O surpreendente tecido dos saberes de cada lugar
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O surpreendente tecido dos saberes de cada lugar
O surpreendente tecido dos saberes de cada lugar BIODIVERSIDADE Conteúdo SUSTENTO E CULTURAS EDITORIAL 1 A agricultura: seus saberes e cuidados 4 Número 59, janeiro de 2009 Organizações coeditoras Acción Ecológica [email protected] Acción por la Biodiversidad [email protected] Campaña de la Semilla de la Vía Campesina – Anamuri [email protected] Centro Ecológico [email protected] grain [email protected] Grupo etc veró[email protected] Grupo Semillas [email protected] Red de Coordinación en Biodiversidad [email protected] REDES-AT Uruguay [email protected] Comitê Editorial Carlos Vicente, Argentina Ma. Eugenia Jeria, Argentina Ciro Correa, Brasil Maria José Guazzelli, Brasil Germán Vélez, Colômbia Alejandra Porras (Coeco-at), Costa Rica Silvia Rodríguez Cervantes, Costa Rica Camila Montecinos, Chile Francisca Rodríguez, Chile Elizabeth Bravo, Equador Ma. Fernanda Vallejo, Equador Silvia Ribeiro, México Magda Lanuza, Nicarágua Martin Drago, Uruguai Carlos Santos, Uruguai Administração Ingrid Kossmann [email protected] Edição Ramón Vera Herrera [email protected] Desenho e formatação Daniel Ortega, Claudio Araujo [email protected] Amanda Borghetti (Brasil) [email protected] Impressão cv Artes Gráficas ltda. [email protected] issn: 07977-888X Colômbia Lei Misak pela defesa do Direito Maior, patrimônio do povo misak UMA PANORÂMICA E MUITAS VISTAS 8 15 O misterioso tecido dos saberes de cada rincão México Manifesto dos povos de Morelos 25 ATAQUES, POLÍTICAS, RESISTÊNCIA, RELATOS 31 o Equador se livrará dos transgênicos? | foi imposta a propriedade intelectual na Costa Rica | contaminação transgênica de milho no Chile | a Via Campesina frente à crise global | declaram ilegal a tortilla feita a mão no México | bilaterals.org: uma ferramenta libertária | não ao tratado de livre comércio com a União Européia | um mercado alternativo zapatista em Chiapas | Paraguai: intoxicados | contaminando sem cruzar o rio | O Mutirão na Colômbia Os desenhos que servem de contraponto a este número, e que procuram ser uma mostra de atividades que os coletivos realizam como parte de seu cuidado do mundo desde sempre, provêm de muitas fontes. Incluímos trabalhos de vários artistas visuais (verdadeiros cronistas da vida comunitária), procedentes da tradição do papel amate na região nahua do Alto Balsas, em Guerrero, México. Eles são Abraham Mauricio Salazar (cuja obra se baseia em El ciclo mágico de los días, texto de Antonio Saldívar, Conselho Nacional de Fomento Educativo, México, 1979); Cleofas Ramíres Celestino (de seus desenhos e pinturas inspirados em La sirena y el pescador, Editorial Era, Ciesas, México, texto tradicional em versão bilíngue e tradução de Jose Antonio Lópes Farfán, 1997), Inocencio Jiménez Chino e Francisco García Simona (inspirados em La tradición del amate mexicano, Museu Mexicano de Artes Finas, A Casa das Imagens, Chicago-México, 1997). Além disso, se reproduzem desenhos e gravações de pintores do Renascimento ao século xix na Europa que dedicaram parte de sua obra à vida camponesa, como Pieter Bruegel, Hieronymus Bosch, Jean-François Millet, L. Lesigné, Camile Pissarro, Felix Bracquemond e Vincent Van Gogh. Os desenhos de Millet provêm de Dessins de JeanFrançois Millet, de Marie-Pierra Salé, Museu de Orsay, França, 2006. A todas estas obras lhes reconhecemos seu objetivo de difusão e entendimento e esperamos contribuir em sua continuação. As organizações populares e as ongs da América Latina podem receber gratuitamente a revista. Contatar REDES-AT Uruguai: [email protected] / http://www.grain.org/suscribe Convidamos a que se comuniquem conosco e nos enviem suas experiências, sugestões e comentários. Dirigir-se a Ingrid Kossmann [email protected] Os artigos assinados são de responsabilidade de seus autores. O material aqui coletado pode ser divulgado livremente, mas agradecemos que citem a fonte. Por favor, nos enviem uma cópia para nosso conhecimento. Agradecemos a colaboração da SwedBio e da Cooperación al Desarrollo da la Consejería de la Vivienda y Asuntos Sociales del Gobienrno Basco. Este número dedicado aos saberes locais recebeu o apoio expresso da Fundação Siemenpuu. Algumas edições da revista em português talvez sejam disponibilizadas apenas por meio eletrônico: envio para os assinantes com email cadastrado; arquivo para baixar no site www.grain.org/biodiversidad Biodiversidade, sustento e culturas é uma revista trimestral (quatro números por ano). As organizações populares, as ONGS e as instituições da América Latina podem recebê-la gratuitamente. Por favor, enviem seus dados com a maior precisão possível para simplificar a tarefa de distribuição da revista. Os dados necessários são: País, organização, nome e endereço completos: código de endereçamento postal (CEP), cidade e estado. (Correio eletrônico, telefone e/ou fax, se houver.) Enviem, por favor, sua solicitação a BIODIVERSIDAD, REDES-AT Uruguai, San José 1423, 11200, Montevidéu, Uruguai. Telefones: (598 2) 902 23 55/908 2730. [email protected] / http://www.grain.org/suscribe Francisco García Simona Biodiversidade, sustento e culturas é uma publicação trimestral de informação e debate sobre a diversidade biológica e cultural para o sustento das comunidades e culturas locais. O uso e a conservação da biodiversidade, o impacto das novas biotecnologias, patentes e políticas públicas são parte de nossa cobertura. Inclui experiências e propostas na América Latina, e busca ser um vínculo entre aqueles que trabalham pela gestão popular da biodiversidade, a diversidade cultural e o autogoverno, especialmente as comunidades locais: mulheres e homens indígenas e afroamericanos, camponeses, pescadores e pequenos produtores. Editorial É 1 Pieter Bruegel surpreendente e misterioso o tecido dos saberes de cada lugar, de cada rincão. Só a partir do centro de nossa própria experiência, o que sabemos, o que compartilhamos e exercemos para cuidar da vida adquire seu sentido pleno. E isso é o que somos. Cada rincão é um centro: nossa condição, nosso entorno, nossas circunstâncias, nossa história e nossos processos atuais, são só nossos, daqueles que compartilhamos o lugar onde existimos. Essas circunstâncias próprias nos fazem diferentes dos demais, mas ao mesmo tempo nos irmanam com os outros, porque a cada pessoa, família, comunidade ou coletivo ocorre o mesmo que a nós. Somos iguais porque somos diferentes. É libertária a ideia de que todo o rincão é um centro. Tal tecido de saberes, vivências, experiências e visões compartilhadas de rincão em rincão vem do fundo da humanidade, desde sempre, desde que a memória recorda a memória da memória, ou como o disse alguma senhora de algum povoado isolado nas montanhas de algum lugar da América Latina quando lhe perguntaram quão antigo era seu povo: “os ditos vão mais longe que a minha memória e eu não sei quão antiga é minha comunidade, mas já várias vezes morreram pessoas de mais de cem anos”. Assim é o desenho que aparece na capa deste novo número de Biodiversidade, sustento e culturas. É tão atual o que evoca e, ao mesmo, tempo tão antigo. E é real a aflição que alguém possa ter sentido olhando essa imagem, de que algo terrível se mostra com esses rostos tapados, como sem identidade, mas o real é que são apicultores, e seus afazeres com as abelhas e seus favos – que aí se mostram – seguem vigentes, inclusive com os mesmos vimes, com os mesmos cestos para se cobrir o rosto “porque se enxerga tudo por entre a trama, mas protege muito bem contra as picadas”. Devia ser igual quando Bruegel desenhou esses camponeses dos Países Baixos europeus no século xvi. A mesma sensação de solenidade, talvez de mistério ou até temor, puderam provocar assim vestidos, no caminho, se algum viajante chegasse a dar de cara com eles. Mas a vestimenta continua sendo eficaz, seguem sendo pertinentes os mesmos rituais de trabalho e companheirismo, o mesmo trato com as abelhas e suas sociedades, porque há comunidades para as quais a apicultura continua viva. Os saberes relacionados foram transmitidos desde então, de geração a geração, e dentro de sua mesma tradição se atualizam. Raimón Panikkar disse que: “mediante uma nova personificação das experiências tradicionais da humanidade é como podemos ser fiéis a elas, e é, além disso, só assim que podemos aprofundá-las e continuar a verdadeira tradição. A tradição autêntica não consiste na transmissão de fórmulas mortas ou costumes anacrônicos, mas sim em passar a chama da vida e a memória da humanidade”. N Pieter Bruegel 2 o mundo moderno, o monopólio mais total e impositivo é aquele que propõe que todo o método, toda a prática, todo o raciocínio, devem obedecer a uma lógica industrial, apesar disso ir contra as tradições e as estratégias comuns que durante milênios resolveram a vida das pessoas. Isso, que pouco se reconhece, é uma das opressões mais profundas que sofremos. Por essa lógica, o modo industrial suplanta toda a forma de fazer, a experiência, o invento, o experimento e a reflexão compartilhada que não siga a lógica de escala gigante e de produção massiva – causando danos imensos às escalas naturais das tarefas humanas. Os métodos da indústria e as imposições dos técnicos, dos políticos, dos sistemas e dos empresários são um rolo compressor que pode arrasá-las todas, em um suicídio planetário que não reconhece a importância de nenhuma relação, salvo a do dinheiro. E como o dinheiro substitui todas as outras relações, a lógica industrial converte todos os saberes em mercadoria, para fazer uso deles como partes de alguma produção em série. Tratar os saberes como mercadoria é fazê-los coisas e torná-los vazios e alheios. É despojá-los do impulso criativo – e comunitário – de onde surgiram. Os saberes mercantilizados tornam-se “conhecimentos” ensinados pelos “professores”, certificados grau a grau pelos “especialistas” no sistema oficial de “educação”, “econômico”, “científico” ou “assistencial”, até se desconectarem da comunidade de onde surgiram. Então, os controladores de empresas e os governos em nível local, nacional e mundial podem condicioná-los à sua vontade e até utilizá-los contra as pessoas que antes lhes iam dando forma livre. Ser uma mercadoria os faz propensos à compra-venda. Estarem certificados, serem usados como coisas, os coloca a atuar como “propriedade”, nesse caso “propriedade intelectual”, patenteável. Ao se patentear, são sequestrados do todo, e já não podem fluir em sua eterna transformação criativa. O patenteamento significa destruí-los como bens comuns, destruir a criatividade social. Porque é absurdo patentear todas as tarefas de uma comunidade ou apoderar-se dos elementos que fazem a vida de toda uma comunidade, um povoado, uma região. Como é possível patentear a cultura de um povo? Mas o fazem. E quando não se patenteiam, se menosprezam. A arrogância acadêmico-técnica pode considerar esses saberes “superstição, subjetividade, sentido comum, ignorância”. Assim, muita gente os abandona e adota o “conhecimento” dos especialistas, que custa dinheiro e que traz consigo também submissões e dependências, além de ser (em muitas ocasiões) contraproducente e nocivo, porque se baseia em suposições alheias, externas e que nivelam. Assim, erode-se a verdadeira civilização popular que na contracorrente dos sistemas mantém o mundo andando. P orque os saberes não são coisas. São tecidos muito complexos de relações, muitas delas ancestrais, e se entreveram com a comunidade, o coletivo, a região, a circunstância, a experiência de onde surgem e onde são celebrados como parte de um todo que pulsa porque está vivo. A esse todo, os povos indígenas do mundo chamam território: aí é onde os saberes encarnam, crescem e se reproduzem mediante a criação mútua, porque são pertinentes ao entorno social, natural e sagrado que os criou e segue criando. Podem ser técnicas de caça, métodos de plantio, limpeza, coleta, pesca, fiação, olaria, cozimento, ferraria, costura, seleção de sementes ou seu cuidado ancestral. Formas mais abstratas, como recolher água, equilibrar torrentes, convocar chuvas, recuperar mananciais, curar os solos, desviar os ventos, curar nostalgias, perdas, maus sonhos, dar à luz ou estancar feridas. São atitudes de dignidade e de respeito, mas também o empenho de não se deixar oprimir. São formas de querença, mas também modos de equilibrar o dano, a culpa e o fracasso. São também formas de organização e de tornar claro o trabalho e a vida social compartilhada, são formas de luta e resistência contra o esquecimento. Então, muitos pensadores e as pessoas comuns, por igual, nos damos conta de que o saber sempre se constrói no coletivo, de que não é possível que saibamos nada sozinhos, de que o saber individual é impossível, porque dizer saber é dizer linguagem, e a linguagem é nosso bem comum maior e mais amplo. Então, vamos entendendo que os saberes são bens comuns livres, e que se são privatizados se rompe o sentido de nossa vida e se coloca em risco o propósito fundamental de tais saberes, que é fortalecer a relação natural de respeito, cuidado e justiça entre as pessoas, as comunidades e o território natural onde nos relacionamos. Os saberes, construídos expressamente em coletivo, são a base de nossas possibilidades de resistência e utopia. Por isso, para que continuem vivos esses saberes, devemos assumir expressamente seu impulso de resistência. H oje, os povos, as comunidades, os coletivos indígenas-camponeses, mas também os coletivos urbanos de bairros e favelas, sabem que, para romper os cercos, é necessário reivindicar a construção própria dos saberes, o fomento a nossa teia comum de saberes não certificados, nossa recuperação da história própria, nosso próprio diagnóstico das condições que pesam sobre nossa região, nossos canais de confiança, nossa criatividade social, ou seja, nossa autogestão integral. Biodiversidade, sustento e culturas quer ser um espaço real para tornar viável esse sonho. Nessa teia compartilhada, nossa revista pode ser uma ferramenta para intercambiar experiências e torná-las fortes. Para impulsionar ações conjuntas e reflexões coletivas de longo prazo. Por isso, neste número em particular, quisemos celebrar os saberes, que são o coração da tradição milenar dos povos, das comunidades, dos coletivos, e queremos resgatá-los para que recuperem sua força e seu potencial de proposta, de criatividade e de justiça. Os saberes não são coisas, são tecidos de relações. São processos. Se continuamos vendo os saberes locais como coisas, ficamos na nostalgia daquilo que perdemos ou nos privatizam. Por outro lado, se resgatamos com força comunitária os saberes e estratégias que construímos coletivamente, a visão que vamos compartilhando mais e mais, o trabalho comum, desde nossos rincões que são centros, será mais provável defender a vida com toda sua esperança. l BIODIVERSIDADE 3 Jean-Francois Millet 4 Os povos do campo são os que têm alimentado a humanidade, inclusive no momento atual, quando se deflagra uma verdadeira guerra contra os camponeses e povos indígenas. Outro feito ignorado é que os camponeses e camponesas do mundo têm sido os criadores e diversificadores de todos e de cada um dos cultivos que hoje desfrutamos como humanidade. A agricultura: seus saberes e cuidados GRAIN A agricultura é obra e arte dos agricultores e agricultoras do mundo inteiro, uma obra que começou e continua se desenvolvendo desde dez mil ou talvez vinte mil anos atrás. Povos dos mais diversos recantos reconheceram a si mesmos como cultivadores: em muitos dos mitos fundacionais, saber e poder cultivar foi o que nos tornou humanos. Mas a agricultura, não o esquecemos, tem sido e é muito mais que cultivos e criação de animais. É também o uso e o cuidado da floresta, da água, das plantas medicinais, dos animais silvestres. Requer muitos outros saberes e habilidades: podar, enxertar, tosquiar, domar, domesticar, fiar, tecer, curtir, salgar, secar, fermentar, usar a argila, fabricar cestas, selecionar as melhores plantas e animais, prever o clima, cortar a madeira no momento adequado, reconhecer a lua para plantar, podar ou colher, são só alguns dos mais comuns. Povos do mundo inteiro – sob as mais diversas condições ecossistêmicas, sociais e culturais – construíram seus saberes até conseguir níveis de fineza e sofisticação que ainda nos custa apreciar em toda a sua extensão. O valor de tais saberes não passou despercebido. Inclusive em sociedades em que cultivar a terra foi considerado trabalho de classes inferiores, os saberes camponeses foram reconhecidos. Sócrates classifica o cultivo da terra entre os saberes mais importantes, em uma categoria similar ao saber médico. As crônicas européias falam repetidamente das diversas formas de agricultura dos povos da África, Ásia e América, muitas vezes com admiração pelo seu alto nível de sofisticação. Até o final do século xix, o Ministério de Agricultura dos Estados Unidos consultava os agricultores norte-americanos sobre como enfrentar as doenças das plantas ou a gripe suína. Há apenas umas décadas, o sistema de melhoramento animal da Noruega dependia fundamentalmente do trabalho de seus agricultores. Entretanto, pouco se disse de outros aspectos de grande importância. O primeiro, que os povos do campo são os que têm alimentado a humanidade, inclusive no momento atual, quando se deflagra uma verdadeira guerra contra os camponeses e povos indígenas. Outro feito ignorado é que os camponeses e camponesas do mundo têm sido os criadores e diversificadores de todos e de cada um dos cultivos que hoje desfrutamos como humanidade. Foi a gente do campo quem levou a cabo o lon- Jean-Francois Millet go, paciente e delicado processo de converter matos e ervas em alimento abundante, saboroso, nutritivo, atraente. Foi ela – e especialmente as mulheres – quem carregou as sementes quando empreendeu viagens, ou foi forçada a abandonar suas terras, e as compartilhou e distribuiu literalmente pelo mundo. Se hoje nos assombramos diante da diversidade do milho, da batata, do trigo, do arroz, dos feijões, é porque têm existido milhões de homens e mulheres do campo que os têm cuidado, selecionado, cruzado, adaptando-os às milhares de condições que surgem da combinação de diversos ecossistemas, comunidades, culturas, aspirações, sonhos e gostos. O trabalho genético e ecológico feito por mãos camponesas e indígenas nos cultivos que hoje nos nutrem não tem paralelo algum. Nada do conseguido com o melhoramento genético moderno teria sido possível sem a base de domesticação, melhoramento e diversificação presente nas centenas de milhares de variedades camponesas existentes em toda a terra. Nem o mais sofisticado trabalho de cruzamento e seleção feito em algum centro de pesquisa pode se comparar à tarefa de converter o teosinto em milho. Todos os melhoristas genéticos do mundo seriam incapazes de reproduzir a variedade de cores presentes no feijão, ou sua capacidade de se adaptar às mais diversas e extremas condições de crescimento. E, apesar de todo os trabalhos de pesquisa, ainda resta muito para aprender a respeito das finas inter-relações estabelecidas em muitos sistemas de cultivos tradicionais. Contudo, faz menos de cem anos que se disse – e se continua dizendo – que ser camponês ou indígena é sinônimo de ignorância, superstição, atraso. Desde os centros de pesquisa, das universidades e, especialmente das escolas, nos fazem a propaganda de que os únicos que sabem são os pesquisadores, os agrônomos, os professores. Milhares de anos de observação cuidadosa, de relações de cuidado e afeto, de busca coletiva e aprendizagem mútua tinham que ser esquecidos para dar espaço ao aprendido nos campos de experimentação sob condições controladas. Inventaram-se os conceitos de “extensão” e “transferência” para deixar claro que o conhecimento se produzia em determinados lugares – muito reduzidos – e o resto do planeta devia recebê-lo passivamente. Abriu-se assim o processo que não só levou à Revolução Verde e sua já conhecida sequela de contaminação e degradação ambiental, mas também a processos de homogeneização em todos os âmbitos da agricultura, incluída a homogeneização do pensamento daqueles que se apresentavam como os novos detentores do saber. Parece que não chamou ninguém à atenção que os agrônomos do Zimbábue, das Filipinas e da Argentina considerassem como ótimo o mesmo adensamento de plantio para tal ou qual cultivo que os agrônomos dos Estados Unidos ou da Austrália. Também não causou alarme que, em algum momento, a mesma variedade de tomate fosse plantada do México à Patagônia, do altiplano às terras baixas tropicais, ou que alguns agrotóxicos imediatamente se tornassem a ferramenta desejada nos mais diversos rincões do mundo. Muito menos atenção se deu ao fato de que a “transferência técnica” foi feita silenciando os povos do campo, escondendo ou marginalizando sistemas complexos que, há séculos, vinham acumulando O trabalho genético e ecológico feito por mãos camponesas e indígenas nos cultivos que hoje nos nutrem não tem paralelo algum. Nada do conseguido com o melhoramento genético moderno teria sido possível sem a base de domesticação, melhoramento e diversificação presente nas centenas de milhares de variedades camponesas existentes em toda a terra. Nem o mais sofisticado trabalho de cruzamento e seleção feito em algum centro de pesquisa pode se comparar à tarefa de converter o teosinto em milho. 