esses tratados no nosso ordenamento jurídico
interno, e não para lhes atribuir a índole e o nível materialmente constitucionais
que eles já têm em virtude do § 2.º do art. 5.º da Constituição.
Sem pretender invocar o art. 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos
Tratados, de 1969, segundo o qual uma parte “não pode invocar as disposições do
seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado” (dispositivo
esse que atribui nível supraconstitucional a quaisquer tratados ratificados pelo Estado), se poderia, num primeiro momento, fazer o seguinte raciocínio: como o § 2.º
do art. 5.º da Constituição já atribui índole e nível constitucionais para todos os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil antes da entrada em
vigor da Emenda n.º 45, isso significa que apenas aqueles instrumentos internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil passará a ser parte depois da entrada em
vigor da referida emenda é que necessitarão ser aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos seus respectivos
membros, para serem equivalentes às emendas constitucionais. Dessa forma, atribuir-se-ia apenas efeito ex nunc à disposição do § 3.º do art. 5.º da Constituição.
O raciocínio faz chegar à conclusão de que o § 3.º do art. 5.º não pode abranger situações pretéritas (como as normas constitucionais em geral também não podem), não podendo ter jamais efeito ex tunc, e, portanto, poderá somente ser aplicado aos tratados internacionais de direitos humanos ratificados posteriormente à
data de sua entrada em vigor (8 de dezembro de 2004).
O § 3.º do art. 5.º, contudo, não faz nenhuma ressalva quanto aos compromissos assumidos pelo Brasil anteriormente, em sede de direitos humanos, bem como
em nenhum momento induz ao entendimento de que estará regendo situações pretéritas. O que aparentemente ele faz é tão-somente permitir que o Congresso Nacional, a qualquer momento (antes de sua ratificação ou mesmo depois desta), atribua
aos tratados de direitos humanos o caráter de emenda constitucional. Em tese, nada
obsta que o referido § 3.º seja também aplicado em relação aos tratados ratificados
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faculdade de direito de bauru
anteriormente à entrada em vigor da Emenda n.º 45, o que faz com que a tese acima desenvolvida perca validade.
O que aqui se defende é que o novo § 3.º do art. 5.º da Constituição em nada
influi no “status de norma constitucional” que os tratados de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro já detêm no nosso ordenamento jurídico, em virtude
da regra do § 2.º do mesmo art. 5.º. Defende-se, neste estudo, que os dois referidos
parágrafos do art. 5.º da Constituição cuidam de coisas similares, mas diferentes.
Quais coisas diferentes? Então para quê serviria a regra insculpida no § 3.º do art. 5.º
da Carta de 1988, senão para atribuir status de norma constitucional aos tratados de
direitos humanos?
A diferença entre o § 2.º, in fine, e o § 3.º, ambos do art. 5.º da Constituição,
é bastante sutil: nos termos da parte final do § 2.º do art. 5.º, os “tratados internacionais [de direitos humanos] em que a República Federativa do Brasil seja parte”
são, a contrario sensu, incluídos pela Constituição, passando conseqüentemente a
deter o “status de norma constitucional” e a ampliar o rol dos direitos e garantias
fundamentais (“bloco de constitucionalidade”); já nos termos do § 3.º do mesmo
art. 5.º da Constituição, uma vez aprovados tais tratados de direitos humanos pelo
quorum qualificado ali estabelecido, esses instrumentos internacionais, uma vez ratificados pelo Brasil, passam a ser “equivalentes às emendas constitucionais”.
Mas, há diferença em dizer que os tratados de direitos humanos têm “status
de norma constitucional” e dizer que eles são “equivalentes às emendas constitucionais”? Perceba-se que o § 3.º do art. 5.º não diz que os tratados de direitos humanos,
uma vez aprovados pela maioria qualificada que prevê, serão “equivalentes às normas constitucionais”, preferindo ter dito que serão “equivalentes às emendas constitucionais”. Portanto, qual a diferença entre os dois parágrafos?
No nosso entender, a diferença existe, e nela está fundada a única e exclusiva serventia do imperfeito § 3.º do art. 5.º da Constituição, fruto da Emenda Constitucional n.º
45/2004. Falar que um tratado tem “status de norma constitucional” é o mesmo que dizer que ele integra o bloco de constitucionalidade material (e não formal) da nossa Carta Magna, o que é menos amplo que dizer que ele é “equivalente a uma emenda constitucional”, o que significa que esse mesmo tratado já integra formalmente (além de materialmente) o texto constitucional. Perceba-se que, neste último caso, o tratado assim
aprovado será, além de materialmente constitucional, também formalmente constitucional. Assim, fazendo-se uma interpretação sistemática do texto constitucional em vigor, à luz dos princípios constitucionais e internacionais de garantismo jurídico e de proteção à dignidade humana, chega-se à seguinte conclusão: o que o texto constitucional
reformado quis dizer é que esses tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil,
que já têm status de norma constitucional, nos termos do § 2.º do art. 5.º, poderão ainda ser formalmente constitucionais (ou seja, ser equivalentes às emendas constitucionais), desde que, a qualquer momento, depois de sua entrada em vigor, sejam aprovados pelo quorum do § 3.º do mesmo art. 5.º da Constituição.
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Mas, quais são estes efeitos mais amplos em se atribuir a esses tratados equivalência de emenda para além do seu status de norma constitucional? São dois os
efeitos:
1) eles passarão a reformar a Constituição, o que não é possível tendo apenas o status de norma constitucional;
2) eles não poderão ser denunciados, nem mesmo com Projeto de Denúncia
elaborado pelo Congresso Nacional, podendo ser o Presidente da República responsabilizado em caso de descumprimento desta regra (o que não é
possível fazer tendo os tratados apenas status de norma constitucional).
Os números 1 e 2 acima merecem ser detalhadamente explicados, a fim de se
demonstrar que § 3.º do art. 5.º não prejudica o entendimento de que os tratados
de direitos humanos ratificados pelo Brasil já têm status de norma constitucional,
nos termos do § 2.º do mesmo art. 5.º da Constituição.
A primeira conseqüência de se atribuir equivalência de emenda constitucional
a um tratado de direitos humanos, exposta no número 1 acima, é a de que eles passarão a reformar a Constituição, o que não é possível quando se tem apenas o status de norma constitucional. Ou seja, uma vez aprovado certo tratado pelo quorum
previsto pelo § 3.º, opera-se a imediata reforma do texto constitucional conflitante,
o que não ocorre pela sistemática do § 2.º do art. 5.º, onde os tratados de direitos
humanos (que têm nível de normas constitucionais, sem, contudo, serem equivalentes às emendas constitucionais) serão aplicados atendendo ao princípio da primazia da norma mais favorável ao ser humano (expressamente consagrado pelo
art. 4.º, inc. II, da Carta de 1988, segundo o qual o Brasil deve se reger nas suas relações internacionais pelo princípio da “prevalência dos direitos humanos”).
Esta diferença entre status e equivalência já tinha sido por nós estudada em
trabalho anterior, onde escrevemos:
E isto significa, na inteligência do art. 5.º, § 2.º da Constituição Federal, que o status do produto normativo convencional, no que tange
à proteção dos direitos humanos, não pode ser outro que não o de
verdadeira norma materialmente constitucional. Diz-se ‘materialmente constitucional’, tendo em vista não integrarem os tratados,
formalmente, a Carta Política, o que demandaria um procedimento
de emenda à Constituição, previsto no art. 60, § 2.º, o qual prevê que
tal proposta ‘será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros’.19
19 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direitos humanos, Constituição e os tratados internacionais: estudo analítico da situação e aplicação do tratado na ordem jurídica brasileira, cit., p. 241.
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Assim, nunca entendemos que os tratados de direitos humanos ratificados
pelo Brasil integram formalmente a Constituição. O que sempre defendemos é que
eles têm status de norma constitucional (o que é absolutamente normal em quase
todas as democracias modernas). Mas agora, uma vez aprovados pelo quorum que
estabelece o § 3.º do art. 5.º da Constituição, os tratados de direitos humanos ratificados integrarão formalmente a Constituição, uma vez que serão equivalentes às
emendas constitucionais. Contudo, frise-se que essa integração formal dos tratados
de direitos humanos no ordenamento brasileiro não abala a integração material
que esses mesmos instrumentos já apresentam desde a sua ratificação e entrada em
vigor no Brasil.
Dizer que um tratado equivale a uma emenda constitucional significa dizer
que ele tem a mesma potencialidade jurídica que uma emenda. E o que faz uma
emenda? Uma emenda reforma a Constituição, para melhor ou para pior. Portanto,
o detalhe que poderá passar desapercebido de todos (e até agora também não vimos ninguém cogitá-lo) é que atribuir equivalência de emenda aos tratados internacionais de direitos humanos, às vezes pode ser perigoso, bastando imaginar o
caso em que a nossa Constituição é mais benéfica em determinada matéria que o
tratado ratificado. Neste caso, seria muito mais salutar, inclusive para a maior completude do nosso sistema jurídico, se se admitisse o “status de norma constitucional” desse tratado, nos termos do § 2.º do art. 5.º – e, neste caso, não haveria que
se falar em reforma da Constituição, sendo o problema resolvido aplicando-se o
princípio da primazia da norma mais favorável ao ser humano –, do que lhe atribuir uma equivalência de emenda constitucional, o que poderia fazer com que o intérprete aplicasse o tratado em detrimento da norma constitucional mais benéfica.
Poder-se-ia objetar que a Constituição, no art. 60, § 4.º, inc. IV, proíbe qualquer proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais e, assim sendo, os tratados de direitos humanos (aprovados por maioria qualificada)
conflitantes com a Constituição seriam inconstitucionais. Seria imenso o trabalho
em se verificar, nas várias comissões do Congresso Nacional responsáveis pela análise preliminar da compatibilidade do tratado com o direito brasileiro vigente, quais
dispositivos de cada tratado poderiam eventualmente conflitar com a Constituição.
Às vezes, certo dispositivo de determinado tratado não abole nenhum direito ou garantia individual previsto no texto constitucional, mas traz tal direito ou tal garantia
de forma menos protetora, como é o caso, por exemplo, da prisão civil do devedor
de alimentos que, segundo a Constituição brasileira de 1988 (art. 5.º, inc. LXVII), somente pode ter lugar quando o inadimplemento da obrigação alimentar for voluntário e inescusável. Atente-se bem: a Carta de 1988 somente permite seja preso o
devedor de alimentos se for ele responsável pelo inadimplemento “voluntário e
inescusável” da obrigação alimentar. Não é, pois, qualquer obrigação alimentar inadimplida que deve gerar a prisão do devedor. O inadimplemento pode ser voluntário mas escusável, no que não se haveria falar em prisão nesta hipótese. Pois bem.
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Esta redação atribuída pela nossa Constituição em relação à prisão civil por dívida
alimentar difere da redação dada pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), que, depois de estabelecer a regra genérica
de que “ninguém deve ser detido por dívidas”, acrescenta que “este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de
inadimplemento de obrigação alimentar” (art. 7, n.º 7). Como se percebe, o Pacto
de San José permite que sejam expedidos mandados de prisão pela autoridade competente, em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar. Não diz mais
nada: basta o simples inadimplemento da obrigação para que seja autorizada a prisão do devedor. Neste caso, é a nossa Constituição mais benéfica que o Pacto, pois
contém uma adjetivação restringente não encontrada no texto deste último e, por
isso, seria prejudicial ao nosso sistema de direitos e garantias reformá-la em benefício da aplicação do tratado.20
Aplicando-se o princípio da primazia da norma mais favorável, nada disso
ocorre, pois se atribuindo aos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil o
status de norma constitucional, não se pretende reformar a Constituição, mas sim
aplicar, em caso de conflito entre o tratado e o texto constitucional, a norma que,
no caso, mas proteja os direitos da pessoa humana, posição esta que tem em Cançado Trindade o seu maior expoente.21
A segunda conseqüência em se atribuir aos tratados de direitos humanos
equivalência às emendas constitucionais, exposta no número 2 visto acima, significa que tais tratados não poderão ser denunciados nem mesmo com Projeto de Denúncia elaborado pelo Congresso Nacional, podendo o Presidente da República ser
responsabilizado caso o denuncie (o que não ocorria à égide em que o § 2.º do art.
5.º encerrava sozinho o rol dos direitos e garantias fundamentais do texto constitucional brasileiro). Assim sendo, mesmo que um tratado de direitos humanos preveja expressamente a sua denúncia, esta não poderá ser realizada pelo Presidente da
República unilateralmente (como é a prática brasileira atual em matéria de denúncia de tratados internacionais),22 e nem sequer por meio de Projeto de Denúncia elaborado pelo Congresso Nacional, uma vez que tais tratados equivalem às emendas
constitucionais, que são (em matéria de direitos humanos) cláusulas pétreas do
texto constitucional.
20 Para um estudo detalhado da matéria, vide MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Prisão civil por dívida e o Pacto
de San José da Costa Rica: especial enfoque para os contratos de alienação fiduciária em garantia, cit., pp.
160-162
21 Cf., por tudo, CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, Tratado de direito internacional dos direitos humanos, vol. I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997, pp. 401-402; PIOVESAN, Flávia, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, 5.ª ed.,, cit., pp. 115-120; e MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Direitos humanos, Constituição e os tratados internacionais: estudo analítico da situação e aplicação do tratado na ordem jurídica brasileira, cit., pp. 272-295.
22 Para um estudo do procedimento e das teorias relativas à denúncia de tratados, vide MAZZUOLI, Valerio de
Oliveira, Tratados internacionais: com comentários à Convenção de Viena de 1969, 2.ª ed., cit., pp. 188-198.
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Há de se enfatizar que vários tratados de proteção dos direitos humanos prevêem expressamente a possibilidade de sua denúncia. Contudo, trazem eles disposições no sentido de que, eventual denúncia por parte dos Estados-parte não terá o efeito de os desligar das obrigações contidas no respectivo tratado, no que diz respeito a
qualquer ato que, podendo constituir violação dessas obrigações, houver sido cometido por eles anteriormente à data na qual a denúncia produziu seu efeito.23
A impossibilidade de denúncia dos tratados de direitos humanos já tinha sido
por nós defendida anteriormente, com base no status de norma constitucional dos
tratados de direitos humanos, que passariam a ser também cláusulas pétreas constitucionais. Sob esse ponto de vista, a denúncia dos tratados de direitos humanos é
tecnicamente possível (sem a possibilidade de se responsabilizar o Presidente da
República neste caso), mas totalmente ineficaz sob o aspecto prático, uma vez que
os efeitos do tratado denunciado continuam a operar dentro do nosso ordenamento jurídico, pelo fato de eles serem cláusulas pétreas do texto constitucional.
No que tange aos tratados de direitos humanos aprovados pelo quorum do §
3.º do art. 5.º da Constituição, esse panorama muda, não se admitindo sequer a interpretação de que a denúncia desses tratados seria possível, mas ineficaz, pois agora ela será impossível do ponto de vista técnico, existindo a possibilidade de responsabilização do Presidente da República caso venha pretender operá-la.
Quais os motivos da impossibilidade técnica de tal denúncia? De acordo com
o § 3.º do art. 5.º, uma vez aprovados os tratados de direitos humanos, em cada Casa
do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos
membros, serão eles “equivalentes às emendas constitucionais”. Passando a ser
equivalentes às emendas constitucionais, isto significa que não poderão esses tratados ser denunciados mesmo com base em Projeto de Denúncia encaminhado pelo
Presidente da República ao Congresso Nacional. Caso o Presidente entenda por bem
denunciar o tratado e realmente o denuncie (perceba-se que o Direito Internacional aceita a denúncia feita pelo Presidente, não se importando se, de acordo com o
seu direito interno, está ele autorizado ou não a denunciar o acordo), poderá ser
responsabilizado por violar disposição expressa da Constituição, o que não ocorria
à égide em que o § 2.º do art. 5.º encerrava sozinho o rol dos direitos e garantias
fundamentais. Assim sendo, mesmo que um tratado de direitos humanos preveja expressamente sua denúncia, esta não poderá ser realizada pelo Presidente da República unilateralmente (como autoriza a prática brasileira atual em matéria de denúncia de tratados internacionais), e nem sequer por meio de Projeto de Denúncia elaborado pelo Congresso Nacional, uma vez que tais tratados equivalem às emendas
23 Cf. nesse sentido, art. 21 da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965);
art. 12 do Protocolo Facultativo relativo ao Pacto Internacional dos Direitos civis e Políticos (1966); art. 78, n.º
2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969); art. 31, n.º 2 da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984); e art. 52 da Convenção sobre os Direitos da Criança (1989).
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constitucionais. Isso impede, aliás, a interpretação que se poderá fazer, no sentido
de que seria possível a denúncia do tratado caso o Congresso aprovasse tal Projeto
pela mesma maioria qualificada com que aprovou o acordo.
No Brasil, apesar de forte divergência doutrinária, a prática brasileira em relação à matéria tem sido no sentido de que a conjugação de vontades dos Poderes
Executivo e Legislativo é obrigatória somente em relação à ratificação dos tratados
internacionais. Pela prática brasileira a respeito, a denúncia de tratados, infelizmente, ainda continua sendo ato exclusivo do Chefe do Poder Executivo, tão-somente.
Sem embargo dessa prática, sempre estivemos com Pontes de Miranda, para quem,
“aprovar tratado, convenção ou acordo, permitindo que o Poder Executivo o denuncie, sem consulta, nem aprovação, é subversivo dos princípios constitucionais”.24 Do
mesmo modo que o Presidente da República necessita da aprovação do Congresso
Nacional, dando a ele permissão para ratificar o acordo, o mais correto, consoante
as normas constitucionais em vigor, seria que idêntico procedimento parlamentar
fosse aplicado em relação à denúncia.
Este, aliás, o sistema adotado pela Constituição espanhola de 1978, que submete eventual denúncia de tratados sobre direitos humanos fundamentais ao requisito da
prévia autorização ou aprovação do Legislativo (arts. 96, n.º 2 e 94, n.º 1 “c”). O mesmo se diga em relação às Constituições da Suécia (art. 4.º, com as emendas de 19761977), da Dinamarca de 1953 (art. 19, n.º 1), da Holanda de 1983 (art. 91, n.º 1), além
da Constituição da República Argentina que, a partir da reforma de 1994, passou a exigir que os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos sejam denunciados pelo Executivo mediante a prévia aprovação de dois terços dos membros de cada
Câmara. A Constituição do Paraguai, por sua vez, determina que os tratados internacionais relativos a direitos humanos “não poderão ser denunciados senão pelos procedimentos que vigem para a emenda desta Constituição” (art. 142).
Entretanto, nos termos da nova sistemática constitucional brasileira, aprovado
um tratado de direitos humanos nos termos do § 3.º do art. 5.º da Constituição, nem
sequer por meio de Projeto de Denúncia votado com o mesmo quorum exigido
para a conclusão do tratado (votação nas duas Casas do Congresso Nacional, em
dois turnos, por três quintos dos votos dos seus respectivos membros) será possível o país desengajar-se desse seu compromisso, quer no âmbito interno, quer no
plano internacional.
Agora, portanto, será preciso distinguir se o tratado que se pretende denunciar equivale uma emenda constitucional (ou seja, se é material e formalmente
constitucional, nos termos do art. 5.º, § 3.º) ou se apenas detém status de norma
constitucional (é dizer, se é apenas materialmente constitucional, em virtude do
art. 5.º, § 2.º). Caso o tratado de direitos humanos se enquadre apenas nesta última
24 PONTES DE MIRANDA. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n.º 1 de 1969, Tomo III, 3.ª ed.
Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 109.
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hipótese, com o ato da denúncia, o Estado brasileiro passa a não mais ter responsabilidade em responder pelo descumprimento do tratado tão-somente no âmbito internacional e não no âmbito interno. Ou seja, nada impede que, tecnicamente, se
denuncie um tratado de direitos humanos que tem apenas status de norma constitucional, pois internamente nada muda, uma vez que eles já se encontram petrificados no nosso sistema de direitos e garantias, importando tal denúncia apenas em livrar o Estado brasileiro de responder pelo cumprimento do tratado no âmbito internacional. Mas caso o tratado de direitos humanos tenha sido aprovado nos termos
do § 3.º do art. 5.º, o Brasil não pode mais se desengajar do tratado quer no plano
internacional, quer no plano interno (o que não ocorre quando o tratado detém
apenas status de norma constitucional), podendo o Presidente da República ser responsabilizado caso o denuncie (devendo tal denúncia ser declarada ineficaz). Assim,
repita-se, quer nos termos do § 2.º, quer nos termos do § 3.º do art. 5.º, os tratados
de direitos humanos são insuscetíveis de denúncia por serem cláusulas pétreas
constitucionais. O que difere é que, uma vez aprovado o tratado pelo quorum do §
3.º, sua denúncia acarreta a responsabilidade do denunciante, o que não ocorrer na
sistemática do § 2.º do art. 5.º.
Portanto, a afirmação antes correntemente utilizada, no sentido de que anteriormente à entrada em vigor da Emenda n.º 45 existia um paradoxo, na medida em
que os tratados de direitos humanos eram aprovados por maioria simples, o que autorizava o Presidente da República, a qualquer momento, denunciar o tratado, desobrigando o país ao cumprimento daquilo que assumiu no cenário internacional desde o momento da ratificação do acordo,25 não será mais válida a partir do momento
em que o tratado que pretende ser denunciado passe a equivaler a uma emenda
constitucional.
25 Sobre este assunto, assim lecionava Oscar Vilhena Vieira antes da reforma constitucional de 2004: “O problema [do § 2.º do art. 5.º da Constituição, antes da existência do novo § 3.º], no entanto, é que o quorum exigido para a incorporação destes tratados é o de maioria simples, criando assim uma situação paradoxal, onde a
Constituição passaria a ser efetivamente emendada pelo quorum ordinário. Mais do que isto, o conteúdo dessas emendas se transformaria automaticamente em cláusula pétrea. O paradoxo é ainda mais grave, na medida em que o Presidente da República pode, a qualquer momento, denunciar o tratado, desengajando a União
das obrigações previamente contraídas durante o processo de ratificação. Em última ratio o Presidente estaria
autorizado a desobrigar o Estado do cumprimento de algo que foi transformado em cláusula pétrea”. E continuava: “Com a nova redação, este problema ficou solucionado (parcialmente), tanto do ponto de vista político quanto jurídico. Politicamente, não mais estaremos alterando nossa Constituição por maioria simples do
parlamento. Da perspectiva jurídica, estabeleceu-se claramente a posição hierárquica daqueles tratados de direitos humanos que houverem sido aprovados por maioria de três quintos das duas casas do Congresso” ( VIEIRA, Oscar Vilhena. “Que reforma?”, in Estudos Avançados, vol. 18, n.º 51, São Paulo: USP, mai./ago./2004, pp.
204-205).
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6.
n.
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APLICAÇÃO IMEDIATA DOS TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS
INDEPENDENTEMENTE DA REGRA DO NOVO § 3.º DO ART. 5.º DA
CONSTITUIÇÃO
Por fim, registre-se ainda que, além de o novo § 3.º do art. 5.º da Constituição,
não prejudicar o status constitucional que os tratados internacionais de direitos humanos em vigor no Brasil já têm de acordo com o § 2.º desse mesmo artigo, ele também não prejudica a aplicação imediata dos tratados de direitos humanos já ratificados ou que vierem a ser ratificados pelo nosso país no futuro. Isto porque a regra
que garante aplicação imediata às normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, insculpida no § 1.º do art. 5.º da Constituição (verbis: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.”), sequer remotamente induz a pensar que os tratados de direitos humanos só terão tal aplicabilidade imediata (pois eles também são normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais) depois de aprovados pelo Congresso Nacional pelo quorum estabelecido no § 3.º do art. 5.º. Pelo contrário: a Constituição é expressa em dizer que as
“normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais” têm aplicação imediata, mas não diz quais são ou quais deverão ser essas normas. A Constituição não especifica se elas devem provir do direito interno ou do direito internacional (por
exemplo, dos tratados internacionais de direitos humanos), mas apenas diz que todas elas têm aplicação imediata, independentemente de serem ou não aprovadas
por maioria simples ou qualificada.
Isto tudo somado significa que os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Brasil, podem ser imediatamente aplicados pelo Poder Judiciário, independentemente de promulgação e publicação no Diário Oficial da
União e independentemente de serem aprovados de acordo com a regra no novo § 3.º
do art. 5.º da Carta de 1988. Tais tratados, de forma idêntica à que se defendia antes da
reforma, continuam dispensando a edição de decreto de execução presidencial para
que irradiem seus efeitos tanto no plano interno como no plano internacional, uma vez
que têm aplicação imediata no ordenamento jurídico brasileiro.26
7.
CONCLUSÃO
Ao fim e ao cabo desta exposição teórica, a conclusão mais plausível que se pode
chegar em relação à interpretação do novo § 3.º do art. 5.º da Constituição, é a de que
esta nova disposição constitucional não anula a interpretação segundo a qual os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Brasil já têm sta26 Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direitos humanos, Constituição e os tratados internacionais…, cit., 253259; e ainda o seu Tratados internacionais: com comentários à Convenção de Viena de 1969, 2.ª ed., cit., pp.
370-375.
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tus de norma (materialmente) constitucional em decorrência da norma expressa no §
2.º do mesmo art. 5.º da Carta Magna de 1988. Ou seja, todos os tratados internacionais de direitos humanos, em que a República Federativa do Brasil é parte, têm índole
e nível materialmente constitucionais, na exegese do § 2.º do art. 5.º da Constituição
de 1988, mas apenas terão os efeitos de equivalência às emendas constitucionais (ou
seja, somente integrarão formalmente a Constituição, com todos os consectários que
lhe são inerentes) se aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos,
por três quintos dos votos dos seus respectivos membros, nos termos do novo § 3.º do
art. 5.º, do texto constitucional brasileiro.
Dessa forma, dizer que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil têm índole e nível de normas constitucionais, em virtude do § 2.º
do art. 5.º, da Constituição, não é o mesmo que dizer que eles “equivalem” às emendas constitucionais, o que tem um sentido e uma conotação muito mais ampla (por
se tratar de integração formal à Constituição) e, portanto, somente será possível
com sua aprovação pelo quorum estabelecido pelo § 3.º do art. 5.º, da Carta de
1988. Neste caso, os tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil serão, além
de materialmente constitucionais, também formalmente constitucionais, o que impede definitivamente a sua denúncia por ato do Poder Executivo.
Além de o novo § 3.º do art. 5.º da Constituição não prejudicar o status constitucional que os tratados internacionais de direitos humanos em vigor no Brasil já
têm de acordo com o § 2.º desse mesmo artigo, ele também não prejudica a aplicação imediata dos tratados de direitos humanos já ratificados ou que vierem a ser ratificados pelo nosso país no futuro, consoante a regra do § 1.º do art. 5.º da Constituição, que sequer remotamente autoriza uma interpretação diversa.
A nossa vontade é a de que esse § 3.º, que apenas trouxe imperfeições ao sistema e que certamente prestará um desserviço à interpretação constitucional mais
lúcida envolvendo os tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é parte, seja
reformado por nova emenda constitucional, que venha conter a redação que já propusemos em estudos anteriores, à semelhança da Constituição da Venezuela de
1999, no sentido de apenas trazer uma interpretação autêntica ao § 2.º do art. 5.º da
Carta de 1988, dizendo que
os tratados internacionais referidos pelo parágrafo anterior, uma
vez ratificados, incorporam-se automaticamente na ordem interna brasileira com hierarquia constitucional, prevalecendo, no
que forem suas disposições mais benéficas ao ser humano, às normas estabelecidas por esta Constituição.
Por ora, como não está à vista uma nova reforma constitucional, o que se pode
esperar, caso os nossos tribunais não entendam da maneira como cremos estar correta e como deixamos expresso neste estudo, é que a sociedade civil impulsione um
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121
forte movimento no Congresso Nacional para a aprovação em bloco, pela maioria
qualificada requerida pelo § 3.º do art. 5.º da Constituição, de todos os tratados internacionais de direitos humanos já ratificados pelo Brasil.
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O DIREITO ADQUIRIDO E AS EMENDAS
CONSTITUCIONAIS
Luiz Alberto Gurgel de Faria
Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco.
Professor dos Cursos de Especialização em Direito Administrativo e
Direito Tributário da Universidade Federal de Pernambuco.
Professor de Direito Tributário da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
1.
INTRODUÇÃO
Nos idos de 1997, quando cursei o Mestrado em Direito na Universidade Federal
de Pernambuco – UFPE, fui provocado pelo meu ilustre Professor Ivo Dantas a elaborar
um estudo acerca do Direito Adquirido e as Emendas Constitucionais.
Àquela época, estavam em tramitação as denominadas reformas administrativa e
previdenciária (esta, a primeira delas), que terminaram sendo aprovadas através das
Emendas Constitucionais de nºs 19/98 e 20/98, respectivamente.
Em face do grande universo de pessoas atingido, uma das questões mais suscitadas dizia respeito ao direito adquirido, diante da pergunta se a garantia poderia ser invocada contra as emendas constitucionais.
Anos se passaram e, diante da continuidade das reformas em nossa Carta Magna, a questão continua atual, sendo o momento de retomá-la.
O tema do direito adquirido, mormente no aspecto que se pretende enfocar,
diante das emendas constitucionais, não pode deixar de ser examinado juntamente
com o Poder Constituinte, motivo pelo qual esse tópico também será alvo de análise no decorrer do trabalho.
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2.
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PODER CONSTITUINTE
2.1. A teoria de Sieyès
Em breves palavras, o Poder Constituinte pode ser definido como o poder de
elaborar uma Constituição.
Os primeiros escritos acerca da matéria foram antecedentes, poucos meses, à
deflagração da Revolução Francesa. Coube ao abade Emmanuel Sieyès, através do
panfleto Qu’est-ce que le tiers état?, introduzir as lições iniciais acerca da teoria que
se formava.
Cumpre, todavia, renovar a advertência feita por Paulo Bonavides (in Curso
de Direito Constitucional, 5ª edição, São Paulo, Malheiros, 1994, p. 120), no sentido de que não se deve confundir o Poder Constituinte com a sua teoria.
Com efeito, aquele sempre existiu em toda a sociedade política. A teorização
para legitimá-lo, no entanto, apenas surgiu no final do século XVIII, exatamente a
partir da monografia acerca do Terceiro Estado.
De acordo com a doutrina clássica de Sieyès, o Poder Constituinte é inicial, autônomo e incondicionado. Inicial em razão de que não existe, antes dele, nem de
fato nem de direito, qualquer outro poder. Autônomo em função de que somente a
ele compete decidir se, como e quando deve se outorgar uma Constituição à Nação.
É incondicionado porque não está subordinado a qualquer regra.
Ao revés das características que denotam o Poder Constituinte, os poderes
constituídos são limitados e condicionados, sendo que suas organizações e atribuições são fixadas de acordo com a Constituição.
As distinções entre o Poder Constituinte e os poderes constituídos são de extrema importância para se pesquisar a existência de mais de uma espécie do primeiro, o que será objeto de análise no tópico seguinte.
2.2. Espécies
Ainda nos tempos de hoje, é comum encontrar na doutrina a divisão do Poder Constituinte em originário e derivado.
O primeiro seria encarregado de produzir, de forma primitiva, o texto da
Constituição, enquanto o segundo seria utilizado por ocasião de sua reforma.
A produção originária se dá na hipótese da primeira Constituição de um
Estado ou no caso de modificação revolucionária da ordem jurídica, quando não
há continuidade do ordenamento constitucional anterior. Já a derivada ocorre
nas hipóteses de necessidade de alteração da Lei Maior, em face de modificações
existentes na sociedade1, a exigirem uma correspondente mudança na Carta, de
1
Como também, muitas vezes, em face dos diferentes interesses dos governantes, que procuram moldar a Constituição de acordo com os seus planos de administração.
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acordo com as normas previamente ditadas, que limitam e condicionam o exercício desse poder.
Com base nos elementos que tipificam as “espécies” estudadas, já se pode vislumbrar a impropriedade técnica de se considerar o Poder de Reforma como um
“Poder Constituinte” Derivado.
Ora, o Poder Constituinte, como já exposto, é inicial, autônomo e incondicionado, características estas que não se encontram presentes no exercício de reforma
de uma Constituição.
Assim, conforme conclui J. J. Gomes Canotilho (in Direito Constitucional, 6ª
edição, Coimbra, Livraria Almedina, 1993, p. 95),
o poder de revisão constitucional é, consequentemente, um poder
constituído tal como o poder legislativo. Verdadeiramente, o poder
de revisão só em sentido impróprio se poderá considerar constituinte; será, quando muito, ´uma paródia do poder constituinte
verdadeiro. (Grifei).
Não é outra a lição de Ivo Dantas (in Direito Adquirido, Emendas Constitucionais e Controle da Constitucionalidade, 2ª edição, Rio de Janeiro, Lumen Juris,
1997, p. 5):
... confundem-se os conceitos de Poder Constituinte e de Poder de
Reforma, este último, às vezes, impropriamente denominado de Poder Constituinte Derivado e contraposto ao Poder Constituinte Originário. Esclarecidos, entretanto, os dimensionamentos conceituais
de ambos, ver-se-á que, enquanto o primeiro não conhece em sua
manifestação ´limitações jurídico-positivas´, o segundo, ao contrário, não poderá livrar-se de balizamentos jurídicos previamente estabelecidos, o que explica, de forma inconteste, a aplicação do
controle de constitucionalidade à obra que pelo Poder Reformador
vier a ser produzida. (Grifei).
Demonstrada, pois, a inadequação da divisão do Poder Constituinte em originário e derivado, a denominação em pauta será utilizada, neste trabalho, exclusivamente com relação ao poder constituinte efetivamente existente, enquanto a faculdade de se alterar a Constituição passará a ser tratada como “Poder de Reforma”.
2.3. Titularidade e exercício
A titularidade do Poder Constituinte variou de acordo com a ideologia reinante em cada época e com o regime de governo então adotado.
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Para os países que adotam o regime autocrático, o titular será uma minoria. Ao
contrário, nas democracias, o Poder Constituinte pertencerá ao povo.
Na nossa Nação, que já conviveu com os dois tipos de regime, a titularidade do poder pertence ao povo, tendo sido exercido, durante a elaboração da última Carta, promulgada em 1988, através de uma Assembléia Constituinte.
Deveras, é esse ente coletivo, cujos integrantes são normalmente eleitos pelo
povo, que costuma exercer o Poder Constituinte.
Tal agente, exatamente por não ser o titular do Poder, edita uma
obra que vale como Constituição na medida em que conta com a
aceitação do titular. Esta aceitação é presumida sempre que o
agente é designado pelo titular para estabelecer a Constituição,
como ocorre quando uma Assembléia Constituinte é eleita. Ou é
aferida posteriormente, seja expressamente quando a Constituição
é sujeita à manifestação direta do povo (referendum) ou tacitamente quando posta em prática vem a ganhar eficácia”, nos termos
do magistério de Manoel Gonçalves Ferreira Filho (in Curso de Direito Constitucional, 20ª edição, São Paulo, Saraiva, 1993, p. 22).
No Brasil, o titular do Poder de Reforma também é o povo, sendo exercido
através de seus representantes.
2.4. Poder de Reforma – Espécies
A Constituição em vigor prevê duas formas de manifestação de reforma de seu
texto. A primeira se encontra contida no art. 60, que cuida do processo de emenda.
Já a segunda trata da revisão constitucional, prevista no art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
A revisão, programada para ser realizada cinco anos após a promulgação da
Lei Ápice, através de um procedimento legislativo mais simples, pelo voto da
maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral, já
se ultimou, trazendo pouquíssimas alterações no Texto2, durante o ano de 1994.
Para o presente ensaio, crescem em importância, pois as reformas a serem implementadas por intermédio das emendas, o que justifica o seu estudo em item
apartado, logo a seguir.
2.5. Emendas à Constituição
A Carta Magna, em seu art. 60, caput, incisos I a III, estabelece a quem cabe a
iniciativa de emendá-la: a) um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos De2
Foram, ao todo, promulgadas seis emendas constitucionais de revisão.
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putados ou do Senado Federal; b) o Presidente da República; c) mais da metade das
Assembléias Legislativas das unidades da federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus integrantes.
Como se pode observar, são duas as novidades no tocante ao Texto de 67/69:
1ª) a emenda pode ser promovida por apenas um terço dos membros de qualquer
das Casas, não havendo mais a necessidade de tal quorum na Câmara e no Senado,
como dispunha o art. 47, inciso I, § 3º; 2ª) restabeleceu-se a iniciativa dos legislativos estaduais, anteriormente contida na Constituição de 1891 (art. 90, § 1º).
Por sua vez, a Constituição em vigor disciplina limitações temporais ao poder
de emenda, uma vez que ela não poderá ser alterada na vigência de intervenção federal, estado de defesa ou estado de sítio (art. 60, § 1º), nem tampouco poderá haver, na mesma sessão legislativa, renovação de proposta cuja matéria tenha sido rejeitada ou considerada prejudicada (§ 5º).
O processo legislativo a ser observado se encontra disposto no § 2º do citado
art. 60, determinando que a proposta seja discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos,
três quintos dos votos dos respectivos membros, cabendo a promulgação da emenda às Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o correspondente número de ordem (§ 3º).
Há, ainda, as restrições de ordem material, sendo vedada a proposta de
emenda tendente a abolir (art. 60, § 4º): I) a forma federativa de Estado; II) o voto
direto, secreto, universal e periódico; III) a separação dos Poderes; IV ) os direitos e
garantias individuais.
As limitações em pauta constituem as chamadas cláusulas pétreas, dentre as
quais se insere o direito adquirido, na condição de garantia individual (art. 5º, inciso XXXVI, CF), daí porque ganha relevo a indagação: As emendas constitucionais
podem violar o direito adquirido? A resposta a esta questão constitui o cerne principal deste esboço e deverá ser discorrida nas linhas seguintes.
3.
DO DIREITO ADQUIRIDO
3.1. Conceito
A doutrina clássica, apoiada em Duguit (apud Ivo Dantas, ob. cit., p. 2/3), já
registrava a dificuldade na definição do que venha a ser direito adquirido.
Inobstante, não se pode começar a desenvolver um tema sem traçar os seus
contornos.
Assim, apesar dos obstáculos, os estudiosos do direito não esmoreceram, no
afã de encontrar o melhor conceito para o instituto.
Referência sempre mencionada no estudo da matéria, o italiano Gabba lança
a seguinte definição:
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é adquirido todo direito que - a) é conseqüência de um fato idôneo
a produzi-lo, em virtude da lei do tempo no qual o fato foi consumado, embora a ocasião de fazê-lo valer não se tenha apresentado antes da atuação de uma lei nova sobre o mesmo; e que - b) nos
termos da lei sob cujo império se entabulou o fato do qual se origina, entrou imediatamente a fazer parte do patrimônio de quem o
adquiriu” (apud R. Limongi França, A irretroatividade das leis e o
direito adquirido, 3ª edição, São Paulo, RT, 1982, p. 50).
No Direito Brasileiro, a questão não pode ser estudada sem a leitura da obra
de R. Limongi França (ob. cit., p. 208), para quem o direito adquirido “é a conseqüência de uma lei, por via direta ou por intermédio de fato idôneo; conseqüência
que, tendo passado a integrar o patrimônio material ou moral do sujeito, não se fez
valer antes da vigência da lei nova sobre o mesmo objeto”.
Já José Afonso da Silva (in Curso de Direito Constitucional Positivo, 6ª edição, 2ª tiragem, São Paulo, RT, 1990, p. 374) assim leciona:
Para compreendermos melhor o que seja direito adquirido, cumpre
relembrar o que se disse acima sobre o direito subjetivo: é um direito exercitável segundo a vontade do titular e exigível na via jurisdicional quando seu exercício é obstado pelo sujeito obrigado à prestação correspondente. Se tal direito é exercido, foi devidamente
prestado, tornou-se situação jurídica consumada (direito consumado, direito satisfeito, extinguiu-se a relação jurídica que o fundamentava... Se o direito subjetivo não foi exercido, vindo a lei nova,
transforma-se em direito adquirido, porque era direito exercitável e
exigível à vontade de seu titular. Incorporou-se no seu patrimônio,
para ser exercido quando lhe conviesse. A lei nova não pode prejudicá-lo, só pelo fato do titular não o ter exercido antes (Grifei).
Não se pode olvidar que o legislador também cuidou da questão, no § 2º, art.
6º, da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-lei nº 4.657, de 04.09.42): “Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa
exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixo, ou condição
preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem”.
Em resumo, direito adquirido é aquele que, já integrante do patrimônio
de seu titular, pode ser exercido a qualquer momento, não podendo lei posterior, que tenha disciplinado a matéria de modo diferente, causar-lhe prejuízo.
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3.2. O Direito Adquirido nas Constituições Federais Brasileiras
De certo modo, as Constituições Brasileiras sempre trataram do tema, com exceção da Carta de 1937, que nada dispunha sobre o assunto, havendo a edição de
leis retroativas durante a sua vigência.
Com apoio no escólio de Raul Machado Horta (in Estudos de Direito Constitucional, Belo Horizonte, Del Rey Editora, 1995, p. 274/276), constata-se que o tratamento constitucional da matéria pode ser destacado em dois períodos. No primeiro, consagra-se o princípio da irretroatividade ampla das leis, sendo o direito adquirido um preceito reflexo daquele, posteriormente disciplinado na legislação ordinária. Foi o que se observou nas Cartas de 1824 (art. 179, § 3º) e de 1891 (art. 11, § 3º).
No segundo, a irretroatividade foi absorvida pelo direito adquirido, que passa expressamente a ser inscrito como princípio constitucional, conforme se verifica nos
Textos de 1934 (art. 113, § 3º), 1946 (art. 141, § 3º), 1967/69 (art. 153, § 3º) e de
1988, alhures já mencionado (art. 5º, inciso XXXVI).
Dessa forma, com exclusão da Constituição Polaca de Vargas, todas as outras
protegeram, de forma implícita ou explícita, o direito adquirido, revelando a deferência com que o constituinte sempre cuidou do assunto.
3.3. O Direito Adquirido e o Poder de Reforma
Antes de se adentrar no âmago do tema a ser investigado, necessário se faz examinar, de modo preliminar, a questão do direito adquirido em face da Constituição.
As próprias características do Poder Constituinte – o poder de elaborar uma
Carta Magna, nos termos já expostos, evidenciam que o instituto não pode ser invocado perante uma nova ordem jurídica constitucional.
Deveras, o fato de ser inicial, autônomo e incondicionado denota que tal poder não tem limites no âmbito do Direito Positivo, podendo alcançar situações pretensamente resguardadas pelo direito adquirido.
A matéria parece não suscitar controvérsias.
Manoel Gonçalves Ferreira Filho, em conferência proferida no Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, em 11.06.97, publicada sob o título Poder Constituinte
e Direito Adquirido - Algumas Anotações Elementares, na Revista dos Tribunais,
Doutrina Civil, São Paulo, RT, vol. 745, 1997, p. 21, já assim se manifestava:
...Mas a retroatividade não é vedada à norma constitucional
oriunda do Poder originário. Com efeito, dada a sua inicialidade,
ou melhor, dada a inexistência de limitação jurídica que a proíba,
pode ela colher fatos a ela anteriores. Em conseqüência, pode darlhes caráter (lícito ou ilícito) diferente do que tinham na ordem jurídica anterior. Igualmente pode pôr termo a direitos adquiridos.
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O Professor Ivo Dantas, mais uma vez lembrado em sua festejada obra já referida (p. 58/59), posiciona-se:
Já dissemos que um texto constitucional é resultado de um Hiato
Constitucional, vale dizer, de um processo revolucionário. Não se
vincula a nenhum preceito jurídico-positivo que lhe seja anterior,
muito embora, também nesta hipótese, os valores sociais e o Direito Natural funcionem como limitações ao exercício do Poder Constituinte. Por isto, e em conseqüência, poderia a nova Constituição
desconstituir direitos adquiridos tal como aconteceu com a atual
Constituição de 1988. Entretanto, neste caso - e já o dissemos -, há
um pressuposto de ordem formal: a ressalva do não respeito aos direitos adquiridos com fundamento na Constituição anterior terá
que vir expressa, não podendo ser objeto de meras deduções interpretativas. (Grifei).
A advertência final do consagrado Mestre guarda relevância, pois no Direito indígena, são escassos os casos de embate entre as Cartas Políticas e os direitos adquiridos. Ademais, a nova Constituição normalmente recepciona as leis
que não lhe são contrárias, o que justifica a necessidade da explicitação, para
que não haja dúvidas.
A propósito, é válido transcrever a lição de Raul Machado Horta (ob. cit.,
p. 281):
A Constituição, por decisão soberana do constituinte originário,
poderá revogar o direito adquirido, da mesma forma que revoga
as leis anteriores incompatíveis. Como a sucessão constitucional
do Brasil não se opera por mudanças violentas e se faz acompanhar da continuidade no tempo das leis anteriores, os casos de
conflito entre a Constituição e o direito adquirido serão reduzidos,
quando não raros. Em nosso sistema, a Constituição é fonte protetora do direito adquirido, sobrepondo-o à lei.
No âmbito jurisprudencial, o assunto é, também, pacífico, restando consagrado pelo Pretório Excelso que “não pode haver direito adquirido contra preceito expresso da Constituição”.
A regra seria a mesma no que se refere às emendas constitucionais, no exercício do Poder de Reforma?
A resposta negativa merece prevalecer.
A Carta de 88 inscreve, em seu art. 5º, inciso XXXVI, o direito adquirido como
uma garantia individual.
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Por sua vez, os direitos e garantias individuais não podem ser abolidos através
de emenda (art. 60, § 4º, CF), demonstrando, de forma clara, a impossibilidade do
Poder de Reforma violar tal preceito.
Os que defendem posicionamento contrário argumentam que o direito adquirido não pode ser prejudicado por “lei”, de acordo com o preceito constitucional, o
que excluiria a emenda.
Ora, o vocábulo lei é aí empregado no seu sentido amplo, englobando todas
as modalidades de legislação, a partir das emendas.
Ademais, não se pode esquecer que o Poder de Reforma é um poder constituído, limitado, e, como tal, deve respeitar as diretrizes traçadas pelo Poder Constituinte. Se este estabeleceu a proteção ao direito adquirido, como se admitir que,
posteriormente, na vigência do mesmo ordenamento jurídico constitucional, sem
que tenha havido qualquer processo revolucionário de mudança, a própria Carta Política, através de uma emenda, venha a violar o preceito que ela mesmo resguardou?
Seria, no mínimo, um contra-senso.
Transportando tais considerações para as constantes reformas constitucionais,
dúvidas não podem restar no sentido de que aqueles que já integraram o direito ao
seu patrimônio, ainda que não tenham exercido a vantagem, estão protegidos sob o
manto do art. 5º, inciso XXXVI, CF.
É esse o entendimento que vem prevalecendo no campo doutrinário.
Em artigo conjunto, Carlos Ayres Britto e Valmir Pontes Filho (in Direito Adquirido contra as Emendas Constitucionais, Revista de Direito Administrativo, Rio
de Janeiro, Renovar, 1995, vol. 202, p. 80) assim se expressam: “Em síntese, a norma
constitucional veiculadora da intocabilidade do direito adquirido é norma de bloqueio de toda função legislativa pós-Constituição. Impõe-se a qualquer dos atos estatais que se integram no ‘processo legislativo’, sem exclusão das emendas”.
Sérgio de Andréa Ferreira (in O princípio da segurança jurídica em face das
reformas constitucionais, Revista Forense, Rio de Janeiro, Forense, vol. 334, p.198)
afirma:
Foi a própria CF de 1988 que, quando quis excepcionar, teve de
fazê-lo expressamente, ao estatuir, no art. 17 do ADCT, que não se
admitia, no caso nele previsto, invocação de direito adquirido. Se
isso ocorresse, não haveria necessidade de ressalva. Mas essa exclusão, questionável mesmo em uma nova Constituição, é intolerável em se tratando de mera emenda constitucional.
Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho (in Poder Constituinte ... cit., p. 25)
“ninguém negará ser a norma constante do art. 5º, XXXVI, da Constituição uma garantia, garantia essa da segurança das relações jurídicas. Conseqüentemente ela não
poderá ser abolida pelo Poder Constituinte derivado (Poder de Reforma)”.
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Já o Ministro Carlos Mário da Silva Velloso, em artigo dedicado ao tema, publicado em sua obra Temas de Direito Público, Belo Horizonte, 1994, p. 448/449, lança a seguinte conclusão:
... um direito adquirido por força da Constituição, obra do Poder
Constituinte originário, há de ser respeitado pela reforma constitucional, produto do Poder Constituinte instituído, ou de 2º grau, vez
que este é limitado, explícita e implicitamente, pela Constituição.
Raul Machado Horta (ob. cit., p. 281/282) ensina:
Ao incluir no rol da matéria vedada ao poder constituinte de revisão a emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais,
a Constituição transformou o Título II da Constituição, que abrange os Direitos e Garantias Individuais e Coletivos (art. 5º, I a LXXVII)
no seu núcleo irreformável e, por isso, inatingível pelo Poder de
Emenda. Nessa irreformalidade, encontra-se o princípio de que a lei
não prejudicará o direito adquirido (art. 5º, XXXVI). O poder constituinte originário poderá, em tese, suprimir o direito adquirido, de
modo geral, incluindo nessa supressão a regra que veda a lei prejudicial de direito adquirido. No caso do poder constituinte de revisão, será questionável a emenda que propuser a supressão do direito adquirido assegurado pelo constituinte originário. A emenda ficará exposta a arguição de inconstitucionalidade.
Ivo Dantas (ob. cit., p. 61/62) expõe idêntica conclusão, destacando que
quando se fala em Emenda Constitucional, esta é manifestação de
um Poder Constituído - Poder de Reforma -, integrando, nos termos
do art. 59 (CF, 1988), o Processo Legislativo e, como tal, encontra-se
obrigada a render homenagens ao texto da Constituição, conclusão
a que se chega não por mero exercício exegético, mas, inclusive, por
determinação expressa deste mesmo texto (art. 60, § 4º).
Destarte, apesar da existência de vozes abalizadas em contrário, como a de
Hugo de Brito Machado (v. Direito Adquirido e Coisa Julgada como Garantias
Constitucionais, Revista dos Tribunais, São Paulo, RT, vol. 714, p. 19-26), observa-se
que a doutrina vem sedimentando a exegese segundo a qual há direito adquirido em
relação à emenda constitucional.
Em caso de violação ao princípio, caberá, pois, ao prejudicado socorrer-se do
Poder Judiciário, sendo certo que, na hipótese da emenda afrontar o direito adqui-
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rido, estará sujeita ao controle da constitucionalidade, conforme posição já albergada3 na Corte Suprema, no julgamento das ADIN´s de nºs 926-5/DF e 939-7/DF, que
tratavam do Imposto Provisório sobre Movimentações Financeiras - IPMF.
4.
CONCLUSÃO
Em face do estudo realizado, podem-se apontar as seguintes ilações:
a) a teorização do Poder Constituinte - poder de elaborar uma Constituição surgiu a partir do final do século XVIII, através do panfleto Que é Terceiro
Estado?, de autoria do abade Emmanuel Sieyès, às vésperas da Revolução
Francesa;
b) as características básicas desse poder são três: 1) é inicial, em razão de que
não existe, antes dele, nem de fato nem de direito, qualquer outro poder;
2) é autônomo em função de que somente a ele compete decidir se, como
e quando deve se outorgar uma Constituição à Nação; 3) é incondicionado
porque não está subordinado a qualquer regra;
c) os elementos indicados não se fazem presentes no processo de alteração de
uma Carta Política, pois muitos são os limites a serem observados, havendo,
no caso, o exercício de um poder constituído - o Poder de Reforma, sendo
inadequada a denominação deste como “Poder Constituinte Derivado”;
d) nas democracias, a titularidade do Poder Constituinte cabe ao povo, sendo
normalmente exercida através de uma Assembléia Constituinte, eleita para
tal finalidade, como ocorreu durante os trabalhos da Carta de 88;
e) no Brasil, há previsão do Poder de Reforma ser exercido através da revisão
constitucional, iniciada cinco anos após a promulgação da Lei Ápice (art. 3º,
ADCT) e já concluída, havendo, ainda, a possibilidade de mudanças através
das emendas constitucionais, disciplinadas no art. 60 da Constituição;
f ) direito adquirido é aquele que, já integrante do patrimônio de seu titular,
pode ser exercido a qualquer momento, não podendo lei posterior, que tenha disciplinado a matéria de modo diferente, causar-lhe prejuízo;
g) com exclusão da Constituição Polaca de Vargas (1937), todas as outras protegeram, de forma implícita ou explícita, o direito adquirido, revelando a
deferência com que o constituinte sempre cuidou da matéria;
h) o Poder Constituinte não tem limites no âmbito do Direito Positivo, de
modo que a Constituição pode alcançar situações pretensamente resguardadas pelo direito adquirido;
i) diferente é a regra no que se refere ao poder constituído – Poder de Reforma –, pois o princípio do direito adquirido constitui uma garantia indivi-
3
A possibilidade de existência de normas inseridas na Carta Magna estarem eivadas do vício da inconstitucionalidade, reconhecida pelo Supremo, consagrou a posição que parcela da doutrina já vinha, há muito, defendendo.
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dual (art. 5º, XXXVI, CF) e, como tal, encontra-se protegido na condição de
cláusula pétrea, expressa no art. 60, § 4º, IV, da Carta Magna, de forma que
as emendas constitucionais hão de respeitar o preceito;
j) em caso de violação ao princípio, caberá ao prejudicado se socorrer do Poder Judiciário, sendo certo que a emenda estará sujeita ao controle da
constitucionalidade.
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O INÍCIO DA REFORMA DO PODER JUDICIÁRIO - I
Renato Bernardi
Procurador do Estado de São Paulo.
Professor de Direito Constitucional das Faculdades Integradas de Ourinhos.
Mestre em Direito Constitucional.
Doutorando em Direito Tributário.
Depois de mais de uma década de acirrados debates, aos 31 de dezembro passado, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004,
a qual se convencionou chamar de Emenda Constitucional da Reforma do Poder Judiciário.
Em primeiro lugar, há de se ressaltar que o mais importante não é o texto da
reforma, mas sim a disposição do Poder Legislativo, legítimo representante dos cidadãos brasileiros, trabalhar em busca de uma Justiça mais próxima do povo, mais
célere e, exatamente por isso, mais justa.
Em relação às disposições da Emenda Constitucional, é bom que se frise que
tal não será responsável, por si só, por conferir agilidade aos feitos que atualmente
se avolumam no Judiciário brasileiro. A Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, deve ser vista sim como o início de uma desejada reforma Judiciária, à qual se deve seguir um melhor aparelhamento material e pessoal do Poder Judiciário e uma adequação das leis materiais e processuais em vigor. Se a atividade legislativa limitar-se à promulgação da Emenda Constitucional referida, de nada terá
adiantado escrever na Constituição Federal o atual texto do inciso LXXVIII do artigo
5º, que determina, de forma cogente: a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a
celeridade de sua tramitação. Se à Emenda Constitucional não se seguir uma re-
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forma das leis processuais e da administração do Poder Judiciário, referida disposição terá, tão-somente, caráter principiológico, nada de novo trazendo ao cidadão
brasileiro.
Das disposições constitucionais criadas, as que mais suscitam debates são
aquelas referentes às súmulas vinculantes (artigo 103-A da Constituição Federal) e
ao controle externo do Poder Judiciário (artigo 103-B da Constituição Federal). Ambas disposições contam com abalizadas opiniões, tanto em sentido contrário como
em seu favor.
As súmulas sempre existiram em nosso País e eram tidas somente como fontes secundárias do Direito. De novo, tem-se que a Emenda Constitucional criou não
a súmula, mas trouxe a possibilidade de elas se revestirem de caráter vinculante a
partir do voto de 2/3 dos membros do Supremo Tribunal Federal, impondo seu
atendimento aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública direta e indireta nas esferas federal, estadual e municipal.
Isso significa que os Ministros do Supremo Tribunal Federal passam a dispor
do poder de colocar um ponto final nas controvérsias judiciais atuais e nas discordâncias estabelecidas entre órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública,
dissensos capazes de causar grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de
ações com o mesmo objeto.
Contra tal poder conferido ao Supremo Tribunal Federal pela Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, levantam-se vozes que fundamentam
seus argumentos no provável “engessamento” do Poder Judiciário, argüindo que a
interpretação de uma questão poderá ser retirada de um julgador, que estará obrigado a acatar decisão de órgão jurisdicional de nível superior, o que seria capaz de
ferir de morte a independência dos juízes, podendo se antever um ranço de autoritarismo em tal procedimento. Por outro lado, os que se põem em favor da súmula
vinculante argumentam com o aspecto prático de tal medida, que será capaz de fechar as portas do Poder Judiciário para discussões intermináveis nos quatro cantos
do País sobre questões para as quais o Supremo Tribunal Federal já tenha firmado
posição, contribuindo, de forma efetiva, para a celeridade da justiça, seja ela prestada dentro ou fora de uma lide, já que, inclusive, a Administração Pública deverá pautar-se pelo atendimento do quanto sumulado. Vale ressaltar que, em relação às súmulas vigentes, a Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, em seu
artigo 8º, fixou que somente terão caráter vinculante após a respectiva confirmação
pela mesma maioria qualificada de 2/3 dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.
Pesados os prós e os contras, deve-se levar em consideração que somente o
Supremo Tribunal Federal, por seus Ministros, é que poderá conferir caráter vinculante às súmulas; some-se a isso o fato de que se trata da mais alta Corte Jurisdicional do País, que, embora atualmente composta a partir de critérios políticos, é conhecida pela retidão de conduta e zelo pelas disposições constitucionais vigentes,
digna de que o povo brasileiro possa continuar nela depositando a esperança de que
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os julgamentos continuem sendo pautados pelo conhecimento jurídico-social e pela
prudência, não impondo aos demais Magistrados brasileiros e aos jurisdicionados
interpretações divorciadas do razoável.
A novel disposição constitucional instituiu, além da súmula vinculante, o que
convencionou designar de Conselho Nacional de Justiça, órgão de composição multifacetária, formado por membros do Poder Judiciário (STF, STJ, TST, um desembargador de Tribunal de Justiça, um Juiz Estadual, um Juiz de TRF, um Juiz Federal,
um Juiz de TRT, um Juiz do Trabalho), do Ministério Público (um membro do MP
da União, um membro de MP Estadual), OAB (dois advogados) e dois cidadãos de
notável saber jurídico e reputação ilibada.
Por possuir em seu quadro pessoas estranhas à função jurisdicional (MP, OAB
e cidadãos) é que se convencionou rotular o órgão de externo ao Poder Judiciário.
Claro é que referido Conselho não terá função jurisdicional, mesmo porque composto por pessoas desinvestidas de poder jurisdicional. Ao polêmico órgão, caberá,
como genericamente consta do § 4º, do artigo 103-B da Constituição Federal, o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes...
Mais uma vez, vozes favoráveis e contrárias ao novo órgão surgiram de nomes
de peso no cenário jurídico nacional. A favor, ao estilo do adágio “quem não deve
não teme”, estão aqueles que pregam uma maior e mais célere apuração dos abusos
cometidos por pessoas investidas do poder de dizer o direito, que pregam maior
transparência nos procedimentos disciplinares internos ao Poder. Em pólo diametralmente oposto, estão aqueles que constatam em tal órgão uma ofensa à independência do Poder Judiciário, preceito fundamental insculpido no artigo 2º da Constituição Federal, sendo oportuno citar a existência de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade tramitando no Supremo Tribunal Federal questionando a conformidade
do novo órgão, criado a partir de Emenda Constitucional (Poder Constituinte Derivado Reformador) com os ditames constitucionais vigentes instituídos pelo Poder
Constituinte Originário Revolucionário.
Se a análise do embate entre as opiniões contrárias e as opiniões favoráveis ao
Conselho Nacional de Justiça não transbordarem os limites da técnica constitucional, não há como se negar a inconstitucionalidade na composição de tal órgão, já
que se criou a possibilidade de pessoas estranhas ao Poder Judiciário decidirem sobre os acertos e os erros daqueles que efetivamente compõem referido Poder, não
na área jurisdicional, mas principalmente, na seara disciplinar, acabando com a independência do Poder Judiciário, dogma constitucional que constitui cláusula pétrea,
imune, pois, à mutação constitucional, ex vi o disposto no inciso III, do § 4º, do artigo 60 da Constituição Federal, ainda mais ao se constatar que os cidadãos componentes do órgão responsável pelo controle do Poder Judiciário serão indicados pelo
Poder Legislativo, um pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal (artigo 103-B, inciso XIII).
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A Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, não cuidou somente da criação da súmula vinculante e do controle externo do Poder Judiciário.
Trouxe outras importantes inovações constitucionais, capazes de contribuir, sem dúvida, para a prestação de uma justiça em tempo razoável.
Além disso, veio também a dirimir dúvidas jurisprudenciais e doutrinárias que
gravitavam pelo universo jurídico. Uma das questões, agora pacificada, é a antiga discussão da recepção dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil em nível de
norma constitucional ou legal. Nos termos do disposto no recém criado § 3º, do art.
5º da Constituição Federal,
os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos
que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em
dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
Ainda em referência ao direito internacional, por determinação constitucional, fica o Brasil submetido à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão. (art. 5º, § 4º).
No campo da intervenção federal - medida excepcional que resulta na supressão temporária da autonomia de um ente da Federação – foi suprimida a possibilidade de ajuizamento de Ação Direita de Inconstitucionalidade Interventiva no Superior Tribunal de Justiça, uma vez que passou a ser do Supremo Tribunal Federal a
competência para processo e julgamento da Ação Direita de Inconstitucionalidade
Interventiva no caso de recusa à execução de lei federal por Estado-Membro da República Federativa do Brasil (art. 36, inciso III), ficando revogado o disposto no inciso IV do mesmo artigo.
No que tange ao interesse que os concursos públicos para ingresso nas Carreiras da Magistratura e do Ministério Público despertam nos recém-formados, a
Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, veio como uma ducha
de água fria, já que passa a ser exigência para inscrição no concurso de ingresso em
tais carreiras ...no mínimo três anos de atividade jurídica... (art. 93, inciso I e art.
129, § 3º).
A obrigação de o Juiz titular residir na Comarca onde presta sua função jurisdicional agora foi atenuada em nível constitucional, já que possível a residência fora
da Comarca com autorização do Tribunal, situação fática recorrente, mesmo antes
da vigência da novel redação do inciso VII do art. 93 da Constituição Federal.
Tendo em vista a transparência que deve pautar os atos de todos os Poderes
da União e em homenagem ao princípio constitucional da publicidade, a Emenda
Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, determinou: as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas e em sessão pública, sendo as disciplinares tomadas pelo voto da maioria absoluta de seus membros (art. 93, inciso X).
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Em busca da tão sonhada celeridade da prestação jurisdicional e para pôr fim
à prática de somente ser distribuído um determinado número de processos aos julgadores, acumulando-se o que sobejar, o art. 93, inciso XV, prevê que a distribuição
de processos será imediata, em todos os graus de jurisdição. Sem dúvida, a determinação é salutar, mas de pouco efeito se for tida como única, já que, embora imediatamente distribuídos, os processos ficarão com os julgadores, estes em pequeno
número para tamanha quantidade de feitos. Apenas a título de exemplo, no Estado
de São Paulo, aproximadamente quinhentos mil processos aguardavam distribuição
antes da promulgação da Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004.
Por tal motivo, ainda que sob pena de repetição, lembre-se que
A Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, deve
ser vista sim como o início de uma desejada reforma Judiciária, à
qual se deve seguir um melhor aparelhamento material e pessoal
do Poder Judiciário e uma adequação das leis materiais e processuais em vigor. (texto do artigo da semana passada).
Medida capaz de promover a defesa do próprio Poder Judiciário é a chamada
“quarentena”. Nos termos do disposto no criado inciso V do art. 95 da Constituição
Federal, é vedado ao juiz exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou,
antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração. Isso acaba com o mau vezo daquilo que se convencionou chamar de “embargos auriculares” nos cafés e gabinetes dos foros em geral, oportunidade em que
magistrados recém-aposentados, que não se pautavam pela ética, procuravam os colegas da ativa para solicitar especial atenção a determinado interesse que, por ventura, estivessem patrocinando em juízo. Com a obrigatória reserva dos três anos, a
possível influência do aposentado estará, ao menos, atenuada.
Criou-se polêmica com a “federalização” da jurisdição de violações aos direitos humanos. A partir da Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004,
Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a
Justiça Federal (art. 109, § 5º).
Ora, seriam as Justiças Estaduais incapazes de processar e julgar tais violações?
Além do mais, muito extensos os limites do subjetivismo para se adjetivar de grave
ou não uma violação dos direitos humanos.
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Por outro lado, a Justiça do Trabalho é assunto de destaque na Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004. Com a alteração do disposto no art.
114 da Constituição Federal, é perante ela que serão processadas e julgadas todas as
causas pertinentes ao trabalho e não somente à relação de emprego, o que, em termos práticos, significa dizer que qualquer pessoa, mesmo que trabalhe como autônomo ou que não tenha registro em carteira, poderá pleitear direitos previsto em lei
batendo às portas da Justiça do Trabalho.
Mais uma discussão é terminada com o texto da Emenda Constitucional, já
que nos termos do disposto no inciso VI do art. 114 da Constituição Federal, compete à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações de indenização por dano moral ou patrimonial decorrentes da relação de trabalho, ponto sobre o qual divergiam
doutrinadores e demais operadores dos direito, uns comungando do entendimento de que tais ações deveriam tramitar pela justiça comum e outros entendendo que
o processo e o julgamento competiam à justiça obreira. C’est fini !
Contudo, um problema técnico vai movimentar o Judiciário em relação à ampliação da competência da Justiça do Trabalho. No texto do Projeto de Emenda
Constitucional (PEC) aprovado pela a Câmara dos Deputados, competiam à Justiça
do Trabalho, também, o processo e o julgamento de questões trabalhistas envolvendo os servidores públicos, causas que eram afetas à Justiça Comum. No Senado Federal, a PEC sofreu emenda no sentido de se excluírem tais casos da competência
da Justiça obreira. No entanto, para surpresa geral, o texto promulgado estabelece
competir à Justiça do Trabalho as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 114, inciso
I). Por tal motivo, cogita-se o ajuizamento de ADIN, na busca da correção do equívoco, mantendo-se o texto aprovado pelo Senado Federal, que exclui da competência da Justiça do Trabalho questões trabalhistas envolvendo funcionários públicos,
exatamente como ocorria antes da promulgação da Emenda Constitucional nº 45,
de 08 de dezembro de 2004.
A par disso, foi aumentado em dez o número de componentes do Tribunal Superior do Trabalho, agora composto por vinte e sete Ministros (art. 111-A).
Excetuadas questões técnicas pontuais, essas são as principais inovações trazidas pela Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004.
Para obter o texto completo da Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, acesse www.presidencia.gov.br e clique em “legislação”, “Constituição”,
“Constituição Federal 1988”, “Emendas Constitucionais” e “45, de 8.12.2004”.
A Emenda Constitucional 42/03 e
o Princípio da Anterioridade Tributária
no Imposto sobre a Renda
André Murilo Parente Nogueira
Advogado tributarista junto ao escritório Colenci Advogados Associados, Botucatu/SP.
Pós-graduando em Direito Público – ênfase em Direito Tributário pela
Instituição Toledo de Ensino, Bauru/SP
RESUMO
Estudo visa a demonstração da inconstitucionalidade, passando pela idéia de
princípios constitucionais, de parte do texto da Emenda Constitucional 42/03, em especial o acréscimo trazido ao bojo do §1, art. 150, da Constituição Federal, concernente a
violação ao princípio da anterioridade tributária qualificada no que tange ao imposto
sobre a renda e proveitos.
Palavras-chave: Princípio da anterioridade, Imposto sobre a Renda, Emenda
Constitucional 42/03.
INTRODUÇÃO
No presente estudo, abordaremos a expressiva modificação trazida pela Emenda
Constitucional nº 42 de 19 de dezembro de 2003, principalmente no concernente ao
princípio da anterioridade tributária em face do imposto de renda, tributo que restou
excepcionado da regra alhures, exceção essa que, ao nosso sentir, macula-se de vício
constitucional, como restará explicitado no decorrer desse trabalho.
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A citada Emenda Constitucional trouxe em seu bojo notável modificação no
Sistema Tributário Nacional; contudo, tropeçou em ponto referente ao Imposto de
Renda, como se perceberá.
Vale transcrevermos o trecho maculado pelo vício de inconstitucionalidade
logo mais explicado e justificado, in verbis:
Art. 150: Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
...
III – cobrar tributos
...
b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei
que os instituiu ou aumentou;
c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto
na alínea b;
...
§ 1º A vedação do inciso III, b, não se aplica aos tributos previstos
nos arts. 148, I, 153, I, II, IV e V; e 154, II; e a vedação do inciso III,
c, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, III e
V; e 154, II, nem à fixação da base de cálculo dos impostos previstos nos arts. 155, III, e 156, I”. (grifo nosso).
Trazidas essas considerações introdutórias necessárias para o desenvolvimento do raciocínio pretendido, passemos ao estudo do tema proposto.
É sabido que o Estado Democrático Brasileiro encontra-se calcado em uma Constituição Federal que em seu bojo contempla normas jurídicas, algumas de maior conteúdo valorativo e menor especificidade em face das outras, dentro da própria Carta.
As aludidas normas jurídicas são os exaltados princípios constitucionais, os
quais, em razão de sua relevância no sistema jurídico brasileiro, merecem a nossa
atenção especial nesse estudo.
Importante sabermos que a juridicidade dos princípios constitucionais, ou
seja, seu caráter de verdadeira norma jurídica, nem sempre foi reconhecida pelos estudiosos da matéria.
Observavam-se os princípios como exortações de ordem moral, social e política,
não estando sob a égide de norma jurídica, principalmente em virtude de não conseguirem enxergar nos mesmos uma sanção imediata, bem como em face de sua alta vagueza e natureza transcendente, atingindo um sem-número de situações fáticas.
Estudiosos da Teoria Geral do Direito se debruçaram sobre a matéria e a doutrina solidificou-se no sentido de que os princípios tratam-se, sim, de verdadeiras
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normas jurídicas, gozando de força e comandos de Direito, capazes de estender
suas determinações nas mais diversas searas da vida social e regulá-las.
Tanto o é que, nos dias atuais, tem-se por cediço que os princípios constitucionais não constituem meros ditames postos à contemplação ou exortação, mas
sim, verdadeiros alicerces do Direito, merecendo observância dentre todos na sociedade, inclusive, o próprio Poder Público.
Os conceitos de princípio são os mais diversificados, porém todos caminham
em um paralelo de forma a reconhecer a sua juridicidade, fundamentalidade e fecundidade das demais regras do Direito.
Quer-se dizer que os princípios constitucionais, a bem da verdade, encontram-se cravadas no mais elevado grau de hierarquia das normas de nosso Estado
Democrático de Direito, de sorte que essas buscam naqueles os seus fundamentos
de validade, sua interpretação e hermenêutica, assim como a própria aplicabilidade
das demais regras jurídicas constitucionais e infraconstitucionais.
Podemos perceber os princípios constitucionais em um altiplano de onde comandam, regem e sustentam todas as demais regras jurídicas, conferindo-lhes validade e direcionando a interpretação das mesmas.
Um pequeno parêntese merece aqui ser posto. Infelizmente, podemos denotar que o positivismo jurídico exagerado e “cego”, por inúmeras vezes, fez com que
a aplicação de princípios constitucionais fosse relevada em face de meras regras infraconstitucionais, o que é temerário. Essa corrente de pensadores fez com que em
casos concretos a regra simples se sobrepusesse em face dos princípios, o que, nós
cientistas do direito, jamais podíamos e poderemos admitir, vez que esse são a base
forte de nosso Estado.
Fechada essa observação, necessário se faz trazermos à baila um conceito para
os princípios constitucionais e nesse trilhar temos a sábia lição de Celso Antonio
Bandeira de Melo:
Princípio (...) é, por definição, mandamento nuclear do sistema,
verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia
sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por
definir a lógica e racionalidade do sistema normativo, no que lhe
confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.1
Buscando-se o conceito para os mesmos Walter Claudius Rothenburg leciona que
os princípios constitucionais são conteúdos intelectivos dos valores
superiores adotados em uma sociedade política, materializados e
1
Curso de direito administrativo, 17.ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 807.
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formalizados juridicamente para produzir uma regulação política no Estado.2
Em não menos relevantes palavras, Roque Antônio Carrazza que assim nos
brinda:
...princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou explícito,
que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do Direito e, por isso mesmo, vincula, de
modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam.
...
Nenhuma interpretação deve ser havida por boa (e, portanto, por
jurídica) se, direta ou indiretamente, vier a afrontar um princípio
jurídico-constitucional.
...
Em suma, os princípios são normas qualificadas, exibindo excepcional valor aglutinante: indicam como devem aplicar-se as normas jurídicas, isto é, que alcance lhes dar, como combiná-las e
quando outorgar precedência a algumas delas.3
Assim, podemos denotar que os princípios constitucionais irradiam seus efeitos sobre a atividade do legislador, da judicatura e de todos aqueles que o invocam,
estendendo-se em todos os segmentos sociais.
Cediço que não se pretende, por meio do presente trabalho, fazer mera demonstração retórica dos princípios constitucionais, mas sim, conscientizar aqueles
que laboram no Direito da sobre posição dos mesmos, conscientizando-nos que observando os princípios encartados em nossa Carta Suprema, estaremos vivendo em
um Estado mais justo, certo e juridicamente seguro.
Sem se pretender fazer tabula rasa à atual e lamentável realidade fática, onde
contribuintes são massacrados por uma das maiores cargas tributárias de todo o planeta, em gritante desrespeito ao princípio da capacidade contributiva, pertinente,
ou até mesmo, indispensável se faz a consagração dos princípios da Constituição Federal, sob pena de, em breve lapso, vivermos em uma anarquia jurídica, onde leis,
simples normas jurídicas, serão mais agraciadas que aqueles, verdadeiros suportes
do Estado Democrático de Direito.
Não podemos admitir que uma Constituição Federal “remendada” por aqueles
que detêm o poder, na sanha arrecadatória, possa ser indiscriminadamente utilizada
como meio de justificação para manobras políticas autoritárias, arbitrárias e violadoras
2
3
Princípios constitucionais, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999, p. 22.
Curso de direito constitucional tributário, 19 ed., São Paulo: Saraiva, 2004, p. 33-36
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dos direitos individuais do contribuinte. Portanto, ainda que, por meio de emendas à
Constituição, resta inadmissível a modificação da Carta de Outubro, como se salientará.
Ressaltado o conteúdo normativo dos princípios constitucionais e seu caráter
permanente de alicerce e sustentáculo de nosso Estado de Direito, na medida em
que são nortes hermenêuticos e fonte primária e maior das demais normas jurídicas
- natureza normogenético como menciona Canotilho4 - guardando esta estrita observância aos mesmos sob pena de inconstitucionalidade, passemos a estudar o
princípio constitucional tributário da anterioridade.
O sistema constitucional pátrio é subdividido em diversos outros subsistemas,
cada qual com seus princípios e ditames peculiares, exatamente como ocorre com
a anterioridade tributária, princípio de ordem eminentemente ligada à posição estatal perante os contribuintes.
Em pensar paralelo ao aqui trazido, Paulo de Barros Carvalho esclarece:
Empreende, na trama normativa, uma construção harmoniosa
e conciliadora, que visa a atingir o valor supremo da certeza,
pelas relações jurídicas que se estabelecem entre Administração
e administrados.
...
Esse tratamento amplo e minucioso, encartado numa Constituição rígida, acarreta como conseqüência inevitável um sistema tributário de acentuada rigidez...5
O referido princípio possui tratamento no artigo 150, inciso III, alíneas b e c,
esta última acrescida com a Emenda Constitucional nº 42/03, o qual também trouxe
modificações no §1º da mesma regra constitucional.
A modificação trazida pela referida Emenda 42/03 - princípio da anterioridade
tributária qualificada - advém de muita crítica e estudos realizados pela doutrina pátria, a qual relutava com a idéia anterior de anterioridade, vez que não consagrava a
segurança jurídica, princípio maior tutelado por tal preceito constitucional.
É escorada na anterioridade nonagesimal prevista no art. 195, §6º, da Constituição Federal, a qual determina que nenhuma contribuição social poderá ser exigida antes de decorridos noventa dias da data de sua publicação. Porém, por não ser
este o cerne dos estudos, não iremos nos alongar nesse ponto.
É sabido que antes da promulgação da EC nº 42/03, vigia o princípio da anterioridade do exercício, previsto na alínea b, do inciso III, do art. 150, da Carta Máxima, segundo o qual restara vedado aos entes tributantes exigir tributo - salvo as contribuições sociais que possuem tratamento diverso prevista na regra alhures - no
mesmo exercício em que houvera sido publicada a lei que os instituiu ou majorou.
4
5
Direito Constitucional, 6.ed., Coimbra: Livraria Almedina, 1993, p. 167.
Curso de direito tributário, 12.ed., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 139-140.
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Tal regra causava grande desconforto na doutrina, vez que. no mais das vezes,
não tinha seu escopo de segurança jurídico alcançada, posto que os entes de direito público tributantes publicavam as leis tributárias em 30 ou 31 de dezembro, passando a cobrar a exação logo dois ou três dias depois de publicada a lei, maculando
a finalidade do princípio em comento.
Estudando o propósito do princípio da anterioridade tributária, o nobre Prof.
Roque Antônio Carrazza preconiza brilhantes palavras:
... o princípio da anterioridade é corolário lógico do princípio da
segurança jurídica. Visa evitar surpresas para o contribuinte, com
a instituição ou majoração de tributos,...
De fato o princípio da anterioridade veicula a idéia de que deve ser
suprimida a tributação surpresa (que afronta a segurança jurídica
dos contribuintes). Ele não permite que, da noite para o dia, alguém
seja colhido por uma nova exigência fiscal. É ele, ainda, que exige
que o contribuinte se depare com regras tributárias claras, estáveis
e seguras. E, mais do que isso: que tenha o conhecimento antecipado dos tributos que lhe serão exigidos ao longo do exercício financeiro, justamente para que possa planejar sua vida econômica.6
Às vistas do escopo do princípio da anterioridade tributária acima melhor explicado, qual seja, segurança jurídica e previsibilidade dos tributos a serem quitados,
o princípio retro estava se mostrando inócuo, principalmente em razão da atitude
ardilosa do Fisco.
Ainda assim, alguns tributos eram excepcionados dessa regra, posto que são
exações de caráter evidentemente extrafiscal, ou seja, sua finalidade não é meramente arrecadatório, mas sim, tributos de cunho estratégico.
Tal exceção fora consagrada pelo art. 150, § 1º, da CF, compreendendo, antes
da EC nº 42/03, o imposto de importação (II) e exportação (IE), o imposto sobre
produtos industrializados (IPI), o imposto sobre operações financeiras (IOF) e o imposto extraordinário de guerra.
Salientado está que os impostos supramencionados possuem natureza muito
além da fiscal, prestando-se como mecanismo de regulação política econômica e
proteção do território e soberania pátria, possuindo vasta carga de extrafiscalidade,
justificando-se, pois, como exceção ao princípio da anterioridade.
A lei que institui ou majora esses impostos entra em vigor e tem sua eficácia, conferidos de forma imediata, dispensando o aguardo do exercício financeiro subseqüente para que possam ser exigidos, o que se funda na próprio extrafiscalidade.
6
Op. cit., p. 174.
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Até então, tudo acertado, porém exigir os demais tributos sem a observância da segurança jurídica, o que efetivamente ocorria no sistema antes vigente, não era aceitável.
Neste diapasão, diante dos apelos e esclarecimento da doutrina, restou-se
acertada a inclusão da alínea c, retrotranscrita instituindo o denominado princípio
da anterioridade qualificada.
Advinda no bojo da minirreforma tributária a mencionada alínea inclui um
plus ao princípio da anterioridade tributária antes vigente. A bem da verdade, a anterioridade qualificada introduzida pela EC 42/03 é meio muito mais eficiente de
consagração da esperada segurança jurídica, visto que confere um lapso mínimo ao
contribuinte para se adequar à nova ou majorada tributação, diferentemente da anterioridade do exercício financeiro, que nem sempre assim servia.
Por meio desta alínea, importante modificação fora realizada em nosso sistema constitucional tributário, de modo que, atualmente, não basta o respeito à anterioridade do exercício financeiro, mas também, que se aguarde, cumulativamente, o
acréscimo de noventa dias.
Portanto, para que a exação seja eficaz no primeiro dia do exercício subseqüente a instituiu ou majorou a lei que assim proceder deve ser publicada no dia primeiro de outubro. Ou, por exemplo, lei que crie tributo em julho de dado exercício,
somente será exigido em primeiro de janeiro do exercício subseqüente.
Com esse pensar, restou consagrada a tão almejada segurança jurídica pretendida pelo princípio constitucional da anterioridade tributária, porém a EC 42/03 não
trouxe apenas alegrias e satisfação ao contribuinte brasileiro.
Em que pese a notória relevância da modificação sofrida pelo princípio da anterioridade do exercício e consagração da anterioridade qualificada, noutra vista a
EC 42/03, quando acrescenta texto ao § 1º, do art. 150, da Carta da República, encontra-se maculada pelo vício da inconstitucionalidade, senão vejamos.
O artigo 150, § 1º, da Constituição Federal, como não poderia ser diferente,
instituiu regras que excepcionam o princípio da anterioridade tributária, principalmente em razão da extrafiscalidade dos tributos excepcionados.
A Emenda Constitucional 42 de dezembro de 2003 trouxe uma segunda parte
ao aludido parágrafo mencionando novas exceções, agora à anterioridade qualificada e não à do exercício financeiro. São essas exceções: imposto de importação (II)
e exportação (IE), imposto sobre operações financeiras (IOF), imposto extraordinário de guerra, o empréstimo compulsório e, por fim, propositalmente, o imposto sobre renda e provenitos de qualquer natureza (IR), com permissivo constitucional de
exercício de competência para instituição previsto no art. 153, inciso III..
Esses tributos não se sujeitam ao princípio da anterioridade previsto pela alínea c, muito embora devam obediência ao previsto na aliena b do inciso III, do art.
150, da Carta Suprema.
Com essa nova visão, restaram configuradas, em nosso sistema constitucional
tributário brasileiro, algumas importantes considerações. A primeira delas é que so-
150
faculdade de direito de bauru
mente o II, o IE, o IOF e o imposto extraordinário de guerra constituem tributos que
verdadeiramente não estão abrangidos pelo princípio da anterioridade, sendo exceção total a essa regra, tanto à anterioridade do exercício financeiro quanto da anterioridade qualificada, logo, passando a ser exigido desde o momento da publicação
da lei, salvo disposição em contrário desta.
Noutra seara, o IPI e não deve observância ao princípio da anterioridade tributária do exercício (art. 150, §1º, primeira parte, CF), todavia, merece cumprir o
preceito da anterioridade qualificada (art. 150, §1º, in fine, CF). Assim agindo, atualmente, para se exigir ou majorar o IPI, basta a estrita obediência aos noventa dias de
anterioridade, contados da data de publicação da lei que, desse modo proceder, v.
g., caso lei majore o IPI em 1º de abril de certo exercício, o tributo majorado será
exigido a contar de 30 de junho do mesmo exercício, não devendo observância à anterioridade do exercício.
Até aí nada temos a protestar no que concerne às reformas e ao novo quadro
inserto em nosso sistema tributário, em especial no tocante ao princípio da anterioridade tributária e sua nova estrutura, haja vista que as exceções se justificam pelo
caráter que reveste as tributações excepcionadas. São tributos eminentemente extrafiscais e, nessa condição, não podem aguardar o lapso de noventa dias ou a chegada do novo exercício financeiro para que possam ter sua eficácia, pois são reguladores de nossa economia e regras de mercado.
Em sentido antagônico, encontra-se a exceção à regra estendida ao Imposto
sobre a Renda (IR), posto que, após a reforma introduzida pela EC 42/03, esse imposto fora retirado da necessidade de observância ao princípio da anterioridade tributária qualificada, o que é repugnante socialmente e inconstitucional, em seu aspecto jurídico.
Sabemos que os demais tributos excepcionados à regra da anterioridade qualificada são de alto conteúdo extrafiscal, o que não se pode mencionar no caso do IR.
Aliás, noção de extrafiscalidade é bem elucidativa nos dizeres de Eduardo Marcial Ferreira Jardim:
..., a extrafiscalidade é o emprego do arsenal tributário sem finalidades arrecadatórias, mas como instrumento de ação política. ...
Como se pode notar, nesses casos o governo deixa de arrecadar,
mas utiliza os tributos com o fito de perseguir o desenvolvimento
de uma região ou indústria nacional, o que configura, a bem de
ver, o instituto examinado.7
Em obra clássica, o ilustre Prof. Ruy Barbosa Nogueira já vislumbrava o conceito preciso de extrafiscalidade, assim nos dirigindo:
7
Manual de direito financeiro e tributário, 5. ed., São Paulo: Saraiva, 2000, p. 218.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
151
Esta intervenção, no controle da economia, é realizada pelo Estado sobretudo por meio de seu poder impositivo. É, pois, no campo
da Receita, que o Estado transforma e moderniza seus métodos de
ingerência. O imposto deixa de ser conceituado como exclusivamente destinado a cobrir as necessidades financeiras do Estado.
É também, conforme o caso e o poder tributante, utilizado como instrumento de intervenção e regulamentação de atividades. É o fenômeno que hoje se agiganta com a natureza extrafiscal do imposto.8
Resta indubitável que a extrafiscalidade não pode ser estendida ao IR do modo
que o fora no bojo da EC 42/03, como forma de justificativa para excepcionar esse
imposto da regra da anterioridade qualificada.
Essa atitude do constituinte derivada gritantemente afronta ao princípio da segurança jurídica, de modo que a EC 42/03, nesse ponto, encontra-se maculada pelo
vício de inconstitucionalidade, nascendo em confronto com o princípio constitucional basilar da segurança jurídica.
Como admitir que o Imposto sobre a renda, exação que atinge diretamente o
bolso do contribuinte, possa ser instituído ou majorado na maior surdina e surpresa fiscal, sendo exigido logo em seguida a sua publicação em lei?
O contribuinte, já massacrado pela altíssima carga tributária brasileira, ainda se
defronta com a surpresa na tributação do imposto mais pessoal existente em nosso
ordenamento constitucional. Exemplos disso são algumas das leis do IR, por exemplo, Lei nº 9.250, de 26 de dezembro de 1995; Lei nº 8.383, de 30 de dezembro de
1991; Lei nº 8.541, de 23 de dezembro de 1991, dentre tantos outros.
Percebemos uma conotação em comum em todos os diplomas legais retromencionados, quais sejam: todos foram instituídos poucos dias antes da entrada do
novo exercício financeiro, assim como todos atingiram os contribuintes poucos dias
após sua publicação. Indiscutível que essa temerária atitude do Fisco poderia ter sido
sanado pelo constituinte derivado – não excluindo o IR da observância do princípio
da anterioridade tributária qualificada –; contudo, esse quedou-se para a banda dos
detentores do Poder de Tributar e, mais uma vez, o maltratado povo é obrigado a suportar, de forma repentina, a exigência do Imposto sobre a “suada” Renda.
