O surpreendente tecido dos saberes de cada lugar

Transcrição

O surpreendente tecido dos saberes de cada lugar
O surpreendente tecido
dos saberes de cada lugar
BIODIVERSIDADE
Conteúdo
SUSTENTO E CULTURAS
EDITORIAL
1
A agricultura: seus saberes e cuidados
4
Número 59, janeiro de 2009
Organizações coeditoras
Acción Ecológica
[email protected]
Acción por la Biodiversidad
[email protected]
Campaña de la Semilla
de la Vía Campesina – Anamuri
[email protected]
Centro Ecológico
[email protected]
grain
[email protected]
Grupo etc
veró[email protected]
Grupo Semillas
[email protected]
Red de Coordinación en Biodiversidad
[email protected]
REDES-AT Uruguay
[email protected]
Comitê Editorial
Carlos Vicente, Argentina
Ma. Eugenia Jeria, Argentina
Ciro Correa, Brasil
Maria José Guazzelli, Brasil
Germán Vélez, Colômbia
Alejandra Porras (Coeco-at), Costa Rica
Silvia Rodríguez Cervantes, Costa Rica
Camila Montecinos, Chile
Francisca Rodríguez, Chile
Elizabeth Bravo, Equador
Ma. Fernanda Vallejo, Equador
Silvia Ribeiro, México
Magda Lanuza, Nicarágua
Martin Drago, Uruguai
Carlos Santos, Uruguai
Administração
Ingrid Kossmann
[email protected]
Edição
Ramón Vera Herrera
[email protected]
Desenho e formatação
Daniel Ortega, Claudio Araujo
[email protected]
Amanda Borghetti (Brasil)
[email protected]
Impressão
cv Artes Gráficas ltda.
[email protected]
issn: 07977-888X
Colômbia
Lei Misak pela defesa do Direito Maior,
patrimônio do povo misak
UMA PANORÂMICA E MUITAS VISTAS
8
15
O misterioso tecido dos saberes de cada rincão
México
Manifesto dos povos de Morelos
25
ATAQUES, POLÍTICAS, RESISTÊNCIA, RELATOS
31
o Equador se livrará dos transgênicos? | foi imposta a propriedade intelectual na Costa Rica | contaminação transgênica de milho no Chile | a
Via Campesina frente à crise global | declaram ilegal a tortilla feita a
mão no México | bilaterals.org: uma ferramenta libertária | não ao tratado de livre comércio com a União Européia | um mercado alternativo
zapatista em Chiapas | Paraguai: intoxicados | contaminando sem cruzar o rio | O Mutirão na Colômbia
Os desenhos que servem de contraponto a este número, e que procuram ser uma mostra de atividades
que os coletivos realizam como parte de seu cuidado do mundo desde sempre, provêm de muitas
fontes. Incluímos trabalhos de vários artistas visuais (verdadeiros cronistas da vida comunitária),
procedentes da tradição do papel amate na região nahua do Alto Balsas, em Guerrero, México. Eles
são Abraham Mauricio Salazar (cuja obra se baseia em El ciclo mágico de los días, texto de Antonio
Saldívar, Conselho Nacional de Fomento Educativo, México, 1979); Cleofas Ramíres Celestino (de
seus desenhos e pinturas inspirados em La sirena y el pescador, Editorial Era, Ciesas, México, texto
tradicional em versão bilíngue e tradução de Jose Antonio Lópes Farfán, 1997), Inocencio Jiménez
Chino e Francisco García Simona (inspirados em La tradición del amate mexicano, Museu Mexicano
de Artes Finas, A Casa das Imagens, Chicago-México, 1997). Além disso, se reproduzem desenhos e
gravações de pintores do Renascimento ao século xix na Europa que dedicaram parte de sua obra à
vida camponesa, como Pieter Bruegel, Hieronymus Bosch, Jean-François Millet, L. Lesigné, Camile
Pissarro, Felix Bracquemond e Vincent Van Gogh. Os desenhos de Millet provêm de Dessins de JeanFrançois Millet, de Marie-Pierra Salé, Museu de Orsay, França, 2006. A todas estas obras lhes reconhecemos seu objetivo de difusão e entendimento e esperamos contribuir em sua continuação.
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de la Vivienda y Asuntos Sociales del Gobienrno Basco. Este número dedicado aos
saberes locais recebeu o apoio expresso da Fundação Siemenpuu.
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Francisco García Simona
Biodiversidade, sustento e culturas é uma publicação trimestral de informação e debate
sobre a diversidade biológica e cultural para
o sustento das comunidades e culturas locais. O uso e a conservação da biodiversidade, o impacto das novas biotecnologias, patentes e políticas públicas são parte de nossa
cobertura. Inclui experiências e propostas na
América Latina, e busca ser um vínculo entre
aqueles que trabalham pela gestão popular
da biodiversidade, a diversidade cultural e o
autogoverno, especialmente as comunidades
locais: mulheres e homens indígenas e afroamericanos, camponeses, pescadores e pequenos produtores.
Editorial
É
1
Pieter Bruegel
surpreendente e misterioso o tecido dos saberes de cada lugar, de cada
rincão. Só a partir do centro de nossa própria experiência, o que sabemos,
o que compartilhamos e exercemos para cuidar da vida adquire seu sentido pleno. E isso é o que somos. Cada rincão é um centro: nossa condição, nosso
entorno, nossas circunstâncias, nossa história e nossos processos atuais, são só
nossos, daqueles que compartilhamos o lugar onde existimos. Essas circunstâncias próprias nos fazem diferentes dos demais, mas ao mesmo tempo nos irmanam com os outros, porque a cada pessoa, família, comunidade ou coletivo ocorre o mesmo que a nós. Somos iguais porque somos diferentes. É libertária a ideia
de que todo o rincão é um centro.
Tal tecido de saberes, vivências, experiências e visões compartilhadas de rincão
em rincão vem do fundo da humanidade, desde sempre, desde que a memória
recorda a memória da memória, ou como o disse alguma senhora de algum povoado isolado nas montanhas de algum lugar da
América Latina quando lhe
perguntaram quão antigo
era seu povo: “os ditos vão
mais longe que a minha
memória e eu não sei quão
antiga é minha comunidade, mas já várias vezes morreram pessoas de mais de
cem anos”.
Assim é o desenho que
aparece na capa deste novo
número de Biodiversidade,
sustento e culturas. É tão
atual o que evoca e, ao
mesmo, tempo tão antigo.
E é real a aflição que alguém possa ter sentido
olhando essa imagem, de que algo terrível se mostra com esses rostos tapados,
como sem identidade, mas o real é que são apicultores, e seus afazeres com as
abelhas e seus favos – que aí se mostram – seguem vigentes, inclusive com os
mesmos vimes, com os mesmos cestos para se cobrir o rosto “porque se enxerga
tudo por entre a trama, mas protege muito bem contra as picadas”. Devia ser
igual quando Bruegel desenhou esses camponeses dos Países Baixos europeus no
século xvi. A mesma sensação de solenidade, talvez de mistério ou até temor,
puderam provocar assim vestidos, no caminho, se algum viajante chegasse a dar
de cara com eles. Mas a vestimenta continua sendo eficaz, seguem sendo pertinentes os mesmos rituais de trabalho e companheirismo, o mesmo trato com as
abelhas e suas sociedades, porque há comunidades para as quais a apicultura
continua viva. Os saberes relacionados foram transmitidos desde então, de geração a geração, e dentro de sua mesma tradição se atualizam. Raimón Panikkar
disse que: “mediante uma nova personificação das experiências tradicionais da
humanidade é como podemos ser fiéis a elas, e é, além disso, só assim que podemos aprofundá-las e continuar a verdadeira tradição. A tradição autêntica não
consiste na transmissão de fórmulas mortas ou costumes anacrônicos, mas sim
em passar a chama da vida e a memória da humanidade”.
N
Pieter Bruegel
2
o mundo moderno, o monopólio mais total e impositivo é aquele que propõe que todo o método, toda a prática, todo o raciocínio, devem obedecer
a uma lógica industrial, apesar disso ir contra as tradições e as estratégias comuns
que durante milênios resolveram a vida das pessoas. Isso, que pouco se reconhece,
é uma das opressões mais profundas que sofremos. Por essa lógica, o modo industrial suplanta toda a forma de fazer, a experiência, o invento, o experimento e a
reflexão compartilhada que não siga a lógica de escala gigante e de produção
massiva – causando danos imensos às escalas naturais das tarefas humanas. Os
métodos da indústria e as imposições dos técnicos, dos políticos, dos sistemas e
dos empresários são um rolo compressor que pode arrasá-las todas, em um suicídio planetário que não reconhece a importância de nenhuma relação, salvo a do
dinheiro.
E como o dinheiro substitui todas as
outras relações, a lógica industrial
converte todos os saberes em mercadoria, para fazer uso deles como partes de alguma produção em série.
Tratar os saberes como mercadoria
é fazê-los coisas e torná-los vazios e
alheios. É despojá-los do impulso
criativo – e comunitário – de onde
surgiram. Os saberes mercantilizados
tornam-se “conhecimentos” ensinados pelos “professores”, certificados
grau a grau pelos “especialistas” no
sistema oficial de “educação”, “econômico”, “científico” ou “assistencial”, até se desconectarem da comunidade de onde surgiram. Então, os controladores de empresas e os governos em nível local, nacional e mundial podem
condicioná-los à sua vontade e até utilizá-los contra as pessoas que antes lhes iam
dando forma livre.
Ser uma mercadoria os faz propensos à compra-venda. Estarem certificados,
serem usados como coisas, os coloca a atuar como “propriedade”, nesse caso
“propriedade intelectual”, patenteável. Ao se patentear, são sequestrados do todo,
e já não podem fluir em sua eterna transformação criativa. O patenteamento significa destruí-los como bens comuns, destruir a criatividade social. Porque é absurdo patentear todas as tarefas de uma comunidade ou apoderar-se dos elementos que fazem a vida de toda uma comunidade, um povoado, uma região. Como
é possível patentear a cultura de um povo? Mas o fazem. E quando não se patenteiam, se menosprezam. A arrogância acadêmico-técnica pode considerar esses
saberes “superstição, subjetividade, sentido comum, ignorância”.
Assim, muita gente os abandona e adota o “conhecimento” dos especialistas,
que custa dinheiro e que traz consigo também submissões e dependências, além
de ser (em muitas ocasiões) contraproducente e nocivo, porque se baseia em suposições alheias, externas e que nivelam.
Assim, erode-se a verdadeira civilização popular que na contracorrente dos sistemas mantém o mundo andando.
P
orque os saberes não são coisas. São tecidos muito complexos de relações,
muitas delas ancestrais, e se entreveram com a comunidade, o coletivo, a
região, a circunstância, a experiência de onde surgem e onde são celebrados como
parte de um todo que pulsa porque está vivo. A esse todo, os povos indígenas do
mundo chamam território: aí é onde os saberes encarnam, crescem e se reproduzem mediante a criação mútua, porque são pertinentes ao entorno social, natural
e sagrado que os criou e segue criando. Podem ser técnicas de caça, métodos de
plantio, limpeza, coleta, pesca, fiação, olaria, cozimento, ferraria, costura, seleção
de sementes ou seu cuidado ancestral. Formas mais abstratas, como recolher
água, equilibrar torrentes, convocar chuvas, recuperar mananciais, curar os solos,
desviar os ventos, curar nostalgias, perdas, maus sonhos, dar à luz ou estancar
feridas. São atitudes de dignidade e de respeito, mas também o empenho de não
se deixar oprimir. São formas de querença, mas também modos de equilibrar o
dano, a culpa e o fracasso. São também formas de organização e de tornar claro
o trabalho e a vida social compartilhada, são formas de luta e resistência contra
o esquecimento.
Então, muitos pensadores e as pessoas comuns, por igual, nos damos conta de
que o saber sempre se constrói no coletivo, de que não é possível que saibamos
nada sozinhos, de que o saber individual é impossível, porque dizer saber é dizer
linguagem, e a linguagem é nosso bem comum maior e mais amplo. Então, vamos
entendendo que os saberes são bens comuns livres, e que se
são privatizados se rompe o sentido de nossa vida e se coloca em risco o propósito fundamental de tais saberes, que
é fortalecer a relação natural de respeito, cuidado e justiça entre as pessoas, as comunidades e o território natural onde nos relacionamos. Os saberes, construídos expressamente em coletivo, são a base de nossas
possibilidades de resistência e utopia. Por isso, para que continuem vivos esses saberes, devemos assumir expressamente seu impulso de resistência.
H
oje, os povos, as comunidades, os coletivos indígenas-camponeses, mas também os coletivos urbanos
de bairros e favelas, sabem que, para romper os cercos, é
necessário reivindicar a construção própria dos saberes, o fomento a nossa teia comum de saberes não certificados, nossa recuperação da
história própria, nosso próprio diagnóstico das condições que pesam sobre nossa
região, nossos canais de confiança, nossa criatividade social, ou seja, nossa autogestão integral.
Biodiversidade, sustento e culturas quer ser um espaço real para tornar viável
esse sonho. Nessa teia compartilhada, nossa revista pode ser uma ferramenta para
intercambiar experiências e torná-las fortes. Para impulsionar ações conjuntas e
reflexões coletivas de longo prazo. Por isso, neste número em particular, quisemos
celebrar os saberes, que são o coração da tradição milenar dos povos, das comunidades, dos coletivos, e queremos resgatá-los para que recuperem sua força e seu
potencial de proposta, de criatividade e de justiça.
Os saberes não são coisas, são tecidos de relações. São processos. Se continuamos vendo os saberes locais como coisas, ficamos na nostalgia daquilo que perdemos ou nos privatizam. Por outro lado, se resgatamos com força comunitária os
saberes e estratégias que construímos coletivamente, a visão que vamos compartilhando mais e mais, o trabalho comum, desde nossos rincões que são centros,
será mais provável defender a vida com toda sua esperança. l
BIODIVERSIDADE
3
Jean-Francois Millet
4
Os povos do campo
são os que têm
alimentado a humanidade,
inclusive no momento
atual, quando se deflagra
uma verdadeira guerra
contra os camponeses
e povos indígenas.
Outro feito ignorado
é que os camponeses
e camponesas do mundo
têm sido os criadores
e diversificadores de todos
e de cada um dos cultivos
que hoje desfrutamos
como humanidade.
A agricultura: seus saberes
e cuidados
GRAIN
A
agricultura é obra e arte dos agricultores e agricultoras do mundo
inteiro, uma obra que começou e continua se desenvolvendo desde dez mil ou
talvez vinte mil anos atrás. Povos dos
mais diversos recantos reconheceram a
si mesmos como cultivadores: em muitos dos mitos fundacionais, saber e poder cultivar foi o que nos tornou humanos. Mas a agricultura, não o
esquecemos, tem sido e é muito mais
que cultivos e criação de animais. É
também o uso e o cuidado da floresta,
da água, das plantas medicinais, dos
animais silvestres. Requer muitos outros saberes e habilidades: podar, enxertar, tosquiar, domar, domesticar,
fiar, tecer, curtir, salgar, secar, fermentar, usar a argila, fabricar cestas, selecionar as melhores plantas e animais,
prever o clima, cortar a madeira no
momento adequado, reconhecer a lua
para plantar, podar ou colher, são só
alguns dos mais comuns. Povos do
mundo inteiro – sob as mais diversas
condições ecossistêmicas, sociais e culturais – construíram seus saberes até
conseguir níveis de fineza e sofisticação
que ainda nos custa apreciar em toda a
sua extensão.
O valor de tais saberes não passou despercebido. Inclusive em sociedades em
que cultivar a terra foi considerado trabalho de classes inferiores, os saberes
camponeses foram reconhecidos. Sócrates classifica o cultivo da terra entre
os saberes mais importantes, em uma
categoria similar ao saber médico. As
crônicas européias falam repetidamente das diversas formas de agricultura
dos povos da África, Ásia e América,
muitas vezes com admiração pelo seu
alto nível de sofisticação. Até o final do
século xix, o Ministério de Agricultura
dos Estados Unidos consultava os agricultores norte-americanos sobre como
enfrentar as doenças das plantas ou a
gripe suína. Há apenas umas décadas,
o sistema de melhoramento animal da
Noruega dependia fundamentalmente
do trabalho de seus agricultores.
Entretanto, pouco se disse de outros
aspectos de grande importância. O primeiro, que os povos do campo são os
que têm alimentado a humanidade, inclusive no momento atual, quando se
deflagra uma verdadeira guerra contra
os camponeses e povos indígenas. Outro feito ignorado é que os camponeses
e camponesas do mundo têm sido os
criadores e diversificadores de todos e
de cada um dos cultivos que hoje desfrutamos como humanidade. Foi a gente do campo quem levou a cabo o lon-
Jean-Francois Millet
go, paciente e delicado processo de
converter matos e ervas em alimento
abundante, saboroso, nutritivo, atraente. Foi ela – e especialmente as mulheres
– quem carregou as sementes quando
empreendeu viagens, ou foi forçada a
abandonar suas terras, e as compartilhou e distribuiu literalmente pelo mundo. Se hoje nos assombramos diante da
diversidade do milho, da batata, do trigo, do arroz, dos feijões, é porque têm
existido milhões de homens e mulheres
do campo que os têm cuidado, selecionado, cruzado, adaptando-os às milhares de condições que surgem da combinação de diversos ecossistemas,
comunidades, culturas, aspirações, sonhos e gostos.
O trabalho genético e ecológico feito
por mãos camponesas e indígenas nos
cultivos que hoje nos nutrem não tem
paralelo algum. Nada do conseguido
com o melhoramento genético moderno teria sido possível sem a base de domesticação, melhoramento e diversificação presente nas centenas de milhares
de variedades camponesas existentes
em toda a terra. Nem o mais sofisticado
trabalho de cruzamento e seleção feito
em algum centro de pesquisa pode se
comparar à tarefa de converter o teosinto em milho. Todos os melhoristas
genéticos do mundo seriam incapazes
de reproduzir a variedade de cores presentes no feijão, ou sua capacidade de
se adaptar às mais diversas e extremas
condições de crescimento. E, apesar de
todo os trabalhos de pesquisa, ainda
resta muito para aprender a respeito
das finas inter-relações estabelecidas em
muitos sistemas de cultivos tradicionais.
Contudo, faz menos de cem anos que
se disse – e se continua dizendo – que
ser camponês ou indígena é sinônimo
de ignorância, superstição, atraso. Desde os centros de pesquisa, das universidades e, especialmente das escolas, nos
fazem a propaganda de que os únicos
que sabem são os pesquisadores, os
agrônomos, os professores. Milhares de
anos de observação cuidadosa, de relações de cuidado e afeto, de busca coletiva e aprendizagem mútua tinham que
ser esquecidos para dar espaço ao
aprendido nos campos de experimentação sob condições controladas. Inventaram-se os conceitos de “extensão” e
“transferência” para deixar claro que o
conhecimento se produzia em determinados lugares – muito reduzidos – e o
resto do planeta devia recebê-lo passivamente.
Abriu-se assim o processo que não só
levou à Revolução Verde e sua já conhecida sequela de contaminação e degradação ambiental, mas também a
processos de homogeneização em todos os âmbitos da agricultura, incluída
a homogeneização do pensamento daqueles que se apresentavam como os
novos detentores do saber. Parece que
não chamou ninguém à atenção que os
agrônomos do Zimbábue, das Filipinas
e da Argentina considerassem como
ótimo o mesmo adensamento de plantio para tal ou qual cultivo que os agrônomos dos Estados Unidos ou da Austrália. Também não causou alarme que,
em algum momento, a mesma variedade de tomate fosse plantada do México
à Patagônia, do altiplano às terras baixas tropicais, ou que alguns agrotóxicos imediatamente se tornassem a ferramenta desejada nos mais diversos
rincões do mundo. Muito menos atenção se deu ao fato de que a “transferência técnica” foi feita silenciando os povos do campo, escondendo ou
marginalizando sistemas complexos
que, há séculos, vinham acumulando
O trabalho genético
e ecológico feito
por mãos camponesas
e indígenas nos cultivos
que hoje nos nutrem
não tem paralelo algum.
Nada do conseguido com
o melhoramento genético
moderno teria sido
possível sem a base
de domesticação,
melhoramento
e diversificação presente
nas centenas de milhares
de variedades camponesas
existentes em toda
a terra. Nem o mais
sofisticado trabalho
de cruzamento e seleção
feito em algum centro
de pesquisa pode se
comparar à tarefa
de converter o teosinto
em milho.
5
6
As grandes corporações
então inventaram
a propriedade intelectual
sobre as formas de vida
e redefiniram as regras
para monopolizar plantas,
animais e conhecimento.
No início, de maneira
cautelosa, limitada e
silenciosa. Nos anos 1990,
o processo tornou-se
agressivo, ambicioso.
Hoje nos impõem
de modo obrigatório
e repressivo. O ato
fundamental de cuidar,
reproduzir e compartilhar
as sementes passou a ser
um delito.
saberes sobre ecossistemas, cultivos,
animais, árvores, microorganismos e
toda a sua vasta rede de relações.
Há menos de cinquenta anos do início
da Revolução Verde, os efeitos estão ao
nosso redor. Temos um mundo rural
cada vez menos diverso, uma agricultura cada vez mais homogênea e concentrada. Enquanto os cultivos fortemente
controlados pelo comércio internacional através das grandes corporações –
trigo, milho, arroz – aumentaram sua
produção global, a produção camponesa dos mesmos estagnou, principalmente porque os camponeses têm cada vez
menos terra para plantar. Os cultivos
que continuam significativamente em
mãos camponesas – como as leguminosas – também estagnaram em sua produção e reduziram a área plantada. O
desmatamento não só significou uma
deterioração ambiental, mas também
uma perda importante de fontes de alimentação humana e animal. A deterioração dos solos é dramática, e inclusive
altera os ciclos hidrológicos e adiciona
secas e inundações às difíceis condições
vividas no campo.
Poderíamos discutir longamente o
porquê da ocorrência dessas mudanças.
Foram mudanças provocadas a partir
das mais diversas posições políticas e
filosóficas, com objetivos diversos no
final. Principalmente nos países do Terceiro Mundo, houve grande número de
pesquisadores sincera e profundamente
preocupados com o fantasma da escassez de alimentos e a realidade da pobreza no campo. Mas, depois de décadas
Jean-Francois Millet
de modernização, o quadro que temos
diante de nós nos mostra claramente
que – ao contrário do que se disse no
momento de impulsionar as mudanças
– não foi um processo em que todos ganharíamos. Os custos foram severos, e
quem levou a pior parte foram os povos indígenas e o campesinato, aos
quais supostamente se estava beneficiando. Durante o século xx, pela primeira vez na história da humanidade,
os habitantes urbanos passam a ser a
maioria. A mudança não foi produto
de sonhos realizados nas cidades, mas
do desaparecimento de famílias camponesas, da expulsão do campo por
falta de trabalho e de perspectivas pela perda da terra, pela destruição e
desmembramento dos territórios indígenas - do estrangulamento econômico
e do processo perverso de fazer com
que os jovens se sintam envergonhados
de suas origens e culturas.
Há os que ganham de modo dramático: os fabricantes de agrotóxicos e de
fertilizantes sintéticos foram os primeiros, juntamente com as grandes empresas de alimentos. A venda de fertilizantes na América Latina cresceu uns 8%
ao ano entre 1960 e 1990; a produção
agrícola cresceu menos da metade disso. Empresas como a Nestlé, a Dow
Chemical, a Bayer, a Merck e a Unilever cresceram nas últimas décadas a
taxas muito mais altas do que as de
qualquer agricultura no mundo.
A busca de grandes lucros às custas
dos agricultores não parou por aí. As
grandes empresas entenderam rapidamente que é possível fazer agricultura
sem agrotóxicos, sem fertilizantes e
sem grandes maquinarias, mas é impossível fazê-la sem sementes e sem saber o que é necessário saber sobre elas
e sobre os ecossistemas que as acolhem.
