Paiva de Carvalho

Transcrição

Paiva de Carvalho
Outono de 2006
Número 8
Fall 2006
Issue 8
Paiva de Carvalho
As cores da empatia
Editorial
www.seixoreview.com
Editor
EDUARDO BETTENCOURT PINTO
Conselho Editorial
AIDA BAPTISTA
IVO MACHADO
JORGE ARRIMAR
LUÍSA RIBEIRO
MANUELA MARUJO
ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA
URBANO BETTENCOURT
ZELIMIR BRALA
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SEIXO REVIEW
.
Paiva de Carvalho, as cores da empatia
eduardo Bettencourt Pinto
Quando propus a entrevista ao pintor Luís Paiva de
Carvalho, estava longe de supor que esta seria, por ironia do
destino, a sua derradeira. Contactei-o estávamos ainda sob os
rigores do Inverno canadiano, ou seja, em Janeiro deste ano,
num momento em que ele e a Ana, sua mulher, se preparavam
para uma viagem ao Brasil. Partiriam em princípios de Fevereiro e por lá ficariam até meados de Abril. Acedeu ao convite
com a disponibilidade de sempre e o entusiasmo inefável de
um músico de afectos.
«Vou começar a trabalhar no tal projecto sobre o Neves
e Sousa. Vou fazê-lo no ambiente do seu atelier, em Salvador.
Vou atirar-me ao trabalho, bebendo uma água de coco e olhando o mar!» disse-me num e-mail a 6 de Fevereiro.
Ia ao Brasil com um projecto e não como um vago e distraído turista ocasional. Por outro lado sabia que o clima brasileiro ia deleitá-lo, encher-lhe a alma com vitalidade tropical,
de cujos odores alimentava o espírito e os sentidos.
Era um homem de um dinamismo exemplar. Alimentava
os dias com projectos novos, desde a escultura, pintura até à
planeada escrita de um livro de contos sobre a Luanda pósindependência, já com título engendrado e bem angolano: Estórias da Dipanda.
Dois dias após o regresso a Toronto, a 18 de Abril, entraria
de urgência no hospital. Teve a pouca sorte ter apanhado
um vírus durante a viagem, que o atirou sem misericórdia quarenta e oito dias para uma cama, onze dos quais
sob cuidados intensivos. Ainda regressou a casa, embora
muito debilitado. Pouco mais de três débeis e sofridos
meses voltaria às agruras hospitalares, desta vez com uma
pneumonia sem remissão e que viria, infelizmente, a tornar-se fatídica.
Fica connosco esta sua última entrevista. É um testemunho, embora incompleto, do seu percurso como cidadão e artista, ainda com a brisa das longas tardes de
Salvador. Assim, pelo Homem e Artista que foi, a Seixo
review dedica este número em sua memória.
OUTRAS VOZES
A segunda entrevista é com o grande poeta açoriano
Marcolino Candeias. Nome afirmado nas Letras Açorianas, MC tem vindo a desenvolver um trabalho de grande
qualidade técnica e estética no campo da arte digital. A
Seixo review tem agora a oportunidade de dar a conhecer
esta sua faceta criativa. A arte digital tem vindo a implantar-se à escala global, sobretudo com os esplêndidos
meios que a Internet veio disponibilizar.
Poesia, ficção, recensões, ensaios e narrativas de viagem complementam este número da revista. Sem fronteiras físicas, culturais e linguísticas, a Seixo review pretende sobretudo ser um ponto de encontro entre todos
aqueles que estão interessados em estreitar laços artísticos e literários, quer no contexto lusófono como noutro
que se nos junte numa abrangência que vise a partilha de
ideias, artes, visões e experiências numa unificação que
se pretende de respeito mútuo e interesse pelo Outro,
qualquer que seja a sua latitude geográfica.
Paiva de Carvalho: Ajuda internacional
SEIXO REVIEW
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Índice/Contents
Poesia
5 – Epígrafe por Ivo Machado
6 – Antes de me Detestar Depois por Rui Balsemão da Silva
16 – Tomar, um rio de vida por Graça Arrimar
66 – Havia um mar por Carlos Lopes Pires
Ficção
8 – O Guardador de Freiras por Urbano Bettencourt
11 – A Libélula por Ondjaki
15 – Os vestígios da tempestade por Kristin Reed
18 – Carta de Amor por Manuel Machado
19 – Um buraco no Tamisa por Manuel Machado
21 – Horas sem tempo por Sónia Bettencourt
24 – Gli Ultimi ombelichi por Mário Simon - Italiano
26 – Dogangel by J. Michael Yates – English
Recensão
34 – Sobre Livro-me do Desassossego por Vamberto Freitas
38 – Livro-me do Desassossego por Victor Rui Dores
82 – Um Silo Chamado Eduíno de Jesus por Lélia Nunes
Peregrinações
40 – Angola: Viagem ao meu purgatório por Aida Baptista
42 – IMOK–Um olhar sobre o Canadá por Carla Cook
46 – Uma garoupa nada no relógio por Eduardo Bettencourt Pinto
49 – Bolívia do meu coração por Urda Alice Klueger
Ensaio
67 – Sobre Adelaide de Freitas por Vamberto Freitas
74 – Del rinnovamento della poesia dialettale siciliane por Marco Scalabrino - Italiano
Entrevista
53 – A raiz do embondeiro dos meus afectos. Entrevistado: Luís Paiva de Carvalho
62 – Poeta das imagens. Entrevistado: Marcolino Candeias
Depoimento
60 – Ginga Malaia! por Aida Baptista
Memória
78 – Rogério Silva – a arte de um outro mundo por Onésimo Teotónio Almeida
Crónica
85 – Crónicas francesas por Barbosa Tavares
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SEIXO REVIEW
ivo Machado
E
P
Í
G
R
A
F
E
Quando a grande laranjeira esmorecer e o leito do rio
for apenas esqueleto; quando não houver dia ou noite
nem sequer muralha ao redor do Tempo, porque ruiu
que Anúbis te guie nos infindáveis labirintos da água.
Quando as partículas ressuscitadas forem de novo luz
e o que dantes foi elegia passar à vertical do equador
como lua de indigentes e se reerguer tudo o que ruiu,
estarei no cimo de uma tapada construindo uma torre.
Se não vier o silêncio, se ninguém souber o que seja
música de nada servirá a água ou a torre, nem sequer
uma elegia, mesmo a chama que dizem reflectir a lua
estarei ao lado de Anúbis entre um eclipse e o Ómega.
(In, Verbo Possível, ed. Triunvirato, 2006)
IVO MACHADO nasceu nos Açores em 1958. Tem feito leituras dos
seus poemas em vários países, como Espanha, Itália, Estados Unidos,
Bósnia-Herzegovina, Uruguay e Brasil. Parte da sua poesia está traduzida para castelhano, inglês, eslovaco, húngaro, italiano e bósnio. Tem
colaboração dispersa por revistas literárias no país e estrangeiro, estando ainda representado em inúmeras antologias. Do primeiro livro,
Fernando Lopes-Graça, musicou para canto lírico sete poemas a que
chamou — SETE BREVES CANÇÕES DO MAR DOS AÇORES.
Vive no Porto.
Publicou vários livros de poesia, além de teatro e ficção.
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Antes de me detestar depois
rui Balsemão da Silva
Deixei-me parir sem que antes me arrependesse
e me negasse a nascer
e sem que soubesse
que depois morria
e depois
de ter nascido
já depois do tempo
e sem que antes fosse ouvido
deram-me um nome
que soube
só depois
de começar a gatinhar
e quando já rabujava e denotava
que mal chorava
e pouco me ria
e depois
cresci
e fiz-me homem
muito antes
de ser adulto
e já depois de me arrepender
e saber
que depois
morria
e depois
de muitos depois
me acontecerem
e antes
de já não mais me ralar
nem me importar com o que depois ainda
viesse
amadureci tanto
tanto
que depois
apodreci
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e depois
quando o último depois
por fim me acontecer
e quer queira ou não
sei
que hei-de morrer
sem que antes seja julgado
e jazer
depois
eternamente
sem que nunca se saiba
depois
do meu depois
Por isso é que me detesto sempre depois
e me prefiro antes
como prefiro
o que me apraz e vivo
antes
de me excitar
o que bebo e sorvo
antes
de me inebriar
o que vibro e gozo
antes
de me saciar
e o que ainda a digerir
saboreio
antes
de me suceder
e
me detestar
depois
Setembro 12, 2006
RUI BALSEMÃO DA SILVA nasceu em Luanda,
Angola, em 1934. Contabilista. Radicou-se
no Canadá em 1975. Ganhou vários primeiros
lugares com poemas seus no Festival da Canção
CIRV, realizado em Toronto. Publicou um livro
de poemas, Meu Grito Meu Canto. Vive em
Brampton, Canadá.
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O Guardador de Freiras
urbano Bettencourt
Eu nunca guardei rebanhos
Alberto Caeiro
M
uitos anos decorreriam antes que eu pudesse libertar-me da imagem que me ocorreu
quando, pela primeira vez, ouvi falar do Curral das Freiras. Fosse por influência da imaginação infantil, fosse por outra razão que agora não descortino, o facto é que, para mim, um
curral de freiras devia assemelhar-se aos currais de vinha picoenses, com os seus muros de
pedra seca, frágeis mas desafiando a instabilidade do solo e dos tempos. Lá dentro, as freiras
viviam uma vida sem sobressaltos, entregues à contemplação das paisagens da alma e à confecção de irresistíveis doçarias; de tempos a tempos, eu abria-lhes a cancela do curral e elas
saíam no seu passo miúdo e saltitante, e enquanto as conduzia mansamente, tangendo-as
com a minha aguilhada sem ferrão, elas entoavam suaves cânticos de beatitude:
O Senhor me conduz
Pelos prados verdejantes,
Onde corre o leite e mel
Que é sustento dos amantes.
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Por isso, quando decidi passar a lua-de-mel no Funchal, essa escolha pareceu-me uma
coisa perfeitamente inocente e integrada no curso natural das coisas, uma espécie de resposta ao apelo que um nome como “Curral das Freiras” continuava a lançar-me, com a sua
estranheza e o seu mistério. Sei agora que deveria ter suspeitado de uma motivação que
associava o bucolismo das monjas ao tumulto de uma cama de hotel, mas on était jeunes,
on était fous, quem iria preocupar-se com a relojoaria secreta do mundo, o jogo perverso das
suas coincidências? De resto, isso pouco adiantaria: afinal, tudo o que de bem ou de mal nos
acontece aqui em baixo está escrito lá em cima, como afirmava um capitão de que nunca
cheguei a saber o nome (e será que os nomes vos interessam?, perguntava Diderot) — a
dificuldade está em decifrar a caligrafia dessa mão que traça os caminhos da vida e, às vezes, até escreve torto sobre linhas bem direitas. Como aconteceria, aliás, com o desfecho da
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minha viagem ao Curral das Freiras.
A
ntes disso, porém, já eu me internara pelo Funchal. Ao fim do terceiro dia de suor
e sexo, comecei aos poucos a deixar o quarto do hotel e avançar cada vez mais pelas
ruas da cidade, cruzando-me com os seus rostos precários, como são sempre aqueles que
encontramos em cidades atlânticas, e tentando captar o ritmo de uma respiração balanceada
entre o clima temperado marítimo e a melancolia vagamente africana. Acabei por renderme ao andamento e à agitação urbana da Avenida Arriaga, ao rumor das suas vozes estranhas sob um tecto de jacarandás em flor.
Numa tarde em que fazia uma pausa no Café do Teatro, veio sentar-se na mesa ao lado
da minha um homem de idade indefinível, de compleição rija,
seco de carnes e enxuto de rosto, ou antes, de complexión recia,
seco de carnes, enjuto de rostro, como eu viria a aprender mais
tarde.
Depois de uma água sem gás e da leitura entrecortada de El
País, pediu-me emprestado o Jornal da Tarde, a pretexto de uma
informação sobre o horário das viagens para Porto Santo. Dos
imprevisíveis rumos da conversação já eu conhecia o suficiente
para não me admirar com o facto de duas horas depois estar a
par da vida de Federico M. Quesada, contada num espanhol
marcadamente arcaico e salteado de português e a que eu correspondi com um portunhol de primeira água, dando assim o
meu contributo civilizado para uma futura união ibérica (linguística, posterior à económica).
Ele era, afinal, uma espécie de cavaleiro andante dos congressos, viajava de terra em terra para assistir a eles e do seu
vasto currículo constavam ilhas tão remotas como a Barataria
e a Malindrânia e países mais vagos que os do poeta Roberto
de Mesquita, que eu nunca hei-de ver nem sei onde se ocultam.
Tanto se enfrascara de comunicações, conferências y ponencias, e de tal modo a imaginação
se lhe inflamara com o que nelas ouvia — desafios e batalhas verbais, encantamentos e requebros, entricadas razones y disparates imposibles — que descuidara o governo da casa e a
administração da fazenda, alimentando o sonho de vir a tornar-se um conferencista a tempo
inteiro. E imaginava mesmo o dia em que um erudito despeitado, depois de ouvi-lo discorrer demoradamente, citaria Bertolt Brecht para afirmar que as novas antenas continuam a
difundir as velhas asneiras; mas, por enquanto, não passava de um simples aprendiz, apesar
das centenas de colóquios e simpósios a que assistira e o tinham obrigado a desfazer-se de
terrenos de cultivo e lotes urbanos a fim de fazer face às despesas. Yo soy el Quijote de los
congresos, gran madrugador y amigo da caça intelectual, repetia, com um sorriso entre o
enfático e o irónico, e por essa razão se encontrava no Funchal, onde na véspera assistira,
entre outras, à conferência de um escritor seu patrício sobre Literatura e Espionagem. E
apontava-me, no Jornal da Tarde, um resumo que era, ao mesmo tempo, a confirmação das
suas afirmações. Por delicadeza, evitei perguntar-lhe se ele não estaria a tentar fazer-se passar por parente, ainda que afastado, de uma personagem de Enrique Vila-Matas e pus-me
a ler o texto que me indicara.
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A reportagem aparecia, efectivamente, na página cultural do jornal e, alternando a síntese com a citação, dava conta da muito aguardada comunicação de um escritor catalão, de
cuyo nombre no quiero acordarme. Na perspectiva do conferencista todo o escritor de ficção
é um espião que circula por entre os homens, observando-os atentamente e captando os
seus traços peculiares, antes de se isolar para construir aquele que será o seu ponto de vista
sobre a sociedade; e citava François Mauriac e Vitorino Nemésio, para dizer que “todo o
escritor de ficção foi um espião disfarçado na infância e na adolescência”, e precisa de continuar a sê-lo ao longo de toda a vida.
Talvez essa ideia da observação orientada e persistente fosse o pretexto que me faltava
para tomar uma decisão. O facto é que, no dia seguinte, eu estava no miradouro sobranceiro
ao Curral das Freiras, atento ao menor sinal que da povoação me chegasse. Que esperava
eu? Um cortejo de freiras em fila indiana, comandadas pelo confessor oficial e
entoando no fundo de um abismo os cânticos eróticos de Salomão? Durante sete dias e sete noites ali permaneci, rebanhos de turistas chegaram e
partiram depois de se fotografarem uns aos outros de ângulos perigosos
e em atitudes estranhas que dariam a observadores futuros a ilusão de
estarem já em queda livre sobre o vazio. De freiras, nem o menor sinal.
Apenas, de tempos a tempos, um vago latido de cão ou o canto destemperado de um galo; e sobretudo o eco abafado de vozes humanas, a linha
melódica de alguns cantos magoados e monótonos que acompanhavam
os trabalhos diários no campo, antes de a noite reduzir tudo ao silêncio.
Quando regressei ao hotel, o meu nome não aparecia nos registos informáticos. Algum
problema técnico? Não, senhor Machado, o nosso sistema está acima dessas contingências
ou da esperteza dos hackers — e a recepcionista enfatizava a fonética inglesa do último
termo. Dos ficheiros manuais também não constava qualquer Manuel Machado. De Maria
Teresa, nenhum rasto: nunca se hospedara naquele hotel. Que maldição caíra sobre nós e
nos deixava sem passado nem presente?
Estou sentado nesta esplanada da Avenida do Mar, onde acabo
sempre por entregar-me a divagações imponderáveis; na minha frente,
o delicado sumo de manga que vou bebendo pausadamente e em cujo
aroma vibram ainda cheiros e imagens difusas de África. Um rapper
com pronúncia tropical vai ritmando as suas frases incisivas, delas retenho fragmentos dispersos, “há mais vida para lá do défice, olá se há,
ó pá” e ainda “o polvo unido jamais será comido”. Um navio atravessa a
baía, rumo ao Porto Santo. Continuo tão solteiro como no dia em que
minha mãe pousou em mim os seus olhos macios do parto e creio ter
já perdido a sessão inaugural do Colóquio “Arquipélagos do Desejo”.
E, à semelhança de Caeiro, nunca guardei freiras.
Urbano Bettencourt nasceu na Piedade, ilha do Pico (Açores) em 1949.
Como poeta publicou, entre outros: Marinheiro com residência fixa (1980), Naufrágios Inscrições (1987), Algumas das Cidades
(1995), Lugares Sombras e Afectos (2005), Santo Amaro sobre o Mar (2005), Antero (2006).
No domínio do ensaísmo literário: O Gosto das Palavras (3 vols: 1983,1995,1999), De Cabo Verde aos Açores – à luz da
«Claridade» (1998), Ilhas conforme as circunstâncias (2003).
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A Libélula
ONDJAKI
[palavras para o dr. Carvalho]
Se destas pedras uma
Anunciasse
O que a faz silêncio:
Aqui, muito perto,
[…] isso se abriria, como ferida
Em que terias de mergulhar
Paul Celan, A Força da Luz
U
m som fluido abandonava a casa, roçava na poeira das trepadeiras no jardim, influenciava as
mangas e os mamões no seu processo de maturação, arrepiava uma libélula inebriada que ali adormecera, fazia o sol abrandar e chegava, ainda forte, ainda
nítido, ao ouvido da mulher. Depois disto, um sorriso.
Na aparelhagem o som acontecia contínuo, ininterrupto. O doutor solidificara este hábito domingueiro: sentar-se no fresco da sua varanda ouvindo durante
extensos momentos a voz de Adriana Calcanhoto. Ora
dormitava, ora lia, ora escrevia, ora se quedava simplesmente de olhos rasgados contemplando as nuvens gordas azularem o céu. Para ele não se tratava de beatificar
um domingo, mas sim a própria paz. Aliás, «domingo»
era, para o doutor, uma palavra muito interna. Fosse um
poço.
Pressentindo isto – que o doutor se apresentava em
pleno estado de domingo-, a mulher hesitou. Encostou
a testa ao ferro do portão e quis acreditar no impossível:
que não tinha sede. A testa latejava; os olhos se queriam,
de facto, fechar, olvidar o mundo, cessar a prestação dos
serviços visuais. O frio do portão trouxe-lhe agrado aos
dedos, ao coração também. E a música invadia-lhe os
poros. Então, aí sim, ela dividiu uma sensação com o
doutor. Ele, no mesmo instante pensava: esta voz, sim,
pode ser dividida. A voz de Adriana, empurrando a tarde: “será que a gente é louca, ou lúcida… quando quer
que tudo vire música…”
No intervalo de voz, a libélula decidiu acordar, mover-se em zum-zum aberto, e aterrisar junto aos apontamentos do doutor. Gatafunhos, memórias recusadas,
esquebras de horas mais sensíveis que escusava aceitar
como suas. “Eu perco o chão, eu não acho as palavras” – e
a libélula conseguiu acordá-lo. Há anos que acertara as
contas com os animais e se apaziguara numa relação
equilibrada com eles. Mantinha uma relação ainda conflituosa com as baratas e os sardões, mas já não era homem para matar. Em vez disso, usava sorrir. Não raras
vezes, pela manhã, sentia saudades de ver correr olongos
como vira lá longe, na infância, na província do Namibe;
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também por vezes, na praia, encontrando cavalos suados se detinha, de olhos a quererem fechar, saboreando o
odor forte a pêlo de cavalo suado. Se feliz ou em vésperas de viajar, sonhava com borboletas brancas ou ligeiramente amarelas, e não procurava interpretar o sonhado.
Há anos que fizeras as pazes com os animais, incluindo
a espécie dengosa dos gatos, à qual ele mesmo infligira
uma baixa mortal. Os gatos, essencialmente os gatos, reaproximaram-no dos bichos.
Foi depois da libélula que reparou na mulher encostada ao seu portão, de olhos fechados, pareceu-lhe, a ouvir
a música de Adriana,
“Tenho por princípios nunca fechar portas, mas…
como mantê-las abertas, o tempo todo…”
Descruzou as pernas; lentamente as desceu da outra
cadeira, enfiou as sandálias. Andando, mirava o ar tranquilo da libélula caminhando sobre as suas letras, sobre o
cheiro da sua tinta 971 violet. Era tinta um tanto pegajosa, exigia mesmo um ritmo acelerado de escrita pois, em
contacto com o ar, era veloz em solidificar. Mas a libélula
não é um insecto curioso, o doutor sabia, ela não chegaria
ao frasco, não beberia. Um degrau, dois. Está junto ao
portão e a mulher, ao contrário do que ele desejava, não
abriu os olhos. Mas falou.
– Desculpe interrompê-lo…
Nem foi susto nem foi coisa de se descrever. Simplesmente o doutor não contava com aquela noção de
proximidade. Ela sentira-o?
– Reconheço o cheiro da tinta… O senhor escreve
com uma pena?
– Não… Isto é… Sim, é uma espécie de pena…
O portão estava destrancado. Ele fez menção de o
abrir, ela abriu os olhos, afastou-se ligeiramente das grades.
– Desculpe interrompê-lo, mas estou com muita
sede – ela, talvez esperando que o doutor, num qualquer
comentário, revelasse se desculpava ou não a intromissão, se se sentira incomodado ao ponto de alterar o seu
humor.
O portão foi aberto pela mão certeira do doutor, enquanto a outra executava um gesto afável que a elucidou.
Aquele homem não era facilmente perturbável. “Lá mesmo esqueci que o destino, sempre me quis só…”
– Água ou refrigerante? – o doutor.
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– Água, por favor.
A mulher viu a libélula ali parada. Tinha a cor demasiado viva para estar morta ou embalsamada, mas era
totalmente imune ao vento que baloiçava as folhas de
papel. Aproximou-se da mesa sem se sentar – a mulher.
Por curiosidade olhou as letras sobre o branco, não no intuito de ler a composição, mas pelo hábito de apreciação
da estética ortográfica masculina. Era, viu depois, uma
«espécie de pena», como lhe dissera o doutor, a que havia
produzido aqueles gatafunhos encantadores. Não resistiu
e chegou a mão perto: parecia cristal.
– É de vidro. Vidro mesmo. Não é bonita?
– Muito… É uma pena muito especial.
A água, num copo normal, chegou-lhe às mãos. O
doutor entretanto pousou o jarro semigasto num lado
longínquo da mesa, sem perturbar a libélula. Fez menção
para que a mulher se sentasse.
– Obrigado… O senhor deve estranhar, não?
– Estranhar?
– Pedirem-lhe água… Já ninguém toca às campainhas para pedir água, não é?
– É… A senhora não é de cá, pois não?
– Não.
A mulher serviu-se novamente. Bebia devagar, como
convinha.
– Contava uma avó minha que, certa ocasião, em Silva Porto, um senhor lhe entrou pela casa adentro cheio
de sede e lhe pediu água. Minha avó voltou à sala com
um jarro de água muito fresca e assistiu-o beber três copos de água de seguida, sem parar.
– Foi?
– Foi. O senhor só teve tempo de lhe devolver o jarro, pois o copo partiu-se enquanto ele tombava no chão.
Morreu ali mesmo, sabe? Desde então a minha avó vivia a contar esta estória, de resto, verdadeira, pois foi-me
confirmada pelo meu avô.
– Não me assuste…
– Não foi para assustá-la, desculpe.
– E o que lhe disse o seu avô?
– Sabe, o meu avô era um homem de invulgar humor
e sensibilidade. Em criança confirmou-me toda a estória
e por fim disse-me: esse homem nem agradeceu a água
à tua avó.
A mulher pousou o copo, respirou fundo.
– Sabe porquê que pedi água aqui na sua casa?
– Não.
– Por causa da música… Esta voz tão doce.
– Adriana.
– Como?
– Adriana Calcanhoto, cantora brasileira.
– É poeta?
– Também.
– Não… O senhor. O senhor é poeta?
– Ahn, eu! Não, sou médico. E a senhora?
– Eu estou cá de férias.
A libélula progrediu no terreno, finalmente mexeu-se,
mas andando.
N
as expressões de ambos era visível o espanto,
como duas crianças que atentas e boquiabertas
assistissem, de repente, ao movimento gracioso de uma
pedra. A libélula caminhou em direcção ao objecto. Num
breve sacudir de asas saltou e voltou a estar quieta – uma
guerreira demarcando o território conquistado. “E a greve entre as estrelas só para mim”, a cantora progride na
varanda, na tarde.
O objecto era uma redoma de vidro, certa- mente
cara, que protegia uma pedra minúscula, cinzenta, banal. Uma pedra pequenina, era o
máximo que se poderia dizer. Nem graciosa,
nem curiosa, nem mesmo exótica ou atraente. Era uma pedra brutalmente vulgar. A
instalação, contudo, valorizava a pedra.
– Julgo que o valor dessa pedra não
pode ser medido pela sua aparência. É
assim?
– É muito assim, sim.
– Mas esta redoma parece muito
bem trabalhada…
O doutor, num gesto resoluto,
abanou a libélula. (Uma surpresa para a mulher
e para a libélula). O insecto voltou a pousar sobre as letras. A pedra e a sua redoma foram arremessadas ao chão.
A mulher não teve tempo de invocar um susto. O objecto
bateu ruidosamente no chão por duas vezes e, após rolar
alguns centímetros, terminou a digressão. O doutor pe-
gou no objecto e voltou a pousá-lo sobre a mesa, ao pé
das letras, dos papéis, da libélula. O insecto, num breve
aspergir de asas, realcançou o seu posto.
– Esta redoma é muito boa para proteger objectos
valiosos.
A mulher voltou a sentir sede mas não quis incomodar.
– Uma oferta?
– Sim, uma oferta muito especial, muito sincera.
– Os médicos recebem muitas ofertas?
– Algumas, é uma maneira das pessoas expressarem
carinho e gratidão.
E calou-se.
A mulher não queria partir mas julgou estar a forçar
o momento. O doutor mantivera-se calado por mais de
cinco minutos. À mulher pareceu justo que fosse sua a
iniciativa de partir. A música parecia terminar e, a voz,
era uma voz difícil de recordar no ouvido da memória.
– Adriana, disse?
– Adriana Calcanhoto. Brasileira.
– Muito obrigada pela água.
– De nada. Já sabe, beba sempre devagar…
– E agradeço antes de morrer!
O doutor quase sorriu. Os lábios contorceram-se;
apenasmente uma tentação de sorriso. Talvez,
só talvez.
O portão foi aberto. A mulher, pegando propositadamente nas grades reconheceu a sensação daquela frieza na
pele.
– Sabe, foi num domingo. Fui chamado
à frente de combate e ninguém queria operar o homem: tinha uma espécie de explosivo
preso à perna. Era uma operação muito delicada, ainda hoje penso nisso, não deve ter sido
coragem… Tive que fazer tudo muito devagar,
enquanto o homem sofria com as dores, e ambos
tínhamos que ser pacientes. Quase no fim, o soldado disse-me: deixa-me morrer, tou muito cansado já.
Eu respondi: já te deixo morrer, mas deixa-me salvar-te
primeiro.
– Ele morreu?
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– Não. A operação correu bem. Ele, no fim, quis darme uma prenda. E não tinha nada. Descalçou a bota e
disse: agora já sei porquê que a filha da puta desta pedra
anda a me incomodar há dois dias. Toma lá, doutor, só
pra não esquecermos esta nossa conversa de hoje. Você
ficas com a pedra, eu fico com a cicatriz.
O portão fechou-se. A sede tinha passado. A mulher
foi caminhando lentamente pelo passeio. Ouviu passos e
a música recomeçou. “Minha música quer estar além do
gosto, não quer ter rosto, não quer ser cultura.”
Entre duas folhas acastanhadas – numa janela de
poeira – a mulher viu: a libélula, parada, ondululava o
corpo. Fosse uma dança. Sob as suas patas, a pedra brutalmente vulgar repousava – entre a memória do homem
e a redoma inquebrantável de vidro.
O presente conto é do livro “E se amanhã o medo” (contos),
publicado em Angola (INALD) e Portugal (CAMINHO).
Ondjaki, nasceu em Luanda, em 1977. Ficcionista e poeta. Escreve para
cinema e co-realizou um documentário sobre a cidade de Luanda (Oxalá cresçam
Pitangas – histórias de Luanda, 2006). É membro da União dos Escritores
Angolanos. Alguns livros seus foram traduzidos para francês, espanhol, Italiano,
alemão e inglês.
Livros publicados: “Actu Sanguíneu” (poesia, 2000); “Bom Dia Camaradas” (romance, 2001); “Momentos de Aqui” (contos,
2001); “O Assobiador” (romance, 2002); “Há prendisajens com o xão” (poesia, 2002); “Quantas Madrugadas Tem a Noite”
(romance, 2004); “Ynari: a menina das cinco tranças” (infantil, 2004); “E se amanhã o medo” (contos, 2005).
www.kazukuta.com/pitangas
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SEIXO REVIEW
Os vestígios da tempestade
kristin Reed
A
tempestade já tinha passado. Eram sete de manhã,
depois do nascer do sol, mas as nuvens grisalhas ainda abafa-
vam o sol ardente. A areia estava molhada, o ar espesso, húmido. Peguei a mão do meu pai sem dizer palavra e comecei a
correr até a beira do mar. Os laços de alga marinha circulavam
na espuma das ondas, avançando e se retirando, numa valsa de
bela incerteza. Segui as pegadas do meu pai, andando a passos
largos, passos duplos.
Pretendi ler os vestígios da tempestade, imaginando a força do
Tofo-Moçambique
vento que soprava à noite enquanto tinha bamboleado a vidraça,
embrulhado num lençol enorme, aspirando o cheiro misturado de
mar salgado e chuva fresca. Parecia que o dia estava de ressaca,
respirando com fraqueza, humildade. Espalhados na praia esta-
vam fragmentos de corais de todas as cores, como pratos estilhaçados, palavras ofensivas sem maneira de retratação.
Os bichos do mar, lançados pela tempestade, morreram len-
tamente. Caranguejos faltando pernas. Estrelas do mar secando.
Peixes com bocas abertas. Vi uma concha de cavalo por cima dum
fio de areia feito pelas implacáveis escavações das ondas. O cheiro
do caracol morrendo por dentro era fedorento, mas a concha era
linda. Mostrei ao meu pai e fui correndo para casa. Enchi uma
panela com água, coloquei a concha lá dentro e deixei no fogão a
ferver.
Kristin Reed nasceu em Chicago em 1977.
Vive actualmente em San Francisco. Prepara o
doutoramento na Universidade de Califórnia,
Berkeley. Fez em Angola o trabalho de campo
durante o ano de 2005.
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Tomar, um rio de vida
graça Arrimar
VII
A memória de um sonho
A Oriente o sonho
e a cavalaria a ditar
as regras da lealdade.
No peito
Jerusalém
e os destemidos do Templo
em cruzadas de fé
cumpriram juramentos
nesta casa sagrada
de paredes ameadas
imortalizando
em Cristo
a memória de um sonho.
( 6 – 04 – 2004)
Ilustração de Andreia Correia
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SEIXO REVIEW
XXI
Mouchão
Nos troncos anciãos
a cadência
o eco repetido
do tempo vagaroso
o beijo desprendido
na folhagem solta
anunciando o fim.