5 6 As grandes corporações então inventaram a propriedade intelectual sobre as formas de vida e redefiniram as regras para monopolizar plantas, animais e conhecimento. No início, de maneira cautelosa, limitada e silenciosa. Nos anos 1990, o processo tornou-se agressivo, ambicioso. Hoje nos impõem de modo obrigatório e repressivo. O ato fundamental de cuidar, reproduzir e compartilhar as sementes passou a ser um delito. saberes sobre ecossistemas, cultivos, animais, árvores, microorganismos e toda a sua vasta rede de relações. Há menos de cinquenta anos do início da Revolução Verde, os efeitos estão ao nosso redor. Temos um mundo rural cada vez menos diverso, uma agricultura cada vez mais homogênea e concentrada. Enquanto os cultivos fortemente controlados pelo comércio internacional através das grandes corporações – trigo, milho, arroz – aumentaram sua produção global, a produção camponesa dos mesmos estagnou, principalmente porque os camponeses têm cada vez menos terra para plantar. Os cultivos que continuam significativamente em mãos camponesas – como as leguminosas – também estagnaram em sua produção e reduziram a área plantada. O desmatamento não só significou uma deterioração ambiental, mas também uma perda importante de fontes de alimentação humana e animal. A deterioração dos solos é dramática, e inclusive altera os ciclos hidrológicos e adiciona secas e inundações às difíceis condições vividas no campo. Poderíamos discutir longamente o porquê da ocorrência dessas mudanças. Foram mudanças provocadas a partir das mais diversas posições políticas e filosóficas, com objetivos diversos no final. Principalmente nos países do Terceiro Mundo, houve grande número de pesquisadores sincera e profundamente preocupados com o fantasma da escassez de alimentos e a realidade da pobreza no campo. Mas, depois de décadas Jean-Francois Millet de modernização, o quadro que temos diante de nós nos mostra claramente que – ao contrário do que se disse no momento de impulsionar as mudanças – não foi um processo em que todos ganharíamos. Os custos foram severos, e quem levou a pior parte foram os povos indígenas e o campesinato, aos quais supostamente se estava beneficiando. Durante o século xx, pela primeira vez na história da humanidade, os habitantes urbanos passam a ser a maioria. A mudança não foi produto de sonhos realizados nas cidades, mas do desaparecimento de famílias camponesas, da expulsão do campo por falta de trabalho e de perspectivas pela perda da terra, pela destruição e desmembramento dos territórios indígenas - do estrangulamento econômico e do processo perverso de fazer com que os jovens se sintam envergonhados de suas origens e culturas. Há os que ganham de modo dramático: os fabricantes de agrotóxicos e de fertilizantes sintéticos foram os primeiros, juntamente com as grandes empresas de alimentos. A venda de fertilizantes na América Latina cresceu uns 8% ao ano entre 1960 e 1990; a produção agrícola cresceu menos da metade disso. Empresas como a Nestlé, a Dow Chemical, a Bayer, a Merck e a Unilever cresceram nas últimas décadas a taxas muito mais altas do que as de qualquer agricultura no mundo. A busca de grandes lucros às custas dos agricultores não parou por aí. As grandes empresas entenderam rapidamente que é possível fazer agricultura sem agrotóxicos, sem fertilizantes e sem grandes maquinarias, mas é impossível fazê-la sem sementes e sem saber o que é necessário saber sobre elas e sobre os ecossistemas que as acolhem. As grandes corporações então inventaram a propriedade intelectual sobre as formas de vida e redefiniram as regras para monopolizar plantas, animais e conhecimento. No início, de maneira cautelosa, limitada e silenciosa. Nos anos 1990, o processo tornou-se agressivo, ambicioso. Hoje nos impõem de modo obrigatório e repressivo. O ato fundamental de cuidar, reproduzir e compartilhar as sementes passou a ser um delito. O impulso natural de usar, compartilhar e conversar sobre os saberes – a melhor forma de protegê-los e fazê-los crescer – foi restringido, condicionado e crescentemente tornado ilegal. A pressão sobre povos camponeses e indígenas foi tão brutal que não deixa de causar espanto como algumas organizações tentam remediar a situação buscando ferramentas dentro das mesmas normas de propriedade intelectual que hoje causam tanta destruição. Um dos mais perversos elementos da propriedade intelectual – em qualquer de suas formas – é que diz “proteger” plantas, animais e conhecimento, quando, na realidade, faz justamente o contrário. Plantas, animais, conhecimento e saberes humanos são e sempre foram um produto social e coletivo, em evolução permanente. Fortalecem-se na medida que são compartilhados e fluem livremente, se aperfeiçoam através do uso, da observação, da experimentação e da conversação; enriquecem-se na medida que cada pessoa, família, comunidade e povo pode experimentá-los e determinar livremente se são úteis como tais, se necessitam ser aperfeiçoados ou se é melhor descartá-los. A propriedade intelectual tenta privatizar o que por essência é obra coletiva, congela o que deve estar em mudança contínua e impede o próprio fundamento do saber: compartilhar, debater e decidir soberanamente. Certamente se protege a propriedade, mas no caminho se destrói diversidade, cultivos e conhecimento. Mas, iniciativas de resistência muito mais acertadas ressurgem nos últimos vinte anos junto com a expulsão, a destruição e a marginalização. Talvez o mais animador seja que se entendeu que a diversidade biológica, as sementes e os saberes não são coisas isoladas, mas sim o produto de processos sociais e ecossistêmicos. Recuperar a cultura, a espiritualidade própria, fortalecer a organização, o tecido social, os mercados locais, a capacidade de controle dos processos produtivos; restaurar as terras e territórios, reconstruir ecossistemas, proteger e potencializar a biodiversidade, diversificar a agricultura, reativar as sementes próprias: tudo são facetas de esforços que buscam assumir a complexidade dos processos que determinam a vida de povos e comunidades e retomar o controle dos mesmos. Em suma, os esforços de comunida- 7 des rurais da América Latina, Ásia, África, mas também da Europa, hoje buscam reconstruir o pleno direito de ser camponeses e indígenas. De acordo com cada circunstância, suas experiências tomam formas muito distintas. São um exemplo da biodiversidade cultural, social e política, necessária para recuperar a diversidade agrícola e biológica. São experiências que buscam reforçar a capacidade de tomar decisões de maneira coletiva, organizada e soberana. Uma característica é especialmente esperançosa: a reativação dos sistemas camponeses de construção de saberes, sistemas que fundem formas coletivas e pessoais de observação, experimentação e intercâmbio, e que, ao saber, unem o respeito, a espiritualidade e um conjunto de normas sociais localmente definidas. Essa busca permite a geração e a reativação autônoma de saberes por parte de comunidades e famílias e, no final das contas, o florescimento, de novo, da criatividade social mais antiga da humanidade. l Jean-Francois Millet Um dos mais perversos elementos da propriedade intelectual – em qualquer de suas formas – é que diz “proteger” plantas, animais e conhecimento, quando, na realidade, faz justamente o contrário. Plantas, animais, conhecimento e saberes humanos são e sempre foram um produto social e coletivo, em evolução permanente. Depois da marcha nacional de povos, comunidades, resguardos e organizações indígenas que percorreu a Colômbia em outubro e novembro de 2008 para fazer visível sua história, sua luta, suas demandas e propostas em um país que lhes responde com repressão e assassinato, este Direito Maior do povo misak adquire uma estatura imensa de sabedoria e respeito à vida e ao mundo. Apresentamo-lo para celebrar a cultura ancestral que, em dias passados, manifestou-se na Colômbia e perante o mundo. 8 Resguardo* de Guambía, autoridade ancestral do povo misak, território de Wampia Lei misak Pela defesa do Direito Maior, patrimônio do povo misak Preâmbulo. O povo misak (guambia- no), como constituinte primário, fazendo uso de nosso Direito Maior, por ser antigo, nativo e originário destas terras e territórios, de acordo com nossas constituições e leis e demais normas que nos têm regido por milhares de anos por meio da tradição oral neste continente, construídas por nossos ancestrais, avós, pais e hoje por nós herdeiros destas terras, onde estão os ossos de nossos antepassados, que são sagrados, as quais nos legaram para protegê-las, defendê-las, e desenvolvê-las com todos nossos deuses e espíritos e com identidade, para nossa sobrevivência. Exposição de motivos. Somos um povo Inocencio Jiménez Chino, San Agustín Oapan, Guerrero, México organizado em seu próprio território, que goza de sua autonomia e é respeitoso com a natureza e a identidade que dignifica nossas formas de vida. É dever das autoridades zelar pelo bem-estar de seu povo e fazer respeitar seus direitos ancestrais como misak a todos os seus componentes do território, com o poder que lhes dá o Direito Maior que o mundo testemunha. Para o povo misak a natureza é nossa mãe e espírito de vida, os elementos do mundo e do cosmo são um só conjunto, a diversidade biótica e abiótica é parte integral da terra, que no tempo e no espaço sustentou nossas vidas, dando-nos alimentos, sabedoria, dignidade e identidade mediante a constante inter-relação recíproca e, portanto, são inegociáveis sob qualquer circunstância. O povo misak, e outros povos originários do mundo, temos desenvolvido conhecimentos e sabedorias para garantir nossa existência e permanência em harmonia e equilíbrio com a natureza e seus espíritos, para ser guardiões desse legado, para que o perpetuemos às novas gerações, porque é uma obrigação cultural que os ciclos de vida exigem, porque é uma missão (dever-direito) milenar, própria, que se aplica no território, concedido e determinado pela lei cósmica natural. O dever e direito de defesa, proteção, luta na vivência dos conhecimentos e sabedorias para a permanência são as funções que o povo misak se impõe cumprir, com sua indispensável missão e mandato de preservação cultural, conservação das sabedorias e conhecimentos próprios, os quais têm um caráter milenar, único e autêntico. A cultura * Território tradicional indígena integra o território e dentro deste as terras, o ar, as águas, o petróleo, os minerais, a variabilidade de organismos vivos de qualquer origem, e todos os elementos são expressão dos saberes tradicionais acumulados durante toda a existência de nossa gente em todos os âmbitos de nossa vida. Para o povo misak, nenhum dos elementos que fazem parte de nossa cultura constitui matéria-prima para o atual período de globalização, para a engenharia genética, a omc, os governos, as ongs, centros de pesquisa ou as empresas nacionais, transnacionais e as multinacionais que privatizam a vida, contaminando-a, explorando-a e a destruindo para benefício e domínio de poucos. O povo misak jamais gerou conhecimento com procedimentos científicos (desenhos experimentais), empirismo (prova e erro), nem apriorismo (a razão), submetendo ao sofrimento, privando da vida, intoxicando, clonando e combinando genes de animais submetidos ao cativeiro e de plantas da natureza, para gerar receitas de drogas, medicamentos e demais produtos, extrapolando resultados de pesquisas de espécies diferentes para aplicá-las ao ser humano. O povo misak gerou e gerará saberes com métodos e procedimentos distintos dos da ciência, com identidade, dignidade, ética, comunicando-nos e dialogando em nossas linguagens com os espíritos das águas, plantas, animais, minerais, fogos, e podemos determinar e prever, sem equívoco, que há plantas com mutações, substâncias tóxicas que com nossos métodos podemos corrigir, que o fazemos desde sempre e para sempre, e se o expressamos hoje nesta Lei não é para que venham expropriálos, mas sim para que se saiba e se respeite. Quando o misak recebeu o território e a cosmovisão, a identidade e a dignidade, como exigência para as etapas do ciclo de vida, foram capacitados, por serem os primeiros povoadores, para garantir o equilíbrio e a harmonia entre a natureza e o ser humano, e adquiriram o compromisso de defendê-la, protegê- 9 Inocencio Jiménez Chino, 1994 la, mantê-la e devolvê-la para nossos filhos e para a humanidade toda. O povo misak com sua autonomia e autoridade está em condições de adotar medidas para a proteção e defesa do território, a cosmovisão e os conhecimentos, e sabedorias, e a repatriação de seu patrimônio. Somos os primeiros povoadores filhos e cultivadores de água deste continente, e para os povos que o habitamos não há espécie silvestre, nem espaço baldio, porque milenarmente temos sido conhecedores e sabedores na convivência com a natureza, por isso somos autoridade ambiental. N a Conquista, invadiram nossos territórios, saquearam nosso patrimônio natural, geraram o genocídio de povos milenares, acabaram com muitas de nossas culturas, com sua organização social, política e econômica, por isso os governos do mundo têm uma grande dívida histórica e ecológica pela qual devem indenizar nossos povos. Na Colônia, continuaram com o processo exterminador dos povos em resistência, com a usurpação de seus territórios, encurralando-os em pequenas áreas denominadas reservas, continuaram saqueando a mãe natureza causando sua deterioração, e escravizando e explorando nossos antepassados, e impondo-lhes suas idéías, sua política e sua religião. Nas Guerras de Independência, nos- Quando o misak recebeu o território e a cosmovisão, a identidade e a dignidade, como exigência para as etapas do ciclo de vida, foram capacitados, por serem os primeiros povoadores, para garantir o equilíbrio e a harmonia entre a natureza e o ser humano, e adquiriram o compromisso de defendê-la, protegê-la, mantê-la e devolvê-la para nossos filhos e para a humanidade toda. Inocencio Jiménez Chino A violência generalizada que o país viveu durante séculos causou grandes deslocamentos de povos indígenas, com o que se busca 10 ocupar nossos territórios para continuar saqueando-os em benefício das diferentes forças com seus grupos armados e as transnacionais apoiadas pelo Estado colombiano. Em consequência, a resistência pela vida e existência dos povos indígenas se torna cada vez mais difícil e complexa, porque nossos pequenos territórios se converteram em cenários de guerra. sos avós participaram direta e massivamente, contando muitos mortos, pensando que ao se livrarem do jugo espanhol a escravidão acabaria, se obteria a liberdade e se retomaria o caminho próprio, retornando aos territórios que lhes haviam sido usurpados, mas a única coisa que aconteceu foi que trocamos de senhorio, porque depois da independência continuou o sistema escravista, colonialista, exterminador e aniquilador. Com a República, foram impostas novas leis, normas e decretos, destinados a acabar com as reservas existentes, a declarar os territórios indígenas como baldios, e nossos avós como selvagens e menores de idade, favorecendo os fazendeiros proprietários de terras e a Igreja na sua tarefa de “conversão dos selvagens à vida civilizada”. A violência generalizada que o país viveu durante séculos causou grandes deslocamentos de povos indígenas, com o que se busca ocupar nossos territórios para continuar saqueando-os em benefício das diferentes forças com seus grupos armados e as transnacionais apoiadas pelo Estado colombiano. Em consequência, a resistência pela vida e existência dos povos indígenas se torna cada vez mais difícil e complexa, porque nossos pequenos territórios se converteram em cenários de guerra, causando danos irreparáveis a nosso patrimônio natural e cultural, a nossa economia, nossa saúde e a nossos sistemas de organização e sociais próprios. Em 1991, participamos da Constituinte, e a Constituição resultante nos reconheceu alguns direitos, mas isso não foi mais do que um engano, porque o processo de extermínio de nossos povos em todos os campos continua. A s empresas transnacionais, particularmente as relacionadas com a indústria farmacêutica e de alimentos que fazem uso da engenharia genética, os governos reunidos na omc, ongs nacionais e internacionais, vêm convertendo as reservas naturais biológicas, hídricas e minerais dos povos indígenas em bancos genéticos in situ e ex situ, e a diversidade cultural indígena em bancos de saberes e conhecimentos, preparando terra fértil para suas pretensões biopiratas e de cognopirataria. A globalização está gerando processos de saque da biodiversidade e dos saberes, particularmente nos territórios dos povos indígenas do mundo, especialmente de parte dos governos dos países industrializados, das transnacionais dedicadas à extração e venda dos recursos hídricos, minerais, biológicos, genéticos, farmacêuticos, assim como dos grandes centros de pesquisa, que não revertem os resultados e benefícios às regiões de origem, mas que os colocam à venda a quem oferece o melhor preço. O saque e apropriação da riqueza bio- lógica de nossas montanhas e florestas, das águas, minerais, e dos saberes, orienta-se para o controle sobre o território: o espaço e seus habitantes, suplantando nossa autoridade, autonomia e autodeterminação, e destruindo nossas culturas milenares. A imposição de conceitos e sistemas de “área crítica para a biodiversidade”, “desenvolvimento sustentável”, “permuta de dívida por natureza”, “serviços ambientais”, “cadeias produtivas”, “reservas estratégicas”, e outros, assim como a adoção de leis e políticas de águas, páramos, florestais, de desenvolvimento rural, etc. (que encobrem os grandes interesses que se escondem por trás do discurso da conservação), estão levando à mercantilização da natureza, subordinando-a à linguagem do capital, assim legitimando e delineando uma transformação jurídica e material que busca a instauração da propriedade privada da vida, o que afeta gravemente os direitos humanos fundamentais de dignidade e identidade de nossos povos. 11 Proclamação da Lei de Direito Maior Objetivos fundamentais. Promover o respeito, proteção e conservação de nosso território com toda sua biodiversidade, suas águas, ares, minerais, e tudo o que este contém. Assegurar a preservação cultural do povo misak, protegendo todos os seus conhecimentos e sabedorias coletivas. Evitar que sejam concedidos direitos de propriedade intelectual ou industrial sobre quaisquer elementos de nosso território e de nossa cultura, incluindo os conhecimentos coletivos de nosso povo. Promover o fortalecimento das capacidades de proteção e defesa de nossa gente. Dever misak. É dever do povo misak (os guambianos, o conjunto de todas as pessoas que compartilham elementos comuns da cultura e identidade misak, localizados em qualquer parte da geografia colombiana) e suas autoridades (a reunião do povo decidindo, representado pelo conjunto de integrantes de todas as Assembleias de Resguardos do povo misak) cuidar, proteger e conservar todo o nosso território (o espaço territorial ocupado milenarmente pelo povo misak e aqueles territórios onde hoje estão assentados), que é sagrado, incluindo os páramos, as montanhas, as florestas e áreas úmidas grandes e pequenas, lagos e nascentes, fontes ou “colchões de água”, as bacias hidrográficas, as grandes e pequenas rochas onde estão nossos deuses e os espíritos que nos protegem e nos dão a vida, e as zonas onde habitamos e produzimos nosso sustento, para que continue sendo um patrimônio coletivo sob nossa responsabilidade e cuidado. Os páramos, áreas úmidas e nascentes de águas, por serem morada de nossos deuses e espíritos, e por serem os lugares onde se originou nossa gente e nossa cultura, gozarão de proteção especial. Esses são patrimônio coletivo de todos os misak e nossas autoridades adotarão medidas para que eles sejam utilizados coletivamente, como reservas naturais e para atividades relacionadas com nossa vida espiritual. É dever do povo misak e suas autoridades cuidar, proteger, cultivar e conservar perpetuamente todas as formas de vida e todo o patrimônio natural que se encontram em nossos territórios, incluindo a diversidade biológica, animal, vegetal e de microorganismos, o ar, as minas de qualquer tipo, do solo e do subsolo, e os recursos energéticos de qualquer origem. Todas as terras do território misak serão destinadas prioritariamente a suprir as necessidades do ciclo de vida e identidade misak, em conformidade com nossos Planos de Vida. Aquelas adequadas à produção deverão ser dedicadas em primeiro lugar a incrementar e melhorar a produção de alimentos saudáveis para o autoconsumo, com a finalidade de melhorar a nutrição, a saúde e, em geral, o bem estar dos misak. Os cultivos comerciais e industriais não Abraham Mauricio Salazar, San Agustín Oapan, 1979 Os páramos, áreas úmidas e nascentes de águas, por serem morada de nossos deuses e espíritos, e por serem os lugares onde se originou nossa gente e nossa cultura, gozarão de proteção especial. Esses são patrimônio coletivo de todos os misak e nossas autoridades adotarão medidas para que eles sejam utilizados coletivamente, como reservas naturais e para atividades relacionadas com nossa vida espiritual. coesão familiar, a convivência coletiva e identitária e o respeito pela natureza. Restrições. Fica totalmente proibida 12 Inocencio Jiménez Chino, 1994 É dever do povo misak e suas autoridades respeitar, vivenciar, cuidar, proteger e conservar perpetuamente os conhecimentos e saberes, e todo o legado cultural herdado de nossos ancestrais, tanto os relacionados com o cuidado da biodiversidade como os que têm a ver com outros aspectos de nossa cultura, e que desde os tempos imemoriais são nosso patrimônio para as futuras gerações, que não pode ser alterado por ideologias alheias à concepção, pensamento e visão de seu próprio mundo. poderão deslocar a produção de nossos alimentos. O povo misak e suas autoridades deverão cuidar, proteger e conservar, defender e evitar qualquer profanação dos lugares que contém restos mortais de nossos antepassados, porque são os lugares mais sagrados de nossa história. É dever do povo misak e suas autoridades cuidar, proteger e conservar nosso genoma humano como patrimônio coletivo de nossa gente. É dever do povo misak e suas autoridades respeitar, vivenciar, cuidar, proteger e conservar perpetuamente os conhecimentos e saberes, e todo o legado cultural herdado de nossos ancestrais, tanto os relacionados com o cuidado da biodiversidade como os que têm a ver com outros aspectos de nossa cultura, e que desde os tempos imemoriais são nosso patrimônio para as futuras gerações, que não pode ser alterado por ideologias alheias à concepção, pensamento e visão de seu próprio mundo. É dever e obrigação do povo misak e suas autoridades retomar e fortalecer o mutirão como prática ancestral de unidade, integração, solidariedade e reciprocidade, e como estratégia de educação própria, para ensinar a sabedoria e o conhecimento milenários de nossos povos. É dever e obrigação do povo misak e suas autoridades fortalecer a justiça própria, e aplicá-la de maneira que se respeitem os direitos coletivos, familiares e individuais, para garantir o equilíbrio entre o direito e o dever de todos, a qualquer prática, comportamento ou conduta que contrarie ou que negue os artigos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9 da presente Lei. Nas zonas de páramo ficam expressamente proibidas as atividades de mineração, agrícolas, de criação de gado ou de turismo comercial; qualquer outra atividade comercial; o corte de árvores e a destruição por qualquer meio de frailejones e outros componentes da flora; a destruição da fauna; a provocação de incêndios ou outras atividades que causem definhamento de sua integridade. Proíbe-se a utilização do território misak para a introdução, plantio, utilização e comercialização de sementes e produtos transgênicos e seus derivados, assim como de plantas que tenham como finalidade um uso contrário à natureza e à cultura. O povo misak e suas autoridades assegurar-se-ão de que nenhuma pessoa, natural ou jurídica, misak ou forânea, introduza, deposite, armazene, despeje ou transite com dejetos tóxicos e perigosos, ou não tóxicos diferentes dos lixos domésticos de nossa gente, em parte alguma de nosso território. Fica proibido o acesso, a pesquisa, a saída, a utilização e a comercialização dos recursos genéticos dos corpos de nossa gente, tais como sangue, pele, cabelo ou outros tecidos, órgãos e o tráfico humano. Ficam proibidos os estudos e pesquisas propostos pelos misak ou forâneos, naturais ou jurídicos, nacionais ou estrangeiros, instituições governamentais ou não governamentais, que impliquem apropriação e privatização de qualquer elemento de nosso patrimônio natural ou cultural, que sejam contrários a nossos princípios éticos e culturais, que não busquem a sustentabilidade e a justiça, e cujos resultados conduzam à acumulação econômica. Ficam proibidas a apropriação e privatização sob qualquer forma dos com- ponentes dos recursos naturais, biológicos, genéticos, minerais, hídricos, tangíveis e intangíveis, assim como dos elementos culturais materiais e imateriais, existentes em nosso povo e território. Salvo no relacionado com as atividades próprias da sobrevivência de nossa gente, nenhuma pessoa, natural ou jurídica, misak ou forânea, nacional ou estrangeira, instituição governamental ou não governamental, poderá dispor deles mediante contratos, convênios ou projetos de serviços ambientais ou de qualquer outra índole, como concessões e venda, como também não poderá extrair informação sobre seu uso e manejo. Nenhum membro do povo misak poderá vender, doar, transferir, permutar, arrendar ou emprestar partes de nosso território para estabelecer ou construir obras civis contrárias ao Direito Maior e à presente Lei. Exceto no relacionado com as atividades próprias da sobrevivência de nossa gente, fica proibido aos misak e a todas as pessoas forâneas, instituições governamentais e não governamentais, nacionais ou estrangeiras, de qualquer índole e origem, copiar, modificar, reproduzir, publicar, distribuir, difundir, transmitir, no todo ou em parte, o conteúdo e processos da cultura do Povo Misak, bem como realizar apresentações animadas em qualquer forma, seja em meios magnéticos, figuras, jogos, ideogramas, marionetes, desenhos e aplicações de programas de informática, com fins lucrativos ou prejudiciais e destrutivos para nosso povo. Proíbe-se constituir direitos de propriedade intelectual ou industrial de qualquer índole sobre nossos genes ou sobre qualquer produto da manipulação genética dos mesmos; sobre os elementos da biodiversidade, seu conteúdo genético, ou qualquer produto derivado da manipulação genética ou outra dos mesmos; e sobre os elementos da identidade misak. O controle da ordem pública dentro do território misak será exercido por nosso povo e nossas autoridades. Fica proibido a nossa gente envolver-se ou promover a vinculação ou colaboração com qualquer ator armado. Proíbe-se em território misak a criação, montagem e utilização de meios privados de comunicação de massa que atentem contra a integridade cultural misak. 