As grandes corporações então inventaram a propriedade intelectual sobre as
formas de vida e redefiniram as regras
para monopolizar plantas, animais e
conhecimento. No início, de maneira
cautelosa, limitada e silenciosa. Nos
anos 1990, o processo tornou-se agressivo, ambicioso. Hoje nos impõem de
modo obrigatório e repressivo. O ato
fundamental de cuidar, reproduzir e
compartilhar as sementes passou a ser
um delito. O impulso natural de usar,
compartilhar e conversar sobre os saberes – a melhor forma de protegê-los e
fazê-los crescer – foi restringido, condicionado e crescentemente tornado ilegal.
A pressão sobre povos camponeses e
indígenas foi tão brutal que não deixa
de causar espanto como algumas organizações tentam remediar a situação
buscando ferramentas dentro das mesmas normas de propriedade intelectual
que hoje causam tanta destruição.
Um dos mais perversos elementos da
propriedade intelectual – em qualquer
de suas formas – é que diz “proteger”
plantas, animais e conhecimento, quando, na realidade, faz justamente o contrário. Plantas, animais, conhecimento
e saberes humanos são e sempre foram
um produto social e coletivo, em evolução permanente. Fortalecem-se na medida que são compartilhados e fluem
livremente, se aperfeiçoam através do
uso, da observação, da experimentação
e da conversação; enriquecem-se na
medida que cada pessoa, família, comunidade e povo pode experimentá-los
e determinar livremente se são úteis
como tais, se necessitam ser aperfeiçoados ou se é melhor descartá-los. A propriedade intelectual tenta privatizar o
que por essência é obra coletiva, congela o que deve estar em mudança contínua e impede o próprio fundamento do
saber: compartilhar, debater e decidir
soberanamente. Certamente se protege
a propriedade, mas no caminho se destrói diversidade, cultivos e conhecimento.
Mas, iniciativas de resistência muito
mais acertadas ressurgem nos últimos
vinte anos junto com a expulsão, a destruição e a marginalização. Talvez o
mais animador seja que se entendeu
que a diversidade biológica, as sementes e os saberes não são coisas isoladas,
mas sim o produto de processos sociais
e ecossistêmicos. Recuperar a cultura, a
espiritualidade própria, fortalecer a organização, o tecido social, os mercados
locais, a capacidade de controle dos
processos produtivos; restaurar as terras e territórios, reconstruir ecossistemas, proteger e potencializar a biodiversidade, diversificar a agricultura,
reativar as sementes próprias: tudo são
facetas de esforços que buscam assumir
a complexidade dos processos que determinam a vida de povos e comunidades e retomar o controle dos mesmos.
Em suma, os esforços de comunida-
7
des rurais da América Latina, Ásia,
África, mas também da Europa, hoje
buscam reconstruir o pleno direito de
ser camponeses e indígenas. De acordo
com cada circunstância, suas experiências tomam formas muito distintas. São
um exemplo da biodiversidade cultural, social e política, necessária para
recuperar a diversidade agrícola e biológica. São experiências que buscam
reforçar a capacidade de tomar decisões de maneira coletiva, organizada e
soberana.
Uma característica é especialmente esperançosa: a reativação dos sistemas
camponeses de construção de saberes,
sistemas que fundem formas coletivas e
pessoais de observação, experimentação e intercâmbio, e que, ao saber,
unem o respeito, a espiritualidade e um
conjunto de normas sociais localmente
definidas. Essa busca permite a geração
e a reativação autônoma de saberes por
parte de comunidades e famílias e, no
final das contas, o florescimento, de
novo, da criatividade social mais antiga da humanidade. l
Jean-Francois Millet
Um dos mais perversos
elementos da propriedade
intelectual – em qualquer
de suas formas –
é que diz “proteger”
plantas, animais
e conhecimento, quando,
na realidade, faz
justamente o contrário.
Plantas, animais,
conhecimento e saberes
humanos são e sempre
foram um produto social e
coletivo, em evolução
permanente.
Depois da marcha nacional de povos, comunidades,
resguardos e organizações indígenas que percorreu a
Colômbia em outubro e novembro de 2008 para fazer visível
sua história, sua luta, suas demandas e propostas em um país
que lhes responde com repressão e assassinato, este Direito
Maior do povo misak adquire uma estatura imensa
de sabedoria e respeito à vida e ao mundo. Apresentamo-lo
para celebrar a cultura ancestral que, em dias passados,
manifestou-se na Colômbia e perante o mundo.
8
Resguardo* de Guambía,
autoridade ancestral do povo misak, território de Wampia
Lei misak
Pela defesa do Direito Maior,
patrimônio do povo misak
Preâmbulo. O povo misak (guambia-
no), como constituinte primário, fazendo uso de nosso Direito Maior, por ser
antigo, nativo e originário destas terras
e territórios, de acordo com nossas
constituições e leis e demais normas que
nos têm regido por milhares de anos
por meio da tradição oral neste continente, construídas por nossos ancestrais, avós, pais e hoje por nós herdeiros
destas terras, onde estão os ossos de
nossos antepassados, que são sagrados,
as quais nos legaram para protegê-las,
defendê-las, e desenvolvê-las com todos
nossos deuses e espíritos e com identidade, para nossa sobrevivência.
Exposição de motivos. Somos um povo
Inocencio Jiménez Chino, San Agustín Oapan,
Guerrero, México
organizado em seu próprio território,
que goza de sua autonomia e é respeitoso com a natureza e a identidade que
dignifica nossas formas de vida.
É dever das autoridades zelar pelo
bem-estar de seu povo e fazer respeitar
seus direitos ancestrais como misak a
todos os seus componentes do território, com o poder que lhes dá o Direito
Maior que o mundo testemunha.
Para o povo misak a natureza é nossa
mãe e espírito de vida, os elementos do
mundo e do cosmo são um só conjunto,
a diversidade biótica e abiótica é parte
integral da terra, que no tempo e no espaço sustentou nossas vidas, dando-nos
alimentos, sabedoria, dignidade e identidade mediante a constante inter-relação recíproca e, portanto, são inegociáveis sob qualquer circunstância.
O povo misak, e outros povos originários do mundo, temos desenvolvido conhecimentos e sabedorias para garantir
nossa existência e permanência em harmonia e equilíbrio com a natureza e
seus espíritos, para ser guardiões desse
legado, para que o perpetuemos às novas gerações, porque é uma obrigação
cultural que os ciclos de vida exigem,
porque é uma missão (dever-direito)
milenar, própria, que se aplica no território, concedido e determinado pela lei
cósmica natural.
O dever e direito de defesa, proteção,
luta na vivência dos conhecimentos e
sabedorias para a permanência são as
funções que o povo misak se impõe
cumprir, com sua indispensável missão
e mandato de preservação cultural,
conservação das sabedorias e conhecimentos próprios, os quais têm um caráter milenar, único e autêntico. A cultura
* Território tradicional indígena
integra o território e dentro deste as terras, o ar, as águas, o petróleo, os minerais, a variabilidade de organismos vivos de qualquer origem, e todos os
elementos são expressão dos saberes
tradicionais acumulados durante toda a
existência de nossa gente em todos os
âmbitos de nossa vida.
Para o povo misak, nenhum dos elementos que fazem parte de nossa cultura constitui matéria-prima para o atual
período de globalização, para a engenharia genética, a omc, os governos, as
ongs, centros de pesquisa ou as empresas nacionais, transnacionais e as multinacionais que privatizam a vida, contaminando-a, explorando-a e a destruindo
para benefício e domínio de poucos.
O povo misak jamais gerou conhecimento com procedimentos científicos
(desenhos experimentais), empirismo
(prova e erro), nem apriorismo (a razão), submetendo ao sofrimento, privando da vida, intoxicando, clonando e
combinando genes de animais submetidos ao cativeiro e de plantas da natureza, para gerar receitas de drogas, medicamentos
e
demais
produtos,
extrapolando resultados de pesquisas
de espécies diferentes para aplicá-las ao
ser humano.
O povo misak gerou e gerará saberes
com métodos e procedimentos distintos
dos da ciência, com identidade, dignidade, ética, comunicando-nos e dialogando em nossas linguagens com os espíritos das águas, plantas, animais,
minerais, fogos, e podemos determinar
e prever, sem equívoco, que há plantas
com mutações, substâncias tóxicas que
com nossos métodos podemos corrigir,
que o fazemos desde sempre e para
sempre, e se o expressamos hoje nesta
Lei não é para que venham expropriálos, mas sim para que se saiba e se respeite.
Quando o misak recebeu o território e
a cosmovisão, a identidade e a dignidade, como exigência para as etapas do ciclo de vida, foram capacitados, por serem os primeiros povoadores, para
garantir o equilíbrio e a harmonia entre
a natureza e o ser humano, e adquiriram
o compromisso de defendê-la, protegê-
9
Inocencio Jiménez Chino, 1994
la, mantê-la e devolvê-la para nossos filhos e para a humanidade toda.
O povo misak com sua autonomia e
autoridade está em condições de adotar
medidas para a proteção e defesa do território, a cosmovisão e os conhecimentos, e sabedorias, e a repatriação de seu
patrimônio.
Somos os primeiros povoadores filhos
e cultivadores de água deste continente,
e para os povos que o habitamos não há
espécie silvestre, nem espaço baldio,
porque milenarmente temos sido conhecedores e sabedores na convivência com
a natureza, por isso somos autoridade
ambiental.
N
a Conquista, invadiram nossos
territórios, saquearam nosso patrimônio natural, geraram o genocídio
de povos milenares, acabaram com
muitas de nossas culturas, com sua organização social, política e econômica,
por isso os governos do mundo têm
uma grande dívida histórica e ecológica
pela qual devem indenizar nossos povos.
Na Colônia, continuaram com o processo exterminador dos povos em resistência, com a usurpação de seus territórios, encurralando-os em pequenas
áreas denominadas reservas, continuaram saqueando a mãe natureza causando sua deterioração, e escravizando e
explorando nossos antepassados, e impondo-lhes suas idéías, sua política e
sua religião.
Nas Guerras de Independência, nos-
Quando o misak recebeu
o território e a cosmovisão,
a identidade e a dignidade,
como exigência para
as etapas do ciclo de vida,
foram capacitados,
por serem os primeiros
povoadores, para garantir
o equilíbrio e a harmonia
entre a natureza e o ser
humano, e adquiriram
o compromisso de
defendê-la, protegê-la,
mantê-la e devolvê-la
para nossos filhos e
para a humanidade toda.
Inocencio Jiménez Chino
A violência generalizada
que o país viveu
durante séculos causou
grandes deslocamentos
de povos indígenas,
com o que se busca
10 ocupar nossos territórios
para continuar
saqueando-os em benefício
das diferentes forças
com seus grupos armados
e as transnacionais
apoiadas pelo Estado
colombiano. Em
consequência, a
resistência pela vida
e existência dos povos
indígenas se torna
cada vez mais difícil
e complexa, porque
nossos pequenos
territórios se converteram
em cenários de guerra.
sos avós participaram direta e massivamente, contando muitos mortos, pensando que ao se livrarem do jugo
espanhol a escravidão acabaria, se obteria a liberdade e se retomaria o caminho próprio, retornando aos territórios
que lhes haviam sido usurpados, mas a
única coisa que aconteceu foi que trocamos de senhorio, porque depois da independência continuou o sistema escravista, colonialista, exterminador e
aniquilador.
Com a República, foram impostas novas leis, normas e decretos, destinados a
acabar com as reservas existentes, a declarar os territórios indígenas como baldios, e nossos avós como selvagens e
menores de idade, favorecendo os fazendeiros proprietários de terras e a
Igreja na sua tarefa de “conversão dos
selvagens à vida civilizada”.
A violência generalizada que o país viveu durante séculos causou grandes
deslocamentos de povos indígenas, com
o que se busca ocupar nossos territórios
para continuar saqueando-os em benefício das diferentes forças com seus grupos armados e as transnacionais apoiadas pelo Estado colombiano. Em
consequência, a resistência pela vida e
existência dos povos indígenas se torna
cada vez mais difícil e complexa, porque nossos pequenos territórios se converteram em cenários de guerra, causando danos irreparáveis a nosso
patrimônio natural e cultural, a nossa
economia, nossa saúde e a nossos sistemas de organização e sociais próprios.
Em 1991, participamos da Constituinte, e a Constituição resultante nos
reconheceu alguns direitos, mas isso
não foi mais do que um engano, porque
o processo de extermínio de nossos povos em todos os campos continua.
A
s empresas transnacionais, particularmente as relacionadas com a
indústria farmacêutica e de alimentos
que fazem uso da engenharia genética,
os governos reunidos na omc, ongs
nacionais e internacionais, vêm convertendo as reservas naturais biológicas,
hídricas e minerais dos povos indígenas
em bancos genéticos in situ e ex situ, e
a diversidade cultural indígena em bancos de saberes e conhecimentos, preparando terra fértil para suas pretensões
biopiratas e de cognopirataria.
A globalização está gerando processos
de saque da biodiversidade e dos saberes, particularmente nos territórios dos
povos indígenas do mundo, especialmente de parte dos governos dos países
industrializados, das transnacionais dedicadas à extração e venda dos recursos
hídricos, minerais, biológicos, genéticos, farmacêuticos, assim como dos
grandes centros de pesquisa, que não
revertem os resultados e benefícios às
regiões de origem, mas que os colocam
à venda a quem oferece o melhor preço.
O saque e apropriação da riqueza bio-
lógica de nossas montanhas e florestas,
das águas, minerais, e dos saberes,
orienta-se para o controle sobre o território: o espaço e seus habitantes, suplantando nossa autoridade, autonomia
e autodeterminação, e destruindo nossas culturas milenares. A imposição de
conceitos e sistemas de “área crítica
para a biodiversidade”, “desenvolvimento sustentável”, “permuta de dívida por natureza”, “serviços ambientais”, “cadeias produtivas”, “reservas
estratégicas”, e outros, assim como a
adoção de leis e políticas de águas, páramos, florestais, de desenvolvimento
rural, etc. (que encobrem os grandes interesses que se escondem por trás do
discurso da conservação), estão levando à mercantilização da natureza, subordinando-a à linguagem do capital,
assim legitimando e delineando uma
transformação jurídica e material que
busca a instauração da propriedade privada da vida, o que afeta gravemente os
direitos humanos fundamentais de dignidade e identidade de nossos povos.
11
Proclamação da Lei de Direito Maior
Objetivos fundamentais. Promover o
respeito, proteção e conservação de
nosso território com toda sua biodiversidade, suas águas, ares, minerais, e
tudo o que este contém.
Assegurar a preservação cultural do
povo misak, protegendo todos os seus
conhecimentos e sabedorias coletivas.
Evitar que sejam concedidos direitos
de propriedade intelectual ou industrial
sobre quaisquer elementos de nosso território e de nossa cultura, incluindo os
conhecimentos coletivos de nosso
povo.
Promover o fortalecimento das capacidades de proteção e defesa de nossa
gente.
Dever misak. É dever do povo misak
(os guambianos, o conjunto de todas as
pessoas que compartilham elementos
comuns da cultura e identidade misak,
localizados em qualquer parte da geografia colombiana) e suas autoridades
(a reunião do povo decidindo, representado pelo conjunto de integrantes de
todas as Assembleias de Resguardos do
povo misak) cuidar, proteger e conservar todo o nosso território (o espaço
territorial ocupado milenarmente pelo
povo misak e aqueles territórios onde
hoje estão assentados), que é sagrado,
incluindo os páramos, as montanhas, as
florestas e áreas úmidas grandes e pequenas, lagos e nascentes, fontes ou
“colchões de água”, as bacias hidrográficas, as grandes e pequenas rochas
onde estão nossos deuses e os espíritos
que nos protegem e nos dão a vida, e as
zonas onde habitamos e produzimos
nosso sustento, para que continue sendo um patrimônio coletivo sob nossa
responsabilidade e cuidado.
Os páramos, áreas úmidas e nascentes
de águas, por serem morada de nossos
deuses e espíritos, e por serem os lugares onde se originou nossa gente e nossa
cultura, gozarão de proteção especial.
Esses são patrimônio coletivo de todos
os misak e nossas autoridades adotarão
medidas para que eles sejam utilizados
coletivamente, como reservas naturais e
para atividades relacionadas com nossa
vida espiritual.
É dever do povo misak e suas autoridades cuidar, proteger, cultivar e conservar perpetuamente todas as formas
de vida e todo o patrimônio natural que
se encontram em nossos territórios, incluindo a diversidade biológica, animal,
vegetal e de microorganismos, o ar, as
minas de qualquer tipo, do solo e do
subsolo, e os recursos energéticos de
qualquer origem.
Todas as terras do território misak serão destinadas prioritariamente a suprir
as necessidades do ciclo de vida e identidade misak, em conformidade com
nossos Planos de Vida. Aquelas adequadas à produção deverão ser dedicadas em primeiro lugar a incrementar e
melhorar a produção de alimentos saudáveis para o autoconsumo, com a finalidade de melhorar a nutrição, a saúde
e, em geral, o bem estar dos misak. Os
cultivos comerciais e industriais não
Abraham Mauricio Salazar, San Agustín Oapan, 1979
Os páramos, áreas úmidas
e nascentes de águas,
por serem morada
de nossos deuses e
espíritos, e por serem os
lugares onde se originou
nossa gente e nossa
cultura, gozarão
de proteção especial.
Esses são patrimônio
coletivo de todos
os misak e nossas
autoridades adotarão
medidas para que eles
sejam utilizados
coletivamente, como
reservas naturais e para
atividades relacionadas
com nossa vida
espiritual.
coesão familiar, a convivência coletiva e
identitária e o respeito pela natureza.
Restrições. Fica totalmente proibida
12
Inocencio Jiménez Chino, 1994
É dever do povo misak e
suas autoridades respeitar,
vivenciar, cuidar, proteger
e conservar perpetuamente
os conhecimentos
e saberes, e todo o legado
cultural herdado
de nossos ancestrais,
tanto os relacionados
com o cuidado
da biodiversidade como
os que têm a ver
com outros aspectos
de nossa cultura, e que
desde os tempos
imemoriais são nosso
patrimônio para
as futuras gerações,
que não pode ser alterado
por ideologias alheias
à concepção,
pensamento e visão
de seu próprio mundo.
poderão deslocar a produção de nossos
alimentos.
O povo misak e suas autoridades deverão cuidar, proteger e conservar, defender e evitar qualquer profanação dos
lugares que contém restos mortais de
nossos antepassados, porque são os lugares mais sagrados de nossa história.
É dever do povo misak e suas autoridades cuidar, proteger e conservar nosso genoma humano como patrimônio
coletivo de nossa gente.
É dever do povo misak e suas autoridades respeitar, vivenciar, cuidar, proteger e conservar perpetuamente os conhecimentos e saberes, e todo o legado
cultural herdado de nossos ancestrais,
tanto os relacionados com o cuidado da
biodiversidade como os que têm a ver
com outros aspectos de nossa cultura, e
que desde os tempos imemoriais são
nosso patrimônio para as futuras gerações, que não pode ser alterado por ideologias alheias à concepção, pensamento e visão de seu próprio mundo.
É dever e obrigação do povo misak e
suas autoridades retomar e fortalecer o
mutirão como prática ancestral de unidade, integração, solidariedade e reciprocidade, e como estratégia de educação própria, para ensinar a sabedoria e
o conhecimento milenários de nossos
povos.
É dever e obrigação do povo misak e
suas autoridades fortalecer a justiça
própria, e aplicá-la de maneira que se
respeitem os direitos coletivos, familiares e individuais, para garantir o equilíbrio entre o direito e o dever de todos, a
qualquer prática, comportamento ou
conduta que contrarie ou que negue os
artigos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9 da presente Lei.
Nas zonas de páramo ficam expressamente proibidas as atividades de mineração, agrícolas, de criação de gado ou
de turismo comercial; qualquer outra
atividade comercial; o corte de árvores
e a destruição por qualquer meio de
frailejones e outros componentes da flora; a destruição da fauna; a provocação
de incêndios ou outras atividades que
causem definhamento de sua integridade.
Proíbe-se a utilização do território misak para a introdução, plantio, utilização e comercialização de sementes e
produtos transgênicos e seus derivados,
assim como de plantas que tenham
como finalidade um uso contrário à natureza e à cultura.
O povo misak e suas autoridades assegurar-se-ão de que nenhuma pessoa,
natural ou jurídica, misak ou forânea,
introduza, deposite, armazene, despeje
ou transite com dejetos tóxicos e perigosos, ou não tóxicos diferentes dos lixos domésticos de nossa gente, em parte alguma de nosso território.
Fica proibido o acesso, a pesquisa, a
saída, a utilização e a comercialização
dos recursos genéticos dos corpos de
nossa gente, tais como sangue, pele, cabelo ou outros tecidos, órgãos e o tráfico humano.
Ficam proibidos os estudos e pesquisas propostos pelos misak ou forâneos,
naturais ou jurídicos, nacionais ou estrangeiros, instituições governamentais
ou não governamentais, que impliquem
apropriação e privatização de qualquer
elemento de nosso patrimônio natural
ou cultural, que sejam contrários a nossos princípios éticos e culturais, que não
busquem a sustentabilidade e a justiça,
e cujos resultados conduzam à acumulação econômica.
Ficam proibidas a apropriação e privatização sob qualquer forma dos com-
ponentes dos recursos naturais, biológicos, genéticos, minerais, hídricos,
tangíveis e intangíveis, assim como dos
elementos culturais materiais e imateriais, existentes em nosso povo e território. Salvo no relacionado com as atividades próprias da sobrevivência de
nossa gente, nenhuma pessoa, natural
ou jurídica, misak ou forânea, nacional
ou estrangeira, instituição governamental ou não governamental, poderá dispor deles mediante contratos, convênios
ou projetos de serviços ambientais ou
de qualquer outra índole, como concessões e venda, como também não poderá
extrair informação sobre seu uso e manejo.
Nenhum membro do povo misak poderá vender, doar, transferir, permutar,
arrendar ou emprestar partes de nosso
território para estabelecer ou construir
obras civis contrárias ao Direito Maior
e à presente Lei.
Exceto no relacionado com as atividades próprias da sobrevivência de nossa
gente, fica proibido aos misak e a todas
as pessoas forâneas, instituições governamentais e não governamentais, nacionais ou estrangeiras, de qualquer índole e origem, copiar, modificar,
reproduzir, publicar, distribuir, difundir,
transmitir, no todo ou em parte, o conteúdo e processos da cultura do Povo
Misak, bem como realizar apresentações animadas em qualquer forma, seja
em meios magnéticos, figuras, jogos,
ideogramas, marionetes, desenhos e
aplicações de programas de informática, com fins lucrativos ou prejudiciais e
destrutivos para nosso povo.
Proíbe-se constituir direitos de propriedade intelectual ou industrial de
qualquer índole sobre nossos genes ou
sobre qualquer produto da manipulação genética dos mesmos; sobre os elementos da biodiversidade, seu conteúdo
genético, ou qualquer produto derivado
da manipulação genética ou outra dos
mesmos; e sobre os elementos da identidade misak.
O controle da ordem pública dentro
do território misak será exercido por
nosso povo e nossas autoridades. Fica
proibido a nossa gente envolver-se ou
promover a vinculação ou colaboração
com qualquer ator armado.
Proíbe-se em território misak a criação, montagem e utilização de meios
privados de comunicação de massa que
atentem contra a integridade cultural
misak.
13
AMS
Inocencio Jiménez Chino, 1994
Sanções. Em caso de violação de qual-
quer das decisões desta norma de Direito Maior, o povo misak e suas autoridades procederão da seguinte maneira:
Se o infrator é misak, aplicar-se-á sanção de acordo com nosso direito interno.
Se o infrator é uma pessoa forânea,
natural ou jurídica, apelar-se-á a todos
os meios e tribunais nacionais e internacionais disponíveis, reservando-se a autoridade misak o direito de exigir a reparação da falta, castigar os responsáveis
e a que se indenize o que corresponder,
de acordo com nosso direito interno.
O povo misak reunido em assembleia
julgará suas autoridades quando estas
incorrerem em falta grave contra os
princípios e fundamentos do Direito
Maior.
O povo misak e suas autoridades deverão criar um sistema organizacional
AMS
Abraham Mauricio Salazar
que possibilite a unidade, coesão e coerência como povo de todas as autoridades e comunidades reassentadas nos diferentes municípios e departamentos do
território nacional.