E esta ilha ...
renascida em amor - perfeito
embala nas suas águas
todas as estações.
Ilustração de Joana Fernandes
(10 – 04 – 2004)
GRAÇA ARRIMAR nasceu no ano de 1955, em S. Pedro
da Chibia, Angola. No Lubango – capital da província
da Huíla – escreveu os primeiros poemas e participou em
recitais.
Na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,
licenciou-se em História e obteve o grau de Mestre em
História Regional e Local.
É professora e investigadora, tendo publicado (em 2002) a
obra intitulada A Assistência da Santa Casa da Misericórdia de
Tomar – Os Expostos – 1799-1823.
No campo literário, contam-se três livros publicados: Nos
braços do vento (em 2000), Viagens de sal e de mel (em 2003) e
Tomar, um rio de vida (em 2005). Janelas de Orvalho encontrase no prelo. Colabora, regularmente, na praça da poesia
(secção de poesia) da revista literária Entre letras.
SEIXO REVIEW
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Carta de Amor
manuel Machado
Noruega, 1981
N
o dia em que me sentei para te escrever, meu amor – tinha já deixado a tropa!
Trazia ainda nos olhos fragmentos deliciosos de paz em sons wagnerianos de pólvora, e
embrulhados debaixo do braço estilhaços harmoniosos de um desejo futuro distante de me
sentar para ti.
No dia em que me sentei para te escrever, meu amor – estava já levantado! Ouvia-se
ainda o canto dos caracóis por entre os telhados estalados das palmeiras erguidas no fundo
das montanhas, e o cheiro encaracolado do vento dos teus passos abria já imagens por entre
os faróis azuis dos teus tornozelos volantes.
No dia em que me sentei para te escrever, meu amor – não tinha nada para te dizer!
Sentia ainda o tilintar autónomo dos ossos maleáveis do cérebro, e nos espaços côncavos
dos teus braços alourados viam-se já lareiras ardentes congeladas de alegria.
No dia em que me sentei para te escrever, meu amor – não te escrevi!
Como a vida é simples, meu amor, quando cada um de nós perdeu um olho! – Olhamo-nos duplamente para nos vermos inteiros.
in Enquanto os coveiros dormem
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SEIXO REVIEW
Um buraco no Tamisa
manuel Machado
O
Londres, 1973
ministro da Saúde, homem robusto e saudável, adoeceu de repente. Imprevisto!
Além de uma gripe nos anos mais húmidos da sua vida e uns copos a mais em qualquer copo
de água das altas esferas, nunca o camarada tinha estado tão mal. A mulher, senhora fina e
sensível, vendo o marido com febre de galope chamou o criado e ordenou-lhe que servisse
o chá. A ela, não ao doente!
Sentada no salão, chás e bolos à sua frente, a mulher do ministro pensava na febre do
marido no momento em que bateram à porta. – Era decerto alguém! – O criado, precipitando-se para ver quem era, abriu a porta e verificou que se tratava de um homem trazendo
um papagaio em cima da cabeça e um cão muito pequeno enterrado num bolso do colete.
O homem, agente da Sociedade Protectora dos Animais, era já conhecido na casa, e quanto aos
outros dois, papagaio e cão, o criado nunca os tinha visto, mas não lhe foi difícil de compreender que eles pertenciam à mesma organização.
Anunciados à dona da casa, esta ordenou ao criado que os fizesse passar ao salão, lá onde
ela saboreava o chá das cinco.
Logo que o agente da SPA entrou no salão, o papagaio abriu o bico e disse bom dia minha senhora!. O cão, pequeno mas já educado e respeitador, quis imitar o papagaio, mas toda
a sua boa vontade não lhe serviu para dizer mais do que AUH, AUH! – Isso não impediu a
senhora de compreender que era a ela que o cão se dirigia, mas não sabendo dizer AUH!,
AUH!, respondeu-lhe com um sorriso amável e apenas brilhante. Infelizmente o cão quase
nem se apercebeu, porque querendo pôr-se numa posição correcta para responder ao sorriso
da senhora, escorregou do bolso do colete e caiu estatelado no tapete persa do salão.
Passando isto bem junto da mesa redonda do salão, o agente da SPA baixou-se bruscamente, exactamente no momento em que a mulher do ministro teve a imprudência de se
baixar também. As duas cabeças de argila, descendo em direcção ao ponto fixo do tapete
onde se encontrava estatelado o cãozinho, chocaram-se com tão grande estrondo que o
criado e a criada interromperam as carícias que faziam um ao outro na cozinha e correram
ao salão para ver o que se passava.
O criado, vendo a sua patroa estatelada no chão numa posição que não era habitual, pensou imediatamente que o agente da SPA tinha tentado violar a senhora. E então, com o seu
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poder de lacaio perfeito, lançou-se sobre o agente puxando-o furiosamente por uma perna.
Isto ao mesmo tempo que a criada, no outro lado do monte, tentava arrancar a mulher do
ministro a essa situação absolutamente humilhante para uma senhora de tão alta linhaça!
Mas o agente da SPA, sentindo que o puxavam demasiado forte pela sua perna esquerda,
deu um violento pontapé que quase esmagou a região dolorosa do criado e projectou-o
contra uma das paredes do salão. Gritando de dor e de raiva, o criado conseguiu levantar-se
e lançou-se em cima do monte, do qual a criada, tendo escorregado, também já fazia parte.
Ouvindo os gritos dos seis, o ministro da Saúde apesar da sua alta febre fez o esforço de
se levantar apenas para ver o que se passava em casa dele. Entrando no salão, aproximou-se
do monte e reconheceu as pernas da mulher, sobre uma das quais via-se já a mão esquerda
do criado! Cheio de febre e perdido de raiva e de cólera, o ministro da Saúde deu dois saltos
e mergulhou estrondosamente no monte, olhos fechados e cabeça descoberta. Aos gritos e
berros dos sete, ninguém veio socorrer. Em casa não havia mais ninguém, e quanto aos vizinhos, todos evitavam aproximar-se -se do chalet do ministro da Saúde, não só por respeito
de classe mas sobretudo com medo de adoecer!
A criada e o criado não tinham família, salvo primos perdidos em aldeias esquecidas, e
quanto aos hospitais, a morgue funcionava sempre ao mesmo ritmo. Só a Sociedade Protectora dos Animais alguns dias mais tarde notou o silêncio da senhora fina e sensível a quem
tinham enviado um pequenino cão riscado e um papagaio azul. Foi então que lançaram o
alarme na cidade inteira e foram a casa do ministro da Saúde.
No dia seguinte, terça-feira de carnaval, os homens do lixo juntaram o monte e foram
despejá-lo no Tamisa.
in Enquanto os coveiros dormem
MANUEL MACHADO nasceu a 7 de Julho de 1932 nas Lajes, Ilha Terceira,
Açores.
Além da Ilha Terceira viveu em Lisboa, Paris, Londres e reside actualmente
em Oslo.
Escreveu vários livros de ficção.
Reconhecimentos oficiais pela sua actividade literária:
– Oficial da Ordem do Mérito – Presidência da República Portuguesa
(1999);
– Medalha de Valor Cultural – Câmara Municipal da Praia da Vitória
(2000).
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Horas
sem Tempo
sónia Bettencourt
A
cordo ainda com sono, enterrada nos lençóis, como uma lagarta encasulada ou uma múmia no sarcófago, sem a menor disposição para
engolir o mundo. Não quero que descerrem as cortinas, ainda não! Não
quero que o jacto de luz solar verta pela janela e arranque dos meus
olhos a pouca escuridão que lhes resta. Como as noites e o escuro me
escondem e protegem, aqui no meu quarto, no meu refúgio para descansar da felicidade e da loucura, curar a tristeza, ao fechar a porta e cerrar as cortinas num silêncio imenso.
Fico muda por alguns minutos, sem vontade nenhuma de me levantar, reparo
várias vezes nas horas marcadas com números vermelhos no relógio em cima da
mesinha de cabeceira, como se o tempo e os minutos fossem um alerta constante
do meu sossego, do meu relaxe e da minha existência; olho para as paredes, vejo se
há teias de aranha; observo as partículas de pó sobre os móveis; conto as gavetas da
cómoda; e espreguiço-me então, conformada que o dia começou e que tenho de o
acompanhar, ainda que me seja difícil amá-lo e tornar o seu espírito único.
Há uma aranha num canto do tecto, pequena e transparente, inofensiva e muito
bela. A aranha e a sua teia parecem-me indicar o que de mais belo posso realmente
ter no meu quarto, mesmo sabendo que a colcha e os lençóis da cama são requintados e de bom fabrico, e que a tela colorida exposta na parede, por de cima da cama,
tem um grande valor artístico e sentimental. Prefiro apreciar aquela teia tímida e
discreta com a sua aranha que se hospedou no meu quarto sem autorização. Tão
subtil é a sua sobrevivência.
Volto a fitar os números vermelhos do relógio, emito um grunhido, e entregome na tolerância de cinco, dez minutos, talvez. Conto novamente as gavetas da
cómoda, desta vez de baixo para cima. São cinco gavetas ao todo, três grossas e fundas, duas pequenas e estreitas. E começo a abri-las mentalmente por querer saber
o que lá tenho arrumado, como se não soubesse ou não me lembrasse, como se me
apetecesse, de repente, tocar e cheirar as roupas e os objectos que ali permanecem
desde que foram fechados pela última vez.
Entre cada uma das gavetas há um espaço oco que ocupa um vasto espaço, uma
espécie de memória, e não sei o que fazer com as lembranças, nem com as gavetas,
nem com os minutos que passam, nem com o dia que me acordou. Simplesmente
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não sei o que fazer com o mundo que insiste em ser real.
Abro mentalmente uma gaveta, a primeira de baixo para cima, funda e quieta.
Tenho guardado pijamas, luvas e camisolas quentes. O aroma do amaciador da
roupa me invade toda a lembrança quando ainda a minha mãe cuidava do que eu
usava e vestia. Cada infância tem um cheiro próprio que se instala desde cedo nas
narinas para nunca mais se evaporar.
A segunda gaveta tem uma mancha, não por fora, mas por dentro, entranhada
na madeira, não, entranhada na roupa, em algumas roupas. Roupas de Verão. Uma
gaveta só com blusas de alças finas, atrevidas e coloridas. Prevalece o azul, no entanto. E uma mancha. Invisível. Quando tudo acaba o tempo anda tão devagar, as
coisas são de muitos modos ditas, repetidas e depois esquecidas, eu e ele, dispostos
à confusão, sem sabermos como nos classificar a nós próprios, cansados de tudo o
que existe, objecto ou nada. Imaginação. Roupa fresca e leve. E um punhado de
tecido que nunca foi usado.
Tenho só mais uma gaveta grossa e funda para dar cabo dos ângulos, das secções e das categorias da minha memória. Guardo muitos pássaros e outros bichos
de asas, uma primavera de emoções, pois o Verão e o Inverno já passaram e eu
estou entre estações, espaços ocos, gavetas em mutação, empilhadas de lembranças
e peças de roupa, alguns acessórios ainda por descobrir. Quando houver tempo ou
quando houver nada, porque o nada reside nas coisas, pelo menos na hora inválida,
em que tudo está do avesso, inclusive as horas e o relógio do meu quarto. Um xaile
preto de franjas, antigo, de família; um casaco macio; uma blusa de manga comprida com gola e botões. Conto-os: seis. Peças de roupa preta. Imensas, dobradas,
num odor perfumado. Incógnito. A morte de várias pessoas, umas idosas outras
mais novas, umas íntimas outras estranhas. Pelo caminho da igreja ao cemitério há
uma série de imagens que passam pelos nossos olhos como uma fita de cinema, a
preto e branco, e há vozes, partes de diálogos de conversas antigas, longínquas que
se misturam com as frases do presente. E o morto fala entre aquela mistura, uma
espécie de porão que separa o passado do presente. A sensação de mistério, poesia,
insectos e absurdo, e logo tudo se transforma no fim da cerimónia fúnebre como
uma luz que se acende. Vida. Entre a falha e o risco no vazio.
A aranha continua no canto do tecto. Imagino a teia à minha volta, arrepios,
tenho ainda duas gavetas fechadas. São pequenas e estreitas, porém, conseguem
receber mais coisas do que as outras: objectos miúdos, vertigens, ideias inventadas e
opções fáceis. Puxo a primeira, agora de cima para baixo, e tiro um relógio parado.
Coloco-o ao lado do relógio em uso, em cima da mesinha de cabeceira, comparando-os: um tempo gasto, um tempo por gastar; um tempo certo, um tempo por
acertar … Eu sem tempo e o mundo sem tempo. O tempo inteiro. Um mapa sem
escalas nem direcções, um pacote de cartas sem remetente nem destinatário, duas
lâmpadas de 25 Watts fundidas, vários frascos de perfume com odores florais, um
livro de poesia sem rimas, aspirinas, calmantes e esferográficas vazias. Há pó e um
cabelo liso e castanho entre as moedas antigas espalhadas. O pó é de anos, não, de
semanas. Não foi há muito tempo que limpei toda a mobília do quarto de cama, inclusive aspirei e lavei o chão. Esqueci-me da aranha no canto do tecto. Ainda bem.
É bom ter algo belo por perto. Jamais vou tirá-la daquele lugar. Não me incomoda,
não me faz sentir desleixada do meu quarto e da minha casa. Não gosto de aranhas,
mas gosto daquela aranha. Ouve-me, observa-me sempre em silêncio, no mesmo
lugar. E eu sinto-me tranquila com a sua presença.
A segunda gaveta, também de cima para baixo, também pequena e estreita.
SEIXO REVIEW
Óculos escuros. Uma mania. Não tanto para proteger os olhos do sol como para
parecer enigmática. Coloco no rosto um dos muitos pares. Grandes. Pretos. Totalmente escuros. Nos funerais os óculos tornaram-se sinónimo de luto. Quem os usa
não tenta esconder as lágrimas, mas indicar que chora. Hoje em dia tudo tem estilo.
Inclusive a dor. Misturada com os óculos está uma oração a uma santa protectora,
um rosário e um crucifixo partido. Rezo, ainda assim, sem hesitação, mesmo quando o vazio se torna na mais inquietante das verdades. Mesmo assim.
Empilho a gaveta em cima da cama. Ainda há tempo do pouco tempo que
existe. Encontro também uma chave, no entanto reparo que não há nada trancado
ou, por assim dizer, não há nada para ser aberto. E choro. Não como chorava antes,
mas choro e reconheço que este se tornou o meu maior problema: não chorar tanto
como antigamente. Por isso choro ainda mais.
Oiço uma música vinda da gaveta, espalha-se pelo quarto todo e concentra-se
por fim, junto à janela. Toda a memória tem uma melodia, timbre, som ou batucada.
Abro a janela e a música evapora-se. Tenho dores de cabeça e um abismo de acordes
à minha frente, um refrão e um cansaço.
Quantos minutos se passaram desde que eu perdi na minha cama a memória de
mim? Quantos minutos desfilaram pelo meu relógio de números vermelhos desde
que o dia despontou tornando-se realidade?
Não quero que descerrem as cortinas. Tenho sono. Mas já não há tempo para
dormir. Nem para lembrar.
Sónia Bettencourt nasceu em 1977 em Angra do Heroísmo, Açores, Portugal. Colabora
há vários anos com diversos jornais e revistas. Participou em vários encontros de
escrita criativa nas áreas de poesia, teatro e cinema. Em 2003 publicou «Pena e Pluma»
(poesia, edição de autor). Foi vencedora do Prémio Conto, «Mar Vazio», categoria
sénior, do Certame da Macaronésia de Jovens Artistas, Lanzarote, Canárias, 2005.
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Gli ultimi ombelichi
Mário Simon
Traduzione in Italiano
Di Marco Scalabrino
L’
inverno, col suo novero misterioso di gioie e di dolori!
Una stagione di paradossi, in cui si combinano il buon vino, i focolari
caldi, la dolce musica della pioggia, l’umido dei giacigli e la tosse secolare
della miseria. Una miscela singolare che, da un canto, invita all’amore e,
d’atro canto, origina la muffa. Il freddo che unisce è, al contempo, quello
stesso freddo che separa! Alcuni li unisce nella stanza da letto, altri li separa
con la cassa da morto. Ah, inverni della mia terra! Se, per tali ragioni, molti
vi amano, per le medesime ragioni, tanti di più vi aborriscono.
Io non dovrei parlare del tormento delle notti di gelo che a Giugno ci
colgono e a Luglio ci aggrediscono, per farci ammalare ad Agosto. Mi contraddico di frequente, confondo il testo, smarrisco la rotta tracciata sin dal
titolo. Avrei bisogno di disciplina! Meglio ancora, di coerenza e coesione.
Ma, questa l’ho persa già nella fase iniziale; quella, non l’ho mai avuta nel
corso di tutto il racconto. E me ne accorgo! Mi sovrasta dunque la condanna all’oblio, all’inferno della Letteratura o mi sarà perdonato per avere riconosciuto la mia fragilità, signore professoresse Elza Prietto e Nelci Müller?
Il testo, nella stesura che ha assunto, risulta stravolto o comunque ne viene
fuori tutelato e indenne da ogni rischio linguistico?
Oh, mio Dio, io avrei voluto solo parlare degli ultimi ombelichi! Loro,
sì, li ho visti giusto ieri, e oggi stanno già congedandosi, come le rondini in
vista del cupo, interminabile inverno.
Ombelichi che introducono, lungo i fianchi ammaliatori, l’occhio umano fino al limite massimo consentito nella direzione della pubescente foresta, là dove coabitano gli spiriti di Eros e di Messalina. Ombelico, come
rubino incastonato nell’oro, che avverte che il mezzo palmo di pancia in
mostra non può spingersi oltre la cintola” stile Saint Tropez “. E se per caso,
lì, affiorano gli apici della foresta incantata … che estasi, mentre la bava ti
scorre ai lati della bocca!
Ma perché questi meravigliosi ombelichi debbono andar via? L’inverno
non perdona e il freddo non prende lezioni di Eros! Perciò, o l’ombelico si
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SEIXO REVIEW
copre di lana e di calore o verrà sommerso di neve e di gelo. E noi, poveri
uomini vogliosi della Maya Desnuda, dovremo dare addio a quei ventri di
Venere, a quegli ombelichi deliziosi e contentarci della Maya Vestita.
Ma non tutti i mali durano in eterno, fratelli dall’occhio eccitato! Quando i raggi del sole torneranno nuovamente roventi, gli ombelichi torneranno ancora ad ostentarsi su quelle pance, come fossero quadri che solo un
pittore fiorentino del diciassettesimo secolo avrebbe saputo disegnare. Si
riproporranno nuove follie e sregolatezze, cintole ancora più basse della”
Saint Tropez “e la regione iliaca sarà, daccapo, esposta alla nostra involontaria concupiscenza. Il che non è peccato, ché se lo fosse non ci sarebbe più
un posto tra le fiamme dell’inferno.
Una cosa tuttavia mi angustia: parecchi ombelichi non torneranno! Alcuni perché, appesantiti dal grasso, vorranno tenersi ben a distanza dagli
antichi e cupidi sguardi; altri, perché avranno rinunciato ad esibirsi di fronte all’altare” finché morte non vi separi “.
In conclusione: quelli, che le donne hanno mostrato spavaldi in pubblico, hanno fatto di ciascuna di loro la donna dei sogni di un uomo per
sempre; questi, hanno messo giudizio!
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j. Michael Yates
A
D
o
g
a
n
g
e
l
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s he moves through the ceiling-high shelves of blown – glass figurines,
the corners of his mouth draw back almost beneath his ears to reveal
teeth which seem too many for the mouth which houses them. He
seems to be smiling at the thousands of shapes which shine and glint
like wisps of back-lit smoke.
He is not.
He is searching.
Again and again, he carefully draws back the sleeve of his left
arm with thumb and forefinger of his right before passing his hand
through the clearance between heads of unicorns and giraffes and the
plate shelf above into the depths of the shelf ’s contents to rearrange
this lamb and that glass conifer at the back, like chess pieces, on his
patient quest. His are the movements of a neurosurgeon, of a diamond-cutter, of one moving sensitive explosives from one place to a
place nearby. The deft arm and fingers move in steady, almost mechanical precision, never a twitch nor a quaver. All the while, the jaw convulses and the corners of the mouth expose the teeth repeatedly. And
his tongue hangs out of the open mouth, sometimes flaccid with small
bubbles catching the light like the figurines and sometimes echoing
the English of the arm as it coils around a clump of glass fishermen
in various poses of casting to discern what might be behind a scene
of a rising sun. This can only be determined by moving the sun to one
side. Never is there so much as a faint “ting” of the tail of a translucent
cougar making contact with the headdress of a Sioux warrior, nor then
of Everest which rises almost to the second shelf.
His left leg bends at the knee, elevating the left foot which is
shod in a shoe so scuffed that it might originally have been either
black or brown. The toe of this foot begins, at first with slow, regular
cadence, to scratch the calf of the right leg which is now the only pivot
of equilibrium. The left arm still probes deep into glazed space, the
right holding back the sleeve of the worn and stained hound’s tooth
tweed jacket. The jaw twitches visibly. One can almost hear a click
at each twitch. Tongue and teeth are so exposed that salivation can
not be well – controlled; therefore, the only sound is an intermittent
abrupt sucking.
It is perhaps this sound on which she homes as she voyages
through the silicon dioxide labyrinth – sidewise for the most part, sensible as she is of
her extensive beam. She holds the skirts of her brown velour, ankle-length, long-sleeved
gown in close to her hips which move with a rhythm usually associated only with rolling
sea-swell. Thus she avoids sweeping any of the fragile inventory to the thick pile carpet. At
intersections of shelving, there is room for her to turn 180 degrees. She does so at each and
thus alternates turning her cherubic face to view the glassscape on the north, then again to
the south at the next intersection.
That the two should meet is inevitable. There are no known limitless mazes. None
horizontal. None vertical.
Less clear is the concatenation of events which ramify from the inception of their
meeting.
For example, possibly:
Huge and weighty as she is, her sidewise dance down the corridor between shelves
alerts him of her presence in no auditory way because of the deep pile of the puce-coloured
rug, which is very near the colour and texture of her gown. She approaches him on his left
side, he being far too intent on the operations of his left hand to note her arrival, even in
his (normally) quite effective peripheral vision. He is quite lean and wiry. Nevertheless, his
bent posture, allowing more reach, and heron – stance while digging at the right calf with
the left toe are sufficient to prevent her further passage down the aisle in the direction she
was travelling before encountering this obstacle. She finds it necessary to retreat to the last
intersection and choose another way or pause here and find sufficient common ground to
begin conversation.
It does not seem to disturb her that she is facing south while he is carrying on his investigations on the northern side of the space. Therefore, to carry on conversation with him
she, of necessity, speaks to him over her left shoulder.
On the other hand:
Suppose them having met, having exited the thousand of shelves bearing millions of
glass forms and proceeding along a sidewalk.
Steady as the nucleus of an atom, she parts the human waves before her with the
double-hull of her vast bosom. He speaks in clipped, short-vowelled syllables, an angular
being gesticulating in lines and corners, speech and gesture just enough asynchronous to
jangle her rotund sense of grace. Many steps before curb-lip indicating a cross-street, she
slows her cadence, coming thus to a stop with a well orchestrated rocking gait.
They seem oblivious to the traffic light across the street which goes through its three
possibilities of phase again and again and again.
They are speaking.
In language of body and sound, they are fangling exposition, the very foundation for
all which will follow.
The lights flash. Hordes of passers-by pass by.
He cannot seem to stand still. His hands dive into his pockets and reemerge to paw
the air and then again disappear. She extends one arm to make a point. The heavy flesh between shoulder and elbow inside the brown gown swings and does not stop swinging until
the arm returns to her side.
When the wrist returns to the vicinity of her waist, the movement of the scapula beneath the fabric seems the movement of a great wing of a bound bird. When he speaks, he
is very animated, moving constantly around her: the jaw clicks, the tongue lolls and moves
quickly from side to side, periodically licking away the mushrooms of saliva which gather
at the corners of his mouth. He seems agitated and the agitation grows until she begins to
move and speak, at which times he becomes silent and the animation abates.
SEIXO REVIEW
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She speaks much more softly than he and he moves closer to hear what she is saying,
only the tongue and the tics around the mouth betraying the energy just below the surface
of his conversation with her.
When he moves near her, ostensibly to listen, he begins an odd, yet vaguely familiar
little dance. His pelvis snicks forward and back in a thrusting pattern and this motion
seems to have a life independent of what she or he may be saying or doing with upper body
to underscore significant points of discussion.
In the last frame of this view of them, she reaches gently into a deep pocket of her voluminous gown and produces a small brown puppy, difficult to see from a distance because
the animal is very nearly the same colour as her gown.
He has not expected this maneuver. He has been inching nearer and nearer, pelvis
clicking back and forth almost in counterpoint to the tic of his jaw. The nearer he draws,
the more pronounced the action of the pelvis.
With the appearance of the puppy, he grows almost motionless.
She tucks the animal into the heaving soft cleavage exposed by her low-cut neckline,
as if to provide a continuum of warmth. She bends her face down and the animal licks her
on her fleshy lips. She then kisses it full in the face. She suddenly draws the puppy from its
metabolic nook and offers it to him. He leaps back, places both hands behind him, clasps
them there, stands on the right foot and begins digging furiously at the calf of the right leg
with the toe of the left once again.
“Angels.” He fears to move his feet and fears not to move them. Each movement of
his shoes rises up to his ears in the thin language of newspaper laid over linoleum with a
substantial layer of grit between the two.
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“It’s always such a problem with the runt.” She speaks over her left shoulder to him as
she leans forward on the chesterfield to arrange newborn puppies which are feeding. She
wheezes. Her massive breasts and rings of abdominal fat pendulate between her knees as
she bends from her seat on the chesterfield cushion whose springs have long been flattened.
She subtracts the smallest of the animals from the lot. He had threaded his way blindly
through the forelegs of the mother in the direction opposite the nipples. “I think this,”
holding up the tiny dog, “is where the term, ‘underdog’ comes from.” She laughs. Her whole
body picks up the frequency of her laughter.
“In all liklihood, it did, as a matter of fact.” He is annoyed that she has treated as a joke
so self-evident an etymological development.
She disengages the largest of the puppies and fastens the smallest to the teat.
“I’d rather have thought it might refer to the animal getting the worst of a dogfight.”
“It is a more serious issue of natural selection for an animal to starve than for one to
undergo humiliation and a few scars.” He finds it difficult to speak. The stench of mammal
is overwhelming. He is not skilled at the best of times at maintaining eye contact. He feels
that it is important to attempt to do so now, but he cannot move for fear of stepping in a
wet spot or one of the piles of adult and whelp excreta in various stages of texture which
seem everywhere about his feet. He couldn’t in any case. Her great size, her orientation on
the chesterfield and her being bent over the squirming mass of metabolism prevent her
turning sufficiently to see him standing in the doorway between kitchen and living room,
rooted to his position, nervous energy expressing itself wildly through the jaw and eyes.
The reek of urine, milk, dung, and the comprehensive, indescribable stench of dog
gives him the olfactory illusion that the air of the space of these rooms is dangerously larger
than the space available for air. He alternates holding his breath and breathing through his
mouth only.
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“Please do come in.”
“I think there isn’t really room.” He looks for a path through the droppings.
“I made it, didn’t I?”
“So you did.” The sound upon his ears of her crunching her way in a straight line
through the paper and dung obstacle course comes back to him.
Once beside her on the chesterfield, he seems to be grinning widely, but it is his nervousness, once again, and once again the blooms of spittle adorn the corners of his mouth.
“Isn’t this one just an angel? I love his colouring.” The colouring of the animal, marbled
with white, is overall very much the colouring of her gown. He can see through the paper
that the carpet of the living room is the same short-bristle brown, velour-like nap.
“Yes, I suppose it is…I was starting to tell you earlier that I am, avocationally, an angelologist; I was looking there amongst the shelves of figurines for angels, representations
of angels.”
She picks up one of the full and contented puppies and deposits it in her bosom as she
turns to him. “Isn’t that interesting? I was looking for dogs.”
“There were thousands of them there. I could scarcely find anything else. Every breed
of dog imaginable and some utterly unrecognizable. Are you a collector of figurines?”
“Actually, I’m not. I simply wanted to see what they had. And whether I might like
what they had. I guess I’m a collector as you find me… of the real living, breathing thing.”
He thinks of adding farting, shitting, slavering, whining, but doesn’t. “Your approach
presents certain difficulties to the angelologist.”
Her laughter rocks the chesterfield and seemingly the room. He finds himself rising
and falling on the structure, tossed about on a velour sea the colour of her gown and the
rug, except for the spots of unmistakable origin and the places chewed by young animals.
He had once found himself obliged to spend the night on a waterbed and spent it sleepless
and terrified. While she laughs, his snicking pelvis and scratching left foot leave off their
independent activities and pitch in to assist in the survival effort to stabilize against the
motion. The jaw clicking and the sucking, however, increase by a substantial exponent.
“Did you find anything of interest?”
“Not on the shelves.”
“Neither did I, but then I was looking for something not easy to find.”
“Oh, I think we all are. Those of us with any sensitivity at all…Oh, dear, I think the
little darling has moistened me,” she speaks as she withdraws the sleepy infant dog from
her cleavage and places it next to its mother, wheezing heavily as she bends over, sending
the sea of the chesterfield into storm once again.
“He isn’t house-trained, much less bosom-trained.” She straightens and, looking about
the room, asks, “Do you see a box of tissues?”
He sees the box on the endtable next to him.
“Ah yes, right here.” He leaps to his feet, delighted to get off the chesterfield and have
the opportunity to stand on the right foot and scratch with the left, below the level of her
sight over the left arm of the chesterfield. He hands her the box.
“I think we are looking for love.” With a nod, she indicates her wish that he sit down
once again next to her. He does so, and closer, but finds the posture of having one buttock
significantly lower than the other on the slope of the cushion strange and unnerving.
“I was looking for angels. Actually only two angels. Or possibly one.”
“One or two?”
“I think I shall know when I find one or the other.”
“There is more than one kind of love. You could say I have found love in my animals
here. They give me great affection and great joy tending them and watching them grow.”
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“Angels have a great deal to do with love, too.”
“Not by my terms. They haven’t even genitals. The puppy just pissed on me with his
little penis.”
“You asked me about my quest. Perhaps I should tell you more….”
“You see I find the concept of angels about as cold as those glass figurines. These dogs
are palpable. They are warm.” She breaks wind thunderously. He is rocked by the reality
that he has just been fired upon, deliberately and accurately, by another human metabolism.
She had rolled up on her right buttock and delivered a shattering blast in his direction – to
underscore a point. “As do we, these animals defecate and urinate and perspire and die
and give birth as this bitch just has.” She points across the room to a grey-whiskered male
asleep, dreaming, with his bright red penis fully three inches out of its sheath. “He’s probably dreaming of having his forelegs clamped around the haunches of this or any other bitch
with his rock-hard penis thrusting as far into to her swollen vagina as he can drive it.”
Even at his strange angle on the sofa, the snicking of his pelvis is quite pronounced.
He can feel the embarrassing discomfort of tumescence. By instinct he attempts to cross his
left leg with his right in order to conceal the increasing bulge and topples into her lap.
The fall quells the tumescence forthwith. As he attempts to regain his balance, his
arms flail in all directions. Finally his right hand finds a hold. Unfortunately, it is the coast
of her neckline. He discovers that the material is as stretchable as it is soft. It pulls down
and her left breast flops to freedom from its constriction inside the garment.