O IR é exemplo típico de imposto direto, vinculado estritamente ao dinheiro
do contribuinte, de modo que sua exceção ao princípio da anterioridade qualificada
é inconstitucional, vez que viola o princípio maior da segurança jurídica.
Aliás, por se tratar de dinheiro decorrente do fruto do trabalho do contribuinte, a segurança jurídica é indispensável, fazendo com que o mesmo possa saber a tributação com que arcará de forma antecipada, “tal sentimento tranqüiliza o cidadão, abrindo espaço para o planejamento de ações futuras”.9
8
9
Curso de direito tributário, 14. ed.., São Paulo: Saraiva, 1995, p. 184-185.
CARVALHO, Paulo de Barros. Op. cit., p. 146.
152
faculdade de direito de bauru
Em espaço resumido, mas com sabedoria que lhe é peculiar, o eminente Prof.
Luiz Alberto David Araújo versa sobre o princípio da anterioridade tributária, antes
mesmo da promulgação da EC 42/03, lecionando o seguinte:
Embora o princípio seja objeto da exceções acima indicadas, parece que esse rol não pode ser ampliado, mesmo por eventual
emenda constitucional. É que o princípio da anterioridade, por
seu caráter histórico de princípio limitador do poder estatal, tem
natureza de direito fundamental, de índole individual. Sendo assim, por força do disposto no art. 60, § 4º IV, de nossa Lei Maior,
deve ser considerado imutável, ou seja, nem mesmo a emenda
constitucional é outorgada a prerrogativa de ampliar o rol de exceções fixadas pelo constituinte originário.10
Corroborando estamos, mutatis mutantis, com a sábia lição retrotranscrita,
vez que o Imposto sobre a Renda não poderia ter sido excepcionado à regra da anterioridade qualificada, haja vista que atinge diretamente ao dinheiro advindo do labor contribuinte e fere de morte ao princípio da segurança jurídica, o que não podemos admitir.
Mencionamos no início deste texto que os princípios constitucionais existem
como alicerce de nosso ordenamento jurídico, não podendo ser esquecido pelos legisladores e, muito menos, pelos cientistas do Direito, de modo que a nós cabe a rebeldia pela exceção do IR ao princípio da anterioridade tributária, trazida pelo constituinte derivado.
Saliente-se que a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade, em se
tratando de modificação advinda de emenda constitucional que viole os direitos fundamentais, em especial o princípio da anterioridade tributária, encontra-se pacificada, embasando-se no leading case do IPMF instituído pela EC 03/93, decretado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, no seguinte julgado:
Direito Constitucional e Tributário. Ação Direta de Inconstitucionalidade de Emenda Constitucional e de Lei Complementar. IPMF.
Imposto Sobre a Movimentação ou Transmissão de Valores e de
Créditos e Direitos de Natureza Financeira – IPMF.
Artigos 5º, § 2º, 60, § 4º. Incisos I e IV, 150, inciso III, “b”, e VI “a”,
“b”, “c” e “d” da Constituição Federal.
1. Uma emenda constitucional, emanada, portanto, de Constituinte Derivada, incidindo em violação à Constituição originária,
pode ser declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Fede10 Curso de direito constitucional, 2.ed., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 332.
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42
153
ral, cuja função precípua é de guarda da Constituição (art. 102, I,
a, da CF).
2. A Emenda Constitucional nº 3, de 17.3.1993, que autorizou a
União a instituir o IPMF, incidiu em vício de inconstitucionalidade,
ao dispor, no parágrafo 2º desse dispositivo que, quanto a tal tributo,
não se aplica o art. 150, III, ‘b’ e VI, da Constituição, porque, desse
modo, violou os seguintes princípios e normas imutáveis:
1º O princípio da anterioridade, que é garantia do indivíduo contribuinte (art. 5º, par. 2º, art. 60, par. 4º, inciso IV, e art. 150, III, ‘b’,
da Constituição).11
Com esse pensar, resta consolidada a possibilidade do exercício do controle
de constitucionalidade, pela via direta, das emendas constitucionais inconstitucionais. Explica-se. Emendas à Carta Maior que em seu bojo trazem preceito violador
de cláusula pétrea, ditames constitucionais imutáveis, inclusive, pelo próprio Constituinte Derivado, em razão de expressa determinação constitucional do art. 60, §4º,
devem ser rechaçadas de nosso sistema constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, via ação direta de inconstitucionalidade.
É a subsunção perfeita ao caso posto em estudo. A EC 42/03, ao excepcionar
o IR da regra do princípio da anterioridade tributária qualificada, esvaziou o sentido
do princípio da segurança jurídica que é corolário lógico daquele primeiro.
Por evidente, o Constituinte Derivado na disposição alhures atinge princípio constitucional basilar do Estado de Direito brasileiro, ferindo-o de morte, vez
que excepciona imposto de garantia fundamental consiste no princípio da segurança jurídica.
Quer-se dizer que o princípio da anterioridade qualificada - modificação advinda visto que o seu antecedente, previsto na alínea b do art. 150, III, da CF, mostrava-se inócuo - é direito fundamental do contribuinte e conseqüência lógica da segurança jurídica, cabendo-lhe exceções somente em hipóteses plenamente justificáveis, imposto de caráter de urgência como retro transcrito.
Parece-nos inquestionável que a modificação do IR não possui a urgência
paralela aos impostos aduaneiros – reguladores da economia – ou ao imposto
extraordinário de guerra a ponto de ser excetuado da regra da anterioridade
qualificada.
Outrossim, entende-se o Constituinte Originário ser o IR caso de necessidade
de exceção à anterioridade tributária o teria feito na ocasião da promulgação da Carta Maior, na redação originária do art. 150, § 1º, o que não ocorreu.
Portanto, não pode o Constituinte Derivado nessa ocasião assim pretender,
posto que, excetuar o IR da regra do princípio da anterioridade tributária qualifica11 STF, ADI nº 939, Rel. Min. Sydney Sanches, D. J. 18.03.94
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faculdade de direito de bauru
da, afronta direito fundamental do contribuinte e faz vista grossa ao norte concernente à segurança jurídica.
Corroborando com o aqui apresentado, trazemos a lume os dizeres de Paulo
de Barros Carvalho que versando acerca da segurança jurídica preleciona:
Desnecessário encarecer que a segurança das relações jurídicas é indissociável do valor justiça, e sua realização concreta
se traduz numa conquista paulatinamente perseguida pelos povos cultos.12
Em um país como o em que vivemos, onde os tributos atingem quase 40% do
PIB = média de países com renda per capita de US$ 25 mil; em países como o Brasil esse montante varia em torno de 20% -, sendo que, tão-somente, o IRPF assume
a feição de 6% desse mesmo produto interno bruto, é repugnante admitir mais essa
escorcha do Fisco e do legislador em face dos contribuintes, em gritante afronta aos
direitos individuais.
Indispensável que nós, cientistas do direito, mais uma vez nos conscientizemos que, diante da atual realidade fática que se mostra insustentável, onde o Governo se propõe a “remendar” a Carta Maior para lhe oferecer governabilidade, necessário se faz transformarmos essa triste situação, de modo a trazer mobilização social
e consagração dos princípios constitucionais abalizadores do nosso Estado Democrático de Direito.
Não deixemos de elevar aos mais altos pedestais de nosso sistema os princípios tributários constitucionais, como o da anterioridade, da capacidade contributiva, da segurança jurídica e da justiça fiscal e social, sob pena de fazermos de nossa
Carta Suprema verdadeira “colcha de retalhos” “costurada” ao livre alvitre dos que
detêm o controle do Governo.
REFERÊNCIAS
ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 2. ed.. São Paulo: Saraiva, 1999.
ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6. ed.. São Paulo: Malheiros, 2004.
BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7. ed.. Rio de Janeiro:
Forense, 1997.
BANDEIRA DE MELO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, 17.ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
12 Op. cit., p. 146.
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42
155
CARRAZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1995.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
FERREIRA JARDIM, Eduardo Marcial. Manual de direito financeiro e tributário. 5. ed.. São
Paulo: Saraiva, 2000.
NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de direito tributário. 14. ed.. São Paulo: Saraiva, 1995
ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1999.
Competência por prerrogativa de função.
Desenho constitucional e hermenêutica
jurisprudencial. Limites e possibilidades no
tempo e no espaço
Roberto Luis Luchi Demo
Procurador Federal.
Especialista em Direito Penal e Processo Penal.
1.
PROLEGÔMENOS
A competência por prerrogativa de função é tema apaixonante. Bem por isso
empolga constantes debates na política, na sociedade, na doutrina. E tudo isso reflete na jurisprudência. Basta ver que está pendente de definição no STF, para ficar
só em três exemplos (prestando homenagem a Roma, mãe do Direito, fundada
que foi sobre três tribos, por isso que tudo, para manter a unidade romana, tinha de
ter três representantes, cada qual oriundo de uma tribo1): (i) a existência de prerrogativa de função nos casos de improbidade administrativa; (ii) a possibilidade de extensão da competência originária do Tribunal de Justiça pela Constituição Estadual
para além da simetria com a Constituição Federal; e (iii) a constitucionalidade dos
§§1º e 2º do art. 84 do CPP, acrescidos pela 10.628/02. Também é tema presente na
(eterna) Reforma do Judiciário.
Já dizia SANTIAGO DANTAS que nenhum povo, em nenhuma época, construiu seu sistema de direito positivo, sem buscar no direito romano o paradigma
1
O que persiste relativamente em nosso Direito, a exemplo da lista tríplice, cf. arts. 73, §2º, I; 94, p.u.; 104, p.u.,
I; 111, §2º e 128, §3º, todos da CF/88.
158
faculdade de direito de bauru
dessas construções. Volto um pouco mais na linha do tempo para registrar que, se
o direito romano encontrou na jurisprudência o seu desenvolvimento orgânico, não
é menos verdade que essa jurisprudência utilizou e aprofundou a filosofia grega2.
Justifica-se, então, o enfoque eminentemente jurisprudencial dado a este trabalho
(sem olvidar o enfoque positivo e doutrinário). Não que a jurisprudência seja mensageira da verdade, mas antes porque é a única capaz de tornar-se definitiva e
obrigatória no caso concreto, sem esquecer sua (possível) falibilidade, eternizada
por CARLOS DRUMOND DE ANDRADE, quando disse que a justiça é tão falível que
ela própria se encarrega de reformar suas decisões, e pelo monumental RUI BARBOSA que, em tom de mote, registrou ser o Supremo Tribunal Federal tão importante
que se dá ao luxo de poder errar por último (o que foi repetido, mais tarde, por
ALIOMAR BALEEIRO).
Sem mais delongas, atravessemos o Rubicão.
2.
JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIA
A jurisdição é distribuída a diversos órgãos componentes do Poder Judiciário,
em virtude da imensidão territorial, da multiplicidade de feitos e da necessária especialização do direito material, na lição de ROBERTO DOS SANTOS FERREIRA, com
vistas a uma racional divisão do trabalho, inspirado no ideal de distribuir justiça com
a máxima eficiência3. Assim, a jurisdição está presente em todos os órgãos do Poder
Judiciário. Na lição clássica de ENRICO TULIO LIEBMAN, todos os juízes exercem jurisdição (que, enquanto poder, é una e indivisível), mas dentro de certos limites,
dentro de sua competência, que é a medida da jurisdição4. Afinal e na esteira do escólio de JOÃO MENDES, jurisdição é o poder de julgar constituído; competência é
o poder de julgar organizado5.
Consoante art. 69, CPP, a competência é determinada pelo lugar da infração,
pelo domicílio ou residência do réu, pela natureza da infração, pela distribuição,
pela conexão ou continência, pela prevenção e pela prerrogativa de função. Observa-se que o CPP não cuidou de uma classificação racional e metódica na discriminação da competência, deixando o mister para a doutrina e jurisprudência. Mas há outras fontes normativas.
De efeito. As normas de determinação da competência estão na Constituição
Federal, em Constituições Estaduais, no Código de Processo Penal, nas Normas de
2
3
4
5
Até hoje, em matéria de Direito, pouco se acrescentou ao que os romanos criaram. E isso se deve, em parte, à
circunstância de que, em matéria de Filosofia, pouco se acrescentou ao que os gregos desvendaram: qualquer
filósofo posterior traz pequena contribuição ao pensamento universal descortinado pelos gregos. O tema central da Filosofia ocidental se encontra na Grécia antiga, assim como o do Direito em Roma antiga.
in Competência da Justiça Federal. Rio de Janeiro: Editora Independente, 1997, p. 35.
in Manual de Direito Processual Civil, Rio de Janeiro: Forense, 1984, v.I, p.55.
apud PEDROSO, Fernando de Almeida. Competência penal. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 15.
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42
159
Organização Judiciária locais (e aqui se inclui a Lei 5.010/66, que organiza a Justiça
Federal de 1ª instância e dá outras providências) e nos regimentos internos dos Tribunais. A Constituição Federal e as Constituições estaduais cuidam, precipuamente,
da competência de justiça e da competência hierárquica. O Código de Processo Penal cuida da competência de foro. As normas de Organização Judiciária locais tratam, em regra, da competência de juízo. Alfim, os regimentos internos dispõem geralmente sobre a competência do Pleno e dos órgãos fracionários.
Sobre esse cipoal normativo, manifestou-se JOSÉ FREDERICO MARQUES para
enfatizar a necessidade de aglutinar todas essas regras jurídicas em sistematização
científica, classificando metodicamente os vários critérios da competência judiciária, de forma a se focalizarem as atribuições dos diversos órgãos num todo harmônico e coerente6.
Imbuído neste escólio, de se estadear que a busca do juízo competente é necessariamente, seja por imperativo lógico ou fundamento filosófico, feita por etapas
sucessivas, em que se concretiza paulatinamente o poder de julgar, passando do
geral para o particular, do abstrato ao concreto. Primeiro, impende verificar se é
competente a Justiça brasileira. Segundo, define-se qual a Justiça competente para
apreciar a causa, levando-se em conta a natureza da infração penal. Trata-se da nominada competência de justiça, por que irá se estabelecer a competência da Justiça
Militar, Justiça Eleitoral, Justiça Federal, Justiça estadual, STF ou STJ. Terceiro, analisa-se a competência hierárquica, por que se define caber o processo e julgamento
da causa penal ao órgão superior ou inferior. Quarto, observa-se a competência territorial ou competência de foro, por que se define qual a comarca ou seção judiciária competente. Quinto, analisa-se a competência de juízo, definindo qual a vara ou
turma competente.
Centra-se o presente estudo na terceira etapa, nominada competência por
prerrogativa de função.
3.
COMPETÊNCIA POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO.
CONSIDERAÇÕES GERAIS
Em regra, são os órgãos jurisdicionais de 1º grau que conhecem originariamente da causa penal. Entretanto, há cargos públicos que compõem órgãos constitucionais de cúpula (ex: Poder Judiciário, Tribunal de Contas, Ministério Público e
Parlamento), cujos titulares possuem independência funcional no exercício de suas
atribuições. Daí que a dignidade e a importância desses cargos públicos impõem a
competência originária dos tribunais, enquanto uma das facetas da garantia da independência funcional mesma de seus titulares. Trata-se de uma garantia bilateral,
por isso que o tribunal se mostra menos infenso a influência seja deles bem assim
6
in Da competência em matéria penal. São Paulo: Saraiva, 1953, p. 42.
160
faculdade de direito de bauru
contra eles, mas juridicamente limitada para os processos penais em que os detentores desses cargos figurem como réus (competência ratione personae), não
como autores - hipótese que é regida pelas regras gerais de competência7. Trata-se
de competência ratione personae.
A prerrogativa de função somente beneficia o titular do cargo público, não o
substituto ou suplente, ainda que pratique o crime durante o exercício eventual da
função8.
A competência por prerrogativa de função não se trata de foro privilegiado,
mas de foro diferenciado em razão do cargo, por isso que não viola os princípios da
isonomia e do juiz natural. A competência penal originária dos tribunais não viola
o princípio do duplo grau de jurisdição, inexistente na CF/88, como bem pontificou SEPÚLVEDA PERTENCE, líder intelectual e decano do STF, no RHC 79.785, PLENO, DJ 22.11.02, esgotando a questão, inclusive sobre a prevalência da Constituição
Federal em relação ao Pacto de São José da Costa Rica (a Convenção Americana de
Direitos Humanos), promulgado no Brasil em 1992 e que erige como garantia o duplo grau de jurisdição (arts. 25.1 e 2, “b”, e 8º, 2, “h”).
O julgamento pelo tribunal não precisa ser pela sua composição plena, admitindo-se que seja feita por órgão especial ou fracionário, consoante normas de organização
judiciária estabelecidas no seu respectivo regimento interno9. A esse mesmo órgão, competente para o processo e julgamento da ação penal originária, atribui-se a competência
para recebimento da denúncia, que não pode ser feita monocraticamente pelo relator10.
4.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PROCEDIMENTAIS
A Lei 8.658/93 manda aplicar a Lei 8.038/90 (que dispõe sobre normas procedimentais no STF e no STJ) a todos os tribunais. Em todos os tribunais, portanto,
tem que se oportunizar a defesa prévia na ação penal originária, consoante rito da
Lei 8.038/90, salvo se já houver inquérito.
São aplicáveis aos tribunais, nas ações penais originárias, os institutos de direito material previstos na Lei 9.099/95 (em verdade, misto de direito processual penal
e de direito material penal, prevalecendo o regime jurídico deste), especialmente as
medidas despenalizadoras pertinentes à transação penal (art. 76), à exigência de representação nas hipóteses de lesões corporais leves ou de lesões corporais culposas
(arts. 88 e 91) e à suspensão condicional do processo penal (art. 89), ainda que o
crime tenha sido cometido anteriormente, por isso que se trata de lex mitior, por
7
“A competência pela prerrogativa de função é observada nos processos por crimes comuns praticados por, e
não contra, magistrado” (STJ, HC 14.755, FELIX FISCHER, 5ª T, DJ 13.8.01).
8 PEDROSO, Fernando de Almeida. Competência penal. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 36
9 STF, HC 73232, MAURÍCIO CORREA, 2ª T, DJ 3.5.96.
10 STJ, HC 16.507, FERNANDO GONÇALVES, 6ª T, DJ 20.8.01.
11 STF, INQ 1055, CELSO DE MELLO, PLENO, DJ 24.4.96.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
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161
força do art. 5º, XL, CF e do art. 2º, p.u, CP11. Não se aplicam, entretanto, ao Superior Tribunal Militar – STM, por força do art. 90-A, Lei 9.099/95, introduzido pela Lei
9.839/99.
Em relação à transação penal e à suspensão condicional do processo (arts. 76
e 89, Lei 9.099/95), não pode haver divergência entre o Chefe do Ministério Público e o Tribunal nos processos em que aquele, ou Procurador com poderes seus delegados, oficia. Nessas hipóteses, não há falar em aplicação do art. 28, CPP. Exemplo:
se o Procurador-Geral da República, oficiando em ação penal originária no STF, requerer o arquivamento da denúncia, o STF é obrigado a deferi-lo.
Discute-se sobre a legitimidade de qualquer cidadão para denunciar Ministro
de Estado nos crimes de responsabilidade (Lei 1.079/50). Essa legitimidade é pacífica em se tratando de processos a serem instaurados nas Casas Legislativas. O mesmo não ocorre em se tratando de processo a ser instaurado no Poder Judiciário. Sobre o tema, porém, o STF já sinalizou positivamente, enfatizando o princípio da denunciabilidade popular nas ações de impeachment12.
5.
ATUAÇÃO DOS MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO NOS TRIBUNAIS
É vedado ao membro do Ministério Público oficiar além da esfera em que está
legalmente qualificado para desempenhar as suas funções. No âmbito do Ministério Público dos Estados, os Procuradores de Justiça oficiam junto aos Tribunais
(art. 31, Lei 8.625/93 – Lei Orgânica Nacional do Ministério Público) e os Promotores de Justiça oficiam junto aos Juízes de Direito e à Justiça Eleitoral de 1ª instância
(art. 32, Lei 8.625/93). Ao Procurador-Geral de Justiça cabe ajuizar a ação penal de
competência originária dos tribunais, nela oficiando (art. 29, V, Lei 8.625/93).
Entretanto, é válida a denúncia oferecida por Procurador de Justiça mediante
designação do Procurador-Geral, nos termos do art. 10, IX, “g”, Lei 8.625/9313, sendo prescindível a ratificação expressa da denúncia por este14. A designação há de
obedecer às normas regulamentares, pena de violação do princípio do promotor natural15. Não pode, entretanto, Promotor de Justiça oficiar no tribunal.
No âmbito do Ministério Público Federal, os Procuradores Regionais da República oficiam junto aos Tribunais Regionais Federais (art. 68, LC 75/93) e os Procuradores da República oficiam junto aos Juízes Federais (art. 70, LC 75/93). Ao Procurador-Geral da República cabe ajuizar ações penais originárias no STF e no STJ (arts.
45 e 48, II, LC 75/93), o que pode ser delegado a Subprocurador-Geral da República (arts. 47 e 48, p.u., LC 75/93). Não pode, entretanto, Procurador da República ou
12
13
14
15
STF, INQ 1.350, CELSO DE MELLO, DECISÃO MONOCRÁTICA, DJ 15.2.00.
STF, HC 76.851, SEPÚLVEDA PERTENCE, 1ª T, J 26.5.98.
STF, HC 69906, PAULO BROSSARD, 2ª T, DJ 16.4.93.
STJ, RHC, 11.821, GILSON DIPP, 5ª T, DJ 18.11.02.
162
faculdade de direito de bauru
Procurador-Regional da República propor ação penal no STF ou no STJ. Não pode,
também, Procurador da República oficiar no Tribunal Regional Federal, ajuizando
ação penal perante aquele.
6.
AÇÕES JUDICIAIS ABRANGIDAS PELA COMPETÊNCIA POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO
A competência por prerrogativa de função somente abrange as ações penais em que as pessoas referenciadas na norma de regência são rés, bem assim
o inquérito penal e todos os atos de investigação criminal promovidos pela Polícia Judiciária, enquanto medidas pré-processuais de persecução penal, que hão
de ter curso perante órgão judiciário competente16. Se, num inquérito para apurar crime determinado, é mencionada alguma autoridade por um dos depoentes, mas essa autoridade mesma não é indiciada nem chamada a depor, o inquérito continua no juiz de primeira instância, sem que isso caracterize usurpação
da competência do tribunal, onde a autoridade tem foro privilegiado, nem constrangimento ilegal17. Importa ressaltar que se o policial que preside o inquérito:
(i) pretender intimar a autoridade para depor, ainda que na qualidade de testemunha, mas em razão de outro depoente ter afirmado que o mesmo teria cometido fato criminoso, o feito deverá ser encaminhado previamente ao tribunal
competente, por estar caracterizado procedimento de natureza investigatória
contra a autoridade18 ou (ii) encontrar elementos de convicção para indiciar a
autoridade que detém foro privilegiado, não poderá indiciá-lo nem enviar os autos diretamente à autoridade policial diversa, e sim solicitar ao juiz que remeta
os autos do inquérito ao tribunal competente19.
A competência por prerrogativa de função não abrange as ações populares,
ações civis públicas, ações cautelares, ações ordinárias, ações declaratórias e demais
ações de natureza cível contra elas ajuizadas (salvante o mandado de segurança, por
isso que também possui previsão constitucional expressa) 20.
No que respeita à interpelação judicial, de se distinguir se se trata de medida cautelar preparatória de ação penal ou de ação cível. Em se tratando de interpelação judicial com vistas à futura ação penal, v.g., art. 25, Lei 5.250/67, incide a competência por prerrogativa de função21, competindo seu processamento ao Tribunal
competente para julgar a ação principal. Ao revés, a medida preparatória de ação cível, v.g., art. 867, CPC, não atrai a prerrogativa de foro22.
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22
STF, INQ 1.628, CELSO DE MELLO, DECISÃO MONOCRÁTICA, DJ 16.5.00.
STF, HC 82.647, CARLOS VELLOSO, 2ª T, DJ 25.4.03.
STF, Rcl 2.349, CEZAR PELUSO, PLENO, J 10.3.04
STF, PET 1759, CARLOS VELLOSO, DECISÃO MONOCRÁTICA, DJ 19.9.02.
STF, PET 2785, CELSO DE MELLO, DECISÃO MONOCRÁTICA, DJ 22.11.02.
STF, PET 2.938, ELLEN GRACIE, DECISÃO MONOCRÁTICA, J 14.5.03
STF, PET (AgRg) 1.738, CELSO DE MELLO, J 1º.9.99, INFORMATIVO STF 160.
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n.
42
163
Em relação à ação de improbidade administrativa, veiculada na Lei 8.429/92, é
bom lembrar que o tema está a merecer definição no STF. Para ALEXANDRE DE
MORAES, trata-se de ação de natureza cível e, por isso mesmo, à míngua de previsão constitucional específica, não existe o foro privilegiado23. Entretanto e face às
graves sanções que podem ser impostas ao agente (suspensão dos direitos políticos,
perda da função pública, indisponibilidade dos bens e ressarcimento ao Erário, cf.
art. 37, § 4º, CF), impõe-se reconhecer que essa ação, embora nominada civil, apresenta também conteúdo penal específico, submetendo-se à prerrogativa de função. Nesse sentido: ANTÔNIO CARLOS FERREIRA24 e a atual votação na RECLAMAÇÃO - RCL 2.138, ajuizada no STF, Relator NELSON JOBIM, que já conta 5 votos favoráveis à prerrogativa de função. Nessa toada é que se deve compreender o § 2º do
art. 84, CPP, acrescido pela Lei 10.628/02 (“§ 2º A ação de improbidade, de que trata a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1º”). De se registrar, enfim, que o art. 84, § 2º, CPP, acrescido pela Lei
10.628/02 é objeto da ADI 2.797, com medida liminar negada no STF.
7.
INCIDÊNCIA TEMPORAL DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO
Para o crime cometido antes da investidura no cargo, aplica-se a prerrogativa de função, tendo em vista a proteção atual da dignidade do cargo. Se já iniciada
a ação penal, os autos devem ser remetidos ao tribunal, sem prejuízo dos atos já praticados, uma vez que o juízo que os praticou detinha competência (tempus regit actum). Terminado o exercício do cargo, v.g., em virtude do término do mandato ou
de aposentadoria, acaba o foro privilegiado, por isso que nesta hipótese somente
persiste durante o exercício do mandato ou cargo (regra da atualidade ou da contemporaneidade).
Para o crime cometido durante o exercício do cargo, num primeiro momento o STF sufragou o entendimento de que “prevalece a competência especial
por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados
após a cessação daquele exercício” (Súmula 394/STF). Entretanto, mencionada Súmula foi cancelada pelo STF em 25.8.99, operando efeito ex nunc, i.e., mantendose válidos os atos até então praticados25.
Esse entendimento sumular cancelado, no tocante à continuidade do foro privilegiado nos crimes cometidos durante o exercício do cargo, foi “reavivado” pela
Lei 10.628/02, que acresceu o § 1º ao art. 84, CPP (“§ 1º A competência especial por
23 in Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 11ª edição, 2002, p. 279.
24 Improbidade administrativa. Revista Jurídica Consulex nº 147, pp.18-20.
25 STF, PLENO, INQ 687, SYDNEY SANCHES, J. 25.8.99, INFORMATIVO STF 159.
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prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda
que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da
função pública”). Mas “reavivado” parcialmente: segundo o novel dispositivo a competência especial por prerrogativa de função só se estende após cessada a investidura determinante se a imputação for relativa a atos administrativos do agente. Foi ajuizada Ação Direta de Inconstitucionalidade impugnando esse novel dispositivo (ADI
2.797), com medida liminar negada no STF.
Por fim, para o crime cometido após o término do exercício do cargo, “a
competência especial por prerrogativa de função não se estende ao crime cometido
após a cessação definitiva do exercício funcional” (Súmula 451/STF).
Um parêntese antes de encerrar. Em relação aos crimes não-funcionais do Presidente da República, cuja persecusão penal fica diferida por determinação constitucional ao término do mandato (art. 86, § 4º, CF), quando poderão ser aforadas as
ações penais por infrações cometidas antes do exercício do mandato ou durante o
seu exercício, mas que não guardem vinculação com as suas funções, a competência não segue, por evidente e com arrimo nas linhas acima, as regras especiais da
prerrogativa de função.
8.
CRIMES CONTRA A HONRA
Consoante art. 85, CPP, nos processos por crime contra a honra, em que forem querelantes as pessoas que a Constituição sujeita à prerrogativa de foro, ao tribunal respectivo caberá o julgamento, quando oposta e admitida a exceção da verdade. Essa regra somente vale quando se tratar de exceção da verdade oposta e admitida nos casos em que tenha sido imputada ao excipinte a prática de calúnia, por
isso que a exceção versará sobre a prática de crime imputado a quem goza de prerrogativa de foro.
A competência do tribunal limita-se ao julgamento da exceção que, julgada
procedente, encerra a ação penal, e por outro lado, julgada improcedente, resulta
em que a ação penal deve prosseguir no juízo de origem. Insta observar, para a exceção da verdade, as hipóteses de permanência do foro privilegiado susomencionadas, de modo que o cancelamento da Súmula 394/STF cancelou, automaticamente,
a Súmula 396/STF
Para a ação penal por ofensa à honra, sendo admissível a exceção
da verdade quanto ao desempenho da função pública, prevalece a
competência especial por prerrogativa de função, ainda que já tenha cessado o exercício funcional do ofendido.
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9.
n.
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165
CONFLITO APARENTE DE NORMAS DETERMINANTES DE FORO
PRIVILEGIADO
Há situações de conflito aparente de normas determinantes de foro privilegiado. Por exemplo: deputado federal que é licenciado para ocupar cargo de Secretário de Estado. O foro do deputado federal, ainda que licenciado, continua sendo o
STF, por força da Constituição Federal; já o foro do Secretário de Estado é o Tribunal de Justiça (supondo haver previsão nesse sentido na Constituição estadual respectiva). Esse conflito se resolve em favor do tribunal que tem sua competência estabelecida por norma de hierarquia mais elevada, no exemplo, o STF26.
Se ambas as normas determinantes de foro privilegiado tiverem a mesma hierarquia, define-se a competência pelo critério da atividade ou da contemporaneidade. Por exemplo, membro do Ministério Público licenciado para exercer cargo de Senador da República: a CF estabelece foro no TJ para o membro do Ministério Público (art. 96, III) e foro no STF para o Senador da República (art. 102, I, “b”).
No caso então de crime cometido durante o exercício, durante a atividade do cargo
de Senador da República, o conflito de foros se resolve em favor do STF.
10. ALTERAÇÃO NORMATIVA DA COMPETÊNCIA POR PRERROGATIVA
DE FUNÇÃO. EFICÁCIA PROCESSUAL
A alteração da competência por prerrogativa de função, mediante norma superveniente, tem eficácia imediata, veiculada que é por regra processual de
competência, alcançando, desde logo, todos os processos penais em curso no momento da vigência da alteração constitucional e açambarcando os crimes cometidos anteriormente. Não há falar de infringência ao princípio (ou garantia) do juiz
natural, ao fundamento de que a alteração da Justiça competente deu-se após o fato,
se o fato mesmo não tiver sido determinante para a novel fixação de competência,
que teria sido a mesma, ainda que esse não tivesse ocorrido27.
Essa regra se aplica inclusive aos processos com sentença (exceção ao princípio da perpetuatio jurisdictionis): se se tratar de alteração de competência por
prerrogativa de função, em que a competência originária é deslocada do juiz de 1º
grau ao tribunal, aplica-se imediatamente, mas sem prejuízo dos atos já praticados.
Por exemplo: uma pessoa é condenada em primeira instância por estelionato, apela
e, posteriormente, se elege Senador da República, o apelo há de ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal e não pelo Tribunal de Justiça28.
26 STF, INQ 925 QO, CELSO DE MELLO, PLENO, DJ 15.8.97.
27 GRECO, Leonardo, Garantias fundamentais do processo: o processo justo, Revista Jurídica 305, pp. 68-9.
28 STF, INQ 571, SEPÚLVEDA PERTENCE, PLENO, DJ 5.3.93.
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faculdade de direito de bauru
11. SUPERVENIÊNCIA FÁTICA DE OUTRO FORO PRIVILEGIADO
Questão interessante está em saber se a alteração de foro privilegiado em decorrência de fato superveniente (ex: nova diplomação em mandato eletivo diverso) altera o foro privilegiado então estabelecido.
Impõem-se distinguir, para o mister, duas situações em relação ao momento
da conduta criminosa.
Primeira. O agente não possui nenhum foro privilegiado no momento da
conduta criminosa. Nesse caso, a superveniência fática de outro foro privilegiado se
aplica imediatamente. A hipótese cai na regra da incidência temporal do foro por
prerrogativa de função para o crime cometido antes da investidura no cargo,
persistindo o foro privilegiado então estabelecido somente durante o exercício do
mandato ou cargo (regra da atualidade ou da contemporaneidade).
Exemplo: candidato a Senador da República que comete crime eleitoral, e é
iniciada em face dele ação penal no Juízo eleitoral de 1ª instância. Posteriormente,
se eleito, o processo há de ser encaminhado ao STF. Num segundo momento, se
eleito Governador de Estado, o processo deve ser encaminhado ao STJ.
Segunda. O agente já possui foro privilegiado no momento da conduta criminosa. Nesse caso, a superveniência fática de outro foro privilegiado opera de duas
maneiras, condicionada à circunstância de tratar-se ou não de crime funcional. A hipótese cai na regra da incidência temporal do foro por prerrogativa de função para
o crime cometido durante o exercício do cargo. Assim, o entendimento então
prevalente no STF era no sentido de ser irrelevante a superveniência de outro foro
privilegiado, que não alterava aquele do tempo do crime29.
Esse entendimento, a par de sua correção (por isso que a competência é determinada no momento da conduta criminosa, sendo irrelevante fato superveniente
ou modificação do estado de fato, conforme o art. 87, CPC), há de ser relativizado
pelo cancelamento da Súmula 394/STF e pela novel § 1º do art. 84, CPP, acrescido pela
Lei 10.628/02. Desse modo, para ocorrer a perpetuatio jurisdictionis por força dessa
novel norma, faz-se necessário que o ato praticado guarde conexão com as funções do
cargo, i.e., que a imputação seja relativa a atos administrativos do agente30. A inexistência desse liame permite a alteração imediata da competência para outro tribunal.
No exemplo anterior, se o candidato fosse Governador de Estado, a ação penal seria iniciada no STJ. Considerando que o crime eleitoral não guarda conexão
29 STF, INQ 925 QO, CELSO DE MELLO, PLENO, DJ 15.8.97. A partir dessa decisão, modificou-se orientação anterior do STF que então admitia a alteração da competência por prerrogativa de função por fato superveniente, de cujo exemplo é INQ 472 QO, MOREIRA ALVES, PLENO, DJ 15.10.93. Vale citar também e mais recente,
no sentido da orientação dominante: “o Supremo Tribunal Federal dispõe de competência penal originária para
processar e julgar Deputado Federal que teria praticado, nessa condição, delito eleitoral, ainda que em momento posterior, tenha ele sido investido no mandato de Prefeito Municipal” (STF, INQ 1.846, SEPÚLVEDA PERTENCE, DECISÃO MONOCRÁTICA, DJ 12.2.03)
30 STF, INQ 1.673, MAURÍCIO CORREA, DECISÃO MONOCRÁTICA, DJ 13.2.03.
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42
167
com as funções do cargo, sua diplomação para Senador da República faria o processo deslocar-se ao STF e, num segundo momento, se reeleito para Governador de Estado, o processo retornaria ao STJ. Agora, se esse mesmo candidato cometeu um
crime funcional no exercício do cargo de Governador de Estado, e o processo penal
foi iniciado no STJ, é irrelevante sua diplomação para Senador da República: o processo não é encaminhado ao STF, ocorrendo já a perpetuatio jurisdictionis no STJ.
Do mesmo modo, se o candidato fosse um membro do Ministério Público que
cometesse um crime eleitoral, a ação penal seria iniciada no TRE. Posteriormente,
se eleito Senador da República, o processo não seria encaminhado ao STF, por isso
que ocorre a perpetuatio jurisdicionis, sendo irrelevante a ausência de liame entre
o ato praticado e as funções do cargo, porque essa exigência diz respeito tão-somente aos cargos políticos eletivos, cuja titularidade é transitória por natureza, e não aos
cargos efetivos ou vitalícios, cuja titularidade é perene. Num segundo momento, se
eleito Governador de Estado, o processo não seria encaminhado ao STJ, continuando no TRE. Mas, se se aposentasse do Ministério Público durante o exercício do cargo de Governador, aí o processo seria remetido ao STJ.
12. VALIDADE DOS ATOS PROCESSUAIS PRATICADOS ANTES DA MODIFICAÇÃO DA COMPETÊNCIA POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO
Tendo o processo já se iniciado, não há nulidade dos atos praticados, especialmente os decisórios e probatórios, anteriormente à alteração de competência
por ato legislativo superveniente ou por fato superveniente, por força do princípio
tempus regit actum (art. 2º, CPP)31. O mesmo se diga para o recebimento da denúncia, que não se qualifica como ato decisório em seu sentido técnico e continua hígida, na medida em que sua validade é aferida segundo o estado de coisas anterior ao
fato determinante do deslocamento de competência. Desse modo, o processo continua sua marcha procedimental do ponto em que parou no juízo anteriormente
competente, observando, a partir da modificação de competência e eventualmente,
o novo procedimento.
O regime jurídico de validade dos atos processuais anteriores à modificação
de competência, seja por norma ou fato superveniente, é, portanto e por isso merece registro, diverso daquele em que há remessa dos autos a outro juízo em virtude do reconhecimento de sua incompetência. Neste caso, é nulo o recebimento da
denúncia (só em caso de incompetência absoluta) e todos os atos decisórios (art.
567, CPP, nos casos de incompetência absoluta bem assim relativa32), por isso que
esses atos processuais devem ser refeitos, observando a compatibilidade procedimental no juízo competente.
31 STF, INQ 571 QO, SEPÚLVEDA PERTENCE, PLENO, DJ 26.2.92.
32 STF, HC 71.278, NERI DA SILVEIRA, 2ª T, DJ 27.7.96.
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13. DESENHO CONSTITUCIONAL DA COMPETÊNCIA POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO
13.1. Supremo Tribunal Federal – STF
Desde o famoso e emblemático caso Marbury vs. Madison, julgado em 1803
pela Suprema Corte Americana, extraiu-se o entendimento de que somente normas
constitucionais podem estabelecer a competência originária da Suprema Corte. Neste diapasão, o art. 102, CF estabelece a competência do STF para processar e julgar:
nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República (inc. I, alínea “b”); nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade (definidos na Lei 1.079/50), os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros
dos Tribunais superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão
diplomática de caráter permanente (inc. I, alínea “c”, na redação da EC 23/99). O
STF já firmou entendimento de que a expressão “infrações penais comuns” abrange
todas as modalidades de infrações penais, inclusive os crimes eleitorais e as contravenções penais33.
O parlamentar suplente não tem prerrogativa de foro34.
O Advogado-Geral da União, chefe da Advocacia-Geral da União - AGU (art. 3º,
caput, LC 73/930), é o mais elevado órgão de assessoramento jurídico do Poder Executivo (art. 3º, §1º, LC 73/93 e art. 8º, Lei 9.649/98), tendo status de ministro de
Estado (art. 1º, p.u., Lei 8.682/93)35. Daí, decorre que também possui prerrogativa de foro no STF, sem embargo de que o status de ministro tenha sido dado por lei
ordinária e não pela própria Constituição36 que, nesta parte, contém um silêncio
não eloqüente, é dizer, uma omissão inconsciente e sem significação jurídica, na
medida em que impõe seja dado ao Advogado-Geral da União os mesmos predicamentos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal e do Procurador-Geral da República (vide, exemplificadamente, o art. 52, II, CF, em relação aos crimes de responsabilidade).
O mesmo se diga para aqueles cargos a que a lei atribua a condição de Ministros de Estado, nos termos da vigente Lei 10.683/03, oriunda da MP 103/03 e
que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, art.
25, p.u.:
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35
36
STF, RECLAMAÇÃO 555, SEPÚLVEDA PERTENCE, PLENO, DJ 7.6.02.
STF, INQ 1684, CELSO DE MELLO, J 22.11.01.
DEMO, Roberto Luis Luchi. Advocacia pública. Revista dos Tribunais nº 801, p. 711.
STF, INQ 1.660 QO, SEPÚLVEDA PERTENCE, PLENO, DJ 6.6.03; STJ, MS 3.741, LUIZ VICENTE CERNICHIARO,
3ª SEÇÃO, DJ 8.5.95.
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169
São Ministros de Estado os titulares dos Ministérios, o Chefe da Casa
Civil, o Chefe do Gabinete de Segurança Institucional, o Chefe da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica e o Chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, o Advogado-Geral da União e o Ministro de Estado do Controle e da Transparência.
Todos têm prerrogativa de foro no STF.
Mas essa ilação não se extrai, outrossim, e do contexto constitucional, para outros cargos que a lei equipara à condição de Ministro de Estado, nos termos da
vigente Lei 10.683/03, art. 38, caput e §1º:
São criados os cargos de natureza especial de Secretário Especial
do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, de Secretário
Especial de Aqüicultura e Pesca, de Secretário Especial dos Direitos
Humanos e de Secretário Especial de Políticas para as Mulheres da
Presidência da República. § 1º Os cargos referidos no caput terão
prerrogativas, garantias, vantagens e direitos equivalentes aos de
Ministro de Estado.
Essas autoridades não gozam, por isso mesmo, de prerrogativa de foro no
STF .
37
13.2. Superior Tribunal de Justiça - STJ
O art. 105, CF estabelece a competência do STJ para processar e julgar, nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal e, nestes e nos de
responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do
Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do
Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os
do Ministério Público da União que oficiem perante Tribunais (inc. I, “a”).
Se uma dessas autoridades praticar crime eleitoral, a competência é do STJ
e não do TSE38.
13.3. Superior Tribunal Militar – STM
O art. 124, p.u., CF remete à lei ordinária a fixação da competência originária
do Superior Tribunal Militar – STM, que é o tribunal mais antigo do Brasil, tendo
37 STF, PEt 1.199 AgRg, SEPÚLVEDA PERTENCE, PLENO, DJ 25.6.99
38 STF, CJ 6.971, PAULO BROSSARD, J 30.10.91, RT 682/389.
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sido instalado por ato de D. João VI, em 1808, com o nome de Conselho do Supremo Tribunal Militar, constituindo então um órgão do Poder Executivo, diversamente de sua natureza hodierna de órgão do Poder Judiciário, nos termos do art. 122, I,
CF. Essa competência está fixada na Lei 8.457/92 (Lei Orgânica da Justiça Militar da
União) e compreende os crimes militares em tempo de paz praticados por oficiaisgenerais das Forças Armadas (art. 6º, I, “a”, redação da Lei 8.719/93).
Importa ressaltar que a redação originária do art. 6º, I, “b”, Lei 8.457/92, compreendia também os crimes militares em tempo de paz praticados por Juiz-Auditor
Corregedor, Juízes-Auditores, Juízes-Auditores Substitutos, membros do Ministério
Público Militar e Defensores Públicos junto à Justiça Militar. Entretanto, a Lei
8.719/93 revogou o absurdo e inconstitucional art. 6º, I, “b”, Lei 8.457/92. Desse
modo, o Juiz-Auditor Corregedor, Juízes-Auditores, Juízes-Auditores Substitutos e
membros do Ministério Público Militar são processados e julgados originariamente
pelos Tribunais Regionais Federais (art. 108, I, “a”, CF), ao passo que os Defensores
Públicos junto à Justiça Militar não possuem, como não possui qualquer Defensor
Público, prerrogativa de foro, sendo processados e julgados por juízes de primeira
instância.
A Lei 8.457/92 também fixa a competência originária do STM para os crimes
militares em tempo de guerra praticados pelo comandante do teatro de operações
(art. 95, p.u). Neste caso, a instauração da ação penal está condicionada à requisição
do Presidente da República.
13.4. Tribunal Superior Eleitoral – TSE
A prerrogativa de foro no âmbito da Justiça Eleitoral não está desenhada na
Constituição, mas na Lei 4.737/65 – Código Eleitoral que, em seu art. 22, I, “d”, estadeia a competência do Tribunal Superior Eleitoral para processar e julgar originariamente os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos cometidos pelos
seus próprios juízes e pelos juízes dos Tribunais Regionais Eleitorais. Se praticarem
crimes comuns somente ou sem qualquer conexão com crime eleitoral, os juízes do
Tribunal Superior Eleitoral serão julgados no STF e os juízes dos Tribunais Regionais
Eleitorais serão julgados no STJ. Mister ressaltar ainda que os crimes eleitorais cometidos pelos juízes eleitorais de primeira instância são julgados pelo Tribunal Regional Eleitoral (art. 29, I, “d”, Código Eleitoral).
13.5. Tribunais Regionais Federais – TRF
O art. 108, CF estabelece a competência dos Tribunais Regionais Federais para
processar e julgar os juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça
Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade, e os
membros do Ministério Público da União, ressalvada a competência da Justiça
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
171
Eleitoral (inc. I, alínea “a”). Assim, se uma dessas autoridades praticar crime eleitoral, a competência será do Tribunal Regional Eleitoral.
Em se tratando de Promotor de Justiça do Distrito Federal e Territórios, se a
Constituição Federal situa o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios no
âmbito do Ministério Público da União, força é emprestar conseqüência à aplicação
da regra especifica do art. 108, I, “a”, CF, ao dispor sobre a competência dos Tribunais Regionais Federais para o processo e julgamento, na respectiva área de jurisdição, dos membros do Ministério Público da União, entre eles, os do Distrito Federal
e dos Territórios, nos crimes comuns e de responsabilidade39.
13.6. Tribunais de Justiça – TJ
Aos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal é atribuída a competência para processar e julgar os juízes, bem como os membros do Ministério Público, nos crimes comuns e de responsabilidade, ressalvada a competência da
Justiça Eleitoral (art. 96, III, CF); os prefeitos municipais nos crimes comuns (art.
29, X, CF) e outras autoridades estaduais, conforme estabelecido nas Constituições
Estaduais (art. 125, § 1º, CF). Outrossim, a demarcação da competência penal originária dos Tribunais de cada Estado pela Constituição Estadual, consoante previsão
do art. 125, § 1º, CF - raríssima hipótese de reserva explícita de determinada matéria à Constituição do Estado-membro – há de se concretizar observando o princípio da simetria ou do paralelismo com a Constituição Federal (art. 125, caput,
CF). Registre-se que a norma determinante da prerrogativa de foro deve constar no
bojo da Constituição Estadual, não podendo esta delegar essa atribuição ao legislador ordinário, pena de infringência ao art. 125, § 1º, CF mesmo.
Está, por exemplo, em sintonia com a CF, norma constitucional estadual que
atribua prerrogativa de foro no Tribunal de Justiça ao Secretário de Estado40. Não
está, porém e no entendimento atual do STF, em sintonia com a Constituição Federal, norma constitucional estadual que atribua prerrogativa de foro no Tribunal de
Justiça para vereador41, Delegados de Polícia42, Comandante Geral da Polícia Militar43,
Procuradores do Estado e da Assembléia Legislativa e Defensores Públicos44. Registre-se que: (i) já não prevalece o entendimento que admitia a extensão da competência do TJ para além do modelo federal, mas sempre ressalvando, é bom que se
diga, a competência do Tribunal do Júri e da Justiça Eleitoral, a exemplo da ADI 469,
MARCO AURÉLIO, PLENO, J 5.4.01; e (ii) este tema está sendo reanalisado pelo STF
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44
STF, RE 315.010, NERI DA SILVEIRA, 2ª T, DJ 31.5.02.
STF, HC 65.132, OCTAVIO GALLOTTI, PLENO, DJ 4.9.87.
STF, RHC 80.477, NERI DA SILVEIRA, 2ª T, DJ 31.10.00.
STJ, RHC 478, JOSÉ CANDIDO DE CARVALHO FILHO, 6ª T, DJ 21.5.90.
STJ, RESP 243.804, JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, J. 3.10.02.
STF, ADIMC 2.587, MAURÍCIO CORREA, PLENO, J. 15.5.02, INFORMATIVO STF 268.
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faculdade de direito de bauru
na ADI 2.587, com julgamento suspenso em 17.3.04, por pedido de vista de GILMAR
MENDES.
Aqui vale ressaltar que se algumas dessas autoridades previstas na Constituição Federal (prefeito municipal, juiz de direito e membro do Ministério Público Estadual) comete infração penal de competência da Justiça comum estadual fora do seu Estado, ainda assim a competência é do TJ do seu Estado mesmo.
Mas, se a Constituição Estadual estabelecer a prerrogativa de foro para algum cargo, v.g., de deputado estadual, este foro somente valerá para os crimes cometidos
dentro do Estado e para a sua Justiça local (por exemplo, se cometer um crime contra a honra dentro de seu Estado, será julgado pelo TJ), não alcançando outras Justiças estaduais (por exemplo, se cometer um crime contra a honra fora de seu Estado, será julgado pelo juiz estadual de 1ª grau desse Estado mesmo)45.
Em relação ao Prefeito,
Compete à Justiça Estadual processar e julgar prefeito por desvio
de verba transferida e incorporada ao patrimônio municipal” (Súmula 209/STJ). No mesmo sentido: “compete à Justiça Comum estadual processar e julgar prefeito municipal acusado de desvio de
verba recebida em razão de convênio firmado com a União Federal (Súmula 133/ex-TFR).
Mas, “a competência do Tribunal de Justiça para julgar Prefeitos restringe-se
aos crimes de competência da Justiça comum estadual; nos demais casos, a competência originária caberá ao respectivo tribunal de segundo grau” (Súmula 702/STF).
Assim, se o prefeito cometer crime contra bens, serviços ou interesses da União, de
suas autarquias ou de empresas públicas federais (de alçada da Justiça Federal), a
competência se desloca para o Tribunal Regional Federal: “compete à Justiça Federal processar e julgar prefeito municipal por desvio de verba sujeita à prestação de
contas perante órgão federal” (Súmula 208/STJ)46. Na mesma toada, se se tratar de
crime eleitoral, a competência será do Tribunal Regional Eleitoral47. No crime militar,
a competência será do Superior Tribunal Militar48, por isso que não existe na organização judiciária militar o Tribunal Regional Militar. Esse deslocamento da competência ao tribunal de segundo grau das respectivas Justiças se aplica, para além do Prefeito, a todas as demais autoridades que têm prerrogativa de foro fixada no Tribunal da Justiça, seja pela Constituição Federal (ex: juízes e membros do Ministério
Público) bem assim pela Constituição Estadual (ex: deputados estaduais e secretários de estado).
45
46
47
48
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2ª edição, 1998, p. 187.
Nesse mesmo sentido: STF, HC 78.728, MAURÍCIO CORREA, 2ª T, DJ 16.4.99
STF, INQ 406, CELSO DE MELLO, PLENO, DJ 3.9.93.
KARAM, Maria Lúcia. Competência no processo penal. São Paulo: RT, 3ª edição, 2002, p. 94.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
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As leis orgânicas dos Municípios não podem estabelecer foro privilegiado
para suas autoridades no TJ, pois os Municípios, na partilha constitucional de competência legislativa, não possuem competência para legislar sobre organização judiciária nem direito processual.
13.6.1. Conflito aparente entre competências do Tribunal do juri e
por prerrogativa de função
Convém registrar neste passo a solução hermenêutica para a antinomia
aparente de normas determinantes da competência do tribunal do júri e da competência por prerrogativa de função, por isso que o viés a ser tomado subordina-se à previsão desta última, alternativamente, na Constituição Federal ou na
Constituição Estadual.
De efeito. Sendo o crime doloso contra a vida praticado por quem detém prerrogativa de foro estabelecida na Constituição Federal, esta prevalece sobre a competência do júri, por ser aquela jurisdição especial sobre esta e estabelecida ambas constitucionalmente: aplica-se a regra do art. 78, IV, CPP49. Diversamente e se a competência por
prerrogativa de foro ou de função for estabelecida somente na Constituição estadual,
“a competência constitucional do Tribunal do Júri prevalece sobre o foro por prerrogativa de função estabelecido exclusivamente pela Constituição estadual” (Súmula 721/STF).
O envolvimento de co-réus em crime doloso contra a vida, havendo em relação a um deles foro especial por prerrogativa de função, previsto constitucionalmente (leia-se: previsto na Constituição Federal), não afasta os demais do juiz natural, por força do art. 5º, XXXVIII, “d”, CF50, de modo que há o desmembramento
do processo: aquele que detém prerrogativa de foro será julgado pelo tribunal respectivo e o co-réu que não a detém, pelo Tribunal do júri.
13.7. Tribunais Regionais Eleitorais – TRE
Compete originariamente aos Tribunais Regionais Eleitorais processar e
julgar por crimes eleitorais as autoridades estaduais que, em crimes comuns, tenham no Tribunal de Justiça o foro por prerrogativa de função, a exemplo dos
prefeitos municipais51. Compete também aos Tribunais Regionais Eleitorais processar e julgar por crimes eleitorais os juízes eleitorais de 1ª instância (art. 29, I,
“d”, Código Eleitoral).
49 STF: HC 69.635, MARCO AURÉLIO, PLENO, J 15.6.92; HC 71.654, ILMAR GALVÃO, 1ª T, DJ 30.8.96.
50 STF, HC 73.235, NERI DA SILVEIRA, 2ª T, DJ 18.10.96.
51 TSE, HC 360, COSTA PORTO, PLENO, DJ 11.6.99.
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faculdade de direito de bauru
14. EPÍLOGO
Apresentada a moldura que encerra a competência por prerrogativa de função, espero ter contribuído para uma racionalidade e uma ontologia para o tema,
partindo, sempre e sempre, da norma positiva, o que evidencia, de modo irrefragável, que o Direito não é uma realidade pronta e acabada. É uma realidade cambiante, como é o mundo dos homens, e isso vale também para o Direito Processual,
que não se limita à lei posta. A lei é o começo da solução, que deve passar por
uma interpretação do seu texto dialogando com a sociedade, com a política e com
outros fatores, conforme ensina RONALD DWORKIN52.
Lembro SHAKESPEARE (“os que muito falam, pouco fazem de bom”) e, não
fosse por outras razões, também por essa, encerro esse pequeno tributo para a historiografia do microssistema que regula a competência penal por prerrogativa de
função.
REFERÊNCIAS
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2ª edição, 1998
DEMO, Roberto Luis Luchi. Advocacia pública. Revista dos Tribunais nº 801/699-738
FERREIRA, Antônio Carlos. Improbidade administrativa. Revista Jurídica Consulex nº
147/18-20
FERREIRA, Roberto dos Santos. Competência da Justiça Federal. Rio de Janeiro: Independente, 1997
GRECO, Leonardo, Garantias fundamentais do processo: o processo justo, Revista Jurídica
305/67-71
KARAM, Maria Lúcia. Competência no processo penal. São Paulo: RT, 3ª edição, 2002
LIEBMAN, Enrico Tulio. Manual de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1984,
v.I
MARQUES, José Frederico, Da competência em matéria penal. São Paulo: Saraiva, 1953
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 11ª edição, 2002.
PEDROSO, Fernando de Almeida. Competência penal. Belo Horizonte: Del Rey, 1998
52 in O Império do Direito, São Paulo: Martin Fontes, 2003.
A Conta Única dos Depósitos Judiciais,
o Direito Financeiro e a Economia
do Setor Público
Marcílio Toscano Franca Filho
Procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da Paraíba.
Mestre em Direito Econômico, UFPB/1999.
Doutorando em Direito Comunitário, Universidade de Coimbra - Portugal.
Foi Professor do Departamento de Direito Público da Universidade Federal da Paraíba.
Aluno da Universidade Livre de Berlin (Alemanha).
Estagiário do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias (Luxemburgo).
Autor do livro “Introdução ao Direito Comunitário” (São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002).
De modo a garantir algum fôlego extra aos orçamentos judiciários estaduais,
vítimas de uma época de maximização de superávits primários, tem-se espalhado
entre os Estados da Federação a criativa invenção de um novo mecanismo de gerenciamento dos depósitos judiciais, que passam a ser agora depositados em uma conta única à disposição do Poder Judiciário. Já contam com um tal mecanismo os Estados de Santa Catarina (Lei 11.644/2000), Mato Grosso (Lei 7.604/2001), Roraima
(Lei 297/2001), Mato Grosso do Sul (Lei 2.011/99.), Ceará (12.643/96) e Amazonas
(Resolução 023/2002 do TJ/AM).1
Trilhando idêntico caminho, o Diário Oficial do Estado da Paraíba do dia 08 de
novembro de 2003, logo à sua primeira página, trouxe a publicação da Lei Ordinária
Estadual nº 7.434, de 07 de novembro de 2003, que criou o denominado “Sistema
1
Ao que consta, os Estados de Tocantins, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro também contam com
mecanismo financeiro semelhante.
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Financeiro de Conta Única de Depósitos sob Aviso de à Disposição da Justiça do
Poder Judiciário do Estado da Paraíba”, compreendendo os recursos provenientes de depósitos judiciais em geral e aplicações financeiras no âmbito do Poder Judiciário. Segundo o texto da referida lei ordinária estadual, o “Sistema Financeiro
de Conta Única” do Tribunal de Justiça apresenta as seguintes características:
1. Para fim de implantação do Sistema Financeiro de “Conta Única de Depósitos sob Aviso à Disposição da Justiça”, o Poder Judiciário autorizará a
abertura de uma conta em estabelecimento bancário oficial, sob a denominação “Poder Judiciário/Depósitos Judiciais”.
2. Enquanto não autorizado o pagamento à parte interessada pelo juízo competente, os recursos dos depósitos judiciais serão centralizados na “Conta
Única” e constituirão uma conta gráfica a ser mantida e movimentada na
instituição bancária.
3. Todas as antigas contas bancárias de depósitos judiciais foram transformadas em subcontas da “Conta Única de Depósitos sob Aviso à Disposição da
Justiça”.
4. Os saldos das subcontas constituirão disponibilidade da conta gráfica e serão diariamente transferidos para a “Conta Única”, para fins de gerenciamento financeiro.
5. Os saldos de todas as subcontas relativas a feitos arquivados sem o levantamento do depósito correspondente, ou aqueles com situação indefinida
e sem movimentação dos saldos há mais de um ano, compreendendo o
principal e os rendimentos financeiros, serão transferidos permanentemente para a “Conta Única”.
Com efeito, a Lei ordinária paraibana nº 7.434/2003, cuja iniciativa coube ao
Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba, instituiu toda uma nova sistemática para os
depósitos judiciais do Poder Judiciário estadual e, simultaneamente, encontrou uma
nova fórmula para a gestão financeira do serviço público de prestação jurisdicional
na Paraíba. Disciplinou, com minudência, procedimentos bancários (registros de
conta e subcontas e transferências recíprocas) e financeiros (forma e redimentos de
novas modalidades de contas bancárias), alterando a substância dos depósitos judiciais – cuja regulamentação é dada em detalhes pelos art. 890 a 900 do Código de
Processo Civil2.
2
Entre outras coisas, o CPC estabelece: “Art. 890. Nos casos previstos em lei, poderá o devedor ou terceiro requerer, com efeito de pagamento, a consignação da quantia ou da coisa devida. § 1º Tratando-se de obrigação em dinheiro, poderá o devedor ou terceiro optar pelo depósito da quantia devida, em estabelecimento bancário, oficial onde houver, situado no lugar do pagamento, em conta com correção monetária, cientificando-se o credor por carta com aviso de recepção, assinado o prazo de 10 (dez) dias para a manifestação de recusa. § 2º Decorrido o prazo referido no parágrafo anterior, sem a manifestação de recusa, reputar-se-á o devedor liberado da obrigação, ficando à disposição do credor a quantia depositada. (...) Art.
891. Requerer-se-á a consignação no lugar do pagamento, cessando para o devedor, tanto que se efetue o
depósito, os juros e os riscos, salvo se for julgada improcedente.”
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n.
42
177
A nova lei, em resumo, autorizou o Poder Judiciário estadual a fazer aplicações
no mercado financeiro dos depósitos judiciais que, até então, eram obrigatoriamente
dispostos em cadernetas de poupança pelas partes litigantes. Infere-se do novo texto
legal que todas aquelas antigas cadernetas de poupança foram extintas e transformadas em subcontas de uma conta corrente única do Poder Judiciário estadual, que, agora, a troco de se apropriar dos rendimentos auferidos com a especulação financeira do
dinheiro dos litigantes, com juros (e riscos!) maiores, remunerará as subcontas dos litigantes com os parcos índices equivalentes ao de uma caderneta de poupança. Ou
seja, o Poder Judiciário da Paraíba tomou para uma sua conta corrente única todos os
inúmeros depósitos judiciais materializados, antes, sob a forma de cadernetas de poupança e passou a aplicar tais recursos, como se de sua propriedade se tratassem, repassando aos particulares litigantes apenas os juros relativos a uma hipotética aplicação em caderneta de poupança. A vultosa diferença entre os juros colhidos na ciranda financeira pelo Poder Judiciário paraibano e a remuneração oficial da poupança, repassada por ele às partes que necessitaram um dia de um depósito judicial, constitui
a nova “galinha dos ovos de ouro”3 do orçamento judiciário.
Ao se proceder dessa maneira, as subcontas criadas (antigas cadernetas de
poupança) resultaram em um novo produto financeiro no mercado brasileiro: uma
conta fictícia (mero registro escritural) dentro da conta corrente única dos depósitos do Poder Judiciário estadual, com remuneração equivalente ao de uma caderneta de poupança mas sem as garantias próprias deste tipo de investimento.
É de se registrar, ainda, que, entre outras novidades, a lei também determinou
que os saldos de todos os depósitos judiciais (subcontas) não reclamados por mais
de um ano serão transferidos automática e permanentemente para a “Conta Única
de Depósitos sob Aviso à Disposição da Justiça”, constituindo-se receita pública e
podendo ser aplicados pelo Poder Judiciário. De fato, vigilantibus, non dormientibus, jura subveniunt – o Direito nunca socorreu aos que dormem.
A lei quedou silente quanto ao pagamento do imposto de renda – inexistente nas poupanças, mas exigido dos demais investimentos.
Um olhar mais apressado sobre a questão ora proposta poderia levar alguém
desatento a pensar que os bancos sempre se beneficiaram sozinhos da especulação
financeira dos depósitos judiciais consignados sob a forma de cadernetas de poupança e que a Lei Ordinária estadual nº 7.434/2003, tal qual um Robin Hood, apenas
procurou beneficiar o Poder Judiciário com parte dos vultosos ganhos obtidos pelas
instituições bancárias. Esse raciocínio, todavia, é falacioso. Veja-se:
Todos os bancos múltiplos que operam com uma Carteira de Crédito Imobiliário, as associações de poupança e empréstimos e as caixas econômicas – todos
3
A triste fábula da “galinha dos ovos de ouro”, registrada nos versos atemporais de JEAN DE L A FONTAINE, contava
a estória de um homem “cheio d’ímpia ambição” que, a troco de encontrar rico tesouro, resolveu abrir as entranhas da galinha que todo dia lhe punha um ovo de ouro (LA FONTAINE, Jean de. “A Galinha que punha Ovos
de Ouro”. Trad. de Curvo Semmedo. In: Fábulas. São Paulo: Landy, 2003, p. 353-354).
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também conhecidos como Sociedades de Crédito Imobiliário (SCI) – possuem, entre os produtos oferecidos aos seus clientes, a aplicação nas chamadas cadernetas
de poupança ou, simplesmente, em uma “poupança”. A caderneta de poupança é
uma aplicação de renda fixa que paga juros de 0,5% (meio porcento) ao mês mais a
variação da Taxa Referencial (TR), a título de correção monetária. Regra geral, oferece menor rendimento que outras aplicações de renda fixa. Mas é a aplicação mais
procurada pelo pequeno investidor, porque costuma ter um menor limite mínimo
de depósito, além de oferecer um elevado nível de segurança, posto que está ancorada a um Fundo Garantidor de Crédito4.
A caderneta de poupança foi criada pelo Governo em 1964, juntamente com
a Unidade Padrão de Capital (UPC), a primeira forma de correção monetária, e o
Banco Nacional da Habitação (BNH). Tinha e continua a ter a caderneta de poupança como objetivo primordial a canalização das economias dos poupadores para o financiamento de habitações populares, infra-estrutura e saneamento básicos. O dinheiro depositado em cadernetas de poupança constitui a principal fonte de recursos para facilitar e promover o financiamento da construção e da aquisição da casa
própria.
Os recursos captados em depósitos de poupança pelas instituições financeiras do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE) observam, de acordo
com regras obrigatórias do Banco Central5, a seguinte distribuição:
• 65% (sessenta e cinco por cento), no mínimo, em operações de financiamentos imobiliários;
• 20% (vinte por cento) em encaixe obrigatório no Banco Central do Brasil
(o chamado depósito compulsório dos bancos);
• os 15% (quinze porcento) de recursos remanescentes em disponibilidades
financeiras e operações da faixa livre.
Conclui-se, portanto, que até a edição da Lei Ordinária Estadual nº 7.434, apenas até 15% de recursos depositados em cadernetas de poupança judicias poderiam
servir à livre especulação financeira bancária – e os riscos de insucesso dessa especulação seriam inteiramente suportados pelos bancos depositários. De outro lado,
os litigantes depositantes contavam com a certeza de uma taxa de rendimento conhecida (TR + 0,5%) e o esteio de um Fundo Garantidor de Crédito. E o mais im4
5
O FGC é um fundo criado pelo governo, mas mantido pelos bancos, com a finalidade de funcionar como uma
espécie de seguro bancário para os investidores. Desta forma, quem investe em um banco que quebra tem pelo
menos parte de seu dinheiro devolvido. O seguro máximo hoje é de R$ 20 mil. Estão seguradas algumas aplicações financeiras, como CDBs, RDBs, depósitos à vista, caderneta de poupança, letras hipotecárias, letras de
câmbio e letras imobiliárias. Se o cliente tiver mais do que este montante nestas aplicações, somente vai poder
receber o que tem direito após a liquidação do banco. Mas neste caso, o cliente entra na fila com os demais
credores, e pode não reaver todo o seu dinheiro. Os fundos de investimento não são garantidos por este seguro, porque são um condomínio de quotistas.
No caso, trata-se do Regulamento anexo à Resolução BACEN nº 3.005, de 30 de julho de 2002, que dispõe sobre o direcionamento dos recursos captados em depósitos de poupança pelas entidades integrantes do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
179
portante de tudo: os depósitos em cadernetas de poupança contribuíam pesadamente para o financiamento dos programas habitacionais do Sistema Financeiro da
Habitação, de inegável peso social.
Após a edição da Lei Ordinária Estadual nº 7.434, com a transformação das antigas cadernetas de poupança judiciais em subcontas de uma conta corrente única
dos depósitos sub judice em favor do Poder Judiciário, esse cenário modificou-se e
degenerou-se:
• Em face da inexistência de cadernetas de poupança, os bancos não têm mais
que obedecer aos limites impostos pela Resolução BACEN nº 3.005/2002, podendo agora especular com muito mais recursos (sobre os quais incidirão
corretagens, comissões e taxas de administração bem maiores);
• Os riscos de insucesso da especulação financeira passam a ser suportados
pelo “possuidor” do dinheiro – o Poder Judiciário/Tesouro Estadual –, posto que foi dele, e não do banco depositário, a decisão de aplicar os depósitos judiciais no cassino da especulação financeira nacional;
• Os depositantes litigantes deixam de se beneficiar do Fundo Garantidor de
Crédito embora continuem a perceber a mesma remuneração dos seus depósitos (TR + 0,5%), contrariando uma elementar lei econômica segundo
a qual o risco é diretamente proporcional às projeções de retorno do investimento (aqui, porém, o risco aumentou mas os rendimentos continuaram os mesmos!); e, finalmente,
• O Sistema Financeiro de Habitação e os seus programas habitacionais sofrem um sério gravame em suas fontes de financiamento e suporte;
O que se pretende, em última instância, ao se questionar a Lei Estadual
7.434/2003 não é asfixiar as finanças do Poder Judiciário estadual ou fazer vistas grossas
à especulação bancária com dinheiro das cadernetas de poupança, mas sim proteger o
Tesouro Estadual e os interesses difusos de milhares de litigantes depositantes contra
os riscos da ciranda financeira, além de preservar importantes parcelas do suporte econômico dos financiamentos habitacionais6. Em suma, segurança e solidariedade.
6
Ora, as políticas públicas de financiamentos habitacionais são, simultaneamente, fonte de desenvolvimento
econômico e social. De um lado, porque não é pequeno o montante de recursos movimentados pela indústria
da construção civil e pelos serviços bancários. De outro lado, porque não se há de negar os imensos benefícios
sociais alcançados com a aquisição da casa própria e a concretização do direito à moradia. Esse direito à moradia (art. 6º, caput, da Constituição Federal), ademais, é um direito fundamental e os direitos fundamentais,
após a Constituição de 1988, passaram a ocupar uma posição privilegiada dentro da Ciência do Direito brasileira, sobretudo por influência do constitucionalismo alemão (ROBERT ALEXY) e lusitano (GOMES CANOTILHO). Aos
direitos fundamentais foi reconhecida uma efetiva força jurídica e não apenas moral, simbólica, programática
ou política, permitindo que o operador do direito, ao se deparar com uma situação em que esteja em jogo a
eficácia de um dado direito fundamental, possa, ele próprio, criar meios de conferir concretude e densidade a
esse mesmo direito fundamental, independentemente de existir norma infraconstitucional integradora ou
mesmo contra a norma infraconstitucional que esteja dificultando a efetivação do direito fundamental questionado. Enfim, a hermenêutica constitucional contemporânea, trilhando verdadeira revolução coperniciana, consolidou a visão de que não são os direitos fundamentais que giram em torno da lei, mas é verdadeiramente a
lei que gira em torno dos direitos fundamentais. Significa isso dizer que a densificação dos direitos fundamen-
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faculdade de direito de bauru
Não bastassem as ofensas à ordem econômica levantadas até aqui, além de outras graves inconstitucionalidades formais7, os princípios constitucionais da moralidade e da eficiência públicas, ambos inscritos no art. 37 da Carta Magna, também são
gravemente feridos pela lei ora questionada. Os rendimentos auferidos pelo Tribunal de Justiça são diretamente proporcionais à inoperância da máquina judicial. Ora,
é um princípio geral de direito que ninguém pode se beneficiar de sua própria torpeza8, daí não ser nem moral nem tampouco eficiente que se recompense a lentidão, a morosidade e a tardança. Ao fim e ao cabo, a nova lei resulta em que se desacredite na conjunção de esforços judiciários com o objetivo de tornar os julgamentos mais ágeis, pois difícil crer na rápida tramitação dos feitos cujos depósitos judiciais trazem rendimento ao Poder Judiciário ao longo do tempo. Quanto mais lento
for o Judiciário Paraibano mais dinheiro terá.
Demais disso, a propriedade é um direito fundamental garantido pelo art. 5º,
inc. XXII, da Constituição Federal. Um depósito não transfere a propriedade do dinheiro9; todo depósito tem um depositante, “pessoa que entrega a coisa a outrem
para que este a guarde e a restitua quando for exigido”, e um depositário, “pessoa
que recebe a coisa para a guardar e a restituir quando for exigida”. Assim, a posição jurídica do Tribunal de Justiça é, no quadro de uma relação entre o litigante
depositante e o banco depositário, anômala ou extravagante. Quando muito, faz
lembrar a conhecida fábula “A Ostra e os Pleiteantes”, que L A FONTAINE imortalizou
ainda no séc. XVII. Veja-se:
tais deve ser buscada mesmo contra legem ou praeter legem, afinal, como diz o mestre CANOTILHO, “a interpretação da Constituição pré-compreende uma teoria dos direitos fundamentais”. Se não há como oferecer
financiamentos habitacionais à generalidade daqueles que ainda não têm casa própria, o Estado tem o dever
jurídico de, pelo menos, não reduzir ainda mais os já insuficientes fundos para financiamentos imobiliários.
7 Vício de iniciativa (art. 96, inc. II, CF), vício quanto à espécie legislativa adotada (art. 163, inc. I, e art. 165, § 9°,
inc. II, CF), vício de competência (art. 22, inc. I, e art. 192 CF) e vício quanto ao procedimento financeiro adotado (art. 168 CF). Estas inconstitucionalidades formais já foram argüidas pela Ordem dos Advogados do Brasil na petição inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.855, em que pugna pela nulidade da Lei
7.604/2001 do Estado do Mato Grosso. A referida ADIn, sob relatoria do eminente Min. Marco Aurélio, ainda
aguarda julgamento da medida cautelar requerida. Com argumentos formais semelhantes, o Conselho Federal
da OAB também entendeu inconstitucional o “Sistema Financeiro de Conta Única de Depósitos Judiciais sob
Aviso à Disposição da Justiça”, convalidador do “Fundo de Reaparelhamento do Judiciário – FUGEAN”, criado
pela Resolução 023/2002, de 17/09/2002, do Tribunal de Justiça Estado do Amazonas (Proposição nº
0040/2003/COP, Relator Prof. Dr. Paulo Lopo Saraiva, DJU 12.12.2003, p. 1.024, S1).
8 A idéia de que ninguém pode se beneficiar de sua própria torpeza equivale, em um sentido restrito, ao abrangente conceito, originário do common law, de “estoppel” que, fundado na boa fé, na confiança e na eqüidade,
é hoje apontado como verdadeiro princípio geral de Direito Internacional. Para uma história e conceptualização mais precisas do complexo instituto do direito anglo-saxão, consultar por todos: COOKE, Elizabeth. The
Modern Law of Estoppel. Oxford: Oxford University Press, 2000.
9 Nesse sentido, o col. Superior Tribunal de Justiça decidiu em agravo no autos do RESP nº 346.703-RJ (DJU de
02-12-02) que “os valores depositados judicialmente com a finalidade de suspender a exigibilidade do crédito tributário, em conformidade com o art. 151, do CTN, não refogem ao âmbito patrimonial do contribuinte, constituindo-se assim em fato gerador do imposto de renda. Os valores depositados, para os fins do
art. 151, II, do CTN, permanecem no patrimônio do contribuinte, até o encerramento do processo. Por isto,
seus rendimentos constituem fato gerador de imposto de renda.”
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Dois peregrinos
Um dia encontram
Na praia uma ostra,
Que o mar lançara.
Já cos olhos a sorvem, já co dedo
A apontam um ao outro.
Pôr-lhe dente? – isso é ponto contestado.
Um se debruça
A colher prea,
E o outro o arreda,
E diz: “Saibamos
A quem compete
Ter dela o gozo.”
O que a avistou primeiro, a trinque; e o outro
Veja-o com o olho,
Coma-a coa testa!
– Se o negócio, diz o outro, assim se julga,
Tenho – graças a Deus – esperto luzio.
– Nem os meus são ruins, disse o primeiro,
Que antes que tu, a vi; por vida o juro.
– Se a viste, a mim! Cheirou-me.
Neste comenos,
Chega ao pé deles
Juiz da Casinha.
Nele se louvam.
Mui grave o juiz recebe a ostra e – papa-a,
E os dois a olhar. – Refeição feita:
“Tomai – lhes diz, em tom de presidente –
Cada um sua casca,
Salva de custas,
E vão-se andando.”
Contai quanto hoje custa uma demanda,
E o que a muitas famílias depois fica;
E vereis que o juiz vos leva a bolo,
E vós ficais co saco, e cos trebelhos.10
Não sendo nem o depositante nem tampouco o depositário do dinheiro, a
apropriação pura e simples, pelo Poder Judiciário, da maior parte dos ganhos aufe10 LA FONTAINE, Jean de. “A Ostra e os Pleiteantes”. Trad. de Filinto Elísio. In: LA FONTAINE, Jean de. Fábulas.
Vol. 1. São Paulo: Landy, 2003, p. 154-156.
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faculdade de direito de bauru
ridos com as quantias depositadas caracteriza enriquecimento sem causa do Poder
Judiciário e, concomitantemente, confisco de propriedade privada. A essa altura é
importante relembrar as lições de Finanças Públicas: depósito e receita pública são
figuraras jurídicas inconfundíveis. Receita pública, segundo definição de Aliomar Baleeiro, “é a entrada que, integrando-se no patrimônio público sem quaisquer reservas, condições ou correspondência no passivo, vem acrescer o seu vulto, como
elemento novo e positivo”. Os depósitos e as receitas públicas são espécies distintas
do gênero “ingressos públicos”. Nem todos esses ingressos, obviamente, constituem receitas públicas, pois alguns deles não passam de meros “movimentos de fundo”, sem qualquer incremento do patrimônio governamental, desde que estão condicionados à restituição posterior (quando o Estado é o depositário).
Por tudo isso, é de se enxergar a inconstitucionalidade dos “Sistemas Financeiros de Conta Única de Depósitos sob Aviso de à Disposição da Justiça do Poder
Judiciário” que se multiplicam pelos Estados da federação.
DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO TRATAMENTO DA
MATÉRIA ECONÔMICA NAS CONSTITUIÇÕES
Carlo José Napolitano
Mestre em Direito pela Intituição Toledo de Ensino - Bauru.
Professor Universitário.
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo analisar a evolução do tratamento constitucional relativo à matéria econômica. Para tanto analisou-se os modelos de constituição a partir do século XVIII, com o modelo de Estado liberal, passando-se já no século passado ao
modelo de Estado intervencionista, chegando-se a nova estrutura de Estado neoliberal.
Palavras-chave: Estado, Constituição e economia.
DO ESTADO LIBERAL
A estruturação do Estado através de um documento formal, conhecido como
Constituição, tem como marco histórico inicial o final do século XVIII, com as Constituições americana (1787) e francesa (1791). Esse movimento de estruturação do Estado através de um documento formal, ficou conhecido como constitucionalismo.
Nesse primeiro momento, as constituições apenas tratavam de assuntos relacionados à organização dos Estados, à divisão política dos poderes em legislativo,
executivo e judiciário e aos direitos e garantias individuais. A preocupação maior era
com o direito à liberdade e a conseqüente limitação do poder político do Estado.
Esse momento histórico ficou conhecido como Estado liberal.1
1
MANDELLI JÚNIOR, Roberto Mendes. Argüição de descumprimento de preceito fundamental: Instrumento de
proteção da constituição e dos direitos fundamentais. Dissertação mestrado, ITE, Bauru, são Paulo, 2001. p. 14/33.
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Corroborando a assertiva acima exposta, João Bosco Leopoldino da Fonseca
cita um conjunto de fontes inspiradoras dos ideais liberais
que podem sintetizar-se quer na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, votada em 27.08.1789 pela Assembléia Constituinte e incorporada no preâmbulo à Constituição francesa de
1791, quer na Declaração de Direitos de Virgínia, de 16.06.1776.2
Mais adiante, prossegue o autor afirmando que há dois pontos em comum
nessas fontes, quais sejam,
exaltam o valor da pessoa humana como portadora de direitos
que lhe foram conferidos pela própria natureza e acentuam a concepção de um poder político limitado. A lei, como atuação do Estado, deve garantir a liberdade da pessoa humana e deve limitar
a atuação do próprio Estado, de tal sorte a garantir o desenvolvimento natural do homem em todas as suas atividades.3
A concepção do Estado, no constitucionalismo liberal, estava, portanto, fortemente atrelada ao elemento político, à estrutura e à limitação do poder estatal e à
garantia da liberdade do indivíduo.4 A idéia fundamental era a retirada dos poderes
absolutos e concentrados do Estado. Contudo, o direito à liberdade ficou restrito
apenas ao campo formal,
o liberalismo é o movimento que tomou como objetivo defender a
liberdade, quer no plano político quer no econômico, transformando um movimento de idéias em ideologia. Essa defesa se processou no plano formal, independentemente da consideração da
situação real que envolve os indivíduos.5
Não havia o regramento sistemático de matérias referentes à economia e muito menos regulamentação de como o Estado poderia atuar no campo econômico.
Para Alvacir Alfredo Nicz,
o Estado Liberal típico, em suas primeiras Constituições, não trazia dispositivo algum referente à ordem econômica, aparentando
2
3
4
5
FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito econômico. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 62.
Idem, p. 63.
COSTA, Ari Boemer Antunes da. Fundamentos constitucionais da livre concorrência. Dissertação mestrado,
ITE, Bauru, São Paulo, 2002. p. 41.
FONSECA, op. cit., p. 63.
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um completo desinteresse pela mesma. Também as Declarações de
Direitos da época não faziam qualquer menção ao aspecto econômico do Estado. A preocupação do Estado Liberal estava dirigida
à segurança interna e externa, ou, mais propriamente, vinculada
a uma atividade de manutenção policial em seu âmbito interno e
das forças armadas para a ordem externa, sem se preocupar diretamente com o que dizia respeito à economia.6
A origem do constitucionalismo, portanto, confunde-se com o modelo de Estado
liberal. Seguindo essa linha de raciocínio, Washington Peluso Albino de Souza afirma que
as constituições liberais clássicas consagravam ao poder econômico privado o privilégio de, praticamente, não receber regulamentação, nem lhe ser feita ao menos referência no texto magno. Simplesmente o ignoravam. Vedavam ao Estado imiscuir-se no domínio das atividades econômicas, que eram reservadas exclusivamente ao poder econômico privado.7
A função primordial do Estado, no campo econômico, era ser o garantidor do
“livre desenvolvimento das atividades privadas”.8 Desse modo, em sua primeira
modelagem, no Estado liberal, somente havia a previsão de regras referentes à estrutura política, não havia preocupação com a disciplina do funcionamento da economia; porém, convém observar que
as Cartas Magnas exerciam, através de normas implícitas, um papel preponderante no quadro econômico. O liberalismo clássico
correspondente ao Estado Liberal, que traduzia o pensamento econômico do laissez-faire, laissez-passer, deixava aos cidadãos a possibilidade do exercício da livre concorrência de modo que o egoísmo de cada um ajudasse a melhoria do todo.9
A finalidade da presença, nas primeiras constituições, de matérias relacionadas aos direitos políticos e individuais visavam a resguardar o direito à liberdade,
criando-se uma barreira defensiva do indivíduo perante o Estado. Essas barreiras evitariam o amesquinhamento do indivíduo por parte do ente estatal.10 Desse modo, as
6
7
NICZ, Alvacir Alfredo. A liberdade de iniciativa na constituição. São Paulo: RT, 1981. p. 2.
SOUZA, Washington Peluso Albino. O direito econômico no discurso constitucional. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, n. 60/61, p. jan/jul, 1985. p. 281.
8 COMPARATO, Fábio Konder. Ordem econômica na constituição de 1988. Revista de Direito Público. São Paulo:
RT, ano 23, jan/mar, n. 93, 1990. p. 264.
9 NICZ, op. cit., p. 1.
10 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social. Revista de Direito Público. São Paulo: RT, ano XIV, jan/junho, ns. 57/58, 1981. p. 235.
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constituições visavam à garantia das liberdades e à limitação do poder do Estado,
“todas as Constituições do Estado Liberal implantado pela Revolução Francesa
traziam como ponto de maior importância o direito à liberdade”.11
A ausência da disciplina de matéria econômica no modelo de Estado liberal
decorria, também, do fato de as leis econômicas serem reconhecidas como leis naturais e, basicamente, consistiam na regra de que cada um deveria obter o maior benefício individual possível, para assim servir aos interesses da comunidade.12 Nas palavras de Alvacir Alfredo Nicz,
o Estado Liberal tem à concepção política correspondente a concepção da economia. Surgida no século XVIII, tinha como fundamento o fato de que a economia regida por leis naturais e sem receber o dirigismo da vontade do homem é aquela que conduz ao
melhor caminho.13
Para os liberais, o indivíduo, na busca da obtenção do maior ganho possível,
acaba contribuindo para a prosperidade geral.14 O Estado liberal não se preocupa diretamente com o bem-estar econômico geral, tem por finalidade garantir que cada
indivíduo alcance os seus fins individuais15, sendo que a procura do desenvolvimento econômico individual acaba alavancando a prosperidade e o desenvolvimento
econômico de toda a comunidade.
Corroborando essa assertiva, Fabio Konder Comparato prescreve que, para a
teoria liberal,
se cada agente econômico perseguisse coerentemente o seu próprio
interesse pessoal, desse conjunto de atividades privadas surgiria,
naturalmente a harmonia coletiva, sem que houvesse necessidade
de imposição, pelos poderes estatais, de finalidades públicas.16
Na mesma linha de raciocínio, Ari Boemer Antunes da Costa assevera que a
concepção de cunho individualista e egoísta, de acordo com pensamento econômico do século XVIII, era dirigida por uma ‘mão invisível’, o que fazia com que as ações individuais como parte de
um conjunto econômico, um sistema econômico, teriam o condão
11
12
13
14
15
16
NICZ, op. cit., p. 6.
COMA, Martin Bassols. Constitucion y sistema economico. Madrid: Tecnos, 1985. p. 22/23.
NICZ, op. cit., p. 3.
MONCADA, Luís S. Cabral de. Direito económico. 3 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. p. 16/17.
Idem, p. 19.
COMPARATO, op. cit., p. 263.
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de ao final ser de relevância para a contribuição do bem-estar geral da sociedade.17
João Bosco Leopoldino da Fonseca analisa a idéia do regulamento da economia através de leis naturais, dizendo que os liberais defendiam este raciocínio apoiados no fato de que essas leis fatalmente levariam a economia a
uma situação de equilíbrio entre os integrantes do mercado, com
frutos positivos para toda a sociedade, que será rica se os seus integrantes o forem. O Estado não deveria, portanto, através da lei,
interferir no funcionamento do mercado.18
No aspecto político-jurídico, o constitucionalismo liberal tinha como característica ser um modelo político-liberal e sua finalidade era implantar o ideal da burguesia que assumia, naquele momento, o poder. Buscava-se a liberdade individual19,
sendo que a criação desse modelo estatal é eminentemente jurídica, pois a sua característica básica é tratar das instituições jurídicas que garantam a coexistência das
liberdades dos cidadãos.20 Segundo o ideário liberal burguês, “as relações privadas
não deveriam sujeitar-se à interferência do Estado, este deveria incumbir-se tão
somente de auto-organizar-se e garantir os direitos dos indivíduos”.21
Seguindo esse pensamento, no campo econômico, a finalidade do Estado liberal burguês era assegurar, como já foi dito, a prática do “laissez-faire, laissez-passer, significando o primeiro ‘liberdade de produção’ e o segundo ‘liberdade de comércio’”.22 O que se pretendia resguardar no campo econômico, portanto, era a liberdade individual e a propriedade privada, evitando-se interferências nessas searas
por parte do Estado. A Constituição era compreendida como “instrumento de defesa dos direitos individuais”,23 sendo que a economia era uma função a ser exercida
pelos particulares e as soluções econômicas deveriam ser deixadas aos indivíduos,
“não tinha o Estado em esfera constitucional qualquer função no que se refere à
economia”.24
As afirmações feitas até agora de que o Estado não tinha funções na atividade
econômica não podem ser tomadas em sentido absoluto, mesmo não havendo regras específicas e explícitas referentes à condução da economia, o Estado liberal
possuía, sim, algumas funções no campo econômico.
17
18
19
20
21
22
23
24
COSTA, op. cit., p. 46.
FONSECA, op. cit., p. 219.
MONCADA, op. cit., p. 19.
Idem, p. 21.
COSTA, op. cit., p. 41.
NICZ, op. cit., p. 6.
VAZ, Manuel Afonso. Direito econômico. 4 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1998. p. 48.
