A relação corpo, natureza e artesanato: a cultura do barro em

Transcrição

A relação corpo, natureza e artesanato: a cultura do barro em
A relação corpo, natureza e artesanato: a cultura do barro em uma
comunidade quilombola amazônica1
Marcus Venitius Bonato Filho
Mestrando do Programa de Pós-graduação em Cultura e
Territorialidades/PPCULT/UFF – Brasil
Rua Lara Vilela, 126 – sala 207 São Domingos – Niterói/RJ
(21) 3674-7460 email: [email protected]
Palavras-chave: Corporalidade. Práticas sociais e simbólicas. Cosmologia
amazônica.
Apresentação
Este trabalho configura-se como desdobramento e aprofundamento de
inquietações que foram surgindo a partir de projetos de extensão e pesquisa
que participei durante minha trajetória acadêmica. Como graduando do curso
de Produção Cultural/UFF, tive oportunidade de participar do programa de
extensão Educação Patrimonial em Oriximiná/PA, que tinha como um dos
objetivos mapear e inventariar in locus o artesanato tradicional produzido pelas
comunidades quilombolas, pelos grupos indígenas e pelas populações
ribeirinhas.
Esse
trabalho
possibilitou-me
três idas ao
município
de
Oriximiná/PA (janeiro de 2010, julho de 2010 e julho/agosto de 2011), onde
pude conhecer e desenvolver a pesquisa de extensão em diferentes
comunidades quilombolas, todas localizadas às margens do rio Trombetas,
mais especificamente, no Alto Trombetas.
O município de Oriximiná está situado no interior do estado do Pará, à
margem do rio Trombetas, um dos afluentes do rio Amazonas, na mesorregião
do Baixo Amazonas. O rio Trombetas percorre o município de norte a sul e
deságua no rio Amazonas, exercendo grande importância na vida das pessoas
e no desenvolvimento econômico da região, por ser o principal meio de
transporte e de deslocamento, tanto de pessoas quanto de mercadorias. Em
suas terras, habitam povos indígenas, comunidades remanescentes de
Esta comunicação é resultado do trabalho de conclusão de curso intitulado “A simbiose entre
o corpo, a natureza e o artesanato no processo de fabricação do artesanato do barro em uma
comunidade quilombola à margem do rio trombetas/PA, orientado pelo prof. Dr. Gilmar Rocha,
a quem agradeço enormemente por sua valiosa contribuição, amizade e ensinamentos.
1
quilombos, ribeirinhos e moradores de terra firme, além do núcleo urbano,
concentrado em Oriximiná e na vila de Porto Trombetas.
Os vários povos de diferentes matizes, espalhados pela floresta
amazônica no Brasil, compartilham uma maneira singular e tradicional de viver,
formando um grande e complexo acervo vivo. Tal complexo forma um
patrimônio natural, cultural e humano que faz desse território um lugar
privilegiado e que vem chamando a atenção de pesquisadores e multinacionais
de toda parte do mundo. É diante desse cenário que busquei investigar a
relação que envolve o corpo, a natureza e o artesanato em todo o processo
que implica a criação e a fabricação de uma peça oriunda da cultura do barro.
Para tanto, realizei um trabalho de campo entre os dias 13/09/2013 e
27/09/2013, em uma comunidade quilombola2 que ainda mantém viva uma
forma outra de ser, estar e se relacionar com o mundo.
A Comunidade do Moura está localizada à margem direita do rio
Trombetas, que, em sua parte alta, forma um grande lago conhecido como
Lago do Moura. Possui aproximadamente 130 famílias espalhadas em área de
várzea. O acesso se dá por água, em embarcações. Sua área territorial está
sobreposta à Reserva Biológica do Rio Trombetas, Flona (Floresta Nacional)
Saracá-Taquera e Floresta Estadual Trombetas. Compõe uma grande riqueza
natural de igarapés, castanhais e ilhas, além da diversidade da flora e da
fauna.
Mesmo tendo clareza de que existem outras famílias de artesãos que
praticam a cultura do barro naquele local, priorizei o diálogo com uma única
família, a família Colé Viana, o que se justifica pela possibilidade de obter um
aprofundamento analítico das questões que permearam esta pesquisa. Três
foram as figuras-chave para o trabalho de campo: o Sr. José Lopes, sua
esposa, Dona Maria Colé Viana, e o filho do casal, Rivaldo dos Santos, mais
conhecido como “Babado”. Com estas pessoas compartilhei minhas hipóteses
de pesquisa, e juntos elaboramos algumas reflexões.
A oportunidade de estar em contato com uma comunidade quilombola,
num “outro” Brasil, distinto e distante deste que vivemos nas cidades, propõe-
2
Ressalto que, apesar de o trabalho ter se concentrado em duas semanas, meu contato com
essa comunidade e, em especial, com a família Colé Viana, foco de minhas observações, já
tinha acontecido durante minhas três idas anteriores à Oriximiná.
nos, de imediato, é uma transformação “cosmocorpórea”. A tarefa de colocar
os óculos e, a partir de então, pensar outras corporalidades só foi, e acredito
ser possível, por uma disponibilidade e vontade mútua entre o pesquisador e
os sujeitos pesquisados. Não podemos deixar de ressaltar que, antes de
falarmos de um pesquisador e/ou sujeito, ou vice-versa, estamos falando de
corpos que, em contato com outros corpos, estabelecem relações sociais,
políticas, psicológicas, estéticas etc., capazes de criar e recriar diferentes
formas que se adaptam num determinado tempo e espaço.