He rolls from her lap to the floor, the neckline still in his hand, staring in terror at the
size and brownish-blue veining of the breast. His weight is just sufficient to upset her balance. Just as he opens his mouth to cry out it is gagged by the breast – nipple and aureola
in his mouth and the rest of it covering his face and ears. At this moment, he remembers
hearing that someone had died in Alaska in an unusual manner: a Kodiak bear had crept
into his two-man tent to make off with a pound of cheese foolishly cached there. Sensing
the presence of unwashed flesh and body heat, he supposed at first that one of the members
of his party might be homosexual and making a midnight advance.
He eased his hand up the brown fabric of his sleeping bag, grabbed toward the presence, and twisted. An unholy noise filled the wilderness as the sow bear, whose full teat he
had taken hold of and twisted, rose bawling like a rodeo bull, bucking and roaring. He, his
tent and much of the camp were destroyed. Finally, he managed to raise the barrel of a rifle
until it was near the beast’s chest, and fire. The animal dropped on him and he was found
suffocated with the dead animal on top of him several days later. So he heard, half-listening
at a cocktail party.
The bear was purplish brown in colour, as he recalled. He had no conception of wilderness, personally.
“Angels, I was going to say,” he says, rolling out from under the breast, then helping
her lift it back to flop inside the elastic neckline of the gown, “symbolize a level of consciousness higher than that of man – except for that of the artist, of course – but lower than
the consciousness of god.” She puffs and wheezes, making noises like an unoiled door hinge
as he politely attempts to push the breast back into the dress and her body back into place
on the couch. He stands quite close to her.
Before they can get the breast, which proves as cooperative as spilled mercury, securely
back into the blouse part of the gown, she attempts to stand up thinking to allow gravity to
assist, then simply pop the neckline over the swinging mammary. However, the exhausted
springs of the couch cave once again, almost vengefully. She reaches up reflexively to steady
and prevent herself from falling back on the couch without realizing how close he is in his
attempt to assist. The huge right arm reaches up toward him, the left making circles in the
SEIXO REVIEW
air behind her, grasping for anything to buttress her balance, but there is nothing. The exposed left breast swings wildly into a sinister erratic orbit which he observes with terror. He
is about to raise his arms before his face to avoid being hit by the juggernaut breast when
her right forearm, midway between wrist and elbow comes into epiphanic collision with his
left testicle. He closes his eyes and bends over sharply. Sharply his nose collides with the
crown of her head, breaking his nose, his glasses, and her balance once again. Once again
both roll around on the newspapered floor as though it is a typhoon and the evil-tempered
chesterfield the only land around. Dogs squeal and bark and kiyi.
“I think we should discuss angelology on another occasion,” he suggests nasally from
behind his left hand in which he attempts to cup the copious blood. It is not likely she hears
him. She is on her back, reaching for the sofa which is just out of reach. In her attempts to
grab hold, the other breast leaks loose from its mooring and now she has one on either side
of her face, probably blocking her hearing.
Almost finally:
His residence is spotless as are floors and livried servants which open set after set of
tall double-doors through which we pass until finally, once again, we are in the presence of
the man and the woman.
“Satan was the most rational of angels, but never have I seen a glass representation of
Lucifer in his angelic days…that is, those days before his fallen angel days. You see, it seems
generally agreed that he was cast down but never actually cashiered, relieved of his rank of
archangel. He persists as a fallen archangel who no longer sits beside Jahweh. The idea of a
sitting god, much less an angel, is absurd anthropomorphism …would a god tire and need
to sit and rest? Would you say of an angel strumming his lyre, ‘He played like a god?’”
The room is filled from floor to ceiling with clear glass effigies of angels.
“Is there a dog god?”
“Did you take the name of a deity in vain?”
She pulls a filthy handherchief from her sleeve and moves it toward her nose. “‘Dog
god’, I said, d-o-g g-o-d. I am stuffed up.”
“Not exactly, to my knowledge, but Canis has been much celebrated by man. Diogenes
took the dog for the symbol of the philosophical man. He admired the dog because the dog
carried all he needed with him at all times. He suggested that anyone who could not do the
same was decidedly not a philosopher.”
She reclines on his white leather sofa like a caricature of a Rubens model, arms open
wide, except when she waves the handkerchief in the general direction of her brown veloure
neckline by way of fanning herself.
He races longitudinally and latitudinally across the facework of the shelving and back
pointing out this representation and that while she follows him with her eyes and the several dogs she brought with her play and snarl their harness on the extremely white carpet
which reflects light like a snowfield back up through the clear glass shelves and the parts of
the clear glass figurines.
“I want to speak of living creatures, not mythical grotesques. I want to speak of being
alive and warm as a dog is warm to the touch. I want to speak of love and love-making.”
This causes him to pause in his flitting from angel to angel. When he does, up comes
the left foot to dig at the right calf. His trousers feel as though they might not hold the
engorgement of his primary erectile tissue, and, on one leg, the pelvis begins snicking back
and forth, completely beyond a hope of control. He begins to walk again and, with his
back to her, does a little dance as he plunges his hand into his trousers top and adjusts his
Willy – as he calls it – from right to left where he normally “dresses.”
“Think of it, woman, many of these blown glass figures existed before we did. If unSEIXO REVIEW
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touched, they will remain generation after generation…. more durable than the sphinx,
although made of the same elements…inside here away from the weather.”
“It’s nothing…glass, sand…it’s all the same… nothing …” She adjusts herself on the
leather. It inhales and exhales as she moves. The movement ripples through the pools of
her flesh.
He appears to panic from station to station. “Look, look at these…Here is the angel
Cassiel, ruler of Saturday, astride a dragon, the angel of solitudes and tears. Cassiel is one of
the rulers of the planet Saturn, a ruling prince of the 7th Heaven and one of the of the order
of powers, he sometimes appears as the angel of temperance…”
“That is no ‘he’. Show me proof of its gender.” The dogs struggle against their restraints which are secured under her foot.
“Azazel…Azazel is one of the chiefs of the chiefs of the
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200 fallen angels. Revelation states that fully a third of the heavenly host were involved in
the fall…This is Azazel from whom women learned finery and the art of beautifying the
eyelids. He is the scapegoat in Leviticus …all 7 heads, 14 faces, and 12 wings…he refused
to bow down before Adam…”
“Now…time…procreation…we are given the ability to experience now, to make love
recreationally…even my darling dogs can’t do that.”
Overcome by the strong, dark, irresistible riverforce of sex, he throws himself upon her.
Her feet rise with his weight upon her and the several dogs, snapping at one another, frustrated with their ineluctible propinquity, race in a strange, circling, growling, joyous bunch
first left, then right, then blindly in group inertia toward the altitudinous and infinitely
wide shelving.
He is grasping everything he can to remain on top of her. He grabs the neckline of her
velour gown hoping to lift the skirt with the other hand, intermittently wishing for another
prehensile appendage to reach for his zipper.
Her huge hands grasp him around the neck and she throws him as easily as she might
a lighted cigarette, dropped away from her lap in the event of mishap. He lands precisely at
the moment that the tangle of leather and dogs strikes the foundation of the shelving and
they fuse forever.
As the dogs contiguate with the shelving, there is a cataract of glass and light, spilling
and breaking to the floor.
One more time, he attempts to raise the vast velour skirt. She catches him full in the
chest with a foot and sends him reeling with the dogs into the high, high, wide glass shelving.
Through the waterfall of glass falling and breaking, he finds the largest dog and grasps
it by its hind legs. Like a hammer-thrower, he winds up twice with the dog abaxial before
he sights and connects with her person. As the skull of the canine interfaces with her own,
the froth at the corners of his mouth is present. There is momentary satisfaction before the
entire silicone dioxide structure falls from the exact altitude of Everest (or its glass emblem)
upon him, the woman, and all the dead dogs she accompanied.
And finally, the storyteller promises.
The light stops down to approximately 20:15 hours (shutter and camera aperture) of
an evening somewhat west of the Tantalus range on the coast of British Columbia. Somewhere between 1.4 and. 9 of a very swift lens. But there is just enough light to produce an
image at least one and one half hours 4-wheel drive into the Microwave Tower of the Black
Tusk in Garibaldi Park.
However, after about 1.5 hours of hike to the West Bluff and the descent to climb up
SEIXO REVIEW
the chimney known as Satan’s Asshole (the third from the
prow of the volcanic core) to the summit of the Tusk itself,
what one encounters is not unexpected: 7600 vertical feet
of glass detritus. Nothing natural, simply layer upon layer
of shards of figurines. Enough to make the artist who
dreams of bringing primal Dionysis and primal Apollo
into conjunction despair and despair upon realizing that
what he had mistaken for chaos was merely the wreckage
of forms which had been and despaired before him.
J. MICHAEL YATES was born in the Ozark Mountains of
Missouri and did graduate degrees at the Universities
of Missouri and Michigan. He is a widely published
author of poetry, fiction, drama, translations, and
philosophical essays. His work has been translated
into most of the western languages and several of
the eastern ones and his drama for radio, television,
and stage have been produced both nationally and
internationally. His last rank as a university professor
was Distinguished Professor. He lives in Vancouver,
Canada.
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Sobre
Livro-me do Desassossego,
de Onésimo T. Almeida
vamberto Freitas
N
ão só li de imediato o mais recente livro
de Onésimo T. Almeida, Livro-me do
Desassossego (da editora Temas & Debates,
Lisboa), como também não fiz o próprio
autor esperar muito pela minha reacção.
Disse-lhe que a publicação de um livro
seu era sempre para mim um acontecimento; repeti-lhe que continuava
a sentir duas emoções bem contraditórias: a admiração pela sua habilidade
na confecção deste género de escrita, e a consequente inveja que me invadia durante essa leitura. Já
tinha escrito algo de semelhante, quando há muitos anos
apresentei na América o seu Açores, Açorianos, Açorianidade, um conjunto de ensaios que contextualizam e teorizam a cultura e literatura contemporâneas do nosso
arquipélago. Efectivamente, nenhum outro escritor (de
ensaios e crónicas) da minha geração me desperta tal entusiasmo, ninguém como ele se tornou nunca para mim
uma referência tão enraizada e duradoura. Creio ser de
elementar justiça, quando chegamos a esta meia-idade e
depois de uma vida de trabalho nestas áreas, reconhecermos com toda a honestidade quem é quem, e principalmente quem fundou e elaborou todo um discurso acerca
de certos temas, que depois definiria todo um quadro
intelectual de investigação e reflexão. Onésimo Almeida,
nos campos que em frente delinearei com alguma brevidade, foi quem desbravou todo um terreno cultural e
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SEIXO REVIEW
afectivo entre dois mundos (apesar
de tudo) bem distantes e diferentes,
como o são a América do Norte e
Portugal, com especial ênfase para os
Açores e as suas relações histórico-culturais (privilegiadas, adicione-se, no contexto português) com o grande continente
a oeste. Livro-me do Desassossego, que reúne
crónicas publicadas em vários jornais e revistas no Continente e nos Açores (e depois republicadas um pouco por toda a parte, em papel e
na net), é mais um desses volumes que vêm confirmar definitivamente o que acabo de afirmar aqui.
A obra de Onésimo Almeida remonta aos anos 70,
quase logo após a sua chegada aos Estados Unidos.
Para além do seu trabalho estritamente académico, as
primeiras crónicas começam a ser publicadas em jornais luso-americanos, e a sua temática delineada desde
o início: a América no seu contexto histórico, político
e cultural e, adentro desse vasto mosaico, a experiência
imigrante lusa, nos seus relacionamentos com a restante
sociedade em que está inserida e com a mãe-pátria lusitana. Dirão possivelmente que outros antes dele já o
faziam na Imprensa de língua portuguesa na Costa Leste
e nas comunidades do Pacífico. Sim, a nossa imigração
nos EUA tem também uma longa história intelectual e
sempre cultivou o seu discurso público muito próprio,
mas foi Onésimo Almeida que abriu ideologicamente à
nossa geração as linguagens e “narrativas” para muitos de
nós que em breve o seguiriam nos jornais e na academia
daquele país. É claro que ser livre e português naqueles anos de ressurgimento cultural entre nós na América
era necessariamente partir de pressupostos ideológicos
que estariam logo à partida em conflito aberto com toda
Tradição intelectual que nos antecedia há mais de um
século. Onésimo Almeida, que já chegara à América com
formação académica superior, entra em cena ainda antes
do 25 de Abril, e de um discurso imigrante que havia
sido sempre “patriótico” e servilista, em relação ao país
de acolhimento ou ao ancestral, passa de imediato a outros paradigmas de análise e comentário. Fez muitos dos
seus leitores naquelas paragens estremecerem de surpresa, perplexidade e, sobretudo, de desorientação (por vezes raivosa e persecutória) ante tanta audácia e desafio a
noções propagandisticamente recebidas dos sistemas nos
dois lados do atlântico. Antes de Onésimo Almeida, só
uma outra figura açoriana havia tido tamanha coragem
intelectual e jornalística na nossa Diáspora dos Estados
Unidos: Garcia Monteiro, médico, poeta e comentador
que emigrou do Faial para a América em 1884, e lá faleceria em 1913. Monteiro, autor de Rimas de Ironia Alegre, publicava com alguma regularidade as suas “cartas”
em jornais da imigração, nos Açores e até no Brasil, nos
quais consistentemente desmontava o discurso americano ante si próprio e o restante mundo, assim como “revisitava” a sua terra natal quase sempre sob perspectivas
hipercríticas e numa linguagem penetrantemente irónica
e sarcástica. Monteiro, como Onésimo Almeida o faria
muito mais tarde, coloca os seus dois mundos interrelacionados ou em separação absoluta numa perspectiva
muito mais alargada, global. O chamado “sonho americano” continha em si também o resto: todas as injustiças
e marginalidades opressivas que os próprios intelectuais e escritores anglo-saxónicos assim como os de outras etnias, particularmente os afro-americanos, sempre
tinham apontado com ferocidade ainda mais aguda. Só
que Onésimo Almeida se dirigia (e dirige-se ainda hoje)
em língua portuguesa a um público específico, então dobrado em exagerada gratidão pela sua aparente “felicidade” no novo mundo após gerações e gerações cercado
na pobre e fechada sociedade das ilhas (ou portuguesa
em geral); ante Portugal, era o saudosismo acrítico e a
sentimentalidade de uma memória muito selectiva, que
esquecia as razões que a todos fizeram navegar, enaltecendo cegamente a mítica da “nação” e da “raça”. Só que
muito depressa também se gerou um outro consenso em
volta da necessidade da sua escrita entre nós na Diáspo-
ra: vinha já daqueles que Eduardo Mayone Dias mais
tarde, no seu livro A Literatura Emigrante Portuguesa na
Califórnia, chamaria de “geração universitária”. Eram
poucos ainda, mas eram, na sua maioria, de todo receptivos às novas visões que Onésimo Almeida apresentava
nas colunas dos jornais, principalmente no Portuguese
Times, de New Bedford. Quando alguns deles seguiram
nas suas próprias intervenções públicas poucos anos depois do autor de Da Vida Quotidiana na l (USAlândia, a
primeira colectânea desses textos que Onésimo Almeida
fazia sair em Coimbra, não só o seu caminho tinha sido
aberto como colocava o autor numa posição de referência inescapável.
Longe vão esses textos iniciais (e seus contextos de
época) de Onésimo Almeida do que agora nos oferece
ele em Livro-me do Desassossego. O que não quer dizer
que todos esses volumes não constituam uma “narrativa”
com continuidade testemunhal e criativa. Só que o nosso
mundo mudou: Portugal tem já 30 anos de democracia,
e a América de Richard Nixon passou à de George W.
Bush. É certo que o Iraque poderá ser a continuidade
imperial do Vietname, e o Portugal de hoje ainda sofrer
de males muito antigos, e de vícios agora reformulados,
principalmente na sua vida intelectual. Cada autor, no
entanto, vai atravessando o seu tempo à sua maneira, seguindo trajectos feitos e refeitos conforme as “exigências”
de cada etapa da sua vida. O interesse por esses seus dois
mundos americano e português permanece com a mesma curiosidade e intensidade de sempre, mas agora sem
o compromisso militante da juventude, agora liberto das
ilusões de que poderemos “mudar” tudo rapidamente e/
ou através da escrita. O olhar crítico não se desvaneceu,
antes “recentrou-se”. Certezas de antigamente deram
desde há muito lugar ao questionamento e a uma outra compreensão das fragilidades humanas, que a todos
atinge de um modo ou outro. O sarcasmo (tão presente
sempre no discurso público português) nunca foi a sua
arma, mas sim o humor que ilumina sem esmagar. Disse-me um dia, a propósito do seu teatro em Ah! Mònim
Dum Corisco! …, que nunca ria de, mas sim com. Livrome do Desassossego vem na sequência de outros volumes
desta fase da sua escrita (Rio Atlântico e Viagens na Minha Era, entre outros), com o mosaico humano transatlântico servindo sempre de palco e fundo para as suas
histórias de português no mundo e em andanças incessantes. Momentos que vive com amigos nas ilhas ou no
Continente, livros e jornais que lê despertando interesses
diversos do momento, simpósios em que participa um
pouco por toda a parte, incidentes de vária natureza que
SEIXO REVIEW
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ocorrem aqui e ali na sua presença, debates cruciais da
nossa época envolvendo política e cultura, em suma, a
vida toda e a vários níveis serve-lhe para se ir posicionando nesse drama humano que lhe é dado viver, comunicando tudo aos seus leitores numa linguagem escorreita, clara e limpa de retórica pretensamente erudita e
ofuscadora de significados claros, tão ao gosto de certos
académicos que se “dignam” escrever para o grande público. Onésimo Almeida tanto publica na revista LER
como no JL ou, por exemplo, no Portuguese Times. O seu
é um diálogo que cruza sempre em dois sentidos o que
ele próprio passou a chamar de Rio Atlântico, primeiro
num dos seus livros, e depois em referências várias à sua e
nossa condição de gente embarcadiça ou em movimento
perpétuo. Raramente poderemos esquecer que ele é um
Professor Catedrático de filosofia e de estudos lusófonos
de uma das melhores universidades do mundo, a Brown
University, sem que isso afecte uma só linha da tal prosa
viva e criativamente dialogista, deixando para publicações universitárias e especializadas o outro discurso.
Que mais marca esta prosa de Livro-me do Desassossego? O que sempre marcou toda a sua escrita deste género:
a presença humanizada e empática de um outro, ou simplesmente de alguém mais próximo (como os filhos ou a
esposa) ou menos próximo de si e dos seus mundos, seja
ele (ou ela) amigo, colega, autor distante, figura destacada
em qualquer outro campo de actividade (como na crónica
antológica “De Paris, Pauleta & outros patrícios”), directores de jornais americanos a quem se dirige em diálogo
sobre uma ou outra questão, e outros ainda pertencentes
aos mais variados escalões sociais. Todas estas crónicas
em sequência de livro funcionam quase como um registo
diarístico narrativo do que lhe vai acontecendo e surgindo em circunstâncias diversas, quer seja na sua sala de
casa ou num indiferente terminal de aeroporto. O “eu”
tão essencial a este género de escrita está naturalmente
aqui presente de passo em passo, mas nunca se intromete
quando é a voz do outro a falar para o leitor. A presença
do autor-narrador aqui limita-se muitas vezes a reacções
de surpresa ou encanto perante o que vai ouvindo ou relatando, deixando juízos de valor, agradáveis ou não, a
cada leitor. Como já tinha demonstrado vezes sem fim
noutra escrita, Onésimo Almeida lê outros com generosidade intelectual e de espírito aberto, mas não poupa
quem lhe aparece, seja de que nacionalidade for, como
alguém que pela ignorância ou má intenção tente denegrir um outro autor ou toda uma cultura. Numa crónica
sobre a cimeira das Lajes com o presidente americano e
alguns líderes europeus (“Fragmentada Crónica de uma
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SEIXO REVIEW
guerra anunciada”), o autor dirige-se ao director do New
York Times sobre uma reportagem do muito conhecido
e respeitado jornalista da casa, e autor de vários livros
sobre política internacional e globalização, Thomas L.
Friedman, cuja reportagem enviada das Lajes manifestava tanto preconceitos políticos como ignorância pura
sobre as ilhas. “Ao desdenhar a importância da cimeira
Bush-Blair-Aznar nos Açores-escreve Onésimo Almeida – o v/jornal, Thomas L. Friedman não precisava de
minimizar o belo arquipélago (…) fazendo-o parecer
pior que o Pólo Norte. O sr. Friedman legitima o seu
conhecimento daquelas ilhas com o facto de um dia lá
ter parado com o secretário de Estado James Baker para
reabastecimento do avião. Esperava uma afirmação dessas da parte do presidente Bush, não de um cronista que
leio regularmente com prazer”. Quantos de nós em Portugal poderíamos (e deveríamos) aprender a contestar alguém publicamente sem a habitual lusa ofensa e a (quase
sempre) postura de absoluta superioridade perante um
adversário do momento, ou simplesmente alguém com
quem discordamos?
É precisamente essa postura assumida descomplexadamente de autor vivendo mundos dispersos e por vezes
em conflito de natureza essencialmente cultural, que o
tornou desde sempre referência primeira entre nós. Sei
que este “nós” inclui muitos outros, mesmo fora das suas
geografias sentimentais, os que com esses espaços se
identificam de um modo ou outro, mas refiro-me aqui
directamente aos seus colegas que na Diáspora com
ele aprenderam não só a ver o seu mundo plural, mas a
contextualizá-lo na vasta experiência humana nas duas
margens do Rio Atlântico. Nos EUA e nos Açores abriu
ou reabriu mundos até então para nós submersos, ou conhecidos só por uma minoria académica de então, desde
a literatura imigrante lusa ao combate cultural e literário
travado nos Açores nos anos 60-80. Onésimo Almeida
criou um extenso arquivo sobre essas questões e fez despoletar outros tantos entre os seus colegas que com ele
sempre partilharam essas afinidades electivas. Hoje, a sua
temática vai para além de tudo isso, não só com este tipo
de escrita de Livro-me do Desassossego, como com toda
uma obra que aborda as mais prementes questões culturais portuguesas e americanas. Não é meramente acidental que a mais antiga revista de estudos luso-americanos,
a Gávea-Brown, foi por ele fundada e dirigida em 1980
(juntamente com George Monteiro, também professor
catedrático da mesma universidade), ainda hoje continuando com todo o fulgor inicial essa publicação que
mais fez pelo conhecimento alargado da nossa experiên-
cia imigrante na América do Norte através da literatura
e outra documentação. A Gávea-Brown não só divulgou
e divulga essa literatura como, ao fazê-lo, a legitimou firmemente noutros meios onde antes era totalmente ignorada, quando não denegrida. Na Gávea-Brown (cujo
nome ostenta abertamente essa dualidade cultural e linguística na história de um povo como o nosso), sempre
couberam alguns dos nomes mais famosos da Diáspora
portuguesa, desde os falecidos Jorge de Sena e José Rodrigues Miguéis, a poetas e outros escritores muito pouco conhecidos mas cujo valor não poderia ser negado.
Livro-me do Desassossego, é claro, dirige-se a um público muito mais alargado e disperso nos seus interesses
intelectuais, muito mais variado nos modos como vê esses
mundos aqui, uma vez mais, sob a lupa de Onésimo Almeida. Acontece que os Estados Unidos, certos Estados
Unidos, são hoje constantemente referidos, analisados
e comentados entre nós em Portugal. Tempo houve em
que eram apenas uma presença distante e tantas vezes
incómoda para a nossa intelectualidade. Os nossos imigrantes tinham sido pura e simplesmente esquecidos, ou
convenientemente ignorados. Onésimo Almeida, lado a
lado com outros que lhe seguiriam os passos, foi um dos
primeiros académicos e intelectuais portugueses a insistir, na sua escrita e de maneiras várias, na recuperação
dessa parcela do país fixada em terras longínquas. Hoje,
até os escritores luso-descendentes são lidos e estudados em muitas das nossas universidades do Continente,
desde a clássica de Lisboa às de Aveiro e Porto. A quem
devemos tudo isso poderá ser uma questão ainda em
aberto, mas em qualquer tentativa de compreender como
tudo foi acontecendo lentamente entre nós, o seu nome
está seguramente entre os primeiros. Não foi pouco. Só
que ele continua a manter uma presença pública tão
constante entre nós, permitindo assim uma aproximação
cada vez mais íntima entre os dois países e culturas que
ele vive quotidianamente. Para mim, manter esse equilíbrio a meio da ponte foi sempre muito difícil, a tentação
ora de caminhar para um extremo ora para outro, numa
travessia sem fim e tantas vezes pouco reconciliável. Outrora se chamava a tudo isto vivência cosmopolita, hoje
será mais politicamente correcto chamar-lhe vivência
multicultural. Em qualquer dos casos, é a harmonização
do nosso próprio pluralismo interior e cultural. Que Pessoa é desde logo evocado na capa deste livro de Onésimo
Almeida, só poderá significar que o nosso país e língua
foram sempre muito mais ricas do que muitos seriam
levados a pensar se não existissem escritores que de facto
vivem desde sempre com pé cá pé lá, num equilíbrio total
de execução muito difícil.
Finalmente, devo dizer que não é raro em Portugal
(inclusive nas ilhas) falar-se ou escrever-se por vezes de
certos outros autores, intelectuais ou professores na Diáspora como tendo sido os primeiros ou o primeiro numa
área ou noutra ligada aos estudos da nossa imigração ou
ao relacionamento cultural entre os dois países. A ignorância local tudo permite e consente. Entre os da nossa geração, claro está, Onésimo Almeida não fez nem
poderia ter feito tudo. Mas que o seu contributo foi e
continua a ser decisivo (e fundador) do muito que viria a
seguir, no mundo intelectual e da escrita no que respeita
à nossa presença nos Estados Unidos da América, ninguém poderá negar nunca.
___________________________________
Onésimo T. Almeida, Livro-me do Desassossego, Temas & Debates, Lisboa, 2006.
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Livro-me do desassossego
ou as “dia-crónicas”
de um geófago insaciável
victor Rui Dores
p
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ensador livre e frontal, em permanente diálogo com o seu tempo, Onésimo Teotónio Almeida é homem da reflexão crítica e da teorização estética. Há um Onésimo profundo que
muita gente desconhece: o do professor-filósofo-investigador universitário da Brown University que, de forma contínua e continuada, faz trabalho teórico, científico e académico.
Os seus ensaios vão sendo publicados em todo o mundo. Ainda não foram reunidos em
livros. Quando tal acontecer serão precisos, no mínimo, dez volumes.
E no entanto o que deste autor nos fica é, quase sempre, o seu lado “light” – o mais visível e mediático. Por exemplo, as suas crónicas divertidas, furtivas e desassombradas e que
são cada vez mais a sua marca registada. Mas essas crónicas constituem apenas 1/5 de toda
a escrita publicada. A urgência do compromisso com o presente, ou seja, os muitos apelos
e solicitações de colaboração para revistas e jornais, não escondem, contudo, as opiniões
certeiras de quem escreve com a curiosidade de um anatomista e a profundidade de um
arqueólogo.
Vem isto a propósito de Livro-me do desassossego (Temas e Debates, Lisboa, 2006), último livro de crónicas de Onésimo (o título está graficamente muito bem conseguido!), onde
registados estão os pequenos sismos do seu mundo inquieto.
As crónicas do Onésimo são as façanhas do Onésimo.
Porque Onésimo é esse espírito desempoeirado, é o rio caudaloso de um homem torrencial, judicativo e (im)pertinente. Estão, neste livro, as suas ideias, os seus sentimentos, as
suas emoções, as suas peripécias, as suas aventuras e as suas impressões que resistem ao pico
das pedras calcadas no rol do coração …
Gosto sinceramente destas crónicas (“ensaios em mangas de camisa”, segundo o autor)
que, agora reunidas, formam uma unidade (tipo jogo de bonecas russas), tal é a forma como
estão bem arrumadas em significativos capítulos. Gosto destas opiniões à queima roupa,
destas reacções directas e espontâneas. Gosto desta exegese e desta objectividade. Gosto
desta lógica cartesiana, desta reflexão socrática, desta dialética onesiminiana … Gosto da
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animosidade destas palavras porque uma das alavancas da escrita de Onésimo é precisamente o humor … E algumas destas crónicas são mesmo de escangalhar a rir …
Cronista de charlas e da condição humana, fino observador da vida que se lhe oferece em
palco, amante de trocadilhos e neologismos, geófago insaciável e em perpétuo nomadismo
(viajar é, nele, coisa fisiológica), vai Onésimo de lanterna na mão, qual outro Diógenes, em
busca de histórias com pilhéria …
Desassossegado autor a residir há mais de trinta anos nos Estados Unidos da América,
açorianófilo de memória iluminada e faro agudo, Onésimo vive o epicentro atlântico das
emoções e escreve sempre com fúria vulcânica e paixão telúrica – quer fale de George Bush,
de Wittgenstein ou do futebolista Pauleta; de Santo Cristo ou do Mel Gibson; de Leonor
(sua esposa e consciência e referente constante das suas crónicas) ou da luz oblíqua sobre as
folhas das árvores; da guerra no Iraque ou sobre as últimas anedotas de Charles e Camila;
da brandura dos nossos costumes, dos valores da esquerda e da direita e do “way of life”
português e americano. (Onésimo esfalfa-se a explicar a América aos outros … Estabelecer
relações e comparações entre aqueles dois mundos culturais absolutamente distintos parece
ser seu castigo e mito de Sísifo …).
Onésimo vai registando tudo, como se de um diário se tratasse. Sempre com música
atlântica de fundo. Tanto pode escrever sobre um padre que tinha prazer sádico em atropelar cães, como discorrer sobre as dores que sentiu com uma arreliadora entorse; tanto
pode discutir e analisar livros e autores (sabiam que o primeiro editor de Pablo Neruda foi
o corvino Carlos Nascimento?), como relatar peripécias de “perenes orgasmos” e de outros
congressos, conferências, seminários e simpósios a que vai assistindo e participando por
todo o mundo.
Sim, o Onésimo escreve bem, sabe contar histórias e é mesmo muito bom a tirar nabos
da púcara …
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Angola:
viagem ao meu purgatório
de contradições
“Não me lembro de ter vindo ao mundo, evidentemente, mas em compensação
lembra-me muito bem de ter mudado inteiramente, tanto de alma como de pele,
uma meia dúzia de vezes ao longo da vida”.
Ruy Duarte de Carvalho, Autobiografia, JL
p
aida Baptista
assado pouco mais de um ano depois de nascer,
meus pais decidiram prometer-me a um território
que eu não conhecia. Como uma noiva por procuração, e sem nada saber sobre os acertos de alambamentos, dei por mim num cais de partida tendo
por enxoval um baú a abarrotar de sonhos de uma
infância que começaria a florescer no mastro dum
futuro incerto. Alinhadas no porto de chegada, esperavam-me todas as aprendizagens de um novo
chão. Comecei a palmilhá-lo apoiada na ilusória
certeza de que me pertencia. Como num amor à
primeira vista, nele me deitei anos seguidos; com
ele troquei juras de amor eterno e por ele me deixei
inebriar até à loucura das promessas sussurradas na
exaustão dos sentidos.
Anestesiada pelo torpor desse amor, vivi vinte e
cinco anos de um permanente enamoramento feito de carícias, cores e cheiros que se renovavam ao
ritmo dos ciclos da natureza. Ora estiagens prolon-
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SEIXO REVIEW
gadas que obrigavam as raízes sedentas a alimentar-se da placenta de matriz africana, ora cacimbos
orvalhados que me humedeceram as folhas do crescimento. Sem me aperceber, fiz-me adulta. Num
gesto inconsequente, fruto do impulso natural de
quem se quer perpetuar, espreguicei-me debaixo
da árvore do pecado original e deixei-me hipnotizar pelo movimento cadenciado da serpente da
tentação. Contrariando o relato do génesis, não dei
pela nudez da culpa, nem fui expulsa do paraíso. Ao
contrário, recebi como prémio a bifurcação em dois
ramos nascidos do meu tronco. Forneci-lhes a seiva
com que foram crescendo, desafiando a cúpula do
céu que lhes dei como pátria.