Outras disposições. Os territórios de
14
Abraham Mauricio Salazar
Proíbe-se constituir
direitos de propriedade
intelectual ou industrial
de qualquer índole sobre
nossos genes ou sobre
qualquer produto
da manipulação
genética dos mesmos;
sobre os elementos
da biodiversidade,
seu conteúdo genético,
ou qualquer produto
derivado da
manipulação genética ou
outra dos mesmos; e
sobre os elementos da
identidade misak.
outros povos indígenas vizinhos e as
terras dos camponeses limítrofes aos
territórios indígenas, especialmente nas
zonas de páramos, serão protegidos por
esta norma, com prévio acordo entre as
partes.
Os moradores das zonas urbanas que
coabitam com os misak devem contribuir para proteger e conservar todo o
patrimônio natural do município, entendendo que este também é para o seu
benefício.
As autoridades misak manterão relações permanentes com as autoridades
nacionais para buscar solução aos problemas que nos afetam.
Para o povo misak e suas autoridades
a presente Lei é de cumprimento obrigatório e de hierarquia superior a qual-
quer norma externa, e não está sujeita a
nenhum controle jurisdicional. Esta
será regulamentada em exercício do Direito Maior, e seu cumprimento será
honrado perante o mundo com força de
Lei.
A autoridade nacional, departamental
ou municipal e os juízes da república,
das altas cortes, devem respeitar as decisões tomadas autonomamente por
nosso povo e suas autoridades, e apoiálas para o bem de nosso povo e o dos
colombianos.
Este documento em seu conjunto tem
o respaldo da Honorável Assembleia
realizada no contexto do I Encontro
pela defesa de nosso Direito Maior, Patrimônio dos Povos, realizado durante
os dias 18 a 20 de maio de 2007, e hoje
se proclama em Santiago de Guambía,
Território Ancestral Wampia do Povo
Misak, Silvia, Kauca, Colômbia, aos 12
dias do mês de agosto de 2007. l
Cumpra-se
O povo misak e suas autoridades ancestrais
Tata Lorenzo Muelas Hurtado, gobernador Cabildo de Guambía; Tata Agustín Ulluné Almendra,
vice-governador Resguardo de Guambía. Tata Joaquín Yalanda, Governador Resguardo La María;
Tata Miguel Alfaro, vice-governador Resguardo La María. Tata Jesús Antonio Tombe Velasco,
governador Resguardo Nam Misak. Tata Anselmo Yalanda, vice-governador Resguardo Nam
Misak. Tata José Lázaro Pillimué, governador Resguardo Pisitau; Tata Domingo Ullune, vicegovernador Resguardo Pisitau. Tata Benedo Tunubalá, governador Resguardo Ovejas Siberia; Tata
Feliciano Ullune, vice-governador Ovejas Siberia. Tata Segundo Tunubalá, governador Resguardo
Kurak Chak; Tata Luis Roberto Tunubalá, vice-governador Resguardo Kurak Chak. Tata Javier
Yalanda, governador Resguardo Bonanza; Tata Celio Tunubalá, vice-governador Resguardo
Bonanza. Tata Álvaro Cantero, governador Resguardo San Antonio; Tata José Joaquín Tombe
Morales, vice-governador Resguardo San Antonio. Tata Misael Calambás Tumiña, governador
Resguardo Nuevo Amanecer; Tata Juan Yalanda, governador Resguardo Fonda Tambo. Tata Carlos
Andrés Quevedo Cuchillo, governador Resguardo Ginebra Valle; Tata Uber Burbano Peláez vicegovernador Resguardo Ginebra Valle. Tata Bonar Yalanda, Resguardo Nu Pachik Chak; Tata Marco
Antonio Tombé, Comissário maior Resguardo de Kizgo. Prefeitos Resguardo de Guambía:
Tata Lorenzo Almendra Tombe, zona Cofre; Tata Manuel Antonio Almendra, zona Campana; Tata
Francisco Tumiña Trochez, zona Pueblito; Tata José Vicente Paja, zona Cacique; Tata Benedo
Almendra Tunubalá, zona Guambía; Tata Manuel Jesús Morales, zona Michambe; Tata marco
Tulio Calambas, zona Tranal; Tata Gonzalo Tunubalá, zona Gran Chimán; Tata Edgar Tunubalá
Trochez, zona Trebol. Secretários gerais: Tata Didier H Chirimuskay, Mama María Antonia
Yalanda C. Secretários zonais: Mama Cecilia Almendra Yalanda, zona Cofre; Mama María Antonia
Morales, zona Campana; Mama María Elena Tombe Almendra, zona Pueblito; Mama Magnolia
Paja, zona Cacique; Tata Fabián Emilio Yalanda Tombe, zona Guambía; Mama: Jacinta Tunubalá,
zona Michambe; Tata Jairo Humberto Tombe, zona Gran Chimán; Tata Luis Carlos Calambas,
zona Tranal; Tata Manuel Jesús Cuchillo, zona Trebol; Mama Deisy Liliana Chilo Ramos, zona
Alto Méndez. Comissários: Tata José Antonio Calambas Morales, vereda Agua Bonita; Tata Jairo
Enrique Hurtado, vereda El Cofre; Tata Francisco Antonio Almendra y Tata José Antonio Tombe,
vereda Piendamó Arriba; Tata Jesús Antonio Tombe Velasco, Tata José Antonio Tombe Ussa y
Tata Luis Felipe Ullune, vereda Ñimbe; Tata Anselmo Mulas Tombe, Tata Joaquín Almendra Tome
y Tata José Joaquín Velasco, vereda Campana; Tata Manuel Jesús Morales y Tata Miguel Antonio
Morales, vereda Pueblito; Tata Javier Morales y Tata Juan de Dios Trochez.
Uma panorâmica e muitas vistas
O misterioso tecido
dos saberes de cada rincão
Desta vez queremos celebrar a magia das relações que tecem, dia a dia,
há milhares de anos, a trama de saberes com que, desde
a criação mútua, os povos e comunidades cuidam o mundo e encarnam
uma civilização verdadeiramente popular que os filtros culturais e políticos
dos sistemas não podem deter. O que aqui trazemos são frases, poemas,
fragmentos de textos, cartas de protesto, reflexões e intervenções públicas
de diversos sábios comunitários, quase todos indígenas, manifestos
e comunicados do pensamento coletivo, mais a voz de outros pensadores que
reconhecem a força dessa misteriosa construção comum que não fica
no “pitoresco”, mas que vai ao fundo da humanidade,
em sua cotidianidade mais íntima, até o ser mais político com o qual se enfrenta
e transforma o mundo.
Um grão de milho, roxo e duro,
colocaste, amiga, na cinza cálida;
e fazendo-te rir, de repente o grão
se fez uma linda florzinha branca.
Assim também em teu regaço morno
colocaste um dia a descansar minha alma;
e o grão de milho, que era minha pena,
abriu-se como uma flor sobre tua saia.
José Pedroni
(poeta argentino de Santa Fé)
A sociedade está produzindo outras formas de colonização com os meios de comunicação, ou quan-
do vamos à escola. E nos dizem diariamente: “a forma como têm sabido viver, o que têm sabido comer
e pensar, não serve. Devem ter uma forma de vida
diferente, a urbana”. Já não vêm com o exército
para nos levar para trabalhar em minas e terras de
outros. Agora nos convencem de que nossa maneira
de sentir, nossa religião, nossos costumes, nossos saberes, nossas formas de produção e relação com a
Pachamama, nosso modo de viver em comunidade,
não valem. É como se nos dissessem: “deixem tudo
isso e vivam como nós”, “têm que avançar sozinhos”, “não pense você nos outros, esqueça-se da
comunidade”.
Você quer conversar sobre como planta as batatas,
como cuida dos animais, e dizem “isso não vale”, e
ensinam outras coisas, que nada têm a ver com a
terra, com os animais. Assim começamos a ter vergonha de nós mesmos, começamos a pensar com a
mentalidade e a cabeça de outros, é como se olhássemos com óculos, isso é a colonização: fazer-nos pensar e sentir como pensam os que dominam e conquistam, os que nos fazem pensar que somos
inferiores.
Assim nossos saberes são apagados, ou cuidamos
deles às escondidas. “Todos vocês são pobres”, é a
mensagem, supostamente porque não vivemos como
nos dizem. Mas vamos descobrindo que temos muitas coisas importantes, começando porque temos
uma terra onde viver, ainda que seja pouca, mas temos um lugar onde viver, temos nossos animais, temos uma comunidade com quem viver, com quem
nos pertencer. Reflexão das comunidades Sablog San
José e Sablog Chico, na oficina “Soberanía Alimentaria y Descolonización”, Heifer-Equador, fevereiro de
2008
15
Nós, o povo mapuche, milenar, com toda nossa
16
identidade, nossa espiritualidade, com nosso idioma
o mapudungun, se reafirma e se assume na pertença
à terra e nessa pertença cultural. Mas começamos a
ver a necessidade de nos amalgamar com outros povos, outros irmãos que não são
mapuches, mas que são gente da
terra, e que também desenvolvem toda uma filosofia em torno
dela. E distinguimos entre camponês e pequeno produtor.
O pequeno produtor produz da
terra de acordo com a demanda
do mercado, cultivando intensamente - pode ser soja, frutas finas, tulipas -, e não pensa se os
fertilizantes ou agrotóxicos lhe
fazem mal. Opera e vê a terra
como mercadoria, calculando
sua rentabilidade. Esse pequeno
produtor amanhã pode se converter em um grande produtor
ou em um servo da Monsanto.
O camponês tem uma relação
mais de autossuficiência, mais
harmônica, de diálogo, mais filosófica. Um camponês não responde às necessidades
do “mercado” para obter dinheiro, mas à necessidade de sua própria subsistência, e ao mesmo tempo
concebe sua vida a partir do respeito ao lugar onde
está. Cria alguns animais, diversifica cultivos, faz
trocas com outros camponeses, com os mapuches.
Moira Millán, Primeiro Congresso de Educação Ambiental, Córdoba, Argentina, 2004.
O projeto agrícola do povo p’urhépecha sempre foi
ecológico. Procurava evitar a erosão da terra, e suas
técnicas permitiam conservar a camada de matéria
orgânica do solo, que contém os nutrientes suficientes para o bom rendimento dos cultivos sem contaminar nem erodir o solo.
Fabricavam seus implementos de plantio com obsidiana, ferro e madeira, e fizeram enxadas de diferentes formas e tamanhos, de acordo com as características dos solos. Depois fizeram arados de madeira
europeus que modificaram a forma de plantar. Antes
não se faziam sulcos em linha reta nem se aravam
terras para semear ou se faziam cruzas, respeitava-se
o nível de água e a formação topográfica da região,
que em grande parte de sua superfície é muito inclinada. Mas o arado abre a terra em forma horizontal
ao sulco, o que permite a conservação da umidade e
evita a erosão dos solos, em total harmonia com seu
entorno natural. Assim, os solos se conservaram
sempre férteis pela constante reciclagem, já que se
deixava um ciclo intermediário sem se cultivar, permitindo que a terra se recuperasse com as diferentes
plantas que se reproduziam de forma natural. Propiciavam a oxigenação, enquanto que o nitrogênio, o
fósforo e outros elementos fortaleciam a terra, deixando-a pronta
para o ciclo seguinte, adubada de
forma natural. “La ecología del
p’urhépecha”, Juan Chávez Alonso, comunidade de Nurío, Michoacán, México, 2006
A mão que recolhe água é o primeiro recipiente. Os dedos de
ambas as mãos, que se cruzam
entre si, formam a primeira cesta.
Creio que assim nasce a rica evolução de toda a classe de trançados, de jogos de fios, até chegar
ao tecido. Tem-se a sensação de
que as mãos levam sua própria
vida de transformação... Pode ser
que tempos atrás tenha havido
cascas vazias, como cascas de
Jean-Francois Millet
coco, mas estas eram jogadas
fora sem maior atenção. Até que os dedos, que formam uma concavidade para recolher água, tornaram realidade a primeira fonte. Poderíamos imaginar que os objetos, em nosso sentido da palavra,
objetos aos quais corresponde um valor porque os
fizemos nós mesmos, existiram primeiro como sinais
das mãos. Parece haver um ponto de enorme importância, em que o nascimento da linguagem gestual
correspondeu ao prazer de alguém por si mesmo dar
forma aos objetos, muito antes de tentá-lo realmente. O que se representava com a ajuda das mãos,
somente mais tarde, uma vez que foi representado o
suficiente, tornou-se realidade. Palavras e objetos seriam, pois, emanação e resultado de uma única experiência, essa de representar com as mãos. Tudo o que
os humanos somos e podemos, tudo o que em um
sentido representativo constitui cultura, foi incorporado pelas transformações... A vida própria das
mãos, nesse sentido primigênio, se conservou ainda
com maior pureza na gesticulação. Elías Canetti,
Masa y poder, 1960
Assim como falam os paus da choupana entre si,
assim como estes se necessitam, assim deve ser a comunidade... O braço não diz que o dedo mínimo
não tem valor. Basta que um pedacinho se machuque
para que todo o corpo sinta a dor. Leonidas Kantule,
cacique kuna de Kuna Yala, Panamá
A pessoa não é uma unidade monolítica nem uma
pluralidade desconexa. Falar de uma pessoa singular, isolada, é uma pura contradição. O termo «pessoa» implica uma relação constitutiva, a relação expressa nas pessoas do pronome. O que se chama
pessoa não é senão um nó em uma rede de relações
(com outros nós). A pessoa é um cruzamento de caminhos. Um eu implica um tu, e enquanto esta relação se mantém implica também um ele/ela/isso como
o espaço em que a relação eu-tu se estabelece. Uma
relação eu-tu implica igualmente uma relação nós-tu
que inclui o eles... Então, o saber, o pensamento, se
constrói sempre entre vários. Não existe o saber individual. Raimon Pannikar, La trinidad, 1989
Só entre todos sabemos tudo. Juntar os momentos
em um só coração, um coração de todos, nos tornará
sábios, um pouco mais para enfrentar o que venha
pela frente. Emeterio Torres, maraka’ame wixárika,
Jalisco, México
Já existiram mulheres chamadas A que se Ergue
Forte, Ossos de Peixe, Trovão Diferente. Uma vez
existiu uma moça com o nome de Suspensórios
Amarelos. Imaginem o que terá sido colher amoras
com Céu que Baixa ou caminhar em uma tormenta
ao lado de Imune ao Raio. Com certeza alguém a
ultrapassou e sobreviveu, mas o
que ocorreu com a pessoa junto
a ela. As pessoas sempre evitaram a companhia de Passa por
Cima da Verdade quando desejavam uma resposta direta, e a
de Eu Escuto quando queriam
guardar um segredo. Radiante
tinha que pintar o rosto com
carvão para se aproximar do inimigo durante a noite. A mulher
que se chamou Parada Longe
podia ver coisas movendo-se
além do lago. As anciãs espalhavam rumores frequentes sobre
Aquela que Brinca, mas ninguém nunca se atreveu dizê-lo
na sua cara. Gelo era uma boa
jogadora de cartas. Brilhando
pelo Costado gostava de sentarHieronymus Bosch
se e conversar com Do Outro
Lado do Céu. Ambas foram amigas de Pena que Faz
Barulho, de Vento Cansado e de Nuvem Verde, filha
de Ferro Vigilante. Centro do Céu foi viúva. Coelho,
Galinha da Pradaria e Luz do Dia eram todas meninas pequenas. Ela Transumante podia andar grandes
distâncias em um só dia. Cruz Raio tinha um sorriso
poderoso. Quando Vento que Pousa e Gentil Mulher
Quieta cantavam juntas, toda a tribo escutava. Parem o Dia obteve seu nome quando através de seu
grito a tarde entrou em calma. Viga era forte, Nuvem que Toca Fundo era fraca e tísica. Miragem se
casou com Vento. Todo mundo respeitava carinhosamente Nuvem Musical, mas as crianças se escondiam de Vestida de Pedra. Erva Estirada tinha enorme gentileza na voz e no tato, mas ninguém ousava
contrariar Ela Negra de Coração.
Podemos imaginar alguma coisa dessas mulheres
pelos seus nomes. O historiador anishinaabe Basil
Johnston anota que “tal era a mística e força de um
nome, que se considerava presunçoso e nada próprio, inclusive vão, que uma pessoa dissesse o seu
nome. Era o costume que um terceiro o pronunciasse
para indentificá-la. Raramente, se acontecia, esposo
ou esposa dirigiam-se pelo nome ao outro ou outra,
em público”. “Los nombres de las mujeres”, Louise
Erdrich, poeta da tribo anishinaabe de Minesotta,
Estados Unidos
Para ser sábios e livres, é o corpo do pensamento
o que devemos cultivar, do mesmo modo como cul-
tivamos o universo que nos pergunta:
No que se parece o teu pensamento com os milhões
de estrelas que se abrigam no céu. No que se parece
teu pensamento com o vento da
tarde. No que se parece ao sol
que alumia e nos dá vida. No que
se parece a uma águia em vôo.
No que se parece às areias infinitas do deserto. No que se parece
teu pensamento com as ondas do
mar. No que se parece teu pensamento com a tempestade. No que
se parece ao raio. No que ao relâmpago. No que se parece teu
pensamento a uma barranca. No
que se parece às pedras. No que
se parece a uma montanha. No
que se parece aos mananciais. No
que se parece ao vapor que se ergue. No que se parece às nuvens
passageiras. No que se parece teu
pensamento à chuva fina. No que
se parece a um rio caudaloso. No
que se parece ao horizonte. No
que se parece teu pensamento à floresta. No que se
parece a uma árvore. No que se parece à vegetação.
No que se parece a uma flor. No que se parece à
terra reverdecida. No que se parece teu pensamento
a uma lavoura de milho plantada. No que se parece
aos grãos do milho verde. No que se parece teu pen-
17
Mas todos somos nivelados. Então dizemos que
mais vale ter a razão do que ser presidente da república. No altar do universo sempre há duas velas
acessas, a liberdade e a vida. O corpo do pensamento de que falamos sempre tem que cuidar para que
essas duas velas continuem acessas. Por isso a rebelião aos tiranos é obediência à verdade. A rebeldia
contra a injustiça não vem da corrupção do sentido
jurídico, ao contrário, parte de sua exaltação. Uma
pequena rebelião do povo, de vez em quando, é remédio necessário para o estabelecimento de um bom
governo: toda rebelião tem sua origem, vitória ou
morte, liberdade ou sepultura. “El pensamiento y sus
afinidades”, Alfredo Osuna, presidente do Conselho
de Anciãos da tribo mayo yoreme de Cohuirimpo,
Sonora, Quarto Congresso Nacional Indígena, San
Pedro Atlapulco, maio de 2006
18
Jean-Francois Millet
Para um animal, seu entorno natural é algo dado.
samento a um pântano. No que se parece a um homem e a uma mulher que se amam. Em que ao teu
esqueleto que caminha sobre a terra com o desejo de
alcançar a estrela da noite que se converte em manhã.
Em que se parece teu pensamento a teus cabelos.
Em que se parece ao teu coração que bate. Em que se
parece ao sangue que corre em tuas veias. Em que
aos teus passos. Em que aos teus braços. Em que às
tuas mãos. Em que aos teus vinte dedos. Em que se
parece teu pensamento à distância de tua voz. Em
que se parece teu pensamento aos teus lábios. Em
que se parece à tua língua. Em que se parece aos teus
olhos. Em que se parece às tuas pestanas.
Porque assim como o ouvido é o paladar da palavra, assim as pestanas são como uma ramagem desfolhada através da qual teus olhos, sem mover-se,
chegam com sua olhada até mesmo aos confins desse
universo que nos pergunta. Então nós, que andamos
pelo mundo como esqueletos encarnados desse corpo do pensamento que é a vida toda, que é a história
de todas as linhagens de onde nascem frutos, formamos a comunidade, a assembléia, que é também a
ramagem desfolhada, trançada da palavra nua, porque aos yoreme não nos agrada a palavra enfeitada,
mas sim a palavra direta, profunda e vasta que vá e
venha como essa olhada, sem necessidade de nos
movermos de nosso lugar.
Para os humanos, em que pese a crença dos técnicos,
a realidade não é algo dado; é preciso buscá-la continuamente, agarrá-la; quase me sentiria tentado a
dizer que é preciso salvá-la. Ensinam-nos a opor o
real ao imaginário, como se o primeiro estivesse
sempre à mão, e o segundo distante de nós. Essa
oposição é falsa. Os acontecimentos estão sempre ao
alcance da mão. Mas a coerência desses acontecimentos, que é ao que se refere quando se fala de realidade, é uma construção da imaginação. A realidade sempre está mais além, e isso é certo tanto para os
materialistas como para os idealistas. A realidade,
independentemente de como a interpretemos, está
do outro lado de uma tela de fórmulas. Cada cultura
produz a sua, em parte para facilitar as próprias práticas (para estabelecer hábitos) e em parte para consolidar seu próprio poder. A realidade é hostil com
os que detêm o poder. John Berger, And our faces my
heart, brief as photos, 1984
A ciência baseia-se na clara separação e oposição
entre os humanos e a Natureza e entre o sujeito que
conhece e o objeto por conhecer. Para a ciência, a
cultura é um atributo exclusivamente humano e é
precisamente a qualidade que faz aos humanos e à
Natureza diferentes...
Aqui [o mundo andino-amazônico] a conversação
não se reduz ao diálogo, à palavra, como no mundo
ocidental; aqui a conversação envolve todo o corpo.
Conversar é mostrar-se cada um reciprocamente, é
compartilhar, é a comunidade, é dançar ao ritmo que
em cada momento corresponde ao ciclo anual de
vida. A conversação assume toda a complicação do
mundo vivente. Nada escapa à conversação que é
inseparável da criação. Para os humanos, fazer a
Nós somos a terra, a água, as sementes, as florestas, o ar, nós não somos “o campo”. Consideramos
a natureza não um recurso, mas sim um bem comum
que devemos custodiar para os povos e as futuras
gerações.
Com a Terra temos constituído comunidades de
cultura, vida, arte e produção de alimentos para nós
e para os povoados e cidades que circundam os territórios onde habitamos. Somos mais de 500 mil famílias que ainda resistimos através da agricultura
camponesa e indígena, cultivando para nós, nossas
comunidades e os povoados vizinhos.
Os agricultores camponeses e indígenas oferecemos
nosso potencial para garantir com dignidade e justiça uma saída para a atual crise nacional e internacional de aumento de preço dos alimentos, provocada
pelas corporações transnacionais, como a Cargill,
Dreyfus, Bunge, Nidera, Syngenta, agd e Monsanto.
A nossa é uma forma de produção e um modo de
vida que, apesar de sua invisibilidade histórica, se
reveste de grande importância para o país, entre outras coisas pelo aporte que fazemos à soberania ali-
mentar, à geração de emprego e à fixação rural.
Não estamos nas estradas, não fazemos parte do
protesto para reduzir as retenções, porque para nós
não são o motivo de nossas angústias e de nossos
problemas. Porque antes de disputar maiores margens de lucro, ainda hoje continuamos reclamando
pelo acesso a direitos básicos elementares como a
terra, a água, o manejo dos recursos naturais, a saúde, a educação, os caminhos, em suma, queremos
justiça! Movimento Nacional Indígena e Camponês
da Argentina, junho de 2008
19
O território é o lugar que nos abriga. É nossa primeira pele. Através dela chegamos ao mundo, é o
espaço mágico pelo qual co-habitamos com uma
rica fauna e flora, que são como nossos pequenos
irmãos, que se cobrem de sol e de chuva para que,
como o arco-íris, nossa vida seja cheia de cores e de
esperança. Isso aprendemos com nossos avós. E é
patrimônio de todos. Quando alguém quer se apoderar de um pedaço de colina é quando se estraga a
convivência pacífica na comunidade, porque de forma egoísta quer se apropriar do que há anos é uma
herança de todos. O território é também o ar, esse ar
por onde agora nos chegam mensagens pelo rádio e
pela televisão, e esse ar onde o governo nos proíbe de
poder falar para que não escutemos as nossas vozes
maternas, porque dizem que temos que pedir permissão e pagar caro uma concessão. Nosso território
é a água, os rios, as praias, mas ocorre que agora os
governos dizem que têm dono e que têm um preço.