13 AMS Inocencio Jiménez Chino, 1994 Sanções. Em caso de violação de qual- quer das decisões desta norma de Direito Maior, o povo misak e suas autoridades procederão da seguinte maneira: Se o infrator é misak, aplicar-se-á sanção de acordo com nosso direito interno. Se o infrator é uma pessoa forânea, natural ou jurídica, apelar-se-á a todos os meios e tribunais nacionais e internacionais disponíveis, reservando-se a autoridade misak o direito de exigir a reparação da falta, castigar os responsáveis e a que se indenize o que corresponder, de acordo com nosso direito interno. O povo misak reunido em assembleia julgará suas autoridades quando estas incorrerem em falta grave contra os princípios e fundamentos do Direito Maior. O povo misak e suas autoridades deverão criar um sistema organizacional AMS Abraham Mauricio Salazar que possibilite a unidade, coesão e coerência como povo de todas as autoridades e comunidades reassentadas nos diferentes municípios e departamentos do território nacional. Outras disposições. Os territórios de 14 Abraham Mauricio Salazar Proíbe-se constituir direitos de propriedade intelectual ou industrial de qualquer índole sobre nossos genes ou sobre qualquer produto da manipulação genética dos mesmos; sobre os elementos da biodiversidade, seu conteúdo genético, ou qualquer produto derivado da manipulação genética ou outra dos mesmos; e sobre os elementos da identidade misak. outros povos indígenas vizinhos e as terras dos camponeses limítrofes aos territórios indígenas, especialmente nas zonas de páramos, serão protegidos por esta norma, com prévio acordo entre as partes. Os moradores das zonas urbanas que coabitam com os misak devem contribuir para proteger e conservar todo o patrimônio natural do município, entendendo que este também é para o seu benefício. As autoridades misak manterão relações permanentes com as autoridades nacionais para buscar solução aos problemas que nos afetam. Para o povo misak e suas autoridades a presente Lei é de cumprimento obrigatório e de hierarquia superior a qual- quer norma externa, e não está sujeita a nenhum controle jurisdicional. Esta será regulamentada em exercício do Direito Maior, e seu cumprimento será honrado perante o mundo com força de Lei. A autoridade nacional, departamental ou municipal e os juízes da república, das altas cortes, devem respeitar as decisões tomadas autonomamente por nosso povo e suas autoridades, e apoiálas para o bem de nosso povo e o dos colombianos. Este documento em seu conjunto tem o respaldo da Honorável Assembleia realizada no contexto do I Encontro pela defesa de nosso Direito Maior, Patrimônio dos Povos, realizado durante os dias 18 a 20 de maio de 2007, e hoje se proclama em Santiago de Guambía, Território Ancestral Wampia do Povo Misak, Silvia, Kauca, Colômbia, aos 12 dias do mês de agosto de 2007. l Cumpra-se O povo misak e suas autoridades ancestrais Tata Lorenzo Muelas Hurtado, gobernador Cabildo de Guambía; Tata Agustín Ulluné Almendra, vice-governador Resguardo de Guambía. Tata Joaquín Yalanda, Governador Resguardo La María; Tata Miguel Alfaro, vice-governador Resguardo La María. Tata Jesús Antonio Tombe Velasco, governador Resguardo Nam Misak. Tata Anselmo Yalanda, vice-governador Resguardo Nam Misak. Tata José Lázaro Pillimué, governador Resguardo Pisitau; Tata Domingo Ullune, vicegovernador Resguardo Pisitau. Tata Benedo Tunubalá, governador Resguardo Ovejas Siberia; Tata Feliciano Ullune, vice-governador Ovejas Siberia. Tata Segundo Tunubalá, governador Resguardo Kurak Chak; Tata Luis Roberto Tunubalá, vice-governador Resguardo Kurak Chak. Tata Javier Yalanda, governador Resguardo Bonanza; Tata Celio Tunubalá, vice-governador Resguardo Bonanza. Tata Álvaro Cantero, governador Resguardo San Antonio; Tata José Joaquín Tombe Morales, vice-governador Resguardo San Antonio. Tata Misael Calambás Tumiña, governador Resguardo Nuevo Amanecer; Tata Juan Yalanda, governador Resguardo Fonda Tambo. Tata Carlos Andrés Quevedo Cuchillo, governador Resguardo Ginebra Valle; Tata Uber Burbano Peláez vicegovernador Resguardo Ginebra Valle. Tata Bonar Yalanda, Resguardo Nu Pachik Chak; Tata Marco Antonio Tombé, Comissário maior Resguardo de Kizgo. Prefeitos Resguardo de Guambía: Tata Lorenzo Almendra Tombe, zona Cofre; Tata Manuel Antonio Almendra, zona Campana; Tata Francisco Tumiña Trochez, zona Pueblito; Tata José Vicente Paja, zona Cacique; Tata Benedo Almendra Tunubalá, zona Guambía; Tata Manuel Jesús Morales, zona Michambe; Tata marco Tulio Calambas, zona Tranal; Tata Gonzalo Tunubalá, zona Gran Chimán; Tata Edgar Tunubalá Trochez, zona Trebol. Secretários gerais: Tata Didier H Chirimuskay, Mama María Antonia Yalanda C. Secretários zonais: Mama Cecilia Almendra Yalanda, zona Cofre; Mama María Antonia Morales, zona Campana; Mama María Elena Tombe Almendra, zona Pueblito; Mama Magnolia Paja, zona Cacique; Tata Fabián Emilio Yalanda Tombe, zona Guambía; Mama: Jacinta Tunubalá, zona Michambe; Tata Jairo Humberto Tombe, zona Gran Chimán; Tata Luis Carlos Calambas, zona Tranal; Tata Manuel Jesús Cuchillo, zona Trebol; Mama Deisy Liliana Chilo Ramos, zona Alto Méndez. Comissários: Tata José Antonio Calambas Morales, vereda Agua Bonita; Tata Jairo Enrique Hurtado, vereda El Cofre; Tata Francisco Antonio Almendra y Tata José Antonio Tombe, vereda Piendamó Arriba; Tata Jesús Antonio Tombe Velasco, Tata José Antonio Tombe Ussa y Tata Luis Felipe Ullune, vereda Ñimbe; Tata Anselmo Mulas Tombe, Tata Joaquín Almendra Tome y Tata José Joaquín Velasco, vereda Campana; Tata Manuel Jesús Morales y Tata Miguel Antonio Morales, vereda Pueblito; Tata Javier Morales y Tata Juan de Dios Trochez. Uma panorâmica e muitas vistas O misterioso tecido dos saberes de cada rincão Desta vez queremos celebrar a magia das relações que tecem, dia a dia, há milhares de anos, a trama de saberes com que, desde a criação mútua, os povos e comunidades cuidam o mundo e encarnam uma civilização verdadeiramente popular que os filtros culturais e políticos dos sistemas não podem deter. O que aqui trazemos são frases, poemas, fragmentos de textos, cartas de protesto, reflexões e intervenções públicas de diversos sábios comunitários, quase todos indígenas, manifestos e comunicados do pensamento coletivo, mais a voz de outros pensadores que reconhecem a força dessa misteriosa construção comum que não fica no “pitoresco”, mas que vai ao fundo da humanidade, em sua cotidianidade mais íntima, até o ser mais político com o qual se enfrenta e transforma o mundo. Um grão de milho, roxo e duro, colocaste, amiga, na cinza cálida; e fazendo-te rir, de repente o grão se fez uma linda florzinha branca. Assim também em teu regaço morno colocaste um dia a descansar minha alma; e o grão de milho, que era minha pena, abriu-se como uma flor sobre tua saia. José Pedroni (poeta argentino de Santa Fé) A sociedade está produzindo outras formas de colonização com os meios de comunicação, ou quan- do vamos à escola. E nos dizem diariamente: “a forma como têm sabido viver, o que têm sabido comer e pensar, não serve. Devem ter uma forma de vida diferente, a urbana”. Já não vêm com o exército para nos levar para trabalhar em minas e terras de outros. Agora nos convencem de que nossa maneira de sentir, nossa religião, nossos costumes, nossos saberes, nossas formas de produção e relação com a Pachamama, nosso modo de viver em comunidade, não valem. É como se nos dissessem: “deixem tudo isso e vivam como nós”, “têm que avançar sozinhos”, “não pense você nos outros, esqueça-se da comunidade”. Você quer conversar sobre como planta as batatas, como cuida dos animais, e dizem “isso não vale”, e ensinam outras coisas, que nada têm a ver com a terra, com os animais. Assim começamos a ter vergonha de nós mesmos, começamos a pensar com a mentalidade e a cabeça de outros, é como se olhássemos com óculos, isso é a colonização: fazer-nos pensar e sentir como pensam os que dominam e conquistam, os que nos fazem pensar que somos inferiores. Assim nossos saberes são apagados, ou cuidamos deles às escondidas. “Todos vocês são pobres”, é a mensagem, supostamente porque não vivemos como nos dizem. Mas vamos descobrindo que temos muitas coisas importantes, começando porque temos uma terra onde viver, ainda que seja pouca, mas temos um lugar onde viver, temos nossos animais, temos uma comunidade com quem viver, com quem nos pertencer. Reflexão das comunidades Sablog San José e Sablog Chico, na oficina “Soberanía Alimentaria y Descolonización”, Heifer-Equador, fevereiro de 2008 15 Nós, o povo mapuche, milenar, com toda nossa 16 identidade, nossa espiritualidade, com nosso idioma o mapudungun, se reafirma e se assume na pertença à terra e nessa pertença cultural. Mas começamos a ver a necessidade de nos amalgamar com outros povos, outros irmãos que não são mapuches, mas que são gente da terra, e que também desenvolvem toda uma filosofia em torno dela. E distinguimos entre camponês e pequeno produtor. O pequeno produtor produz da terra de acordo com a demanda do mercado, cultivando intensamente - pode ser soja, frutas finas, tulipas -, e não pensa se os fertilizantes ou agrotóxicos lhe fazem mal. Opera e vê a terra como mercadoria, calculando sua rentabilidade. Esse pequeno produtor amanhã pode se converter em um grande produtor ou em um servo da Monsanto. O camponês tem uma relação mais de autossuficiência, mais harmônica, de diálogo, mais filosófica. Um camponês não responde às necessidades do “mercado” para obter dinheiro, mas à necessidade de sua própria subsistência, e ao mesmo tempo concebe sua vida a partir do respeito ao lugar onde está. Cria alguns animais, diversifica cultivos, faz trocas com outros camponeses, com os mapuches. Moira Millán, Primeiro Congresso de Educação Ambiental, Córdoba, Argentina, 2004. O projeto agrícola do povo p’urhépecha sempre foi ecológico. Procurava evitar a erosão da terra, e suas técnicas permitiam conservar a camada de matéria orgânica do solo, que contém os nutrientes suficientes para o bom rendimento dos cultivos sem contaminar nem erodir o solo. Fabricavam seus implementos de plantio com obsidiana, ferro e madeira, e fizeram enxadas de diferentes formas e tamanhos, de acordo com as características dos solos. Depois fizeram arados de madeira europeus que modificaram a forma de plantar. Antes não se faziam sulcos em linha reta nem se aravam terras para semear ou se faziam cruzas, respeitava-se o nível de água e a formação topográfica da região, que em grande parte de sua superfície é muito inclinada. Mas o arado abre a terra em forma horizontal ao sulco, o que permite a conservação da umidade e evita a erosão dos solos, em total harmonia com seu entorno natural. Assim, os solos se conservaram sempre férteis pela constante reciclagem, já que se deixava um ciclo intermediário sem se cultivar, permitindo que a terra se recuperasse com as diferentes plantas que se reproduziam de forma natural. Propiciavam a oxigenação, enquanto que o nitrogênio, o fósforo e outros elementos fortaleciam a terra, deixando-a pronta para o ciclo seguinte, adubada de forma natural. “La ecología del p’urhépecha”, Juan Chávez Alonso, comunidade de Nurío, Michoacán, México, 2006 A mão que recolhe água é o primeiro recipiente. Os dedos de ambas as mãos, que se cruzam entre si, formam a primeira cesta. Creio que assim nasce a rica evolução de toda a classe de trançados, de jogos de fios, até chegar ao tecido. Tem-se a sensação de que as mãos levam sua própria vida de transformação... Pode ser que tempos atrás tenha havido cascas vazias, como cascas de Jean-Francois Millet coco, mas estas eram jogadas fora sem maior atenção. Até que os dedos, que formam uma concavidade para recolher água, tornaram realidade a primeira fonte. Poderíamos imaginar que os objetos, em nosso sentido da palavra, objetos aos quais corresponde um valor porque os fizemos nós mesmos, existiram primeiro como sinais das mãos. Parece haver um ponto de enorme importância, em que o nascimento da linguagem gestual correspondeu ao prazer de alguém por si mesmo dar forma aos objetos, muito antes de tentá-lo realmente. O que se representava com a ajuda das mãos, somente mais tarde, uma vez que foi representado o suficiente, tornou-se realidade. Palavras e objetos seriam, pois, emanação e resultado de uma única experiência, essa de representar com as mãos. Tudo o que os humanos somos e podemos, tudo o que em um sentido representativo constitui cultura, foi incorporado pelas transformações... A vida própria das mãos, nesse sentido primigênio, se conservou ainda com maior pureza na gesticulação. Elías Canetti, Masa y poder, 1960 Assim como falam os paus da choupana entre si, assim como estes se necessitam, assim deve ser a comunidade... O braço não diz que o dedo mínimo não tem valor. Basta que um pedacinho se machuque para que todo o corpo sinta a dor. Leonidas Kantule, cacique kuna de Kuna Yala, Panamá A pessoa não é uma unidade monolítica nem uma pluralidade desconexa. Falar de uma pessoa singular, isolada, é uma pura contradição. O termo «pessoa» implica uma relação constitutiva, a relação expressa nas pessoas do pronome. O que se chama pessoa não é senão um nó em uma rede de relações (com outros nós). A pessoa é um cruzamento de caminhos. Um eu implica um tu, e enquanto esta relação se mantém implica também um ele/ela/isso como o espaço em que a relação eu-tu se estabelece. Uma relação eu-tu implica igualmente uma relação nós-tu que inclui o eles... Então, o saber, o pensamento, se constrói sempre entre vários. Não existe o saber individual. Raimon Pannikar, La trinidad, 1989 Só entre todos sabemos tudo. Juntar os momentos em um só coração, um coração de todos, nos tornará sábios, um pouco mais para enfrentar o que venha pela frente. Emeterio Torres, maraka’ame wixárika, Jalisco, México Já existiram mulheres chamadas A que se Ergue Forte, Ossos de Peixe, Trovão Diferente. Uma vez existiu uma moça com o nome de Suspensórios Amarelos. Imaginem o que terá sido colher amoras com Céu que Baixa ou caminhar em uma tormenta ao lado de Imune ao Raio. Com certeza alguém a ultrapassou e sobreviveu, mas o que ocorreu com a pessoa junto a ela. As pessoas sempre evitaram a companhia de Passa por Cima da Verdade quando desejavam uma resposta direta, e a de Eu Escuto quando queriam guardar um segredo. Radiante tinha que pintar o rosto com carvão para se aproximar do inimigo durante a noite. A mulher que se chamou Parada Longe podia ver coisas movendo-se além do lago. As anciãs espalhavam rumores frequentes sobre Aquela que Brinca, mas ninguém nunca se atreveu dizê-lo na sua cara. Gelo era uma boa jogadora de cartas. Brilhando pelo Costado gostava de sentarHieronymus Bosch se e conversar com Do Outro Lado do Céu. Ambas foram amigas de Pena que Faz Barulho, de Vento Cansado e de Nuvem Verde, filha de Ferro Vigilante. Centro do Céu foi viúva. Coelho, Galinha da Pradaria e Luz do Dia eram todas meninas pequenas. Ela Transumante podia andar grandes distâncias em um só dia. Cruz Raio tinha um sorriso poderoso. Quando Vento que Pousa e Gentil Mulher Quieta cantavam juntas, toda a tribo escutava. Parem o Dia obteve seu nome quando através de seu grito a tarde entrou em calma. Viga era forte, Nuvem que Toca Fundo era fraca e tísica. Miragem se casou com Vento. Todo mundo respeitava carinhosamente Nuvem Musical, mas as crianças se escondiam de Vestida de Pedra. Erva Estirada tinha enorme gentileza na voz e no tato, mas ninguém ousava contrariar Ela Negra de Coração. Podemos imaginar alguma coisa dessas mulheres pelos seus nomes. O historiador anishinaabe Basil Johnston anota que “tal era a mística e força de um nome, que se considerava presunçoso e nada próprio, inclusive vão, que uma pessoa dissesse o seu nome. Era o costume que um terceiro o pronunciasse para indentificá-la. Raramente, se acontecia, esposo ou esposa dirigiam-se pelo nome ao outro ou outra, em público”. “Los nombres de las mujeres”, Louise Erdrich, poeta da tribo anishinaabe de Minesotta, Estados Unidos Para ser sábios e livres, é o corpo do pensamento o que devemos cultivar, do mesmo modo como cul- tivamos o universo que nos pergunta: No que se parece o teu pensamento com os milhões de estrelas que se abrigam no céu. No que se parece teu pensamento com o vento da tarde. No que se parece ao sol que alumia e nos dá vida. No que se parece a uma águia em vôo. No que se parece às areias infinitas do deserto. No que se parece teu pensamento com as ondas do mar. No que se parece teu pensamento com a tempestade. No que se parece ao raio. No que ao relâmpago. No que se parece teu pensamento a uma barranca. No que se parece às pedras. No que se parece a uma montanha. No que se parece aos mananciais. No que se parece ao vapor que se ergue. No que se parece às nuvens passageiras. No que se parece teu pensamento à chuva fina. No que se parece a um rio caudaloso. No que se parece ao horizonte. No que se parece teu pensamento à floresta. No que se parece a uma árvore. No que se parece à vegetação. No que se parece a uma flor. No que se parece à terra reverdecida. No que se parece teu pensamento a uma lavoura de milho plantada. No que se parece aos grãos do milho verde. No que se parece teu pen- 17 Mas todos somos nivelados. Então dizemos que mais vale ter a razão do que ser presidente da república. No altar do universo sempre há duas velas acessas, a liberdade e a vida. O corpo do pensamento de que falamos sempre tem que cuidar para que essas duas velas continuem acessas. Por isso a rebelião aos tiranos é obediência à verdade. A rebeldia contra a injustiça não vem da corrupção do sentido jurídico, ao contrário, parte de sua exaltação. Uma pequena rebelião do povo, de vez em quando, é remédio necessário para o estabelecimento de um bom governo: toda rebelião tem sua origem, vitória ou morte, liberdade ou sepultura. “El pensamiento y sus afinidades”, Alfredo Osuna, presidente do Conselho de Anciãos da tribo mayo yoreme de Cohuirimpo, Sonora, Quarto Congresso Nacional Indígena, San Pedro Atlapulco, maio de 2006 18 Jean-Francois Millet Para um animal, seu entorno natural é algo dado. samento a um pântano. No que se parece a um homem e a uma mulher que se amam. Em que ao teu esqueleto que caminha sobre a terra com o desejo de alcançar a estrela da noite que se converte em manhã. Em que se parece teu pensamento a teus cabelos. Em que se parece ao teu coração que bate. Em que se parece ao sangue que corre em tuas veias. Em que aos teus passos. Em que aos teus braços. Em que às tuas mãos. Em que aos teus vinte dedos. Em que se parece teu pensamento à distância de tua voz. Em que se parece teu pensamento aos teus lábios. Em que se parece à tua língua. Em que se parece aos teus olhos. Em que se parece às tuas pestanas. Porque assim como o ouvido é o paladar da palavra, assim as pestanas são como uma ramagem desfolhada através da qual teus olhos, sem mover-se, chegam com sua olhada até mesmo aos confins desse universo que nos pergunta. Então nós, que andamos pelo mundo como esqueletos encarnados desse corpo do pensamento que é a vida toda, que é a história de todas as linhagens de onde nascem frutos, formamos a comunidade, a assembléia, que é também a ramagem desfolhada, trançada da palavra nua, porque aos yoreme não nos agrada a palavra enfeitada, mas sim a palavra direta, profunda e vasta que vá e venha como essa olhada, sem necessidade de nos movermos de nosso lugar. Para os humanos, em que pese a crença dos técnicos, a realidade não é algo dado; é preciso buscá-la continuamente, agarrá-la; quase me sentiria tentado a dizer que é preciso salvá-la. Ensinam-nos a opor o real ao imaginário, como se o primeiro estivesse sempre à mão, e o segundo distante de nós. Essa oposição é falsa. Os acontecimentos estão sempre ao alcance da mão. Mas a coerência desses acontecimentos, que é ao que se refere quando se fala de realidade, é uma construção da imaginação. A realidade sempre está mais além, e isso é certo tanto para os materialistas como para os idealistas. A realidade, independentemente de como a interpretemos, está do outro lado de uma tela de fórmulas. Cada cultura produz a sua, em parte para facilitar as próprias práticas (para estabelecer hábitos) e em parte para consolidar seu próprio poder. A realidade é hostil com os que detêm o poder. John Berger, And our faces my heart, brief as photos, 1984 A ciência baseia-se na clara separação e oposição entre os humanos e a Natureza e entre o sujeito que conhece e o objeto por conhecer. Para a ciência, a cultura é um atributo exclusivamente humano e é precisamente a qualidade que faz aos humanos e à Natureza diferentes... Aqui [o mundo andino-amazônico] a conversação não se reduz ao diálogo, à palavra, como no mundo ocidental; aqui a conversação envolve todo o corpo. Conversar é mostrar-se cada um reciprocamente, é compartilhar, é a comunidade, é dançar ao ritmo que em cada momento corresponde ao ciclo anual de vida. A conversação assume toda a complicação do mundo vivente. Nada escapa à conversação que é inseparável da criação. Para os humanos, fazer a Nós somos a terra, a água, as sementes, as florestas, o ar, nós não somos “o campo”. Consideramos a natureza não um recurso, mas sim um bem comum que devemos custodiar para os povos e as futuras gerações. Com a Terra temos constituído comunidades de cultura, vida, arte e produção de alimentos para nós e para os povoados e cidades que circundam os territórios onde habitamos. Somos mais de 500 mil famílias que ainda resistimos através da agricultura camponesa e indígena, cultivando para nós, nossas comunidades e os povoados vizinhos. Os agricultores camponeses e indígenas oferecemos nosso potencial para garantir com dignidade e justiça uma saída para a atual crise nacional e internacional de aumento de preço dos alimentos, provocada pelas corporações transnacionais, como a Cargill, Dreyfus, Bunge, Nidera, Syngenta, agd e Monsanto. A nossa é uma forma de produção e um modo de vida que, apesar de sua invisibilidade histórica, se reveste de grande importância para o país, entre outras coisas pelo aporte que fazemos à soberania ali- mentar, à geração de emprego e à fixação rural. Não estamos nas estradas, não fazemos parte do protesto para reduzir as retenções, porque para nós não são o motivo de nossas angústias e de nossos problemas. Porque antes de disputar maiores margens de lucro, ainda hoje continuamos reclamando pelo acesso a direitos básicos elementares como a terra, a água, o manejo dos recursos naturais, a saúde, a educação, os caminhos, em suma, queremos justiça! Movimento Nacional Indígena e Camponês da Argentina, junho de 2008 19 O território é o lugar que nos abriga. É nossa primeira pele. Através dela chegamos ao mundo, é o espaço mágico pelo qual co-habitamos com uma rica fauna e flora, que são como