COSTA, op. cit., p. 42.
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Essas funções, entretanto, não estavam explicitadas pelas constituições. As regras
estavam implícitas no ordenamento jurídico. A função do Estado liberal era garantir o
livre exercício das atividades econômicas sem criar obstáculos e empecilhos ao livre desenvolvimento dessas atividades. João Bosco Leopoldino da Fonseca explica qual era
especificamente a função do Estado no ideário liberal relativamente à atividade econômica. Para o autor, o Estado tinha por função fundamental ser o garantidor da liberdade de mercado, não sendo correto afirmar que, nas primeiras constituições, inexistiam
disposições sobre a organização econômica da sociedade. Nem se poderia dizer que naqueles textos não existisse uma Constituição econômica. O que se deveria dizer é que a ordem econômica liberal ali está
presente, com a imposição de o Estado garantir os direitos individuais, entre eles o direito individual de propriedade em toda a sua
plenitude. Não se pode esquecer que o constitucionalismo dos séculos
XVIII e XIX surgiu sob o pressuposto ideológico de defesa das liberdades individuais em confronto com o absolutismo até então imperante. E entre estas liberdades individuais estava o direito absoluto de
propriedade individual, garantidor da atuação econômica individual no mercado. As normas constitucionais protetoras desses direitos têm por objetivo impedir que o Estado os desrespeite, os afronte.25
A origem do constitucionalismo, portanto, confunde-se com o modelo de Estado liberal e com a consagração do constitucionalismo político. Em verdade, esta primeira fase do constitucionalismo e do Estado liberal era a antítese ao Estado Absolutista.
O modelo jurídico liberal se caracterizava por duas premissas básicas, a separação absoluta entre o direito público e o direito privado e a predominância da autonomia da vontade privada na economia.26 A liberdade do indivíduo no campo econômico caracterizava-se por um “sistema de confronto e harmonização dos interesses individuais”,27 não sendo esse sistema influenciado pela vontade do Estado.
Esse período de modelo de Estado liberal perdurou durante todo o século dezenove até o início do século passado. Nesses dois séculos, o direito, tanto o privado quanto o público, eram altamente influenciados pelos ideais da propriedade privada e da liberdade de iniciativa, sendo esses institutos de grande influência na aplicação e interpretação das leis. O direito público, notadamente o direito constitucional, era limitado por estes ideais do liberalismo.
Segundo Pontes de Miranda, houve naquela época uma inversão de valores,
pois se dava mais importância ao direito privado do que ao direito constitucional,
25 FONSECA, op. cit., p. 220/1.
26 MONCADA, op. cit., p. 14.
27 Idem, p. 16.
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sendo que a lógica que deveria ser adotada era exatamente o contrário28, pois é o direito privado que deve ser interpretado de acordo com o direito constitucional.
Porém, esse modelo de Estado logo foi substituído por outro, conhecido
como Estado Social. A economia do período de guerra, a revolução bolchevista e a
conseqüente criação do Estado comunista na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas desferiram golpes mortais ao Estado liberal. “Sombrio o futuro do capitalismo, impunha-se a sua renovação, para o que é chamado a atuar o Estado.
A ‘mão invisível’ de Smith é substituída pela mão visível do Estado”.29
DO ESTADO SOCIAL
No início do século passado, as Constituições passaram a tratar de assuntos relativos aos direitos sociais, trabalhistas e econômicos. Vários fatores históricos influenciaram a constitucionalização dos direitos econômicos, tais como os conflitos
de classes, as desigualdades sociais, a Primeira Guerra Mundial, a revolução russa, a
grande recessão da década de vinte foram fundamentais para a constitucionalização
desses direitos.
As constituições precursoras no tratamento da economia foram as constituições mexicana de 1917 e a da República de Weimar em 1919, sendo esta última de
grande influência para a disciplina de matérias econômicas no constitucionalismo
brasileiro, através da Constituição Brasileira de 1934.30
Houve nesse momento histórico uma mudança na concepção da forma de
atuação do Estado, este
além da preocupação de manter a ordem e segurança preocupase em primeiro lugar com o bem-estar do povo provendo-lhe as necessidades e zelando por ele, transformando-se, pois, no Estado de
benevolência que protege a todos. Para desempenhar a contento
esta nova função o Estado reconhece como necessário dirigir a
economia, de modo a obter os meios imprescindíveis para atingir
os objetivos provendo da melhor forma as necessidades de seu
povo. Essa mudança de comportamento do Estado em suas relações com os indivíduos foi o produto da influência de fatores diversos, como social, político e ideológico.31
28 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. Rio de Janeiro: Forense,
1987, t. VI p. 38/39.
29 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.
p. 18.
30 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 9 ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 666.
31 NICZ, op. cit., p. 8.
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A Primeira Guerra Mundial e a crise de vinte e nove exerceram papel fundamental na mudança de concepção da atuação do Estado no campo econômico. A
guerra
foi exatamente a que contribui para o desenvolvimento da intervenção do Estado no domínio econômico. Ela veio se acentuar no
âmbito das Constituições do pós-guerra, já no chamado Estado
Providência.32
Com o estado de beligerância mundial, os Estados passaram a ter a necessidade de estruturar os exércitos e começaram a
elaborar o planejamento econômico, ainda que de modo rudimentar, para poder atender à produção de armas e ao próprio impacto na economia interna. Também, após o término da guerra,
com a situação criada por esta, torna-se ainda mais necessário
que o Estado dirija a própria economia. Dessa forma, ganha vulto nas Constituições da época a concepção não mais do Estado Liberal, mas já de um Estado Providência, preocupado além da segurança, com o bem-estar do povo.33
Por sua vez, a crise econômica de 1929 exerceu papel fundamental na mudança da atuação do Estado no campo econômico, pois a crise levou “à conclusão clara e evidente que o liberalismo gera o desastre econômico e instaura o caos social, admitindo-se então um intervencionismo tímido, mas real”.34
Nesse momento histórico, percebeu-se que não poderia haver a separação absoluta entre o setor privado e o setor público, sendo que a ambos era atribuída a tarefa de buscar o desenvolvimento geral, passando o Estado a ser também um gerador de programas de ação na seara econômica.35 Por isso, nesse período, a preocupação maior passou a ser com o direito à igualdade. O Estado “caracteriza-se substancialmente pela busca do fim almejado que é a igualdade entre todos”36. Exigiase do Estado uma atuação efetiva no campo econômico e social. O Estado passa a
ter atuação prestacional, age como mitigador dos conflitos entre o capital e o trabalho, intervém como distribuidor e como regulador, age como amortecedor das lutas
de classe, como promotor da justiça social e da paz econômica entre os homens, no
intuito de minimizar as diferenças sociais e implementar a igualdade entre as classes
32
33
34
35
36
Idem, p. 121.
Idem, p. 17.
Idem, p. 15.
COMPARATO, op. cit., p. 264.
NICZ, op. cit., p. 13.
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sociais, “o advento, neste século, do Estado ‘intervencionista’ desencadeia, contudo, um verdadeiro salto qualitativo, que informa, enriquecendo-o”.37
Desta forma, percebe-se claramente que a introdução de matérias econômicas nas constituições coincide
com o declínio do liberalismo econômico e a ascensão das formas
não liberais do intervencionismo e do dirigismo econômico. As instituições do capitalismo liberal vão experimentar os abalos decorrentes do confronto com o pensamento, as idéias e os movimentos
políticos inspirados no reformismo social.38
As constituições passaram a ser compreendidas, buscando-se as suas causas e
a sua função social, não se admitiam mais as constituições somente garantidoras das
liberdades políticas e individuais, havia a necessidade de previsão de matérias relacionadas à economia e aos problemas sociais. A ausência de disciplina dessas matérias era uma temeridade e um anacronismo.39
No Estado social, o ente estatal passa a ter papel importante na condução da economia, sendo considerado, inclusive, como alavanca da sociedade, atua com freqüência
em atividades econômicas tanto na produção como na distribuição de bens e serviços.40
Esse novo modelo de Estado repercute na ordem jurídica que passa a exercer
um papel completamente diferente do que tinha no Estado liberal. O direito passa a ter
conteúdo econômico e social41, o que altera substancialmente a modelagem do Estado,
as normas que compõem a ordem econômica, introduzidas no documento constitucional na fase do constitucionalismo moderno
[...] refletem mutação operada na posição do Estado e da sociedade em relação à atividade econômica, abandonando a neutralidade característica do Estado Liberal, para incorporar versão ativa do Estado intervencionista, agente e regulador da economia.42
Essa nova função do direito altera o conteúdo das constituições, sendo nelas
inseridas matérias pertinentes aos direitos econômicos e sociais.
O Estado reveste-se, no campo econômico, de natureza positiva, passando a
ter atribuições neste campo, deixa de ser um garantidor das liberdades e passa a ter
funções materiais,
37 GRAU, op. cit., 1990, p. 18.
38 HORTA, Raul Machado. Constituição e ordem econômica e financeira. Revista de Informação Legislativa. Brasília, Senado Federal, ano 28, n. 111, jul/set de 1991. p. 6/7.
39 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. Rio de Janeiro: Forense,
1987, t.I. p. 19.
40 MONCADA, op. cit., p. 25.
41 Idem, p. 27.
42 HORTA, op. cit., p. 8.
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deixa o Estado, desde então, de intervir na ordem social exclusivamente como produtor do Direito e realizador de segurança, passando a desenvolver novas formas de atuação, para o que faz uso
do Direito positivo como instrumento de implementação de políticas públicas.43
O Estado social tem como característica a intervenção do ente estatal na
atividade econômica, sendo o direito um mecanismo de correção e controle
dessas atividades.
A consagração da intervenção estatal na economia visa à criação de barreiras
“defensivas do indivíduo perante a dominação econômica de outros indivíduos”.44 O Estado deixa de ser o garantidor da liberdade e passa a ter um objetivo
mais amplo na busca do bem-estar coletivo.45 Eros Roberto Grau menciona que,
mesmo no Estado liberal, o Estado atuava no setor econômico, sendo que, a partir
do advento do Estado Social, a maneira e a forma de atuação é que mudaram.46
Sobre esta transformação do conteúdo das constituições, lapidares são os comentários de Américo Luís Martins da Silva, segundo o autor no período liberal houve a consagração dos direitos políticos, porém após a primeira Guerra Mundial, com a decadência do liberalismo econômico, nasce o constitucionalismo econômico e, da mesma forma
que o constitucionalismo político, surgiu como um contraponto ao Estado absolutista, o
constitucionalismo econômico também surgiu como contraponto ao capitalismo livre,
determinando a estratégia da intervenção do Estado na economia, para assegurar a justiça social, as condições mínimas da dignidade humana e um nível aceitável de sobrevivência das classes
menos favorecidas.47
Pontes de Miranda também, apregoando a necessidade de intervenção do Estado no setor econômico, afirma que uma das finalidades do Estado moderno é garantir as liberdades, porém a liberdade econômica deve ser vigiada pelo ente estatal
através da socialização, pois a liberdade plena leva a excessos e, muitas vezes, até à
sua auto-destruição.48
Esse modelo de Estado teve vida mais curta que o liberal, durou do início do
século passado até os anos oitenta, quando novas propostas de atividade econômica, por parte do Estado, foram desenvolvidas.
43
44
45
46
47
48
GRAU, op. cit., 1990, p. 19.
BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p. 235.
Idem, p. 235.
GRAU, op. cit., 1990, p. 40.
SILVA, Américo Luís Martins da. A ordem constitucional econômica. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1996. p. 04.
PONTES DE MIRANDA, op. cit., 1987, t. IV, p. 29.
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Essas propostas visavam a retirar do Estado certas funções na seara econômica, deixando à atividade privada a primazia na condução da economia.
CRISE DO ESTADO SOCIAL E NEOLIBERALISMO
A atribuição ao Estado, de inúmeras funções prestacionais no campo dos direitos sociais e econômicos, levou ao inchamento do ente estatal, que não mais conseguia
atuar de forma adequada e satisfatória nesses campos. Esse aumento de funções e atribuições levou ao que se convencionou denominar de crise do Estado social.
Com o crescimento das funções do Estado e a flagrante ineficiência deste ao
prestar tais funções, levou-se a um movimento de retirada dessas funções do Estado, passando-as para a iniciativa privada.
Desde a década de oitenta, o mundo tem vivido, nas palavras de Américo
Luís Martins da Silva, uma verdadeira “onda liberal”49, que prega o afastamento
do Estado das atividades econômicas, deixando a economia à mercê do livre jogo
do mercado.
O Brasil não ficou imune a essa onda. Logo após a promulgação da Constituição de 1988, já havia grande movimentação no Congresso Nacional para alteração
nas regras constitucionais relativamente às matérias econômicas.
No início da década de noventa, com o governo Fernando Collor de Mello, iniciou-se um grande processo de privatizações que experimentou seu auge na metade da década, já no primeiro governo Fernando Henrique Cardoso.
Nessa mesma época, foram aprovadas diversas emendas constitucionais de
cunho liberal no que tange à disciplina da economia, abrindo o mercado nacional
de algumas atividades econômicas ao capital estrangeiro.
Para Américo Luís Martins Silva, a abertura econômica poderia pôr em risco a
soberania econômica do Brasil, pois o patrimônio brasileiro poderia ser entregue a
conglomerados econômicos estrangeiros, passando a esses grupos o poder de direção e decisão da economia brasileira.
As reformas constitucionais e econômicas tinham a tarefa e a finalidade de diminuir o gigantismo do Estado brasileiro, refletido em nossa Constituição aparentemente estatizante e nacionalista.50
Esse movimento de idas e vindas, de aceitação ou não da intervenção na economia por parte do Estado é reconhecidamente um movimento pendular. Em alguns períodos, defende-se
intransigentemente o absenteísmo do Estado da esfera econômica
sucedem-se outros em que se deseja e se exige que o Estado interve49 SILVA, A., op. cit., 1990, p. 49.
50 Idem, p. 49.
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nha, e até mesmo atue, no domínio econômico. Em movimento de
ordem inversa, a períodos em que o Estado interveio e atuou no domínio econômico, às vezes mesmo de forma excessiva, sucedem-se
outros em que se defende e se impõe uma retração, uma retirada.51
Esse fenômeno é corriqueiro na história econômica.
A esse movimento atual de retirada de atribuições do Estado no campo econômico, convencionou-se denominar de neoliberalismo, que prega o afastamento
do Estado em atividades do campo social e econômico.
Essa nova fase da história econômica, como já dito, teve como marco histórico os anos 80, quando alguns países passaram a diminuir o tamanho da atuação na
área econômica.
Exemplos são os casos da Inglaterra, no governo Margareth Tatcher, quando
se iniciou um grande processo de privatizações naquele país e a era Gorbachov, na
ex-União Soviética, com a famosa abertura econômica.
Nessa fase neoliberal, percebe-se uma redução do tamanho do Estado que
não dispõe de recursos suficientes para enfrentar todas as tarefas assumidas52, constata-se, também, que os recursos estatais são ineficientes “quanto mais intensas e
amplas as funções atribuídas ao Estado, tanto maior o desperdício de recursos verificado”. 53
A abertura econômica para o capital estrangeiro é uma faceta do pensamento
neoliberal, sendo que para essa corrente do pensamento econômico
a nacionalidade do agente econômico não pode ser fator de preferência ou desvantagem no desempenho da atividade econômica. O Estado que pretenda valer-se da própria soberania como fator de disciplina da atividade econômica acaba excluído do mercado mundial.54
Deve-se ter em mente que o neoliberalismo é a retomada da atividade econômica preponderantemente pela iniciativa privada. Entretanto, este movimento não
quer dizer que se trata de um mero retorno ao capitalismo dos séculos XVIII e XIX.
Neste sentido, para Marçal Justen Filho
o neoliberalismo não pretende a pura e simples supressão de certas atividades que o Estado assumiu. O fim visado não é voltar a
um Estado de Polícia, preocupado apenas com a defesa da segu51 FONSECA, op. cit., p. 102.
52 JUSTEN FILHO, Marçal. Empresa, ordem econômica e constituição. Revista de Direito Administrativo. Rio de
Janeiro, vol. 212, abr/jun, 1998. p. 121.
53 Idem, p. 121.
54 Idem, p. 121.
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rança e da propriedade. As propostas neoliberais retratam a concepção de que a gestão estatal deve ser norteada por regras técnicas similares às da atividade privada.55
Este modelo de Estado não está inume a críticas, havendo quem defenda
que suas idéias e concepções sobre a economia devem ser revisadas. Fator de
constatação da afirmativa foi o processo eleitoral por que passou o Brasil no ano
de 2002, quando foi debatido fortemente o papel do Estado e do modelo econômico neoliberal.
No segundo turno das eleições, as diferenças entre os candidatos ficaram bem
claras. Um que defendia os ideais do neoliberalismo e a continuidade do modelo
que vigora há quase uma década em nosso País e o outro que pregava alterações
neste modelo de condução da economia.
A essência do Estado neoliberal reside no corte de investimentos públicos
para o financiamento de bens e serviços, setores de grande demanda social, para a
aplicação desses fundos em investimentos exigidos pelo capital.
Em resumo, para os críticos do neoliberalismo, este modelo de condução da atividade econômica defende a minimização de investimentos na área social, para que os
recursos públicos possam ser utilizados na consecução dos objetivos dos capitalistas.56
A corrente que saiu vitoriosa nas últimas eleições defende exatamente o oposto da lógica neoliberal, ou seja, um forte investimento em setores de grande demanda social, com a redução de gastos públicos em setores de interesse do capital, leiase, infraestrutura.
O que se percebe claramente é que o pêndulo da economia está se movimentando novamente, repetindo ciclos históricos anteriormente já observados. Sobre
esses ciclos históricos e pendulares, escreveu Eros Roberto Grau que eles são reflexos de uma luta travada entre o capital e o trabalho. Segundo o autor, o capital pretende reservar para sua própria exploração todas as atividades econômicas que possam ser objeto de especulação lucrativa. Por outro lado, o trabalho procura atribuir
ao Estado, essas atividades, para que o mesmo as desenvolva sem o caráter especulativo e de lucro. Conclui o autor que
é a partir deste confronto – do estado em que tal confronto se encontrar, em determinado momento histórico – que se ampliarão ou reduzirão, correspectivamente, os âmbitos das atividades econômicas”57
55 Idem, p. 121.
56 CHAUÍ, Marilena. A mudança a caminho. Folha de São Paulo, São Paulo, 03 de novembro de 2002, ano 82, n.
26.877, p. A 3.
57 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
p. 147.
196
faculdade de direito de bauru
do setor público e do setor privado. Continua o autor, afirmando que “a ampliação
ou retração de um ou outro desses campos será função do poder de reivindicação, instrumentado por poder político, de um e outro, capital e trabalho”.58
Na última década, as forças políticas vitoriosas implantaram, com êxito, algumas políticas neoliberais, a partir de 2003, a estrutura de poder em nosso país foi alterada, resta saber se essa corrente que saiu vitoriosa das urnas conseguirá implementar seus ideais de direcionamento de investimentos para o setor social, área tão
carente em nosso País.
REFERÊNCIAS
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58 Idem, p. 147.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
197
________ . Comentários à Constituição de 1967. Rio de Janeiro: Forense, 1987, t. 6.
________ . Comentários à Constituição de 1967. Rio de Janeiro: Forense, 1987, t. 1.
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O TRUST NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA
E SUAS FUNÇÕES
Verônica Scriptore
Advogada.
Pesquisadora do USA - Brazil - International Research Program da Ordem dos
Advogados do Brasil e da American Bar Association.
Membro Oficial da Comissão de “Relações Internacionais e Direito na Internet”
da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, em Bauru, São Paulo.
INTRODUÇÃO
O instituto dos Trusts constitui um dos traços distintivos entre o Direito da Common Law e o Direito da Civil Law. O Trust é um instituto jurídico peculiar nos países
da Common Law e surge como uma relevante criação do Direito da eqüidade1.
Praticado largamente nos Estados Unidos da América, podemos adiantar tratar-se de um instituto que, por sua flexibilidade e eficiência econômica, se reveste
como melhor opção em relação aos diversos institutos da civil law, mas possuidores de objetivos semelhantes.
De fato, o Trust praticado nos Estados Unidos da América não encontra instituto equivalente exato no Direito Brasileiro.
Seu estudo justifica-se face à sua adaptação às variadas finalidades, com relevância sobremaneira em matéria financeira, desde a administração de bens, gestão,
1
O presente trabalho é baseado em parte de nosso trabalho de conclusão de curso de Direito, intitulado Os
Trusts em Direito nos Estados Unidos da América. Bauru, Instituição Toledo de Ensino, 2003. O referido
trabalho contou com a orientação do Professor Mestre D. Freire e Almeida.
200
faculdade de direito de bauru
transmissão e administração de empresas, proteção da família, até para fins de interesse público.
Neste sentido, pois, pretendemos apresentar o referido instituto, principiando por seus aspectos conceituais, passando por suas formas e constituição.
Em prosseguimento, analisaremos sua estrutura, em suas modalidades, objetiva e subjetiva, culminando, após, pela análise da classificação dos Trusts, desde
seus fins filantrópicos, até suas funções essenciais, que justificam seu enorme uso
nos Estados Unidos da América.
1.
O CONCEITO DE TRUST E BREVES CONSIDERAÇÕES
A palavra Trust significa confiança. Como primeira idéia, o Trust é uma relação
jurídica na qual uma pessoa, o trustee, recebe a propriedade sobre alguns bens, sendo obrigada a administrá-los em benefício de outra2.
Trata-se de um negócio jurídico por meio do qual um direito de propriedade
passa a ser detido por uma das partes da relação jurídica em benefício de outra. Assim, o proprietário de bens outorga, por meio do Trust, a administração desses bens
a um trustee, para que estes sejam geridos em favor do beneficiário.
O Convênio de Haya, de primeiro de julho de 1985, sobre a lei de aplicabilidade do Trust e seu reconhecimento, em seu art. 2º, define o Trust como sendo as
relações jurídicas criadas por ato inter vivos e mortis causa, por uma pessoa, o
constituinte, mediante a colocação de bens no controle do trustee em interesse de
um beneficiário e com um fim determinado3.
Mais especificamente, o Trust pode ser definido como uma relação fiduciária
voluntariamente constituída relativamente a bens cujo título legal pertence a determinado sujeito, o trustee. Porém, o beneficio da titularidade do direito é atribuído a
uma outra pessoa: o beneficiário. O Trust impõe deveres fiduciários ao trustee, pois
este terá a obrigação de administrar a Trust res em favor de outrem (o beneficiário).
Estes deveres constituem o sistema linfático da relação jurídica4.
Não obstante existirem ainda muitos trustees individuais, o paradigma do trustee atual é aquele do profissional remunerado, cuja atividade consiste em constituir
e cumprir Trusts. O fiduciário societário oferece perícia e garantias. De acordo com
o regime da responsabilidade estabelecido no direito dos Trusts, o trustee arrisca ilimitadamente o seu patrimônio pessoal no caso de não cumprir as suas obrigações.
Impõe-se, nesta matéria, a regra que estabelece o critério de diligência do profissio2
3
4
Daniel Freire e Almeida, Os Trusts – Securitization em Direito nos Estados Unidos da América: Universidade de
Coimbra: Working Paper, p. 03.
Convênio de Haya, de primeiro de julho de 1985, sobre a lei de aplicabilidade do Trust e seu reconhecimento,
art. 2º.
Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para
A Sua Consagração No Direito Português, p.19.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
201
nal razoável. Este risco assumido pelo trustee informa o Trust moderno, garantindo,
efetivamente, o beneficiário contra uma multiplicidade de violações. Acresce que
este risco de responsabilidade gera um incentivo adicional para o trustee cumprir,
de boa-fé, o Trust. Uma outra vantagem oferecida pelo fiduciário de natureza societária traduz-se na sua longevidade5.
1.1. Características do Trust
Podemos apontar as características atuais do Trust em quarenta e nove Estados norte-americanos. Desde logo, temos a propriedade dualística, a divisão da propriedade entre o trustee e o beneficiário constitui o traço distintivo do Trust. Relativamente a terceiros, o trustee é considerado como único proprietário, embora deva
prestar todos os benefícios aos beneficiários.
Perante uma conduta danosa do trustee, os beneficiários podem, por via de
regra, agir contra aquele, mas não contra terceiros adquirentes6.
Neste sentido, Cristiane Gonzáles Beifuss discorre sobre as três características
principais do Trust, apontando primeiramente o fato de os bens do Trust constituírem um fundo separado e não formarem parte do patrimônio do trustee, depois os
bens se estabelecem em nome do trustee ou de outra pessoa por conta do trustee
e, por último, o trustee tem a faculdade e a obrigação de prestar contas, de administração, gestão e disposição dos bens segundo as condições do Trust e as obrigações
particulares que a lei impõe7.
Por outro lado, o Trust é constituído pelo settlor ao abrigo do Princípio Geral
da Liberdade de Forma que, nesta sede, sofre escassas limitações (redução a escrito
quando se tratar de imóveis). O Trust pode não ter origem num ato voluntário. Relativamente à identificação dos beneficiários, pode dizer-se que um Trust pode ter
mais do que um beneficiário do rendimento, podendo estes ser simultâneos ou sucessivos. A distribuição dos benefícios pode referir-se aos rendimentos ou ao corpus. O ato constitutivo pode, na vigência do Trust, permitir unicamente a distribuição do rendimento ou consentir também a distribuição do corpus. Por sua vez, em
sede de duração do Trust, vigora a regra que proíbe a sua perpetuidade. O settlor e
o conjunto dos beneficiários de um Trust intervivos podem acordar na sua extinção
anterior ao termo definido no ato constitutivo. No caso de o settlor falecer ou se encontrar ausente, o consentimento de todos os beneficiários é suficiente para extinguir antecipadamente o Trust, salvo se a sua continuação se revelar necessária para
5
6
7
Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para
A Sua Consagração No Direito Português, p. 27.
MARTIN, E.F., Louisiana’s Law of Trusts 25 Years after Adoptios of the Trust Code, Louisisna Law Review, 1990,
p. 502, apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust),
Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, 1999, p. 30.
El Trust- la instituición Anglo-americana y El derecho Internacional Espanol, p. 17.
202
faculdade de direito de bauru
realizar algum propósito essencial do mesmo. Ao settlor, é consentido atribuir o poder de designação dos beneficiários do corpus do Trust a terceiro, freqüentemente
a um beneficiário de rendimento. Conforme seja ou não limitado, esse poder permite ao seu titular designar, respectivamente, um sujeito dentro de uma determinada categoria ou qualquer sujeito8.
O Trust moderno desempenha uma multiplicidade de funções e as suas potencialidades permitem a descoberta constante de novas utilizações. Permite separar a administração dos bens do seu gozo, assim como facilitar a divisão da titularidade dos bens entre diversos titulares simultâneos ou sucessivos9.
Recorre-se ao Trust, fundamentalmente, para proteger o beneficiário, facilitar
a gestão do patrimônio de incapazes e a administração em benefício de diversos
destinatários, preservar o patrimônio para beneficiários sucessivos, atribuir os benefícios de acordo com as circunstâncias10, para substituir o testamento por Trusts revogáveis e para realizar economias fiscais. Ademais, nos Estados Unidos da América,
o Trust tem sido o principal instrumento jurídico para a Securitization, como destaca Daniel Freire e Almeida11.
1.2. A Constituição e a forma do Trust
O Trust tem um conceito amplo e flexível, pois poderá ser constituído para vários propósitos. Normalmente, é constituído por um ato voluntário do settlor, inter
vivos ou causa mortis. Nasce de uma declaração unilateral do settlor, não sendo necessária à aceitação do trustee ou do beneficiário. O settlor constitui o Trust por ato
inter vivos ou testamentário.
O estabelecimento de um Trust particular pressupõe a vontade de constituição, a determinação dos bens ou direitos e dos beneficiários e das respectivas cotas
beneficiais, a observância das devidas formalidades, o respeito à regra que proíbe as
perpetuidades, a inalienabilidade, às acumulações e a ausência de intenção de prejudicar credores12.
8
MARTIN, E.F., Louisiana’s Law of Trusts 25 Years after Adoptios of the Trust Code, Louisisna Law Review, 1990,
p. 504-505, apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária
(Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, 1999, p.31.
9 Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para
A Sua Consagração No Direito Português, 1999, p.31.
10 MARTIN, E.F., Louisiana’s Law of Trusts 25 Years after Adoptios of the Trust Code, Louisisna Law Review, 1990,
p. 506, apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust),
Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, p.31.
11 Os Trusts – Securitization em Direito nos Estados Unidos da América, Universidade de Coimbra: Working Paper.
12 SONNEVELDT, F.,The Trust – An Introduction, in The Trust, Bridge or Abyss between Commom and Civil Law
Jurisdictions?, editet by Frans Sonneveldt, Harrie L. V Mens, Deventer, Boston, Kluwer Law and Taxation Publishers, 1992, p. 4, apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, 1999, p. 36.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
203
A infração da lei, de princípios de ordem pública e de regras de moral judicialmente assimiladas determina a invalidade do Trust13. Verifica-se o mesmo resultado
quando o Trust se encontre viciado em erro, fraude, influência indevida, misrepresentation, duress ou perante a frustração do objetivo do Trust14.
Se o settlor não transferir válida e eficazmente os bens ou direitos para o trustee, nem tão pouco se declarar a si mesmo como trustee, não existe Trust.
Quando o Trust for constituído por ato Inter Vivos, no caso de o settor pretender ser o trustee dos bens ou direitos em Trust, o ato constitutivo deve definir a res do Trust, os beneficiários e respectivos benefícios e a qualidade de trustee do settlor.
Se os bens constituídos em Trust forem móveis, rege o principio da liberdade
de forma. Tratando-se de bens imóveis, o ato constitutivo do Trust deve ser reduzido a escrito15.
Não sendo o settlor o trustee, afigura-se essencial assegurar que a titularidade
dos bens ou direitos cuja constituição em Trust se pretende, é validamente transferida para o trustee. O Trust é ineficaz, ou até inexistente, enquanto essa transmissão
não for válida e eficazmente realizada16.
A transmissão da posse legal dos bens ou direitos para o trustee deve obedecer aos requisitos de forma estabelecidos para os bens ou direitos em apreço. A
transferência de benefícios para o trustee deve ser sempre reduzida a escrito17. Se os
requisitos formais não forem observados, o título legal permanece na esfera jurídica do settlor ou dos seus herdeiros18.
Quando constituído por testamento, não há qualquer formalidade especificamente dirigida ao Trust. Regem as disposições legais respeitantes ao testamento. Em geral este deve ser reduzido a escrito e à sua elaboração devem as13 KEETON, G.W., The Law of Trusts, London, 1957, p. 100 e ss, apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português,
1999, p. 36.
14 KEETON, G.W., The Law of Trusts, London, 1957, p. 106-107, apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português,
1999, p. 36.
15 HAWKINS, A . J., The Trust Like Device in English Law, in Trusts and Trust-Like Devices, edited by W. A. Wilson,
United Kingtom Comparative Law Series, Vol. 5, 1981, p. 12; PEARCE, R., STEVENS, R., The Law of Trusts and
Equitable Obligations, London, Dublin, Edinburgh, Butterworths, 1995, p 549; BOGERT, G.T., Trusts, St. Paul,
Minnesota, West Publishing Company, 1987, p. 49-50, apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite
de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, p. 49.
16 Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para
A Sua Consagração No Direito Português, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No
Direito Portuguies, p. 49.
17 MARTIN, J. E., Modern Equity, London, Sweet & Maxwell Ltd, 1993, p. 118-119, apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração
No Direito Português, 1999 p.50.
18 MENNELL, R.L., Wills and Trusts in a Nutshell, St. Paul, Minnesota, West Publishing Company, 1994, p. 208-209,
apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, p. 50.
204
faculdade de direito de bauru
sistir duas testemunhas. De outro modo o Trust é nulo e aplicam-se as regras da
sucessão legal19.
Primeiramente, na edificação da estrutura objetiva do Trust, está a declaração de
vontade, que só pode ser constituído com a declaração de vontade do settlor, e este
deve ser realmente o titular (ou estar para isto autorizado) dos bens ou direitos que
deseja transferir20. Deste modo, em ordem a tornar claro que pretende constituir um
Trust, no ato constitutivo, o settlor deve usar termos despidos de ambigüidade21.
Além da declaração do Trust, é necessária a transferência dos bens ou direitos
para o trustee. O funcionamento desse instituto exige a pertinência dos bens ou direitos à esfera jurídica do trustee porque somente com a titularidade da res sob o
domínio do trustee terá ele a capacidade material de cumprir os objetivos propostos pelo Trust. Ora, não poderia o administrador se sujeitar aos caprichos do beneficiário na execução de seu munus. Assim, desprendendo-se deste, tem o trustee a
total liberdade para direcionar a coisa aos fins que melhor convier aos interesses
econômicos do cestui que trust. Para tanto, não pode carecer de aprovação22.
Se não bastasse, com a titularidade da res sob seu domínio, consegue o trustee responder rapidamente aos estímulos do mercado, onde a circulação de bens e
capitais dá-se em alta velocidade. De fato, qualquer burocracia na transação, principalmente decorrente da eventual discordância do beneficiário, poderia acarretar
graves prejuízos ou, na melhor das hipóteses, a perda de uma boa ocasião para se
ganhar elevados lucros23.
Uma vez manifestada a vontade de constituir o Trust e transmitidos à titularidade dos bens ou direitos, o esse adquire vida e o settlor perde todos e quaisquer
poderes sobre os bens ou direitos agora em Trust24.
Pode-se dizer que o objeto do Trust, a trust res, deve revestir sempre natureza patrimonial. Geralmente, desde que seja alienável e determinada, a res do Trust
pode ser qualquer bem ou direito, real ou obrigacional, tangível ou intangível, legal
ou equitable, conclui-se que todo e qualquer bem patrimonial pode ser objeto de
um Trust25. Na verdade, a existência de um qualquer direito patrimonial afigura-se
19 BORGET, G.T., Trusts, St. Paul, Minnesota, West Publishing Company, 1987, p. 56, apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração
No Direito Português, p. 50.
20 Daniel Freire e Almeida, Os Trusts – Securitization em Direito nos Estados Unidos da América: Universidade de
Coimbra: Working Paper, p. 04.
21 Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para
A Sua Consagração No Direito Português, p. 37.
22 Ana Cláudia Nascimento Gomes, A Propriedade Jurídica e a propriedade Econômica no Trust, Mestrado em
Ciências Jurídicos Políticas, Universidade de Coimbra, 2000, p. 08.
23 Ibid, mesma página.
24 MARTIN, J.E., HANBURY, H., Modern Equity, London, Sweet & Maxwell Ltd., 1993, p.118-119, apud Maria João
Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, p.38.
25 Daniel Freire e Almeida, Os Trusts – Securitization em Direito nos Estados Unidos da América: Universidade de
Coimbra: Working Paper, p. 08.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
205
como sendo um requisito essencial26, e ainda, deve o ato constitutivo do Trust, determinar adequadamente os bens ou diretos em Trust ou, pelo menos, referir o critério da sua determinação27.
Nessa relação jurídica do Trust, notam-se normalmente três sujeitos, que formam a estrutura subjetiva. São eles:
O settlor ou instituidor, que é o fundador do Trust na qual não pode ser constituído sem a sua respectiva declaração de vontade.
O trustee ou administrador, que é aquele que adquire a titularidade da res,
mas com a incumbência de geri-la em proveito do cestui que Trust (beneficiário)28,
em geral qualquer pessoa singular ou coletiva pode ser trustee. Exigi-se, contudo,
que a pessoa tenha capacidades e legitimidade para dispor dos títulos legais dos
bens ou direito constituídos em Trust. O trustee deve ser um profissional bastante
especializado e, portanto, dotado de enorme capacidade financeira.
Por último, o cestui que Trust ou beneficiário, que é o sujeito para cujo benefício do Trust é constituído, o titular do direito aos benefícios dos bens ou direitos
em Trust e o credor do trustee. O beneficiário pode também ser o settlor ou o trustee. Apesar disso, o Trust pode ser constituído através de uma fórmula bipolar (com
dois sujeitos). É o caso, por exemplo, do settlor ser simultaneamente o administrador ou o beneficiário do negócio. Todavia, jamais o trustee poderá ser o beneficiário, sob pena de extinção do Trust29. O beneficiário tem que ser facilmente identificável devendo ser determinado ou determinável para que o cumprimento do Trust
seja exigível e que possa ser titular dos benefícios. O Trust que tenha como único e
exclusivo beneficiário um nascituro ou concepturo apenas se considera constituído
após o respectivo nascimento. O beneficiário deve ter capacidade para ser titular do
equitable tille, capacidade esta idêntica àquela exigida para a titularidade do título
legal30. A aceitação do beneficiário é necessária para a aquisição da equitable ownership (posse equiparada). Tanto a aceitação como a renúncia retroagem ao tempo da
criação do Trust31.
Concluímos neste tópico que, apesar de o administrador ser o real titular da
trust res, não usufrui suas utilidades, ou melhor, não está perante as vantagens que
26 Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para
A Sua Consagração No Direito Português, p.39.
27 Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para
A Sua Consagração No Direito Português, p.40.
28 Ana Cláudia Nascimento Gomes, A Propriedade Jurídica e a propriedade Econômica no Trust, Mestrado em
Ciências Jurídicos Políticas, Universidade de Coimbra, 2000, p. 06.
29 Ana Claudia N. Gomes, A Propriedade Jurídica e a propriedade Econômica no Trust, Mestrado em Ciências
Jurídicos Políticas, Universidade de Coimbra, 2000, p. 05.
30 MENNEL, R. L., Wills and Trusts in a Nutshell, St. Paul, Minnesota, West Publishing Company, 1994, p. 211-213,
apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, p. 46.
30 MENNEL, R. L., Wills and Trusts in a Nutshell, St. Paul, Minnesota, West Publishing Company, 1994, p. 211-213,
apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, p. 46.
206
faculdade de direito de bauru
esta situação lhe conferiria no direito clássico: gozar da coisa, sem qualquer limitação e com exclusividade. Isto porque a observância dos interesses econômicos do
beneficiário impõe ao trustee certos limites. Não obstante tal restrição, o administrador efetivamente se encontra numa legitima condição de proprietário, segundo o
qual pode, aliás, alienar a res em certas hipóteses, alertando-se para o fato de que a
medida que crescem seus poderes, aumentam seus deveres, bem como as sanções
que pode vir a sofrer no caso de violar a confiança depositada pelo settlor.
2.
FUNÇÕES GERAIS DO TRUST QUANTO AO BENEFICIÁRIO
Os Trusts podem ser classificados, quanto aos beneficiários, em Charitable
e em Private Trusts32. Essa classificação tem por objetivo sabermos quem são os
beneficiários do Trust, ou seja, determinar se são particulares ou de interesses
públicos.
Os Trusts Charitable ou Public Trusts, trata-se de Trusts que tem por fim satisfação de interesses públicos, que visam a beneficiar a comunidade em geral, por isso
gozam de diversos privilégios legais, recebem um tratamento especial, tanto do ponto de vista fiscal, como em relação a duração, pois estão isentos da Rule Against Perpetuites33. Denominam-se, de um lado, como Public Trusts, na medida em que visam
a que um seguimento significativo da comunidade possa deles se beneficiar e, de
outro, como Charitable, porque os seus objetivos se traduzem, muito freqüentemente, na prática da caridade34.
Complementam Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé e Diogo Leite de Campos35 que enquanto mecanismo de destinação do patrimônio à realização de interesses de ordem pública, o Trust constitui, tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos da América, uma alternativa à fundação e a Charitable Corporation.
Cristina González Beilfuss explica que as finalidades dos Charitable Trusts se
fixaram no Statute of Charitable Uses do ano de 1601, onde podem estabelecer Charitable Trusts para aliviar a pobreza, promover a religião ou a educação e para qualquer outro propósito afim e com o espírito desta Lei36.
31 SONNEVELDT, F., The Trust, edited by Frans Sonneveldt, Harrie L. V Mens, Deventer, Boston, Kluwer Law and
Taxatios Publishers, 1992, p. 4, apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, p. 47.
32 Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para
A Sua Consagração No Direito Português, 51.
33 Cristina González Beilfuss, El Trust- la instituición Anglo-americana y El derecho Internacional Espanol, p. 40.
34 HAWKINS, A . J., The Trust Like Device in English Law, in Trusts and Trust-Like Devices, edited by W. A. Wilson,
United Kingtom Comparative Law Series, Vol. 5, 1981, p. 4-5, apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português,
p. 52.
35 Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para
A Sua Consagração No Direito Português, p. 52.
36 Cristina González Beilfuss, El Trust- la instituición Anglo-americana y El derecho Internacional Espanol, p. 40.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
207
Existem alguns princípios gerais conforme explicam Diogo L. de Campos e
Maria João R. C. Vaz Tomé, onde primeiramente Charitable são as atividades que
não visam à obtenção de proveitos (a favor de uma pessoa). Mas não há objeção no
caso da Charity cobrar pelos seus serviços, um preço superior ao custo desde que
ela aplique essa diferença na realização dos fins da Charity. Em segundo lugar, deve
o Charitable Trust servir para beneficio público. Completam, ainda, que podem indicar-se os Charitable Trust, em termos grosseiros, a fins religiosos, educacionais,
de investigação médicas, hospitalares, proteção de animais, recreativos, de assistência aos indigentes, aos idosos, aos incapazes e aos desamparados, entre outros37.
Os Private Trusts são institutos constituídos para benefícios de pessoas que se
encontram, de algum modo, numa qualquer relação com o settlor e que, em último
recurso, são aquelas que têm legitimidade para os executar38.
No mesmo sentido, Daniel Freire e Almeida39:
Os private Trusts, na perspectiva do beneficiário, diferem dos Charitable, pois, naqueles (Private) os beneficiários são personas que
tem legitimidade para executar o settlor e com ele guardam alguma relação.
Existem aqui, limitações aos perpetual private trusts. O settlor procura,
por via de regra, preservar a pertinência dos bens ou direitos à sua família durante o máximo período de tempo possível. Para evitar a alienabilidade dos bens
ou direitos, o settlor estabelece a condição de o beneficiário não dispor dos mesmos sob pena de ter lugar a sua transmissão a terceiros determinados pelo próprio settlor40.
Aplicando o critério da “autonomia da vontade à constituição do Trust”, o Private Trusts divide-se em Express41, Constructive e Resulting42.
37 SHERIDAR, L. A, Public and Charitable Trusts, in Trusts and Trust-like Devices, edites by W. A. Wilson, United
Kingdom Comparative law Series, Vol. 05, 1981, p. 21-22, apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo
Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, p.
54.
38 Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para
A Sua Consagração No Direito Português, p. 56.
39 Daniel Freire e Almeida, Os Trusts – Securitization em Direito nos Estados Unidos da América: Coimbra: Working Paper, p. 07.
40 HAWKINS, A . J., The Trust Like Device in English Law, in Trusts and Trust-Like Devices, edited by W. A. Wilson,
United Kingdom Comparative Law Series, Vol. 5, 1981, p. 14, apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português,
p. 57.
41 Os Express Trusts podem ainda ser Executed ou Executory, Completeley Constituted e Incompletely Constituted.
42 MARTIN, J.E. HANBURY, H.,Modern Equity, London, Sweet & Maxwell Ltd., 1993, p. 67, apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, p. 56.
208
faculdade de direito de bauru
O Express é o mais difundido e utilizado, é aquele que resulta de um ato constitutivo voluntário do disponente, assim se trata de um Trust voluntariamente declarado como tal pelo settlor ou pelo testador43. Afirma-se a necessidade de “certeza”
de vontade, da res (bens ou direitos) e de beneficiários para sua constituição44. Resulting são intent-enforcing trusts, constituídos mediante inferências das jurisprudências da eqüidade em virtude de o legal title se encontrar na esfera jurídica de
uma pessoa e de o equitable title pertencer a outra45. Esse tipo de Trust tem lugar
quando não se verifica uma disposição completa e eficaz do equitable title. Nestas
situações, havendo transmissão do legal title para terceiro, o equitable title reverte
para o disponente46.
Conclui Daniel Freire e Almeida que se temos a vontade do settlor presumível, faltando-lhe o animus donandi e se promova à transmissão da Yes a título gratuito, temos um Resulting Trust47.
Os Constructive podem ser definidos como um remédio, imposto pela eqüidade, com vista a precludir a manutenção ou a afirmação da equitable ownership dos
bens ou direitos por parte das pessoas que, por razões especiais, devem ser tratados
como Express Trustees, na medida em que esta conservação ou afirmação da equitable
ownership seriam sempre contrárias a algum princípio da eqüidade48. Nos Estados Unidos, o conceito de Constructive Trust é considerado como um dos mecanismos em
que a jurisdição da eqüidade recorre para evitar o enriquecimento ilícito sem causa de
uma pessoa às expensas de outra49. Ao contrário do Express Trust que resulta da mani43 MARTIN, J.E., HANBURY, H., Modern Equity, London, Sweet & Maxwell Ltd., 1993, p. 68; CLARK,E., LUSKY,
L.MURPHY, A . W. ASCHER, M.L., MCCOUCH, G.M.P., Gratuitous Transfers, Wills, Instestate Sucession, Trusts,
Gifts, Future Interest and Estate and Gift taxation, cases and Materials, St. Paul, Minn., West Group, 1999, p.467
e ss, apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust),
Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, p. 56.
44 MARTIN, J.E., HANBURY, H.,Modern Equity, London, Sweet & Maxwell Ltd., 1993, p. 96-104, apud Maria João
Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, p. 57.
45 SONNEVELDT, F., The Trust – An Introduction, in The Trust, Bridge or Abyss between Commom and Civil Law
Jurisdictions?, editet by Frans Sonneveldt, Harrie L. V Mens, Deventer, Boston, Kluwer Law and Taxation Publishers, 1992,p. 8, apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, p. 59.
46 REUTLINGER, M., Wills, Trusts, and Estates, Essential Terms and Concepts, Boston, New York, Toronto, London, Little, Brown and Company, 1993, p. 70, apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, p. 59.
47 Daniel Freire e Almeida, Os Trusts – Securitization em Direito nos Estados Unidos da América: Universidade de
Coimbra: Working Paper, p. 07.
48 UNDERHILL, A. HAYTON, D.J., The law of Trusts, London, Butterworths, 1989, p. 28, apud Maria João Romão
Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, p. 62.
49 O recurso ao constructive trust enquanto remédio para o enriquecimento sem causa forneceu um meio para
o reconhecimento e valorização do trabalho doméstico prestado no seio familiar. A importância do estabelecimento de um trust funciona como remédio patrimonial idôneo para compensar essas atribuições. Ziff, b., Principles of Property Law, Toronto, Carswell, 1993, p.164, apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, p. 65.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
209
festação de vontade, o Constructive Trust deriva automaticamente da lei. Os deveres
do constructive trustee não foram ainda claramente definidos50.
Ainda há outras classificações dos Trusts, nomeadamente: Legal, Illegal, Passive,
Active, Testamentary, Inter vivos, Revocable, Unfunded Life Insurance, Land, Massachusetts Business, Illinois land, Unit, Totten, Farkas V. Williams e Family Trust51.
Nesta sede, consideremos sumariamente alguns deles, tendo em vista suas
funções principais.
Massachusetts Business e Illinois Land Trusts, utilizado nos Estados
Unidos da América, o Massachusetts Business Trust52 é uma mera extensão do
conceito do instituto ao domínio das organizações comerciais, sendo que, muitos dos fundos comuns de investimentos são organizados como Massachusetts
BusinessTrusts53. O Illinois Land Trusts é apenas utilizado em vista à conversão
de bens imóveis em móveis, sendo possível, aqui, converter mediante a colocação dos primeiros em Trust, e a imposição ao trustee de um dever de vender a
terra54.
Os Unit Trusts são constituídos pelas pessoas que pretendem desenvolver
uma atividade de investimento através do recurso ao aforro público. O trustee é um
perito em investimentos financeiros. O beneficiário é, inicialmente, o promotor, o
qual divide a sua posição eqüitativa em unidades que coloca junto do público através de uma rede de distribuição. Os montantes pecuniários pagos pela aquisição de
unidades pertencem ao trustee, incrementando assim o trust fund. Os valores adquiridos pelo Trust são depositados numa instituição de crédito, que age também
como trustee, como custodian trustee55.
50 MARTIN, J.E., HANBURY, H.,Modern Equity, London, Sweet & Maxwell Ltd., 1993, p. 293-294, apud Maria João
Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, p. 67.
51 Daniel Freire e Almeida, Os Trusts – Securitization em Direito nos Estados Unidos da América: Coimbra: Working Paper, p. 07.
52 Eles estabelecem por via de regra que nem os trustees nem os beneficiários são pessoalmente responsáveis pelas obrigações decorrentes dos negócios celebrados, de um lado, e de outro que os credores podem satisfazer
os seus créditos e expensas dos bens ou direitos constituídos do business trust mediante propositura de uma
ação judicial contra o trustee. Cfr. FRATCHER, F., Trusts in the United States of America (excludes the State of
Louisiana and the Commonwealth of Puerto Rico), in Trusts and Trust-Like Devices, edited by W. A. Wilson,
United Kingtom Comparative Law Series, Vol. 5, 1981, p. 56-57, HENN, H. G., ALEXANDER, J. R., Laws of Corporations, St. Paul, Mennesota, West Publishing Co., 1983, p. 117, apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé;
Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, p. 87.
53 MENNEL, R.L., Wills and Trusts in a Nutshell, St. Paul, Minnesota, West Publishing Company, 1994, p. 256,
apud, Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, p. 85.
54 MENNEL, R.L., Wills and Trusts in a Nutshell, St. Paul, Minnesota, West Publishing Company, 1994, p. 256-257,
apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, p. 88.
55 LUPOI, M., Introduzione ai Trusts, Milano, Giufrrè, 1994, p. 67, apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé;
Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, p. 88.
210
faculdade de direito de bauru
O Totten Trust são Trusts aparentes. Ele oferece um meio de um sucessor em um
determinado bem (depósito a prazo) sem a preocupação, a despesas e formalidades
implicadas pela elaboração de um testamento. Trata-se de um substituto do testamento, mas suscita, contudo, problemas de validade. O depositante, em um depósito a prazo, elabora um documento, que fica na guarda de banco, em que se constitui trustee
daquela conta em beneficio de outra pessoa. Aquele conserva o todo destinado ao registro dos movimentos da conta e, em geral, não pratica qualquer outro ato indicador
da intenção de criar o Trust. Estes Trusts presumem-se revogáveis. Os fundos encontram-se à disposição dos credores do depositante após a sua morte56.
No estabelecimento do family trusts, a motivação fundamental subjacente,
traduz-se na pretensão de conservar o patrimônio da família. Ao lado desta, verificase também o desejo do settlor de designar as pessoas que, à sua morte, se beneficiarão do seu patrimônio. Por último, a constituição do Trust pode resultar da ausência da identificação precisa dessas pessoas57.
3.
FUNÇÕES DO TRUST
A principal função do Trust é a de permitir que, por força da transmissão de
titularidade dos bens ou direitos para um sujeito (o trustee), por ato inter vivos ou
mortis causa, o adquirente se torne titular no direito e fique, ao mesmo tempo,
obrigado a administrar os bens e direitos em proveito dos sujeitos designados como
beneficiários (ou cestui que Trust), a quem o setllor pretende conferir, simultânea
ou sucessivamente, os direitos sobre os frutos da administração que, em todo caso,
são protegidos em eqüidade.
Independentemente de sua constituição ter lugar por ato inter vivos ou causa mortis, o propósito do Trust traduz-se sempre na transferência da titularidade
dos bens ou direitos para o trustee, para que este os administre durante um dado
período de tempo em benefício de terceiros58.
Na verdade, cria-se um Trust quando o titular dos direitos ou dos bens pretende separar os benefícios dos ônus da titularidade, repartindo-os entre diferentes sujeitos, pressupondo sempre a existência de uma res59.
56 MENNEL, R.L., Wills and Trusts in a Nutshell, St. Paul, Minnesota, West Publishing Company, 1994, p. 258-259,
apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, p. 88.
57 HAWKINS, A . J., The Trust Like Device in English Law, in Trusts and Trust-Like Devices, edited by W. A. Wilson,
United Kingtom Comparative Law Series, Vol. 5, 1981, p. 3-4, apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português,
p. 94.
58 Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos et al, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, 1999, p. 32.
59 MENNELL, R.L., Wills and Trusts in a Nutshell, cit., 172-173, apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo
Leite de Campos et al.,A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português,
1999, p.33.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
211
As suas características especiais, ou seja, a separação da titularidade e administração dos bens ou direitos em beneficio de terceiros, permite separar a administração dos bens do seu gozo, assim como facilitar a divisão da titularidade dos bens entre diversos titulares simultâneos ou sucessivos.
Deste modo, como a imposição de obrigações fiduciárias para proteger o beneficiário, tornaram o Trust um instrumento particularmente idôneo para atingir
uma ampla variedade de objetivos individuais e sociais60.
Pari passu, pode-se concluir a flexibilidade deste instituto como bem define
Beilfuss (1997), in verbis:
En el caso del trust, trustee y beneficiary son titulares de faculdades distintas sobre unos miesmos bienes: el trustee tiene el derecho
y la obligación de administrar y disponer del bien y el beneficiary
tiene ciertas faculdades de goce y disfrute. La posición de uno y
otro depende de lo que establezca el instrumento del Trust. Tanto
los intereses del beneficiary como los del trustee guardan, no obstante, relación con la propriedad, tal y como se entiende en los sistemas de derecho civil, y no constituyen iura in re aliena como
nuestros derechos reales61.
3.1. Vasto campo de aplicação do Trust
Nesta altura, depois de compreendida a estrutura interna e externa do Trust e
os instrumentos que o protegem, passaremos agora a pensar no seu extenso campo de aplicação, desde já esclarecendo, que não serão aqui explanadas todas as possibilidades de recurso ao Trust, pois em termos materiais, não há como exaurir o seu
plano de incidência.
As potencialidades do Trust moderno praticado nos Estados Unidos da América permitem a descoberta constante de novas utilizações.
Dessa forma, Ana Cláudia Nascimento Gomes62, explica que, não sendo o Trust
um fim em si mesmo, mas um meio de se alcançar objetivos, depreende-se ser prestável para inúmeras e inimagináveis finalidades: quer públicass, quer privadas.
Nos Estados Unidos da América, recorre-se ao Trust, fundamentalmente, para
proteger o beneficiário, facilitar a gestão do patrimônio dos incapazes - pois não é
necessária supervisão judicial - e a administração em beneficio de diversos destina60 DE WULF, The Trust d Corresponding Institution in Civil Law, Bruxelles, Bruylant, 1965; apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos et al, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua
Consagração No Direito Português, 1999, p. 34.
61 Cristina González Beilfuss, El Trust- la instituición Anglo-americana y El derecho Internacional Español, p. 22.
62 A Propriedade Jurídica e a propriedade Econômica no Trust, Mestrado em Ciências Jurídicos Políticas, Universidade de Coimbra, 2000, p. 12.
212
faculdade de direito de bauru
tários, preservar o patrimônio para beneficiários sucessivos, atribuir os benefícios de
acordo com as circunstâncias, para substituir o testamento por Trusts revogáveis e
para realizar economias fiscais.
Enfim, pode-se concluir a flexibilidade deste instituto, sua multiplicidade de
funções como bem definem Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé e Diogo Leite de
Campos63:
O trust é pois usado para a realização de uma multiplicidade de
fins, sendo considerado como o instituto anglo-americano mais
flexível em virtude de ser susceptível de desempenhar um papel em
quase todas as esferas da vida.
No mesmo sentido, Cristina González Beilfuss64:
(...) em el Derecho angloamericano el trust es uma istitución universal que se utiliza en multiplos contextos y para las más diversas
finalidades.
Neste passo, Daniel Freire e Almeida ressalta o papel crescente que desempenham os departamentos de Trusts dos bancos e companhias de seguros norte-americanas, bem como das companhias gestoras de Trusts. Lembrando que estas entidades administram eficientemente os patrimônios de terceiros que preferem um profissional que realize esta função65.
Vimos que o instituto do Trust é suficientemente flexível para acompanhar as
exigências hodiernas, notadamente no que diz respeito à habilidade para se proceder a uma ágil circulação de riquezas.
O Trust é um mecanismo extremamente seguro para investimentos de capitais no mercado financeiro (através de titularização de créditos, da gestão de
depósitos ou da administração de valores), campo onde tem merecido todas as
atenções.
O imensurável potencial de utilizações do Trust decorre da própria visão bipartida da propriedade, sobre a qual se sustenta. Com efeito, encontrando-se o núcleo do Trust marcado pelo dinamismo e pela elasticidade, é conseqüência lógica
que tais características também o iriam afetar externamente, transformando-o numa
estrutura adaptável a uma multiplicidade de circunstâncias66.
63 A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, 1999, p. 32.
64 El Trust- la instituición Anglo-americana y El derecho Internacional Espanol, p. 42.
65 Os Trusts – Securitization em Direito nos Estados Unidos da América: Universidade de Coimbra: Working Paper, p. 08.
66 Ana Cláudia Nascimento Gomes, A Propriedade Jurídica e a propriedade Econômica no Trust, Mestrado em
Ciências Jurídicos Políticas, Universidade de Coimbra, 2000, p. 12.
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n.
42
213
Já vimos anteriormente, relativamente à classificação e a descrição dos tipos
de Trusts, que os interesses desses são flexíveis e adaptáveis a todas as necessidades.
Cristina González Beilfuss não considera útil uma classificação, porque acredita que a classificação proporciona uma imagem estática e, portanto, falsa do Trust,
visto, que o Trust, pode ter como objeto múltiplas combinações e funções em razão
da imaginação e necessidades dos aplicadores do direito67. Mas considera interessante descrever algumas formas e finalidades de se utilizá-lo.
Veremos, pois, alguns exemplos, demonstrando que cada tipo corresponde
uma ou mais finalidades, por vezes um número indefinido, de acordo com as necessidades da vida.
3.1.1. Direito Bancário e Direito Financeiro
O Trust tem particular interesse, no país norte-americano, em direito bancário
e financeiro.
Assim, os Trusts podem servir de instrumento de titularização de créditos (securitisation), de administração de carteiras de valores, tendo em conta os valores
mobiliários escriturais que não se representam em títulos e de patrimônios por instituições financeiras, de gestão de depósitos, entre outros68.
Diversos ordenamentos jurídicos de base romanista introduziram o Trust, ou
pretendem fazê-lo, dado o seu interesse no campo do direito financeiro. Outros ordenamentos jurídicos de base romanista receberam o Trust, sobretudo para satisfazer necessidades do sistema financeiro, evitando, deste modo, a deslocalização dos
contratos bancários e da administração de bens69.
Muitos bancos de diversos Estados que não conhecem o Trust utilizam-no nos
países que o conhecem.
3.1.2. Titularização de Créditos (securitisaton)
A titularização de créditos consiste, grosso modo, em vincular valores mobiliários
a direitos de crédito determinados. Assim, titularizar um crédito será representá-lo por
um título ou valor mobiliário facilmente negociável no mercado, sendo a titularização
um procedimento de distribuição de riscos mediante a agregação de instrumentos de
dívida num conjunto e a emissão de um novo valor representativo desse conjunto70.
67 Cristina González Beilfuss, El Trust- la instituición Anglo-americana y El derecho Internacional Espanol, p. 43.
68 Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para
A Sua Consagração No Direito Português, p. 308.
69 Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para
A Sua Consagração No Direito Português, p. 308.
70 SCOTT, H. S., S, P. A., International Finance, Transactions, Policy, and Regulation, Westbury, New York, The
Foundation Press, Inc., 1995, p. 663, apud Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A
Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português, p. 308.
214
faculdade de direito de bauru
Desta forma, Daniel Freire e Almeida define Securitization como sendo a conversão de créditos em títulos colocáveis no mercado71.
A Titularização de Crédito tem sido feita por diversas vias; contudo, os Trusts
oferecem a vantagem da sua rápida e pouco onerosa constituição sendo, por isso,
as vias mais utilizadas nos países anglo-saxônicos. Além de poderem constituir facilmente carteiras de créditos diferenciadas, quanto ao rendimento, prazos e garantias,
são um instrumento adequado para proceder à transformação dos créditos em valores mobiliários, superando as dificuldades postas por diversos direitos romanistas,
nomeadamente pelo Direito Francês72.
3.1.3. Administração de Bens
Também pode a instituição financeira adquirir a titularidade fiduciária (e não
apenas a legitimação) de um a carteira de valores, de outros bens e, eventualmente,
de imóveis, com o fim de os administrar nos termos do ato constitutivo do Trust73.
3.1.4. Proteção da Família
O principal motivo da criação de Trusts neste âmbito está no desejo do settlor
de colocar o patrimônio da família ao abrigo de contingências, para o próprio beneficio daquela. O patrimônio da família é constituído por participações em sociedades, quintas (no caso Português) e outros imóveis. Tais bens são colocados sob administração de outrem, para preservar a sua unidade, garantir uma correta administração ou prevenir sua dissipação74.
Este Trust está relacionado com a atribuição e distribuição de riquezas tanto
inter vivos como causa mortis.
Temos, como exemplo, uma pessoa que decide em determinado momento de
sua vida constituir um Trust designando a si mesma como beneficiária dos rendimentos anuais do capital transferido e que no mesmo instrumento disponha que,
após o seu falecimento, este capital fique para a viúva ou viúvo, e que com o falecimento, deste passe para os filhos75.
71 Daniel Freire e Almeida, Os Trusts – Securitization em Direito nos Estados Unidos da América: Universidade de
Coimbra,Working Paper, p. 11.
72 Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para
A Sua Consagração No Direito Português, p. 311.
73 Ibid, página 312.
74 Maria João Romão Carneiro Vaz Tomé; Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo Para
A Sua Consagração No Direito Português, p. 314.
75 Cristina González Beilfuss, El Trust- la instituición Anglo-americana y El derecho Internacional Espanol, p. 43.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
215
3.1.5. Destinação dos Bens Mortis Causa
O outro motivo reside na intenção do settlor de destinar os seus bens para depois da sua morte76.
Exemplifica Cristina González Beilfuss, que em uma família, usualmente o pai
ou a mãe podem constituir um Trust em favor de um membro da família que possua problemas físicos ou mentais, a fim de que após a morte do settlor (pai ou mãe),
este possa continuar recebendo o suficiente para as suas necessidades77.
Concluindo, as possibilidades são infinitas e não há praticamente desejo do
settlor que não possa se atendido.
3.1.6. Pensão
Os Trusts podem também operar como fundo de pensão. Este surge como
conseqüência de um acordo entre empregado e empregador que acorda destinar
parte de seu salário a um Trust, fazendo então pagamentos periódicos pelos próprios trabalhadores. Assim, os trustees se encarregam de rentabilizar esses capitais
mediante uma política de investimentos adequados e depois distribuem esses rendimentos aos trabalhadores e suas famílias em forma de pensão, invalidez, enfermidade, viuvez ou orfandade78.
Completa Cristina González Beilfuss que o Trust aqui funciona como uma alternativa e como complemento ao sistema público de proteção social e recebe, por
isso, um tratamento especial com respeito à rule against perpetuities assim como
do ponto de vista fiscal79.
3.1.7. O Trust como Garantia Real
No direito anglo-americano, o Trust se utiliza também como garantia real nas
transações comerciais.
Freqüentemente, um comprador devedor transfere a propriedade de um
determinado bem a um trustee que, em caso de insolvência ou de descumprimento de uma das condições fixadas contratualmente, deve remanejar dito bem
e transferir determinadas quantias ao credor e o remanescente se for o caso, ao
constituinte80.
76
77
78
79
80
Intenção muitas vezes combinada com a necessidade de proteger a família.
Cristina González Beilfuss, El Trust- la instituición Anglo-americana y El derecho Internacional Espanol, p. 44.
Cristina González Beilfuss, El Trust- la instituición Anglo-americana y El derecho Internacional Espanol, p. 48.
Ibid, Idem.
Cristina González Beilfuss, El Trust- la instituición Anglo-americana y El derecho Internacional Espanol, p. 52.
216
faculdade de direito de bauru
CONCLUSÃO
Neste nosso trabalho, pudemos verificar que o instituto do Trust trata-se de
um importante instrumento de administração de bens de natureza financeira. De
fato, o Trust moderno praticado nos Estados Unidos da América respeita a portfólios
de complexos conjuntos de bens de natureza financeira que, na esmagadora maioria dos casos, se traduzem, em último recurso, em direitos obrigacionais perante os
respectivos emitentes.
Essas carteiras de valores exigem, naturalmente, uma administração dinâmica
e especializada. As modernas modalidades da riqueza permitem ao settlor atribuir
ao trustee um leque maior de opções nas cláusulas dispositivas do ato constitutivo
do Trust. Ao Trust atual, é consentida uma maior flexibilidade na acumulação, distribuição ou dispêndio dos fundos constituídos em Trust em prol dos beneficiários.
Conseqüentemente, o esquema tradicionalmente adotado para a redução de poderes do trustee tornou-se obsoleto.
Trata-se da era da discricionariedade. O trustee moderno dirige, dinamicamente, um programa de administração de bens que exige a titularidade de amplos
poderes discricionários com vista a responder às rápidas alterações do mercado.
Entretanto, evidenciamos, através de nossos estudos e escritos que, para o
Trust atingir um desenrolar satisfatório, o trustee deve adotar as diretrizes específicas estabelecidas pelo settlor no ato constitutivo. Procura-se uma solução susceptível de harmonizar os diversos interesses dos beneficiários sucessivos do rendimento e do capital.
Como vimos, não obstante existirem ainda muitos trustees individuais, o paradigma do trustee atual é aquele do profissional remunerado, cuja atividade consiste
em constituir e cumprir Trusts.
Enquanto a redução tradicional dos poderes do trustee o impedia de agir, no
direito moderno praticado nos Estados Unidos da América, os poderes são amplos
e discricionários para a administração do Trust.
O Trust moderno desempenha uma multiplicidade de funções e as suas potencialidades permitem a descoberta constante de novas utilizações.
Assim, percebemos que as prerrogativas do trustee são todas as possíveis e
imagináveis para a perfeita execução do instittuto, tornando a coisa economicamente produtiva.
Contudo, verificamos que os principais deveres do trustee traduzem-se na
conservação do controle dos bens ou direitos, na administração honesta do Trust a
favor dos beneficiários, em assegurar a adequação dos investimentos dos seus, na
manutenção de um equilíbrio idôneo entre os beneficiários atuais e futuros, na contabilidade organizada, na apresentação desta aos beneficiários que a solicitem, na
distribuição correta dos benefícios tendo em vista as respectivas quotas dos beneficiários, em não retirar qualquer proveito pessoal da administração do Trust (poden-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
217
do, contudo, o pagamento dos honorários ser autorizado no seu ato constitutivo),
e na ponderação sobre o exercício dos seus poderes e no seu exercício honesto.
Enfim, esse leque de obrigações, nos levou a concluir que o trustee deve agir
como se visasse para si todas as vantagens econômicas, sendo, contudo, tão cauteloso como se cuidasse de um patrimônio público.
De forma primordial, evidenciamos que a principal função do Trust é a de permitir que, por força da transmissão de titularidade dos bens ou direitos para um sujeito (o trustee), por ato inter vivos ou mortis causa, o adquirente se torne titular
no direito e fique, ao mesmo tempo, obrigado a administrar os bens e direitos em
proveito dos sujeitos designados como beneficiários (ou cestui que Trust), a quem
o setllor pretende conferir, simultânea ou sucessivamente, os direitos sobre os frutos da administração que, em todo caso, são protegidos em eqüidade.
Deste modo, com a imposição de obrigações fiduciárias para proteger o beneficiário, o Trust é um instrumento particularmente idôneo para atingir uma ampla
variedade de objetivos individuais e sociais.
Nos Estados Unidos da América, como pudemos verificar, recorre-se a esse
institutot, fundamentalmente, para proteger o beneficiário, facilitar a gestão do patrimônio dos incapazes - pois não é necessária supervisão judicial - e a administração em beneficio de diversos destinatários, preservar o patrimônio para beneficiários sucessivos, atribuir os benefícios de acordo com as circunstâncias, para substituir o testamento por Trusts revogáveis e para realizar economias fiscais.
Neste mesmo sentido, ressalta-se, o que concluímos, sobre o papel crescente
que desempenham os departamentos de Trusts dos bancos e companhias de seguros norte-americanas, bem como das companhias gestoras. Lembrando, o que vimos, que estas entidades administram eficientemente os patrimônios de terceiros
que preferem um profissional que realize esta função.
Portanto, vimos que o instituto do Trust é suficientemente flexível para acompanhar as exigências hodiernas, notadamente no que diz respeito à habilidade para
se proceder a uma ágil circulação de riquezas.
Pudemos concluir que é um mecanismo extremamente seguro para investimentos de capitais no mercado financeiro, através de titularização de créditos, da
gestão de depósitos ou da administração de valores, campo que tem merecido todas as atenções.
O imensurável potencial de utilizações do Trust decorre da própria visão bipartida da propriedade, sobre a qual se sustenta. Com efeito, encontrando-se o seu núcleo
marcado pelo dinamismo e pela elasticidade, é conseqüência lógica que tais características também o iriam afetar externamente, transformando-o numa estrutura adaptável a
uma multiplicidade de circunstâncias. Assim, os Trusts podem servir de instrumento de
titularização de créditos (securitisation), de administração de carteiras de valores, tendo em conta os valores mobiliários escriturais que não se representam em títulos e de
patrimônios por instituições financeiras, de gestão de depósitos, entre outros.
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faculdade de direito de bauru
Diversos ordenamentos jurídicos de base romanista introduziram o Trust, ou
pretendem fazê-lo, dado o seu interesse no campo do direito financeiro. Outros ordenamentos jurídicos de base romanista receberam-no, sobretudo para satisfazer
necessidades do sistema financeiro, evitando deste modo, a deslocalização dos contratos bancários e da administração de bens.
Portanto, o sucesso dos Trusts nos Estados Unidos da América revela-nos
como exemplo a ser adotado e adaptado, o quanto antes, pelos sistemas jurídicos
da civil law, como é o caso do Direito Brasileiro.
REFERÊNCIAS
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DULTRA DE ALMEIDA, Wesley Patryck Dultra de Almeida. Common Law e Civil Law: um
breve estudo comparativo. Bacharelado de Direito. Bauru: Instituição Toledo de Ensino,
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FREIRE E ALMEIDA, Daniel. Os Trusts: Securitization em Direito nos Estados Unidos da
América. Coimbra: Universidade de Coimbra: Working Paper, 2000.
________ . Os Trusts- Securitization em direito nos Estados Unidos da América. Revista
do Instituto de Pesquisas e Estudos-Divisão Jurídica, nº 31 de Abril a Julho de 2001, Instituição Toledo de Ensino-Faculdade de Direito de Bauru-Bauru/SP.
NASCIMENTO GOMES, Ana Claudia. A Propriedade Jurídica e a Propriedade Econômica
do Trusts. Dissertação de Mestrado. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2000.
VAZ TOMÉ, Maria João Romão Carneiro; LEITE DE CAMPOS, Diogo. A Propriedade Fiduciária (Trust): Estudo Para A Sua Consagração No Direito Português. Coimbra: Almedina,
1999.
Mérito administrativo e controle judicial da
aplicação de conceitos indeterminados no
direito brasileiro
Gerson dos Santos Sicca
Procurador Federal.
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.
1.
INTRODUÇÃO
O controle da atividade administrativa suscita problemas advindos, em grande parte, nos países de jurisdição única, em que o Poder Judiciário tem competência para revisar os atos da Administração Pública, da concreta aplicação do princípio
da separação dos poderes. O núcleo da polêmica reside, indubitavelmente, da perene dúvida sobre a existência e a extensão do espaço de liberdade do administrador.
A solução ostentada pela doutrina e jurisprudência apresentou, em um primeiro momento, a discricionariedade como conceito-chave para a delimitação da
esfera imune de controle. E o dogma da Revolução Francesa de supremacia da vontade geral cristalizada na lei retirava o interesse da discussão sobre a possibilidade
de exercício ilegítimo do poder, especialmente pelo fato de que, sendo a obra do
Parlamento essencialmente justa, não haveria razão para se indagar sobre eventuais
excessos. Nas palavras de Maria da Glória Ferreira Pinto Garcia1, ao analisar a compreensão da atividade legislativa e executiva no modelo francês,
1
GARCIA, Maria da Glória Ferreira Pinto Dias Garcia. Da Justiça Administrativa em Portugal. Lisboa: Universidade Católica Editora, 1994. p. 493.
220
faculdade de direito de bauru
Livre por definição, o legislativo, assente no Parlamento, emana
leis gerais e abstratas, em si mesmas justas; por seu turno, o executivo, dirigido à salvaguarda das leis, vê-se, por força mesmo dessa
acção, incapaz de as violar. É que sendo livre na salvaguarda das
leis, a sua acção desenvolve-se fora do direito, num mundo onde
a justiça do poder se não coloca.
A crença inicial, de que à Administração impunha-se tão-somente a dimensão
garantidora de respeito aos limites que a esfera de direitos dos cidadãos fixava, sendo que toda o restante de sua atividade era compreendida como espaço livre de
atuação, discricionário por excelência e, por conseqüência, fora do mundo do direito, foi mitigada pela atividade judicante do Conselho de Estado Francês, principal
responsável pela autonomia do direito administrativo, ao qual conferiu racionalidade e conceitos próprios. Com o tempo, a discricionariedade deixou de ser caracterizada como um fenômeno estranho ao direito, evolução acentuada com a tendência à ampliação da juridicidade a praticamente toda atividade administrativa, implementada pela doutrina desenvolvida sob a égide do Estado Social, como uma forma
de reação ao aumento do poder da Administração.
Há, pois, um esforço da dogmática jurídico-administrativa, no sentido de consagrar limites significativos à discricionariedade. No entanto, a vinculação da discricionariedade a determinados cânones não pôs termo às seguintes indagações: afinal, onde
reside a discricionariedade? E até que ponto esta categoria demarca um âmbito de livre
de atuação do administrador, com a conseqüente redução do controle?
Nas normas em que o legislador expressamente confere liberdade para o agente
público definir quando e como atuar, a visualização deste campo de livre ação torna-se
menos complexa2, ainda que haja, para alguns autores, a possibilidade de se vislumbrar
a “redução da discricionariedade a zero” em específicas situações. Todavia, em normas
destituídas de elementos seguros para uma interpretação com alto grau de certeza, em
razão da inserção no preceito, pelo legislador, de conceitos indeterminados, surge o
questionamento sobre se a existência destes revela a discricionariedade.
Em linhas gerais, a discricionariedade pode ser conceituada como a liberdade
garantida ao administrador para definir o conteúdo de sua atuação e o momento
para tanto, caracterização que não afasta, sem dúvida, as inúmeras variantes que demonstram a insuficiência desta afirmação preliminar para extirpar do direito administrativo todas as dúvidas sobre a tormentosa questão. Subsistem, contudo, questões como a identificação de quais sejam os elementos vinculados do chamado “ato
2
Não obstante a dificuldade de identificar-se o limite da liberdade que pode ser conferida pelo legislador ao administrador, ou seja, quais elementos devem ser necessariamente definidos por lei e em que ponto pode ser
estabelecida uma prerrogativa de ponderação para o agente público aplicador da norma, sem prejuízo do princípio da legalidade e da proteção efetiva dos direitos fundamentais.
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42
221
discricionário”, bem como se a discricionariedade é conferida expressamente por
lei, ou se há alguma outra de forma de surgimento da mesma.3
Os conceitos indeterminados, por seu turno, são conceitos “cujo conteúdo e
extensão são, em larga medida, incertos”,4 e colocam o operador do direito perante
dúvidas praticamente insolúveis com a utilização dos métodos tradicionais da hermenêutica jurídica. São conceitos como “interesse público”, “urgência”, “necessidade”, “conduta incompatível com o cargo” e “relevância”, entre tantos outros.
A essência da polêmica está em saber se os conceitos indeterminados, pura e
simplesmente, geram discricionariedade, ou se não há nenhuma relação entre as
duas categorias, de forma que a indeterminação conceitual não conceda ao administrador qualquer liberdade na edição do ato administrativo. Afora isso, é de se indagar sobre o alcance do controle da ação administrativa fundada em normas cujo
enunciado contenham conceitos indeterminados. António Francisco de Souza5 sintetiza o problema em três indagações:
1- Será o problema dos conceitos indeterminados o mesmo da discricionariedade? Ou seja, será que toda discricionariedade está
sempre relacionada com os conceitos indeterminados? 2- Em caso
negativo, será que o uso de certos conceitos indeterminados atribui discricionariedade? 3- Será que os conceitos indeterminados,
em si mesmos, nada têm a ver com a discricionariedade, não se
excluindo, no entanto, a hipótese do legislador se poder servir deles como meio para atribuir a discricionariedade?
No direito brasileiro, historicamente, o “mérito administrativo” demarca a
zona de exclusão do controle dos atos da Administração Pública, embora haja uma
tendência à ampliação das modalidades de verificação da legitimidade dos atos do
Poder Público. Neste contexto, é pertinente o estudo da natureza do poder conferido aos agentes administrativos por normas dotadas de conceitos indeterminados, e
a forma como o Judiciário analisa a compatibilidade da atuação com o ordenamento jurídico. Deve-se assinalar, contudo, que a discricionariedade é um tema recorrente do direito público, sendo constante desafio para a racionalização do exercício
3
4
5
Há autores que entendem a discricionariedade como “a margem de livre decisão nos programas condicionais
que resulta da insuficiência ou incompleição decisória da norma que habilita à decisão”, sendo que “A abertura da norma pode compreender, ou pode, inclusive, resultar, exclusivamente, de remissões, expressas ou meramente implícitas, para conhecimentos técnicos especializados de tipo científico”. DUARTE, David. Procedimentalização, participação e fundamentação: para uma concretização do princípio da imparcialidade
administrativa como parâmetro decisório. Coimbra: Almedina, 1996. p.358 e 360. Nesse contexto, os conceitos indeterminados apresentam-se como uma modalidade de atribuição de discricionariedade (Ibid., p. 362),
tese que encontra ressonância na doutrina brasileira, como se verificará adiante.
ENGISH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico, p. 208.
SOUZA, António Francisco de. Conceitos indeterminados no Direito Administrativo. Coimbra: Almedina,
1994. p. 20-21.
222
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do poder estatal, bem como para a preservação dos direitos dos cidadãos e das prerrogativas da Administração Pública.
Na doutrina pátria, entretanto, a demarcação dos limites do controle jurisdicional não se deu em virtude da reflexão sobre as limitações de sentido das
normas de direito administrativo, conforme se verificará adiante. Tanto os estudiosos quanto a jurisprudência trilharam outros caminhos, que merecem uma
abordagem específica.
Pretende-se, neste texto, situar a questão sobre a natureza do poder atribuído
ao administrador por meio dos conceitos indeterminados se vinculado ou discricionário-, tendo em conta o pensamento predominante ao longo do século XX no Brasil, bem como desvendar-se as razões que impediram o desenvolvimento da chamada tese do controle total (ou técnica dos conceitos indeterminados).
O trabalho, portanto, não enfoca as novas divergências sobre a caracterização
da discricionariedade administrativa, e a tendência à aceitação dos princípios como
eficientes mecanismos de controle, tema que demandaria apreciação específica. O
objetivo, neste momento, é tão-somente a elucidação dos pressupostos teóricos da
doutrina tradicional, em um enfoque crítico.
2.
A ORIENTAÇÃO TRADICIONAL E O MÉRITO ADMINISTRATIVO
Predomina na doutrina brasileira o entendimento de que a inserção, pelo
legislador, de conceitos indeterminados na estrutura do preceito jurídico, confere ao administrador um autêntico poder discricionário, semelhante àquele
atribuído por meio de remissão expressa do texto legal (quando este estabelece
que o agente público é quem definirá o quando e o como atuar). A vagueza das
expressões exigiria uma valoração que escaparia à esfera da vinculação, razão
pela qual se conclui que a tese adotada tradicionalmente em nosso direito é a
que estabelece uma relação próxima entre conceitos indeterminados e discricionariedade.
Esta conclusão, entretanto, deve ser vista com cuidados. Os estudos patrocinados por grande parte de nossos autores, salvo nos últimos tempos, não focam diretamente a questão da univocidade ou plurivocidade dos conceitos indeterminados, como o fizeram as doutrinas germânica e espanhola. No Brasil, a relação entre discricionariedade e vinculação foi compreendida, principalmente
na caracterização dos elementos do ato administrativo e a identificação dos momentos em que a liberdade do administrador restaria configurada, sendo predominante o entendimento de que a forma, a competência, e a finalidade do ato,
sempre são elementos vinculados. Por tal motivo, não se reproduz nos estudos
pátrios a acirrada polêmica estabelecida, por exemplo, na Espanha, onde os doutrinadores dividem-se entre os defensores da maximização ou da minimização
do controle da Administração Pública, divergência capitalizada por interpreta-
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n.
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223
ções discordantes dos fundamentos jurídico-constitucionais do controle dos
atos administrativos.6
No Brasil, de acordo com o entendimento tradicional, a conseqüência decorrente da aceitação, ainda que implícita, dos conceitos indeterminados como forma
de atribuição da discricionariedade, é a limitação do controle aos aspectos vinculados do ato (competência e forma), e ao desvio de finalidade, sendo o fim, da mesma forma, considerado elemento vinculado do ato administrativo. A discricionariedade, por sua vez, reside no chamado mérito administrativo. Este “consubstancia-se,
portanto, na valoração dos motivos e na escolha do objeto do ato, feitas pela Administração incumbida de sua prática, quando autorizada a decidir sobre a conveniência, oportunidade e justiça do ato a realizar”.7 Nas palavras de Seabra Fagundes,
Pressupondo o mérito do ato administrativo a possibilidade de opção, por parte do administrador, no que respeita ao sentido do atoque poderá inspirar-se em diferentes razões de sorte a ter lugar
num momento ou noutro, como poderá apresentar-se com este ou
aquele objetivo - constitui fator apenas pertinente aos atos discricionários.
Onde se trate de competência vinculada, sendo a atividade do administrador adstrita a um motivo único, predeterminado, cuja
ocorrência material lhe cabe tão-somente constatar, e devendo ter
o procedimento administrativo por objeto de uma certa e determinada medida, expressamente prevista pela lei, não há cogitar do
mérito como um dos fatores integrantes do ato administrativo. Este
se apresenta simplificado pela ausência de tal fator”.8
Por tais razões, a chamada “conveniência e oportunidade” traduz o denominado “mérito”, insindicável pelo Poder Judiciário, salvo na existência de manifesto desvio de poder. A expressão “mérito”, emprestada da doutrina italiana, consagrada pelos tratados de direito administrativo pátrios, e correntemente utilizada na jurisprudência, adotada para evidenciar o espaço de liberdade (conveniência e oportunidade) reservado ao administrador, teve, já no início da República, seu sentido propiciado pela legislação, nos termos dispostos pelo art. 13, §9º, “a”, da Lei nº 221, de
20 de novembro de 1894:
6
7
8
A defesa da ampliação do controle é defendida, entre outros, por Tomás-Ramón Fernández Rodríguez. Este autor explicita a importância dos argumentos dogmático–constitucionais para o incremento da sindicabilidade,
sendo que o método para permitir que o Direito Administrativo impeça a arbitrariedade somente pode ser a
sua refundação sobre os fundamentos que a Constituição fornece. (in “De La Arbitrariedad de la Administración”. 2Ed. Madrid: Civitas, 1997. p. 97.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro..23Ed. São Paulo: Malheiros1998. p. 136.
FAGUNDES, M. Seabra. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. 5Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p.146.
224
faculdade de direito de bauru
Consideram-se ilegais os atos ou decisões administrativas em razão da não aplicação ou indevida aplicação do direito vigente. A
autoridade judiciária fundar-se-á em razões jurídicas, abstendo-se
de apreciar o merecimento de atos administrativos, sob o ponto de
vista de sua conveniência ou oportunidade. A medida administrativa tomada em virtude de uma faculdade ou poder discricionário
somente será havida por ilegal em razão da incompetência da autoridade respectiva ou do excesso de poder.9
O conceito de mérito administrativo não se confunde com o de mérito em
sentido processual. Aquele tem como função unicamente a demarcação da zona de
liberdade do administrador e de correlata exclusão do controle jurisdicional. Já o
mérito processual refere-se ao conteúdo, à essência de uma demanda, o que demonstra a total diferença entre os conceitos.
Cabe aqui indagar, então, se da noção de mérito administrativo apresentada
pela doutrina decorre logicamente a idéia de que os conceitos indeterminados geram, invariavelmente, liberdade para o administrador. A resposta é negativa.
Mesmo autores que dissociam, ainda que relativamente, a discricionariedade
da interpretação dos conceitos indeterminados, lançam mão da noção de mérito administrativo, de forma que o conceito não é exclusivo da corrente teórica que relaciona indeterminação conceitual e liberdade do administrador. Ilustra a afirmação o
pensamento de Celso Antônio Bandeira de Mello, que situa a discricionariedade no
limite da interpretação possível e entende o mérito como
o campo de liberdade suposto na lei e que, efetivamente, venha a
remanescer no caso concreto, para que o administrador, segundo
critérios de conveniência e oportunidade se decida entre duas ou
mais soluções admissíveis perante ele, tendo em vista o atendimento da finalidade legal, dada a impossibilidade de ser objetivamente reconhecida qual delas seria a única adequada.10
Pode-se inferir, por outro lado, que não se admite, invariavelmente, uma associação direta entre discricionariedade e mérito11, embora o entendimento predominante por longo tempo tenha feito essa relação.
9
LEAL, Vitor Nunes. “Reconsideração do Tema do Abuso de Poder”. in Problemas de Direito Público e outros
problemas. Brasília: Ministério da Justiça, 1997, V. II. p. 304.
10 MELLO. Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. 2Ed. São Paulo: Malheiros,
1996. p. 38.
11 “Nem todos os autores brasileiros falam em mérito para designar os aspectos discricionários do ato”. Os que
o fazem foram influenciados pela doutrina italiana”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo.15Ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 210.
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42
225
O que denota, então, a relação entre discricionariedade e conceitos indeterminados, implicitamente acolhida pela doutrina tradicional, não é o conceito de mérito administrativo em si, e sim a delimitação dos elementos vinculados e discricionário do ato administrativo, especialmente no que se refere ao objeto e ao motivo.
Conquanto a existência destes seja incluída no seio da competência vinculada12, a valoração do mesmo, inafastável quando enunciado por meio de conceitos indeterminados, consubstancia o mérito administrativo, incontrolável pelo Poder Judiciário,
sendo impossível inseri-la no terreno da vinculação.13 Por outro lado, a existência de
conceitos indeterminados no âmbito da delimitação de competência, forma, e finalidade, não impedirá o controle pleno do ato.14 Finalmente, no que concerne ao objeto do ato administrativo, elemento em que se admite a ocorrência de discricionariedade, sua enunciação por meio de conceitos indeterminados reclama uma valoração que representa um espaço de liberdade para o administrador.