Por que mantinham a cultura do barro? Qual o papel do corpo nessa
prática? Quais implicações que essa cultura do barro exerce para mantê-los
conectados à natureza? Qual o valor simbólico que uma peça de barro pode
carregar? Estas foram questões iniciais a partir das quais iniciamos nossas
conversas. As possíveis respostas a essas questões foram sendo desveladas a
partir do momento em que consegui “afetá-los”3, ou seja, a partir de suas
próprias experiências e entendimento de mundo, começaram a pensar e tecer
teorias sobre suas próprias práticas. Esta estreita relação entre os campos, do
ser/fazer e o do pensar sobre, “[...] bombardeado por intensidades específicas
(chamemo-las de afetos)” (FAVRET-SAADA, 2005, p. 159), acredito ter sido de
fundamental importância para “encontrar” o caminho metodológico desta
pesquisa.
Dessa maneira, busco dar forma a um rico material etnográfico
construído ao longo dos dias e das viagens e que excedem o tempo
cronológico da minha estada em suas casas. Neste material, os autores são os
próprios sujeitos pesquisados4 e, como em um quebra-cabeça, meu esforço é
tentar juntar as peças.
“‘Ser afetado’ é expressão que se encontra com certa frequência no discurso antropológico
mais recente, em particular quando se trata de descrever o estilo de experiência implicado no
trabalho de campo. Foi precisamente aí que Jeanne Favret-Saada concebeu essa noção [...]”
(BARBOSA NETO, 2012, p. 235). Nesse sentido, “‘Ser afetado’ concerne a ‘uma dimensão
central do trabalho de campo’, à experiência de habitar um ‘outro lugar’, de ser ‘tomado’ pelas
suas ‘intensidades específicas’, as quais, em geral, ‘não são significáveis’” (FAVRET-SAADA,
2005, p. 155, 159 apud BARBOSA NETO, 2012, p. 236).
4
Nesse sentindo, para Geertz (1973, p. 7), [...] o que chamamos de nossos dados são
realmente nossa própria construção das construções de outras pessoas, do que elas e seus
compatriotas se propõem – está obscurecido, pois a maior parte do que precisamos para
compreender um acontecimento particular, um ritual, um costume, uma idéia ou o que quer que
seja está insinuado como informação de fundo antes da coisa em si mesma ser examinada
diretamente.
3
Desenvolvimento do tema e discussão sobre corpo-natureza-artesanato
em uma comunidade quilombola amazônica
Algumas áreas do conhecimento, como as artes, a filosofia, a sociologia
e, em especial, a antropologia, vêm contribuindo para que o corpo seja
estudado não apenas como sinônimo de fisiologia ou de anatomia, mas,
também, a partir da compreensão que envolve uma perspectiva cosmológica.
O corpo, pensado como objeto relacionado à natureza e ao meio em que está
inserido, carrega valores simbólicos responsáveis pela construção cultural de
um determinado povo e de sua identidade.
Nessa perspectiva, os estudos de Marcel Mauss (2003), em As técnicas
corporais, apresentam-nos preciosas formulações teóricas sobre o corpo como
operador e receptor de sentidos e significados simbólicos no processo de
construção da pessoa e de sua relação com o mundo. Em suas palavras o
corpo é o “[...] primeiro e o mais natural instrumento do homem. O mais
exatamente, sem falar de instrumento, o primeiro e mais natural objeto técnico,
e ao mesmo tempo meio técnico do homem é seu corpo” (p. 217).
Mauss (2003) reforça a noção de corpo como instrumento técnico do
homem, ao refletir sobre as técnicas corporais, e acaba por contribuir com uma
nova forma de se pensar o significado do corpo. Entende-se por técnicas
corporais, “‘[...] os atos tradicionais eficazes fabricados ao longo da história e
transmitidos por meio da educação, principalmente, às crianças e aos jovens”
(ROCHA, 2011, p. 97). Para Mauss (2003), as técnicas corporais são
apreendidas, transmitidas e ensinadas de acordo com a tradição, pois “[...] não
há técnica e tampouco transmissão se não há tradição” (p. 217). Vale também
destacar que, para o autor, técnica não está restrita a algo mecânico ou
tecnológico, pois para ele técnica implica uma prática, uma ação, enfim, numa
fabricação de gestos5 apreendidos e produzidos por um corpo.
5
A gestualidade compartilhada é um indicativo de que as relações humanas se dão para além
das palavras. Os gestos fazem parte de um sistema simbólico de expressão e comunicação
que fazem do corpo um importante instrumento de contato com o outro e, portanto, de produtor
e produto de cultura.
Sendo assim, o corpo, ao se aproximar do entendimento de fato social
total6, opera como um canal de influências estéticas, políticas, sociais,
psicológicas, etc., o que permite pensar o homem como um ser total, o qual
atribui sentidos a si mesmo e ao mundo e, portanto, que produz cultura.
Para Mauss, o ‘homem total’ é, antes de tudo, o homem concreto e,
como tal, deve ser visto enquanto ser biológico, psíquico e sóciohistórico. Curiosamente, sua produção em torno d’As técnicas
corporais, da Expressão obrigatória dos sentimentos e de Uma
categoria do espírito humano – a noção de pessoa, a noção do ‘eu’,
de certa forma, parece sintetizar essa tridimensionalidade constitutiva
do homem enquanto corpo, sentimento e racionalidade. Contudo, não
pode esquecer o fato, talvez, mais importante, do homem enquanto
ser histórico. Somente à luz de uma abordagem interdisciplinar é que
se pode apreender o homem em sua totalidade [...] (ROCHA, 2011, p.
95).