nossos pequenos irmãos, que se cobrem de sol e de chuva para que, como o arco-íris, nossa vida seja cheia de cores e de esperança. Isso aprendemos com nossos avós. E é patrimônio de todos. Quando alguém quer se apoderar de um pedaço de colina é quando se estraga a convivência pacífica na comunidade, porque de forma egoísta quer se apropriar do que há anos é uma herança de todos. O território é também o ar, esse ar por onde agora nos chegam mensagens pelo rádio e pela televisão, e esse ar onde o governo nos proíbe de poder falar para que não escutemos as nossas vozes maternas, porque dizem que temos que pedir permissão e pagar caro uma concessão. Nosso território é a água, os rios, as praias, mas ocorre que agora os governos dizem que têm dono e que têm um preço. Por isso agora, nossa água, temos que comprá-la em plástico e temos que pagar o que é nosso. Vincent Van Gogh chácara é cultivar plantas, animais, solos, águas, climas, é conversar com a Natureza. Mas no mundo andino-amazônico tudo, não só os humanos, faz e cria a chácara, tudo cria. A chácara humana, não só a fazem os humanos, mas sim tudo, de uma ou outra maneira, participa na criação da chácara humana: o sol, a lua, as estrelas, o bosque, os passáros, a chuva, o vento... Inclusive o gelo e a neve. A isso chamamos a criação mútua. Eduardo Grillo, Projeto Andino de Tecnologias Camponesas (Pratec), Peru 20 Nosso território é também o que muitos chamam cultura, que é toda essa capacidade criadora que temos como povo para transformar a natureza e darlhe a cara do que é nossa identidade, nossa cosmovisão, nossas crenças, nossa mitologia e ritualidade. Nelas está arraigado o segredo de nossa grandeza como povos, de nosso empenho por manter viva a memória daquilo que fizeram nossos avós e de entender que aí está arraigado nosso futuro e o dos nossos filhos e netos. Aprendemos sempre a viver e a falar no plural, por isso nosso território é nosso, é comunal, tem-se que respeitar porque é sagrado, porque não foi produto de uma compra e venda nem foi um presente gratuito ou daqueles que nos têm governado. O território é para o povo o que a água é para o peixe. Somos por nosso território, vivemos e sonhamos por esse bem tangível que tem despertado a cobiça dos poderosos. Nele se condensa nosso passado, nosso presente e nosso futuro. É nossa raiz e nosso fruto. Comunidades, povos e organizações nahuas, amuzgos, tlapanecos, otomíes, zapotecas, no Fórum Defendendo Nosso Território, Tlapa, Guerrero, dezembro de 2005 Da mesma forma que há 516 anos e ao longo destes séculos, encontram e continuarão encontrando a resistência dos povos indígenas, que conservamos nossas raízes e nelas cimentamos o futuro. Porque os povos indígenas temos passado da resistência à proposta. Temos propostas que contrapomos à crise global do neoliberalismo e à ameaça de hecatombe que o aquecimento global, consequência de seu modelo produtivo, representa para a própria sobrevivência do planeta. Porque o mundo consumista carece de alternativas para salvá-lo. Nossas propostas se resumem em uma: o respeito à vida de todos: homens e mulheres, a Pachamama e tudo o que ela abriga. Para isso lançamos mão de nossos princípios e práticas ancestrais de equidade, complementaridade e reciprocidade, para construir Estados Plurinacionais Comunitários que expressem e promovam nossa diversidade como um de nossos maiores valores. E ofereçam o Bem Viver como garantia de sobrevivência para toda a Humanidade. “Región Andina: Raíces de futuro”, Miguel Palacín Quispe, Coordenador Geral da Coordenação Andina de Organizações Indígenas-CAOI 7 de novembro de 2008 Devemos fazer surgir a possibilidade de habilitar os “caminhos das sementes”, ou de restituir os me- canismos pelos quais os avós se abasteciam de sementes para criar a agrobiodiversidade nativa em suas chácaras. Percorrendo longas distâncias, os membros comprometidos da comunidade acorrem à convocação do Resguardo e da Assembléia Comunal ou Federacional e levam consigo um patrimônio: suas sementes, que sendo mãe e filha, são além disso o coração do processo produtivo, que por milênios tem enraizado os humanos nessas terras. Tendo escolhido para esse acontecimento seus exemplares mais especiais, manifestam-lhes seu carinho e respeito através de um ato ritual, no qual se lhes bendiz e agradece. E ocorre uma conversação ouvida, na qual se regeneram os saberes e “segredos” para manter vigente esse autêntico modo de vida. Finalmente se responsabilizam entre todos no cuidado das sementes, através do intercâmbio de dezenas de cores de sementes, tubérculos e raízes. Doris Guilcamaigua Riobamba, dezembro de 2008 Não é um fantasma o que percorre a Região Andina. Somos homens e mulheres com os pés bem colo- cados na terra, porque somos parte dela e por isto a defendemos: nossos territórios, que são ameaçados pelas multinacionais extrativistas, pelos Estados, pelos grandes proprietários de terras aliados com o império norte-americano. Em uma palavra, defendemos nosso direito, e o direito de todos, à vida […] Pieter Bruegel Vincent Van Gogh 21 Imagine você um patrimônio da humanidade vigiado por biólogos e técnicos. Mas invadido por criadores de gado protegidos pelos poderosos deste país. Não estamos de acordo. Mas, em troca, estamos de acordo em que nos deixem decidir. Temos mais anos de conhecer e cuidar nosso território do que vocês. As cidades onde vocês vivem estão doentes e seus rios transportam sujeira malcheirosa. Há mais progresso nas cidades, mas menos esperança no futuro. Por que, então, querem vir das cidades a nossa casa para nos impor a forma de como cuidála? Por que, ao invés de mandar em nós e menosprezar nossa casa, não têm a paciência de nos escutar? Se escutassem a verdadeira voz de nosso povo, poderíamos ajudar um pouquinho. A paz é a flor formosa que o povo wixárika cultiva desde tempos antigos. Com essa flor que é a paz pedimos que se detenha a proposta e os orçamentos econômicos para a Reserva da Biosfera. Com a flor da paz pedimos que não tornem a utilizar o selo de nossa organização para negociar em nosso nome nenhum projeto. Com a flor da paz pedimos novamente que nos devolvam nossas terras, que não nos imponham leis florestais que nos obriguem a prejudicar nossas florestas. Queremos ser nós os que, de acordo com nossas próprias formas, estabeleçamos as maneiras de proteger e conservar nosso território sagrado. Com a flor para sempre pedimos respeito. Somos cultivadores, cantamos e rezamos pela vida. Esta é a nossa responsabilidade, senhor presidente: plantar, agradecer, pedir vida e saúde para todos os seres vivos do mundo. Se a sua é velar pelos direitos de todos os mexicanos, lhe exigimos justiça. “Una espinosa flor del pueblo wixárika”, carta ao presidente Ernesto Zedillo, Jalisco, México, dezembro de 1996. Já é noite e o mundo não dorme, existe grande pre- ocupação por toda a fúria da natureza. No norte da América, nascem furacões gigantes e, no centro da América, a maré e as chuvas crescem; no sul da América, o rio Amazonas baixa de 10 a 15 metros de seu leito normal e morrem milhões de peixes conhecidos e desconhecidos. Em outros continentes, a terra continua sacudindo, as chuvas não param e as casas afundam, o clima é totalmente diferente. Somadas a tudo isso estão múltiplas enfermidades em todo o mundo. A tv e a imprensa multiplicam as notícias pelo mundo inteiro, as pessoas estão surpresas e não saem de seu assombro. Enquanto as crianças de ricos e pobres choram, e estão desesperadas, as empresas que destroem a Terra e os governos todos juntos, com toda a tecnologia de ponta, não têm respostas. A terra está conectada com todo o sistema do universo, o homem ignora e, se continuar destruindo a Terra, terá que se confrontar com os poderes de toda a natureza. O dinheiro de todos os países mais industrializados não serve para nada quando a Terra começa a sacudir-se, as potências mundiais se tornam crianças ante os poderes da natureza, e a tecnologia é nada mais que fiapos de palha que não servem para fazer pontes em rios grandes. Perante a fúria da natureza, nada nem ninguém pode salvar-se, nem salvar-nos. Para acalmar tudo isso e equilibrar a natureza global da Terra, há apenas um caminho, que é: deixar de cortar as árvores, não extrair mais petróleo nem minerais e deixar de consumir em excesso. Sem esquecer que a mudança não está nos governos, está mais em cada ser humano, cada ser vivo é responsável por tudo o que possa ocorrer na Terra. Mensagem dos chefes shuar da selva amazônica equatoriana, 20 de outubro de 2005 Camile Pissarro 22 Telefonemas e cartas de amizades alarmadas me fizeram saber da inclusão, sem me consultar, de meu nome como integrante do Comitê de Honra do Bicentenário da Independência. Era de se supor que, neste mundo que nos vendem como tão civilizado, tais assuntos se consultam, requerem o convite oficial e escrito daqueles que desejam que outro participe em suas reuniões e festividades, e exigem uma igualmente formal resposta de aceitação do convidado. Mas não, parece que a civilização não dá para tanto. Um telefonema de vários minutos, feito sem maior antecedência para convidar para uma reunião, ao qual o convidado, eu, ofereceu um sonoro não, se entende como um sim para participar em outro assunto: um comitê para organizar a celebração de 200 anos de uma independência que significou muitas coisas distintas para os diferentes setores da então criada nação colombiana. Isso me evidenciou, uma vez mais, a incrível surdez dos governos da vez deste país ante qualquer consideração, proposta, resposta, etc. que provenha de nós, os indígenas. Não queremos exploração protroleira em nosso território. Ah! Bom, então amanhã enviamos a multinacional para que inicie a exploração. Queremos que nos entreguem a terra que o governo nos prometeu. Ah! Perfeito, amanhã lhes enviamos o exército para que cuide da propriedade privada dos grandes proprietários de terras. Não estou em condições de ir à sua reunião porque tenho compromissos importantes com minha gente. Perfeito! Então usamos seu nome e sua imagem para que o país e o mundo acreditem que os indígenas andam de caso com o governo. Uns minutos antes de receber essa informação, eu saí da Audiência Final do Tribunal Permanente dos Povos – Capítulo Colômbia -, que ocorreu em Atanquez para a Audiência Indígena e em Bogotá para a Audiência Final, entre 18-23 de julho, com a presença, entre outros, de destacadas autoridades e dirigentes indígenas da Colômiba e de outros países deste continente, do Prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel e de destacados juristas de várias partes do mundo, e nas quais tive a honra de atuar como parte do júri. Nessa qualidade, pude dar-me perfeita conta, em primeira mão, de todas as atrocidades a que meus irmãos e irmãs indígenas vêm sendo submetidos em toda a extensão deste país, por conta do Estado colombiano, dos governos da vez, e pela cumplicidade destes últimos com as companhias transnacionais e nacionais de toda índole. Interei-me em primeira mão, graças a um processo de real participação democrática, de violações do direito à propriedade coletiva sobre a terra e os recursos naturais, violações do direito à autonomia e à cultura próprias, violações do direito à participação, violações do direito ao próprio desenvolvimento, violação do direito à existência como povos que está levando à extinção de 28 deles, violações do direito à vida e à integridade física das pessoas pertencentes aos povos indígenas, violação do direito à saúde e à alimentação, violações dos direitos das mulheres indígenas, violações do direito à liberdade e à livre circulação, violações à propriedade privada de pessoas pertencentes aos povos indígenas, violações do direito à justiça e à reparação, enfim, de flagrantes violações a nossa gente e a nosso Direito Maior, que se pode ler na íntegra nos apartes correspondentes do parecer proferido por este Tribunal. Diante de tal avalanche de desastres que os povos indígenas estão aguentando, dificilmente eu poderia ter algum interesse em fazer parte de uma celebração de algo que para minha gente só significou morte, dor, destruição e empobrecimento de todo tipo. E também não poderia ter aceitado participar de uma atividade encabeçada por um governo tão anti-indigenista como o atual, que não somente foi um dos poucos a se recusar a ratificar a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, mas que promulga leis como o Estatudo de Desenvolvimento Rural, desastroso para nossos povos, e que, dentro de sua política de fazer de cada colombiano um delator, oferece recompensas por denunciar aqueles de nossos irmãos e irmãs que lutam pela recuperação de suas terras, qualificando-os de terroristas. Finalmente, devo expressar minha inconformidade pelo que me parece um abuso e desrespeito por parte desse Alto Conselho, ao incluir meu nome como parte de uma atividade do governo, sem que eu jamais tenha aceitado fazer parte desta. Portanto, exijo que não somente retirem oficialmente meu nome do grupo de comissionados, mas que também o limpem publicamente, fazendo circular pelos mesmos meios e colocando em sua página da web esta comunicação e seu anexo. Cordialmente. “Carta a María Cecilia Donado, Alta Conselheira Presidencial para o Bicentenário da Independência”, Lorenzo Muelas Hurtado, governador do povo misak ou guambiano, Silvia, Cauca, Colômbia, 25 de julho de 2008 Nunca nos dão a oportunidade. Há uma distância enorme, que parecia um degrauzinho, mas que está além, no infinito. Eles nunca se olham, nunca olham para baixo, e nós muito dificilmente olhamos para cima. Isso é o que eles querem. Mas hoje pensamos que já é suficiente, queremos já ser. Olhar um Vincent Van Gogh L. Lesigne pouco o horizonte porque pensamos que o horizonte é o limite. Mas quando tu chegas lá, o horizonte está mais adiante, mais, mais: é um limite que não tem fim. Já não queremos ver lá para cima, queremos ver parelho. O que queremos conseguir para nosso povo é nossa mansão índia, nossa língua, nossos costumes. Que não morra a idéia. Que não se perca. Não morreu. A alteraram para nós. Mas o índio sempre foi brando. Não quer, portanto, brigar. Mas chega o momento em que dizes, não, agora chega. Não queremos ser o objeto. Já nos demos conta do que o governo faz: separar os grupos; dar-nos facões, suprimentos, programas de desenvolvimento a uns e a outros não. É uma forma de ir separando as pessoas e de então dizer que não funcionamos. Para isso nos fazem brigar. Porque as pessoas dizem, eu não recebi, mas esse sim recebeu e agora nem sequer está na comunidade, por que recebeu. Mas os do governo chamam a uma assembleia para todos e lhes dizem, apenas dez são os que vamos apoiar. E o restante? O restante estamos pintados. É por isso que estamos brabos, porque não compreendemos a palavra enganosa. Não sabemos por onde vão lançar a isca. Primeiro nos juntam e depois lançam a isca. É como uma serpente que apenas ouvimos o ruído e logo zaz! Pegou um dos que íamos aí porque seu veneno não é suficiente para mais. Isso é o que faz o governo. Seu veneno não é suficiente para mais. Só foi suficiente para dez. O demais é o de menos. Estamos apoiando os indígenas, dizem. Estamos mandando dinheiro. Mas não queremos dinheiro. Queremos olhar o horizonte. O dinheiro é o que nos torna vilões. O dinheiro, na melhor das circunstâncias, é suficiente para mim, e o restante? Isso é o que não queremos. Rómulo González Rebollar, ancião mazahua de San Francisco Mihualtepec, Estado do México, 2001 Felix Bracquemond 23 Vincent Van Gogh Junto a um fogo se reuniram. Um ancião mohave 24 chegado do Arizona disse “há algo muito especial no que estamos fazendo, as pessoas que não são indígenas fazem um fogaréu enorme, tão grande que têm que se separar. Nós, no entanto, fazemos um fogo pequeno para que todo mundo tenha que chegar perto”. Assim, fundidos, pode-se sentir o calor humano, a mais sustentável das energias. Ao seu lado, apertadinha, Rita, que nasceu em um barco de pesca do povo yupik, no Alaska, explica que suas terras não têm florestas, não têm árvores, e confiam na madeira que as correntes lhes levam. “O Universo” – conta Rita – “é de todos, portanto não somos donos de nada”. Emi, com as mãos brincando com suas duas tranças de cabelo negro aymara, explica que a natureza nos dá sinais. É necessário escutar o mauri. O mauri é um peixe que vive nos rios do altiplano andino e no lago Titicaca. “Quando deposito meus ovos – diz o peixe –, primeiro observo onde posso colocá-los. Se os coloco no centro do rio é porque não vai cair muita chuva, e, para que meus filhotes vivam, necessito que estejam permanentemente na água, e o centro é o lugar mais adequado, porque é o mais profundo. Se eu colocasse meus ovos nas bordas do rio, significaria que haveria chuvas constantes.” Neste ano, os ovos dormitam no centro do rio. E pergunto: Essa alegria, essa esperança... De onde lhes vêm? Respondeu uma camponesa do Cauca colombiano, sem deixar de rir: “Nos diverte muito ver como os beija-flores podem tirar as penas do condor. Sem penas, esse animal tão feroz não pode voar”. “Sabidurías indígenas”, Gustavo Duch, El País, dezembro de 2008 A dignidade humana somente é possível em uma sociedade autossuficiente. Essa dignidade míngua quando nos encaminhamos para a industrialização progressiva. Devemos compreender que os utensílios, móveis, instrumentos e bens desnecessários que um homem possui reduzem sua capacidade de derivar felicidade do entorno. Por isso, Gandhi disse em repetidas ocasiões que a produtividade deveria manter-se nos limites daquilo que é necessário. O modo de produção da atualidade é tal que não tem limites e aumenta sempre. Quando pergunto aos planejadores de hoje por que não compreendem esse enfoque simples, dizem que esse caminho é muito difícil e que as pessoas não poderiam segui-lo. Mas o que ocorre é que esse enfoque, pleno de princípios, não admite um sistema centralizado nem a presença de intermediários, pelo que os planejadores, os gerentes e os políticos se incomodam. Tudo isso foi tolerado até agora, mas chegou o momento em que devemos compreender que avançamos para nosso suicídio se dependemos mais e mais das máquinas. Devemos dar-nos conta de que, para o bem do indivíduo e da sociedade, é melhor que as pessoas conservem para si somente o suficiente para suas necessidades imediatas. “El mensaje de la choza de Ghandi”, Ivan Illich, 1978 Não se pode gastar sem produzir nada. Veja, quan- ta gente se mantêm de nós? Como a cidade se sustenta, assim tão grande como é? Gastando. Não produz nada de comer. No campo as pessoas comem o que cultivam. Como vão se manter nas cidades quando houver somente dinheiro e não houver quem produza o que comer? O povo wixárika tem muitas coisas que ainda faz de maneira tradicional. É importante pensar nas formas que a comunidade tem para defender seus recursos. Seria muito bom ver onde há água e como nós a utilizamos. Deve-se ver o que a terra necessita. Eu vejo agora mais possibilidade de obter mais milho. Em alguns lugares a colheita é boa, mas as terras estão esgotadas por mestiços invasores e alguns indígenas. Para formar uma economia temos que produzir de todas as formas, aproveitar tudo o que se tem, vidros, couros, coisas para fazer tintas, todo o necessário para produzir. É muito importante reconhecer tudo o que já se sabe fazer, porque na escola isso é a última coisa que lhes interessa. Todas as maneiras de se educar e aprender devem vir da autonomia: todas as maneiras de produzir, todas as maneiras de se curar. Uma consulta médica te custa, no mínimo, no mínimo, 150 pesos [15 dólares], e isso sem os remédios. Já depois, com os remédios, fica muito perverso. O bom é que os wixaritari temos nossas próprias formas, e, se são poucos os que ainda acreditam nelas, é por culpa do governo que tampouco resolve nada, e agora cada vez menos. Já ouvi que agora estão até roubando nosso sangue para pesquisa, dizem que para eles se curarem. Tudo é puro roubo, e se apoiam em intermediários e em leis que não servem para nada. Assim, está em crise o país. Pedro de Haro, maraka’ame wixárika, Ocota de la Sierra, Jalisco, México, 2003 l O seguinte documento, do qual apresentamos alguns fragmentos, provém do México, onde as comunidades indígenas que compartilharam com Emiliano Zapata sua idéia de autogoverno comunitário baseado em um território camponêsindígena continuam, neste milênio, lutando por uma vida digna. Para tanto, fazem uma avaliação das ameaças que pesam sobre seu futuro e fazem um diagnóstico com perspectivas a partir de seus próprios saberes Manifesto dos povos de Morelos Desde que ouvimos os primeiros trovões de maio nos preparamos para plantar… Nossas terras, morros e águas. Em nosso princípio estão as bases do que atualmente somos. Nós, os povos de Morelos, somos herdeiros dos senhorios tlahuicas, xochimilcas, e outros povos milenares, herdeiros das permanentes lutas de resistência que datam da Colônia e da Guerra de Independência. Somos os povos construtores da Revolução mexicana, herdeiros diretos de Zapata e Jaramillo, povos que temos travado uma luta incansável pela repartição da terra e da água como base de nossa liberdade. Sempre consideramos a natureza algo tão importante quanto nós mesmos. Nossos pais e avós sempre tiveram respeito e veneração pela terra, a água, o ar e o fogo. Somos povos que sentimos e respeitamos nosso milho, nossos bosques, nossos dias e noites, com todas suas estrelas. Desde tempos imemoriais nos acostumamos a falar com nossas águas e venerá-las. Buscamos nos entender com nosso sol e nossa lua. São sagrados para nós os ventos, os pontos cardeais e todos os animais de nossas terras que nos acompanham – como as formigas, as cigarras, as traças, os jumiles [percevejos], nossos cães e nossas aves, como os píjolos, os tecolotes [corujas] e os guajolotes [perus]. Somos povos que respeitamos e Abraham Mauricio Salazar sentimos nossas necessidades, muito especialmente a de água. Conservamos este respeito profundo, ainda que a religião, a economia e a cultura dominantes não nos permitam manifestar abertamente nossos sentimentos de respeito pela chuva, pelos morros, por nossas terras e sementes. A terra nos dá de comer, a água nos dá vida e alegria, enquanto os morros e suas selvas não somente nos dão água, mas também pinheiros, encinos [carvalho], jacarandás, flamboyants, sumaúmas, buganvílias, bico de papagaio, e animais como o veado, o javali, guaxinins, texugos, zorrilhos, tatus, lebres e coelhos, esquilos, coiotes, doninhas, bassariscos, gambás, morcegos, aracuãs, gralhas, urubus, abutres e corvos. Por isso os morros são toda nossa fortaleza. Aprendemos a ler a neve, o frio e o calor, os leves tremores de terra e os eclipses. Aprendemos a interpretar o som de nossos rios ou falar com o vento que sai dos poços naturais e dos rios subterrâneos. Conversando com o bosque, com a chuva, com as nuvens, com o sol e com os seres que vivem em nosso território, aprendemos a entender nossos lugares, suas manifestações, seus fenômenos naturais, e a partir daí planejar nossas atividades do ano. 25 Entendemos e veneramos a relação com nossas terras, águas e ares porque mantemos em pé nossa organização coletiva e sabemos que, no dia que esta morrer, morrerão nossas relações, nossos saberes e cada um de nossos recursos. Por isso conservamos nossas danças. Nelas não só chamamos a água, mas nos prometemos não nos desintegrar. beldes porque mantêm em pé os seus deuses antigos dedicados à veneração da água [...] A água ainda vive no coração destes povos quando no Dia da Ascensão veneram-se os quatro pontos cardeais, o céu e a terra da pequena gruta sagrada de Coatepec, o Poço do Pai, a Santa Cruz, as pedras em forma de mesa no caminho real a Santa Rosa Trinta Manter nossa palavra é a verdadeira lei que se deve cumprir. Nossas comunidades