Mais tarde – sem ter em conta os proclamas de
um casamento já consumado, nem uma primeira
conferência de reconciliação – foi-me decretada a
separação: de pessoas e bens. Não ouvi nenhuma
voz erguer-se para me perguntar: “Se tem algo con-
tra esta separação, que o diga agora ou que se cale para
sempre”. As bocas cosidas pelos fios da raiva recalcada
durante séculos de injustiça, mantiveram-se mudas. Já
tinham vomitado todos os decretos do ódio, despachados nos gabinetes que elaboravam ilusórias portarias da
igualdade.
Órfã de pátria e divorciada da terra com quem partilhara cumplicidades, fui arrancada ao chão minado pelos liames da ira. Um ou outro pousio adubado com os
fertilizantes da tolerância não resistia ao avanço desenfreado da vingança. De pé, que é como devem morrer
todas as árvores, arranquei as raízes sujas do húmus da
tenacidade para as plantar num outro solo. Desconhecialhe a composição mas, armada da química da vontade,
dolorosamente aprendi a encher os vazios da solidão e
das ausências, expurgando-os dos grãos de ressentimentos. Ganhei outras raízes que, atravessando a aridez dos
desertos vazios de afectos, penetraram
fundo na busca do alimento com que dei
copa aos dois rebentos novos que comigo
levara.
Os primeiros tempos desta bigamia
imposta pelas circunstâncias não foram
fáceis. De cada vez que percebia estar já a
aprender a viver com o novo chão, sentia
que traía o que deixara. Pior, tentava em
gestos tímidos aproximar-me de um, sem
nunca deixar de pensar no outro. Decidi
então abraçar outros espaços na tentativa
vã de, uma vez por todas, esquecer o meu
primeiro amor.
Com a mesma intensidade me entreguei aos outros,
chegando a amá-los despida de todos os pruridos que
me fizessem sentir culpada. Cansava-me de um e partia
para outro, desfazendo os elos de qualquer corrente que
me prendessem a um só lugar. Cansada deste jogo de
sedução e busca, decidi fechar o ciclo e regressar ao meu
amor primeiro. Acreditei que me receberia com a mesma
saudade com que eu durante trinta anos o mitificara. No
primeiro momento, olhámo-nos de frente e não nos reconhecemos. Os diferentes caminhos percorridos haviam
cavado vazios que já não conseguíamos preencher. Tentámos comunicar e depressa descobrimos que falávamos
novas linguagens, sujeitas a interpretações nem sempre
inocentes. Concluí que nos continuávamos a amar, mas
havia passado demasiado tempo sem que o tivéssemos
declarado um ao outro. Sem querermos, estávamos mergulhados num mar de incompreensões porque havíamos
deixado de ter capacidade para descodificar as emoções.
De cada vez que nos agredíamos, confessávamos a reciprocidade do amor que ainda sentíamos. Desconseguimos de encontrar as palavras certas porque ambos estávamos confusos. Sabíamos que continuávamos a pertencer um ao outro mas tínhamos desaprendido a fórmula
da reconciliação. Assim vivemos dois anos: alternando
momentos de entrega e rejeição, sem encontrarmos a
métrica que fizesse rimar irmão com perdão.
O tempo esgotou-se e o mais importante ficou por
dizer. Teria sido tão fácil! Bastaria que de dentro da alma
tivéssemos arrancado o grito que lá ficou amordaçado e,
sem preconceitos atávicos, o tivéssemos soltado ao ritmo
do rufar de um tambor.
Parto com a mesma incerteza com que cheguei
porque não consegui libertar-me do purgatório de contradições em que vivi. Num dos aros da corrente feita
de todos os malabarismos da vida, deixarei uma fenda
entreaberta. Na hora da despedida, nela depositarei o sopro
quente de um adeus: «Laripóó-ó…!». O código secreto que
me permitirá a travessia do rio
da minha redenção.
AIDA BAPTISTA foi professora durante toda a sua carreira
profissional, ao longo da qual leccionou diferentes
níveis de ensino. Nos últimos anos, requisitada pelo
Ministério dos Negócios Estrangeiros, foi Leitora de
Língua e Cultura Portuguesas no Estrangeiro ao serviço
do Instituto Camões. Em 1989, cumpriu uma primeira
missão de 8 anos na Universidade de Helsínquia, seguida
de uma segunda de 5 anos na Universidade de Toronto.
Desta segunda experiência, nasceu a colaboração regular
no jornal comunitário “O Milénio”. De entre as várias
crónicas publicadas, foram seleccionadas 50 que, em
2004, deram origem à edição do seu primeiro livro
intitulado “Passaporte Inconformado”.
Nos últimos 2 anos esteve em Benguela onde, além
de leccionar no Pólo Universitário da Universidade
Agostinho Neto, dirigiu o Centro de Língua Portuguesa
de Benguela do Instituto Camões.
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IMOK – UM OLHAR
SOBRE O CANADÁ
carla Cook
N
Beco em Vancouver
Fotografia: Carla Cook
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unca tinha visitado o segundo maior país do mundo nem tão pouco tenho
lá família, pelo que a perspectiva de ensinar português no Canadá durante
um ano pareceu-me, acima de tudo, um mergulho em cheio no desconhecido. Eu imaginava o Canadá como um pedaço da Europa transplantado
para o continente americano, país bilingue e mosaico cultural, com a vantagem acrescida de ser o paraíso terrestre das reservas naturais para
além de toda a terra ainda por desvirginar. Claro que a imagem que
temos de um país é totalmente condicionada por aquela que ele
nos quer passar. Além disso, ser turista ocasional é bem diferente
de ser possuidor de um visto de trabalho.
Comecei a senti-lo no dia em que fiz os exames médicos para
o obter. Foi nesse momento que o abismo cultural me apanhou de
surpresa. Não me considero particularmente “presa” às idiossincrassias de nenhum local específico e adapto-me facilmente – “a
maior prova de inteligência é a adaptação”: um pequeno segredo,
legado de uma família cujo sangue é uma mistura daqui e dacolá.
Apesar desta divisa, o primeiro impacto foi hostil: chocou-me a
minúcia de confessionário do exame médico, procurando pecadilhos e rebuscando cicatrizes, fazendo-me sentir muito mais nua
do que (em efectivo!) já estava. A ideia a meu respeito era pouco
abonatória, segundo me disse o Sr. Dr. de bata branca e aparelhos
metálicos pontiagudos cujo nome misturo e alguns mesmo ignoro,
até porque ele tinha já a opinião pré-concebida de que “todas as
mulheres mediterrânicas” (de notar que eu lhe expliquei que tinha
nascido longe do Mediterrâneo, e me ter oferecido para o elucidar
sobre a localização exacta de Portugal e ilhas adjacentes) “bebem
muito e dormem com muitos homens!” (e dançam bem, dir-meiam mais tarde, como conclusão deste estereótipo). Depois de devidamente admoestada, o Canadá recebeu-me.
Na cidade canadiana para onde fui morar, o Outono é particularmente
bonito – há uma profusão de arvoredos em redor, que se vestem de tons
vermelhos. Para alguém como eu, que nunca tinha morado num lugar
com quatro momentos bem definidos no ano, foi como entrar num livro.
As florestas, os rios, os esquilos no caminho lembravam-me
histórias infantis que nunca realizara diante dos olhos.
Quando cheguei à casa – na realidade, ao quarto! –
onde ia morar, reparei, de imediato, que ele era um mar de
fotografias de rostos para mim anónimos mas que faziam
parte da vida de alguém igualmente estranho com quem
eu teria de aprender a viver dali para a frente. Consciente
da invasão, não só de um espaço como de uma família, reparei que o quarto tinha também livros, com as lombadas
gastas pelo uso. O sono impedia-me de discernir os títulos.
Pareceu-me ler “Imok” na lombada de um deles. …Imok?!
Seria alguma palavra canadiana-nativa? Com certeza que
sim. E que queria dizer isso, Imok? … Com mais atenção,
percebi que as letras se dividiam para formar o título “I’m
ok”. O meu erro ensonado fez-me rir de mim mesma; a
partir daí, adoptei esta palavra inventada como minha sigla
pessoal e secreta – sempre que me sentia só, adoentada ou
perdida, repetia mentalmente IMOK. “IMOK, Imok, I’m
ok, não há nada que eu não possa ultrapassar sem sorrir.”
Depressa, a vastidão do Canadá me pareceu um deserto
dentro de um deserto. A princípio foi a surpresa de tanto
espaço, grande parte dele sem casas, por ocupar, onde o ruído mais breve se escutava. Há mil e um ruídos nas florestas: um galho que se quebra, um pássaro que agita as folhas
assustadas. Olhamos e tudo parece estar sossegado – não
sabemos se o que ouvimos é fruto da nossa imaginação
delirante, que tem fome de companhia. Depois, há as planícies. Este espaço aberto é muito diferente da imensidão
marítima a que eu estava habituada – é estático e, por isso,
mais assustador a meu ver. No entanto, prefiro-os ao espaço enclausurado e ao aprisionante cimento das grandes
cidades. Dir-me-ão, com alguma razão, que cada cidade
tem a sua personalidade (curiosa palavra para se aplicar a
esse rumoroso grupo de gente apressada que se atropela
como única forma de se tocar e vive em gavetinhas, respirando fumos e evitando olhar-se nos olhos). Todavia, todas
as cidades têm em comum a absurda homogeneização do
indivíduo, o ser sempre tarde e nunca termos tempo para
parar, a surpresa de encontrar o azul esfiapado lá em cima,
dividido em quadradinhos retalhados e ser isso a promessa
vaga do Paraíso, mais distante por causa dos arranha-céus
(outra palavra sarcástica, dolorosa se a tomarmos à letra); a
profusão de vagabundos e pedintes – que no Canadá têm
a peculiaridade de morrerem de hipotermia por vezes, algo
novo a juntar à parafernália do desamor citadino. Imok,
Imok.
O dia-a-dia das metrópoles torna mais aconchegante
certos pequenos instantes, reflexos de um querer estar mais
próximo do estranho que se torna familiar emprestado – as
senhoras do café, risonhas e compreensivas, que desenham
a marcador bonecos nos enormes copos de plástico de uma
intragável água suja a que os canadianos chamam double
coffee e que em breve troquei por hot chocolat, passando a
ganhar quilogramas de gordura corporal e gramas de felicidade em pó endorfínico; os colegas, quase todos estrangeiros (non-canadians!), de uma simpatia cativante e acolhedora: “oh, but you don’t look like a portuguese at all!; tu
ne ressemble pas à une portugaise, ma petite!” … (o que é um
português? Interrogo-me, porque ninguém parece ligar-me
a algo mais que não seja uma língua ibérica e uma pele
tostada, quando metade das pessoas na minha terra têm
peles incertamente cremosas, serei eu um double coffee que
fala português e toca guitarra em tom dolente? … Imok,
Imok, eu sei onde está a minha identidade cultural); os
companheiros de casa, misto de cheiros pela primeira vez
aspirados, paladares novos na cozinha – Como é possível
que os chineses comam arroz com pauzinhos tão depressa?!
Mas sim, como é possível que os portugueses não o façam?
E o que é isso, Açores, oh, a minha aldeia é maior do que
vocês! – e palavras em tantas línguas nativas como os dedos
das minhas mãos, onde se adivinhava que O Divino é sempre igual, a diferença está só na maneira de o expressar.
Sobretudo, os alunos. Um parêntesis para dizer que
muitas vezes barafustei sobre/ou contra o sistema educativo. Vivemos numa época em que a maior parte (se não
todos) os sistemas educativos deste mundo parecem apostados em ter alunos, em vez de os formar. Logo, aqui como
ali, a máquina é, acima de tudo, publicitária ao invés de
educativa. Poderemos, por isso, queixar-nos dos alunos
que temos? Este tema foi dos que mais debati com os meus
colegas; curiosamente estávamos todos de acordo nesse
sufoco académico, mas ninguém parecia poder desatar as
mãos para agir noutro sentido.
Grande parte da minha vida estava, pois, concentrada
nas minhas turmas, sobre as quais me avisaram ser “desinteressadas, de difícil trato”. Surpreendeu-me o desconhecimento que tinham do resto do mundo, fora dos limites da
América do Norte. Era como se o planeta Terra estivesse
dividido em Canadá e E. U. A. com mais algumas exóticas paragens, todas elas solarengas e habituadas ao turismo de massas, onde alguns tinham ido fazer férias. Apesar
desta ideia culturalmente redutora, quase todos acabaram,
mais cedo do que tarde, por se mostrar interessados em
aprender uma língua que lhes era tão estranha quanto adversa, em termos puramente linguísticos. As aulas eram,
porém, muito mais do que isso. É quase banal dizer que
uma língua reflecte uma cultura e é, portanto, indissociável
desta – ao ensinarmos uma, não nos podemos privar de
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ensinar a outra. Um dos momentos mais gratificantes da
minha estadia foi ver e ouvir os alunos recitarem, compreendendo-a, poesia portuguesa, do poeta Eduíno de Jesus,
que convidáramos para o Dia de Português, um dos eventos que organizámos. Todas estas descobertas deles, estes
rapazes e raparigas afinal não muito mais jovens que eu,
encantavam-me, porque me desgostava a redoma a que se
tinham votado sem saber. A cultura não-americana (e especificamente a lusa, que eu procurava transmitir-lhes) era,
para eles, um mundo tão desconhecido quanto a canadiana
era para mim. Imok.
Em breve percebi que “ser canadiano” não era tão im-
portante quanto a província de onde se vinha;
o que realmente distinguia e tinha valor era ser
do Ontário, do Québec, da British Columbia, … Para e
perante o mundo, sim, ser canadiano; mas, dentro do Canadá, mil pequenos mundos se subdividem e, não raro, se
degladiam. Depressa percebi também que as duas línguas
oficiais não têm, afinal, o mesmo grau de expressão e que
os francófonos acabam por ser mais expressivos e darem a
impressão de maior capacidade de verbalização e até de ironia, porque, regra geral, estão tão à vontade no inglês como
Beco em Monte Real
Fotografia: Carla Cook
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no francês enquanto que os anglófonos quase sempre só
sabem a sua língua, estando até muito convencidos que
não vale a pena saberem mais nenhuma, porque é a língua
inglesa que governa o mundo e, com esta atitude, perdem o
fio a metade das piadas que se dizem a seu respeito. O que
é isso, ser canadiano? Cada província é um coração que
bate em ritmo diferente e os rostos inuits quase já não se
avistam. Todavia, Imok.
“Em Roma, sê romano”, assim dita o provérbio. Nunca tinha estado num lugar com tantas regras para cumprir
como o Canadá. Entramos num autocarro para uma visita
de estudo, mapa na mão – dêem-me um mapa e vou ao
fim do mundo e volto para contar como
é, quem disse que as mulheres não sabem
ler mapas? – e temos logo um letreiro “não
falar com o condutor, não fumar, não comer, não beber, não deitar papéis no chão,
não ficar de pé nem andar no corredor, não
abrir as janelas, falar em voz baixa”. Não
posso fechar a porta quando estou com
alguém, no trabalho, porque há mil regras
em relação ao assédio sexual; de facto, não
devo tocar em ninguém, ao ponto de me
pedirem desculpa por me terem tocado no
ombro (no ombro!!!). Explico que não há
problema. Pedem-me desculpa outra vez.
Aborrece-me isto tudo. IMOK!!! Vou para
casa a pensar se hoje terei tocado no ombro de alguém, é uma coisa que faço muitas
vezes, inconscientemente, afinal o médico
podia ter razão, eu toco muito nos braços
das pessoas quando falo (será o cotovelo
considerado uma zona erógena aqui?)
Irrito-me no supermercado, também,
porque um azeite portuguesíssimo é vendido aqui como se fosse mediterrânico! Como
posso queixar-me da ignorância estrangeira
sobre nós se é o meu país que a auto-promove? Tal e qual
o livro com que tenho de ensinar que fala de um Portugal
de tostõezinhos e onde as mulheres fumam para se afirmarem perante os homens. A imagem de um país é aquela que
ele quer transmitir dele mesmo. Tudo bem. Eu, por mim,
Imok, Imok.
Muitas vezes penso que o que nos salva é a Natureza.
Portugal é lindíssimo – quem se atreve a dizer que não?
O Canadá também o é e ninguém me poderá convencer
do contrário. Não falo dos sítios procurados, como as cataratas do Niagara, que de tão exploradas parecem uma
Vegas em miniatura, com casinos e néons, um mundo fée-
rico sem ligação com a água que jorra, indiferente. Falo
desses lugares tranquilos, dos lagos enormes, tão extensos
que quase não acreditamos estar perante água doce, das
escarpas agrestes, das montanhas nevadas. Talvez a sensação mais indescritível que tive no Canadá foi a experiência
da neve. Primeiro, foi o inefável momento em que a senti
pela primeira vez, qualquer coisa gélida e leve que não se
anuncia e cobre tudo em silêncio. Recordo o estender da
mão e o apanhar de um floco – perfeito como uma obra de
arte e milimétrico como uma peça ínfima de joalharia. Nos
dias seguintes, de nevão, fiquei, primeiro encantada com
esse mundo invulgarmente claro, imaculado, intensamente
brilhante, onde tudo parecia adormecido para um novo e
promissor despertar. Depois desapareceu o fascínio e descobri-lhe o lado desesperante – a dor que o frio intenso
provoca nos ossos, a pele gretada pela tentação de tocar na
beleza nívea, o gelo vidrado que provoca acidentes na estrada, o sal que estraga os sapatos, o nariz que sangra, Imok,
Imok, IMOK. Mais tarde, voltei a encantar-me quando
a neve eram apenas pequenos flocos. Posso, pois, afirmar,
com segurança, que a neve foi (e é) um amor que passa por
várias fases, algumas reincidentes, naturais nas paixões. Foi
também graças à neve que pude patinar, compreendendo,
enfim, essa sensação de evasão que se tem sobre lâminas
no gelo.
No fim de tudo, o que guardei? O Canadá não é um
bocado da Europa transplantado para a América. É um
país do continente americano que gosta de o ser, até porque lutou para isso. Tão pouco é um alegre mosaico em sã
convivência. Os preconceitos e as diferenças sociais existem
como em qualquer outro lugar. Não desaparecem porque
se emigrou, quer se tenha emigrado da Algéria, do Congo,
da Normandia, da Sicília ou dos Açores. Em boa verdade,
nada desaparece porque se emigrou – pelo contrário, muitas coisas se intensificam dentro de nós: o amor telúrico, a
absurda cristalização desse país distante e nosso que amamos em músicas, em comidas, em fotografias, em cheiros
antigos como nunca amámos antes; a vontade de contar
tanta coisa da vida a um compatriota que encontramos por
acaso aqui e que só vimos antes uma vez; a saudade de falar,
cantar, gritar na nossa língua e não nestas duas que agora
são, por obrigação, as nossas línguas emprestadas, línguas
diárias. Imok. Agora sei o que é ter saudades. Sei o que é
pensar num conceito e não ser a palavra da minha língua
a primeira que me ocorre – é isto estar dividido, ter uma
cisão que não escolhi (daria o médico por esta cicatriz?).
Guardei os sorrisos das pessoas, as mãos que apertei, as
vozes com quem troquei ideias. São os seres que importam.
Apesar de me ter surpreendido muito que, num país já de
si tão frio, as pessoas tivessem tanto receio de se tocarem
(na minha ordem de ideias, a lógica seria que se aninhassem mais do que em Portugal, como gatinhos num cesto,
procurando o calor uns dos outros), a verdade é que encontrei Amigos que me fizeram um ser humano melhor. É
disso que, a esta distância e agora, tenho saudades. Foram
eles que fizeram a minha casa no Canadá. Imok.
CARLA COOK nasceu nos Açores, em 1977. É
Licenciada em Estudos Portugueses e Ingleses
e Mestre em Cultura e Literatura Portuguesas.
Durante 5 anos, leccionou na Universidade dos
Açores. No ano 2005-2006, foi Visiting Professor
na Brock University, no Canadá.
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Uma garoupa nada
no relógio
eduardo Bettencourt Pinto
«O
s pais não estavam, tinham ido à missa. Foi
para a sala de jantar e sentou-se à mesa
munida de uma resma de papel. A manhã,
luminosa, era de uma doçura resplandecente. Leonor puxou aos cotovelos as grossas mangas do roupão. Sentiu os
braços mais livres. Endireitou a coluna e reparou na sala.
Fixou-se numa fotografia sobre o louceiro.
Estava com os pais, ao meio dos dois, os braços abertos, as mãos dadas. Na fotografia, ela era a única que não
sorria. Os olhos, semifechados, detinham-se num ponto
indefinido. Pareciam suspensos, presos às misteriosas sementes do Tempo.
Preparara a sala para o ritual da escrita, abrindo primeiro os densos cortinados, pondo de seguida um CD de
Schubert. Aguou depois as plantas. Gostava de sentir o
cheiro da terra molhada, a frescura. Só então se sentou.
Ficou um instante parada, olhando os dedos longos
e finos. As palavras pareciam-lhe corvos que voavam do
rumor da sua mão para os horizontes breves da página.
Eram também o sangue e a voz dos genes que a surpreendiam, asfixiavam, e tomavam o ar todo da alma.
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Schubert ou os acordes da solidão? Que música lhe
ardia no subconsciente? Nunca sabia a origem do que
escrevia – se vinha dos templos mais sombrios da sua
memória ou de uma alegria que ia imaginando vírgula
a vírgula enquanto o lápis, muito afiado e em linhas enviesadas, deixava um rasto negro a perseguir-lhe o polegar. Nessa manhã, porém, sentiu que desabava no papel a
tempestade torrencial de uma vida.
Mas qual?»
Fecho o bloco de notas. Sinto as pálpebras pesadas.
Comecei a escrever isto no autocarro que nos leva de S.
Paulo ao Rio de Janeiro. Ando sempre com histórias na
cabeça – nunca sei como começam e como acabam. Esta
pode ser um romance, um conto. Ou apenas isto: pequeno esboço de um vazio.
Fazemos uma paragem de meia hora numa enorme
estação cujo bufete rivaliza, e até ultrapassa, muitos restaurantes veneráveis.
Logo à entrada um cheiro de frutas tropicais. A rapariga que viaja ao nosso lado, e que tem vindo a dormir
durante a viagem, entra à nossa frente guiada pelo ins-
tinto. Levita numa aura de luz tropical.
Sinto a modorra do pós-almoço no autocarro, na etapa final da viagem. Pela janela aquele sentido de aventura
e prazer no viajar que aprendi em África.
As horas passam, lentas. De vez em quando olho a
terra sanguínea, palmeiras, um horizonte de luz a cair
do céu. Apetece-me uma mota, uma das minhas paixões.
Acelerar pela estrada fora, perder-me no vento, no cheiro
tropical da tarde. Fui feliz nessas viagens em Angola, o
meu país épico, utópico, por vezes tão irreal e longínquo
no contorno das emoções que agora me atravessam.
A tarde geme de cansaço quando chegamos ao Rio
de Janeiro. Os passageiros precipitam-se para a saída,
moídos pela viagem, sonolentos, gestos frouxos, músculos entorpecidos. Quero sentir-me fora daqueles espaço
limitado, estender as pernas, os braços, beber um café.
Mas a gare, cheia, faz-me mudar de ideias rapidamente:
dou-me mal com ajuntamentos. Arrastamo-nos dali até
à linha dos táxis.
O taxista é um tipo novo, de camisa branca e um tanto sisudo. Peço-lhe que ligue o ar condicionado. Fá-lo
de modo mecânico, atento ao tráfego. Nos olhos azuis
do Fábio descubro, ao voltar-me para trás, um clarão de
entusiasmo. Sente-se bem neste país, relaxado, a pele
bronzeada. Viajar é a melhor prenda que se pode dar a
uma criança. Os brinquedos quebram-se, perdem-se, deles não restam lembranças. Os lugares, porém, deixam na
memória um marco indelével.
Copacabana
Saímos do hotel após um duche refrescante. A noite
já caiu. As pessoas apressam-se nos passeios, cansadas.
Ao fim da rua voltamos à direita em direcção ao Bar 420,
um recanto a que nos habituámos no Rio. A comida é
boa e a preço módico. Gostamos sobretudo do seu ar
cosmopolita, descontraído, hospitaleiro. E, claro, da caipirinha, servida por empregados simpáticos e solícitos.
Enquanto esperamos pelo jantar, descubro o Paulo no
outro lado da rua. Traz, como sempre, uma pasta de cabedal na mão direita e o aspecto apreensivo de quem leva
para casa as inquietações do emprego.
Levanto-me, faço um gesto. Ele, no entanto, parece
não dar conta que alguém chama por ele. Grito o seu
nome antes que desapareça por entre a multidão. Voltase para trás, muito admirado – não se lembra de mim.
Explico, como posso, quem sou. A névoa do esquecimento dura pouco nos seus os olhos:
«Tudo bem? Me desculpe o lapso momentâneo» diz
estendendo a mão.
Tem um sorriso cansado. Pergunto pelo Eduardo, um
senhor português que tem um negócio no Rio. Diz que
o amigo se casou com uma menininha e que é pai de um
bebé de seis meses. As novas responsabilidades deixamno encurralado no cerco doméstico. Raramente aparece
no bar.
O Eduardo, com mais de 60 anos, não é o típico cavalheiro de meia-idade. Anda sempre muito chique, com
aquele ar vivo de actor que se inspira na própria sombra e
desfaz nela o imenso talento das suas magias e contradi-
ções. É um ser humano completo: aventureiro de cartaz
de cinema, exilado, homem de muitos recursos semânticos quando fala, personagem fascinante de um século
que já não é o nosso. Ao toque de um dedo muda da
pronúncia lisboeta à carioca, conforme as circunstâncias.
Bebe com alegria os folguedos da noite, cigarro atrás de
cigarro, sentado com a descontracção de quem sabe estar
neste Mundo. Pai de um bebé extemporâneo, parece-me
de repente abraçado por um bocejo de velhice.
«Perdi o contacto dele. Pode dizer-lhe que, se puder,
passe amanhã por aqui a esta hora? Gostava muito de o
ver», digo ao Paulo, com sinais de quem arde para se ir
embora.
«Falo com ele, fique descansado. Desculpe, mas tenho
um compromisso daqui a pouco. Falamos amanhã.»
Gostava de o convidar a sentar-se connosco, ouvir as
novidades que dois anos de ausência acumulam, mas não
é desta vez. A sua figura ampla apaga-se de repente ao
virar da esquina, entre o ruído e a vertigem dos automóveis.
Após o jantar, ociosos, digerimos o tempo sem grande imaginação. Sentimo-nos cansados. Peço uma cuba
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47
libre para distrair o aborrecimento. Conhecesse melhor
os recantos da cidade e íamos ouvir música. As opções,
contudo, estão limitadas à presença do nosso caçula. Um
miúdo de dez anos diverte-se a observar a marcha lenta
de um caracol, mas incapacita-se ante as coisas que podem eventualmente atrair o entusiasmo dos adultos. Por
outro lado, não me aventuro num lugar onde não tenho
referências nenhumas, e para mais com a família. O Rio
é uma cidade fascinante mas cheia de ciladas, sobretudo
para os incautos. Não me quero contar entre eles. Nem
que tenha de adormecer de tédio na cadeira de uma esplanada.
Praia sem estrelas
Após um pequeno passeio à beira mar, sentamo-nos
num quiosque a beber água de coco. A noite é bela e
grande, musical.
Observo as pessoas que passam, descontraídas, de um
lado para o outro na imensa Avenida que se estende até
ao Leblon. Ombreiam com a noite. São fracções opacas
que respiram, falam e gesticulam a pouca distância de
nós. Transpiram um ar de festa no esboço enigmático
dos rostos e que lhes electrifica as expressões faciais. O
Rio é, sem dúvida, uma cidade fascinante. Se o perigo e
a violência se escondem detrás dos prédios adormecidos, nas favelas lá no cimo, aqui em baixo, com as suas
roupas tropicais, os cariocas exercitam os músculos ao
mesmo tempo que deixam um rasto de fagulhas imaginárias. São atributos poéticos de quem vive com os olhos
presos ao mar e os ouvidos no deleitoso e latejante som
do samba.
“Papá, posso ir jogar à bola com aqueles meninos?”
Estão em círculo, na areia. Todos de calções, descalços e sem camisa. Um deles, com o cabelo muito
encarapinhado, equilibra a bola com o pé direito.
Os outros, expectantes, não sabem em que direcção correr. São pela idade do Fábio, mas soltos, pele
flamejante. Vê-se que não vêm de casas austeras
mas das ruas onde crescem sob a luz dos candeeiros. De repente uma pequena chuva de areia rutilante solta-se do pé do miúdo que detém a bola, e
disparam todos na sua direcção.
As ondas do mar rolam na areia. O Fábio dirige-se ao pequeno grupo com passo lento.
Aproximo a palhinha e sorvo um pouco da água de
coco. Lamento não ter comprado o jornal. Gosto de ler
antes de me deitar, sobretudo jornais, quando não o pos-
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so fazer pela manhã diante de um café.
Esqueço-me, por momentos, do Fábio. Quando olho,
está rodeado pelo grupo. Um deles tem a bola na mão.
Fala animadamente, riem-se, o Fábio escuta. Sinto que
está desconfortável. Tem as mãos nos bolsos, a cabeça
baixa. Daí a pouco volta à mesa. Não vem bem disposto.
“Que aconteceu?”, pergunto-lhe.
“Não sei …”
Diz sempre isto quando não quer, ou não lhe convém, responder. Senta-se e leva a palhinha à boca, dando
as costas à praia.
Deixo passar algum tempo. As emoções fortes são
como o vento agreste que desordena a paisagem. Neste
caso o diálogo.
“Então, já sabes o que aconteceu?”
“Não sei explicar em Português” responde com um
trejeito, como que a dizer “lá vem ele outra vez com a
mesma coisa”.
“Fala na língua que quiseres, menos Chinês. É a única que não percebo.”
Ri-se, levantando a pala do boné. Então explica, em
Inglês, que os meninos manifestaram maior interesse em
discutir pormenorizadamente certa anatomia feminina
e os mais variados processos de reprodução humana, do
que jogar à bola. Por isso é que ele decidiu, e bem, vir-se
embora.
A noite é um jardim escuro, apagado na sua imensidão. Tenho diante de mim um filho por cuja inocência
passou uma navalha. Oiço e entristeço. O mundo é um
lodaçal de situações. Explico que eles são meninos entregues a si mesmos, pobres, abandonados. Crescem já
envelhecidos pelos vícios e abusos dos adultos. Apesar
de serem pela sua idade, já têm rugas na alma.
Reparo mais uma vez no pequeno grupo, fintando a bola na
festa da areia. São homens velhos
e sós com corpos de meninos,
esquecidos na praia nocturna, as
ondas do mar rebentando a poucos metros das suas vidas. E eu
sem saber o que dizer.
EDUARDO BETTENCOURT PINTO nasceu em
Gabela, Angola, em 1954. É autor de vários
livros de ficção e poesia. Vive no Canadá
desde 1983.
BOLÍVIA
DO MEU CORAÇÃO II
urda Alice Klueger
E
u atravessei a Bolívia em duas ocasiões: em 1993, toda por terra, ida e volta, e em 2004,
só de volta, parte por terra e parte por avião, o que, nas minhas contas, dá onze anos de
diferença.