Por isso agora, nossa água, temos que comprá-la em
plástico e temos que pagar o que é nosso.
Vincent Van Gogh
chácara é cultivar plantas, animais, solos, águas, climas, é conversar com a Natureza. Mas no mundo
andino-amazônico tudo, não só os humanos, faz e
cria a chácara, tudo cria. A chácara humana, não só
a fazem os humanos, mas sim tudo, de uma ou outra
maneira, participa na criação da chácara humana: o
sol, a lua, as estrelas, o bosque, os passáros, a chuva,
o vento... Inclusive o gelo e a neve. A isso chamamos
a criação mútua. Eduardo Grillo, Projeto Andino de
Tecnologias Camponesas (Pratec), Peru
20
Nosso território é também o que muitos chamam
cultura, que é toda essa capacidade criadora que temos como povo para transformar a natureza e darlhe a cara do que é nossa identidade, nossa cosmovisão, nossas crenças, nossa mitologia e ritualidade.
Nelas está arraigado o segredo de nossa grandeza
como povos, de nosso empenho por manter viva a
memória daquilo que fizeram nossos avós e de entender que aí está arraigado nosso futuro e o dos
nossos filhos e netos. Aprendemos sempre a viver e a
falar no plural, por isso nosso território é nosso, é
comunal, tem-se que respeitar porque é sagrado,
porque não foi produto de uma compra e venda nem
foi um presente gratuito ou daqueles que nos têm
governado. O território é para o povo o que a água
é para o peixe. Somos por nosso território, vivemos
e sonhamos por esse bem tangível que tem despertado a cobiça dos poderosos. Nele se condensa nosso
passado, nosso presente e nosso futuro. É nossa raiz
e nosso fruto. Comunidades, povos e organizações
nahuas, amuzgos, tlapanecos, otomíes, zapotecas, no
Fórum Defendendo Nosso Território, Tlapa, Guerrero, dezembro de 2005
Da mesma forma que há 516 anos e ao longo destes séculos, encontram e continuarão encontrando a
resistência dos povos indígenas, que conservamos
nossas raízes e nelas cimentamos o futuro. Porque os
povos indígenas temos passado da resistência à proposta. Temos propostas que contrapomos à crise
global do neoliberalismo e à ameaça de hecatombe
que o aquecimento global, consequência de seu modelo produtivo, representa para a própria sobrevivência do planeta. Porque o mundo consumista carece de alternativas para salvá-lo.
Nossas propostas se resumem em uma: o respeito à
vida de todos: homens e mulheres, a Pachamama e
tudo o que ela abriga. Para isso lançamos mão de
nossos princípios e práticas ancestrais de equidade,
complementaridade e reciprocidade, para construir
Estados Plurinacionais Comunitários que expressem
e promovam nossa diversidade como um de nossos
maiores valores. E ofereçam o Bem Viver como garantia de sobrevivência para toda a Humanidade.
“Región Andina: Raíces de futuro”, Miguel Palacín
Quispe, Coordenador Geral da Coordenação Andina de Organizações Indígenas-CAOI 7 de novembro
de 2008
Devemos fazer surgir a possibilidade de habilitar
os “caminhos das sementes”, ou de restituir os me-
canismos pelos quais os avós se abasteciam de sementes para criar a agrobiodiversidade nativa em
suas chácaras. Percorrendo longas distâncias, os
membros comprometidos da comunidade acorrem à
convocação do Resguardo e da Assembléia Comunal ou Federacional e levam consigo um patrimônio:
suas sementes, que sendo mãe e filha, são além disso
o coração do processo produtivo, que por milênios
tem enraizado os humanos nessas terras. Tendo escolhido para esse acontecimento seus exemplares
mais especiais, manifestam-lhes seu carinho e respeito através de um ato ritual, no qual se lhes bendiz e
agradece. E ocorre uma conversação ouvida, na qual
se regeneram os saberes e “segredos” para manter
vigente esse autêntico modo de vida. Finalmente se
responsabilizam entre todos no cuidado das sementes, através do intercâmbio de dezenas de cores de
sementes, tubérculos e raízes. Doris Guilcamaigua
Riobamba, dezembro de 2008
Não é um fantasma o que percorre a Região Andina. Somos homens e mulheres com os pés bem colo-
cados na terra, porque somos parte dela e por isto a
defendemos: nossos territórios, que são ameaçados
pelas multinacionais extrativistas, pelos Estados, pelos grandes proprietários de terras aliados com o império norte-americano. Em uma palavra, defendemos nosso direito, e o direito de todos, à vida […]
Pieter Bruegel
Vincent Van Gogh
21
Imagine você um patrimônio da humanidade vigiado por biólogos e técnicos. Mas invadido por
criadores de gado protegidos pelos poderosos deste
país. Não estamos de acordo. Mas, em troca, estamos de acordo em que nos deixem decidir. Temos
mais anos de conhecer e cuidar nosso território do
que vocês. As cidades onde vocês vivem estão doentes e seus rios transportam sujeira malcheirosa. Há
mais progresso nas cidades, mas menos esperança
no futuro. Por que, então, querem vir das cidades a
nossa casa para nos impor a forma de como cuidála? Por que, ao invés de mandar em nós e menosprezar nossa casa, não têm a paciência de nos escutar?
Se escutassem a verdadeira voz de nosso povo, poderíamos ajudar um pouquinho.
A paz é a flor formosa que o povo wixárika cultiva
desde tempos antigos. Com essa flor que é a paz pedimos que se detenha a proposta e os orçamentos
econômicos para a Reserva da Biosfera. Com a flor
da paz pedimos que não tornem a utilizar o selo de
nossa organização para negociar em nosso nome nenhum projeto. Com a flor da paz pedimos novamente que nos devolvam nossas terras, que não nos imponham leis florestais que nos obriguem a prejudicar
nossas florestas. Queremos ser nós os que, de acordo
com nossas próprias formas, estabeleçamos as maneiras de proteger e conservar nosso território sagrado. Com a flor para sempre pedimos respeito. Somos
cultivadores, cantamos e rezamos pela vida. Esta é a
nossa responsabilidade, senhor presidente: plantar,
agradecer, pedir vida e saúde para todos os seres vivos do mundo. Se a sua é velar pelos direitos de todos os mexicanos, lhe exigimos justiça. “Una espinosa flor del pueblo wixárika”, carta ao presidente
Ernesto Zedillo, Jalisco, México, dezembro de
1996.
Já é noite e o mundo não dorme, existe grande pre-
ocupação por toda a fúria da natureza. No norte da
América, nascem furacões gigantes e, no centro da
América, a maré e as chuvas crescem; no sul da América, o rio Amazonas baixa de 10 a 15 metros de seu
leito normal e morrem milhões de peixes conhecidos
e desconhecidos. Em outros continentes, a terra continua sacudindo, as chuvas não param e as casas
afundam, o clima é totalmente diferente. Somadas a
tudo isso estão múltiplas enfermidades em todo o
mundo. A tv e a imprensa multiplicam as notícias
pelo mundo inteiro, as pessoas estão surpresas e não
saem de seu assombro.
Enquanto as crianças de ricos e pobres choram, e
estão desesperadas, as empresas que destroem a Terra e os governos todos juntos, com toda a tecnologia
de ponta, não têm respostas. A terra está conectada
com todo o sistema do universo, o homem ignora e,
se continuar destruindo a Terra, terá que se confrontar com os poderes de toda a natureza.
O dinheiro de todos os países mais industrializados
não serve para nada quando a Terra começa a sacudir-se, as potências mundiais se tornam crianças ante
os poderes da natureza, e a tecnologia é nada mais
que fiapos de palha que não servem para fazer pontes em rios grandes.
Perante a fúria da natureza, nada nem ninguém
pode salvar-se, nem salvar-nos. Para acalmar tudo
isso e equilibrar a natureza global da Terra, há apenas um caminho, que é: deixar de cortar as árvores,
não extrair mais petróleo nem minerais e deixar de
consumir em excesso. Sem esquecer que a mudança
não está nos governos, está mais em cada ser humano, cada ser vivo é responsável por tudo o que possa
ocorrer na Terra. Mensagem dos chefes shuar da selva amazônica equatoriana, 20 de outubro de 2005
Camile Pissarro
22
Telefonemas e cartas de amizades alarmadas me
fizeram saber da inclusão, sem me consultar, de meu
nome como integrante do Comitê de Honra do Bicentenário da Independência.
Era de se supor que, neste mundo que nos vendem
como tão civilizado, tais assuntos se consultam, requerem o convite oficial e escrito daqueles que desejam que outro participe em suas reuniões e festividades, e exigem uma igualmente formal resposta de
aceitação do convidado. Mas não, parece que a civilização não dá para tanto. Um telefonema de vários
minutos, feito sem maior antecedência para convidar para uma reunião, ao qual o convidado, eu, ofereceu um sonoro não, se entende como um sim para
participar em outro assunto: um comitê para organizar a celebração de 200 anos de uma independência
que significou muitas coisas distintas para os diferentes setores da então criada nação colombiana.
Isso me evidenciou, uma vez mais, a incrível surdez
dos governos da vez deste país ante qualquer consideração, proposta, resposta, etc. que provenha de
nós, os indígenas. Não queremos exploração protroleira em nosso território. Ah! Bom, então amanhã
enviamos a multinacional para que inicie a exploração. Queremos que nos entreguem a terra que o governo nos prometeu. Ah! Perfeito, amanhã lhes enviamos o exército para que cuide da propriedade
privada dos grandes proprietários de terras. Não estou em condições de ir à sua reunião porque tenho
compromissos importantes com minha gente. Perfeito! Então usamos seu nome e sua imagem para que
o país e o mundo acreditem que os indígenas andam
de caso com o governo.
Uns minutos antes de receber essa informação, eu
saí da Audiência Final do Tribunal Permanente dos
Povos – Capítulo Colômbia -, que ocorreu em Atanquez para a Audiência Indígena e em Bogotá para a
Audiência Final, entre 18-23 de julho, com a presença, entre outros, de destacadas autoridades e dirigentes indígenas da Colômiba e de outros países deste
continente, do Prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez
Esquivel e de destacados juristas de várias partes do
mundo, e nas quais tive a honra de atuar como parte
do júri. Nessa qualidade, pude dar-me perfeita conta, em primeira mão, de todas as atrocidades a que
meus irmãos e irmãs indígenas vêm sendo submetidos em toda a extensão deste país, por conta do Estado colombiano, dos governos da vez, e pela cumplicidade destes últimos com as companhias
transnacionais e nacionais de toda índole.
Interei-me em primeira mão, graças a um processo
de real participação democrática, de violações do direito à propriedade coletiva sobre a terra e os recursos naturais, violações do direito à autonomia e à
cultura próprias, violações do direito à participação,
violações do direito ao próprio desenvolvimento,
violação do direito à existência como povos que está
levando à extinção de 28 deles, violações do direito
à vida e à integridade física das pessoas pertencentes
aos povos indígenas, violação do direito à saúde e à
alimentação, violações dos direitos das mulheres indígenas, violações do direito à liberdade e à livre circulação, violações à propriedade privada de pessoas
pertencentes aos povos indígenas, violações do direito à justiça e à reparação, enfim, de flagrantes violações a nossa gente e a nosso Direito Maior, que se
pode ler na íntegra nos apartes correspondentes do
parecer proferido por este Tribunal.
Diante de tal avalanche de desastres que os povos
indígenas estão aguentando, dificilmente eu poderia
ter algum interesse em fazer parte de uma celebração
de algo que para minha gente só significou morte,
dor, destruição e empobrecimento de todo tipo. E
também não poderia ter aceitado participar de uma
atividade encabeçada por um governo tão anti-indigenista como o atual, que não somente foi um dos
poucos a se recusar a ratificar a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas,
mas que promulga leis como o Estatudo de Desenvolvimento Rural, desastroso para nossos povos, e
que, dentro de sua política de fazer de cada colombiano um delator, oferece recompensas por denunciar aqueles de nossos irmãos e irmãs que lutam pela
recuperação de suas terras, qualificando-os de terroristas.
Finalmente, devo expressar minha inconformidade
pelo que me parece um abuso e desrespeito por parte
desse Alto Conselho, ao incluir meu nome como parte de uma atividade do governo, sem que eu jamais
tenha aceitado fazer parte desta. Portanto, exijo que
não somente retirem oficialmente meu nome do grupo de comissionados, mas que também o limpem
publicamente, fazendo circular pelos mesmos meios
e colocando em sua página da web esta comunicação e seu anexo. Cordialmente. “Carta a María Cecilia Donado, Alta Conselheira Presidencial para o
Bicentenário da Independência”, Lorenzo Muelas
Hurtado, governador do povo misak ou guambiano,
Silvia, Cauca, Colômbia, 25 de julho de 2008
Nunca nos dão a oportunidade. Há uma distância
enorme, que parecia um degrauzinho, mas que
está além, no infinito. Eles nunca se olham, nunca
olham para baixo, e nós muito dificilmente olhamos
para cima. Isso é o que eles querem. Mas hoje pensamos que já é suficiente, queremos já ser. Olhar um
Vincent Van Gogh
L. Lesigne
pouco o horizonte porque pensamos que o horizonte
é o limite. Mas quando tu chegas lá, o horizonte está
mais adiante, mais, mais: é um limite que não tem
fim. Já não queremos ver lá para cima, queremos ver
parelho. O que queremos conseguir para nosso povo
é nossa mansão índia, nossa língua, nossos costumes. Que não morra a idéia. Que não se perca. Não
morreu. A alteraram para nós.
Mas o índio sempre foi brando. Não quer, portanto, brigar. Mas chega o momento em que dizes, não,
agora chega. Não queremos ser o objeto.
Já nos demos conta do que o governo faz: separar
os grupos; dar-nos facões, suprimentos, programas
de desenvolvimento a uns e a outros não.
É uma forma de ir separando as pessoas e de então
dizer que não funcionamos. Para isso nos fazem brigar. Porque as pessoas dizem, eu não recebi, mas esse
sim recebeu e agora nem sequer está na comunidade,
por que recebeu. Mas os do governo chamam a uma
assembleia para todos e lhes dizem, apenas dez são
os que vamos apoiar. E o restante? O restante estamos pintados.
É por isso que estamos brabos, porque não compreendemos a palavra enganosa. Não sabemos por
onde vão lançar a isca. Primeiro nos juntam e depois
lançam a isca. É como uma serpente que apenas ouvimos o ruído e logo zaz! Pegou um dos que íamos
aí porque seu veneno não é suficiente para mais. Isso
é o que faz o governo. Seu veneno não é suficiente
para mais. Só foi suficiente para dez. O demais é o de
menos. Estamos apoiando os indígenas, dizem. Estamos mandando dinheiro. Mas não queremos dinheiro. Queremos olhar o horizonte. O dinheiro é o que
nos torna vilões. O dinheiro, na melhor das circunstâncias, é suficiente para mim, e o restante? Isso é o
que não queremos. Rómulo González Rebollar, ancião mazahua de San Francisco Mihualtepec, Estado
do México, 2001
Felix Bracquemond
23
Vincent Van Gogh
Junto a um fogo se reuniram. Um ancião mohave
24
chegado do Arizona disse “há algo muito especial no
que estamos fazendo, as pessoas que não são indígenas fazem um fogaréu enorme, tão grande que têm
que se separar. Nós, no entanto, fazemos um fogo
pequeno para que todo mundo tenha que chegar
perto”. Assim, fundidos, pode-se sentir o calor humano, a mais sustentável das energias. Ao seu lado,
apertadinha, Rita, que nasceu em um barco de pesca
do povo yupik, no Alaska, explica que suas terras
não têm florestas, não têm árvores, e confiam na madeira que as correntes lhes levam. “O Universo” –
conta Rita – “é de todos, portanto não somos donos
de nada”. Emi, com as mãos brincando com suas
duas tranças de cabelo negro aymara, explica que a
natureza nos dá sinais. É necessário escutar o mauri.
O mauri é um peixe que vive nos rios do altiplano
andino e no lago Titicaca. “Quando deposito meus
ovos – diz o peixe –, primeiro observo onde posso
colocá-los. Se os coloco no centro do rio é porque
não vai cair muita chuva, e, para que meus filhotes
vivam, necessito que estejam permanentemente na
água, e o centro é o lugar mais adequado, porque é
o mais profundo. Se eu colocasse meus ovos nas bordas do rio, significaria que haveria chuvas constantes.” Neste ano, os ovos dormitam no centro do rio.
E pergunto: Essa alegria, essa esperança... De onde
lhes vêm? Respondeu uma camponesa do Cauca colombiano, sem deixar de rir: “Nos diverte muito ver
como os beija-flores podem tirar as penas do condor.
Sem penas, esse animal tão feroz não pode voar”.
“Sabidurías indígenas”, Gustavo Duch, El País, dezembro de 2008
A dignidade humana somente é possível em uma
sociedade autossuficiente. Essa dignidade míngua
quando nos encaminhamos para a industrialização
progressiva. Devemos compreender que os utensílios, móveis, instrumentos e bens desnecessários que
um homem possui reduzem sua capacidade de derivar felicidade do entorno. Por isso, Gandhi disse em
repetidas ocasiões que a produtividade deveria manter-se nos limites daquilo que é necessário. O modo
de produção da atualidade é tal que não tem limites
e aumenta sempre. Quando pergunto aos planejadores de hoje por que não compreendem esse enfoque
simples, dizem que esse caminho é muito difícil e que
as pessoas não poderiam segui-lo. Mas o que ocorre
é que esse enfoque, pleno de princípios, não admite
um sistema centralizado nem a presença de intermediários, pelo que os planejadores, os gerentes e os
políticos se incomodam. Tudo isso foi tolerado até
agora, mas chegou o momento em que devemos
compreender que avançamos para nosso suicídio se
dependemos mais e mais das máquinas. Devemos
dar-nos conta de que, para o bem do indivíduo e da
sociedade, é melhor que as pessoas conservem para
si somente o suficiente para suas necessidades imediatas. “El mensaje de la choza de Ghandi”, Ivan
Illich, 1978
Não se pode gastar sem produzir nada. Veja, quan-
ta gente se mantêm de nós? Como a cidade se sustenta, assim tão grande como é? Gastando. Não produz
nada de comer. No campo as pessoas comem o que
cultivam. Como vão se manter nas cidades quando
houver somente dinheiro e não houver quem produza o que comer?
O povo wixárika tem muitas coisas que ainda faz
de maneira tradicional. É importante pensar nas formas que a comunidade tem para defender seus recursos. Seria muito bom ver onde há água e como nós a
utilizamos. Deve-se ver o que a terra necessita. Eu
vejo agora mais possibilidade de obter mais milho.
Em alguns lugares a colheita é boa, mas as terras estão esgotadas por mestiços invasores e alguns indígenas. Para formar uma economia temos que produzir
de todas as formas, aproveitar tudo o que se tem, vidros, couros, coisas para fazer tintas, todo o necessário para produzir.
É muito importante reconhecer tudo o que já se
sabe fazer, porque na escola isso é a última coisa que
lhes interessa. Todas as maneiras de se educar e
aprender devem vir da autonomia: todas as maneiras
de produzir, todas as maneiras de se curar. Uma consulta médica te custa, no mínimo, no mínimo, 150
pesos [15 dólares], e isso sem os remédios. Já depois,
com os remédios, fica muito perverso. O bom é que
os wixaritari temos nossas próprias formas, e, se são
poucos os que ainda acreditam nelas, é por culpa do
governo que tampouco resolve nada, e agora cada
vez menos. Já ouvi que agora estão até roubando
nosso sangue para pesquisa, dizem que para eles se
curarem.
Tudo é puro roubo, e se apoiam em intermediários
e em leis que não servem para nada. Assim, está em
crise o país. Pedro de Haro, maraka’ame wixárika,
Ocota de la Sierra, Jalisco, México, 2003 l
O seguinte documento, do qual apresentamos
alguns fragmentos, provém do México, onde
as comunidades indígenas que compartilharam
com Emiliano Zapata sua idéia de autogoverno
comunitário baseado em um território camponêsindígena continuam, neste milênio, lutando
por uma vida digna. Para tanto, fazem
uma avaliação das ameaças que pesam sobre
seu futuro e fazem um diagnóstico com perspectivas
a partir de seus próprios saberes
Manifesto
dos povos
de Morelos
Desde que ouvimos
os primeiros trovões de maio
nos preparamos para plantar…
Nossas terras, morros e águas.
Em nosso princípio estão as bases
do que atualmente somos. Nós,
os povos de Morelos, somos herdeiros dos senhorios tlahuicas,
xochimilcas, e outros povos milenares, herdeiros das permanentes
lutas de resistência que datam da
Colônia e da Guerra de Independência. Somos os povos construtores da Revolução mexicana,
herdeiros diretos de Zapata e Jaramillo, povos que temos travado
uma luta incansável pela repartição da terra e da água como base
de nossa liberdade. Sempre consideramos a natureza algo tão importante quanto nós mesmos.
Nossos pais e avós sempre tiveram respeito e veneração pela terra, a água, o ar e o fogo. Somos
povos que sentimos e respeitamos
nosso milho, nossos bosques,
nossos dias e noites, com todas
suas estrelas. Desde tempos imemoriais nos acostumamos a falar
com nossas águas e venerá-las.
Buscamos nos entender com nosso sol e nossa lua. São sagrados
para nós os ventos, os pontos cardeais e todos os animais de nossas
terras que nos acompanham –
como as formigas, as cigarras, as
traças, os jumiles [percevejos],
nossos cães e nossas aves, como
os píjolos, os tecolotes [corujas] e
os guajolotes [perus].
Somos povos que respeitamos e
Abraham Mauricio Salazar
sentimos nossas necessidades,
muito especialmente a de água.
Conservamos este respeito profundo, ainda que a religião, a
economia e a cultura dominantes
não nos permitam manifestar
abertamente nossos sentimentos
de respeito pela chuva, pelos morros, por nossas terras e sementes.
A terra nos dá de comer, a água
nos dá vida e alegria, enquanto os
morros e suas selvas não somente
nos dão água, mas também pinheiros, encinos [carvalho], jacarandás, flamboyants, sumaúmas,
buganvílias, bico de papagaio, e
animais como o veado, o javali,
guaxinins, texugos, zorrilhos, tatus, lebres e coelhos, esquilos,
coiotes, doninhas, bassariscos,
gambás, morcegos, aracuãs, gralhas, urubus, abutres e corvos.
Por isso os morros são toda nossa
fortaleza.
Aprendemos a ler a neve, o frio
e o calor, os leves tremores de terra e os eclipses. Aprendemos a
interpretar o som de nossos rios
ou falar com o vento que sai dos
poços naturais e dos rios subterrâneos. Conversando com o bosque, com a chuva, com as nuvens,
com o sol e com os seres que vivem em nosso território, aprendemos a entender nossos lugares,
suas manifestações, seus fenômenos naturais, e a partir daí planejar nossas atividades do ano.
25
Entendemos e veneramos a relação com nossas terras, águas e
ares porque mantemos em pé
nossa organização coletiva e sabemos que, no dia que esta morrer, morrerão nossas relações,
nossos saberes e cada um de nossos recursos. Por isso conservamos nossas danças. Nelas não só
chamamos a água, mas nos prometemos não nos desintegrar.
beldes porque mantêm em pé os
seus deuses antigos dedicados à
veneração da água [...]
A água ainda vive no coração
destes povos quando no Dia da
Ascensão veneram-se os quatro
pontos cardeais, o céu e a terra da
pequena gruta sagrada de Coatepec, o Poço do Pai, a Santa Cruz,
as pedras em forma de mesa no
caminho real a Santa Rosa Trinta
Manter nossa palavra é a verdadeira lei que se deve cumprir.
Nossas comunidades cuidam
coletivamente de suas terras, para
isso nossos antepassados nos deixaram delimitações. Construíram
coletivamente taipas de pedra.