A partir do século XX, especialmente após os anos 1960, importantes
sociólogos, filósofos e antropólogos estiveram atentos a uma compreensão
rigorosa das diferentes e variadas formas de corporeidade sugeridas por um
corpo inserido num tempo-espaço e a seu valor simbólico como fenômeno
social e objeto de representação. Em outras palavras, o corpo passou a ser o
fio condutor para se tentar compreender a relação do homem e seu
envolvimento no mundo. Em A sociologia do corpo, Le Breton (2006, p. 11-12)
afirma:
O final dos anos 1960 assistiu, logicamente de modo mais
sistemático, a manifestação de abordagens que levavam em
consideração, sob diversos ângulos, as modalidades físicas da
relação do ator com o meio social e cultural que o cerca. O corpo faz,
assim, sua entrada triunfal na pesquisa em ciências sociais: J.
Baudrillard, M. Foucault, N. Elias, P. Bourdieu, E. Goffman, M.
Douglas, R. Birdwhistell, B. Turner, E. Hall, por exemplo, encontram
frequentemente, pelos caminhos que trilham, os usos físicos, a
representação e a simbologia de um corpo que faz por merecer cada
vez mais a atenção entusiasmada do domínio social. Nos problemas
que esse difícil objeto levanta, eles encontram uma vida inédita e
fecunda para a compreensão de problemas mais amplos, ou, então,
para isolar os traços mais evidentes da modernidade. Outros, para
citar alguns exemplos na França, como F. Loux, M. Bernar, J. M.
Berthelot, J. M. Brohm, D. Le Breton ou G. Vigarello, dedicam-se de
modo mais sistemático a desvelar as lógicas sociais e culturais que
se imbricam na corporeidade.
Em seus estudos sobre a sociologia do corpo, Le Breton (2006, p. 7)
dedica-se à “[...] compreensão da corporeidade humana como fenômeno social
e cultural, motivo simbólico, objeto de representações e imaginário”. Para o
6
O fato social total é um fato privilegiado que permite ter a apreensão da totalidade cultural, da
sociedade e do que ela permite enquanto práticas sociais e trocas simbólicas entre os homens.
autor, toda e qualquer relação humana é tecida pelo corpo. É por meio da
corporeidade que o homem faz a ponte entre si e o mundo e, assim, cria ações,
gestos, técnicas, relações, expressões simbólicas etc. Em suas palavras, “O
corpo é o vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é
construída: [...]. Antes de qualquer coisa, a existência é corporal” (p. 7).
Do corpo nascem e se propagam as significações que fundamentam
a existência individual e coletiva; ele é o eixo da relação com o
mundo, o lugar e o tempo nos quais a existência toma forma através
da fisionomia singular de um ator. Através do corpo, o homem
apropria-se da substância de sua vida traduzindo-a para os outros,
servindo-se dos sistemas simbólicos que compartilha com os
membros da comunidade (LE BRETON, 2006, p. 07).
Os estudos sobre o corpo sugerem um legado de interpretações
mediante as quais, dada sua complexidade e magnitude, apontam que ele está
muito além de ser entendido e/ou compreendido em sua totalidade. A
etnografia, ao adentrar em diferentes culturas, com outras “visões de mundo”,
tem contribuído para se perceber o papel do corpo e suas inúmeras
possibilidades de interpretações, o que o torna um objeto complexo de análise
e reflexão. Mauss (2003), em seus estudos, já apontava para a importância de
se realizar uma etnografia para compreender como diferentes sociedades
“servem-se de seus corpos” (p. 211). O corpo é o organismo vivo que nos
permite ver o que vemos, fazer o que fazemos, ser o que somos, e, nessa
constância, dar os primeiros passos para sentir, experimentar e estabelecer
relação com outros corpos presentes no mundo.
Avançando rumo a outras considerações, nessa mesma direção, é
possível recorrer, entre outras, às contribuições do “perspectivismo ameríndio”
de Eduardo Viveiros de Castro (1996), em seu ensaio Os pronomes
cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. Neste, o autor revela, a partir de
uma extensa etnografia sobre a Amazônia, um legado de observações
importantes sobre o universo amazônico, e como diferentes seres, humanos e
não humanos, se veem e são vistos a partir de um corpo. Esse “modo de ver”
ou “como se vê” diz de um terreno cósmico em que “[...] o mundo é habitado
por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não humanas, que
o apreendem segundo ponto de vista distinto” (p. 115).
Diferentes corpos, em contato com outros corpos, fabricam outros
corpos, num círculo criativo e contínuo de relações e, portanto, de significações
de mundo. Ou seja, em concordância com Carvalho e Steil (2008), o corpo “[...]
ao mesmo tempo em que age em direção ao mundo e aos objetos, também é
constituído pelo mundo e pelos objetos em direção aos quais ele se move” (p.
292).
A corporalidade pode ser um fato privilegiado na compreensão das
sociedades. Portanto, “[...] o corpo não é tido por simples suporte de
identidades e papéis sociais, mas sim como instrumento, atividade, que articula
significações sociais e cosmológicas; o corpo é uma matriz de símbolos e um
objeto de pensamento” (SEEGER; DA MATTA; VIVEIROS DE CASTRO, 1979,
p. 11).