cuidam coletivamente de suas terras, para isso nossos antepassados nos deixaram delimitações. Construíram coletivamente taipas de pedra. Para guardar e defender as terras de roubos e do que altere nossa paz. Nossos povos, tínhamos guardas florestais, guardas de gado, guardas de terras e guardas de cercas. E por isso continuamos indo para as nossas praças quando o badalar dos sinos avisa de uma ameaça comum. Temos muitos lugares sagrados, onde colocamos cruzes e realizamos cerimônias e danças que simbolizam nosso respeito e veneração pela água, a terra, nossas sementes e comunidades. Desde a Colônia, povos indígenas como Xoxocotla foram povos rebeldes, relutantes ao processo de evangelização. Xoxocotla, Alpuyeca, Atlacholoaya e Temimilcingo continuam sendo povos re- e em um ponto no Morro da Tartaruga. Em suas cerimônias, agradecem e fomentam coletivamente a experiência de recebimento. Porque dançando com os ramos agradecem com alegria do coração a água que recebem do céu, as montanhas, as florestas e as terras. Não por acaso, são povos que ainda distinguem o sabor sagrado da água viva. Abraham Mauricio Salazar 26 A devastação atual. Há décadas que o crescimento das insaciáveis cidades de Cuernavaca e Cuautla, o turismo depredador, as modernas indústrias e uma agricultura que utiliza agressivas substâncias químicas vêm devorando nossas melhores terras, nossos rios e mananciais, as barrancas, as selvas baixas e as florestas, com todas as suas árvores e espécies. Do que nos serviu tanta luta pela terra e a água, se todos os nossos recursos são saqueados e destruídos? Vemos que avança o incontrolável desmatamento do Corredor Bio- lógico de Chichinautzin, da área natural supostamente protegida do El Texcal. Que avança a urbanização sobre os numerosos mananciais da área protegida de Los Sabinos, na nascente do rio Cuautla, o implacável desmatamento de mais e mais barrancas em Cuernavaca, e que a cada dia se aprofunda e cresce a enorme ferida que a fábrica de cimento Moctezuma abre na área “protegida” da Serra de Montenegro. Nossas florestas, que são as esponjas que absorvem a água que todos utilizamos, são destruídas porque os governos federal e estadual permitem que ocorra o corte clandestino na Serra do Chichinautzin, principalmente na região das lagoas de Zempoala. As barrancas, que durante séculos serviram para que abundassem espécies de flora e fauna, se animassem os arroios e para regular o clima, hoje estão em perigo, porque nelas se constroem grandes unidades habitacionais, se pretende abrir estradas ou anéis rodoviários, ou porque as usam como depósitos de lixo a céu aberto, como já ocorre em Cuernavaca. Nossos morros e bosques, que são nossa proteção, porque permitiram que há milhares de anos se iniciasse comunicação e intercâmbio de produtos, idéias e tradições entre os povos, hoje são destruídos pela voracidade das empresas e a corrupção dos três poderes e das três esferas de governo, que se aproveitam privadamente do patrimônio de todos. Somos testemunhas de como a dissolução de nossa vida comunitária e a corrupção de nossas autoridades permitiram que se sujem de forma indescritível nossos canais, apancles [canais de irrigação], aquedutos e jagüeyes [poças]. Também vemos como passo a passo se perde a neve do vulcão Popocatépetl, que se secam os rios Amatzinac e Cuautla e que seguem o destino do Apatlaco e o Yautepec (que se tornaram canais de desaguamento), e suas quedas de água e suas barrancas se converteram em depósitos de lixo, lugares tão contaminados que se torna impossível viver ao seu lado. Os principais aquíferos do estado, em El Texcal de Tejalpa e na Colônia Manantiales de Cuautla, há muitos anos foram concedidos à poderosa empresa femsa-CocaCola, que não presta contas a ninguém da enorme quantidade de água extraída. As águas superficiais de Morelos estão a ponto de desaparecer porque a urbanização selvagem que ocorre em nosso entorno demanda um consumo cada vez maior de água sem que se imponham restrições à perfuração de poços da indústria ou às empresas imobiliárias, que só a saqueiam e não nos devolvem senão podridão. Enquanto isso, os governos municipais entendem as ineficientes unidades de tratamento (que já existem ou por construir) somente como oportunidades de fazer mais negócios privados, repassando a empresas particulares o manejo comercial dessas unidades. Mas, apesar da escassez de água avançar a olhos vistos, a Comissão Nacional de Água, sem ter um verdadeiro registro histórico dos afluentes, afirma com cinismo que estes não diminuíram. Manipula as avaliações que estabelecem a capacidade dos aquíferos e constrói um discurso oficial de suposta superabundância de água, que lhe permite autorizar mais perfurações de poços e insultantes gastos de água às indústrias ou às unidades habitacionais, enquanto aos povos lhes doura a pílula e lhes fala de que há água suficiente para um contínuo crescimento rural […] Na realidade, a água está cada vez menos suficiente para todos. Os povos que conservam as permissões originais de água de seus mananciais já não conseguem fazê-las valer, e o abastecimento da mesma não chega aos povoados. Assim, esse manejo oficial do recurso, que autoriza a superexploração dos aquíferos, que fornece informação falsa para confundir os povos, que permite a contaminação indiscriminada dos rios, que esconde a inoperância das unidades de tratamento e eleva as tarifas de água, na realidade está conduzindo com grande dolo ao fomento dos conflitos entre os povos. Como em muitos outros lugares do país, a água profunda dos aquíferos converte-se em bem privado, cada vez mais escasso, mais cobiçado e mais caro. A água corrente de irrigação, que mal sobrevive em nossos campos, apesar de se manter como água barata, piora de qualidade devido a uma contaminação que destrói os animais aquáticos ou terrestres e as plantas que crescem nas margens dos rios. Contaminam-se e destroem-se mananciais, rios, canais e canais de irrigação, se perdem poços artesianos, o que implica na Abraham Mauricio Salazar destruição de nossas formas de alimentação, plantas medicinais, possibilidades de higiene e de vida, com tudo e os saberes tradicionais que a sustentam. Nossos povos tiveram que sofrer, por anos, a imposição governamental de critérios autoritários sobre o uso de nosso próprio território. Alpuyeca e Tetlama foram sacrificadas durante mais de 30 anos com a operação de um depósito de lixo a céu aberto que se converteu em uma montanha e adoeceu, deformou e matou dezenas de habitantes até que os povos disseram “chega” e saíram às estradas até conseguir que o fechassem. Mas agora, como as cidades grandes “necessitam” um espaço para jogar seu lixo, pretendem fazê-lo outra vez, em povoados como San Antón, Anececuilco e La Nopalera, San Rafael, Yecapixtla, Moyotepec, Cuentepec ou Axochiapan, sem nos levar em conta, sem realizar verdadeiros estudos de impacto ambiental, mas, principalmente, sem se fazerem responsáveis pela devastação que geram os lixos modernos em nossas terras, nossos rios e mananciais, em nossa saúde e em nossas vidas. Ardilosamente chamam nossas terras de “espaços vazios” ou, 27 AMS 28 por precaução, “improdutivos”, porque muitos de nós ainda somos camponeses e indígenas. Eles só veem como fazer negócio com nossas terras, sem lhes importar que ainda as cultivemos, as habitemos e as cuidemos. Em suma, Morelos, em algum momento considerado como lugar privilegiado por seu clima, seus mananciais, suas tradições e o calor de sua gente, hoje perde de forma irreversível todas as suas riquezas naturais e culturais, enquanto os povos estamos em piores condições econômicas, ambientais e sociais, porque aqui predomina a injustiça. Nosso território é visto pelos governos federal, estadual e municipais como butim, como fonte de enriquecimento sem limites para uns quantos, enquanto somos despojados daquilo a que temos dedicado toda nossa vida a cuidar e compartilhar comunitariamente: a água, a terra e o ar. Antes, a Igreja ouvia a confissão dos povos para poder castigar exemplarmente àqueles que ousassem rebelar-se contra o poder das fazendas. Como o despojo de terra era a causa de contínuas queixas, pedidos de justiça nunca ouvidos, rebeliões contínuas, motins e levantes, a Igreja estava aí pregando do púlpito e confessionário que as injustiças, despojos e a exploração obedeciam a leis divinas. Como agora chegamos a uma nova era de tomada dos bens dos povos, mas a Igreja já não pode auxiliar nessa função, são os funcionários públicos, principalmente da Comissão Estatal de Água e Meio Ambiente, seus engenheiros, hidrólogos, biólogos, os que, auxiliados pelos meios de comunicação, pregam o novo catecismo, segundo o qual a expansão ilimitada das cidades, a devastação das terras e o despojo e esgotamento das águas “cientificamente não implicam em qual- quer problema”. Esses funcionários obedecem ao sagrado desígnio das leis do mercado e da especulação global, pregando o “progresso técnico-científico da humanidade”. Por isso, apesar de que no período colonial e no porfirismo éramos escravos ou peões, hoje as pessoas encontram-se em estado igual ou pior, porque os empresários e funcionários, em não poucas ocasiões verdadeiros delinquentes ambientais, aprovam todo o tipo de projetos, decidem por nós, compram terras a preços baixos ou expropriam diretamente nossos territórios com seus recursos, exploram nosso trabalho enquanto marginalizam uma parte cada vez maior do povo camponês e indígena de Morelos. Os sucessivos governos da entidade aplicam o que sabemos ser a política geral do governo federal mexicano: destruir sistematicamente o campo e os camponeses. Absorver nas cidades ou expulsar por migração os povos originários, para abrir caminho à apropriação privada de seus recursos naturais e à expansão irracional das cidades, aos comércios, aos hotéis, aos centros de convenções, aos balneários privados, às estradas, aos postos de combustíveis, aos centros comerciais, aos campos de golfe, às universidades pri- vadas, aos aeroportos, aos aterros sanitários ou aos depósitos de lixo a céu aberto, aos incineradores de lixo, aos mega-viveiros comerciais, aos supermercados e às lojas de conveniência. Para nós, todo o referido acima só representa uma maior escala de destruição de nossos recursos, nossas formas de vida, nossa cultura, nossa organização comunitária e nossa saúde. Diante de tanta agressão, durante os últimos anos decidimos resistir e enfrentar a devastação e o roubo. Empreendemos lutas históricas na defesa de nossa existência contra o despojo de nossas terras, rios e mananciais, como foi a luta dos povos de Tetelzingo e Xoxocotla contra a construção de dois aeroportos, ou a luta do povo Tepoztlán contra um clube de golfe; contra o desmatamento e a destruição do patrimônio cultural de Cuernavaca, quando a corporação Costco quis destruir o monumento morelense conhecido como Cassino da Selva, ou a luta da comunidade de Ocotepec pela defesa de unidades de produção agrícola coletivas contra a construção de um hipermercado: Soriana. Agora a luta é a de Xoxocotla, Tetelpa, Santa Rosa Treinta e San Miguel Treinta, Tetecalita, Tepetzingo, Acamilpa, Pueblo Nuevo, El Mirador Chihuahuita, Temimilcingo, Tlaltizapán, Huatecalco e Benito Juárez, que defendem a sobrevivência de seus mananciais Chihuahuita, El Zapote, El Salto e Santa Rosa. É a luta contra os depósitos de lixo a céu aberto ou aterros sanitários em Alpuyeca, Tetlama, Yecapixtla, Axochiapan, Cuentepec, Anenecuilco, La Nopalera, San Antón, San Rafael e Puente de Ixtla. Contra os postos de abastecimento de combustíveis e estações de gás poluentes em San Isidro, Ocotepec, Jiutepec, Cuautla e Cuernavaca. Contra a destruição da barranca de Los Sauces em Cuernavaca. Contra a construção de anéis rodoviários, como em Huitzilac e nas florestas do oeste de Cuernavaca, ou contra a construção da rodovia Siglo xxi (Veracruz-Acapulco), em Popotlán, Amilzingo, Ahuehueyo, Tenextepango, El Salitre e Las Piedras. Contra o desmatamento geral de nossas florestas na Serra do Chichinautzin e El Texcal. É a luta contra a expansão irracional das unidades habitacionais mal feitas e destruidoras, como as edificadas nos municípios de Xochitepec, Jiutepec, Cuernavaca ou Emiliano Zapata; contra a criminalização, o fustigamento e a perseguição de nossas lutas; contra o despojo de terras em todo o estado e contra a privatização dos serviços públicos de água, coleta e manejo de lixo ou o desmantelamento de nossas formas ancestrais de produzir, trocar, de nos organizarmos e desfrutar a vida. Nossa luta também é por defender espaços dignos de convivência coletiva, que ainda existem em nossas comunidades, por recuperar e aproveitar os recursos comuns, que são de todos, em benefício dos povos, por resgatar nossa língua e tradição, por adotar formas racionais de desenvolvimento econômico, e por governos hones- tos, a serviço dos interesses das comunidades e não dos empresários corruptos. Nossa luta é por obter autonomia em nossas decisões e na forma de governarmos como povos; por nos dar, a nós mesmos e a nossos filhos, netos e aos que venham depois, uma garantia de existência saudável e sustentável. O sonho dos povos. Os povos de Morelos em luta esperamos com o coração voltar a ver belo o lugar onde vivemos. Que possamos reunir-nos – os que já se foram ao terem sido forçados a emigrar, com os que ainda não nascem. AMS Apesar de ser um sonho profundo, na realidade o estamos sonhando acordados. Começamos a nos reunir cada vez em mais lugares para conversar comunitariamente sobre como seria possível livrar-nos da maldição do lixo e outros contaminantes, como conservar limpo nosso ambiente e os recursos naturais que ainda sobrevivem, como resgatar nossos rios, mananciais, florestas e espécies; como remediar alguns de nossos lugares mais envenenados. Em Morelos queremos que o crescimento demográfico das cidades do país e de nosso estado deixe de ser consequência da emigração camponesa para a cidade – que vem de políticas anticamponesas permanentes -, nem dos processos obrigatórios de reacomodação que ele causa na incontrolável mancha urbana da cidade do México. […] Queremos que o campo não seja mais assassinado pelas políticas públicas federais e estaduais, e que nossos jovens, ao invés de serem excluídos e irem embora, possam trabalhar e tomar gosto pelo campo. Sonhamos que nossos jovens não carreguem o peso da permanente suspeita policial de serem delinquentes por serem pobres, nem que uma parte dos mesmos esteja sendo empurrada à autodestruição que lhes impõe seu envolvimento dentro das milícias da economia criminal: seja o tráfico de drogas, o contrabando, o roubo e outras formas de corrupção inclusive legalizadas. Apesar de nossos povos não contarem com o apoio do Estado para obter verdadeiros serviços comunitários, na realidade somos comunidades que temos recursos materiais e humanos que nos podem permitir resgatar e atender os sistemas de água, de lixo local, uma agricultura sem agroquímicos, tratar nossas enfermidades e fomentar nossos sistemas próprios de educação comunitária. Diante da marginalização e do despojo ilimitado de nossos bens comuns, estamos descobrindo que no fundo de nós mesmos está o poder inesperado de nossos próprios saberes locais, base para construir nossa autonomia territorial e experiências de autogestão bem variadas. Sonhamos coletivamente descontaminar nossos rios, barrancas e cascatas, retomando tecnologias apropriadas simples, que não são caras e que, por isso, podem ficar sob a administração, vigilância e controle comunitário, evitando as 29 Inocencio Jiménez Chino, 1994 30 más gestões governamentais e aproveitando, quando existem, nossos próprios recursos financeiros provenientes de nossas próprias caixas de poupança ou de nossas uniões de crédito, sem que entre nós prospere o abuso dos recursos ou da mão de obra, ou o uso faccioso, ineficiente, dilapidador e corrupto dos recursos governamentais disponíveis [...] Neste reencontro entre nós vemos Morelos como um lugar onde pode prosperar a agricultura de alimentos, flores e viveiros, que não se acabem, empobreçam ou envenenem nossas terras e águas, nem adoeçam ou deformem geneticamente nossos filhos. Que com cada nova colheita se possa enriquecer a fertilidade dos solos. Imaginamos uma exploração racional de nossas florestas e uma produção agrícola muito produtiva e diversificada. Queremos que as empresas imobiliárias deixem de “plantar” vergalhões e chapas de pavimento ao invés de milho, que as grandes empresas deixem de introduzir em nossos campos sementes transgênicas, que deixem de introduzir toneladas de plásticos e outros lixos perniciosos na vida de nossas cidades, que deixem de pressionar nossas terras para produzir biocombustíveis que só estarão a serviço dos automóveis e suas megacidades [...] Não comungamos com a idéia de que o único “progresso” possível é o que nos propõem os empresários transnacionais ou os políticos corruptos empenhados em nos despojar de nossas terras, florestas e águas. Queremos que não se percam no esquecimento nossas raízes. Que se resgatem, desde nossas casas e povoados, as tradições que ainda muitos praticam e recordam. Que as difundamos para que possamos voltar a entender seu sentido profundo. Como mulheres dos povos queremos resgatar o que aprendemos com nossas mães e avós. Que em nossos povoados possamos seguir transmitindo a sabedoria efetiva de nossos antepassados. Diante do crescimento de um consumo cada vez mais manipulado, necessitamos resgatar a produção de alimentos próprios, domésticos, sãos, que não nos escravizem às lojas de autosserviço, nem a doenças degenerativas como os diabetes, os problemas de coração ou o câncer [...] Nosso sonho é integral, porque nele nos imaginamos arraigados ao território e tecendo juntos formas novas e tradicionais de organização que nos permitam chegar a consenso, entre todos, que os povos possamos ter água, florestas, solos férteis e saúde, com reservas para as próximas gerações; recuperar, como comunidades, nossa convivência harmônica; reconstruir nossos laços; construir a autonomia de cada povoado, baseada em nossas próprias leis e normas sobre o manejo de água, os solos e o lixo, respeitando a consulta e os direitos de todos. Queremos a justiça que a legalidade dos poderosos nos negou [...] Nossa aspiração, como a de muitos outros povos do mundo, é conseguir que, em Morelos, nenhum projeto de desenvolvimento possa ser construído ou implantado sem a consulta e aprovação dos povos, porque sabemos que é nosso direito decidir sobre nossos recursos e territórios [...] Chegou o momento de agir. Temos que entender que hoje, se a luta de cada povo está isolada, está condenada à derrota, ao despojo, à destruição de sua organização comunitária e a ver morrer cada um de seus recursos vitais e seus sonhos. Enquanto que os povos, nos juntando, não poderemos ser derrotados jamais. l Zapata vive nos povos que se organizam e se levantam Conselho de Povos de Morelos Xoxocotla, 29 de julho de 2007 A versão completa pode ser obtida escrevendo para: [email protected] ou em http://www.ecoportal.net/content/view/ full/71751/ Ataques, políticas, resistência, relatos Declarar o Equador livre de sementes e cultivos transgênicos foi um dos avanços mais notáveis de nossa nova Constituição. Por esse texto votaram mais de 60% da população equatoriana. Essa foi sua vontade. Apesar disso, em alguns rascunhos que têm circulado sobre um projeto de lei de Soberania Alimentar, se propõe um modelo com o qual se regulamente a única exceção que permitiria o ingresso de sementes e cultivos transgênicos no país – isto é, casos de interesse nacional, convertendo a exceção na regra. O mecanismo proposto pelo projeto de Lei é que seja criada uma comissão nacional de biossegurança. Uma empresa, digamos a Monsanto (que controla 90% das sementes transgênicas no mundo), solicita ao país o ingresso de um tipo de sementes transgênicas. A Comissão Nacional delega a alguma universidade ou centro de pesquisa que faça “avaliação de risco”, o que é estabelecido como o único requisito e única metodologia para aceitar ou negar os transgênicos. Se a avaliação de riscos é positiva, o cultivo transgênico está aceito. Essa é a mesma metodologia seguida pelos poucos países que adotaram de forma massiva os cultivos transgênicos, reproduzindo um padrão homologado e promovido pela indústria biotecnológica para facilitar os trâmites de entrada de suas sementes transgênicas. A única diferença é que, de acordo com o projeto de lei, a comissão de biossegurança assessoraria o presidente sobre quando aplicar a exceção estabelecida no artigo 401 da Constituição. Então, qualquer empresa pode apresentar pedidos para introduzir transgênicos. A exceção poderia aplicar-se em qualquer momento se a avaliação de risco é positiva. O presidente apresentaria o caso à assembleia nacional, que terá quinze dias para se pronunciar, transcorridos os quais se aplicará o silêncio administrativo positivo. O presidente poderá pedir reconsideração se o voto for desfavorável, para a qual também se aplicará o silêncio administrativo positivo transcorridos quinze dias. Então, o simples fato de uma empresa apresentar um pedido de ingresso de sementes ou cultivos transgênicos ao país, pode ser considerado como “um caso de interesse nacional”. Essa interpretação do artigo 401 da Constitui- ção seria anticonstitucional, e burlaria a vontade dos que votamos sim no último referendo. A avaliação de riscos foi adaptada como metodologia pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos, em 1983. Desde então, tem sido criticada por diferentes âmbitos da academia e pela sociedade. Um dos problemas é que não aborda corretamente o problema da incerteza, um elemento que está sempre presente em qualquer informação científica, pelo que se presta a uma série de interpretações subjetivas e políticas, ainda que se apresente como metodologia neutra e “baseada na ciência”. Um recente relatório da Academia de Ciências norteamericana reconhece que nos Estados Unidos não existe pessoal qualificado suficiente para fazer de maneira adequada as avaliações de riscos nem dispõem de recursos financeiros suficientes para isso. Reconhecem que o conhecimento científico é cada vez mais complexo, assim como as decisões baseadas em avaliações de riscos. Levando em conta essa complexidade, é impossível que 31 AMS O Equador se livrará dos transgênicos? em quinze dias os membros da assembléia nacional possam tomar uma decisão responsável e completa sobre a liberação de um organismo transgênico e sobre seus impactos no ambiente e na saúde dos equatorianos. Lembremos que a ecologia do Equador é extremamente complexa, que não há estudos científicos que tenham avaliado os impactos dos cultivos transgênicos em um país que é centro de origem de cultivos e que tem uma imensa biodiversidade. Que, por ser um país plurinacional, deve-se ter em consideração o impacto que esses cultivos podem ter no Ataques, políticas, resistência, relatos bem-estar e nas formas de vida das populações indígenas, afrodescendentes e outras comunidades, como estabelece a Constituição. Essa metodologia provou não ser idônea para a tomada de decisões em matéria de transgênicos. Por exemplo, sua aplicação na Argentina fez com que haja, atualmente, 22 milhões de hectares de cultivos transgênicos (entre soja, milho e algodão) que, uma vez aprovados na avaliação de risco como único requisito, são desregulamentados, o que fez com que se registrem impactos muito graves na saúde da população. Os hospitais dos povoados pulverizados com glifosato (a soja transgênica está desenhada para que tenha resistência a esse herbicida) estão cheios de pacientes afetados, mulheres com abortos não desejados e casos de bebês mortos. Isso é revelado no último relatório da Secretaria do Ambiente desse país. A avaliação e a gestão de risco não são suficientes para proteger a soberania alimentar, nem o ambiente, nem a biodiversidade. A avaliação de risco só mede os níveis e doses permitidos a que um organismo ou ambiente pode estar exposto a um determinado fator de risco (neste caso um organismo geneticamente modificado), e como responde sob distintos cenários. 