Para guardar e defender as terras
de roubos e do que altere nossa
paz. Nossos povos, tínhamos
guardas florestais, guardas de
gado, guardas de terras e guardas
de cercas. E por isso continuamos
indo para as nossas praças quando o badalar dos sinos avisa de
uma ameaça comum.
Temos muitos lugares sagrados,
onde colocamos cruzes e realizamos cerimônias e danças que simbolizam nosso respeito e veneração pela água, a terra, nossas
sementes e comunidades.
Desde a Colônia, povos indígenas como Xoxocotla foram povos
rebeldes, relutantes ao processo
de evangelização. Xoxocotla, Alpuyeca, Atlacholoaya e Temimilcingo continuam sendo povos re-
e em um ponto no Morro da Tartaruga. Em suas cerimônias, agradecem e fomentam coletivamente
a experiência de recebimento.
Porque dançando com os ramos
agradecem com alegria do coração a água que recebem do céu,
as montanhas, as florestas e as
terras. Não por acaso, são povos
que ainda distinguem o sabor sagrado da água viva.
Abraham Mauricio Salazar
26
A devastação atual. Há décadas
que o crescimento das insaciáveis
cidades de Cuernavaca e Cuautla,
o turismo depredador, as modernas indústrias e uma agricultura
que utiliza agressivas substâncias
químicas vêm devorando nossas
melhores terras, nossos rios e mananciais, as barrancas, as selvas
baixas e as florestas, com todas as
suas árvores e espécies. Do que
nos serviu tanta luta pela terra e a
água, se todos os nossos recursos
são saqueados e destruídos? Vemos que avança o incontrolável
desmatamento do Corredor Bio-
lógico de Chichinautzin, da área
natural supostamente protegida
do El Texcal. Que avança a urbanização sobre os numerosos mananciais da área protegida de Los
Sabinos, na nascente do rio Cuautla, o implacável desmatamento
de mais e mais barrancas em
Cuernavaca, e que a cada dia se
aprofunda e cresce a enorme ferida que a fábrica de cimento Moctezuma abre na área “protegida”
da Serra de Montenegro.
Nossas florestas, que são as esponjas que absorvem a água que
todos utilizamos, são destruídas
porque os governos federal e estadual permitem que ocorra o corte
clandestino na Serra do Chichinautzin, principalmente na região
das lagoas de Zempoala.
As barrancas, que durante séculos serviram para que abundassem
espécies de flora e fauna, se animassem os arroios e para regular o
clima, hoje estão em perigo, porque nelas se constroem grandes
unidades habitacionais, se pretende abrir estradas ou anéis rodoviários, ou porque as usam como depósitos de lixo a céu aberto, como
já ocorre em Cuernavaca.
Nossos morros e bosques, que
são nossa proteção, porque permitiram que há milhares de anos se
iniciasse comunicação e intercâmbio de produtos, idéias e tradições
entre os povos, hoje são destruídos pela voracidade das empresas
e a corrupção dos três poderes e
das três esferas de governo, que se
aproveitam privadamente do patrimônio de todos.
Somos testemunhas de como a
dissolução de nossa vida comunitária e a corrupção de nossas autoridades permitiram que se sujem de forma indescritível nossos
canais, apancles [canais de irrigação], aquedutos e jagüeyes [poças]. Também vemos como passo
a passo se perde a neve do vulcão
Popocatépetl, que se secam os
rios Amatzinac e Cuautla e que
seguem o destino do Apatlaco e o
Yautepec (que se tornaram canais
de desaguamento), e suas quedas
de água e suas barrancas se converteram em depósitos de lixo,
lugares tão contaminados que se
torna impossível viver ao seu
lado.
Os principais aquíferos do estado, em El Texcal de Tejalpa e na
Colônia Manantiales de Cuautla,
há muitos anos foram concedidos
à poderosa empresa femsa-CocaCola, que não presta contas a
ninguém da enorme quantidade
de água extraída.
As águas superficiais de Morelos estão a ponto de desaparecer
porque a urbanização selvagem
que ocorre em nosso entorno demanda um consumo cada vez
maior de água sem que se imponham restrições à perfuração de
poços da indústria ou às empresas imobiliárias, que só a saqueiam e não nos devolvem senão
podridão.
Enquanto isso, os governos municipais entendem as ineficientes
unidades de tratamento (que já
existem ou por construir) somente como oportunidades de fazer
mais negócios privados, repassando a empresas particulares o
manejo comercial dessas unidades.
Mas, apesar da escassez de água
avançar a olhos vistos, a Comissão Nacional de Água, sem ter
um verdadeiro registro histórico
dos afluentes, afirma com cinismo
que estes não diminuíram. Manipula as avaliações que estabelecem a capacidade dos aquíferos e
constrói um discurso oficial de
suposta superabundância de
água, que lhe permite autorizar
mais perfurações de poços e insultantes gastos de água às indústrias ou às unidades habitacionais, enquanto aos povos lhes
doura a pílula e lhes fala de que
há água suficiente para um contínuo crescimento rural […]
Na realidade, a água está cada
vez menos suficiente para todos.
Os povos que conservam as permissões originais de água de seus
mananciais já não conseguem
fazê-las valer, e o abastecimento
da mesma não chega aos povoados.
Assim, esse manejo oficial do recurso, que autoriza a superexploração dos aquíferos, que fornece
informação falsa para confundir
os povos, que permite a contaminação indiscriminada dos rios,
que esconde a inoperância das
unidades de tratamento e eleva as
tarifas de água, na realidade está
conduzindo com grande dolo ao
fomento dos conflitos entre os povos.
Como em muitos outros lugares
do país, a água profunda dos
aquíferos converte-se em bem privado, cada vez mais escasso, mais
cobiçado e mais caro. A água corrente de irrigação, que mal sobrevive em nossos campos, apesar de
se manter como água barata, piora de qualidade devido a uma
contaminação que destrói os animais aquáticos ou terrestres e as
plantas que crescem nas margens
dos rios. Contaminam-se e destroem-se mananciais, rios, canais e
canais de irrigação, se perdem poços artesianos, o que implica na
Abraham Mauricio Salazar
destruição de nossas formas de
alimentação, plantas medicinais,
possibilidades de higiene e de
vida, com tudo e os saberes tradicionais que a sustentam.
Nossos povos tiveram que sofrer, por anos, a imposição governamental de critérios autoritários
sobre o uso de nosso próprio território. Alpuyeca e Tetlama foram
sacrificadas durante mais de 30
anos com a operação de um depósito de lixo a céu aberto que se
converteu em uma montanha e
adoeceu, deformou e matou dezenas de habitantes até que os povos
disseram “chega” e saíram às estradas até conseguir que o fechassem. Mas agora, como as cidades
grandes “necessitam” um espaço
para jogar seu lixo, pretendem
fazê-lo outra vez, em povoados
como San Antón, Anececuilco e
La Nopalera, San Rafael, Yecapixtla, Moyotepec, Cuentepec ou
Axochiapan, sem nos levar em
conta, sem realizar verdadeiros
estudos de impacto ambiental,
mas, principalmente, sem se fazerem responsáveis pela devastação
que geram os lixos modernos em
nossas terras, nossos rios e mananciais, em nossa saúde e em
nossas vidas.
Ardilosamente chamam nossas
terras de “espaços vazios” ou,
27
AMS
28
por precaução, “improdutivos”,
porque muitos de nós ainda somos camponeses e indígenas. Eles
só veem como fazer negócio com
nossas terras, sem lhes importar
que ainda as cultivemos, as habitemos e as cuidemos.
Em suma, Morelos, em algum
momento considerado como lugar privilegiado por seu clima,
seus mananciais, suas tradições e
o calor de sua gente, hoje perde
de forma irreversível todas as
suas riquezas naturais e culturais,
enquanto os povos estamos em
piores condições econômicas,
ambientais e sociais, porque aqui
predomina a injustiça. Nosso território é visto pelos governos federal, estadual e municipais como
butim, como fonte de enriquecimento sem limites para uns quantos, enquanto somos despojados
daquilo a que temos dedicado
toda nossa vida a cuidar e compartilhar comunitariamente: a
água, a terra e o ar.
Antes, a Igreja ouvia a confissão
dos povos para poder castigar
exemplarmente àqueles que ousassem rebelar-se contra o poder
das fazendas. Como o despojo de
terra era a causa de contínuas
queixas, pedidos de justiça nunca
ouvidos, rebeliões contínuas, motins e levantes, a Igreja estava aí
pregando do púlpito e confessionário que as injustiças, despojos e
a exploração obedeciam a leis divinas. Como agora chegamos a
uma nova era de tomada dos bens
dos povos, mas a Igreja já não
pode auxiliar nessa função, são
os funcionários públicos, principalmente da Comissão Estatal de
Água e Meio Ambiente, seus engenheiros, hidrólogos, biólogos,
os que, auxiliados pelos meios de
comunicação, pregam o novo catecismo, segundo o qual a expansão ilimitada das cidades, a devastação das terras e o despojo e
esgotamento das águas “cientificamente não implicam em qual-
quer problema”. Esses funcionários obedecem ao sagrado
desígnio das leis do mercado e da
especulação global, pregando o
“progresso técnico-científico da
humanidade”.
Por isso, apesar de que no período colonial e no porfirismo éramos escravos ou peões, hoje as
pessoas encontram-se em estado
igual ou pior, porque os empresários e funcionários, em não poucas ocasiões verdadeiros delinquentes ambientais, aprovam
todo o tipo de projetos, decidem
por nós, compram terras a preços
baixos ou expropriam diretamente nossos territórios com seus recursos, exploram nosso trabalho
enquanto marginalizam uma parte cada vez maior do povo camponês e indígena de Morelos.
Os sucessivos governos da entidade aplicam o que sabemos ser a
política geral do governo federal
mexicano: destruir sistematicamente o campo e os camponeses.
Absorver nas cidades ou expulsar
por migração os povos originários, para abrir caminho à apropriação privada de seus recursos
naturais e à expansão irracional
das cidades, aos comércios, aos
hotéis, aos centros de convenções,
aos balneários privados, às estradas, aos postos de combustíveis,
aos centros comerciais, aos campos de golfe, às universidades pri-
vadas, aos aeroportos, aos aterros
sanitários ou aos depósitos de
lixo a céu aberto, aos incineradores de lixo, aos mega-viveiros comerciais, aos supermercados e às
lojas de conveniência.
Para nós, todo o referido acima
só representa uma maior escala
de destruição de nossos recursos,
nossas formas de vida, nossa cultura, nossa organização comunitária e nossa saúde.
Diante de tanta agressão, durante os últimos anos decidimos
resistir e enfrentar a devastação e
o roubo. Empreendemos lutas
históricas na defesa de nossa existência contra o despojo de nossas
terras, rios e mananciais, como
foi a luta dos povos de Tetelzingo
e Xoxocotla contra a construção
de dois aeroportos, ou a luta do
povo Tepoztlán contra um clube
de golfe; contra o desmatamento
e a destruição do patrimônio cultural de Cuernavaca, quando a
corporação Costco quis destruir
o monumento morelense conhecido como Cassino da Selva, ou a
luta da comunidade de Ocotepec
pela defesa de unidades de produção agrícola coletivas contra a
construção de um hipermercado:
Soriana.
Agora a luta é a de Xoxocotla,
Tetelpa, Santa Rosa Treinta e San
Miguel Treinta, Tetecalita, Tepetzingo, Acamilpa, Pueblo Nuevo,
El Mirador Chihuahuita, Temimilcingo, Tlaltizapán, Huatecalco
e Benito Juárez, que defendem a
sobrevivência de seus mananciais
Chihuahuita, El Zapote, El Salto
e Santa Rosa.
É a luta contra os depósitos de
lixo a céu aberto ou aterros sanitários em Alpuyeca, Tetlama, Yecapixtla, Axochiapan, Cuentepec,
Anenecuilco, La Nopalera, San
Antón, San Rafael e Puente de Ixtla. Contra os postos de abastecimento de combustíveis e estações
de gás poluentes em San Isidro,
Ocotepec, Jiutepec, Cuautla e
Cuernavaca. Contra a destruição
da barranca de Los Sauces em
Cuernavaca. Contra a construção
de anéis rodoviários, como em
Huitzilac e nas florestas do oeste
de Cuernavaca, ou contra a construção da rodovia Siglo xxi (Veracruz-Acapulco), em Popotlán,
Amilzingo, Ahuehueyo, Tenextepango, El Salitre e Las Piedras.
Contra o desmatamento geral de
nossas florestas na Serra do Chichinautzin e El Texcal.
É a luta contra a expansão irracional das unidades habitacionais
mal feitas e destruidoras, como as
edificadas nos municípios de Xochitepec, Jiutepec, Cuernavaca ou
Emiliano Zapata; contra a criminalização, o fustigamento e a perseguição de nossas lutas; contra o
despojo de terras em todo o estado e contra a privatização dos serviços públicos de água, coleta e
manejo de lixo ou o desmantelamento de nossas formas ancestrais
de produzir, trocar, de nos organizarmos e desfrutar a vida.
Nossa luta também é por defender espaços dignos de convivência
coletiva, que ainda existem em
nossas comunidades, por recuperar e aproveitar os recursos comuns, que são de todos, em benefício dos povos, por resgatar nossa
língua e tradição, por adotar formas racionais de desenvolvimento
econômico, e por governos hones-
tos, a serviço dos interesses das
comunidades e não dos empresários corruptos. Nossa luta é por
obter autonomia em nossas decisões e na forma de governarmos
como povos; por nos dar, a nós
mesmos e a nossos filhos, netos e
aos que venham depois, uma garantia de existência saudável e
sustentável.
O sonho dos povos. Os povos de
Morelos em luta esperamos com
o coração voltar a ver belo o lugar onde vivemos. Que possamos
reunir-nos – os que já se foram ao
terem sido forçados a emigrar,
com os que ainda não nascem.
AMS
Apesar de ser um sonho profundo, na realidade o estamos sonhando acordados. Começamos
a nos reunir cada vez em mais lugares para conversar comunitariamente sobre como seria possível livrar-nos da maldição do lixo
e outros contaminantes, como
conservar limpo nosso ambiente e
os recursos naturais que ainda sobrevivem, como resgatar nossos
rios, mananciais, florestas e espécies; como remediar alguns de
nossos lugares mais envenenados.
Em Morelos queremos que o crescimento demográfico das cidades
do país e de nosso estado deixe de
ser consequência da emigração
camponesa para a cidade – que
vem de políticas anticamponesas
permanentes -, nem dos processos
obrigatórios de reacomodação
que ele causa na incontrolável
mancha urbana da cidade do México. […]
Queremos que o campo não seja
mais assassinado pelas políticas
públicas federais e estaduais, e
que nossos jovens, ao invés de serem excluídos e irem embora,
possam trabalhar e tomar gosto
pelo campo. Sonhamos que nossos jovens não carreguem o peso
da permanente suspeita policial
de serem delinquentes por serem
pobres, nem que uma parte dos
mesmos esteja sendo empurrada
à autodestruição que lhes impõe
seu envolvimento dentro das milícias da economia criminal: seja
o tráfico de drogas, o contrabando, o roubo e outras formas de
corrupção inclusive legalizadas.
Apesar de nossos povos não
contarem com o apoio do Estado
para obter verdadeiros serviços
comunitários, na realidade somos
comunidades que temos recursos
materiais e humanos que nos podem permitir resgatar e atender
os sistemas de água, de lixo local,
uma agricultura sem agroquímicos, tratar nossas enfermidades e
fomentar nossos sistemas próprios de educação comunitária.
Diante da marginalização e do
despojo ilimitado de nossos bens
comuns, estamos descobrindo
que no fundo de nós mesmos está
o poder inesperado de nossos
próprios saberes locais, base para
construir nossa autonomia territorial e experiências de autogestão bem variadas.
Sonhamos coletivamente descontaminar nossos rios, barrancas
e cascatas, retomando tecnologias
apropriadas simples, que não são
caras e que, por isso, podem ficar
sob a administração, vigilância e
controle comunitário, evitando as
29
Inocencio Jiménez Chino, 1994
30
más gestões governamentais e
aproveitando, quando existem,
nossos próprios recursos financeiros provenientes de nossas próprias caixas de poupança ou de
nossas uniões de crédito, sem que
entre nós prospere o abuso dos recursos ou da mão de obra, ou o
uso faccioso, ineficiente, dilapidador e corrupto dos recursos governamentais disponíveis [...]
Neste reencontro entre nós vemos Morelos como um lugar onde
pode prosperar a agricultura de
alimentos, flores e viveiros, que
não se acabem, empobreçam ou
envenenem nossas terras e águas,
nem adoeçam ou deformem geneticamente nossos filhos. Que com
cada nova colheita se possa enriquecer a fertilidade dos solos.
Imaginamos uma exploração racional de nossas florestas e uma
produção agrícola muito produtiva e diversificada.
Queremos que as empresas imobiliárias deixem de “plantar” vergalhões e chapas de pavimento ao
invés de milho, que as grandes empresas deixem de introduzir em
nossos campos sementes transgênicas, que deixem de introduzir
toneladas de plásticos e outros lixos perniciosos na vida de nossas
cidades, que deixem de pressionar
nossas terras para produzir biocombustíveis que só estarão a serviço dos automóveis e suas megacidades [...]
Não comungamos com a idéia
de que o único “progresso” possível é o que nos propõem os empresários transnacionais ou os políticos corruptos empenhados em nos
despojar de nossas terras, florestas
e águas.
Queremos que não se percam no
esquecimento nossas raízes. Que
se resgatem, desde nossas casas e
povoados, as tradições que ainda
muitos praticam e recordam. Que
as difundamos para que possamos
voltar a entender seu sentido profundo. Como mulheres dos povos
queremos resgatar o que aprendemos com nossas mães e avós. Que
em nossos povoados possamos seguir transmitindo a sabedoria efetiva de nossos antepassados. Diante do crescimento de um consumo
cada vez mais manipulado, necessitamos resgatar a produção de
alimentos próprios, domésticos,
sãos, que não nos escravizem às
lojas de autosserviço, nem a doenças degenerativas como os diabetes, os problemas de coração ou o
câncer [...]
Nosso sonho é integral, porque
nele nos imaginamos arraigados
ao território e tecendo juntos formas novas e tradicionais de organização que nos permitam chegar
a consenso, entre todos, que os
povos possamos ter água, florestas, solos férteis e saúde, com reservas para as próximas gerações;
recuperar, como comunidades,
nossa convivência harmônica; reconstruir nossos laços; construir a
autonomia de cada povoado, baseada em nossas próprias leis e
normas sobre o manejo de água,
os solos e o lixo, respeitando a
consulta e os direitos de todos.
Queremos a justiça que a legalidade dos poderosos nos negou [...]
Nossa aspiração, como a de muitos outros povos do mundo, é
conseguir que, em Morelos, nenhum projeto de desenvolvimento
possa ser construído ou implantado sem a consulta e aprovação dos
povos, porque sabemos que é nosso direito decidir sobre nossos recursos e territórios [...]
Chegou o momento de agir. Temos que entender que hoje, se a
luta de cada povo está isolada,
está condenada à derrota, ao despojo, à destruição de sua organização comunitária e a ver morrer
cada um de seus recursos vitais e
seus sonhos. Enquanto que os povos, nos juntando, não poderemos
ser derrotados jamais. l
Zapata vive nos povos que se
organizam e se levantam
Conselho de Povos de Morelos
Xoxocotla, 29 de julho de 2007
A versão completa pode ser obtida
escrevendo para:
[email protected] ou em
http://www.ecoportal.net/content/view/
full/71751/
Ataques, políticas, resistência, relatos
Declarar o Equador livre de sementes e cultivos transgênicos foi um dos avanços mais notáveis de nossa nova
Constituição. Por esse texto votaram mais de 60% da população equatoriana. Essa foi sua vontade.
Apesar disso, em alguns rascunhos que têm circulado
sobre um projeto de lei de Soberania Alimentar, se propõe
um modelo com o qual se regulamente a única exceção
que permitiria o ingresso de sementes e cultivos transgênicos no país – isto é, casos de interesse nacional, convertendo a exceção na regra.
O mecanismo proposto pelo projeto de Lei é que seja
criada uma comissão nacional de biossegurança. Uma
empresa, digamos a Monsanto (que controla 90% das sementes transgênicas no mundo), solicita ao país o ingresso de um tipo de sementes transgênicas. A Comissão Nacional delega a alguma universidade ou centro de pesquisa que faça “avaliação de risco”, o que é estabelecido
como o único requisito e única metodologia para aceitar
ou negar os transgênicos. Se a
avaliação de riscos é positiva, o
cultivo transgênico está aceito.
Essa é a mesma metodologia
seguida pelos poucos países que
adotaram de forma massiva os
cultivos transgênicos, reproduzindo um padrão homologado
e promovido pela indústria biotecnológica para facilitar os
trâmites de entrada de suas sementes transgênicas.
A única diferença é que, de
acordo com o projeto de lei, a
comissão de biossegurança assessoraria o presidente sobre
quando aplicar a exceção estabelecida no artigo 401 da Constituição. Então, qualquer empresa pode apresentar pedidos
para introduzir transgênicos. A
exceção poderia aplicar-se em
qualquer momento se a avaliação de risco é positiva. O presidente apresentaria o caso à assembleia nacional, que terá quinze dias para se pronunciar, transcorridos os quais se aplicará o silêncio administrativo positivo. O presidente poderá pedir reconsideração se o voto for desfavorável, para a qual também se
aplicará o silêncio administrativo positivo transcorridos
quinze dias.
Então, o simples fato de uma empresa apresentar um
pedido de ingresso de sementes ou cultivos transgênicos
ao país, pode ser considerado como “um caso de interesse
nacional”. Essa interpretação do artigo 401 da Constitui-
ção seria anticonstitucional, e burlaria a vontade dos que
votamos sim no último referendo.
A avaliação de riscos foi adaptada como metodologia
pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos,
em 1983. Desde então, tem sido criticada por diferentes
âmbitos da academia e pela sociedade. Um dos problemas
é que não aborda corretamente o problema da incerteza,
um elemento que está sempre presente em qualquer informação científica, pelo que se presta a uma série de interpretações subjetivas e políticas, ainda que se apresente
como metodologia neutra e “baseada na ciência”.
Um recente relatório da Academia de Ciências norteamericana reconhece que nos Estados Unidos não existe
pessoal qualificado suficiente para fazer de maneira adequada as avaliações de riscos nem dispõem de recursos
financeiros suficientes para isso. Reconhecem que o conhecimento científico é cada vez mais complexo, assim
como as decisões baseadas em avaliações de riscos.
Levando em conta essa complexidade, é impossível que
31
AMS
O Equador se livrará dos transgênicos?
em quinze dias os membros da assembléia nacional possam tomar uma decisão responsável e completa sobre a
liberação de um organismo transgênico e sobre seus impactos no ambiente e na saúde dos equatorianos. Lembremos que a ecologia do Equador é extremamente complexa, que não há estudos científicos que tenham avaliado os
impactos dos cultivos transgênicos em um país que é centro de origem de cultivos e que tem uma imensa biodiversidade. Que, por ser um país plurinacional, deve-se ter em
consideração o impacto que esses cultivos podem ter no
Ataques, políticas, resistência, relatos
bem-estar e nas formas de vida das populações indígenas,
afrodescendentes e outras comunidades, como estabelece
a Constituição. Essa metodologia provou não ser idônea
para a tomada de decisões em matéria de transgênicos.
Por exemplo, sua aplicação na Argentina fez com que
haja, atualmente, 22 milhões de hectares de cultivos transgênicos (entre soja, milho e algodão) que, uma vez aprovados na avaliação de risco como único requisito, são
desregulamentados, o que fez com que se registrem impactos muito graves na saúde da população. Os hospitais
dos povoados pulverizados com glifosato (a soja transgênica está desenhada para que tenha resistência a esse herbicida) estão cheios de pacientes afetados, mulheres com
abortos não desejados e casos de bebês mortos. Isso é revelado no último relatório da Secretaria do Ambiente desse país.