Portanto, toda vez que a hipótese do preceito jurídico contiver um conceito
indeterminado, de forma que seja inviável a descoberta de seu sentido pelos métodos tradicionais da hermenêutica, salvo nos aspectos vinculados do ato, considerase que incumbe ao administrador a sua concretização, sendo ele quem possui a última palavra para definir se ocorreu ou não a hipótese legal. Estar-se-á, pois, diante
do mérito administrativo, que “(…) relacionando-se com conveniências do governo
ou com elementos técnicos, refoge ao âmbito do Poder Judiciário, cuja missão é de
aferir a conformação do ato com a lei escrita, ou, na sua falta, com os princípios gerais do direito”.15 Assim, a relação entre indeterminação conceitual e mérito administrativo somente ocorreria no âmbito dos elementos do ato em que pode surgir a discricionariedade, a saber, o motivo e o objeto.
No Brasil, o controle da administração pública, durante praticamente todo o século XX, adotou os seguintes paradigmas: 1) não havia uma indagação da doutrina e jurisprudência sobre a natureza do controle da aplicação dos conceitos indeterminados;
2) a definição sobre os limites entre legalidade e mérito era feita a partir da delimitação
dos elementos do ato administrativo, e a identificação dos elementos que permitiriam a
concessão de liberdade para o administrador; 3) o mérito designava os aspectos discri12 Cf. VEDEL, Georges. Droit Administratif. 5 Ed.Paris: Presses Universitaires de France, 1973p.320. No Brasil, a
vinculação da existência dos motivos levou a doutrina a consagrar a teoria dos motivos determinantes.
13 Cf. CRETELLA JR, José. Tratado de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1966. V. II. p.199-200. É de
se registrar, todavia, que Caio Tácito há muito sustenta que o valor jurídico dos motivos é condição de legalidade do ato administrativo. Cf. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 1975. p. 105.
14 Em matéria de desapropriação por utilidade pública, quanto ao controle da finalidade expressa por meio de
conceito indeterminado, por exemplo, “(...) no que concerne à ocorrência ou não da alegada utilidade pública, é amplo o controle a ser exercido pelo Poder Judiciário, porque se trata, aí, de verificar se o expropriante
agiu dentro dos limites fixados pela Constituição e pela lei para promover a desapropriação”. SALLES, José Carlos de Moraes. A Desapropriação à Luz da Doutrina e da Jurisprudência. 2ªEd. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 205.
15 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA. Apelação cível em mandado de segurança nº 4.883. 1ª Câmara
Civil. Rel. Des. Álvaro Wandelli, 30.08.94.
226
faculdade de direito de bauru
cionários do ato administrativo, de maneira que havia uma íntima relação entre discricionariedade e mérito; 4) o mérito era imune ao controle jurisdicional, salvo na via do
desvio de poder; 5) embora fosse consolidada a relação entre discricionariedade e mérito, não se pode afirmar que a doutrina brasileira tenha, invariavelmente, inserido a atividade de aplicação de conceitos indeterminados no mérito do ato, e isto porque a distinção entre legalidade e mérito não tinha como paradigma predominante a capacidade
ou não da interpretação fornecer uma resposta unívoca: na verdade, o limite entre legalidade e mérito, inicialmente, tinha como alicerce a definição dos elementos do ato administrativo, de modo que competência, forma e finalidade sempre seriam vinculados.
Por via de conseqüência, consolida-se íntima relação entre valoração dos motivos (expressos por termos vagos) e discricionariedade, de forma que o controle da
aplicação dos conceitos indeterminados mantém-se fortemente restringido. A “valoração” de conceitos indeterminados pelo Judiciário somente se poderia dar no âmbito da legalidade, especialmente através da técnica do desvio de poder, que indaga
sobre o cumprimento da finalidade prevista para o ato administrativo.
3.
MÉRITO ADMINISTRATIVO E CONCEITOS INDETERMINADOS
Após as considerações do ponto anterior, nota-se que a doutrina tradicional
dificilmente questionou a aplicação dos conceitos indeterminados pelo administrador em um enfoque hermenêutico, como o fez a doutrina germânica16. Influencia16 O debate sobre o caráter discricionário ou vinculado da aplicação de conceitos indeterminados tem sua origem
na Áustria, no século XIX. Conforme António Francisco de Souza, Bernatzik sustentava que a interpretação do
direito traduzia-se em puro silogismo, operação incapaz de apreender o significado de conceitos indeterminados, razão que impunha a conclusão de que a indeterminação conceitual gerava discricionariedade. (Os “Conceitos Legais Indeterminados” no Direito Administrativo Alemão. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: FGV, n. 166, 1986. p. 278.) Tezner, ao contrário, preconizava a escolha realizada em normas portadoras
de conceitos indeterminados somente poderia chegar a uma única resposta correta. O interesse público seria
uma categoria jurídica passível de verificação de solução no caso concreto de acordo com o critério objetivo
do “melhor possível”, resultado a que chega o administrador com base em um procedimento dedutivo semelhante àquele utilizado para a generalidade da interpretação das normas jurídicas. Cf. AZARA, Antonio, EULA,
Antonio. Nuovissimo Digesto Italiano. Verbete “Discrezionalità” 3ed., 1957. p.1100. Identifica-se, claramente,
que as duas teses-a da multivalência e a da univocidade-partem do mesmo viés metodológico, a saber, a crença de que a simples interpretação do texto legal, compreendida como descoberta do sentido do texto, ou da
vontade do legislador, é, por excelência, a operação intelectual empreendida pelo operador do direito para desvendar o sentido correto a ser seguido pelo administrador. Enquanto Bernatzik reconhece limites na interpretação, Tezner expressa sua confiança na viabilidade de revelação da resposta correta até mesmo diante da vagueza dos conceitos.
Observa-se, contudo, que a discussão não indaga sobre outras condicionantes que conferem determinada especificidade à hermenêutica de direito público, como o imperativo de proteção dos direitos fundamentais, a
operacionalidade dos princípios de direito administrativo, a complexa tarefa de ponderação dos interesses relevantes diante dos casos concretos, e o sentido global da relação de dominação titularizada pelo Estado frente aos particulares. Evidentemente, seria irresponsável apresentar-se crítica às teorias da univocidade e da multivalência formuladas sobre fundamentos que sequer eram explorados pelo direito administrativo. Salutar, no
entanto, advertir que a questão dos conceitos indeterminados deve seguir caminhos outros, sem limitar-se à
compreensão tradicional da interpretação jurídica.
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227
dos pelas lições advindas do pensamento francês e da práxis do Conseil D’Etat, o
direito administrativo brasileiro formou-se conforme as premissas que sustentaram
o pensamento científico dominante no século XIX17 e garantiram a autonomia do
ramo do direito em comento. A sonhada rigorosidade científica impunha a delimitação clara dos conceitos específicos do direito administrativo, entre os quais assumia especial relevo o de ato administrativo.
A figura “ato administrativo” apresentou-se como ponto relevante da doutrina
do direito administrativo, a começar por sua função originária de delimitar a competência dos tribunais administrativos18, e seguiu-se, predominantemente, na sua configuração, um viés privatista, conforme o método jurídico que pretendia livrar a ciência do direito de influências extrajurídicas19. O conceito de ato administrativo passou
a ser lapidado, com a identificação de suas notas conceituais, de seus elementos,
atributos e vícios, e questões delicadas como a anulação, a revogação e o fenômeno
da discricionariedade, encontraram respostas sustentadas nas definições previamente estabelecidas, graças ao método jurídico empregado.
Este breve escorço apresenta o pano de fundo sobre o qual se desenvolve a
doutrina por longo período no Brasil: a discricionariedade é tratada com os esquemas conceituais da teoria do ato administrativo, especialmente no que se refere aos
seus elementos, como já referido. Alia-se a esta análise estrutural do ato administrativo uma dimensão funcional, que busca na separação dos poderes uma explicação
para a limitação do controle jurisdicional da administração. O mérito administrativo,
portanto, é a demarcação supostamente segura para a preservação da legalidade e
17 O direito administrativo, como o direito público, em geral, sofre a influência dos métodos desenvolvidos no direito privado, razão pela qual o formalismo e a visão hermética do sistema jurídico, próprias da pandectística,
estiveram presentes na formação conceitual daquele ramo do direito. Wieaker, inclusive, explica bem o significado dessa concepção de ciência jurídica: “Seguidamente, sobretudo Jhering, Gerber e Laband prosseguiram
na elaboração do método construtivo da pandectística e transportaram-no para outras disciplinas, sobretudo
para o direito público.
Essa ciência jurídica estava baseada na perspectiva do direito do positivismo científico, o qual deduzia as normas jurídicas a partir do sistema, dos conceitos e dos princípios doutrinais da ciência jurídica, sem conceder a
valorações ou objectivos extra-jurídicos (por exemplo religiosos, sociais ou científicos) a possibilidade de confirmar ou infirmar as soluções jurídicas”. E adiante, ainda ao comentar as características da pandectística: “Os
conceitos jurídicos (v.g., direito subjectivo, direito das coisas, acessoriedade do direito de garantia, elasticidade da propriedade) não têm apenas um valor ordenador de caráter sistemático, pedagógico ou semântico(como foi reconhecido em todas as épocas) - por força do qual eles, tal como as unidades de conta e os símbolos matemáticos, sirvam para a compreensão científica, v.g., no ensino ou da fundamentação técnica das decisões-mas gozam de uma realidade direta. (...) O ponto de partida deste método é a convicção, baseada no
ideal científico do idealismo formal, de que a justeza lógica, do ponto de vista conceitual e sistemático de uma
frase, fundamenta também a sua correção material”. WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno.
2Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Trad. de A.M. Botelho Espanha, 1993. p. 492 e 495.
18 “O desenvolvimento do ato administrativo foi fomentado, sobretudo, pelo direito processual administrativo.
Os tribunais administrativos originalmente só eram competentes, quando o cidadão demandava contra um ato
administrativo, segundo a sua concepção antijurídico, e pedia sua revogação”. MAURER, Hartmut. Elementos
de Direito Administrativo Alemão. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor. Trad. de Luiz Afonso Heck, 2001.
p. 90.
19 FERNANDO PABLO, Marcos M. La motivación del acto administrativo. Madrid: Tecnos, 1993.
228
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da autonomia decisória do administrador: se a estrutura do ato administrativo denota que a competência, a forma e a finalidade, são elementos necessariamente vinculados, tem o Juiz a segurança dos limites do controle jurídico; por outro lado, se a
discricionariedade pode surgir no motivo e no objeto, e devem ser respeitadas a
conveniência e oportunidade na definição do conteúdo do ato e o momento de sua
edição, garantido estará o respeito ao princípio da separação dos poderes.
Nesse enfoque estrutural-funcional, seria improvável que a interpretação do
preceito de direito administrativo pudesse ser eficaz para a definição dos espaços de
vinculação-discricionariedade, já que a liberdade do administrador seria revelada
apenas em determinados elementos do ato, quando presente a exigência de valoração. Quando muito, interpretaria-se a norma para verificar se há atribuição de discricionariedade para o administrador, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal, ao
cristalizar que “A competência discricionária deve resultar de lei, mas pode ser inferida de sua interpretação sistemática”.20
A análise da discricionariedade com predomínio da análise estrutural do ato administrativo, entretanto, distanciou a questão dos princípios originários dos postulados
jurídico-constitucionais da Administração Pública e desconsiderou a influência positiva
que as lições da hermenêutica podem ter sobre a dogmática do direito administrativo.
Além disso, ignorou a concreta atividade de ponderação dos elementos da realidade,
necessariamente empreendida pelo administrador ao aplicar o preceito jurídico. A valoração, no objeto e no motivo do ato administrador, era matéria de conveniência e
oportunidade, de forma que a interpretação de conceitos vagos comportava incertezas
que somente poderiam ser resolvidas pelo próprio agente aplicador da norma, sem
que pudesse o Judiciário, via de regra, controlar suas decisões. Por vias transversas, a
interpretação de conceitos indeterminados, se localizados no objeto e no motivo, era
traduzida como valoração discricionária e, na esfera da discricionariedade, grande parte da tarefa de interpretação da lei dotada de termos imprecisos era abandonada em
nome do impedimento para a análise do potencial leque de significações que o preceito legal encerra. Limitava-se o controle a um imaginado universo jurídico e remetia-se
toda a conflituosidade latente no âmbito das imprecisões textuais ao “sentido político
do ato”, ponto em que não se admitia a repreensão à atividade administrativa.
A inserção dos conceitos indeterminados no âmbito da discricionariedade
representa ponto determinante para a compreensão da abrangência do princípio
da legalidade, pois grande parte das normas de direito administrativo são significativamente imprecisas, a ponto de gerarem uma série de dúvidas sobre sua incidência ou não às circunstâncias da realidade que demandem uma solução jurídica a ser efetivada pela administração. A similaridade qualitativa entre interpreta20 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança. Processo nº 20.975. Relator Ministro Sepúlveda Pertence. 1ª Turma. Julgado em 29.8.89, in Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro:
FGV nº 178, out./dez 1989, p. 45-9.
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229
ção/aplicação de conceitos indeterminados e discricionariedade pode levar à
conclusão que a vinculação é exceção e a liberdade do administrador (ainda que
limitada) é a regra, afirmação que, não obstante acolhida no direito francês por
Marcel Waline,21 encontra dificuldades para a sua aceitação plena diante do ordenamento jurídico brasileiro.
Contudo, embora as lições doutrinárias tenham, em grande parte, conduzido
para a mitificação do conceito de mérito administrativo, identificado como o momento em que o administrador valora os motivos de acordo com critérios técnicos
ou políticos, conforme a conveniência ou oportunidade, ponderação insindicável
pelo Poder Judiciário, o certo é que
O Poder Judiciário muitas vezes refreia a extensão do seu controle
natural sobre os atos administrativos, numa auto-restrição que
importa, a final, na abertura de uma área de discricionariedade
administrativa delimitada pela jurisprudência mas informada
por um certo casuísmo que permite a interferência judicial sempre
que a decisão executiva seja aberrante dos princípios de justiça.22
A imprecisão conceitual, no entanto, não impediu que determinados autores fizessem referência expressa a situações de controle de situações cuja resolução envolvia a interpretação de conceitos de difícil apreensão de significado.
Themístocles Brandão Cavalcanti, após afirmar que a apreciação do conceito de
“falta de urbanidade” é discricionária, admite o “controle superior quando é gritante a interpretação da autoridade como o conceito comum, usual, das qualidades exigidas pela lei, para a boa ordem do serviço público”,23 lição que parece
aceitar a verificação judicial dos erros manifestos da apreciação feito pelo administrador.24
Contudo, a referência mais clara à aceitação do controle da atividade administrativa pautada em conceitos indeterminados, não obstante estivesse o autor inserido no cenário teórico tradicional, vem de Vitor Nunes Leal. O mestre, com aguda
percuciência, analisou o regime legal do tombamento, e, conquanto tenha considerado que “(...) reina muita certeza em saber até onde alcança a legalidade, isto é, em
21 WALINE, Marcel. Précis de Droit Administratif. Paris: éditions Montchrestien, 1969.p.329.
22 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. Motivo e Motivação do Ato Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979. p. 50.
23 CAVALVANTI, Themístocles Brandão. Teoria dos Atos Administrativos. São Paulo: RT, 1973. p. 128.
24 O “erro manifesto de apreciação”é uma técnica de controle desenvolvida pelo Conselho de Estado Francês,
cuja origem é o Arrêt Lagrange, de 15 de fevereiro de 1961. Cf. FERNÁNDEZ RODRÍGUEZ. Tomás-Ramón.
Op.Cit., 1997.p.30. Consiste em “[...] uma avaliação dos pressupostos concretos (juízo de valor sobre as circunstâncias concretas do caso) para o efeito de concluir se eles justificam uma actuação da Administração [...]”.
CORREIA, José Manuel Sérvulo. Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos. Coimbra: Almedina, 1987. p. 73.
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faculdade de direito de bauru
saber quais as questões que podem ser investigadas no exame da legalidade”,25 afastou a dificuldade técnica como óbice ao controle jurisdicional, ao sustentar que
Mas a dificuldade técnica não é, por si só, impedimento constitucional à competência revisora do judiciário, porque este se pode
valer do auxílio de peritos, como ocorre em muitos processos judiciais. E, se o valor histórico ou artístico de um bem for tão duvidoso que duas ou mais perícias de técnicos competentes cheguem a
conclusões contraditórias, é o caso de indagar se, com relação a
tal bem há vantagem na imposição ao proprietário das severas limitações do Decreto-lei nº 25. O que ocorrerá, nas questões relacionadas com a aplicação da lei do patrimônio histórico e artístico, é que os tribunais, embora dispondo da faculdade de contrariar o julgamento técnico do Conselho, se inclinarão a respeitá-lo,
emprestando-lhe o valor de laudo autorizado.26
Adiante, Vitor Nunes Leal traça uma distinção entre mérito, considerado como
a apreciação de conveniências, e verificação da aplicação da lei, passível de controle, conforme a Lei nº 221, de 1894. E, com clareza, conclui da seguinte maneira27:
Ora, saber se um bem foi acertada ou erradamente qualificado
como de valor histórico ou artístico não constitui exame de conveniência ou oportunidade, mas precisamente uma indagação de se
foi devida ou indevidamente aplicada a lei. Dir-se-á que a lei não
fornece os critérios para essa qualificação, não havendo, pois, referência legal para se apurar o erro ou acerto da qualificação. O
argumento é em parte, mas não totalmente verdadeiro. A lei estabelece aqueles critérios, bastante vagos é certo, mas os estabelece.
(...)
O intuito da lei não foi, portanto, dar autoridade irrestrita ao órgão incumbido do tombamento, mas cerceá-la com o significado
limitativo das expressões empregadas: “fatos memoráveis”, “excepcional valor” e “feição notável”.
(...)
A atribuição do valor histórico ou artístico de um bem não é, pois,
atividade discricionária, porque não envolve apreciação de conveniência ou oportunidade. Ato discricionário é, por exemplo, o
25 LEAL, Vitor Nunes.Op.Cit., p. 245.
26 Id., p. 248.
27 Ibid., p. 254-5.
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231
tombamento em si mesmo, ou a ocasião de o efetuar, porque a autoridade, mesmo reconhecendo o valor histórico ou artístico de
um bem, tem liberdade de o tombar, ou não, como tem a liberdade de escolher a ocasião mais apropriada para praticar esse ato.
As palavras de Vitor Nunes Leal são essenciais para se compreender que a discussão relativa à localização da discricionariedade nos elementos do ato administrativo e o conceito de mérito administrativo, por si sós, não trazem, inarredavelmente, a conclusão de que os conceitos indeterminados geram discricionariedade. O
mestre demonstra, com argumentos contundentes, que o mérito administrativo
pode ter sua dimensão restringida, bastando que para tanto no âmbito da legalidade se encontre a tarefa de interpretar as expressões da lei, mesmo que imprecisas.
A repulsa à interpretação dos conceitos indeterminados, pois, não advém, simplesmente, dos paradigmas estruturais que sustentaram a idéia de discricionariedade no
direito brasileiro: decorre, na verdade, de um exacerbado respeito à figura do administrador, e da crença de que a descoberta do significado de conceitos fluidos ultrapassava o limite da cognição, razão pela qual não se poderia substituir a vontade do
agente que determinou os termos de concretização da norma.
De qualquer maneira, a maioria das construções teóricas trilhou o caminho da
isenção do poder. E se, na França, a isenção do administrador frente ao poder judicial serviu para preservar os ideais revolucionários, no Brasil, a auto-restrição e o formalismo do direito administrativo serviram para justificar uma modalidade de dominação que pouco apresentava de racional. Por outro lado, o liberalismo e todos os
seus princípios revolucionários sofreram uma verdadeira “domesticação”, a fim de
atender a interesses da elite reacionária e autoritária. Conforme Antônio Carlos
Wolkmer,
Já no Brasil, o Liberalismo expressa a ‘necessidade de reordenação
do poder nacional e a dominação das elites agrárias’, processo
este marcado pela ambigüidade da junção de ‘formas liberais sobre estruturas de conteúdo oligárquico’, ou seja, a discrepante dicotomia que irá perdurar ao longo de toda a tradição republicana: a retórica liberal sob a dominação oligárquica, o conteúdo
conservador soa a aparência de formas democráticas.28
Posteriormente, a discussão sobre a discricionariedade apresentou “viradas”
significativas e, em estudos como os de Celso Antônio Bandeira de Mello e Eros Roberto Grau, a hermenêutica passou a galgar importância, inclusive com a referência
expressa à dificuldade gerada pelos chamados conceitos indeterminados. Afora isso,
28 WOLKMER, Antônio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 2Ed. São Paulo: RT, 1995. p. 119.
232
faculdade de direito de bauru
a “descoberta” da íntima relação entre o direito constitucional e o direito administrativo tornou visível o fato de que a atuação administração somente tem sentido
quando adaptada aos princípios constitucionais e à proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos, e o enfoque estrutural, antes privilegiado, perdeu espaço para argumentos colhidos na hermenêutica e na teoria dos princípios.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O debate sobre o controle dos chamados atos administrativos discricionários
é constantemente renovado, muitas vezes com o recurso a premissas anteriormente exploradas e novamente apresentadas sob um novo contexto. Sem dúvida, a própria noção de discricionariedade sofre as influências da compreensão que se tem
em cada período histórico sobre o papel e a legitimidade da administração pública
frente à sociedade. A análise da correção dos atos administrativos é tema que requer
um debate público, similar ao que se trava em torno do tema do controle da constitucionalidade, e isto porque a administração é a principal responsável pela concretização dos direitos fundamentais. Logo, é razoável que toda a comunidade saiba
dos limites e das tarefas impostas ao administrador público, e as formas de controle de sua atividade.
Para a evolução do sistema brasileiro de controle da administração pública,
contudo, não basta a mera assimilação das lições importadas do continente europeu
e Estados Unidos: os novos rumos do controle jurisdicional dos atos administrativos
dependem, em grande parte, de uma reflexão sobre o passado, não meramente ilustrativa, e sim direcionada a uma avaliação dos fundamentos teóricos que nortearam
a formação do direito administrativo brasileiro e que, de certa forma, ainda ecoam
em diversos institutos jurídicos atuais, que sofrem interpretações inconciliáveis com
as novas demandas sociais.
Quanto à discricionariedade, o primeiro passo para a indagação deste fenômeno jurídico é o questionamento sobre os pilares que sustentaram durante tanto
tempo a teoria que relacionava poder discricionário e mérito administrativo, e a limitação a priori do controle da administração pública. Neste trabalho, o objetivo foi
a apresentação dos fundamentos da discricionariedade, defendidos pela doutrina
durante longo tempo, que se fundaram na teoria clássica do ato administrativo, especialmente na configuração dos elementos do ato administrativo.
A discricionariedade, portanto, para a doutrina tradicional, foi concebida
tendo como sustentáculo uma análise estrutural do ato administrativo, sem levar em consideração os estudos relativos à interpretação e à constitucionalização do direito administrativo, principalmente com o reconhecimento da função
normativa dos princípios. Certamente, o ambiente em que surgiu e se consolidou a visão estrutural da discricionariedade, compreendida apenas como característica capaz de figurar em determinados elementos do ato administrativo, era
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totalmente diverso ao atual, e isto absolve os grandes estudiosos de outrora, já
que somente poderiam trabalhar com as ferramentas conhecidas até então. O futuro, pois, não havia se tornado presente.
A discricionariedade, entendida como aspecto descoberto após a definição dos
elementos do ato administrativo, aliado a uma determinada interpretação do princípio da separação dos poderes, fez com que a liberdade do administrador fosse cada
vez mais ampliada, sem contornos claros que limitassem a atividade administrativa. A
“valoração” foi, costumeiramente, inserida no mérito administrativo, e o Judiciário
teve uma função passiva e pouco significativa no controle da administração.
Essa restrição do controle e a dificuldade no controle da aplicação dos conceitos indeterminados não decorreu, todavia, apenas do marco teórico adotado. Como
visto, autores como Vitor Nunes Leal reconheceram a possibilidade de controle da
atuação fundada em conceitos indeterminados em algumas situações, de maneira
que o mérito administrativo, isoladamente, não foi o responsável pela restrição do
controle dos atos administrativos ao aspecto formal e ao desvio de poder. À teoria
tradicional, aliou-se um histórico de demasiado respeito à Administração e, em especial, ao poder político que lhe dava suporte.
Atualmente, embora a jurisprudência se mostre insegura quanto aos limites
do controle da administração que, no mais das vezes, fica a critério da percepção
subjetiva do magistrado, que “colhe” argumentos para sustentar suas conclusões, há
uma considerável produção científica que indica outras abordagens para o problema dos conceitos indeterminados, com o claro objetivo de ampliar a atuação jurisdicional na verificação dos atos administrativos. As novas teorias merecem, também,
um estudo cuidadoso, cuja amplitude impede a realização da tarefa neste texto.
Por fim, saliente-se que a Constituição Federal de 1988 vem cumprindo, muitas vezes com dificuldades, o seu objetivo de reconstrução da legitimidade do poder estatal. E isto se reflete diretamente no direito administrativo, que somente demonstra suas virtualidades quando associado a instituições legítimas e a serviço do
cidadão. Nas ditaduras, o direito administrativo é mero mecanismo de exercício da
força, servil aos interesses da classe dirigente e empobrecido no seu conteúdo. E
que este fantasma não assombre mais nosso País.
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DIREITOS HUMANOS E PROCESSO CIVIL
Gelson Amaro de Souza
Mestre em Direito e doutorando em Direito Processual Civil pela PUC/SP.
Ex-Diretor e Professor da Faculdade de Direito de Presidente Prudente-SP – AET e
dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Processo Civil da FADAP de Tupã e
da Pós-Graduação da Faculdade de Direito - FIO de Ourinhos.
Procurador do Estado (aposentado) e Advogado em Presidente Prudente-SP.
1.
NOÇÕES PRELIMINARES
Urge ressaltar preliminarmente que em todas as sociedades evoluídas há uma
perene preocupação com o ser humano e a busca constante de providências e medidas no sentido de aprimoramento do atendimento às pessoas para, com isso, atingir o mais completo aperfeiçoamento possível do convívio social, com vistas à salvaguarda da dignidade humana.
O esforço para se encontrar fórmula para o alcance da dignidade humana tem
levado as sociedades modernas a descobrirem novos caminhos, através das mais variadas técnicas aplicadas em todo e qualquer setor da ciência. Se assim é, no campo
da engenharia, da medicina e dos demais ramos da ciência social, no direito, sabidamente integrante desta última, não poderia ser diferente.
Os avanços, até então experimentados pelas mais diversas e modernas legislações contemporâneas, têm demonstrado não ser em vão a procura para detectar
falha e aperfeiçoar o direito em busca de um melhor atendimento aos direitos humanos e, com esses, pôr em relevo a dignidade da pessoa humana.1
1
“Quem pensa o Direito hoje tem que pensar em indivíduos livres e iguais. E quem pensa em liberdade e igualdade pensa na dignidade dos homens. FELIPE, Marcio Sotelo, Razão jurídica e dignidade humana. p. 54.
236
faculdade de direito de bauru
O direito, como se sabe hoje, existe para atender os interesses das pessoas integrantes da sociedade2 e, não mais, como era visto no passado, quando se imaginava que ele existisse somente para atender aos caprichos dos governantes e de alguns3 poucos poderosos.
Observa JABUR4 que a escola naturalista enfatizou e resgatou a primazia dos
direitos naturais, ou seja, aqueles essenciais e inatos do ser humano, antevisto primordialmente pelo cristianismo, pela qual revigorou a teoria dos direitos originários
e fundamentais do indivíduo, saindo da abstração para a concretização, para dar lugar à atuação contra o Estado autoritário, cujo arbítrio não se tolera mais. Conforme
ensina MAZZUOLI,5 no Brasil, não se têm utilizado todos os meios disponíveis ao seu
alcance para efetivar a observância aos direitos humanos. É certo que existem esforços nesse sentido, mas ainda não se atendeu e nem se atende de forma ampla aos
direitos mínimos necessários à dignidade do ser humano.
Todavia, com essa nova realidade, põem-se em relevo os princípios da humanização e as sociedades mais avançadas vêm dando exemplo de respeito à pessoa e
ampliando cada vez mais a incidência dos direitos humanos. Pena que em uma sociedade como a nossa, onde ainda perdura o coronelismo político e a prioridade ao
capitalismo selvagem, os direitos humanos fiquem para um segundo plano6.
Não se pode negar algum avanço legislativo nesse aspecto, mas além de ser
uma evolução legislativa ainda muito tímida, nem sempre aquilo que é estabelecido
na lei encontra ressonância na prática. Exemplificativamente, lembra-se que o sistema jurídico contempla o direito à habitação e que, apesar disso, muita gente não
tem onde morar7. Também o sistema assegura o direito à vida e, no entanto, todos
os dias os noticiários dão conta de que centenas de pessoas perdem a vida, por falta de segurança, falta de atendimento médico e, às vezes, até mesmo por falta de alimentos. Ainda, o sistema jurídico assegura a liberdade de pensamento e a de locomoção e não raro se vêem casos de censura e impedimento da livre expressão do
pensamento e, pior ainda, casos de privação da liberdade com prisão até mesmo
sem previsão em lei.8 A Constituição Federal assegura o direito de propriedade, mas
2
3
4
5
6
7
8
Mais amplamente sobre o assunto, ver nosso Processo e jurisprudência no estudo do direito, Rio de Janeiro:
Forense, 1989.
FELIPE, Marcio Sotelo. “Não há razão pela qual, diante da norma positiva que violenta a dignidade humana,
devo aprisionar a juridicidade na pressuposição da norma fundamental segundo a qual vale a vontade de alguém ou de alguns”. Razão jurídica e dignidade humana. P. 23 Em outra passagem: “aquela apoiada na idéia
de unidade dos homens, a norma da totalidade, a norma que diz do direito de ter direitos, a norma fundamental que assegura os direitos humanos. Idem, p. 37.
JABUR, Gilberto Haddad. Liberdade de pensamento e direito,a vida privada. p. 75.
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direitos humanos, constituição e os tratados internacionais. P. 351.
A teoria tomista tinha por tradição tomar o fundamento da norma de cima para baixo e não como o é para os
estoicista, de baixo para cima.
Hoje, vive-se a mais triste fase da história, em que até aqueles que não têm onde habitar e moram nas ruas estão sendo barbaramente assinados, conforme se vê por todos os cantos os noticiários do dia a dia.
Ver nosso: Prisão do depositário judicial – uma prisão costumeira no terceiro milênio. Revista Dialética de
Direito Processual, v. 19. São Paulo: Dialética, outubro de 2004.
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freqüentemente se vêem, pessoas ficarem privadas de seus bens, sem o devido procedimento legal.9
2.
CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS
Quando se usa a expressão “direito” já se está inferindo tratar-se de relação entre pessoas, visto que somente entre estas é que se pode falar em direito. Quando
se usa o termo “humano”, está se referindo também à pessoa, visto que somente a
pessoa natural pode ser considerada como ente da estirpe humana. No entanto,
como força de expressão, sempre que se quer referir à pessoa, tornou-se corrente
utilizar a expressão “pessoa humana”, como é comum dizer-se “dignidade da pessoa
humana”. Direitos humanos são aqueles necessários para que uma pessoa possa ter
uma vida com dignidade. Talvez o primeiro e o maior de todos seja o respeito a que
todas as pessoas têm direito e nem sempre é reconhecido pelos poderes públicos.
Também, quando se diz direitos humanos, está se referindo aos direitos da pessoa. Mas não são quaisquer direitos, restringindo-se àqueles ligados de forma mais íntima à natureza da pessoa. São os direitos fundamentais da pessoa, norteados por sua
natureza, ou seja, aquilo que a acompanha desde o seu nascimento até a sua morte. Direitos que, direta ou indiretamente, visam a proteger a dignidade da pessoa10. São aqueles direitos básicos e imprescindíveis à dignidade do ser humano.11
O positivismo procura fazer do direito uma ciência12, e o humanismo, por sua
vez, procura nas ciências naturais a origem do direito.13 Por isso, a dignidade do ser
humano é fim e não meio. O direito positivo é apenas meio para se chegar ao fim
que é o respeito à dignidade da pessoa.14 A dignidade do homem é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder público.15
Os direitos humanos têm de ser vistos em conformidade com a natureza e a
individualidade da pessoa, muito embora essa não viva isolada, sempre fazendo parte integrante da sociedade. Como uma aeronave não pode ser cuidada apenas em
seu conjunto, merecendo atenção peça por peça, sob pena de, por maltrato de uma,
ser todo o conjunto prejudicado. Assim também é a sociedade que não pode ser vis9
10
11
12
13
14
15
Nesse aspecto remete-se ao nosso: Fraude à execução e o direito de defesa do adquirente. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2002.
FELIPPE, Marcio Sotelo. “Quem pensa o Direito hoje tem que pensar em indivíduos livres e iguais. E quem pensa em liberdade e igualdade pensa em dignidade dos homens”. Razão jurídica e dignidade humana. p. 54.
QUEIROZ, Odete Novais Carneiro. “Os direitos humanos são os direitos básicos, imprescindíveis à dignidade
do ser humano, pois que não poderão ser jamais violados sem o cerceamento de algum princípio ético”. Prisão civil e os direitos humanos. p.73.
FELIPPE, Marcio Sotelo. Razão jurídica e a dignidade humana. p. 69.
SOUZA, Gelson Amaro de. Processo e jurisprudência no estudo do direito.
FELIPPE, Marcio Sotelo. “O Direito não se esgota na norma positiva, e nem tudo que está na norma positiva é
jurídico” obra citada, p. 83. “A dignidade é o fim. A juridicidade da norma positiva consiste em se poder reconhecer que tendenciosamente, ela se põe para esse fim. E se não se põe, não é legítima.” p. 100.
SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. p. 55.
238
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ta apenas em seu conjunto, pois, há necessidade de se cuidar da individualidade de
cada pessoa.
Assim, o conceito de direitos humanos pode ser representado pela teoria kantiana de espaço e tempo16. Considerando a humanidade como o tempo, cada pessoa
é como se fosse uma hora. Se não existir essa hora, não haverá a integridade do tempo. Em outros termos, somente se terá o tempo se se considerar a hora unitariamente. Desta forma, somente existe a sociedade, se antes existir a pessoa individualmente considerada. Sem a pessoa individualmente considerada, não haverá sociedade. A sociedade, como um todo, deve respeitar e defender a pessoa individualmente, em busca de sua dignidade. A dignidade da pessoa não é uma criação do constituinte, que apenas reconhece a sua existência.17
Pode-se dizer, com MORAES18, que o conjunto de direitos e garantias do ser
humano, que tem por finalidade básica o respeito à sua dignidade, por meio de sua
proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana, pode ser definido como
direitos humanos fundamentais. Ou ainda, como diz SANTOS19, a dignidade da pessoa humana é, por conseguinte, o núcleo essencial dos direitos fundamentais, a fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais. Os direitos humanos, de uma maneira geral, estão consagrados e garantidos na Constituição Federal, sem, contudo, esgotá-los. A Constituição não esgota todos os direitos humanos, mas se os ali consagrados fossem respeitados já estaria bom demais.
Os direitos humanos devem ser entendidos como uma categoria prévia, legitimadora e informadora dos direitos fundamentais, assim como os direitos fundamentais seriam uma categoria descritiva dos direitos humanos20, por terem seu
fundamento em um sistema de valores prévio, de ordem natural e universal que
tem força jurídica, mesmo não estando positivado. Não se pode perder de vista
que os direitos humanos são, em verdade, todos aqueles inerentes à pessoa e
conforme a sua natureza. Daí a razão utilizada por MAZZUOLI, para dizer que todos os direitos humanos são universais, individuais, interdependentes e inter-relacionados.21
O sistema constitucional brasileiro é bastante abrangente no que diz respeito aos direitos humanos, pena é que a legislação infraconstitucional nem
sempre os respeita e, muitas vezes, quem não os respeita é o intérprete ou o
aplicador do direito. Isso é uma constante na órbita civil, como a utilização de
medidas drásticas e violadoras dos direitos humanos, sem lei alguma que auto16
17
18
19
20
21
FELIPPE, Marcio Sotelo. Nesse sentido. Obra citada. p. 103.
SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. p. 79.
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. p. 39.
SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. p. 97.
HERRERA, Chinchilla. Qué son y cuáles son los derechos fundamentales? p. 59.
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direitos humanos, constituição e os tratados internacionais. p. 225.
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239
rize tal medida.22 Em decorrência disso, se percebeu MAZZUOLI que, com acuidade, observa:
Assim é que, no atual estágio de evolução da sociedade, com a
constante cada vez mais crescente de desrespeito e de atrocidades,
é preciso que se busque, seja no direito nacional, seja no internacional, saídas eficazes para solução do problema diário de violação dos direitos[...]23
3.
A SUPREMACIA DOS DIREITOS HUMANOS
Os direitos humanos estão entre os chamados superdireitos, visto que devem
ser respeitados e acolhidos, mesmo que não previstos expressamente na lei positiva. Representam princípios de ordem pública e, por isso, estão acima da lei24 e devem ser praticados mesmo sem esta. Adverte FELIPPE25 que existem princípios não
positivados que freqüentemente afastam a aplicação das normas positivas, o que já
seria bastante para demonstrar a inadequação do modelo positivo nesse particular.
No mesmo sentido, SANTOS26 proclama que o legislador apenas reconhece a existência dos direitos humanos porque, sendo estes inerentes à pessoa, já há um conceito a priori. Seguem-se os ensinamentos de GUIMARÃES27, para quem não se
pode cogitar dos direitos e das garantias fundamentais sem se pensar no direito natural e nele fundamentar, pois têm estes como pressupostos inconfutáveis de uma
natureza humana, idêntica entre todos os homens.
A supremacia do direito fundamental também foi vista por OLIVEIRA28, para
quem “não são os direitos fundamentais que se movem no âmbito da lei, mas a lei
que deve mover-se no âmbito dos direitos fundamentais”. Os princípios constitucio22 Como exemplo lembra-se a prisão do depositário judicial, quando considerado infiel, sem lei que a autorize e
como foi amplamente tratado em artigo nominado Prisão do depositário judicial – uma prisão costumeira
no terceiro milênio”. Revista Dialética de Processo Civil. v. 19. outubro de 2004. Também é costumeira a retenção (sem lei) de dinheiro de incapaz até que complete a maior idade. Graves inconvenientes resultam desse
ato ilegal e inconstitucional. a) Primeiro porque, é nessa faixa de idade que o incapaz mais precisa do dinheiro para sobrevir; b) Por segundo, nem todo incapaz é menor e, sendo maior ficaria eternamente sem poder
utilizar o dinheiro que é seu; c) Por terceiro, que o dinheiro em depósito bancário, com o decurso do tempo
perde o poder aquisitivo e quando a pessoa se torna maior, nada mais poderá fazer com a migalha que sobra.
d) Pior ainda os casos noticiados pela imprensa de desaparecimentos dos depósitos com o passar dos tempos.
23 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Prisão civil por dívida e o pacto de San José da Costa Rica. p. 109.
24 ARMELIN, Donaldo: “Atualmente, no sistema jurídico, não preponderam as regras, mas sim os princípio, de forma que o sistema jurídico é presidido precipuamente por estes, até porque a vulneração de um princípio pode
implicar lesão mais grave do que a resultante de violação de uma regra”. Flexibilização da coisa julgada. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Edição especial. Janeiro-dezembro 2003.
25 FELIPPE, Marcio Sotelo. Nesse sentido. Obra citada. p. 68.
26 SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. p. 79.
27 GUIMARÃES, Ylves José de Miranda. Comentários à Constituição – direitos e garantias individuais e coletivas, p. 4.
28 OLIVEIRA, C.A.Alvaro de. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais. RDPC. v. 26, p. 655.
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faculdade de direito de bauru
nais processuais, da mesma forma que os demais princípios, gozam de força suprema, vinculando, no caso, toda a sistemática do processo às suas verificações e exigências, como observou RAMOS JUNIOR.29
Os princípios não precisam ser positivados para serem respeitados e cumpridos, porque sempre estão acima das leis positivas. Como reconhece HERRERA,30 o
direito positivo é apenas um instrumento bastante modesto de controle social. Segue-se PÉREZ LUÑO31, para quem os direitos abarcam aquelas exigências que, devendo ser objeto de positivação, ainda que não o tenha sido positivado. Em outros
termos, devem prevalecer os princípios, sejam ou não contemplados pela norma
positiva.
4.
OS DIREITOS HUMANOS E O PROCESSO CIVIL
No campo do processo civil, é notável a existência de esforços do legislador
que aos poucos vai reformulando as suas legislações sobre o ponto de vista processual ou até mesmo procedimental, visando a facilitar o acesso ao judiciário e
a incrementação de providências visando à efetivação da justiça32. Tem-se ainda
criado e procurado incentivar os meios de atuação alternativa de solução de conflitos de forma mais ágil e menos onerosa para os jurisdicionados, como a nova
lei de arbitragem, os juizados especiais, as câmaras de intermediação, juizados de
conciliação etc.
A tutela antecipada surgiu como novidade no sistema quando da primeira etapa da reforma do Código de Processo Civil veio como uma luva para pôr fim ao sofrimento de muitos que passaram, a utilizar o bem da vida em disputa antes mesmo
da sentença ao final. As ações coletivas são outra criação genial que, permitindo em
um só processo a decisão de questões de interesse de muitos, evitando maiores delongas e maiores custos, além de afastar as infindáveis dificuldades que têm o particular na propositura e condução do processo individual e até mesmo o desconforto de se deparar com julgamentos contraditórios. É no processo civil, ao que se pensa, onde se concentram os maiores esforços para a efetivação dos direitos humanos.
O recente Código do Consumidor, misto de norma de natureza material e processual, abrindo espaço para a inversão do ônus da prova e a fixação da competência
no domicílio do mais fraco, o consumidor. Recentemente se promulgou o estatuto
do idoso, que consagra a prioridade na tramitação dos processos de interesse da
pessoa maior de sessenta anos.
29
30
31
32
RAMOS JUNIOR, Galdino Luiz. Princípios constitucionais do processo. p. 11.
HERRERA, Chinchilla. Qué son y cuáles son los derechos fundamentales? p. 13.
PEREZ LUÑO, Antonio. Los derechos fundamentales. p. 47.
HERRERA, Chinchilla. “La justicia es la primera virtud de las instituciones sociales, como la verdad lo es de los
sistemas de pensamiento”. Qué son y cuáles son los derechos fundamentales? p. 40.
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5.
n.
42
241
ALGUNS INSTITUTOS DE PROCESSO CIVIL EM CONSONÂNCIA
COM OS DIREITOS HUMANOS
Vários são os institutos de processo civil que visam ao atendimento dos princípios gerais dos direitos humanos. De uma maneira geral, pode-se apontar o princípio da igualdade das partes, o princípio da liberdade para se propor ou contestar
a ação, o princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, o princípio de que ninguém pode ser condenado sem o direito de defesa, o princípio do acesso à justiça,
o princípio do direito à ordem jurídica justa, o princípio do contraditório e da ampla defesa, bem como o princípio do devido processo legal, entre tantos outros.
5.1. O devido procedimento legal e direitos humanos
Um dos pilares dos direitos humanos é garantia constitucional do devido procedimento legal que o constituinte preferiu manter a nomenclatura histórica de devido
processo legal. Todo processo é legal, o que pode ser legal ou ilegal é procedimento.33
O art. 5º, LIV, da Constituição Federal de 1.988 dispõe que “ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Mas nada disse, até aí sobre o contraditório e a ampla defesa, que foram objetos de disposição
no inciso seguinte (art. 5º, LV ). Tem-se que, embora andem sempre juntos, o contraditório e a ampla defesa são figuras diferentes do chamado devido processo legal
que, em verdade, mais tem a ver com o procedimento do que com o processo propriamente dito.
O constituinte, neste inciso, preocupou-se com o devido processo legal,
mas já se entendeu que, se autorizado por lei, o contraditório e a ampla defesa
podem ser diferidos.34 Como o constituinte brasileiro tratou desses princípios
em incisos separados, certamente entendeu que eles são diferentes e independentes. Fossem esses princípios sinônimos, não haveriam de receber tratamento em dispositivos separados. Mas não é só. Ver-se-á, a seguir, alguns aspectos
que, ao que se pensa, levam ao entendimento de que tais princípios não se confundem.
5.l.1. Suporte constitucional do devido procedimento legal
O devido procedimento legal encontra seu suporte constitucional na norma
insculpida no artigo 5º, LIV, da Constituição Federal, promulgada em 1.988 que assim dispõe:
33 SOUZA, Gelson Amaro de. Fraude à execução e o direito de defesa do adquirente. p. 182.
34 MS. 02553-7. RT. 764/303; Revista de Direito Bancário, v. 06. p. 153.
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faculdade de direito de bauru
Art. 5º [...].
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.
O constituinte brasileiro, consciente da necessidade de se adaptar a Constituição aos mais modernos e avançados ideais do direito e da justiça e, em manifesta
demonstração de que estava em sintonia com o seu tempo, erigiu em postulado
constitucional, o chamado devido processo legal.
Pensa-se que melhor seria se o denominasse de devido procedimento legal,
pois ao que se imagina, todo processo é legal, o que pode ser legal ou ilegal é o procedimento, como restou anotado anteriormente. O processo pelo simples fato de
corresponder a uma relação jurídica, não se pode imaginar ilegal. Toda relação jurídica necessariamente é relação legal.
Pela forma positivada na Constituição, o que se chama de devido processo legal não pode ser confundido com mero conteúdo programático, mas, sim, como
princípio imperativo e que deve fazer-se presente em todo procedimento. Ninguém
poderá sofrer restrição de seus bens sem que antes exista um procedimento adequado e devidamente previsto em lei.
Ao que se pensa, a Constituição não traça os contornos do procedimento (ou
processo), somente exige que exista norma criadora de determinado procedimento, numa demonstração clara e objetiva, além de peremptória e imperativa, de que,
sem a existência de um procedimento (processo) previsto em lei, ninguém poderá
sofrer restrição em seus bens.
O que a Constituição Federal quis foi afastar a arbitrariedade e o protecionismo
em favor de alguns, em prejuízos de outros. Procurou evitar que, em favor de alguém,
pudesse restringir a liberdade ou os bens de outros, sem que, para isso, haja uma lei
anterior descrevendo os atos que podem ser praticados e a forma com que o serão.
Somente com uma lei anteriormente em vigência é que se pode cumprir a
igualdade de todos perante a lei, sem discriminações e sem protecionismo e apadrinhamento. Assim é que a Constituição Federal, para evitar distorções, exige que,
para que alguém possa sofrer restrição de seus bens, antes se deve seguir o procedimento previsto em lei, ou seja, o devido procedimento legal (art. 5° LIV, da CF).
Caso inexista procedimento previsto para a providência que venha restringir
o direito de alguém, esta providência não poderá ser tomada porque inexiste um
procedimento previsto em lei. Repete-se, somente com o seguimento de um procedimento previsto anteriormente em lei, é que se dará atendimento a esse mandamento constitucional.
O que não se pode permitir é que aquele que é o encarregado de aplicar a lei
possa inventar um procedimento não previsto no sistema jurídico e, ao seu modo,
determinar a constrição ou restrição de bem sem o devido procedimento legal. Essa
invenção que se apresenta toda particularizada, sem previsão em antecedente lei,
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
243
fere não só o princípio da anterioridade da lei (tipicidade), bem como atenta contra
a garantia do devido procedimento legal. Tal comportamento atenta contra os direitos humanos e deve ser evitado, sob pena de sacrificar um dos mais elementares direitos da pessoa que é a preservação da dignidade humana.
5.1.2. O Devido processo legal material - Substantive due process
Alguns autores apregoaram que o devido processo legal se manifesta sobre
dois prismas diferentes. Dizem que um se dá sob o ponto de vista material ou substantivo (que preferem chamá-lo de substantive due process) e outro se apresenta
em outro enfoque, ou seja, sob o ponto de vista processual ou formal (que o chamam de procedural due process).35
NERY JUNIOR, analisando a questão, deixou assentado o seguinte:
A cláusula due process of law não indica somente a tutela processual, como à primeira vista pode parecer ao intérprete menos avisado. Tem sentido genérico, como já vimos, e sua caracterização se
dá de forma bipartida, pois há o substantive due process e o procedural due process, para indicar a incidência do princípio em seu
aspecto substancial, vale dizer, atuando no que respeita ao direito
material, e, de outro lado, a tutela daqueles direitos por meio do
processo judicial ou administrativo.36
Os autores, que adotam esta posição, afirmam que o substantive due process
consiste em dar tratamento no sentido material equivalente ao previsto em lei. Isso,
ao que se pensa, não se cuida do devido processo legal e nada tem a ver com o processo e nem com o procedimento. Tem a ver e está ligado a outro princípio que se
tornou conhecido como princípio da legalidade ou da anterioridade da lei. Dar atendimento aos mandamentos legais de direito substantivo corresponde, sem dúvida,
ao respeito do princípio da legalidade ou da anterioridade da lei.
Nesse diapasão, pronunciou PREVITALLI CAIS (1996):
Essa garantia magnífica, que traz em si embutido o princípio da
legalidade, despontou na Idade Média, com a Magna Carta, conquistada pelos barões feudais saxônicos junto ao rei João Sem Terra, no limiar do Século XIII, como função limitadora do poder real
e não do Parlamento propriamente dito.37
35 DINIZ, José Janguiê Bezerra, Princípios constitucional do processo. p. 223; NERY JUNIOR, Nelson, obra citada. pp. 31 e 35.
36 NERY JUNIOR, Nelson, obra citada, p. 31.
37 PREVITALLI CAIS, Cleide. O Processo tributário. p. 53. São Paulo. Editora RT. 1.996.
244
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Percebe-se que essa autora fala em “princípio da legalidade”, ao se referir ao
devido processo legal substantivo. Esse princípio merece respeito e deve ser cultivado em todo momento, sempre e até mesmo antes e na fase pré-processual, pois
somente surge interesse de agir, quando for violada a lei ou for contrariado o princípio da legalidade. Desta forma, cumprir ou não cumprir a lei substantiva, pelo que
se pensa, nada influi no devido processo legal, senão no princípio da legalidade ou
no princípio da anterioridade da lei, este princípio que se encontra insculpido no
art. 5º, II, da CF), como princípio à garantia dos direitos humanos.
Ressalta-se que DINIZ (1997) afirma encontrar-se neste princípio o dever da administração somente agir conforme aquilo que dispõe a lei. São dele as palavras seguintes:
Noutro ressaltar, a administração só pode praticar atos ou celebrar negócios, havendo lei permitidora, é o que a doutrina chama
de princípio da submissão da administração à lei.
No direito privado, o mesmo não ocorre, haja vista que os particulares se norteiam pelo princípio da autonomia da vontade, onde
prevalece a liberdade de contratação e de realização de negócios
e da prática de todos os atos jurídicos, mesmo que a lei não preveja, contanto que não afrontem normas de ordem pública, e que
não sejam praticados contra os bons costumes.
No direito privado, é velho dito, o que não é proibido é permitido.
Isto decorre do consagrado no princípio nominado por autor de
obras de ‘atipicidade dos negócios jurídicos privados’. O fato de a
administração dever agir somente no sentido positivo da lei, isto é,
quando, lhe é por ela permitido, indica a incidência da cláusula
due process no direito administrativo.38
Com isso, confirma-se o que foi exposto acima, de que se trata do princípio da
legalidade ou da anterioridade da lei e não do devido procedimento legal. É o princípio da legalidade, pelo qual ninguém pode ser punido sem lei anterior que comine (estabeleça) essa pena e que é uma das maiores salvaguardas dos direitos humanos.
5.1.3. O devido procedimento legal processual - Procedural due
process
De outra forma, a doutrina analisa o que se tem chamado de procedural due
process que é visto sob o ponto de vista processual, mas, pelos pontos de vista apresentados, percebe-se a tendência e inclinação mais para o procedimento do que
para o processo propriamente dito.
38 DINIZ, José Janguiê Bezerra, obra citada, p. 223/224.
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Sabe-se que o processo forma uma relação jurídica nova e que se chama relação processual. Porquanto o procedimento não forma relação jurídica nova, apenas
determina as etapas e as formas com que os atos devem ser praticados.
É comum encontrar-se afirmação de que por este prisma, esse princípio é visto como corolário ao rápido e público julgamento, direito de citação, direito de arrolar testemunhas e fazer reperguntas, direito de produzir provas, oportunidade de
defesa (escrita e oral) perante o juiz, direito ao juiz natural ou competente etc.39
Versando sobre o assunto, assim afirmou SILVEIRA (1.996):
O devido legal procedimental refere-se à maneira pela qual a lei,
o regulamento administrativo, ou a ordem judicial, são executados. Verifica-se, apenas, se o procedimento empregado por aqueles
que estão incumbidos da aplicação da lei ou regulamento viola o
devido processo legal, sem se cogitar da substância do ato. Em outras palavras, refere-se a um conjunto de procedimentos (…).40
Seguindo a mesma trilha, CARVALHO (1994), também acentuou, em monografia, na qual tratou dos princípios processuais constitucionais, o aspecto procedimental do devido processo legal e suas são as palavras seguintes:
Ora, somente com o devido processo legal garante-se ao cidadão
uma atuação imparcial do poder jurisdicional, protegendo a sua
liberdade e seus bens.41
Essas colocações, aliadas às já anteriormente apresentadas, parecem demonstrar a incidência procedimental do devido processo legal, ao passo que a matéria relacionada à norma substantiva ou material, ao que se pensa, é garantia de outros
princípios, tais como o da anterioridade da lei, da tipicidade ou princípio da legalidade. Esses três princípios não se confundem com o do devido procedimento legal.
5.2. Privação da liberdade ou dos bens
Conforme dispõe o art. 5º, LIV, da CF, ninguém será privado de sua liberdade
e de seus bens sem o devido processo legal. Exige-se que exista um procedimento
legal (procedimento previsto em lei), para que o mesmo seja seguido e respeitado
sem prejudicar a defesa do interessado.
39 DINIZ, José Janguiê Bezerra, obra citada, p. 224.
40 SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal. pág. 65.
41 CARVALHO, Luiz Airton de. Princípios processuais constitucionais, Cartilha Jurídica, TRF/1ª Região, nº 28, p.
09, Setembro de 1.994.40.
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faculdade de direito de bauru
A partir disso, pode-se firmar posição de que ninguém pode ser preso ou ficar privado de seus bens sem o devido procedimento legal, ou seja, um procedimento preestabelecido em lei, já que ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer, senão em virtude de lei (art. 5°, II, CF), bem como ninguém pode ser condenado a alguma pena sem prévia cominação legal (art. 5°, XXXIX, CF). Isto é, nem a
pena privativa de liberdade e nem a pena de perdimento de seus bens. A declaração
de ineficácia por reconhecimento da fraude à execução, nada mais é do que uma forma disfarçada e simulada de declarar a perda do bem.
Pode parecer estranho que, em pleno terceiro milênio, apesar da garantia
constitucional de que “ninguém será privado de sua liberdade e de seus bens sem o
devido processo legal”, ainda existem tais anomalias nos meios forenses. Não é tão
raro decretar-se a prisão de pessoas sem lei anterior que autorize essa prisão42 e, da
mesma forma, é comum determinar a constrição de bens do adquirente sob a alegação de fraude de execução sem que o mesmo tenha antes oportunidade de defesa e sem o devido processo legal.43
5.3 Gratuidade da justiça
A gratuidade da prestação jurisdicional é uma das balizas dos direitos humanos, porque desumano seria apenas permitir que aquele que tem recurso tivesse
acesso ao judiciário e outras pessoas sem recurso não tivessem a mesma sorte. Visando a garantir a igualdade de oportunidade instituiu-se no âmbito do processo civil a gratuidade da justiça, consistente na dispensa de pagamento de despesas e custas processuais, para aqueles que não possam fazê-lo sem o sacrifício do próprio sustento ou da manutenção de sua família.
É um instituto da mais alta relevância, pena que mal compreendido por alguns
juízes, que tudo fazem para negá-lo, sob os mais variados argumentos. Negar o acesso ao Poder Judiciário é negar a justiça, um dos mais legítimos direitos humanos. Por
se tratar de garantia constitucional e por integrar os mais sagrados direitos da pessoa, como é a busca da justiça, esse benefício deve ser concedido mesmo naqueles
casos de dúvida de sua necessidade.
Conforme expôs ALVARES,44 por justiça gratuita deve ser entendida a gratuidade de todas as causas e despesas judiciais ou não, relativas a atos necessários
ao desenvolvimento do processo e à defesa dos direitos do beneficiário em Juízo. O acesso à justiça, por ser um dos elementares direitos do cidadão, não pode
ser dificultado, menos ainda impedido por falta de condições econômicas. A pes42 SOUZA, Gelson Amaro de. Prisão do depositário judicial – uma prisão costumeira no terceiro milênio. Revista Dialética de Processo Civil, v. 19. São Paulo: Dialética, outubro, 2004.
43 Mais amplamente, ver nosso, Fraude à execução e o direito de defesa do adquirente. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002.
44 ALVARES, Anselmo Prieto. Uma moderna concepção de assistência jurídica gratuita. RT. v. 778, p. 50.
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42
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soa tem direito natural à justiça e não simplesmente de ingresso no judiciário.
Tem direito à ordem jurídica justa com a aplicação do direito, não bastando um
simples acesso ao judiciário, tem direito à prestação jurisdicional, que é atividade desenvolvida pelo judiciário para a efetividade do processo. Não basta o simples ingresso em juízo, o mais importante não é a entrada, mas a saída com a
prestação jurisdicional garantida.
5.4 Proteção ao direito de moradia
A penhorabilidade e a impenhorabilidade de bens têm sido consideradas como
disciplinas de direito civil e não processual. Seja como for, os efeitos delas recaem sempre no processo, pois neste é que se efetiva ou deixa de se efetivar a penhora.
Um dos maiores avanços, nos últimos tempos, foi a lei n° 8.009 de 1990, que
garantiu a impenhorabilidade dos bens que guarnecem a residência do devedor,
bem como o próprio imóvel que esteja servindo de sua residência. Trata-se de grande avanço rumo ao respeito dos direitos humanos, pois se a moradia é um dos direitos humanos mais reclamados, não se pode mesmo retirá-la do devedor. Não se
trata, como pensam alguns, de estimular o calote.45 Muito diferentemente, trata-se
de respeitar o princípio constitucional da proporcionalidade, pois entre o devedor
ficar sem moradia e ficar ao relento e o credor ficar apenas sem receber o seu crédito, proporcionalmente, esta última é muito menos danosa. É preferível que o credor fique sem o seu crédito do que o devedor fique sem moradia.
Como observa NUNES46, hoje é, reconhecidamente, de fundamental importância a casa de família, o lar, constituindo-se essa a base da sociedade e da nação,
sendo esta, na expressão de Ruy Barbosa, nada mais que a família ampliada. É, sem
qualquer sombra de dúvida, um instituto voltado ao atendimento dos direitos humanos e, mais especificamente, ao direito de moradia. A pessoa sem moradia não
pode viver com dignidade. A falta de condições de vida com dignidade aniquila a
personalidade, abala a auto-estima e coloca a pessoa em sofrimento permanente.
5.5 Prioridade aos processos dos idosos
Outra medida recente, mas que desde há muito já se ressentia de sua criação,
é a prioridade do procedimento das causas de interesse dos idosos. Em um País
igual ao Brasil, em que os processos duram anos e anos, seria extremamente desumano deixar o idoso à míngoa de uma prestação jurisdicional por longo tempo.
Essa medida adotada recentemente pela Lei n° 10.173 de 2001, que alterando
o Código de Processo Civil, instituiu o artigo 1211-A, pelo qual os procedimentos ju45 WAMBIER, Luiz Rodrigues. A crise da execução e alguns fatores que contribuem para a sua intensificaçãoalgumas proposta para minimizá-la. RJ 316, p. 36.
46 NUNES, Helio da Silva. O bem de família e sua evolução jurisprudencial. RT. v. 785, p. 145.
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diciais em que figure como parte ou interveniente pessoa com idade igual ou superior a sessenta e cinco anos47 terão prioridade na tramitação de todos os atos ou diligência, em qualquer instância. Longe de ser um privilégio, é o atendimento aos reclamos das necessidades da pessoa idosa e o respeito aos direitos humanos do idoso, através do procedimento em processo civil.
5.6 Tutela antecipada
Outra figura que indiretamente contribui imensamente para a proteção dos direitos humanos é a tutela antecipada dos direitos pretendidos. É notório que o procedimento a ser utilizado no processo é longo e demorado, visto que, para o atendimento
do devido procedimento legal, várias são as etapas procedimentais, sendo, por isso, moroso o procedimento de qualquer ação. Atendendo aos reclamos da doutrina mais moderna, o legislador acabou por ceder e instituir essa providência de grande valia, que se
tornou conhecida por tutela antecipada ou antecipação de tutela.
Em verdade, e em princípio, a tutela a ser deferida é mesma. Apenas o momento
é que difere da tutela tradicional. Na tradicional, o pedido somente era atendido ao final
do procedimento, quando então o juiz proferia a sentença. Na tutela antecipada, é o pedido que é atendido provisoriamente, desde o início, por decisão incidente. Isso atende
melhor aos desígnios dos direitos humanos, porque a parte interessada não precisa
amargurar por longos anos à espera do provimento jurisdicional. Assim, poderá ter, desde logo e imediatamente, tutela de seus direitos e garantir, no que diz respeito a isso, a
possibilidade de viver com dignidade enquanto o processo tramita lentamente.
5.7 Tutela inibitória
Também a chamada tutela inibitória contribui e, em muito, para a proteção e
efetivação dos direitos humanos. Sabe-se hoje que efetivar ou proteger direitos não
é apenas reparar o mal causado. Melhor que isso, é impedir que se cause o mal.
Depois que o mal foi causado, jamais existirá uma reparabilidade completa48.
Por mais que se pense em reparar o mal causado, haverá aspectos maléficos irreparáveis. Imagina-se em caso de poluição ao meio ambiente, por exemplo, por mais
que se imponha multa, reparação por perdas e danos, indenização, a saúde, que é o
bem maior, não mais se recupera. São casos em que a tutela inibitória pode contri-
47 O estatuto do idoso, Lei 10.741, de 01-10-2003, fixou em 60 anos a idade para ter direito nesse benefício (art. 71).
48 “O direito à tutela do direito, como é óbvio, geralmente é conferido ao autor - se o caso for de procedência
– ao final do procedimento. Quando há fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, admitese que o autor possa, quando lhe possível demonstrar a probabilidade do direito que afirma possuir, requerer a antecipação da tutela almejada”. MARINONI, Luiz Guilherme. O direito à efetividade da tutela jurisdicional na perspectiva da teoria dos direitos fundamentais. RDPC. v. 28, p. 304. Curitiba: Gênesis, abril-junho, 2003.
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buir, e muito, para evitar o dano e evitar que a pessoa seja prejudicada em sua dignidade humana.
O sistema processual brasileiro, com o instituto da tutela inibitória, pode evitar danos à pessoa e evitar que a mesma seja atingida em sua dignidade pessoal.
Pena é que se trata de instituto pouco conhecido e ainda pouco utilizado no direito
pátrio. No entanto, há de se convir com MARINONI,49 para quem, atualmente, diante da inclusão da locução “ameaça a direito”, no artigo 5º, XXXV, da CF, afirmando
o princípio da inafastabilidade da apreciação do judiciário a qualquer ameaça ao direito, não há mais qualquer dúvida sobre o direito à tutela jurisdicional, através do
processo civil, capaz de impedir a violação do direito.
5.8 Efetividade da tutela jurisdicional
Nada mais constrangedor e até mesmo causador de sofrimento do que a indecisão criada por situações litigiosas, enquanto a lide não é resolvida. Traumática,
como se sabe, é a demora no provimento jurisdicional final. Também já se sabe que,
nos dias modernos, não basta que o juiz resolva a ação declarativa, necessário se faz
que torne efetiva a prestação jurisdicional, o que se acostumou chamar de efetividade da tutela jurisdicional.
A efetividade da tutela jurisdicional é um dos apanágios da proteção dos direitos
humanos. Ressalta-se que o artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal, assegura que a lei
não pode excluir da apreciação do Judiciário qualquer lesão ou ameaça ao direito. A garantia é constitucional, mas o meio de efetivá-la é processual, através do direito de ação.
Esse direito de ação somente pode ser exercido através do processo. Disso resulta a importância do processo civil, na defesa e proteção dos direitos humanos. Toda defesa dos
direitos humanos, na órbita civil, há de passar pelo crivo do direito processual civil.
6.
ALGUNS COSTUMES QUE VIOLAM OS DIREITOS HUMANOS
A par da utilização de várias medidas processuais em atendimento aos direitos, lamentavelmente ainda existem alguns costumes que não condizem com a proteção dos direitos humanos; ao contrário, até atentam contra estes. A prisão do depositário judicial sem lei que a determine, a declaração de fraude à execução sem
processo e procedimento próprio e sem se atender ao devido procedimento legal,
a privação dos direitos de incapazes, com a retenção de dinheiro a eles pertencente para ficar em depósito judicial, sem lei que o autorize, a barreira disfarçada para
impedir o envio de recurso à instância superior, entre outros. Tudo isso é realizado,
tendo em vista costume do passado, mas sem lei que o autoriza.
49 MARINONI, Luiz Guilherme. O direito à efetividade da tutela jurisdicional na perspectiva da teoria dos direitos fundamentais. RDPC. v. 28, p. 303.
250
faculdade de direito de bauru
6.1 A abusiva declaração de fraude de execução sem o devido procedimento legal
O procedimento a ser seguido para o reconhecimento e a declaração da fraude à execução tem sido um grande desafio aos aplicadores da lei. Sabe-se que o sistema processual não reservou espaço para um procedimento especial de declaração
de fraude de execução, como o fez para o caso da inclusão como legitimados à execução do espólio ou dos sucessores do executado falecido. Se assim não o fez o legislador, não pode o aplicador da lei fazê-lo, ante a ausência de norma expressa (art.
271, do CPC).
O velho e superado costume de se decidir pela fraude de execução, sem prova
e por mera presunção, é coisa do passado e, ante a notória e a flagrante injuridicidade
e inconstitucionalidade deste procedimento costumeiro, ele deve ser extirpado do nosso mundo jurídico. Nesse sentido, reconhecendo a necessidade de um procedimento
previsto em lei para a privação de bens já se manifestou a eminente magistrada Rosângela Maria TELLES que, em brilhante trabalho doutrinário, assim se expressou:
O inciso LIV consagra que ‘ninguém será privado da liberdade ou
de seus bens sem o devido processo legal’. Com isso, o processo deve
ser adredemente previsto no ordenamento jurídico.50
Se no passado a penhora de bem do terceiro adquirente sem um processo e
procedimento com a defesa do adquirente era considerada normal, hoje já não
pode mais. Se no sistema jurídico passado isso era aceitável, deixou de sê-lo a partir do novo sistema constitucional instituído com a Constituição Federal de 1.988.
Com a Constituição atual, afastou-se qualquer dúvida a respeito da necessidade de
um devido procedimento legal para o reconhecimento de fraude à execução51 e a
realização da penhora do bem de terceiro. Em se reconhecendo a penhora como figura constritiva e por isso privativa de bem, impõe-se, por exigência constitucional,
que isso somente se dê mediante o devido procedimento legal.
Nesse sentido, é a brilhante e acertada advertência de TESHEINER (2000),
quando assim expôs:
O art. 5°, LIV, da Constituição estabelece que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.
Esse processo a que se refere a Constituição, é processo jurisdicional, que supõe ação, juiz e réu.
50 TELLES, Rosângela Maria. Princípio constitucional do devido processo legal. “in” Temas de Processo Civil,
coordenado por Kiyoshi Harada, p. 171, Editora Juarez de Oliveira. São Paulo: 2000.
51 Ver nosso: Fraude à execução e do direito de defesa do adquirente. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002.
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Não se admite, pois, que alguém seja privado da liberdade ou de
bens de seu patrimônio, por atos administrativos e, menos ainda,
por atos de “justiça de mão própria”.52
O mesmo eminente professor TESHEINER (2000), mais adiante noticia:
Numa das primeiras aplicações do art. 5°, LIV, da Constituição de
1988, a 3ª Câmara Cível do tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul
afirmou a inconstitucionalidade da execução extrajudicial prevista
no Decreto-Lei n. 70, de 21 de novembro de 1966:
Dir-se-ia que o Decreto-Lei n. 70/66 não impede o acesso à Justiça, restando sempre ao prejudicado o ensejo de propor demanda onde se
apreciem os aspectos materiais e formais da execução forçada extrajudicial, como, por sinal, o fez o proponente desta ação. Porém a possibilidade de posterior ingresso no Judiciário jamais pode justificar a
permanência do que é inconstitucional, de qualquer forma, porque
afronta outros regramentos constitucionais, como é o caso do princípio do devido processo legal, da igualdade perante a lei, da isonomia
processual.
Se antes havia acórdãos resolvendo pela constitucionalidade, é preciso levar em conta que não se encontrava, na anterior Carta Magna,
norma como a do art. 5°, LIV, da atual, impondo que ninguém será
privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.53
Vale citar e transcrever aqui, as palavras do Eminente Décio Antonio ERPEN, em
relação ao assunto, quando disse: “Para evitar cometimento de injustiças, penalizando
inocentes, reitero que nosso sistema jurídico se arrima no princípio da boa-fé”.54
A boa-fé do adquirente deve ser sempre presumida e a má-fé deve ser sempre
provada. Isso é princípio elementar de direito; não pode ser desconhecido de ninguém,
muito menos ainda de um julgador. A declaração de fraude de execução atinge terceiro
que não participa do processo de execução e, por isso, exige melhor atenção à norma
Constitucional (art. 5º, LIV e LV) e, por via de conseqüência, ser-lhe-á assegurada a ampla defesa, o contraditório e o devido procedimento legal em toda a sua extensão.
O respeito ao devido procedimento legal não pode faltar em processo e procedimento algum, assim também deverá ser em relação ao procedimento para co52 TESHEINER, José Maria. Pressupostos processuais. p. 25/26.
53 TESHEINER, José Maria. Obra citada, pág. 26. Indica como fonte: TARS, 3ª Câm. Civ. Ap. 189.040.983(sic). Rel.
Sérgio Gischkow Pereira, j. 25-10-1989. No mesmo sentido encontra-se julgamento em incidente de Arguição
de Inconstitucionalidade na ap. 189040938 –Órgão Especial do TACRS, j. 1°/6/1990. Relator Ivo gabriel da Cunha, publicado em JTARGS 76/81.
54 Revista dos tribunais, vol. 624, pág. 37.
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faculdade de direito de bauru
nhecer, reconhecer a existência de fraude de execução e declarar a ineficácia da alienação feita em fraude.
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, LIV, afirma de forma peremptória
que: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Bem de ver que a Carta Maior não abre exceção e nem permite exclusão. Ela
diz “ninguém” será privado de seus bens sem o devido processo legal.
Se a Constituição Federal diz “ninguém” é porque não permite exceção e todos ficam ao abrigo do devido processo legal. Assim também deve estar o adquirente da coisa, cuja aquisição está sendo acoimada de fraudadora da execução. Que a
penhora sobre o bem do terceiro adquirente provoca-lhe restrição de direitos e de
seu bem propriamente dito, não pode haver dúvida.
A penhora sempre será uma restrição ao direito do titular sobre o bem e não
pode ser realizada sem a previsão de um procedimento previsto em lei.
É de se lembrar que dentre as regras inovadoras da atual Constituição está a contida no artigo 5°, LIV, dispondo que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens
sem o devido processo legal. Nesse sentido aparece a lição de TEIXEIRA, para quem o
princípio constitucionalmente contemplado significa a síntese de três cânones fundamentais do processo: o do Juiz natural, o do contraditório e o do procedimento regular. Esclarecendo que este último corresponde à observância das normas e da sistemática previamente estabelecida como garantia das partes no processo.55
O terceiro adquirente deve ter direito e deve ter acesso ao devido procedimento legal, com direito ao contraditório e a ampla defesa e somente depois é que
deve o juiz pronunciar sobre a eventual existência de fraude à execução com a declaração de ineficácia do negócio jurídico e, a partir daí, é que seu bem poderá sofrer a constrição pela penhora.
Permitir-se a constrição do bem de terceiro, antes de oportunizar, ao adquirente da coisa, o procedimento legal com o contraditório e a ampla defesa, é, sem
qualquer sombra de dúvida, violar o princípio constitucional do devido procedimento legal. Interessante nesse sentido foi a observação do ínclito magistrado Joaquim
MOLITOR que, com muita lucidez assim se exprimiu:
Outrossim, o direito de defesa não se exerce apenas no momento
da resposta, com o oferecimento da contestação, ou se for o caso,
exceção ou reconvenção, mas se amplia por todas as etapas procedimentais, constituindo cerceamento de defesa, com violação da
garantia constitucional, qualquer restrição aos meios de prova,
ou decisões não antecedidas de contraditório.56
55 TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. AJURIS 44/86.
56 MOLITOR, Joaquim. Plenitude da defesa. “in” Temas de Processo Civil. Pág. 157-158. Coordenação de Kiyoshi
Harada. Editora Juarez de Oliveira. São Paulo: 2000.
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n.
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253
Decidir pela fraude de execução, em simples incidente, dentro do processo
de execução, onde se ouve apenas o credor, como vem acontecendo, é prática que
não deve ser estimulada.57 Não é o direito do credor à satisfação do crédito que poderá ilidir outros direitos maiores como as garantias fundamentais e constitucionais
do direito ao tratamento igualitário, do devido procedimento legal, da ampla defesa
e do contraditório, que devem ser assegurados ao adquirente, até mesmo porque se
cuida de garantia maior prevista na Constituição Federal. O direito de defesa é o
mais sagrado e importante direito conhecido e existente entre os povos; neste passo, vale a pena anotar a advertência de COUTURE (1951), para quem, “nunca haverá justiça se, havendo duas partes, apenas se ouvir a voz de uma”.58
Se é verdade que o credor tem um direito infraconstitucional à satisfação de
seu crédito, não é menos verdade que o adquirente tem outros direitos maiores e
garantidos constitucionalmente, que são os direitos humanos e fundamentais do cidadão. Assim, há confronto de direitos, o direito do credor, quanto o direito do terceiro adquirente na qualidade de novo proprietário. Em sendo assim, o que se tem
que dirimir em primeiro plano é qual o direito ou quais os direitos que devem ser
atendidos preferencialmente.
É princípio geral de direito que, no confronto entre o direito garantido constitucionalmente e outro direito em sentido contrário, garantido por norma infraconstitucional, deve prevalecer o primeiro. É de saber notório e elementar que sempre haverá
de prevalecer a Constituição Federal frente à legislação infraconstitucional.
Dessa forma, antes da satisfação do crédito do credor interessado na declaração da fraude de execução, deve ser garantido ao adquirente o devido procedimento legal, ainda que isso demande certo tempo e algumas despesas processuais. É
certo que o credor tem um direito infraconstitucional de crédito, mas o terceiro adquirente tem, além da garantia constitucional de um direito de defesa, ainda o direito constitucional de propriedade que, por serem garantidos constitucionalmente
devem prevalecer sobre o direito do credor.
Seguindo esses parâmetros, é de se convencer de que antes da declaração da
fraude de execução, deve assegurar-se o devido procedimento legal, tanto ao executado (alienante), quanto ao terceiro adquirente, sendo que este, na grande maioria das
vezes, o faz na mais expressiva inocência e boa-fé. Fora isso, o que se vê é arbitrariedade, é inconstitucionalidade e ausência de um estado de direito. Um sistema jurídico
evoluído e um estado de direito que se presa não pode permitir que alguém sofra restrição ou constrição de seu bem sem o devido processo legal. A Constituição Federal,
em sua função altaneira e com os mais lídimos propósitos de se estabelecer, no País,
um verdadeiro estado de direito, preocupou-se de estabelecer a exigência de um devi57 TAMG. Ap. 269.966-1. RJTAMG 74/196.
58 COUTURE, Eduardo J. Introdução ao estudo do processo civil. Pág. 54, 3ª edição. Tradutor Mozart Victor Russomano. Rio de Janeiro: José Konfino Editor. 1951.
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faculdade de direito de bauru
do procedimento legal anterior, com ampla defesa e contraditório, para somente depois alguém poder sofrer constrição em seus bens ou seus direitos, conforme clara e
expressamente é a normatização do artigo 5°, LIV e LV da CF .
O jurista do seu tempo, no entanto, deve viver com sua época, se não quiser que
esta viva sem ele.59 Por isso é que a doutrina e a jurisprudência mais moderna proclamam
a necessidade antes do devido procedimento legal, ampla defesa e o contraditório para
somente depois e por sentença em ação própria reconhecer-se a fraude de execução.60
O homem do seu tempo não deve curvar-se às doutrinas convencionais ou à
jurisprudência subserviente, mas se revestir da coragem de se preferir
ser justo, parecendo injusto, do que injusto para salvar as aparências (Calamandrei), mesmo que tenha que divergir do entendimento predominante, procedendo como bonus iudex, ou seja,
aquele que adapta as normas às exigências da vida.61
É de lembrar ainda a advertência de CANOTILHO (1997) lavrada nos seguintes termos:
Seria, porém, científica e pedagogicamente redutor ensinar apenas o direito positivo sem fornecer algumas propostas quanto aos
modos de interpretar e aplicar as normas de uma lei fundamental. Quem quiser ser um verdadeiro jurista não pode desconhecer
a metódica constitucional. O último patamar do saber é fornecido
pela teoria da constituição (...).62
Em nome dos direitos humanos, fica, pois, este brado de alerta, o direito começa pela Constituição e somente poderá ser considerada perfeita a interpretação
que parte dessa norma maior e que a respeite e a adote. Ninguém poderá se dar ao
luxo de se dizer intérprete ou jurista, sem seguir as normas constitucionais. Mal conhece o direito, quem mal conhece a Constituição.
6.2 A absurda prisão civil do depositário judicial sem lei
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo decidiu que não tem mais cabimento a prisão do depositário em razão da superveniência do Pacto Internacional
de São José da Costa Rica.63 Indiferentemente do partido que se queira tomar em re59
60
61
62
63
Ver Josserand, Derecho Civil, nº 558, vol. I.
RT. 772/153, 776/231; RNDJ 7/202; ADV-COAD 18/287(2000).
Confira: Salvio de Figueiredo Teixeira, Revista Brasileira de Direito Processual, vol. 28, pág. 120.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. Pág. 21.
TJSP. AgIn. 62.449-5.09-02-1998. “PRISÃO CIVIL - Depositário infiel – Não cabimento com o advento do Pacto
Internacional de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário. Decreto Federal n. 678, de 1992”. JTJ-Lex.
v. 204, p. 207.
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lação ao alcance do Pacto de São José da Costa Rica que, para os mais conceituados
estudiosos do assunto64, afastou toda e qualquer possibilidade de prisão civil, aqui
apenas se procura levar em conta a questão relativa à responsabilidade do depositário judicial e não a convencional ou legal, prevista no Código Civil.
Como é fácil perceber, para a figura do depositário judicial, não é de essência a
guarda de coisa alheia. Na grande maioria dos casos, o depositário é devedor e guarda
a sua própria coisa, o que se afasta do depósito clássico. Ademais, para que se configure o depósito clássico é necessário que a guarda da coisa alheia seja a obrigação principal e não acessória e, secundariamente, somente para a garantia de dívida.
Não se encontra no sistema jurídico brasileiro norma alguma a contemplar a
prisão do depositário judicial, que é uma espécie de prisão administrativa. Entre o
depositário judicial e o juiz existe uma relação de subordinação hierárquica, no dizer de THEODORO JUNIOR.65 Ora, se o que existe é uma relação de hierarquia entre o juiz e o depositário judicial, afastada está a idéia de contrato onde as partes ficam em igualdade, sem hierarquia. De outra forma, a hierarquia induz relação jurídica administrativa e se nesta há depósito, este será de natureza administrativa e
não se cuida de relação contratual civil, conforme dispõe o Código Civil.66 Como
este somente regula a relação de depósito civil e não a administrativa, esta ficou
sem regulamentação.
Conforme restou exposto acima, mudando seu pensamento, o mesmo Professor THEODORO JUNIOR67 passou a afirmar que inexiste na regulamentação legal do
depósito judicial qualquer dispositivo que regule ou autorize a prisão civil do depositário judicial. Afirma, ainda, que a previsão contida na Constituição Federal é genérica e excepcional, esclarecendo que conforme o artigo 5°, LIV, ninguém poderá ser
privado de seus bens ou de sua liberdade sem o devido processo legal.
No seu descortino avançado, THEODORO JUNIOR68 arremata que não seria jamais aberto ao juiz o arbítrio de ordenar a prisão do depositário judicial, sem a mínima previsão em lei, até porque se a ação de depósito é a única via processual em
que se chega à prisão do depositário judicial, a conclusão forçosa seria a de que inexiste “forma legal” para decretar-se a prisão do depositário do juízo.
Essa conclusão parece ser a única viável diante da circunstância de que o Código
Civil (art. 652) fala apenas em depósito voluntário ou necessário, espécie do gênero depósito civil. Nada falando sobre depósito judicial ou administrativo, até porque não seria ali sede própria para tal. O Código de Processo Civil não comina pena ao depositário judicial, e o procedimento descrito nos artigos 901 a 906 somente se refere aos ca64 Por todos: MAZZUOLI, Valério de Oliveira Prisão civil por dívida e o pacto de San José da Costa Rica. 2002.
65 THEODORO JUNIOR, Humberto. Processo de execução. 18ª edição, p. 363.
66 Código Civil. Artigo 652. Seja o depósito voluntário ou necessário, o depositário que não o restituir quando exigido será compelido a fazê-lo mediante prisão não excedente a um ano, e ressarcir os prejuízos.
67 THEODORO JUNIOR, Humberto. Processo de execução. 18ª edição, p. 364.
68 THEODORO JUNIOR, Humberto. Processo de execução. 18ª edição, p. 365.
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faculdade de direito de bauru
sos de depósito civil ou clássico e não aos casos de depósito processual ou administrativo, de forma que nem mesmo cabe ação de depósito, no caso de depositário judicial.69
A confirmação que aqui se tem sustentado, em relação à inexistência de lei a
amparar a prisão do depositário judicial, está estribada no Projeto de Lei (n°
1214/03) apresentado pelo nobre Deputado Luiz Bittencourt e que se encontra na
Comissão de Constituição e Justiça, pelo qual se busca a alteração do art. 150 do
CPC, para nele incluir a possibilidade de prisão do depositário judicial.
Este aspecto é interessante por um lado, porque demonstra que até agora inexiste lei nesse sentido, pois se lei existisse não precisaria de outra para autorizar a
prisão. Se o nobre Deputado está querendo com o projeto de lei obter alteração do
CPC, para criar essa figura de prisão, é porque até o momento ela inexiste.
De outro lado, como alerta MAZZUOLI,70 esse projeto de lei é inconstitucional, porque contraria o Pacto de São José da Costa Rica, incorporado em nosso sistema constitucional.
Ainda que se esqueça o referido pacto, a inconstitucional subexiste porque a
Constituição da República não permite a prisão por dívida e depósito judicial por ser
apenas meio de garantir a execução, que é a relação principal, indiretamente se
constitui em pagamento de dívida. Tanto é assim que basta o depositário pagar para
a prisão se encerrar. Não se trata de depósito como relação principal e sim depósito para satisfazer a execução, o que caracteriza caso de prisão por dívida.
Se de um lado inexiste norma cominando pena de prisão civil ao depositário
judicial, de outro existe norma estabelecendo quais as conseqüências a que está sujeito o depositário judicial e, como bem lembra AMARAL SANTOS71, este responde
pelos prejuízos que, por dolo ou culpa, causar às partes, no descumprimento do encargo. Assim também já foi decidido pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina,72 com
o entendimento de que, em caso de descumprimento do encargo de depositário judicial, a conseqüência é a responsabilidade pelos prejuízos causados.
Em verdade, o artigo 150 do Código de Processo Civil, a única norma que regula matéria, impõe apenas, como conseqüência do descumprimento dos deveres
do depositário, a obrigação de responder pelas perdas e danos, nada falando de prisão do depositário.73
69 “Prisão – Depositário para garantia do crédito, e não para a guarda da coisa- Prisão do depositário desautorizada, especialmente na hipótese de bens fungíveis, quando aplicáveis as regras do mútuo – Análise da jurisprudência – Prisão indeferida. Decisão mantida. JTACSP-Lex v. 150, p. 18.
70 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Prisão de depositário infiel e responsabilidade internacional do Estado. Brasília: Correio Brasilense de 26/07/2004. p. 01.
71 AMARAL SANTOS, Moacyr. Primeiras linhas de direito processual civil. v. 3, p. 296.
72 TJSC. AgIn. 96.009925-5, 3ª Câmara. J. 28.04.1998. “A função pública de depositário judicial gera a obrigação de
guarda e conservação dos bens penhorados, sob pena de responder pelos prejuízos causados por culpa ou
dolo, conforme dispõe o art. 150 do CPC.”. RT. 754/407.
73 CPC. “Art. 150. O depositário ou o administrador responde pelos prejuízos que, por dolo ou culpa, causar à parte, perdendo a remuneração que lhe foi arbitrada; mas tem o direito a haver o que legitimamente despendeu
no exercício do encargo”.
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257
Como o depositário judicial é um auxiliar do juízo e a este está vinculado administrativamente, caso fosse admitida a prisão civil, esta seria de natureza administrativa. No entanto, a nossa sistemática constitucional atual não permite mais a prisão administrativa, fora dos casos de prisão militar (art. 5°, LXI, da CF).
Que a prisão de depositário judicial é de natureza administrativa, já foi reconhecida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.74 Em se tratando de prisão de natureza administrativa, não está autorizada pela Constituição Federal (art. 5°, LXI). Observando a
questão por outro enfoque, pode-se dizer que a prisão do depositário infiel somente poderá ocorrer nos casos de depósito típico, em que a obrigação principal se constitua no
próprio depósito e não quando se trata de obrigação principal de dívida onde o depósito aparece secundariamente. Nesse sentido já foi decido pelo Superior Tribunal de Justiça, onde se entendeu que a Constituição da República autoriza a prisão civil por dívida
em dois casos, apontando um deles, como a situação de depositário infiel e advertindo
que se devem separar as duas situações de depósito, uma como obrigação principal e
outra como obrigação acessória, afirma que a prisão civil somente é cabível no caso de
depósito como obrigação principal, sendo impossível estendê-la à segunda, ou seja, nos
casos de obrigação acessória, onde é impossível a decretação da prisão do depositário.75
Dois aspectos interessantes merecem ser lembrados:
a) o primeiro deles é o absurdo caso em que o devedor, diante da penhora do
crédito, na forma do artigo 671 e 672, § 2° do CPC, mesmo alegando que
não pagaria porque a dívida estava prescrita, teve a sua prisão decretada. O
terceiro não foi executado, o seu credor é que o foi e houve a penhora apenas do crédito e sem haver qualquer ato de transferência de coisa para depósito, mesmo porque coisa alguma existia, foi esse terceiro considerado
depositário (art. 672, § 1° do CPC) e, por se entender prescrita a dívida, deixou de fazer o depósito (art. 672, § 2° do CPC).76 Um caso típico de prisão
por dívida e não de depósito pela guarda de alguma coisa alheia.
b) o segundo aspecto que merece muita atenção é a circunstância de que o
depositário judicial somente o é, em razão de alguma dívida que se quer
garantir e não em razão de guarda de coisa alheia que se tem de devolver.
De regra, o depositário judicial assume esse encargo não por livre e espontânea vontade, mas por imposição da situação em que se vê envolvido em
alguma execução. O bem depositado é para a garantia de pagamento de dívida ou de alguma obrigação de entrega de coisa.
