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Revista Interdisciplinar da Universidade Veiga de Almeida Ano IV Número 8 Janeiro-junho 2013 141 páginas ISSN 1414-8846 2 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 5-10 ÁQUILA Revista Interdisciplinar UVA • Expediente Conselho Editorial Adriana Nogueira Accioly Nóbrega – PUC-Rio. Andreia Guerra de Moraes – UFRJ. Bruno Jerardino Wiesenborn – Universidad de Santiago de Chile. Carlos Luiz Ferreira – IME. Cecília Bueno Moacyr de Lima e Silva – UVA. Eduardo Mora Bejarano – Fundación Universitaria del Área Andina. Inés de Kayon Miller – PUC-Rio. Jose Basilio Cubero Allende – UFRJ. Kátia Cristina Montenegro Passos – UVA. Leonardo Rabelo – UVA. Luiz Carlos Bittencourt – UVA. Marcelo de Almeida Duarte – Universidade Gama Filho. Márcia Andréa Schmidt da Silva – PUC-RS. Maria Beatriz Balena Duarte – UVA. Maria de Lourdes de Oliveira Luz – UVA. Maria Veronica Leite Pereira Moura – UFRRJ. Marília Ferreira Silva – UFPA. Nilza Rogéria de Andrade Nunes – UVA. Ozanir Roberti Martins – UVA. Sabine Mendes Lima Moura – UVA. Sandra Patricia Rojas – Politécnico Grancolombiano. Solange Iglesias de Lima – UVA. Presidente – Antares Educacional S/A Luis Vidal Reitor Arlindo Cardarett Vianna Pró-Reitora de Graduação Kátia Cristina Montenegro Passos Pró-Reitora de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão Maria Beatriz Balena Duarte Pró-Reitora de Assuntos Estudantis Diana Almeida Magaldi Richter Diretor do Campus Tijuca Lysio Séllos Diretora do Campus Barra Lourdes Luz Diretor do Campus Centro José Luiz Meletti de Oliveira Diretor do Campus Cabo Frio Ronaldo Piloto Diretora do Campus Virtual Jucimara Roesler Diretor Executivo de Relações Públicas Marcelo Kanhan Diretora Executiva de Recursos Humanos Ignez Limeira Diretor Executivo Tecnologia da Informação Luis Felipe Dantas Gutman Diretor Executivo Financeiro Marcus Rezende (interino) Comitê Organizador Diretora Maria Beatriz Balena Duarte Editora-chefe Sabine Mendes Lima Moura Pró-Reitoria de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão Núcleo de Publicações - NUP-UVA Rua Ibituruna, 108 - Vila Universitária, casa 3/ 2o Andar Tijuca CEP 20271-020 - Rio de Janeiro/RJ www.uva.br/revista-aquila Conselho de Honra Arlindo Cardarett - Reitor da Universidade Veiga de Almeida Andrés Benko - Reitor da Universidade Americana Fernando Dávila - Reitor da Politécnico Grancolombiano Fernando Laverde - Reitor Fundación Universitaria del Área Andina Guilherme Marback - Reitor do Centro Universitário Jorge Amado Henry Ávila - Reitor da Universidade del Istmo Joaquín Brizuela - Reitor da Universidade San Marcos Juan Carlos Rabbat - Reitor Universidad Empresarial Siglo 21 Projeto Gráfico e Diagramação Conexão Gravatá Ltda./ Cecilia Leal Impressão J. Sholna Consultores Ad-Hoc Alder CatundaTimbó Muniz – UVA Alessandro Martins – UVA Alzira Mitz Bernardes Guarany – UVA Antonio Jose Queiroga Ferreira – UVA Carlos Eduardo Annechino Moreira Miguel – UVA/UNESA Celia Regina da Silva Anselme – UVA/UFRJ Cláudia Cristina Mendes Giesel – UVA Claudia do Nascimento Martins – UVA Erik Salum de Godoy – UVA Fabianne Manhães Maciel – UVA Fatima Cristina Santoro Gerstenberger – UVA João Orlando Menezes – UVA Jurema Barros Dantas – UVA/IFEN Luiz Guilherme Scaldaferri Moreira – UVA Maria Amélia Penido – UVA Otto Guilherme Gerstenberger Junior – UVA Rita Leniza Oliveira da Rocha – UVA Rosane Barbosa Marendino – UVA Saulo Roni Moraes – UVA Silmar Silva Teixeira – UVA/UFRJ Sonia Xavier de Almeida Borges – UVA FICHA CATALOGRÁFICA A656 Áquila: revista interdisciplinar da Universidade Veiga de Almeida / Universidade Veiga de Almeida. v. 4, n. 8 (jan.- jun. 2013). – Rio de Janeiro: Universidade Veiga de Almeida, 2013. Semestral ISSN 1414-8846 1. Universidades e faculdades - Periódicos. I. Universidade Veiga de Almeida. CDD – 001.5 Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central/UVA Bibliotecária Maria Anunciação Almeida de Carvalho CARTA DO EDITOR • LETTER FROM THE sumário EDITOR • contents • CARTA DEL • sumario EDITOR 3 Sumário/ Contents/ Sumario Carta do Editor/ Editor´s Note / Carta del Editor ..................................... 5 ARTIGOS Identity Programs: or the Programed Identity ....................................... 11 Maria Beatriz Balena Duarte Pensar a Identidade latino-americana entre civilização e barbárie ......... 25 Latin-american Identity between civilization and barbarianism João Luiz Medeiros Os Acadêmicos do Salgueiro: Uma Academia de samba no bairro da Tijuca ................................................................................................... 40 Os Acadêmicos do Salgueiro: A samba Academy in Tijuca Guilherme José Motta Faria Decifra-me ou te devoro: A representação social no mundo virtual ....... 57 Decipher me or I will eat you: The social representation in the virtual world João Gilberto S. Carvalho “Tempos mortos ou pausas para a criação?”: trabalhando a partir da linguagem cinematográfica para entender um curso de inglês comunitário ................................................................................. 73 7 “Dead time or pause for creation?”: working with cinema language to understand a community English course Sabine Mendes Lima Moura Saúde no Trabalho e Gestão Participativa .............................................. 8621 Health at Work and Participatory Management Alzira Mitz Bernardes Guarany 4 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 5-10 ENSAIO/ENTREVISTA Responsabilidade Social Empresarial: necessidade e criatividade ........... 100 Corporative Social Responsibility: need and creativity Álvaro Enrique Rodriguez Hernandez ARTIGOS Estudo de Caso de Um Novo Entrante no Mercado Brasileiro de Perfurações de Petróleo .......................................................................111 WWT International Inc. in the Brazilian Market Carlos Francisco Simões Gomes e Daniel Guerreiro Menahem Condicionantes relevantes para a difusão do carro elétrico: o desenvolvimento tecnológico de baterias e a ação governamental .......127 Relevant constraints for the diffusion of the electric car: technological development of batteries and governmental action Claudia do Nascimento Martins Resenha-resumo Ecoturismo Responsável e seus Fundamentos ....................................... 140 Cecília Bueno A presente edição da Revista Áquila, iniciativa da Pró-Reitoria de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão por meio do Núcleo de Publicações da Universidade Veiga de Almeida, é um passo importante para o desenvolvimento das práticas de pesquisa integradas na Rede Ilumno. A partir de uma reestruturação conceitual, que incluiu o desenvolvimento de áreas de concentração voltadas a questões fundamentais no mundo contemporâneo, criou-se um espaço internacional de estudos interdisciplinares. Seu caráter de fórum interinstitucional foi estabelecido por meio das contribuições de autores da Institución Universitaria Politécnico Grancolombiano e da École des Hautes Études de Journalisme de Montpellier, bem como da colaboração de pesquisadores de diferentes instituições nacionais e internacionais na reconfiguração de seu Conselho Editorial. Abrimos o número com um profícuo debate acerca da questão identitária, com colaborações da Sociologia, das Ciências Políticas, da História e da Psicologia. No primeiro artigo, Duarte discute a produção de saberes e identidades no Brasil com uma análise dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Na sequência, Medeiros historiciza os conceitos de civilização e barbárie, desconstruindo processos de geração de alteridade. O texto de Faria apresenta o papel das escolas de samba na construção social da representação do afro-descendente. A seção seguinte tematiza o papel da pesquisa acadêmica diante das novas tecnologias e da sociedade audiovisual, com participação da Psicologia e da Linguística Aplicada. Carvalho abre os trabalhos discutindo a necessidade de renovação na Teoria das Representações Sociais frente às construções da cibercultura. Em seguida, Moura apresenta a necessidade de reinvenção das metodologias de pesquisa do praticante, apropriando-se de conceitos da linguagem cinematográfica. A terceira parte deste número estabelece um debate acerca do papel dos gestores frente ao mercado de trabalho contemporâneo, com contribuições da área de Serviço Social e de Comunicação. O artigo de Guarany repensa a relação entre sofrimento psíquico e gestão participativa no ambiente laboral, por meio de um estudo de casos múltiplos. Em seguida, Hernandez, em texto ensaístico, traz conceitos básicos de Responsabilidade Social Empresarial, bem como uma entrevista com José Miguel Rodríguez Fernández, decano da Faculdade de 5 • CARTA DO EDITOR CARTA DO EDITOR • LETTER FROM THE EDITOR • CARTA DEL EDITOR 6 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 5-10 Economia e Negócios da Universidad de Valladolid. Nos dois últimos artigos, observamos a constituição de um fórum democrático acerca da questão energética mundial, a partir de contribuições da Engenharia de Produção e da Economia. Gomes e Menahem desenvolvem o estudo de caso de um novo entrante no mercado brasileiro de perfuração de poços, discutindo seu processo de implementação por meio da análise SWOT. Em seguida, Martins introduz os principais desafios para a difusão do carro elétrico no Brasil. Os dois textos representam linhas diferentes de pesquisa que sugerem a necessidade de uma cooperação cada vez mais ampla entre diferentes setores acadêmicos no sentido de dar resposta à demanda energética mundial de maneira sustentável. No tema sustentabilidade, contamos, ainda, com a contribuição de Bueno, em resenha-resumo do livro Ecoturismo Responsável e seus Fundamentos, que introduz questões éticas, legais e administrativas de uma área de atuação profissional que vem crescendo a cada ano e precisa ser desenvolvida com base na ecoeficiência. O diálogo está no cerne do que entendemos por interdisciplinaridade. Esperamos que os debates aqui iniciados possam se multiplicar, dentro e fora das páginas desta revista, e agradecemos a todos os conselheiros e pareceristas que se dispuseram a compartilhar seus conhecimentos, sem os quais este número não teria sido possível. Sabine Mendes Lima Moura Editora-chefe T he current issue of Revista Aquila, an initiative of the Dean’s Office for Graduate Programs, Research and Extension by means of the Publication Center of Universidade Veiga de Almeida, is an important step towards the development of integrated research practices in Rede Ilumno. Starting from conceptual restructuring, which included the development of concentration areas dedicated to fundamental issues in the contemporary world, it has created an international space of interdisciplinary studies. Its character as an inter-institutional forum has been established by the contributions of authors from the Institución Universitaria Politécnico Grancolombiano and from the École des Hautes Études de Journalisme de Montpellier, as well as from the collaboration of researchers from different national and international institutions in the reconfiguration of its Editorial Board. We open this issue with a profitable debate on the question of identity, including collaborations from Sociology, Political Sciences, History and Psychology. In the first article, Duarte discusses knowledge and identity production in Brazil with an analysis of the National Curriculum Guidelines. Next, Medeiros historicizes the concepts of civilization and barbarism, deconstructing otherness generation processes. The text by Faria presents the role of samba schools in the social construction of the afro-descendant representation. The following section thematizes the role of academic research when facing new technologies and the audiovisual society, with the participation of Psychology and Applied Linguistics. Carvalho opens the debate discussing the need for renovation in the Theory of Social Representation, considering cyber culture constructions. After that, Moura presents the need for reinvention in practitioner research methodologies, by appropriating from cinema language concepts. The third part of this issue establishes a debate on the role of managers towards the contemporary world market, with contributions of the Social Work and Communication areas. The article by Guarany rethinks the relationship between psychological suffering and participatory management in the workplace, by means of a multiple study case. Next, Hernandez, in his essay, brings basic concepts of Corporate Social Responsibility, as well as an interview with José Miguel Rodríguez Fernández, Dean at the Economics and Business College at Universidad de Valladolid. 7 • EDITOR´s note CARTA DO EDITOR • LETTER FROM THE EDITOR • CARTA DEL EDITOR 8 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 5-10 In the last two articles, we observe the constitution of a democratic forum on the world energetic panorama, with contributions from Production Engineering and Economy. Gomes and Menahem develop the study case of a newcomer in the Brazilian market of oil wells drilling, discussing its process of implementation with SWOT analysis. After that, Martins introduces the main challenges for the diffusion of the electric car in Brazil. Both texts represent different research lines which suggest the need for broader cooperation among different academic sectors in the sense of answering the world’s energetic demand in a sustainable way. On the sustainability theme, we have, also, the contribution of Bueno, in a summary critique of the book Ecoturismo Responsável e seus Fundamentos (Responsible Eco-Turism and its Fundamentals), which introduces ethical, legal and administrative issues from a professional area that grows each year and needs to be developed with an ecoefficiency concern. Dialogue is at the core of what we understand by interdisciplinarity. We hope that the debates initiated here can multiply, in and out of these magazine pages, and thank all Board members and consultants who have shared their knowledge, without whom this issue would not have been possible. Sabine Mendes Lima Moura Editor-in-chief L a presente edición de la Revista Aquila, iniciativa de la ProRectoría de Pos-Graduación, Investigación y Extensión por medio del Núcleo de Publicaciones de la Universidade Veiga de Almeida, es un paso importante para el desarrollo de las prácticas de investigación integradas en la Red Ilumno. Partiendo de una reestructuración conceptual, que incluyó el desarrollo de áreas de concentración centrándose en cuestiones fundamentales en el mundo contemporáneo, fue creado un espacio internacional de estudios interdisciplinares. Su carácter de fórum interinstitucional fue establecido por medio de las contribuciones de autores de la Fundación Universitaria Politécnico Grancolombiano y de la École des Hautes Études de Journalisme de Montpellier, bien como de la colaboración de investigadores de diferentes instituciones nacionales e internacionales en la reconfiguración de su Consejo Editorial. Abrimos el número con un fructífero debate acerca de la cuestión de identidad, con colaboraciones de la Sociología, de las Ciencias Políticas, de la Historia y de la Psicología. En el primero artículo, Duarte discute la producción de saberes e identidades en Brasil con un análisis de los Parâmetros Curriculares Nacionais (Parámetros Curriculares Nacionales). En secuencia, Medeiros historiciza los conceptos de civilización y barbarie, desconstruyendo procesos de generación de alteridad. El texto de Faria presenta el rol de las escuelas de samba en la construcción de la representación del afro-descendiente. La sección siguiente tematiza el rol de la investigación académica delante de las nuevas tecnologías y de la sociedad audiovisual, con participación de la Psicología y de la Comunicación Social. Carvalho abre los trabajos discutiendo la necesidad de renovación en la Teoría de las Representaciones Sociales frente a las innovaciones construidas en el mundo da cybercultura. En seguida, Moura presenta la necesidad de reinvención de las metodologías de pesquisa del practicante, apropiándose de conceptos del lenguaje cinematográfico. La tercera parte de este número establece un debate acerca del rol de los gestores frente al mercado de trabajo contemporáneo, con contribuciones del área de Trabajo Social y de la Comunicación. El artículo de Guarany repiensa la relación entre sufrimiento psíquico y gestión participativa en el ambiente laboral, por medio de un estudio de casos múltiples. En seguida, Hernandez, en texto 9 • CARTA DEL EDITOR CARTA DO EDITOR • LETTER FROM THE EDITOR • CARTA DEL EDITOR 10 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 5-10 ensayístico, presenta conceptos básicos de Responsabilidad Social Empresarial, bien como una entrevista con José Miguel Rodríguez Fernández, decano de la Facultad de Economía y Negocios de la Universidad de Valladolid. En los dos últimos artículos, observamos la constitución de un fórum democrático acerca da cuestión energética mundial, a partir de contribuciones de la Ingeniería de Producción y de la Economía. Gomes y Menahem desarrollan el estudio de caso de un nuevo entrante en el mercado brasilero de perforación de pozos, discutiendo su proceso de implementación por medio del análisis SWOT. En seguida, Martins introduce los principales desafíos para la difusión del auto eléctrico en Brasil. Los dos textos representan líneas diferentes de investigación que sugieren la necesidad de una cooperación cada vez más amplia entre diferentes sectores académicos en el sentido de dar respuesta a la demanda energética mundial de manera sustentable. En el tema sustentabilidad, tenemos, también, la contribución de Bueno, en reseña-resumen del libro Ecoturismo Responsável e seus Fundamentos (Ecoturismo Responsable y sus Fundamentos), que introduce cuestiones éticas, legales e administrativas de una área de actuación profesional que ven creciendo a cada año y necesita ser desarrollada con base en la eco-eficiencia. El diálogo está en el núcleo de lo que entendemos por interdisciplinaridad. Esperamos que los debates aquí iniciados multiplíquense, adentro y afuera de las páginas de esta revista, y agradecemos a todos los consejeros y árbitros que se dispusieran a compartir sus conocimientos, sin los cuales este número no hubiera sido posible. Sabine Mendes Lima Moura Editora-jefe IDENTITY PROGRAMS: OR THE PROGRAMED IDENTITY 11 Identity Programs: or the Programed Identity Mosaico de Identidades - Interpretações contemporâneas das ciências humanas e a temática da identidade Originalmente publicado em Duarte, M.B.B. & Medeiros, J. L. Mosaico de Identidades - Interpretações contemporâneas das ciências humanas e a temática da identidade. Curitiba: Juruá, 2004. Versão em Língua Inglesa por Marcelle Farah (Aluna da Licenciatura em Letras Português/Inglês, Universidade Veiga de Almeida). Introduction The interrelation between society and education has been one of the most important concerns of my academic career. For this reason, I lean on the subject, especially to address the relation between the curricula programs developed and the preparation of young people to share and understand, through school, the life within a society. This is accomplished in different manners, in different moments, and what is generally verified is the intentionality of the school programs in making the students share a common culture, from general formation to the exercise of complete citizenship. I notice an effort in the educational process in order to constitute education as a founding element in what we usually call “construction of the national identity”. Individuals go through institutions, through school, and through millions of other things at the same time. They go through thoughts, time, affects… Some of these remain, others don’t. And what is it that endures from all of these experiences? What do they mean after all? I will, however, try to consider the presumption of identity contained in the school programs, here denominated curriculum, which is the utmost expression of all experiences and contents of all shared experiences and contents in the classroom. An identity is built from the transmission of the cultural legacy of peoples, of a nation. When we talk about experiences and contents, we comprise a range of cultural implications, as well as political ones. The thought about the relation between curriculum and cultural transmission authorizes the creation of a culture concept which is universally accepted and practiced, and, because of that, important to be transmitted from generation to generation, through a curriculum, making the universal and democratic character of schooling more evident. Besides that, imbricated in the * Maria Beatriz Balena Duarte, Doctor in Sociology of Education (Universidad de Santiago de Compostela, Spain); Vice-Dean of the Graduate Programs, Research and Extension at Universidade Veiga de Almeida. • Artigo • Maria Beatriz Balena Duarte * 12 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 11-24 cultural issue, we will find the cultural