Monte Hellman_Carta Capital – Junho de 2013

Transcrição

Monte Hellman_Carta Capital – Junho de 2013
Plural
Um maldito no
Olimpo do cinema
aos 81 anos, o cultuado diretor monte hellman
discorre sobre a responsabilidade e o sofrimento
de filmar na contramão dos ditames de hollywood
ENTREVISTA
a Claudio leal e rodrigo sombra
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“A garota Leslie Caron tem uma carinha moderna,
com o teclado um pouco de fora, e dança a contento
os ágeis bailados sobre a música deste grande
palito-de-jacaré do jazz negro que foi Gershwin”
foto: rodrigo sombra
U
m caminho sinuoso liga
Hollywood Boulevard à casa
do diretor norte-americano
Monte Hellman. Vencidas as
curvas estreitas de Laurel
Canyon, o toque da campainha mistura-se
à voz de Bob Marley, que escapa de alto-falantes no interior da casa: I shot the sheriff,
but I didn’t shoot no deputy. O assistente de
Hellman convida a reportagem a entrar.
“Monte está tirando uma sesta, mas logo receberá vocês”, diz, enquanto contornamos uma piscina de água escura pontilhada de musgos. “Essa tem muitas histórias.” Em uma das paredes da residência
fica o retrato do jovem Jack Nicholson, roteirista de um dos westerns de Hellman.
Em outra, a atriz Laurie Bird aparece no
cartaz de Corrida Sem Fim (1971), que o
cristalizou como autor de culto.
Pupilo do diretor Roger Corman, Hellman talvez seja o principal interlocutor do
cinema independente dos anos 1960 com a
geração surgida três décadas depois. Produtor de Cães de Aluguel (1992), de Quentin Tarantino, formatou o roteiro no próprio computador e partiu para convencer
os estúdios. À época, o diretor de Django
Livre (2012) era um anônimo aspirante
a roteirista. Paul Thomas Anderson, Richard Linklater, Wes Anderson e Vincent
Gallo encorpam o seu coro de admiradores. Em 2009, a revista Cahiers du Cinéma
apontou Hellman, ao lado de Abel Ferrara,
como o mais importante diretor americano vivo. O culto da crítica e a admiração de
colegas jamais lhe renderam, no entanto, a
simpatia dos grandes estúdios. Atravessou
um hiato de 20 anos até lançar seu último
longa, Caminho para o Nada (2010). Produzido pela filha, rodado em câmeras HD
e com equipe mínima, o filme foi selecionado pelo Festival de Veneza, onde o diretor ganharia o Leão honorário.
Recém-desperto, Monte Hellman, 81
anos, aparece na sala com pingos d’água
nas lentes dos óculos. Sua única vaidade
"O final de Corrida
sem Fim veio de
um sonho. E este,
de meu amor
por Bergman"
VINICIUS DE
MOR AES
(Em Jazz&Co., Editora
Companhia das Letras)
o segundo fecha com um close no rosto
do personagem de Shannyn Sossamon.
MH: Não penso em um dos meus filmes en-
quanto estou em outro. O final de Corrida
Sem Fim me ocorreu em um sonho e talvez
o sonho tenha sido influenciado pelo meu
amor por Bergman, por Persona (1966).
CC: Como o senhor incorpora os so-
consiste em lavar o rosto depois da sesta. A alegria com que expõe os últimos
roteiros esconde um “vocês ainda não
viram nada”. Love or Die, que ele começa a filmar em outubro, em Lisboa, será
seu “filme de espionagem romântico sobrenatural”. Do cinema brasileiro nada
conhece, à exceção de Glauber Rocha, de
quem foi amigo. Mas da indústria do cinema americano poderia falar por horas.
CartaCapital: Entre 1989 e 2010, ne-
nhum de seus projetos vingou. Como
foi viver com os fantasmas de histórias
inacabadas?
Monte Hellman: Sempre tive esses lon-
gos períodos em que trabalhava, mas
ninguém além de mim via o trabalho.
Dirigi A Besta da Caverna Assombrada,
em 1959, e não rodei outro longa até 1964.
Então, entre 1964 e 1965, fiz quatro de
uma vez, mas não outro até 1970...
CC: Caminho para o Nada demonstra
que o senhor ficou mais radical com o
tempo?
MH: Talvez Caminho para o Nada não se-
ja mais radical do que Corrida Sem Fim,
mas nele não tive de agradar a ninguém
além de mim mesmo. Minha responsabilidade era fazer algo que me emocionasse, pois sinto que quanto mais específico você for, mais universal se torna.
CC: Caminho para o Nada e Corrida
Sem Fim tocam no problema da per-
da. A imagem final de cada filme sugere, porém, sentidos antagônicos.
Enquanto o primeiro termina com a
imagem da película desintegrando-se,
nhos nos filmes?
MH: Se sonho com uma cena ou diálogo
que me interessam, acordo e rapidamente e faço anotações. Algumas cenas de
Iguana (1988) surgiram dessa forma, algumas de Caminho para o Nada, também.
Não escrevo a maioria dos meus roteiros.
Contudo, às vezes, diálogos ou cenas mais
“visuais” sonhadas entram no filme.
CC: E o que orienta seu trabalho com
atores?
MH: Hoje tento mantê-los numa espécie
de página em branco para que venham
ao set sabendo um pouco, não tudo.