A avaliação e a gestão de risco não são suficientes para
proteger a soberania alimentar, nem o ambiente, nem a
biodiversidade. A avaliação de risco só mede os níveis e
doses permitidos a que um organismo ou ambiente pode
estar exposto a um determinado fator de risco (neste caso
um organismo geneticamente modificado), e como responde sob distintos cenários.
32
Um informe recente do professor Barney Gordon, da Universidade de Kansas, revela que o rendimento da soja com
resistência ao glifosato é menor que os obtidos com soja
convencional, mesmo sob condições ótimas. A relação de
rendimentos entre os dois tipos de soja é de 1 a 9. Iguais
resultados foram encontrados na Argentina e Estados
Unidos, incluindo o estudo da Universidade de Arkansas
com soja transgênica e algodão e as pesquisas da Universidade de Wisconsin em quatro entidades dos Estados
Unidos. Esses estudos são apoiados pelos do Instituto Nacional de Botânica do Reino Unido, que encontrou um
rendimento menor em colza e beterraba transgênica.
A própria Monsanto reconheceu que suas variedades
transgênicas não foram desenhadas para produzir mais.
De fato, a produtividade de um cultivo não é determinada
por um só gene. Há várias características que determinam
o rendimento de um cultivo: o tipo de solos, a disponibilidade de água, os métodos de produção. Em todo caso,
os cultivos transgênicos que no momento são comercializados foram manipulados somente para serem resistentes
a insetos e a herbicidas.
Qual é então o incentivo de um agricultor para adotar
essa tecnologia? A resposta é simples. A soja RR requer
menos mão de obra, pois facilita o método de controle de
inços. Um estudo de Javier Rodríguez, da Universidade de
Buenos Aires, demonstra que aqueles que adotaram a soja
transgênica economizam drasticamente no pagamento de
mão de obra (ainda que gastem mais com insumos). Isso
tem uma forte repercussão negativa na massa salarial e no
emprego: elementos não evidenciados na avaliação de riscos.
AMS
Em nível mundial, foram adotados de forma massiva somente quatro cultivos transgênicos oleaginosos: milho,
soja, algodão e colza (ou canola). Estão destinados à produção de óleo e à alimentação animal (com exceção do
algodão que se usa como fibra).
Cerca de 49% da produção mundial de soja está destinada à ração para frangos, 25% para porcos, 3% para
aquacultura. E uns 3% para alimento de mascotes! Há
uma tendência mundial ao aumento do consumo de carne, sobretudo de frango. No México, 66% são destinados
à produção de alimentação animal, e somente 34% restantes são utilizados para nutrir 100 milhões de habitantes.
Essa mesma tendência ocorre no Equador, como resultado de uma campanha de promoção por parte das empresas que controlam essa cadeia de produção. Estamos
apostando em um tipo de produção de alimentos altamente ineficiente, pois, para produzir 100 calorias de carne de frango, são necessárias 700 calorias de grãos. E estamos apostando em uma tecnologia que converteria o
Equador em produtor de alimentos de má qualidade
(transgênicos e frangos), às custas de nossa biodiversidade. l
Elizabeth Bravo,
Acción Ecológica
Ataques, políticas, resistência, relatos
Silvia Rodríguez Cervantes, 20 de dezembro. O Secretário Geral da Con-
venção Internacional para Proteção de
Obtenções Vegetais (upov), acolheu
com beneplácito a adesão da Costa
Rica ao Convênio da upov (Ata de
1991). “As obtenções vegetais são um
dos meios mais úteis para fomentar a
produção alimentar de uma maneira
sustentável, aumentar a receita no setor agrícola e contribuir com o desenvolvimento geral”, disse seu release
para a imprensa.
para aqueles que lutamos dez anos
para que isso não acontecesse. Na
Rede de Coordenação em Biodiversidade (rcb), pensamos que as exigências para conceder direitos de obtenção têm um viés em direção à produção de um certo tipo de sementes sedentas de agroquímicos e à erosão
genética. O concedido favorece as empresas sementeiras e de agroquímicos
e é nefasto para a agricultura camponesa e a biodiversidade.
A batalha começou em 1998. Duas
legislaturas nos permitiram expor os
argumentos que concluíam na rejeição da upov-1991. A rcb propôs
uma lei alternativa, de Proteção dos
Direitos dos Fitomelhoradores, pela
qual se concediam certas vantagens
àqueles que contribuíssem com sementes adaptáveis aos ecossistemas
do país e que preenchessem as exigências culturais. O benefício nunca seria
a outorga de propriedade intelectual
(pi) sobre as sementes ou qualquer
outro material reprodutivo. O princípio de reprodução, objetivo final dos
direitos de pi, jamais poderia transformar-se em direito privado de ninguém.
A discussão desse projeto foi freada
contundentemente em 2004, quando
se deu a conhecer o texto do tlc Estados Unidos-América Central e República Dominicana, pois era exigido
dos países firmatários serem signatários do Convênio upov-1991.
AMS
Ingresso na UPOV. Foi um dia de luto
TLC destruiu a LB. Ao aprovar-se o
tlc em um discutido referendo, surgiu a possibilidade de consultar a
aprovação ou rejeição da upov em
outro referendo. Foram conseguidas
em um tempo recorde 130 mil assinaturas, mas o Tribunal Supremo de
Eleições não exigiu que a Assembleia
Legislativa suspendesse a discussão
da upov no Parlamento, a qual foi
aprovada apressadamente, pouco antes de se conseguirem todas as assinaturas para que se concretizasse a consulta popular.
A Lei de Biodiversidade da Costa
Rica (lb), aprovada há 10 anos, foi
objeto de singular sanha nos textos
O
do tlc, já que vários de seus artigos,
relacionados com a PI, iam contra as
condições impostas pelos Estados
Unidos.
Além de alterar parte do artigo 78
da lb através de uma das leis da
Agenda de Implementação do tlc, o
Executivo conseguiu outras modificações.
Os decretos 34958 e 34959 de 15 de
dezembro contêm dois regulamentos.
O 34959 modifica o artigo 78.6 sobre
conhecimento tradicional, rejeitado
anteriormente pela Sala Constitucional
por ter omitido a consulta aos povos
indígenas com o procedimento adequado. Cumpriram com esse trâmite
antes de promulgar o decreto? Claro
que não. Através de uma carta, o Ministério do Comércio Exterior (Comex)
informou à Comissão Nacional de Assuntos Indígenas (Conai) sobre o decreto, pedindo que distribuíssem cópias
às Associações de Desenvolvimento indígenas e arrecadassem assinaturas de
recebimento. Além da farsa da “consulta”, esse decreto não regulamenta,
mas sim modifica a lb, o que de acordo
com a Lei de Administração Pública
não pode ser feito. Ou permitir patentes sobre o conhecimento tradicional
não é alterar, mediante decreto, uma lei
que antes expressamente o excluía? A
isso se chama “explicá-lo” ou “regulamentá-lo”?
O decreto 34958 foi totalmente
inesperado. Modifica o artigo 80 da
lb. Tal como era, continha dois pon-
AMS
Foi imposta a propriedade
intelectual na Costa Rica
33
Ataques, políticas, resistência, relatos
tos nevrálgicos. O primeiro obrigava
a Agência Nacional de Sementes e os
Registros de Propriedade Intelectual a
consultar a Agência Técnica (at) da
Comissão Nacional de Gestão da Biodiversidade (Conagebio) antes de outorgar qualquer direito de pi que envolvesse elementos da biodiversidade.
O segundo ponto do artigo assinalava
que, com fundamentada oposição, a
at impediria registrar a patente ou
proteção da inovação nessa matéria,
se esses direitos fossem de encontro
aos objetivos da lb – os mesmos do
Convênio de Diversidade Biológica –
e se previamente não houvesse outorgado ao solicitante o certificado de
cumprimento dos requisitos para
acesso aos recursos genéticos e bioquímicos do país.
34
Agora o decreto modifica flagrantemente a lb. Mantém a consulta à at,
mas altera drasticamente suas atribuições. Se antes podia se opor à concessão de uma patente pelas razões acima expostas, agora é suficiente que o
solicitante atenda aos requisitos exigidos pela lei de patentes (novidade,
grau de invenção e aplicação industrial). A at não poderá acrescentar
nenhum outro requisito.
O tlc implica outras alterações já
efetuadas e outras mais por fazer. Falaciosamente se menciona na justificativa dos decretos que as modificações
são em nome da “soberania” do país
sobre seus recursos, quando na verdade somente acataram as ordens dos
mais altos funcionários da Secretaria
de Comércio dos Estados Unidos. Em
Contaminação
transgênica de milho no Chile
O Instituto de Nutrição e Tecnologia de Alimentos (inta),
AMS
dependente da Universidade do Chile, detectou que milhos transgênicos contaminaram geneticamente planta-
distintas visitas esses funcionários, fizeram “a solicitação expressa de modificar a Lei de Biodiversidade como
parte do processo de certificação que
os Estados Unidos realizam”, como o
informou Lorna Chacón (ver http://
www.semanario.ucr.ac.cr). O poder
executivo e a assembleia legislativa se
dobraram ante essa exigência, comprometendo a soberania do país, os
lineamentos do Estado de Direito, os
compromissos internacionais e a proteção da biodiversidade e dos saberes
associados.
A luta não acaba. A rcb estamos
preparados para seguir na luta, encontrando as brechas para que a biodiversidade cresça e as sementes e os
saberes se multipliquem livres de
amarras e condicionamentos. l
ções de milho convencional no Chile, em um estudo realizado no início do ano na região de O’Higgins. Na
amostragem identificou-se que quatro das 30 propriedades estudadas, as que se encontram contíguas às produções de sementes de organismos geneticamente modificados (ogm), deram resultados positivos para contaminação
transgênica, o que, a juízo de ecologistas, coloca em risco
as exportações em agricultura orgânica e sementes convencionais das empresas dessa região.
A situação foi considerada como de “extrema gravidade” por María Isabel Manzur, membro da Fundação Sociedades Sustentáveis, já que “esses milhos contaminados
são ilegais, pois não estão aprovados para consumo humano nem estão autorizados pelo sag para uso como semente”.
Manzur e a ecologista Sara Larraín solicitaram ao Ministério de Agricultura que realize estudos independentes
para avaliar a extensão da contaminação dos cultivos e
sementes no país, além de implementar medidas de controle da contaminação existente, a ratificação do Protocolo de Biossegurança e uma lei que proíba esses cultivos no
país, por serem, a seu juízo, perigosos para o ambiente e
para a saúde humana.
O Serviço Agrícola e Pecuário (sag) autorizou em 2007
cerca de 25 mil hectares de ogm no território nacional, a
maior parte de milho. Em paralelo, no Congresso se discute um projeto de lei, proveniente de senadores de diversos partidos políticos, que apóia a expansão dos cultivos
transgênicos e não considera sua rotulagem. l
http://www.cooperativa.cl/prontus_nots/
site/artic/20081022/
Ataques, políticas, resistência, relatos
Ao finalizar a V Conferência Internacional da Via Campesina, em Maputo, Moçambique, celebrada entre 19 e
22 de outubro, as organizações reunidas fizeram um balanço da convergência de crises mundiais que padecemos. No dito documento, a Via Campesina afirma: “Nas últimas décadas
vimos o avanço do capital financeiro
e das empresas transnacionais sobre
todos os aspectos da agricultura e do
sistema alimentar dos países e do
mundo. Desde a privatização das sementes e a venda de agrotóxicos, até
a compra da colheita, o processamento dos alimentos e seu transporte, distribuição e venda ao consumidor:
tudo já está em mãos de um reduzido
número de empresas. Os alimentos
deixaram de ser um direito de todos e
todas, para ser uma mercadoria a
mais. Nossas dietas estão se homogeneizando em todo o mundo, com alimentos que são maus para a saúde,
têm preços fora do alcance das pessoas, e estamos perdendo as tradições
culinárias de nossos povos”.
O documento prossegue: “Estamos
vendo uma ofensiva do capital sobre
os recursos naturais, como não se via
desde os tempos coloniais. A crise da
taxa de lucro do capital os lança em
uma guerra privatizadora de despojo
contra os camponeses e indígenas, um
roubo privatizador da terra, do território, das florestas, da biodiversidade,
da água e da mineração. Os povos rurais e o meio ambiente estão sendo
agredidos. O plantio de agrocombustíveis em grandes monocultivos industriais é parte desse despojo, justificado falsamente com argumentos sobre as crises energéticas e climáticas...
Agora, o surgimento da crise de alimentos e da crise financeira faz com
que tudo se torne mais agudo. A mesma crise financeira e as crises de alimentos estão vinculadas pela especulação que o capital financeiro faz com
os alimentos e a terra, em detrimento
das pessoas. O capital financeiro se
desespera, assaltando os erários públicos para suas recuperações, as
quais vão obrigar a cortes orçamentários ainda maiores nos países, e maior
pobreza e sofrimento. A fome no
mundo segue seu ritmo de crescimento. A exploração e todas as formas de
violência, em especial contras as mulheres, aumentam. Com a contração
econômica nos países ricos, cresce a
xenofobia contra os trabalhadores e
trabalhadoras migrantes, com crescente racismo e repressão, e o modelo
dominante oferece cada vez menos
oportunidades para a juventude no
campo”.
Por isso, a Via Campesina, consciente de que “o regime mundial de
alimentos controlados pelas empresas
transnacionais não é capaz de alimentar a grande massa de pessoas neste
planeta”, propõe uma agricultura
camponesa local que gere a necessária
soberania alimentar como algo verdadeiramente urgente. Renacionalizar a
produção e as reservas de alimentos,
tirar o capital especulativo desse setor, incentivar a alimentação mediante cultivos próprios e “a disseminação
de um sistema alimentar local que
não se baseie nem na agricultura industrial e nem no transporte em longas distâncias”, com o que seriam
eliminados até uns 40% das emissões
de gases de efeito estufa. “A agricultura industrial aquece o planeta, e a
agricultura camponesa esfria o planeta”, afirma no documento, mas acres-
AMS
35
AMS
A Via Campesina
frente à crise global
centa que é necessária “uma mudança
no padrão de transporte humano para
o transporte coletivo, como passo necessário “para fazer frente às crises
energéticas e climáticas”.
Também é vital uma “reforma agrária genuína e integral e a defesa do
território indígena”, uma “agricultura camponesa sustentável” que recupere “os solos degradados pela agricultura industrial, e produzir alimentos sadios e próximos para nossos
povos”.
Entre as propostas, destacam “o fim
de todos os tipos de violência contra a
mulher, incluindo a física, a social e
outras. O alcance da verdadeira paridade de gênero em todos os espaços
internos e instâncias de debates e de
tomada de decisões é compromisso
imprescindível para avançar neste
momento como movimentos de transformação da sociedade”, mas também o são o direito à semente e à
água, como fontes da vida e patrimônio dos povos. “Não podemos permitir sua privatização, nem o plantio de
sementes transgênicas ou de tecnologia Terminator”. Também se insistiu
em que devemos rechaçar a criminalização do protesto social e impulsionar a Declaração de Direitos Camponeses na onu, proposta pela Via
Campesina. O documento declara:
“Será uma ferramenta chave no sistema legal internacional para fortalecer
nossa posição e nossos direitos como
camponeses e camponesas”. l
Ataques, políticas, resistência, relatos
Declaram ilegal a tortilla feita a mão
Dizer tortilla é falar da principal forma como se come o
milho no México. Um alimento mais básico do que o pão,
que ao mesmo tempo é prato, colher, garfo e guardanapo,
há mais de mil anos pelo menos, entre os povos indígenas
camponeses, que cultivam esse milho de formas tradicionais, para depois processá-lo familiarmente com água e
cal e moê-lo com utensílios caseiros de pedra para fazer
uma massa da qual elaboram a mão a tortilla, maleável,
suave, nutritiva, saborosa e quentinha.
Mas ocorre que, invocando uma norma oficial mexicana, a nom-187-ssa 1/scfi-2002 sobre a elaboração de
massa, tortillas, torradas e farinhas preparadas, uma autoridade de extração “progressista” do município de Tala,
Jalisco, declarou ilegais as tortillas feitas a mão, “por não
atenderem às normas de qualidade”, e “a venda de tortilla
quente em armazéns, supermercados ou em qualquer outro local público ou particular que não tenha a respectiva
licença, assim como a venda de tortilla quente por vendedores ambulantes”.
AMS
36
No incidente, que não foi adiante pela queixa generalizada da população de todo Jalisco, foram invocados critérios industriais de “conservação”, “higiene” e fiscalização que estão em sintonia com a pujante indústria de
milho de grandes ou medianos estabelecimentos e suas
tortillerías mecanizadas, que utilizam milhos de duvidosa
procedência industrial (e até transgênico) ou farinhas de
milho muito processadas para elaborar uma tortilla ruim,
mas que conta com a certificação da citada nom, entre
outras coisas porque trabalham com gás e não com lenha.
De acordo com esses interesses, as senhoras que familiarmente fazem tortillas a mão e vendem de forma autônoma
suas tortillas são uma “concorrência desleal”, principalmente quando as pessoas começam a dar preferência ao
milho limpo, sem químicos e de procedência conhecida.
Mas a tendência é mundial: assim como as leis de muitos
países já certificam as sementes padronizadas e proíbem
trocar livremente as sementes próprias e seus saberes associados, a perseguição de tortilleras criminaliza seus saberes ancestrais associados ao milho na cultura camponesa mesoamericana. l
bilaterals.org:
uma ferramenta libertária
Em 2009, bilaterals.org completará cinco anos. Várias
mudanças importantes estão em curso para ampliar e melhorar o site na web, que atualmente hospeda mais de 13
mil artigos, que são consultados por 6 mil pessoas diariamente. Um aspecto importante desta reestruturação, que
estará completa antes de abril próximo, será o de incorporar o conteúdo do site associado combatiendolostlc.org
com a finalidade de que tudo esteja sob um mesmo teto.
Isso significa que bilaterals.org finalmente se converterá
em um site multilíngue, de publicação aberta multimídia.
Os ativistas que participam nas lutas contra o “livre comércio” e os acordos bilaterais de investimento (tlc) poderão carregar livremente não somente textos, mas também vídeos, áudios e fotografias de suas lutas. O novo site
dará uma maior importância às ações dos povos e à resistência, e esperamos que fique mais fácil para vocês publicarem.
bilaterals.org foi criado em 2004 como um site de publicação aberta onde as pessoas que lutam contra os tlc pudessem trocar informação e análises e fomentar a cooperação. Ainda não havia uma única ferramenta que permitisse realizar um acompanhamento da ampliação da rede
mundial de acordos de livre comércio e tratados de investimento, e suas interconexões. As campanhas contra os
acordos bilaterais encontraram dificuldades para se vincular umas às outras, para comparar anotações, compartilhar experiências e análises, desenvolver estratégias complementares mais amplas. bilaterals.org foi criado por várias organizações com o objetivo de superar esses obstáculos.
Desde então, o site converteu-se em um recurso útil para
os movimentos sociais, organizações não governamentais,
pesquisadores, jornalistas e o público em geral, como fonte de informação global, textos dos acordos, análises críticas, materiais de campanha e ferramentas educativas para
compreender, expor e mobilizar contra esses acordos.
Também auxiliou a dar mais visibilidade aos acordos bilaterais como instrumentos poderosos da privatização, do
neoliberalismo e do controle corporativo.
Apesar de ninguém possuir ou controlar bilaterals.org,
um pequeno grupo de pessoas colabora informalmente
para manter o site no dia-a-dia. Você pode se unir a esse
grupo ou simplesmente se colocar em contato enviando
alguma pergunta ou preocupação por escrito a bilaterals.
[email protected]. l
Ataques, políticas, resistência, relatos
Pronunciamento
AMS
NÃO ao Tratado de Livre Comércio com a União Européia
O presidente Rafael Correa chegou
ao governo do Equador com a promessa de uma “revolução cidadã” e
acolheu a demanda dos povos indígenas de seu país por uma nova Constituição, na qual foi consagrado o Bem
Viver. Mas tudo isso ficou no discurso e no papel, com sua decisão de seguir seus colegas da Colômbia e do
Peru e aceitar uma “negociação bilateral” do Acordo de Associação com
a União Européia, deixando a Bolívia
sozinha na defesa soberana dos países andinos e na integração sub-regional.
Não nos surpreende que Álvaro
Uribe e Alan García compitam pelo
desonroso posto de o mais servil aos
interesses da globalização neoliberal,
seus tratados de livre comércio e a
submissão às multinacionais. Mas no
caso de Rafael Correa, a quem considerávamos parte da nova tendência
política na América Latina, acabamos de nos convencer que se trata
somente de demagogia. Um fato que
mais do que comprova isso é seu afã
de aprovar uma Lei de Mineração às
costas e contra os interesses das comunidades indígenas, em cujos territórios jazem os recursos minerais.
As organizações integrantes da Coordenadora Andina de Organizações
Indígenas – caoi - rechaçamos contundentemente a negociação e a assinatura do tratado de livre comércio
com a União Européia (ue), disfarçado de “Acordo de Associação”, de-
baixo de falsas propostas de “cooperação” e de “diálogo democrático”.
Ainda antes de se iniciarem as negociações, a ue advertiu que não dará
um centavo mais de cooperação. E de
que diálogo democrático ela fala
quando se senta a negociar com governos como os da Colômbia e Peru,
que violam os direitos humanos e coletivos de seus cidadãos e criminalizam sistematicamente o protesto social?
O “Acordo de Associação” que se
negocia com a União Européia não
passa, então, da ponta de lança do
Banco Europeu de Investimentos e
das multinacionais desse continente,
principalmente extrativistas, para facilitar ainda mais o saque de nossos
bens naturais, arrasando no caminho
com os direitos trabalhistas e os direitos coletivos, em especial os territoriais dos povos indígenas.
Para cumprir esse objetivo, a União
Européia não hesita um segundo em
contradizer sua própria proposta inicial, a de uma negociação entre blocos, visando debilitar a Comunidade
Andina e fomentar sua desintegração. Uribe e García prestaram-se com
gosto a esse jogo desde o princípio, e
agora, vergonhosamente, Correa
uniu-se a eles. Mas devem saber que
não lhes será fácil impor um tratado
de livre comércio. Os povos indígenas não estamos sozinhos nessa luta,
nossas organizações articulam-se
também, cada vez mais, com os mo-
vimentos sociais da América Latina, e
os movimentos sociais europeus nos
respaldam. Coordenamos juntos a
resistência e a construção de propostas alternativas à globalização neoliberal. Por isso:
1. A caoi chama o conjunto das organizações do movimento indígena e do movimento social da Região Andina e Europa a se pronunciarem contra a negociação do tlc
com a União Européia.
2. Chama uma consulta às bases para
definir as medidas de emergência
contra a pretendida imposição
desse tlc e o fracionamento da
Comunidade Andina de Nações can.
3. Responsabilizamos a ue por dividir a can. Os conflitos que se originarem serão responsabilidade
desse tipo de acordos que corresponde a seus interesses.
4. Alertamos a União Européia e seus
governos títeres que passamos da
resistência à proposta: O tlc com a
União Européia não passará! l
Lima, 13 de novembro de 2008
Coordenadora Andina de Organizações
Indígenas, CAOI. Confederação de
Povos da Nacionalidade Kichwa do
Equador, Ecuarunari. Conselho Nacional
de Ayllus e Marcas do Qullasuyu,
Conamaq, Bolívia. Confederação
Nacional de Comunidades do Peru
Afetadas pela Mineração, Conacami.
Organização Nacional Indígena da
Colômbia, ONIC. Identidade Territorial
Lafkenche, Chile. Organização Nacional
de Povos Indígenas da Argentina,
ONPIA. Confederação Camponesa do
Peru, CCP. Confederação Nacional
Agrária, CNA. União de Nacionalidades
Aymaras, UNCA. Federação de Mulheres
de Yauli, Femucay. Associação
Nacional de Professores de Educação
Bilíngue Intercultural, Anamebi.
Conselho de Produtores de Alpaca
do Norte de Ayacucho, Copuca.
Confederação Sindical Única de
Trabalhadores e Camponeses da
Bolívia, CSUTCB. Federação Nacional
de Mulheres Bartolina Sisa da Bolívia.