74 TJSP. 3ª câmara Criminal. 3.780-3. j. 22-09-1980; “Cabível, no caso, o “habeas corpus”, pois a decisão que decreta a prisão administrativa de depositário infiel é agravável de instrumento, sem suspensividade.” RT. 544/316.
75 STJ. RHC. 3.901.9. JSTJ e TRF-Lex. v. 82, p. 304. São Paulo: Lex, junho 1996 e ainda REsp. 3.413 e 3.909, citados
em RT. v. 751, p. 288.
76 STF. 2ª Turma. RHC. n° 66.614-1-SC. Rel. Min. Carlos Madeira. J.13.09.1988. DJU. 30.09.1988. p. 24.986. “Depositário de crédito do devedor, determinada pelo Juiz do processo de execução. Se o depositário não depositou
em Juízo a importância respectiva, no vencimento do título, eximindo-se de fazê-lo por entender prescrita a ação
de cobrança, cabe a prisão civil, independente da ação de depósito”. Bol. AASP. n° 1560. p. 272. de 09-11.1988.
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faculdade de direito de bauru
Se o bem já se encontra sob constrição judicial, a sua disposição pode configurar fraude à execução (art. 593, do CPC) e a disposição em fraude de execução é
considerada ineficaz perante o credor-exeqüente (art. 592, do CPC). Ora, se a disposição da coisa é considerada ineficaz (art. 592, do CPC), podendo o credor prosseguir na execução e buscá-la nas mãos de quem quer que seja, nenhum prejuízo haverá para esse credor, nesse caso a coisa sai das mãos do depositário, mas não sai do
processo, continua como garantia da execução. A execução prossegue como antes
sobre o bem alienado. Logo, não se há de falar em prejuízo e nem em depositário
infiel, menos ainda em prisão do depositário infiel como já se decidiu. Aliás, assim
já foi decidido pelo Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, com o entendimento
de que tal disposição é inoperante diante do juízo da execução.77
6.2.1 Antecedentes Jurisprudenciais
Na jurisprudência, são registrados antecedentes que comungam com a posição até agora exposta. Bastante exemplificativo foi o julgamento proferido no Tribunal de Justiça de São Paulo, pela Egrégia Sétima Câmara de Direito Público, com relatoria do eminente Des. Walter Swensson, com a seguinte ementa:
EXECUÇÃO FISCAL – Penhora – Bens do estoque rotativo – Alienação
em outras execuções fiscais – Depositário – Decretação da prisão –
Inadmissibilidade – Matéria regulada pelo Código de Processo Civil
– Inexistência de previsão legal para a hipótese – Recurso provido.
Inexiste na regulamentação legal do depósito judicial qualquer dispositivo que regule ou autorize a prisão civil do depositário.78
Agravo de instrumento – Executivo fiscal – Penhora de bens do estoque
rotativo, alienados em outras execuções fiscais – Decisão que decretou
prisão de depositário – Inadmissibilidade – Inexistência na regulamentação legal do depósito judicial de qualquer dispositivo que regule
ou autorize a prisão civil do depositário – Recurso provido.79
77 “PRISÃO CIVIL. Ameaça de decretação contra depositário infiel – Alienação de parte do bem imóvel penhorado, por cuja evicção não responde – Ineficácia da mesma, em face do art. 592, do CPC. Constrangimento ilegal configurado. Concessão de Habeas Corpus. A alienação, sem responder pela evicção, de parte do imóvel
penhorado pelo depositário, a par de ser por lei ineficaz, nos termos do art. 592, n. V, do C.P. Civil, não constitui motivo para a decretação de sua prisão civil, mesmo porque esta não se destina a tutelar regras de moralidade, porém está instrumentalmente disposta à realizabilidade do crédito” TJSP. HC. 134.925 . Rel. Des. Cavalcanti Silva. RF. v. 266, p. 293. No corpo do acórdão consta: “operada a penhora (houve sua inscrição?), qualquer posterior alienação é inoperante e, ante tal conjuntura, sem acréscimo de convencimento, não endossamos se legitime a prisão do depositário, embora o depositário seja “infiel”, ao que tudo indica. Interpretação
teleológica da lei não o facultaria. Seria forma compulsiva à rápida cobrança do débito, apenas” RF.266/293.
78 TJSP. AI 200.116-5. in JTJ-Lex 247, p. 103.
79 TJSP. AI. 200.116-5, in JTJ-Lex 247, pp. 103-104.
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259
Em outros acórdãos da lavra do eminente Des. Sérgio Pitombo, a mesma posição foi adotada, com a seguinte passagem:
É preciso repetir e mais outra vez: não se cuida de depósito, derivado de contrato; nem de depósito necessário; todas hipóteses nascentes do Código Civil (arts. 1.265 a 1.281 e 1.282 a 1.287). O depósito, aqui, se rege pelo Código de Processo Civil (arts. 139; 148 a 150;
666; 672, § 1° 677 e 678; 690, § 1° n. III; 733; 824 e 825; 858 e 859;
919; e 1.145, § 1°). Os mandamentos processuais não aludem à prisão. Não se aplicam ao depositário de bem penhorado, arrestado
ou seqüestrado – por exemplo – os preceitos referentes à ação de
depósito (art. 901 a 906, do Cód de Proc. Civil).80
Necessidade de interpretação restrita dos preceitos, em razão da excepcionalidade da constrição à liberdade de ir e vir, no regulamento vigorante. Inexistência de norma infraconstitucional, que especifique e regulamente a imaginada prisão do depositário judicial.81
Também, o Tribunal de Alçada do Estado de São Paulo tem prestigiado esse
entendimento e assim decidiu:
É inadmissível a prisão civil de devedor que se recusa a entregar
bens dados em garantia de dívida, por não poder ser considerado
depositário infiel, uma vez que, para a caracterização do contrato de depósito é necessário que este tenha como finalidade principal a guarda e não a garantia de determinado bem.82
O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que, somente pode haver prisão de
depositário quando o depósito corresponder à obrigação principal, isto é, quando
se tratar de depósito típico e não de depósito como obrigação acessória, como
aquele em que o devedor, fora da obrigação principal, assume a condição de depositário judicial, esta como obrigação administrativa e secundária. Assim restou o
acórdão ementado:
RECURSO DE HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. CÉDULA RURAL
PIGNORÁTICIA E HIPOTECARIA. PRISÃO CIVIL.
80 TJSP. AI. 129.078.5/4. Também o Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo em julgamento do Hábeas Corpus, n° 544.695-7, rel. Juiz Jacobina Ribeiro, assim decidiu: “Não englobando a hipótese de o próprio devedor
assumir a função processual de depositário, de bem ou direito próprio (arts. 665, n° IV e 666, caput, do Cód.
de Proc. Civil)”, citado in JTJSP v. 247, p. 105.
81 AgIn. 088.736-5/0 – Rel. Des. Sergio Pitombo. RF. v. 360, p. 233.
82 TACSP. AgIn. 749.947-0, 1ª Cam. J. 20.10.1997, rel. juiz. Elliot Akel. RT. v. 751, p. 287.
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faculdade de direito de bauru
A Constituição da República autoriza a prisão civil, por dívida em
dois casos: inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação
alimentícia e do depositário infiel (art. 5°, LXVII). Cumpre, no entanto, distinguir duas situações: a) o depósito é a obrigação principal: b)
o depósito é obrigação acessória. No primeiro caso, o depositário
deve restituir a coisa, conforme o convencionado, no segundo, o depósito reforça a obrigação de cumprimento de contrato. A prisão civil é restrita à primeira hipótese. Impossível estendê-la à segunda, sob
pena de a restrição ao exercício do direito de liberdade ser utilizada
para impor ao devedor honrar dívida civil. Interpretação coerente
com a evolução histórico-política dos institutos jurídicos.83
6.3 Retenção de dinheiro de incapazes sem lei
Em homenagem aos direitos humanos, a Constituição Federal, ao tratar dos
DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS, dispôs em seu artigo 5º, II, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Por esta norma constitucional, fica claro que ninguém está obrigado a deixar
o seu dinheiro retido à disposição do juízo e em banco contra a sua vontade, salvo
se houvesse previsão expressa em lei. No entanto, tornou-se costume no Brasil, o
dinheiro de incapaz ficar retido até que complete a maioridade.
Portanto, determinar-se que o dinheiro pertencente ao incapaz seja retido
sem lei clara e expressa é ferir mortalmente a Constituição Federal. A retenção de
bem de qualquer pessoa somente poderá ocorrer quando prevista clara e expressamente em lei. Tal medida é restritiva de direito e por isso representa exceção. Toda
norma restritiva de direito e de exceção deve ser expressa, não podendo sofrer interpretação ampliativa e não é possível interpretação analógica.
6.3.1 Da restrição (retenção) inconstitucional de dinheiro de incapaz
Além da norma estilizada no artigo 5º, II, da CF/88, que não obriga fazer
ou deixar de fazer, senão em virtude de lei, é norma protetora do direito fundamental da liberdade e da dignidade humana. A retenção do dinheiro do incapaz
viola os direitos humanos e a Constituição Federal que em seu Artigo 5º, LIV, assim dispõe:
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
83 STJ. RHC. 3.901.9. j. 20-09-1994. JSTJ-TRF, v. 82, p. 304. junho 1996.
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Desenganadamente, a Constituição Federal não permite que alguém seja privado
de seus bens, sem o devido processo legal. Ora, se ninguém poderá ser privado de seus
bens, como haveria de privar o incapaz, que é o maior necessitado? Ou será que o incapaz não é pessoa? Estaria ele fora da garantia constitucional? Por que desta privação?
Qual a razão do vetusto costume de reter dinheiro de menor até completar a maioridade? Só porque seria ele incapaz até essa idade? E se após a maioridade ainda permanecer a incapacidade (ex: deficiente mental), ficará o dinheiro retido eternamente?
São questões que qualquer leigo saberá responder, sem a necessidade de ser
bacharel em direito.
a) Ninguém, em sã consciência poderá negar ser o menor, o maior necessitado. Nesta faixa etária, não tem emprego e é indefeso. Retirar dele o dinheiro hoje, na época em que mais precisa é no mínimo atentar contra a vida
e a dignidade humana do incapaz. Hoje é que ele mais precisa deste dinheiro para alimentar-se, vestir-se, medicar-se etc. Caso passe por esse período, por ser o mais crucial de sua vida, ao atingir a maioridade, talvez,
não mais necessitará do dinheiro, pois já estará em condições de trabalhar
e já não será por certo indefeso. Sem levar em conta que o dinheiro depositado desaparecerá ou diminuirá seu poder aquisitivo ao longo dos anos
pela desvalorização natural, visto que a atualização bancária para os depositantes em geral é pilhérica e não acompanha a realidade.
b) Também, em sã consciência, ninguém poderá negar que o menor incapaz é gente (pessoa). Não é de hoje que se reconhece direito até mesmo ao nascituro (RT. 625/172 e 587/e 182 e 183). Se até mesmo o nascituro é pessoa e deve ter seus direitos fundamentais protegidos, por que,
então, haveria de ser diferente para o incapaz? O incapaz é pessoa e deve
ter seus direitos fundamentais respeitados e, entre eles, o de não poder
sofrer restrição em seus bens, sem o devido processo legal (art. 5º, LIV,
da CF/88).
c) Como foi visto, o menor é pessoa e não pode ficar fora da garantia constitucional prevista no artigo 5º, LIV, da CF/88. Impor restrição aos bens dos
menores, pelo simples fato de ser incapaz, sem amparo legal e ainda sem
o devido processo legal (no caso, sem processo algum), é violar a norma
constitucional, no que tem de mais puro, que são os princípios da livre administração e disposição dos bens, do devido processo legal e, ainda, do
direito à alimentação, educação e saúde.
d) É bem verdade que se tornou costume, nos meios forenses, a retenção do
dinheiro de menor, até que este atinge a maioridade; entretanto, até hoje
não se conseguiu demonstrar qual a razão desta restrição.
Além de não constar de texto de lei expresso, ainda que constasse seria
a lei inconstitucional, pois feriria o artigo 5º, LIV, da Constituição Federal, que não permite restrição de bens sem o devido processo legal. Na
262
faculdade de direito de bauru
boa intenção de proteger o incapaz, acaba por ferir a sua dignidade e
atentar contra os direitos humanos.
e) Razão nenhuma existe para reter o dinheiro do menor até atingir a maioridade. Até hoje, nunca se explicou o porquê deste obsoleto, incoerente e
ultrapassado pensamento. Fosse porque o titular do dinheiro é menor e,
por isso, é incapaz, seria o mesmo que dizer, que aquele que nunca atinge
a capacidade, mesmo após esta idade, ficaria pela vida inteira privado de
seus bens. Em caso assim, o banco ficaria eternamente com o dinheiro? E
o direito do titular do dinheiro?
Estas e outras observações servem para demonstrar não só a inconstitucionalidade e ilegalidade da medida, mas pior que tudo isto, a imoralidade, eis que retira
alimento da boca do incapaz indefeso, para entregar o dinheiro em depósito a banco, que dele se utilizará, para todo o tipo de ágio, sem retribuição equivalente.
Os direitos à privacidade e à administração dos bens familiares são integrantes do grande grupo de direitos humanos e contrariá-los é o mesmo que contrariar
também as garantias asseguradas pela Constituição Federal, dos direitos humanos.
Na doutrina, ecoa a voz de CARNELUTTI84 ao dizer que a vida do filho é, de regra,
também um interesse do pai. Se assim é, ninguém melhor do que o próprio pai para administrar os bens dos filhos. Na doutrina nacional, CARVALHOS SANTOS, anota:
Ao pai, para o desenvolvimento das faculdades contidas no instituto do pátrio poder que ele exercita, concede o Código uma ampla liberdade de ação, estabelecendo que nenhum outro critério
deve nortear-lhe a atividade, como administrador do patrimônio
do filho, que não seja aquele da utilidade, do bem-estar deste, presumindo, por outro lado, que ninguém possa melhor do que o pai,
e com mais vantagem, administrar o que pertence ao menor.85
O mesmo CARVALHO SANTOS, em outro momento, arremata:
Poderá o pai conservar em seu poder o dinheiro dos filhos para lhe
dar o destino que, na qualidade de administrador, julgar mais
proveitoso? Parece-nos que sim. Porque o art. 432 contém uma proibição que só se aplica aos tutores, e, como sustentou o Desembargador RAFAEL MAGALHÃES, os pais com relação aos bens dos seus
filhos, de que são administradores naturais, isentos da obrigação
de prestar contas, não estão sujeitos à mesma disciplina (voto na
Revista Forense, vol. 30, pág. 314).86
84 CARNELUTTI, Francesco. Teoria geral do direito. p. 98.
85 CARVALHO SANTOS. J.M. Código Civil interpretado. v. VI, p. 65.
86 CARVALHO SANTOS. J.M. Código Civil interpretado. v. VI, pp. 69:70.
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n.
42
263
6.3.2 Antecedentes jurisprudenciais
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em momento de inspiração
e de alta compreensão do significado dos direitos humanos, assim decidiu:
Pretendida liberação, por parte da genitora, de dinheiro depositado
em nome de seus filhos, estando falecido o pai. O ordenamento jurídico brasileiro não ostenta lacuna a ser suprida quanto à administração dos bens dos filhos incapazes. Poder-dever de mante-los sob a
guarda materna, falecido o pai. Direito ampla e inarredavelmente
assegurado à mãe, eis que ninguém melhor do que ela, à falta do marido, apta administrar o que pertence aos próprios filhos. O art. 432
do CC contém proibição que somente se dirige e aplica ao tutor, não
estando o pai ou a mãe sob esta disciplina, pelo que contas não têm
que prestar. Incidência, igualmente, da regra contida no art. 1º, § 1º,
da Lei 6.858/80 que autoriza uso de capital depositado em caderneta de poupança no dispêndio necessário à subsistência e educação
do menor. O levantamento pode ser total, pois. Provimento do recurso. (TJ-RJ –Ac. unân. Da 4ª Câm. Civ. Publ. em 20-8-98. ap. 8.804/97).
in Bol. Nossos Tribunais, nº. 42/98. ementa 84.977- COAD.
No corpo do acórdão, consta a seguinte passagem:
Todavia anota-se que invadir a privacidade das relações familiares, a pretender caçar provas desse dispêndio e dessa necessidade
para subsistência e educação do filho da apelante é pretender levar o braço da lei aonde ela não pretendeu, e nem o intérprete e
seu aplicador podem chegar.
Também, em julgamento nos autos 387/98, que tramitou pela Egrégia Primeira Vara Cível de Presidente Prudente-SP, em data de 30-10-1998, foi determinada a liberação de dinheiro que se encontrava depositado em juízo e em nome
de menor incapaz.
6.4 Prisão civil processual da parte que não cumprir ordem judicial
Em um estado de direito, ninguém pode ser preso sem lei anterior que expressamente comine pena de prisão. A Constituição da República Brasileira, em
boa hora, implantou a garantia constitucional de que ninguém pode ser apenado
com prisão sem lei anterior que defina o fato como passível de prisão e sem lei
que comine expressamente essa pena (art. 5º XXXIX). É o princípio da legalida-
264
faculdade de direito de bauru
de que alguns autores preferem chamar de “o devido processo legal material Substantive due process”, pelo qual ninguém poderá ser punido sem anterior
que expressamente comine a referida pena. Todavia, no Brasil, alguns doutrinadores estão apregoando a possibilidade de decretação de prisão civil processual,
pela parte que descumprir ordem ou decisão judicial. Tal prisão se apresenta inconstitucional por qualquer ângulo que se queira analisar. Mais ainda, por falta de
previsão expressa.
Tem-se exagerado na interpretação do art. 461, par. 5º, que dá poderes ao juiz
para determinar medidas necessárias para alcançar o cumprimento da decisão. Mas
o próprio legislador teve a cautela de exemplificar as medidas,
tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e
apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e
impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de
força policial.
É certo que essa relação é apenas exemplificativa, mas o legislador utilizou-se
da palavra “como”, para indicar semelhança e somente permitiu outras medidas que
sejam assemelhadas. Não falou em prisão civil e nem esta poderá ser considerada
como assemelhada àquelas indicadas.
A favor da possibilidade de prisão civil processual por descumprimento de decisão ou mandamento judicial, aparecem autores de nomeada como: MARINONI87,
LIMA GUERRA88, CÂMARA89, DOTTI90, VARGAS91 e ARENHART92. Contrários à possibilidade de prisão nessa hipótese, aparecem outros autores de peso: BAPTISTA DA
SILVA93, THEODORO JUNIOR94, TALAMINI95, MEDINA,96 BORGES97, FADEL98, e ALVIM
WAMBIER.99
87 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória. pp. 229:234.
88 LIMA GUERRA, Marcelo. Execução indireta. pp. 242:246 e Direitos fundamentais e a proteção do credor na
execução civil. pp. 134:137.
89 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lineamentos do novo processo civil. p. 75.
90 DOTTI, Rogéria Fagundes. A crise do processo de execução. RDPC. v. 2. pp. 386:387. Curitiba: Gênesis,
maio:agosto, 1996.
91 VARGAS, Jorge de Oliveira. A pena de prisão para desobediência da ordem do juiz cível. RDPC. v. 3. pp.
797:799, Curitiba: Gênesis, setembro:dezembro, 1996.
92 ARENHART, Sergio Cruz. A tutela inibitória coletiva. p. 270.
93 BAPTISTA DA SILVA, Ovídio. Do processo cautelar. p. 530.
94 THEODORO JUNIOR, Humberto. Comentários ao CPC. v. 5, p. 380. Rio:Forense, 1978.
95 TALAMINI, Eduardo. Tutela antecipatória e tutela específica das obrigações de fazer e não fazer. p. 20. Reforma do CPC. Coord. Sálvio de Figueiredo Teixeira, São Paulo: Saraiva, 1996.
96 MEDINA, José Miguel Garcia. Execução civil. Princípios fundamentais. p. 336.
97 BORGES, Marcos Afonso. Comentários ao CPC. v. 4. p. 102.
98 FADEL, Sergio Sahione. Código de processo civil comentado. v. II, p. 790.
99 ALVIM WAMBIER, Teresa Arruda. Impossibilidade da decretação de pena de prisão como medida de apoio,
com base no art. 461, para ensejar o cumprimento da obrigação in natura. REPRO, v. 112, pp. 196:212.
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265
Confundir o ato da parte que descumpre decisão ou mandamento judicial
com o crime de desobediência é algo que não se pode aceitar. Mas ainda assim,
o caso não seria cerceamento da liberdade, imediatamente, porque o crime de
desobediência comporta fiança e o agente aguarda o julgamento em liberdade. A
prisão civil processual por descumprimento de julgado é inconstitucional, porque não é autorizada pela Constituição Federal e, mais que isso, por inexistir lei
com essa cominação.
6.4.1 Precedentes jurisprudenciais
Na jurisprudência, já começam aparecer os primeiros julgados rechaçando tal
pretensão, reconhecendo incabível a prisão civil processual por descumprimento à
ordem judicial.
Obrigação de fazer. Execução de sentença proferida em ação civil
ambiental. Art. 461 do CPC, que autoriza outros tipos de medida,
mas nunca a prisão dos diretores, mormente em tais circunstâncias, sob pena de consubstanciar nítida e inegável espécie de prisão civil de regra vedada expressamente pela Constituição da República (art. 5º, LXVII).100
HABEAS CORPUS. Ameaça de prisão-descumprimento de decisão judicial.
I- Não pode o Juiz que não possui jurisdição criminal expedir ordem de prisão por descumprimento de decisão judicial, sendo-lhe,
permitido apenas a prisão em flagrante, nos termos do disposto no
art. 5º, LXI, da CF/88.
II- Ordem que se concede.101
Habeas Corpus. Ordem de prisão penal. Juiz do trabalho. Regime jurídico.
1. Segundo informam os precedentes, não pode o Juiz do trabalho,
que não tem jurisdição criminal, expedir ordem de prisão de natureza penal, embora possa, como qualquer do povo, prender em
flagrante, se o crime ocorrer na sua presença.
2. Ordem de habeas corpus que se concede.102
100 TJSP. AgIn. 294.123.5/0-00. 8ª Câmara de Direito Público. REPRO v. 112, p. 355.
101 TRF - 1ª Região. 3ª turma. HC. n. 2004. 01.00.009829-3, MG. DJ. 25.06.2004.. Revista Jurídica, v. 322, p.159. Porto Alegre: Notadez, agosto 2004.
102 HC. 1999.01.00.112146-4/PI. DJ. 26.06.2000, p. 64. Também Revista Jurídica, v. 322, p. 160.
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faculdade de direito de bauru
PROCESSUAL PENAL. Habeas corpus. Cumprimento de ordem judicial. Ameaça à liberdade do agente público destinatário da ordem.
1. Não pode o Juiz Federal, que não tem competência criminal, expedir ordem de prisão por descumprimento (desobediência ou prevaricação) de determinação que expeça em processo civil. Precedentes.103
I - Não se admite ordem de prisão por descumprimento de decisão
judicial por juiz que não tenha jurisdição criminal.
II Ocorrendo o tipo penal de desobediência ou prevaricação, somente é cabível a prisão em flagrante ou a instauração de inquérito policial.104
7.
CONCLUSÕES
Em face de todo o exposto, é possível concluir que o processo está bastante
avançado rumo à proteção dos direitos humanos, mas ainda há muito do que se fazer
para o seu aperfeiçoamento. Recorre-se às palavras de TRINDADE105: “Os que, em todas as épocas, combateram pelos direitos humanos nunca deixaram de saber quão árdua e sempre inacabada foi sua conquista” ou como dizem ARZABE e GRACIANO106:
Como um discurso novo, assentado no reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis, e tendo esse reconhecimento como fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, sua incorporação à práxis política e social apenas se inicia.
Pretender, como alguns pretendem, que o simples descumprimento de decisão judicial pode ensejar a prisão civil, é voltar ao passado, ao tempo em que a execução do julgado recaía sobre o corpo da pessoa. Prender alguém por inexecução
do julgamento é direcionar a execução contra o seu corpo o que implica volta ao
passado e isso não pode ser aceito em pleno limiar do terceiro milênio.
Hoje, mais do que nunca, as diretrizes se voltam às garantias e ao atendimento dos direitos humanos e não o contrário em que se pretende ampliar os casos de
segregamento das pessoas em desrespeito à sua dignidade.
103
104
105
106
HC. 2001.01.00.048973-1/MT. DJ. 26.04.2002, p. 88.. Também Revista Jurídica, v. 322, p. 160.
HC.2002.01.00.035813-5-MG. DJ. 16-05-2003. e RJ. V. 322, p. 160.
TRINDADE, José Damião de Lima. Anotações sobre a história social dos direitos humanos. P. 163.
ARZABE, Patrícia Helena Massa e GRACIANO, Potyguara Gildoassu. A declaração universal dos direitos humanos – 50 anos. p. 245.
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42
267
O processo civil moderno não pode virar de costas para o direito, sob a vetusta alegação de que as formalidades não foram cumpridas. O processo não pode distanciar do direito e as formalidades não podem se sobrepor dos direitos da pessoa.
Os direitos humanos devem merecer a prioridade de qualquer atividade pública,
mais ainda do Poder Judiciário, que deve abrir mão das formalidades sempre que a
situação assim exigir para a garantia do direito. Primeiro deve-se atender ao direito
e as formalidades depois.
É hora de se olhar primeiro para os direitos humanos e somente depois para
o processo, sendo que este somente deve ser utilizado para a garantia daqueles. O
processo existe para servir ao homem e não o homem para servir ao processo. Os
direitos humanos são os direitos mais sagrados entre os chamados direitos fundamentais e, por isso, não podem ficar a mercê de meras formalidades processuais.
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PENHORA ON-LINE
Paulo Mazzante de Paula
Advogado.
Especialista em Direito Processual Civil.
Professor de Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho das
Faculdades Integradas de Ourinhos.
1.
INTRODUÇÃO
Vivemos uma época de preocupação com a lentidão processual, o que leva
à busca de soluções para o impasse, através de mecanismos capazes de eliminar
o problema e desafogar o Poder Judiciário, proporcionando uma Justiça rápida e
efetiva.
Corroborando a assertiva acima, foi introduzido recentemente em nosso
ordenamento processual, mais especificadamente para a solução da questão junto ao processo de execução, o sistema de penhora on-line, com o aproveitamento da modernidade tecnológica da computação; na realidade, uma revolução efetivamente satisfatória, capaz de proporcionar rapidez no recebimento do crédito
pelo exeqüente.
Trata-se, sem dúvida, de uma das maiores inovações da atualidade no campo do direito, visto que a medida visa a combater a atual morosidade processual
na fase executória. Ora, persistindo o modo anterior, o único beneficiado era o
próprio devedor.
Evidentemente que o sistema tem que ser aperfeiçoado e, quiçá, regulamentado, porém desde já demonstra que é um efetivo instrumento de combate ao atual
descrédito do Poder Judiciário.
272
2.
faculdade de direito de bauru
EVOLUÇÃO
O artigo 659 do Código de Processo Civil estipula que, se o devedor não pagar, nem fizer nomeação válida, o oficial de justiça penhorar-lhe-á tantos bens quantos bastem para o pagamento do principal, juros, custas e honorários advocatícios.
Cediço que, por ocasião da nomeação de bens, conforme previsão do artigo
655, inciso I, do Código de Processo Civil, o dinheiro aparece em primeiro lugar.
Trivial, ainda, que a ausência de nomeação válida ou a falta de bens passíveis
para a concretização da penhora fomentam o descrédito e conduzem à morosidade
processual, situações inadmissíveis no processo civil atual, que tem por finalidade a
instrumentalidade do processo, principalmente no sentido da concretização do escopo social da pacificação com justiça, eis que a função jurisdicional e a legislação
buscam sempre a paz social.
A procura do aperfeiçoamento do Poder Judiciário deverá revestir-se, portanto, de todo empenho possível, buscando sempre a celeridade processual, sem prejuízo da qualidade jurisdicional.
Com intuito de melhorar as normas legislativas, utilizando os recursos tecnológicos disponíveis, foi recentemente implantada em nosso sistema processual a penhora on-line, principalmente na Justiça do Trabalho, onde os Juízes estão conectados por computadores, através de programas e convênios, diretamente com o Banco Central, agilizando o ato e evitando “falcatruas”, como desvio do dinheiro, fechamento da conta ou outras manobras antigamente comuns.
Ora, até pouco tempo atrás, o meirinho chegava ao estabelecimento bancário
para concretizar a penhora e, no mais das vezes, não obtinha êxito, pois o correntista era sempre avisado, ou era desviado o saldo bancário, impossibilitando o pagamento do crédito reclamado.
Outra medida - adotada, aliás, pela maioria dos Magistrados da Justiça Comum
- é a requisição da penhora do suposto numerário bancário através de ofício. Evidente que é muito grande o risco da demora, com o advento de novas decepções, fraudes e desvios.
A medida consistente no bloqueio de contas bancárias e posterior penhora
sempre sofreu restrições e só muito timidamente foi avançando. Aliás, há não muito tempo, conforme julgado publicado na Revista dos Tribunais1, a penhora e o bloqueio de contas bancárias violavam o direito líquido e certo do devedor.
Há, também, o seguinte entendimento:
Incidência sobre numerário existente em reserva bancária – Inadmissibilidade - Inteligência do art. 68 da Lei 9.069/95 e do art. 68 do
CPC. Todo o movimento bancário se integra nas reservas bancárias,
1
RT 586/125, agosto de 1984, rel. juiz Wanderley Racy.
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n.
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273
as quais são impenhoráveis (art. 68 da Lei 9.069/95), até porque não
se pode ignorar que aquelas verbas compõem o capital de giro dos
bancos, e também os depósitos chamados à vista são compulsoriamente recolhidos ao Banco Central, em limites que este fixa. Tal impenhorabilidade também está prevista no art. 648 do CPC2.
Os Tribunais começaram, recentemente, a modificar tal entendimento, principalmente reconhecendo que a finalidade precípua da penhora é a satisfação do crédito executado, “autorizando a penhora sobre a importância em questão”, sem que
isso ocasione ferimento ao princípio constitucional da privacidade, pois “recaindo
sobre quantia certa, não evidencia devassa na vida econômica da executada”3.
Há, ainda, jurisprudência no sentido de que
... a constrição via on-line, efetivada sobre numerário existente em
conta bancária, não feriu direito líquido e certo, uma vez que prevista no artigo 655, do CPC. Aplicação analógica da Orientação Jurisprudencial n.º 60, da SDI-2, do TST4.
Referida orientação jurisprudencial (n.º 60 – SDI-2, TST), adverte:
Não fere direito líquido e certo do impetrante o ato judicial que determina penhora em dinheiro de banco, em execução definitiva,
para garantir crédito exeqüendo, uma vez que obedece à gradação prevista no art. 655 do CPC (20.09.00).
Portanto, na Justiça do Trabalho, tratando-se de execução e não ocorrendo nomeação de bens válida, a matéria é praticamente pacífica, estabelecendo que não
fere direito líquido e certo a ordem de penhora on-line5.
Tal procedimento vem sendo admitido por alguns operadores do direito até
mesmo na execução provisória, caso não ocorra nomeação de bens livres, desembaraçados e de fácil aceitação comercial6. Em sentido contrário,
Penhora de numerário. Execução provisória. Não se justifica a penhora de numerário existente em conta corrente quando se tratar
de execução provisória, já garantida por bens suficientes à satisfa2
3
4
5
6
RT. 739/308, novembro de 1996, rel. juiz Evaldo Veríssimo.
TRF, DJU 03.06.2004, agravo n.º 204049, desembargadora e relatora Marli Ferreira.
Acórdão 20040217633, 8º turma TRT, 2º região, rel. Rovirso Aparecido Boldo.
Acórdão 2003033791, rel. Plínio Bolivar de Almeida; Acórdão 2004008120, rel. Anelia Li Chum, e acórdão
2003032019, rel. Vania Paranhos, todos TRT, 2º região.
Acórdão n.º 2003030300, rel. Vania Paranhos, TRT, 2º região.
274
faculdade de direito de bauru
ção do quantum debeatur, por empresa que possui solidez financeira e não se opõe de forma injustificada à execução7.
Por tal motivo, mais uma vez saiu na frente a Justiça do Trabalho, implantando o sistema da penhora “on-line”, através de convênio firmado em março de
2002 entre o Banco Central e o Tribunal Superior do Trabalho. Destaque-se que
tudo teve início com a insistência dos Juízes Trabalhistas na remessa de ofícios
ao BACEN, terminando por discutir a implantação e adotar o sistema de consulta e bloqueio.
Na Justiça Comum, levando-se em conta que grande parte das varas não está informatizada, a requisição do bloqueio da conta é
feita por ofício remetido ao Banco Central e, em algumas oportunidades, às agências bancárias. Portanto, o sistema on-line apenas
substitui as respostas demoradas dos ofícios às agências bancárias,
sendo mínimo, nessa hipótese, o gravame imposto ao devedor8.
Por decisão de 8 de abril de 2003, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo9 esclarece
que está prestes a firmar Termo de Adesão a Convênio de cooperação técnico-institucional entre o Banco Central do Brasil e o Superior Tribunal de Justiça, a possibilitar, por intermédio do sistema
BACEN JUD, solicitações de informações sobre a existência de contas correntes e aplicações financeiras, determinações de bloqueio
e desbloqueio, inclusive penhora on-line.
Seja dito de passagem que não devem deixar de ser seguidos os bons exemplos proporcionados pela Justiça do Trabalho, como: a) prova sucinta, restrita aos
pontos controversos; b) delimitação dos aspectos conflitantes; c) citação postal; d)
desconsideração da personalidade jurídica; etc.
Como se percebe, a experiência do direito processual do trabalho já influenciou o processual civil: “uniformidade de razões e contra-razões e o sumário civil”.10
O convênio citado permite o bloqueio de contas correntes e de aplicações financeiras para garantir o pagamento de dívidas. Trata-se, portanto, de um moderno
instrumento tecnológico para evitar a procrastinação do processo de execução.
7
8
9
10
TRT-12a Região – MS 00132-2003-000-12-00-7 – 30/09/2003.
TRT 15 região, Decisão 01592/2003- PATR.
Agravo de instrumento 288.955-4/4-00, relator Roberto Stucchi.
Mendonça Lima, Processo Civil no Processo do Trabalho.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
275
Cada Tribunal Regional do Trabalho tem um gestor de uma senha, que distribui outras senhas individuais a todos os juízes de primeiro grau, os quais têm, assim, acesso direto, pela internet, ao sistema de dados sigilosos do Banco Central.
O sistema foi objeto de várias adequações. Algumas modificações são ainda
necessárias. Trata-se, porém, de uma salutar inovação e, quem sabe, de um mecanismo eficaz para a moralização dos recebimentos dos créditos judiciais.
Ora, de início, independentemente do valor em execução (débito/crédito), todas as contas do devedor eram bloqueadas. Numa execução, por exemplo, de R$
2.000,00 (dois mil reais), sendo de R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais) o saldo
credor do executado, todo este montante era objeto de bloqueio, até a solução do
impasse. O exemplo não é simples fruto de imaginação. Casos assim ocorreram nesta região, tendo sido, outros, noticiados pela imprensa11.
Hoje, parcialmente corrigidos os abusos, os valores bloqueados são compatíveis
com o débito, ou seja, tratando-se, como no exemplo anterior, de uma execução de R$
2.000,00 (dois mil reais), somente esse exato valor será bloqueado para penhora. Todavia, se o devedor tiver conta aberta em vários bancos, com saldo disponível, todas serão objeto da penhora, até o montante em execução. Não é demais esclarecer que, no
caso de inexistência de saldo, a conta é bloqueada; havendo saldo, o valor correspondente ao débito em execução é reservado para a efetivação da penhora.
Outro motivo de descontentamento é a demora para o desbloqueio, quando
feito em excesso ou, então, no caso de pagamento do débito por parte do devedor.
Por esse motivo, ou seja, combatendo as múltiplas penhoras, o acórdão n.º
20030515240 – Agravo de Petição - apresenta orientação no sentido de que
a penhora de crédito somente far-se-á sobre uma conta bancária,
ainda que várias as contas e em vários bancos, procedendo-se a
outras, uma por uma, com respectivo Ofício do Juízo, se necessário e apenas para completar o crédito exeqüendo, evitando-se, assim, açodadas e múltiplas penhoras de dinheiro, criando-se verdadeiro aprisionamento das contas bancárias das empresas, impedindo o seu desempenho e o cumprimento de seus demais compromissos sociais, bancários e contratuais12.
Há, é evidente, necessidade de aperfeiçoamento, a ninguém sendo dado negar, todavia, tratar-se de extraordinária inovação, que trará, certamente, frutos benéficos para a Justiça. Os Ministros do TST consideram a penhora on-line uma arma
revolucionária contra a lentidão do processo na fase da execução.
11 Jornal “O Estado de São Paulo”, 15.05.2004.
12 Processo n.º 40774-2003-902-02-00-0, 8ª turma, TRT 2º região, publicação de 07.10.2003, relatora Rita Maria Silvestre.
276
3.
faculdade de direito de bauru
LEGALIDADE DA MEDIDA
A primeira restrição vem no sentido de que esse sistema propicia a quebra do
sigilo bancário do devedor, via Internet, fato impedido pela Constituição Federal.
O presidente da Confederação Nacional da Indústria, deputado Armando
Monteiro Neto (PTB-PE)13, é de opinião que a utilização do mecanismo deve ser feita de forma sensata e afirma que “para atender a um direito individual não se pode
sacrificar o todo”.
O descontentamento gerou a propositura de uma ação direta de inconstitucionalidade, por iniciativa do PFL (Partido da Frente Liberal), com intuito de pôr fim
ao convênio de cooperação técnico-institucional celebrado entre o Banco Central e
o STJ (Superior Tribunal de Justiça), anteriormente mencionado, estando pendente
o julgamento perante o STF (Supremo Tribunal Federal), inclusive quanto ao pedido liminar, que ainda não foi apreciado, conforme consulta de acompanhamento
processual de 21 de outubro de 2004. Destaque-se, outrossim, que na ação o mencionado partido pede também a inconstitucionalidade dos Provimentos 1 e 3/2003,
baixados pela Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho, que regulamentaram o
convênio.
Ressalta o partido que “a questão merece uma rígida análise por parte do Supremo Tribunal Federal”, diante do elevado número de pessoas físicas e jurídicas devedoras de obrigações trabalhistas, submetidas
a tratamentos degradantes e coativos impostos pelos juizes monocráticos das Varas vinculadas aos Tribunais Regionais do Trabalho, portadores de senhas individualizadas que lhes asseguram
acesso direto ao sistema BACEN JUD, autorizados a procedera
bloqueios on-line não respeitando sequer os limites das respectivas jurisdições.
O procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, encaminhou ao Ministro
Relator do processo, Joaquim Barbosa, parecer favorável ao sistema de penhora online, que considera “modelo de eficácia” a ser seguido, na prestação de serviço à população. Optou, portanto, pela improcedência da ação e por “declarar a constitucionalidade dos provimentos 1 e 3/2003, da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho
e do convênio BACEN/TST/2002”.
Discute-se, ainda, o aspecto da exclusividade, uma vez que a Carta Magna atribui à União, privativamente, a competência de legislar sobre o direito processual,
ocorrendo assim ofensa ao artigo 22, inciso II, c.c. os artigos 2º, caput, 48, 59, 61, 65
e 66, todos da Constituição Federal.
13 Jornal Gazeta Mercantil, 11.05.04.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
277
O próprio Governo Federal procurou imitar tal flexibilização do sigilo fiscal,
preparando que está um decreto que autorizaria órgãos como a ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) e a Polícia Federal a ter acesso aos dados mediante sua requisição à Receita, sem precisar de autorização judicial14.
3.
CONCLUSÕES
Trata-se evidentemente, a penhora on-line, de medida extrema, que deverá ser
adotada tão somente após citação e possibilidade de nomeação de bens (art. 652 do
C.P.C.), visto que a execução será feita “pelo meio menos gravoso para o devedor” (art.
620 do C.P.C.), sob pena de ofensa ao devido processo legal. Nesse sentido:
Se a recorrente ofereceu outros bens suficientes a garantir a execução, ainda que móveis, não se justifica promovê-la pelo modo mais
gravoso, mesmo porque só excepcionalmente poderá a penhora recair sobre estabelecimento comercial ou industrial.15
Locação. Processual Civil. Execução de aluguéis. Nomeação de
bens à penhora. Ordem legal. Caráter relativo. Art. 620 DO CPC. A
ordem legal estabelecida para a nomeação de bens à penhora não
tem caráter absoluto, devendo sua aplicação atender às circunstâncias do caso concreto, à potencialidade de satisfazer o crédito
e ao “princípio da menor onerosidade da execução”, inscrito no
art. 620 do CPC. Precedentes. In casu, a e. Corte a quo entendeu,
acertadamente, que a constrição deveria recair sobre os bens móveis indicados, porquanto a penhora sobre o dinheiro existente na
conta bancária da executada comprometeria o próprio capital de
giro da empresa, em detrimento dos fins por ela colimados. Recurso não conhecido16.
O princípio do devido processo legal garante às partes litigantes
acesso à justiça (direito de ação e de defesa), igualdade de tratamento, publicidade dos atos processuais, regularidade do procedimento, contraditório e ampla defesa, realização de provas,
julgamento por juiz imparcial (natural e competente), julgamento de acordo com provas obtidas licitamente, fundamentação das decisões judiciais etc.17
14
15
16
17
Folha de São Paulo, 12.08.2004.
STJ, 2ª T., Resp 19.493-0-SP, Rel. Min. Hélio Mosimann, j. 06/12/1993, na RSTJ 58/268.
STJ – RESP 445684/SP, 24.02.2003.
Celso de Mello, Constituição Federal anotada, pág. 441 e RT. 526/298.
278
faculdade de direito de bauru
Trata-se, como acima se afirmou, de medida extrema, excepcional, como bem
demonstrou o E. Superior Tribunal de Justiça, em recente acórdão18, em que figura
como relatora a Ministra Eliana Calmon, entendendo que a penhora sobre o saldo
de conta corrente somente pode ser decretada como medida extraordinária e através de decisão fundamentada, cuja ementa segue transcrita:
Execução fiscal. Penhora em saldos de conta corrente. Excepcionalidade. 1- A penhora em saldo bancário do devedor equivale à penhora sobre o estabelecimento comercial. 2- Somente em situações
excepcionais e devidamente fundamentadas, é que se admite a especial forma de constrição. 3- Recurso especial provido.
A ministra relatora, no corpo do v. acórdão, enfatiza:
Permitir-se a penhora dos saldos bancários de uma empresa é o
mesmo que decretar a sua asfixia, porque tal determinação não
respeita os reais limites que deve ter todo credor: atendimento
prioritário aos fornecedores, para possibilitar a continuidade de
aquisição da matéria-prima, pagamento aos empregados, prioridade absoluta pelo caráter alimentar dos salários.
Ocorrendo, porém, nomeação de bens insubsistentes ou de difícil alienação,
portanto em desobediência à ordem legal prevista no artigo 655 do Código de Processo Civil, somente resta o indeferimento da nomeação de bens. Em caso análogo,
onde foram oferecidos oito títulos da dívida pública à penhora, manteve-se o indeferimento da nomeação, diante da imediata ausência de liquidez, bem como se admitiu a “constrição incidente em caixa de banco19.
O v. acórdão referente ao agravo de instrumento n.º 633.338-00/020, estabelece que
a penhora deve atingir, preferencialmente, os bens mais facilmente transformáveis em dinheiro, a fim de possibilitar a pronta e eficaz satisfação do crédito. É possível a penhora de valores encontrados nos cofres do banco.
O Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira21 destaca, no tocante ao ato da penhora, que o oficial de justiça deve “adequar os interesses contrapostos de menor one18 RESP nº 557.294-SP; Rela.Min. Eliana Calmon; j. 6/11/2003; v.u.; in Bol. AASP nº2363, p. 3033, Seção Jurisprudência.
19 Agravo de instrumento n.º 807.578-0/9, Juiz relator Orlando Pistoresi, 2º TACiP.
20 8º câmara do 2º TACivSP, relator Juiz Walter Zeni.
21 STJ, terceira turma, RE 241.464-SP., Rel. Min. Waldemar Zveiter, j. 15.02.01, vu, DJU 02.04.01, pág. 289.
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42
279
rosidade para o devedor e de satisfação do interesse do credor, que limitam a sua liberdade de escolha, devendo atentar, sempre que possível, para a gradação legal”.
Pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça22, “é possível recaia a penhora sobre o numerário disponível no caixa da instituição financeira, excluídas apenas as reservas técnicas mantidas junto ao ‘Banco Central do Brasil’”.
Por todo o exposto, corrigidos os excessos cometidos e as distorções apresentadas pelo sistema, anteriormente citados, independentemente dos aspectos formais da competência levantados pelo PFL, trata-se de uma inovação excepcional
para a celeridade e moralização do processo de execução.
Em que pesem os entendimentos diversos, principalmente no sentido de que
o sistema ofende e viola a ordem legal e democrática, entendemos que a medida
trouxe considerável avanço na modernização do processo de execução.
Não é demais reiterar que os Magistrados deverão adotar critérios rigorosos e
sensatos para a aplicação da medida, evitando abusos e injustiças, porém o sistema
merece progredir, aperfeiçoando-se, como homenagem ao moderno princípio da
efetividade, com intuito, sempre, da pacificação social.
22 STJ, terceira turma, RE 241.464-SP., Rel. Min. Waldemar Zveiter, j. 15.02.01, vu, DJU 02.04.01, pág. 289.
da valoração da prova e Do ônus da prova
Soraya Regina Gasparetto Lunardi
DA VALORAÇÃO DA PROVA
Não se encerra o ciclo probatório com a produção de provas, mas esta se completa com a produção das provas. Com a produção de provas, se aparelha o processo daquilo que permite ao espírito persuadir-se da verdade com referência à relação
jurídica controvertida: está fornecida a prova no sentido de elemento da prova. Através do conhecimento da prova produzida e através do raciocínio, se conduz ao desconhecido, ou seja, a verdade, quando se conclui: estou certo.1
Esta certeza é uma crença (estou certo) não é mais que uma afirmação com
base nas grandes, mas não absolutas relações de conformidade entre o pensamento próprio e a verdade objetiva, sendo aqueles motivos suficientes para seu convencimento da verdade.2 O convencimento assim nada mais é do que a afirmação necessária da posse da certeza, não havendo mais dúvidas quanto àquela verdade. Assim, o convencimento racional, em suma nada mais é do que um juízo racional sucessivo, sendo a certeza a crença na verdade, o convencimento é assim a opinião da
certeza como legítima.3 Esta é a finalidade da prova.
Até esse ponto, a prova tem vida, a partir então passa a ser objeto de do trabalho intelectual do juiz, para estabelecimento de sua convicção.
1
2
3
Moacyr Amaral dos Santos, Prova judiciária no cível e no Comercial, Vol. I, 1952, São Paulo, Max Limonad, p.
326.
Nicola Framarino Dei Malatesta, A lógica das Provas em Matéria Criminal Vol. I, Tradução de Alexandre Augusto Ferreira, São Paulo, Saraiva; 1960, p. 59.
Idem ibidem.
282
faculdade de direito de bauru
Conclui-se, assim, que por valoração da prova se entende: “a operação mental que tem por fim conhecer o mérito o valor da convicção que pode se deduzir do
seu conteúdo”.4 Será assim a avaliação da capacidade de convencer, de que sejam
dotados os elementos de prova contidos no processo.5
A verdade, ou os motivos de que decorre, imprime um movimento à balança
da consciência e que a este movimento corresponde um estado determinado de
nosso espírito; neste momento, sucede, algumas vezes, que sentimos esta forte segurança, que pode ser produzida pelo exato rigor da dedução matemática; nós acreditamos na posse da verdade absoluta. Em outros casos, as conchas da balança são
apenas abaladas e só podemos formar uma conjectura6. Assim MITTERMAIER evidencia a influência da valoração que imprimimos aos elementos trazidos aos autos
pelas partes.
1.
SISTEMAS DE APRECIAÇÃO DE PROVAS
O trabalho de avaliação das provas não pode ser desordenado e arbitrário, se
apresentado três sistemas para tal:
1.1. O sistema da prova legal;
1.2. O sistema do livre convencimento;
1.3. O sistema da persuasão racional.
1.1. Sistema da prova legal (prova tarifada)
As regras de valoração da prova são determinadas pela lei e não pelo juiz:
cabe, portanto ao legislador estabelecer juízos valorativos que graduam, exaltam ou
limitam a eficácia das variadas fontes ou meios probatórios.
Inicialmente. foram de fundo místico ou supersticioso as ordálias ou juízos de
Deus. Realizavam-se provas de destreza e força (duelos – estes duelos somente foram desaparecendo a partir de 1270 com o fim das Ordenações do Rei São Luiz7).
Relata-se, por exemplo, que a mulher acusada de bruxaria pelos Tribunais da Santa
Inquisição seria lançada a um poço com uma pesada pedra atada ao pescoço. Se se
salvasse, seria prova de que tinha relações com o demônio. Se fosse ao fundo e morresse por afogamento, é porque seria inocente.8
Outro exemplo eram as Ordenações do Reino de Portugal as quais incluíam
preceitos dessa ordem, sendo distinto o valor atribuído às provas “plenas e semiple4
5
6
7
8
Hernando Devis Echandia, Teoria General de la Prueba Judicial, Tomo I, Buenos Aires: Victos P. De Zavalía –
Editor, 3ª.ed. p. 287.
Candido Rangel Dinamarco, Instituições de Direito Processual Civil, v. III, p. 101.
C. J. A Mittermaier, Tratado da Prova em Matéria Criminal, Campinas: Bookseller, 1997.
Moacyr Amaral dos Santos op. cit. P. 327.
Candido Rangel Dinamarco, Instituições de Direito Processual Civil, v. III, p. 103.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
283
nas”. Excluíam-se, assim, o testemunho dos escravos e subestimava-se o dos mouros e de judeus que não podiam depor entre cristãos. A prova testemunhal mais valorizada era a prestada pelos nobres, ricos, cléricos, varões, em detrenimento do
prestado por mulheres, plebeus, leigos e pobres. A doutrina chegou a reunir 96 regras sobre o peso a ser atribuído às provas.9
Este sistema atribui um valor inalterável e constante previsto pela lei, e por
isso, ao juiz não é lícito apreciá-la senão conforme tais regras previamente estabelecidas pela lei, sendo por isso chamada de “tarifamento de provas”. Assim, por mais
que se convença da verdade afirmada por uma única testemunha, não poderá afirmá-la à vista da regra testis unus testis nulus. Este sistema permitia, inclusive impor
fatos inverídicos quando não contestados. Assim, se “A” afirma que a Torre da Igreja
de Santo Estevão se havia colocado à noite sobre sua cabeça, voltando depois à sua
base e a outra parte não contestasse o fato, o juiz deveria aceitá-lo como verdadeiro, segundo o processualista PLAUCK.10
O processo civil moderno repudia este sistema; entretanto, ainda encontramos resquícios do sistema da prova que excluem o sistema de valoração pelo juiz.
Valoração da prova é o caso, por exemplo, da prova testemunhal que ainda é desacreditada em casos como contratos acima de determinado valor (art. 401 do CPC).11
1.2. O Sistema da Livre convicção
Esse sistema foi adotado em Roma e o juiz tinha ampla liberdade para decidir
conforme lhe sugerisse a consciência, podendo, inclusive, se quisesse, não decidir12.
A crítica sobre este sistema era por representar risco ao Estado-de-direito, já
que o juiz decidiria segundo seus próprios impulsos pessoais sem o dever de, sequer, fundamentar seu entendimento, ou mesmo podendo decidir em desconformidade com o que conste do processo.13 Nesse sistema, o juiz não fica adstrito a nenhuma regra no tocante à avaliação da prova.
1.3. O convencimento racional motivado à luz dos autos:
Seria, segundo MOACYR AMARAL SANTOS, um sistema misto.14 ECHANDIA,
ao contrário, discorda afirmando não existir um sistema “misto”, pois quando se
outorgam certas faculdades ao juiz para apreciar determinados meios de prova,
9
10
11
12
13
14
Moacyr Amaral dos Santos,, op.cit. p. 328, Candido Rangel Dinamarco, Instituições de Direito Processual Civil,
v. III, p. 104, Chiovenda, A oralidade e a Prova, in Revista Forense 74/232.
Moacyr Amaral dos Santos,, op. cit. p. 330.
Candido Rangel Dinamarco, Instituições de Direito Processual Civil, v. III, p. 104,
Chiovenda, A oralidade e a Prova, in Revista Forense 74/232.
Candido Rangel Dinamarco, Instituições de Direito Processual Civil, v. III, p. 105.
Op. cit. P. 332, citando Maximo Castro, Furno e Costa Carvalho.
284
faculdade de direito de bauru
subsiste o sistema de tarifação legal atenuado, já que a liberdade de apreciação
existe ou não.15
Segundo esse sistema, o juiz aprecia as provas livremente, mas não segue as suas
impressões pessoais, mas tira a sua convicção das provas produzidas, ponderando sobre
a qualidade e valor probatório delas. A convicção está na consciência formada pelas provas, não arbitrária e sim condicionada a regras jurídicas, de lógica, regra de experiência
tanto que o juiz deverá demonstrar na sentença em que baseia seu entendimento.16
É o sistema adotado no Brasil conforme determina a Constituição Federal em
seu art. 93, inc.IX e o CPC, art. 131 e 458, II. Neste sistema, o livre convencimento ficará condicionado às seguintes regras racionais (não emocionais):
a) aos fatos sobre os quais se funda a ação controvertida.
b) às provas colhidas nos autos: são as provas admitidas pela lei e produzidas segundo a forma também prescrita pela lei). Não se tem, assim, a regra inflexível valorativa das provas que podem acabar convertendo o juiz à
condição de instrumento passivo de pretensões desarrazoadas se, porém
cair no outro extremo de buscar injustificadamente provas abandonando
sua condição de imparcialidade.
c) às regras legais e máximas de experiência: Via de regra, uma testemunha não irá comprometer a autoridade de uma escritura pública revestida
de suas formalidades, ou que os fatos verossímeis não contestados deverão ser tidos como verdadeiros. Da mesma forma, mesmo que a perícia
conclua que a água da torneira tem propriedades sulfurosas, não deverá influenciar o convencimento do julgador, pois contraria as leis da química.
d) deve ser motivada. Através dessa, se apura o trabalho intelectual desenvolvido pelo juiz na apreciação da prova.17
Assim, verificamos que o juiz valora livremente a prova, mas não tão livremente assim.18 A tendência atual é no sentido de ampliar a liberdade concedida ao juiz.
Nisto como em todas as coisas, o prudente e sábio é colocarmos um termo médio,
razoável, entre sufocar a consciência do juiz debaixo de uma multidão de regras e
muitas delas de resultado duvidoso, e deixá-las, em absoluto, entregues à sua própria inspiração e critério. Seria no equilíbrio que encontraremos a melhor solução,
compatibilizando a liberdade e a ordem, o indivíduo e o Estado.1
15 Hernando Devis Echandia, Teoria General de la Prueba Judicial, Tomo I, Buenos Aires, Victos P. De Zavalía –
Editor, 3ª.Ed. p. 287/289. A crítica do Professor a Universidade de Bogotá vai ao seguinte sentido: “Para se obter os fins de interesse público do processo civil, deve-se impedir que este seja uma aventura incerta cujo resultado dependa da habilidade dos litigantes e a impotência do juiz para buscar a verdade, devendo o juiz ter
faculdades inquisitivas para produzir as provas que entenda úteis. Somente com essas faculdades e com a liberdade para apreciar a prova pode o juiz reconhecer quem realmente tem razão.Num sistema rigorosamente
dispositivo e com tarifa legal,não é verdade que o juiz administre justiça de acordo com a lei.
16 Moacyr Amaral dos Santos,, op.cit. p. 332/333.
17 Moacyr Amaral dos Santos,, op.cit. p. 331-338.
18 Theotonio Negrão, apud Candido Rangel Dinamarco, op. cit. P. 105.
19 Moacyr Amaral dos Santos,, op.cit. p. 344, citando Eduardo Couture.
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2.
n.
42
285
OS LIMITES NORMATIVOS IMPOSTOS PELO SISTEMA LEGAL AO
PRINCÍPIO DO “LIVRE” CONVENCIMENTO MOTIVADO
Nosso sistema processual apresenta uma série muito grande de restrições legais ao sistema do livre convencimento. Temos, primeiramente, as presunções relativas: exclui do objeto da prova o fato presumido, como aquele admitido pela parte contrária. (art. 334 do CPC).
• O art. 401 veda a prova exclusivamente testemunhal em contratos de valor
superior ao décuplo do maior salário mínimo vigente à época da celebração do contrato.
• O art. 145 do CPC é regra legal que exige a prova pericial em relação a fatos em que seja necessário conhecimento técnico ou científico específico;
• O art. 5°, LVI da CF, veda a utilização de provas ilícitas;
• Art. 334, II, CPC dispensa provas de fato confessados;
• Art. 353 CPC que atribui à confissão extrajudicial o mesmo valor da confissão judicial;
• Art. 354 CPC que trata da indivisibilidade da confissão;
• Art. 365, III, CPC em relação a documentos impugnados;
• Art. 224 e 1543 do CC que exigem a língua portuguesa para validade dos
documentos, entre outros.
Os requisitos formais necessários para a existência de certos negócios jurídicos, como a escritura pública para a compra e venda de imóvel, não influem nos critérios de avaliação da prova (art. 134 do CC e 336 do CPC), mas fazem parte da própria constituição do ato.
3.
CONFLITOS DE PROVAS
Muitas vezes, ocorrem choques de provas às quais conduzem a conclusões inteiramente opostas com referência ao mesmo fato controvertido, ficando o juiz em estado
de perplexidade, mesmo após a utilização dos meios previstos no art. 131. A melhor solução é, ainda, e experiência da máxima de que, na dúvida, deve-se se absolver o réu.20
4.
A MOTIVAÇÃO DA CONVICÇÃO
Além de ser uma restrição à liberdade concedida ao juiz, também tem por finalidade esclarecer às partes os motivos da decisão, o que dará base para a fundamentação de um possível recurso, bem como servirá para o Tribunal analisar o merecimento da decisão.21
20 Moacyr Amaral dos Santos,, op.cit. p. 371.
21 Moacyr Amaral dos Santos,, op.cit. p. 372.
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faculdade de direito de bauru
O ÔNUS DA PROVA
Antes que o espírito humano atinja o estado de dúvida, probabilidade ou certeza, na difícil busca da verdade, irá partir de um estado primário – a ignorância. A
este espírito que ignora são então apresentadas afirmações contrárias, em relação ao
fato ignorado. É necessário então trilhar o caminho do conhecimento que se inicia
com a dúvida e termina com o convencimento. Iniciamos a regulamentação das provas com a determinação da “obrigação” da prova em relação a uma ou outra das asserções contrárias.22
Ônus – do latim ônus, significa: carga, fardo, peso, sendo a melhor tradução
do ônus da prova a – necessidade de provar. Não é o ônus da prova um dever jurídico, uma obrigação, não havendo um direito que a ele corresponda e que deva ser
cumprido por aquele a quem a lei impõe. O “dever de provar” não se dá nesse sentido, mas no sentido de interesse, necessidade, de produzir a prova para que o juiz
possa decidir conforme os elementos do processo.
O ônus da prova, no dizer de ECHANDIA, é o poder ou faculdade de executar livremente certos atos ou adotar certa conduta prevista na norma, para benefício
e interesse próprios, sem sujeição nem coerção e sem que exista outro sujeito que
tenha o direito de exigir seu cumprimento, mas cuja inobservância acarreta conseqüências desfavoráveis.23
Também BETTI ressalta que a divisão do ônus da prova acompanha o da afirmação, compatível com a diferente posição processual das partes.24
CARNELUTTI considera que o critério para determinação do ônus da prova
reside no interesse na afirmação, o que se harmoniza com o conteúdo da lide e decorre de regra de experiência, segundo a qual as partes buscam a prova dos fatos
que lhes sejam favoráveis.25
Seria o ônus da prova uma “necessidade prática diante da qual se encontra a
parte para poder obter o efeito jurídico desejado e evitar o dano de perdê-lo.”26 Cabe
à parte provar o nascimento ou extinção do direito pleiteado se quiser que seja reconhecido pelo juiz. Entretanto, esta prova não se trata de “obrigação” da parte.
Aquele que litiga, buscando a prestação jurisdicional apresentará uma relação
de direito decorrente de um fato. Todo direito se origina de um fato, que servirá de
fundamento à ação. É no fato jurídico que se encontra a “causa de pedir”; neste sentido, será a causa de pedir o ato ou fato jurídico de onde se baseia o direito que o
autor pretende ver acolhido.
22 Nicola Framarino Dei Malatesta, A lógica das Provas em Matéria Criminal Vol. I, Tradução de Alexandre Augusto Ferreira, São Paulo: Saraiva, 1960, p. 136.
23 Teoría General de La Puebra – 6ª Ed. Buenos Aires: Zavalia Editor, 1988, tomo I – 2º volume.
24 Diritto Processuale Civile Italiano – 2ª Ed., Foro Italiano 1936 – p. 335.
25 Sistema di Diritto Processuale Civile – Padova: Cedam, 1936, vol. I.
26 Michleli, La carga de la prueba, Buenos Aires: Edit. Ejea, 1961, p. 59.
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42
287
Da mesma forma, o réu, ao apresentar sua defesa, contestando o direito do
autor, indicará, por sua vez, os fatos em que se fundam suas afirmações. Assim apresentadas as alegações de um fato possível e juridicamente relevante, deverão ser
considerados pelo julgador. Entretanto, a simples alegação não é suficiente para formular a convicção; é necessário que, diante da controvérsia entre as partes, surja a
questão: a quem incumbe o ônus da prova?27
2.
DIFERENÇA DE DEVER E ÔNUS DA PROVA
A diferença se dará primeiramente com base na significação dos termos. O
“dever” se dá sempre em relação a alguém, ainda que sociedade. Trata-se de uma relação entre dois sujeitos – ou seja, uma obrigação do sujeito ativo. Já o ônus é em
relação a si mesmo, o interesse é do próprio onerado. Ele escolhe entre satisfazer o
ônus ou não ter a tutela do próprio interesse. Quem tem interesse na afirmação deverá produzir a prova.28
Temos como mais adequado, falar em necessidade, ônus de provar e não em
dever de provar. Portanto, a parte que não cumpre com o ônus de provar enfrenta
uma situação jurídica análoga à que enseja o inadimplemento de um dever, suportando as conseqüências da falta da prova.29 O inadimplemento da obrigação importa uma desvantagem na busca do ganho da causa.30
Existe o ônus, portanto, quando
um determinado comportamento do sujeito é necessário para que
um fim jurídico seja alcançado; por outro lado, o sujeito mesmo é
livre para organizar sua própria conduta como quiser, inclusive
para eventualmente agir contrariamente ao previsto na norma.31
Já na obrigação, ao contrário, se deve cumprir o ato e pode se obter tal cumprimento coercitivamente com a possibilidade de aplicação de sanções como o pagamento de prejuízos e pena de multa.32
O que se precisa aferir é que o ônus da prova se impõe não só em razão do
interesse das partes, mas também em razão do interesse da adequada marcha e solução processual, ou seja, em razão do interesse público. Em contraponto, existe
igualmente direito e obrigações de interesse geral. O cumprimento de uma obriga27 Moacyr Amaral dos Santos, Prova judiciária no cível e no Comercial, Vol. I, 1952, São Paulo: Max Limonad, p.
94.
28 Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Campinas, Bookseller, 2001, Tomo 3, p.458.
29 Giuseppe Chiovenda, Instituições de Direito Processual Civil. Campinas: Bookseller, 2002, Vol. II, p. 442.
30 Nelson Nery Junior e Rosa Maria Nery, CDC Comentado, São Paulo: RT, 2003, p. 722.
31 Michleli, La carga de la prueba, Buenos Aires: Edit. Ejea, 1961, p. 59.
32 Hernando Devis Echandia, Teoria General de la Prueba Judicial, Tomo I, Buenos Aires: Victos P. De Zavalía –
Editor, 3ª. Ed. p. 395.
288
faculdade de direito de bauru
ção interessa principalmente ao credor e o devedor atuará devido ao interesse daquele e não do seu próprio. Quando for ato necessário em razão de ônus processual, é executado conforme o interesse do demandado e para evitar o dano de sua
inexecução.
Verificamos, portanto, que não se trata do ponto sensível o conceito de ônus
processual e sua verdadeira distinção de obrigação. Existem analogias entre situações jurídicas criadas por ambas: o obrigado mantém, em certas ocasiões, para não
cumprir a determinação como no caso das obrigações personalíssimas, suportando
conseqüências como o pagamento de indenização. Por outro lado, o sujeito do ônus
da prova pode também não executar e submeter-se a situações desfavoráveis, não
obstante dever executar, desejando obter resultado favorável, o que compromete
uma diferenciação absoluta.33
2.1. Teses Sobre o ônus da Prova e sua Correlação com a Obrigação
A) A Carga é uma Categoria de Obrigação: Para esses autores, o ônus “nada
mais é do que uma categoria de obrigação na qual não se sanciona com penas como o ressarcimento de danos, mas uma mera decadência”.34 Essa
teoria não prevalece em razão de sua inconsistência. Para caracterizar o
ônus como obrigação é necessária a existência de uma “auto-responsabilidade”, ou uma sujeição consigo mesmo. Ora, não nos parece adequada
esta idéia de uma obrigação que não seja em relação a terceiros, ou seja,
deveria haver um direito correlativo do juiz ou da parte de exigir o cumprimento da obrigação. Por outro, lado temos que as normas que estabelecem o ônus processual conferem também às partes poderes ou faculdades,
tendo, portanto liberdade de executar o ato, ou assumir a conduta prevista. Ou seja, a atividade dos interessados é sempre voluntária.35
B) Corrente que considera a carga como sendo um Vínculo Jurídico Imposta para a Proteção de Interesse Público: Esta teoria vem embasada na
idéia de que o ônus da prova seria um poder-dever. Não leva em consideração que a demanda está sendo intentada em razão de um interesse próprio, ou seja, um interesse da parte que não pode se confundir com o interesse genérico de interesse público que reveste o processo. Como se não
bastasse, se realmente se tratasse de um interesse público, não haveria essa
liberdade de execução, a saber, um ônus e seria, sim, uma obrigação.36
C) Tese que Define a Carga Como um Dever Livre: Tem como mais forte partidário BRUNETTI, e sustenta que o ônus pode ser definido como um “de33
34
35
36
Idem ibidem, p. 396.
Neste sentido Zitelman, Ascarelli Bruck e outros. Echandia citando Micheli, p. 396.
Essa crítica é feita por: Micheli, Rosenberg, Silva Melero e Kisch, apud Echandia, op. cit. p. 397/398.
Idem ibidem,
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42
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ver livre”, deixando o sujeito em liberdade para usar ou não os meios necessários para a obtenção do fim almejado. ECHANDIA juntamente com
MICHELI critica o posicionamento, por entender que a parte não se encontra em um estado de “dever livre”, mas num estado típico de coação. Por
outro lado, o próprio termo é contraditório – dever livre? Segundo ROSEMBERG, este “dever livre” equivale ao dever para consigo mesmo, pois
mais uma vez não se considera a principal característica que é a do poder
ou faculdade conferida à parte. Ainda não podemos confundir, mais uma
vez, ônus e dever.37
D) Tese que fundamenta a noção de ônus na titularidade do interesse que
existe em sua observação: afirmando que a obrigação se cumpre em interesse público e o ônus em interesse próprio, esta deve ser observada se se
pretende obter resultado benéfico para o sujeito gravado com ela ou evitar uma conseqüência fatal ou adversa. ECHANDIA entende que a titularidade do interesse, o benefício que o ato outorga não é suficiente para estruturar completa e claramente a noção do ônus e seus diferenciais de
obrigação e dever, pois se omitem aspectos importantes como a existência
e inexistência de sanção à liberdade de seu cumprimento. Assim, a tese
contempla apenas um aspecto;
E) Tese que Diferencia a Carga da Obrigação e que, não Obstante, a Coloca no Grupo das Relações Passivas Como Ato Juridicamente Necessário,
mas em Interesse Próprio, Cuja Inexecução, sendo Lícita, Acarreta Conseqüência Econômica: (KISCH, CARNELUTTI, AUGENTI E FENECH) Nesta tese, a obrigação de carga e estrutura se desenvolve sobre quatro bases:
a) o caráter do ato necessário (juridicamente) em oposição ao ato devido
que tem aquela; b) o distinto interesse (público ou próprio) em que cumpre o ato, é dizer, o ônus se cumpre em interesse próprio e a obrigação em
interesse público (o credor), c) a diferente sanção que acarreta o não cumprimento (jurídica para obrigação e simplesmente econômica para o ônus:
a conseqüência diversa que sofre o sujeito); d) o caráter ilícito do não-cumprimento da obrigação e lícito da inobservância do ônus. CARNELUTTI distingue o ato necessário (relativo ao ônus) e o ato devido (determina a obrigação). O ato necessário visa a obter finalidade de interesse próprio, o segundo de interesse público. Explica que o descumprimento do ônus acarreta uma sanção econômica representada pela perda do efeito favorável
que se busca com a tutela. Já o descumprimento da obrigação acarreta uma
sanção jurídica em benefício do credor e do titular do direito correlativo,
seja pela indenização, seja pela pena, restando claro o caráter público. Estabelece que o principal elemento de distinção entre obrigação e ônus é o
37 Idem ibidem.
290
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ilícito, motivo que leva à conclusão de que o ônus se subordina a um interesse próprio, e outro também próprio; já a obrigação implica subordinar
um interesse próprio a um público. Assim, o descumprimento da obrigação implica caráter ilícito e lícito no descumprimento do ônus,
No processo civil dispositivo, em que não é do Estado Juiz a função de diligenciar e trazer provas ao processo, o ônus da prova é do interessado. Isto irá motivar
as partes a participar ativamente do contraditório processual, sabendo as conseqüências de sua desídia ou omissão. O Código de Processo Civil traz, acerca do
tema, norma de caráter genérico que é o art. 333, o qual distribui o ônus da prova
entre as partes.38
3.
O ÔNUS E O OBJETO DA PROVA
É o texto da lei que determina ao autor e ao demandado as circunstâncias que
deverão ser provadas, tendo em consideração os limites das proposições formuladas em juízo, ou seja, fato não alegado é fato irrelevante. Verifica-se assim que o
ônus da prova não é um direito do adversário, mas sim um imperativo do próprio
interesse de cada litigante, é uma circunstância de risco que consiste em: quem não
prova o que deveria, corre o risco da perder a demanda.39
4.
DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA NO SISTEMA LEGAL BRASILEIRO
Interesse
A Legislação processual civil delimita, no art. 333 do CPC: I – Cabe ao autor a prova relativa aos fatos constitutivos de seu direito II – e ao réu dos fatos
que de algum modo atuem sobre o direito alegado pelo autor impedindo (que
obsta as conseqüências jurídicas objetivadas pelo autor) que se forme, modificando-o (que opera alteração na relação jurídica) ou extinguindo-o (que acarreta o fim da relação jurídica), ou seja, aquele que tiver interesse deverá provar
para o reconhecimento do fato, ou seja, prevalece o princípio do interesse. Assim, em relação aos fatos constitutivos, serão de interesse do autor e, em relação aos demais, serão de interesse do réu.40
Na lição de Moacyr Amaral dos Santos:
38 Candido Rangel Dinamarco, Instituições de Direito Processual Civi, São Paulo: Malheiros, 2003, Vol. III, p.72.
39 Eduardo J. Couture, Fundamentos Del Derecho Procesal Civil, Coleción: Maestros Del Derecho Procesal, n 1,
Buenos Aires: Euros Editores SRL, 2002, p. 198.
40 O art. 333 alude somente ao autor e ao réu, mas na verdade a regra se estende a todos os sujeitos que figurem
no processo como litisconsortes (a prova de um deles é suficiente), assistente, o MP na condição de fiscal da
Lei, etc.
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291
1° - Compete em regra, a cada uma das partes fornecer os elementos de prova das alegações que fizer. Ao autor cabe a prova dos fatos dos quais deduz seu direito; ao réu a prova dos fatos que, de
modo direto ou indireto, atestam a inexistência daqueles (prova
contrária, e contra prova. O ônus da prova incumbe ei qui dicit.
2° - Em regra, ao autor a prova do fato constitutivo e ao réu a prova do fato extintivo, impeditivo ou modificativo. Essa regra reafirma a anterior, quanto ao autor, e atribui o ônus da prova ao réu
que se defende por meio de exceção, em sentido amplo. Réus inexcipiendo fit actor.41
CHIOVENDA defendeu que o critério para a determinação do ônus da prova
seria o interesse de cada uma das partes; CARNELUTTI, pois, entende que ambas as
partes têm interesse, mas em direção oposta, sendo, portanto, o interesse em afirmar certo fato: ao autor o fato constitutivo, ao réu o fato modificativo, extintivo ou
impeditivo. A contribuição de MICHELI deu-se no sentido de que as regras do ônus
da prova são para o juiz, regras práticas de julgamento, para resolução da demanda
em face da falta ou insuficiência de prova de algum fato.42
O ônus da prova passa a representar um problema quando decorrente do
princípio do dispositivo e do sistema de persuasão racional, devendo o juiz julgar de
acordo com a atividade probatória promovida. Tendo o julgador formado sua convicção, não necessita verificar a quem incumbia o ônus da prova, que somente se
torna relevante no caso de omissão.
5.
ÔNUS DA PROVA OBJETIVO E SUBJETIVO
As regras até agora expostas dizem respeito ao ônus subjetivo da prova, ou
seja, a necessidade de a parte provar para vencer e das conseqüências da parte que
deveria provar e não o fez.
Entretanto, após as provas serem apresentadas ao processo, não importa mais
quem a apresentou, devendo o juiz levá-las em consideração, ou seja, vale para ambas as partes, sendo tal característica definida como ônus objetivo. A denominação
não é apropriada quanto ao juiz, já que este não tem ônus, mas sim dever funcional
de decidir, ainda que a prova seja complexa e os fatos incertos.43
41 Moacyr Amaral dos Santos, Primeiras Linhas do Direito Processual Civil, V. II, p. 347.
42 Vicente Greco Filho, Direito Processual Civil Brasileiro, 2° V. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 202.
43 Idem ibidem, p. 203.
292
6.
faculdade de direito de bauru
ÔNUS DA PROVA OBJETIVO – REGRA DE JULGAMENTO
Afirmam NERY e NERY que o ônus da prova é regra de julgamento, isto é,
quando da prolação da sentença, o juiz irá proferir sentença contrária àquele que tinha o ônus e dele não se desincumbiu, ou seja, assumiu o risco da não produção da
prova.44 Assim, somente nos casos de falta de prova suficiente, encontrando-se o julgador em uma situação de perplexidade intransponível, que a regra de julgamento
será utilizada.
Em verdade as regras sobre conseqüências da falta da prova exaurem a teoria do ônus da prova. Se falta prova é que se tem de pensar em se determinar a quem cabia a prova. O problema do ônus
da prova é, portanto, o de determinar a quem vão as conseqüências de não haver provado; ao que afirmou a existência do fato jurídico e foi, (na demanda o autor) ou a quem contra-afirmou (=
negou ou afirmou algo que exclui a validade ou eficácia do fato
jurídico afirmado).
É importante repisar que essas regras sobre o ônus da prova somente serão
aplicadas se esgotados todos os meios de prova, quer requeridos pelas partes, quer
determinados pelo juiz, de ofício. Se mesmo assim o julgador não se convencer sobre nenhuma tese apresentada, neste sentido fala-se em regra de julgamento, ou sobre o “ônus da prova.”45
Reiteramos: somente a insuficiência ou inexistência de elementos probatórios
ou quando estes forem contraditórios ou incoerentes de modo que o juiz não tenha
condições de reconstruir mentalmente os fatos da causa, fundamentando-as, autoriza a aplicação da regra do ônus da prova uma vez que não lhe é permitido não julgar, sendo, portanto, sua última alternativa.
As normas de distribuição do ônus da prova de regra de julgamento são destinadas ao juiz que se encontre em estado de perplexidade irredutível, não sendo
instituto probatório, pois somente se aplica quando a prova não funciona.46 Assim,
extrai-se do sistema que: fato não provado é fato inexistente e fato provado é fato
existente e o juiz julga segundo ele.
Quando encerra a instrução probatória e se dispõe a julgar, o juiz desenvolve
uma atividade intelectual que consiste em: a) identificar o pedido; b) identificar os
pressupostos de fato do direito afirmado pelo autor; c) confrontar os fatos alegados
44 Nery e Nery, op. cit. p. 723, nota 2.
45 Rossana Teresa Curioni, A Atividade do Juiz na Produção da Prova, Dissertação de Mestrado apresentada
para a conclusão do curso de mestrado na ITE, não publicada, p. 71.
46 Antonio Carlos de Araújo Cintra, Comentários ao Código de Processo Civil, v. IV, p. 20.
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42
293
com o pedido; d) verificar a ocorrência dos fatos. Nesse momento, a prova será analisada e sua insuficiência deverá dar base a possível regra de julgamento.47
Entretanto, para que se assegure o cumprimento do devido processo legal,
é necessário que o juiz na audiência preliminar (art. 331 § 2° CPC) informe às
partes o ônus que cada uma delas tem, advertindo as de eventual omissão, fixando assim os limites de seu objeto, organizando os limites da prova fixe os pontos controvertidos, sendo estes os alegados pelo autor e negados pelo réu.48
Aqueles pontos que não sejam controvertidos não devem ser objeto de prova
(art. 334, III).49
7.
DA NÃO PRODUÇÃO DA PROVA PELO AUTOR E PELO RÉU
O réu tem interesse na não existência dos fatos alegados pelo autor; enquanto, porém, o autor não provou os fatos que afirma, o réu não tem necessidade de provar coisa alguma. É o que se abstrai do disposto na norma do art. 302
do CPC, o interesse, pois, e o ônus da prova no réu surgem unicamente quando
o não afirmar e o não-provar acarretaria prejuízo ao réu, e tal acontece quando o
autor já provou fatos idôneos para constituir um direito a seu prol, de sorte que
o juiz teria de acolher a demanda, se a parte contrária não afirmasse e provasse
fatos que se lhe opunham.
Enquanto o autor não provou os fatos que representam o fundamento de sua
demanda, o réu pode limitar-se a negar pura e simplesmente, sem obrigação de provar. A simples negação dos fatos afirmados pela outra parte não impõe qualquer
ônus da prova.50
Entretanto, mesmo assim algumas situações são passíveis de dúvidas. Vejamos
o caso do autor que alega que o réu lhe deve a quantia de R$ 200,00 (duzentos reais)
dizendo que a obrigação será comprovada testemunhalmente. O requerido alega
que fez a proposta por brincadeira. A quem incumbe a prova? Terá o réu que provar
somente que o réu se obrigou, ou também que se obrigou a sério? BETHMANNHOLLWEG afirma: “As condições específicas são os fatos que, segundo sua própria
idéia ou conceito de um dado direito, lhe determinam a existência; as outras condições não provêm diretamente do conceito de direito” A seriedade do acordo pertence à constituição do fato que fundamenta o pedido.51
Portanto, considerando as alegações de fato comprovadas pelo autor, impugnadas, mas não comprovadas pelo réu na forma prevista em lei, teremos então a
preclusão e a impossibilidade de produção posterior da prova, conforme dispõe os
47
48
49
50
51
Candido Rangel Dinamarco, op. cit. p. 83.
Idem ibidem, p. 83.
Nery e Nery, op. cit. p. 716.
Giuseppe Chiovenda, Instituições de Direito Processual Civil. Campinas, Bookseller, 2002, Vol. II, p. 449.
Idem ibidem, p. 451.
294
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arts. 297 e 300 do CPC o que significa dizer, o requerido se encontrará em desvantagem com relação ao autor na atividade probatória que dará base para a decisão.
Quando o réu apresenta alegação de exceção, o ônus da prova da alegação é seu.
Em relação à revelia, bem como à contestação sem provas, os fatos não
contestados e/ou não provados são tidos, de regra, como verdadeiros52 (art. 319
do CPC), no que diga respeito a direitos disponíveis. Contudo, não se trata de
regra absoluta, uma vez que ausente alguma das condições da ação; havendo evidente falta de direito, a simples revelia não implica necessária procedência do
pedido, abdicando o julgador da racionalidade e julgando contra a evidência. Tal
entendimento se dá como base no princípio do livre convencimento motivado
do julgador.
Em relação à revelia, temos ainda a súmula 231 do STF que dispõe que: “O revel, em processo cível, pode produzir provas, desde que compareça em tempo
oportuno.”
8.
DA PROVA DO FATO NEGATIVO
Nas alegações de fato negativo, o que se alega é a existência de um fato que deveria ter ocorrido e não aconteceu. Ou seja, a inexistência se confunde com o interesse processual mérito, cabendo, portanto, ao autor o ônus da prova.53 Como exemplo,
podemos citar a prova de que aquilo que se pagou não era devido, na ação de indenização por omissão culposa, que não foi feito pelo réu o que lhe competia fazer.
O que não se pode provar é o fato negativo indefinido. A indefinição não se
pode provar e não o fato negativo. Não podemos, por exemplo, provar que alguém
nunca viajou para Roma, ou que nunca possuiu um anel.54
9.
JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
São procedimentos de natureza inquisitória, não incidindo a regra do art. 333
aplicável somente ao processo regido pelo princípio dispositivo. Assim, nesses casos, o juiz irá investigar livremente a prova – art. 1109 do CPC.55
52 Exceção – no caso de litisconsórcio, quando algum dos outros réus contesta,se o a controvérsia versar sobre
direito indisponível, como investigação de paternidade e guarda de menor, e os previstos no art. 334 do CPC
que não dependem de prova: os fatos notórios, afrimados por uma parte e confessados pela outra, incontroversos, em cujo seu favor milita presunção legal de existência ou veracidade.
53 Nelson Nery Junior e Rosa Maria Nery, CDC Comentado, São Paulo: RT, 2003, p. 723.
54 Luiz Rodrigue Wambier et all Curso Avançado de Processo Civil São Paulo: RT, 2003, p. 482.
55 Nelson Nery Junior e Rosa Maria Nery, CDC Comentado, São Paulo: RT, 2003, p. 723.
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42
295
10. NORMAS ESPECÍFICAS SOBRE A DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA
PROVA
A legislação dispõe ainda de normas específicas as quais dispõem acerca do
ônus da prova:
• O art. 337 do Código de Processo Civil que atribui o ônus da prova do teor
à vigência do direito estrangeiro, estadual, municipal ou consuetudinário à
parte que o houver alegado. A parte só terá esse ônus na hipótese de o juiz
exigir e então incluir tais normas no objeto da prova.
• O art. 389 dispõe acerca do ônus da prova em relação ao incidente de falsidade que o ônus será sempre de quem argüir a falsidade, pois dele será
o interesse em afastar a eficácia probatória do documento.
• Temos ainda disposições do CC como o pagamento feito a incapaz e sendo a obrigação anulada em razão disso (art. 181 do CC), o ônus da prova
de que o pagamento reverteu em benefício do menor é daquele que pagou ao incapaz;
• Para não responder pela responsabilidade da prestação, o credor em mora
tem o ônus de provar que o caso fortuito ou a força-maior ocorridos teriam
produzido a mora ainda que esta não existisse (art. 399 do CC).
• Àquele que, voluntariamente pagou o indevido tem que incumbe a prova
de tê-lo feito por erro (art. 877).56
11. CONCLUSÃO
A teoria da distribuição do ônus da prova é a espinha dorsal do processo civil.
Sua regulação deve se dar de acordo com normas jurídicas cuja aplicação deverá estar submetida à análise de um Tribunal. Esta regulação deve conduzir a um resultado determinado, independente das contingências do processo particular, constituindo um norte para o julgador e uma garantia de segurança com a qual as partes
podem contar já antes de travar o processo.
REFERÊNCIAS
Augusto, Alexandre, São Paulo: Saraiva, 1960.
Amaral dos Santos Moacyr, Primeiras Linhas do Direito Processual Civil, V. II.
Amaral dos Santos Moacyr, Prova judiciária no cível e no Comercial, Vol. I, 1952, São Paulo:
Max Limonad.
56 Ver ainda no CC – art. 332, 353, 461, 613, 644, 667, § 1°; 936, 1588, 1965. Candido Rangel Dinamarco, op. cit.
p. 75.
296
faculdade de direito de bauru
Betti Diritto Processuale Civile Italiano – 2ª ed., Foro Italiano 1936
Carnelutti, Francesco Sistema di Diritto Processuale Civile – Padova: Cedam, 1936, vol. I
Chiovenda Giuseppe, Instituições de Direito Processual Civil. Campinas: Bookseller, 2002,
Vol. II.
Chiovenda Giuseppe, A oralidade e a Prova, in Revista Forense 74/232.
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O artigo 461 do CPC e a efetividade da
prestação jurisdicional
Levi Rosa Tomé
Juiz do Trabalho.
Professor de Direito Processual do Trabalho das Faculdades Integradas de Ourinhos.
Pós-graduando em Direito Processual Civil pelas Faculdades Integradas de Ourinhos.
Tratei de descrever da melhor forma possível, se bem que naturalmente em
rápidas pinceladas, o mecanismo do processo civil e penal, um mecanismo, se me
permite a metáfora, que deveria fornecer ao público um produto tão necessário ao
mundo como nenhum outro bem: a justiça. É oportuno repetir que os homens têm,
antes de tudo, necessidade de viver em paz; mas, se não existe justiça, é inútil esperar pela paz. Por isso, não deveria haver nenhum serviço público ao qual o Estado
dedicasse tantos cuidados quanto ao que leva o nome de processo. Esta observação
a faço, antes de tudo, porque me vejo na necessidade de acrescentar que nem a opinião pública toma consciência da maior importância que tem para a organização social um instituto como o processo, nem correlativamente o Estado faz pelo processo tudo que deveria fazer. Os interessados, ou seja, entre os técnicos do processo,
juízes, advogados e partes, têm a consciência de que o mecanismo funciona mal.
Esta consciência aflora ocasionalmente nos ambientes legislativos, mas quase nunca
parece que houve outra coisa a fazer a não ser modificar as leis processuais, sobre
as quais se costuma colocar a responsabilidade do mau serviço judiciário, para empregar uma palavra que já entrou no uso corrente. Também ouvimos falar em reformas urgentes do Código de Procedimento Penal e do Código de Procedimento Civil, e todos parecem acreditar não apenas que com estas reformas o Estado tenha
cumprido seu dever, como também que dessas reformas surgirão, Deus sabe como,
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faculdade de direito de bauru
melhorias na administração da justiça. Tenho o dever de desenganar o público a
quem me dirijo, dissuadindo-o de cultivar estas que não seriam esperanças, mas verdadeiras ilusões. Certamente, nossas leis processuais não são perfeitas, mas em primeiro lugar, são bastante menos más do que se diz; em segundo lugar, se bem que
fossem muito melhores, as coisas não andariam melhor, pois o defeito está, muito
mais do que nas leis, nos homens e nas coisas.
1.