O corpo, a natureza e o artesanato, inseridos em um “[...] continente
planetário que envolve humanos e não-humanos” (CARVALHO e STEIL, 2008,
p. 296), podem formar uma bela tríade nesse “corpo do mundo” onde tudo
acontece. Nesse sistema cósmico que não só rege as relações, mas dá
significado às “coisas”, esses autores vêm estudando o conceito de paisagem
“[...] enquanto condição de ser no mundo, onde se entrelaçam a cultura, a
natureza e o sujeito” (p. 296). Embasados na antropologia ecológica proposta
por Ingold (2010), Carvalho e Steil (2008, p. 291-292) tomam o conceito de
paisagem “[...] como horizonte de convergência dos corpos e organismos
humanos e não-humanos com o ambiente que os engloba [...]”. Sendo assim,
essa ideia de “paisagem” pode ser bem fecunda para apresentar a noção de
fusão entre o corpo, a natureza e o artesanato, já que a natureza integra todos
esses elementos.
Considerando todo o ritual que envolve a fabricação de uma peça
oriunda da cultura do barro, parto da ideia de que esses artesanatos carregam
valores simbólicos os quais perpassam a fronteira de algumas definições que
os colocam na condição, única e simplesmente de trabalho manual com fins
utilitários e/ou de enfeites. Esses artesanatos podem ser vistos como objetos
portadores de qualidades mágicas especiais que tecem toda uma forma social
de ser, estar e se relacionar com o mundo (ROCHA, 2011). Nesse caso, tomase o Manual de etnografia, segundo o qual “[...] todo objecto deve ser
estudado: 1º em si mesmo; 2º em relação às pessoas que se servem dele; 3º
em relação à totalidade do sistema observado” (MAUSS apud ROCHA, 2011,
p. 93). Para tanto, por meio da etnografia, atento-me a uma análise rigorosa de
todo o material etnográfico, na tentativa de desvelar as reais implicações e
desdobramentos sofridos por todos os envolvidos nesse processo.
Como relação ao artesanato, é possível dizer que ele apresenta alto
valor interpretativo, visto que está presente tanto em contextos cotidianos
coletivos quanto em contextos específicos restritos, que dizem de uma maneira
de conceber o “eu” e o mundo. Para Weiner apud Gonçalves (2007, p. 26),
[...] nós usamos objetos para fazer declarações sobre nossa
identidade, nossos objetivos, e mesmo nossas fantasias. Através
dessa tendência humana a atribuir significação aos objetos,
aprendemos desde tenra idade que as coisas que usamos veiculam
mensagens sobre quem somos e sobre o que buscamos ser. [...]
Através dos objetos fabricamos nossa auto-imagem, cultivamos e
intensificamos relacionamentos. Os objetos guardam ainda o que no
passado é vital para nós [...] não apenas nos fazem retroceder no
tempo como também tornam-se os tijolos que ligam o passado ao
futuro.
O artesanato oriundo da cultura do barro, pensado como operador
simbólico, funciona como mediador entre corpo e meio, natureza e cultura.
Sendo assim, funde essas dimensões e, por isso, é de fundamental
importância para se pensar a tríade (corpo-natureza-artesanato), ou uma
cosmologia quilombola ou, até mesmo, uma ontologia quilombola. O artesanato
perpassa a fronteira de algo tangível, pois diz de uma construção cultural, de
um modo particular de se relacionar com o mundo. Por meio dele, é possível
identificar não só seu povo, como seus costumes, seus hábitos, seu modo de
vida etc.
Como
mencionado
anteriormente,
a
partir
de
uma
etnografia
compartilhada7, pretendo refletir sobre como essas relações - corpo, natureza e
artesanato - se completam num sistema cosmológico. Para tanto, se faz
necessário em alguns momentos, trazer, na íntegra, trechos elaborados pelos
próprios sujeitos a respeito do que pensam sobre as questões mencionadas ao
final da Apresentação. Apesar da dificuldade em transcrever com precisão o
que foi dito durante o trabalho de campo, procurei ser fiel ao máximo quanto à
forma e ao conteúdo do que era falado. Assim, convido-os a ler com atenção o
relato abaixo, em que o Sr. Zé Lopes expõe sua visão de mundo ao tentar
explicar a integração entre o corpo, a natureza e o artesanato.
7
Esse conceito vem sendo discutido principalmente a partir da videografia do antropólogo
francês Jean Rouch, em suas palavras “[...] É o resultado de uma busca interminável onde
etnógrafos e etnografados se encontram num caminho que alguns de nós já chamam de
antropologia compartilhada” (GONÇALVES, 2008, p.157).
Eu vou falar um pouco de mim, porque eu falando de mim eu tô
falando dos outros. Então como é que eu acho essa incorporação do
artesanato no corpo e o corpo no artesanato. Então eu acho que é
assim, principalmente quando começa desde lá do barreiro por
exemplo. Então quando eu chego no barreiro, a nossa cultura é
assim, a gente chega lá, faz uma oração e pede um pouco daquela
matéria-prima pra mãe natureza, pra que a gente possa fazer,
modelar as peças da gente, fazer o trabalho da gente, viver daquilo
ali. Então quando a gente chega lá, aquilo ali ta normal, não ta
mexido, ta inteiro, ta super natural ali, então pra que se transforme
por exemplo num corpo, ou seja um artesanato a gente tem que
mexer e transformar ela numa outra coisa. Então a partir que eu tire
aquele barro dali eu vou transformar ela num corpo, vou fazer uma
peça por exemplo. Então ali ela já não esta mais quando eu antes de
retirar aquele barro dali, então aquele barro pra ser transformado em
um corpo, ele precisa do outro corpo, no caso seria o meu corpo se
movimentar, agradecer, e retirar aquele barro dali, então ele ta
precisando do meu corpo pra fazer todos esses movimento, então eu
já to começando a integrar o meu corpo no corpo da natureza,
inverter o meu sacrifício todo que possui dentro de mim pra inverter
com a natureza. Então dentro disso eu tive pensado assim, tanto o
meu corpo, como o barro, a natureza, a terra (Informação verbal).