[email protected] Tel:
00511-2651061
37
Ataques, políticas, resistência, relatos
Um mercado alternativo zapatista
Entre os primeiros milharais e as últimas casas do centro
de San Andrés Sakamch’em, a menos de 200 metros de
onde está enterrada a comandante Ramona, o mercado
autônomo é um evento consolidado no meio da semana e
multitudinário aos domingos, o “dia de feira” tzotzil zapatista nos Altos de Chiapas, México.
Aqui vêm, para comprar ou vender seus produtos, centenas de indígenas dos municípios autônomos vizinhos,
como San Juan de la Libertad, Magdalena La Paz e San
Pedro Polhó, bem como San Juan Chamula, Mitontic, Zinacantán, e inclusive de mais longe. A maior parte das
instalações são caixas de madeira e tábuas, modestas, mas
em muito bom estado. A construção de alvenaria, que antes de 1994 iria ser o novo mercado instalado pelo governo nunca funcionou até agora, que se destina exclusivamente aos açougues de gado e de porco.
Um imenso coração jaz à entrada da construção, onde
aos sábados funciona uma dezena de açougues, e, aos domingos, mais de 20 enchem o imóvel, oferecendo todas as
partes dos animais sacrificados, pois ossos e vísceras são
mais acessíveis às famílias pobres.
É uma tradição de San Andrés, essa da carne. Antes só se
vendia na rua, atrapalhando os carros. Agora, está sob um
teto, em um lugar fresco, iluminado e notavelmente limpo,
e sem ter que pagar pelo espaço, somente um pequeno
imposto sobre a venda. Se algo caracteriza esse dia de praça alternativo é a ausência de lixo orgânico ou inorgânico.
Durante os diálogos de San Andrés (1995-96), o prédio
serviu como albergue para as milhares de bases de apoio
do ezln que vinham cuidar de seu comando, cercado pelo
Exército federal naquelas conversações, que apesar de malogradas são históricas.
Abandonado durante uma década, finalmente cumpriu
seu propósito quando o Conselho Municipal Autônomo
de San Andrés Sakamch’en dos Pobres o ocupou e montou
as instalações com recursos distribuídos pela Junta de Bom
Governo de Oventic. Quando iniciou as atividades, muitas
bancas foram retiradas do parque central da cidade.
Diante do êxito do mercado autônomo e para poder
competir com ele, as autoridades do município oficial San
Andrés Larráinzar, minoritário, mas com orçamento in-
38
comparavelmente maior, iniciaram a remodelação da praça central, com um novo quiosque, uma torre, bancos e
iluminação. Imediatamente, e já que tudo está em obras, o
mercado tradicional (agora oficial) instala-se nas ruas ao
redor da igreja. Também muito concorrido, mas em condições pouco higiênicas, como sempre.
No mercado autônomo, sob pequenas bancas do tamanho de uma lona plástica, as camponesas exibem batatas,
mandiocas e batatas-doces ainda cobertas de terra negra.
Maçãs sem o verniz dos supermercados, cenouras enormes
como as pintadas por Diego Rivera, chuchus crus e cozidos, repolhos, cana-de-açúcar, uma variedade alucinante
de bananas verdes e amarelas. As mulheres de Zinacantán
trazem melancias e mamões, e preparam saladas de frutas
com mel “de abelhas autônomas”.
As pastoras de San Andrés e de Chamula acotovelam-se
junto a pilhas de peles de seus borregos tosquiados: mechas brancas, negras, trigueiras, grisalhas. Além disso, meadas de fio de lã crua, e as multicolores de algodão para os
huipiles*, tão diversificados e diferenciados nos distintos
municípios tzotziles, onde as bordadeiras melhor conservam a tradição e a arte.
Salões de beleza, lojas de ferragens ambulantes, ervanaria rústica. Poucas bancas de comida pronta, ainda que
seja abundante a oferta de tamales de bola (porco, frango,
erva santa) e tilápias fritas. Como se estivessem em formação, sobre o solo se alinham dezenas de bornais de rede
cheios de tortillas de diversos tamanhos e tonalidades, ou
tlacoyos. Cheira a milho crioulo e a goiabas, que são pequenas e de diferentes tipos, assim como as laranjas e as
romãs.
Diferente do mercado oficial, não há mercadoria de contrabando, nem pirataria made in Tepito, cidade do México, nem pornografia. Há toda a sorte de utensílios de cozinha popular, de peltre, plástico e barro. Atrai muita gente
uma grande banca de panelas de bom tamanho e da cor da
terra, cujas amplas bocas parecem estar presas em um bocejo.
E cestas de junco, cabaças, móveis de pinho. Produtos
das hortas familiares, como folha de “mostarda”, alface,
feijões, muricis, tejocotes. Também faixas bordadas em
roxo e azul, e feijões vermelhos do tamanho de uma moeda de um peso.
Uma discreta comissão do conselho autônomo, sob um
toldo, quase à margem do burburinho, tem o registro dos
comerciantes em um caderno Scribe. Aqui não há intermediários nem subornos, e sim uma modesta, mas sã, economia alternativa.
Se a comandante Ramona visse o mercado autônomo
nesta ensolarada manhã de domingo, poderíamos imaginá-la sorrindo. Também para isso serviu sua luta. Hermann Bellinghausen, La Jornada, 28 de outubro de 2008
AMS
l
* Blusa tradicional
Ataques, políticas, resistência, relatos
Contaminando sem cruzar o rio
Pedro Lipcovich. Finalmente, ocorreu a temida catástrofe
Ver a versão completa em Página 12, 18 de novembro de 2008
Francisco García
ambiental em Gualeguaychú: mais de 30 mil pássaros,
como pombas, papagaios e cardeais, morreram por “abuso de agroquímicos”, conforme determinaram as autoridades locais. A essa mortandade, deve-se somar a de falcões e falcões peregrinos, doninhas, raposas, gambás, tatus, gaviões e chimangos, que se intoxicaram por se alimentarem dos pássaros envenenados. A causa não veio
do outro lado do rio, mas sim deste, e o responsável não
foi um estrangeiro, mas “o mais poderoso proprietário de
terras da zona”, de acordo com uma fonte da investigação. Um funcionário provincial de Recursos Naturais denunciou “o uso de substâncias tóxicas sem controle por
engenheiros agrônomos”. A pulverização indiscriminada
produziria “intoxicação de peixes em arroios da zona”.
Em outubro passado, um homem que ia por uma estrada vicinal, perto de Gualeguaychú, espantou-se ao ver a
terra coberta de pássaros mortos. A investigação estabeleceu que “um produtor de girassol havia colocado iscas
tóxicas para combater os papagaios que comem a semente; o agrotóxico que utilizou é permitido, mas em doses
menores”, resumiu Rubén Sarli, subsecretário de Produção Agrícola e Recursos Naturais de Entre Ríos.
Conrado Gonzáles, diretor de Recursos Naturais da
província, destacou que o tóxico “não afeta só as espécies
atacadas, mas também outros animais, que as consomem;
ou seja, a maior parte da fauna está sob os efeitos de um
veneno sem controle”. O funcionário ressaltou que “é
proibida a venda de agroquímicos sem ‘receita agronômica’, comparável à receita médica, assinada por um engenheiro agrônomo que se responsabiliza pela administração o produto”.
De acordo com uma fonte dos organismos de controle
provinciais, “quem causou a mortandade é o proprietário
de terras mais poderoso da zona, dono de 13 mil hectares”, cujo nome não foi dado a conhecer.
González destacou o risco dos agrotóxicos clorados:
“Em geral são proibidos, apesar de alguns produtos conterem algo de cloro: esta substância não só tem efeito imediato, mas se acumula nos tecidos e, anos depois, causa
danos graves”. Outra toxicidade “bastante comum” se
produz “quando um avião pulveriza duas áreas separadas
por um arroio e, ao invés de parar, pulveriza o agroquímico por cima da água, o que produz intoxicação de peixes”… l
Paraguai
Intoxicados
As pessoas que trabalham em comunidades camponesas, que têm um perfil crítico e consciente identificam facilmente os enormes perigos dos agrotóxicos associados à agricultura industrial, principalmente quando o
grau de extensão do monocultivo é
tão massivo que todo o entorno fica
literalmente prisioneiro dos tóxicos
empregados no cultivo e que não deixam um espaço mínimo para sequer
respirar outro ar que não o químico.
Mas, não deixa de causar impacto
que não se dê a mínima importância
na imprensa nacional às notícias sobre intoxicações dessa natureza. Por
isso, pelo menos daqui, acusamos o
recebimento de alguns dos reiterados
casos.
Agora foi no Paraguai, onde quatro
meninos indígenas intoxicaram-se
com os químicos empregados nas
plantações de soja. Um faleceu e os
outros três foram hospitalizados em
estado grave. Ocorreu na parte ava
guarani da colônia Ka’aguy Poty de
Yasi Cañy, no departamento de Canindeyú.
De acordo com uma nota de Pablo
Medina e Sergio Escobar, “Um dos
meninos que foram atendidos no
Centro Materno Infantil de San Estanislao faleceu”. Foi o menino de 4
anos, o menor. Os outros têm 10, 8 e
6 anos. “Os pequenos provavelmente
foram intoxicados com agroquímicos
utilizados em cultivos de soja, dentro
da propriedade da empresa Centurión Hermanos, arrendada por produtores brasileiros. De acordo com os
familiares, as crianças começaram a
sentir fortes dores de estômago desde
quarta-feira passada, depois de tomar
banho em um arroio que cruza a comunidade indígena, localizada nas
imediações dos cultivos de soja de
produtores brasileiros. Inocencia Ortiz, mãe do menor, de quatro anos,
falecido, disse que inicialmente suspeitaram que poderia tratar-se de uma
peste, pelo que foram atendidos no
hospital de Capiibary (San Pedro), de
onde foram transferidos ao Centro
Materno Infantil de San Estanislao”.
Em teoria, foi aberta uma investigação a respeito, para determinar a responsabilidade dos produtores brasileiros. Que pelo menos conste que
existiu um menino chamado Cristian
David, que morreu pela atitude racista de um modelo de vida. l
39
Ataques, políticas, resistência, relatos
O Mutirão na Colômbia
40
te reencontro dos principais povos
indígenas e afrodescendentes da Colômbia, nasceu a sincronia e o reconhecimento necessários para retecer
relações apagadas, estragadas ou desfeitas pelos “senhores da guerra”,
como os povos insistem em chamar o
governo, o narcotráfico, a guerrilha e
os paramilitares, o que desencadeou
uma mobilização verdadeiramente
nacional, reprimida imediatamente
com grande brutalidade. Mas a repressão por parte das forças policialmilitares de Uribe ao plantão que
havia bloqueado a Via Panamericana
em La María Piendamó foi mais um
incentivo do que um esmagamento.
A idéia do Mutirão da Resistência
Social e Comunitária cresceu e se
converteu em uma multitudinária
marcha que, de diferentes rincões, foi
chegando a Bogotá para protestar pelos anos de guerra suja, assassinatos e
desaparecimentos. Pelos 3 milhões de
desalojados. Pelas 100 mil minas antipessoais espreitando em algum terreno, caminho ou matagal. Por isso,
10 porcento da população carcerária,
do total de 55 mil pessoas, estão ali
por razões políticas. Pelas pulverizações com glifosato e pelos incêndios
ou roubos de suas colheitas. Pelo racismo crescente. Porque sabem (chegaram a entendê-lo com mais detalhe
que os funcionários do governo e os
sabidos acadêmicos) que se trata é de
erradicá-los, invadir seus territórios
ancestrais, impor nocivos programas
de desenvolvimento, predar petróleo,
ouro, prata, esmeraldas e metais raros, e fomentar a dependência aos
Estados Unidos e seu modelo através
de um tratado de livre comércio. Este
aprofundará o poder das transnacionais, corporativizará ainda mais a
cadeia alimentar, do plantio ao comércio a varejo, criminalizará sementes nativas, invadirá de combustíveis
agroindustriais e transgênicos, roubará biodiversidade, saberes e recursos genéticos, condicionará os apoios
AMS
Ojarasca, novembro, 2008. Do urgen-
tornando-os indignos, privatizará
ainda mais a terra e quebrará os antigos enclaves indígenas levando ao
extremo a expulsão para as cidades e
para o estrangeiro, para maior poder
de paramilitares e narcotraficantes.
Na mobilização, os resguardos e comunidades estiveram dispostos a dialogar diante do país inteiro com o
presidente Uribe, mas este não pôde
encarar a enorme autoridade moral
que o repreendia com severidade.
Apesar de tudo, “a palavra andou”,
como o próprio Mutirão insiste em
qualificar sua ação, e os povos apresentaram-se ante a sociedade descrente, que em muitos casos respondeu fraternalmente.
Transcorridos os dias, o Mutirão –
um trabalho comunal -, gera uma série de aprendizagens organizativas
que haverão de dar fruto em todo o
continente. Em 21 de novembro, na
praça Bolívar, em Bogotá, quando O
Mutirão deu por encerrado o ciclo
que lhe deu coragem a sua mobilização, declarou:
O Mutirão Social e Comunitário tem vida própria, mas aqueles que o propusemos e o proclamamos temos que compartilhar o trabalho de sua criação,
para que chegue à sua idade madura e caminhe com seus próprios passos,
que são de todas e todos. Assumimos com estas palavras o compromisso
dobrado e simultâneo de proteger o Mutirão sendo parte dele, mas também
o de deixá-lo em liberdade para que caminhe na direção que nós lhe demos,
porque o que já exige esse ser que nasceu e que quer viver, esse Mutirão dos
Povos, é muito, mas muito mais do que podemos lhe oferecer a partir de
nossas capacidades particulares. Transborda-nos, e é isso o que nos entusiasma e nos preocupa. Não há o costume de Mutirão. Isso é uma verdade e um
desafio.
O Mutirão dos Povos é uma hora da verdade. Convocamos a mobilização
consciente e o aporte generoso de nossas capacidades e trabalho para proteger
e promover a luta pela vida e pela dignidade na Colômbia. Ou confrontamos
uma ordem estabelecida, para evidenciá-la e a ela resistir, ou atuamos dentro
da mesma e ajudamos a consolidá-la. A ordem não mudará com essa mobilização que hoje conclui uma etapa de um longo caminho, mas este Mutirão
dos Povos sim, é para mudá-la.
O desafio consiste em ter a sabedoria que nos permita compartilhar o sentido e não sacrificá-lo, enquanto obtemos vitórias concretas no processo até sua
transformação e até a unidade e coordenação entre os povos.
Hoje proclamamos e entregamos o Mutirão de todas e de todos para confrontar o modelo de desenvolvimento que nos impõe a cobiça, para derrubar
leis que nos despojam e nos roubam, para estabelecer a resistência e a solidariedade como mecanismo concreto para nos defendermos de um Estado sequestrado que nos persegue, para fazer cumprir a palavra que custou sangue,
para tecer um caminho em que todas e todos deixamos de ser ninguém a serviço desses poucos para converter-nos em gestores de sociedades, onde a justiça, a liberdade e a defesa da Mãe Terra sejam realidades e princípios… l
BIODIVERSIDADE
Conteúdo
SUSTENTO E CULTURAS
EDITORIAL
1
A agricultura: seus saberes e cuidados
4
Número 59, janeiro de 2009
Organizações coeditoras
Acción Ecológica
[email protected]
Acción por la Biodiversidad
[email protected]
Campaña de la Semilla
de la Vía Campesina – Anamuri
[email protected]
Centro Ecológico
[email protected]
grain
[email protected]
Grupo etc
veró[email protected]
Grupo Semillas
[email protected]
Red de Coordinación en Biodiversidad
[email protected]
REDES-AT Uruguay
[email protected]
Comitê Editorial
Carlos Vicente, Argentina
Ma. Eugenia Jeria, Argentina
Ciro Correa, Brasil
Maria José Guazzelli, Brasil
Germán Vélez, Colômbia
Alejandra Porras (Coeco-at), Costa Rica
Silvia Rodríguez Cervantes, Costa Rica
Camila Montecinos, Chile
Francisca Rodríguez, Chile
Elizabeth Bravo, Equador
Ma. Fernanda Vallejo, Equador
Silvia Ribeiro, México
Magda Lanuza, Nicarágua
Martin Drago, Uruguai
Carlos Santos, Uruguai
Administração
Ingrid Kossmann
[email protected]
Edição
Ramón Vera Herrera
[email protected]
Desenho e formatação
Daniel Ortega, Claudio Araujo
[email protected]
Amanda Borghetti (Brasil)
[email protected]
Impressão
cv Artes Gráficas ltda.
[email protected]
issn: 07977-888X
Colômbia
Lei Misak pela defesa do Direito Maior,
patrimônio do povo misak
UMA PANORÂMICA E MUITAS VISTAS
8
15
O misterioso tecido dos saberes de cada rincão
México
Manifesto dos povos de Morelos
25
ATAQUES, POLÍTICAS, RESISTÊNCIA, RELATOS
31
o Equador se livrará dos transgênicos? | foi imposta a propriedade intelectual na Costa Rica | contaminação transgênica de milho no Chile | a
Via Campesina frente à crise global | declaram ilegal a tortilla feita a
mão no México | bilaterals.org: uma ferramenta libertária | não ao tratado de livre comércio com a União Européia | um mercado alternativo
zapatista em Chiapas | Paraguai: intoxicados | contaminando sem cruzar o rio | O Mutirão na Colômbia
Os desenhos que servem de contraponto a este número, e que procuram ser uma mostra de atividades
que os coletivos realizam como parte de seu cuidado do mundo desde sempre, provêm de muitas
fontes. Incluímos trabalhos de vários artistas visuais (verdadeiros cronistas da vida comunitária),
procedentes da tradição do papel amate na região nahua do Alto Balsas, em Guerrero, México. Eles
são Abraham Mauricio Salazar (cuja obra se baseia em El ciclo mágico de los días, texto de Antonio
Saldívar, Conselho Nacional de Fomento Educativo, México, 1979); Cleofas Ramíres Celestino (de
seus desenhos e pinturas inspirados em La sirena y el pescador, Editorial Era, Ciesas, México, texto
tradicional em versão bilíngue e tradução de Jose Antonio Lópes Farfán, 1997), Inocencio Jiménez
Chino e Francisco García Simona (inspirados em La tradición del amate mexicano, Museu Mexicano
de Artes Finas, A Casa das Imagens, Chicago-México, 1997). Além disso, se reproduzem desenhos e
gravações de pintores do Renascimento ao século xix na Europa que dedicaram parte de sua obra à
vida camponesa, como Pieter Bruegel, Hieronymus Bosch, Jean-François Millet, L. Lesigné, Camile
Pissarro, Felix Bracquemond e Vincent Van Gogh. Os desenhos de Millet provêm de Dessins de JeanFrançois Millet, de Marie-Pierra Salé, Museu de Orsay, França, 2006. A todas estas obras lhes reconhecemos seu objetivo de difusão e entendimento e esperamos contribuir em sua continuação.
As organizações populares e as ongs da América Latina podem receber gratuitamente a revista.
Contatar REDES-AT Uruguai: [email protected] / http://www.grain.org/suscribe
Convidamos a que se comuniquem conosco e nos enviem suas experiências, sugestões e comentários.
Dirigir-se a Ingrid Kossmann [email protected] Os artigos assinados são de responsabilidade de seus autores. O material aqui coletado pode ser divulgado livremente, mas agradecemos
que citem a fonte. Por favor, nos enviem uma cópia para nosso conhecimento.
Agradecemos a colaboração da SwedBio e da Cooperación al Desarrollo da la Consejería
de la Vivienda y Asuntos Sociales del Gobienrno Basco. Este número dedicado aos
saberes locais recebeu o apoio expresso da Fundação Siemenpuu.
Algumas edições da revista em português talvez sejam disponibilizadas
apenas por meio eletrônico: envio para os assinantes com email
cadastrado; arquivo para baixar no site www.grain.org/biodiversidad
Biodiversidade, sustento e culturas é uma revista trimestral (quatro números
por ano). As organizações populares, as ONGS e as instituições da América
Latina podem recebê-la gratuitamente. Por favor, enviem seus dados com
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Francisco García Simona
Biodiversidade, sustento e culturas é uma publicação trimestral de informação e debate
sobre a diversidade biológica e cultural para
o sustento das comunidades e culturas locais. O uso e a conservação da biodiversidade, o impacto das novas biotecnologias, patentes e políticas públicas são parte de nossa
cobertura. Inclui experiências e propostas na
América Latina, e busca ser um vínculo entre
aqueles que trabalham pela gestão popular
da biodiversidade, a diversidade cultural e o
autogoverno, especialmente as comunidades
locais: mulheres e homens indígenas e afroamericanos, camponeses, pescadores e pequenos produtores.
O surpreendente tecido
dos saberes de cada lugar
CADERNO 26
O milho e a vida
na semeadura
testemunhos indígenas
do milho e a autonomia no México
Uma das características mais antigas dos povos originários é que nossa
vida é semear. Ser camponês não é uma atividade a mais.
Toda a nossa visão milenar e nossa maneira de nos relacionarmos com o mundo
vêm daí. Ser semeadores, desde sempre, produzir nossos próprios
alimentos, cuidando da família e da comunidade, nos faz ver o trabalho,
as relações sociais, o espaço e o tempo, de um modo particular.
Os camponeses valorizamos o comunitário e em coletivo
nos relacionamos com a terra.
A conversação com que se criou o milho é também coletiva.
Em grande parte, quem semeia para comer não necessita trabalhar por dinheiro
para aqueles que exploram seu trabalho.
Nossa relação com o semear, minuciosa e detalhada, cria vida no dia a dia
e nos faz prestar atenção a muitos sinais. Em cada uma de nossas tarefas
de cultivo completam-se ciclos diminutos que dão ordem, sentido, ao passo amplo
de outros ciclos maiores como o do sol durante o ano, em um verdadeiro
tecido de estações, climas, umidade. Os camponeses vemos detalhes
que a gente das cidades não enxerga.
Ser semeadores, camponeses, é uma espiritualidade completa, coletiva,
comunitária, que de imediato nos faz enfrentar os sistemas
que nos querem impor tantas formas de nos relacionarmos. Isso nos dá
consciência de sermos diferentes, de resistir às imposições, nos faz ver claramente
os ataques dos governos e das empresas.
Pensar que o milho é só uma “característica cultural” que se tem que
“comprender”, “tolerar”, em uma época de “multiculturalidade”; propor
que a cultura ou via camponesa é um aspecto do passado
à qual se deve guardar um nicho (se pudesse ser em um museu, melhor)
é não entender que nossa vida sem o milho, sem semeadura, não é vida.
Ser semeadores não é folclore, é nossa existência inteira.
BIODIVERSIDADE 59• JANEIRO 2009
CADERNO 26 • BIODIVERSIDADE
Criação mútua. O milho não é uma coisa, nem apenas uma mercadoria ou um
(Retirados de Sahagún)
ii
cultivo: o milho é um tecido de relações. Originou-se há uns 10 mil anos, da criação mútua, da conversação entre povos originários da Mesoamérica e algumas
gramíneas que, com o cultivo, foram se fazendo a modo dos humanos. Pouco a
pouco, aprendemos que o milho é comunidade com o feijão, a abóbora, a pimenta
e outras plantas, algumas medicinais. A essa convivência, os povos do México
chamamos milpa, e em outros lugares, chacra. Essa criação mútua entre camponeses (sobretudo as mulheres) e milho fez com que este dependa das pessoas para
cumprir seu ciclo de vida e já não ocorra de forma silvestre. É uma criação mútua
que muitos povos diferentes realizaram, por isso o milho é tão variado, e os povos
floresceram tanto na história: sua diversidade cultural e a do milho alimentam-se
mutuamente.
Sua versatilidade. O milho tem seus parentes silvestres, gramíneas não comestí-
O milho não é
uma coisa, nem apenas
uma mercadoria ou
um cultivo: o milho é
um tecido de relações. É
uma criação mútua que
muitos povos diferentes
realizaram, por isso
o milho é tão variado, e
os povos floresceram
tanto na história: sua
diversidade cultural e a
do milho alimentam-se
mutuamente.
veis que ainda são encontradas no México, Guatemala e Nicarágua, e sua permanência dá esperanças de que o milho continue vivo. O milho de nossos dias é
muito versátil: rende muito, é muito nutritivo e se adapta a variados ambientes.