identity which will be approached further on. We know that a unitary and homogeneous culture does not exist, and for this reason, in a critical perspective, we take the culture issue as a field in which there are different and conflicting conceptions of the social life. In this perspective, the idea of culture is not separated from the idea of the existence of groups and social classes, even in a society divided into classes, something that characterizes most of the globalized societies that we know. So, the curriculum is seen as a field of impositions both in its own definition of culture and in the content the term covers, which does not provide a feature of a social continuity, but a reproduction of the culture and the divisions in society, as the sociologist Pierre Bourdieu shows us in his studies about the school. Considering the ideas outlined above, the curriculum content definition itself, and, consequently, the structure of the cultural elements in the sequencing of the curriculum, are impositions that obey not only the local dispositions, but also the national ones, which gives a political character to the academic curriculum since they are selective dispositions, i.e., they express the vision of a certain group of what is legitimate knowledge and what is important to be transmitted. In order to clarify, we can take what is currently displayed in the official documents and, from that, question the origins of its concepts. How were the contents defined? Based on what? How do they classify what is and what is not knowledge? The answers, generic as they are, clearly indicate the existence of a cultural policy, produced from the “tensions, conflicts and cultural, political and economic concessions that organize and disorganize a nation”, in Apple’s vision, when dealing with the politics of official knowledge (1995, p.56). We find in Foucault some powerful clues for the comprehension of how power works, directing our eyes to the margins, observing the struggle of the ones who make an effort to survive even in the condition of “others”. They are the ethnic groups, the poor, the women, the religious groups, a range of people who refuse to accept the alien control toward their bodies, producing, thus, knowledge and a vigorous culture of resistance. But none of them is contemplated in the official curriculum, preventing us from the comprehension of the intrinsic wealth of adversity. We could consider that, in a more democratic perspective, these more regional matters could be contemplated, but, once rescued from this sort of existential limbo, the consensus issue related to the contents to be taught would return. In these last two centuries, education has been a refined process of identity and subjectivity manufacturing. I refer to the occidental education, which practices the illuminist belief of the modern reason. Capable of describing, explaining objectively the nature of the reality, not only social but also natural, making the transformation of the world and the construction of a better society possible. This messianic function of education and pedagogy still moves many professionals and serves as an IDENTITY PROGRAMS: OR THE PROGRAMED IDENTITY inspiration for educational programs. The contemporary experience authorizes us to perceive the paradoxes arising from the belief in the Illuminism. Michel Foucault’s work suggests that the systems of education are products of highly disciplinarian technologies and that they are developed not only in schools, but also in prisons, in hospitals, and in factories. Discipline: this is also the term that we use to designate knowledge sets listed in order to serve as learning to students in the academic curriculum. The use of this term makes all sense. We have then the consensus, which makes the school an indispensable vehicle in the production of identities. The subjects who inhabit the world of education are permanently in contact with the production of identities. So ephemeral and superficial that we can borrow Stuart Hall’s definition to think about identity: “instead of talking about identities as something familiar, we should talk about identification, seeing it as a continuous process. Identity does not emerge from the plenitude of the identity already inside of us as individuals, but from a lack of integrity that is fulfilled outside of us, considering the way we are seen by others” (2000, p.287). We have, then, the best conditions to understand the way our formalized educational and teaching processes, rooted in pedagogy, act in the production and in the construction of a sense of identity. A set of regulated communications is developed, (such as lessons, questions and answers, orders, encoded signals of obedience, differentiated marks of values for each person and knowledge level) and processes of power (vigilance, rewards, punishments, hierarchy pyramid). These factors, combined or not, give shape and content to the process of forging identities. The orientations proposed in the official educational documents in Brazil point at the constructive participation of students, and, at the same time, at the intervention of the teacher for the learning of the specific contents that favor and develop the necessary capacities in the formation of the individual, recognizing in this process its incompleteness and temporariness, i.e., successive approximations which allow the construction and reconstruction of knowledge. But the importance given to the contents reveals a commitment from the academic institution to guarantee the access to socially elaborated knowledge, as an instrument for development and socialization, which proves the legitimating aspect of the question posed by Bourdieu (1979) concerning the reproductivist and classist role of schools. Approaching how the culture and taste of the elite work, Bourdieu shows that “the art and the cultural consumerism are predisposed, consciously and deliberately or not, to play the social functions of legitimating the social differences” (1984, p.7). We see, then, in practice, the configuration of what the author called habitus, in which the cultural content transmitted is also an indicator of social class. When expressed in the curriculum, the characteristics of different social groups are legitimated, 13 14 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 11-24 making the school a school of social classes. Bourdieu’s studies signal us how much we have to reflect about the role of school in the actions of reproducing and challenging large unequal relations of power, that transcend social classes, and about practices such as the content and the organization of the curriculum, the evaluation and the results of the functional learning within the whole process. Following the analysis of a national curriculum proposal, I resort to Michael Apple when manifesting his unrest towards the argument of a national curriculum policy proposed by national governments (conservative, in his analysis). His argument is that behind the educational justifications there is “a dangerous ideological onslaught” (1995, p.63). Based on the programs proposed by Great Britain, United Stated, and Japan, that could be borrowed to analyze Brazil’s case, he suspects that there is “a standardized set of national curriculum guidelines and goals indispensable to improve the level and make schools effectively responsible for its student’s success or failure”(id). This suspicion is based on the fact that the academic unified discourse hides a liberal project, which is too dear to the right-wing governments, conservative in their nature, and committed to a complex nationalist idea, engaged in providing the educational conditions to serve the international competitive edge, forming better prepared workers to live and act in a globalized world, and also engaged in rescuing a romanticized past of home, family, and “ideal school” 1. Neoliberalism defends a weak and smaller state that makes the “invisible hand” of the market responsible for market exchange and social interaction, and it is identified not only as the most efficient, but also as the most democratic system. On the other hand, the neoconservative orientation is guided by the vision of a strong State in certain areas, especially when it comes to bodies’s relation policy, gender, race, and to the definition of what must be transmitted to future generations (id, p.69). 1. Talking about identities Identity presupposes difference; i.e., people “are” in relation to some “different”. We can define woman because there is a definition of man, homosexual because there is one for heterosexual, white because there is one for black, rich because there is one for poor. They are relational definitions, but not symmetric. They are, therefore, relations of power, socially constructed and, because of that, hierarchized and imposed. National identities, on the contrary, demand founding myths (SILVA, 2000, p.85). They require symbols capable of provoking the union among people, aside from a common language. According to Silva, the approach to the recent cultural theories gives emphasis to the hybridism arising from colonization, from forced migrations that destabilize and question the existent identities. The instability occurs because of the sentiment of being the other, foreign, of “not being home”, creating, thus, the instability identity. IDENTITY PROGRAMS: OR THE PROGRAMED IDENTITY These are important concepts because they do not configure identity based on what it is, as a static description, but as a process in transformation, in movement. This movement cannot occur by consensus, by dialogues, but by asymmetric relations of power, of hierarchy. Silva refers to this process stating that “The identity is instable, contradictory, fragmented, inconsistent, unfinished, the identity is linked to discursive and narrative structures, the identity is linked to systems of representation. The identity has narrow connections with the relations of power” (id). 1. The two identities of Brazil Mandatory minimal contents required by the current legislation are subject to national evaluation by the Ministry of Education. Doing this, the Brazilian State appoints itself as having the role of being the responsible for the maintenance of regional identities, and simultaneously preserves a certain national identity, when it proposes mandatory minimal contents (in all levels of elementary school). According to Oliven (1999, p.79): The affirmation of regional identities in Brazil can be faced as a reaction to cultural homogenization and as a way of stressing cultural differences. It is this rediscovery of differences and the current matter of the federation in a period in which the country finds itself fairly integrated from the political, economic, and cultural perspectives that suggests that, in Brazil, the national goes first through the regional. An analysis of the curriculum in these bases makes us assume that there is a presumption of regional identity which interlaces smoothly and without conflicts with a national identity, taken a priori, and which is the domain of all educated Brazilians, something important to clarify. Because one of the most recurrent reasons on the literacy effort and the universalization of the Brazilian school resides in the fact of it being one of the only accesses to citizenship, and, therefore, the acquisition of a Brazilian national identity, operationalized and conducted by the schooling process. 2 The National Curriculum (PCNs – Parâmetros Curriculares Nacionais) The Brazilian educational system is standardized and supervised by a specific organ, the Ministry of Education. From it, guidelines are issued which somehow organize the educational structure and which will also set the tone for the curriculum guidelines operating in schools. Named Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (Law of Guidelines and Bases of the National Education), approved in 20.12.1996, they constitute an attempt of integrating the three levels of education (first, second, and third degrees, when they were created, today called elementary school, high school, and university respectively) and were the origin of systematic educational planning in the country. The law 15 16 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 11-24 consolidates and expands governments’ duty towards the education in general, and, particularly, towards elementary school, which is mandatory and free, according to the Federal Constitution, from seven to fourteen years old. Thus, the article 22 from LDB professes that the basic education must “assure everyone common formation indispensable to the exercise of the citizenship and provide them ways of progressing in work and in posterior studies”. In this document, not only the basic common formation is implicit, presupposing the formulation of a set of guidelines able to guide the curricula and their minimal contents, but also (and to account for this goal) the existence of a complementation by a diverse part, according to each system of education in this country. In these guidelines, the universal character of education is clear, and also the possibility of establishing a curriculum bound to the regional characteristics of each State of the Federation. Named Parâmetros Curriculares Nacionais (The National Curriculum), a set of propositions was elaborated by the Ministry of Education at the end of the 90’s with the function of: “responding to the needs of referential from which the educational system of the country organizes itself, in order to guarantee that education can act decisively in the process of citizenship construction, (…) which necessarily implicates the access to the totality of public goods among which the set of socially relevant knowledge” (PCNs, 2000, p.13). Resulting from a number of studies performed by experts from all areas of knowledge, university professors, education specialists and public agencies involved with education, these guidelines intended to function as a catalyst element of actions in the search for better quality in Brazilian education, besides the necessary action in different fronts such as teacher continuing education policy, wage policy, teaching career plans, qualification of resources and teaching materials (books, multimedia, etc). The National Curriculum elaboration process began from the study of the curriculum proposals in Brazilian states and counties, from an analysis made by the Carlos Chagas Foundation (Fundação Carlos Chagas – FCC) about the official curriculum and from the contact with the experience of other countries, added to national and international researches, statistic data upon the development of elementary school students (that revealed students were incapable of reading and writing properly and did not master the four basic mathematical operations), and also from the results of classroom experiences either published or broadcasted in meetings and seminars of this field. The initial proposal went through exhaustive discussions nationwide, organized by delegacies of the Ministry of Education (MEC) in the states, contributing, thus, to the reworking of the document. The document is referenced as of “undeniable importance to the educational policy of the Brazilian nation” (id), at the same time in which IDENTITY PROGRAMS: OR THE PROGRAMED IDENTITY it is defined as a flexible proposal to be concretized, not thought as a homogeneous imposition of a curriculum model. However, in the general objectives of the elementary education, among others that dispose about the appropriation of knowledge as a form of social insertion, social and political participation in the Brazilian society, through the exercise of the rights and duties, it is expected that students are capable of: “knowing the fundamental characteristics of Brazil in the social, material, and cultural dimensions as a way of constructing progressively the notion of national and personal identity and the sentiment of belonging to the Country”2 . It is on this point in particular that our analysis will focus, based on the understanding that it expresses the fundamentals of what we will treat throughout the essay: the national identity issue as constructed from the educational curriculum. We will return to the National Curriculum in focal points, selected in order to portray, in a more applied way, the considerations that we will do about the construction of identities throughout the primary education process in Brazil, systematized in the present curricula proposals. In the enunciation of the National Curriculum, in the cross-cutting themes that revolve around the cultural plurality, we can find the characterization of the cultural composition of Brazil as the result of a long historical process of interaction. Here, unique cultures coexist, linked to identities originated from different ethnic and cultural groups, becoming a plastic and permeable cultural composition, incorporating their daily life and recreating the cultures of all these peoples, in an interlacement of reciprocal influences, which makes the elaboration and definition of the national identity even more complex. Stuart Hall emphasizes the fact that, in a modern world, national cultures were made within and around a political entity of nation, which then became one the principal sources of cultural identity. So, the nation is not only a political entity, but mainly a symbolic entity, capable of producing a deep sense of belonging. Therefore, Brazilian’s definition does not simply give us geospatial localization, but makes us members of an imagined community, inserted and participant of a national culture, which gives us common origins and interests. The power that the nation has is translated in a certain feeling of “fraternity” able to overcome differences and inequalities. In the national territory, about 206 indigenous ethnic groups live, each one of them with their own identities, aside from an immense population of African peoples’s descendants who arrived here five centuries ago, in a forced process of immigration. To the diversity of the African culture - the linguistic, religious, gastronomic and musical contributions – we add the contributions of several other ethnic groups that compose the Brazilian population: Portuguese, Spanish, Italians, Germans, Poles, Syrians, Lebanese, Japanese, Chinese, French, and English; Catholics, Jews, Muslims, and countless other categories of identification. Consider the fact that an individual can be between 17 18 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 11-24 categorizations and we will have, then, an even wider and more difficult determination of who the Brazilian is. It is diversity that marks Brazilian social life. The differentiated social answers mark the life of the inhabitants in this nation, making it impossible to characterize them instantly, under the penalty of impoverishing diversity’s qualities. However, in different periods of history, exacerbated nationalism betook the homogenizing function of school to propagate the myth of “racial democracy”, disseminating the notion of a Brazil without differences, originated by the confluences of three races – the Indian, the White, and the Black – which dissolve to give origin to the Brazilian. In textbooks, this conception was widespread, eliminating and depreciating several contributions that composed and still compose our national identity. And within this conception of a country with arms wide open to integrate the differences, hides a perverse process of exclusion and suffering of a large portion of the population that discovered itself pushed to a shadowy zone which covered deeply discriminatory social practices. This framework is particularly perverse to the students, victims of the mentality and attitudes of school and educators, who, without observing their everyday lives, end up forcing discrimination. It has been developed at school – through teacher trainings, textbooks, and pedagogical practice in general – the notion of a white Brazilian, urban, with aptitude and promptitude to learn the selection of contents. This simplistic vision has been gradually reviewed by educators and contemporary schools. But its marks can still be verified in the Brazilian society, mainly if we consider the high index of school evasion. It is evident that this process, besides being discriminatory, is relevant to school abandonment: the school is a desert place, unheard-of and incompatible with the rural population, the people from the slums, the poor, the people from the countryside, or the indigenous people. Therefore, to talk about identity at school, we need to resume the debate about strongly rooted practices which cause distinct groups - that despite being ideologically assimilated to the society, do not feel part of it - to have their participation and story seen as marginal, their contributions as negative or smaller. Among other structural measures, in order to reverse the process of exclusion and cultural marginality, the knowledge and valorization of specific and singular characteristics of each school