32 Um informe recente do professor Barney Gordon, da Universidade de Kansas, revela que o rendimento da soja com resistência ao glifosato é menor que os obtidos com soja convencional, mesmo sob condições ótimas. A relação de rendimentos entre os dois tipos de soja é de 1 a 9. Iguais resultados foram encontrados na Argentina e Estados Unidos, incluindo o estudo da Universidade de Arkansas com soja transgênica e algodão e as pesquisas da Universidade de Wisconsin em quatro entidades dos Estados Unidos. Esses estudos são apoiados pelos do Instituto Nacional de Botânica do Reino Unido, que encontrou um rendimento menor em colza e beterraba transgênica. A própria Monsanto reconheceu que suas variedades transgênicas não foram desenhadas para produzir mais. De fato, a produtividade de um cultivo não é determinada por um só gene. Há várias características que determinam o rendimento de um cultivo: o tipo de solos, a disponibilidade de água, os métodos de produção. Em todo caso, os cultivos transgênicos que no momento são comercializados foram manipulados somente para serem resistentes a insetos e a herbicidas. Qual é então o incentivo de um agricultor para adotar essa tecnologia? A resposta é simples. A soja RR requer menos mão de obra, pois facilita o método de controle de inços. Um estudo de Javier Rodríguez, da Universidade de Buenos Aires, demonstra que aqueles que adotaram a soja transgênica economizam drasticamente no pagamento de mão de obra (ainda que gastem mais com insumos). Isso tem uma forte repercussão negativa na massa salarial e no emprego: elementos não evidenciados na avaliação de riscos. AMS Em nível mundial, foram adotados de forma massiva somente quatro cultivos transgênicos oleaginosos: milho, soja, algodão e colza (ou canola). Estão destinados à produção de óleo e à alimentação animal (com exceção do algodão que se usa como fibra). Cerca de 49% da produção mundial de soja está destinada à ração para frangos, 25% para porcos, 3% para aquacultura. E uns 3% para alimento de mascotes! Há uma tendência mundial ao aumento do consumo de carne, sobretudo de frango. No México, 66% são destinados à produção de alimentação animal, e somente 34% restantes são utilizados para nutrir 100 milhões de habitantes. Essa mesma tendência ocorre no Equador, como resultado de uma campanha de promoção por parte das empresas que controlam essa cadeia de produção. Estamos apostando em um tipo de produção de alimentos altamente ineficiente, pois, para produzir 100 calorias de carne de frango, são necessárias 700 calorias de grãos. E estamos apostando em uma tecnologia que converteria o Equador em produtor de alimentos de má qualidade (transgênicos e frangos), às custas de nossa biodiversidade. l Elizabeth Bravo, Acción Ecológica Ataques, políticas, resistência, relatos Silvia Rodríguez Cervantes, 20 de dezembro. O Secretário Geral da Con- venção Internacional para Proteção de Obtenções Vegetais (upov), acolheu com beneplácito a adesão da Costa Rica ao Convênio da upov (Ata de 1991). “As obtenções vegetais são um dos meios mais úteis para fomentar a produção alimentar de uma maneira sustentável, aumentar a receita no setor agrícola e contribuir com o desenvolvimento geral”, disse seu release para a imprensa. para aqueles que lutamos dez anos para que isso não acontecesse. Na Rede de Coordenação em Biodiversidade (rcb), pensamos que as exigências para conceder direitos de obtenção têm um viés em direção à produção de um certo tipo de sementes sedentas de agroquímicos e à erosão genética. O concedido favorece as empresas sementeiras e de agroquímicos e é nefasto para a agricultura camponesa e a biodiversidade. A batalha começou em 1998. Duas legislaturas nos permitiram expor os argumentos que concluíam na rejeição da upov-1991. A rcb propôs uma lei alternativa, de Proteção dos Direitos dos Fitomelhoradores, pela qual se concediam certas vantagens àqueles que contribuíssem com sementes adaptáveis aos ecossistemas do país e que preenchessem as exigências culturais. O benefício nunca seria a outorga de propriedade intelectual (pi) sobre as sementes ou qualquer outro material reprodutivo. O princípio de reprodução, objetivo final dos direitos de pi, jamais poderia transformar-se em direito privado de ninguém. A discussão desse projeto foi freada contundentemente em 2004, quando se deu a conhecer o texto do tlc Estados Unidos-América Central e República Dominicana, pois era exigido dos países firmatários serem signatários do Convênio upov-1991. AMS Ingresso na UPOV. Foi um dia de luto TLC destruiu a LB. Ao aprovar-se o tlc em um discutido referendo, surgiu a possibilidade de consultar a aprovação ou rejeição da upov em outro referendo. Foram conseguidas em um tempo recorde 130 mil assinaturas, mas o Tribunal Supremo de Eleições não exigiu que a Assembleia Legislativa suspendesse a discussão da upov no Parlamento, a qual foi aprovada apressadamente, pouco antes de se conseguirem todas as assinaturas para que se concretizasse a consulta popular. A Lei de Biodiversidade da Costa Rica (lb), aprovada há 10 anos, foi objeto de singular sanha nos textos O do tlc, já que vários de seus artigos, relacionados com a PI, iam contra as condições impostas pelos Estados Unidos. Além de alterar parte do artigo 78 da lb através de uma das leis da Agenda de Implementação do tlc, o Executivo conseguiu outras modificações. Os decretos 34958 e 34959 de 15 de dezembro contêm dois regulamentos. O 34959 modifica o artigo 78.6 sobre conhecimento tradicional, rejeitado anteriormente pela Sala Constitucional por ter omitido a consulta aos povos indígenas com o procedimento adequado. Cumpriram com esse trâmite antes de promulgar o decreto? Claro que não. Através de uma carta, o Ministério do Comércio Exterior (Comex) informou à Comissão Nacional de Assuntos Indígenas (Conai) sobre o decreto, pedindo que distribuíssem cópias às Associações de Desenvolvimento indígenas e arrecadassem assinaturas de recebimento. Além da farsa da “consulta”, esse decreto não regulamenta, mas sim modifica a lb, o que de acordo com a Lei de Administração Pública não pode ser feito. Ou permitir patentes sobre o conhecimento tradicional não é alterar, mediante decreto, uma lei que antes expressamente o excluía? A isso se chama “explicá-lo” ou “regulamentá-lo”? O decreto 34958 foi totalmente inesperado. Modifica o artigo 80 da lb. Tal como era, continha dois pon- AMS Foi imposta a propriedade intelectual na Costa Rica 33 Ataques, políticas, resistência, relatos tos nevrálgicos. O primeiro obrigava a Agência Nacional de Sementes e os Registros de Propriedade Intelectual a consultar a Agência Técnica (at) da Comissão Nacional de Gestão da Biodiversidade (Conagebio) antes de outorgar qualquer direito de pi que envolvesse elementos da biodiversidade. O segundo ponto do artigo assinalava que, com fundamentada oposição, a at impediria registrar a patente ou proteção da inovação nessa matéria, se esses direitos fossem de encontro aos objetivos da lb – os mesmos do Convênio de Diversidade Biológica – e se previamente não houvesse outorgado ao solicitante o certificado de cumprimento dos requisitos para acesso aos recursos genéticos e bioquímicos do país. 34 Agora o decreto modifica flagrantemente a lb. Mantém a consulta à at, mas altera drasticamente suas atribuições. Se antes podia se opor à concessão de uma patente pelas razões acima expostas, agora é suficiente que o solicitante atenda aos requisitos exigidos pela lei de patentes (novidade, grau de invenção e aplicação industrial). A at não poderá acrescentar nenhum outro requisito. O tlc implica outras alterações já efetuadas e outras mais por fazer. Falaciosamente se menciona na justificativa dos decretos que as modificações são em nome da “soberania” do país sobre seus recursos, quando na verdade somente acataram as ordens dos mais altos funcionários da Secretaria de Comércio dos Estados Unidos. Em Contaminação transgênica de milho no Chile O Instituto de Nutrição e Tecnologia de Alimentos (inta), AMS dependente da Universidade do Chile, detectou que milhos transgênicos contaminaram geneticamente planta- distintas visitas esses funcionários, fizeram “a solicitação expressa de modificar a Lei de Biodiversidade como parte do processo de certificação que os Estados Unidos realizam”, como o informou Lorna Chacón (ver http:// www.semanario.ucr.ac.cr). O poder executivo e a assembleia legislativa se dobraram ante essa exigência, comprometendo a soberania do país, os lineamentos do Estado de Direito, os compromissos internacionais e a proteção da biodiversidade e dos saberes associados. A luta não acaba. A rcb estamos preparados para seguir na luta, encontrando as brechas para que a biodiversidade cresça e as sementes e os saberes se multipliquem livres de amarras e condicionamentos. l ções de milho convencional no Chile, em um estudo realizado no início do ano na região de O’Higgins. Na amostragem identificou-se que quatro das 30 propriedades estudadas, as que se encontram contíguas às produções de sementes de organismos geneticamente modificados (ogm), deram resultados positivos para contaminação transgênica, o que, a juízo de ecologistas, coloca em risco as exportações em agricultura orgânica e sementes convencionais das empresas dessa região. A situação foi considerada como de “extrema gravidade” por María Isabel Manzur, membro da Fundação Sociedades Sustentáveis, já que “esses milhos contaminados são ilegais, pois não estão aprovados para consumo humano nem estão autorizados pelo sag para uso como semente”. Manzur e a ecologista Sara Larraín solicitaram ao Ministério de Agricultura que realize estudos independentes para avaliar a extensão da contaminação dos cultivos e sementes no país, além de implementar medidas de controle da contaminação existente, a ratificação do Protocolo de Biossegurança e uma lei que proíba esses cultivos no país, por serem, a seu juízo, perigosos para o ambiente e para a saúde humana. O Serviço Agrícola e Pecuário (sag) autorizou em 2007 cerca de 25 mil hectares de ogm no território nacional, a maior parte de milho. Em paralelo, no Congresso se discute um projeto de lei, proveniente de senadores de diversos partidos políticos, que apóia a expansão dos cultivos transgênicos e não considera sua rotulagem. l http://www.cooperativa.cl/prontus_nots/ site/artic/20081022/ Ataques, políticas, resistência, relatos Ao finalizar a V Conferência Internacional da Via Campesina, em Maputo, Moçambique, celebrada entre 19 e 22 de outubro, as organizações reunidas fizeram um balanço da convergência de crises mundiais que padecemos. No dito documento, a Via Campesina afirma: “Nas últimas décadas vimos o avanço do capital financeiro e das empresas transnacionais sobre todos os aspectos da agricultura e do sistema alimentar dos países e do mundo. Desde a privatização das sementes e a venda de agrotóxicos, até a compra da colheita, o processamento dos alimentos e seu transporte, distribuição e venda ao consumidor: tudo já está em mãos de um reduzido número de empresas. Os alimentos deixaram de ser um direito de todos e todas, para ser uma mercadoria a mais. Nossas dietas estão se homogeneizando em todo o mundo, com alimentos que são maus para a saúde, têm preços fora do alcance das pessoas, e estamos perdendo as tradições culinárias de nossos povos”. O documento prossegue: “Estamos vendo uma ofensiva do capital sobre os recursos naturais, como não se via desde os tempos coloniais. A crise da taxa de lucro do capital os lança em uma guerra privatizadora de despojo contra os camponeses e indígenas, um roubo privatizador da terra, do território, das florestas, da biodiversidade, da água e da mineração. Os povos rurais e o meio ambiente estão sendo agredidos. O plantio de agrocombustíveis em grandes monocultivos industriais é parte desse despojo, justificado falsamente com argumentos sobre as crises energéticas e climáticas... Agora, o surgimento da crise de alimentos e da crise financeira faz com que tudo se torne mais agudo. A mesma crise financeira e as crises de alimentos estão vinculadas pela especulação que o capital financeiro faz com os alimentos e a terra, em detrimento das pessoas. O capital financeiro se desespera, assaltando os erários públicos para suas recuperações, as quais vão obrigar a cortes orçamentários ainda maiores nos países, e maior pobreza e sofrimento. A fome no mundo segue seu ritmo de crescimento. A exploração e todas as formas de violência, em especial contras as mulheres, aumentam. Com a contração econômica nos países ricos, cresce a xenofobia contra os trabalhadores e trabalhadoras migrantes, com crescente racismo e repressão, e o modelo dominante oferece cada vez menos oportunidades para a juventude no campo”. Por isso, a Via Campesina, consciente de que “o regime mundial de alimentos controlados pelas empresas transnacionais não é capaz de alimentar a grande massa de pessoas neste planeta”, propõe uma agricultura camponesa local que gere a necessária soberania alimentar como algo verdadeiramente urgente. Renacionalizar a produção e as reservas de alimentos, tirar o capital especulativo desse setor, incentivar a alimentação mediante cultivos próprios e “a disseminação de um sistema alimentar local que não se baseie nem na agricultura industrial e nem no transporte em longas distâncias”, com o que seriam eliminados até uns 40% das emissões de gases de efeito estufa. “A agricultura industrial aquece o planeta, e a agricultura camponesa esfria o planeta”, afirma no documento, mas acres- AMS 35 AMS A Via Campesina frente à crise global centa que é necessária “uma mudança no padrão de transporte humano para o transporte coletivo, como passo necessário “para fazer frente às crises energéticas e climáticas”. Também é vital uma “reforma agrária genuína e integral e a defesa do território indígena”, uma “agricultura camponesa sustentável” que recupere “os solos degradados pela agricultura industrial, e produzir alimentos sadios e próximos para nossos povos”. Entre as propostas, destacam “o fim de todos os tipos de violência contra a mulher, incluindo a física, a social e outras. O alcance da verdadeira paridade de gênero em todos os espaços internos e instâncias de debates e de tomada de decisões é compromisso imprescindível para avançar neste momento como movimentos de transformação da sociedade”, mas também o são o direito à semente e à água, como fontes da vida e patrimônio dos povos. “Não podemos permitir sua privatização, nem o plantio de sementes transgênicas ou de tecnologia Terminator”. Também se insistiu em que devemos rechaçar a criminalização do protesto social e impulsionar a Declaração de Direitos Camponeses na onu, proposta pela Via Campesina. O documento declara: “Será uma ferramenta chave no sistema legal internacional para fortalecer nossa posição e nossos direitos como camponeses e camponesas”. l Ataques, políticas, resistência, relatos Declaram ilegal a tortilla feita a mão Dizer tortilla é falar da principal forma como se come o milho no México. Um alimento mais básico do que o pão, que ao mesmo tempo é prato, colher, garfo e guardanapo, há mais de mil anos pelo menos, entre os povos indígenas camponeses, que cultivam esse milho de formas tradicionais, para depois processá-lo familiarmente com água e cal e moê-lo com utensílios caseiros de pedra para fazer uma massa da qual elaboram a mão a tortilla, maleável, suave, nutritiva, saborosa e quentinha. Mas ocorre que, invocando uma norma oficial mexicana, a nom-187-ssa 1/scfi-2002 sobre a elaboração de massa, tortillas, torradas e farinhas preparadas, uma autoridade de extração “progressista” do município de Tala, Jalisco, declarou ilegais as tortillas feitas a mão, “por não atenderem às normas de qualidade”, e “a venda de tortilla quente em armazéns, supermercados ou em qualquer outro local público ou particular que não tenha a respectiva licença, assim como a venda de tortilla quente por vendedores ambulantes”. AMS 36 No incidente, que não foi adiante pela queixa generalizada da população de todo Jalisco, foram invocados critérios industriais de “conservação”, “higiene” e fiscalização que estão em sintonia com a pujante indústria de milho de grandes ou medianos estabelecimentos e suas tortillerías mecanizadas, que utilizam milhos de duvidosa procedência industrial (e até transgênico) ou farinhas de milho muito processadas para elaborar uma tortilla ruim, mas que conta com a certificação da citada nom, entre outras coisas porque trabalham com gás e não com lenha. De acordo com esses interesses, as senhoras que familiarmente fazem tortillas a mão e vendem de forma autônoma suas tortillas são uma “concorrência desleal”, principalmente quando as pessoas começam a dar preferência ao milho limpo, sem químicos e de procedência conhecida. Mas a tendência é mundial: assim como as leis de muitos países já certificam as sementes padronizadas e proíbem trocar livremente as sementes próprias e seus saberes associados, a perseguição de tortilleras criminaliza seus saberes ancestrais associados ao milho na cultura camponesa mesoamericana. l bilaterals.org: uma ferramenta libertária Em 2009, bilaterals.org completará cinco anos. Várias mudanças importantes estão em curso para ampliar e melhorar o site na web, que atualmente hospeda mais de 13 mil artigos, que são consultados por 6 mil pessoas diariamente. Um aspecto importante desta reestruturação, que estará completa antes de abril próximo, será o de incorporar o conteúdo do site associado combatiendolostlc.org com a finalidade de que tudo esteja sob um mesmo teto. Isso significa que bilaterals.org finalmente se converterá em um site multilíngue, de publicação aberta multimídia. Os ativistas que participam nas lutas contra o “livre comércio” e os acordos bilaterais de investimento (tlc) poderão carregar livremente não somente textos, mas também vídeos, áudios e fotografias de suas lutas. O novo site dará uma maior importância às ações dos povos e à resistência, e esperamos que fique mais fácil para vocês publicarem. bilaterals.org foi criado em 2004 como um site de publicação aberta onde as pessoas que lutam contra os tlc pudessem trocar informação e análises e fomentar a cooperação. Ainda não havia uma única ferramenta que permitisse realizar um acompanhamento da ampliação da rede mundial de acordos de livre comércio e tratados de investimento, e suas interconexões. As campanhas contra os acordos bilaterais encontraram dificuldades para se vincular umas às outras, para comparar anotações, compartilhar experiências e análises, desenvolver estratégias complementares mais amplas. bilaterals.org foi criado por várias organizações com o objetivo de superar esses obstáculos. Desde então, o site converteu-se em um recurso útil para os movimentos sociais, organizações não governamentais, pesquisadores, jornalistas e o público em geral, como fonte de informação global, textos dos acordos, análises críticas, materiais de campanha e ferramentas educativas para compreender, expor e mobilizar contra esses acordos. Também auxiliou a dar mais visibilidade aos acordos bilaterais como instrumentos poderosos da privatização, do neoliberalismo e do controle corporativo. Apesar de ninguém possuir ou controlar bilaterals.org, um pequeno grupo de pessoas colabora informalmente para manter o site no dia-a-dia. Você pode se unir a esse grupo ou simplesmente se colocar em contato enviando alguma pergunta ou preocupação por escrito a bilaterals. [email protected]. l Ataques, políticas, resistência, relatos Pronunciamento AMS NÃO ao Tratado de Livre Comércio com a União Européia O presidente Rafael Correa chegou ao governo do Equador com a promessa de uma “revolução cidadã” e acolheu a demanda dos povos indígenas de seu país por uma nova Constituição, na qual foi consagrado o Bem Viver. Mas tudo isso ficou no discurso e no papel, com sua decisão de seguir seus colegas da Colômbia e do Peru e aceitar uma “negociação bilateral” do Acordo de Associação com a União Européia, deixando a Bolívia sozinha na defesa soberana dos países andinos e na integração sub-regional. Não nos surpreende que Álvaro Uribe e Alan García compitam pelo desonroso posto de o mais servil aos interesses da globalização neoliberal, seus tratados de livre comércio e a submissão às multinacionais. Mas no caso de Rafael Correa, a quem considerávamos parte da nova tendência política na América Latina, acabamos de nos convencer que se trata somente de demagogia. Um fato que mais do que comprova isso é seu afã de aprovar uma Lei de Mineração às costas e contra os interesses das comunidades indígenas, em cujos territórios jazem os recursos minerais. As organizações integrantes da Coordenadora Andina de Organizações Indígenas – caoi - rechaçamos contundentemente a negociação e a assinatura do tratado de livre comércio com a União Européia (ue), disfarçado de “Acordo de Associação”, de- baixo de falsas propostas de “cooperação” e de “diálogo democrático”. Ainda antes de se iniciarem as negociações, a ue advertiu que não dará um centavo mais de cooperação. E de que diálogo democrático ela fala quando se senta a negociar com governos como os da Colômbia e Peru, que violam os direitos humanos e coletivos de seus cidadãos e criminalizam sistematicamente o protesto social? O “Acordo de Associação” que se negocia com a União Européia não passa, então, da ponta de lança do Banco Europeu de Investimentos e das multinacionais desse continente, principalmente extrativistas, para facilitar ainda mais o saque de nossos bens naturais, arrasando no caminho com os direitos trabalhistas e os direitos coletivos, em especial os territoriais dos povos indígenas. Para cumprir esse objetivo, a União Européia não hesita um segundo em contradizer sua própria proposta inicial, a de uma negociação entre blocos, visando debilitar a Comunidade Andina e fomentar sua desintegração. Uribe e García prestaram-se com gosto a esse jogo desde o princípio, e agora, vergonhosamente, Correa uniu-se a eles. Mas devem saber que não lhes será fácil impor um tratado de livre comércio. Os povos indígenas não estamos sozinhos nessa luta, nossas organizações articulam-se também, cada vez mais, com os mo- vimentos sociais da América Latina, e os movimentos sociais europeus nos respaldam. Coordenamos juntos a resistência e a construção de propostas alternativas à globalização neoliberal. Por isso: 1. A caoi chama o conjunto das organizações do movimento indígena e do movimento social da Região Andina e Europa a se pronunciarem contra a negociação do tlc com a União Européia. 2. Chama uma consulta às bases para definir as medidas de emergência contra a pretendida imposição desse tlc e o fracionamento da Comunidade Andina de Nações can. 3. Responsabilizamos a ue por dividir a can. Os conflitos que se originarem serão responsabilidade desse tipo de acordos que corresponde a seus interesses. 