Sobre aquela primeira travessia eu escrevi um livro que anda por aí – na verdade, saíra
da minha cidade, no Brasil, atrás de Machupichu, e a Bolívia fora quase que como um
acontecimento inesperado no meio do caminho – mas como ela me cativou, ah! QUANTO me cativou! Naquele 1993 a Bolívia era um país de crianças gordas, de índias gordas,
de cachorros gordos, pátria da mais antiga cidade construída no mundo [1] – eu era bem
mais inocente do que sou hoje, mas só o tamanho dos cachorros gordos que andavam
atrás das suas coloridas índias que levavam bebês presos às espaldas já me alertava que
naquele país, no mínimo, se comia bem, apesar da grande secura reinante nos altiplanos
e outras dificuldades da natureza. Na verdade, uma das coisas que mais me espantou, na
ocasião, era como se comia pollo [2], lá – eu me criara num Brasil onde se comia um,
talvez dois pedaços de galinha numa refeição, e a abundância da comida boliviana me
espantava: lá, numa refeição, se comia ou meio, ou um pollo inteiro, com arroz de açafrão
e outras coisas.
Também a indiferença comercial das impassíveis índias que nos encantavam com o
seu artesanato e outras coisas vendíveis era impressionante: nunca uma colorida índia
demonstrava ansiedade em vender – ao contrário, até procurava fugir da gente quando
percebia que queríamos fotografá-la, etc. Lembro bem de uma parada de ônibus, em
algum lugar ainda abaixo dos Andes, onde havia uma índia muito linda vendendo tangerinas num carrinho-de-mão. Ela, seu bebê e suas tangerinas eram tão bonitos que a gente
automaticamente pegava a máquina fotográfica, mas não houve jeito de fazê-la aceitar
fazer uma pose – preferia não vender as tangerinas a se expor para esses tais de turistas.
Era direito dela. Roubei-lhe uma foto de costas, só o bebê e as tangerinas.
Daí voltei onze anos depois. Vinha de Cusco/Peru, e poderia ter facilmente voado até
São Paulo e estar em casa em poucas horas, mas não queria perder de estar um pouquinho na Bolívia, mesmo que fossem apenas aqueles três dias que foram possíveis, e voei de
Cusco até Santa Cruz de la Sierra, com comprida escala em La Paz, onde permaneci boa
parte do dia no aeroporto.
Sabe como é aeroporto, é lugar freqüentado por turistas internacionais ou homens de
negócio vestidos de mauricinhos, normalmente, bem alheios ao que esteja acontecendo
SEIXO REVIEW
49
no país, de verdade. Até achei uns brasileiros do Rio
Grande do Sul numa sala da Internet que, quando
me souberam simpática àquele país, demonstraram
algo que deveria ser asco por uma loira que podia gostar de gente assim índia e sua história cheia de golpesde-estado e maldades feitas pelos invasores europeus.
Devo tê-los olhado, também, com desprezo, enquanto
via meu correio eletrônico, porque aquele contato não
frutificou em nada que prestasse. Nem sei por que
lembrei deles agora.
Acontece que num aeroporto também tem a gente
de lá, os serviçais, a gente que varre, que cuida, que faz
comida, que vende jornal, e não era nada difícil achálos pelas suas caras de índio. Então fui me insinuando,
uma palavra cá, uma palavra lá, e daqui a pouco
tinha criado uma tribo
muito legal, que se encantava que eu sabia que
“no outro outubro” eles
tinham deposto Sanches
de Lozada, aquele presidente títere, que sequer
falava quíchua ou aimara,
e que pronunciava o espanhol com acento estadunidense, bem servo do
Império do Capital Internacional.
Se Sanches de Lozada tinha sido deposto no “outro outubro”, isto queria dizer que a gente estava em outubro de novo – e
justamente naquele dia em que estava em La Paz fazia 37 anos que o Che tinha sido assassinado pelas
autoridades bolivianas! E quando fui almoçar no caro
restaurante do aeroporto, já tinha sido tão bem “sacada” pelos bolivianos que junto com a sopa o garçom
me trouxe um jornal sobre o assassinato do Che, jornal cheio de detalhes que eu não sabia e de fotos que
eu nunca tinha visto. Fiquei doidinha, queria aquele
jornal, que achei que era um jornal clandestino que o
garçom me mostrava em grande confiança. Não, não
era. Era apenas o suplemento do principal jornal de La
Paz, e o garçom me disse que poderia comprar quantos quisesse na banca, ali pertinho. Dei-lhe o dinheiro
e ele fez a gentileza de buscar cinco números – abandonei logo os grossos jornais com as notícias locais, e
trouxe os cinco suplementos para os meus melhores
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SEIXO REVIEW
amigos daqui, que se deliciaram com eles.
À noite, voei para Santa Cruz, onde passei dia e
meio convivendo com as gentes bolivianas. Só na outra tarde viajei para o Brasil, no trem que tinha melhorado muito (leia-se: tinha sido privatizado), e que
agora tinha água, eletricidade, banheiros, comida. Na
primeira hora de viagem foi acontecer algo extremamente lamentável: um pequeno menino, de lá uns
cinco anos, deixou cair a pesada janela de metal sobre
sua tenra mãozinha, e ela foi dilacerada de uma forma
quase que indescritível. Correu todo o mundo, todo o
mundo queria fazer alguma coisa, parar aquele sangue, aliviar aquele pavor, consolar aquela mãe. Veio o
chefe do trem, o coração tão magoado quanto o nosso, trazendo uma caixa de primeiros socorros, e havia
um médico a bordo, e o médico foi peremptório: o
menino teria que saltar na primeira cidade, teria que
ter a mão costurada num hospital. A mãe estava em
desespero: seu marido a esperava no fim da linha, e
ela não teria dinheiro para comprar outra passagem
de trem. Enquanto o médico fazia o que podia para
enfaixar a mão do menino e acalmar mãe e filho, o
chefe do trem passava mensagens de rádio, e disse que
a própria caixa de aposentadoria dos ferroviários iria
pagar as despesas de hospital. Uma ambulância já estava a caminho, e o trem parou na estação seguinte,
que era quase que uma estação no meio do nada, e
onde não havia nenhuma ambulância. De uma viagem por quatro países sobrara-me uma coleção de
notas de vinte dólares – escorreguei uma para dentro
do sutiã da mãe, disse-lhe quanto valia, que daria de
sobra para ela alcançar o marido depois. Penso que
outras pessoas deram outras coisas, pelo menos água
e conforto deram, o ser humano é um ser solidário. E
a mãe e o menino ficaram naquela estação perdida no
meio do nada sem nenhuma ambulância visível ou audível. Havia angústia em todos os rostos, inclusive no
do chefe do trem – mas que podia ele fazer se queria
conservar o parco emprego que recebera do Capital?
Um velho sentara-se ao meu lado com a intenção
de me paquerar. Dizia-se do Acre e contemporâneo
da construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré,
embora não devesse ter ainda nem 70 anos. Quando o
trem retomou seu curso, ele respirou fundo:
– Ainda bem que não fui eu! – disse, aliviado,
olhando para sua mãe calosa e dura, tão mais resistente do que a mão tenra do menino! Claro que não
olhei mais para aquele poço de egoísmo pelo resto da
viagem.
À noite, como de praxe, o trem parou num pequeno
povoado que, tanto quanto me lembro, se chama Santo Antônio, para que todos pudessem saltar e comer as
iguarias locais. Ah! Foi diferente de 13 anos antes, como
foi! Comi os espetinhos e o os sucos de frutas espiando
tudo, e as pessoas estavam magras, e as crianças eram
macilentas, e os cachorros tinham as costelas à mostra e
ficavam implorando um pedacinho do que a gente comesse. Agora todos queriam vender seus parcos produtos – a vida passava ali com o trem! E também um monstro chamado Neo-liberalismo passara por ali e devorara
as gorduras das pessoas e dos cachorros.
nho um jeito de te chamar: “Bolívia, meu amor!” Eu ainda volto lá, e um dia quero conhecer Evo Morales! Penso
que a roda da fortuna começa a dar a primeira volta para
nós, desta terra dita americana!
Blumenau, 26de Dezembro de 2005.
[1] Tiauanaco, a 70 km de La Paz. Segundo datações de
1997, Tiauanaco tem 12.000 anos, o que a torna mais antiga
que qualquer cidade mesopotâmica ou egípcia. Penso que muitas décadas se passarão, porém, até que a “civilizada” Europa
(que matou de fomes e maus tratos só 8.000.000 de índios nas
Desde então, a Bolívia trocou mais três presidentes minas de prata de Potosí) aceite tal verdade e permita que se
em uma semana – os descendentes daqueles 8.000.000 mudem os livros de História.
de Índios que morreram em Potosí são especialistas em
dinamite!: o vice do Sanches de Lozada, o Presidente
do Senado, o Presidente da Câmara – deixaram o que
no Brasil a gente chamaria de Presidente do Supremo
Tribunal Federal, para manter a legitimidade da ordem e
chamar novas eleições. Também afilhado do grande Império do Capital, esse último foi empurrando a coisa com
a barriga, tentando levar seu governo adiante sem que
acontecesse o pior para seus patrões, mas chegou uma
hora em que ele não conseguiu mais agüentar a vontade
do povo, e no último dia 18.12.2005, o povo boliviano,
pela primeira vez na sua História, elegeu um Índio verdadeiro para seu Presidente. Evo Morales é um índio
Aimara que nunca estudou fora do seu país, que se formou no sindicalismo, no futebol e na música, e na luta
do seu povo. Quando criança, passou fome, como tantas
crianças que vi ano passado lá na pátria dele. Talvez, se
um dia tivesse a mão estraçalhada dentro de um trem,
fosse abandonado com sua mãe numa estação deserta,
para que os outros não perdessem a hora.
Evo Morales, hoje, é o meu herói. Talvez seja levado a
fazer coisas pelo grande Império do Capital, assim como
Lula, ou Tabaré Vasquez, ou Kirchner – mas não é bem
essa coisa de Socialismo que está incomodando muita
gente no Hemisfério Norte (e também no Sul). O problema maior é que o cara é Índio! Será que o Ratzinger
vai ter que emitir uma bula papal para esclarecer as coisas,
dizer se Evo Morales tem alma ou não, como acontecia
no passado? Como é que o mundo dito “civilizado” pode
aceitar um Índio de verdade a governar um país com um
subsolo cheinho de gás, como a Bolívia?
[2] Pollo: Galinha
URDA ALICE KLUEGER nasceu em Blumenau/SC – Brasil,
em 1952. Licenciada em História na FURB – Blumenau
– SC; Bacharel em História na FURB – Blumenau - SC;
Especialista em História pela FURB – Blumenau/SC.
Autora de vários livros de ficção e narrativa de viagem.
É membro da Academia Catarinense de Letras, Instituto
Histórico e Geográfico de Santa Catarina, ANPUH
– Associação Nacional de História e Associação de
Jornalistas e Escritoras do Brasil. Vive no Brasil.
Ah! Bolívia do meu coração, eu estou contigo! Só teSEIXO REVIEW
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Paiva de Carvalho «Regressados»
52
SEIXO REVIEW
Paiva
de Carvalho:
1930-2006
E
duardo Bettencourt Pinto, autor e editor da Seixo Review, sugeriu-me que
fizesse uma entrevista ao
nosso amigo comum, o pintor Luís Paiva de Carvalho, a
residir no Canadá. Quando
o contactei, ele estava de
partida para o Brasil, pelo
que ficou combinado que
lhe enviaria as perguntas
por correio electrónico. Foi,
também, por esta via que
recebi as suas respostas e as
remeti ao Eduardo.
Estava tudo preparado para que a
Fotografia: Eduardo Martins
entrevista saísse no presente número.
Faltava apenas uma introdução, que eu me comprometera a fazer, e alguns materiais solicitados ao entrevistado para ilustração
do texto. Infelizmente, fomos todos surpreendidos com a sua
súbita partida, o que torna mais difícil a tarefa de apresentar o
artista que, acima disso, foi um grande e querido amigo.
Conheci o pintor Luís Paiva de Carvalho durante uma das
muitas actividades que se realizavam, e continuam a realizar, na
Galeria Almada Negreiros do Consulado-Geral de Portugal em
Toronto. Embora não tenha presente quem mo apresentou, fi-
SEIXO REVIEW
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carei para sempre grata à pessoa que teve a gentileza de o fazer. Proporcionou-me, com o decorrer do tempo ‒ ironicamente curto, mas
grande na intensidade da amizade ‒ o privilégio de conviver com uma
das mais interessantes figuras da comunidade portuguesa residente
nas proximidades de Toronto.
Logo no primeiro contacto com este homem, elegante e cavalheiro no trato, percebi que se tratava de alguém para quem a vida era
um exercício permanente de vigor e inteligência. Sem necessidade de
preâmbulos para quebrar o gelo, da conversa solta e fluída que travámos, emergiu uma química de proximidade. Descobrimos logo que
dominávamos um código comum ‒ Angola ‒ a senha que cria uma
intimidade própria de todos quantos aprenderam a olhar horizontes a
perder de vista, percorreram desertos de solidões humanas, sentiram
o cheiro da terra molhada e conheceram o único lugar onde apetece
sorver tudo com a mesma sofreguidão laranja com que o sol à tardinha se deita no mar.
O Luís era detentor de uma personalidade polivalente: desenhava,
pintava, esculpia, escrevia, deixando
em cada peça marcas das vivências e
experiências que mais o tinham marcado. Fazia da vida uma festa e privilegiava o convívio com os amigos criteriosamente escolhidos. Cultivava o
sublime, mas desculpava a mediocridade com a mesma nobreza de alma
com que facilmente perdoava a intriga ardilosamente fabricada.
Foi esse o legado que nos deixou
nesta entrevista.
aida Baptista
Paiva de Carvalho «Quitandeira»
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SEIXO REVIEW
PAIVA de CARVALHO:
a raiz do embondeiro
dos meus afectos
entrevista de aida Baptista
AB – Quando me foste apresentado em Toronto,
soube que eras o produto de um percurso triangular: Portugal, Angola e Canadá. Em jeito de
pincelada, poderias falar de cada um desses períodos da tua vida?
PC – A ainda tela branca da minha vida recebeu as
pinceladas das cores suaves da meninice vivida, dos
dois aos seis anos, num ambiente rural dos anos 30,
em Terras do Douro. Rodeado do amor e carinho
dos meus avós, aprendi a gostar das coisas simples,
das pessoas humildes, dos animais e da natureza.
Regressei ao Porto, minha cidade natal, para iniciar os meus estudos. Tive o percurso de todos os
jovens que estudam e…cabulam! Foi a vivência
duma juventude irreverente, descuidada, desligada
das responsabilidades! Segui para Luanda, Angola, em Julho de 1948. África era um continente
misterioso no meu imaginário! A realidade foi bem
diferente! Luanda dos anos 50 era uma cidade a
dar os primeiros passos da modernização. A retina
ofuscada com a luminosidade, as cores quase puras, os contrastes bem marcantes influenciaram, até
hoje, a minha pintura. Era o imaculado branco dos
fatos de brim a contrastar com os panos multicoloridos das mulheres da terra; era um linguajar diferente, que me soava harmonioso e doce, melando o
meu tripeiro ouvido! Constituí família e lá nasceram os meus dois filhos. Quando em 1985, por
circunstâncias alheias à minha vontade, fui obrigado a abandoná-la… ela veio comigo! A tela, que
fora toda branca, era agora uma simbiose das cores
quentes e suaves dos momentos felizes a contrastar
com o emanharado das frias cores da adversidade:
o preto do luto, da morte e da guerra! … Restava
ainda espaço para pintar e terminar a tela. Não quis
preenchê-lo com o nebuloso cinzento do nada.
Queria viver novas sensações, conhecer outras gentes, costumes e culturas. Escolhi o Canadá. O seu
multiculturalismo abriu-me outras portas. SintoSEIXO REVIEW
55
me rodeado de coisas novas e diferentes. Os anos que me dos, entre outros, 116 álbuns com apontamentos de Anrestam vou gastá-los a preencher o espaço sobrante, com gola, Moçambique, S. Tomé, Guiné, Cabo Verde, Brasil,
pinceladas sóbrias, cuidadas, pensadas e repensadas para etc. com mais de 5.500 desenhos, pastas com mais de
tentar terminar a obra, antes de me ausentar para parte 1.400 aguarelas e ainda mais de 1.000 reproduções em
incerta, o Além Macongino.
fotos digitais.
AB– É possível dizeres qual deles te marcou mais?
AB– A luz é um factor a ter em conta na obra de qualPC – Posso considerar que todos eles foram marcantes. quer pintor. Tendo tu vivido em latitudes diferentes,
Cada um no tempo e no espaço que lhes cabe no percur- qual delas te proporcionou a luz ideal para a execução
so da minha vida. Porém, Angola foi, e é, sem margem do teu trabalho?
para dúvida, a raiz do embondeiro dos meus afectos, das PC – “…As cores são acções e paixões da luz. A sombra
minhas lembranças, dos meus amores e desamores. Lá é tão essencial quanto a luz. A cor surge da dinâmica
convivi com Homens das Artes e das Letras, políticos desses opostos. Claro e escuro são elementos básicos
desterrados e muitos outros. No mato ouvi os mais ve- necessários à percepção visual e, portanto, das cores…”
lhos no desfiar oral das coisas dos homens e dos bichos, afirma Goethe na sua Teoria das Cores. A luz ideal será
das águas e do fogo, das lendas, dos medos e dos Ka- a envolvente do tema a pintar. Variará de lugar para luzumbis. Aprendi que a pintura na
gar. A percepção da luminosidasua forma de expressão pictórica
de, na minha opinião e por experiência própria, é a sentida pelo
também é veículo de comunicaartista. Se atentarmos nas telas
ção, afirmação de princípios, valores e contestação! Ao longo dos
dos pintores impressionistas, os
meus 45 anos de pintura os temas
obreiros da luz, verificamos que o
sociais, em todas as suas vertenmesmo tema é sentido de forma
tes, prevalecem no meu percurso
diferente. Por exemplo: a luz e as
de pintor autodidacta.
cores quase puras de Van Gog e
AB – O Canadá é o lado que feGauguin contrastam com as nucha o teu universo triangular ou
ances das de Cezane, Renoir ou
tencionas lançar-te em mais alMonet. A minha pintura foi, e é,
guma aventura?
influenciada pelas cores vibrantes
PC – O Canada é, agora, a paleta
e luminosas de Angola. Com a lionde a espátula mistura as cores
berdade que me confere a minha
do conhecimento, da experiência,
sensibilidade e autenticidade,
da aventura e dos desafios! Nespinto uma paisagem canadiana
te momento estou em Salvador,
com a mesma intensidade de luz
Bahía, Brasil, dando continuidae cor que pintaria uma paisagem
Paiva de Carvalho «Angústia»
de ao projecto iniciado em Janeiro
africana.
de 2002, de parceria com a Maria
AB– Ao longo da tua carreira de
Luísa Neves e Sousa – o inventário do acervo do pintor 45 anos, tens tratados os mais variados temas. O que é
angolano Albano Neves e Sousa, meu Mestre e Amigo. que te leva a escolher um em detrimento de outro?
A amizade que durou mais de 35 anos, só interrompida PC – Na escolha do tema entram em linha de conta os
pela sua ausência em Maio de 1995, é agora saudade! mais variados factores sensitivos. Pode surgir de forma
Eu que julgava conhecer a sua obra, ao ser confrontado espontânea, como um flash que impressiona o conscienin loco com todo aquele espólio duma vida dedicada à te. Analisando o conteúdo vamo-lo expurgando dos elepintura, poesia, etnologia, antropologia e outras manifes- mentos supérfluos, para que o essencial se apresente em
toda a sua força e corresponda à primeira sensação de
tações artísticas, sinto-me pequeno!
Não está a ser fácil conseguir-se um espaço para uma forma, luz e cor.
futura “Casa Museu – Neves e Sousa”, onde possa ser Outros temas, como resultado de forte emoção, têm de
preservado e exibido todo este inesgotável espólio, preze ser pensados e trabalhados até à exaustão! Estou a refeo esforço e o empenho da Maria Luísa. A título de curio- rir-me aos temas da minha preferência – os sociais. O
sidade e como apontamento direi que já foram cataloga- artista, logo que o seu espírito e o olhar intervêm – nem
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SEIXO REVIEW
que seja apenas para pintar ou desenhar uma paisagem acrescidos agora dos vindos dos PALOP e Brasil. Tu,
ou objectos que se julgam sem vida – a partir desse ins- que aqui residiste durante cinco anos e continuas pretante, tudo humaniza, enriquece, transforma e vivifica.
sente através das tuas crónicas, compreendes como é imAB– Um tema pode ser explorado mais do que uma portante o suporte de toda esta comunidade de origem
vez e cada uma delas dar-lhe uma leitura diferente. Já portuguesa. Ouvir o português falado é regressarmos ao
nosso triângulo, Portugal, Angola, Canadá, ao enunciaaconteceu contigo?
PC – Os temas de algumas das minhas exposições em do do teu novo teorema “o quadrado da hipotenusa será
Angola foram, dum certo modo, controversas. Explora- sempre igual à soma do quadrado dos afectos”.
vam o dia a dia dos muceques. As suas carências, as dife- AB– A tua obra mantém-se confinada a esse círculo ou
renças sócio-económicas e outras desagradavam ao po- obteve já projecção fora dele?
der instituído. Alguns quadros foram censurados. Nem PC – A minha vinda para o Canadá aconteceu há 12
sempre o título “inocente” era interpretado à letra! Tive anos. O meu percurso como artista plástico iniciou-se
alguns amargos de boca, mas a mensagem lá ia passan- em 1957. A partir daí nunca mais parei. Fiz cerca de uma
do. Ainda recentemente em Toronto, a minha exposição vintena de exposições individuais e participei em mais
ANGOLA – MATER DOLOROSA, desagradou.
de seis dezenas de colectivas. Os meus trabalhos encontram-se em Museus, Galerias
AB – Na pintura, como em qualMunicipais, colecções particuquer outra manifestação de natureza artística, existe sempre uma
lares e outras em Angola, Porreferência. No teu caso, por quem
tugal e Canadá. Distinguido
com vários prémios e Mente deixaste influenciar?
PC – Na abertura do catálogo da
ções Honrosas, sou Membro
da Oakville Art Society e
minha exposição “45 ANOS DE
PINTURA” o poeta Cândido da VeOakville Arts Council e ainda
lha escreveu “… Paiva de Carvalho
associado da Canadian Sociefoi – e é – um fiel e grato discípulo
ty of Painters in Water Colour.
Há dez anos que participo no
de Neves e Sousa de quem recebeu
Leilão Anual da Oakville Art
a técnica e a virtude de interpretar o
Society e os meus trabalhos
universo angolano com o coração a
pulsar de afectos desmedidos, porém
têm sido adquiridos e merecido o interesse de colecioconsciente das trágicas realidades sociais que destroem África dos nossos
nadores e galeristas. O painel
dias conturbados…” Esta afirmação
“Presença Portuguesa no Canadá”, pintado para as “Coespelha a influência do meu Mestre
memorações dos 50 anos da
e Amigo. Artista de rara sensibilidaPaiva de Carvalho «Rapariga de Vermelho»
Emigração Oficial Portuguesa
de, poeta, prosador, etnólogo e antropólogo, era, também, um conversador
no Canadá”, encontra-se em
nato, com um espírito de humor muito especial. As lon- exibição permanente no Pier 21 Museum, em Halifax,
gas conversas sobre este vasto campo das artes e letras Nova Scotia. A minha obra tem sido publicitada em toda
vieram enriquecer o meu conhecimento e foram o aperi- a comunicação social comunitária e canadiana.
tivo do mais aprender e a vontade de continuar!
AB – Além da pintura, ultimamente tens feito também
AB – Na zona do Canadá onde vives e por onde te mo- algumas incursões pelo campo da escultura. O que está
vimentas, existe uma forte presença portuguesa e luso- por trás dessa opção?
canadiana. Consideras importante para o teu trabalho PC – Não é uma opção. Chamo-lhe complementação.
É a manifestação tridimensional que vem preencher o
essa aproximação à Comunidade Portuguesa?
PC – A língua, como veículo comunicador por excelên- espaço que não existe na pintura. A sensação táctil, o decia que é, representa para mim o apoio fundamental à senvolver do volume, o crescer da forma, a sombra e a luz
minha mensagem plástica. Em Toronto, a língua de Ca- marcando e definindo a figura, são prazeres infindos. A
mões e Pessoa é falada por algumas centenas de milhar textura do barro, a sua sedosa macieza, o deslizar da mão
de residentes oriundos de Portugal, Açores e Madeira, sobre a superfície húmida é como o acariciar do corpo da
SEIXO REVIEW
57
mulher amada! É uma libidinosa sensação de estar, sentir
e dar forma.
AB – Colaboras ainda na Revista Satúrnia com uma
página designada “Estórias da Dipanda”, em que fazes um registo de pequenos episódios vividos ou a que
tiveste oportunidade de assistir. Nas entrelinhas das
palavras, lê-se a alma do pintor no pormenor das descrições. Gostarias de dedicar mais tempo à escrita?
PC – Como a escultura, também a escrita, em prosa ou
em verso, são complementos criativos a preencher espaços e tempos que me sobram da pintura. O que não
consigo interpretar e transmitir em artes visuais, atrevo-me a fazê-lo através
da forma escrita. Agora que a idade e
a saúde já me não permitem despender
tanto tempo e energia para pintar e modelar, talvez comece a escrever.
AB – Se escrevesses as tuas memórias,
a que período da tua vida dedicarias
mais tempo?
PC – Dedicá-lo-ia ao período de transição e pós-independência de Angola.
Foi uma experiência inolvidável nos
campos emocional, afectivo, social e
profissional!
Bahia, Salvador, 27 Fevereiro 2006
Paiva de Carvalho «Exodus»
58
SEIXO REVIEW
Biografia (sucinta)
de Luís Paiva de Carvalho
R
espirava com dificuldade. Mas a sua
voz, calma e harmoniosa, era como um
genuíno calor tropical que nos enredava nas
suas redes solares. Angolano por adopção,
Luís José Paiva de Carvalho era um artista
empenhado no seu mister, livre, acorrentado
porém a uma utopia que falhou – Angola.
Tendo nascido no Porto em 1930, Paiva
de Carvalho viria a radicar-se em Luanda
aos dezoito anos de idade. Experimentou
várias profissões até acabar no ramo dos
seguros, em cuja actividade se manteria até
alcançar a reforma, em 1992, já em Lisboa.
Não saiu de Angola, como a maioria
de nós, durante o caos da descolonização.
Teimou em apostar naquela terra que amava como sua, apesar dos incalculáveis desafios que teve de enfrentar com o drama da
guerra. Experimentou, como todos os que
ficaram, privações de todo o género, sobretudo alimentares, em consequência de uma
independência feita a ferro e fogo. Apesar
disso, ouvi-o falar desses tempos com saudade, num animado serão em casa de Rui
Balsemão, nosso amigo comum. Angola era
para ele um feitiço sem remissão.
Não se restringia porém ao sentimentalismo e à subserviência a um amor sem
critérios. A sua mostra Angola-Mater Dolorosa é um testemunho vivo e definitivo do
quanto o preocupavam as questões sociais
e o futuro do povo angolano. Essa exposição foi também uma denúncia magoada às
arbitrariedades que sentia existirem na sociedade angolana durante e após o conflito
armado. Além das imagens pungentes dos
15 quadros, as suas palavras, gravadas no
catálogo como um lamento, são inequívocas
no que concerne à sua posição:
«Vós, poderosos deste mundo globalizado, levantai os olhos das riquezas do solo
angolano, vêde e ouvi as gentes que o habitam. Ouvi os gritos dos que sofrem, vêde os
violadores dos direitos humanos que por lá
proliferam, e corajosamente respondei aos
apelos de socorro de milhões de angolanos
que, apesar de esquecidos, acreditam ainda
que podem ser ouvidos».
O seu percurso artístico teve início em
1959. Pintor autodidacta, faria a primeira
exibição dos seus trabalhos dois anos depois
na Sociedade Cultural de Angola. Neves
e Sousa, grande pintor angolano que viria
a falecer em Salvador, Brasil, em 1995, foi
nesses anos de iniciação o mestre, o companheiro e o amigo. A SCA viria a ser fechada pelas garras da PIDE, acabando-se aí
o convívio com os companheiros das artes,
das letras e da música. Alguns deles foram
inclusive desterrados para o Tarrafal.
A saída de Angola foi uma amputação
sentimental e um constante revolver de cinzas para o artista. Apesar do exílio, nunca
Paiva de Carvalho se tornou indiferente aos
destinos da sua terra adoptiva, perfilandose entre aqueles que mantiveram, de uma
forma ou outra, uma ligação e empatia com
ela. Homem de uma sensibilidade profunda
e genuíno interesse pelo equilíbrio social do
povo do seu país, pintou com a intensidade
do fogo e o arrepio do abismo as cores veementes da loucura generalizada que foi a
guerra civil.
Com inúmeras exposições individuais e
colectivas em Angola, Portugal e Canadá,
deixa-nos como legado, além do seu traço
enérgico e talentoso, a voz. É um abrigo
e um fogo. Uma presença, enfim, que nos
continua e continuará a marcar com a força
do seu espírito, companheirismo, e da sua
profunda humanidade.
eduardo Bettencourt Pinto
SEIXO REVIEW
59
GINGA
MALAIA!
aida Baptista
T
Meu querido mano africano
Paiva de Carvalho «Que futuro?»
60
SEIXO REVIEW
Tive oportunidade de te falar desta minha incapacidade de escrever qualquer texto directamente no computador.
Como tu, fazíamos parte da geração da máquina de escrever
sem teclas de apagar, copiar, colar, e demais funções inventadas para nos facilitar a vida. Por isso, somos do tempo do
rascunho feito com tanta cautela que mais parecia o texto
definitivo. Depois, dactilografávamo-lo com o mesmo cuidado da engomadeira do tempo do ferro a carvão. Ao mais
pequeno descuido, estragávamos a peça toda. O computador
apenas me veio facilitar a segunda fase do processo, porque
o momento de produção continua a ser manual e com uma
caneta que deslize facilmente, para não arranhar as palavras. Por mais que me esforce, o percurso da inspiração não
aprendeu ainda o caminho mais curto para o ecrã do computador. Tenho, por isso, um caderno de capas duras que,
habitualmente, carrego nas minhas viagens. Nele registo
pequenos apontamentos, ideias para futuras crónicas e até
chego a escrever algumas quando vou de comboio. Habitualmente, cada crónica que envio para o jornal corresponde a
quatro páginas de texto manuscrito do meu caderno.
Hoje, querido amigo, decidi que esta carta teria de ficar
guardada lá, com a intencionalidade de perdurar como um
texto autógrafo. Quando o abri, encontrei apenas as últimas
quatro páginas finais necessárias para este texto. Coincidência ou não, elas estavam reservadas para a tua partida.
Não vou ocupá-las a fazer-te um elogio fúnebre, porque tu,
amado como foste em vida, não precisas disso agora. Prefiro
conversar um pouco contigo, porque este era o verbo que
tu sabias conjugar como poucos: assuntos de um pretérito
perfeito e imperfeito, de futuros cheios de certezas, de
condicionais que tu sempre admitias como possíveis, gerúndios prolongados de quem quer dilatar o tempo e, por
último, dum presente que nos atraiçoou a todos.