Nosso caminho começou assim: era cedo, o galo ainda cantava, e o Sr.
Zé Lopes já rodeava a casa em que eu dormia. Enquanto preparava meu café
da manhã, ele se aproximou e começou a dizer sobre o que ele havia pensado
sobre o corpo, a natureza e o artesanato e, mais que isso, como ele pensava a
incorporação do artesanato no corpo e do corpo no artesanato. Foi assim que
ele começou a descrever a “fabricação” do artesanato, desde o momento da
retirada da matéria-prima, o barro, até o processo de transformação dessa
matéria em um corpo, o artesanato. Pode-se perceber que todo esse processo
é carregado de trocas simbólicas que revelam a importância e a valorização
dessa prática para pensar suas relações. Em sua fala, Sr. José Lopes ressalta
a integração desse corpo com a natureza e o sacrifício a ser empregado pelo
seu próprio corpo ao transformar aquela matéria em outro corpo. Nessa
perspectiva, os corpos se misturam, se corporificam e se incorporam, como
podemos observar no trecho abaixo, em que o Sr. Zé Lopes diz sobre a criação
do homem e o respeito para com a natureza.
O barro é minha vida, é minha vida o barro, por que? O homem foi
feito do barro, Deus fez o homem de barro depois soprou nas narina
dele e deu vida a ele, então porque o artesanato não pode ser
relacionado ao corpo e o corpo ao artesanato, se nós fomos feito do
barro, tá vendo como é? Isso é uma das resposta principal por
exemplo pra essa coisa aí se o homem é feito do barro, nós fomos
feito do pó da terra e se acaba no pó da terra, então são coisas que a
gente tem que ir analisando, pensando porque que essa peça virou
um homem e o homem ela, isso é uma boa coisa também pra gente
pensar nisso e fazer essa colocação (Informação verbal).
Absorto em suas formulações, o Sr. Zé Lopes parece pensar em voz
alta; parece não ter claro ainda todas as questões e vai colocando-as como se,
ao falar, pudesse elaborá-las melhor. Ele remete a questões importantes sobre
sua visão de mundo, ao retratar a crença na religião e a relação do homem
com a natureza, ambas inter-relacionadas. Refere-se ao mito bíblico “E formou
o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da
vida” (BÍBLIA SAGRADA, Gênesis 2:7), para explicar a origem do homem. Em
suas palavras “O homem foi feito do barro, nós todos nascemos do pó da terra
e se transformamo no pó da terra [...]. É o pó da terra, é de onde a gente foi e
da onde a gente veio e pra onde a gente vai” (Informação verbal). Assim, a
relação que se estabelece com a natureza é imanente, orgânica e natural. Ele
nos apresenta uma ontologia que, por certo, é afinada com o imaginário cristão:
o artesanato se faz religião; como na etimologia da palavra, religio, religar, o
barro, o artesanato liga o homem à natureza e a Deus.
Para ele, assim como os homens, a natureza também tem vida e precisa
ser respeitada; ela é tida como “um outro” cuja importância é fundamental para
sua própria vida. Tais vidas se misturam, se alimentam e se completam. O
barro, para ser transformado em outro corpo, precisa de um corpo, no caso o
seu próprio corpo, na mesma medida em que precisa daquele corpo
transformado para sobreviver. “A vida do barro é a vida da gente, quem faz a
vida dele, além da natureza, somos nós, também é cuidar é preservar é se
incorporar naquilo e sentir que aquilo é a gente, que ele já sente que a gente é
ele” (Informação verbal). Ou seja, “[...] sua sintonia com a natureza seria ativa,
transcendente, cognitiva: em lugar de natural, seria, por assim dizer,
sobrenatural” (VIVEIROS DE CASTRO, 2007, p. 01).
Ao falar sobre seu trabalho com a cultura do barro, Sr. José Lopes
demonstra uma consciência não só ecológica e religiosa, mas, também,
política, na medida em que ele sabe exatamente as consequências que sofrerá
se agir contrário à natureza. Leiamos sua observação:
Então em referência ao respeito à natureza é você agradecer, é você
saber usar é você saber que aquele solo que você tá mexendo
também tem uma vida. Aquilo também é uma vida. Não se pode
degradar, fazer coisas que não pode, usar de maneiras incorretas.
Que Deus deixou tudo no mundo e entregou ao homem, mas pro
homem cuidar e não acabar, maltratar. Ninguém quer ser maltratado.
Então se eu maltrato do local de onde eu trabalho por exemplo, meu
barreiro, onde eu tiro o meu barro pra fazer minhas peças pra minha
subsistência, se eu não sei usar eu tô prejudicando quem? Eu tô
prejudicando a mim mesmo, porque quando eu for lá eu não vou ter
barro de qualidade pra fazer minhas peça pra mim viver. Então eu
tenho que preservar. Eu tando preservando a natureza eu tô
preservando a minha pessoa (Informação verbal).
A natureza assume em suas vidas um papel protagonista, por ser “[...]
investida de forças e energias restauradoras do corpo, da alma e de virtudes
éticas para a convivência social” (CARVALHO e STEIL, 2008 p. 291). Sua vida
é mais que uma “extensão” da natureza, é sua própria existência e condição de
sobrevivência. Portanto, estabelecem conexões de reciprocidade entre essas
ontologias. A incorporação é sentida no momento em que seu corpo interage
com aquela matéria - no caso, o barro - e a transforma num outro corpo, o
artesanato. Ao fazer uma peça, é como se contassem suas histórias, suas
origens, e seus traços ficam marcados naquele objeto, de forma que os
representam:
Eu digo isso porque ele vai se reconhecer naquela peça, essa peça
aqui é minha, não precisa nem dobrar o fundo dela pra ver o nome
dele, essa peça é minha, fui eu que fiz; eu digo isso, porque eu tenho
integração e conheço a minha obra, conheço o que eu sei fazer,
como a minha esposa, minha velha, meu filho (Informação verbal).