4. Alertamos a União Européia e seus governos títeres que passamos da resistência à proposta: O tlc com a União Européia não passará! l Lima, 13 de novembro de 2008 Coordenadora Andina de Organizações Indígenas, CAOI. Confederação de Povos da Nacionalidade Kichwa do Equador, Ecuarunari. Conselho Nacional de Ayllus e Marcas do Qullasuyu, Conamaq, Bolívia. Confederação Nacional de Comunidades do Peru Afetadas pela Mineração, Conacami. Organização Nacional Indígena da Colômbia, ONIC. Identidade Territorial Lafkenche, Chile. Organização Nacional de Povos Indígenas da Argentina, ONPIA. Confederação Camponesa do Peru, CCP. Confederação Nacional Agrária, CNA. União de Nacionalidades Aymaras, UNCA. Federação de Mulheres de Yauli, Femucay. Associação Nacional de Professores de Educação Bilíngue Intercultural, Anamebi. Conselho de Produtores de Alpaca do Norte de Ayacucho, Copuca. Confederação Sindical Única de Trabalhadores e Camponeses da Bolívia, CSUTCB. Federação Nacional de Mulheres Bartolina Sisa da Bolívia. [email protected] Tel: 00511-2651061 37 Ataques, políticas, resistência, relatos Um mercado alternativo zapatista Entre os primeiros milharais e as últimas casas do centro de San Andrés Sakamch’em, a menos de 200 metros de onde está enterrada a comandante Ramona, o mercado autônomo é um evento consolidado no meio da semana e multitudinário aos domingos, o “dia de feira” tzotzil zapatista nos Altos de Chiapas, México. Aqui vêm, para comprar ou vender seus produtos, centenas de indígenas dos municípios autônomos vizinhos, como San Juan de la Libertad, Magdalena La Paz e San Pedro Polhó, bem como San Juan Chamula, Mitontic, Zinacantán, e inclusive de mais longe. A maior parte das instalações são caixas de madeira e tábuas, modestas, mas em muito bom estado. A construção de alvenaria, que antes de 1994 iria ser o novo mercado instalado pelo governo nunca funcionou até agora, que se destina exclusivamente aos açougues de gado e de porco. Um imenso coração jaz à entrada da construção, onde aos sábados funciona uma dezena de açougues, e, aos domingos, mais de 20 enchem o imóvel, oferecendo todas as partes dos animais sacrificados, pois ossos e vísceras são mais acessíveis às famílias pobres. É uma tradição de San Andrés, essa da carne. Antes só se vendia na rua, atrapalhando os carros. Agora, está sob um teto, em um lugar fresco, iluminado e notavelmente limpo, e sem ter que pagar pelo espaço, somente um pequeno imposto sobre a venda. Se algo caracteriza esse dia de praça alternativo é a ausência de lixo orgânico ou inorgânico. Durante os diálogos de San Andrés (1995-96), o prédio serviu como albergue para as milhares de bases de apoio do ezln que vinham cuidar de seu comando, cercado pelo Exército federal naquelas conversações, que apesar de malogradas são históricas. Abandonado durante uma década, finalmente cumpriu seu propósito quando o Conselho Municipal Autônomo de San Andrés Sakamch’en dos Pobres o ocupou e montou as instalações com recursos distribuídos pela Junta de Bom Governo de Oventic. Quando iniciou as atividades, muitas bancas foram retiradas do parque central da cidade. Diante do êxito do mercado autônomo e para poder competir com ele, as autoridades do município oficial San Andrés Larráinzar, minoritário, mas com orçamento in- 38 comparavelmente maior, iniciaram a remodelação da praça central, com um novo quiosque, uma torre, bancos e iluminação. Imediatamente, e já que tudo está em obras, o mercado tradicional (agora oficial) instala-se nas ruas ao redor da igreja. Também muito concorrido, mas em condições pouco higiênicas, como sempre. No mercado autônomo, sob pequenas bancas do tamanho de uma lona plástica, as camponesas exibem batatas, mandiocas e batatas-doces ainda cobertas de terra negra. Maçãs sem o verniz dos supermercados, cenouras enormes como as pintadas por Diego Rivera, chuchus crus e cozidos, repolhos, cana-de-açúcar, uma variedade alucinante de bananas verdes e amarelas. As mulheres de Zinacantán trazem melancias e mamões, e preparam saladas de frutas com mel “de abelhas autônomas”. As pastoras de San Andrés e de Chamula acotovelam-se junto a pilhas de peles de seus borregos tosquiados: mechas brancas, negras, trigueiras, grisalhas. Além disso, meadas de fio de lã crua, e as multicolores de algodão para os huipiles*, tão diversificados e diferenciados nos distintos municípios tzotziles, onde as bordadeiras melhor conservam a tradição e a arte. Salões de beleza, lojas de ferragens ambulantes, ervanaria rústica. Poucas bancas de comida pronta, ainda que seja abundante a oferta de tamales de bola (porco, frango, erva santa) e tilápias fritas. Como se estivessem em formação, sobre o solo se alinham dezenas de bornais de rede cheios de tortillas de diversos tamanhos e tonalidades, ou tlacoyos. Cheira a milho crioulo e a goiabas, que são pequenas e de diferentes tipos, assim como as laranjas e as romãs. Diferente do mercado oficial, não há mercadoria de contrabando, nem pirataria made in Tepito, cidade do México, nem pornografia. Há toda a sorte de utensílios de cozinha popular, de peltre, plástico e barro. Atrai muita gente uma grande banca de panelas de bom tamanho e da cor da terra, cujas amplas bocas parecem estar presas em um bocejo. E cestas de junco, cabaças, móveis de pinho. Produtos das hortas familiares, como folha de “mostarda”, alface, feijões, muricis, tejocotes. Também faixas bordadas em roxo e azul, e feijões vermelhos do tamanho de uma moeda de um peso. Uma discreta comissão do conselho autônomo, sob um toldo, quase à margem do burburinho, tem o registro dos comerciantes em um caderno Scribe. Aqui não há intermediários nem subornos, e sim uma modesta, mas sã, economia alternativa. Se a comandante Ramona visse o mercado autônomo nesta ensolarada manhã de domingo, poderíamos imaginá-la sorrindo. Também para isso serviu sua luta. Hermann Bellinghausen, La Jornada, 28 de outubro de 2008 AMS l * Blusa tradicional Ataques, políticas, resistência, relatos Contaminando sem cruzar o rio Pedro Lipcovich. Finalmente, ocorreu a temida catástrofe Ver a versão completa em Página 12, 18 de novembro de 2008 Francisco García ambiental em Gualeguaychú: mais de 30 mil pássaros, como pombas, papagaios e cardeais, morreram por “abuso de agroquímicos”, conforme determinaram as autoridades locais. A essa mortandade, deve-se somar a de falcões e falcões peregrinos, doninhas, raposas, gambás, tatus, gaviões e chimangos, que se intoxicaram por se alimentarem dos pássaros envenenados. A causa não veio do outro lado do rio, mas sim deste, e o responsável não foi um estrangeiro, mas “o mais poderoso proprietário de terras da zona”, de acordo com uma fonte da investigação. Um funcionário provincial de Recursos Naturais denunciou “o uso de substâncias tóxicas sem controle por engenheiros agrônomos”. A pulverização indiscriminada produziria “intoxicação de peixes em arroios da zona”. Em outubro passado, um homem que ia por uma estrada vicinal, perto de Gualeguaychú, espantou-se ao ver a terra coberta de pássaros mortos. A investigação estabeleceu que “um produtor de girassol havia colocado iscas tóxicas para combater os papagaios que comem a semente; o agrotóxico que utilizou é permitido, mas em doses menores”, resumiu Rubén Sarli, subsecretário de Produção Agrícola e Recursos Naturais de Entre Ríos. Conrado Gonzáles, diretor de Recursos Naturais da província, destacou que o tóxico “não afeta só as espécies atacadas, mas também outros animais, que as consomem; ou seja, a maior parte da fauna está sob os efeitos de um veneno sem controle”. O funcionário ressaltou que “é proibida a venda de agroquímicos sem ‘receita agronômica’, comparável à receita médica, assinada por um engenheiro agrônomo que se responsabiliza pela administração o produto”. De acordo com uma fonte dos organismos de controle provinciais, “quem causou a mortandade é o proprietário de terras mais poderoso da zona, dono de 13 mil hectares”, cujo nome não foi dado a conhecer. González destacou o risco dos agrotóxicos clorados: “Em geral são proibidos, apesar de alguns produtos conterem algo de cloro: esta substância não só tem efeito imediato, mas se acumula nos tecidos e, anos depois, causa danos graves”. Outra toxicidade “bastante comum” se produz “quando um avião pulveriza duas áreas separadas por um arroio e, ao invés de parar, pulveriza o agroquímico por cima da água, o que produz intoxicação de peixes”… l Paraguai Intoxicados As pessoas que trabalham em comunidades camponesas, que têm um perfil crítico e consciente identificam facilmente os enormes perigos dos agrotóxicos associados à agricultura industrial, principalmente quando o grau de extensão do monocultivo é tão massivo que todo o entorno fica literalmente prisioneiro dos tóxicos empregados no cultivo e que não deixam um espaço mínimo para sequer respirar outro ar que não o químico. Mas, não deixa de causar impacto que não se dê a mínima importância na imprensa nacional às notícias sobre intoxicações dessa natureza. Por isso, pelo menos daqui, acusamos o recebimento de alguns dos reiterados casos. Agora foi no Paraguai, onde quatro meninos indígenas intoxicaram-se com os químicos empregados nas plantações de soja. Um faleceu e os outros três foram hospitalizados em estado grave. Ocorreu na parte ava guarani da colônia Ka’aguy Poty de Yasi Cañy, no departamento de Canindeyú. De acordo com uma nota de Pablo Medina e Sergio Escobar, “Um dos meninos que foram atendidos no Centro Materno Infantil de San Estanislao faleceu”. Foi o menino de 4 anos, o menor. Os outros têm 10, 8 e 6 anos. “Os pequenos provavelmente foram intoxicados com agroquímicos utilizados em cultivos de soja, dentro da propriedade da empresa Centurión Hermanos, arrendada por produtores brasileiros. De acordo com os familiares, as crianças começaram a sentir fortes dores de estômago desde quarta-feira passada, depois de tomar banho em um arroio que cruza a comunidade indígena, localizada nas imediações dos cultivos de soja de produtores brasileiros. Inocencia Ortiz, mãe do menor, de quatro anos, falecido, disse que inicialmente suspeitaram que poderia tratar-se de uma peste, pelo que foram atendidos no hospital de Capiibary (San Pedro), de onde foram transferidos ao Centro Materno Infantil de San Estanislao”. Em teoria, foi aberta uma investigação a respeito, para determinar a responsabilidade dos produtores brasileiros. Que pelo menos conste que existiu um menino chamado Cristian David, que morreu pela atitude racista de um modelo de vida. l 39 Ataques, políticas, resistência, relatos O Mutirão na Colômbia 40 te reencontro dos principais povos indígenas e afrodescendentes da Colômbia, nasceu a sincronia e o reconhecimento necessários para retecer relações apagadas, estragadas ou desfeitas pelos “senhores da guerra”, como os povos insistem em chamar o governo, o narcotráfico, a guerrilha e os paramilitares, o que desencadeou uma mobilização verdadeiramente nacional, reprimida imediatamente com grande brutalidade. Mas a repressão por parte das forças policialmilitares de Uribe ao plantão que havia bloqueado a Via Panamericana em La María Piendamó foi mais um incentivo do que um esmagamento. A idéia do Mutirão da Resistência Social e Comunitária cresceu e se converteu em uma multitudinária marcha que, de diferentes rincões, foi chegando a Bogotá para protestar pelos anos de guerra suja, assassinatos e desaparecimentos. Pelos 3 milhões de desalojados. Pelas 100 mil minas antipessoais espreitando em algum terreno, caminho ou matagal. Por isso, 10 porcento da população carcerária, do total de 55 mil pessoas, estão ali por razões políticas. Pelas pulverizações com glifosato e pelos incêndios ou roubos de suas colheitas. Pelo racismo crescente. Porque sabem (chegaram a entendê-lo com mais detalhe que os funcionários do governo e os sabidos acadêmicos) que se trata é de erradicá-los, invadir seus territórios ancestrais, impor nocivos programas de desenvolvimento, predar petróleo, ouro, prata, esmeraldas e metais raros, e fomentar a dependência aos Estados Unidos e seu modelo através de um tratado de livre comércio. Este aprofundará o poder das transnacionais, corporativizará ainda mais a cadeia alimentar, do plantio ao comércio a varejo, criminalizará sementes nativas, invadirá de combustíveis agroindustriais e transgênicos, roubará biodiversidade, saberes e recursos genéticos, condicionará os apoios AMS Ojarasca, novembro, 2008. Do urgen- tornando-os indignos, privatizará ainda mais a terra e quebrará os antigos enclaves indígenas levando ao extremo a expulsão para as cidades e para o estrangeiro, para maior poder de paramilitares e narcotraficantes. Na mobilização, os resguardos e comunidades estiveram dispostos a dialogar diante do país inteiro com o presidente Uribe, mas este não pôde encarar a enorme autoridade moral que o repreendia com severidade. Apesar de tudo, “a palavra andou”, como o próprio Mutirão insiste em qualificar sua ação, e os povos apresentaram-se ante a sociedade descrente, que em muitos casos respondeu fraternalmente. Transcorridos os dias, o Mutirão – um trabalho comunal -, gera uma série de aprendizagens organizativas que haverão de dar fruto em todo o continente. Em 21 de novembro, na praça Bolívar, em Bogotá, quando O Mutirão deu por encerrado o ciclo que lhe deu coragem a sua mobilização, declarou: O Mutirão Social e Comunitário tem vida própria, mas aqueles que o propusemos e o proclamamos temos que compartilhar o trabalho de sua criação, para que chegue à sua idade madura e caminhe com seus próprios passos, que são de todas e todos. Assumimos com estas palavras o compromisso dobrado e simultâneo de proteger o Mutirão sendo parte dele, mas também o de deixá-lo em liberdade para que caminhe na direção que nós lhe demos, porque o que já exige esse ser que nasceu e que quer viver, esse Mutirão dos Povos, é muito, mas muito mais do que podemos lhe oferecer a partir de nossas capacidades particulares. Transborda-nos, e é isso o que nos entusiasma e nos preocupa. Não há o costume de Mutirão. Isso é uma verdade e um desafio. O Mutirão dos Povos é uma hora da verdade. Convocamos a mobilização consciente e o aporte generoso de nossas capacidades e trabalho para proteger e promover a luta pela vida e pela dignidade na Colômbia. Ou confrontamos uma ordem estabelecida, para evidenciá-la e a ela resistir, ou atuamos dentro da mesma e ajudamos a consolidá-la. A ordem não mudará com essa mobilização que hoje conclui uma etapa de um longo caminho, mas este Mutirão dos Povos sim, é para mudá-la. O desafio consiste em ter a sabedoria que nos permita compartilhar o sentido e não sacrificá-lo, enquanto obtemos vitórias concretas no processo até sua transformação e até a unidade e coordenação entre os povos. Hoje proclamamos e entregamos o Mutirão de todas e de todos para confrontar o modelo de desenvolvimento que nos impõe a cobiça, para derrubar leis que nos despojam e nos roubam, para estabelecer a resistência e a solidariedade como mecanismo concreto para nos defendermos de um Estado sequestrado que nos persegue, para fazer cumprir a palavra que custou sangue, para tecer um caminho em que todas e todos deixamos de ser ninguém a serviço desses poucos para converter-nos em gestores de sociedades, onde a justiça, a liberdade e a defesa da Mãe Terra sejam realidades e princípios… l BIODIVERSIDADE Conteúdo SUSTENTO E CULTURAS EDITORIAL 1 A agricultura: seus saberes e cuidados 4 Número 59, janeiro de 2009 Organizações coeditoras Acción Ecológica [email protected] Acción por la Biodiversidad [email protected] Campaña de la Semilla de la Vía Campesina – Anamuri [email protected] Centro Ecológico [email protected] grain [email protected] Grupo etc veró[email protected] Grupo Semillas [email protected] Red de Coordinación en Biodiversidad [email protected] REDES-AT Uruguay [email protected] Comitê Editorial Carlos Vicente, Argentina Ma. Eugenia Jeria, Argentina Ciro Correa, Brasil Maria José Guazzelli, Brasil Germán Vélez, Colômbia Alejandra Porras (Coeco-at), Costa Rica Silvia Rodríguez Cervantes, Costa Rica Camila Montecinos, Chile Francisca Rodríguez, Chile Elizabeth Bravo, Equador Ma. Fernanda Vallejo, Equador Silvia Ribeiro, México Magda Lanuza, Nicarágua Martin Drago, Uruguai Carlos Santos, Uruguai Administração Ingrid Kossmann [email protected] Edição Ramón Vera Herrera [email protected] Desenho e formatação Daniel Ortega, Claudio Araujo [email protected] Amanda Borghetti (Brasil) [email protected] Impressão cv Artes Gráficas ltda. [email protected] issn: 07977-888X Colômbia Lei Misak pela defesa do Direito Maior, patrimônio do povo misak UMA PANORÂMICA E MUITAS VISTAS 8 15 O misterioso tecido dos saberes de cada rincão México Manifesto dos povos de Morelos 25 ATAQUES, POLÍTICAS, RESISTÊNCIA, RELATOS 31 o Equador se livrará dos transgênicos? | foi imposta a propriedade intelectual na Costa Rica | contaminação transgênica de milho no Chile | a Via Campesina frente à crise global | declaram ilegal a tortilla feita a mão no México | bilaterals.org: uma ferramenta libertária | não ao tratado de livre comércio com a União Européia | um mercado alternativo zapatista em Chiapas | Paraguai: intoxicados | contaminando sem cruzar o rio | O Mutirão na Colômbia Os desenhos que servem de contraponto a este número, e que procuram ser uma mostra de atividades que os coletivos realizam como parte de seu cuidado do mundo desde sempre, provêm de muitas fontes. Incluímos trabalhos de vários artistas visuais (verdadeiros cronistas da vida comunitária), procedentes da tradição do papel amate na região nahua do Alto Balsas, em Guerrero, México. Eles são Abraham Mauricio Salazar (cuja obra se baseia em El ciclo mágico de los días, texto de Antonio Saldívar, Conselho Nacional de Fomento Educativo, México, 1979); Cleofas Ramíres Celestino (de seus desenhos e pinturas inspirados em La sirena y el pescador, Editorial Era, Ciesas, México, texto tradicional em versão bilíngue e tradução de Jose Antonio Lópes Farfán, 1997), Inocencio Jiménez Chino e Francisco García Simona (inspirados em La tradición del amate mexicano, Museu Mexicano de Artes Finas, A Casa das Imagens, Chicago-México, 1997). Além disso, se reproduzem desenhos e gravações de pintores do Renascimento ao século xix na Europa que dedicaram parte de sua obra à vida camponesa, como Pieter Bruegel, Hieronymus Bosch, Jean-François Millet, L. Lesigné, Camile Pissarro, Felix Bracquemond e Vincent Van Gogh. Os desenhos de Millet provêm de Dessins de JeanFrançois Millet, de Marie-Pierra Salé, Museu de Orsay, França, 2006. A todas estas obras lhes reconhecemos seu objetivo de difusão e entendimento e esperamos contribuir em sua continuação. As organizações populares e as ongs da América Latina podem receber gratuitamente a revista. Contatar REDES-AT Uruguai: [email protected] / http://www.grain.org/suscribe Convidamos a que se comuniquem conosco e nos enviem suas experiências, sugestões e comentários. Dirigir-se a Ingrid Kossmann [email protected] Os artigos assinados são de responsabilidade de seus autores. O material aqui coletado pode ser divulgado livremente, mas agradecemos que citem a fonte. Por favor, nos enviem uma cópia para nosso conhecimento. Agradecemos a colaboração da SwedBio e da Cooperación al Desarrollo da la Consejería de la Vivienda y Asuntos Sociales del Gobienrno Basco. Este número dedicado aos saberes locais recebeu o apoio expresso da Fundação Siemenpuu. Algumas edições da revista em português talvez sejam disponibilizadas apenas por meio eletrônico: envio para os assinantes com email cadastrado; arquivo para baixar no site www.grain.org/biodiversidad Biodiversidade, sustento e culturas é uma revista trimestral (quatro números por ano). As organizações populares, as ONGS e as instituições da América Latina podem recebê-la gratuitamente. Por favor, enviem seus dados com a maior precisão possível para simplificar a tarefa de distribuição da revista. Os dados necessários são: País, organização, nome e endereço completos: código de endereçamento postal (CEP), cidade e estado. (Correio eletrônico, telefone e/ou fax, se houver.) Enviem, por favor, sua solicitação a BIODIVERSIDAD, REDES-AT Uruguai, San José 1423, 11200, Montevidéu, Uruguai. Telefones: (598 2) 902 23 55/908 2730. [email protected] / http://www.grain.org/suscribe Francisco García Simona Biodiversidade, sustento e culturas é uma publicação trimestral de informação e debate sobre a diversidade biológica e cultural para o sustento das comunidades e culturas locais. O uso e a conservação da biodiversidade, o impacto das novas biotecnologias, patentes e políticas públicas são parte de nossa cobertura. Inclui experiências e propostas na América Latina, e busca ser um vínculo entre aqueles que trabalham pela gestão popular da biodiversidade, a diversidade cultural e o autogoverno, especialmente as comunidades locais: mulheres e homens indígenas e afroamericanos, camponeses, pescadores e pequenos produtores. O surpreendente tecido dos saberes de cada lugar CADERNO 26 O milho e a vida na semeadura testemunhos indígenas do milho e a autonomia no México Uma das características mais antigas dos povos originários é que nossa vida é semear. Ser camponês não é uma atividade a mais. Toda a nossa visão milenar e nossa maneira de nos relacionarmos com o mundo vêm daí. Ser semeadores, desde sempre, produzir nossos próprios alimentos, cuidando da família e da comunidade, nos faz ver o trabalho, as relações sociais, o espaço e o tempo, de um modo particular. Os camponeses valorizamos o comunitário e em coletivo nos relacionamos com a terra. A conversação com que se criou o milho é também coletiva. Em grande parte, quem semeia para comer não necessita trabalhar por dinheiro para aqueles que exploram seu trabalho. Nossa relação com o semear, minuciosa e detalhada, cria vida no dia a dia e nos faz prestar atenção a muitos sinais. Em cada uma de nossas tarefas de cultivo completam-se ciclos diminutos que dão ordem, sentido, ao passo amplo de outros ciclos maiores como o do sol durante o ano, em um verdadeiro tecido de estações, climas, umidade. Os camponeses vemos detalhes que a gente das cidades não enxerga. Ser semeadores, camponeses, é uma espiritualidade completa, coletiva, comunitária, que de imediato nos faz enfrentar os sistemas que nos querem impor tantas formas de nos relacionarmos. Isso nos dá consciência de sermos diferentes, de resistir às imposições, nos faz ver claramente os ataques dos governos e das empresas. Pensar que o milho é só uma “característica cultural” que se tem que “comprender”, “tolerar”, em uma época de “multiculturalidade”; propor que a cultura ou via camponesa é um aspecto do passado à qual se deve guardar um nicho (se pudesse ser em um museu, melhor) é não entender que nossa vida sem o milho, sem semeadura, não é vida. Ser semeadores não é folclore, é nossa existência inteira. BIODIVERSIDADE 59• JANEIRO 2009 CADERNO 26 • BIODIVERSIDADE Criação mútua. O milho não é uma coisa, nem apenas uma mercadoria ou um (Retirados de Sahagún) ii cultivo: o milho é um tecido de relações. Originou-se há uns 10 mil anos, da criação mútua, da conversação entre povos originários da Mesoamérica e algumas gramíneas que, com o cultivo, foram se fazendo a modo dos humanos. Pouco a pouco, aprendemos que o milho é comunidade com o feijão, a abóbora, a pimenta e outras plantas, algumas medicinais. A essa convivência, os povos do México chamamos milpa, e em outros lugares, chacra. Essa criação mútua entre camponeses (sobretudo as mulheres) e milho fez com que este dependa das pessoas para cumprir seu ciclo de vida e já não ocorra de forma silvestre. É uma criação mútua que muitos povos diferentes realizaram, por isso o milho é tão variado, e os povos floresceram tanto na história: sua diversidade cultural e a do milho alimentam-se mutuamente. Sua versatilidade. O milho tem seus parentes silvestres, gramíneas não comestí- O milho não é uma coisa, nem apenas uma mercadoria ou um cultivo: o milho é um tecido de relações. É uma criação mútua que muitos povos diferentes realizaram, por isso o milho é tão variado, e os povos floresceram tanto na história: sua diversidade cultural e a do milho alimentam-se mutuamente. veis que ainda são encontradas no México, Guatemala e Nicarágua, e sua permanência dá esperanças de que o milho continue vivo. O milho de nossos dias é muito versátil: rende muito, é muito nutritivo e se