Não sei explicar-te como me senti quando o Rui Balsemão me deu a notícia de que já tinhas partido para
parte incerta. Não sei dizer-te da saudade que sinto por
não te voltar a ver. Não consigo deixar de recordar tantos e tantos momentos passados juntos: em Toronto, em
Lisboa, na minha casa do Sardoal e, num lugar muito
especial, a vossa casa onde tu e a Ana eram dois anfitriões
perfeitos. Começávamos sempre pelo teu espaço de eleição – o estúdio – onde a estrutura da máquina de costura
te servia de bancada de trabalho e onde, certamente, alinhavaste os últimos retalhos da manta que te aconchegou na viagem final. Cada dia era já uma luta contra a
chegada de um bilhete anunciado, porque te conhecíamos como um apreciador da vida em toda a sua plenitude. Nas artes plásticas, que dominavas em quase todas as
suas vertentes, eras particularmente hábil numa delas – a
forma como esculpias os afectos. Aí, eras um profundo
conhecedor da matéria-prima de que são feitos. Não te
deixavas facilmente enganar e não tinhas paciência para
desbaratar o tempo com materiais com os quais já nada
se podia fazer. Detinhas-te na substância, aquilo com
que se produzem edições limitadas e, por isso, mais valiosas. Refiro-me aos amigos, aos que soubeste escolher
e que serão o único espólio que deixarás como a herança
que nos une a todos neste momento. Com eles cultivavas
um humor sarcástico, mas sempre inteligente; a mordacidade oportuna sem seres deselegante; a piada brejeira que nunca roçou a boçalidade. Rias-te de ti próprio,
gracejavas com as tuas mazelas e continuavas a receber
com gargalhadas as fragilidades que, nos últimos meses,
te visitavam com mais frequência. Há pouco tempo, falámos por telefone. Quando te perguntei pela saúde, após
uma curta introdução sobre a evolução do teu problema,
começaste logo por brincar quando te referiste aos baixos
níveis dos teus indicadores de testosterona. Como a Ana
se encontrava em Portugal, não perdeste a oportunidade
de fazer humor com a situação. “Quando ela chegar, minha amiga, já virei minina!” Perante uma tirada destas,
quem pode resistir a uma boa gargalhada? Mas não ficaste por aqui. Continuaste a gozar com a situação para,
por entre gracejos, dizeres:
“Sabes, amiga, são estes testes de avaliação diagnóstica, e que a gente agora anda sempre a fazer, que põem a
nu os nossos achaques todos. Há sempre algum valor que
não está bem! Antigamente, morria-se de morte morri-
da. Nem se chegava a saber porquê. Dizia-se «morreu e
pronto, acabava-se tudo». Por isso, minha querida, nisto
de doenças o melhor é sermos mesmo como os cornudos – ignorar o que se está a passar.”
Por falar nestes enfeites, tu tinhas por cima da lareira
do teu estúdio uma cabeça de um animal africano muito
bem fornecida. Da última vez que lá estivemos – lembraste? – foi um corrupio para a foto, no ângulo que mais
nos favorecia. Todos quiseram ser cornudos por um dia!
Pelo resultado das fotografias que trocámos, acho que saímos todos bem enfeitados.
Para além destes registos, meu mano, tenho tantas
outras coisas que me permitem manter um diálogo vivo
contigo: uma grande variedade de mensagens electrónicas, textos avulsos, pinturas, a ilustração do meu livro e
poemas muito especiais. Este mandaste-mo do Brasil e
reflecte a dor do teu regresso a Portugal quando saíste
de Angola.
“Regressei
Desiludido
Triste
Alma dorida
Sofrida
A terra que julgava ser minha
era agora terra de ninguém…
A outra que tinha deixado
não era a que pensei!
Estranho na terra
que julgava conhecer
tive d ‘aprender
maneiras novas de viver
pensar
e conviver.”
Agora, feito cinza em parte incerta do teu Reino
Macongino, ergue a taça e brinda ao sonho de escolher
a terra onde estarás à nossa espera. Saberemos onde é,
quando gritares bem alto a senha “Ginga Malaia”!
SEIXO REVIEW
61
Marcolino Candeias:
Poeta das imagens
SR – Quando e como começastes a interessar-te pela
Arte Digital?
MC – Na verdade o que me moveu para estas coisas foi
simplesmente a arte da Tipografia. Foram as letras (a forma,
o desenho, os «tipos!» …) que sempre me despertaram interesse.
Eu gostava, em criança, de tentar desenhar letras que tinha visto em livros, em jornais, em panfletos publicitários. Achava as
letras bonitas, atraíam-me, então, as «serifadas», por causa dos
arrebiques, que tentava desenhar.
62
Mais tarde, adolescente, nas primeiras lides com o jornal
académico do meu liceu, deliciava-me a ver o trabalho de composição dos tipógrafos, com as caixas de tipos, quando levávamos
o jornal para a tipografia. Só pouco depois é que o jornal passou
a ser composto numa máquina que fundia os caracteres, linha
a linha. Eu gostava de ver a mancha tipográfica nas provas,
era sensível à escolha dos caracteres. Em particular, no caso da
SEIXO REVIEW
poesia, sempre me preocupou a mancha que o poema cria na
página, a distribuição dos versos, a escolha do tipo e do corpo,
etc.
Isto prolongou-se pela vida fora. Mas durante anos, depois, deixei de ter contactos com a Tipografia.
Pelo meio impôs-se a máquina de escrever, monótona, chata, limitada, sem itálico, que obrigava a sublinhados inestéticos.
Voltei a despertar no início dos anos 90,
quando descobri as fontes ttf para PC. Os McIntosh é que tinham entrado em cena brilhando
nesse campo. Eu estava no lado dos utilizadores
de PC, mais acessíveis no preço, e tinha-me habituado a navegar na escuridão do DOS. Quando descobri as ttf e que as podia utilizar no meu
WordPerfect (que, apesar de ter perdido a guerra,
continua a ser, a meu ver, o melhor processador
de texto), entusiasmei-me e logo arranjei duas
colecções, uma delas rica de clássicos, produzida
pela Bitstream.
O Windows 3.0 não existia. Não havia interface gráfica, não se tinha chegado ainda àquilo a que se chamou Wysiwyg (What you See Is
What You Get). Eu usava o WordPerfect para
DOS e concebia tudo mentalmente, compondo
num ecrã negro, com caracteres DOS; depois imprimia e corrigia quando havia lugar para isso.
Obviamente também, apenas podia jogar com o
preto e o branco e com negativos: as impressoras
a cores eram ainda raras e caríssimas e de muito
má qualidade. Mas jogava apenas com caracteres.
Passei a usar imagens por mera necessidade e por economia. Necessitava de publicitar as
actividades da Casa da Cultura de Angra, de
que era então director, mas achava exorbitante
o custo dos cartazes (concepção e impressão), tão elevado que
sobrecarregava de forma exagerada o custo de cada actividade. Eu procurava fazer um grande número de actividades ao
mais baixo preço e verifiquei que poderia muitas actividades
quase a custo zero. Porém, a publicidade podia custar mais
do que tudo resto. Por isso decidi fazer eu próprio os cartazes,
imprimi-los numa jacto de tinta em A4 e depois reproduzi-los numa fotocopiadora a cores, em A3. Com a tecnologia
então disponível, era o que melhor conseguia, pelo preço mais
conveniente.
Foi nessa altura que comecei a usar imagens. Eu tinha
iniciado a minha curiosidade pelo Photoshop e divertia-me
a explorar o programa. Fazia experiências. Tentava novas
coisas. Achava interessante e achava que, para aqueles fins
publicitários, o que eu ia fazendo era muito aceitável e até
mesmo melhor do que naquela
altura (1998) aparecia por cá.
Mas sem mais pretensões, excepto de conseguir um resultado
que esteticamente agradasse ao
público.
Ora, isto que eu faço não sei se
é arte; mas sei que o que faço tem
as suas raízes nas Artes Gráficas,
que são bem anteriores — e que
agora habitam o mundo maravilhoso da tecnologia digital.
Porém, acho que quando falamos em arte digital, falamos
em algo muito mais vasto, que
inclui também, entre outras formas, aquelas expressões artísticas
que, no passado, se exprimiam
sobre a tela, o vidro, a madeira,
etc. Como a pintura, como a gravura.
E não serão poucos os artistas
plásticos que hoje se exprimem
também pela via digital. É um
universo.
SR – Em Portugal, que
impacto e que difusão existe
no sector?
MC – Pode parecer estranho
que insista tanto na referência
à Tipografia, mas a sua importância é tanta que já no século
passado um conceituadíssimo artista plástico francês (tem um
liceu com o seu nome), Maximilien Vox, dizia: «é tempo que
se deixe de considerar a Tipografia apenas pela sua utilidade
e beleza, mas também enquanto disciplina do espírito, isto é,
pela sua universalidade». E ela tem uma grande importância no tipo de trabalho digital que faço, em que as imagens
servem de suporte a uma mensagem escrita, assim como num
sector muito importante da arte digital.
Portugal cultivou com muito esmero e respeito a Tipografia e a Gravura, etc.: as Artes Gráficas. Embora não se refira comummente a existência de Baskervilles, Garamonds ou
SEIXO REVIEW
63
Bodonis nacionais, a História fala-nos de grandes tipógrafos
portugueses, cujas obras ainda hoje existem nas bibliotecas
nacionais.
No entanto, sobretudo a partir dos finais do século passado,
devido talvez ao aparecimento do processamento de texto por
computador, que permite que um texto salte do computador
directamente para o processo de impressão, fico com a impressão, ao ler os livros que leio, que se esqueceram séculos de Arte
Tipográfica: livros sem margens, com negritos inadequados
e sublinhados (coisa que foi inventada para a máquina de
escrever, que não podia, então, ter itálicos) em vez de itálicos,
e a confusão na sua aplicação, excessivas maiúsculas, ignorância dos versaletes, etc. Tem havido desleixo de impressores
e de editores.
Mas, por outro lado, floresceram as artes gráficas com o
contributo da nova disciplina do design, por vezes afrontando as boas regras da Arte Tipográfica, violando amiúde
a regra da legibilidade. Claro que me refiro à fronteira do
experimentalismo e que continuo a referir-me à área das artes gráficas.
Porém, a par de excelentes grafistas, surgem agora «fundidores» digitais portugueses com reputação internacional,
como Ricardo Santos, autor de Lisboa, fonte muito bonita da
linha Humanist Sans, e Dino dos Santos, entre outros. Dino
dos Santos é autor de mais de trinta fontes, entre elas Andrade, que lembra muito
o Bodoni, em homenagem a Manoel de
Andrade de Figueiredo, grande calígrafo e
tipógrafo português do século XVIII.
Fora deste sector e para além do design
gráfico, usa-se cada vez mais (senão unicamente) a tecnologia digital na criação
artística, em todas as vertentes. E com
muita qualidade, embora eu não me sinta
perito para falar disso.
SR – Que prazer te dá manipular
imagens, ou seja, recriar sentidos e
percepções?
MC – Dá-me um grande prazer. Cria
em mim, ao mesmo tempo, uma grande
tensão e relaxamento. Uso imagens diversas ou uma só: colo,
transformo, cito, distorço, sobreponho em função de uma mensagem que quero transmitir, procurando criar basicamente 3
níveis de leitura: um de mera apreensão global visual à distância, para chamar a atenção (e é para isto que me serve o
trabalho de manipulação das imagens); um 2º de leitura de
letras — título, em geral — ainda a alguma distância (aqui
64
SEIXO REVIEW
recorro à composição tipográfica e à escolha da uma fonte que
case com o tema); e o 3º, também de composição (tipo) gráfica
em que se fornece o resto da informação e que deve ser lido já
em frente do cartaz, ao alcance da visão.
SR – Já dispões de um número suficiente de trabalhos de modo a fazeres uma exposição?
MC – Tenho uns quantos; não sei se chega, porque nunca
exporia todos. Acho que nem todos são conseguidos. São objectos utilitários, uns mais conseguidos do que outros. Talvez os
mais recentes mereçam essa deferência…
SR – Em caso negativo, já pensaste nisso?
MC – Já me têm falado nisso algumas vezes. Não sei se
é importante fazê-lo. Esse juízo não me cabe a mim fazê-lo.
Considerando que tenho tido apreciações positivas de artistas
de reputação firmada e reconhecia, não me oporia.
SR – Vejo a Arte Digital como uma expressão artística entre a Fotografia e a Pintura. Como a defines?
MC – Não saberei dizer como a defino. Mas acho que
pode comportar atributos das duas, sem que tenha de ser uma
ou outra. Um trabalho pode «devorar» fotos, pinturas e mesmo outros trabalhos digitais para se constituir como ele próprio, acabando por não nem pintura nem fotografia. Tem estatuto próprio. Ou pode ter. Mas julgo que nem sempre a arte
digital mirará a perenidade da pintura
ou da fotografia, mais que não seja por
poder existir frequentemente em função
do circunstancial e incorporar em si a
efemeridade.
SR – Há muitos adeptos nos
Açores?
MC – Não estou muito por dentro,
mas sei que há quem trabalhe bem nesta
área e seriamente, inclusive com competências que eu não tenho. Há cerca de
dez anos, quando cheguei, de regresso
aos Açores, notei que tudo que se fazia
na área das artes gráficas estava bastante atrasado e que pouco se fazia no
digital. Mas houve uma grande mudança. A impressão que tenho é a de que
vai aparecendo mais gente e gente que faz coisas de qualidade. Alguns, diria, com muita qualidade. Sobretudo gente que
fez estudos nessas áreas.
SR – Que voz expressas na Arte Digital cuja ressonância se pode também classificar como uma poética,
uma extensão da poesia?
MC – Embora tenha começado por motivos de natureza
meramente prática e utilitária, confesso que acabei por sentir que era uma forma de expressão. Inclusivamente de uma
expressão estética correspondente a uma necessidade como que
de partilha, em algo semelhante à poesia, à escrita.
SR – Trabalhas algum tema específico ou deixas a
imaginação levar-te ao imprevisto?
MC – Em geral parto para um objectivo concreto
com uma ideia nebulosa que é quase um sentimento; e
enquanto isso dura eu vou carreando materiais para o
computador, que poderão vir a servir ou não. Vou compondo o ambiente, escolhendo cores, tonalidades e fontes, jogando com posições, intensidades, transparências.
Claro que posso chegar ao imprevisto, que tanto posso
agarrar forte com as duas mãos, como posso deitar para
o cesto dos papéis.
É importante saber escolher o que incorporará o trabalho e aquilo que deve ir para o lixo; mas isso é quase
sempre intuitivo, na medida em que não parece ser o
raciocino, num primeiro plano, a fazer as escolhas.
Mas estes processos são sempre inefáveis: para o último trabalho que fiz não tinha tempo nem muitos recursos; acabei por consegui-lo em duas horas e parece ter sido
bastante bem conseguido, a avaliar pelos comentários
que recebi. Mas foi extenuante.
MARCOLINO CANDEIAS nasceu em 1952, na Ilha Terceira,
Açores. Licenciado em Letras pela Universidade de
Coimbra, foi docente durante vários anos. Exerceu nas
universidades dos Açores, de Coimbra e na de Montréal,
no Canadá, onde residiu onze anos. Regressou aos Açores
em 1997, tendo exercido os cargos de director da Casa da
Cultura da Ilha Terceira, Director Regional da Cultura e de
Presidente do Gabinete da Zona Classificada de Angra do
Heroísmo. Actualmente é Director da Biblioteca Pública e
Arquivo Regional de Angra do Heroísmo. Publicou Por ter
escrito Amor e Na distância deste tempo, ambos de poesia.
Há cerca de 12 anos que se iniciou na prática das artes
gráficas, pela via digital.
SEIXO REVIEW
65
havia um mar
mas apenas tu e eu
seguíamos pela areia. e as
tuas mãos tinham barcos
as minhas cordéis e balões
de brincar. era estranho
mas o que era acontecia
carlos Lopes Pires
e era por dentro
que aquela coisa era
e eu sabia.
e depois tirei do peito
uma luz
que era um nome
e por isso tu não a vias.
queres? perguntei
era talvez Deus
e afundou-se o mundo
CARLOS LOPES PIRES nasceu a 7 de Agosto
de 1956 em Quadrazais, aldeia situada perto da
Serra de Malcata, junto ao rio Côa. Passou a
residir em Leiria a partir dos cinco anos de idade.
Doutorado em Psicologia Clínica da Saúde pela
Universidade de Coimbra onde lecciona na
mesma área.
Tem vários livros de poesia e ficção
publicados.
66
SEIXO REVIEW
Sobre Adelaide Freitas e o seu
Sorriso por Dentro da Noite*
vamberto Freitas
P
oderá parecer estranho, à primeira vista, eu a escrever sobre o recente romance
da minha própria mulher. Que pareça! Ela foi “autónoma” de mim durante
quase toda a sua vida, e já era escritora antes de me conhecer, mesmo que
na altura só tivesse publicado a sua tese de doutoramento, Moby Dick: A Ilha
e o Mar/Metáforas do Carácter do Povo Americano. Mais do que falar sobre o
romance em si próprio (muitíssimos outros o fizeram um pouco por toda a
parte onde a literatura açoriana é lida e apreciada), quero dizer algo sobre a
sua feitura durante alguns três anos, com trabalho incessante por vezes dia e
noite. É claro que foi escrito quase todo antes do aneurisma que a atingiria de
modo particularmente violento e deixando sequelas muito graves, tornando
o seu título quase numa profecia da sua má sorte, isto é, da sorte da autora.
Foi publicado em 2004, após a leitura do poeta e escritor nosso amigo Viale
Moutinho (Porto), que o entregaria de imediato com uma forte recomendação
de publicação à então recém fundada Editora Ausência, do Dr. Manuel Reis,
em Vila Nova de Gaia. Quando recebemos Sorriso por Dentro da Noite já em
forma de livro pela primeira vez em Ponta Delgada, a nossa alegria foi a mais
intensa, pois a sua apresentação ia além de todas as nossas expectativas. De
capa verde-escuro, com o que parecem ser nuvens ameaçadoras por cima, duas
hortênsias azuis a meio, no melhor formato clássico do romance moderno em
Portugal, era agora só esperar pela sua distribuição e receber as primeiras reacções. Não tardaram em vir, ora ditas ao telefone ora escritas nas mais variadas
publicações, no Continente, nas ilhas e na imprensa de língua portuguesa na
América do Norte. Onésimo Almeida escreveu que era uma obra única na literatura portuguesa, particularmente pela sua temática: um mergulho sustentado
SEIXO REVIEW
67
durante duzentas e cinquenta e tal páginas na vida órfão
de uma criança açoriana, aqui de nome Xana) algures
no isolamento quase absoluto de uma freguesia das ilhas
nos anos 50 e 60, os anos da nossa escuridão e sangria
emigrante. É efectivamente um olhar diferente daqueles
a que nos tínhamos habituado na literatura das ilhas.
A nossa e/imigração é agora vista não de lá para cá,
mas do ponto de vista dos que ficaram e “viveram” a
América através de “notícias” e “imagens” diversas trazidas ou enviadas de lá, através ainda dos
relatos mais ou menos ficcionados
dos que regressavam de férias ou
supostamente definitivamente. Não
poderia ser uma narrativa adentro
da desde há muito ultrapassada tradição estritamente “realista”, mas sim
um acto tão simbólico como simbólico
seriam as linguagens das aventuras (re)
contadas pelos que viviam ou tinham vivido essa “América” em directo. Xana não
fala nunca directamente, é antes observada obsessivamente por uma irmã mais velha, que narra toda a estória de Sorriso por
Dentro da Noite. O ponto de vista, uma vez
mais, é simultaneamente o de uma criança
com memórias desconexas mas de todo significantes, e principalmente do ponto de vis- ta dessa
narradora adulta e consciente de todo o drama vivido
pela família emigrada e pelos outros que permaneceram
nos Açores. Nesse processo de remorialiazação, não só
acompanhamos a família paradigma-símbolo de toda
uma comunidade isolada a meio Atlântico ou fixada nos
Estados Unidos, como acontece a essencial “descrição” e
“historicidade” de todo um povo com identidade muito
própria. Adelaide corta aqui também radicalmente com
praticamente toda a literatura açoriana da nossa geração, a que se aventurou na reinvenção literária dos nossos
emigrantes: de meras caricaturas unidimensionalmente
recriadas em muitas das nossas páginas romanescas e de
poesia, a autora apresenta-nos seres humanos na sua totalidade, na sua mais profunda essencialidade, com alma,
inteligência, alegrias, tristezas, tontices e astúcia. Quase
não havia dor ou consciência da sua sorte nesses personagens tratados e vistos por outros, havia só roupa folclórica, linguagem despedaçada, certa cegueira ideológica
ante o Novo Mundo e ante os que regressavam ou permaneciam na penumbra das suas margens imensas mas
obscuras. Muito antes da publicação de Sorriso, eu já tinha escrito sobre essas visões de alguns autores açorianos,
68
SEIXO REVIEW
primeiro em recensões, e depois num ensaio apresentado
num dos simpósios da Universidade dos Açores, com o
título de “Imagens da América e dos Imigrantes: Um
Duplo Olhar”. É claro que Adelaide neste seu romance
não está tanto na companhia dos seus colegas escritores
que nunca viveram a experiência imigrante na América, mas está sim com todos os escritores da Diáspora e
luso-descendentes que necessariamente se ocuparam do
mesmo tema, desde Onésimo Almeida em
(Sapa) teia Americana a Katherine Vaz em
Saudade e Frank X. Gaspar, principalmente
em Leaving Pico (mas também em muita
da sua poesia), ou ainda Francisco Cota
Fagundes em Hard Nocks: An AzoreanAmerican Odyssey e José Francisco Costa em muitos dos seus contos de Mar e
Tudo. É claro que alguns destes nomes
pertencem também (e de estatura quase canónica) à própria literatura açoriana contemporânea.
Para quem, como eu, leu praticamente toda a produção literária açoriana da sua geração e dos luso-descendentes, e sobre tudo isso muito
reflectiu e escreveu, aconteceu-me
algo de estranho durante a escrita de Sorriso por
Dentro da Noite. Adelaide ia-me dando páginas para ler,
eu fazia que lia, e logo as devolvia com um simples comentário: continua, Querida, que me parece muito bem!
Tinha este medo: via-a trabalhar incessantemente no seu
romance, tinha um receio muito fundo de lhe ter de dizer, ou que não estava bom, ou então ter de exercer não
a intervenção de outro ficcionista, que não sou, mas tudo
quanto me era teoria, desde técnicas gerais de narrativa
à criação de personagens que fossem originais e memoráveis. Quando finalmente ela tinha já preparado todo o
“manuscrito”, pensando que eu o conhecia de uma ponta
à outra, entregou-mo e perguntou: agora como o publico? Num dos nossos encontros num simpósio anual da
Madeira, tínhamos conhecido e feito amizade com Viale
Moutinho, hoje jornalista do Diário de Notícias (Lisboa)
aposentado, e que também já me conhecia de nome, desde os anos em que eu escrevia da América para o mesmo
jornal. Sabia da sua integridade, da sua qualidade como
escritor e poeta, e mais ainda sabia do seu conhecimento das nossas literaturas das ilhas (Madeira e Açores),
sabia que ele seria absolutamente honesto. Enviei-lhe
Sorriso por Dentro da Noite, com dois pedidos: lê e reage com toda a sinceridade, e se vires que vale a pena,
ajuda-nos a encontrar um editor aí no Continente. Poucos dias depois, Viale reagia: sim, já o entreguei a uma
nova editora, esse romance deve ser publicado já! Entretanto, a nossa amiga Katherine Vaz já tinha enviado da
América à Adelaide doze páginas densas de apreciação
e crítica. Eu tinha lido, e ficado quase paralisado com a
sua contundência e admiração pelo Sorriso, dizendo inclusive (entre muitas outras coisas, que um dia tenciono
publicar) que nunca tinha lido em língua nenhuma tão
poderosa metaforização do sofrimento da mulher no
período menstrual, e a consequente relação de amor e
ódio com o seu próprio corpo, a luta ingrata contra a sua
própria natureza! Adelaide já estava visivelmente muito
doente. As nossas noites já raramente eram de “sorrisos”.
Eu agora esperava o romance (que nunca tinha lido!)
com toda a ansiedade de quem põe na literatura um dos
mais queridos significados da sua vida. A neurologista
da Adelaide em Lisboa tinha-me dito há poucos dias: é
importante que o romance seja publicado o mais breve
possível porque vai ajudar o seu ego e condição em geral;
essa alegria faria parte da nossa terapia. Eu esperava ansiosamente pelo momento. Mas naturalmente também
muito me preocupava com possíveis reacções daqueles
que achariam ter contas a ajustar com ela, ou comigo, ou
com nós os dois ao mesmo tempo. Tinha já decidido que
leria tudo que fosse publicado sobre o Sorriso, e nalguns
casos, se necessário fosse, esconderia tudo, pois Adelaide
presta uma atenção muito selectiva à crítica literária em
Portugal (lê principalmente o Mil Folhas do Público e o
JL) assim como a certas publicações açorianas. Quando
o romance finalmente saiu, uma das primeiras reacções,
como aqui já referi, foi a de Onésimo, grande amigo a
toda a prova, com uma honestidade absoluta: eu passava do Calvário para a Alegria. Onésimo nunca diria o
que não sentisse ou soubesse. Após a sua reacção, pedi
finalmente à Adelaide para que me deixasse só na nossa
sala do Pópulo toda a noite, e abri o Sorriso! Não convoquei desta vez para minha companhia o nefasto JB.
Comecei a ler a primeira linha ouvindo as Quatro Estações de Vivaldi. Tentei esquecer toda a teoria e crítica
literária. Edmund Wilson lavava sempre as mãos antes
de começar a escrever, num acto simbólico de bondade
e justiça literárias. Eu nessa noite lavei a alma e a mente
de tudo o que pensava sentir ou saber. Tinha presente
que um dos primeiros sinais de que um livro merece a
nossa atenção, é se queremos continuar ou não a virar
páginas, expulsando por completo todo o restante mundo. Após o primeiro parágrafo de Sorriso, sabia que não
o deixava mais. Mas não o li todo essa noite, não queria,
tal o poder que exercia sobre mim. Pelo meio e sozinho
enquanto Adelaide dormia tranquilamente no quarto ao
lado, chorei lágrimas de alegria, orgulho, contentamento,
amor. Acordei-a a certa altura para lhe dizer da minha
gratidão. Exerci todo o meu humor: Sua filha-da-mãe,
que me tinha roubado da gaveta o romance que eu tinha
escrito, e o tinha publicado sem mais. Era agora o nosso
livro! Creio que só nesse momento é que a Adelaide percebeu que eu lia o Sorriso pela primeira vez. Chegar ao
fim de um romance com pena de não haver mais, é outro
grande teste à sua beleza. E era isso que agora acontecia comigo, como a outros que iam reagindo de modos
vários, por vezes quase euforicamente. Ia-lhes dizendo
que me parecia mais um romance americano escrito em
língua portuguesa. Lembrava-me aqui de como o nosso
amigo e colega Eduardo Bettencourt Pinto dizia o mesmo da minha própria escrita crítica. No caso do Sorriso, era a fluidez da linguagem, a criação de personagens
memoráveis, a poetização do negrume da vida e da dor,
a celebração de se estar vivo na escuridão. Como se ama
uma mulher e uma autora de mérito ao mesmo tempo?
De modo esquizofrénico: com ternura e inveja, sobretudo com a humildade de crítico literário, a de quem poderá entender de mecanismos e protocolos da literatura,
mas não a sabe fazer.
percurso da Adelaide até ao Sorriso tinha sido
muito longo, por vezes penoso, mas também
pleno de sentindo de missão e da alegria de quem vive
viva. O Sorriso encerra alguns dos tempos que ela tinha
abordado na sua obra literária precedente, e que começou a publicar com alguma regularidade após a sua tese
de doutoramento. Nesses antecedentes de o Sorriso, está
com alguma centralidade a sua prosa poética reunida em
De Emigração Tecido, escrito em 1987 e publicado em
1990, e logo após nos termos conhecido nos famosos encontros da Maia (fim dos anos 80 e princípio dos anos
90), organizados por Daniel de Sá e Afonso de Quental,
nos quais comecei a participar logo de início por sugestão
de Onésimo Almeida, que acompanhava o meu percurso
na Califórnia, tanto através da minha escrita em jornais
de língua portuguesa e mais tarde como correspondente
do Diário de Notícias (Lisboa) a partir de 1979, onde eu
tinha ingressado com esse estatuto a convite de Mário
Mesquita. Tinha-me divorciado há relativamente pouco
tempo quando num desses encontros conheci a Adelaide.
Eu tinha feito uma comunicação sobre literatura açoriana a partir de um ponto de vista de quem sempre estivera
ao longe e nas margens, e no fim a Adelaide veio falar comigo e dizer-me do quanto se tinha identificado com o
O
SEIXO REVIEW
69
que eu dissera, pois ela também tinha sido imigrante na
América. Perguntei-lhe com alguma sobranceria meio
defensiva onde tinha estudado e com quem. Em Nova
Iorque, respondeu. Eu tinha abordado também alguma
da obra de João de Melo, seu vizinho na Achadinha até
à adolescência, da mesma idade, companheiros de escola, tendo os dois mantido sempre uma profunda amizade através dos anos na ausência, ele em Lisboa e ela na
América e depois em S. Miguel, e quem ela agora lia
avidamente e em pouco sobre ele escreveria páginas fundamentais, publicadas muito mais tarde em João de Melo
e a Literatura Açoriana. Que pena, disse-me ela, alguns
dos seus romances não estarem traduzidos para o inglês.
Olhei para ela com acrescido interesse. Falei-lhe em tradutores famosos nos
Estados Unidos, e
que já tinham trabalhado a literatura
de língua portuguesa, tanto de autores
brasileiros como de
portugueses. Quem,
perguntou ela? Gregory Rabassa, antes
de ninguém, afirmei, pensando que
lhe estava dando informação absolutamente original! Repetiu ela: Gregory
Vamberto Freitas no mercado público
de Florianópolis, Brasil.
Rabassa? Sim, Gregory Rabassa, disselhe mais uma vez e aprontando-me para lhe explicar que
ele, entre muitas outras obras famosas no mundo, tinha
traduzido Cem Anos de Solidão de Gabriel Garcia Márquez, tendo com esse trabalho ficado quase tão famoso
como o próprio autor colombiano. Com toda a serenidade, Adelaide informou-me de seguida: Fui sua aluna na
New York City University, e hoje ainda sou sua amiga,
mas não tenho mantido contacto com ele nos últimos
anos. Quedei-me no silêncio por um instante, olhando-a
agora com menos arrogância e altivez. Você estudou com
Gregory Rabassa, é sua amiga? E ainda não lhe enviou
O Meu Mundo Não É Deste Reino do também seu amigo
João de Melo? Que grande ideia, respondeu-me ela, e
assim reiniciarei os meus contactos com Rabassa. Não
demore nada a fazer isso, respondi-lhe. Do que resultou
falarei noutra parte, mas para além de todo o mais que
viria a ser decisivo para as nossas vidas, foi a correspon-
70
SEIXO REVIEW
dência que começámos logo a manter quando regressei
à minha casa em Buena Park, ali nos arredores da Disneylândia. A nossa “relação” ao longe tinha começado,
hesitante e subtil, mas as cartas em breve se seguiriam,
também com conversa literária, apreciações de autores
açorianos que líamos mutuamente, o que ela e eu íamos
escrevendo acerca de tudo isso. Adelaide não publicava
nada, estava relutante em mostrar ao mundo a sua poesia e prosa poética, as amarras eram muitas, inclusive o
facto de ser professora de literatura norte-americana na
Universidade dos Açores, onde raramente (pelo menos
com ela) havia trocas desse género entre colegas, todos
“catalogados” nas suas áreas de especialização, à semelhança do que acontece na maioria das universidades
em toda a parte. Insisti que me enviasse alguns dos seus
poemas, e ela fê-lo prontamente, já organizados numa
sequência que manifestava uma clara intenção de eventualmente os publicar. Li-os e reagi de imediato. Que
teriam de ser publicados, se ela não tratasse disso, tratava
eu! Nos Açores ela seguia a publicação do meu primeiro
livro de ensaios e crónicas, A l (USAlândia Reinventada,
selecções da minha colaboração nos jornais portugueses
de imigração e do Diário de Notícias. Dizia-me que não,
que a sua vida estava cada vez mais complicada, por vezes sentia-a por um fio. Eu ia lendo os subtextos dessas
cartas, e cada mais sentia uma aproximação irreversível.