A INEFICIÊNCIA DO PROCESSO COMO INSTRUMENTO DE PACIFICAÇÃO SOCIAL
É de Francesco Carnelutti o texto acima transcrito, extraído de seu livro
“Como se Faz um Processo”, em edição traduzida no Brasil por Hiltomar Martins de
Oliveira, pela editora Líder (Belo Horizonte, 2001 – pags. 119/120). Essas palavras
do professor da Universidade de Milão, algo desalentadas, parecem dizer respeito ao
processo civil brasileiro e aos problemas aqui enfrentados, sobre a morosidade da
justiça, sobre a sua ineficiência, sobre as reformas a serem empreendidas; mas em
verdade, referem-se ao processo italiano e baseiam-se em fatos ocorridos há cerca
de 40 anos.
Como se vê, mal funcionamento do sistema judiciário, morosidade, falta de
efetividade da prestação jurisdicional, não são particularidades do contexto brasileiro, muito menos provêm da modernidade das relações jurídicas, influenciadas pelo
avanço tecnológico, muito embora este último fator as acirre.
Países de primeiro mundo, como Itália, França, Inglaterra, enfrentam dificuldades com a efetividade da prestação jurisdicional, principalmente em relação à demora
no desenvolvimento do processo. Há dados de administração judiciária, que indicam
como tempo médio de duração de um processo na Itália, entre 1991 e 1997, em torno
de 4 anos em primeiro grau de jurisdição; no Japão, alguns feitos chegam a mais de 10
anos de tramitação; morosidade esta também verificada na Inglaterra, onde, em 1999,
rompeu-se com a tradição da common law, para se instituir um código de processo civil, com vistas a empreender maior proficiência à prestação jurisdicional, pelo flanco da
tempestividade da jurisdição (in, “Os Reflexos do Tempo no Direito Processual Civil
(Uma Breve Análise da QuaIidade Temporal do Processo Civil Brasileiro e Europeu” Fernando da Fonseca Gajardoni - Juris Síntese 041/03). É certo, por outro lado, que não
se pode deixar de atribuir razão a Carnelutti, quando este imputa muito mais aos homens e às coisas, o problema da falta de efetividade da prestação jurisdicional, do que
às leis - assim inferindo o mestre de Udine, por detectar na sociedade em que vivia a
ausência de moralidade, na medida em que baseada esta sociedade “exclusivamente no
plano econômico”, avultando-se a litigiosidade na mesma proporção em que verificado
o crescimento da economia (ob. cit. pag. 120).
Contudo, menos certo não é ter presente que, ainda assim, mesmo atribuída
aos homens e às coisas, a maior parcela de responsabilidade pela falta de efetivida-
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299
de do processo, mesmo considerando que uma tal anomalia decorre do próprio
crescimento econômico e da litigiosidade que lhe é peculiar, lastreada esta na amoralidade, cabe ao Estado, detentor do monopólio da jurisdição, desenvolver mecanismos para que o processo suplante esta crise e volte a se posicionar como instrumento eficaz de pacificação social.
É de Giuseppe Chiovenda a célebre assertiva de que “o processo deve dar,
quando for possível praticamente, a quem tenha um direito, tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tenha direito de conseguir” (in, “Instituições de Direito Processual Civil”, Bookseller, Campinas, 1998, vol. I, pag. 67), frase esta que parece reverberar ainda mais intensamente nos dias atuais, soando como verdadeiro tormento aos operadores do direito, que convivem com um processo prenhe de formalidades e simbolismos, por isso mesmo intrincado e moroso e que sabem, porque se
conscientizaram disso ao longo do tempo, que a garantia do Estado não deve se referir apenas ao “devido processo legal”, mas acima de tudo, a um processo justo e
efetivo, para isso desenvolvido em tempo razoável.
Processo é instrumento, e como tal deve servir ao direito material, e não este
àquele. Tanto assim que os escopos primordiais do processo, dizem Cintra, Grinover e Dinamarco, são de três ordens: social (pacificação social), político (preservação do ordenamento jurídico e da autoridade do próprio Estado) e jurídico (atuação da vontade concreta da lei), e só a efetividade da prestação jurisdicional haverá
de satisfazê-los (in, “Teoria Geral do Processo”, Malheiros, 2002, pags. 24/25).
2.
A EFETIVIDADE DO DIREITO MATERIAL PELA VIA DO PROCESSO
Neste contexto, principalmente a partir da segunda metade do século passado, iniciou-se um processo de modificação do direito processual civil, máxime nos
países melhor desenvolvidos, primeiro na doutrina e depois na legislação, no sentido da busca da efetividade da prestação jurisdicional, do “acesso à justiça”, cujos
principais precursores foram Mauro Capelletti e Vittorio Denti. (“A Reforma do Processo Civil”, Cândido Rangel Dinamarco, Malheiros, 1995, pag. 19).
No Brasil não foi diferente, principalmente com o advento da nova Constituição Federal, quando teve início ou pelo menos acelerou-se um processo de modernização da legislação processual, voltada mais ao interesse coletivo do que ao individual. A partir de então, prestigiou-se o acesso aos órgãos jurisdicionais; garantiuse de forma expressa o contraditório, inclusive na esfera civil; explicitou-se a observância do devido processo legal, mesmo em sede administrativa; legitimou-se à tutela coletiva outros entes, além do Ministério Público; preconizou-se a fundamentação das decisões judiciais como princípio constitucional; preocupou-se com um “direito processual constitucional”, com vistas à tutela das liberdades. E à edição da
Constituição Federal seguiram-se várias “mini-reformas” do próprio Código de Processo Civil, com a implantação tópica de modificações e a criação de institutos jurí-
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faculdade de direito de bauru
dicos novos, cuja finalidade era não só a da simplificação do processo, mas também
e, principalmente, a da sua efetividade, como meio hábil à tutela de direitos.
3.
O ARTIGO 461 DO CPC – TUTELA ESPECÍFICA E RESULTADO PRÁTICO EQUIVALENTE
No caso específico deste trabalho, e nos limites estreitos em que o mesmo
deve se desenvolver, interessa primordialmente o previsto no artigo 461 do CPC,
com a redação que lhe deram as Leis 8.952/94 e 10.444/02, e que, como se verá nos
articulados seguintes, empreendeu considerável transformação no processo civil,
agora sincrético em alguns aspectos, não mais adstrito em compartimentos estanques: processo de conhecimento e processo de execução.
Confira-se, abaixo, a atual redação do mencionado artigo 461 do CPC:
Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação
de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.
§ 1º. A obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do
resultado prático correspondente.
§ 2º. A indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da
multa (artigo 287)
§ 3º. Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz
conceder a tutela liminarmente ou mediante justificação prévia,
citado o réu. A medida liminar poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada.
§ 4º. O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido
do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixandolhe prazo razoável para o cumprimento do preceito.
§ 5º Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de
multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas
e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.
§ 6º O juiz poderá, de ofício, modificar o valor ou a periodicidade
da multa, caso verifique que se tornou insuficiente ou excessiva.
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Em verdade, a própria redação do caput do mencionado artigo, com a estrutura que lhe atribuíram as leis acima mencionadas, bem demonstra a disposição do
legislador processual, no rumo da efetividade do processo. Nesse sentido, a especial
ênfase dada no aludido dispositivo legal, à obtenção da “tutela específica da obrigação” ou do “resultado prático equivalente ao do adimplemento”, relegando a transformação da obrigação descumprida em perdas e danos, apenas para a hipótese de
o autor assim requerer, ou para o caso de ser impossível o seu adimplemento ou a
obtenção de resultado prático equivalente - fazendo-se oportuno relembrar, neste
ponto, a clássica divisão de obrigações de fazer em fungíveis e infungíveis, estas últimas passíveis de se converterem em indenização, pela impossibilidade de cumprimento por outrem, ainda assim, se tal infungibilidade for natural, e não meramente
jurídica.
E aqui, como leciona Dinamarco, rompe-se, mais uma vez, com dogmas cultivados pela tradição francesa pandectista, no sentido da intangibilidade da vontade
humana, que se negando a uma obrigação contraída, de fazer ou de não fazer, seria
suficiente a que outro caminho se buscasse à satisfação do credor, comumente através das perdas e danos, pois impossível o constrangimento pessoal do devedor (ob.
cit. pag. 150); nisso revigorando o que preconizado por Chiovenda, como dito linhas atrás, a respeito da finalidade instrumental do processo, e de sua vocação em
propiciar a quem tenha um direito, exatamente este direito. Por “tutela específica”,
assevera Cássio Scarpinella Bueno, “deve ser entendida a maior coincidência possível entre o resultado da tutela jurisdicional pedida e o cumprimento da obrigação
caso não houvesse ocorrido lesão do direito no plano material” (in, “Código de Processo Civil Interpretado”, Antonio Carlos Marcato e outros), ed. Atlas, 2004, pag.
1404) - o que não significa dizer que o “resultado prático equivalente ao do adimplemento” seria um outro direito, uma outra tutela a ser empreendida pelo juiz, senão
que uma forma diferente de obter a mesma tutela, o mesmo bem da vida vislumbrado pelo autor, através de medidas que levem a tal resultado. A esse respeito, J.E. Carreira Alvim fala em “tutela específica” e em “tutela assecuratória” (in, “Ação Monitória e Temas Polêmicos da Reforma Processual”, Ed. Del Rey, 1995, pag. 210).
Por outras palavras, a diferença entre “tutela específica” e “resultado prático equivalente” reside apenas na maneira de se obter a tutela, nos mecanismos a serem empreendidos pelo órgão jurisdicional, para a obtenção do cumprimento da obrigação.
Relembrem-se, neste ponto, porque importantes, os conceitos de pedido imediato e pedido mediato, expressões correntias no sistema processual, a primeira referindo-se ao tipo de tutela requerida pela parte, o tipo de prestação jurisdicional
que considera adequado aos seus interesses, e a segunda ao próprio bem da vida
cuja tutela se pretende.
Fala-se então, em sede de obtenção do “resultado prático equivalente ao
do adimplemento”, na possibilidade de variação no que tange ao pedido imediato, no sentido de o juiz valer-se, ex officio, de providências que assegurem a efe-
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faculdade de direito de bauru
tiva fruição do direito por seu titular; e não, propriamente, na possibilidade de
alteração do pedido mediato, do próprio bem da vida postulado pela parte, o
que se traduziria no malferimento ao próprio princípio da adstrição do juiz ao
pedido da parte.
4.
A COMPLETA INSERÇÃO, NO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO,
DAS TUTELAS MANDAMENTAL E EXECUTIVA LATO SENSU
Por outro lado, ao empreender maior prestígio à tutela específica, e ao conceber um sistema voltado à obtenção expedita desta tutela, ou à consecução do resultado prático equivalente ao do adimplemento, o novel dispositivo legal parece ter
contribuído, de forma decisiva, não para que se implementasse no sistema processual a classificação quinária das ações (declaratórias, condenatórias, constitutivas,
mandamentais e executivas lato sensu), pois uma tal feição já possuía o ordenamento jurídico pátrio, como sustenta Ovídio A. Baptista da Silva (in, “Curso de Processo
Civil”, vl. 2, pg. 21), o que também já era pacífico na lição de Pontes de Miranda (in,
“Tratado das Ações”, Bookseller, Tomo I, pags. 224/225); mas sim para que uma tal
concepção firme-se, de vez, entre os operadores do direito, o que, entretanto, ainda encontra injustificável resistência.
Com efeito, o mencionado artigo 461 do CPC, ao prestigiar a tutela específica ou o resultado prático equivalente ao do adimplemento, nas obrigações de fazer
e não fazer (caput do artigo), e ao estabelecer que em tal sentido poderá o juiz, na
própria sentença cognitiva ou em decisão que antecipe os seus efeitos, impor multa diária, como forma de obter o cumprimento do preceito (§ 4º), assim como qualquer outra medida necessária à obtenção desse desiderato (§ 5º), estabeleceu verdadeiro sincretismo processual, fazendo com que ações cognitivas espraiem também efeitos próprios do processo de execução, materializem a sanção prevista na
sentença, sem que se tenha de utilizar do processo específico de execução – nisso
aflorando-se as tutelas mandamental e executiva lato sensu.
Aliás, neste aspecto grassa certa controvérsia entre os estudiosos, principalmente a respeito do posicionamento topográfico-estrutural que deve ser observado
em relação às ações mandamentais e executivas lato sensu. Pontes de Miranda as colocava dentre as ações cognitivas, enquanto Ovídio A. Baptista da Silva lhes atribui
feições executórias, exatamente porque preconizadoras de efeito tendente à materialização do preceito sentencial, o que entende estar afeto ao processo de execução tão-somente (Ovídio, ob. cit. pags. 21/22). Parece correta, entretanto, a posição
de Pontes de Miranda, hoje reforçada pela própria colocação tópica do artigo 461 do
CPC, inserido no capítulo do Código de Processo Civil que cuida das sentenças cognitivas. Tanto é assim, diga-se, que o artigo 644 do CPC foi alterado pela Lei
10.444/02, para estabelecer que sentenças preconizadoras de obrigação de fazer e
não fazer executam-se pelos termos do artigo 461 do CPC, relegando-se à execução,
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n.
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prevista no capítulo III do diploma processual, apenas as obrigações de fazer fundadas em titulo executivo extrajudicial (CPC, 645).
5. DISTINÇÃO ENTRE AÇÕES MANDAMENTAIS E EXECUTIVAS LATO SENSU
Ações de tal natureza, mandamentais e executivas “lato sensu”, de fato empreendem maior efetividade à prestação jurisdicional, dependem de uma segunda
relação processual, de cunho executório, para que o comando sentencial se materialize, pois a própria sentença cognitiva já contém instrumentos para tanto.
É nessa perspectiva de eficácia da tutela antecipada que se conta
com a feição ora mandamental ora executiva lato sensu da decisão judicial que lhe dá expressão, daí porque, à falta de expressa
norma em contrário, não se reclama a instauração de uma segunda e intervalada relação processual para sua efetivação, prescindindo-se, conseqüentemente, de nova citação da parte sujeita
ao adimplemento da providência ordenada, cuja eventual resistência, mediante requerimento, haverá de ser exercitada dentro
dos mesmos autos da ação em curso, e não por meio de embargos
do devedor, sempre ressalvada a via recursal. Importante, porém,
não deslembrar que o terceiro, consoante Athos Gusmão Carneiro,
‘este sim, poderá apresentar embargos de terceiro’. (Sérgio Luiz Kukina, in, “Juris Síntese Millennium”, CDROM – 046/04).
Sentenças mandamentais, diz a doutrina, pretendem extrair do devedor o
cumprimento voluntário da obrigação (e não espontâneo, o que é diferente), pois
assim o fará o devedor, pelo fato da imposição de penalidades por parte do juiz, até
mesmo ex officio, capazes de coagir o obrigado a cumprir a obrigação por ele assumida. Trata-se de “mandamento” dirigido ao devedor, especificamente, aguardandose dele próprio o cumprimento da obrigação reconhecida em sentença.
Sentenças executivas lato sensu, diferentemente do que ocorre nas mandamentais, têm feição sub-rogatória, realizando-se o cumprimento da obrigação assumida pelo devedor, independentemente da vontade deste ou até mesmo contra ela,
através de atos materiais, substitutivos do “agir” do devedor, determinados pelo juiz,
sem necessidade de processo específico, tudo de forma a suprir a atividade esperada do obrigado.
O ponto de convergência entre esses dois tipos de eficácia sentencial – mandamental e executiva lato sensu, está no fato da prescindibilidade do processo de
execução. Os mecanismos engendrados no artigo 461 do CPC, para a obtenção da
tutela específica, ou para a consecução do resultado prático equivalente, estatuídos
nos seus parágrafos 4o e 5o, referem-se tanto a medidas de feição mandamental,
304
faculdade de direito de bauru
como multas diárias ou por tempo de atraso, quanto de características executivas,
como a busca e apreensão, o desfazimento de obras, etc.
A enumeração das medidas de apoio, preconizadas no dispositivo em análise,
não é taxativa, mas exemplificativa, por isso mesmo autorizado o juiz, a requerimento do interessado ou mesmo de-ofício, empreender todas as medidas e providências
necessárias à efetivação da sentença.
Dentre tais medidas, entretanto, não se insere a de prisão, porque assim proibida nos termos do artigo 5º, LXVII da atual Constituição Federal. Note-se que a prisão vedada pela constituição é a prisão civil e não a penal. Esta última poderá ocorrer quando cometido crime de desobediência (CP, 330), na medida em que descumprido preceito mandamental, descumprida uma ordem judicial. Prisão penal que
pressupõe processo penal, regularmente desenvolvido, com todas as garantias constitucionais preservadas.
6.
A NECESSIDADE DE CONTÍNUA BUSCA DA EFETIVIDADE DO
PROCESSO
O movimento em busca da efetividade do processo tem avançado ainda mais.
Além dos preceitos contidos no artigo 461 do CPC, que disciplina a tutela relacionada às obrigações de fazer e de não fazer, a Lei 10.444/02 acresceu ao estatuto processual civil o artigo 461-A, cujo objetivo foi empreender o mesmo rito próprio das
tutelas mandamental e executiva lato sensu, às demandas baseadas em obrigação de
entrega de coisa.
Trata-se de uma caminhada gradativa, rumo, senão ao abandono do processo
de execução, ao menos à sua restrição às hipóteses em que tal sistemática se faça absolutamente necessária.
É certo e não se nega que, no processo de conhecimento não se tem certeza
a respeito do detentor da razão. Trata-se de lide de pretensão resistida, cuja solução
demanda dilação probatória, tratamento igualitário, possibilidade de recursos, tudo
dentro do “devido processo legal”. Mas uma tal feição assumida pelo processo de
conhecimento não pode se transformar em dogma intransponível, capaz de se sobrepor ao grito por maior efetividade e praticidade do processo que, como dito de
início, é instrumento que deve servir ao direito material, e não este àquele.
Nos dias atuais, de grandes convulsões sociais, de litigiosidade ainda mais acirrada, certamente muito maior do que nos tempos de Carnelutti, nada parece impedir e tudo parece aconselhar, que já no processo de conhecimento, na sentença que
dirima o pleito, ou mesmo antes disso, quando antecipados os efeitos da tutela meritória, sejam traçados e implementados mecanismos hábeis à materialização do preceito judicial, sem que se tenha de recorrer a uma outra relação processual que,
mesmo baseada em lide de pretensão insatisfeita, onde já se tem a certeza sobre a
quem pertence o direito, é traumática, tormentosa e morosa.
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n.
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Para demonstrar a autonomia científica do direito processual civil, leciona
Humberto Theodoro Júnior, os estudiosos da matéria procuraram afastá-lo, o quanto possível, do direito material, analisando os grandes conceitos e as grandes categorias, as grandes linhas mestras do processo civil, em completa abstração em relação aos institutos próprios do direito civil. Uma tal separação produziu grandes resultados científicos, como informa o ilustre jurista, mas de efeitos práticos quase nenhum (in, “Tutelas Especificas de obrigações de fazer e não fazer”, Revista Síntese de
Direito Civil e Processual Civil, 015, pág. 16).
É hora de se aproximar, novamente, o direito processual do direito material,
não para fundi-los numa única substância, como o fazia o artigo 75 do antigo Código Civil, mas para entrosá-los, fazer com que a tutela jurisdicional se amolde às especificidades do direito, cuja tutela se pretende, daí a noção de tutelas diferenciadas
como forma de lhes dar efetividade, o que está bem deslindado no artigo 461 do
CPC e no novel artigo 461-A do mesmo diploma legal.
O direito processual desfruta de autonomia científica, para efeitos
pedagógicos, mas sua compreensão só se torna útil quando se volta para determinar de que modo o processo pode concorrer para
a realização das metas do direito material, dentro do convívio social” (Theodoro Jr., ob. cit.).
7.
CONCLUSÃO
Carnelutti, como dito nas primeiras linhas deste trabalho, tinha absoluta razão
em atribuir responsabilidade pela falta de efetividade das leis processuais à própria
amoralidade reinante na sociedade atual, produtora de incontáveis litígios facilmente resolvidos pela boa vontade e pela honestidade.
O Estado, entretanto, há de seguir cumprindo o seu papel, no sentido de empreender prestação jurisdicional célere e justa, dessa forma atendendo aos escopos
do processo moderno, fomentando paz social.
Um tal objetivo há de se perseguir com insistência e energia, mas também
com criatividade e bom senso, ainda que para tanto seja necessário rever certas verdades até aqui tidas por intransponíveis.
O artigo 461 do CPC, mexendo com a estrutura do sistema processual atual,
mesclando atividades cognitivas e executivas num único procedimento, reconhecendo o direito e já lhe empreendendo materialização, parece se constituir num
exemplo emblemático do que esta por vir.
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faculdade de direito de bauru
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DIREITO FALIMENTAR BRASILEIRO
Celso Marcelo De Oliveira
Consultor Empresarial.
Membro do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial.
Membro do Instituto Brasileiro de Direito Bancário, do Instituto Brasileiro de Política e Direito do
Consumidor, do Instituto Brasileiro de Direito Societário e do Instituto Brasileiro de Direito Tributário.
Membro da Academia de Letras do Brasil, da Academia de Cultura de Curitiba e
da União Brasileira de Escritores.
Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário e da Associação Portuguesa de Direito do Consumo.
Autor de vinte e sete obras jurídicas - destaque para “Tratado de Direito Empresarial Brasileiro”.
O Direito Empresarial envolve-se diretamento com o Direito Falimentar que
atualmente compreende dois institutos: falência e a concordata. Em recente estudo, o mestre Carlos Henrique Abrão que atuou como membro da Comissão de Estudos da Lei de Falência, fez recentemente algumas considerações sobre a nova Legislação Falimentar Brasileira:
Este trabalho faz parte integrante da obra Tratado de Direito Empresarial Brasileiro Volume I - Teoria Geral do Direito Comercial e Teoria Geral das Empresas, Volume II - Teoria Geral do Direito Societário e Volume III - Teoria Geral do Direito Falimentar e Teoria Geral dos Contratos e Obrigações Civis de nossa autoria e editado
pela Editora LZN (19 32367588).
Debatida amplamente com a sociedade e com os diversos segmentos que a
representam, a disciplina que cuida da reorganização e liquidação judicial das empresas em crise (Lei de Falências) vem disposta no projeto de lei nº 4.376/93 e em
seu substitutivo. Ambos modificam radical e substancialmente o atual decreto-lei
7.661, de 1945, cujo meio século de vida, devido às tendências da economia globa-
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faculdade de direito de bauru
lizada, fez com que ele perdesse a razão de ser. De efeito, aprovado o diploma na
comissão e com a sua provável votação ainda neste mês, será dado um passo importante para atender aos interesses da atividade empresarial. Hoje, mais do que nunca, ela precisa de oxigênio (e de boa qualidade) para prosseguir nos negócios, erradicando as mazelas que sufocam a produção e deixam estagnado o consumo, sinal
das elevadas taxas de juros e das adversidades da política – muito cara – de manter
a qualquer custo a moeda estabilizada.
Dentre as principais reformas contidas no diploma, destacamos as seguintes:
eliminação das expressões concordata e falência, fim do depósito elisivo, nivelamento das preferências entre os credores, alongamento da dívida tributária para quitação,
implantação do comitê de empresa, criação da figura do administrador judicial. Além
dessas, há um capítulo especial destinado à regulação das pequenas e microempresas; pluralidade de formas, sob o manto da flexibilização, cuidando da recuperação
da atividade produtiva; inserção de técnicos e profissionais auxiliando o juízo. A nova
lei também trata da simplificação dos procedimentos, da redução dos incidentes processuais, da remodelagem dos prazos. Sobretudo, estabelece a primazia da empresa
sobre o empresário, que poderá ser afastado se estiver provada malversação, fraude
ou desvio patrimonial. A atividade empresarial precisa de oxigênio (e de boa qualidade) Num momento de aguda crise, no qual as indústrias partem para demissões, com
redução da jornada de trabalho e diminuição salarial atingindo transnacionais, a situação é, deveras, crítica em relação às pequenas empresas e às microempresas.
Esse segmento da indústria brasileira, esquecido pelo governo, sofre o risco
do desaparecimento gradual do cenário nacional. Enfim, numa sinopse, o novo diploma não é uma panacéia que fortificará o transtorno da falta de capital dessas empresas, mas um poderoso instrumento que debelará as causas e permitirá a manutenção dessas firmas, com um plano de reorganização e sem as mazelas e distorções
com que a lei em vigor sinaliza.
Nesse compasso de espera, aguardamos que o Congresso Nacional tome as
providências cabíveis, entregando à sociedade civil um diploma que minimize as dificuldades e repercuta favoravelmente à manutenção da empresa e de seus postos
de trabalho.
A vigente Lei de Falências encontra-se em fase de uma ampla reformulação, o qual
vamos analisar, na seqüência, em nossa obra. Deverá a nova legislação se adaptar as profundas alterações político e sociais no mundo moderno e ao novo papel da empresa.
Uma das fontes da nova Legislação Falimentar é o Direito Italiano. O jurista
Ferrara sugere que o instituto italiano em vigor passe a chamar-se de saneamento da
empresa. Cesare Vivante que estudaremos com profundida em nosso Tratado de Direito Empresarial Brasileira veio sugerir uma profunda reformulação no processo falimentar Italiano com um processo falimentar a pequenos estabelecimentos, onde
transcrevemos o seu pensamento abaixo:
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Antes da nova lei, sucedia freqüentemente aplicar-se o complicado
e dispendioso processo de falência a pequenos estabelecimentos condenados à impotência da sua originária miséria, obrigados a sucumbir a débitos cuja totalidade não excede a uns milhares de liras.
O estado e o resultado destas miseráveis falências era penoso: um
ativo insuficiente para cobrir as despesas do processo; uma pequena massa de credores a que as formalidades judiciais tiravam, depois de os terem estorvado com alguns enfados, o pouco que ainda
existia no patrimônio do falido; um pobre desgraçado atormentado com o processo de bancarrota por não ter escriturado regularmente os livros prescritos, que muitas vezes não eram necessários
ao giro do seu estabelecimento. A nova lei procura impedir estes
tristes resultados na sua segunda parte, que regula a liquidação
coletiva das pequenas empresas - não pertencentes a sociedades.
O processo a seguir é simples e econômico. O comerciante, que não
seja devedor da importância superior àquela cifra, dirige-se ao
Presidente do tribunal para que mande convocar os seus credores;
e o Presidente, em seguida a este pedido - que produz quanto ao
patrimônio do devedor o mesmo efeito que o requerimento de uma
concordata preventiva, nomeia um comissário judicial, que exerce as suas funções sob a direção do Pretor da circunscrição em
que o recorrente exerce o seu comércio. Na reunião dos credores,
convocada e presidida pelo Pretor, o comissário informa sobre o
procedimento e condições econômicas do devedor, e este apresenta as propostas de concordata, que se têm por aprovadas quando
há a maioria, que vimos ser necessária para a aprovação da concordata preventiva.
Neste caso, a concordata, que não tem que ser submetida à homologação, torna-se logo executória, e a posição respectiva dos credores e dos fiadores do devedor concordatário é a mesma que na
concordata preventiva. Se, na reunião dos credores, surgem contestações, o Magistrado, depois de ter procurado conciliá-las, resolve-as como árbitro e amigável mediador.
Quando as propostas do devedor são rejeitadas, ou quando a concordata é anulada, ele considera-se falido, mas a liquidação dos
seus bens regula-se diversamente da falência ordinária, segundo
as modalidades estabelecidas pelos próprios credores, e ele não
pode ser condenado por aqueles fatos, que na falência ordinária
constituem o crime de quebra culposa simples. Aplica-se o mesmo
processo quando, tendo sido requerida a falência de um comerciante por um credor.
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Se, porém, iniciado este processo especial, se verifica, antes da votação da concordata, a intervenção do Magistrado é substituída
pela do tribunal, que dá início ao processo da concordata preventiva, se existem as condições para ela requeridas, ou declara oficiosamente a falência do devedor, quando não existam aquelas
condições e o devedor tenha cessado os seus pagamentos por obrigações comerciais.
Destarte ainda que os Estados Unidos da América cuidam de reorganizar a empresa permitindo ao devedor manter todos os poderes de gestão e representação
da empresa. Nos EUA as cortes federais tem a jurisdição exclusiva para o julgamento de bankruptcy, que em sentido mais amplo corresponderia a nosso instituto de
falências e concordatas. A legislação pertinente é encontrada no Título 11 do “United States Code”. A lei americana prevê 5 tipos diferentes de proteção ao devedor,
dependendo se o objetivo será de reorganizar as dívidas pessoais, da empresa (sendo diferente no caso de produtor rural), ou de entidade pública ou, se se tratar de
simples liquidação dos bens e das dívidas, no caso dos ativos não permitirem a recuperação do devedor.
A Alemanha experimentou a Lei do Acordo, de 1935, a Espanha reconhece situações distintas entre a empresa que não paga, por dificuldades financeiras de momento, contornáveis, e a que simplesmente deixa de pagar.
A França, na vanguarda, tem em vista a salvaguarda da empresa, a manutenção
das atividades empresariais e o emprego. Roger Houin enriquece o relatório elaborado por uma comissão de juristas franceses, com um memorável comunicado, com
reflexos não só no direito comercial francês, mas também no direito comparado,
pois defende a permanência da empresa dentro da falência, já que ela interessa não
apenas aos assalariados, mas também aos sócios, especialmente aos acionistas e à
própria economia do país.
A Câmara Federal aprovou o projeto de lei 4376 A e substitutivos da nova lei
de falências, originado de mensagem do Poder Executivo e que veio em regular a
nova legislação falimentar, a liquidação judicial e a recuperação das empresas que
exercem atividade econômica regida pelas Leis Comerciais.
O projeto governamental apresentou inúmeras novidades revolucionárias,
destacando-se o instituto da recuperação da empresa, visando a reorganizá-la, ao invés de destruí-la, para a manutenção dos empregados e a preservação da produção
e circulação da riqueza, tendo em vista o desenvolvimento e o bem-estar sociais; extensão às empresas estatais dos benefícios da concordata e da recuperação, se esta
não ocorresse às custas do Tesouro Público e sim do próprio esforço; expressa submissão dessas empresas – sociedades de economia mista, empresas públicas e outras entidades estatais – à falência, desde que explorem atividade econômica, em
consonância com o artigo 173 da Constituição da República; supressão da concor-
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311
data suspensiva, porque, no curso desta e da falência, poder-se-á propor a recuperação da empresa.
O Substitutivo, adotado pela Comissão Especial da Câmara do Deputados,
inova, com muita felicidade, na denominação do projeto, e também manteve a preocupação nuclear na recuperação e liquidação judicial de empresas e pessoas físicas
que exerçam atividades econômicas, em nome próprio e de forma organizada, visando a recuperá-la, ao invés de destruí-la, para a manutenção dos empregados e a preservação da produção e circulação da riqueza, tendo por escopo o desenvolvimento e o bem estar sociais; e resguardou as linhas mestras do projeto, como a submissão das empresas de economia mista e as empresas públicas, com finalidade econômica e de cunho mercantil, às regras desse diploma legal, as comunicações processuais feitas, também, por meios eletrônicos e modernos, adotando, com profunda
humildade, sugestões de juristas e de entidades, o que é extremamente louvável.
Este trabalho faz parte integrante da obra Tratado de Direito Empresarial Brasileiro Volume I - Teoria Geral do Direito Comercial e Teoria Geral das Empresas, Volume II - Teoria Geral do Direito Societário e Volume III - Teoria Geral do Direito Falimentar e Teoria Geral dos Contratos e Obrigações Civis de nossa autoria e editado
pela Editora LZN (19 32367588).
Posteriormente, foi aprovado pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal com a Relatoria do Senador Ramez Tebet onde:
Tramita nesta Comissão de Assuntos Econômicos o Projeto de Lei da
Câmara nº 71, de 2003, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência de devedores pessoas físicas e jurídicas que exerçam atividade regida pelas leis comerciais, e dá outras providências,
que tramitou na Câmara dos Deputados como PL nº 4.376, de 1993.
Devemos analisar criteriosamente o Parecer do Senador Ramez Tebet, no Projeto de Lei Complementar 71/2003, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial
e a falência de devedores pessoas físicas e jurídicas que exerçam atividade econômica regida pelas leis comerciais. A Nova Lei Falimentar. Tramita nesta Comissão de
Assuntos Econômicos o Projeto de Lei da Câmara nº 71, de 2003, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência de devedores pessoas físicas e jurídicas
que exerçam atividade regida pelas leis comerciais, e dá outras providências, que tramitou na Câmara dos Deputados como PL nº 4.376, de 1993.
O Projeto de Lei nº 4.376, de 1993, foi apresentado pelo Poder Executivo durante o governo do Presidente Itamar Franco. Depois de 484 emendas e 5 substitutivos, apresentados durante seus dez anos de tramitação, a matéria foi votada e aprovada pelo Plenário da Câmara dos Deputados, na forma da Subemenda Substitutiva
de Plenário apresentada pelo relator, Deputado Osvaldo Biolchi, na sessão deliberativa de 15 de outubro de 2003.
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faculdade de direito de bauru
O PLC nº 71, de 2003, tem por objetivo ab-rogar e substituir a atual Lei de Falências, posta em vigor pelo quase sexagenário Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho
de 1945, que, muito embora tenha, por seus reconhecidos méritos, servido durante tanto tempo à disciplina da matéria, não é mais adequado às necessidades da sociedade e da economia brasileira, dadas as numerosas e profundas alterações que
ocorreram nas práticas empresariais no Brasil e no mundo nas últimas seis décadas.
O texto que veio da Câmara compõe-se de 222 artigos, divididos em onze capítulos: Disposições Preliminares (Capítulo I), Disposições Comuns à Recuperação
Judicial e à Falência (Capítulo II), Da Recuperação Judicial (Capítulo III), Da Recuperação Extrajudicial (Capítulo IV ), Da Convolação da Recuperação Judicial em Falência (Capítulo V ), da Falência (Capítulo VI), Do Procedimento Especial da Recuperação Judicial e Falência de Microempresa e Empresa de Pequeno Porte (Capítulo VII), Do Procedimento Penal (Capítulo VIII), Dos Crimes (Capítulo IX), Dos Atos
Processuais e Respectivos Prazos (Capítulo X) e Disposições Finais e Transitórias
(Capítulo XI).
O Capítulo II, que trata das disposições comuns à recuperação judicial e à falência, é subdividido em cinco seções: Disposições Gerais (Seção I), Da Classificação de Créditos (Seção II), da Verificação de Créditos (Seção III), Do Pedido de Restituição (Seção IV ) e Da Assembléia Geral de Credores (Seção V ). O Capítulo III,
que disciplina a recuperação judicial, subdivide-se em apenas duas seções: Disposições Gerais (Seção I) e Do Comitê e do Administrador Judicial na Recuperação Judicial (Seção II).
O Capítulo VI, da Falência, é subdividido em onze Seções: Da Decretação da
Falência do Devedor (Seção I), Disposições Gerais (Seção II), Da Falência Requerida pelo Próprio Devedor (Seção III), Da Arrecadação e Custódia dos Bens (Seção
IV ), Dos Efeitos da Decretação da Falência (Seção V ), Dos Efeitos quanto aos Atos
Prejudiciais aos Credores (Seção VI), Do Comitê e do Administrador Judicial na Falência (Seção VII), Da Realização do Ativo (Seção VIII), Do Pagamento aos Credores
na Falência (Seção IX), Da Extinção das Obrigações (Seção X) e da Reabilitação do
Devedor (Seção XI).
O Capítulo IX, que disciplina os crimes falimentares, subdivide-se em duas seções: Disposições Especiais (Seção I) e Dos Crimes em Espécie (Seção II). Na reunião desta Comissão de Assuntos Econômicos, realizada em 13 de abril de 2004, lemos relatório sobre o projeto e, com o relatório, oferecemos Substitutivo integral ao
texto do PLC nº 71, de 2003, para cuja elaboração foram levadas em consideração as
modificações propostas pelas Emendas de nº 1 a 81. Na mesma reunião foi deferida
vista coletiva.
Posteriormente à leitura do relatório apresentado a esta Comissão de Assuntos Econômicos, em 13 de abril de 2004, identificamos alguns outros pontos que,
embora não tenham sido objeto de emenda, devem ser modificados, para aprimorar o Substitutivo apresentado ao PLC nº 71, de 2003.
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313
Primeiramente, entendemos que as Fazendas Públicas devem ser informadas
não só da concessão da recuperação judicial de empresários ou sociedades empresárias, como prevê o art. 59, § 2º, do Substitutivo, mas também da decretação da falência, uma vez que tal fato tem repercussão nos direitos do fisco. Além disso, na recuperação judicial, é mais adequado que o fisco e o Ministério Público sejam informados do deferimento de seu processamento - e não da sentença de concessão -,
para que possam conhecer com maior antecedência a situação do devedor. Dessa
forma, é preciso suprimir o § 2º do art. 59 do Substitutivo e transformá-lo em um
inciso do art. 52. Deve-se modificar também o inciso XIII do art. 99 do Substitutivo,
para estabelecer a comunicação da falência às Fazendas Públicas.
No que tange à recuperação extrajudicial, convém rever o entendimento relativo à exclusão da sucessão tributária na alienação judicial de estabelecimento, se
prevista em plano de recuperação extrajudicial. Na falência, tal medida é salutar e
plenamente justificável, pois o valor obtido com a alienação fica à disposição do juízo para pagamento dos credores. Na recuperação judicial, muito embora não haja
essa retenção do valor pago pelo adquirente, o fato de esse instituto consistir em
um remédio extremo para as dificuldades das empresas, com o grave risco de decretação da falência no caso de não-concessão, associado ao rigoroso controle judicial
em todo o processo, diminuem a probabilidade de conduta lesiva ao fisco.
Na recuperação extrajudicial, contudo, esses argumentos não cabem, pois, a
participação do juiz restringe-se à homologação do plano negociado extrajudicialmente e não há conseqüências para a não-aceitação ou para a não-homologação das
condições propostas aos credores. Por isso, amplia-se excessivamente a possibilidade de devedores mal-intencionados valerem-se do instituto com o fito exclusivo de
promover a venda de estabelecimentos sem sucessão tributária, o que não é o objetivo da nova lei. Assim, é necessário suprimir o parágrafo único do art. 166 do Substitutivo e, conseqüentemente, também o § 1º do art. 162, uma vez que, afastado o
risco ao crédito tributário, não há motivo para exigir certidões negativas para a homologação do plano de recuperação extrajudicial. Com a modificação aqui proposta, deverá ser alterado também o PLC nº 70, de 2003 - Complementar, a fim de compatibilizar a redação do CTN ao novo entendimento.
Em relação ao início da vigência da nova lei, reconhecemos e reiteramos que,
em razão da complexidade das normas, seria recomendável que os operadores do
direito contassem com maior prazo para adaptar-se às modificações, em cumprimento ao disposto no caput do art. 8º da Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998. No entanto, temos convicção de que a nova lei trará benefícios à economia do País e, por isso, seria conveniente que entrasse em vigor o mais rápido possível. Desse modo, defendemos a alteração do art. 200 do Substitutivo, para reduzir
a vacatio legis dos 180 dias previstos no texto da Câmara para 120 dias, prazo que
entendemos suficiente para que a sociedade tenha amplo conhecimento dos novos
dispositivos.
314
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Além disso, em respeito ao disposto nos arts. 3º, III, e 9º da Lei Complementar nº 95, de 1998, incluímos a cláusula de revogação antes da cláusula de vigência
da nova lei e renumeramos esta última como art. 201. Por fim, houve necessidade
de pequenas alterações materiais, a fim de aperfeiçoar a redação e preencher lacunas do Substitutivo. Assim é que foram feitos ajustes redacionais nos arts. 27, c; 30,
§ 1º; 32; 49, § 2º; 58, § 2º; 59; 66; 67, parágrafo único; 140, § 4º; 147; 198; e 199, todos do Substitutivo.
Acrescentaram-se dois parágrafos ao art. 37, renumerados como §§ 1º e 6º. O
primeiro prevê que, nas deliberações em que haja incompatibilidade do administrador judicial, a assembléia será presidida pelo maior credor presente. O segundo estabelece a regra de conversão de créditos em moeda estrangeira para votação na assembléia geral da recuperação judicial. Substituímos, ainda, a expressão “Registro de
Empresas” por “Registro Público de Empresas” em todo o texto (arts. 51, V; 63, V;
69, parágrafo único; 96, VIII; 97, § 1º; 99, VIII; 181, § 2º; e 196, caput e parágrafo único), para deixar claro que se trata da mesma entidade a que se referem o art. 967 e
outros dispositivos do novo Código Civil.”
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Metodologia do estudo científico
Emerson Ike Coan
Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Assessor de Gabinete de Juiz no Segundo Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo.
Pós-graduando em “Teoria e Técnicas da Comunicação” na Faculdade de
Comunicação Social ‘Cásper Líbero’, em São Paulo.
Foi professor de “Linguagem Jurídica” na Faculdade de Direito da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo (1998-2003).
O estudo, este há de dispor de vagar para inteirar-se, apreciar, e,
principalmente, criticar e criar. Ou é atento, meditado, metódico
ou não é estudo (...) A gente estuda toda vida (...) E hoje ainda
mais, porque a ciência está fazendo milagres com as invenções e
as descobertas.1
1.
INTRODUÇÃO
Este trabalho é indicado aos alunos de Direito, considerando o seu aspecto interdisciplinar. Preocupa-se em fornecer ao corpo discente um roteiro, ao versar sobre algumas noções básicas sobre o assunto, a organização da vida de estudos e a
produção textual.
1
Roberto LYRA. “Formei-me em direito. E agora?”, p. 50.
318
2.
faculdade de direito de bauru
METODOLOGIA CIENTÍFICA
A metodologia científica possui um duplo sentido: 1) conjunto de processo de
estudo, de pesquisa e de reflexão2, para o qual o termo pesquisa pode ser definido
como o procedimento racional e sistemático que tem como objetivo proporcionar
respostas a problemas que são propostos3; e 2) a monografia científica. Observase nela não só um traço propedêutico, como iniciação ao estudante para a organização da sua vida de estudos, mas também um outro avançado, como base ao pesquisador/formador de opinião quanto à elaboração de suas monografias, dissertações
e teses. Eis, nessa segunda proposta, a metodologia do trabalho científico, que não
será tratada aqui, não obstante a indicação bibliográfica, incluindo as mais importantes na seara jurídica.
O caráter propedêutico da metodologia científica tem a função de propiciar
o desenvolvimento de uma vida intelectual disciplinada e sistematizada, cujo objetivo é o de fazer o aluno aprender a pensar com disciplina para que o aprendizado se
transforme em produção consciente. Prende-se, pois, à noção de método (do grego
metá/além do, e odós/caminho), isto é, “o caminho que deve ser percorrido para
a aquisição da verdade, ou, por outras palavras, de um resultado exato ou rigorosamente verificado.4” Para o criador da “dúvida metódica”, René Descartes, o método serve para “bem dirigir a própria razão e procurar a verdade nas ciências.”5
A aposta deste roteiro está centrada na lembrança de que o estudo metódico
implica progresso intelectual consciente, pois contribui à formação individual, ao
suprir eventuais lacunas e corrigir alguns defeitos adquiridos no ensino básico e médio, dentre os quais podem ser constatados: a imaturidade cultural decorrente basicamente da falta de hábito de leitura; a imaturidade psicológica pela qual se observa uma nítida carência de objetivos e aspirações, acarretando posturas irresponsáveis ao longo do curso; e a imaturidade lógica enquanto despreparo em termos de
ordenação do raciocínio principalmente para fins redacionais6. Também benefícios à
formação profissional, no sentido de uma prática mais eficiente e cooperativa na
busca de soluções aos problemas do homem contemporâneo.
3.
ORGANIZAÇÃO DA VIDA DE ESTUDOS
O método de estudo é meio eficiente para o progresso intelectual do estudante, quer individual, quer profissionalmente. A autonomia nesse processo deve ser
respeitada, considerando que cada pessoa possui seu ritmo, seus afazeres, seus ho2
3
4
5
6
Antônio Joaquim SEVERINO. “Metodologia do trabalho científico”, p. 19.
Carlos Antonio GIL. “Como elaborar projetos de pesquisa”, p. 19.
Miguel REALE. “Lições preliminares de direito”, p. 10.
“Discurso sobre o método”, p. 9.
Cleverson L. BASTOS & Vicente KELLER. “Aprendendo a aprender: introdução à Metodologia Científica”, p. 16-17.
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rários etc. No entanto, como lembra Antônio Joaquim Severino, apesar da aparente
rigidez dessa metodologia, “ela é, sem dúvida, a mais eficiente. Pressupõe um mínimo de organização da vida de estudos, mas, em compensação, torna-se sempre
mais produtiva.7” Tomando-se a postura do aluno em relação a uma aula, cabe falar em certos recursos técnicos com o propósito de um aproveitamento integral das
informações transmitidas pelo professor, quais sejam:
1) Antes da aula: um preparo psicológico (motivação) com consciência da
importância do conteúdo a ser oferecido a fim de se obter a devida concentração,
como condição fundamental para que haja entendimento. Exige-se, pois, atenção,
que “é concentrar a atividade, é preparar-se para perceber certo objeto ou fazer
alguma coisa.”8 Como aponta José Roberto Whitaker Penteado um “ato consciente
da vontade individual”9, ou seja, atenção dirigida.
Requer-se algumas recomendações quanto à maneira de ouvir: 1) ouvir é renunciar; 2) ver quem fala; 3) ter posição firme para ajudar os sentidos a permanecerem alerta; 4) evitar interrupções em quem está falando; 5) respeitar posições
alheias; 6) atentar aos níveis de audição: a) deduzir o sentido do som; b) compreender o que se está dizendo; c) distinguir o real do imaginário no que é dito; d) escutar com empatia; 7) considerar os fatores físicos: temperatura, ruído, iluminação,
meio-ambiente, condições de saúde, deficiências auditivas, forma da apresentação;
e os fatores mentais da audição: indiferença (desinteresse), impaciência, preconceito, preocupação, posição (status; hierarquia) e oportunidade. Ainda, é
guardar silêncio exterior para não distrair os outros e silêncio interior para não distrair a si próprio. O silêncio interior consiste em
deixar fora da sala todo problema que nada tem a ver com a aula.
É este silêncio interior que permite concentração mais profunda e
menos cansativa. O silêncio exterior cria o clima necessário ao
bom rendimento da aula.10
Importante destacar as consultas periódicas aos apontamentos das aulas anteriores na forma de diagramas. Diagramação ou esquematização consiste numa visão global e organizada das idéias em hierarquia de valores pelo emprego de palavras-chave à maneira dos chamados quadros sinópticos. “É um arcabouço, que vai
amoldar sobre si a redação, da mesma sorte que os tecidos do corpo se amoldam
sobre o esqueleto”11, com natureza instrumental de caráter provisório e precário,
7
8
9
10
Op. cit., p. 30.
José Roberto Whitaker PENTEADO. “A técnica da comunicação humana”, p. 17.
Op. cit., p. 19.
João Álvaro RUIZ. “Metodologia científica: guia para eficiência nos estudos”, p. 29 - os destaques não pertencem ao original.
11 J. Mattoso CÂMARA JR. “Manual de expressão oral e escrita”, p. 62.
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cujo valor é o de ser “o plano que temos de executar (...) como num mapa, o caminho a seguir (...) a planta da arquitetura que vamos executar (...) o guia do
qual não nos é permitido afastar sem incorrermos no perigo de um desastre.”12
A principal diferença que existe entre esquemas e resumos é: nos primeiros, têm-se
apenas tópicos; nos segundos, têm-se parágrafos de sentido completo.
João Álvaro Ruiz distingue duas formas de revisão de aulas: uma imediata,
que se faz da aula anterior, antes da aula subseqüente, ou por ocasião de sua preparação; e outra globalizadora ou integradora, pela análise e síntese (o todo complexo desdobrado em partes e a reunificação destas naquele). Esta última é a forma
mais apropriada em termos de preparação para provas e exames13. Também as préleituras com intuito de conhecimento antecipado do conteúdo, ao permitir ao aluno a distribuição conveniente da intensidade da atenção durante a aula e, sobretudo, o seu aproveitamento, sabendo de forma oportuna fazer perguntas e aumentar
a qualidade de seus apontamentos.
2) Durante a aula: a posição do espectador (aluno) próxima ao emissor
(professor) elimina inconvenientes acústicos e visuais, propicia um rendimento
maior, permitindo, ainda, identificar com mais facilidade o estilo do expositor, seu
critério didático e seu raciocínio. As formas de apontamentos devem se orientar
pelo esquema mental seguido pelo professor a partir da formulação de diagramas,
como se viu, ordenação por palavras-chave. Outro item é a participação ativa por
parte do aluno em trabalhos, seminários e atividades em grupo, com reuniões freqüentes, cuja indicação é oportuna tendo em vista seu propósito para treinamento
em grupo de dinâmica interpessoal, num processo de compreensão dele mesmo e
de seus colegas, no complexo processo de interação humana, implicando mudanças
de atitudes e comportamentos.
3) Após uma aula é sugerido o repasse do diagrama, num prazo que não
deve ultrapassar vinte e quatro horas, complementando-o com a bibliografia indicada e com o material documentado pelo aluno, a fim de facilitar a memorização, que consiste na possibilidade de repetição de informações pelo critério de
associação de idéias esquematizadas. A exploração dos instrumentos de trabalho
verifica-se pelos títulos pertencentes em uma biblioteca pessoal, gradativamente
aumentada, na assinatura de periódicos especializados, na participação em cursos e no arquivamento de recortes de matérias publicadas em revistas, jornais,
Repertório de Jurisprudência, Internet etc., enfim, nos itens de documentação,
sempre e sempre comparados para aprofundamento temático, referências bibliográficas e atualização. No mais das vezes, é recomendável a supervisão por parte de um professor.
Tudo isso requer obviamente disciplina de estudo pela ordenação de prioridades, pelo ritmo imposto e pela eficiência do procedimento. Interessante expor
que quem quer descobre tempo, com a sugestão de um procedimento que “consiste em tomar uma folha de papel, anotar os diversos dias da semana em linha ho-
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321
rizontal e os diversos afazeres em linha vertical; registrar depois, na coluna de
cada dia da semana, as horas plenas e os possíveis espaços ociosos.14”
4.
PRODUÇÃO TEXTUAL OU DIRETRIZES PARA A LEITURA
Uma leitura produtiva requer, antes mesmo da observação de suas diretrizes,
uma escolha adequada do texto. Deve ser considerado o contexto, ou seja, todas as informações que o acompanham e colaboram para a sua compreensão, quer sejam imediatas (contexto imediato): o título da obra e o nome do autor na capa do livro como
referentes textuais a permitir de forma imediata o conhecimento a respeito do que trata e o seu posicionamento doutrinário e ideológico; quer sejam de elementos fora do
texto (contexto situacional): são elementos exteriores (geográficos, históricos, psíquicos etc.) que se comunicam com o texto e são imprescindíveis a seu entendimento.15
O estudo pela leitura trabalhada diz respeito, assim, em como selecionar o que ler:
Devemos examinar sumariamente o livro cujo título nos interessa
à primeira vista; devemos ver o nome do autor, seu curriculum;
devemos ler sua ‘orelha’, o índice da matéria, a documentação ou
as citações ao pé das páginas, a bibliografia, assim como verificar
a editora, a data, a edição e ler rapidamente o prefácio.16
Délcio Vieira Salomon estabelece que
o bom leitor: “1. lê com objetivo determinado; 2. lê unidades de
pensamentos; 3. tem vários padrões de velocidade; 4. avalia o que
lê; 5. possui bom vocabulário; 6. tem habilidades para conhecer o
valor do livro; 7. sabe quando deve ler um livro até o fim, quando
deve interromper a leitura definitivamente ou periodicamente; 8.
discute freqüentemente o que lê com colegas; 9. adquire livros com
freqüência e cuida de ter sua biblioteca particular; 10. lê assuntos
vários; 11. lê muito e gosta de ler; e 12. é aquele que não é só bom
na hora de leitura.17
Há processos (análises) de leitura, a saber:
1) textual, que supõe a delimitação da unidade de leitura, no sentido de
se determinar o setor do texto (obra) como um primeiro contato, uma preparação
12
13
14
15
16
Francisco da SILVEIRA BUENO. “A arte de escrever”, p. 11.
Op. cit., pp. 25-27.
João Álvaro RUIZ. Op. cit., p. 22.
Regina Toledo DAMIÃO & Antonio HENRIQUES. “Curso de Português Jurídico”, p. 101.
João Álvaro RUIZ. Op. cit., p. 35.
322
faculdade de direito de bauru
da leitura, em suma, uma visão panorâmica. Deve-se efetuar um levantamento sobre o autor do texto, o vocabulário empregado, as teorias seguidas, os fatos históricos, bem como sua estrutura redacional, ou seja, a idéia nuclear ou tópico frasal, os
critérios de desenvolvimento (linha de montagem), a conclusão, sendo que, neste
caso, é considerada a forma dissertativa, pressupondo um assunto, um tema central
com um problema a ser solucionado. Sugere-se a velocidade da leitura normal.
Nota-se que, com o texto diante dos olhos:
Numa espécie de fase inicial de aquecimento e concentração, comece lendo o título do assunto, os subtítulos, o sumário, se houver;
só então inicie a primeira leitura geral com a atenção sempre voltada para as idéias-mestras e para os pormenores importantes.18
José Roberto Whitaker Penteado fornece elementos valiosos para uma produção textual satisfatória, apresentando os defeitos mais freqüentes, bem como as sugestões para superá-los, as quais serão aqui aproveitadas.19 Esse autor expõe que,
quanto ao critério de velocidade, foram estabelecidas: 1) - para a análise meramente textual (superficial), a normal, forma de leitura que habitualmente é adotada no
escritório, na consulta aos papéis meramente informativos ou aquela para a leitura
de qualquer livro; 2) - e para as análises temáticas, interpretativa e crítica (de profundidade), a cuidadosa, a mais lenta de todas em vista da importância do conteúdo ou da necessidade de reter pormenores.
Quanto ao vocabulário e leitura eficiente existem duas maneiras de levantamento: 1) consulta imediata; 2) não interrompendo a leitura. João Álvaro Ruiz sugere
que se experimente não interromper a leitura ante um termo de
sentido desconhecido; não raro, a seqüência do texto deixará bem
claro o sentido da palavra desconhecida; anote, pois, a palavra
desconhecida em um papel avulso, e continue a ler. Ao final de um
capítulo, apanhe o dicionário para esclarecer todas as palavras
anotadas como desconhecidas e verifique o sentido que melhor se
coaduna com o respectivo contexto. Assim, durante a segunda leitura, em que se sublinham as idéias principais e os pormenores importantes, todos os termos estarão claros e incorporados a nosso
vocabulário.20
17
18
19
20
“Como fazer uma monografia”, pp. 45-48.
João Álvaro RUIZ. Op. cit., p. 46.
Op. cit., pp. 185-213.
Op. cit., p. 41.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
323
2) Análise temática ou de compreensão, na qual se exige a identificação do tema da unidade, o problema, a idéia central ou tese, devendo-se ter um
roteiro de leitura (esquema) que contenha o raciocínio do autor e as idéias secundárias que gravitam em torno do tema. A velocidade da leitura deve ser cuidadosa.
Nas palavras de Silveira Bueno:
O parágrafo é uma parte, uma seção da composição escrita ou
uma composição em miniatura. De qualquer maneira que se considere o parágrafo, deve constar de várias sentenças, tendentes todas a um único e idêntico objetivo. O principal é que não basta ser
um grupo de frases quaisquer, mas é essencial que haja uma idéia,
uma situação que una essas frases num único fim.21
Um dado interessante diz respeito à técnica de sublinhar o texto como procedimento empregado com diversos objetivos: assimilar melhor o texto, memorizar,
preparar uma revisão rápida do assunto, aplicar em citações e, principalmente, resumir, esquematizar e fichar; os estudiosos de metodologia sugerem: leitura integral
do texto, para tomada de contato; esclarecimento de dúvidas de vocabulário, termos
técnicos e outras; releitura do texto, para identificar as idéias principais; sublinhar,
em cada parágrafo, as palavras que contêm a idéia-núcleo e os detalhes importantes;
assinalar com uma linha vertical, à margem do texto, os tópicos mais importantes;
assinalar, à margem do texto, com um ponto de interrogação, os casos de discordâncias, as passagens obscuras, os argumentos discutíveis; ler o que foi sublinhado para
verificar se há sentido; reconstituir o texto, tomando as palavras sublinhadas como
base. Sublinhar com inteligência é estar constantemente atento à leitura concentrado e em atividade de crítica durante todo o tempo. Acrescente-se a pertinência do
adágio latino non multa, sed multum, ou seja, “não sublinhar muitas coisas, mas o
muito significativo.”
3) Análise interpretativa e crítica, ao avaliar o posicionamento do autor
(filosófico, influências etc.), devendo-se operar com crítica, após a compreensão (a
partir da análise meramente textual) e a investigação semântico-interpretativa em
sentido mais restrito, para se descobrir a relevância e a contribuição específica por
parte do autor, quais sejam, a coerência interna da argumentação, a validade dos argumentos empregados, a originalidade do tratamento dado ao problema (principalmente se se tratar de uma tese de doutoramento), a profundidade de análise ao
tema, o alcance de suas conclusões na apreciação e juízo pessoal das idéias por ele
defendidas. A velocidade da leitura deve ser cuidadosa.
21 Op. cit., p. 81.
324
faculdade de direito de bauru
Veja-se que
Os textos teóricos se constituem em instrumentos privilegiados da
vida de estudos na Universidade, pois é através deles que os estudantes se relacionam com a produção científica e filosófica, é
através deles que se torna possível participar do universo de conquistas nas diversas áreas do saber. É por isso que aprender a compreendê-los se coloca como tarefa fundamental de todos aqueles
que se dispõem a decifrar melhor o seu mundo. Compreender, interpretar, significa ir além da simples dissecação a que se reduz o formalismo das técnicas de leitura que normalmente afastam, distanciam o leitor da obra.22
Salienta Antônio Joaquim Severino que
o homem, dada sua condição existencial de empiricidade e liberdade, sofre uma série de interferências pessoais e culturais que
põem em risco a objetividade da comunicação. É por isso que se
fazem necessárias certas precauções que garantam maior grau de
objetividade na interpretação dessa comunicação.23
Neste ponto, cabe versar sobre a problematização, isto é, no levantamento de questões explícitas ou implícitas em todo o texto, discutindo-as. Aqui,
cumpre diferençar esta problematização geral do texto com a determinação do
problema da unidade (pertencente à análise temática). Neste, observar-se-á a
origem da tese do autor, a situação de conflito que exigiu dele uma solução, ao
passo que, naquela o sentido é mais amplo, tendente à reflexão, cujo levantamento não se fará apenas em face das questões explicitadas pelo próprio autor,
mas também daquelas que, com inteligência e perspicácia (assim, relacionadas
ao tema), o leitor fará emergir do texto.
Assim, quando se fala em todo o texto, deve-se considerar de forma substancial o desenvolvimento dado pelo autor para a demonstração de sua tese, tendo
como pressupostos os elementos extrínsecos e intrínsecos, que, em âmbito da Lingüística, podem ser chamados de relações sintagmáticas ou estrutura de superfície e relações paradigmáticas ou estrutura de profundidade24. Os primeiros, elementos presentes no texto ou na sua estrita literalidade,
22 Vera Irma FURLAN. “O estudo de textos teóricos” In: “Construindo o saber – Metodologia científica: fundamentos e técnicas”, p. 121.
23 Op. cit., p 49.
24 V. Regina Toledo DAMIÃO & Antonio HENRIQUES. Op. cit., pp. 29 e 100.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
325
informam acerca do tema em discussão e do estado atual da crítica a respeito”; os segundos “reportam-se ao que está ‘atrás’ ou ‘dentro’ dos primeiros, ou seja, as idéias, os conceitos, os temas, os ângulos de análise, em suma, a ‘interpretação’ que se pode fazer ou
que se depreende dos dados colhidos. De onde, os elementos extrínsecos e os intrínsecos correspondem às duas faces da mesma
moeda.25
5.
CONCLUSÃO
Com isso tudo, busca-se do aluno de Direito uma síntese interdisciplinar pessoal refletida daquilo de estuda, com vistas não só a uma mera retenção e reprodução de informações, mas, sobretudo, a um progresso intelectual consciente basilar
de um conhecimento científico.
REFERÊNCIAS
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São Paulo: Hemus, s/d.
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científica: fundamentos e técnicas” (CARVALHO, Maria C. M. de. – org.). 2. ed. – Campinas:
Papirus, 1989.
25 Massaud MOISÉS. “Guia prático de redação”, pp. 23-24.
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LAKATOS, Eva Maria. & MARCONI, Marina de Andrade. “Metodologia do trabalho científico:
procedimentos básicos, pesquisa bibliográfica, projeto e relatório, publicações e trabalhos
científicos”. - São Paulo: Atlas, 1987.
LEITE, Eduardo Oliveira. “A Monografia Jurídica”. 5. ed. - São Paulo: Revista dos Tribunais,
2001.
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REALE, Miguel. “Lições preliminares de direito”. 21. ed., rev. e aum. - São Paulo: Saraiva,
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1974.
SEVERINO, Antonio Joaquim. “Metodologia do Trabalho Científico”. 21. ed., rev e ampl. - São
Paulo: Cortez, 2000.
DA TAXA DE CONTROLE E FISCALIZAÇÃO AMBIENTAL –
TCFA – E SEU ESTIGMA DE INCONSTITUCIONALIDE1
Eduardo Amorim de Lima
Advogado tributarista em São Paulo.
Mestre em direito pela Instituição Toledo de Ensino – Bauru/SP.
Membro do IBDT – Instituto Brasileiro de Direito Tributário.
Texto elaborado em outubro de 2004.
Já há algum tempo que o IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis – vem tentando estabelecer formas de custeio de suas
atividades, mormente aquelas exercidas em decorrência de seu poder de polícia.
Entretanto, após alguns percalços e reveses experimentados, parece que, com
a edição da Lei nº 10.165/00, que instituiu a Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental – TCFA, finalmente, o órgão vem experimentando certa calmaria, conseguindo
cobrar e arrecadar valores, dos contribuintes, a título de tal exação.
Não são muitos os doutrinadores que expuseram suas opiniões sobre a
TCFA, de sorte que, a palavra final, sobre a constitucionalidade ou não dessa taxa,
caberá ao Supremo Tribunal Federal – STF, sem grandes oposições até o presente momento.
Enquanto essa posição pacificadora não for emanada da Corte Suprema, permanece aberto o flanco para a discussão doutrinária do assunto, a exemplo do que
será realizado aqui, ou seja, buscar, a partir de apertadas considerações, a conclusão
de constitucionalidade ou inconstitucionalidade da TCFA, sob a óptica de, pelo menos, dois pontos importantíssimos: a natureza jurídica e a quantificação da exação.
1
Texto publicado nos Anais do 1º Fórum de Direito Ambiental do interior paulista, 2004, p. 09-15.
328
faculdade de direito de bauru
Antes de mais nada, faz-se necessário um breve escorço histórico, daquilo que
pode ser chamado de rascunho, esboço da tal atual TCFA, a Taxa de Fiscalização Ambiental, ou, simplesmente, TFA.
1.
DA TAXA DE FISCALIZAÇÃO AMBIENTAL – TFA
No dia 28 de janeiro de 2000, foi aprovada a Lei nº 9.960; fruto de convalidação em lei, da Medida Provisória nº 2.015, de 30/12/99. Esta lei alterou a Lei nº 6.938,
de 31 de agosto de 1981 (norma que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente), em seu art. 17, criando a Taxa de Fiscalização Ambiental – TFA, a ser cobrada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos recursos Naturais Renováveis – IBAMA.
Os sujeitos passivos eram as pessoas físicas ou jurídicas obrigadas ao registro
no Cadastro Técnico Federal de Atividades Potencialmente Poluidoras ou Utilizadoras de Recursos Ambientais, conforme previsto no art. 17-B, §2º, da Lei nº 6.938/81.
De acordo com o que estabelece a Lei nº 9.960/00, mais diretamente em seu art.
17-F, o pagamento desta taxa importaria no valor anual de R$ 3.000,00 (três mil reais).
Contudo, a TFA foi exigida de maneira inconstitucional, em desrespeito aos ditames estabelecidos na Constituição Federal de 1988, bem como no Código Tributário Nacional, pelos seguintes argumentos, resumidamente apresentados:
1.1. Da Impropriedade do Critério Material da Hipótese de Incidência da
TFA
O fato gerador consistia no exercício das atividades potencialmente poluidoras
e/ou extração, produção, transporte e comercialização de produtos potencialmente perigosos ao meio ambiente, assim como de produtos e subprodutos de fauna e flora.
Desta forma, facilmente se percebe que a T.F.A. teve como fato gerador uma
atividade exercida pelo contribuinte. Daí sua inconstitucionalidade flagrante, uma
vez que nossa Carta Constitucional veda a possibilidade de se instituir uma taxa com
base num fato praticado pelo contribuinte, exigindo que haja exercício do poder de
polícia ou utilização de serviços públicos prestados ao contribuinte (inteligência do
artigo 145, inciso II da CF/88).
O que foi instituído, em verdade, fora verdadeiro imposto, na exata dicção do
artigo 16 do CTN. Como tal, só poderia ter vindo ao mundo por meio de lei complementar e obedecendo a todas as demais exigências do art. 154, I, da Constituição
Federal, que trata da competência residual da União.
Assim, em razão da impropriedade do aspecto material da hipótese de incidência, a Taxa de Fiscalização Ambiental – TFA é inconstitucional e ilegal, por força
do que estatui nossa Constituição Federal de 1988 (art. 145, inciso II, e §2º) e nosso Código Tributário Nacional (arts. 4º, caput e inciso I; 16; e 77).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
329
1.2. Da Afronta ao Princípio da Igualdade Tributária
A Lei nº 9.960/00 desobedeceu, também, o princípio constitucional da igualdade, previsto de forma genérica no caput do art. 5º, bem como, de maneira específica para o Direito Tributário, no art. 150, II da atual Constituição Federal.
Com efeito, a partir do instante em que, sem motivo ou razão qualquer, tratou desigualmente as pessoas físicas e jurídicas, que se encontravam em mesma
situação, foi ferida mortalmente. É o que se extrai do seu art. 17-C, §1º, que concede 95% (noventa e cinco por cento) de desconto para as pessoas físicas; muito
maior do que o concedido às empresas de pequeno porte (50%) e microempresas (90%).
Sem dúvida, trata-se de uma indiscutível desigualdade, pois o critério que
o legislador se valeu para conceder benefícios foi totalmente impertinente e sem
qualquer relação com o fato gerador; afinal de contas, uma pessoa física pode ter
muito mais condições financeiras do que uma pessoa jurídica. Por outro lado, a
pessoa física pode muito bem poluir o Meio Ambiente de modo muito mais intenso do que uma pessoa jurídica.
Como conseqüência desses vícios e outros adjacentes, o Supremo Tribunal
Federal suspendeu a eficácia da lei em comento, em decisão liminar proferida nos
autos da ADIN nº 2178-8, requerida pela CNI, cujo Relator fora o Ministro Ilmar
Galvão.
2.
TAXA DE CONTROLE E FISCALIZAÇÃO AMBIENTAL - TCFA
Logo após o IBAMA enfrentar retumbante derrota nos tribunais, no caso da
TFA (além de suas duas outras frustradas precursoras, também afastas pelo STF2),
no apagar das luzes do ano de 2000, mais precisamente, no dia 27 de dezembro,
foi publicada no Diário Oficial a Lei nº 10.165, instituindo a Taxa de Controle e
Fiscalização Ambiental – TCFA, na tentativa de cobrar, validamente, uma taxa de
custeio das atividades exercidas pelo IBAMA, sem as máculas havidas na primeira
formatação.
Tendo em vista que a exação instaurada há quase quatro anos ainda persiste
sem um pronunciamento final dos Tribunais Superiores quanto à constitucionalidade e legalidade da mesma3, faz-se necessária a análise do tema com um pouco mais
de percuciência, a fim de perquirir, ainda que de forma concisa, sua validade no sistema jurídico vigente.
2
3
Vide ADIN’S nºs 1.823-DF, Rel. Min. Ilmar Galvão e 1.982-DF, Rel. Min. Maurício Correa.
Isto porque, as ADIN’s ajuizadas não foram conhecidas por vícios formais da impetração. (ADIN’s Nº 2422, 2423
e 2451).
330
faculdade de direito de bauru
2.1. Principais Características
A hipótese de incidência da referida taxa possui os seguintes aspectos:
Aspecto material: Exercício regular do poder polícia, conferido ao IBAMA –Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, para controle
e fiscalização das atividades potencialmente poluidoras e utilizadoras de recursos naturais (art. 1º, da Lei nº 10.165/00, que inseriu o item B, no artigo 17, da Lei nº 6.938/81).
Aspecto espacial: limites do território nacional (art. 1º, da Lei nº 10.165/00,
que inseriu o item Q, no artigo 17, da Lei nº 6.938/81).
Aspecto temporal: a partir de 01 de janeiro de 2001.
Aspecto pessoal: (a) sujeito ativo: IBAMA e (b) sujeito passivo: empresas cujo
potencial poluidor esteja classificado como pequeno, médio ou alto, no Anexo VIII,
da Lei nº 10.165/00 (art. 1º, da Lei nº 10.165/00, que inseriu o item C, no artigo 17,
da Lei nº 6.938/81).
Aspecto quantitativo: valores fixos estabelecidos de acordo com o potencial
poluidor e uso de recursos naturais, quantificados de acordo com o faturamento das
empresas (art. 1º, da Lei nº 10.165/00, que inseriu o item D, no artigo 17, da Lei nº
6.938/81).
A partir dessa segmentação esclarecedora, pode-se prosseguir na análise inicialmente proposta.
2.2. Teste de Constitucionalidade
2.2.1. Natureza jurídica da TCFA
É certo que, como toda novidade gera surpresas, muitos contribuintes correram às portas do Judiciário, requerendo a desobrigação do pagamento dessa nova
taxa. Muitos foram os argumentos levantados, em diversas ações ajuizadas em todos
os rincões de nosso País, tendo a doutrina apresentado apenas alguns poucos pronunciamentos sobre o tema.4
É certo que, no Brasil, qualquer tributo, para ser exigido validamente, deve estar em sintonia com o Sistema Constitucional Tributário previsto na Lei Maior, bem
como com o Código Tributário Nacional que tem o status de lei complementar, apto
a traçar as normas gerais de direito tributário.
Confira-se, então, cada um dos limites impostos ao legislador, tanto na CF/88,
como no CTN:
4
Podem ser aqui lembrados, de um lado, opinando pela constitucionalidade da TCFA, Trícia de Oliveira Lima, in
Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos: Divisão Jurídica. Instituição Toledo de Ensino de Bauru, 38 ª ed.
set-dez/2003, p. 163-206 e, de outro lado, opinando pela inconstitucionalidade da mesma taxa, Eduardo Bornia, in Revista de Estudos Tributários. Porto Alegre: Síntese, nº 19: 2001, p. 40-48 e Régis Pallotta Trigo, in Revista Dialética de Direito Tributário, nº 84. Set/2002, p. 101-113.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
331
Art.145 (CF/88)- A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:
II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição”;
Art.77 (CTN). As Taxas cobradas pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios, no âmbito de suas respectivas atribuições, têm como fato gerador o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divísivel, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição.
Do ponto de vista constitucional, pode-se afirmar que, para ser cobrada validamente, as taxas devem adequar-se a apenas uma, de duas modalidades possíveis:
(1) exercício do poder de polícia ou (2) contraprestação pela utilização efetiva ou
potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou
postos à sua disposição.
A mesma dualidade pode ser extraída do âmbito infraconstitucional, mais propriamente, no CTN, donde se haure o mesmo comando normativo.
De imediato, percebe-se que a Lei nº 10.165/00 instituiu legitimidade ao
IBAMA, para cobrar taxa pelo controle e fiscalização das atividades exercidas por
pessoas físicas ou jurídicas, potencialmente poluidoras e utilizadoras de recursos
naturais, ao acrescer o art. 17-B na Lei nº 6.938/81. Tal atribuição do órgão federal, muito mais ampla do que a simples fiscalização in locu dos estabelecimentos
industriais, fica nítida, na simples leitura do art. 2º, da Lei nº 7.735/89, que determina, ao IBAMA, a execução de política nacional do meio ambiente e da preservação, conservação e uso racional, fiscalização, controle e fomento dos recursos
naturais renováveis.
É evidente, assim, que a TCFA, criada com fulcro no escopo excogitado, nada
mais é do que uma taxa cobrada pelo exercício do poder de polícia, assim entendido como a atividade estatal que limita o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse coletivo.
Apenas para melhor compreensão, não é demais trazer a lume, o esclarecedor
conceito de poder, polícia, assinalado por Ives Gandra da Silva Martins, para quem
poder de polícia é serviço público profilático, objetivando orientar o comportamento social e empresarial, dentro de regras de ordem e coerência.5 Como tal, não
há como se falar em fruição individual, excluindo-se, por completo, para a TCFA, a
possibilidade de enquadrá-la na segunda modalidade de taxa comentada há pouco.
Com efeito, como assevera Ives Gandra da Silva Martins, no serviço público de exer5
Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988 – 6º Vol. São Paulo: Saraiva,
1990, p. 44.
332
faculdade de direito de bauru
cício de poder de polícia, seu grande beneficiário não é o sujeito passivo, mas a
coletividade, embora, indiretamente, o sujeito passivo também o seja.6
O Supremo Tribunal Federal, enfrentando os limites da atuação estatal, no
exercício do poder de polícia, já deixou registrado que eles devem se circunscrever
aos atos indispensáveis à eficácia da fiscalização voltada aos interesses da sociedade
(RE nº 153540, Rel. Min. Marco Aurélio, 2ª Turma, j. 05/6/95, DJU 15.9.95, p. 29519).
Percebe-se, com isso, que o STF possui visão mais restritiva quanto ao efetivo
exercício do poder de polícia, o que somente aumenta a expectativa de pronunciamento daquela Corte, sobre a taxa em comento.
Entende-se, com isso, que o exercício do poder de polícia prescrito em lei e
custeado pela TCFA, está em consonância com o texto da Lei Maior.
2.2.2. Quantum debeatur
Outro critério que exige reflexão, para pôr à prova a constitucionalidade da
TCFA refere-se ao valor devido a título da exação. Esse, talvez, seja o ponto nevrálgico da análise proposta neste trabalho.
Para melhor situar o leitor, transcreve-se, abaixo, a tabela constante do Anexo
IX, da Lei nº 10.165/00:
Anexo IX – Valores, em reais, devido a títulos de TCFA por estabelecimentos por trimestre
Potencial de Poluição
Grau de utilização de
Recursos Naturais
Pessoa
Física
Microempresa
Empresa de
Pequeno Porte
Empresa de Empresa de
Médio Porte Grande Porte
Pequeno
-
-
112,50
225,00
450,00
Médio
-
-
180,00
360,00
900,00
Alto
-
50,00
225,00
450,00
2250,00
Partindo-se do pressuposto de que a dimensão do quantum devido eleva-se
proporcionalmente ao potencial de poluição e grau de utilização de recursos naturais da empresa, parece lógico supor que maior será a extensão da atividade fiscalizatória e profilática exercida pelo IBAMA. Com efeito, quanto maior a empresa,
maior a produção, maior a utilização dos recursos naturais e, quiçá, maior o potencial poluidor.
Ademais, cuidou o legislador de estabelecer um critério quantitativo que obedecesse, de certo modo, à capacidade contributiva das empresas, muito embora,
como se sabe, não seja correto vincular a validade de uma taxa cobrada pelo poder
6
Ibid., p. 45.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
333
de polícia à capacidade contributiva do contribuinte, mas, apenas e tão somente, ao
custo da execução da atividade estatal. Nesse sentido, as ponderações de Regina Helena Costa:
As taxas têm caráter remuneratório da atuação do Poder Público,
devendo, por isso, manter razoável equivalência com a despesa
por ele efetuada.
Sustentar a necessidade de observância do princípio da capacidade contributiva nas taxas é não atentar para a natureza dessas
imposições tributárias. (...) Vale dizer, se, com a taxa, pretende-se
remunerar a atuação estatal, essa remuneração deve reportar-se
ao custo da mesma e não à capacidade contributiva do sujeito
passivo, irrelevante para a hipótese de incidência ou para a graduação da taxa.7
Pode-se afirmar, assim, que a TCFA, ao instituir valores fixos de tributação, apenas os majorou em face do aumento da capacidade poluidora e da utilização de recursos naturais do contribuinte, guardando correlação lógica com a maior amplitude dos
serviços púbicos que serão necessários para o exercício das atribuições legais.
2.3. Riscos à higidez da TCFA
Conforme já apontado, em linhas anteriores, para as taxas, em geral, deve haver observância cega ao princípio da retributividade, inerente aos tributos vinculados a uma atuação estatal específica, como é o caso das taxas e das contribuições de
melhoria. Vale dizer, não se pode usar dessa espécie de tributo para fins arrecadatórios, mas apenas e tão somente para o custeio das atividades que abrangem o exercício do poder de polícia conferido por lei.
Dessa forma, se ficar provado, a qualquer tempo, que os valores arrecadados
com a TCFA estão superando as despesas para execução das atividades típicas previstas em lei, restará desfigurado o arquétipo constitucional da espécie tributária
taxa, que ganhará contornos de verdadeiro imposto e não poderá ser exigido por
ofensa ao artigo 154, I, da CF/88.
3.
CONCLUSÕES
a) Diferentemente da TFA (Lei nº 9.960/00), a TCFA (Lei nº 10.165/00) criou,
validamente, uma espécie de taxa que guarda obediência à Constituição Federal (art.
145, II) e ao Código Tributário Nacional (art. 77).
7
Princípio da capacidade contributiva. 2ª ed. São Paulo: Malheiros. 1996, p. 55-56.
334
faculdade de direito de bauru
b) A TCFA possui natureza jurídica de taxa cobrada pelo exercício regular do
poder de polícia do IBAMA, que possui legitimidade para o cumprimento da atividade estatal e para a cobrança da exação (inteligência dos artigos 17-B, da Lei nº
6.938/81, com a redação da Lei nº 10.165/00, c/c art. 2º, da Lei nº 7.735/89).
c) A TCFA, ao instituir valores fixos de tributação, apenas os majorou em face
do aumento da capacidade poluidora e da utilização de recursos naturais do contribuinte, guardando correlação lógica com a maior amplitude dos serviços púbicos
que serão necessários para o exercício das atribuições legais, junto às empresas
maiores, em prol de toda a coletividade.
d) Para que não dê azo à alegação de inconstitucionalidade, os recursos arrecadados com o pagamento da TCFA não podem se revestir de cunho arrecadatório,
mas devem ser apenas suficientes para custeio do mister legal atribuído ao IBAMA.
inclusão social
O Judiciário e as Políticas de Saúde no Brasil:
o Caso AIDS*
Camila Duran Ferreira
Autora
Ana Carolina C. de Oliveira
Ana Mara F. Machado
André V. Nahoum
Brisa L. de M.Ferrão
Evorah L. C. Cardoso
Leandro A. Franco
Marcele G. Guerra
Marco Aurélio C. Braga
Rafael D. Pucci
Vinícius C. Buranelli
Co-Autores
1.
INTRODUÇÃO
Com o presente trabalho, pretende-se analisar como se dá o tratamento de
políticas públicas na área de saúde pelo Poder Judiciário, especificamente no âmbito do programa DST/AIDS. Desse modo, interessa-nos compreender o modo como
os juízes paulistas, de modo mais ou menos consciente e objetivo, alocam recursos
*
PRÊMIO IPEA 40 ANOS. Ipea-Caixa 2004 – Concurso de Monografias. Tema: DESAFIOS DAS POLÍTICAS SOCIAIS NO BRASIL.
338
faculdade de direito de bauru
escassos por meio de medidas judiciais que determinam o fornecimento de tratamento e realização de exames médicos.
Parece-nos ser relevante tal exercício – uma combinação de teorização e pesquisa empírica muito pouco comum na área jurídica brasileira – para que se possa
melhor compreender quais as relações existentes entre políticas públicas, cuja implementação compete ao Executivo, e os tribunais, que terminam por exercer influência significativa na forma como, na prática, tais políticas são executadas.
Desse modo, o trabalho está estruturado em três grandes eixos: (i) o tema da
judicialização da política; (ii) estudo de caso baseado em decisões judiciais que abordavam o programa DST/AIDS; e (iii) análise econômica do Direito.
2.
JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA
2.1. Aspectos gerais
Tema recorrente na ciência política contemporânea, o termo judicialização da
política é plurívoco, comportando interpretações. Sendo assim, parece necessária a
delimitação de seu significado tal como abordado, como objeto de estudo, no presente trabalho.
Sob o prisma da análise do sistema político legislativo, alguns autores1 definem o
termo judicialização da política como a utilização de mecanismos tipicamente judiciais
(análise de constitucionalidade e legalidade, utilização de silogismos jurídicos, emprego de raciocínios de licitude/ilicitude, entre outros) na arena de deliberação política.
Considerando a atuação do Poder Judiciário, observa-se uma multiplicidade
de manifestações de tratamento judicial de questões políticas. Em um primeiro momento, a atuação desse Poder restringe-se à limitação e regulação das atividades das
instituições legislativas. Assim procedem os juízes quando realizam o controle de
constitucionalidade, seja em sede concentrada ou difusa2, de uma lei ou emenda
constitucional.
O Judiciário aparece ainda como centro de controle e regulação de conduta
dos atores políticos, quando realiza uma fiscalização ética do exercício do poder público. Neste contexto, afirma Ferejohn:
(...) [j]udges have been increasingly willing to regulate the conduct of
political activities itself – whether practiced in or around legislatures
1
2
Dentre os quais, ressaltam-se os trabalhos de C. N. Tate e T. Vallinder, The Global Expansion of Judicial Power;
e, Walter Murphy, C. Herman Pritchett e Lee Epstein, Courts Judges, and Politics.
Observe-se que é uma peculiaridade do sistema brasileiro o controle de constitucionalidade concentrado, realizado por juízes de uma corte (Supremo Tribunal Federal) que tem por competência analisar todas as questões referentes a normas constitucionais e não apenas esse controle. Não se exclui, também, a atuação das demais cortes na análise da constitucionalidade das normas em cada caso.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
339
and agencies or the electorate – by constructing and enforcing standards of acceptable behavior for interest groups, political parties and
both elected and appointed officials”. Ferejohn (2002: 42).
O Poder Judiciário também emerge como a arena de discussão e decisão (positiva ou negativa) no âmbito da implementação de políticas públicas3. Nesse sentido, o Poder Judiciário agiria como um veto player e provedor de veto points4, ao
qual os atores políticos recorreriam no intuito de buscar a efetivação de interesses
não alcançados na arena política. É justamente essa acepção da judicialização da política, bem como suas conseqüências nas esferas jurídica, política e social, que será
abordada neste trabalho5.
2.2. A Revisão Judicial de Políticas Públicas
A revisão judicial a que se refere este texto comporta não apenas a análise da
adequação da política pública sob o ponto de vista do formalismo legal para a sua
elaboração e exteriorização. Significa também analisar o conteúdo discricionário6 da
política em seus aspectos de conveniência e oportunidade. Em outras palavras, trata-se de realizar um julgamento sobre opção administrativa na alocação de recursos
públicos escassos ante diversas possibilidades políticas.
Dotar o Poder Judiciário de uma função como essa importa romper, vale notar, com o paradigma clássico da separação dos poderes representado pela obra de
3
4
5
6
Shapiro já observava a atuação política do Judiciário em 1964 nos Estados Unidos: “The core of political jurisprudence is a vision of courts as political agencies and judges as political actors”. Shapiro, Martin. “Political Jurisprudence”. Kentucky Law Journal 52 (1964), p. 294, apud Shapiro (2002: 294).
A qualificação do Poder Judiciário como provedor de veto point é uma manifestação da teoria dos veto players
exposta por George Tsebelis (George Tsebelis. Veto players: How Political Institucional Works. Princeton, N.J:
Princeton University Press, 2002). Nesse sentido, veto players seriam atores políticos, individuais ou coletivos,
cujo consentimento seria necessário para o estabelecimento de políticas públicas. Referidos atores políticos
exerceriam esse poder de veto (sobre legislação ou políticas públicas que atinjam os interesses ou objetivos
políticos desses) tendo em vista arranjos institucionais, os denominados veto points. Esta definição é baseada
na obra de Matthew M. Taylor, Courts and Public Policy in Brazil. No mesmo sentido, as definições de Josephine T. Andrews / Gabriella R. Montinola. “Veto Players and the Rule of Law in Emerging Democracies”, Comparative Political Studies (forthcoming 2004) e Ganghof, Steffen. “Promises and Pitfalls of Veto Player Analysis”. Swiss Political Science Review 9 (2003), p. 2.
Não se pretende esgotar todos os sentidos de judicialização da política, merecendo citação a visão de Boaventura Sousa Santos: “Há judicialização da política sempre que os tribunais, no desempenho normal das suas funções, afectam de modo significativo as condições da acção política.” O autor define dois níveis de ocorrência
de judicialização da política: o de baixa intensidade, no qual o Judiciário figura como órgão fiscalizador dos
agentes públicos e seus atos; e o de alta intensidade, em que “parte da classe política, não podendo resolver a
luta pelo poder pelos mecanismos habituais do sistema político, transfere para os tribunais os seus conflitos internos” Santos (2003: 2).
A Administração Pública, no exercício de suas funções, vale-se de sua chamada competência discricionária
quando a adoção de uma ou outra solução é feita pela sua maior liberdade de ação segundo critérios de oportunidade e conveniência. Assim, o direito confere ao órgão político a liberdade de ação administrativa, dentro
dos limites permitidos em lei.
340
faculdade de direito de bauru
Montesquieu7. Esta visão, elaborada no contexto do Estado Moderno, postula a proteção de liberdades individuais contra um governante onipotente, correspondendo
a uma atuação estatal voltada para a consecução de ideais liberais. Assim, a concepção tripartite criada por Montesquieu visava a preservar o princípio da segurança jurídica e unidade na aplicação do direito, limitando a atuação judicial.
Não previa, portanto, uma atuação estatal no sentido de garantir bem-estar a
seus cidadãos, muito menos preservar a figura de um Estado prestador de serviços.
Na moldura tradicional da separação de poderes, torna-se impensável a ação do Estado como orientador de transformações sociais, ficando essas a cargo da auto-composição da sociedade. Em termos econômicos, esse desenho do Estado garantiria a
efetivação do sistema de livre trocas e livre-mercado8.
Não mais é possível interpretar a teoria da separação de poderes de maneira
estanque, já que a evolução político-social acabou por alterar as estruturas estatais,
passando a incumbir às instituições governamentais não só a defesa da liberdade individual, mas também a realização do Estado como um promotor ativo de mudanças sociais.
Esse fenômeno é muito bem representado pela emergência do Estado de
Bem-Estar, que objetiva o cumprimento de uma agenda igualitária. O Welfare State
acaba representando o ponto máximo da absorção do conceito de Justiça pelo Direito. Desse modo, este passa a não mais configurar mera ciência de controle social,
mas sim instrumento válido de consecução de justiça.
Essa absorção de ideais de justiça social e distributiva pelo Direito culmina
com a expansão da atividade estatal no sentido promocional, ou seja, pela regulação
e intervenção direta nas relações sócio-econômicas com o fim de garantir aos cidadãos, ante a escassez de recursos, uma justa parte dos investimentos estatais sob os
rótulos de saúde, educação, emprego, entre outros.