district (sometimes in a same location), with their ethnicities, origins, and specific cultures, must be a part of the everyday lives of students, teachers, managers and curriculum makers. In the globalized world, especially in the economic plan, the sets of social effects are widely known. They comprise the impoverishment of the populations, the shortage of natural resources, the homogenization of mass culture by the media which dictate and normalize social life, predicting what it is to be a child, how teenagers think, who the modern woman is, how the contemporary man is. It is important to attend to the unceasing process IDENTITY PROGRAMS: OR THE PROGRAMED IDENTITY of reposition of differences and the resurgence of ethnicities. This process teaches, from a certain perspective, that there are no models to be followed anymore, teaches about the failure of the white and European model broadcasted so constantly by modern science. On the other hand, it clearly presents the need for the construction of new social practices that permit the relationship between ethnic and cultural differences, while constituting solidarity, an essential element for the existence of a cohesive process between education and society. In order to integrate these conceptions to the school’s curriculum, we could question, for example: how would incorporating the aspects of the culture lived by the students be possible, relating it to school work, without simply validating what they already know? Or, how could we do it without discriminating the “others” inside a hegemonic culture expressed by the program of the different disciplines that compose the curriculum? We find an answer in Giroux, when he affirms that schools enlarge human capacities, enabling people to interfere in the formation of their own subjectivities and to be able exercise their power to transform the ideological and material conditions of domination in practices that promote the fortification of social power and demonstrate the possibility of democracy (1995, p. 95). The author still offers us an interesting comparison between popular culture and pedagogy, when he affirms that popular culture is located in the everyday life ground, whereas pedagogy “generally legitimates and transmits the language, the codes, the values of a dominant culture”(id, p.92). Popular culture is appropriated by the students and by what is utilized in everyday life experiences, while pedagogy “validates the voices of the adult world, as well as the world of the teachers and managers of the school” (id, p. 93). In the context of the National Curriculum proposal, school education is designed as a practice that has the possibility of creating conditions so that all students can develop their capacities and learn the necessary contents to construct instruments of comprehension of the reality and of participation in social, political, and cultural relations, diversified and increasingly wider, being these conditions fundamental for the exercise of citizenship and for the construction of a democratic society, not an exclusionary one (PCNs, 2000, p.45). I turn to Giroux once more, when he points to the fact that it is in the confluence between the popular and the pedagogical discourse that we understand the possibility to rethink schooling as a valuable tool of cultural politics, since both are discriminated in the dominant discourse as ways of cultural reproduction. Yet the popular culture, even when ignored by the school, is a powerful tool that the students have to interpret themselves and the ways of learning in the world surrounding them. The issue of popular “culture” has 19 20 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 11-24 been approached by the cultural studies in the last two decades, stimulating the debate about the definition of “popular”. We will only consider what popular culture has of theoretical, practical, and methodological imbrications in the issue of curricula and school programs. Based on Giroux’s proposal, we can consider popular culture as “that land of images, forms of knowledge, and affective investments that define the bases to give opportunities to each person inside of the pedagogical experience” (id, p.95). Let’s see how, within the PCNs’ “Cultural Plurality”, this conception is imbricate to page 53: It is important to open up space so that a child and a teenager can manifest themselves. Living the right to the voice is a personal and an untransferable experience that allows the opportune and rich work of the Portuguese Language. Thus, the effective exercise of the dialogue turned to the exchange of information about cultural experiences and clarifications about eventual prejudices and stereotypes is the fortifying component of the democratic familiarity. Knowledge-centered culture of those involved implicates structures of thoughts, perceptions, and beliefs, that, following clear directions, conduct to the knowledge of yourself, of others, and of the world. 3 Information of Identities The conception of a proposed curriculum assumes that the everyday school life is able to promote the experience of difference through the different student’ and teachers’ personal stories, through family provisions’, different origins’ (including the social ones), in which each one learns and teaches “among the different”. Learning is centered in the living together and in the positioning of each individual, able to understand and relativize distinct opinions and experiences. The desired performance is far from being usually exercised at schools. It is more common to see a teacher covering up these differences under the mantle of everyone’s equality in the classroom, than stimulating their unveiling. Working the differences is complicated for those who do not have this practice even in their everyday social life. We live in a society which boasts about not being discriminatory in discourse. We will live under the idea of a cordial and pacific Brazilian, something that would be part of our own nature, because this is part of our “identity”. This practice is lived in school when one tries to cover discriminatory attitudes up, diluted in other behaviors (ridiculing questions, comments about social origin, ethnicity, school development, family situations, etc). Demystifying cordiality is a task for the school; we just need to let the students from the periphery tell the stories about violence and aggression suffered by them or by members of their families, in their everyday lives, practiced by bosses, the police and the IDENTITY PROGRAMS: OR THE PROGRAMED IDENTITY government leaders. Or even analysing the index of criminality and violence in the country, so that we can perceive that this definition of not even part of the identity of these Brazilians. In order to illustrate what I assert, it would be interesting to mention the effort of some researchers in Brazil, aiming at understanding the mechanisms whereby cultural identities are constructed negatively, such as the marginality or exclusion, how racial and ethnic boundaries are produced in the curricula and pedagogical practices, with different subjects that represent themselves and are represented in social groups which they belong to. These are researches that focus on disciplines of social studies and histories, showing how the notions of “colonization”, “civilization”, “Christianization” are constructed based on the standard of an European, white and Christian man to whom these other populations or human groups are compared in order to be named and valued. We can quote the discussion on culture and differences, and on the identities produced from them, as problematic aspects with which different social groups are confronted, in order to reconcile the exercise of political equality rights with the freedom to represent and identify themselves with the difference. These are dilemmas including feminist and black movements, among others that are equally important in the political reorganization of the current social movements. Professor Petronilha Silva’s work, among many others in this field3, points to a necessary and an urgent creation of social and school spaces that foster the education of interethnic relations in order to combat racism and all kinds of discrimination, and describes significant empowering experiences of the African descent identity, with positive impact on school performance, also exposing the process by which black mothers and grandmothers allowed themselves to cope with the school institutions when facing the discrimination suffered by their sons and grandsons, conducting teachers to notice the ethnical and cultural differences that exist at schools4. We see also the emergence of new and complex problems in teaching. Is it possible to structure the teaching process in a way which contemplates the recognition and celebrates the differences, without obscuring the exclusionary aspect, without reproducing the conservatism, breaking hegemonies that have been installed a long time ago? The school poses an interesting question to be examined by the current social movements. How to make a specific culture emerge, without circumscribing it within curricular hegemony, mischaracterizing thus the identity, the fights and the achievements of the groups interdicted in the school context? I believe that it will only be possible if we can think about a school able to build solidarities capable of sustaining, inside and outside of its scope, struggles for greater equality and social justice, so that the identity markers that unite us can be more effective than the ones that separate us. 21 22 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 11-24 4 . The curriculum and the ones who make it: identity formation or reform? The development process of the program, or the curriculum, implicates a double change. At the same time in which those who the program is designed for change their condition (from non-cognizant to cognizant), it also changes the condition of those who are responsible for its execution (the teachers). Therefore, if we talk about the formation of social and personal identities, we will be talking about transformations, or about resignifying identities, because there are differentiated and sequential forms for all of those who take part in it. The social identity in the curriculum is built through contents and programs expressed in all disciplines that are formally compartmentalized to fulfill the formal requirements of education. Thus, contents of mathematics, sciences, history are divided, separated, and cleaved so that there is no sharing among them, but it is still possible to realize the moral (right or wrong), cultural, and ethnical approaches, implicating a relation of power that defines what will be taught, and what will be learned, as well as what is scientific or not. Even in a world where information is accessible in different means, where learning occurs in distinct social contexts (on the streets, within groups of friends, in the media), school still treats students as blank slates, devoid of any preliminary information underlying the one which is considered to be the most important and the only valid one: the knowledge contained in the curriculum. The fundamental inquiry at this particular point about the curriculum is: how are the identities produced? How are they built and by whom? What are the institutions that have the power of their representations? How and when are they perceived as a constituent part of subjects? In order to go beyond tolerance toward differences, is it necessary to know the forms of power relations reproduction inserted in the process of elaboration and performance of the curriculum, and that in a certain way can be recognized, questioned, destabilized? From these risks, inspired in nomadism and hybridisms, the identities – that the programs intend to fasten; that they intend to program – may be modified. A permanent critical exam about the limits of what we become is needed. Something like an ethics of exploitation. It must be centered in our changing forms of subjection, in our interrelational experience, in the forces, practices and institutions that construct our identities on our behalf. As a conclusion, schooling for citizenship makes sense in a multiform context of thinking about personal and collective identities. IDENTITY PROGRAMS: OR THE PROGRAMED IDENTITY NOTES (1) The term refers to the countries which Michael W. Apple’s mentions, Great Britain, Japan, and United States of America, as well as the European nations that, in general, experiment the ascension of the rightwing to the power. This is not Brazil’s situation, in the moment I am writing this article, when this country lives in 2003 its first year having a left-wing government, by the Workers Party (Partido dos Trabalhadores – PT), but it can me framed in a previous moment, in which the alterations of projects and plans towards the education in the country were made, in the 90s, a period strongly fertile to neoliberal changes that marked the previous government schedule. (3) Works incentivized and supported by special programs of the State Department for Education, and counties such as Porto Alegre/RS, by projects of the Group of Black Teachers of Grande Porto Alegre. (4) SILVA, Petronilha B. G. Educação e Identidade dos negros trabalhadores rurais do Limoeiro. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1987. ( Tese de doutorado). Ver ainda: REIS DA SILVA, Jacira. A educação do negro e o ensino dos estudos sociais na perspectiva das classes populares. In: TRIUNPHO, V. R. S. Rio Grande do Sul: aspectos da negritude. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1991. (2) PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS. Temas Transversais: Pluralidade Cultural. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. REFERENCES APPLE, M. A Política do conhecimento oficial: faz sentido a idéia de um currículo nacional? MOREIRA, Antônio Flávio; SILVA, Tomas Tadeu. Currículo, Cultura e Sociedade. São Paulo: Cortez, 1995. GIROUX, H.; SIMON R. Cultura Popular e Pedagogia Critica a vida urbana como base para o conhecimento curricular. In: MOREIRA, Antônio Flávio; SILVA, Tomas Tadeu. Currículo, Cultura e Sociedade. São Paulo: Cortez, 1995. BOURDIEU, P. Distinction. Cambridge: Harvard University Press, 1984. HALL, S. A identidade Cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. 23 24 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 11-24 OLIVEN, R. Que País é este? A (des) construção da identidade nacional. SOUZA, Edson Luiz André (Org.). Psicanálise e Colonização – Leituras do Sintoma Social no Brasil. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999. PARÂMETROS CURRICULARES NA CIONAIS. Introdução aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Secretaria de Educação Fundamental, 2. Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. PARÂMETROS CURRICULARES NA CIONAIS. Pluralidade Cultural: orientação sexual. Secretaria de Educação Fundamental, 2. Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. SILVA, T. T. da (Org.): HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. SILVA, P. B. G. Educação e Identidade dos negros trabalhadores rurais do Limoeiro. 1987. 216 f. Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Pensar a Identidade latino-americana entre civilização e barbárie 25 Pensar a Identidade latino-americana entre civilização e barbárie • João Luiz Medeiros * Resumo: A dialética entre civilização e barbárie pode ser considerada como um dos elementos basilares para se pensar a questão da formação de identidades nas Américas. Essa antinomia conhece uma dinâmica singular tanto na área literária quanto no âmbito das Ciências Sociais, ganhando, assim, diferentes dimensões semânticas e aplicações diversas. Tal polarização atravessa os séculos inspirando discursos e alimentando análises direcionadas tanto ao estranho interior quanto ao “outro” exterior ao mundo americano. No século XX, civilização e barbárie seguem um caminho de depuração de seu ranço etnocêntrico, ao ponto de considerá-lo como definitivamente sepultado nos porões da história. Entretanto, os atentados ocorridos nos Estados Unidos em Setembro de 2001 reestruturaram, de forma abrupta, a arquitetura geopolítica do mundo na qual a polarização civilização e barbárie parece ter se avivado por um tempo indeterminado com consequências imprevisíveis. Palavras-chave: Identidade, civilização, barbárie, América Latina, Brasil. Abstract: The dialectic between civilization and barbarianism may be considered as one of the basic elements to take into account when assessing the formation of one or several American identities. This antinomy has a unique dynamic both in Literature and in Social Sciences, earning different semantic dimensions and diverse applications. This polarization goes through centuries inspiring discourses and feeding analyses directed as much to the stranger inside as to the “other” outside the American world. In the 20th century, civilization and barbarianism followed a purifying path for their rancid ethnocentrism, up to the point in which it was considered as definitively buried in the undergrounds of History. However, Prof. João Luiz Medeiros, Doutor em Ciências Políticas pelo Institut d’Etudes Politiques (IEP)/ Université de Rennes 1, França. Sociólogo, Professor da École des Hautes Études de Journalisme de Montpellier. * • Artigo Thinking Latin-American Identity between Civilization and Barbarism 26 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 25-39 the nine-eleven attacks in the United States abruptly restructured the geopolitical architecture of a World in which the civilization/barbarianism polarization seems to have come to light again for a long time with unforeseeable consequences. Keywords: identity, civilization, barbarism, Latin America, Brazil. Introdução: Mesmo que seja preciso lidar com muita prudência com oposições binárias, sobretudo em tempos em que elas, muitas vezes, se interpenetram mais e mais, dando, assim, lugar a polifonias, heterogeneidades e cruzamentos, as identidades nas Américas sempre foram apresentadas como o reflexo de um processo dialético permanente entre binômios como continuidade e ruptura, tradição e modernidade, integração e mudança, evasão e enraizamento, abertura para o “outro” e fechamento sobre si, dinâmica que se traduziria, num duplo movimento, por um nacionalismo centrípeto e um universalismo centrífugo. A dialética entre civilização e barbárie dentro desta lógica pode ser considerada como um dos questionamentos basilares para a formação de uma identidade americana. Manifestando-se de forma diversa, segundo o lugar de onde é emitido o olhar, acomodando-se em função das fases sociopolíticas pelas quais o continente passou, implícita ou explicitamente, civilização e barbárie trespassaram toda a produção litérária e ensaística das Américas Desde o primeiro olhar ibérico sobre as terras novas até o processo de reestruturação da arquitetura geopolítica do mundo atual, passando pelas iniciativas civilizacionais ou, ainda, no esforço de definição de espaços nacionais, civilização e barbárie fazem parte da gramática semântica que anima conflitos de poder e legitima a unicidade do olhar, podendo, assim, obliterar vias de diálogo entre diferenças. 