Numa longa carta que lhe enviei sobre o que em breve
viria a ser De Emigração Tecido, dizia-lhe que, para além
de tudo o mais, eram ainda poucas as mulheres da nossa
geração que publicavam nos Açores e na Diáspora, e que
o seu livro seria um contributo precioso para um melhor
entendimento de toda a nossa experiência de vida dentro
e fora do arquipélago. Ela tomou coragem, e decidiu publicá-lo numa então pequena editora de Ponta Delgada.
Pediu-me autorização para reproduzir parte da minha
carta na contracapa. Fiquei extremamente honrado com
isso, pois sabia que o livro marcaria pelo menos esse outro
espaço entre nós que, uma vez mais, ainda estava quase
em branco: a experiência imigrante açoriana na América
do Norte vista por uma mulher formada em literatura,
consciente de si própria e da sua sorte na vida, boa manipuladora de todas as linguagens que eram nossas, ora
no quotidiano vivencial ora na literatura. Cito aqui esse
passo, pelo que esclarece no que eu viria a sentir muitos
anos depois pelo Sorriso:
Li De Emigração Tecido e felicito-me por uma poesia do tempo perdido e apreendido, esse inescapável tema da
nossa existência e arte atlânticas, esse quebrar o isolamento
físico e psíquico, para uma vez mais tão belamente agarrar
de novo a vida. Estarei muito fora da tua escrita poética
quando aí vejo a dor como passo fundamental para uma renascença e contínua aventura que é a vida de cada um e de
todos nós, quando, nessa tua linguagem límpida e não-sentimental, negas o niilismo que a muitos está corroendo nos
confusos dias (como diria o falecido James Baldwin) de indizível caos nas vidas de cada um de nós e da colectividade?
Vejo ainda nas tuas comovidas páginas de De Emigração
Tecido uma tremenda luta entre o indivíduo que insiste
em sobreviver bem vivo e uma Natureza que, no meio desse
mar, conspira perpetuamente para amordaçar o Homem, ora
aterrorizando-o, ora oferecendo-lhe miragens da sua indescritível beleza. É um triunfo absoluto da Vida e da Beleza;
uma ode linda à força humana, ao seu optimismo, determinação e vontade de viver.
É
claro que escrever um romance (ou uma outra
obra qualquer) é em si próprio um acto de esperança de que as nossas vidas tiveram (e têm) algum
significado, é sobretudo um acto de esperança de que
muitos dos que nos rodeiam verão nessas páginas um
mundo comum, se identificarão em graus variáveis com
a humanidade reinventada por essas palavras.
Comprámos a nossa casa da Costa em 1990, num
regresso de uma viagem à Irlanda e à Isle of Man, onde
Adelaide tinha ido fazer uma conferência sobre literatura açoriana num congresso internacional. Tínhamos
conhecido há pouco tempo a crítica e ensaísta lisboeta,
Teresa Martins Marques, especializada na obra de José
Rodrigues Miguéis (e responsável pela organização do
espólio literário de David-Mourão Ferreira), leitora
atenta dalguma literatura açoriana. Ela havia oferecido
um dos seus apartamentos da Costa para a nossa breve
estadia. Nessa manhã de Verão quando lá acordámos,
com o céu de um azul brilhante, sob uma intensa luz
solarenga, que tudo coloria e iluminava à sua volta, perguntei à Teresa logo ao almoço se ela não queria vender
esse seu outro apartamento. Ela riu-se, disse que não,
mas que nos ajudava a procurar outro nas redondezas,
era tudo muito fácil. Nos nossos primeiros passeios a
pé, à beira mar e pela vila, apercebi-me euforicamente do que me fazia gostar do lugar: lembrava nalguns
aspectos a minha Califórnia, tanto em geografia como
em estilo de vida, relaxada e tolerante. Nas hortas que a
circundam, vi algo ainda mais surpreendente: fizeramme lembrar de imediato a Monterey de John Steinbeck
em Tortilla Flat, as suas casas espalhadas entre campo
e cidade pareciam-me ter saído directamente da capa
estilizada de uma das edições de algibeira desse roman-
ce, que eu e outros líamos especialmente por causa da
personagem luso-americana, Big Joe Portagee. Para
além do mais, a Costa vivia principalmente do turismo, comércio e da pesca, com algumas áreas de trabalho na terra. Desde o início que sempre encontramos
aqui a mais exímia educação entre todas as pessoas, e
depressa nos sentimos em casa. Hoje faço na Costa o
que sempre fiz na Califórnia e em S. Miguel: passeiome, leio os jornais e livros nos cafés e nas esplanadas da
minha preferência, sendo já reconhecido por muitos dos
empregados e proprietários destes e de outros estabelecimentos. Que os preconceitos dalguns lisboetas e açorianos “exilados” fossem, pensei eu desde o início, para
o inferno. Nem precisaríamos de carro aqui: estamos a
minutos da outra margem, ou como pensam alguns lá,
do centro do mundo. O gosto com que montámos a nossa casa aqui depressa a transformaria de casa de férias
para um outro verdadeiro lar, permitindo-nos cimentar
ao longo do tempo amizades inabaláveis, viver um outro
Portugal, agora para nós, mais completo, mais expansivo,
mais abertamente emotivo. Adelaide e eu comentamos
muitas vezes que, nas nossas andanças por estas e outras
geografias, nunca tínhamos conhecido esse sentimento de lar, de pertença por direito histórico e de sangue,
como o sentimentos nos Açores e no Continente, nunca
tínhamos vivido tanto tempo nas mesmas casas, sem as
mudanças que tanto nos desestabilizam na América, e
nas próprias ilhas, as ilhas de um outro tempo em que
a vida era sempre adiada, nos anos da emigração. Em
vinte e sete anos de América, o tempo máximo que vivi
na mesma casa foi de pouco mais de sete anos, enquanto estive casado com a mãe da minha filha. Adelaide
andou sempre de casa em casa dos irmãos na América.
Por vezes deitado na praia da Costa, vejo a SATA passar
por cima, fazendo-se à Portela. Lembra-me logo quem
sou, e fico feliz sabendo que temos o melhor do mundo
português: ilhas, Continente, a Diáspora, que um dia foi
o espaço da nossa salvação e mundos abertos.
Foi neste contexto que a Adelaide publicou o Sorriso.
A avalanche de apreciações foram tão rápidas e consistentes, que deixaram de fora os que possivelmente teriam gostado de ver o seu afundamento, por ajuste de
contas comigo ou com a própria autora. Quando desespero no mundo açoriano, terei sempre este facto em
mente, terei sempre no coração os nomes que por toda a
parte não tardaram em dizer o que sentiam e pensavam
ante o romance da Adelaide. Tenho razões para dizer
o que digo e sentir o que sinto. Pouco tempo depois (a
fins de Outubro de 2005), Adelaide e eu fomos ao Brasil
SEIXO REVIEW
71
convidados por colegas e amigos que em Santa Catarina
e no Rio Grande do Sul (a professora e escritora Lélia
Pereira da Silva Nunes e o romancista Luiz António de
Assis Brasil) organizaram o primeiro encontro de escritores açorianos e brasileiros ligados à nossa ancestralidade, por sangue ou afinidades culturais, que intitularam
Travessias. Mal tínhamos chegado ao Brasil (era a primeira vez que lá íamos, apesar de convites anteriores),
e já alguns telefonemas de amigos advertiam para certa
Imprensa açoriana e alguém que falava em entrevista sobre a literatura açoriana e, inevitavelmente, claro, sobre
Adelaide e Vamberto, na linguagem do costume, e que a
seu tempo e noutro contexto terá a minha resposta. Os
colegas brasileiros em Santa Catarina já me tinham convidado a mim e ao Urbano Bettencourt algumas duas
vezes, mas por questões pessoais ou profissionais não
pudemos aceitar esses primeiros convites, dizendo eles
do Brasil que era importante uma presença dos ensaístas e teóricos da literatura açoriana, pois alguns poetas e
ficcionistas já lá tinham estado várias vezes, assim como
alguns outros professores universitários pouco “inclinados” para esses assuntos ou temas. Desta vez, e depois
dos conselhos de alguns amigos e colegas, tive de aceitar,
pois seria indelicado continuar a dizer não a quem tanto
do outro lado do mar faz pela cultura e literatura açorianas, nomeadamente Lélia Nunes, em Santa Catarina, e
Assis Brasil, que na Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul desde há muito desenvolve um dos
maiores programas de pós-graduação, cuja centralidade
foi sempre a cultura e literatura dos Açores, a universidade que mais teses de mestrado e doutoramento tem
nesta área dos nossos estudos, sendo ele ainda autor de
um dos livros fundamentais sobre a literatura açoriana
do pós-25 Abril, Escritos Açorianos: A Viagem de Retorno.
Por todas as razões do seu passado profissional, intelectual e literário, e tendo acabado de publicar o Sorriso, que
era já objecto de leitura e estudo entre alguns alunos na
PUC, naturalmente também convidaram a Adelaide.
Na PUC, após a apresentação de várias comunicações de açorianos e brasileiros acerca da literatura açoriana e de todo o nosso sistema literário, houve uma
sessão entre nós e alguns alunos de pós-graduação que
estavam a escrever teses nesta área, alunos orientados
por Assis Brasil. Perguntaram a uma dessas alunas, Fernanda Rodrigues Garcia, que lugares gostaria de visitar
nos Açores quando e se lá fosse um dia. Não hesitou
um segundo, e para espanto de nós todos respondeu: a
Achadinha, exactamente porque tinha acabado de ler
Sorriso por Dentro da Noite, e sabia que essa era a fregue-
72
SEIXO REVIEW
sia aí ficcionada sob o nome de S. Bento! Seguiu-se a
contextualização do romance da Adelaide no panorama
da nossa literatura, especialmente a que tinha sido escrita por outras mulheres de várias gerações. Atrevo-me a
dizer que poucos no nosso próprio arquipélago saberiam
falar sobre estes temas com tanto e tão profundo conhecimento.
Rui Bettencourt, Director da Juventude, Emprego
e Formação Profissional do Governo dos Açores, que
se tinha deslocado ao Brasil connosco em representação
do Presidente Carlos César e de Alzira Silva, Directora
do Gabinete das Comunidades, disse-me a certa altura
que nunca tinha visto nada de igual no próprio arquipélago, tanto conhecimento e dedicação à nossa História
e Cultura! Por que não fazíamos o mesmo cá dentro,
perguntava-nos perplexo. Por mim, respondi-lhe: porque é difícil ter um debate sobre tudo isto nos Açores
sem acordarmos no dia a seguir e ver o nosso nome na
lama, ou então as insinuações de toda a natureza, a negação da própria existência da nossa literatura e cultura, a
inutilidade do nosso trabalho. Poucos escritores como os
açorianos têm vivido quase por completo nas margens
e à margem da sua própria sociedade, trabalhando tão
afincadamente sem qualquer compensação financeira,
e sempre tão desvalorizados dentro da sua própria casa
comum. Poucos nos lêem, sem no entanto deixarem, por
vezes, de dissertar sobre este ou aquele escritor açoriano,
formarem opiniões “firmes”, tendo como único fundamento o “ouvi dizer que”, ou os seus próprios preconceitos culturais. Um dia, numa entrevista que publiquei
no Diário de Notícias, o falecido escritor José Martins
Garcia disse que a sociedade açoriana ainda não estava
preparada para se ver transfigurada na literatura. Que o
que queria e gostava era de textos glorificantes da sua
Natureza e da sua própria “bondade”. Entretanto, desde Saudades da Terra, do século XVI, são esses mesmos
escritores que até aos nossos dias criaram os nossos arquivos criativos, desenvolvendo e cimentando a nossa
própria identidade, mantendo viva a nossa memória colectiva como povo autónomo e livre, e, hoje mais do que
nunca, oferecem todos os dias as linguagens que o Poder
utiliza, e bem, no seu combate pelos direitos e dignidade dos Açores ante o restante país. Só que os próprios
escritores açorianos muito têm contribuído para o seu
próprio estatuto de marginalidade, com a sua constante guerrilha, com as ambições desmedidas entre alguns
deles em quererem ser os únicos num suposto panteão
açoriano de Grandes e de Grandezas.
Sorriso por Dentro da Noite é também uma outra me-
táfora dessa nossa condição, pessoal e colectiva. Que recebeu um pouco por toda a parte o reconhecimento que
merece, é sinal de que entre nós, apesar de tudo, existem essas bolsas de resistência humana, que nos dignificam e
nos mantêm presentes no diálogo cultural e estético do nosso tempo e do nosso lugar. O resto não passa de ruído
passageiro, condenado, sim, ao esquecimento, ao justo nivelamento, que só o Tempo permite.
_____________________________
*Parte do capítulo “Life Changes” de um livro em preparação.
VAMBERTO FREITAS nasceu na Terceira em 1951. Publicou inúmeros estudos críticos e ensaios, entre os quais O
Imaginário dos Escritores Açorianos, Mar Cavado: Da Literatura Açoriana e de Outras Narrativas, A Ilha em Frente:
Textos do Cerco e da Fuga (1999) e Jornalismo e Cidadania: Dos Açores à Califórnia (2002); algumas traduções, sendo a mais recente
O homem que era feito de rede (2002); e ainda artigos de opinião em jornais e
revistas. Trabalha neste momento em traduções da poesia do luso-americano
Frank X. Gaspar, e coordenou o Suplemento Atlântico de Artes e Letras (SAAL)
da revista Saber/Açores até recentemente. Colabora com regularidade na Revista
de Estudos Luso-Americanos, Gávea-Brown (Brown University, Providence,
Rhode Island), pertencendo actualmente ao seu Conselho Editorial, na Vértice
(Lisboa) e na NEO (Ponta Delgada). Tem pronto para publicação Imaginários Luso-Americanos: Do Outro lado do Espelho. É Leitor de Língua Inglesa na
Universidade dos Açores desde 1991, onde também tem leccionado literatura e
cultura norte-americanas.
SEIXO REVIEW
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Del rinnovamento
della poesia dialettale
siciliana
marco Scalabrino
A
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bbiamo la data dell’inizio del movimento rinnovatore. Ce la suggerisce Paolo
Messina, nel suo pezzo pubblicato nel Febbraio 1988 a Palermo sul numero
ZERO del rinato Po’ t’ù cuntu!: quella del Primo raduno di poesia siciliana svoltosi a Catania il 27 Ottobre 1945.
“L’innovatore – afferma, nel numero di Gennaio-Febbraio 1989
di Arte e Folklore di Sicilia di Catania, Salvatore Camilleri – fu
Paolo Messina, ma bisognò aspettare almeno cinque anni prima
che altri poeti maturassero quella rivoluzione, formale e strutturale
che era in atto”. “Aldo Grienti – ribadisce il Camilleri nel MANIFESTO DELLA NUOVA POESIA SICILIANA, edito in Catania nel
1989 – fu il primo a leggere, nel 1947, le poesie di rottura di Paolo
Messina, avendole pubblicate nella rubrica da lui curata.”
In un articolo datato 3 Aprile 1986 su LA SICILIA di Catania, ancora Paolo Messina puntualizza: “Aldo Grienti non esitò a
pubblicare sui fogli letterari catanesi Torcia a ventu e La Sorgiva
(1946-1947) i primissimi esiti artistici che avrebbero rivoluzionato
il modo di poetare in Sicilia. E non inganni la modestia tipografica
di quelle pubblicazioni, poiché dalle loro pagine provinciali i testi
più significativi dovevano confluire, nel volgere di pochi anni, sulla più qualificata rivista
romana Il Belli diretta da Mario Dell’Arco e curata da Pier Paolo Pasolini.”
Ma cosa è stato il “RINNOVAMENTO”? Chi ne costituì il movimento? Quale ne fu il
programma? In sostanza, di che si tratta?
SEIXO REVIEW
In “LA NUOVA SCUOLA POETICA SICILIANA”, proemio al suo volume Poesie Siciliane (Palermo 1985), Paolo Messina così ricorda: “Nel 1946, alla scomparsa di
Alessio Di Giovanni, quel primo nucleo di poeti, che
già comprendeva le voci più impegnate dell’Isola, prese il
nome del Maestro e si denominò appunto Gruppo Alessio
Di Giovanni. Occorre però dire che non ci fu un manifesto, né l’ausilio di un apparato critico, né un riscontro
adeguato sulla stampa.”
Il numero di Settembre 1988 del giornale di poesia siciliana, edito a Palermo e diretto da Salvatore Di
Marco, ospita il pezzo dal titolo UNA OCCASIONE
MANCATA. Da esso stralciamo: “Allorquando nel
1953 quel gruppo di poeti riunito da comuni idealità di
rinnovamento letterario e culturale, constatata l’impossibilità di condurre in Sicilia un discorso di poesia nuova
attraverso le pagine del Po’ t’ù cuntu!, pensò di darsi un
proprio foglio di proposta e di battaglia letteraria, Pietro
Tamburello volle chiamarlo Ariu di Sicilia. Fondato nel
1954 da Pietro Tamburello che ne assunse la redazione,
Ariu di Sicilia fu un foglio di quattro pagine, che usciva ogni mese e che durò esattamente da Marzo a Ottobre di quell’anno. Visse il suo breve tempo in povertà
di mezzi finanziari e fu un semplice inserto del Po’ t’ù
cuntu! I testi pubblicati furono in tutto 115 di 41 autori. Tra questi c’erano Ugo Ammannato, Miano Conti,
Aldo Grienti, Paolo Messina, Carmelo Molino, Pietro
Tamburello e Gianni Varvaro. Meno costanti ma presenti: Ignazio Buttitta, Salvatore Di Pietro, Nino Orsini,
Elvezio Petix.”
Nell’articolo titolato LA CIVILTA’ DEI CAFFE’,
pubblicato nel Febbraio 1988 a Palermo sul numero ZERO di quello che fu l’effimero ritorno del Po’ t’ù
cuntu!, ancora Salvatore Di Marco registra: “Negli anni
Cinquanta c’era a Palermo, in via Roma quasi all’altezza
dell’incrocio con il Corso Vittorio Emanuele, uno dei
caffè Caflish. Al piano superiore, una saletta con sedie e
tavolini. Ebbene, in quel luogo e per anni – sicuramente
dal 1954 al 1958 – nella mattinata di tutte le domeniche si riunivano i poeti del Gruppo Alessio Di Giovanni.
Frequentatori erano, oltre a chi scrive, Ugo Ammannato,
Pietro Tamburello, Miano Conti, Gianni Varvaro e altri. Vi arrivavano spesso Ignazio Buttitta da Bagheria,
Elvezio Petix da Casteldaccia, Antonino Cremona da
Agrigento, e da Catania Carmelo Molino e Salvatore
Di Pietro: insomma, i personaggi più significativi allora
della nuova poesia siciliana. In quegli incontri si leggevano poesie, si parlava del dialetto siciliano, si discuteva
di letteratura e di politica”.
Nel 1957 Aldo Grienti e Carmelo Molino furono i
curatori della Antologia POETI SICILIANI D’OGGI,
Reina Editore in Catania. Con introduzione e note critiche di Antonio Corsaro, essa raccoglie, in rigoroso ordine
alfabetico, una esigua qualificata selezione dei testi di 17
autori: Ugo Ammannato, Saro Bottino, Ignazio Buttitta,
Miano Conti, Antonino Cremona, Salvatore Di Marco, Salvatore Di Pietro, Girolamo Ferlito, Aldo Grienti,
Paolo Messina, Carmelo Molino, Stefania Montalbano,
Nino Orsini, Ildebrando Patamia, Pietro Tamburello,
Francesco Vaccaielli e Gianni Varvaro.
Ma già prima, nel 1955, con la prefazione di Giovanni Vaccarella, aveva visto la luce a Palermo l’Antologia
POESIA DIALETTALE DI SICILIA. Protagonisti il
Gruppo Alessio Di Giovanni: U. Ammannato, I. Buttitta,
M. Conti, Salvatore Equizzi, A. Grienti, P. Messina, C.
Molino, N. Orsini e P. Tamburello.
Le due sillogi, che ebbero al tempo eco nazionale
(una recensione a cura di Paolo Messina apparve in data
21 Maggio 1955 su IL CONTEMPORANEO di Roma) e
tuttora sono ben note agli appassionati, sono state antesignane del Rinnovamento della Poesia Dialettale Siciliana.
“Oggi la poesia dialettale – scrive tra l’altro Giovanni
Vaccarella nella prefazione a POESIA DIALETTALE
DI SICILIA – è poesia di cose e non di parole, è poesia
universale e non regionalistica, è poesia di consistenza e
non di evanescenza. Lontana dal canto spiegato e dalla
rimeria patetica, guadagna in scavazione interiore quel
che perde in effusione. Le parole mancano di esteriore
dolcezza e non sono ricercate né preziose: niente miele
e tutta pietra. Il lettore di questa poesia è pregato di credere che nei veri poeti la oscurità non è speculazione, ma
risultato di un processo di pene espressive, che porta con
sé il segreto peso dello sforzo contro il facile, contro l’ovvio. Perché la poesia non è fatta soltanto di spontaneità e
di immediatezza, ma di disciplina. La più autentica poesia dei nostri giorni è scritta in una lingua che parte dallo
stato primordiale del dialetto per scrostarsi degli orpelli
e della patina che i secoli hanno accomunato, per sletteralizzarsi e assumere quella condizione di nudità, che è
la sigla dei grandi.”
“I dialettali – osserva Antonio Corsaro, in prefazione a POETI SICILIANI D’OGGI – non sono mai stati
estranei alle vicende della cultura nazionale, anche se, disuguale è il loro piano di risonanza. Nell’ambito di una
lingua, per dire, ufficiale, che assorbe e trasmette tutte le
vibrazioni di un’epoca, il dialetto si presenta come una
fuga regionale. Ma in un periodo come il nostro che nelSEIXO REVIEW
75
la poesia ha versato gli stati d’animo, l’essenza umbratile
e segreta dello spirito attraverso un linguaggio puro da
ogni intenzione oratoria, i poeti dialettali si trovano nella
identica situazione dei loro compagni in lingua, senza
che neppure la difficoltà del mezzo espressivo costituisca
ormai una ragione valida di isolamento. Tanto più che i
nostri lirici in dialetto sono già arrivati a un tal segno di
purezza e a una tale esperienza tecnica da non avere nulla
da perdere nel confronto con i lirici in lingua. Anzi, in
un certo senso, i dialettali ne vengono avvantaggiati per
l’uso che possono fare di una lingua meno logora, attingendola alle sorgenti che l’usura letteraria suole meglio
rispettare.”
Nel 1959, nel saggio dal titolo “ALLA RICERCA DEL
LINGUAGGIO”, Salvatore Camilleri considera: “Si cerca di
restituire alla parola una sua originaria verginità fatta di
senso e di suono, di colore e di disegno, ricca di polivalenze. E’ una continua ricerca di esperienze formali, in
cui l’analogia gioca la parte principale nel creare situazioni liriche e contatti tra evidenze lontanissime. Il fatto
strano, fuori dalla logica progressione delle cose, è che la
rivolta è nata di colpo, sulle esperienze altrui (italiana,
francese, etc.) e non sull’esperienza siciliana.”
POETI SICILIANI D’OGGI “fu il libro – asserisce
in seguito lo stesso Camilleri, in prefazione a POETI
SICILIANI CONTEMPORANEI del 1979 – che mise
definitivamente una pietra sul passato. Le idee si erano fatta strada, avevano raggiunto i poeti in ogni angolo
della Sicilia, anche i più solitari, i meno propensi a mutar
pelle, e li avevano costretti a ragionare; e così, nell’ansia
polemica del rinnovamento, all’eccessivo sperimentalismo formale e al gusto funambolico dei più avanzati
seguì l’abbandono dell’ottava e del sonetto, divenuti solo
strumenti propedeutici; a un più deciso lavoro sulla parola e sulla metrica seguì, da parte anche dei più retrivi,
il rifiuto dei moduli tradizionali. Da questo travaglio, dai
più avanzati che volevano romperla totalmente con il
passato, ai moderati che volevano innestare le nuove idee
nell’albero della tradizione, nacque la poesia siciliana
moderna, anche grazie alla conoscenza che i più ebbero
del simbolismo francese e dell’ermetismo italiano.”
“A nostra puisia canciò strata – sostiene Paolo Messina in PUISIA SICILIANA E CRITICA, del 1988 –
picchì si livò u tistali d’i tradizioni pupulari”. E, nel citato “LA NUOVA SCUOLA POETICA SICILIANA”, precisa: “Il
dialetto era per noi in modo concreto di rompere la
tradizione letteraria nazionale. Naturalmente, eravamo
consa-pevoli dei rischi dell’opzione dialettale, che se da
un lato ci portava alla suggestione della pronunzia, dal-
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SEIXO REVIEW
l’altro restringeva alla Sicilia il cerchio della diffusione e
dell’attenzione critica”. Ed enuncia i tre capisaldi programmatici del Gruppo Alessio Di Giovanni:
1. L’elaborazione e l’adozione di una koiné siciliana2. La libertà metrica e sintattica a vantaggio della
forza espressiva ma in una rigorosa compagine concettuale e musicale (di valori fonici, timbrici e ritmici)3. L’unità di pensiero, linguaggio e realtà (che doveva o avrebbe dovuto garantirci una visone prospettica
siciliana della vita e dell’arte).
Il RINNOVAMENTO DELLA POESIA DIALETTALE SICILIANA fu disegno fondato sui testi e non sugli
oziosi proclami, sugli esiti artistici individuali e non su
qualche manifesto.
*****
a Storia, è assodato, non è fatta coi se e coi ma.
Ma se alcuni anni dopo, su quelle ceneri evidentemente non ancora del tutto spente, fosse stato portato a compimento, come del resto per qualche tempo nel
1968 fu nell’aria, il progetto di una nuova Rivista di cui
Paolo Messina era stato incaricato di assumere la direzione, chissà …
Riportiamo, di seguito, larghi estratti dell’editoriale
(inedito) del primo numero di KOINÈ DELLA NUOVA
POESIA SICILIANA, rivista che avrebbe dovuto promuovere studi intorno alla storia e alla critica della poesia
siciliana, il cui debutto avrebbe dovuto registrarsi a Palermo, nei mesi di Maggio-Giugno 1969. Appunta Paolo Messina:
“Intorno agli anni Cinquanta, a cura di un gruppo
di poeti dialettali siciliani (il Gruppo “Alessio Di Giovanni”), usciva un opuscolo fuori commercio contenente
alcune liriche “aggiornatissime” che avrebbero dovuto siglare, nelle intenzioni almeno del prefatore, una svolta in
senso letterario di quelle attitudini metriche e velleità federiciane. E poiché alcuni di noi fummo del gruppo che,
occorre dirlo, non si configurò in chiave di omogeneità né
di agguerrita faziosità intellettuale, tornando a un simile
approdo con il carico di personali e complesse esperienze
culturali, traumatizzati dall’arida melopea della società
dei consumi, pur affidando quell’episodio ai flutti obliosi
dell’emerografia locale, non possiamo più oggi prescindere da un “impegno” nel presente storico, il che introduce inevitabilmente rischi, azzardi e responsabilità, ma
postula innanzitutto l’aperta condanna di ogni ipocrisia
intellettuale e l’adozione del poetare come espressione di
un più alto grado di libertà. Può a tutta prima sembrare
una richiesta eccessiva per una poesia che la tradizione
L
critica e letteraria continua a definire “dialettale” nel senso di un suo peculiare carattere di “minorità”, ma la questione
va oggi posta in termini di scelta motivata: o dal bisogno quasi fisiologico di un canto purchessia (e ciò sarebbe un ricadere nel cono d’ombra della tradizione folklorica), oppure dall’esigenza di uscire dal soffocante amplesso dello sperimentalismo postosi ormai come unico elemento strutturale della poesia. Esiste un’ampia copertura di legittimità
critica e di formali adesioni letterarie in favore della seconda motivazione: il dialetto come alternativa semantica alla
caduta di potenziale espressivo della lingua e della letteratura ufficiali. L’urgenza espressiva del dialetto puro (come
negli idiomi dei popoli giovani) tende a capovolgere i rapporti con la lingua illustre e ci appare oggi su posizioni più
autenticamente rivoluzionarie rispetto ai logori, stereotipati moduli dell’ufficialità letteraria. Ancora meglio se questa urgenza possiamo verificarla nel dialetto siciliano, erede di quel volgare che Dante non reputò “degno dell’onore
di preferenza perché non si proferisce senza una certa strascicatezza” e che tuttavia prestò la sua compatta orditura
all’esercizio stilistico di Jacopo da Lentini, la sua potenza evocatrice all’approdo veristico del Verga, la sua costante di
umanità alla cultura mitteleuropea del Pirandello. Una koiné che implichi poeti e poetiche in un discorso o azione
comune che, proprio nell’humus di secolari stratificazioni culturali, per la profonda analogia dei fulcri semantici nel
mondo contemporaneo, si spoglia di ogni pregiudizio esoterico e riacquista il volto dimenticato dell’uomo.
MARCO SCALABRINO, funzionario di ente pubblico, lo studio del dialetto
siciliano, la poesia siciliana, la traduzione in Siciliano e in Italiano di autori
stranieri contemporanei, la saggistica sono tra i suoi principali interessi
culturali.
Ha pubblicato PALORI (Documenta 2000, Palermo 1997), poesie in
dialetto siciliano, ha tradotto in Siciliano Nat Scammacca e pubblicato POEMS
PUISII (Arti Grafiche Corrao, Trapani 1999), ha tradotto in Siciliano le sillogi
Okusiksak e Leone Assiro di Enzo Bonventre pubblicate in POESIE SCELTE (Palma
Editrice, Cecina LI 2000), ha tradotto in Siciliano testi scelti di Duncan Glen pubblicati in
THREE TRANSLATORS OF POEMS by Duncan Glen (Akros Publications, Scotland
2001), ha tradotto in Italiano Feast of the Dead di Anthony Fragola pubblicato col titolo
FESTA DEI MORTI E ALTRE STORIE (Coppola editore, Trapani 2001), ha pubblicato
TEMPU PALORI ASCHI E MARAVIGGHI (Federico editore, Palermo 2002) poesie in dialetto
siciliano con traduzioni in Francese, Inglese, Italiano, Latino, Spagnolo, Tedesco, ha scritto
il racconto breve in dialetto siciliano A SUA DISPOSIZIONI, tradotto in Francese da
Jean Chiorboli e pubblicato in Francia (Albiana - CCU 2002), ha tradotto in Italiano Eu
vivo só Ternuras di Nelson Hoffmann pubblicato col titolo IO VIVO DI TENEREZZE
(Arti Grafiche Corrao, Trapani 2002), ha tradotto in Italiano Bagunçando Brasília di Airo
Zamoner pubblicato col titolo SCOMPIGLIARE BRASILIA (Editora Protexto, Brasile
2004), ha pubblicato CANZUNA DI VITA DI MORTI D’AMURI (Samperi editore, Castel di
Judica CT 2006) in dialetto siciliano, con traduzioni in Inglese, Italiano, Portoghese.
Attualmente collabora con diversi periodici culturali, cartacei e in rete, nazionali e
internazionali.
È componente della equipe regionale del progetto L.I.R.eS. promosso dal Ministero
dell’Istruzione dell’Università e della Ricerca - Ufficio Scolastico Regionale per la Sicilia,
per lo studio del Dialetto Siciliano nella Scuola http://www.lires.altervista.org/
SEIXO REVIEW
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Rogério Silva – a arte
de um outro mundo
onésimo Teotónio Almeida
A
o Rogério Silva encontrei-o eu pela primeira vez na
Horta num mural. Já ouvira falar, mas o conhecimento não dava ainda para descobri-lo ali naquela parede
da Insulana numa estilização de baleias, baleeiros e Pico.