Dessa formulação do Estado como prestador de serviços, resulta uma transformação na forma de se elaborar e efetivar políticas públicas. Com uma maior gama de nichos
de atuação, coube ao Estado especializar seus órgãos tendo em vista a eficiência e celeridade de ação. Ante a necessidade de dar publicidade aos atos, cada vez mais técnicos e
complexos, houve uma repercussão direta e quantitativa na produção normativa.
7
8
“Esquematicamente, ela [a separação de poderes] erige três poderes em torno da noção de lei. Um faz a lei,
outro a executa, o terceiro também a aplica, porém, contenciosamente: Legislativo, Executivo e Judiciário.(...)
Dá a representação popular o comando último – a lei, expressão da vontade geral – é que rege o Estado; sujeita o Executivo ao cumprimento estrito do que a lei determina – este só pode fazer o que a lei permite; impõe ao judiciário vivenciar a lei, decidindo os litígios, punindo criminosos, mas sempre num processo dialético – o contencioso”, Ferreira Filho (1994: 1). Cumpre ressaltar que foi na obra de Montesquieu que a separação de poderes foi consagrada, porém já é esboçada na obra Política de Aristóteles e por John Locke, no Segundo Tratado do Governo Civil.
Para Montesquieu, em O Espírito das Leis, o Poder Judiciário não passava de um mero executor de leis. Os juízes seriam apenas “a boca que pronuncia as palavras da lei, seres inanimados que não podem moderar sua força, nem seu rigor”. O “poder de julgar” teria somente a função de punir os criminosos e resolver a querela entre os particulares.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
341
Diante desse processo, as normas jurídicas foram perdendo seu caráter clássico de abstração conceitual e generalismo, convertendo-se em normas técnicas, específicas e que versam sobre os mais diversos aspectos, tanto em matéria social
como econômica. Tem-se, então, uma clara jurisdicização das relações sociais9.
Nesse sentido, o Estado de Bem-Estar traduz em norma jurídica suas decisões
políticas e, devido a esse caráter eminentemente político, essas decisões são voltadas para o tempo futuro, mergulhando o Direito no campo da incerteza, do provisório. Com a expansão do âmbito material da normatividade, o Poder Judiciário passa a ser incitado a decidir sobre matérias com as quais não teria contato se restrito
à concepção tradicional de separação dos poderes. A jurisdicização leva, em suma,
o Judiciário a ter uma atuação interpretativa do texto legal (como já dito, com sua
materialidade expandida), legislando implicitamente ao aplicá-lo10.
A esse fenômeno, acrescenta-se o caráter dito “dirigente” que muitas das
constituições modernas vieram a adquirir, passando a conter extensos rols de direitos de natureza social, que instrumentalizam objetivos e finalidades do sistema político. Ademais, a tendência em considerar a Constituição como o paradigma de direitos, contra os quais toda e qualquer atuação estatal é ilegítima, incitou o Poder Judiciário, dentro do Estado Providência, a atuar seguindo os preceitos garantidos naquela. Desse modo, toda decisão judicial sobre matéria administrativa teria, implícita, uma análise constitucional dos fatos, no sentido de estarem as atitudes estatais
em compasso com os fins traçados pela Constituição.
Como as normas constitucionais tornaram-se cada vez mais específicas no
sentido de dirigirem a atuação sócio-econômica dos agentes políticos, ao Poder Judiciário é conferida competência para julgar, segundo os preceitos constitucionais
de justiça social, os parâmetros de eficiência e oportunidade da atuação governamental. Estes princípios passam a configurar verdadeiras balizas da atuação estatal.
Ao lado dessas funções do Judiciário como um legislador implícito, aplicador
(negativo ou positivo) de políticas públicas, surge a própria deficiência do sistema político em cumprir com as demandas sociais requeridas ao Estado ante as novas atribuições deste como prestador de serviços e/ou regulador das relações sócio-econômicas.
O tempo político-legislativo é diferente do tempo real das demandas sociais,
o que imputa ao gestor das decisões políticas um comportamento de análise de custos e benefícios da elaboração e aplicação de políticas públicas. Recorrer ao Judiciário, principalmente quando há possibilidade da utilização de mecanismos como, por
9
“A mediação (...) ao fixar os limites e os direitos dos grupos organizados corporativamente, resultou na jurisdicização das relações sociais, fazendo do direito e dos seus procedimentos uma presença constituinte do capitalismo organizado.” Werneck Vianna et. al. (1999: 17).
10 Cappelletti aponta dois comportamentos do Estado e de seu aparato (o que inclui o Judiciário) frente ao desafio imposto pelo aumento de encargos da intervenção legislativa: a) A criação de organismos “quase judiciários” (agências, conselhos, tribunais administrativos, etc) que exerceriam tarefas não executadas pela magistratura: “o controle dos “poderes políticos” e, com isso, a proteção dos cidadãos e da sociedade em geral, contra
os abusos daqueles”; e b) Exercício pelo judiciário de uma postura ativa e criativa. Cf. Cappelletti (1993).
342
faculdade de direito de bauru
exemplo, a tutela antecipada11, pode garantir uma efetivação mais ágil dos direitos
sociais constitucionalmente previstos, além de evitar desgastes políticos, seja no
sentido de obter maioria representativa, seja na relação com a opinião pública12.
Ressalte-se, ainda que de passagem, que a figura do Estado como prestador de
serviços vem sofrendo alteração com o surgimento de um direito regulatório, associado às exigências de direção e conformação social, legitimado pelos efeitos sociais
de sua própria atividade, um instituto particularístico, finalisticamente orientado e
tributário das ciências sociais13. Há, então, mais recentemente, uma tentativa de redefinição do papel do Estado, reduzindo significativamente sua atuação direta como
promotor de serviços em favor de uma atuação regulatória. Aspectos particulares da
transição do modelo de Bem-Estar para o que se convenciona chamar de Estado regulador não serão tratados aqui.
No Brasil, os direitos sociais, decorrentes do modelo de bem-estar e da incorporação do conceito de justiça no Direito, continuam figurando como paradigmas,
inclusive constitucionais, da atuação estatal. Ou seja, embora haja tendências de
atuação regulatória – essencialmente procedimental – a existência dos já referidos
direitos constitucionalmente positivados acaba por impelir a prestações típicas de
um modelo intervencionista.
2.3. A Judicialização da Política no Brasil
A emergência do fenômeno da judicialização da política no Brasil e seu estudo com
caráter científico passam a ter relevância no período pós-Constituição de 198814.
11 A noção de tutela antecipada refere-se à necessidade de simplificar e acelerar os atos e o procedimento jurisdicionais quando a demora da decisão causar prejuízos. Consiste na antecipação dos efeitos da decisão, antes
do seu julgamento final, com base na razoável probabilidade do direito e na necessidade de tutela urgente pelo
demandante.
12 José Eduardo Faria antecipa a incapacidade de um sistema político jurisdicizado dar cabo a todas as demandas
a ele apresentadas: “O que tem estimulado e fundamentado a proliferação dessas estratégias é, entre outros fatores, uma espécie de cálculo de custo/benefício por parte dos legisladores contemporâneos. Com mecanismos normativos excessivamente simples para lidar com questões extremamente complexas e sem condições
de ampliar a complexidade de seu ordenamento normativo e de seu aparato judicial ao nível equivalente de
complexidade dos problemas sócio-econômicos, os legisladores, pensando pragmaticamente, não têm hesitado em optar pela desregulamentação, deslegalização e desconstitucionalização. Afinal, se quanto mais tentam
disciplinar e intervir menos conseguem ser eficazes e obter resultados satisfatórios, o que ficou evidenciado
desde a crise ‘fiscal’ e pela crise de ‘ingovernabilidade sistêmica’ do Welfare State, nos anos 80, não lhe resta
outra alternativa para preservar sua autoridade funcional: quanto menos disciplinar e intervir, menor será o risco de serem desmoralizados pela inefetividade de seu instrumental regulatório”. Figura-se, assim, uma tendência à desregulamentação da atividade estatal, num possível panorama de impossibilidade do Judiciário em cumprir com as obrigações a ele delegadas pelo sistema político. Faria (2001: 3).
13 Vide Tojal (2002: 148-169).
14 Assim define Werneck Vianna: “Tem-se, assim, uma judicialização da política cuja origem está na descoberta,
por parte da sociedade civil, da obra do legislador constituinte de 1988, e não nos aparelhos institucionais do
Poder Judiciário”. Werneck et al. (1999: 43). Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “...um fenômeno que é mundial, agravado entre nós pela Carta de 1988 – a judicialização da política que tende a trazer a politização da justiça”. Ferreira Filho (1994: 3).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
343
As alterações incorporadas pela nova Constituição, no sentido de estabelecer
um novo arranjo institucional do Poder Judiciário no Brasil e na atuação estatal, criaram um ambiente favorável à manifestação deste na esfera política.
A instituição “Judiciário” no Brasil, analisada de maneira expansiva, tendo em
vista também o arcabouço jurídico segundo o qual deverá se manifestar, acaba por
fornecer um locus institucional para a manifestação dos juízes sobre políticas públicas, numa típica atividade de veto player.
Dar caráter normativo a princípios de justiça social faz com que os juízes, enquanto aplicadores das normas, acabem por se manifestar sobre as políticas públicas tidas
como meio para efetivação das garantias sociais de nossa Constituição. Ao lado desse quadro de aumento da normatividade constitucional, assenta-se a garantia de que, no Estado brasileiro, o acesso ao Poder Judiciário não será vedado no caso de ameaça ou lesão
de direito. Ademais, a necessidade imposta pela ciência jurídica de cunho fortemente positivista de se observar a Constituição como ponto máximo de uma pirâmide normativa
positiva, importa em dizer que todos os atos normativos, sejam eles de origem administrativa ou não, são passíveis de revisão judicial acerca de sua constitucionalidade.
Somado a este quadro tendente a permitir a chamada judicialização da política, há o fato de que a Constituição também prevê mecanismos processuais que capacitam alguns agentes políticos a contestarem políticas públicas diretamente perante o Judiciário.
Importantes trabalhos ressaltam a funcionalidade do controle de constitucionalidade concentrado (com sede no STF) no sentido de permitir a contestação judicial de
políticas aplicadas mediante leis ou atos normativos. Dentre os principais autores, destacam-se as obras de Marcos Faro de Castro15 e Werneck Vianna e outros16.
Também merece ênfase a análise de ações de caráter coletivo, como a ação civil pública e a ação popular, uma vez que permitem o controle da administração pública no sentido de conferirem a seus legitimados ativos a possibilidade de contestar judicialmente a moralidade de certos atos, bem como analisar questões de desvio de poder17. É, inclusive, a possibilidade de atuação do Ministério Público nesses
tipos processuais (bem como a possibilidade de instaurar inquéritos civis, entre outros institutos) que vem dando a este órgão um caráter de veto player, atuando diretamente como agente político perante o Judiciário18.
Tema pouco explorado, contudo, é a utilização de meios processuais considerados comuns como forma de bloquear ou alterar a efetividade de políticas públicas.
15 Castro (1997).
16 Werneck (1999).
17 Para maior aprofundamento vide: José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. 18. ed. São
Paulo: Malheiros, 2000.
18 Neste sentido vide: Rogério Bastos Arantes. “Judiciário e Política no Brasil”. Novos Estudos Cebrap 54 (1999);
Arantes, Rogério Bastos. Judiciário e Política No Brasil. São Paulo: IDESP, 1997 e Débora Alves Maciel / Andrei
Koerner. “Sentidos da Judicialização da Política: duas análises”. Revista Lua Nova 57 (2002): 113-133.
344
faculdade de direito de bauru
Atores políticos19 utilizam o Judiciário, através de procedimentos judiciais específicos de contestação do Poder Público, como uma arena de discussão capaz de
determinar veto, alteração ou implementação de políticas públicas, assumindo assim caráter de veto player secundário.
Quando provocado mediante procedimentos comuns, devido à manifestação
do cidadão que pleiteia a consecução de direitos sociais constitucionalmente previstos, o Poder Judiciário atua como efetivo veto player, no sentido de agir não como
meio para que atores políticos determinados atinjam interesses, mas sim no sentido
de ser ele próprio, o Judiciário, figura ativa na realocação de recursos estatais. Os tribunais passam a ser verdadeiros centros de regulação (positiva ou negativa) de políticas públicas, com considerável capacidade de veto e criação de políticas públicas.
Para comprovar a hipótese, de que, ao ser provocado por cidadãos mediante
mecanismos processuais ditos comuns, o Judiciário atua como verdadeiro veto player, foi necessária uma análise empírica. Essa análise prestou-se também para determinar, se existentes, os efeitos da atuação dos juízes como atores políticos.
Tal exercício – um estudo de caso – revela-se importante para que se possa melhor compreender quais as relações existentes entre políticas públicas,
cuja implementação compete ao Executivo, e os tribunais, que terminam por
exercer influência significativa na forma como, na prática, tais políticas são executadas.
Dentre as inúmeras políticas públicas que necessitam ser implementadas
em países que apresentam elevado déficit social, investimentos em saúde (especialmente o fornecimento de medicamentos) e educação (em específico, vagas
em escola) são clássicos exemplos de “direitos prestacionais” (no sentido de direito à uma prestação positiva) do Estado que produzem significativas externalidades positivas para aqueles que recebem o benefício. Optou-se pelo setor de
saúde pública, pois este mais claramente representa uma direta realocação de
recursos do Executivo pelo Judiciário20. Em especial, escolheu-se o programa de
distribuição de medicamentos de AIDS, uma vez que a compra e fornecimento
dos mesmos, quando imposta por via judicial, é de imediata execução, o que facilita a quantificação de seus impactos distributivos.
19 Ainda que a Constituição garanta, com status de garantia fundamental, a ação popular como um direito de todo
cidadão, a análise prática observa que partidos políticos utilizam-se do instituto para dar efetividade ao seu poder de veto. Ou seja, mediante membros do partido como pólo ativo da ação, esses agentes políticos defendem seus interesses com intermédio do Judiciário.
20 “Quem está fazendo a política pública em medicamentos novos é a Justiça”, assevera Alberto Kanamura (2002:
C1), médico, consultor em administração de serviços de saúde, à época Superintendente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e chefe de Gabinete da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo,
governo Alckmin. Em outra ocasião: “iniciar uma discussão é urgente. Nada acontecendo, caminha-se naturalmente para uma realocação de recursos de programas de saúde mais abrangentes para programas mais específicos; da cobertura universal de certas doenças, para a cobertura segmentada de qualquer doença; da universalização do acesso para a focalização da assistência” (2003: A3).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
3.
n.
42
345
CASO AIDS
3.1. Nota metodológica
Com a finalidade de apurar o universo da pesquisa, delimitamos o objeto de
estudo no que diz respeito às decisões do Judiciário com relação ao fornecimento
de medicamentos para pacientes portadores do vírus HIV (sigla para human immunodeficiency virus), incluindo os coquetéis para o controle viral e a realização de
exames de fenotipagem e genotipagem21, no município de São Paulo.
A escolha de um estudo de caso, metodologicamente, justifica-se pelo caráter
empírico-instrumental que permite a compreensão do fenômeno mais amplo analisado, qual seja, a judicialização da política sob a ótica da atuação do Judiciário ao revisar políticas do Executivo.
A análise empírica abrangeu duas frentes: o estudo de decisões judiciais e entrevistas com profissionais públicos ligados à área jurídica e da saúde. Foram quatro
os entrevistados: gestores públicos ligados ao programa DST/AIDS, estadual e municipal, respectivamente, Alexandre Gonçalves22 e Élcio Nogueira Gagizi23; José Paulo França Pinto, membro do Ministério Público do Estado de São Paulo24; e Luiz
Duarte de Oliveira, Procurador do Estado de São Paulo25.
As decisões judiciais, proferidas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, referem-se a ações originárias do município de São Paulo. A escolha baseou-se na competência recursal desse tribunal que julga ações propostas contra o Poder Público
estadual e municipal26. A finalidade foi recolher as decisões colegiadas que confirmavam ou reviam a antecipação de tutela27 para a concessão de medicamentos em primeira instância28.
21 O exame de genotipagem tem como objetivo pesquisar o padrão de mutações dos vírus responsáveis pela falha terapêutica do paciente. Devido a seu menor custo e tempo de processamento em relação à fenotipagem,
a genotipagem é o exame mais pedido para guiar a terapêutica anti-retroviral. O exame de fenotipagem, por
sua vez, devido ao seu alto custo e tempo de realização, é mais utilizado na área de pesquisa básica.
22 Alexandre Gonçalves é diretor técnico da divisão de saúde responsável pela gerência de apoio da Secretaria de
Saúde do Estado de São Paulo, especificamente do programa DST/AIDS. Entrevistado dia 14/06/2004.
23 Élcio Nogueira Gagizi é farmacêutico, consultor da UNESCO responsável pela fiscalização do programa
DST/AIDS no município de São Paulo e atua, para esse fim, no setor de distribuição de medicamentos da Secretaria de Saúde do município de São Paulo. Entrevistado dia 09/06/2004.
24 José Paulo França Pinto é responsável pelo GAESP (Grupo de Atuação Especial de Saúde Pública e da Saúde do
Consumidor) do Ministério Público do Estado de São Paulo. Entrevistado dia 02/07/2004.
25 Entrevistado em 07/07/2004.
26 Como são considerados indisponíveis os interesses públicos, administrados pelos Estados e Municípios, a lei
exige que todas as decisões judiciais proferidas contra o poder público sejam novamente apreciadas, através
de recurso, pela instância superior: é o “reexame necessário”. Além de disposição legal, os representantes do
Estado e do Município (procuradores) têm por função defender os entes públicos, de modo que são compelidos a recorrer de decisões desvantajosas ao poder público.
27 Vide nota 10 supra.
28 Por este motivo, a maior parte das decisões encontradas são agravos de instrumento (recurso contra uma decisão tomada por juiz de primeira instância durante o processo, sem colocar fim ao mesmo).
346
faculdade de direito de bauru
O recorte temporal para a seleção dos acórdãos compreende os anos de 1997
a junho de 2004. A escolha do marco de 1997 justifica-se pela promulgação da Lei
9.313, em 13 de novembro de 1996, que regulamentou a política pública de concessão de medicamentos para portadores do vírus HIV, em âmbito federal, estadual e
municipal29.
O material foi selecionado junto ao banco de dados do Tribunal de Justiça, no
site <http://www.tj.sp.gov.br>, durante os meses de maio e junho, e complementado através de pesquisa em publicação eletrônica da APMP (Associação Paulista do
Ministério Público), por meio do “CD JUR-03”, uma vez que a disponibilidade dos
acórdãos na rede da internet só se efetivou a partir do ano de 199830. Por meio desse procedimento, localizamos 321 acórdãos, dos quais 227 (70,7%) não se encontravam em segredo de justiça. Através da leitura cuidadosa de cada acórdão, a amostra
de nossa pesquisa foi reduzida a 144 decisões colegiadas que estavam compreendidas em nosso objeto de estudo. Os acórdãos restantes (83) foram excluídos por tratarem de doenças diversas31, tendo sido selecionadas pelo sistema do Tribunal por
conterem trechos de decisões relativos à AIDS.
A análise dos acórdãos foi qualitativa, procurando identificar os argumentos
trazidos pelos julgadores na concessão ou não do medicamento, e quantitativa, apurando qual tipo de decisão predominou no período analisado. Para tanto, foi desenvolvido um modelo de análise, com os seguintes itens investigativos:
(I)
identificação da classe processual e número do acórdão;
(II)
identificação das partes;
(III) pedido postulado na ação ordinária;
(IV ) concessão da antecipação de tutela e fundamento;
(V) reconhecimento pelo julgador do direito à saúde como política pública;
( VI) classificação do direito à saúde como coletivo ou individual;
( VII) utilização de critérios econômicos para a decisão;
( VIII) consideração de possíveis impactos sociais da decisão.
Com a concepção do item i, procuramos identificar individualmente cada
acórdão e, com o item ii, definir contra que ente do Poder Público a ação foi proposta (Fazenda Pública do Estado de São Paulo, Prefeitura de São Paulo ou secretá-
29 Vale notar que o órgão responsável pela distribuição dos medicamentos da AIDS para usuários no Estado de
São Paulo é a Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo. Entretanto, a compra dos medicamentos no país é
de responsabilidade do Ministério da Saúde, ficando o mesmo responsável pelo repasse às secretarias.
30 Para a seleção das decisões judiciais relevantes, utilizamos as seguintes combinações de palavras-chave: (i) “medicamento aids”; (ii) “medicamento hiv”; (iii) “medicamento sida”. Todas as anteriores foram realizadas com e
sem a palavra “fornecimento”.
31 O caso da AIDS foi pioneiro na obtenção de sentenças favoráveis à concessão de medicamento. Devido à pressão de entidades não governamentais no Executivo e Legislativo, a doença ganhou visibilidade e foi promulgada a Lei 9.313/96. Um aspecto interessante, é que vítimas de outras doenças passaram também a reivindicar judicialmente medicamentos, tendo como precedente o caso da AIDS, a despeito de não possuírem legislação
específica.
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347
rios de saúde) e seu pólo ativo, se coletivo (Ministério Público ou associações representativas de interesse) ou individual. No item iii, por sua vez, analisou-se o pedido
formulado pelo autor na ação ordinária, ou seja, aquela proposta em primeira instância e submetida à revisão pelo tribunal (materialmente, referiam-se ao fornecimento de medicamentos e/ou realização de exames laboratoriais). No item iv, operou-se a análise da concessão ou não de antecipação de tutela e sob qual justificativa (processual ou material), tendo em vista a reversibilidade da decisão em relação
a seus efeitos concretos32. O item v procurou verificar se o julgador considera a concretização do direito à saúde condicionado a programas de ação pelo Executivo (política pública) ou como uma mera norma constitucional de possível aplicação e eficácia imediata, sem a necessidade de intermediação do Executivo, portanto. A definição do direito como coletivo ou individual, abordado no item vi, objetivou analisar como o julgador classifica o direito à saúde e, conseqüentemente, como a questão é tratada no âmbito processual. A análise da utilização de critérios econômicos
pelo juiz, assim como do impacto social de sua decisão (itens vii e viii), teve como
escopo verificar se o julgador considerou as restrições orçamentárias a que o Executivo está submetido e o impacto para a coletividade da realocação dos recursos destinados à saúde pública.
3.2. O programa DST/AIDS33
Em 1991, atendendo a reivindicações da sociedade civil, o Brasil iniciou a distribuição gratuita, em rede pública, da Zidovudina (AZT) para milhares de portadores do vírus da imunodeficiência adquirida (HIV ) com indicação médica de tratamento. Iniciava-se assim uma das mais bem-sucedidas políticas de saúde pública dos
países em desenvolvimento34. Ao longo da primeira metade da década passada, o Ministério da Saúde, a partir do advento de novos medicamentos, ampliou o número
de anti-retrovirais35 distribuídos.
32 A concessão antecipada da tutela (distribuição do medicamento) pode ser irreversível, posto que os recursos
despendidos na compra de medicamentos pleiteados (ainda que não reconhecido posteriormente o direito do
autor) não poderiam ser restituídos aos cofres públicos ante os elevados custos dos mesmos. Da mesma forma, o Estado não poderia interromper a distribuição do medicamento devido ao risco de mutações que aumentariam a resistência do vírus à terapia.
33 O projeto engloba não somente a prevenção e tratamento da síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS),
mas também de outras doenças sexualmente transmissíveis (DST).
34 Diversos dados são apontados pelo Ministério da Saúde (http://www.aids.gov.br) para demonstrar o êxito do
programa, dentre os quais a redução em 50% na mortalidade, 26% no número de casos registrados e 80% nas
necessidades de internações hospitalares ocasionadas pela AIDS. Com isso, foi possível evitar 358.175 internações no período de 1997 a 2001, gerando uma economia de recursos de US$ 1.036.603.072,14. A eficácia também pode ser observada na conscientização e atenção ao paciente: o tratamento têm alta taxa de adesão (73%,
segundo pesquisa realizada pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, publicada no mesmo
http://www.aids.gov.br), semelhante à que é observada em países desenvolvidos.
35 Anti-retrovirais são medicamentos desenvolvidos para impedir a reprodução do vírus, com conseqüente proteção do sistema imunológico, a partir de um sistema de inibição da transcrição do código genético do vírus.
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faculdade de direito de bauru
Em 1996, consolidando o compromisso assumido pelo Estado brasileiro com
o tratamento da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA ou AIDS, em inglês), a edição da Lei 9.313 tornou obrigatória a distribuição universal e gratuita dos
anti-retrovirais, por meio da rede pública de saúde, a todos os portadores da enfermidade. Referida lei exigiu uma reestruturação da política conduzida pelo Ministério da Saúde, cujo principal produto foi a criação do Programa DST/AIDS no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), com a articulação de gestores públicos de saúde de todos os entes federativos e a canalização de receitas de diversas fontes, incluindo vultosos investimentos internacionais36.
Para a execução do Programa, foi desenvolvida uma organização administrativa e
logística própria, moldada para a realização de cada uma das propostas estabelecidas
em seu plano gerencial. Embora tenha se caracterizado por uma constante evolução,
no sentido de ampliar as frentes de combate ao vírus, o Programa desempenha atividades em três frentes básicas: (i) promoção à saúde, a direitos fundamentais de pessoas
convivendo com DST e AIDS e prevenção contra a transmissão, desenvolvendo campanhas educativas e contra o preconceito, além da distribuição de preservativos e do sistema de vigilância epidemiológica; (ii) diagnóstico, tratamento e assistência às pessoas
portadoras de DST e AIDS, através da realização de exames gratuitos37, da distribuição
de anti-retrovirais e outros medicamentos para combater as doenças oportunistas38,
atendimento psicos-social e internações, quando necessário; e, (iii) desenvolvimento
institucional e gestão do projeto, atividade que consiste, além da administração dos recursos e pessoal envolvido, nas interlocuções com outros gestores públicos para implementação das ações pretendidas com o Programa.
A gestão e implementação do Programa envolvem diversos atores nacionais,
públicos (entes governamentais dos três níveis federativos) e privados (sociedade
civil) e, ainda, organismos internacionais, tais como a UNESCO e a OMS39. Diante
dessa pluralidade de atores, a articulação para a implementação e gestão do Programa é atividade central, realizada pela Coordenação Nacional de DST/AIDS do Ministério da Saúde vinculada à Secretaria de Políticas de Saúde.
Para o escopo deste trabalho, em que o recorte metodológico determinou a
pesquisa empírica no município de São Paulo, importa-nos observar a distribuição
36 Acordo de 1998 (com validade até dezembro de 2002) entre o Brasil e o Banco Mundial garantiu ao Programa
US$ 165 mi, com contrapartida nacional de US$ 78 mi da União, US$ 32 mi dos Estados e US$ 25 mi dos Municípios, totalizando US$ 300 mi em recursos disponíveis, a partir de 1999.
37 O Sistema Único de Saúde garante a realização dos exames de contagem de linfócitos TCD4/CD8 e quantificação da carga viral do HIV-1, necessários para diagnosticar a AIDS e determinar o estágio da síndrome. No período compreendido entre 1998 e 2002 foram realizados cerca de 600 mil testes em cada uma dessas modalidades nos laboratórios que integram a rede. É garantido, ainda, o exame de genotipagem, necessário para a escolha do melhor tratamento em casos de falhas (Fonte: http://www.aids.gov.br).
38 A AIDS é síndrome que enfraquece o sistema imunológico humano, tornando o paciente vulnerável a todo tipo
de doenças ocasionadas por organismos estranhos ao corpo (vírus, bactérias, protozoários, etc).
39 Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura e Organização Mundial da Saúde, respectivamente.
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de medicamentos e recursos para o tratamento aos portadores do vírus HIV no âmbito do programa - em seu aspecto técnico, logístico ou administrativo. No plano federal, essa tarefa é realizada pela Unidade de Assistência, responsável pelas definições de diretrizes técnicas, controle logístico da distribuição de medicamentos, elaboração de estimativas de necessidade e custo de medicamentos, suporte ao surgimento de laboratórios e centros de referência, entre outros.
Muito embora a Constituição Federal (art. 23, II) estabeleça que políticas públicas em saúde sejam de responsabilidade concorrente de todos os entes da federação (União, Estados e Municípios), o fornecimento de medicamentos no âmbito
da política pública analisada não se enquadra nesta lógica: em função de um pacto
tripartite de responsabilidade40, os medicamentos anti-retrovirais são de responsabilidade exclusiva do Ministério da Saúde, tendo sua compra e distribuição controladas pela referida Unidade de Assistência. Evidentemente, diante da necessidade de
padronizar a prestação de serviço através de uma política universal de dispensação
(termo técnico utilizado pelo Programa DST/AIDS) de medicamentos e da escassez
de recursos públicos, nem todos os anti-retrovirais disponíveis no mercado são distribuídos pela rede pública do Programa. A determinação dos medicamentos que serão adquiridos, assim como a indicação de uso, segue recomendações técnicas dos
Comitês Assessores para Terapia Anti-Retroviral, que são por seu turno fundamentadas em estudos reconhecidos nacional e internacionalmente. Esses órgãos recebem
sugestões dos gestores públicos estaduais e municipais e dos conselhos de saúde. A
lista dos anti-retrovirais distribuídos e as recomendações de uso conformam o Consenso Terapêutico, documento que define as diretrizes da política pública de dispensação universal e gratuita de medicamentos para portadores de HIV.
Atualmente, são distribuídos 15 medicamentos anti-retrovirais41 a cerca de 115
mil soropositivos no Brasil, 20% da população total de pacientes, segundo estimativa
aproximada. Em 2001, o Ministério da Saúde dispendeu, com esses medicamentos,
US$ 232 milhões, ou 1,6% do orçamento do Ministério da Saúde42. Adquiridos pelo próprio ministério, esses medicamentos devem ser distribuídos para os portadores do vírus, sejam eles oriundos da rede pública ou da rede particular. A distribuição é de responsabilidade das unidades dispensadoras estaduais e municipais, pois são entidades
40 O pacto tripartite foi realizado em 1998 por meio da reunião do Ministério da Saúde, do CONASS (Conselho
Nacional dos Secretários Estaduais de Saúde) e CONASEMS (Conselho Nacional dos Secretários Municipais de
Saúde).
41 Zidovudina (ZDV ), Didanosina (ddI), Zalcitabina (DDc), Lamivudina (3TC), Estavudina (d4T), Abacavir, Indinavir, Ritonavir, Saquinavir, Nelfinavir, Amprenavir, Nevirapina, Delavirdina, Efavirenz e Lopinavir/r.
42 O Ministério da Saúde é a segunda pasta em volume de gastos orçamentários, estando atrás apenas do Ministério da Previdência. Para o exercício financeiro de 2004, segundo consta no anexo II da Lei 10.837/2004 (Lei
Orçamentária), este recebeu dotação orçamentária de R$ 129.219.406.126 (8,88% do total das despesas), enquanto aquele recebeu R$ 36.473.566.870 (2,46% do total de despesas). Ressalte-se ainda, que apenas a previdência social consome mais recursos que o Programa DST/AIDS, segunda ação governamental em volume de
gastos (e primeira no Ministério).
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mais próximas dos pacientes. De maneira exemplificativa, podemos citar o caso do município de São Paulo, que conta com 15 unidades dispensadoras e dois hospitais que
atendem à política de saúde, distribuídos pela cidade, atendendo aos requisitos como,
critérios de necessidade, índices epidemiológicos, capacidade técnica e estrutural. Disponíveis nas unidades estatais ou municipais, os medicamentos são dispensados aos
pacientes cadastrados portadores de prescrição médica, condizente com os consensos
de tratamento. Logo, para se obter um medicamento, o mesmo deve estar incluído na
lista do Programa, ser aplicável ao tratamento e estar de acordo com as etapas e combinações previstas para o caso do paciente.
O pacto tripartite de responsabilidade dos gestores de saúde definiu, também,
que em contrapartida ao fornecimento dos medicamentos da Unidade de Assistência do Ministério da Saúde às coordenações estatais e, subsidiariamente, às municipais, essas devem prestar informações àquela, incluindo dados epidemiológicos, dados de distribuição, estoque de medicamentos, demanda prevista e demanda realizada. Tal obrigação representa uma efetiva prestação de contas. Atualmente, quase
a totalidade das coordenações e suas respectivas unidades dispensadoras já estão interligadas ao SICLOM (Sistema Informatizado de Controle Logístico de Medicamentos), visando à maior racionalidade de custos, melhoria no controle de estoques,
abastecimento e gerenciamento de atividades.
Quanto aos medicamentos associados a infecções oportunistas, o pacto definiu que seriam de responsabilidade dos Estados e Municípios, cabendo aos mesmos, em cada unidade da federação, estabelecerem o que será responsabilidade de
cada, através dos Comitês Intergestores Bipartite. Este plano logístico tem funcionado de forma bastante eficaz, garantindo ao Brasil o status de centro de referência
mundial em tratamento de AIDS. A dispensação de medicamentos contidos nas listas do Programa tem ocorrido de maneira suficientemente eficaz, de modo que os
pacientes têm logrado obter referidos medicamentos, com raras hipóteses de escassez. O mesmo não se pode dizer, entretanto, com relação a medicamentos não previstos no Consenso de Terapêutico, ou seja, quando medicamentos ainda não aprovados pelos gestores para distribuição pelo programa são solicitados nas unidades
dispensadoras. A necessidade de padronização de tratamento e as impossibilidades
da administração de fornecer todos os medicamentos necessários fazem com que
tais demandas sejam raramente atendidas pelo Estado. Ante a negativa da administração em fornecer outras drogas, resta aos pacientes ir ao Judiciário para obter o
necessário tratamento para sua moléstia.
3.3. Análise do material empírico
O material analisado compreende 144 acórdãos (gráfico abaixo). Esta análise
foi realizada com base nos critérios estabelecidos no questionário descrito na nota
metodológica (acima).
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Total das Decisões
Em relação ao critério (i), identificação da classe processual e número do
acórdão43, observamos que a maioria dos acórdãos pertencia à classe processual definida como agravos de instrumento, interpostos contra a decisão de primeira instância que concedeu a tutela antecipada44.
O critério (ii), identificação das partes, demonstrou que a maioria das
ações foi proposta contra a Fazenda Pública do Estado de São Paulo e que o pólo
ativo era composto por mais de um autor em 80% dos casos45.
O pedido formulado na ação ordinária (iii) referiu-se à concessão de medicamentos não compreendidos inicialmente na lista do Ministério da Saúde46 e à necessidade da realização de exames de genotipagem e de fenotipagem. O fato de os medicamentos pedidos não fazerem parte da lista, e, portanto não serem disponibilizados pela rede pública de saúde47, demonstra que, ao conceder o medicamento, o Judiciário não está propriamente efetivando uma política pública já definida pelo Executivo, mas sim realocando recursos públicos48.
43 O número do acórdão foi incluído no questionário pela necessidade de identificação das decisões.
44 Foram encontradas também, em número bastante reduzido, outras classes processuais como o mandado de
segurança, a apelação e os embargos infringentes. Esses não foram contabilizados, por não serem relevantes
aos objetivos da pesquisa.
45 Isso demonstra que há uma tendência em se buscar a extensão dos efeitos da sentença para mais de uma
pessoa.
46 No Acórdão n. 258.364-5/6-00, o medicamento pleiteado foi inserido na lista do Ministério da Saúde durante o
processo, o que justificou a decisão tomada pelo julgador neste caso: “Por conseqüência, existindo a prescrição médica e estando os medicamentos disponíveis nas Unidades Publicas de Saúde, justifica-se a concessão
da medida liminar”.
47 Houve caso em que, para o juiz, a concessão do medicamento estaria sujeita à inclusão do mesmo na lista do Ministério da Saúde e à disponibilidade nos estoques da rede pública de saúde: “mesmo no caso
de fornecimento de medicamento, como acontece com os livros escolares, os materiais etc., deve ser fornecido aquele disponível nos estoques” ( Voto Vencido do Acórdão n. 248.814-5/2-00, p.3).
48 Houve também decisões que ignoraram a exigência de regulamentação prévia do medicamento por órgão técnico competente, a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Por muitas vezes, bastou aos juízes a
prescrição em receita médica do medicamento. A exemplo: “Portanto, a alusão a falta de regulamentação do
medicamento ‘tenofovir’, a priori, não denota ser óbice ao exercício do direito, tendo em vista que decorreu
de receituário de médico do Instituto de Infectologia ‘Emílio Ribas’” (Acórdão n. 334.408-5/1-00). No mesmo
sentido, houve acórdão que entendeu que a alegação da Fazenda Pública de que o medicamento não estaria
352
faculdade de direito de bauru
Quanto à antecipação de tutela e seu fundamento (iv) verificamos que em todos os casos ela foi concedida, sendo eventualmente cassada pelo tribunal, nos casos de acórdãos denegatórios (não concessão). O principal fundamento utilizado
nessas decisões foi a possibilidade do paciente vir a falecer (fundado receio de dano
irreparável) e a comprovação, por prescrição medica, do estado do paciente e da necessidade do remédio (verossimilhança da alegação), o que, segundo os julgadores,
corresponderia à negação do direito à vida garantido pela Constituição Federal. Interessante ressaltarmos que o principal argumento utilizado pela Fazenda Pública
para a não-concessão da tutela antecipada foi a irreversibilidade da decisão49, pois
uma vez alocados os recursos não haveria a possibilidade de devolução desses aos
cofres públicos, considerando que o medicamento consumido não pode ser devolvido, o custo dele dificilmente será ressarcido e, por fim, a impossibilidade de interrupção do fornecimento diante do risco à saúde do paciente50.
A avaliação pelo julgador da necessidade de uma política pública prévia ao reconhecimento do direito à saúde (v) foi feita tanto nos casos de concessão quanto
nos casos de não concessão51. Em 66,7% das decisões de não concessão, os julgadores reconheceram que a efetivação do direito à saúde se dá a partir da implementaregulamentado pela Secretaria competente seria irrelevante, “senão ridículo, pois a vida humana não pode ser
avaliada por normas regulamentares” (Acórdão n. 328.026-5/9-00 de 26.08.2003, p. 6). Diversamente, ao fazer
referência à expressão “medicação necessária” presente na Lei 9.313/96 em seu art. 1º, entendeu outro juiz que
“a expressão ‘necessária’ significa medicação devidamente aprovada pelo órgão público de atribuição legal e
comercializada em território nacional” ( Voto Vencido do Acórdão n. 336.153-5/1-00). Outra questão decorrente é a discussão em torno da obrigação por parte do Estado de disponibilizar medicamentos importados, ou
seja, não comercializados “em território nacional”, como de fato era o caso tratado por esse voto vencido e pelo
Acórdão n. 263.265.5/6: “ressalte-se que os benefícios pleiteados são de valores altíssimos, pois são medicamentos de origem estrangeira, o que os vincula ao valor dolarizado, de exasperação constante”. Em suma, podemos elencar quatro considerações dos magistrados concernentes aos medicamentos pleiteados: exigência
de prescrição médica, inclusão na lista do Ministério da Saúde, regulamentação pela ANVISA e comercialização
em território nacional.
49 Segundo o artigo 273, §2º do Código de Processo Civil (Lei 5.869 de 11 de janeiro de 1973), não poderá ser
concedida a antecipação de efeitos da tutela jurisdicional se houver perigo de irreversibilidade.
50 Comumente, os acórdãos favoráveis à concessão de medicamentos, revelam que os juízes decidem pela defesa da vida em contraposição ao argumento processual da irreversibilidade: “o argumento consistente na possibilidade de lesão aos cofres públicos, decorrente da irreversibilidade da medida, não pode ter o condão de afastar a proteção do bem maior, que é a vida humana” (Acórdão n. 289.059-5/6-00). Ainda, “pondera-se que a reversibilidade dos efeitos da concessão é sempre relativa, exsurgindo inequivocamente, faltante o direito, a responsabilidade civil, e até criminal, de quem obteve desde logo o favor jurisdicional. Saliente-se ainda, quanto
aos medicamentos, como evidenciado são de aplicação paulatina, a qual desde que haja motivação legal para
tanto, pode ser interrompida a qualquer tempo, em beneficio da administração” (Acórdão n. 280.899-5/3-00).
Em um único acórdão, com o mesmo fundamento de não reversibilidade, houve ponderações quanto aos beneficiários da justiça gratuita, uma vez que não poderiam restituir o gasto público realizado em eventual ganho
do Estado ao final do processo (Agravo de Instrumento n. 263.265.5/6 de 24.06.2002, pp. 2 -3).
51 Durante a análise dos acórdãos observamos que os julgadores entendiam estar efetivando uma política pública já
definida, como demonstra o seguinte trecho: “Demais, a observância de uma política pública de saúde consubstanciada no cumprimento de normas legais (Leis 8080/90 e 9.313/96) não se confunde com a alegada ‘prerrogativa de
avaliar a conveniência e oportunidade de estabelecer quais são as prioridades administrativas’” (Acórdão n. 245.3185/7-00). Em outra decisão, os juízes entenderam que o direito à saúde não poderia estar sujeito à demora da proposição de política pública do Estado: “ademais, a saúde é direito subjetivo e não pode estar condicionada a progra-
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ção de políticas públicas. Já nos casos de concessão, apenas 28,5% fizeram esta consideração. A despeito de alguns acórdãos reconhecerem a existência de políticas públicas específicas para DST/AIDS, nenhum deles trata pormenorizadamente do desenho institucional da política pública praticada pelo Estado52.
Na classificação do direito à saúde como coletivo ou individual (vi), pudemos
observar que nos casos de concessão, em 93% das decisões os julgadores consideraram o direito à saúde como individual e apenas em 5% como coletivo. Os 2% restantes não fizeram considerações dessa ordem53.
Já nos casos de não-concessão, em 53% das decisões o direito foi definido
como coletivo, contra 33% de individuais54. A motivação processual, neste caso, correspondeu a 14%.
mas do governo” (Acórdão n. 319.978-5/1-00). No mesmo sentido, “exigir rapidez da Administração não é exigir demais; basta observar como é rápido o cumprimento de decisões favoráveis ao Estado, tais como desconto em folha,
inscrição de dívida. As previsões de políticas sociais e econômicas são de incumbência da Administração e não pode
o individuo ficar indefinidamente no aguardo de que elas ocorram” (Acórdão n. 334.408-5/1-00). Na ausência de política pública, manifestou-se “que os prejuízos irreparáveis invocados pelo Estado não podem subsistir quando se trata de atendimento de parcela da coletividade em dificuldade, isso sem dúvida representativo dos autores, que merecem apoio, na evidente ausência de entidades públicas trabalhando satisfatoriamente em seu benefício. A discricionariedade do Estado deve mesmo ser substituída, na hipótese em tela, pela salvaguarda maior do direito constitucional a saúde pública, impondo-se a administração ajustar as suas disponibilidades para o cumprimento da Carta
Federal” (Acórdão n. 260.163-5/9-00). Diversamente, decidiu-se, com fundo na separação dos poderes, que “a menos que se verifique a omissão do Estado em dar cumprimento a uma norma que pré-definiu a prioridade de investimento, não pode o juiz, substituindo-se ao Executivo, determinar como deva ser a política de saúde, se os recursos devam ser aplicados na compra de remédios, aleatoriamente, ou se na construção de hospitais, ou na campanha de vacinação, etc. (...) o ‘facere estatal’ é regrado por normas próprias de direito constitucional, administrativo,
financeiro e tributário, tendo-se consagrado no que toca ao aspecto financeiro, a obrigatoriedade da administração
pública em respeitar o orçamento aprovado pelo Legislativo e, em assim sendo, cada área de competência do governo possui verba assinada no orçamento, não podendo, à própria evidência, ir além daquilo que fixou, sob pena
de responsabilidade pessoal do administrador” (Agravo de Instrumento 230.548-5/1-00 de 06.092001, p. 2-3). Em outro caso, a decisão judicial condiciona a atuação do Judiciário, não a uma norma que pré-defina prioridade de investimento, mas sim, à lei que pré-determina o fornecimento de medicamentos: bastaria ao Estado “atentar para a existência de lei que manda fornecer o medicamento, de forma que o Poder Judiciário está apenas determinando seja
cumprida a lei” (Acórdão n. 260.163-5/9-00).
52 Nos casos em que o Estado já empreende uma política pública, como no analisado, verificamos que o Judiciário ignora por completo o modus operandi da mesma, não procurando adequar a esse suas decisões, quando possível.
53 Apenas consideraram questões processuais, como intempestividade, falta de prova documental (prescrição médica).
54 Em relatório, o juiz traz a argumentação da Fazenda do Estado, “entre o direito individual do agravado e o direito a coletividade, este deveria prevalecer, pois somente assim o Estado conseguiria garantir o acesso igualitário e universal dos cidadãos às ações e serviços da Administração na área da saúde” (Acórdão n. 248.966-5/500). Vale ressaltar, que este foi o único argumento não rebatido pela decisão judicial. Em voto vencido de outra decisão, alegou o juiz que “um tal direito subjetivo não é contemplado pela Constituição como sendo absoluto e incondicionado. A própria norma constitucional (art. 196) deixa claro se tratar de um direito perfeitamente vinculado ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. E mais, em se tratando de dever do Estado, que deve ser exercitado com base nos recursos previstos em
orçamento público, fica ínsito seu condicionamento a regras da execução deste” ( Voto Vencido do Acórdão n.
176.206-5/9-00). Nesse sentido, o Acórdão n. 223.617-5/0-00 e Acórdão n. 28.698-5/5-00, segundo o qual, “o Estado, no cumprimento do dever constitucional de proporcionar saúde à população, o faz através de política
planejada e normatizada em caráter geral. Daí porque, por óbvio, a assistência à saúde não pode ser exigida de
modo individualizado”.
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faculdade de direito de bauru
Concedidos
Não Concedidos
Todos
Somando-se concedidos e não concedidos, o conflito foi classificado entre individual ou coletivo em 96,5% dos casos, sendo os 3,5% restantes fundados em motivação processual. Do total de decisões, em 84,7% os juízes consideraram o direito
à saúde como individual, 11,8% como coletivo e 3,5% não fizeram esta consideração,
atendo-se a questões meramente processuais.
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Fundamentos Jurídicos
Quanto à utilização de critérios econômicos na decisão (vii), constatamos que
nos casos de não concessão, em 76,2% considerou-se que os recursos públicos são
escassos e que a administração está vinculada à previsão orçamentária. Nos casos de
concessão, este percentual caiu para 8,9%55.
Em relação à consideração de possíveis impactos sociais da decisão (viii) verificamos que, nos casos de não-concessão, os prejuízos para a coletividade, decorrentes da alocação de recursos de forma esporádica foram argüidos em 66,7% dos
casos, enquanto que nos casos de concessão em apenas 4,1%.
Concedidos
Não Concedidos
55 Nos casos de concessão, a maioria dos julgadores limitou-se a rebater os argumentos da Fazenda quanto a esse
critério, desconsiderando-o em suas fundamentações. Em um dos casos, foi apontada a falta de comprovação
da escassez dos recursos públicos: “Por outro lado, inexiste qualquer elemento nos autos a indicar a inexistência de verba para a aquisição de medicamentos necessários para salvar a vida do autor” (Acórdão n. 366.5125/5-00). Ainda, “o argumento consistente na possibilidade de lesão aos cofres públicos (...), não pode ter o condão de afastar a proteção do bem maior, que é a vida humana” (Acórdão n. 289.059-5/6-00).
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faculdade de direito de bauru
Dentre as decisões, as considerações de cunho extra-processual analisadas (o
impacto social, a política pública e os critérios econômicos) foram verificadas, simultaneamente, em 62% dos não concedidos e em 4% dos concedidos. Resta demonstrada a desconsideração, por parte dos julgadores, quando da concessão do medicamento, dos efeitos irradiados além da simples relação processual Estado-cidadão
autor da demanda.
As tabelas 1 e 2, nos anexos, demonstram quais argumentos foram utilizados
em cada decisão.
4.
ANÁLISE ECONÔMICA DAS DECISÕES JUDICIAIS
A idéia de se aplicar conceitos econômicos para entender, analisar e prescrever funções para o sistema jurídico deriva de uma série de diferentes correntes e tradições da teoria econômica. Sua origem, ainda que muitos a atribuam às premissas
neoliberais da Escola de Chicago dos anos 1960-70, decorre de princípios formulados nos séculos XVIII e XIX, sob influência de uma doutrina econômica marcada
pela Revolução Industrial e pelos pressupostos da filosofia econômica clássica56.
No entanto, ainda que se possam encontrar as raízes da análise econômica do
direito na filosofia e economia clássicas, foi somente após os anos 1960 que o pensamento adquire corpo de teoria e passa, até mesmo, a constituir, em algumas universidades norte-americanas, disciplina autônoma nas faculdades de direito e economia57. Isso se deve, principalmente, ao surgimento de duas obras que, se não definidas ainda como análise econômica do direito propriamente dita (Economic
Analysis of Law enquanto disciplina autônoma), significaram um fortalecimento da
interdisciplinaridade entre direito e economia. São os trabalhos de Ronald Coase,
The Problem of Social Cost, publicado no “Journal of Law & Economics” em 1960, e
56 Como poderá ser observado no desenvolvimento da teoria da análise econômica do direito, constatar-se-á claramente as influências que esta sofreu, principalmente, da escola econômica clássica de Adam Smith, das teorias marginalistas e do equilíbrio geral e do utilitarismo de Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Em linhas gerais, para Adam Smith, cada pessoa busca apenas maximizar o seu próprio ganho, escolhendo racionalmente
aquilo que lhe seja mais favorável ou menos danoso. Assim, da soma de interesses de cada indivíduo agindo
de maneira egoísta acaba-se por aumentar a riqueza e o bem-estar de toda a coletividade. Em outro ponto,
como se verá da teoria de Posner, sua análise econômica do direito assume a clara separação entre eficiência e
considerações distributivistas, própria da teoria neoclássica do equilíbrio econômico geral.
57 O fortalecimento da análise econômica do direito não é um movimento isolado, mas se consolida justamente
em um momento em que o direito, enquanto disciplina independente, vinha sendo cada vez mais contestado,
principalmente pelos teóricos do chamado Legal Realism. No início do século XX, a chamada escola “realista
do direito” afirmava que a capacidade de se prever resultados de casos concretos com base nas normas jurídicas era extremamente limitada. Nos casos mais difíceis as normas jurídicas, por si só, não conseguiriam prever
o resultado do conflito. Se os juristas estão interessados na previsibilidade do que as cortes decidirão, necessitam incorporar uma pesquisa sociológica e psicológica, desenvolvendo ferramentas teóricas que os permitiriam a prever resultados legais. Assim o Legal Realism era uma tentativa de introduzir outras ciências sociais
no campo do direito. Para uma descrição mais atual da teoria, ver Brian Leiter. “Rethinking Legal Realism: Toward a Naturalized Jurisprudence”. Texas Law Review 76 (1997): 267-315, ou “Legal Realism and Legal Positivism Reconsidered”. Ethics 111 (2001): 278-301.
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de Guido Calabresi, “Some Thoughts on Risk Distribution and the Law of Torts”, publicado no Yale Law Journal, de março 196158.
A partir de então, consolida-se a necessidade de um processo contínuo de
abordagens e estudos que procuram explicar a interação entre direito e economia,
pesquisa marcadamente influenciada pelos seus ideais econômicos neoclássicos59. A
análise econômica das regras e de institutos jurídicos, que em sua origem praticamente se limitava no campo da defesa da concorrência (sem dúvida a influência
mais marcante), espalha-se por diversos outros ramos do direito, como contratos,
responsabilidade civil, direito penal, direito internacional, entre outros60.
A análise econômica do direito pretende ser um modelo de compreensão da
realidade, em sua vertente positiva, uma forma de observar e prever como funciona, e em sua vertente normativa, como deve funcionar a sociedade com base em
premissas econômicas e como o sistema jurídico estimula ou não o comportamento social tendo em vista princípios econômicos61. Daí a razão pela qual a aceitação
dessa teoria depende em grande medida da identificação com as teorias e pressupostos econômicos que lhe deram origem.
Seja normativa ou positiva, ambas as vertentes de estudos da análise econômica do direito adotam as premissas do pensamento econômico neoclássico.
Cada indivíduo procura maximizar suas preferências individuais. As necessidades humanas conseguem ser racionalmente maximizadas pelos indivíduos, que são
capazes de saber o que lhes agrega mais utilidade. Idealiza-se um ser humano guiado por uma racionalidade extrema, cujas ações não se fundam em causas emocionais, mas na capacidade desse indivíduo em basear suas escolhas na adequação ra-
58 Ressalta-se, mais uma vez, que é praticamente impossível a tarefa de identificar as origens precisas e as bases
teóricas que deram nascimento a chamada teoria da Análise Econômica do Direito. Trabalhos como o de John
R Commons, Legal Foundations of Capitalism, de 1924, e de Robert Hale, Freedom Through Law: Public Control of Private Governing Power, de 1954, entre outros, também contribuíram significativamente para a análise do sistema jurídico sob um enfoque econômico. Porém, destacam-se os artigos de R. Coase e G. Calabresi
não só pela grande repercussão que obtiveram, mas também por terem influenciado mais especificamente a
principal escola dessa teoria, a Universidade de Chicago. Ver, para uma evolução histórica detalhada da teoria
da análise econômica do direito, Ejan Mackaay, “History of Law & Economics”, in Encyclopedia of Law and
Economics, 1999, disponível [online] in http://encyclo.findlaw.com/tablebib.html [20-08-2003].
59 Para ilustrar o pensamento da época, afirma Edmund Kitch, professor da Universidade de Chicago, “o interesse pela economia [por parte dos juristas] derivou essencialmente da idéia de que a partir do momento em que
o sistema jurídico intervém no sistema econômico nós temos a obrigação de estudar como fazê-la bem e podese reconhecer que os economistas sabem alguma coisa sobre como fazê-la de modo justo” Mercuro e Medema (1997: 54).
60 Apenas como exemplo de alguns desses estudos: R. Posner, Antitrust Law – An Economic Perspective (1978),
W. Landes e R. Posner, The Economic Structure of Tort Law (1987), G. S. Becker, Crime and Punishment: An
Economic Approach (1968), S. Shavell, An Economic Analysis of Accident Law (1987), J. Dunoff e J. Trachtman, An Economic Analysis of International Law – An Invitation and a Caveat (1998), entre outras tantas.
61 Nas palavras de C. K. Rowley, a análise econômica do direito “may be defined as the application of economic
theory and econometric methods to examine the formation, structure, processes and impact of law and legal
institutions” Rowley (1989: 125). Rowley, Charles K., “Public Choice and the Economic Analysis of Law”, in Nicholas Mercuro (ed.), Law and Economics. Boston: Kluwer Academic Publishers, 1989: 123-173.
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cional e eficiente entre meios e fins. Nesse sentido, o agente, racional e bem-informado, estaria sempre apto a analisar se o benefício obtido ao praticar determinada
conduta seria maior que o custo com o qual deverá incorrer62.
Como decorrência da premissa anterior, pressupõem os neoclássicos que,
sendo os indivíduos capazes de maximizar suas satisfações pessoais através de uma
análise custo-benefício, conseqüentemente esses indivíduos agiriam racionalmente
em função de incentivos de preços. Deste modo, seria o sistema de preços do mercado que serviria de parâmetro para a análise de custo-benefício e, em última instância, pelo comportamento dos indivíduos. Tendo em vista o exemplo da nota anterior, as sanções impostas pelo direito (multa pecuniária, prestações de serviços comunitários, detenção) seriam os preços estabelecidos pelo sistema jurídico em função de comportamentos ilícitos, que seriam quantitativamente confrontados com os
benefícios auferidos. Assim, segundo Posner, nesse ponto, caberia ao direito estabelecer a correta relação de equivalência entre o comportamento ilícito do indivíduo
e a sanção imposta, pois essa “justa”, ou melhor, eficiente proporção – quase que
uma lógica econômica de prestação e contraprestação, através de punições e recompensas – incentivaria os comportamentos humanos63.
Por fim, como conseqüência lógica das premissas anteriores, as normas jurídicas devem ser formuladas e interpretadas em função da eficiência de sua aplicação,
como se verá adiante.
Ainda que existam diferentes correntes e teóricos da análise econômica do direito, foi Richard Posner, com sua obra Economic Analysis of Law (1972), quem
transformou a análise econômica do direito num dos debates mais controvertidos
entre economistas e juristas. Posner parte de uma afirmação categórica: as regras de
direito devem ser eficientes e com base nesse valor devem ser interpretadas. E eficiência, nesse contexto, significa a maximização do bem-estar social64.
62 O motorista de um veículo, por exemplo, somente teria incentivo de parar em um sinal vermelho se o custo
da multa de trânsito fosse maior que o benefício que poderá obter se não respeitar as regras de trânsito. Toda
opção por comportamentos ilícitos ou respeito às regras dos indivíduos em sociedade seria determinada por
essa análise de custo-benefício por parte de agentes racionais, que têm como objetivo último maximizar a satisfação individual.
63 Observe outro exemplo formulado por Posner (1998: 5-6), com base na famosa decisão do juiz Learned Hand
(United States vs. Carroll Towing Co., 159 F.ed 169, 2sd Cir. 1947). Considere a decisão de um indivíduo de evitar um acidente. O acidente ocorrerá com uma probabilidade P, e assumindo que se ele ocorrer terá um custo L (loss). Assume-se também que eliminar a possibilidade desse acidente ocorrer representa um custo B (burden) sobre o potencial infrator. Tem-se assim que o custo de se evitar o acidente será menor que o custo do
acidente (ou o benefício de se evitar o acidente) se B for menor que L multiplicado por P (B<PL). Se forem
observadas essas condições, o “potencial infrator” será considerado negligente se não incorrer nos custos de
evitá-lo, seja a probabilidade do acidente ocorrer muito pequena (caso o custo do acidente “L” seja muito alto),
ou mesmo o custo de se evitar o acidente seja muito alto (caso o custo do acidente ou sua probabilidade forem maiores ainda). Percebe-se claramente que essa fórmula depende essencialmente do fato do indivíduo racional conhecer todos os valores e ter todas as informações.
64 Ainda que o autor em diversas obras negue o rótulo de utilitarista, parece clara a influência dessa filosofia nas
formulações de Posner. Dois são os principais fundamentos de sua estrutura. Em primeiro lugar, nas bases das
teorias utilitaristas se encontram fins coletivos aos quais devem ser subordinados os interesses individuais. Em
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Para Posner, portanto, o principal objetivo do sistema jurídico deve ser a “maximização da riqueza”, obtida através dos incentivos que o sistema jurídico provoca
no comportamento dos indivíduos (e é nesse sentido que as normas jurídicas devem ser interpretadas e aplicadas pelo juiz). Deve o direito, desde seu processo legislativo até a sua concretização pelos tribunais, incentivar a escolha individual e voluntária dos agentes de forma a maximizar suas utilidades individualmente, pois a
somatória da maximização dos interesses individuais terá como conseqüência a maximização do bem-estar coletivo65. Se para Posner eficiência é “maximização de riqueza”, essa é vista por ele como a medida da disposição agregada dos agentes em
pagar por aquilo que desejam (willingness to pay). Assim, os juízes devem escolher
a norma judicial que maximize a relação custo-benefício mensurada pela soma individual de “disposição em pagar”.
Diversas foram as críticas sofridas pela visão que a teoria da análise econômica do direito pretendia incorporar ao sistema jurídico. Muitas dessas críticas se devem aos pressupostos utilitaristas de suas ideologias66. A premissa do agente raciosegundo lugar, o utilitarismo encara o indivíduo como a expressão da utilidade, da satisfação. Quando se analisa o valor de uma ação, seja o consumo de um certo bem, uma contribuição à caridade, a votação em algum
candidato, a utilidade do ato é o fundamento da sua moralidade, não só para o agente que o pratica, mas também para todos os afetados por suas conseqüências. Dessa forma, o princípio utilitarista prevê que a limitação
à liberdade individual por parte do Estado pode ser considerada como justa na medida em que suas conseqüências são úteis, ou seja, na medida em que promove o maior bem-estar ou felicidade da coletividade (o que
for mais útil para o maior número de pessoas, o que proporcionar a maior soma de bem-estar deveria ser eleito como a ação mais justa). Decorre disso que as decisões tomadas são boas ou ruins se suas conseqüências
forem as melhores possíveis. Essa é justamente a proposição de grande parte das teorias normativas da escola
da análise econômica do direito, que pretendem avaliar qual resultado é socialmente mais desejável, com base
em comparações de bem-estar individual. Essas medidas de bem-estar foram facilmente associadas a métodos
econômicos como o ótimo de Pareto e, posteriormente, o teorema de Kaldor-Hicks, que se transformaram em
importantes instrumentos da análise econômica do direito.
65 Como explica Jules Coleman acerca da teoria de Posner: “Posner’s most basic contribution is the following.
Where the condition of the Coase theorem – zero transactional costs and cooperative behavior – are satisfied,
the law need not assign any particular property rights. Market exchange will always insure efficiency. When these condition are not met, the law should promote efficiency by ‘mimicking the market’. By ‘mimicking the market’, Posner means that the relevant legal authorities ought to assign property rights to those parties who
would have secured them through market exchange. (…). That just means, assign the right to the party who
would have paid more for it”. Coleman (1984: 658-662).
66 Para o filósofo liberal John Rawls, um dos mais expressivos críticos do utilitarismo (A Theory of Justice. Massachusets: Harvard University Press, 1971), a justiça individual e distributiva tem prioridade sobre a eficiência, já
que a função mais importante do sistema jurídico é a garantia dos direitos individuais. Rawls parte da idéia de
que todas as leis, instituições e políticas devem ser pautadas pelo ideal de justiça. Por outro lado, identifica um
problema: como os membros de uma sociedade poderiam concordar com o que seria a justiça? Para solucionar o problema, ele propõe a construção hipotética da “posição original”, claramente de influência contratualista. Imagine-se que ao nascermos são escolhidos os princípios de justiça social, ou seja, somente nesse momento inicial, a “posição original”, são formuladas as regras de justiça distributiva daquilo que será produzido
pela sociedade. Ninguém sabe, portanto, qual será o destino da riqueza e qual será sua posição na sociedade.
Essa ignorância do indivíduo na “posição original” é o que Rawls chama do “véu da ignorância”. Assim, colocado nessa situação de ignorância quanto à distribuição da riqueza, o indivíduo concluirá que o melhor para ele
será dividir os bens de uma maneira mais justa do que correr o risco de sair no prejuízo e com possibilidade
de estar em último na distribuição de renda. Desse modo, ao estabelecer qualquer política social, ao invés de
maximizar a soma de todas as utilidades, deve-se preocupar em aumentar o bem-estar daqueles que estão em
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nal, capaz de maximizar suas satisfações, também procurou ser rebatida pela teoria
da racionalidade limitada67. Além disso, as maiores críticas ao pensamento neoclássico tradicional vieram da chamada “nova economia do bem-estar”, em antítese com
os estudos utilitaristas de maximização da utilidade total e das análises de custo-benefício, e da “teoria da escolha social” e de suas evoluções, procurando incorporar
o elemento ético ao pensamento econômico68-69.
A análise econômica do direito não se limitou às formulações de Posner e aos
criticados pressupostos neoclássicos. Seja como solução a essas críticas, seja como
evolução das teorias de Posner, diversas outras correntes propuseram novas formas
de estudar a relação entre direito e economia70.
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pior situação social. Essa regra é chamada de critério maximin. O utilitarismo estaria exclusivamente voltado
para a maximização da felicidade coletiva, sem se preocupar com o modo como esta é distribuída, se justa ou
injusta, tendo em vista uma distribuição inicial. Dessa forma, Rawls acredita que nenhum objetivo que sirva a
um dito bem-estar geral pode justificar uma violação aos direitos individuais. Portanto, a solução mais justa –
e de caráter menos utilitarista – é de que as desigualdades sociais e econômicas devem ser organizadas, de
modo que a maior vantagem seja em favor dos menos privilegiados. Essa teoria individualista, ainda que pareça excessivamente radical, tem seu mérito na crítica aos excessos utilitaristas e conseqüencialistas.
O conceito de racionalidade limitada foi desenvolvido por Herbert Simom, “From substantive to procedural racionality”, S. Latis, Method and Appraisal in Economics. Cambridge: Cambridge University Press, 1976 e “Rationality
in Psychology and Economics”. Foundations of the Economic Approach to Law. New York/Oxford: Oxford University Press, 1998. Os indivíduos nem sempre são racionais e capazes de ter uma idéia clara do que traz satisfação.
Não são capazes de estabelecer um ranking de satisfação (utilidade) para se fazer cálculos de custo-benefício e adequar seus comportamentos numa coerência entre meios e fins. A incerteza do ambiente institucional e a informação imperfeita de que dispõe os agentes representam limitações ao raciocínio e a uma possível maximização de
suas preferências. Rejeita-se, portanto, a premissa neoclássica de escolhas racionais e maximizadoras.
A teoria da escolha social nasceu com os estudos de Kenneth Arrow, (Social Choice and Individual Values,
New York, Wiley, 1951), pretendendo conhecer como podem se agregar as preferências individuais a uma preferência social. No caso geral de interesses diferentes, a teoria da escolha social procura analisar a relação entre preferências individuais e decisões coletivas, que afetam a todos. No entanto, no caso da análise econômica do direito, interessa-nos muito mais a evolução dessa teoria, desenvolvida principalmente por Amartya Sen
(Choice, Welfare and Measurement. Cambridge/London: Harvard University Press, 1997). Em linhas gerais, o
economista indiano procura negar a racionalidade das escolhas motivadas na pura maximização do interesse
individual. O comportamento humano, diferente do que defende os neoclássicos, é movido por uma pluralidade de motivações – muitas vezes altruístas e ilógicas – e não apenas pelo egoísmo ou auto-interesse. Para
Sen, diante de uma realidade complexa, modelos econômicos devem incluir outros elementos na base de suas
decisões. Seu modelo pretende incorporar novos elementos à própria racionalidade neoclássica, como valores
éticos e princípios distributivistas.
Entre os juristas, um dos maiores críticos e interlocutores da análise econômica do direito é o jusfilósofo Ronald Dworkin. Com as críticas de Dworkin, inicia-se um interessante debate acadêmico entre este, de um lado,
e Posner e Calabresi, de outro. Cf. Dworkin (1980a: 191-226). Como contestação a Dworkin, ver Calabresi
(1980: 553-562). E para as respostas de Dworkin (1980b: 573-590).
Várias são as contribuições, por exemplo, da teoria dos jogos (ver Gertner, Baird e Picker, Game Theory and
the Law. Cambridge/London: Harvard University Press, 1994) e da teoria dos comportamentos estratégicos
(ver A. W. Katz. Foundations of the Economic Approach to Law. New York/Oxford: Oxford University Press,
1998), para a evolução da teoria da análise econômica do direito, mas merece destaque principalmente a chamada New Institucional Economics, que procura estudar o papel das instituições e organizações sociais sobre
os impactos econômicos que dela derivarão e seus efeitos sobre a alocação de recursos e os incentivos sobre
o comportamento dos agentes privados. Nesse novo enfoque (que ainda que seja de origem neoclássica, procura negar alguns de seus pressupostos), a análise econômica deve levar em consideração o ambiente normativo no qual vivem os indivíduos (ver Douglass C. North. Institutions, Institutional Change and Economic Performance. Cambridge: Cambridge University Press, 1990).
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Embora existam inúmeras outras reformulações da teoria da Law and Economics, para os objetivos desse trabalho, é interessante observar a revisão de algumas
de suas bases teóricas proposta por Steven Shavell71. O principal contraponto de sua
teoria sobre a análise econômica do direito é que Shavell adota o critério de bemestar social (welfarism) ao invés da comparação posneriana de custo-benefício.
Para Shavell, a medida de bem-estar social requer a análise do bem-estar de cada
um dos indivíduos72, diferindo da análise de custo-benefício pretendida por Posner.
Para este, cada indivíduo possui uma identificação particular de seus interesses, em ordem de preferência. Grosso modo, como visto, a utilidade de cada indivíduo é medida
pela sua disposição a pagar por determinado bem ou serviço (willingness to pay). Depois, as preferências de cada indivíduo são agregadas em um ranking de preferências
de toda a coletividade. Para agregar as preferências individuais, o critério de custo-benefício simplesmente pretende a somatória de cada willingness to pay73.
Por outro lado, para o argumento do bem-estar como critério para a análise
econômica das normas jurídicas, a utilidade é medida através do bem-estar individual de cada indivíduo, incluindo tudo o que forme essa preferência (suas preferências econômicas, morais, sentimentais, etc)74. Por exemplo, as escolhas preferenciais
71 Cf. S. Shavell, Founddations of Economic Analysis of Law, Cambridge, Harvard University Press, 2002 e “Welfare Economics, Morality and the Law”, in Discussion Paper n˚ 409, Harvard John M. Olin Discussion Paper Series, 2003, disponível [online] in http://www.law.harvard.edu/programs/olin_center/ [20-08-2003].
72 “The term welfare economics refers to a general framework for normative analysis, that is, for evaluating different
choices that society may make. Under the framework, the social evaluation of a situation consists of two elements:
first, determination of the utility of each individual in the situation, and second, amalgamation of individuals’ utilities in some way. (…) According to the welfare economic framework, the social evaluation of situations is assumed to be based on individual well-being. In particular, it is presumed that the social evaluation, labeled social welfare, depends positively on each and every individual’s utility – social welfare is raised when any individual’s utility
increases — and does not depend on factors apart from their utilities”. Shavell (2003: 5-6).
73 Os problemas desse critério já foram em grande parte analisados. Destacam-se aqui somente as principais conclusões. Em primeiro lugar os abstratos níveis de preferência não possuem nenhum significado. Se o indivíduo
A estipula um índice 2 para uma situação X, um índice 4 para uma situação Y, e um índice 16 para uma situação Z, não se pode concluir nada sofre suas preferências. Não se pode dizer que este indivíduo irá preferir Z a
Y seis vezes mais que ele prefere Y a X. Além disso, a análise de custo-benefício pretende adotar um método
de comparação entre as preferências de cada indivíduo tendo em vista a distribuição de renda existente no momento. Entretanto, esse critério não identifica objetivos políticos e sociológicos, como a distribuição de riqueza. Deste modo, a maximização da eficiência, alocando recursos naquilo que for mais valioso (no sentido de
willingness to pay), não levaria uma maximização do bem-estar. Cf. “Economic Analysis of Law”, verbete da
Stanford Encyclopedia of Philosophy disponível [online] http://plato.stanford.edu/entries/economic-analysisof-law/ [20-08-2003].
74 “The utility of a person is an indicator of his well-being, whatever might constitute that well-being. Thus, not
only do food, shelter, and all the material and hedonistic pleasures and pains affect utility, but so also does the
satisfaction, or lack thereof, of a person’s aesthetic sensibilities, his altruistic and sympathetic feelings for others, his sense of what constitutes fair treatment for himself and for others (a point that will be of particular importance for us), and so forth”. Segue o autor: “More precisely, a utility indicator or utility function attaches a
number to each situation in which a person could find himself, and in such a way that higher numbers are associated with higher well-being. Thus, if situation X is preferred to situation Y by a person, the utility associated with X must be higher than that associated with Y. For instance, 2 might be the utility of X and 1 that of Y,
or 20 that of X and 12 that of Y. Many different possible utility functions can represent the same ordering of
possible situations by an individual according to his well-being”. Shavell (2003: 5).
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de um indivíduo podem incorporar considerações de justiça social e, até mesmo, de
preservação do próprio bem-estar de outros indivíduos.
Com base nessas premissas, afirma Shavell que a forma de distribuição da renda
torna-se importante para o bem-estar social. A distribuição de renda afeta a distribuição
de utilidade. Primeiro, para uma pessoa pobre um dólar a mais vale muito mais do que
um dólar a mais para uma pessoa rica. Segundo, a distribuição de renda afeta o bem-estar social, pois a utilidade individual pode depender da distribuição de renda da população como um todo, simplesmente por um sentimento de altruísmo ou compaixão. Nesse sentido, mesmo se um indivíduo rico e um indivíduo pobre percebem a mesma utilidade marginal por um dólar a mais, ainda assim o bem-estar social pode ser aumentado
com uma distribuição de renda mais igualitária, que beneficie o indivíduo pobre. Concluise, dessa forma, que o que vale não é simplesmente a maximização da satisfação coletiva,
mas também o modo como esta é distribuída, pois o modo como a satisfação é distribuída determina a proporção da felicidade e a medida do bem-estar. Como a justiça na distribuição da felicidade é condição do bem-estar, o caráter distributivo estaria implícito.
Entretanto, é a conclusão de Shavell o que mais nos interessa. Para ele, a distribuição de renda não deve ser feita através da aplicação de normas jurídicas. Utilizá-las como instrumento de distribuição de rendas acabaria por distorcer os incentivos dos indivíduos, além de ser uma técnica trabalhosa e de difícil operacionalização, cujos resultados podem demandar mais prejuízo que os benefícios obtidos.
Não poderia um juiz – não por falta de competência conferida por lei – definir métodos de distribuição que possibilitariam que o bem-estar fosse transferido com o
mínimo de perda possível75. A função de alocar recursos escassos de maneira eqüi75 Em interessante artigo para a Folha de São Paulo Hideki Kanamura (2003: A3), médico, consultor em administração de serviços de saúde e ex-Superintendente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP,
chama a atenção para os problemas que a utilização do Poder Judiciário como um dos principais instrumentos
pelo qual pacientes ou entidades assistenciais procuram efetivar seu direito com relação a uma prestação integral de oferta de medicamentos e a realização de exames complementares pela rede pública de saúde: “Num
país onde ainda se morre de desnutrição, por falta de água tratada ou por pura ignorância de preceitos sanitários primários, é difícil não questionar decisões que priorizam gastos em saúde para tratar o raro, quando o
mesmo recurso poderia beneficiar milhares que vivem a doença como regra. Doenças que no mundo desenvolvido já não existem e que em tese são muito simples de tratar. Não é demais lembrar que, neste momento,
o governo tenta combater a fome endêmica medicando os atingidos com uma ajuda de R$ 50 por família mensalmente, talvez menos de R$ 100 por pessoa ao ano.” Destinar recursos para a saúde de forma justa e eficaz é
o grande desafio para um Estado com demandas maiores que a disponibilidade. Gastar com tratamentos em
grande escala é uma decisão que não pode ser tomada sem se avaliar a relação custo/benefício e uma adequada análise da relação custo/efetividade”. Segue constatando que: “Para o gestor do sistema de saúde, que foi
treinado para pensar a saúde no coletivo, não é confortável que determinem destinar recursos para ações que
considera pouco efetivas. Como também o Estado não está descumprindo sua obrigação quando escolhe deixar de atender uma ação entre tantas, já que não há como atender todas. Estaria sim malversando se destinasse para centenas, ineficientemente, recursos antes programados para beneficiar milhares. Claro está que o SUS
não suportará aumentar despesas por conta da ampliação não-controlada de procedimentos médicos caros
sem o equivalente retorno em termos populacionais. Por quanto tempo ainda será possível administrar a escassez com tamanhos atropelos? Por pouco tempo, se algo não for feito. O que pode ser feito? Emendar a Constituição? Introduzir mecanismos limitadores à lei que regulamenta o sistema? Definir em lei as ações possíveis
de serem assumidas como política pública setorial?”.
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tativa e eficiente ficaria a cargo do sistema tributário e de políticas públicas específicas e devidamente estruturadas para tal fim76. O tratamento individualizado dado
pelo Poder Judiciário a questões de natureza eminentemente coletiva muitas vezes
despreza os efeitos que gerariam para além do processo. Apresenta-se, em sua quase totalidade, incapaz de compreender e se ajustar a uma realidade que necessita de
ações que busquem a satisfação do social77.
É claro que não se pode chegar à absurda conclusão de que políticas distributivas e de transferências de recursos para objetivos sociais sejam ineficientes e provoquem sempre mais perdas coletivas do que benefícios. Investimentos públicos e
esforços governamentais no sentido de se criar programas que beneficiem comunidades específicas, certos segmentos da população, e determinados grupos necessitados, ainda que representem sacrifícios e custos na sua implementação, produzem
significativas externalidades positivas para aqueles que recebem o benefício, mas
também grande parte desse ganho é recebida indiretamente pela coletividade78. Na
área da saúde pública, uma política estruturada para promover universalização de
acesso e combate de epidemias.
No caso do programa de fornecimento de medicamentos a portadores do vírus HIV, a economia que se tem feito com a redução do número de internações hospitalares e a queda nas taxas de mortalidade em função das doenças oportunistas
são indicadores do sucesso de sua implementação. Não parece restar dúvida a direta relação entre a política de distribuição de medicamentos, a estabilização no número de novos casos e o aumento da qualidade de vida de portadores do HIV. Essa
forma de política de transferência de gêneros contribui diretamente para elevar a
qualidade de vida dos indivíduos e produz eficiência, mesmo no sentido neoclássico tradicional.
De qualquer forma, independentemente de todos as críticas que surgiram
contra a visão da análise econômica do direito, não se pode negar o seu grande mérito: estabelecer um critério de decisão e uma regra útil na argumentação, que procura romper com a pura análise ex ante da norma jurídica – que vê o tempo do presente para o passado – para se perguntar quais os incentivos e conseqüências que
irá provocar no futuro. Suas formulações mais modernas e realistas procuram cha76 Ver Kaplow e Shavell (1994: 667-681).
77 No estudo de caso realizado ao longo do trabalho, é interessante observar duas situações diferentes: a primeira refere-se à concessão de medicamentos não compreendidos inicialmente na lista do Ministério da Saúde, e
em segundo, quanto aos medicamentos que já faziam parte dessa mesma lista. O fato dos medicamentos pedidos não fazerem parte da lista, ou seja, não estarem inseridos na política publica desenvolvida pelo Executivo, demonstra de maneira clara que quando o Judiciário concede o medicamento ele não está efetivando essa
política pública, mas sim decidindo como recursos serão realocados. Por outro lado, quando os juizes decidem
pelo fornecimento de medicamentos que constavam na lista, esses estariam apenas efetivando uma política pública já definida. Nesse último caso, as normas jurídicas não estariam sendo aplicadas para objetivos distributivos, mas simplesmente efetivando uma distribuição já estipulada pela administração pública.
78 Para um estudo sobre os benefícios econômicos e sociais de políticas redistributivas, ver Rebecca M. Blank,
“Can Equity and Efficiency Complement Each Other?”, NBER Working Paper 8820, 2002.
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mar a atenção para um novo critério de decisão (economics matter) que será aplicado em conjunto com outros objetivos e valores.
Os modelos propostos pela análise econômica do direito pretendem incorporar – e ressalta-se, não substituir – uma nova racionalidade no modo de decidir dos
juristas. Muitas vezes, na prática, o juiz primeiro procura identificar, por critérios
pessoais, quem está certo, quem ele deve defender, e somente depois de já decidida a causa e tomada a sua decisão interna, ele buscava por argumentos jurídicos
para fundamentar sua decisão. Como contraponto, no âmbito das decisões judiciais,
as preocupações da análise econômica do direito fazem com que o juiz deva ter
consciência do impacto econômico-social de suas decisões. Afasta-se da norma jurídica suas funções exclusivas de bloqueio e de resguardo de direitos – como condição para o exercício de determinado direito, independente dos fins a que se destina –, para incorporar a ela uma estrutura finalística, de eficácia por estímulos a certos comportamentos desejados79. Não se trata de uma mera condição ou limite imposto pela legalidade para o exercício de determinado direito, mas também uma
avaliação da adequação de seus objetivos. É importante destacar que não se pretende que a atuação do magistrado afaste ou negue princípios jurídicos e fundamentos
valorativos, não baseados na racionalidade econômica, mas apenas que sua conscientização econômico-social aumente as suas possibilidades de escolha e decisão
no caso concreto, sempre de forma fundamentada, afastando assim a pura submissão à lei e a regras que impõem uma aplicação a priori.
5.
CONCLUSÃO
5.1. O direito à saúde como direito social
O reconhecimento de catálogos amplos e genéricos de direitos sociais na
Constituição criou um ambiente institucional favorável para que o Poder Judiciário
passasse a figurar como um importante ator na implementação e fomento de políticas públicas. De um modelo normativo caracterizado pela imposição de limites à
atuação do Estado, preocupando-se exclusivamente com a proteção do indivíduo
em face do mesmo, passa-se, com a positivação de direitos sociais, a se exigir prestações proporcionadas pelo Estado (dever de fazer ou obrigação). O agir estatal positivo, ao ensejar a criação e efetivação de políticas públicas, faz com que esses direitos adquiram caráter coletivo.
O tratamento individualizado é incapaz de compreender e se ajustar a uma
realidade que necessita de ações estatais que busquem a satisfação do social. Entretanto, as implicações coletivas desses direitos sociais requerem, por sua vez, que se
reconheçam os problemas na operacionalização e concretização dos mesmos.
79 Cf. T. S. Ferraz Júnior, Teoria da Norma Jurídica. 1ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1978, pp. 109 e ss.
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365
Assim, num panorama de déficit público, um mínimo de racionalidade no
modo como os recursos serão alocados é condição necessária à eficiência dos programas sociais. Nesse sentido, ao ser atribuída ao Poder Judiciário a função de controle de políticas sociais, torna-se necessária a utilização de critérios econômicos em
sua ratio decidendi.
Tendo em vista esses novos parâmetros necessários à cognição jurisdicional
que tenha como objetivo a efetivação de direitos sociais mediante a revisão (positiva ou negativa) de políticas públicas, a análise empírica realizada demonstrou a inadequação no tratamento dado pelo tribunal à questão da política de fornecimento
de medicamentos no âmbito do programa DST/AIDS. Em 66,7% das decisões de
não-concessão, os julgadores reconheceram que a efetivação do direito à saúde se
dá a partir da implementação de políticas publicas. Já nos casos de concessão, apenas 28,5% fizeram esta consideração.
Identificamos, também, a possibilidade da distorção de políticas sociais distributivas quando da atuação do Judiciário, que reproduz o fenômeno da concentração de gastos públicos em camadas sociais de maior renda (produzindo, portanto,
efeitos regressivos quase nunca desejados pelos juízes). No que se refere à questão
do gasto social, observa-se em estudo da CEPAL80 que, entre países latino-americanos, o Brasil é o que mais destina recursos à área social. A análise detalhada refletiu
que, muito embora os investimentos na área social fossem superiores aos padrões
regionais, “o efeito desses gastos sobre os principais indicadores de bem estar social
têm ficado muito aquém do esperado”81. Com base em estudo do Banco Mundial
acerca do gasto público nacional por faixa de renda familiar, concluiu-se que um dos
principais fatores que determina esse quadro de ineficiência dos programas sociais
é a concentração dos mesmos na camada social de maior renda82. Levar a questão de
alocação de recursos na área social ao Judiciário pode acarretar conseqüências semelhantes ao fenômeno acima descrito, ou potencializar seus efeitos, vez que os altos custos do acesso à Justiça83, no Brasil, determinariam a restrição da tutela judicial à classe social de maior poder aquisitivo, capaz de arcar com esses custos.
Por fim, constatou-se que a tutela jurisdicional referente à política pública em
questão não respeita sua natureza coletiva, tratando o conflito de maneira fragmentada, ainda nos moldes liberais clássicos. Em outros termos, há uma contradição entre interesses individualmente postulados, a política pública e o papel desempenhado pelo Judiciário. A emergência desses direitos de caráter coletivo trouxe consigo
80 Gasto Público em serviços sociais básicos na América Latina e Caribe: análise sobre a perspectiva 20/20, Nações
Unidas, CEPAL, 1999, apud Lanzana (2002: 29-ss).
81 Lanzana (2002; 30).
82 Cf. Lanzana (2002; 31). Os dados da pesquisa do Banco Mundial demonstraram que os 41% de menor renda
recebem apenas 25% do total dos gastos sociais, enquanto aos de maior renda (apenas 16% da população) destinam-se 34% do total destes gastos.
83 “‘O acesso à Justiça é oneroso, ocasionando uma seleção social de seus beneficiários’, sugerindo que o custo
pode ser um importante limitante do acesso ao judiciário”. Pinheiro (2003: 13).
366
faculdade de direito de bauru
a necessária construção, no plano processual, de mecanismos que possibilitassem a
defesa desses direitos84.
O presente estudo de caso leva-nos a concluir que a tutela individual do direito à saúde não é a mais adequada, pois desconsidera sua natureza. As decisões judiciais analisadas, que concederam ou confirmaram a concessão de medicamentos solicitados pelo autor da ação individual, desprezaram em sua quase totalidade os efeitos que gerariam para além do processo. O tratamento individual de um conflito de
natureza coletiva provoca distorções sociais e econômicas. Não se tem em mente
que a questão é a disputa por recursos escassos (orçamento) destinados a políticas
públicas que concretizam direitos sociais.
A tutela coletiva apresenta-se como uma forma efetiva de provocar o Executivo a (re)elaborar sua política pública, pois permitiria maior previsibilidade e
possibilidade de programação desse, uma vez que adquiria uma dimensão coletiva e não de prestação individualizada esporádica. Outros dois fatores positivos
seriam a possibilidade de extensão dos benefícios à coletividade e não somente
àqueles que figuraram como partes processuais em ações ordinárias85 e a redução do custo processual e da sobrecarga do Judiciário. Além disso, evitar-se-iam
decisões conflitantes.
Como caráter exemplificativo, um instrumento processual hábil para a concessão
dessa tutela é a ação civil pública ou coletiva. Por meio dessas, atores determinados
provocam o Judiciário para intervir na garantia desse interesse86. A vantagem dessa tutela é a existência de um procedimento prévio (inquérito civil), que traz elementos de
84 A dogmática jurídica define o direito coletivo, stricto sensu, como aquele de natureza indivisível de que
seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas (no caso soropositivos) ligadas entre si por uma relação
jurídica base ou com a parte contrária (no caso, a ligação é entre o grupo e o Estado na concretização do
direito à saúde). Classificamos o direito à saúde no caso concreto como coletivo e não difuso (caracterizado pela indeterminação dos titulares e inexistência de relação jurídica base entre eles, no aspecto subjetivo, e pela indivisibilidade do bem jurídico, no aspecto objetivo), uma vez que a correta distinção jurídica entre ambos está intimamente relacionada à definição do objeto no âmbito do processo, o que obrigatoriamente restringiria seus efeitos a um determinado grupo (indivíduos portadores do vírus HIV ). Não
há que se falar aqui em direitos individuais homogêneos já que a natureza deste é essencialmente individual, apenas recebeu tratamento jurisdicional coletivo por disciplina legal. Interessante ressaltar que, dentre os casos estudados, nenhum juiz analisou a possibilidade de tutelar coletivamente interesses individuais homogêneos.
85 Nesse sentido, Kazuo Watanabe: “A estratégia tradicional de tratamento das disputas tem sido de fragmentar os conflitos de configuração essencialmente coletiva em demandas-átomos. Já a solução dos conflitos na dimensão molecular, como demandas coletivas, além de permitir acesso mais fácil à justiça, pelo
seu barateamento e quebra de barreiras socioculturais, evitará a sua banalização que decorre de sua fragmentação e conferirá peso político mais adequado às ações destinadas à solução desses conflitos coletivos”. (Kazuo Watanabe. “A defesa do consumidor em juízo”, in Ada Pellegrini Grinover et. al., Código de
defesa do consumidor – comentado pelos autores do anteprojeto, 6ª. Ed., São Paulo, Forense Universitária, 2000, pp. 708-709).
86 No presente estudo de caso, a atuação de atores como o Ministério Público e as associações representativas dos interesses dos portadores do vírus HIV não exerceram um papel de destaque. Na amostra dos
acórdãos analisados, encontramos apenas uma ação ordinária em que uma associação representativa figurava como parte.