1 - O bárbaro, um conceito antigo A figura do bárbaro é criada pelos antigos para designar o estrangeiro não possuidor da cultura greco-romana. Dessa forma, qualquer indivíduo posicionado fora do universo cultural helenístico é considerado como simplesmente desprovido de cultura: bárbaro significando “aquele que balbucia algo incompreensível”, o que faz do idioma o elemento denunciador da existência do “outro”. A história conta que, nos primórdios da nossa era, povos nômades do norte e leste da Europa migraram para o sul do continente em busca de novas terras, deixando, ao passarem, um rastro de destruição. Reza a crença que “por onde os Unos passam, a vegetação não vingará nunca mais”. Germanos, Vizigodos, Vândalos, Francos e Unos, entre outros, foram protagonistas de eventos que a historiografia qualificou como “invasões bárbaras”. Apesar de Pensar a Identidade latino-americana entre civilização e barbárie ter sido já evocada pelos antigos, a figura do bárbaro ganhará um maior impacto nesse momento histórico, sendo utilizada para designar os povos estrangeiros ao mundo greco-romano, considerando-os primitivos, incultos, atrasados e brutais, ou seja, situados na contramão de uma ordem percebida como ideal e legítima. Estabelecendo-se esse preconceito por meio de estereótipos culturais, fezse emergir, em contrapartida, a noção de civilização enquanto organização de sistemas. Só aquilo que pertence a “nossa” cultura seria civilizado, todo o resto é considerado barbárico. É, entretanto, com a ascensão da Europa Ocidental como polo dominador que a dualidade civilização e barbárie se impõe na condição de elemento justificador de poder sobre a periferia do sistema. Nesse sentido, o termo civilização sofre apropriação, associandose à ideia de cientificismo e de progresso e desqualificando as civilizações mais antigas do mundo, consideradas bárbaras, para que as potências coloniais legitimassem dominações e justificassem massacres. Trata-se, en definitivo, de uma incompreensão, de uma situação de estranhamento em que a problemática do “outro” constitui a substância essencial e o etnocentrismo, o motor ideológico. O bárbaro é o outro, aquele fora dos limites políticos e morais de uma comunidade cristã que se via universal. O processo civilizacional aparece aos olhos das nações europeias, indica Norbert Elias, “como algo plenamente realizado no seio da própria sociedade ocidental; esses povos se sentem como apóstolos encarregados de transmitir aos outros povos, na qualidade de porta-estandarte, uma civilização onde o grau de desenvolvimento atingira o ponto culminante”. A íntima convicção de superioridade, conclui o sociólogo alemão, “serve de justificativa às nações conquistadoras e civilizadoras que se alçam assim ao nível de ‘setores superiores’ em vastos territórios extraeuropeus” (1973, p.72). No continente americano, desde o primeiro olhar do conquistador ibérico sobre a terra nova, passando pelas iniciativas científico-civilizacionais e o esforço de “definição” de uma identidade americana, até as recentes retóricas de combate ao terrorismo internacional, a categoria dual civilização e barbárie constitui como uma das grandes marcas identitárias. A ambivalência do olhar inicial, relação dicotômica atração/ repulsão, América/Europa, o binômio civilização e barbárie marcam de forma indelével o imaginário cultural latinoamericano. Tzevetan Todorov analisa, por meio de uma abordagem semiótica, o significado deste primeiro olhar Europa/América. Olhar este munido de estupefação e incomprensão em relação ao “outro”, ser estranho, universo cultural distinto, explicado somente por meio de cânones da cultura europeia, que levaria a negar a existência de culturas, línguas e sistemas de valores exóticos. Leiamos Cristóvão Colombo segundo Todorov: “Colombo não conhece a diversidade das línguas, por isso, quando se vê diante de uma língua estrangeira, só há dois comportamentos possíveis e complementares: reconhecer que é uma língua, e recusar-se a aceitar 27 28 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 25-39 que seja diferente, ou então reconhecer a diferença e recusar-se a admitir que seja uma língua. É esta última reação que lhe suscitam os indígenas que encontra, no início, em 12 de outubro 1492. Vendo-os, com os olhos brilhando de estupefação diante desses seres ‘que andam nus, exceto por algum trapo negro que eles colocam diante de suas vergonhas’ e meio ao inopinado contato com um universo portador de características sociológicas, culturais e econômicas diferentes, Colombo escreve ao monarca ibérico: ‘Se Deus assim o quiser, no momento da partida, levarei seis deles a Vossa Alteza, para que aprendam a falar’ (TODOROV, 1982, p.30). Cinco séculos após este encontro, singular na história da humanidade, entre dois universos que se ignoram e que se descobrem sob o signo da surpresa, temor e fascinação mútua, o presidente estadunidense George W. Bush define a política norte americana de combate contra o terrorismo internacional como “a luta da civilização contra a barbárie”. A antinomia civilização e barbárie conhece uma dinâmica singular tanto no contexto literário quanto no âmbito da ciências sociais e dos textos historiográficos, ganhando diferentes dimensões semânticas e variadas aplicações eufemísticas. Essa polarização irá varar os séculos alimentando discursos e cevando análises direcionadas tanto ao estranho interior quanto ao outro exterior ao mundo americano. 2 - O evolucionismo a serviço da civilização No imaginário, o bárbaro vem a ser o outro implicitamente inferior, segundo o sistema de valores técnicos, morais e espirituais estabelecidos pelos que se situam fora do universos dos “outros”. O primeiro olhar ibérico lançado sobre as terras virgens americanas brilha de estupefação, guiado pelo encontro de dois universos que se ignoram e que se descobrem sob o signo da surpresa, temor e fascinação mútua. Investida de um sentimento de superioridade cultural e imbuída de uma missão divina, a imagem do homem ocidental é erigida como modelo absoluto a partir do qual se mede o grau de humanidade. A Controvérsia de Valladolid, em 1550, opunha os que acreditavam que os indígenas americanos eram dotados de uma alma, portanto humanos e integrantes da civilização, aos que, ao contrário, entendiam que esses “seres primitivos” apresentam características de incivilidade, mergulhados num estado bárbaro de desenvolvimento (CARRIERE, 1993). A dissimetria estrutural das relações euro-americanas engendra uma verdadeira crise cultural, ao mesmo tempo em que favorece o desenvolvimento de uma idealização mítica recíproca. Mas o uso perverso da antítese civilização e barbárie atinge seu ponto culminante no período escravagista. A superioridade técnica e científica do colonizador justifica e legitima a disseminação de um poder dominador e absoluto. A missão civilizadora que este se atribui, ou que Pensar a Identidade latino-americana entre civilização e barbárie lhe é atribuída pela Providência, entende retirar da barbárie os “infelizes nativos, meio demônios, meio crianças”, nas palavras de Rudyard Kipling (KIPLING, 1899). A doutrina evolucionista é a expressão teórica dessa convicção. Difundida na Europa na segunda metade do século XIX, ela penetra a América, inicialmente, pelos Estados Unidos para se acomodar em graus diversos no conjunto do pensamento latino-americano. Evolucionismo, Positivismo e Iluminismo formam um coquetel teórico que irá irrigar mentes e inspirar políticas sociais e econômicas americanas, respaldadas no postulado do progresso portador de civilização. Edward Tylor, célebre teórico do evolucionismo antropológico, entende que a escala evolutiva da humanidade se inicia no estado selvagem, passando por fases intermediárias até chegar ao estado civilizado personificado na figura do homem europeu, cabendo a este último a pesada tarefa de guiar esses povos imersos no atraso material e na superstição, na longa jornada em direção à civilização (TYLOR, 1876). O evolucionismo parte da ideia de que o “simples”, característica da sociedades primitivas evolui naturalmente rumo ao “complexo”, representado pelas sociedades ocidentais. Essa teoria busca, então, estabelecer as leis que guiariam o progresso das civilizações. O evolucionismo dá à elite europeia argumentos teóricos de conscientização quanto a sua soberba técnica e científica na expansão do capitalismo. Essa doutrina legitima, igualmente, a posição hegemônica ocupada pelo mundo ocidental. A pretensa superioridade da civilização europeia seria, então, o corolário das leis naturais que orientariam a história dos povos. Esta visão cíclica de evolução impregna os trabalhos de inúmeros pensadores em ciências humanas durante o século XX. Este coquetel teórico inspira movimentos nacionalistas. É assim em diversas partes do continente americano; é assim no Brasil, onde o evolucionismo aliado ao positivismo de Augusto Comte inspirou, na virada do século XIX, uma elite ilustrada que busca construir uma identidade nacional a partir da definição do “homo brasilianus”. Ora, a importação de uma tal teoria coloca a intelligentsia brasileira num impasse pois, como sugere Renato Ortiz (ORTIZ, 1985, pp. 14-15), a aceitação dos preceitos evolucionistas supõe analisar a evolução da sociedade brasileira à luz das interpretações de uma história natural da humanidade. Ora, isso significa que seria necessário, em primeiro lugar, considerar a civilização brasileira em um nível de desenvolvimento inferior ao dos países europeus. Mas como explicar o presumido atraso, evocando ao mesmo tempo as possibilidades do Brasil constituir-se enquanto povo e mesmo como nação? O dilema consiste em elucidar a questão do décalage existente entre teoria e realidade, decifrar o visível distanciamento entre uma nação idealizada segundo os cânones europeus e a realidade étnica e cultural multiforme e colorida que se insinuava diante dos olhos desta mesma nação. Como interpretar, doravante, esse país? Qual identidade lhe conferir? Tais eram os dilemas diante dos quais se encon- 29 30 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 25-39 travam, naquele momento, os construtores da nação. O evolucionismo vem, então, fornecer a intelligentsia brasileira: a abordagem conceitual necessária ao tratamento dessa problemática. Contudo, à medida que a realidade social brasileira adquire novos contornos e entra numa dinâmica de diferenciação crescente com a realidade europeia, o hiato entre teoria e sociedade real pode ser apreendido somente se combinado a outros conceitos. Se o evolucionismo deveria permitir uma compreensão mais geral das sociedades humanas, é necessário, porém, agora, completá-lo com argumentos que levem em conta as especificidades sociais. O pensamento brasileiro irá, pois, sustentar-se em torno da noção de “raça”. O parâmetro “raça” constituirá o pilar epistemológico da elite intelectual brasileira. Esse conceito-chave deveria, necessariamente, se inscrever em toda tentativa de análise e de explicação da realidade nacional. Essa gramática de interpretação social eleva a “raça” branca ocidental a uma posição de superioridade na composição da nação brasileira. Pensar a formação de uma “sociedade civilizada” sob os trópicos, composta por negros, índios e mestiços, seria da ordem do irracional. O pensamento brasileiro vê-se, assim, fortemente influenciado por teses pseudocientíficas do tipo racial vindas da Europa que, aplicadas à realidade nacional, margi nalizam deliberadamente o componente africano na construção do “homo brasilianus”. Acredita-se que o futuro da nação passaria necessariamente pelo branqueamento da “raça”. A abolição da escravidão em 1888 e o advento da República um ano depois estimularão grandes discussões em torno da problemática racial e da necessidade de pensar a identidade nacional. Além do sucesso das teorias do francês Conde de Gobineau (Essais sur les inégalités des races humaines –1853-1855) e do suíço Louis Agassiz (Journey in Brazil –1868), as ideias de Le Play ou de Gustave le Bon, pretendendo que “as raças misturadas” eram inferiores às “raças puras” ganham uma adesão considerável. Em L’Arien et son rôle social (1899), George Vacher de la Pouge define o Brasil como um “enorme Estado em vias ao retorno à barbárie” devido à mistura étnica. A intelectualidade brasileira, impregnada dessas teorias, não pensa de maneira. Leiamos este trecho publicado no Jornal de Noticias de Salvador durante o carnaval de 1903: O carnaval deste ano, a despeito da demanda patriótica e civilizadora que eu tinha formulado, traduziuse mais uma vez, salvo raras exceções, pela exibição pública do candomblé. Se por ventura um estrangeiro viesse a julgar a Bahia através de seu carnaval, ele não poderia deixar de colocá-la ao lado da África. Para nossa vergonha, encontra-se, neste momento, entre nós uma comissão de intelectuais austríacos que, com sua pluma acirrada, certamente não deixarão de registrar esses fatos em suas impressões de viagem e de divulgálos nos jornais cultos da Europa (NINA RODRIGUES, 1932, p. 257). Oliveira Viana, discípulo de Le Play e adepto da “teoria do branqueamento”, Pensar a Identidade latino-americana entre civilização e barbárie entende que a mistura das “raças” explica a decadência portuguesa. Segundo ele, a salvação da “raça brasileira” vem necessariamente da miscigenação com os europeus: “Esse admirável movimento migratório não permite somente fazer aumentar rapidamente em nosso país o coeficiente da massa ariana pura, mas também, ao se misturar cada vez mais com a população mestiça, ele contribui para elevar rapidamente a composição ariana de nosso sangue” (SKIDMORE, 1976, p.318). A imigração branca vinda do velho continente após a abolição da escravidão é bastante encorajada, por um lado, para responder à necessidade de mão de obra nas plantações de café (principal produto de exportação) e, por outro lado, servindo como instrumento de civilização: esses imigrantes eram susceptíveis de contribuir para a “puri ficação” do sangue brasileiro1. O objetivo era desenvolver uma nação moderna e civilizada sob os trópicos, evacuando, assim, sua porção barbárica. Para a elite ilustrada brasileira, a teoria evolucionista/positivista apresen tava uma real sedução, pois justificava plenamente que o poder estivesse concentrado em suas mãos. As camadas “inferiores” e “bárbaras” ou “semibárbaras” deviam, assim, ser forçosamente tuteladas pelas camadas hegemônicas europeizadas. Entretanto, é com Casa Grande e Senzala (1932) que Gilberto Freyre romperá com este pensamento, colocando em destaque o valor positivo da miscigenação entre negro, índio e branco e propondo, assim, uma nova abordagem identitária através da incorporação do “bárbaro” à nação. A família brasileira colonial, núcleo da sociedade seria, segundo Freyre, o resultado da fusão das três raças fundadoras, entre as quais não é estabelecida nenhuma hierarquia de mérito. Freyre tenta romper com as ideologias racistas e coloca a miscigenação como elemento chave da conquista dos trópicos. A ideologia da mestiçagem, ambiguidade até então prisioneira das teorias racistas, pode ser difundida socialmente, uma vez reelaborada, para ganhar um sentido comum no cotidiano ou nos grandes eventos como o carnaval e o futebol. O conceito de “raça” substitui-se aqui pelo conceito de “cultura”, observa R. Ortiz (1985). Casa Grande e Senzala, obra que se tornou praticamente uma institui ção nacional, vai estimular uma forma de coesão nacional e dissipar, de certa maneira, as dificuldades e as ambiguidades para os brasileiros se definirem como indivíduos nacionais. Mesmo que talvez tenha, demasiadamente, insistido nos aspectos integradores da sociedade colonial e, insuficientemente, destacado sua natureza violenta e conflitante, Freyre “teria oferecido ao Brasil uma carteira de identidade”, escreve ainda R. Ortiz (id, p. 43) 3 - Uma utilização flutuante do conceito civilização/barbárie Assim, na esteira do evolucionismo, a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX foram dominadas, sob várias formas e apresentações, pela temática do desenvolvimento. A ideologia do progresso passa a ser uma das categorias fundamentais do pensamento das classes médias latino-americanas que buscam estar no 31 32 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 25-39 diapasão com as classes dominantes da Europa e, por conseguinte, em fase com o modelo civilizacional proposto por esses setores. Centro e periferia tendo como desdobramento implícito a polarização entre civilização e barbárie são a tônica desta fase histórica pelo qual passa o continente latino-americano. Desde as rupturas independentistas dos diversos países da região com a metrópole ibérica, a tônica do progresso se inscreve na base de todos os projetos de construção de identidades nacionais. A “religião da humanidade” de Augusto Comte acaba por intervir no esforço de secularização da história providencial colonizadora e impor um racionalismo universal. A hora é de construir as nacionalidades calcadas grosso modo em dois principais projetos que se opunham: conservador e liberal. O primeiro, ligado notadamente à posse da terra e avesso à ideia de progresso, é partidário de um poder centralizado e forte, suscetível de perenizar privi légios; o segundo, internacionalista e constitucional, entende que o nacional deveria necessariamente passar por riscos econômicos e pela adoção de uma estética exógena. Liberais e conservadores representam a oposição entre latifundiários e empresários, campo e cidade, Europa e América, refinamento e rudeza, civilização e barbárie. Essa bipolaridade explicativa pode ser observada nos escritos do argentino Domingo F. Sarmiento. Em Facundo (1845), Sarmiento, envolvido na definição da argentinidade, formula um projeto de construção nacional inspirado no mito liberal. Em oposição ao segmento oligárquico, Sarmiento fustiga a mestiçagem étnica como elemento fundador da “personalidade argentina” e acredita que somente os imigrantes vindos da Europa poderiam implantar o progresso em terras pampeanas. Dos mestiços, viriam as vicissitudes que atravancariam o projeto civilizador inspirado no mito positivista: ociosidade, incapacidade industrial, barbárie. É a aspiração de uma Argentina branca que se encontra no projeto sarmientista. Designando o índio e as oligarquias rurais como principais agentes da barbárie, Sarmiento erige a urbanização como signo de civilização: a cidade representa o suprassumo da modernidade, ao passo que o mundo rural não passa de um reduto barbárico. No sub-título de Facundo, Civilização e Barbárie, Sarmiento encena uma dialética definidora da prática política e cultural que se manifesta no conjunto da América Latina. Para ele, civilização seria o verniz de refinamento, as ideias progressistas e libertárias e conceitos estéticos vindos da Europa. Barbárie, ao contrário, traduziria a natureza do Pampa indomável e rude, a crueldade e a arrogância dos caudilhos, tiranos incultos submetidos a uma vida primitiva. Facundo foi o deflagrador de um discurso dialético que anima, emblematicamente, sob o signo da civilização versus barbárie, uma literatura novelística e ensaística do continente latino-americano. Assim, será na própria Argentina com Juan Bautista Alberdi em Bases e puntos de partida para la organización política de la República Argentina (1852) e Florentino Ameghino em Filogenia (1884), na Colômbia com Eugenio Díaz Pensar a Identidade latino-americana entre civilização e barbárie Castro em Manuela (1889) e Nataniel Aguirre em Juan de la Rosa (1885), na Venezuela e Chile com Andrés Bello ou ainda no México com Justo Sierra. Entretanto, no crepúsculo do sé culo XIX, observa-se uma tentativa de desmistificar a matriz discursiva europeia. Ao adotar uma nova postura estética e intelectual, o cubano José Martí (1853-1895), buscando superar a representação eurocentrista do sujeito americano pautada nesta polarização, propõe uma sociedade alternativa condensada na ideia-título do ensaio Nuestra América (1891). Na contramão da retórica modernizadora da época, o discurso martiano repousa no projeto de uma modernidade própria, de bases autóctones, capaz de definir o ser “nuestroamericano” a quem Martí buscará mediar e representar através de uma ação discursiva utópica. Obedecendo a esta dinâmica, o início do século XX apresenta o que se poderia chamar de “revanche da barbárie”. Sofrendo um processo de ressemantização, a categoria barbárie conhece uma notável evolução, ao ponto de produzir uma verdadeira inversão do binômio civilização e barbárie. Uma corrente tingida de um telurismo reivindicatório das raízes do gaúcho pampeano ganha força na virada do século, indo constituir-se, principalmente, nas terras platinas, em um grande movimento nacionalista. José Hernández em Martín Ferro (1872), é o principal deflagrador deste movimento. Contrariamente a Alberdi, que acredita que somente o aporte de uma imigração europeia seria capaz de civilizar e atenuar a rudeza do argentino, Hernández vê como uma nova barbárie a implantação planificada de sujeitos vindos da europa. N. Oroño, célebre jornalista, versando sobre projetos educativos, escreve na época: “El país necesita montar tres sistemas de enseñanza, enteramente especializados y diferentes entre sí: el primero para los argentinos que hacen la vida civilizada. El segundo para los bárbaros del desierto que se quiere atraer a la civilización democrática del país. El tercero para los bárbaros que importamos de Europa por medio de la inmigración”(1873). Percebe-se aqui uma inversão valorativa e um deslocamento de senti do da categoria barbárie, sendo assim contestada a cultura europeia como portadora de civilização. Os traços culturais locais serão valorizados como geradores da nacionalidade com a qual se identificará o novo argentino. A barbárie exaltada por Hernández em Martin Ferro é uma barbárie dotada de positividade, reparadora e libertadora, associada necessariamente ao universo rural e às lides do campo, uma barbárie anterior à consolidação da grande propriedade, que reivindica os valores “rotos”, “cholos”, “gaúchos”. Hernández se coloca em oposição a Sarmiento, no que diz respeito a defesa dos valores do homem americano, invertendo a oposição campo/cidade. Martin Ferro é vítima da injustiça social, da desordem governamental e da total desilusão face as promessas frustradas do “projeto civilizador”. Por outro lado, Julio Cortázar em Casa tomada (1949) e Jorge Luis Borges em A casa de Asterión (1949) irão registrar a preocupação da classe 33 34 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 25-39 média argentina no que diz respeito à imigração interna, caracterizada pela irrupção massiva de pobres no espaço urbano, estimulada pela ascensão do perononismo nos meados do século, valendo-se, igualmente, da oposição entre bárbaros e civilizados. No contexto brasileiro, o romantismo alencarino vai, metaforicamente, se valer, a sua maneira, dessa polarização. Mitificando o indígena em torno