CC: Recentemente, o senhor disse que,
nos anos 1960, era possível ouvir um
número grande de pessoas nos cafés,
ao contrário de hoje, quando elas mal
se falam em lugares públicos, optando
por mensagens de texto. Corrida Sem
Fim prenunciou essa relação entre tecnologia e incomunicabilidade?
MH: Aquele aspecto de Corrida Sem Fim
veio do meu amor por Atirem no Pianista
(1960), de François Truffaut. O músico
(Charles Aznavour) em Atirem no Pianista
é o piloto (James Taylor) de Corrida Sem
Fim. Eles são o mesmo personagem, ambos inábeis em comunicar seus sentimentos, vítimas da dor de uma perda em decorrência disso. Em Corrida Sem Fim, pensei:
“Isso poderia ser sobre um cineasta, não
sobre um cara que dirige carros”. É a mesma história, a de alguém que se importa
com o que faz. Se você constrói uma cadeira ou um filme, é um artista. O filme
fala sobre o problema de ser um artista. O
piloto em Corrida Sem Fim é um artista.
CC: Corrida Sem Fim e Galo de Briga
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Sobre a perda. Corrida Sem Fim, o filme
de 1971, clássico americano
fazer Pura Adrenalina (1996), seu produtor perguntou se ele gostaria de jantar
com Steven Spielberg e ele disse: “Não,
com Monte Hellman” (risos). Ficamos
amigos desde então.
cc: O senhor e Jack Nicholson eram
próximos nos anos 1960. Ele atuou em
dois de seus filmes e foi o roteirista de
A Vingança de um Pistoleiro. Vocês
pensam em uma nova colaboração?
MH: Eu não vejo como, pois meus filmes
(1974) revelam um lado perturbador do
sonho americano. Que filme lhe inspir os
Estados Unidos de hoje?
MH: Não sei se no momento os Estados
Unidos são capazes de contar a própria
história. Não acho que A Hora Mais Escura
(de Kathryn Bigelow, 2012) o faça. Tentase transformar aquilo em comentário, em
polêmica, mas não creio que seja. Em vez
de argumento, o filme é uma promoção,
uma propaganda para o governo.
cc: O senhor foi iniciado no cinema por
Roger Corman...
MH: Ele me arrastou para o cinema! Eu es-
perneei, berrei, mas ele me arrastou.
cc: Como a experiência de ter sido
pupilo de Corman influencia suas aulas no curso para jovens cineastas do
California Institute of the Arts?
MH: Os jovens cineastas experimentam
os mesmos tipos de problema enfrentados por Roger Corman quando começou
a fazer filmes. A forma como ele produzia
era uma espécie de antidogma da indústria, do sistema. O deus de Hollywood é o
orçamento, enquanto Corman nunca teve
um. Ele me deu 75 mil dólares para O Tiro
Certo (1967) e a mesma quantia para A
Vingança do Pistoleiro (1965). Disse: “Volte
quando terminar. Se você gastar o dinheiro todo, problema seu”. É um absoluto: se
normalmente custam o que ele paga ao
motorista.
"Os EUA não
conseguem contar
a história atual. A
Hora mais Escura
é propaganda"
cc: Com que frequência se encontram?
MH: Provavelmente, uma vez por ano.
Ele é como um rei. Encontra seu público nessa ocasião anual (risos). Nós somos
muito amigos, passamos grandes momentos juntos. Eu o visito por uma tarde
inteira e a gente põe a conversa em dia.
cc: Que experiência como espectador
motivou seu interesse pelo cinema?
MH: Não lembro se o meu primeiro amor
só há determinada quantia, tem de fazer
um filme com aquele dinheiro.
cc: Encontrar o elenco certo lhe pa-
foi Lone Ranger ou Tarzã. Me apaixonei
pelo Lone Ranger, mas caía de amores
pelo grito de Tarzã e tentava imitá-lo o
tempo todo: “Yeeeeehhhhh!”
rece difícil?
cc: Os críticos europeus refletem mais
guns filmes escalei maravilhosos atores que não tinham a energia certa para o personagem, ou vice-versa, o personagem jamais seria representado direito
por aquele ator. Então, o filme não funcionava tão bem como deveria porque eu
havia cometido um erro. Meu mentor era
um diretor que nunca conheci, Arthur
Hopkins, e que discorria sobre os deuses
do casting. Se eles não sorriem para você,
ou para o seu projeto, você está perdido.
MH: Isso tem a ver com o mercado.
MH: Não quero citar nomes, mas em al-
cc: Sente-se próximo de Wes Anderson?
MH: Sou muito mais próximo de Wes
do que de Paul (Thomas Anderson).
Quando ele chegou a Los Angeles para
sobre sua obra do que os americanos?
Caminho para o Nada teve uma distribuição pequena, então os principais críticos americanos não escreveram sobre o filme. Não dispomos de publicidade, ninguém faz dinheiro com o filme,
então ninguém se importa. Não é uma
questão de arte, mas de mercado.
cc: Ao chegarmos, seu assistente disse que muitas celebridades passaram
por sua piscina e que se ela falasse...
MH: A piscina tem toda uma história, é
verdade. Nos velhos tempos, quando fazíamos festas aqui, as pessoas tiravam a
roupa e pulavam nela. •
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