É tão nobre que se espalhou por toda a Mesoamérica e grande parte da América
do Sul e do Norte. Quando se conheceu o milho no Velho Mundo, todos ficaram
estupefatos pela facilidade com que se prepara, pelo muito que rende a partir de
umas poucas sementes, o pouco que se desperdiça, pois tem “sua própria embalagem”, o tempo que dura bem armazenado, a quantidade de nutrientes que proporciona. Pode ser cultivado em muitos climas e umidades, do semideserto às
florestas, nas terras temperadas do altiplano e nas baixas tropicais. Para amadurecer, leva de quatro a treze meses. Cresce em planícies, em vales, em terrenos
férteis ou pedregosos.
Dizem que há mais de 40 raças de milho no México, e mais de 250 em toda a
América. Há mais de 16 mil variedades. Entre as centenas de milhos tradicionais
usados todos os dias pelos camponeses e indígenas do México, existem brancos,
vermelhos, amarelos, azuis, pretos, multicoloridos, com espigas pequeninas ou
que medem mais de trinta centímetros, com grãos enormes ou estreitos, com cana
grossa ou fina, mais duros ou mais moles.
As folhas e raízes são usadas como remédio (os cabelos do milho novo são usados como diurético e para dissolver cálculos renais; combinando com outras
plantas cura males hepáticos e biliares; os pistilos da flor são usados como tranquilizantes). Bebidas de milho são utilizadas como substituto para crianças que
não toleram o leite, a massa se usa para cobrir feridas; as espigas torradas, para
amadurecer abscessos.
Hoje, muitos povos dos países europeus, africanos e asiáticos dependem dele
para sobreviver. É um dos quatro cereais que contribuem com mais de 50 por
Cadernos de Biodiversidade é um folheto colecionável de Biodiversidade, Sustento e Culturas, janeiro de 2009. O texto “O milho e a vida na semeadura”
foi originalmente publicado em uma versão mais extensa, em 2005, no México, pelo Centro de Análisis Social, Información y Formación Popular, com
o apoio de GRAIN e CS Fund. É um resumo bem reduzido de intervenções de comunidades indígenas da Red em Defensa del Maíz Nativo.
Ilustrações de Abraham Maurício Salazar (El ciclo mágico de los días, Conafe, 1979), Cleofas Rodríguez Celestino (La sirena y el pescador, Ediciones
Era, Ciesas, 1997), e Francisco García Simona de Ameyaltec, que são todos artistas nahuas da região de Alto Balsas, Guerrero, México.
Organizações coeditoras
Acción Ecológica [email protected] / Acción por la Biodiversidad [email protected] /
Campanha de Sementes da Vía Campesina – Anamuri [email protected] / Centro Ecológico [email protected] /
GRAIN [email protected] / Grupo ETC veró[email protected] / Grupo Semillas [email protected] /
Red de Coordinación en Biodiversidad [email protected] / REDES-AT Uruguai [email protected]
Comitê Editorial Carlos Vicente, Argentina / Ma. Eugenia Jeria, Argentina / Ciro Correa, Brasil / Maria José Guazzelli, Brasil / Germán Vélez,
Colômbia / Alejandra Porras (Coeco-AT), Costa Rica / Silvia Rodríguez Cervantes, Costa Rica /Camila Montecinos, Chile / Francisca
Rodríguez, Chile / Elizabeth Bravo, Equador / Ma. Fernanda Vallejo, Equador / Silvia Ribeiro, México / Magda Lanuza, Nicarágua / Martin Drago,
Uruguai / Carlos Santos, Uruguai / Administração Ingrid Kossmann [email protected] / Edição Ramón Vera Herrera
[email protected] / Desenho e formatação Daniel Ortega, Claudio Araujo [email protected] / Amanda Borghetti (Brasil)
BIODIVERSIDADE • CADERNO 26
cento de toda a nutrição da humanidade. Em 18 países (12 da América Latina e
6 da África), é o principal alimento. As variedades tradicionais, em especial do
México, são a reserva mais importante para criar milho em qualquer lugar do
mundo.
O cuidado do mundo. A via camponesa no mundo ainda continua sendo pujante,
e hoje grande parte da população mundial é camponesa, e somos nós, justamente
esses vilipendiados cuidadores do mundo, que alimentamos o resto da humanidade.
Se sucumbíssemos as comunidades indígenas que cuidamos do milho escutando
sua voz milenar, o futuro da humanidade estaria ameaçado.
Há coletivos que não pedimos permissão a ninguém para sermos, pelo simples
fato de ter um cultivo do qual nos alimentamos como fruto de trabalhos comunitários, sem depender do exterior para quase nada. Isso nos permite cuidar da
nossa comunidade, nosso território, a floresta, a água, os seres vivos materiais e
espirituais, a biodiversidade e nossos saberes tradicionais e contemporâneos, que
são toda uma maneira de assumir a vida. O impulso vital que existe entre a milpa
(que é também uma comunidade) e a comunidade humana, tem um coração político e social inesgotável, por isso, depois de 10 mil anos em que nossas sementes
continuam vivas, hoje plantar milho com nossas próprias sementes é um assunto
político.
As grandes empresas
e os governos decidiram
que aqueles que
semeamos milho nativo
– com tantos saberes
que lhe dão vida –
devíamos sair
do campo, pois somente
produzíamos para
a comunidade, sem
entrar no mercado.
Abraham Mauricio Salazar
A guerra contra os camponeses. Despojados de vastas extensões de nosso territó-
rio ancestral, os povos indígenas continuamos semeando milho nas encostas e nos
terraços, às vezes em condições muito difíceis. O milho tem resistido a tudo.
As grandes empresas e os governos decidiram que aqueles que semeamos milho
nativo – com tantos saberes que lhe dão vida – devíamos sair do campo, pois
somente produzíamos para a comunidade, sem entrar no mercado. Querem que
nós, que plantamos, vamos para a cidade, para as fábricas ou para as grandes
empresas agrícolas, trabalhar semiescravizados, para assim poderem ficar com
nosso território e com todas as riquezas que aí se encontram.
Desde os anos 1950, os governos e as empresas, cúmplices, seduziram os camponeses a comprar sementes chamadas híbridas, que a princípio tinham rendimento maior, mas depois, só com muitos fertilizantes e agrotóxicos industriais,
senão rendiam muito pouco. Os solos se erodiram e se tornaram dependentes
dessas drogas, que muitos compram todos os anos para que a terra renda.
Hoje, os camponeses que têm menos possibilidade de sobreviver são aqueles que
mudaram sua semente pelas híbridas e se meteram a pagar todos os anos por
montes desses agrotóxicos, desgastando seus solos. Começou a ficar muito difícil
viver do milho, e as pessoas abandonaram muitas comunidades e perderam seu
ser mais antigo: ser semeadores. Com as tecnologias da Revolução Verde, desprezou-se a enorme sabedoria que sustenta os milhos nativos, impuseram-se formas
de cultivo e consumo muito parecidas, destruíram-se muitas maneiras que as comunidades tinham para manter, melhorar e compartilhar as sementes.
A privatização da terra abriu novamente a especulação agrária, as invasões e
expropriações, e deu entrada aos megaprojetos que hoje ameaçam qualquer comunidade rural cujo sustento seja a agricultura. Extremou-se, assim, a crescente
marginalização social no campo. Provocou-se a expulsão da mão de obra às cidades ou aos campos de diaristas, o esvaziamento dos territórios, fomentado também pela escola oficial, que põe na cabeça de crianças e jovens que estudar serve
para receber um salário e deixar de ser camponeses, ir embora. Essas ideias arruínam de vez a relação com a terra e o orgulho de produzir a própria comida.
A contaminação transgênica é o sinal mais alarmante, porque é intencional. Os
O MILHO E A VIDA NA SEMEADURA
iii
CADERNO 26 • BIODIVERSIDADE
O que fazer.
Diante da perda
de sementes nativas,
a guerra contra
os povos do milho,
a ameaça dessas
novas sementes
transgênicas
desfiguradas que
esgotam a variedade e
iv
a força do milho,
a invasão de territórios,
a deterioração dos solos
e do ambiente,
o esvaziamento
de algumas comunidades
e o fato de que muita
gente (sobretudo jovens)
já não valoriza
o ser semeadores,
é urgente repensar
com detalhe os saberes
que durante milênios
permitiram
a permanência
do milho.
transgênicos desfiguram o milho, esgotam a variedade cuidada por séculos, sua
riqueza e significado. Promovem a dependência total das indústrias, tiram da
agricultura todo o seu sentido vital.
Mas muitos mantemos nosso antigo ofício e estamos em resistência. Talvez a
chave seja o cuidado detalhado que camponesas e camponeses pusemos no assunto, mediante uma trama de saberes que hoje em dia parecem misteriosos.
1. Somente aqueles que estão diretamente envolvidos na semeadura podem fazer
algo. A solução ao problema de contaminação do milho transgênico só pode ser
atingida no longo prazo, e somos os povos camponeses e indígenas quem pode
consegui-lo, comunitariamente. É necessário promover uma prevenção e cura
naturais, próprias da relação milenar entre o milho e os humanos, e para os casos
de milhos deformados ou sementes que pareçam estranhas às comunidades,
pode-se fazer um diagnóstico de laboratório.
Repensar coletivamente que a cultura é força política, econômica, social e
ecológica, e se sustenta em nosso ser camponeses semeando o individual junto
com a comunidade, cujo coração é a assembleia.
2. Recuperar a confiança na semente que plantamos. Detectar os milhos daninhos
com a sabedoria dos velhos, abandonar os híbridos (e qualquer outra semente
alheia) regressando aos canais de confiança de intercâmbio e de cuidado das sementes. Como é um momento crítico, não basta fazer o que sempre se fez. É
necessário refletir sobre isso e aguçar a atenção sobre nosso milho, física, espiritualmente, sobre o que ocorre no seu entorno, para identificar os transgênicos e
isolá-los (despontar a espiga de uma planta pouco confiável é uma de tantas precauções). Temos que saber que semente estamos plantando, ir depurando a cada
ciclo nossa semente, assim iremos descartando o milho contaminado.
3. O desafio é recordar. Entender o que os velhos faziam para conservar a vida.
Fomentar a defesa, o reconhecimento e intercâmbio de nossas técnicas tradicionais de cultivo (agronômicas, ecológicas, medicinais e outras), incluídos os novos conhecimentos de cultivo “orgânico”, a agroecologia, a permacultura e
outras técnicas confiáveis. Juntar técnicas tradicionais e métodos alternativos
de agricultura nos dá uma ferramenta poderosa se, além disso, reforçamos a
diversidade nas áreas de plantio e o cultivo de quintais.
4. Para defender o milho se deve continuar a cultivá-lo. A maior ameaça ao milho
Abraham Mauricio Salazar
nativo é que já é pouco cultivado. É necessário diversificar as variedades, plantar todas as possíveis em cada ciclo, pois isso dá garantias contras as variações
de clima, calor e umidade. É importante plantar milho do precoce ao tardio. Se
diversificamos variedades, também devemos diversificar semeaduras e fazer um
manejo das idades do pólen, com isso diminuindo a possibilidade de que sementes não confiáveis se metam em nossas terras.
O MILHO E A VIDA NA SEMEADURA
Cleofas Ramírez Celestino
BIODIVERSIDADE • CADERNO 26
v
5. É fundamental manter nossa identidade como povos. A defesa do milho passa
por recuperar e fortalecer nossas cerimônias sagradas, o costume, nossas tradições e rituais de cuidado e permissão, como sempre. Hoje em dia existe toda
essa riqueza porque cada povo soube manter sua tradição, porque houve respeito à história e à vontade de cada comunidade e família, um respeito ao sagrado. Se queremos manter toda essa riqueza, temos que respeitar o que foi
nosso e sagrado durante toda a história.
6. É necessário manter a semente e a terra. Alguém que perde a semente tem mui-
to mais possibilidades de ter que migrar do que alguém que ainda a tem. Manter a semente significa ter boa semente para si mesmo, para a comunidade, para
a terra a qual se tem acesso. Uma semente que atenda às necessidades e gostos
de cada povo. Se os gostos se tornam uniformes ou se as necessidades ficam
similares, se perde a qualidade das sementes: sua diversidade.
Hoje há um ataque contra a biodiversidade. O povo que não tem diversidade se torna dependente. As leis estão sendo mudadas para obrigar os camponeses e indígenas a se tornarem dependentes. Para conservar a diversidade, temos
que nos perguntar como conservar a vida, o que é que a lei permite e o que é
que necessitamos, com permissão ou sem permissão da lei. Devemos nos negar
a odedecer leis que criminalizam nosso guardar e nosso intercâmbio milenar de
sementes de confiança.
7. Recuperar os saberes coletivos. O milho jamais pode ficar nas mãos de um
grupo, não importa o quão escolhido ou comprometido ele seja. É impossível
que haja uma pessoa, empresa ou instituto do Estado capaz de criar sementes
que sejam boas para todos.
A diversidade e a qualidade da semente vêm de que haja milhares e milhares
de camponeses a produzindo. Não só intercambiamos sementes, mas também
intercambiamos saberes. As sementes podem ser distintas porque todos sabemos coisas distintas. Para que haja sementes diversas, tem que haver saberes
diversos. Mas sabemos por pequenas partes, e só entre muitos se faz um saber
grande. A riqueza de variedades não acaba nunca. Cada pessoa, família ou
comunidade pela qual passa uma variedade lhe agrega ou muda algo. Não devemos esquecer jamais que todos sabemos. Quando aceitamos que alguém
nos trate como ignorantes, que não sabemos, que não temos ideias, estamos
aceitando que se percam saberes sobre as sementes.
Hoje há um ataque
contra a biodiversidade.
O povo que não tem
diversidade se torna
dependente. As leis estão
sendo mudadas para
obrigar os camponeses
e indígenas a se tornarem
dependentes. Para
conservar a diversidade,
temos que
nos perguntar como
conservar a vida, o que é
que a lei permite e
o que é que necessitamos,
com permissão
ou sem permissão da lei.
O MILHO E A VIDA NA SEMEADURA
CADERNO 26 • BIODIVERSIDADE
8. Recuperar os solos. Não só em nível das áreas de plantio, mas também em
microrregiões ou regiões mais amplas. É necessário abandonar os agroquímicos e retornar a muitos dos saberes antigos para fertilizar, e aos sistemas que
controlavam as pragas sem inseticidas ou herbicidas.
Para os povos do milho no México, a Revolução Verde foi quando tornaram os cultivos e a terra viciados em uma droga que cada vez se necessita mais
e mais, e serve menos e menos. Não somente nos defrontamos com a contaminação transgênica, mas também com a contaminação dos químicos, as superervas e a resistência das pragas que têm estragado o equilíbrio dentro das milpas.
A terra está intoxicada, mas também a água e os peixes se perderam e estão
envenenados. Na milpa, também é necessário deixar alimento para que comam
os bichinhos que podem se tornar pragas. Eles também comem e querem sobreviver, uma comunidade-milpa inclui também o que não se come ou aparentemente atrapalha e não é útil a princípio. É muito importante conviver com a
diversidade dos bichinhos.
Também é necessário frear a erosão dos solos. Recolher a água e estabilizar
a terra para evitar afundamentos e deslizes. Não podemos pensar só na área de
plantio, tem que ser comunitário, regional. Territorial. Alimentar a terra, plantar cortinas de árvores, fazer contenções de pedras nas bordas das encostas
para juntar a terra que desce com as chuvas, só podemos fazê-los comunitariamente.
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Abraham Mauricio Salazar
9. Cultivos soberanos. Ao invés de falar de autoconsumo, falemos de cultivos
soberanos. É indispensável tentarmos sair, o mais possível, da economia do
dinheiro. Produzir para vender e comprar para comer nos faz perder a soberania alimentar e de trabalho dos povos do milho. Um povo que compra semente
e que compra comida é um povo que não pode mandar em si mesmo.
Temos que nos orgulhar de plantar milho para que coma a família, a comunidade, fortalecendo os saberes dos mais velhos e as novas técnicas integrais
que concordam com esses saberes e os complementam.
Como não existem nem subsídios, nem fomento, nem preços de garantia
que respaldem a economia campesina, é vital juntar subsídios autônomos e
preços de garantia próprios (regionais), talvez fazendo um chamado aos migrantes e suas organizações. Atrever-nos a deixar de gastar em produtos industrializados que não são indispensáveis. Pensar em como regressar a mercados
menores, a formas de troca, a intercâmbios locais, para que encontremos um
modo de vida manejável, com respeito pelo todo. Por isso é importante que
tudo o que as comunidades produzam seja consumido, para que a comunidade
entenda que podemos produzir nosso próprio sustento.
10. A contaminação transgênica é intencional. De propósito. E o governo, como
já ocorreu a contaminação, pretende que seja o momentos para permitir o
O MILHO E A VIDA NA SEMEADURA
BIODIVERSIDADE • CADERNO 26
plantio de transgênicos. Ou pode propor o extermínio de variedades nativas
“contaminadas”, num discurso para erradicar a contaminação do milho. Mas
não se deve confiar no governo. Não podemos permitir que estranhos à comunidade (laboratórios, forças armadas, empresas, programas do governo) cheguem a nossas comunidades dizendo que vão nos ajudar.
11. Impedir a entrada de sementes das quais não conhecemos a história. Fechar
nossas fronteiras regionais e nacionais às sementes de fora, sejam híbridas ou
forrageiras das indústrias, ou as dos estabelecimentos governamentais. Deixemos de comprá-las e busquemos o intercâmbio e a comercialização próprios,
onde for possível. Promovamos e realizemos uma sabotagem aos pacotes de
ajuda alimentar dos quais desconhecemos a origem ou as intenções daqueles
que nos querem doar. Exijamos que se suspendam as importações agrícolas.
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12. Rechacemos as leis injustas de biossegurança, de acesso genético e de proprie-
dade industrial, e exijamos que se mantenha a moratória ao plantio de milho
transgênico, estabelecendo alianças para fortalecê-la. Rechacemos também os
programas de certificação e individualização de terras. São uma estratégia
para exterminar o milho e os seus povos. Por isso devemos defender nosso
território e o caráter comunitário, coletivo, não embargável, inalienável de
nossas terras.
13. É prioridade reforçar a autonomia, a organização comunitária. A luta pela
defesa do milho anda junto com a luta pelo território e o autogoverno. Quando a assembleia é a autoridade máxima, podemos promover estratégias agropecuárias e ambientais próprias. Em nossos estatutos e regulamentos comunais, pode-se proibir o plantio de transgênicos e estabelecer uma moratória de
fato decretada pelos povos indígenas e camponeses sobre o consumo, o plantio e o trânsito de milho transgênico. É indispensável buscar a integridade do
território indígena mediante o equilíbrio que o tem mantido como território.
O milho e a autonomia. Defender nosso milho (o âmbito sagrado onde ele é ve-
nerado, os saberes ancestrais que o tornaram possível e a margem de autonomia
que outorga semeá-lo para consumo próprio) nos permite fortalecer a luta por
nossos direitos coletivos, nosso governo comunitário e nossa história, enquanto
defendemos a água, a floresta, o território e nossos próprios projetos de bem-estar
cuidadoso e autogestionário.
Somente com milho próprio, nativo (não sua desfigurada versão transgênica),
semeado para a comunidade comer sendo o menos dependente possível, se podem
viver os âmbitos do nós: o trabalho coletivo, a justiça própria, o autogoverno, a
assembleia, em uma vida ao arrepio dos sistemas globais.
Uma das finalidades dos transgênicos é fazer que todos os camponeses tenham
que comprar sementes todos os anos, e, para assegurar isso, as empresas estão
inventando uma variedade que só se colhe uma vez e suas sementes são estéreis,
conhecida como Terminator. Se o Terminator contaminasse qualquer outra variedade, a tornaria estéril, o que significaria depender totalmente das companhias
desenhadoras e produtoras de sementes, que estão patenteando mais e mais variedades.
Torna-se urgente, então, que iniciemos um processo de reflexão que nos dê visão
de como nos atacam os planejadores e os poderes mundiais, as agroindústrias e
os governos.
Da milpa se vê o mundo inteiro. É preciso reivindicar o que significamos os
camponeses num mundo “globalizado” que quer converter em indústria inclusive
Abraham Mauricio Salazar
Somente com milho
próprio, nativo
(não sua desfigurada
versão transgênica),
semeado para
a comunidade comer
sendo o menos
dependente possível,
se podem viver
os âmbitos do nós:
o trabalho coletivo,
a justiça própria,
o autogoverno,
a assembleia, em uma
vida ao arrepio dos
sistemas globais.
O MILHO E A VIDA NA SEMEADURA
CADERNO 26 • BIODIVERSIDADE
a agricultura. O milho e outros cultivos soberanos são o coração da resistência
comunitária contra o capitalismo e seus megaprojetos. Manter nossa amorosa
relação com o milho nos permite brechas suficientes para não pedir permissão a
ninguém para ser, promovendo uma resistência real, política, social, econômica,
de saberes, dignidade e justiça. Permite-nos um autogoverno com sistemas de
cargos como serviço, isso que os zapatistas chamam de “mandar obedecendo”.
Permite a brecha necessária para construir nosso caminho próprio. Faz-nos entender a teia de relações que possibilitam a existência desse alimento-ofício-relação que é sagrado.
O povo wixárika da serra de Jalisco, no México, o coloca desta maneira:
Abraham Mauricio Salazar
viii
– Está bem: defender o milho...
– Para defendê-lo temos que curar os solos...
– Então temos que deixar de usar os agroquímicos que o desgastaram.
Voltemos a plantar à maneira antiga.
– Mas então devemos buscar que não haja deslizamentos nem erosão...
– Para isso se deve reequilibar a água...
– Para isso se deve cuidar das florestas, para que detenham a erosão,
tragam as chuvas, refresquem com bom ar a região...
– Mas para isso é necessário defender nosso território e empreender
ações a favor de nossos direitos agrários e de povo...
– Então devemos ter uma organização comunal real, onde aqueles que sejam
representantes obedeçam realmente a determinação da comunidade.
– Ou seja, reforçar o papel das assembleias comunitárias, já não só
comunais, aproximando as autoridades tradicionais e as agrárias – pois
os governos sempre tentarão separá-las.
– Então temos que ter milho, para que aqueles que assumam um cargo não
se vejam na necessidade de trabalhar, mas que continuem vinculados à
terra, como camponeses, em circunstâncias iguais as dos demais
membros da comunidade.
Então, existe uma espécie de círculo mágico: uma proposta de integralidade,
onde nada pode estar desvinculado. Trata-se da reconstituição integral das comunidades, da organização comunitária. É o cultivo do milho como coração de uma
resistência e da possibilidade de uma autonomia, usando plenamente seu território em todos os planos: desde o mais geográfico até o sagrado, na riqueza das
relações humanas e com tudo, porque tudo está vivo.
Conclusões. Defender o milho é defender a vida e a cosmovisão camponesa-in-
É o cultivo do milho
como coração de uma
resistência e da
possibilidade de uma
autonomia, usando
plenamente seu território
em todos os planos:
desde o mais geográfico
até o sagrado
O MILHO E A VIDA NA SEMEADURA
dígena. E vice-versa. Nesse caminho, a gente das cidades tem um papel que apenas começa a reconhecer. Esse processo de resistência diante das agroindústrias e
das instâncias de planejamento mundiais e seus administradores encarnados nos
governos, termina reforçando a visão com perspectivas que os povos abrem apenas há poucos anos. O futuro parece negro, pois o milho e muitos outros cultivos
estratégicos estão em risco, e, como tal, a viabilidade do âmbito rural, mas também a das cidades. Se as pessoas das grandes cidades se unirem com os camponeses em suas reflexões e sua crítica aguda, começarão a entender a importância de
plantar seus próprios alimentos. No campo, mas inescapavelmente também nas
cidades, ainda que agora nem todos o reconheçam como urgente. Enquanto isso,
apesar da violência e da criminalização, apesar de todos os ataques aos povos
indígenas e camponeses, a esperança e o milho seguem vivos.