de uma aura “civilizada”, José de Alencar tenta em obras como O guarani (1857) ou Ubirajara (1874), esvaziar o sujeito autóctone da sua essência cultural. Nesses textos, a bipolaridade tende a ser neutralizada por meio de uma dinâmica emasculatória de integração do bárbaro à civilização redentora. A figura idealizada do “bom selvagem” será a fonte inspiradora para moldar os personagens em O Sertanejo(1875) e o Gaúcho (1870). Em outros textos do período, como O Índio Afonso (1873) de Bernardo Guimarães ou O Cabeleira (1876) de Franklin Távora, as categorias civilização e barbárie são igualmente operadas ainda que de forma menos implícita, dando um maior relevo à dialética discursiva. Euclides da Cunha, ao se apropriar do drama de Canudos irá, em Os Sertões (1902), prolongar o discurso de continuidade e apoiar o debate avivado por Sarmiento em Facundo. Os dois autores, apontando para uma mesma direção, irão dar relevância ao contraste entre campo e cidade, o alheio e o próprio, o desconhecido e o conhecido, americano e o europeu, o litoral e o interior, o bárbaro e o civilizado, numa visão dualista da sociedade que esboça uma teoria implícita das duas Argentinas e dos dois Brasis. Os Dois Brasis (1959) será, por outro lado, o título de um célebre ensaio escrito por Jacques Lamber em que o mesmo insiste na coexistência, na sociedade brasileira, de estruturas arcaicas e modernas. Segundo Lamber um “Brasil velho”, impregnado ainda de práticas oriundas da sociedade escravocrata conviveria e penetraria um “Brasil novo”, marcado pela emergência de uma cultura modernizadora. Valendo-se, igualmente, de uma linguagem metafórica para caracterizar a polarização entre civilização e barbárie, Edmar Bacha irá, através do que ele chamaria de “belíndia” (1974), cunhar uma expressão para significar que o modelo de desenvolvimento brasileiro se inscreveria num processo amalgâmico, no qual alguns setores da sociedade poderiam ser comparados à riqueza da pequena Bélgica, enquanto que outros se aproximariam da pobreza da grande Índia. Euclides da Cunha, apontando para a realidade sertaneja do latifúndio, da servidão, do isolamento cultural, da dureza do meio irá, assim, diagnosticar dois brasis contraditórios, vivendo de costas um para o outro. Canudos é o resultado do confronto entre o Brasil do litoral e o Brasil do Sertão, realidades distintas entre si no espaço e no tempo. Um, encarnando a República, o progresso, o modo de vida urbano, a expansão secular da civilização; o outro, personificando o atraso, as trevas da superstição, o fanatismo religioso, o obscurantismo, o inimigo mortal dos valores da civilização ocidental. Antonio Conselheiro aparece, assim, aos olhos Pensar a Identidade latino-americana entre civilização e barbárie das elites urbanas, como a própria encarnação do mal e da barbárie. A lógica oposicional que norteará os ideais republicanos de progresso e modernidade, apoiados num tropismo europeu, apontará para a incompreensão e, consequentemente, para a destruição do estranho, do “outro” que desnorteia. Esse abscesso oportunista deveria ser extirpado do corpus sanus representado pela civilização. Ao se defrontar com os requintes de crueldade por meio dos quais o exército republicano irá dizimar Canudos, Euclides da Cunha descreve, nas entrelinhas, a irracionalidade da “civilização”, em sua guerra contra a “barbárie”, deslocando assim a “legitimidade” e “univocidade” da categoria civilização, “verdadeira inversão de papéis (…) uma antinomia vergonhosa” (CUNHA, 1902, p.292). Para proteger a civilização contra a barbárie, lançar-se-á mão de métodos atribuídos ao próprio universo tido como barbárico, significando o caráter móvel e reversível da bipolaridade civilização e barbárie segundo o locus de onde parte o olhar. O Sertão é evocado desde os tempos dos primeiros contatos. Nos antigos mapas portugueses, Sertão, aumentativo de deserto, é o nome dado às terras desconhecidas presumidamente habita das por prodígios estranhos e ameaçadores. Espaço geográfico de fronteiras mal definidas, estagnado num estágio arcaico de desenvolvimento, metáfora do irracional, o Sertão é uma das regiões brasileiras onde a polaridade civilização e barbárie encontrará, ao longo do tempo, um campo privilegiado de múltiplas representações tanto no universo literário quanto no contexto artístico, etnográfico ou folclórico. Considerado como o descobridor do Sertão, Euclides da Cunha faz dessa região objeto de um vivo interesse, abrindo assim uma via privilegiada para a leitura do Brasil. Na esteira de Os Sertões, vieram textos como Vidas secas (1938) de Graciliano Ramos, Pedra Bonita (1937) e Cangaceiros (1953) de José Lins do Rego, Grande sertão: veredas (1956) de Guimarães Rosa, em que se insinua, de forma sugerida ou de maneira explícita, a antinomia civilização e barbárie. A filmografia irá igualmente impregnarse da temática nordestina e operará com esta polarização por meio da obra de Glauber Rocha (Deus e o Diabo na Terra do Sol,1963), de Ruy Guerra (Os fuzis, 1964) ou ainda Nelson Pereira dos Santos (Vidas secas, 1963) no período do cinema novo. Os nordestinos Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia e Caetano Veloso irão, na turnê Doces Bárbaros, subverter, no âmbito musical, a carga dramática e atenuar a tensão da terminologia, numa postura libertária de viés ao pensamento conservador dos anos bicudos de ditadura militar (19641985). Em Breviário das terras do Brasil (1997) e O pintor de retratos (2001), Luiz Antonio de Assis Brasil, valendose da questão de como os modelos culturais europeus introduzidos no Brasil são recebidos, subvertidos e transculturados no âmbito principalmente da cultura gaúcha irá, como toile de fond, igualmente lidar com a temática civilização versus barbárie. 35 36 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 25-39 4 - O esmorecimento do mito civilizador O século XX vai oferecer novas vias para se pensar essa relação, pautada na inversão e/ou reformulação das categorias utilizadas pela retórica modernizadora. Visando superar as perspectivas eurocentristas de representação do ethos e da sociedade americana, a hora é de buscar fórmulas que levariam a uma modernidade própria, de bases autóctones, por meio de uma ação discursiva de valorização da “nuestra América” em ruptura com a mère patrie europeia. Sobretudo, a partir de meados do século XX, surge uma nova abordagem do conceito de civilização: ela não será mais apreendida no sentido de refinamento, exemplaridade normativa, paradigma a ser tomado como modelo. Virá a ser, muito mais, uma positividade empírica do que uma esfera de valores ideais, despojando-se assim de seu caráter universal e singular para ser conjugada na sua dimensão plural. É na esteira dessa focalização que A. Toynbee (entre 1934 e 1955) versara na análise das civilizações que se sucederam na história da humanidade e que O. Spengler (1920) alertara para o declínio inexorável da civilização ocidental (TOYNBEE, 1978; SPENGLER, 1959). A ideologia do progresso portador de civilização é seriamente questionada e a suposta superioridade do Ocidente contestada, com ao advento dos dois grandes embates belicistas do século XX. A carnificina irracional da primeira guerra e, posteriormente, o genocídio planificado do segundo conflito mundial reforçam, consideravelmente, o debate sobre o próprio significado de civilização e aguçam a dificuldade em definir-se objetivamente o campo da barbárie. Ezequiel Martinez Estrada, em Radiografia de la Pampa (1933), afirmaria que civilização e barbárie são categorias interpenetráveis, cujas as diferenças respectivas são dificilmente detectáveis. O desencantamento em relação ao mito do progresso se verá, igualmente, na obra do peruano José Carlos Mariátegui. Em Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana (1928), o ensaísta desenvolve a noção de uma América indo-espanhola, cuja a identidade será centrada no índio e no negro, relativizando, assim, o aporte progresso/civilização devido a sua conotação eurocentrista. O nazismo e o fascismo contribuíram de forma determinante para o esmorecimento do mito civilizador. Essas filosofias, elaboradas e colocadas em prática no próprio seio do que era tido como o modelo civilizacional por excelência, mostram que os horrores da barbárie eram o próprio resultado da lógica do progresso. A capacidade de autodestruição da própria civilização mostra-se patente! Na Escola de Frankfurt, Adorno e Horkheimer afirmariam que aqueles horrores cometidos não eram simplesmente acidentes na história da civilização ocidental, mas faziam parte de um processo iniciado com a lógica racionalista do Iluminismo. Esta filosofia teria nutrido o colonialismo moderno, principalmente francês e inglês: o Iluminismo teria se dado como missão civilizar os selvagens (ADORNO, T. e HORKHEIMER, M., 1985). Pensar a Identidade latino-americana entre civilização e barbárie A crise do conceito de civilização toma, igualmente, lugar nas ciências sociais onde, principalmente Claude Lévi-Strauss e Michel Leiris, separando a noção de civilização de sua sinonímia com o Ocidente, suprimem a diferença entre civilização e cultura e invalidam a ideia de hierarquia que, até então, acompanhava, irremediavelmente, a noção de civilização. O descrédito dessa noção parece irreversível no pensamento europeu, ao ponto de ser evocado pontualmente de forma pejorativa para designar o mundo ocidental como o fez Georges Balandier em Civilisés, dit-on! (BALANDIER, 2003). Nas décadas de 1960 et 1970, a América Latina é varada pela filosofia marxista e assiste à implantação de sistemas políticos autoritários que, em muitos casos, foram impostos pelo o que se passou a chamar de “imperialismo ocidental”. Posteriormente, com a desintegração do bloco soviético, esses três elementos constituirão ingredientes fundamentais para reforçar o descrédito que se abateu sobre a ideia de progresso gerador de civilização e atenuar de maneira considerável a polaridade civilização e barbárie. O conceito de civilização se vê, assim, privado de seu conteúdo normativo e esvaziado de seu elã polêmico. A dicotomia civilização e barbárie seguirá um caminho de depuração de seu ranço etnocêntrico, ao ponto de ser considerada como definitivamente sepultada nos porões da história. Entretanto, os atentados occorridos nos Estados Unidos da América em 11 de setembro de 2001 reestruturarão, de forma abrupta, a arquitetura geopolítica do mundo na qual a polarização civilização e barbárie parece ter se avivado por um tempo indeterminado com consequências imprevisíveis. Formulações como “nós e eles”, “mundo civilizado” e o “terrorismo selvagem”, “ocidente” e “islã” traduzem uma representação maniqueísta do mundo e a reinstalação de dois paradigmas discursivos: o da “civilização” associado aos valores positivos do bem, da liberdade, da democracia, dos direitos humanos e o da “barbárie”, veiculador de valores negativos do mal, da servidão, da opressão, do integralismo religioso. Essa representação, que encontrou eco não somente nos Estados Unidos, esforça-se por legitimar a missão redentora da nação americana, guardiã dos valores éticos e morais, braço secular do mundo livre e civilizado. As teses de Samuel Huntington sobre o choque de civilizações em The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order (1996) fornecerão uma leitura geopolítica do mundo compatível com este novo soluço da história. NOTA (1) No total, até 1940, mais de 4 milhões de imigrantes provenientes da Europa instalaram-se no Brasil, dos quais 1,3 milhões apenas entre os anos 1888-1898 e 1 milhão entre 1900 e 1915. Ver a esse respeito L. L. OLIVEIRA, O Brasil dos imigrantes, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001. 37 38 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 25-39 Referências ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. A Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. AFFERGAN, F. Exotisme et altérité. Paris: PUF, 1987. AGASSIZ, L. Journey in Brazil. Boston: Tuckner and Fields, 1868. ALBERDI, J. B. Bases e puntos de partida para la organización política de la República Argentina (1852). Disponível em:http://www.iphi.org.br/ sites/filosofia_brasil/Juan_Bautista _ A l b e rd i _ _ B a s e s _ y _ pu nt o s _ d e _ partida_para_la_organizaci%F3n_ pol%EDtica_de_la_Rep%FAblica_ Argentina.pdf. Acesso em 28/11/2012. ALENCAR, J. O Guarani. Rio de Janeiro, 1857. ___________. 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Foi a partir do Salgueiro que a temática negra conquistou espaço, inserindo nos desfiles uma proposta engajada. A partir do sucesso da escola, os desfiles se tornaram grandes espetáculos, emissores de um novo olhar sobre a história do Brasil. Palavras-chave: escolas de samba; cultura afro-brasileira; engajamento político; revolução estética. Abstract: Through the decade of 1960, Samba schools became leading components of the carnival period. Apparently detached from social and political affairs, the groups were treated as leisure forms or folkloric elements. The themes that were displayed seemed like chapters from the Brazilian Official History, glorifying its “national heroes”. Presenting black and brown characters, GRES Acadêmicos do Salgueiro, a samba school from Tijuca neighborhood, in the North of Rio de Janeiro, brought a new set of representations to the narrative of the parades, exalting African origin and the debate about the role played by black people in the Guilherme José Motta Faria, Doutorando em História (UFF), Mestre em História (UERJ). Professor, Coordenador do Curso de Graduação em História na Universidade Veiga de Almeida (campus Cabo Frio). * OS ACADÊMICOS DO SALGUEIRO: UMA ACADEMIA DE SAMBA NO BAIRRO DA TIJUCA foundation of the Brazilian culture. Through Salgueiro, the afro-Brazilian theme conquered space, inserting a consciously political proposal in the parades. Since the school’s success, carnival parades became big spectacles, transmitting a different point of view over the history of Brazil. Keywords: samba schools; afro-Brazilian culture, political engagement; aesthetic revolution. Introdução: Arte e Política na Academia do samba Os desfiles das Escolas de Samba foram se tornando, ao longo da segunda metade do século passado, espetáculos grandiosos, que despertavam o interesse de boa parte da população brasileira. Fatos curiosos, personagens e histórias embasavam cada enredo, possibilitando “passar em revista” os acontecimentos relevantes da vida política, social e artística como marcas identitárias da cultura brasileira. A trajetória das escolas de samba pode ser trabalhada em conexão com a história, pois seus enredos partem de narrativas históricas e as fontes de pesquisa, levantadas a partir da produção historiográfica sobre o assunto, garantiam o diálogo com a disciplina, como referencial da produção plástica das escolas. Ao mesmo tempo, as letras, a si nopse dos enredos, a materialização das idéias em alegorias e fantasias se tornam, a partir de sua publicização, discursos, elementos de cultura material que merecem ser metodologicamente analisados. A década de 1960 foi um momento riquíssimo de acontecimentos e debates, sobretudo por conta de um ambiente cultural extremamente revitalizado. Assim sendo, é um desafio intelectual repassar as diversas abordagens historiográficas sobre o período em nosso país. Foi um momento intenso da vida política brasileira, em que, nos mais diversos segmentos culturais, os artistas eram convidados a dar suas contribuições estéticas e ideológicas na formação sociopolítica do povo brasileiro, externalizando anseios e problematizações. Mediados pela inter-relação de um Estado em transformação radical, desde os ventos finais do desenvolvimentismo do presidente Juscelino Kubistechk (1955-1960); da euforia e decepção do fenômeno Jânio Quadros (1960); das incertezas políticas do Governo de João Goulart (1960-1964); até o desfecho do Golpe militar (1964-1985), com seus generais-presidente, os anos 60 encarnaram, de maneira profunda, a busca por uma nova forma de fazer política, mantendo com o campo da cultura um diálogo fecundo. Dessa forma, durante o período, ocorreu extensa produção de bens culturais, que, com o imbricamento das questões políticas gerou vários desdobramentos nas nossas práticas culturais, ora de contestação, ora de enaltecimento de ideologias que se contrapunham no cotidiano. Era preciso ter opinião. As artes, de maneira geral, abriram caminhos para essas manifestações e para a 41 42 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 40-56 formação constante de quadros políticos. A trajetória dos GRES Acadêmicos do Salgueiro está completamente ligada ao fenômeno das transformações estéticas e ideológicas no campo cultural. Segundo memorialistas e pesquisado res1, a escola, fazendo suas escolhas, se mostrou uma escola de samba “engajada”. Revolucionou os conceitos carnavalescos e, a partir de sua abordagem criativa nos enredos apresentados, abriu um novo campo de discussões acerca da História brasileira, estimulando uma postura crítica, principalmente em relação a sua “oficialização”. Essas práticas culturais, discutindo a questão racial, a valorização da ascendência africana e as reivindicações feministas — ressaltando mulheres mar cantes e, até aquele, momento pouco conhecidas na nossa cultura — foram registradas pelos estudiosos do carnaval como “ações pioneiras”. Por meio de sambas, fantasias e alegorias, apresentados em desfiles marcantes, amplamente registrados pela imprensa carioca, ajudaram a construir essa versão poderosa sobre a escola e o seu legado. Embalados no lema “Nem melhor nem pior, apenas uma escola diferen te2”, a escola do bairro da Tijuca trilhou um caminho diferencial, buscando pro blematizar as discussões de gênero, classe e cor, permitindo que outras vozes, até então abafadas no processo de repetição de uma História Oficial positivista, pudessem ser visibilizados. Sua conduta abriu espaço para que novos temas fossem apresentados, constituindo marcas incorporadas ao campo cultural e ao cotidiano das demais escolas de samba. No contexto cultural dos anos 60, o ambiente do carnaval carioca refletia também a circularidade cultural3, em que se buscava representar, na avenida, os novos símbolos de luta pela igualdade de direitos, ações afirmativas e reivindicações sociais. O Salgueiro, sujeito de seu tempo, com sua proposta temática, ajudou a iluminar as questões sociais de um grupo que se tornava heterogêneo, mas mantinha sua base comunitária formada em maioria por homens e mulheres, negros e mulatos. Questionando, a partir dos exemplos de Chica da Silva, Aleijadinho, Chico Rei, Zumbi dos Palmares, entre outros homenageados, refletia também a própria luta por parte dos sambistas pela garantia de sua ascensão social e sua ação, demarcando seu espaço, como cidadãos na sociedade brasileira. De fato, as narrativas dos memorialistas e pesquisadores, assim como as entrevistas dos membros da Velha Guarda e carnavalescos da escola4 ajudaram a “cristalizar verdades”, eclipsando vários personagens e outras agremiações que também dialogavam com essa estética. Não creio que a questão do pioneirismo, tantas vezes apontado pelos pesquisadores, seja exclusividade do Salgueiro. O processo histórico nos permite perceber que os fenômenos não nascem isolados e sim como momentos em que as ideias e práticas estão “circulando”. Com efeito, o Salgueiro pode não ter sido tão “pioneiro”5 como nos faz crer a bibliografia, mas, sem sombra de dúvidas, o grupo de artistas (eruditos e populares)6 que a agremiação reuniu em seu entorno, permitiu, na década de 1960, OS ACADÊMICOS DO SALGUEIRO: UMA ACADEMIA DE SAMBA NO BAIRRO DA TIJUCA que se consolidassem as representações da cultura afro-brasileira, legitimando a manifestação escola de samba como um potente emissor, originado a partir dessa herança cultural. 