Era meu quinto dia de campo, quando fui agraciado pelas formulações
teóricas8 do Sr. José Lopes, o que certamente alimentava e dialogava com
minhas hipóteses de pesquisa. Estava claro que nosso exercício era pensar
para além da função que um objeto - no caso o artesanato de barro - pode
exercer; pensar seu significado como sistema e meio simbólicos, ou seja, seus
desdobramentos políticos, estéticos, sociais, econômicos etc. Em certo sentido,
as observações do Sr. José Lopes estavam atualizando as de Mauss sobre o
“espírito da coisa”, quer dizer, sobre as coisas serem mais que coisas, mais
que objetos; elas são “pessoas”, têm vida, têm alma.
Em paralelo, tornava-se necessário o estudo do corpo, por este ser o
canal central em que essas subjetividades podem ser construídas, sentidas e
reveladas. E, para que eu pudesse apreender melhor a relação entre o
artesanato e o corpo, o Sr. Zé Lopes sugeriu que eu experimentasse fazer uma
8
Quando me refiro à teoria, busco ir para além do pensamento de que teoria é algo difícil e
inacessível aos “pobres mortais”, e resultado de um procedimento gnosiológico dado somente
aos cientistas. Entendo por teoria, nesse caso, as elaborações e histórias narradas por Sr.
José Lopes e sua família. O modo como narram e o conteúdo do que narram formam uma
tessitura, muitas vezes, não linear, que dá sentido ao que fazem. Ao narrar, podem elaborar
seus fazeres e ações, e são essas elaborações a que nomeio teoria.
peça, de modo que entregasse o meu corpo àquele exercício. Para ele, é
também a partir da experiência9 que se pode entender e compreender o
mundo. É saber observar, imaginar, criar, ouvir etc.; é colocar seu corpo à
disposição daquilo de que realmente sua “alma precisa, seu espírito precisa,
seu crânio precisa, suas mãos, seus dedos, seus pés; é se entregar de corpo e
alma” (Informação verbal). Sua visão de corpo é uma visão total, em que todas
as suas partes estão relacionadas e são importantes no processo de fabricação
de uma peça.
Então é o corpo, é a relação do meu corpo inteiro ao barro, tudo que
você tem no corpo de membro possui na fábrica de qualquer uma
peça que você for fazer, você usa a unha, você usa o pé, usa a mão,
o pé porque conduz, a mão porque modela, eu corto lenha eu corto
pau seco prá fazer a cuivara [sic] pra queimar minha peça, então ela
tá integrada na minha peça. [...] você se entrega quando vai fazer
uma peça, você se entrega de corpo e alma, é aqui, se você não
concentrar você acaba não fazendo nada (Informação verbal).
Mais uma vez, ele ressalta a integração com a natureza e a importância
do seu corpo para a fabricação de uma peça de barro. Seu corpo é a sua
existência, ou seja, ele existe por meio do seu corpo e, através dele, em uma
espécie de simbiose com a natureza, transforma-a em um objeto: artesanato,
que contém parte dele e parte da natureza. Sendo assim, o corpo traz a
possibilidade de sentir, experimentar e descobrir o mundo, além de transformar
o que é natural em um objeto predominantemente caracterizado por seu valor
simbólico.
Na cultura do barro, a entrega do corpo à integração com a natureza é
tão necessária quanto os estímulos apreendidos por ele na relação de dar (a
própria força para a transformação da matéria), receber (o meio de sua
sobrevivência), retribuir (com a preservação da natureza), e, a partir das
formulações de Rocha (2013), pedir (à mãe natureza licença para obter
matéria-prima) e ofertar (o artesanato). Essa constância dar, receber, retribuir,
9
Nesse sentido, Sr. Zé Lopes dialoga com a teoria de Timothy Ingold sobre aprendizagem por
atenção. Para Ingold (2010), “Na passagem das gerações humanas, a contribuição de cada
uma para a cognoscibilidade da seguinte não se dá pela entrega de um corpo de informação
desincorporada e contexto-independente, mas pela criação, através de suas atividades, de
contextos ambientais dentro dos quais as sucessoras desenvolvem suas próprias habilidades
incorporadas de percepção e ação. Em vez de ter suas capacidades evolutivas recheadas de
estruturas que representam aspectos do mundo, os seres humanos emergem como um centro
de atenção e agência cujos processos ressoam com os de seu ambiente. O conhecer, então,
não reside nas relações entre estruturas no mundo e estruturas na mente, mas é imanente à
vida e consciência do conhecedor, pois desabrocha dentro do campo de prática – a taskscape
– estabelecido através de sua presença enquanto ser-no-mundo” (p. 21).
pedir e ofertar estabelece trocas simbólicas entre a matéria e o espírito, no qual
tudo se mistura: a alma nas coisas e as coisas na alma, em uma natureza em
que “[...] tudo que se é dado são seres vivos com os quais se dialoga e que
tomam parte do contrato” (MAUSS, 1974, p. 149). Seguem as palavras do Sr.
José Lopes:
O mês da colheita do barro é o mês de outubro, que os barreiro estão
tudo de fora. Então a gente chega lá no barreiro, e pede licença,
permissão à mãe natureza pra retirar um pouco daquele barro ali: ‘Oh
minha mãe, eu vim aqui lhe pedi pra fazer umas peças, me dê uma
bola de barro do seu barreiro’. Em retribuição, faço aqui essa
panelinha para senhora fazer a comida dos seus filhos e também me
ajude com que não quebre as minhas peças na hora deu queimar.