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n.
42
367
ordem técnica87 sobre o medicamento, que motivam o Ministério Público para a propositura da ação e, posteriormente, informam o juiz ao analisar o caso concreto. Outro
dado relevante refere-se ao fato de que a decisão judicial de uma ação civil pública é extensível a todo grupo dos soropositivos, uma vez que a decisão de condenação do Estado é genérica; ou seja, estabelece somente a responsabilidade e obrigação do mesmo em disponibilizar na rede pública determinado medicamento.
Contudo, tanto a tutela coletiva quanto a individual sofrem de um mesmo problema: a desconsideração do impacto econômico da decisão judicial, uma vez que
há efetiva alocação de recursos pelo Judiciário com resultados macroeconômicos
que podem demandar mais prejuízo que os benefícios obtidos. Continuaria atribuída ao Poder Judiciário uma difícil tarefa de definir métodos de distribuição que possibilitassem que os recursos fossem transferidos com o mínimo de perda possível.
Acrescente-se que a decisão judicial está sujeita à imutabilidade de seus efeitos, o que não ocorre com as decisões político-administrativas. Essas se revestem de
um caráter mais flexível e dinâmico para enfrentar contingências sócio-econômicas.
5.2. Conclusões finais
Concluímos que, ao analisar os conflitos de forma individualizada (o que ocorreu em 84,7% dos casos), o Judiciário não observou critérios e efeitos sócio-econômicos inerentes à decisão.
Desse modo, poder-se-ia considerar a tutela coletiva como uma alternativa válida. Para a realização de modo eficiente de um ideal distributivo de justiça, contudo, o tratamento coletivo de questões envolvendo direitos sociais não é suficiente.
Conforme verificado na análise empírica empreendida, e de acordo com o arcabouço teórico apresentado, configura-se indispensável ponderar os aspectos extra-processuais dessas questões.
A efetivação dos direitos sociais requer a elaboração e a execução de políticas
públicas, tendo em vista limitações orçamentárias e prioridades políticas: o tratamento judicial responsável referente a direitos sociais exige a reflexão em torno das
ações governamentais, suas possibilidades e suas razões, sob pena de, com a adoção mal-informada ou equivocada de premissas de justiça social e moralidade, desfigurar políticas públicas, agravando o quadro de déficit social.
87 O Ministério Público busca pareceres quanto à eficácia, à necessidade e à qualidade desses medicamentos junto a órgãos técnicos parceiros, como o Conselho Regional de Medicina (CRM), o Conselho Regional de Enfermagem (COREN), os Conselhos Regionais de Farmácia e Químicos, e a Vigilância Sanitária. Nos acórdãos analisados, somente a receita médica instruía os processos. Este era o único requisito técnico exigido pelos juízes
na concessão de medicamento. É interessante notar que a necessidade de fundamento técnico das decisões judiciais foi ressaltada pelo farmacêutico Élcio Nogueira Gagizi em entrevista, in verbis: “um grande problema de
se distribuir medicamentos sem nenhum critério técnico, sem respeitar a consensos de tratamento, é, além da
questão financeira, um problema de saúde pública. Isso poderia estimular o surgimento de vírus cada vez mais
resistentes ao tratamento”.
368
faculdade de direito de bauru
Indispensável, portanto, que o Judiciário traga, para seu campo de análise, os
impactos sócio-econômicos, a realidade das políticas públicas, bem como a natureza coletiva dos conflitos envolvendo alocação de recursos públicos.
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Revista do instituto de pesquisas e estudos
7.
n.
371
42
ANEXOS
7.1. Tabela 1 - Concedidos
Número do
Acordão
068.167-5/9-01
126.471-5/6-00
068.167-5/9-01
134.507-5/5-00
165.207-5/8-00
169.790-5/6-00
178.687-5/7-00
178.224-5/5-00
178.250-5/3-00
187.912-5/6-00
182.452-5/0-00
177.207-5/0-00
204.526-5/6-00
171.946-5/9-00
202.837-5/0-00
208.353-5/5-00
203.576-5/6-00
209.451-5/0-00
197.264-5/6-00
209.431-5/9-00
208.398-5/0-00
209.366-5/1-00
211.215-5/3-00
209.935-5/9-00
211.907-5/1-00
215.465-5/2-00
214.029-5/6-00
206.934-5/2-00
198.144-5/6-00
222.269-5/4-00
213.098-5/2-00
222.288-5/0-00
174.578-5/0-00
226.828-5/5-00
237.703-5/0-00
245.318-5/7-00
243.854-5/8-00
234.832-5/7-00
228.553-5/4-00
242.843-5/0-00
250.812-5/3-00
251.836-5/0-00
249.440-5/2-00
Direito
Coletivo
Direito
Individual
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
Critério
Impacto
Econômico Social
Política
Pública
Motivação
Processual
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
372
Número do
Acordão
250.008-5/4-00
246.740-5/0-00
234.037-5/9-00
221.204-5/1-00
250.157-5/3-00
250.766-5/2-00
249.517-5/4-00
256.762-5/8-00
250.857-5/8-00
251.715-5/8-00
256.334-5/5-00
248.023-5/2-00
260.168-5/1-00
260.399-5/5-00
261.240-5/8-00
250.157-5/5-00
259.656-5/6-00
250.976-5/0-00
251.758-5/3-00
258.364-5/6-00
262.283-5/0-00
258.293-5/1-00
267.353-5/8-00
268.507-5/8-00
264.252-5/4-00
256.258-5/8-00
248.966-5/5-00
256.812-5/7-00
265.759-5/5-00
262.272-5/0-00
267.504-5/7-00
265.779-5/6-00
248.814-5/2-00
256.293-5/7-00
263.265-5/6-00
285.411-5/4-00
265.886-5/4-00
268.642-5/3-00
265.444-5/8-00
265.844-5/3-00
282.347-5/0-00
282.584-5/0-00
248.400-5/3-00
273.864-5/8-00
276.352-5/3-00
289.059-5/6-00
271.560-5/6-00
faculdade de direito de bauru
Direito
Coletivo
Direito
Individual
Critério
Impacto
Econômico Social
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
Política
Pública
X
X
X
X
X
X
X
X
Motivação
Processual
Revista do instituto de pesquisas e estudos
Número do
Acordão
271.561-5/0-00
292.735-5/9-00
306.664-5/9-00
299.782-5/3-00
299.818-5/9-00
306.929-5/9-00
280.899-5/3-00
302.554-5/8-00
301.982-5/3-00
323.244-5/7-00
326.296-5/5-00
321.146-5/5-00
322.304-5/4-00
328.039-5/8-00
318.215-5/3-00
321.361-5/6-00
321.361-5/6-01
325.356-5/2-00
129.440-5/7-00
334.408-5/1-00
326.055-5/6-00
326.055-5/8-01
319.978-5/1-00
318.620-5/1-00
336.331-5/4-00
333.533-5/4-00
328.026-5/9-00
335.292-5/8-00
342.394-5/0-00
346.293-5/8-00
336.153-5/1-00
173.162-5/5-00
356.072-5/8-00
Total
Direito
Coletivo
Direito
Individual
6
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
115
n.
373
42
Critério
Impacto
Econômico Social
Política
Pública
Motivação
Processual
X
X
X
X
X
X
X
X
X
11
X
5
35
2
Política
Pública
Motivação
Processual
7.2. Tabela 2 - Não Concedidos
Número do
Acordão
Direito
Coletivo
042.430-5/8-00
151.490-5/0-00
173.137-5/1-00
076.946-0/0-01
193.508-5/1-00
204.526-5/6-00
X
Direito
Individual
X
X
X
X
X
Critério
Impacto
Econômico Social
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
374
faculdade de direito de bauru
Número do
Acordão
Direito
Coletivo
198.205-5/5-00
210.712-5/4-00
211.215-5/3-00
214.029-5/6-00
133.231-5/8-00
223.617-5/0-00
226.778-5/6-00
228.698-5/5-00
230.548-5/1-00
174.578-5/2-01
256.762-5/8-00
264.448-5/9-00
250.248-5/9-00
199.801-5/2-00
344.752-5/9-00
Total
X
X
X
X
X
X
Direito
Individual
Critério
Impacto
Econômico Social
Política
Pública
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
16
14
14
X
Motivação
Processual
X
X
X
X
11
7
X
X
X
3
A APLICAÇÃO DA PROTEÇÃO CONTRATUAL DO
CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR AOS
CONTRATOS DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM
GARANTIA DE BENS IMÓVEIS
Tereza Maria Amorim
Advogada em Bauru/SP.
Especializanda em Direito Empresarial pelo Centro de Pós-graduação da Instituição Toledo de Ensino.
1.
A ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BENS IMÓVEIS NO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO
A Lei n. 9514/97 institui a Alienação Fiduciária de Bens Imóveis e dispõe sobre
o Sistema de Financiamento Imobiliário.
A instituição da Alienação Fiduciária de Bens Imóveis teve sua inspiração principal na Lei n. 5172 de 25 de outubro de 1966 e no Decreto Lei n. 911 de 1.º de outubro de 1969, que criaram e regulamentaram a Alienação Fiduciária de Bens Móveis
no Brasil.
A Lei n. 9514/97 sofreu recentemente alterações com a edição da Medida Provisória número 2223, em 04 de setembro de 2001. Tal medida ainda não foi votada
pelo Congresso Nacional, não sendo convertida em lei, em que pese estar produzindo todos seus efeitos, nos termos do artigo 62 e parágrafos da Constituição Federal,
uma vez que não está sujeita às modificações impostas pela Emenda Constitucional
n. 32/2001.
As alterações produzidas pela Medida Provisória n 2223/2001 vêm dar novos
contornos à Alienação Fiduciária de Bens Imóveis, principalmente no que concerne
à constituição do contrato e aos efeitos e procedimentos referentes à convalidação
376
faculdade de direito de bauru
da propriedade em nome do credor-fiduciário em caso de inadimplemento por parte do devedor-fiduciante.
A Lei n. 9514/97, que instituiu a alienação fiduciária de bens imóveis no Brasil, surgiu dos anseios de uma nova sociedade, fundada no mercado de consumo e
na necessidade de oferecer garantias para a concessão de créditos.
Nesse sentido, escreve Mário Pazutti Mezzari:
A Lei n. 9514/97 tem cunho eminentemente econômico. Não há que
se falar em cunho social, mesmo que se advogue que, com ela, se
esteja fazendo uma tentativa de resolver parte do problema habitacional e do déficit de construções de todo o tipo (comerciais, industriais, de exploração agropecuária etc.).1
De fato, a preocupação maior do legislador foi com o mercado financeiro e
imobiliário, embora tenha buscado, ao instituir o Sistema de Financiamento Imobiliário, dar nova orientação econômico-social aos financiamentos imobiliários não só
para atender às necessidades deste setor econômico, como também no intuito de
resolver a questão da falta de habitação nos grandes centros.
Na verdade, a criação de um novo Sistema de Financiamento Imobiliário
(SFI), com uma garantia de crédito tão eficaz quanto a alienação fiduciária, em
substituição ao antigo Sistema Financeiro Habitacional (Lei n. 4380/64) e das garantias derivadas da cultura romano-germânica teve um objetivo central: o de retirar do Estado a obrigação de financiar a habitação e desonerá-lo da responsabilidade quando da falência das incorporadoras. No dizer de Mário Pazzutti Mezzari “(...) o que se busca é criar um mercado atrativo e seguro, que seduza especialmente o capital estrangeiro” .2
No entanto, para atrair o capital privado, seja ele nacional ou estrangeiro, necessário se fez ampliar as garantias com relação aos créditos, uma vez que as garantias derivadas da cultura jurídica romano-germânica, cita-se anticrese, penhor e hipoteca, já não satisfaziam as necessidades dos credores na obtenção rápida dos investimentos, vez que dotadas de procedimentos morosos.
Assim, criaram-se nos artigos 26 e seguintes da Lei n. 9514/97, mecanismos
operacionais mais eficazes na retomada do crédito inspirados naqueles já utilizados
por mercados modernos, especialmente o norte-americano, afastando até mesmo a
discussão judicial dos créditos.
Ocorre que tal garantia dotada de agilidade na recuperação do crédito é também o ponto mais fraco da Lei n. 9.514/97, pois no afã de fomentar o mercado financeiro e eximir as obrigações impostas ao Estado, através do Sistema Financeiro Ha1
2
Alienação fiduciária da Lei n. 9.514, de 20-11-1997, p. 4.
Op. cit., p. 4.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
377
bitacional, o legislador transferiu sua quota de responsabilidade ao devedor-fiduciante, que ficou despojado de instrumentos para a defesa de seus direitos.
Tal aspecto teve um forte impacto na realidade fática das instituições financeiras, uma vez que, mesmo hoje, seis anos após a edição da Lei n. 9.514/97 e dois após
a edição da MP n. 2223/2001, poucas são as instituições que operam desta forma no
SFI, e as que o fazem apresentam-se receosas.
2.
OS CONTRATOS DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BENS IMÓVEIS:
CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA, REQUISITOS, CONTEÚDO,
CESSÃO E EXTINÇÃO
2.1. Conceito e natureza jurídica
A Alienação Fiduciária em Garantia, segundo Renan Miguel Saad, pode ser
conceituada como:
[...] contrato de efeitos reais que visa à constituição de direito real
acessório de garantia, segundo o qual se transferem ao fiduciário
(credor) a propriedade resolúvel e a posse indireta de uma coisa,
com a finalidade de assegurar o cumprimento da obrigação principal pelo fiduciante (devedor) que se tornará possuidor indireto
do aludido bem.3
Assim, a Alienação Fiduciária em Garantia é um contrato acessório, transitório
e temporário, no qual o credor recebe uma garantia de direito real através da transferência resolúvel da propriedade. Tem a natureza de um contrato acessório, vez
que visa a garantir um crédito oriundo de uma obrigação principal. É também contrato típico e obrigatório, pois deve seguir as determinações legais, não possuindo
efeitos para criar, modificar ou extinguir obrigações4.
Desta feita, a alienação fiduciária em garantia de bens imóveis é uma “nova
modalidade de garantia, que estabelece relações entre partes (pelo contrato) e
erga omnes (pelo registro)”.5
2.2. Requisitos do contrato
O contrato de Alienação Fiduciária em Garantia de Bens Imóveis, enquanto
forma de criação de obrigações entre as partes, deve seguir os mesmos requisitos
3
4
5
A alienação fiduciária sobre bens imóveis, p. 125-140.
Cf. João Carlos Moreira Alves, Da alienação fiduciária em garantia, p. 38-40.
Mário Pazutti Mezzari, Op. cit., p. 14.
378
faculdade de direito de bauru
exigidos para os contratos de instituição das outras modalidades de garantias reais.
Assim, eles pressupõem agente capaz, objeto lícito e forma prescrita e não defesa
em Lei – artigo 104 do Código Civil.
Além desses, por ser contrato específico, deve preencher os requisitos previstos em legislação própria, sendo eles os de ordem objetiva, que se referem às coisas que podem ser objeto do contrato; os de ordem subjetiva, referentes à capacidade e legitimidade para contratar e os formais, referentes às exigências legais de validade do contrato.
Os requisitos objetivos dizem respeito aos bens ou coisas que podem ser objetos do contrato de Alienação Fiduciária de Bens Imóveis e encontram-se previstos
no artigo 22 e parágrafos da Lei n. 9.514/97.
Assim, são objeto do contrato bens imóveis suscetíveis de alienação plena,
que não estejam gravados com cláusulas restritivas de uso e gozo da propriedade,
nem sejam classificados como fora do comércio.
No dizer de Melhim Namem Chalhub:
Ora, ‘bem imóvel é o solo com sua superfície e tudo quanto o homem incorporar permanentemente ao solo, como os edifícios e
construções’ (Código Civil, artigo 43,I e II), daí porque, ao indicar
como objeto da transmissão fiduciária a coisa imóvel, o caput do
artigo 22 da Lei 9.514/97 já está especificando que os que podem ser
objeto de alienação fiduciária tanto o terreno como as acessões
que sobre ele forem erigidas, sendo perfeitamente dispensável a explicitação do parágrafo único do artigo 22.6 (grifo do autor).
São requisitos subjetivos da Alienação Fiduciária em Garantia, a capacidade e
a legitimidade para contratar.
A capacidade para figurar como parte na Alienação Fiduciária deve ser analisada sob o aspecto daqueles que podem dar uma coisa em garantia e daqueles que podem receber o bem em garantia, ou seja, sob a ótica daqueles que podem figurar na
relação, quais sejam: o devedor-fiduciante e o credor-fiduciário, também denominados como alienante e adquirente.
Em sendo a Alienação Fiduciária prevista na Lei n. 9514/97 uma forma de garantia firmada pela transferência da propriedade de um imóvel do devedor-fiduciante para o credor-fiduciário, ocorrendo a reversão da propriedade em nome do primeiro frente à quitação do débito, ou a consolidação da mesma em nome do último, se conclui que só pode alienar fiduciariamente aquele que tenha a propriedade
do bem imóvel.
6
Negócio fiduciário, p. 207.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
42
379
Assim, não podem alienar fiduciariamente os posseiros ou possuidores, os
que tendo título, não têm registro, ou aqueles que se apresentam como promitentes adquirentes7.
A legitimidade refere-se às pessoas que a Lei n. 9.514/97 escolheu ou autorizou a contratar esta nova modalidade de garantia. Tal “escolha” atualmente está expressa no parágrafo 1.º do artigo 228.
São legitimados para contratar fiduciariamente, nos termos da Lei n. 9.514/97, na
posição de alienante (devedor-fiduciante) ou adquirente (credor-fiduciário), tanto aquelas pessoas autorizadas pelo artigo 2.º da Lei9. e regulamentadas pelos artigos 3.º e 4.º a
participar do Sistema Financeiro Imobiliário, quanto às pessoas naturais ou jurídicas que
preencham os requisitos gerais para a celebração do negócio jurídico
Neste contexto, o legislador de 1997 admite a contratação da Alienação Fiduciária
por qualquer pessoa física e jurídica, independente do pólo ocupado na relação jurídica, diferentemente do que ocorreu no Decreto Lei n. 911/69, que instituiu a Alienação
Fiduciária de Bens Móveis, que só admite como credores as instituições financeiras10.
Os requisitos formais do contrato de Alienação Fiduciária de Bens Imóveis dizem respeito à forma que o contrato deve seguir, uma vez que a propriedade fiduciária só se constitui com o registro do instrumento de celebração do contrato no
órgão competente, regra que se extrai do artigo 23 da Lei n. 9514/97, que dispõe, in
verbis: “Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no
competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título”.
O pacto de Alienação Fiduciária pode ser realizado tanto por instrumento público, regra antes da Medida Provisória n. 2223/2001, como por instrumento particular,
novidade gerada pela modificação do artigo 38 do dispositivo legal, e pode ser realizado concomitantemente à celebração do contrato principal ou em outro momento11.
Embora possa ser realizado o contrato por instrumento público ou particular,
não ficam eximidas as partes de preencher o requisito máximo para que se configure a propriedade fiduciária, qual seja o de registrar o contrato de alienação fiduciária, quer realizado por instrumento público ou particular, no competente Registro
de Imóveis (artigo 23 da Lei n. 9514/97).
7
8
Cf. Mário Pazutti Mezzari, Op. cit., p. 27.
Que traz redação semelhante ao parágrafo único do artigo 22, modificado pela Medida Provisória n. 2223 de
04-09-2001.
9 Artigo 2.º, in verbis: “Poderão operar no SFI as caixas econômicas, os bancos comerciais, os bancos de investimento, os bancos com carteira de crédito imobiliário, as sociedades de crédito imobiliário, as associações de poupança e empréstimo, as companhias hipotecárias e, a critério do Conselho Monetário Nacional
- CMN, outras entidades”.
10 Para Clayton Cesar Wandscheer, Alienação fiduciária de imóveis em garantia, não paginado, a intenção do
legislador em não restringir foi exatamente a de criar um instrumento para a dinamização das relações no mercado imobiliário, que muitas vezes não são intermediadas por uma instituição financeira.
11 Com relação ao momento em que é realizado o pacto acessório, Clayton Cesar Wandscheer, op. cit., não paginado, afirma: “Todavia, a prática do mercado tem demonstrado que ambos são, com freqüência, celebrados
concomitantemente”.
380
faculdade de direito de bauru
Tal registro obrigatório serve para atender aos princípios da publicidade, continuidade e prioridade, inerentes à constituição da propriedade sobre qualquer bem imóvel.
Também não podem ser deixados à margem, quando da celebração do contrato, os requisitos presentes no artigo 24 da Lei n. 9514/97, ainda que não caiba ao
oficial do registro avaliar o conteúdo, por serem expressão da vontade das partes,
uma vez que são indispensáveis à criação da garantia de direito real. Como tais requisitos configuram-se também como conteúdo do contrato de Alienação Fiduciária
de Bens Imóveis, serão mais bem expostos no tópico a seguir.
2.3. Conteúdo do contrato
O conteúdo do contrato diz respeito àquelas determinações que obrigatoriamente devem constar do contrato de Alienação Fiduciária, por estarem previstas no
artigo 24 da Lei n. 9514/97, bem como aquelas determinações geradas pela vontade
das partes na instituição do direito real, não quanto à sua forma, mas com relação
às condições de uso e gozo da coisa alienada.
São determinações essenciais do contrato, sem as quais não se haverá constituição de garantia real (artigo 24, in verbis):
O contrato que serve de título ao negócio fiduciário conterá: I o valor do principal da dívida; II - o prazo e as condições de reposição do empréstimo ou do crédito do fiduciário; III - a taxa
de juros e os encargos incidentes; IV - a cláusula de constituição
da propriedade fiduciária, com a descrição do imóvel objeto da
alienação fiduciária e a indicação do título e modo de aquisição; V - a cláusula assegurando ao fiduciante, enquanto adimplente, a livre utilização, por sua conta e risco, do imóvel objeto
da alienação fiduciária; VI - a indicação, para efeito de venda
em público leilão, do valor do imóvel e dos critérios para a respectiva revisão; VII - a cláusula dispondo sobre os procedimentos de que trata o artigo 27.
O valor principal da dívida deve ser expresso em moeda corrente brasileira,
sendo indispensável ao Registro Imobiliário (artigo 176, parágrafo 1.º, III, 5, da Lei
n. 6015/73), com fins de atender à característica da publicidade do quantum do
imóvel comprometido12.
12 Cf. Mario Pazutti Mezzari, Op. cit., p.36-38: ”É fundamental que haja a estipulação de um valor, ainda que
estimativo da dívida, sob pena de o contrato não valer contra terceiros e por isso não poder ser lançado no
Registro de Imóveis, trazendo como conseqüência apenas direitos pessoais aos contratantes. A propriedade
fiduciária somente nascerá pelo registro imobiliário, e este se fará apenas quando o contrato preencher todos os requisitos legais”.
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381
No contrato, devem também estar claramente explícitos o prazo para a reposição do capital pactuado e as condições de seu pagamento (taxas de juros, encargos e outros critérios de reajuste), não havendo limite expresso em lei, podendo a
carência ser pactuada até mesmo antes do início do pagamento em caso de prazos
longos.
A descrição do imóvel, com todos seus caracteres e acréscimos, deve ser feita
com observação do previsto no artigo 225 da Lei n. 6015/73. É obrigatória porque
visa a atender ao princípio registral segundo o qual o imóvel deve ser individualizado e especificado. Entretanto, tal regra pode ser dispensada por opção do notário,
quando o imóvel for urbano, e a escritura pública já houver sido identificada na respectiva matrícula ou transcrição imobiliária (artigo 2.º, Lei n. 7433/85).
Simples referência ou intitulação do contrato como sendo de Alienação Fiduciária em Garantia não basta para a constituição da propriedade fiduciária. De acordo com o inciso IV do artigo 24, deve haver cláusula expressa da sua instituição, para
que o devedor-fiduciante tenha expressa e completa ciência do que está a pactuar.
A indicação do valor do imóvel para eventual leilão e dos critérios para sua respectiva revisão também devem constar obrigatoriamente do contrato. Isto porque
será pelo valor do contrato que o credor-fiduciário se verá ressarcido frente à inadimplência do devedor-fiduciante13.
No entender de Mário Pazutti Mezzari,14 a cláusula subsidiária ao artigo 27, que
dispõe a respeito da previsão contratual dos procedimentos relativos aos leilões
obrigatórios, após a consolidação da propriedade em nome do credor-fiduciário, é
de aplicação duvidosa, uma vez que a lei regula inteiramente tal leilão, não restando
necessário, nem sequer útil ao mercado imobiliário, estabelecer qualquer cláusula
com o devedor-fiduciante quanto a este procedimento.
Entretanto, analisando-se a ratio legis, vislumbra-se sua necessidade, uma vez
que, constando tal cláusula no contrato devidamente assinado pelo devedor-fiduciante, não se haverá o que alegar a respeito do desconhecimento do procedimento de retomada do bem.
Subtende-se, ainda, pela leitura do parágrafo 2.º do artigo 26 da Lei, que deve
constar também no conteúdo do contrato a cláusula relativa ao período de carência
em caso de inadimplência do devedor-fiduciante, configurando-se essa como a concessão de um prazo de tolerância que o credor-fiduciário deva respeitar, sem agir,
frente a sua ocorrência. Embora a ausência da mesma não gere nulidade, por não
ser cláusula obrigatória, nem estar contida no artigo 24 da Lei, Mario Pazutti Mezzari adverte que no caso da falta o ônus da omissão será suportado pelo credor-fiduciante, uma vez que a “legislação brasileira é pródiga em proteger o considerado
13 Segundo Mario Pazutti Mezzari, Op. cit., p. 43, o legislador exigiu que fossem expressos os critérios de revisão
do valor do bem frente às instabilidades econômicas, quais sejam os de atualização, correção monetária ou “(...)
outro nome que o mercado se encarregue de aplicar e a lei futura de regular”.
14 Op. Cit., p. 44.
382
faculdade de direito de bauru
mais fraco – o devedor - e as práticas de mercado serão facilmente utilizadas por ele
contra o credor”.15
Ainda com relação ao conteúdo, devem constar a qualificação das partes contraentes, assim como das testemunhas, além das representações, quando permitidas em lei, e as certidões necessárias à constituição de direito real sobre a coisa.
Devem ser pactuadas também as condições de uso do bem entregue em garantia pelo devedor-fiduciante, bem este que ficará em sua posse até o total adimplemento, repousando o direito de uso em sua pessoa, conforme requisito previsto
no inciso V do artigo 24. Para Mário Pazutti Mezzari:
Na verdade, mais que assegurar ao fiduciante direitos que decorrem da lei e não do contrato, essa cláusula regulará especialmente o que seja de ‘conta e risco’ do fiduciante. De maneira expressa, consignar-se-á não o direito de usar, mas os encargos do
uso e a forma de restituir o imóvel e a posse deste, no caso de
inadimplência.16
2.4. Cessão da posição contratual
Tanto o credor-fiduciário pode ceder sua posição contratual, por ser proprietário a título resolúvel, quanto o devedor-fiduciante poderá fazê-lo por ser titular de
um direito real, ainda que expectativo.
Aduz-se tal possibilidade pela leitura dos artigos 28 e 29 da Lei n. 9.514/97
que, além de dispor a este respeito, estabelece regras a serem observadas para
tal cessão.
Assim, pode o credor-fiduciário ceder sua posição contratual a terceiros, subrogando-se estes em seus direitos de propriedade perante o devedor-fiduciante. A
cessão poderá ser feita até mesmo sem a notificação deste último de acordo com o
artigo 35 da mesma Lei. Pode também o devedor-fiduciante, por possuir a expectativa de direito real sobre a coisa alienada, transmitir sua posição contratual a terceiros, porém por expressa determinação legal prevista no artigo 29, deve haver a
anuência do credor-fiduciário sob pena de a cessão não gerar efeitos quanto a ele,
ficando o cessionário (terceiro) impedido de exercer seus direitos com relação ao
credor-fiduciário.
Em ambos os casos, a cessão deve ser averbada no Registro de Imóveis sob
pena de não gerar efeitos tanto em relação à parte contrária, quanto em relação a
terceiros.
15 Op. Cit., p. 45.
16 Op. cit., p. 43.
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n.
42
383
2.5. Extinção do contrato
Conforme o exposto, através do registro do contrato de alienação fiduciária
em garantia, constitui-se a propriedade fiduciária, com vistas à sua revogação e/ou
extinção, uma vez que o contrato tem por características a transitoriedade e a temporariedade, perdurando somente enquanto é necessário a garantir um outro contrato, chamado de principal.
Assim, resolvida ou cessada a causa que fundamentou a sua constituição, impõe-se a sua própria. E essa extinção também está prevista na Lei n. 9514/97, podendo ela se dar quer pelo adimplemento (artigo 25), modo natural de extinção do contrato de alienação fiduciária em garantia, retornando a propriedade plena em nome
do devedor-fiduciante, quer pelo inadimplemento do devedor-fiduciante, havendo
a constituição do devedor em mora seguida pela consolidação da propriedade em
nome do credor e inevitável perda do bem imóvel através de leilão (artigo 26 e seguintes), consolidação esta passível de penosas críticas.
3.
O CÓDIGO DE PROTEÇÃO E DEFESA DO CONSUMIDOR: MICROSSISTEMA JURÍDICO
O Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8078/1990) visa à regulamentação
das relações entre consumidor e fornecedor, sendo que as relações jurídicas privadas em geral, continuam ser regidas pela legislação civil comum.
São elementos da relação contratual de consumo: os sujeitos, o objeto e a finalidade. Os sujeitos apresentam-se como sendo o fornecedor e o consumidor, o
objeto como sendo os produtos e os serviços e a finalidade à utilização do serviço e
à aquisição do produto pelo consumidor como destinatário final.
As leis civis e comerciais têm papel subsidiário na integração de alguma lacuna do Código de Defesa do Consumidor, desde que não contrarie nenhum dispositivo deste.
Com a criação do Código de Defesa do Consumidor em 1990, instituiu-se um
microssistema de Direito das Relações de consumo, cuja tendência é ganhar autonomia na ciência no Direito, não restando correto considerar o direito do consumidor como uma disciplina estanque, uma vez que a complexidade de suas normas
exige a interação com outras normas, sejam de direito material (constitucional, administrativo, civil, comercial e penal) ou processual (civil e penal).
Assim, o Código de Defesa do Consumidor é uma lei especial que regulamenta
relações de consumo, aplicável mesmo em caso do surgimento de lei posterior setorizada, pois possui princípios gerais que não podem ser alterados ou revogados por ela.
No tocante aos aspectos contratuais da relação de consumo, o Código de Defesa do Consumidor rompe a tradição do Direito Privado, para relativizar o princípio
da intangibilidade.
384
faculdade de direito de bauru
3.1. Relação de consumo
São elementos da relação contratual de consumo: a) sujeito: fornecedor e
consumidor; b) objeto: produtos e serviços; c) elemento teleológico: finalidade com
que o consumidor adquire o produto e serviço, como destinatário final, sendo este
a chave para a identificação de uma relação jurídica como sendo de consumo.
Quanto à técnica formal de contratação, podem ser de comum acordo ou de
adesão.
Fornecedor: todo aquele que não adquire o produto ou serviço como destinatário e transfere a outrem no mercado de consumo.
Produto: não se deve confundir com a coisa, termo utilizado de forma ampla
pelo legislador civil, mas isso não significa que deve ficar de fora da classificação de
coisa.
Serviço: Está definido no artigo 3º, parágrafo 2.º do Código de Defesa do Consumidor. Independentemente de sua origem, qualquer serviço prestado de um fornecedor mediante remuneração é considerado objeto de relação de consumo.
Também são considerados serviços objeto da relação de consumo a atividade
remunerada fornecida por ente de Direito Privado, que são os seguintes:
Os serviços bancários: os bancos como instituições financeiras, pessoas jurídicas empresariais, devem adotar a forma de Sociedade Anônima (artigo 119 do Código Comercial) e cujo funcionamento dependem de aprovação do Banco Central do
Brasil e do Ministério da Fazenda, colocando uma série de vantagens reguladas pelo
Direito Bancário. As operações e contratos bancários são invariavelmente remunerados, e sofrerão a incidência do Código de Defesa do Consumidor.
Negócios jurídicos de prestação remunerada de serviços fornecidos no mercado financeiro: neste sentido, a atividade das corretoras se sujeita ao Código de Defesa do Consumidor, como o lançamento de ações no mercado, permuta, compra e
venda de títulos, etc.
Atividades securitárias: possuem por escopo a capitação de recursos por meio
de administradoras de seguros de patrimônio e pessoas. A remuneração da seguradora se dá mediante o recolhimento de um percentual do valor periodicamente
pago, a título de administração. Entre estas atividades securitárias, estão as de previdência privada.
Atividades creditícias: são aquelas que concedem empréstimos por linhas de
financiamento aos consumidores, visando à aquisição de produtos ou serviços, e sofrem a incidência do Código de Defesa do Consumidor.
3.2 Proteção contratual do consumidor
Através das disposições previstas nos artigos 46 e seguintes do Código de Defesa do Consumidor, o legislador buscou traçar os pontos mais relevantes da prote-
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n.
42
385
ção contratual do consumidor, tendo sempre em vista a condição de vulnerabilidade e hipossuficiência do consumidor frente ao mercado econômico.
A seguir, serão expostos de forma sucinta os principais aspectos da proteção
contratual do consumidor.
Conhecimento prévio do conteúdo e redação clara (artigo 46): o fornecedor deverá oferecer oportunidade ao consumidor para que, antes de concluir o contrato de consumo, conheça o conteúdo do mesmo, com todas as implicações e conseqüências referentes nos deveres e direitos das partes além das sanções em caso de descumprimento,
além de ter a cautela de redigir as cláusulas contratuais, evitando o uso de termos técnicos de difícil compreensão e não usuais, palavras em língua estrangeira, principalmente
se o “alvo” do contrato for pessoas de baixa renda ou analfabetas. Caso ao consumidor
não seja dada a oportunidade de conhecer o conteúdo contratual, ele não se obrigará.
Interpretação dos contratos (artigo 47): dada a hipossuficiência do consumidor, a interpretação dos contratos deve ser a mais favorável possível ao consumidor.
Para a interpretação dos contratos de consumo, há os seguintes princípios: 1) a interpretação mais favorável ao consumidor; 2) atendimento à intenção dos contratantes e não ao sentido literal dos termos empregados; 3) cláusula geral da boa-fé
(artigo 422 do Código Civil); 4) prevalência das cláusulas estipuladas individualmente sobre as estipuladas unilateralmente pelo fornecedor; 5) interpretação das cláusulas ambíguas e contraditórias dos contratos de adesão em favor do consumidor.
Oferta (artigo 48): o fornecedor está vinculado a cumprir sua obrigação, caso
manifeste sua vontade mediante recibos de sinal, pré-contratos, contratos preliminares e outros escritos particulares pertinentes.
Direito de arrependimento (artigo 49): existe sem necessidade do porquê da
atividade do consumidor, bastando que o contrato esteja concluído fora do estabelecimento comercial. A lei estabelece prazo de 7 dias a partir da assinatura ou do recebimento do produto ou serviço pelo consumidor, para evitar eventuais abusos cometidos por este.
Cláusulas abusivas (artigo 51): são aquelas notoriamente desfavoráveis ao consumidor, tornando inválida, de pleno direito, a relação contratual de consumo. Estas cláusulas são comuns em contratos de adesão, casos em que o estipulante se outorga todas as vantagens em detrimento do aderente17.
17 De acordo com o artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor são consideradas cláusulas abusivas: exclusão
genérica da responsabilidade (inciso I); vedação ao consumidor de optar pelo reembolso das quantias por ele
já pagas em razão do contrato (inciso II); transferência de responsabilidade a terceiro (inciso III); desvantagem
exagerada (inciso IV ); inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor (inciso VI); determinação compulsória da arbitragem (inciso VII); cláusula mandato (inciso VIII); opção unilateral de conclusão do negócio
jurídico (inciso IX); possibilidade de variação de preço ou de índice de reajuste de forma unilateral (inciso X);
promoção da resilição contratual unilateral (inciso XI); imposição única e exclusiva ao consumidor de ressarcir os custos decorrentes da cobrança da sua obrigação (inciso XII); modificação unilateral do conteúdo ou
qualidade do contrato (inciso XIII); aquela incompatível com o sistema protetivo do consumidor (inciso XV );
e renúncia de reembolso pelas despesas havidas com a instalação de benfeitorias necessárias (inciso XVI).
386
faculdade de direito de bauru
O rol do artigo 51 é exemplificativo, em razão da expressão “entre outras”.
Sempre que se verificar a existência de desequilíbrio entre as partes no contrato, o
juiz poderá reconhecer e declarar abusiva determinada cláusula, atendidos os princípios da boa-fé e da compatibilidade com o sistema de proteção ao consumidor
Além das cláusulas abusivas, o Código de Defesa do Consumidor dispõe em seu
artigo 54 sobre os contratos de adesão, que são aqueles elaborados em desigualdade
de condições para as partes, sendo que uma delas necessariamente não terá condições
de discutir o conteúdo do negócio celebrado, diferente do contrato paritário.
Restringe-se sua formulação à vontade do fornecedor ou terceiro que elaborarão o contrato formulário, submetido às disposições legais de ordem pública.
O maior cuidado que o fornecedor deve empregar na redação de um contrato de adesão é no tocante à clareza e destaque das cláusulas limitativas ao direito do
consumidor, não fugindo da sua percepção leiga, sob pena de ser aplicado o artigo
46 do Código de Defesa do Consumidor, não obrigando o consumidor.
4.
A APLICAÇÃO DA PROTEÇÃO CONTRATUAL DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR AOS CONTRATOS DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA DE BENS IMÓVEIS
Após perfunctória apresentação do instituto da alienação fiduciária em garantia e da proteção contratual do Código de Defesa do Consumidor, impõe-se traçar
indagações pertinentes à incidência do Código de Defesa do Consumidor à Lei n.
9.514/97, acompanhadas de nossas conclusões, que feitas em breves linhas, se propõem mais a lançar sementes de uma nova discussão doutrinária do que propriamente exaurir o tema exposto.
1. Sendo a Lei n. 9.514/97, que instituiu no ordenamento jurídico brasileiro a alienação fiduciária de bens imóveis, posterior ao Código de Defesa do Consumidor, que
foi promulgado em 1990, revoga esta as normas contrárias a ela e afasta, portanto, a incidência do Código de Defesa do Consumidor nos contratos regidos sob sua égide?
A resposta que se afigura mais coerente é a de que não. Embora seja a Lei n.
9.514/97 uma legislação extravagante, de conteúdo eminentemente privado, não há
de se falar no repúdio do Código de Defesa do Consumidor por sua parte. Isto porque, como já exposto, o Código de Defesa do Consumidor, embora tenha sido aprovado com o quorum necessário a aprovação de uma lei infraconstitucional, possui
status de lei complementar, trazendo em seu bojo normas de ordem pública e configurando-se como um microssistema jurídico que incide sobre todo o ordenamento jurídico infra-constitucional, seja ele anterior ou posterior à sua promulgação.
2. Desta forma, o Código de Defesa do Consumidor incidiria sobre todo e
qualquer contrato de alienação fiduciária em garantia de bens imóveis?
A resposta aqui também é negativa. Como exposto, para que ocorra a incidência do Código de Defesa do Consumidor, deve existir relação de consumo e para
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que esta se afigure no contrato em tela, devemos centrar as atenções nas partes contratuais, quais sejam, o devedor-fiduciante (adquirente) e o credor-fiduciário (alienante). Isto porque, para que seja constatada relação de consumo, o devedor-fiduciante deve se encaixar no conceito de consumidor previsto no artigo 2.º do Código de Defesa do Consumidor, ou seja, necessariamente precisa ser o destinatário final do produto objeto do contrato e visar à propriedade do bem alienado. Por outro lado, frente às disposições da Lei n. 9.514/97 que permite a qualquer pessoa, seja
ela física ou jurídica, contratar em seus termos, necessário se faz que, somada à exigência anterior, o credor-fiduciário se encaixe na definição de fornecedor prevista
no artigo 3.º do Código de Defesa do Consumidor, isto é, deve visar à comercialização de bens imóveis, tal como incorporadoras, imobiliárias, corretores, etc. ou apresentar-se como instituição financeira atuante no Sistema Financeiro Imobiliário Se
qualquer das partes não se amoldar aos conceitos de consumidor e fornecedor previstos no Código de Defesa do Consumidor não há de se falar em relação de consumo e, por conseqüência, na aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de alienação fiduciária em garantia.
3. Como ficam as normas previstas para a contratação da alienação fiduciária
de bens imóveis frente à aplicação do Código de Defesa do Consumidor, quando se
afigurar relação de consumo?
Por serem normas de caráter privado, destinadas a estabelecer direitos e obrigações entre as partes contratantes, devem ser afastadas pelo juiz na apreciação dos
eventuais litígios a seu respeito, sendo aplicáveis ao contrato de alienação fiduciária
em garantia de bens imóveis as mesmas regras protetivas aplicáveis aos contratos
em geral em que se configure relação de consumo.
Finalmente, se faz necessário que nós, enquanto operadores do direito, nos
conscientizemos de que o consumidor será sempre o elo mais fraco da relação contratual, devendo ser protegido por determinação expressa de nossa Lei Maior, uma
vez que a grande massa da população brasileira não tem condições de, por si só,
conseguir fazer valer seus direitos na aquisição de bens e serviços imprescindíveis à
sua sobrevivência digna.
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Lei n.º 10.741/03 - Estatuto do Idoso
Artigo 94: aplicabilidade absoluta ou
interpretação stricto sensu?
Fabrício Dias de Oliveira
Universitário.
Membro discente do 3.º ano do Curso de Direito das Faculdades Integradas
de Ourinhos (Ourinhos - SP).
Articulista colaborador do Jornal DEBATE (S.C.R.Pardo/SP).
A Constituição Federal de 1988, em seu Título VIII, Capítulo VII, quando passou a tratar de nossa Ordem Social, concedendo tutela jurídica à família, à criança,
ao adolescente e também ao idoso (artigos 226 a 230), agiu de maneira bastante tímida, especialmente com relação aos direitos e garantias da pessoa idosa (artigo 230
da Constituição Federal), sobretudo no que tange às medidas e disposições protetivas. Há muito tempo essa camada social composta por nada menos do que cerca de
16 milhões de pessoas, as quais contribuíram para o crescimento dessa Nação, necessitava de um micro-sistema jurídico que lhe conferisse maior atenção, como
ocorreu, por exemplo, com as crianças e adolescentes em razão do advento do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, em tempos passados, além do que, reconhecer tão valiosa contribuição, seria questão de mera consciência, de mera sensibilidade. Por outro lado, é fato que o merecido tratamento deveria estar fundamentado nas questões éticas, morais e familiares da sociedade brasileira, porém numa
sociedade em que a discriminação por diversas vezes se faz presente, como é o caso
da nossa sociedade, foi necessária a criação de uma obrigação de fazer, foi necessária a obrigatoriedade de uma lei para que tão merecido reconhecimento fosse efetivamente conferido.
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Surge então em nosso horizonte legislativo, ainda que tardiamente, a Lei n.º
10.741, de 1.º de outubro de 2003 - conhecida como Estatuto do Idoso, destinada a
regular os direitos das pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, trazendo consigo regras de direito privado, previdenciário, processual e penal, numa
função extraordinariamente protetiva. Realmente, a “pedra fundamental” na estruturação e construção de uma consciência política e social frente à necessidade de se
fazerem valer os direitos fundamentais dos idosos.
Em vigor desde o início do corrente ano, após uma vacatio legis de 90 (noventa) dias, o Estatuto do Idoso, ao que me parece, vem passando desapercebido na
academia do Direito, principalmente com relação aos discentes, o que poderá levar
ao cometimento de erros, uma vez que muita coisa foi modificada, sobretudo no
âmbito do Direito Penal. Foram criados novos tipos penais e alterados diversos dispostivos do Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940, que instituiu o Código Penal Brasileiro e também do Decreto-Lei n.º 3.688, de 3 de outubro de 1941,
que instituiu a Lei de Contravenções Penais. Além disso, passaram a existir inúmeros agravantes e outros tantos casos de aumento de pena na hipótese de um crime
envolver pessoa idosa - com 60 (sessenta) anos de idade ou mais.
Contudo, ainda que os legisladores estivessem dotados de boas intenções, a
parte penal dessa nova lei (Estatuto do Idoso) acabou por perseguir a má-sorte de
quase todas as normas penais brasileiras, já que em determinados pontos se mostra
bastante confusa, contribuindo assim para uma desproporção ou mesmo desigualdade na aplicação das penas no sistema jurídico brasileiro, contrariando o princípio
constitucional da isonomia, além de gerar aquilo que chamam de “desinteligência”
dos julgados.
Verifica-se, por exemplo, a criação de 14 (quatorze) novos tipos penais, além
de várias outras modificações no Decreto-Lei n.º 2.848/1940 (Código Penal) e também no Decreto-Lei n.º 3.688/1941 (Lei das Contravenções Penais), aos quais deveríamos dispensar maiores cuidados quanto a sua nova interpretação. Não obstante,
chamo a atenção para um único e exclusivo ponto, aquele que talvez tenha gerado
maior polêmica, maior controvérsia: o artigo 94 desse Estatuto do Idoso. Assim, observemos a seguir o artigo 94 da Lei n.º 10.741/03 para que possamos, posteriormente, prosseguir com um breve estudo acerca de tal dispositivo:
Aos crimes previstos nesta Lei, cuja pena máxima privativa de liberdade não ultrapasse 4 (quatro) anos, aplica-se o procedimento
previsto na Lei n.º 9.099, de 26 de setembro de 1995 e, subsidiariamente, no que couber, as disposições do Código Penal e do Código
de Processo Penal.
Evidencia-se, então, uma inevitável confusão. Passo a explicar: o que se discute diante da leitura examinadora de tal artigo é quanto ao sentido que essa nova nor-
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ma visa a alcançar. Melhoro: será que o legislador desejou tornar de menor potencial ofensivo apenas as infrações penais tipificadas exclusivamente pelo Estatuto do
Idoso, permitindo, assim, a possibilidade de propositura de transação penal em observância às regras processuais trazidas pela Lei n.º 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais), em atenção especial aos seus artigos 72 e 76? E se a resposta for positiva, partindo de um novo conceito de infração penal de menor potencial
ofensivo (que agora compreenderia as infrações que a lei comina pena máxima não
superior a quatro anos), não estaria se abrindo precedentes para que tal entendimento fosse estendido a toda a legislação brasileira? Ou pretendeu o legislador, tão
somente, fazer menção ao procedimento sumaríssimo da referida Lei n.º 9.099/95,
garantindo dessa forma a celeridade processual nos casos em que a pessoa idosa figurar como parte?
A ocorrência de tal confusão seria facilmente percebida se, por exemplo, fosse
verificada a prática de um crime de injúria (artigo 140 do Código Penal) contra um idoso, sobretudo no que tange à forma qualificadora de seu § 3.º. Isso porque foi inserido
ao tipo penal autônomo da injúria qualificada a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. Então, em razão dessa nova formatação jurídica conferida ao artigo
140, § 3.º, do Código Penal, este passou a vigorar com a seguinte redação:
Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes à raça, cor,
etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de
deficiência: Pena - reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa.
Diante dessa nova instrução legal, se o agente pratica um crime de injúria contra um idoso (com sessenta anos ou mais), poderá ter sua pena fixada entre 1 (um)
e 3 (três) anos, de modo que, em atendimento ao disposto no artigo 94 do Estatuto do Idoso, estaria o processo autorizado a tramitar pelo rito sumaríssimo, além de
estar vislumbrada a possibilidade de promoção da transação penal, pois subentenderíamos que o crime de injúria contra a pessoa do idoso, com o advento da Lei n.º
10.741/03, passaria a estar caracterizado como sendo de menor potencial ofensivo.
E o que é pior, em razão desse novo dispositivo legal - artigo 94 do Estatuto do Idoso - caso a vítima nem sequer se ajustasse à condição de pessoa idosa, porém fosse
utilizado pelo autor do crime de injúria os elementos de que tratam o § 3.º do respectivo artigo (raça, cor, etnia, religião ou origem), estaria o aplicador do direito autorizado a fazer uso da Lei n.º 9.099/95, atentando para o procedimento em rito sumaríssimo, além da possibilidade de ser ofertada a transação penal. Vemos então
que o disposto pelo Artigo 94 da Lei n.º 10.741/03 - Estatuto do Idoso - caminha na
contra-mão de outros preceitos legais, gerando um conflito de normas no âmbito federal frente a outras duas normas: a Lei n.º 9.099/95 - que dispõe sobre os Juizados
Especiais Cíveis e Criminais, além da Lei n.º 10.259/01 - que dispõe sobre a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal.
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Antes de mais nada, é preciso saber que a Constituição Federal de 1988, através de seu artigo 98, buscou compor o “berço” dos Juizados Especiais, autorizando
a sua criação e instalação:
A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:
(I) juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de
causas cíveis de menor complexidade e infrações de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento
de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.[...]P. único: Lei
federal disporá sobre a criação de juizados especiais no âmbito da
Justiça Federal.
Entretanto, ocorre que os legisladores, por simples desatenção ou mesmo
despreparo, não demonstram qualquer afinidade com as questões processuais que
envolvem tais Juizados Especiais, desconsiderando seu precioso valor quanto à agilização da prestação jurisdicional frente às causas cíveis de menor complexidade e
às infrações penais de menor potencial ofensivo. Por fim, acabam legislando de forma confusa, num total desproveito em relação à possibilidade de conferir ao trâmite processual maior celeridade, sem promover o correto uso, para tanto, das Leis n.º
9.099/95 e n.º 10.259/01. Senão vejamos, como exemplo, o que prevê a Lei n.º
9.099/95, em seu artigo 61, e o que passou a ser previsto pela Lei n.º 10.259/01, em
seu artigo 2.º, parágrafo único:
Lei n.º 9.099/95, art. 61: Consideram-se infrações penais de menor
potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais
e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano,
excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial.
Lei n.º 10.259/01, art. 2.º, parágrafo único: Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou
multa.
Como vemos, com o advento da Lei n.º 10.259/01, surgiu nova discussão em
torno da ampliação ou não do conceito de infração penal de menor potencial ofensivo, sendo que num primeiro momento, doutrinadores e jurisprudências davam
conta de que tal conceito não era estendido além do âmbito da Justiça Federal, ou
seja, para os crimes de competência da Justiça Estadual, prevalecia o disposto pela
Lei n.º 9.099/95, enquanto que, para os crimes de competência Federal, prevalecia
o disposto pela Lei n.º 10.259/01.
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Felizmente, de outro lado, passou a existir sustentação majoritária no sentido
de que, por se tratar de uma novatio legis in melius, ao menos em relação ao conceito de infrações penais de menor potencial ofensivo, deveria prevalecer a disposição da Lei n.º 10.259/01, observando-se, assim, uma sujeição ao princípio constitucional da isonomia (artigo 5.º, caput, da Constituição Federal/1988), ocasionando,
ainda, um aumento no rol dessas infrações penais de menor potencial ofensivo, o
que resolveu de forma definitiva a discussão. Tal entendimento passou a ser adotado pelos Tribunais, fazendo com que, nos dias atuais, seja jurisprudência dominante, como verificamos através do seguinte enunciado, originado através de acórdão
da 5.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça:
A Lei n.º 10.259/2001, em seu art. 2.º, parágrafo único, alterando a
concepção de infração de menor potencial ofensivo, alcança o disposto no artigo 61 da Lei n.º 9.099/95. (RHC - 12.033 - MS - rel. Ministro Félix Fischer - votação unânime em 13/08/2002):
Com relação a tal entendimento, é bom lembrarmos que, a partir do surgimento da Lei n.º 10.259/01, o Ministério Público do Estado de São Paulo havia recomendado, através de seu Procurador-Geral de Justiça, a sua não aplicação no âmbito da Justiça Estadual, porém tal posicionamento acabou sendo modificado recentemente, reconhecendo-se, então, a ampliação do conceito de infração penal de menor potencial ofensivo para o âmbito da Justiça Estadual.
Realizadas tais considerações, voltemos à questão do artigo 94 da Lei n.º
10.741/03 e à dúvida quanto à genuína vontade de seu legislador. Então, indago: será
que o legislador desejou ampliar o conceito das infrações penais de menor potencial ofensivo (incluindo-se nesse rol os crimes cuja pena máxima privativa de liberdade não ultrapasse quatro anos), possibilitando, assim, a ocorrência de transação
penal em relação a tais crimes, estendendo tal conceito por toda a legislação brasileira? Ou teria pretendido o legislador tornar de menor potencial ofensivo apenas os
delitos definidos de forma exclusiva pela Lei n.º 10.741/03 - Estatuto do Idoso? Ou
ainda, teria pretendido o legislador, tão somente, fazer menção ao procedimento sumaríssimo da referida Lei n.º 9.099/95, garantindo dessa forma uma celeridade processual nas questões que envolvessem a pessoa idosa?
É bom que se diga que cada uma das hipóteses descritas acima tem seu fiel
defensor, tanto na área prática de aplicação da Justiça, bem como na seara doutrinária do Direito. Entretanto, operadores do direito e doutrinadores, juntando-se aos
últimos a figura do renomeado Professor Damásio Evangelista de Jesus, dão conta
de que a interpretação mais correta deve acompanhar o seguinte entendimento:
diante de todos os tipos penais que foram criados ou mesmo alterados pela Lei n.º
10.741/03 - Estatuto do Idoso, como por exemplo alguns dispostivos do Código Penal e da Lei de Contravenções Penais, desde que a pena máxima cominada não ul-
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trapasse os 4 (quatro) anos, ficou autorizada a aplicação do procedimento sumaríssimo previsto na Lei dos Juizados Especiais Criminais (no âmbito Estadual ou Federal). Além disso, a Lei n.º 10.741/03 - Estatuto do Idoso - não considerou de menor
potencial ofensivo todas as infrações penais (crimes ou contravenções) por ela prescritos, de modo que tal matéria, no que tange ao conceito dessas infrações penais
de menor potencial ofensivo, continua sendo regida pelo artigo 61 da Lei n.º
9.099/95 que, posteriormente, segundo entendimento jurisprudencial, foi derrogado pelo parágrafo único do artigo 2.º da Lei n.º 10.259/01. Além disso, o artigo 94 da
Lei n.º 10.741/03 não faz referência alguma aos crimes de menor potencial ofensivo,
mas tão somente menciona a pena máxima cominada aos crimes e o procedimento
sumaríssimo a ser adotado, de acordo com a previsão da Lei n.º 9.099/95. Entendese, finalmente, que o artigo 94 da Lei n.º 10.741/03 - Estatuto do Idoso - não derrogou o artigo 61 da Lei n.º 9.099/95 nem o artigo 2.º, parágrafo único, da Lei n.º
10.259/01.
Assim, com relação ao artigo 140, § 3.º, do código Penal, suscitado anteriormente como exemplo, por se tratar de um crime de injúria praticado com base na
utilização de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião, origem, ou ainda, possuindo a vítima a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência, não será tal
delito, de maneira alguma, considerado de menor potencial ofensivo, pois a pena
máxima cominada é de 3 (três) anos, o que desautoriza tanto a aplicação do artigo
61 da Lei n.º 9.099/95, bem como a aplicação do parágrafo único do artigo 2.º da Lei
n.º 10.259/01.
Concluindo, entendo que diante de todos os elementos trazidos ao presente
estudo, quanto à aplicação do artigo 94 da Lei n.º 10.741/03 - Estatuto do Idoso, não
deve ser enxergado no meio jurídico, ao menos na excelência de seus doutrinadores e operadores do Direito, outro rumo mais plausível que não seja interpretar tal
dispositivo em sentido estrito, apenas como uma forma inovadora que consente a
adoção do procedimento sumaríssimo previsto na Lei n.º 9.099/95, ampliando assim
a competência, em razão da matéria, dos Juizados Especiais Criminais, trazendo
como conseqüência a possibilidade destes Juizados poderem processar e julgar os
crimes contra idosos, mesmo que não considerados de menor potencial ofensivo,
pois embora possam ter a sua pena máxima cominada em 4 (quatro) anos, receberão o benefício da celeridade nos trâmites processuais. Tal benefício conferido pelo
procedimento sumaríssimo ocorre sem que haja a possibilidade de se efetuar a transação penal, pois o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo não foi
ampliado pelo artigo 94 da Lei 10.741/03, afastando, assim, qualquer probabilidade
da aplicação de forma absoluta, incontestável e incondicional do aludido artigo.
parecer
DA VEDAÇÃO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DE
PENHORA DE FATURAMENTO DE INSTITUIÇÃO DE
ENSINO E DA INAPLICABILIDADE DA TEORIA DA
DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA NA HIPÓTESE
Ives Gandra da Silva Martins
Professor Emérito da Universidade Mackenzie em cuja Faculdade de Direito foi
Titular de Direito Econômico e de Direito Constitucional.
Rogério Vidal Gandra da Silva Martins
Advogado.
Conferencista.
Autor de livros tributários.
José Ruben Marone
Advogado em São Paulo.
Autor de livros tributários.
A matéria sobre a validade constitucional de penhora de faturamento de instituição de ensino merece ser analisada com acuro, num momento em que nos deparamos com uma produção legislativa contrária às entidades privadas de ensino, a
despeito da ineficiência do poder público em garantir o numero de vagas necessário para atender à sociedade brasileira, mesmo tendo o constituinte destinado 18%
de todos os impostos federais à parcela da educação.
Nesse contexto de ataque do poder público às Universidades privadas é importante ressaltar o enorme volume das receitas destinadas a Universidade federal,
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que amarga crise e responde por apenas 30% das vagas oferecidas à população, sendo, portanto, inexplicável seu péssimo desempenho.
Em detrimento ainda maior do ensino, o Governo Federal, tem a inconstitucional iniciativa do “Projeto Universidade Para Todos” – PROUNI que pretende atingir a Universidade privada, que faz o que o governo deveria fazer com os impostos,
e não o faz por incompetência.
No tocante ao interesse privado em sentido estrito, consta contra as Universidades o mecanismo da penhora de suas receitas oriundas das mensalidades destinadas à manutenção de suas atividades de ensino, o qual também representa ataque a
tais entidades, que fazem, sem o uso do dinheiro público, o que o Estado não faz
mesmo tendo-o em abundância.
Destarte, a penhora mencionada pode representar um privilégio do interesse
privado em detrimento da atividade educacional, que deve ser preservada, tanto da
ingerência inconstitucional pública quanto da privada.
Outro ponto relevante na análise do tema é o atinente à eventual solidariedade entre as Universidades e suas mantenedoras, efetivando-se a penhora do faturamento da Universidade por dívida de sua mantenedora.
De forma a alicerçar as conclusões necessárias à matéria aduzida, é mister que
se delineie seus contornos constitucionais e legais, bem como que se fundamente a
impossibilidade da aplicação na hipótese da teoria da desconsideração da pessoa jurídica e penhora de faturamento.
Com efeito.
I.
DOS ASPECTOS CONSTITUCIONAIS ATINENTES À EDUCAÇÃO
Os aspectos constitucionais atinentes à Educação estão contidos nos artigos
205 a 214, no Título da Ordem Social, Capítulo III, voltado também à Cultura e Desporto1. O legislador constitucional de 1988 separou a Ordem Social da Econômica e
incluiu disposições na Ordem Social tornando-a analítica e mais abrangente que as
tratadas nas Constituições anteriores2.
1
2
Celso Ribeiro Bastos ensina: “A nossa Constituição consagra, neste artigo, a educação como sendo um direito
de todos e um dever do Estado e da família, sendo promovida e incentivada com a colaboração da sociedade.
Podemos observar que esse dispositivo constitucional possui um caráter bifronte, pois, simultaneamente à garantia do direito do povo de receber a educação, concede- lhe o direito de exigir essa prestação estatal, como
também atribui à própria sociedade o direito de ministrar o ensino. O Estado adquire, dessa maneira, uma postura intervencionista e assume o papel de prestador de serviços na área da educação. Esta abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de
ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”
(Comentários à Constituição do Brasil, 8º vol., Ed. Saraiva, 2000, 2a. ed., p. 482).
O artigo 193 da Constituição Federal está assim veiculado: “A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”, tendo eu sobre ele escrito: “O artigo 193 reproduz o
plexo de valores enunciados nos artigos 1º, incisos III e IV, 3º incisos I, III e 170 “caput”, incisos VII e VIII, assim redigidos:”Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municí-
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Após o capítulo da Seguridade Social, que trata principalmente do papel
do Estado na proteção da Previdência, Saúde e Assistência Social, o constituinte
de 88 perfilou a Educação, a Cultura e o Desporto como seqüência natural e relevante do Título VIII, tendo como indicativo a ordem de que, além do bem-estar social, uma nação só cresce a partir da preparação de seu povo, fundamentalmente, pela Educação (1ª secção), pela Cultura (2ª secção) e pelo Desporto
(3ª secção), dimensões naturais do desenvolvimento do indivíduo, com mens
sana in corpore sano3.
Dos três estágios da ordem social mencionados, a Educação é o mais importante, visto que sem educação, prestada em nível fundamental e médio, universitário e de pós-graduação, é impossível lançar os alicerces do futuro de um
grande país.
O ponto característico dos artigos 205 a 214 da Lei Maior é definido pela
forte responsabilidade do Estado em assegurar educação ao povo, que chega ao
comando de impor escola gratuita obrigatória para o ensino do primeiro grau,
sob responsabilidade primacial do Poder Público4.
Entretanto, é admitida a presença da iniciativa privada nas atividades de
ensino, em todos os níveis, sendo impostas as condições constantes dos artigos
209 e 213 da Carta Magna, assim redigidos:
3
4
pios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: ... III. a
dignidade da pessoa humana; IV. os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; ...”;
“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I. construir uma sociedade livre,
justa e solidária; ... III. erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”;
“Art. 170 A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: ...
VII. redução das desigualdades regionais e sociais; VIII. busca do pleno emprego”.
Como se percebe, o constituinte, em diversos dispositivos, reiterou objetivos, que, por sua relevância, entendeu necessário serem permanentemente perseguidos e respeitados além de torná-los de amplo conhecimento dos cidadãos e do Governo”(Comentários à Constituição do Brasil, 8º vol., ob. cit. p. 4).
A frase é extraída de Juvenal “orandum est sit rit mens sana in corpore sano”, lembrando-se que Maciel dissera: “Non vivere sed valore vita est”.
Pinto Ferreira comenta o artigo 206, inciso III e IV da CF assim redigidos: “Art. 206 O ensino será ministrado
com base nos seguintes princípios: .... III. pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de
instituições públicas e privadas de ensino;
IV. gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais”: “A democracia pressupõe o pluralismo de pensamento, de idéias e concepções pedagógicas, vedando-se qualquer monopólio escolar tendente a envenenar
o regime democrático.
O sistema pedagógico brasileiro pressupõe a colaboração do Poder Público, organizando estabelecimentos gratuitos, ao lado de entidades privadas de ensino, mantidas e organizadas por particulares, com fins lucrativos,
como regra.
(...)
GRATUIDADE DE ENSINO NOS ESTABELECIMENTOS OFICIAIS
A Constituição Federal prevê a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais. Tal gratuidade vigora para todos os graus, inclusive o ensino superior” (Comentários à Constituição Brasileira, 7º vol., Ed. Saraiva,
1995, p. 85).
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Art. 209 O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:
I. cumprimento das normas gerais da educação nacional;
II. autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público;
Art. 213 Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas,
podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que:
I. comprovem finalidade não-lucrativa e apliquem seus excedentes
financeiros em educação;
II. assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder Público, no caso
de encerramento de suas atividades.
Melhor explicando, à iniciativa privada é garantida a atuação no segmento
educacional, uma vez preenchidos os requisitos constitucionais únicos de:
1) cumprir as normas gerais de educação, o que vale dizer, observar os padrões definidos pela lei
e
2) ter o mesmo nível das escolas públicas, visto que a avaliação e a autorização pressupõem qualidade de ensino, que não poderá ser inferior àquela que o próprio Poder Público oferta5.
No aspecto do ensino universitário, a Constituição Federal concedeu autonomia para as Universidades, que lhes garante critérios mais latos de atuação no desempenho da função pública a elas conferida em caráter eminentemente de assistência social.
Esta a dicção do artigo 207:
Art. 207 As universidades gozam de autonomia didático-científica,
administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão
ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão (grifos nossos).
Como em relação à criação de instituições dedicadas ao ensino universitário,
há rígido sistema de autorizações, qualificações, avaliações e permanente controle
5
Alexandre de Moraes comenta o artigo 209, dizendo: “A Constituição Federal, afirmando que a educação é direito de todos, consagra sua opção pelo ensino público, porém autoriza a atuação da iniciativa privada” e elenca decisão do STJ: “Ensino privado e obediência aos preceitos constitucionais: STJ - “O ensino universitário administrado pela iniciativa privada há de atender aos requisitos previstos no art. 209 da Constituição
Federal: cumprimento de normas de educação nacional e avalização de qualidade pelo Poder Público” (STJ- 1a.
Seção - MS n. 3.318/DF -Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, Diário da Justiça, Seção I, 15 ago. 1994, p. 20.271)””
(Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional, Atlas Jurídico, São Paulo, 2002, p. 1962).
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dos poderes públicos, soa, o artigo 207, dentro do texto constitucional, como uma
“quase exceção à regra”, ou seja, preenchidos os severos parâmetros para que uma
universidade seja criada, sua autonomia didático-científica, administrativa, de gestão
financeira e patrimonial é assegurada, sempre obedecendo à indissociabilidade do
ensino, pesquisa e extensão.
II.
DA IMPOSSIBILIDADE DE CONFUSÃO PATRIMONIAL ENTRE A UNIVERSIDADES E SUAS MANTENEDORAS PRA FINS DE ATENDIMENTO A INTERESSE PRIVADO
Como as leis, e as decisões judiciais que as aplicam, podem apenas esclarecer
o pensamento do legislador maior, mas jamais ultrapassá-lo, impedindo, o princípio
da supremacia constitucional, que possa haver delegação do poder constituinte ao
elaborador de leis ordinárias, ou ao poder jurisdicional, fora dos parâmetros estabelecidos pela Lei Maior, resta evidente a peremptoriedade da autonomia administrativa e de gestão financeira e patrimonial no desempenho da atividade de educação
das Universidades.6
Nesse contexto é que se impõe a distinção entre a Entidade Mantenedora e
a Entidade Mantida, descabendo uma confusão sob o manto de garantia de interesse privado, em detrimento de uma atividade com características de interesse público, social.
6
Sobre tal dispositivo, José Goldberg e Eunice Durham afirmam:
“A autonomia, entretanto, é indispensável. A universidade não é uma repartição pública, mas uma instituição
de ensino e pesquisa, que cumpre uma multiplicidade de outras funções culturais, além de prestar inúmeros
serviços à população e ao regime de trabalho, e a forma de recrutamento de pessoal não pode ser a mesma
quando se trata da burocracia da administração central, dos serviços técnicos em laboratório altamente complexos, do atendimento nos hospitais, do exercício da docência e da pesquisa”. (In As Constituições Brasileiras – análise histórica e propostas de mudança, São Paulo, Brasiliense, 1993, p. 179).
No mesmo sentido, afirma Celso Ribeiro Bastos, em trabalho conjunto com o primeiro subscritor deste parecer:
“A autonomia administrativa, portanto, é instrumento, decorrência e condição da autonomia didático-científica, e pressuposto da autonomia de gestão financeira e patrimonial. Consiste basicamente no direito de elaborar normas próprias de organização interna, em matéria didático-científica e de administração de recursos humanos e materiais; (grifo nosso) e no direito de escolher dirigentes”.
“O conceito de autonomia universitária, mencionado pelo art. 207 da Constituição, sob comento, deve ser interpretado em consonância com os princípios constitucionais, é dizer, em harmonia com o corpo no qual se
insere. Essa autonomia é relativa e instrumental, mas vinculada à Administração, uma vez que a universidade
pública é um ente da Administração Pública. A autonomia concedida às universidades tem por escopo facilitar
às universidades o desempenho da difícil tarefa de desenvolver o ensino superior, a pesquisa e a extensão. Visa
a impedir que a universidade sofra qualquer tipo de interferência que lhe dificulte o perfeito desempenho de
suas atividades.
A autonomia universitária se manifesta de maneira diferenciada nas universidades privadas e nas públicas. As
universidades particulares são mantidas por entidades privadas, desfrutam, portanto, de uma autonomia maior
que a das universidades públicas no que se refere a seus docentes e servidores.” (in Comentários à Constituição do Brasil. Bastos, Celso Ribeiro e Martins, Ives Gandra da Silva Martins. São Paulo, Saraiva, 8º Volume, 2ª
ed. 2000).
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Destarte, a atividade de ensino com caráter público, deve ser preservada de
débitos decorrentes de relação jurídica de cunho privado, uma vez que as Universidades, quando reconhecidas pelo Ministério da Educação – MEC, por intermédio de
Portaria Ministerial, redundam em organização de assistência social pelo fim de interesse público a que atendem, nos termos do artigo 203 da Constituição Federal assim redigido:
Art 203 - A assistência social será prestada a quem dela necessitar,
independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por
objetivos:
I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;
II - o amparo às crianças e adolescentes carentes;
III - a promoção da integração ao mercado de trabalho;
IV - a habilitação e a reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;
V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa
portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir
meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua
família, conforme dispuser a lei.
Por outro lado, normalmente, as mantenedoras têm a função prevista em seu estatuto de garantir as condições de funcionamento das atividades essenciais da mantida,
colocando à sua disposição os meios econômicos, financeiros e patrimoniais, necessários
ao atendimento dos seus objetivos, estabelecendo-se uma situação de comunicabilidade
patrimonial apenas positiva das mantenedoras em relação às mantidas, tendo em vista
que estas são direcionadas ao exercício de sua função pública e social do ensino.
Nesse contexto é que, nos termos em que definido pela Lei Maior, as Universidades não podem ter suas atividades prejudicadas com débitos de suas respectivas mantenedoras, a elas cabendo apenas os mencionados meios econômicos, financeiros, patrimoniais necessários ao atendimento dos seus objetivos.
Em outras palavras, as Universidades têm direitos em relação às mantenedoras, e não responsabilidade por eventuais obrigações e insolvências não fraudulentas, tendo em vista a proteção constitucional de sua atividade.
III. DA IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA ENTRE ENTIDADES MANTENEDORAS E MANTIDAS
A aplicabilidade da desconsideração de pessoa jurídica (disregard doctrine)
comporta a autonomia patrimonial da pessoa jurídica em relação aos seus
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sócios, utilizada com o escopo de realização de fraudes, sendo tal mecanismo utilizado para impedi-las de ocorrer.
Na hipótese em análise de relação de mantenedoras e Universidades mantidas, o que impede o Poder Judiciário de alcançar o faturamento das Universidades
é a função social precípua que desempenham, protegida pela Lei Maior, a qual não
pode ser prejudicada em privilégio de interesse privado.
Por outro aspecto, a aplicação da disregard doctrine implica uso de autonomia patrimonial de pessoa jurídica para a consecução de fraude, requisito este essencial para a responsabilização direta e pessoal de sócio; vale dizer, simples insolvência da entidade mantenedora, que não se utilizou a entidade mantida para ganho
fraudulento carece de suporte fático para a subsunção ao estatuído na autorização
legislativa do art. 50 do Código Civil de 2002 assim redigido:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode
o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público
quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e
determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens
particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
Como dito, inexistindo relação de sociedade entre mantenedoras e mantidas
as receitas das mantidas não aproveitam àquela, tampouco aos seus sócios em caso
de impossibilidade legal de sua distribuição.
Por outro aspecto, é importante frisar que a inaplicabilidade da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, para as Universidades e suas mantenedoras,
também se dá pela descaracterização de tais modelos na categoria de Grupos Econômicos pois, normalmente, são instituições de educação superior mantidas por Associações de Ensino constituidas sob a forma de sociedades civis, sem fins lucrativos a quem, também normalmente, pertencem todos os bens utilizados pelas Universidades.
Evidente, portanto, que é inaplicável a desconsideração para fins de penhora
de faturamento de entidade de ensino mantida, com fundamento na base de Grupo Econômico.
A doutrina de Fábio Ulhoa Coelho é cristalina a respeito desses conceitos, razão pela qual sua transcrição se mostra esclarecedora:
DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA
A autonomia patrimonial da pessoa jurídica, princípio que a distingue de seus integrantes como sujeito autônomo de direito e obrigações, pode dar ensejo à realização de fraudes.
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Se uma pessoa física se vincula contratualmente a outra, por obrigação de não-fazer e na qualidade de representante legal de sociedade empresária faz exatamente aquilo que se havia comprometido omitir, no rigor do princípio da autonomia da pessoa jurídica,
não teria havido quebra do contrato.
Quem fez a sociedade, e não a pessoa física que agiu em nome
dela. Assim também ocorreria se um empresário individual vendesse, a prazo, o seu estabelecimento empresarial a sociedade de
que detivesse 90% do capital, instituindo-se sobre ele garantia de
direito real em seu próprio favor. Em ocorrendo a falência da sociedade, o seu sócio majoritário, por ser credor preferencial, seria
pago anteriormente aos quirografários. Aquele que, no insucesso
do negócio, deveria ser considerado devedor (o empresário individual antigo titular do estabelecimento) assume a condição de credor privilegiado, com direto prejuízo ao atendimento aos demais.
Como se vê destes exemplos, por vezes a autonomia patrimonial da
sociedade empresária dá margem à realização de fraudes. Para
coibi-las, a doutrina criou, a partir de decisões jurisprudenciais
nos EUA. Inglaterra e Alemanha, principalmente, a “teoria da desconsideração da pessoa jurídica”, pela qual se autoriza o Poder
Judiciário a ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica,
sempre que ela tiver sido utilizada como expediente de realização
de fraude. Ignorando a autonomia patrimonial, será possível responsabilizar-se, direta, pessoal e ilimitadamente, o sócio por obrigação que, originariamente, cabia à sociedade.
Pressuposto inafastável da despersonalização episódica da pessoa
jurídica, no entanto, é a ocorrência da fraude por meio da separação patrimonial. Não é suficiente a simples insolvência do ente
coletivo, hipótese em que, não tendo havido fraude na utilização
da separação patrimonial, as regras de limitação da responsabilidade dos sócios terão ampla vigência. A desconsideração é instrumento de coibição do mau uso da pessoa jurídica; pressupõe, portanto, o mau uso. O credor da sociedade que pretende a sua desconsideração deverá fazer prova da fraude perpetrada, coso contrário suportará o dano da insolvência da devedora. Se a autonomia patrimonial não foi utilizada indevidamente, não há fundamento para a sua desconsideração.
A desconsideração da pessoa jurídica não atinge a validade do
ato constitutivo, mas a sua eficácia episódica. Uma sociedade que
tenha a autonomia patrimonial desconsiderada continua válida,
assim como válidos são todos os demais atos que praticou. A sepa-
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ração patrimonial em relação aos seus sócios é que não produzirá nenhum efeito na decisão judicial referente àquele específico
ato objeto da fraude. Esta é, inclusive, a grande vantagem da desconsideração em relação a outros mecanismos de coibição de
fraude, tais como a anulação ou dissolução da sociedade. Por apenas suspender a eficácia do ato constitutivo, no episódio sobre o
qual recai o julgamento, sem invalidá-lo, a teoria da desconsideração preserva a empresa, que não será necessariamente atingida
por ato fraudulento de um de seus sócios, resguardando-se, desta
forma, os demais interesses que gravitam ao seu redor, como o dos
empregados, dos demais sócios, da comunidade etc.
O pressuposto da desconsideração, já se viu, é a ocorrência de fraude
perpetrada com uso da autonomia patrimonial da pessoa jurídica.
Esta, que é a formulação mais corrente da teoria, dá, pois, relevo à
presença de elemento subjetivo. Fábio Konder Comparato propôs
uma formulação diversa, em que os pressupostos da desconsideração
da autonomia da sociedade são objetivos, como a confusão patrimonial ou o desaparecimento do objeto social. Por esta razão, é possível
chamar-se a primeira de concepção subjetivista a esta última de concepção objetivista da teoria da desconsideração da pessoa jurídica.
Na lei, a desconsideração da personalidade jurídica é mencionada nos arts. 28 do Código de Defesa do Consumidor, 18 da Lei Antitruste (LIOE). 4º da legislação protetora do meio ambiente (Lei n.
9.065/98) e 50 do Código Civil de 2002 (dispositivo, aliás, inspirado
na formulação objetivista de Comparato.” (Manual de Direito Comercial, Fábio Ulhoa Coelho, págs126, 127, Ed. São Paulo)7
7
O primeiro subscritor do presente artigo, Ives Gandra Martins, na mesma linha, escreveu: Embora sejam muitas as facetas da teoria da desconsideração da pessoa jurídica, no Direito Comparado, no Brasil restringese sua discussão a duas grandes vertentes, ou seja, à teoria extensiva e à teoria limitativa.
Pela primeira, sempre que os atos praticados, por intermédio da pessoa jurídica,refugirem-se aos limites de
sua personificação, tais atos não seriam inválidos, mas ineficazes para aquela forma, embora ganhando
eficácia atributiva a outra conformação jurídica. O superamento da pessoa jurídica decorreria de sua inadequação no receber a forma pretendida pelas partes, forma esta incapaz de tirar a validade jurídica do
negócio acordado, mas recebendo tais atos jurídicos outro tratamento jurisprudêncial ou legislativo.
Pela teoria limitativa, a desconsideração seria necessariamente formulação jurisprudencial, visto que a
previsão legal da hipótese desconsiderativa já representaria tratamento legislativo pertinente, razão pela
qual não hospedaria a teoria da desconsideração as apenas uma singela teoria de imputação dos efeitos
legais aos atos normados.
As duas correntes possuem, no Brasil, adeptos de escol, quase sempre, em sua versão privativista, ou seja,
naquela em que a lacuna legal é preenchida pelo fenômeno superativo ou a previsão legal já lhe dá tratamento pertinente.
O aspecto de interesse, todavia, é que a desconsideração da pessoa jurídica prevê a utilização da personificação de forma inadequada. Os atos são praticados pela sociedade, mas nela não têm os reflexos pretendidos, embora válidos, pois superam a confomação legal de suas virtualidades. (Ives Gandra da Silva Martins, “Direito Público e Empresarial, Ed. CEJUP págs. 61, 62).
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Também oportuna a transcrição da doutrina de Suzi Elizabeth Cavalcante, assim redigida:
Entretanto, o próprio VERRUCOLI reconhece que não é possível recorrer-se sempre à noção de abuso de direito para fundamentarse a desconsideração pois, nas várias hipóteses, esta se coloca em
termos que excluem qualquer referência a uma concepção, ainda
que lata, de abuso.
Do mesmo modo, SERICK, que estuda na primeira parte de sua
obra em que a estrutura formal da pessoa jurídica é utilizada de
maneira abusiva, por perceber a insuficiência dessa noção, recorre à análise da específica finalidade de determinadas normas legais para justificar a aplicação da Disregard Doctrine, afirmando,
então, que esta pode ocorrer em dois casos: quando se utiliza abusivamente a estrutura formal da pessoa jurídica para fins ilícitos,
e para relacional determinadas normas com a pessoa jurídica.
Cite-se, ainda, o argentino DOBSON que, apesar de afirmar que o
ponto de partida para a desconsideração deva ser o abuso de direito, acaba por concluir que ela não deve basear-se exclusivamente nele, mas também na simulação fraudulenta e no interesse público. (Koury, Suzi Elizabeth Cavalcante in A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. 2ª ed. Forense, Rio de Janeiro, 1995).
Em relação à manifestação doutrinaria supra transcrita, é importante frisar que
na hipótese de interesse público que a autora menciona deva ser preservado, resulta que a aplicação da desconsideração da pessoa jurídica às instituições de ensino,
ao invés de protegê-lo, acabaria por afrontá-lo.
Nesse sentido também evidencia a jurisprudência pátria conforme se depreende dos seguintes julgados:
TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA OU
DOUTRINA DA PENETRAÇÃO-CABIMENTO - “A Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica ou Doutrina da Penetração
(Disregard of legal entity, in Rubens Requião, “Curso de Direito Comercial”, Saraiva, 4ª.ed., 1974, p.239), busca atingir atos de malícia e prejuízo. A jurisprudência aplica essa teoria quando a sociedade acoberta a figura do sócio e torna-se instrumento de fraude
(RT 479/194; 552/181; Ap.458.453/6, 4ª.C, Rel.Octaviano Lobo)... Há
necessidade de demonstração que os sócios agiram dolosamente...que a sociedade foi usada como biombo, para prejudicar ter-
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ceiros, ficando o patrimônio dos sócios astuciosos longe do alcance do processo de execução. (Juiz Octaviano Santos Lobo, 1º. TAC,
AI 554.563/3, 4ª.C, j.27.10.93) cit. in RT 708, p. 117.
(2º.TACIVIL - Ap.c/Rev. 433.508 - 9ª.Câm.-Rel.Juiz Claret de Almeida
- j. 07.06.1995) AASP Ementário 18/95, 1959/3 TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
- ...A Doutrina do superamento da personalidade jurídica tem por
escopo impedir a consumação de abusos e fraudes.” (2.º TACIVIL 8.ª Câm.; Ag.de Instr. n.º 505.963-0/0- Mogi-Guaçu; Rel.Renzo Leonardi; j.18.09.1997) AASP, Ementário, 2037/93e TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA- MANOBRA MALICIOSA DOS SÓCIOS - “Admite-se a desconsideração da personalidade jurídica quando os sócios tenham se valido da sociedade para
se isentarem da responsabilidade pelo pagamento das obrigações,
decorrentes dos negócios, que os beneficiaram direta e pessoalmente. (2.º TACIVIL - 2.ª T.; Ap.c/Rev.
n.º 436.097-0/00-São Paulo; Rel. Juiz Laerte Sampaio; j. 27.06.95)
AASP, Ementário, 2031/83
TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA EXTINÇÃO DA SOCIEDADE COM EXIST NCIA DE DÉBITO - “Execução - Penhora - Sociedade - Bens pessoais do sócio - Dissolução com
existência de débito - Admissibilidade da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. Formado o título executivo judicial em
face da sociedade e apurada a dissolução irregular desta, a pretensão satisfativa pode ser dirigida contra o patrimônio particular
do sócio.”(2.ºTACIVIL - Ap.s/Rev.469.245 - 5.ª C.- Rel.Juiz Laerte Sampaio - j.29.01.1997) AASP, Ementário, 2009/3
TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICAEXTINÇÃO IRREGULAR DA SOCIEDADE - RESPONSABILIDADE DOS
SÓCIOS- “Execução - Penhora - Sociedade - Bens pessoais do sócio Teoria da desconsideração da pessoa jurídica. Ante a extinção irregular da sociedade, que restou sem patrimônio para fazer face
aos débitos pendentes, respondem os bens particulares dos sócios,
desconsiderando-se, para esse efeito, a personalidade jurídica da
devedora.” (2.°TACIVIL - Ap.s/Rev.502.922 - 6.ªCâm.- Rel. Juiz Paulo
Hungria - j.03.12.1997) AASP, Ementário, 2052/3
É, portanto, de absoluta inaplicabilidade a figura superativa em caso de mera
insolvência, sem fraude, simulação ou qualquer resquício de objetivamente buscarse uma solução jurídica diversa daquela que serviu de base para o negócio jurídico
gerador da atividade educacional.
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IV. DA IMPROPRIEDADE DA PENHORA DE FATURAMENTO DE ENTIDADE DE ENSINO EM PRIVILÉGIO DE INTERESSE PRIVADO
As Universidades, no exercício de suas funções constitucionais de promoção
do ensino, existem para tais fins jurídicos, sendo sua autonomia, pra essas finalidades, garantida constitucionalmente, de onde deflui o direito inatingível às suas mensalidades; nesse contexto é que é imprópria a utilização da penhora de seu faturamento em detrimento de sua atividade social.
É de se impor, outrossim, o entendimento de que a constrição do faturamento é medida excepcional e de extremo rigor, que não se pode admitir no caso de
execução de título executivo de natureza privada, em detrimento de atividade de assistência social, nos termos do art. 203 da Lei Maior, conferida às Universidades nos
termos do art. 207 também da Carta Magna.
O direito positivo pátrio coaduna com esse arquétipo de princípios quando,
nos casos de falência de estabelecimentos, veicula a determinação legal de preferência aos créditos tributários, exceto aos decorrentes da legislação do trabalho, pondo o interesse privado de um crédito civil em plano inferior.
Melhor explicando, se no caso da falência, o crédito tributário, que tem preferência aos de natureza civil, a penhora sobre o faturamento tem característica excepcional e de extremo rigor, não se pode admitir tal constrição no caso de execução
de título de natureza civil em detrimento de atividade de ensino com nítido caráter
de assistência social garantida constitucionalmente.8
No mesmo sentido a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, assim
exemplificada:
A penhora sobre o faturamento de uma sociedade comercial deve
ser a última alternativa a ser adotada em um processo de execução, visto que implica verdadeiro óbice à existência da empresa,
8
(Art. 102, Parágrafo 1º da Lei de Falências (Decreto-Lei 7.661/45) que “preferem a todos os créditos admitidos
à falência a indenização por acidente do trabalho e os outros créditos que, por lei especial, gozarem essa
prioridade, bem como o disposto no art. 186 do Código Tributário Nacional que “o crédito tributário prefere
a qualquer outro, seja qual for a natureza ou o tempo da constituição deste, ressalvados os créditos decorrentes da legislação do trabalho”.
Nesse sentido, afirma Aliomar Baleeiro:
“O privilégio do crédito tributário pode ser considerado absoluto, pois deverá ser pago de preferência a qualquer outro, exceto os decorrentes de legislação do trabalho, isto é, salários e indenizações, incluindo-se nestas, a nosso ver, também as indenizações da Lei de Acidentes de Trabalho.” (Aliomar Baleeiro. Direito Tributário Brasileiro, 2ª ed. Rio de Janeiro: Forence, 1970, p. 538).
Afirma, ainda, Luciano Amaro:
“Começa o Código, no art. 186, por fixar a regra de preferência do crédito tributário, em face dos créditos de
qualquer outra natureza, exceto os decorrentes da legislação do trabalho. Não importa a data de constituição
dos créditos: ainda que um crédito civil, por exemplo, seja anterior ao tributário, a preferência é
deste” (grifo nosso) (Amaro, Luciano. Direito Tributário Brasileiro, 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 446).
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entendida como atividade econômica organizada profissionalmente para a produção,
circulação e distribuição de bens, serviços ou riquezas (Artigo 966
do novo Código Civil: “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção
ou a circulação de bens ou de serviços” – conceito de empresa)
O ordenamento jurídico pátrio confere proteção especial ao exercício da empresa - mormente o novo Código Civil, por intermédio
do Livro II, com a criação do novo Direito de Empresa -, de sorte
que ampla a construção doutrinária moderna acerca de suas características. Cesare Vivante, ao desenvolver a teoria da empresa
no direito italiano (cf. Trattato de Diritto Commerciale. 4. ed. Milão: Casa Editrice Dott. Francesco Vallardi, 1920) congregou os fatores natureza, capital, organização, trabalho e risco como requisitos elementares a qualquer empresa.
No mesmo sentido, Alfredo Rocco salienta a importância da organização do trabalho realizada pelo empresário e adverte que a

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