1 - Engajados X Alienados – A função da cultura nos anos 1960 A virada da década de 1950/60 foi um momento de extrema relevância para a cultura brasileira. As manifestações artísticas se revelaram eixos potenciais na difusão de ideias e valores, que circulavam pelo mundo, refletindo em e sendo apropriados pelos segmentos culturais brasileiros. O período foi vi vido em um ritmo intenso e de grande efervescência, tanto estética, quanto ideológica. Nas diversas áreas, artistas e intelectuais utilizavam suas obras como veículos para disseminação de ideais de justiça, liberdade, cidadania, transformando seus conteúdos em discursos políticos e sociais. Reverberados nos meios de comunicação de massa, em representações que amplificavam o vigor dessas discussões, trouxeram em seu bojo o olhar e a voz das ruas, das passeatas e das conversas dos bares. Com a certeza de que essas manifestações artísticas e culturais desempenhavam um papel fundamental na formação dos indivíduos críticos da sociedade, foram sendo levantadas algumas questões teóricas e práticas, consideradas relevantes nesse intenso movimento: Como realizar obras de arte engajadas politicamente? Como discutir as grandes questões nacionais e levá-las ao povo? Como fazer com que o teatro, a música, o cinema, as artes plásticas, a literatura se apropriassem dos anseios populares e refletissem, em obras de arte, a síntese desse desejo coletivo? Como transformar a realidade social e “tocar” corações e mentes de um povo alienado e terceiro mundista? A certeza que se parecia ter é que os artistas tinham uma missão, uma função social e parecia ser inadmissível não utilizar, como ferramentas, as diversas linguagens artísticas com o propósito de instruir politicamente o Povo. Essa tendência foi sintetizada na proposta da criação e produção dos CPCs da UNE7 que funcionaram como propulsores de obras de arte em que a mensagem política era mais importante do que a estética. O inverso seria considerado pecado capital, condenando o artista sem preocupações políticas a ser considerado um “alienado”. Se nos primeiros anos da década de 60, amparada por um forte apoio do Estado, prevaleceu essa idealização da função da arte, à medida que os anos iam se desenrolando os meios de comunicação de massas8 começavam a fazer a diferença. Dessa forma, outros discursos foram sendo absorvidos, contrapondo, de um lado, os tradicionalistas, “engajados” e, de outro lado, os modernos, conceituados de “alienados”. A grande tensão estava entre a obsessão do novo e a veneração às raízes da cultura brasileira. As disputas por esses legados invadiram todas as manifestações artísticas no período. Com isso, a grande discussão no campo da cultura foi sendo articulada nas funções da obra de arte e de sua utilização como instrumento político, como elemento crítico e reflexivo ou 43 44 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 40-56 como produto dessa sociedade de consumo. A questão estética parecia superada pelos dois grupos. Era necessário, na visão engajada, que o artista cumprisse a sua função social se comunicando com o público através dos sentimentos e da construção de uma consciência. Por outro lado, também, pelo viés do sentimento e do divertimento, esperava-se atrair esse público para consumir essa arte, comprando os discos, lendo os li vros, assistindo aos filmes, novelas e programas de TV. 2 - As escolas de samba do Rio de Janeiro: entre o engajamento e alienação O carnaval carioca já desfrutava, nos anos 60, de prestígio e posição de destaque nos festejos de Momo, em âmbito nacional. Mesmo com a transferência da capital da República para Brasília, a primazia da Festa no Rio de Janeiro não foi ofuscada. As escolas de Samba, por conta de uma cobertura cada vez maior nos meios de comunicação9 e por uma clara aproximação com as classes médias da cidade, haviam se tornado, as protagonistas do período carnavalesco. Aparentemente deslocadas das questões sociais e políticas, durante muito tempo, as escolas de samba foram tratadas como diversão para as massas ou como manifestação da cultura popular e folclórica, conforme alguns intelectuais10. O desfile das escolas de samba deverá marcar, neste carnaval do IV Centenário, o ponto culminante da festa no que ela tem de espetáculo, mas fixará, também, o instante histórico do início da sua rápida desagregação como fenômeno folclórico (TINHORÃO, 1965 apud COSTA, 1984). De fato, nas propostas de enredo e nos sambas, até a década de 60, as agremiações pareciam ser um espaço para repetição e manutenção da História Oficial. A escolha desses personagens e fatos, com uma narrativa consagrada pela historiografia, eternizada nos livros didáticos, tornavam as agremiações respeitadas pelo Estado e por suas comunidades de origem, pois o que elas apresentavam “estava escrito nos livros”, sendo, portanto, a pura “verdade”. Entretanto, as inquietações começavam a aflorar. Em 1953, a união de escolas de samba do Morro do Salgueiro11 fez surgir a GRES Acadêmicos do Salgueiro, escola que trouxe mudanças radicais nos desfiles, objeto central deste trabalho. Diferente do que a maior parte da historiografia sobre o tema propõe, a obrigatoriedade dos temas nacionais não foi uma imposição do DIP12, durante o Estado Novo, e sim uma prerrogativa das próprias agremiações, nos primeiros anos de desfiles nos anos 30. Esse fato ocorreu por conta do desejo de buscar uma diferenciação em relação aos Ranchos (AUGRAS, 1998), estrelas maiores da Festa Momesca no início do século XX, que utilizavam narrativas operísticas e da História Mundial como motivos de seus préstitos. Observando a relação de enredos das principais escolas de samba da cidade do Rio de Janeiro nos anos 1950, podemos ter um indício do que era apresentado nos desfiles. O tom ufanista e laudatório OS ACADÊMICOS DO SALGUEIRO: UMA ACADEMIA DE SAMBA NO BAIRRO DA TIJUCA encontrou nesse período seu momento de maior vigor. A Estação Primeira de Mangueira, por exemplo, levou para a avenida: Gonçalves Dias (52 e 58); Unidade Nacional e o Progresso da Nação (51,53 e 57); Getúlio Vargas (56); cantou o Plano Salte13(50); e o Rio Antigo (54). A GRES Portela apresentou Riquezas do Brasil (50 e 56); A Volta do Filho Pródigo (51) homenageando Getúlio Vargas; Brasil de Ontem, As seis datas magnas e Vultos e efemérides do Brasil (52, 53 e 58); os Legados de D.João VI (57); os 400 anos de São Paulo (54). O Império Serrano apresentou: Antônio Castro Alves (48); Exaltação à Tiradentes (49); Batalha Naval do Riachuelo (50); 61 Anos de República (51); Homenagem à Medicina, O Último Baile da Côrte Imperial e O Guarani (52, 53 e 54); Exaltação à Duque de Caxias (55); uma homenagem a Raposo Tavares em O Caçador de Esmeraldas (56); Exaltação à Dom João VI (57); e Exaltação à Bárbara Heliodora (58). A escola de samba Beija-Flor de Nilópolis, contemporânea de fundação do Salgueiro, não era uma das escolas de ponta naquele momento. Entretanto, também seguia o modelo clássico dos enredos: O Caçador de Esmeraldas (54); Páginas de Ouro da Nossa História (55); O Gaúcho(56); Riquezas Áureas do Brasil (57); Tomada de Monte Castelo(58). Desde a sua fundação14, o Salgueiro buscou ir um pouco além nas temáticas escolhidas. Ainda se apresentavam muito presas ao contexto geral das demais escolas, mas já era possível perceber a tentativa de uma novidade. Em Romaria à Bahia (54), a religiosidade, timidamente, se apresentava. Epopeia do Samba (55) homenageou Pedro Ernesto Batista15. Aproveitaram o samba para criar uma narrativa de união e protagonismo entre as comunidades formadoras do espetáculo: A epopéia do samba chegou/Foi em nossa antiga Praça Onze que os sambistas de fibra lutaram pra vencer/uniram Salgueiro, Mangueira, Portela, Favela, Estácio de Sá/ resol veram resistir até a vitória chegar 16. Brasil Fonte das Artes (56) ficou híbrida, entre a exaltação e novos dados para discussão: És Brasil fonte das artes/ cheio de riquezas mil/ e os nossos selvagens já se faziam notar/ depois veio a civilização/ as academias dando nova formação à filosofia rudimentar 17 . O Salgueiro, segundo o pesquisador Haroldo Costa (1984: 27), foi a primeira escola a fazer enredos que colocassem os negros em destaque e não na figuração. Navio Negreiro(57) foi esse primeiro marco de um desfile “engajado”. Outro dado importante é que, até então, as fantasias eram confeccionadas por membros da própria comunidade e, nesse ano, a parte plástica de algumas agremiações passou a ser executada por agentes culturais de outras manifestações18. Essa aproximação abriu espaço para que artistas com formação acadêmica passassem a participar da produção dos desfiles e, na década seguinte, esse processo se consolidou, na figura do “carnavalesco” 19. A ansiedade por uma vitória foi o motivo da tentativa dos dirigentes da escola em se encaixarem na tendência reinante. O enredo Exaltação aos Fuzi leiros Navais (58), de fato, era inusitado como tema, mas bastante tradicional, retratando a corporação militar. A es- 45 46 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 40-56 tratégia da escola consistia na incorporação de táticas consagradas pelas demais agremiações, na esperança de conquistar um título. No ano seguinte, com o enredo Viagens pitorescas do Brasil 20, uma homenagem ao pintor francês Jean Baptiste Debret21, a escola apresentou em seu desfile, quadros e aquarelas do pintor, de forma teatralizada. A vida cotidiana dos escravos pelas ruas do Rio de Janeiro era o tema principal de suas telas e o desfile, segundo memorialistas e acadêmicos22, se tornou “seminal” das novidades temáticas e estéticas que as escolas de samba passaram a protagonizar. Enquanto as demais escolas desfilavam seus temas rotineiros23, a escolha do Salgueiro pre nunciava um caráter diferente, pois, do acervo de Debret, as obras que se tornaram mais relevantes foram as aquarelas sobre a vida dos escravos. Dessa feita, a homenagem da agremiação seria ao segmento social de negros anônimos do século XIX24. As inovações, vistas com desconfiança pelas rivais, com o tempo passaram a ser apropriadas pela cultura das escolas de samba. Neste desfile foi apontado pelo memorialista Sergio Cabral outro “pioneirismo”. A escola aboliu o uso das cordas laterais que distanciavam o público de suas apresentações. Com essa ação, o Salgueiro ampliava o contato com os espectadores, aproximando o público de seu enredo. A primeira quizumba do Nelson foi comunicar ao Miécio Tati, Diretor de Certames, que o Salgueiro não desfilaria dentro da corda, como era determinado pelo regulamen- to, mesmo que isto lhe valesse a desclassificação. Até então, as escolas passavam confinadas dentro do espaço limitado por uma corda que ia se mantendo esticada graças a abnegados voluntários que terminavam o desfile com as mãos e a cintura em carne-viva. Nelson era de opinião que estava na hora de acabar com aquela coisa primitiva, já que o policiamento ostensivo se encarregava de manter a pista livre para as evoluções. Quando o Salgueiro surgiu na Avenida Rio Branco, sem corda, sem carros alegóricos, com os seus componentes cantando, sambando e trazendo na cabeça e nas mãos adereços que ondulavam no ritmo, foi uma surpresa. E o samba era gritado a plenos pulmões pela ala dos compositores (CABRAL, 1996, p.88) Na bibliografia sobre as escolas de samba25, ganhou grande destaque um encontro acontecido nesse ano, que se tornou fundamental para os novos rumos do espetáculo. Fazendo parte do júri, Fernando Pamplona26 ficou impressionado com o desfile do Salgueiro e, convidado por Nelson de Andrade, aceitou ser o “carnavalesco”, criando o enredo no ano seguinte. Com a parceria estabelecida, Pamplona, na visão dos memorialistas, se tornou a principal figura de um processo de transformação estética e ideológica dos desfiles. Levou para o Salgueiro um grupo de profissionais, companheiros de profissão da Escola Nacional de Belas Artes e do setor de cenografia do Teatro Municipal. Esse elenco de artistas plásticos, com formação erudita e desejo de tra- OS ACADÊMICOS DO SALGUEIRO: UMA ACADEMIA DE SAMBA NO BAIRRO DA TIJUCA balhar na órbita da cultura popular contribuiu para a redefinição do conceito de escola de samba27. A sequência de enredos desenvolvidos por esse grupo, com a temática negra e a revitalização da nossa história, por meio de encenações inovadoras, trouxe à tona personagens marginalizados ou totalmente desconhecidos pela ótica da história oficial, dos livros didáticos. Dessa forma, o universo das escolas de samba passava também a ser palco de propostas que revelavam um engajamento político e cultural. Refletia sobre seu passado e ressaltava, em seus enredos, personagens populares, homens e mulheres, negros, mulatos, pobres. O Salgueiro, com sua postura, inseria nos desfiles uma postura militante. 3 - Os Acadêmicos do Salgueiro: uma escola de samba “engajada” De fato, essa busca pela diferença foi uma das características fundamentais da escola de samba do bairro da Tijuca, sobretudo, quando ela se tornou a plataforma de lançamento de histórias pouco conhecidas pelo público em geral. Ressaltando personagens em sua maioria negros e mulatos, acrescentou à linguagem visual/discursiva dos desfiles toda uma gama de representações que exaltavam a origem africana desses personagens, assim como a ancestralidade que a própria festa carnavalesca representava. Dessa forma, o Salgueiro trouxe para o centro das discussões as temáticas etnográficas, raciais e o debate sobre a participação dos negros na formação sócio-cultural do Brasil. A sequência de desfiles entre 1959 e 1971 revelou esse fulgor de criatividade, de descobertas e de militância. Retrataram a cultura negra, com suas peculiaridades, suas mazelas e suas alegrias amplificadas nos sambas e nos desfiles realizados pela escola. Com efeito, as apresentações da agremiação deram grande visibilidade às questões de raça e gênero, discutidas em todo mundo e, segundo a bi bliografia especializada, foi a partir do Salgueiro que essas temáticas entraram no rol dos enredos possíveis, conforme comenta Walnice Nogueira Galvão: A idéia de Fernando Pamplona para o primeiro desfile que dirigiu, em 1960, foi a seu modo uma novidade: ele sugeriu o enredo “Quilombo dos Palmares”. Jamais anteriormente uma escola tinha homenageado um herói negro, dando preferência a personagens brancas da história oficial. Daí em diante, as escolas passariam a buscar em figuras africanas ou afrobrasileiras a inspiração para seus enredos, o que até então nunca ocorrera. [...] O fenômeno data dessa mudança formal do desfile – começando com o enredo Debret, em 1959, e continuando com o de Chica da Silva, em 1963, ambos do Salgueiro” (GALVÃO, 2009, p.47). Fernando Pamplona foi, para a grande maioria dos pesquisadores, a figura que propiciou o encontro entre a cultura erudita e a popular no ambiente das escolas de samba. Propondo temas “engajados”, o artista foi realizando uma verdadeira “catequese” junto aos moradores do morro, para que aceitassem vestir fantasias de tribos africanas em 47 48 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 40-56 substituição das tradicionais vestimentas de nobres com suas perucas, sapatos e casacas 28. Mas o pioneirismo tem o seu preço: Fernando Pamplona e sua equipe encontraram algumas dificuldades para convencer os integrantes do Salgueiro de que o enredo em ho menagem a Zumbi dos Palmares, para ser bem-sucedido, teria de apresentar um grande número de componentes com a pobre fantasia de escravos. Era uma idéia que contra-riava uma velha tradição, não só das escolas de samba como das manifestações folclóricas de origem negra, pois era através delas que os negros realizavam, pelo menos na indumentária, o sonho de se apresentar como reis, rainhas, duques etc. Enfim, o velho sonho que se acabava na quartafeira, como tantas vezes foi escrito. Afinal, o povo das escolas de samba, desempregado ou mal pago em seus empregos, já era escravo o ano inteiro. Por que ser escravo também no carnaval? [...] O fato é que Fernando Pamplona e sua equipe convenceram os sambistas de que todo sacrifício seria uma contribuição pessoal para alcançar o que todos sonhavam: a vitória da Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro (CABRAL, 2004, p.180) O início dessa trajetória foi turbulento, como narrou o memorialista Sergio Cabral, mas os resultados e, sobretudo, a repercussão que os desfiles do Salgueiro foram atingindo, permitiram que a comunidade do morro e os simpatizantes da classe média carioca se achegassem cada vez mais à agremiação. O primeiro enredo proposto por Pamplona foi paradigmático em relação ao trabalho que ele liderou na escola, escolhendo exaltar a figura de Zumbi dos Palmares com o enredo Quilombo dos Palmares (COSTA, 1984, p.82). O trabalho foi realizado em parceria com Arlindo Rodrigues, Nilton de Sá e com o casal Nery, que havia permanecido na escola. O resultado final pendia para o primeiro título do Salgueiro, mas uma grande confusão foi formada, comandada pelo presidente da Portela, Natal, e as cinco primeiras colocadas29 foram consideradas campeãs. Com Vida e obra de Aleijadinho(61), Xica da Silva(63) e Chico Rei(64) o Salgueiro, segundo a narrativa dos memorialistas, “revolucionou” os desfiles das escolas de samba. Segundo os pesquisadores, trazendo para o centro do evento a cultura brasileira em estado bruto, com personagens quase desconhecidos do grande público, que encarnavam de forma profunda a brasilidade de negros e mulatos. Aliada às questões temáticas, a utilização de outros materiais também trouxe um vigor renovado ao espetáculo (FERREIRA, 1999). Interessante notar que, mesmo não estando à frente da escola nos desfiles de 1962 e 1963, parte dos memorialistas e pesquisadores30 da história das escolas de samba apontam Fernando Pamplona como idealizador dos enredos. A sua postura militante e engajada, com histórico no TEN31, amigo do folclorista Edison Carneiro, da bailarina Mercedes Batista e dos fundadores da Cia de Dança Brasiliana, entre outros artistas com engajamento político/cultural, destacou OS ACADÊMICOS DO SALGUEIRO: UMA ACADEMIA DE SAMBA NO BAIRRO DA TIJUCA Pamplona como o mentor do processo criativo da escola, mesmo que nesse biênio sua participação tenha sido mais afetiva do que efetiva. Contando em seus enredos histórias de vida em que a superação era uma das maiores virtudes, a ação afirmativa do Salgueiro deu início a um processo de oxigenação das ideias no carnaval , por meio da circularidade cultural, pois, a partir dos seus desfiles, fez circular, por diversas camadas sociais personagens, suas idéias e práticas culturais. De fato, pesquisando os periódicos da época32 percebi que não só o público que assistia aos desfiles e as comunidades parti cipantes se apropriaram destes temas. A partir do interesse dos meios de comunicação de massas (jornais, as emissoras de rádio, as revistas de grande circulação e as iniciantes emissoras de tv), novas classes sociais, assim como as demais manifestações artísticas33, passaram a se interessar pelo espetáculo das escolas e pelos personagens retratados. Outro fato relevante é que as próprias escolas de samba, a partir da abertura temática do Salgueiro, passaram a tratar também de temas relacionados às questões das condições sociais dos negros, desde a ancestralidade africana e do tempo da escravidão até o advento do samba com a proliferação dos subúrbios e favelas na cidade do Rio de Janeiro. História do Carnaval Carioca(65), uma homenagem a pesquisadora Eneida de Moraes34, abriu outra série de abordagens que colocavam a cidade e o carnaval carioca como personagens principais da trama escolhida. O enfoque do Salgueiro reforçou o caráter das escolas com suas raízes africanas, tanto na questão rítmica, quanto no gingado corporal, que o samba-enredo ia estabelecendo. Os amores célebres do Brasil(66) e Histórias da Liberdade no Brasil(67), trouxeram à cena abordagens críticas da história do Brasil. O primeiro enredo estruturou sua narrativa no lado exótico dos romances, no que eles tinham de transgressão35. O segundo enredo, mesmo de forma indireta, apresentava uma mensagem contra a opressão que se vivia naquele momento. Segundo Fernando Pamplona (MOURA, 1985, p.15), várias vezes os ensaios foram interrompidos com corte da energia elétrica. Também havia a presença de policiais pertencentes ao DOPS36, que acompanhavam os ensaios para apontar qualquer tipo de conotação política na preparação do carnaval da escola. Era, de fato, uma demonstração de coragem por parte da agremiação, escolher o tema liberdade num momento crítico da nossa história política, em que o aparato militar montou um rígido esquema de repressão aos opositores ao regime, identificados, ou melhor, genericamente chamados de “comunistas”, procurando fechar todos os meios de comunicação para não informarem sobre as arbitrariedades cometidas pelos militares no poder. Com Dona Beja – a Feiticeira de Araxá(68), a agremiação, segundo Haroldo Costa, novamente marcou sua trajetória de originalidade destacando uma personagem também desconhecida do grande público37. Se Ana Jacinta não se inseria no rol dos personagens negros, uma marca já consolidada naquele momento pela escola, a sua menção pode 49 50 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 40-56 ser incluída no rol das personalidades femininas exaltadas pela agremiação. A citação do memorialista Haroldo Costa demarca essa construção narrativa su blinhando o pioneirismo da escola e sua opção pelos personagens pouco conhecidos da história brasileira. Seguindo a linha de enredos sobre personagens da história popular do Brasil, aquelas que não cons tam dos livros didáticos e não são reconhecidas pelo “país de cima” (...) o Salgueiro decidiu apresentar Dona Beja, a feiticeira de Araxá, baseado no livro do mesmo título de Thomas Leonardos, na ocasião presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, desenvolvido por Fernando Pamplona, com figurinos de Arlindo Rodrigues e Marie Louise Nery (COSTA, 1984, p.174). Com efeito, tanto em Xica da Silva, quanto na homenagem a Eneida ou em Amores célebres dando bastante ênfase e espaço para as figuras femininas dos casais famosos, estava se tornando outra tradição do Salgueiro dar destaque às mulheres que encarnavam em si o ideal de liberdade e de autonomia. Podia-se dizer que essas escolhas temáticas eram, de certa forma, uma adesão da agremiação ao movimento feminista que tomava corpo, com grande intensidade, em todo o mundo. O “pioneirismo” temático já