Porque que a gente faz isso? Porque a gente sente que ali existe
uma vida, ali tem alguém ouvindo a gente [...] (Informação verbal;
grifo meu).
Na cultura do barro, o contrato se dá como uma relação corpo-naturezaartesanato: o pedir e o ofertar ocorrem ao mesmo tempo, ou seja, no momento
em que se pede licença ao corpo “mãe-natureza” para que dela seja retirado o
barro para a transformação deste em artesanato, oferta-se o trabalho
proveniente do próprio corpo, o artesanato. Com um pouco de liberdade
poética, pode-se dizer que se a natureza é mãe, então o artesanato, feito de
barro, é filho, é gente, é pessoa, como relata Sr. Zé Lopes:
Porque o artesanato, tudo que você faz é o que a gente já conversou,
é um corpo também, é assim é um corpo fazendo outro corpo, é
como se você fazesse um filho, você é um ser humano, se tua
esposa ficou grávida de ti tu vai esperar ela dar luz a um ser humano,
ta me entendendo? Um corpo fazendo outro corpo. Meu filho é a
metade de mim, minha esposa é metade de mim, porque ela é uma
pessoa integrada em mim, uma pessoa que te amou, te tirou, travou
dentro da gente, um corpo no outro, você se incorpora no que faz e o
que você faz se incorpora em você. Aí chega na questão da tradição,
se você tem um bom exemplo para o seu filho, seu filho tem um bom
exemplo porque ele vive da tradição (Informação verbal).
Por fim, esse corpo é valorizado e reconhecido pelo que pode produzir, e
se reconhece em sua produção, o que tece uma corporeidade cosmológica e
pode sugerir uma “cosmocorporeidade”. Essa relação é fundamental para os
processos de trocas de reciprocidade.
Um corpo que fez um outro corpo, é uma coisa como eu te falei, tudo
que você faz nunca mais você faz outro igual aquele. A minha peça
onde eu chegar eu conheço, conheço essa aqui, fui eu que fiz, é
minha obra, tem minha inspiração aqui e conheço também a fábrica
dos companheiro que trabalham comigo, eu conheço a peça do
Babado, eu conheço a da Maria e de todos os companheiros que
trabalham comigo aqui, eu conheço a peça deles, porque eu me
inspiro na peça deles também. Olha, eu tô pra cá, não tô nem
olhando o que o Babado tá fazendo ali, mas se ele aprontar essa
peça e levar pra um lugar assim como eu tô te dizendo e chegar lá e
dizer: de quem que é essa peça? Foi o Babado, porque ela tá dentro
de mim, ela tá no meu corpo, eu conheço a obra dele, e sem que eu
veja ele fabricar, tu tá me entendendo? Então é mesmo que eu tá
com ele lá fazendo a peça; imagina a minha que foi eu quem fiz?
Então é essa relação que o homem tem com o artesanato e o
artesanato com o homem. Ela dá um incentivo muito grande pra que
a gente reconheça isso, espiritualmente. Você busca todo seu corpo
prá integrar, fazer um negócio com o pensamento pra ali, pensar que
A é B, aí acabou, tem que concentrar, aí sim, entra uma inspiração
dum pro outro (Informação verbal).
Sr. Zé Lopes, em toda sua fala, destaca a dimensão coletiva, cósmica e
ecológica do artesanato. O tempo todo ele ressalta certa “consubstancialidade”
entre corpo, natureza e artesanato, em que “[...] essas relações estão
envolvidas intrinsecamente umas com as outras. Elas interagem e estruturam,
assim, a totalidade do campo social” (PFEFFERKORN apud KERGOAT, 2010,
p. 100). O corpo-artesanato é tão vivo para aquele que o dá à “vida”, que
imprime e exprime, simultaneamente, traços mútuos que os identificam e os
completam nessa teia de significados complexos. Estabelecem entre si
relações de reciprocidade, na medida em que aquele corpo transformado (o
artesanato) passa, então, a servir a seu próprio corpo. Vejamos o que Sr. Zé
Lopes diz sobre essas questões:
Eu tô trabalhando, minhas panela tão ali no fogo, tô queimando, mas
dali tô pensando em quê? Vender elas né? E depois o dinheiro que
ela der, retornar pra mim, que vai me servir pra alguma coisa, então
ela vem servir em quê? Na minha alimentação; ela vai servir no
remédio que pode proteger o meu corpo, então ela tá integrada ao
meu corpo. Além do amor que eu já sinto por ela né? Poxa, eu me
dediquei pra fazer minha panela, eu gosto, eu amo, então a minha
peça também gosta, porque ela é vendida e me valoriza. O valor dela
vem e agrega em mim. Então, é uma questão de uma união assim do
artesanato com o corpo e se torna uma coisa só (Informação verbal).
Ou seja, é o objeto formando pessoas, se ele faz o objeto de barro,
também o barro tem agência e o fabrica. Essa é a reciprocidade deste fazer e
ser feito entre corpo, natureza, artesanato e pessoa. Seguimos com o Sr. Zé
Lopes:
O homem não forma um homem de barro assim do jeito que ele quer.