Quedei-me na contemplação dos traços dinâmicos fora
do tradicional e não sei já o que lá fora fazer. Depois,
percebi as semelhanças entre aquelas cores e motivos e as
capas da revista Gávea que pela mão do Rogério, Almeida Firmino e Emanuel Félix, nos anos cinquenta (criança nessa altura, eu só a conheci passados anos) tentou
acordar Angra de uma letargia antiga. Mas quem sobre o
pintor mais me badalou ao ouvido em letra de forma foi
o Carlos Faria, que nos porões dos navios trazia de Lisboa medicamentos de mistura com telas e poemas. Dos
medicamentos, as farmácias saberão. Os poemas, esses
via-os plantados no suplemento “Glacial”, de A União,
onde o Karlos Faria com K fazia leitores jovens como era eu vibrar de espanto. Volta e meia,
o Karlos clamava no deserto anunciando o Rogério e a nova arte que ele desbravava no arquipélago.
O Karlos trazia quadros e mais quadros. Ele e o Rogério não se cansavam de organizar exposições em Angra e ilhas adjacentes. O Rogério, pedagogo pacientemente didáctico, acompanhava visitas guiadas para adultos, jovens e crianças de escola. Foi assim que em Angra
tivemos acesso a trabalhos do António Palolo, Bartolomeu Cid, Artur Bual, Nadir Afonso,
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SEIXO REVIEW
Costa Brites, e do próprio Rogério Silva, que bene- próprio emoldurava, tudo num primor de perfeição
ditino se fizera apóstolo das novas formas estéticas chinesa.
pintando quadros com os Açores em movimento
Entretanto, os anos foram passando. Era preciso
que o Rogério deixasse de ser de um
a procurar vencer o marasmo secular
mundo que já não existia – o dos
ilhéu – moinhos de vento de velas enfunadas, baleias astutas domadas por
Açores que o moldaram – e palmiainda mais astutos baleeiros, nuvens
lhasse Américas despudoradas para
se fazer presente, convencer galerias
agitadas descobrindo céus e anunciana exporem os seus quadros, conhedo azul para um futuro breve.
Entretanto, perdi-me uns anos por
cer os meandros das bolsas ou inLisboa e noutros livros. Nos alvores da
vestir dinheiro que não tinha para
que a sua arte fosse (re) conhecida.
década de setenta, já com os costados
na Nova Inglaterra, descobri-me de
O Rogério chocava-se porque “a
súbito novamente vizinho do Rogério.
arte é arte e não se suja”. Pelo meAconteceu numa festa num parque em
nos a arte do Rogério, ou tal como
New Bedford onde os também hoje
ele a concebia. Esquecia-se de que
saudosos Manuel Bettencourt Silveimesmo Miguel Ângelo, Rafael e
Rogério Silva
Leonardo nada teriam feito se não
ra e Heldo Braga reataram entre nós o
fossem os mecenas – papas, cardeias e duques com
laço que os mares haviam desatado.
O Rogério fervilhava de ideias. Fui a sua casa onde a grana que paga as tintas e mata a fome ao artista.
pintava uma New Bedford que, insistia o Heldo em O Rogério não acreditava. Nos Açores do seu temlivro de poemas (nunca publicado), um dia veria po, tudo fluía sem massa, embora não se esquecesse
crescer rosas em Novembro. O Rogério acreditava nunca do facto crucial de ter sido por um mal-ene pintava. A escola do seu bairro, ali à Coggeshall tendido nessa matéria que for a ele próprio bater
St, os arranha-céus de azul límpido por detrás da com os ossos nos States, quando um Instituto lhe
wasteland de ferro-velho, imigrantes divididos e dis- pediu um trabalho como devia ser e ele despendeu
traídos no jogo em tardes de tasca-sem-fim. Mas a soma que achava necessária por exigências da arte
sempre as cores luminosas e os traços firmes apon- em si. Chegada, porém, a conta, minguou o dinheiro
tando para futuros optimistas a emergirem do caos, porque ninguém alguma vez supusera que as coisas
ordem e tranquilidade a renascer de caixotes opres- da arte custassem assim tanto, e o Rogério deu de
sivos evocando fábricas escuras e tristes – onde ele repente consigo numa fábrica de New Bedford para
aliás suou copiosamente.
poder pagar a prestações.
Vieram planos. A editora Gávea-Chama, lugar da
E, todavia, ele sonhou sempre com o regresso porprimeira edição do meu Ah! Mònim dum Corisco!, que, nos seus idílicos Açores, a Cultura, e sobretudo
depois a ideia da revista Gávea-Brown que ele quis a Arte, escreviam-se com maiúscula, em letra pura,
muito fosse continuação do antigo projecto Gávea. quase sobrenatural. Se nos Açores o asceta Rogério
Integradas em eventos gerados pelo entusiasmo dos vivia nas nuvens, em New Bedford viveu das numeus verdes anos, surgiram exposições da sua obra vens.
A última vez que me cruzei com ele aconteceu em
por aqui e por ali, causando admiração porque um
greenhorn supostamente não pintaria assim – Bro- Vila do Porto, Santa Maria. Tinha realizado o sown, Cambridge, Boston e outros lugares que não nho do regresso a casa (nascido no Faial – em 1929,
recordo com exactidão porque escrevo de cor, em creio eu –, era à sua adoptiva Angra que chamava
férias, surpreendido pela notícia da morte do Ro- pátria) e viajava de ilha em ilha, de novo apóstolo da
gério e sem poder recorrer a nada a não ser o que arte ensinando nas escolas o que ela é e como se faz.
a memória guarda na caixa do pronto-a-lembrar. Mas a desilusão estava-lhe plantada nos olhos. Os
Espantoso de ver era a minúcia com que o Rogério tempos haviam mudado e também ele não reenconpreparava cada exposição até ao pormenor da ma- trara a ilha de onde em tempos partira. A seu ver, a
quete com reproduções em miniatura dos quadros, arte estava bastante conspurcada, vendia-se e coma caixa que ele construía para cada pintura que ele prava-se por alto preço. Por todo o lado encontrava
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banha de cobra a valer fortunas, e as gentes estonteadas com a pimenta das Índias europeias, chegada de
Bruxelas em chorudos pacotes, construíam casas de paredes amplas a exigirem pinturas a metro. Qualquer
Chico Esperto agarrava de um pincel e, logo ali, com a mão direita rabiscava umas patranhas, enquanto
contava cifrões na algibeira com a esquerda. Para culminar o desaire, a sua ideia de arte como missão esvaíra-se com os tempos, a linguagem artística era outra, os rostos idem, e o
Rogério sentiu-se peixe for a das suas águas familiares.
O Rogério também não se sentia mais da sua terra. New Bedford estava
definitivamente longe, e a Lusa, seu arrimo sólido, incondicional apoiante e
dedicadíssima companheira, escondia uma doença que a levou. Nos anos que
se seguiram, o Rogério deixou de existir para o exterior, e porventura para si
próprio. Enconchou e fez-se lapa na pedra da sua memória, sem nunca mais
abrir para ninguém.
Agora chegou de Angra, via João Afonso – talvez o seu mais perene amigo – a notícia de que partiu para um outro mundo. Partiu nada! O Rogério
nunca viveu neste. Se partiu, foi para onde sempre esteve. Quem, como eu,
teve a sorte de o ver, foi apenas contemplado pelas suas aparições. Que ficaram
indeléveis. Ajudadas, naturalmente pelos seus quadros, memória viva dele a
lembrá-lo diariamente lá em casa.
Ou em qualquer lugar. Como aqui mesmo, neste mar algarvio, sem baleias.
Alvor, 27 de Junho de 2006
ONÉSIMO T. ALMEIDA nasceu em Pico da Pedra, S. Miguel, Açores,
em 1946. É doutorado em Filosofia pela Brown University em
Providence, Rhode Island, EUA onde começou a leccionar
em 1975. Foi durante doze anos director do Departamento de
Estudos Portugueses e Brasileiros. Publicou vários livros nos
géneros do ensaio, crónica, poesia e ficção. Em breve sairá Livro-me
do Desassossego (dia-crónicas, 2006). Mantém colaboração regular
na LER e ocasional no Jornal de Letras, além de outra dispersa por
livros colectivos, jornais e revistas. Vive nos Estados Unidos.
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Floresta em Outubro
Pitt Meadows, 2006
eduardo Bettencourt Pinto
SEIXO REVIEW
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Um Silo chamado Eduíno de Jesus
lélia Nunes
“Gosto de poesia, não penso no que estou a produzir,
Neste pão que estou a fabricar para cada fome.”
Eduíno de Jesus,
(In: Revista O Olhar, 2005)
M
overam-se as pás do moinho do tempo completando mais um ciclo vital e, finalmente,
abriram-se as comportas do
silo deixando sair o fruto armazenado por
longo tempo. Dos mais simples e rústicos,
nas pequenas propriedades rurais, aos de
máxima utilização do espaço de armazenamento, a mais moderna tecnologia de
automação agrícola em silos para a guarda
de grãos de trigo, arroz, soja, ou de frutas,
ao longo dos tempos, esta tem sido a função precípua de um silo.
Nas minhas andanças conheci muitos
tipos de silos. No entanto, ainda não conhecera um silo que armazenasse poemas,
alimento para a alma. Sim, este silo existe.
Tem nome e criador. Falo da obra poética Os Silos do Silêncio que reúne as mais representativas poesias de Eduíno de Jesus, no período de 1948 a 2004.
Mais de meio século de trabalho poético e aventuras
por muitos caminhos em recolhas tão diferentes que poderia se dizer de autores diferentes para, finalmente, desaguar numa obra de impressionante luminosidade. Uma
antologia pessoal, que reúne na I Parte as três coletâneas
poéticas: Caminho para o Desconhecido (1952), O Rei Lua
(1955) e A Cidade Destruída durante o Eclipse (1957) e na
II Parte Inéditos & Dispersos.
A página de abertura – o Pórtico, em Ao Leitor, fala de
seus versos e da Beleza que procura, sugere com astúcia
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SEIXO REVIEW
uma busca instigante e ao mesmo tempo uma cumplicidade entre o autor e o leitor.
A I Parte reúne os três volumes de poemas,
publicados nos tempos de Coimbra, na década de 50, por onde flui toda a sensibilidade
e criatividade do seu genuíno talento já naquela época reverenciado, como a explicação
dada por Armando Côrtes-Rodrigues sobre O
Rei Lua em uma de suas “Notas de Semana”
(1958), no jornal Açores, e citado no Posfácio
“Esboço de uma Bibliografia” de Onésimo T.
Almeida, em notável texto, rico em dados e
perpassado de afeto:
“Só um verdadeiro poeta – e nenhum como
Eduíno de Jesus o consegue realizar – seria
capaz de transformar a simplicidade do verso no
malabarismo técnico de um grande virtuoso, sem
descambar em desafino.(...)”
(p.362)
Na II Parte, sob o título de Inéditos & Dispersos, encontra-se um conjunto de poesias escritas entre 1948 e
2004, feitas, refeitas, alteradas e trabalhadas criteriosamente com a minúcia que lhe é peculiar.
Eduíno de Jesus é um poeta modernista, afinado com
a sua geração, com as tendências que dominavam a poesia portuguesa dos anos cinqüenta. A poesia é o seu território, é o mar profundo em que mergulha numa pros-
pecção íntima, subjetiva, sensível, plena. É neste imenso
mar azul que abraça a sua terra insular ou outros mares
e terras, por outros mundos e culturas, que navega livre,
sem amarras e sem vínculos. Um percurso seu, aberto a
todas as correntes como o realismo, o romantismo alemão, o simbolismo francês, o concretismo brasileiro ou o
purismo do chileno Pablo Neruda.
No artesanato da palavra, no domínio técnico do verso, no maciço investimento das figuras de linguagem, na
reflexão, no lirismo, na emoção e sensações, o poeta extravasa a necessidade da experimentação, visível no desenho da temporalidade de “Os Silos do Silêncio” que abraça
um espaço de 56 anos e onde a diversidade e amplitude
da polifonia poética atravessa suas páginas.
É preciso entrar pela borda devagarzinho e adentrar nos labirintos da palavra, nos meandros da arte,
na filigrana delicada do verso, na dimensão humana
do poeta.
Foi deste jeito que entrei em Os Silos do Silêncio e deixei me envolver pelo encanto dos poemas e pela sensibilidade do poeta expressa de forma tão vívida. Senti o farfalhar das asas da poesia, na delicadeza do verso de uma
sílaba em Anunciação (in: Poética Fragmentária, p.221223). Fantasiei e no atalho do tempo fiquei à espera em
Metamorfose (in: Caminho para o Desconhecido, p.50-51),
de que transcrevo a última estrofe.
Esperei por ti todos os minutos
do dia e da noite com
os nervos a alma ansiosa
afagando-te nas pétalas das rosas
ou mordendo-te na polpa do fruto
Uma profunda ternura emana da sua escrita, na mais
pura tradição lírica ou de inspiração no cancioneiro medieval ou, ainda, da influência de elementos do simbolismo revelados num sistema de variação e cadência também encontradas no brasileiro Cruz e Sousa.
Poesia musical, de ritmos novos e contagiantes, com
uso sensual de palavras em metáforas deliciosas cheia de
lirismo e de grande beleza estética, como em Noite Contra a Vidraça (in: Caminho para o Desconhecido, p.55-57) e
Como se fosses a Vida (in: Caminho para o Desconhecido,
p53) e que diz:
Um dia enfim vieste
branca e nua
com uma
rosa negra no sexo.
E eu pude abraçar
os teus joelhos
e ver-me nos teus olhos
como em dois espelhos
e morder os teus
ombros e dizer
ternuras para
te enriquecer.
Como se a vida
estivesse, em cada beijo e abraço
que te dou, e nas longas carícias que te faço,
resumida.
H
á em sua poesia uma verve espirituosa, uma graça provocativa onde o humor e a ironia sutil se
esparramam por trilhas do imaginário na criativa escrita,
no seu jeito de olhar os mistérios das coisas, de perquirir
a alma, os conflitos, a vida. Sabe ser deliciosamente pícaro como no surreal poema As figuras de cera do Museu das
Janelas Verdes (p187) ou o inquieto Intróito (p.179) que
mexe com o finito (ou será infinito?):
Pergunto...
Eis o que faço.
Mas não conto
que respondas.
Tal é o meu embaraço:
Que, no fim das contas,
nada há a esperar
das perguntas
que Te faço.
Não responder é a Tua sabedoria;
perguntar, a minha cegueira.
Cada um entende a mesma luz do dia
à sua maneira.
Meu olhar perambula, fascinado com o sortilégio dos
olhares tecidos em fios que vêm de dentro, lá do fundo da
roca, na urdidura da palavra bordada pela sensibilidade e
genialidade do poeta Eduíno de Jesus a falar de imagens
guardadas na memória dos sentimentos. Imagens partilhadas por tantas histórias e vivências. Imaginário do
poeta, imaginário do leitor que se encontram na aventura
da descoberta do enigma – a poesia.
SEIXO REVIEW
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Fica a certeza de que a poesia de Eduíno de Jesus é
uma poesia iluminada e que nos ilumina.
Finalmente, um Silo chamado Eduíno sempre disponível a produzir como poeta e escritor que é. Em boa
hora abre as comportas e partilha a sua singular poesia
com toda gente – Os Silos do Silêncio, obra de um mestre!
Uma dádiva muito esperada.
Já não era sem tempo.
© Marcolino Candeias
Lélia Pereira da Silva Nunes nasceu em Santa Catarina, Brasil. Socióloga, mestre em
Administração Pública na UFSC. Professora Adjunto de Sociologia na Universidade
Federal de Santa Catarina, hoje aposentada. É Presidente da Fundação Cultural Aníbal
Nunes Pires e Conselheira da Comissão Nacional de Folclore. Pesquisadora da cultura popular de Santa Catarina,
concentra sua linha de pesquisa nas sobrevivências culturais açorianas em terras catarinenses, especialmente, a
Festa do Divino Espírito. Suas referências biobliográficas incluem inúmeros artigos, trabalhos acadêmicos e ensaios,
publicados em periódicos, revistas literárias e científicas, de circulação no Brasil, nas comunidades da diáspora
açoriana na América e em Portugal, nos Açores e Madeira, bem como em dezenas de apresentações de livros.
Coordenou a edição da antologia poética “Caminhos do Mar” que reúne poetas açorianos e catarinenses (2005).
Obras publicadas: “Zumblick, uma história de vida e de arte”; “Entre Penas e Pincéis” (org.), co-autora “O Italiano
em Santa Catarina” e tem para sair “Os caminhos do Divino – um olhar sobre o Espírito Santo em Santa Catarina”.
Atualmente, participa do projeto “Uma Casa no Atlântico” (como coordenadora do Brasil) – antologia poética sobre
Ilhas do Atlântico.
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SEIXO REVIEW
CRÓNICAS
FRANCESAS
(I)*
barbosa Tavares
N
um daqueles plúmbeos e ensimesmados
dias, em que a alma rodopia em torno de
cogitações vividas, dei comigo a debulhar as
minhas imberbes e contristadas convoluções francesas.
Meu pai, tocado pela mais protectora das intenções
patriarcais, dizia-me numa voz sombria a roçar o fatídico: “Olha rapaz. Eu andei na tropa, em exercícios, todo
molhadinho, com a roupa colada ao corpo, a rastejar em
tempo de paz. Escreve ao teu tio que te arranje um contracto de trabalho e vai para França.”
Num domingo aziago, no ano de mil novecentos e
sessenta e cinco, surgiu um engajador de recente extracção luso-gaulesa, na tabernória da qual meus pais retiravam um terço da magra côdea da vida. Provinham, os
restantes dois terços, do seu salário de guarda nocturno e
do amanho, a esmero, de um quintal na rua das Cancelas, pertença de uma senhora donairosa, de rosto luzidio,
açafroado, eternamente vestida de luto.
Da terra acarinhada, brotava fertilidade a rodos: legumes, hortaliças vicejantes, que minha mãe carregava
no dealbar da matina, rumo ao mercado. Na véspera
relembrava-me o dever filial neste termos: “Rapazinho,
amanhã, às sete da manhã, no quintal para me ajudares
no carrego.”
Confinava, esta quintarola, arrendada a mil e duzentos escudos ao ano, com a casa de um dos irmãos “Pachacos”, nome patusco como a terna simplicidade de quem
calcorreava descalço as veredas da vida, invocativo de extrema humildade e carro de bois gemicante no seu chilrear, atrelando cargas de areia, lenhas e sacos de milho na
serena pacatez da tarde modorrenta.
Revejo-me neste cenário de sementeiras, regadios e
colheitas, ajudando meus pais. Nas manhãs de inverno,
uma geada finíssima resplandecia cristais de gelo sobre
a horta e, das couves, desprendiam-se gotículas orvalhadas.
De mãos regeladas, eu ateava uma fogueira para
aquecer num enorme latão, as nabiças, couves e farinha
com que os bacorinhos — orgulho e doce enlevo de meu
pai — germinavam a olhos vistos, saboreados na antecipação dos rojões, da vinha d’alhos, do toucinho e da
carne de lombo arrecadada na salgadeira.
Vinha o António Maneta, homem enxuto de carnes,
lépido, aligeirado no andar da vida, senhor de pelo menos quatro ofícios a saber: lavrador, manobrador exímio
da carreta funerária, engraxador domingueiro e adestrado matador de porcos.
Estou a vê-lo: fato azul escuro, camisa engomada, bigode farfalhudo e gravata a rigor, no campo do sagrado
silêncio. Movia-se lesto, entre filas de mármore, buxo, estatuetas de santos e jarros ornados a esmero, floridos na
saudade que os vivos testemunham aos seus finados.
Sempre que o meu pai lhe solicitava, munia-se do seu
facalhão, fincava destro e certeiro o pobre do bicho. Num
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repente o animal surgia, esventrado e vertical, pendente
do chambaril com um fio de sangue coalhado no focinho.
Nesse tal domingo, na dita tasca, onde os homens
consumiam a tarde a bebericar, entre tremoços, pevides,
o alarido e comoção do relato da bola, o tal figurão, decidira-se pelo malfadado ofício de engajador de almas
mitificadas pelo sonho francês, urdidos e tecido nos penosos salários da época.
Exíguo e sagacíssimo meliante na sua juventude,
mais temido que respeitado, aparentemente regenera-se,
abrindo uma barbearia. Mais tarde vagueara por Franças
e Araganças, sucumbindo, segundo se constou, vítima da
sua audácia, em circunstâncias deveras trágicas.
Habilmente, convencera meu pai com a sua finória e
refinada lábia de malabarista, que o meu futuro residia
além-Pirenéus.
Aproveitando a vinda a Portugal para levar de “assalto”, um sobrinho — felizmente vivo e escorreito na
terra Ílhava, testemunha ocular desta e outras peripécias,
eu serviria de muleta no financiamento da aventura pirenaica.
Meu pai, impregnado na sua boa fé de salvar o filhos
dos horrores da guerra, crente que lhe daria os utensílios
da salvação francesa, desembolsaria cinco lustrosas notinhas de mil escudos, equivalente ao salário de três meses
de um bem instalado funcionário público.
Sobre uma mesa quadrada de mármore, com uma toalha de linho embebida em manchas de vinho, e o farelo
das famosas padinhas de Vale de Ílhavo, uma bilha rústica debroada com listas azuis –-ainda existente — amendoins, tremoços e dois copos de vinho, estava gizado o
meu destino.
De uma penada, eu escapulia-me aos tentáculos da
guerra, amealhando rendoso pé de meia, no recém-criado, esplendoroso e mítico Eldorado francês.
(II)
P
or alvitre do mentor-engajador, elaborou-se o seguinte estratagema: ao despedir-me do emprego
de guarda-livros em gestação, alegaria subtilmente ao patrão — não esquecer a existência da PIDE — que meu
avô, vivente, para os lados de Sever de Vouga, num vale
esplendoroso, de verdes milhos, em socalcos incrustado,
entre penedos e pinheirais, estava gravemente enfermo.
Meus pais, por exigências da vida, não podendo cuidá-lo, eu iria para a serra, investido nas minhas filantrópicas funções de neto-velador por quatro semanas.
Menti, cândido, nos meu dezasseis anos, convicto que
o Eldorado me aguardava, ciente que nunca mais teria
que confrontar o ex-patrão, caracterizado pelo obstinado
puxar das calças à ilharga com os cotovelos, creio que,
para evitar nódoas das mãos oleadas, enquanto cuspinhava repetidamente para o chão.
Quando regressei da aventura francesa, ainda tive a
tímida coragem de lhe pedir o mês de salário em atraso, quase me escorraçou dizendo:” Então tu, deixaste-me
enrascado, tudo em desordem e ainda tens a coragem de
me pedir o salário em atraso! …”
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Compreendi de imediato a minha incorrecção laboral. Voltei as costas humilhado, e nem sequer tive coragem de apresentar queixa no Tribunal de Trabalho, tal
como alguém mais rodado na vida sugerira.
Fui com minha mãe à “Tricana” do Senhor João Teles,
um vero gentleman, respeitadíssmo e prezado, de finíssimo trato e insuperável cortesia. Na loja abrigava como
protegido e auxiliar o Bento, alma de rosto sombrio,
olhos cavos nas órbitas, absorto num mundo-outro.
Estranhava aquele ser que conhecera desde a minha
infância. Nunca detectara nenhuma emoção naquela
alma que parecia, aparentemente, ausente da vida. Erame um drama pressentido, num conformismo enigmático.
Marcou-se na dita loja um par de sapatilhas e dois
pares de camisas. Eis-me, com meu companheiro de
aventura e o “passador” a caminho de Vilar Formoso,
com um embrulho debaixo dos braços, fito na ideia da
libertação da guerra, esperançado numa vida abarrotada
de francos.
Na Pampilhosa, enquanto aguardava o comboio para
a Guarda — um rebate na alma — subitamente, pensei,
onde irá desaguar esta aventura? Apartado de meus pais,
de meus amigos, do videirinho e misérrimo emprego de
seis centos escudos ao mês… Um leve frémito de nostalgia, de minha mãe e de Ílhavo perpassou-me o corpo.
Senti-me desprotegido, ao deus-dará, porém não era
este o momento de baquear. Lançados os dados, havia
que prosseguir a despeito de todos os medos e reluctâncias. Para não infligir desânimo ao meu companheiro,
abafei as emoções contidas na sombra da inquietação.
Na longa viagem, apercebera-me de um Portugal
desconhecido: uma desolação pedregosa que o comboio
ronceiro, desbravou, soltando uivos por entre riachos,
fragas e mais fragas.
De onde a onde, um homem emergia talhado no magro húmus, por entre urzes e fragas, de cajado na mão,
manta pelos ombros descaída e uma vintena de ovelhas e
cabritos, numa beleza agreste, a relembrar o duro fadário
daquelas gentes.
Na Guarda, cidade altaneira e fria, pernoitámos
numa daquelas pensões recatadas e caseiras, num quarto
humilde, ornamentado pela bacia de esmalte, jarrão esboicelado e mobiliário a ressumbrar antiguidade.
O nosso “passador”, homem pleno de estultícia, não
achava precavido avançar de uma tirada para Vilar Formoso, no seu entender, seria mais firme e avisado avançar
cautelosamente. Em cada rosto sisudo e circunspecto, de
olhar fincado, vislumbra-se um agente da dita.
No dia seguinte avançámos para Vilar Formoso, e por
lá ficámos numa casinhota de um dos conluiados do engajador, à espera que os ventos soprassem de feição, isto
é que a rede dos engajadores, rasgasse a tal clareira de
acesso ao país vizinho.
Pela noitinha dentro, numa pacificada e luarenta
noite de Março — uma dúzia de passos. Num ápice,
transpusemos a fronteira. Estávamos em Fuento Onõro,
com a emoção telúrica de havermos transposto terras de
Espanha. Um minúsculo automóvel aguardava-nos, em
menos de meia hora estávamos em Ciudad Rodrigo. Firmei a convicção de que eram os próprios alfandegários
e quejandos, a manobrar na penumbra, estas negociatas
trans-fonteiriças, a troco de umas bem segredadas notas.
(III)
V
agueámos por Ciudad Rodrigo, em longos passeios nocturnos, até mergulharmos nas entranhas da noite. Entrámos num bar onde nuestros hermanos, estridentes no rubro da emoção, devoravam cerveja
por enormes canecas de vidro, no delírio da tourada que
decorria na televisão.
Senti nitidamente que os espanhóis eram mais ébrios
de sangue, mais vibráteis no desafio perante a morte do
touro que nós portugueses, mais comedidos e condescendentes nas lides do toureio.
Vergados pelo cansaço e alguns temores, venceu a sonolência. O «passador» relembra: ira para o hotel sem
passaporte seria arriscadíssimo. Deambulámos com redobrada cautela, em busco de um esconderijo seguro e
recatado onde consumir a noite.
Havia um velho carro de cavalos abandonado, com
lenha e cepos, para ali atirados à sorte, num local ermo.
Acertou-se dormir às estrelas, acantoados entre a lenha.
De hora a hora acordávamos com o galhos do madeira a
perfurar a carne, a desejar que a noite se esvaísse rapidamente. Vigiávamos em redor, a perscrutar algum bulício,
o rasto de um qualquer polícia. Apesar deste vigilante
dormitar, a abóbada celestial era de azul-veludo, semeada
de estrelas, infundido esperanças francesas.
Rompe-se a manhã, ainda com traços nocturnos. Surge o passador com a frescura de uma noite bem dormida
no hotel, por haver passaporte, a inquirir sobre a noite
dormida ao relento, com ar desanuviado de alívio, logo
que nos enxergou.
Rumámos à estação do caminho de ferro. Comprei
um jornal espanhol, talvez num desejo inconsciente de
tornar insuspeita a lusa proveniência. Três bilhetes para
Salamanca. Arribados na cidade, consumimos o tempo a
vaguear pelas ruas, enquanto o “passador” procuraria um
tal espanhol, perito em transpor gente nos Pirenéus
Ancorámos num parque onde um avô ternurento
passeava de mãos dadas com seu neto. Jovens namoricos
entreolhavam-se em lances de ternura, sentados em bancos de pedra, ladeados por esmerados canteiros de flores.
Por ali nos quedámos, horas a fio, desfrutando as nóveis
fragrâncias salamanquenses, até que o “passador “trouxe
a boa nova: dormiríamos em casa do tal espanhol.
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Na manhã seguinte, prosseguimos viagem. Palmilhámos o centro da cidade com seus prédios seculares dos
quais ressaltava a centenária Universidade, entre outros
belos edifícios de requintada traça arquitectónica.
No bulício matinal da cidade, eis-nos na estação dos
caminhos de ferro, um edifício imponente a fervilhar de
passageiros. O “passador” adquiriu quatro bilhetes com
destino a Vitória, ele e seu cúmplice espanhol, precavidos, seguiam numa outra carruagem, em caso do falhanço da operação estariam ambos a recato das implicações
legais.
Sobre os trilhos do comboio, contemplámos uma
Espanha ensoneirada, apeadeiros desolados e casebres
tristonhos, minúsculos lugarejos assombrados numa pobreza pasmacenta, uma paisagem que o comboio galgava
num tédio pressuroso.
Em Medina del Campo havia que fazer o transbordo
para o comboio que nos levaria a Vitória. Aqui se deu o
malogro da operação. Saídos de um para outro, imbuídos num caudal de gente em trânsito, notámos que havia
um dístico intimidante em letras garrafais: CUIDADO
CON LOS RATONEROS. De imediato levei as mãos
à carteira e olhei o meu companheiro, também ele de
rosto apreensivo. Decorrido algum tempo de viagem,
surgiu um cobrador a exigir o pagamento extra de vinte
pesetas. Não tínhamos em nosso poder uma única nota
ou moeda espanhola. Eu e o meu companheiro balbuciámos aflitos, em português, na busca de solução. O revisor
olhou-nos perplexo, afincadamente.
Sugeri que um de nós teria de se dirigir ao “passador”
que viajava em outra carruagem em buscas das ditas pesetas. O meu companheiro decidiu-se e avançou de imediato para onde viajavam o “passador” e o tal espanhol,
suposto mestre em galgar os Pirenéus.
Pela certa, o revisor terá participado à Polícia que dois
portuguesinhos, suspeitos, intimidados e sem dinheiro,
iriam clandestinos a caminho de França.
Não tardaram dez minutos. Entra na carruagem um
detective: “Passaportes por favor, Policía, Passaportes por
favor” enquanto dobrava a lapela do casaco a mostrar a
identificação policial.
Fiquei congelado, o meu companheiro estarrecido,
olhámo-nos cientes do cárcere que nos aguardava. Foinos dito que sairíamos na próxima paragem, exactamente na estação de Burgos.
Dois polícias aguardavam-nos. Somos levados para
uma sala de espera onde havia dois quartos contíguos
com um banco corrido, onde o meu companheiro se desbulhou em lágrimas e eu tentei confortá-lo.
Deram-nos duas mal atiladas sanduíches de anchova,
e dormimos vestidos, sobre as tábuas denegridas do soalho, num aziago sábado, em Março de mil novecentos e
sessenta e cinco.
*Estas crónicas serão, a seu tempo, integradas num conjunto mais
vasto de textos, publicadas em livro.
ANTÓNIO BARBOSA TAVARES, nasceu no concelho de
Sever do Vouga em 1948 e viveu em Ìlhavo até 1966,
ano em que emigrou para França, onde permaneceu até
1968, altura em que emigrou para Canadá, onde reside
actualmente, na cidade de Brampton, Ontário.
Tem colaboração esparsa em jornais regionais portugueses, no Canadá e Estados Unidos e em páginas literárias
da internet em Portugal e Brasil. Foi co-fundador do extinto jornal comunitário “Voice of Portugal” em Brampton, e tem em preparação dois livros: um, onde pretende
reunir as suas vivências francesas, outro de crónicas publicadas ao longo dos anos.
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