havia sido comentado por Haroldo Costa: [...] O que não se discute, porém, é que o Salgueiro levou fé, ousando apresentar pela primeira vez uma mulher como enredo de escola de samba. A partir daí, Chica da Silva foi revelada ao Brasil, transformando-se em figura próxima e cultuada, heroína da história escrita à margem (id, p.125) No ano seguinte, o Salgueiro, aparentemente, faria uma “involução”, pois o enredo escolhido Bahia de Todos os Deuses permitiria à escola fazer uma homenagem a um dos estados brasileiros mais representados nos desfiles da nossa festa carnavalesca. Entretanto, por conta dos maus resultados obtidos pelas agremiações que escolhiam o tema, gerou-se a crença de que essa opção daria “azar”. Mesmo sendo forte a superstição, o Salgueiro conseguiu o contrário, pois, a escola se tornou campeã. Esse feito tornou-se possível por conta da abordagem bastante original, transcendendo as representações da cultura e do povo da Bahia e investindo, também, nas representações das divindades presentes no candomblé. Havia certo pudor ou temor de ir contra a estética estabelecida na festa, que, mesmo sendo pagã, revelava traços de uma cultura católica. Essas imagens do culto religioso sincrético, realizado na Bahia e apropriado pelos grupos, a princípio negros, que de lá partiram, eram vistas pela primeira vez no desfile das escolas de samba. Foi um ato de coragem mesclar as igrejas católicas e os orixás do candomblé durante a apresentação. O título conquistado ajudou a quebrar a idéia pré-concebida da mandinga ou azar. Com efeito, nos anos seguintes, outras agremiações retrataram a Bahia, com seu misticismo cultural, em seus desfiles. OS ACADÊMICOS DO SALGUEIRO: UMA ACADEMIA DE SAMBA NO BAIRRO DA TIJUCA A cidade do Rio de Janeiro foi tema do enredo de 1970, em que também o carnaval em seus primórdios ganhava destaque. Com Praça Onze, Carioca da Gema, o Salgueiro fazia uma dupla homenagem, tanto para a cidade quanto para as escolas de samba. O reduto da Tia Ciata era cantado em verso e prosa, oferecendo ao público e aos sambistas em geral uma versão do nascedouro do samba e das agremiações. O Salgueiro, desta forma, criava uma genealogia para as escolas e para o próprio ritmo do samba estimulado pela turma do Estácio de Sá, liderados por Ismael Silva, Bide e outros sambistas que criaram a síncope característica das escolas de samba. O enredo da escola no carnaval de 1971, Festa para um Rei Negro encerrou esse período de “engajamento e militância” da agremiação. É interessante notar que esse desfile fechou um ciclo de propostas temáticas que se tornaram recorrentes na história das escolas de samba. Partindo de uma narrativa que parecia gravitar entre o real e o ficcional, a história do rei que recebia a visita de uma corte especial, vinda diretamente da África, abriu caminho para alguns outros enredos que transitavam por essa esfera discursiva. Dessa forma, a escola coroou seus personagens e a sua comunidade por aceitar o desafio e comprar a briga estética e ideológica proposta pelos artistas que estavam criando os desfiles da agre- miação. Nessa apresentação, os trajes africanos que foram utilizados eram, em sua maioria, trajes de uma nobreza africana. A auto-estima e a ação afirmativa geravam o desejo da comunidade do morro do Salgueiro de se exibir com as fantasias afro, numa linhagem da nobreza do continente africano. Essa nova postura foi conseguida ao longo de dez anos, com muitas conversas, alguns títulos e desfiles sempre marcantes da agremiação na década de 1960. Nessa altura, já participavam do barracão da escola, junto a Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues, os artistas Maria Augusta, Joãozinho Trinta, Rosa Maga lhães, Laíla, Max Lopes e outros que seriam os principais carnavalescos nos anos seguintes. O carnaval carioca e, especificamente, as escolas de samba, a partir da visibilidade alcançada pelas agremia ções e em especial o GRES Acadêmicos do Salgueiro, demarcaram um novo patamar para as agremiações dentro do panorama cultural brasileiro. A contribuição da escola transcendeu a questão plástica e estética, abrindo novos caminhos para a discussão de temas até então “marginalizados” pela história. Situada no bairro da Tijuca, repleta de Universidades, academias do saber, o Salgueiro fez juz ao seu nome e, de fato, como uma academia, colaborou de maneira efetiva na circulação de novos saberes, a partir de seus desfiles, seus sambas e seus enredos. 51 52 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 40-56 NOTAS (1) Essa narrativa, elegendo o Salgueiro como motor da renovação estética e ideológica no carnaval carioca pode ser encontrada em: ARAÚJO, Hiram. Carnaval – Seis mil anos de História. 2. ed. Rio: Gryphus, 2003; AUGRAS, Monique. O Brasil do Samba-Enredo. – 1.ed. Rio de Janeiro:FGV, 1998; CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumiar, 2004; COSTA, Haroldo. Salgueiro: Academia do Samba. Rio de Janeiro: Record, 1984; COSTA, Haroldo. Salgueiro 50 anos de glórias. Rio de Janeiro: Record, 2003; FARIAS, Edson. O desfile e a Cidade. O carnaval espetáculo carioca. 1.ed. Rio de Janeiro: e-papers, 2005; MOURA, Roberto. Carnaval da Redentora a Praça do Apocalipse. Rio: Jorge Zahar, 1985; SANTOS, Nilton. A Arte do efêmero : carnavalescos e mediação cultural no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009; entre outros. cias. Alguns autores que trabalharam com esse conceito: GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo, Cia das Letras,1987; BURKE, Peter. Variedades da História Cultural. Rio: Civilização Brasileira, 2002; CHARTIER, Roger. A história cultural; entre práticas e representações. 2. Ed. Lisboa: Difel, 1990. (2) A criação do lema da escola é atribuído a Nelson de Andrade, presidente e principal mentor da agremia ção no período de 1957-1961). Essa afirmativa encontramos em CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumiar, 2004; COSTA, Haroldo. Salgueiro: Academia do Samba. Rio de Janeiro: Record, 1984; (5) A questão central da minha pesquisa é apresentar os vários grupos culturais que atuavam naquele momento histórico (1950-60) que estavam discutindo a temática cultural afro-brasi leira e as quuestões relativas a raça e identidade. Alguns enredos tido como pioneiros, como Aleijadinho (61), Chica da Silva (59)e Dona Beija (66) foram apresentados anteriormente ou contemporâneos aos desfiles do Salgueiro, por agremiações do Rio e de São Paulo. O dado interessante é que esses outros desfiles foram “esquecidos” pela biblio grafia sobre carnaval. (3) O conceito de circularidade cultural pressupõe que as ideias, práticas e valores circulam entre as camadas sociais diversas, sendo representadas a partir de suas vivências e experiên- (4) Na minha pesquisa sobre o Salgueiro, nos anos 1960, parte da Tese de Doutorado em História (UFF) entrevistei Djalma Sabiá, Fernando Pamplona, Maria Augusta Rodrigues, Dona Caboclinha, Haydè Blandina, Jorge Bombeiro, Renato Lage, entre outros. Componentes históricos da escola, corroboraram com a narrativa, centrada no pioneirismo salgueirense e sua importância no cenário carnavalesco da cidade do Rio de Janeiro. OS ACADÊMICOS DO SALGUEIRO: UMA ACADEMIA DE SAMBA NO BAIRRO DA TIJUCA (6) Artistas plásticos, compositores, passistas, bailarinos, coreógrafos, ritmistas, entre outros. (7) Centros Populares de Cultura que a União Nacional dos Estudantes organizavam. Esses Centros tinham como função levar a produção artística até as áreas da s periferias e pelo interior do país. (8) As emissoras de TV, as estações de Rádio, a Indústria fonográfica, as revistas e jornais. (9) No início da década, a Tv Continental exibiu flashs do desfile principal das escolas de samba. No final dos anos 1970, a Rede Globo passaria a transmitir na íntegra o desfile. Durante a década de 80, até sua extinção, a Rede Manchete rivalizou com a Globo pela melhor cobertura do evento. (10) O etnólogo Édison Carneiro, por exemplo, ao final do 1º Congresso Nacional do Samba, no Rio, em 1962, foi incumbido de redigir a Carta do Samba, um documento preservacionista dos fundamentos do gênero e que foi publicado pelo antigo MEC através da Campanha de Defesa do Folclore. (11) Localizado na Tijuca, importante bairro de classe média da zona norte da cidade do Rio de Janeiro. No bairro, outras escolas também foram criadas e participam atualmente do carnaval carioca como a Unidos da Tijuca (Morro do Borel) e Império da Tijuca (Morro da Formiga). (12) Departamento de Imprensa e Propaganda. (13) Programa de governo do General Eurico Gaspar Dutra, que consistia no investimento prioritário nas áreas de Saúde, Alimentação, Transporte e Energia.). (14) Fundada em 1953, a partir de uma fusão entre duas escolas de pequeno porte do Morro do Salgueiro, a GRES Azul e Branco e a GRES Depois eu Digo. (15) Pedro Ernesto Baptista foi, prefeito da cidade do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, por dois períodos, entre 30/9/1931 a 2/10/1934 e 7/4/1935 a 4/4/1936. Foi consi derado um dos maiores benfeitores das Escolas de samba, intervindo para a oficialização do desfile das agremia ções. Alcançou grande popularidade e respeito dos sambistas. Foi preso, sob acusação de ser comunista. (16) Samba de Bala, Duduca e José Ernesto Aguiar in. COSTA, Haroldo. Salgueiro 50 anos de Glória. São Paulo: Ed. Record, 2003, p.23. (17) Samba enredo de 1955, dos compositores Djalma Sabiá, Éden Silva (Caxiné) e Nilo Moreira in COSTA, Haroldo. Salgueiro 50 anos de Glória. São Paulo: Ed. Record, 2003, p.27. (18) O Salgueiro, a Portela e a Mangueira receberam colaborações de artistas ligados ao Teatro de Revista. (19) Os ranchos já haviam experi mentado esta aproximação, mas com as escolas de samba, esse processo se tornou possível na década de 1960, com uma tendência recorrente da subs- 53 54 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 40-56 tituição da idealização dos enredos pelos artistas com formação erudita, em detrimento dos artistas populares, oriundos da própria comunidade. (20) O trabalho foi liderado em sua produção pelo casal de artistas plásticos Dirceu Nery (pernambucano) e Marie Louise Nery (suíça), quem se conheceram na Europa e viviam no Brasil desde meados dos anos 1950. (21) Pintor francês, membro da Missão Artística Francesa, que desembarcou no Brasil nos últimos anos da estadia de D. João VI. (22) Essa visão narrativa é recorrente nos pesquisadores Haroldo Costa, Sergio Cabral, Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, Nilton Santos, Monique Augras, em obras já citadas anteriormente. Outros pesquisadores seguem a mesma linha narrativa: GALVÃO, Walnice Nogueira. Ao som do samba: Uma leitura do Carnaval carioca. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009, FARIAS, Edson. O desfile e a Cidade. O carnaval espetáculo carioca. 1.ed. Rio de Janeiro: e-papers, 2005, FERREIRA, Felipe. O marquês e o jegue: estudo da fantasia para escolas de samba. 1.ed. Rio: Altos da Glória, 1999, entre outros. (23) Mangueira: Brasil através dos Tempos; Portela: Brasil Pantheon de Glórias; Império Serrano: O Brasil Holandês; Vila Isabel: Saldanha da Gama; Mocidade Independente de Padre Miguel: Os três Vultos que ficaram na História; Das escolas pesquisadas, somente a Beija Flor e a União da Ilha escolheram temas contemporâneos, também ufanistas: Copa do Mundo e Paisagens da Ilha. (24) Com esse desfile a escola obteve o vice-campeonato, posição inédita na sua então, breve história. (25) Esse destaque é recorrente nos memorialistas Sergio Cabral, Haroldo Costa e nos demais pesquisadores já citados. (26) Professor da Escola Nacional de Belas Artes e cenógrafo do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. (27) Esse grupo reunia, sob a liderança de Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues os jovens Maria Augusta, Joãosinho Trinta, Rosa Magalhães, Lícia Lacerda, dentre outros. (28) Essa versão se tornou um cânone na narrativa de Sergio Cabral. Em Haroldo Costa também aparece, um pouco relativizada. Muitos pesquisadores seguiram a mesma narrativa. (29) Foram declaradas campeãs a GRES Portela, GRES Salgueiro, GRES Estação Primeira de Mangueira, GRES Império Serrano e GRES Unidos da Capela. (30) Encontrei essa posição na entrevista realizada com Hiram Araújo e nos textos dos pesquisadores e acadêmicos já citados em nota anterior. (31) Teatro Experimental do Negro, fundado pelo militante Abdias do Nascimento, na década de 1940. (32) A pesquisa realizada teve como base o acervo do Jornal do Brasil e parte do acervo do Jornal Última Hora, no período de 1959-1971. (33) Peças teatrais, filmes, artes plásticas, moda, música popular, literatura se apropriaram dos temas abordados pelo OS ACADÊMICOS DO SALGUEIRO: UMA ACADEMIA DE SAMBA NO BAIRRO DA TIJUCA Salgueiro, como Zumbi, Xica da Silva, Dona Beja, Chico Rei, entre ou-tros. (34) Jornalista e ativista cultural, autora do livro História do Carnaval Carioca, considerado um clássico na bibliografia sobre o tema. (35) Os romances cantados foram: o Imperador D. Pedro I e a Marquesa de Santos, Peri e Ceci, Dirceu e Marília, Castro Alves e Eugênia, Moema e Paraguaçu por Caramuru. (36) Departamento de Ordem Política Social, orgão responsável pela repressão ao comunismo. (37) Em pesquisa na imprensa do período, no acervo do JB, verifiquei que duas agremiações apresentaram o enredo sobre Dona Beija no carnaval de 1966. As escolas Aprendizes da Gávea, apresentou o enredo A Vida em Flor de D. Beja e a Independentes do Leblon , desfilou com D. Beja, a Feiticeira de Araxá. Com efeito nenhuma das duas escolas alcançou boa colocação, mas é um dado interessante verificar que não uma, mas duas escolas trouxeram esse enredo, que até então, pelo que pude constatar nesta pesquisa, não havia sido apresentado. Referências ARAÚJO, Hiram. Carnaval – Seis mil anos de História. 2. ed. Rio: Gryphus, 2003. CHARTIER, Roger. A história cultural; entre práticas e representações. 2. Ed. Lisboa: Difel, 1990. __________ e JÓRIO, Amaury. Natal, o Homem de um braço só.1. ed. Rio: Guavira, 1975. COSTA, Haroldo. Salgueiro: Academia do Samba. Rio de Janeiro: Record, 1984. AUGRAS, Monique. O Brasil do Samba-Enredo. – 1.ed. Rio de Janeiro:FGV, 1998. ______________. Salgueiro 50 anos de glórias. Rio de Janeiro: Record, 2003. BURKE, Peter. Variedades da História Cultural. Rio: Civilização Brasileira, 2002 CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumiar, 2004. FARIAS, Edson. O desfile e a Cidade. O carnaval espetáculo carioca. 1.ed. Rio de Janeiro: e-papers, 2005. FERNANDES, Nelson da Nóbrega. Escolas de Samba: sujeitos celebrantes e objetos celebrados. 1. ed. Rio: SCDGDIC – Arquivo Geral da Cidade – RJ, 2001. 55 56 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 40-56 FERREIRA, Felipe. O marquês e o jegue: estudo da fantasia para escolas de samba. 1.ed. Rio: Altos da Glória, 1999. FREIXO, Adriano de e MUNTEAL FILHO, Oswaldo (orgs). A Ditadura em Debate: Estado e Sociedade nos anos do autoritarismo. Rio de janeiro: Contraponto, 2005. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo, Cia das Letras,1987. RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da tv. São Paulo: Record, 2000. MOURA, Roberto. Carnaval da Redentora a Praça do Apocalipse. Rio: Jorge Zahar, 1985. SANTOS, Nilton. A Arte do efêmero: carnavalescos e mediação cultural no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009. SKIDMORE, Thomas. Brasil, de Castelo a Tancredo. 1. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. THOMPSON, E. P. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. ZAPPA, Regina e SOTO, Ernesto. 1968 Eles só queriam mudar o mundo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. Decifra-me ou te Devoro: A Representação Social no Mundo Virtual 57 Decifra-me ou te Devoro: A Representação Social no Mundo Virtual • Prof. Dr. João Gilberto S. Carvalho * com Carolina F. Ramos**, Munyck A. Borges***, Angela P. Passidomo****, Patrick B. Gomes***** Resumo: O artigo propõe uma discussão teórica acerca do conceito de esfera pública e de sua inserção na Teoria das Representações Sociais, ramo da Psicologia Social que, grosso modo, se ocupa com “o quê” e “como” as pessoas pensam. Trata-se da fase inicial de uma pesquisa mais ampla que objetiva caracterizar a atividade de representação no contexto virtual (ou cibercultura). O conceito de esfera pública foi revisitado e considerado defasado em sua formulação original, constatandose a necessidade de reno-vação de seus fundamentos básicos, ou mesmo de sua substituição, face às demandas de um mundo em que as novas tecnologias fazem parte do cotidiano. Palavras-chave: esfera pública, representação social, mundo virtual. Abstract: The paper proposes a theoretical discussion about the concept of public sphere and its insertion into the Social Representations Theory, a branch of Social Psychology that broadly deals with “what” and “how” people think. This is the initial stage of a larger study that aims at characterizing the activity of representation in the virtual context (or cyber culture). The concept of public sphere was revisited and considered outdated in its original formulation, confirming the need for a renewal of its basic foundations, or even their replacement, face to the demands of a world in which new technologies are part of everyday life. Keywords: public sphere, social representation, world virtual. * Prof. Dr. João Gilberto S. Carvalho, Doutor em Psicologia (UFRJ), Mestre em Educação (UCP). Professor do IFRJ e da Universidade Veiga de Almeida; ** Carolina F. Ramos (Psicologia, UVA); *** Munyck A. Borges (Psicologia, UVA); **** Angela P. Passidomo (Psicologia, UVA); *****Patrick B. Gomes (Especialização, UFF) • Artigo Decipher me or I will eat you: The social representation in the virtual world 58 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 57-72 Introdução Este artigo compõe uma pesquisa mais ampla, que investiga as características predominantes da atividade repre sentacional no chamado “mundo virtual”. A expressão é uma dentre as muitas denominações utilizadas para caracterizar um tempo de transformações que tem, como elemento central, as novas tecnologias de informação e comunicação. Trata-se de uma discussão teórica sobre os conceitos básicos que norteiam a Psicologia calcada nas representações sociais. A pesquisa está em andamento, mas a análise teórica apresenta resultados que podem ser compartilhados para receber subsídios da comunidade acadêmica envolvida na temática. Admite-se, aqui, o papel fundamental da esfera pública na manutenção e criação de representações sociais – o conjunto de saberes e conhecimentos que permeiam a vida social. Mas, como pretendemos demonstrar, a formulação original, de inspiração habermasiana, requer um trabalho de atualização, pelo menos para sua utilização de forma adequada pela TRS (Teoria das Representações Sociais). 