Vê o velhinho que eu fiz, o lenheirozinho que eu fiz, tá ali um homem
com o feixinho de lenha sua bolsinha do lado, só falta o quê ali? Vida,
porque o corpo tá lá. Então um corpo fez outro corpo, então é isso, é
uma inspiração boa. Uma coisa bem pensada que a gente pensando
o que a gente faz a gente tá fazendo a gente mesmo a própria coisa
da gente porque tudo que a gente faz é pra gente, a gente pensa um
pouco mais pra gente, mesmo se eu pensar em você, eu tô pensando
num corpo, eu tô pensando numa pessoa. Se você tira alguma coisa
de você para servir alguém, você tá pensando num ser humano como
você (Informação verbal).
É como se o artesanato fosse tomado por influências e, a partir de
então, pudesse ouvir e falar com aquele corpo que o fez, transcendendo,
assim, sua simples função como objeto. Talvez por isso, Rocha (2011) traz em
suas reflexões, a importância dos objetos para pensar a vida social “[...] afinal,
a observação de uma simples cerâmica pode nos revelar que muitas vezes, o
pote tem uma alma, o pote é uma pessoa” (MAUSS apud ROCHA, 2011, p.
93). Cabe salientar que cada peça tem sua especificidade e jamais será igual à
outra, o que demonstra sua alteridade. Nesse sentido, o artesanato e o corpo
daquele que o fez compactuam de uma comunhão em todo o processo que os
envolvem: um dá a voz ao outro.
Agora eu vou ver uma voz do meu artesanato falando comigo, aí já
vai ser a minha peça que vai pensar em mim e eu já estou sabendo
qual é o pensamento da minha peça em mim. Então a minha peça vai
falar comigo, ela vai dizer assim: ‘Bem ele já me fez com objetivo,
então agora o meu pensamento em relação como obra dele, tô me
sentindo obra dele eu vou pensar com ele assim eu vou ter que ser
vendida pra agregar um valor e retornar a ele que me fez. Então eu
vou ser um momento de compensação na preocupação que ele teve
comigo, eu vou ter com ele, eu vou valorizar ele, ou seja, vou ser
vendida e o meu valor vai ser agregado nele, vai ser empacado na
vida financeira dele’. Então quer dizer que uma coisa que eu fiz pra lá
e de lá veio pra cima de mim de novo, ela veio me fazer viver
(Informação verbal).
Por fim, o artesanato feito pelo Sr. Zé Lopes está tão presente em sua
vida que rege toda uma maneira de como ele o vê e o sente. Aquele corpoartesanato que ele produz não só o representa como faz parte de sua vida e
diz da sua forma de ser e perceber o mundo. A exemplo dos indígenas que
fabricam seus corpos, também a idéia de corpo-artesanato se aproxima dessa
dupla condição, ou seja, o corpo como forma de artesanato que é fabricado e o
artesanato como forma de corpo que é personalizado. Nesse sentido, para
finalizar, Sr. Zé Lopes conclui:
O barro depende de uma vida pra lidar com ele, que essa vida é a
nossa vida. É a nossa vida, tanto o barro depende de uma vida pra
lidar com ele, como nós dependemos de uma vida também pra lidar
com nosso artesanato, no caso o barro. O barro é uma vida, ele tem
vida, ele tem fim. Onde tá a vida do barro? A gente pode se perguntar
pra gente mesmo. Onde tá a vida da terra? Tá na gente, tem tudo a
ver com a gente (Informação verbal).
Breves apontamentos finais
A prática do artesanato sempre esteve presente vidas dos três
personagens entrevistados neste trabalho. Quando ainda eram crianças, viam
seus ancestrais fazendo potes, vasilhas, panelas e adornos de barro para o
uso cotidiano. Normalmente, eles realizam seus trabalhos na casa do artesão10,
local onde nos encontramos e sempre conversávamos sobre o a “fabricação”
das peças de barro.
Em todos os relatos, pode-se perceber que uma peça de barro parece
significar muito mais que um simples objeto, que muitas vezes usamos e
descartamos. A ela, se atribuí alma; sua forma ganha um corpo, uma vida,
capaz de sentir e de se relacionar com aquele corpo que o transformou. Por
meio do artesanato, eles estabelecem contato e rememoram uma vida. A
sensação é de que ele, o corpo-artesanato, dizia por si só. Em outras palavras,
era como se aquele artesanato estivesse tomado de uma vida. Sendo assim,
alguns objetos são portadores de qualidades mágicas e/ou muito especiais e,
por isso, nunca são negociados ou trocados (GONÇALVES, 2007).
Os relatos indicam que, por meio dos objetos, é possível estabelecer
laços, apreender significados, fazer contatos, evocar lembranças; é reviver o
passado e pensar o futuro. Nesse sentido, os objetos não se trocam, não se
dão, não se vendem, não se emprestam, tornando-se bens inalienáveis. A
presença dos objetos vai muito além de simples coisas; diz-nos de pessoas, de
maneiras, de costumes e de tradição e, sendo assim, nos abre a possibilidade
de serem vistos como um fenômeno social total. Já a peça produzida, o
artesanato, torna-se mediador entre o corpo e a natureza, fundindo essas
dimensões e, por isso, é de fundamental importância para se pensar a tríade
corpo-natureza-artesanato ou uma cosmologia quilombola ou uma ontologia
quilombola.
Esse partilhamento de saberes, essas reflexões tecidas por eles,
mostram uma rica “teoria cosmológica” que não separa o corpo da alma, o
barro da carne, que os antropólogos já de algum tempo compartilham e se
esforçam hoje para traduzir para o nosso mundo.
10
Um galpão de aproximadamente 80m 2, construído em dezembro de 2008, com recursos da
Mineradora Rio do Norte/RN, com objetivo de armazenar e expor as peças produzidas pelos
ceramistas que fazem parte do Projeto Educação Ambiental e Patrimonial.
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