adapta a variados ambientes. É tão nobre que se espalhou por toda a Mesoamérica e grande parte da América do Sul e do Norte. Quando se conheceu o milho no Velho Mundo, todos ficaram estupefatos pela facilidade com que se prepara, pelo muito que rende a partir de umas poucas sementes, o pouco que se desperdiça, pois tem “sua própria embalagem”, o tempo que dura bem armazenado, a quantidade de nutrientes que proporciona. Pode ser cultivado em muitos climas e umidades, do semideserto às florestas, nas terras temperadas do altiplano e nas baixas tropicais. Para amadurecer, leva de quatro a treze meses. Cresce em planícies, em vales, em terrenos férteis ou pedregosos. Dizem que há mais de 40 raças de milho no México, e mais de 250 em toda a América. Há mais de 16 mil variedades. Entre as centenas de milhos tradicionais usados todos os dias pelos camponeses e indígenas do México, existem brancos, vermelhos, amarelos, azuis, pretos, multicoloridos, com espigas pequeninas ou que medem mais de trinta centímetros, com grãos enormes ou estreitos, com cana grossa ou fina, mais duros ou mais moles. As folhas e raízes são usadas como remédio (os cabelos do milho novo são usados como diurético e para dissolver cálculos renais; combinando com outras plantas cura males hepáticos e biliares; os pistilos da flor são usados como tranquilizantes). Bebidas de milho são utilizadas como substituto para crianças que não toleram o leite, a massa se usa para cobrir feridas; as espigas torradas, para amadurecer abscessos. Hoje, muitos povos dos países europeus, africanos e asiáticos dependem dele para sobreviver. É um dos quatro cereais que contribuem com mais de 50 por Cadernos de Biodiversidade é um folheto colecionável de Biodiversidade, Sustento e Culturas, janeiro de 2009. O texto “O milho e a vida na semeadura” foi originalmente publicado em uma versão mais extensa, em 2005, no México, pelo Centro de Análisis Social, Información y Formación Popular, com o apoio de GRAIN e CS Fund. É um resumo bem reduzido de intervenções de comunidades indígenas da Red em Defensa del Maíz Nativo. Ilustrações de Abraham Maurício Salazar (El ciclo mágico de los días, Conafe, 1979), Cleofas Rodríguez Celestino (La sirena y el pescador, Ediciones Era, Ciesas, 1997), e Francisco García Simona de Ameyaltec, que são todos artistas nahuas da região de Alto Balsas, Guerrero, México. Organizações coeditoras Acción Ecológica [email protected] / Acción por la Biodiversidad [email protected] / Campanha de Sementes da Vía Campesina – Anamuri [email protected] / Centro Ecológico [email protected] / GRAIN [email protected] / Grupo ETC veró[email protected] / Grupo Semillas [email protected] / Red de Coordinación en Biodiversidad [email protected] / REDES-AT Uruguai [email protected] Comitê Editorial Carlos Vicente, Argentina / Ma. Eugenia Jeria, Argentina / Ciro Correa, Brasil / Maria José Guazzelli, Brasil / Germán Vélez, Colômbia / Alejandra Porras (Coeco-AT), Costa Rica / Silvia Rodríguez Cervantes, Costa Rica /Camila Montecinos, Chile / Francisca Rodríguez, Chile / Elizabeth Bravo, Equador / Ma. Fernanda Vallejo, Equador / Silvia Ribeiro, México / Magda Lanuza, Nicarágua / Martin Drago, Uruguai / Carlos Santos, Uruguai / Administração Ingrid Kossmann [email protected] / Edição Ramón Vera Herrera [email protected] / Desenho e formatação Daniel Ortega, Claudio Araujo [email protected] / Amanda Borghetti (Brasil) BIODIVERSIDADE • CADERNO 26 cento de toda a nutrição da humanidade. Em 18 países (12 da América Latina e 6 da África), é o principal alimento. As variedades tradicionais, em especial do México, são a reserva mais importante para criar milho em qualquer lugar do mundo. O cuidado do mundo. A via camponesa no mundo ainda continua sendo pujante, e hoje grande parte da população mundial é camponesa, e somos nós, justamente esses vilipendiados cuidadores do mundo, que alimentamos o resto da humanidade. Se sucumbíssemos as comunidades indígenas que cuidamos do milho escutando sua voz milenar, o futuro da humanidade estaria ameaçado. Há coletivos que não pedimos permissão a ninguém para sermos, pelo simples fato de ter um cultivo do qual nos alimentamos como fruto de trabalhos comunitários, sem depender do exterior para quase nada. Isso nos permite cuidar da nossa comunidade, nosso território, a floresta, a água, os seres vivos materiais e espirituais, a biodiversidade e nossos saberes tradicionais e contemporâneos, que são toda uma maneira de assumir a vida. O impulso vital que existe entre a milpa (que é também uma comunidade) e a comunidade humana, tem um coração político e social inesgotável, por isso, depois de 10 mil anos em que nossas sementes continuam vivas, hoje plantar milho com nossas próprias sementes é um assunto político. As grandes empresas e os governos decidiram que aqueles que semeamos milho nativo – com tantos saberes que lhe dão vida – devíamos sair do campo, pois somente produzíamos para a comunidade, sem entrar no mercado. Abraham Mauricio Salazar A guerra contra os camponeses. Despojados de vastas extensões de nosso territó- rio ancestral, os povos indígenas continuamos semeando milho nas encostas e nos terraços, às vezes em condições muito difíceis. O milho tem resistido a tudo. As grandes empresas e os governos decidiram que aqueles que semeamos milho nativo – com tantos saberes que lhe dão vida – devíamos sair do campo, pois somente produzíamos para a comunidade, sem entrar no mercado. Querem que nós, que plantamos, vamos para a cidade, para as fábricas ou para as grandes empresas agrícolas, trabalhar semiescravizados, para assim poderem ficar com nosso território e com todas as riquezas que aí se encontram. Desde os anos 1950, os governos e as empresas, cúmplices, seduziram os camponeses a comprar sementes chamadas híbridas, que a princípio tinham rendimento maior, mas depois, só com muitos fertilizantes e agrotóxicos industriais, senão rendiam muito pouco. Os solos se erodiram e se tornaram dependentes dessas drogas, que muitos compram todos os anos para que a terra renda. Hoje, os camponeses que têm menos possibilidade de sobreviver são aqueles que mudaram sua semente pelas híbridas e se meteram a pagar todos os anos por montes desses agrotóxicos, desgastando seus solos. Começou a ficar muito difícil viver do milho, e as pessoas abandonaram muitas comunidades e perderam seu ser mais antigo: ser semeadores. Com as tecnologias da Revolução Verde, desprezou-se a enorme sabedoria que sustenta os milhos nativos, impuseram-se formas de cultivo e consumo muito parecidas, destruíram-se muitas maneiras que as comunidades tinham para manter, melhorar e compartilhar as sementes. A privatização da terra abriu novamente a especulação agrária, as invasões e expropriações, e deu entrada aos megaprojetos que hoje ameaçam qualquer comunidade rural cujo sustento seja a agricultura. Extremou-se, assim, a crescente marginalização social no campo. Provocou-se a expulsão da mão de obra às cidades ou aos campos de diaristas, o esvaziamento dos territórios, fomentado também pela escola oficial, que põe na cabeça de crianças e jovens que estudar serve para receber um salário e deixar de ser camponeses, ir embora. Essas ideias arruínam de vez a relação com a terra e o orgulho de produzir a própria comida. A contaminação transgênica é o sinal mais alarmante, porque é intencional. Os O MILHO E A VIDA NA SEMEADURA iii CADERNO 26 • BIODIVERSIDADE O que fazer. Diante da perda de sementes nativas, a guerra contra os povos do milho, a ameaça dessas novas sementes transgênicas desfiguradas que esgotam a variedade e iv a força do milho, a invasão de territórios, a deterioração dos solos e do ambiente, o esvaziamento de algumas comunidades e o fato de que muita gente (sobretudo jovens) já não valoriza o ser semeadores, é urgente repensar com detalhe os saberes que durante milênios permitiram a permanência do milho. transgênicos desfiguram o milho, esgotam a variedade cuidada por séculos, sua riqueza e significado. Promovem a dependência total das indústrias, tiram da agricultura todo o seu sentido vital. Mas muitos mantemos nosso antigo ofício e estamos em resistência. Talvez a chave seja o cuidado detalhado que camponesas e camponeses pusemos no assunto, mediante uma trama de saberes que hoje em dia parecem misteriosos. 1. Somente aqueles que estão diretamente envolvidos na semeadura podem fazer algo. A solução ao problema de contaminação do milho transgênico só pode ser atingida no longo prazo, e somos os povos camponeses e indígenas quem pode consegui-lo, comunitariamente. É necessário promover uma prevenção e cura naturais, próprias da relação milenar entre o milho e os humanos, e para os casos de milhos deformados ou sementes que pareçam estranhas às comunidades, pode-se fazer um diagnóstico de laboratório. Repensar coletivamente que a cultura é força política, econômica, social e ecológica, e se sustenta em nosso ser camponeses semeando o individual junto com a comunidade, cujo coração é a assembleia. 2. Recuperar a confiança na semente que plantamos. Detectar os milhos daninhos com a sabedoria dos velhos, abandonar os híbridos (e qualquer outra semente alheia) regressando aos canais de confiança de intercâmbio e de cuidado das sementes. Como é um momento crítico, não basta fazer o que sempre se fez. É necessário refletir sobre isso e aguçar a atenção sobre nosso milho, física, espiritualmente, sobre o que ocorre no seu entorno, para identificar os transgênicos e isolá-los (despontar a espiga de uma planta pouco confiável é uma de tantas precauções). Temos que saber que semente estamos plantando, ir depurando a cada ciclo nossa semente, assim iremos descartando o milho contaminado. 3. O desafio é recordar. Entender o que os velhos faziam para conservar a vida. Fomentar a defesa, o reconhecimento e intercâmbio de nossas técnicas tradicionais de cultivo (agronômicas, ecológicas, medicinais e outras), incluídos os novos conhecimentos de cultivo “orgânico”, a agroecologia, a permacultura e outras técnicas confiáveis. Juntar técnicas tradicionais e métodos alternativos de agricultura nos dá uma ferramenta poderosa se, além disso, reforçamos a diversidade nas áreas de plantio e o cultivo de quintais. 4. Para defender o milho se deve continuar a cultivá-lo. A maior ameaça ao milho Abraham Mauricio Salazar nativo é que já é pouco cultivado. É necessário diversificar as variedades, plantar todas as possíveis em cada ciclo, pois isso dá garantias contras as variações de clima, calor e umidade. É importante plantar milho do precoce ao tardio. Se diversificamos variedades, também devemos diversificar semeaduras e fazer um manejo das idades do pólen, com isso diminuindo a possibilidade de que sementes não confiáveis se metam em nossas terras. O MILHO E A VIDA NA SEMEADURA Cleofas Ramírez Celestino BIODIVERSIDADE • CADERNO 26 v 5. É fundamental manter nossa identidade como povos. A defesa do milho passa por recuperar e fortalecer nossas cerimônias sagradas, o costume, nossas tradições e rituais de cuidado e permissão, como sempre. Hoje em dia existe toda essa riqueza porque cada povo soube manter sua tradição, porque houve respeito à história e à vontade de cada comunidade e família, um respeito ao sagrado. Se queremos manter toda essa riqueza, temos que respeitar o que foi nosso e sagrado durante toda a história. 6. É necessário manter a semente e a terra. Alguém que perde a semente tem mui- to mais possibilidades de ter que migrar do que alguém que ainda a tem. Manter a semente significa ter boa semente para si mesmo, para a comunidade, para a terra a qual se tem acesso. Uma semente que atenda às necessidades e gostos de cada povo. Se os gostos se tornam uniformes ou se as necessidades ficam similares, se perde a qualidade das sementes: sua diversidade. Hoje há um ataque contra a biodiversidade. O povo que não tem diversidade se torna dependente. As leis estão sendo mudadas para obrigar os camponeses e indígenas a se tornarem dependentes. Para conservar a diversidade, temos que nos perguntar como conservar a vida, o que é que a lei permite e o que é que necessitamos, com permissão ou sem permissão da lei. Devemos nos negar a odedecer leis que criminalizam nosso guardar e nosso intercâmbio milenar de sementes de confiança. 7. Recuperar os saberes coletivos. O milho jamais pode ficar nas mãos de um grupo, não importa o quão escolhido ou comprometido ele seja. É impossível que haja uma pessoa, empresa ou instituto do Estado capaz de criar sementes que sejam boas para todos. A diversidade e a qualidade da semente vêm de que haja milhares e milhares de camponeses a produzindo. Não só intercambiamos sementes, mas também intercambiamos saberes. As sementes podem ser distintas porque todos sabemos coisas distintas. Para que haja sementes diversas, tem que haver saberes diversos. Mas sabemos por pequenas partes, e só entre muitos se faz um saber grande. A riqueza de variedades não acaba nunca. Cada pessoa, família ou comunidade pela qual passa uma variedade lhe agrega ou muda algo. Não devemos esquecer jamais que todos sabemos. Quando aceitamos que alguém nos trate como ignorantes, que não sabemos, que não temos ideias, estamos aceitando que se percam saberes sobre as sementes. Hoje há um ataque contra a biodiversidade. O povo que não tem diversidade se torna dependente. As leis estão sendo mudadas para obrigar os camponeses e indígenas a se tornarem dependentes. Para conservar a diversidade, temos que nos perguntar como conservar a vida, o que é que a lei permite e o que é que necessitamos, com permissão ou sem permissão da lei. O MILHO E A VIDA NA SEMEADURA CADERNO 26 • BIODIVERSIDADE 8. Recuperar os solos. Não só em nível das áreas de plantio, mas também em microrregiões ou regiões mais amplas. É necessário abandonar os agroquímicos e retornar a muitos dos saberes antigos para fertilizar, e aos sistemas que controlavam as pragas sem inseticidas ou herbicidas. Para os povos do milho no México, a Revolução Verde foi quando tornaram os cultivos e a terra viciados em uma droga que cada vez se necessita mais e mais, e serve menos e menos. Não somente nos defrontamos com a contaminação transgênica, mas também com a contaminação dos químicos, as superervas e a resistência das pragas que têm estragado o equilíbrio dentro das milpas. A terra está intoxicada, mas também a água e os peixes se perderam e estão envenenados. Na milpa, também é necessário deixar alimento para que comam os bichinhos que podem se tornar pragas. Eles também comem e querem sobreviver, uma comunidade-milpa inclui também o que não se come ou aparentemente atrapalha e não é útil a princípio. É muito importante conviver com a diversidade dos bichinhos. Também é necessário frear a erosão dos solos. Recolher a água e estabilizar a terra para evitar afundamentos e deslizes. Não podemos pensar só na área de plantio, tem que ser comunitário, regional. Territorial. Alimentar a terra, plantar cortinas de árvores, fazer contenções de pedras nas bordas das encostas para juntar a terra que desce com as chuvas, só podemos fazê-los comunitariamente. vi Abraham Mauricio Salazar 9. Cultivos soberanos. Ao invés de falar de autoconsumo, falemos de cultivos soberanos. É indispensável tentarmos sair, o mais possível, da economia do dinheiro. Produzir para vender e comprar para comer nos faz perder a soberania alimentar e de trabalho dos povos do milho. Um povo que compra semente e que compra comida é um povo que não pode mandar em si mesmo. Temos que nos orgulhar de plantar milho para que coma a família, a comunidade, fortalecendo os saberes dos mais velhos e as novas técnicas integrais que concordam com esses saberes e os complementam. Como não existem nem subsídios, nem fomento, nem preços de garantia que respaldem a economia campesina, é vital juntar subsídios autônomos e preços de garantia próprios (regionais), talvez fazendo um chamado aos migrantes e suas organizações. Atrever-nos a deixar de gastar em produtos industrializados que não são indispensáveis. Pensar em como regressar a mercados menores, a formas de troca, a intercâmbios locais, para que encontremos um modo de vida manejável, com respeito pelo todo. Por isso é importante que tudo o que as comunidades produzam seja consumido, para que a comunidade entenda que podemos produzir nosso próprio sustento. 10. A contaminação transgênica é intencional. De propósito. E o governo, como já ocorreu a contaminação, pretende que seja o momentos para permitir o O MILHO E A VIDA NA SEMEADURA BIODIVERSIDADE • CADERNO 26 plantio de transgênicos. Ou pode propor o extermínio de variedades nativas “contaminadas”, num discurso para erradicar a contaminação do milho. Mas não se deve confiar no governo. Não podemos permitir que estranhos à comunidade (laboratórios, forças armadas, empresas, programas do governo) cheguem a nossas comunidades dizendo que vão nos ajudar. 11. Impedir a entrada de sementes das quais não conhecemos a história. Fechar nossas fronteiras regionais e nacionais às sementes de fora, sejam híbridas ou forrageiras das indústrias, ou as dos estabelecimentos governamentais. Deixemos de comprá-las e busquemos o intercâmbio e a comercialização próprios, onde for possível. Promovamos e realizemos uma sabotagem aos pacotes de ajuda alimentar dos quais desconhecemos a origem ou as intenções daqueles que nos querem doar. Exijamos que se suspendam as importações agrícolas. vii 12. Rechacemos as leis injustas de biossegurança, de acesso genético e de proprie- dade industrial, e exijamos que se mantenha a moratória ao plantio de milho transgênico, estabelecendo alianças para fortalecê-la. Rechacemos também os programas de certificação e individualização de terras. São uma estratégia para exterminar o milho e os seus povos. Por isso devemos defender nosso território e o caráter comunitário, coletivo, não embargável, inalienável de nossas terras. 13. É prioridade reforçar a autonomia, a organização comunitária. A luta pela defesa do milho anda junto com a luta pelo território e o autogoverno. Quando a assembleia é a autoridade máxima, podemos promover estratégias agropecuárias e ambientais próprias. Em nossos estatutos e regulamentos comunais, pode-se proibir o plantio de transgênicos e estabelecer uma moratória de fato decretada pelos povos indígenas e camponeses sobre o consumo, o plantio e o trânsito de milho transgênico. É indispensável buscar a integridade do território indígena mediante o equilíbrio que o tem mantido como território. O milho e a autonomia. Defender nosso milho (o âmbito sagrado onde ele é ve- nerado, os saberes ancestrais que o tornaram possível e a margem de autonomia que outorga semeá-lo para consumo próprio) nos permite fortalecer a luta por nossos direitos coletivos, nosso governo comunitário e nossa história, enquanto defendemos a água, a floresta, o território e nossos próprios projetos de bem-estar cuidadoso e autogestionário. Somente com milho próprio, nativo (não sua desfigurada versão transgênica), semeado para a comunidade comer sendo o menos dependente possível, se podem viver os âmbitos do nós: o trabalho coletivo, a justiça própria, o autogoverno, a assembleia, em uma vida ao arrepio dos sistemas globais. Uma das finalidades dos transgênicos é fazer que todos os camponeses tenham que comprar sementes todos os anos, e, para assegurar isso, as empresas estão inventando uma variedade que só se colhe uma vez e suas sementes são estéreis, conhecida como Terminator. Se o Terminator contaminasse qualquer outra variedade, a tornaria estéril, o que significaria depender totalmente das companhias desenhadoras e produtoras de sementes, que estão patenteando mais e mais variedades. Torna-se urgente, então, que iniciemos um processo de reflexão que nos dê visão de como nos atacam os planejadores e os poderes mundiais, as agroindústrias e os governos. Da milpa se vê o mundo inteiro. É preciso reivindicar o que significamos os camponeses num mundo “globalizado” que quer converter em indústria inclusive Abraham Mauricio Salazar Somente com milho próprio, nativo (não sua desfigurada versão transgênica), semeado para a comunidade comer sendo o menos dependente possível, se podem viver os âmbitos do nós: o trabalho coletivo, a justiça própria, o autogoverno, a assembleia, em uma vida ao arrepio dos sistemas globais. O MILHO E A VIDA NA SEMEADURA CADERNO 26 • BIODIVERSIDADE a agricultura. O milho e outros cultivos soberanos são o coração da resistência comunitária contra o capitalismo e seus megaprojetos. Manter nossa amorosa relação com o milho nos permite brechas suficientes para não pedir permissão a ninguém para ser, promovendo uma resistência real, política, social, econômica, de saberes, dignidade e justiça. Permite-nos um autogoverno com sistemas de cargos como serviço, isso que os zapatistas chamam de “mandar obedecendo”. Permite a brecha necessária para construir nosso caminho próprio. Faz-nos entender a teia de relações que possibilitam a existência desse alimento-ofício-relação que é sagrado. O povo wixárika da serra de Jalisco, no México, o coloca desta maneira: Abraham Mauricio Salazar viii – Está bem: defender o milho... – Para defendê-lo temos que curar os solos... – Então temos que deixar de usar os agroquímicos que o desgastaram. Voltemos a plantar à maneira antiga. – Mas então devemos buscar que não haja deslizamentos nem erosão... – Para isso se deve reequilibar a água... – Para isso se deve cuidar das florestas, para que detenham a erosão, tragam as chuvas, refresquem com bom ar a região... – Mas para isso é necessário defender nosso território e empreender ações a favor de nossos direitos agrários e de povo... – Então devemos ter uma organização comunal real, onde aqueles que sejam representantes obedeçam realmente a determinação da comunidade. – Ou seja, reforçar o papel das assembleias comunitárias, já não só comunais, aproximando as autoridades tradicionais e as agrárias – pois os governos sempre tentarão separá-las. – Então temos que ter milho, para que aqueles que assumam um cargo não se vejam na necessidade de trabalhar, mas que continuem vinculados à terra, como camponeses, em circunstâncias iguais as dos demais membros da comunidade. Então, existe uma espécie de círculo mágico: uma proposta de integralidade, onde nada pode estar desvinculado. Trata-se da reconstituição integral das comunidades, da organização comunitária. É o cultivo do milho como coração de uma resistência e da possibilidade de uma autonomia, usando plenamente seu território em todos os planos: desde o mais geográfico até o sagrado, na riqueza das relações humanas e com tudo, porque tudo está vivo. Conclusões. Defender o milho é defender a vida e a cosmovisão camponesa-in- É o cultivo do milho como coração de uma resistência e da possibilidade de uma autonomia, usando plenamente seu território em todos os planos: desde o mais geográfico até o sagrado O MILHO E A VIDA NA SEMEADURA dígena. E vice-versa. Nesse caminho, a gente das cidades tem um papel que apenas começa a reconhecer. Esse processo de resistência diante das agroindústrias e das instâncias de planejamento mundiais e seus administradores encarnados nos governos, termina reforçando a visão com perspectivas que os povos abrem apenas há poucos anos. O futuro parece negro, pois o milho e muitos outros cultivos estratégicos estão em risco, e, como tal, a viabilidade do âmbito rural, mas também a das cidades. Se as pessoas das grandes cidades se unirem com os camponeses em suas reflexões e sua crítica aguda, começarão a entender a importância de plantar seus próprios alimentos. No campo, mas inescapavelmente também nas cidades, ainda que agora nem todos o reconheçam como urgente. Enquanto isso, apesar da violência e da criminalização, apesar de todos os ataques aos povos indígenas e camponeses, a esperança e o milho seguem vivos.