1. Representações sociais: unidade de pensamento (social) Existem muitas definições para o conceito de representação, como a que segue: A representação é um processo fundamental da vida humana; ela subjaz o desenvolvimento da mente, do Eu, da sociedade e da cultura. Representar, isto é, tornar presente o que está de fato ausente por meio do uso de símbolos, é fundamental para o desenvolvimento ontogenético da criança, está na base da construção da linguagem e da aquisição da fala, é crucial para o estabelecimento das inter-relações que constituem a ordem social e é o material que forma e transforma as culturas, no tempo e no espaço (JOVCHELOVITCH, 2008, p. 33). A metáfora do teatro é utilizada por Chartier (1990) para caracterizar o trabalho de representação, na mesma linha de raciocínio da citação: tornar presente o ausente, representar. Em uma peça, os espectadores sabem que o ator tem uma vida que não se confunde com a da personagem, é apenas uma interpretação, por melhor que venha a ser. O sentido vago e misterioso deste “ausente” tem sido o calcanhar de Aquiles das teorias que têm, em sua base, a representação – ou pelo menos assim enxergam os seus críticos. Tais críticas são destacadas por Leme (1995) e Castro (2002) e servem de guia para entendermos a evolução do conceito na teorização de seu criador, Moscovici, ao longo de suas quatro décadas de existência. É preciso distinguir o significado usual da palavra representação e o conceito de representação social, pois, nesse como em outros casos, a polissemia não contribui para a compreensão do conceito. Por representação social entendemos a base simbólica que dá organização, significado e inteligibilidade à existência humana; criada e mantida por meio de interações diversas – econômicas, comunicativas, políticas, culturais Decifra-me ou te Devoro: A Representação Social no Mundo Virtual ou, simplesmente, relações sociais. Em termos psicossociais, expressa a síntese cognitiva que ocorre entre pessoas e seu mundo, considerado em termos históricos e culturais; utiliza a bagagem simbólica das gerações, nutre e se alimenta da memória, da história e do imaginário social. Assim, ao contrário das abordagens citadas anteriormente, acreditamos que esteja sempre presente e seja real para todos que a compartilham no cotidiano. Um mundo oculto, do qual a representação seja apenas um epifenônemo, existe apenas nas filosofias de cunho idealista ou religioso, que não deixam de gerar, paradoxalmente, representações sociais. A representação social é um conceito sobre o qual foi erigida uma teoria que embasa pesquisas e análises em diversas áreas do conhecimento humano. Um objeto amplo, pois as pessoas precisam explicar, entender, expressar, participar, crer, compartilhar, sentir, dentre outras muitas necessidades que podem ser sintetizadas em uma palavra só: viver. E, é preciso deixar claro, utilizamos convictamente o termo “pessoas”, atentos às recomendações de Maffesoli quanto ao significado de “indivíduos”. Em suas palavras: “O individualismo é um bunker obsoleto, e como tal merece ser abandonado (1998, p. 14)”. O conjunto de saberes ou conhecimentos necessários à vida em sociedade, eis a representação social: “Todas as interações humanas, surjam elas entre duas pessoas ou entre dois grupos, pressupõem representações” (MOSCOVICI, 2003, p.40). É, portanto, o amálgama que confere normalidade às relações e sentido às comunicações en- tre as pessoas. Ao assumir o postulado durkheimiano de que a sociedade tem autonomia em relação aos seus componentes, aos quais precede e sucede, Moscovici atribui à representação social o papel de ambiente de pensamento (ibid., p. 53) e conclui: a sociedade pensa. Pois bem, se já era difícil para os cientistas que consideram a sociedade meramente o somatório de indivíduos aceitarem a existência autônoma dos fatos sociais, imaginemos sua repulsa diante da premissa de uma sociedade pensante! No extremo desta abordagem, Maffesoli (1998) utilizou a expressão “divino social” para caracterizar o modo como a sociedade se sustenta e se reproduz: um poder demiúrgico derivado da exterioridade que possui em relação aos seus membros. Virou praxe dizer “o todo não se confunde com as partes, a molécula da água não tem as mesmas propriedades que o hidrogênio e o oxi gênio possuem separadamente” e assim por diante. A sociedade tem, portanto, uma lógica própria. Esse é o esforço de toda a teorização de Durkheim, a ponto de estabelecer condicionamentos sociais para um fenômeno que seria apenas de âmbito individual, o suicídio. Na Psicologia Social, Vala (1993) sintetizou de forma criativa as diferentes correntes, divididas a partir de três focos: 1) ênfase no indivíduo; 2) ênfase na sociedade; 3) tentativa de conciliação ou superação por meio da síntese das anteriores. Historicamente, a oposição entre o micro e o macro tem sido um problema fundamental para as Ciências Humanas. Trata-se de uma polêmica que não se limita ao campo epistemológico, 59 60 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 57-72 pois há outros interesses envolvidos. O simples fato de constantemente vir à baila indica que a dicotomia é significativa. O nosso ponto de vista vai ao encontro daqueles que acreditam que a sociedade está na base de todos os processos formativos e simbólicos – não poderia ser de outra forma, pois comparti lhamos muitos dos princípios epistemológicos da TRS, ancorados em uma modalidade sociológica de Psicologia Social. Voltemos ao que nos interessa: a afirmação de que a sociedade tem sua dinâmica própria não percebida, direta ou imediatamente, por seus integrantes. A tradicional distinção conceitual entre conjuntura e estrutura (BRAUDEL, 1992) vai ser útil para ilustrar a dinâmica, a maturação dos processos sociais ao longo da história. O tempo impõe demandas, alimenta utopias, provoca rompimentos ou abre cicatrizes. A longa duração é a temporalidade das estruturas, a “história lenta”, imperceptível para os seus agentes diretos, e somos, aqui, tentados a oferecer, por analogia, a condição de marionetes às pessoas, sempre movidas por forças praticamente ocultas. A curta duração é a conjuntura, o tempo imediato e presente daqueles que o compartilham. Não nos cabe revisar aqui a controvérsia historiográfica e sim destacar que, em qualquer temporalidade considerada, os significados da vida em sociedade não são entendidos facilmente pelas pessoas comuns. As pessoas estão imersas em seus interesses imediatos – o resultado do exame médico, o traje adequado ao passeio, o pagamento das contas, o destino do país, a vida do vizinho que mora ao lado, o que há de novo no cinema – disso se trata, enfim, do cotidiano de bilhões de pessoas. Um número infinito de situações que não geram manchetes ou são edificantes e passam, muitas vezes, longe daquilo que hoje se convencionou chamar de “politicamente correto”. É na temporalidade que se produz e reproduz tanto a sabedoria quanto o disparate; a sentença adequada ou a ignorância descabida, submersas e interligadas à história que estudamos nos bancos escolares, circunscritas à micro história ou ao conjunto de fatos que ocorrem em pequena escala e, de imediato, só interessam ao grupo. Em síntese, o cotidiano supõe a existência de uma base consensual (senso comum) que viabilize a convivência, não obstante as constantes fissuras provocadas por pontos de vista e interesses divergentes (MOSCOVICI & DOISE, 1991). Historicamente, o senso comum foi associado à ignorância, algo que os peritos, na acepção crítica de Giddens (1991, p. 34), precisam combater e o fazem em nome da ciência. A TRS resgatou o senso comum, demons trando tratar-se de um processo psicossociológico fundamental à convivência em sociedade, ao qual nem os cientistas estão imunes. Outra teorização interessante a respeito está na proposição de Goffman (2011) por uma “sociologia da ocasião”, mas foge ao escopo do artigo avançar em sua teorização. Podemos, então, concluir que o cotidiano e o senso comum são os requisitos básicos das representações sociais: comunicar, orientar, informar e formar. São o produto da interação diária entre pessoas que, muitas vezes, entram em conflitos agudos em períodos de tur- Decifra-me ou te Devoro: A Representação Social no Mundo Virtual bulência. Assim definidas, as representações sociais ganham centralidade em todo o trabalho de cognição humana, do mais prosaico ao mais sofisticado conhecimento socialmente produzido. Divididas em relação à ordem instituída em hegemônicas, polêmicas e emancipadas (CASTRO, 2002), revelam “como” e “no que” as pessoas pensam. Revelam, em última instância, o pensamento da própria sociedade. O cotidiano é a temporalidade do senso comum; este, o amálgama de conhecimentos do presente e do que se aprendeu com as gerações passadas, a partir das memórias coletiva e social. Não deixa de ser paradoxal: o presente é visto com olhos do passado, reflexão que nos remete mais uma vez à Moscovici (2003, p.38): “Sob muitos aspectos, o passado é mais real que o presente.” Ao elegê-los como seu objeto principal (o senso comum e o cotidiano), a abordagem de Moscovici colaborou para retirar da Psicologia Social a ênfase no indivíduo, permitindo pesquisas de cunho genuinamente psicossocial e histórico. É preciso deixar claro: por psicossocial se entende a síntese entre as pessoas e o seu mundo; a dimensão psicológica e socio lógica construídas, simultaneamente, a partir de experiências compartilhadas. Um bom exemplo é o clássico de Denise Jodelet, Loucura e Representações Sociais (JODELET, 2005). Em linhas gerais, nesta obra, a autora discute a representação social da loucura tal como é cons truída na pequena cidade francesa de Ainay-le-Chateau, a partir da ação do governo de inserir doentes mentais na comunidade. Talvez não fosse necessário discutir aqui, e de forma tão enfática, a representação social, pois existem boas teorizações a respeito. Howath (2006, p. 7), por exemplo, nos oferece um panorama do que a representação social “faz”, tendo como parâmetro as pesquisas de seus mais conhecidos autores. E não o fizemos para atender a praxe de apresentar o conceito. A nosso juízo, a TRS já encontrou o seu espaço e não precisa mais estar em constante defensiva; a multiplicação de estudos em diferentes áreas é um atestado de sua importância (ARRUDA, 2005, p 60). Em nossos estudos, observamos o desdobramento da abordagem inicial de Moscovici: teorização exaustiva presente em trabalhos caracterizados pelo rigor científico, resvalando, algumas vezes, ao excessivo empirismo. É possível discernir, de acordo com a abordagem, pelo menos quatro “chaves” para se entender o fenômeno da representação social: “como” – ênfase nos processos de ancoragem e objetivação; “por que” – em que se privilegia o núcleo central a partir de bases quantitativas; “quando” – abordagem que leva em consideração a história; e, finalmente, “onde” – o lócus da atividade de representação e que, a nosso ver, a condiciona. E foi Sandra Jovchelovitch quem se preocupou em abordar esse “onde” é realizada a atividade de representação – o espaço em que a representação se torna de fato social. Então, se a ancoragem e a objetivação são processos sócio-cognitivos centrais ao processo de estabilização face às novidades criadas pela vida em sociedade, em que espaço tais fenômenos ocorrem? Em praças, repartições públicas, bares, teatros, ca- 61 62 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 57-72 fés – e aduzimos: blogs, chats, celulares, redes sociais, entre tantos outros espaços dedicados à comunicação. Trata-se de um desdobramento óbvio: se a sociedade pensa e esse pensamento produz a representação social, onde o fenômeno ocorre? Ao reconhecermos que este “meio” é fundamental, devemos considerá-lo historicamente, o que nos conduz a outra questão: de que forma a representação social é condicionada? Em relação ao pensamento humano, é fácil responder: o cérebro abriga a intensa atividade dos neurônios. Ainda que não seja clara a relação entre mente e cérebro, o pensamento individual ocorre na cabeça, a partir de conexões neurais (TEIXEIRA, 2000). Tal questão nunca foi problema para a Psicologia Social centrada no indivíduo (não nesse nível). Mas, a partir do momento em que a Psicologia Social assumiu de fato a sua natureza social, a próxima pergunta seria: Qual é o lócus da atividade que tem como produto a representação social? Sandra Jovchelovitch buscou tal resposta. 2. Representações sociais: conexão de pessoas A TRS é uma modalidade da Psicologia Social que tem procurado trans cender a dicotomia indivíduo e sociedade. Isso é válido mesmo no termos da abordagem que privilegia o núcleo central: “o ponto de partida desta teoria é o abandono da distinção clássica entre sujeito e objeto” (ABRIC,1998, p. 27). A intenção é entender como os grupos pensam, isto é, como lidam, no dia a dia, com as demandas criadas pela vida em sociedade. Sandra Jovchelovitch percebeu a importância dos espaços em que as representações nascem e circulam, achando no conceito de “esfera pública” a base de sua teorização, a ponto de ter um livro exclusivo sobre o assunto (JOVCHELOVITCH, 2000). Coube a Habermas (1984) uma longa reflexão sobre a esfera pública e sua gênese. Ele demonstrou como o crescimento dos locais destinados aos encontros públicos foi proporcional à ascensão dos mercados e à transformação das artes, letras e espetáculos em mercadorias – foi, acrescentemos por nossa conta, um processo que correu paralelamente à consolidação dos Estados Nacionais. A preocupação de Ha bermas com a esfera pública faz parte de um projeto mais amplo e ambicioso: a fundamentação do “agir comunicativo” (HABERMAS, 1989). Coerente com seu trabalho de superação da razão instrumental, o filósofo alarga os horizontes de seu marxismo dos tempos iniciais da Escola de Frankfurt e teoriza acerca das possibilidades de emancipação social, diga-se, do capitalismo, a partir de processos comunicativos e racionais. O projeto da modernidade, a seu ver, não estaria esgotado e, assim, Habermas utiliza a racionalidade weberiana associada às condições da vida urbana – eis a esfera pública. Em síntese: a esfera pública é a expressão da racionalidade iluminista, em que o debate e a troca de ideias permitem o esclarecimento – o que, no pensamento liberal, se chama democracia. Em apoio ao argumento, recordemos o circuito da fofoca no século XVIII, em torno da árvore da Cracóvia, “um grande Decifra-me ou te Devoro: A Representação Social no Mundo Virtual e frondoso castanheiro que se erguia no coração de Paris” (DARNTON, 2003, pp. 41-42), sob o qual se informavam os súditos sequiosos por escândalos e histórias picantes, a despeito da ira do rei. A esfera pública é, assim, herdeira dos parâmetros de sociabilidade desenvolvidos nas cortes, sendo, por assim dizer, seu correspondente burguês. Nos termos habermasianos, são espaços de reprodução do capitalismo e da divisão da sociedade em classes, nos quais as diferenças de status são visíveis. É nesse conceito que Jovchelovitch (1994, p. 65) vai buscar a chave de gestação das representações sociais: “a esfera pública, enquanto lugar de alteridade, fornece às representações sociais o terreno sobre o qual elas podem ser cultivadas e se estabelecerem”. E indica as críticas feitas tanto ao modelo de Habermas, como as dirigidas por este ao modelo liberal, concluindo que a esfera pública transcende o exercício exclusivo da política. Tal questão foi levantada de outra forma por Moscovici & Doise (1991, p. 31): “Por que é que os indivíduos em conjunto são diferentes daquilo que seriam isoladamente, a ponto de não ser possível prever as suas reacções a partir do momento em que são integrados numa multidão, numa reunião política, etc.?” É a questão central para uma Psicologia Social centrada nas representações sociais: a química que reúne os homens num amálgama capaz de se sobrepor às individualidades – o campo por excelência do que se entende por social. Moscovici não utilizou o conceito de esfera pública em seu estudo seminal de representações sociais, mas ele estava, entretanto, im- plícito na formulação de uma questão como esta: “[...] de onde extraíram nossos informantes seus conhecimentos da Psicanálise? Quais são as suas fontes de informação?” (MOSCOVICI, 1978, p.92). A esfera pública é o lócus do senso comum, o espaço de compartilhamento no qual é sedimentado o consenso ou promovido o dissenso; o lugar em que pessoas se reúnem e conversam sobre coisas de seu interesse (res publica) ou, simplesmente, tomam ciência das novidades e do que é adequado aos costumes – do “politicamente correto”, assim dizemos hoje em dia. Jovchelovitch, assim, define (2000, p. 82): “A vida pública, com suas instituições específicas, seus rituais e significados, é o topos no qual as representações sociais desenvolvemse e adquirem existência concreta”. O conceito de esfera pública não é exclusivo ao campo das representações sociais, pois basta inseri-lo no Google e cons tatar a resposta expressiva. É utilizado, por exemplo, por Lazzarini (2011, p. 15), em rigorosa obra de economia que trata do que chama de “capitalismo de laços” no Brasil. Está subjacente às reflexões da historiadora Margareth Rago sobre os códigos de sexualidade feminina e a prostituição paulista (RAGO, 2008). O debate sobre a esfera pública ganhou destaque por ser essencial à compreensão dos temas ligados à cidadania no mundo contemporâneo, isto é, às demandas da globalização: a de cadência do homem público nos termos de Sennett (1988) ou a fragmentação típica da pós-modernidade de Bauman (1999). 63 64 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 57-72 3. Mundo virtual: uma nova esfera pública byte a byte Não faz muito tempo, discutia-se a importância da informática para os diversos segmentos da vida em sociedade. Na educação, por exemplo, a questão era saber se os computadores deveriam ser introduzidos na escola e em que condições. Na época, Valdemar Setzer (1998) alertava-nos quanto aos malefícios da informática na educação infantil. Um pouco antes, a Escola de Frankfurt se contrapunha ao otimismo dos teóricos da “cultura de massa.” Entre estes últimos, Fleur, na década de 1960, afirmava: “A sociedade moderna, urbana e industrial, não poderia existir como sistema social sem a comunicação de massa. Ela se tornou uma parte profundamente aceita das principais instituições sociais” (FLEUR, 1976, p. 13). Os críticos do sistema capitalista associaram a expansão dos meios de comunicação à dinâmica de reprodução do capital. Também é verdade que há vozes dissonantes em cada uma das posições citadas, é bom destacar, porque generalizações nem sempre são precisas ou justas. Por exemplo, Habermas (1989) se mostrava “otimista” quanto às possibilidades de um “agir comunicativo”, como já dissemos acima, enquanto a preocupação de Merton & Lazarsfeld (2005) girava em torno dos efeitos “narcotizantes” da mídia. A controvérsia entre “apocalípticos” e “integrados”, para utilizar os termos consagrados por Humberto Eco, que grosso modo opõe os partidários e os críticos das mídias (ECO, 1970), agora tem como ponto central o computa- dor e a internet. As novidades trazidas pelo “virtual” estão entre os principais agentes de mudança do mundo (pós) moderno. Quanto a isso, é importante estarmos atentos às recomendações de um de seus mais ilustres analistas, Pierre Levy. Ele nos previne sobre a ina dequação do termo “impacto” para nos referirmos a ação das novas tecnologias, como se fossem um fenômeno externo e não um componente do desenvolvimento da própria sociedade (LEVY, 2007, p. 6). Coerente com essa posição, não atribui à base material uma função determinante nesse processo, rompendo, desta forma, com a clássica dicotomia entre técnica/tecnologia e cultura: “Las relaciones verdaderas no se dan pues entre ‘la’ tecnología (que sería del orden de la causa) y ‘la’ cultura (que sufriría de los efectos), sino entre uma multitud de actores humanos que inventam, producen utilizan e interpretan diversamente umas técnicas” – (Id, p.7). Para os elementos simbólicos digitais, Levy cunhou o termo “cibercultura”; enquanto à base material, ao conjunto de artefatos e infraestrutura que compõem esses meios, chamou de “ciberespaço”. Tais neologismos se incorporaram ao número crescente de palavras que servem para designar as mudanças que possuem no computador a alavanca mestra. E, mesmo que sejam lembrados outros artefatos eletrônicos, como a câmera digital ou o telefone celular, é o computador que merece atenção prio ritária entre os estudiosos, já que sua linguagem é o ponto de partida para os demais equipamentos. Uma perspectiva mais ampla enxerga as novas tecnologias dentro Decifra-me ou te Devoro: A Representação Social no Mundo Virtual de um quadro histórico dos processos comunicativos. Assim, historiadores como Briggs & Burke (2004) associam o crescimento do fluxo de comunicação à expansão do comércio, que demanda estradas, instalações e equipamentos voltados ao controle e mensuração. É fascinante imaginar os laços que existem entre a indústria, o comércio e a comunicação, percebendo desta forma a conexão entre ferrovias, bicicletas, automóveis, aviões, telégrafos, telefonia, enfim, a “rede” no sentido empregado por Castels (1999). Imprensa, cinema, rádio, televisão e, agora, computadores, cada qual a seu tempo e modo, foram apontados como pontos de ruptura, agentes de mudanças sociais significativas e causadores de alvoroço entre apocalípticos e integrados. Segundo Lull (1992), por exemplo, a televisão foi o grande polo de mudanças que transformou a burocrática China no gigante econômico da atualidade, embora seja possível encontrar outro agente revolucionário, como o transistor, dependendo da ótica de quem ana lisa (BRIGGS & BURKE, 2004). O mundo estaria de “pernas para o ar”. Discute-se: o papel do Estado e seu futuro; a família e suas novas composições; a fragmentação identitária; a ascensão de nações antes consideradas exóticas, como a China e o nosso Brasil; enfim, o tipo de sociedade criado ao longo da modernidade estaria em vias de transformação. Com efeito: As discussões sobre modernidade e pós-modernidade ganharam destaque nos últimos anos por conta das transformações que assistimos em praticamente todos os segmentos da vida em sociedade. A consolidação de um padrão de vida civilizado representou, na prática, a criação de um “outro” não-civilizado – exótico, bárbaro, primitivo, atrasado – não importa o termo, pois na prática este “ou tro” podia ser dominado, eliminado ou escravizado. As cruzadas que se realizaram em nome da Cruz se transformaram nas muitas guerras travadas em nome dos ideais de civilização e progresso. A sofisticação dos discursos, das mercadorias ou ainda a potência das armas tornaram o referido padrão um modelo a ser copiado e seguido, quando não, imposto. No limite entre a argumentação ideológica e o cinismo, aqueles que foram exterminados ou escravizados deveriam ser gratos aos seus opressores. Na atualidade, a emergência do “outro” é visível na nova configuração de poder mundial, que enseja abordagens e pesquisas instigantes e demolidoras de velhos preconceitos (CARVALHO, 2011, p. 101). A longa citação faz parte de outro trabalho de nossa autoria em que são discutidas as possibilidades abertas no campo das pesquisas em Ciências Humanas face às transformações em curso. Há a impressão de que os conceitos não mais correspondem à realidade, não obstante sua profusão, para não dizer emaranhado, superposição, confusão. Algumas coisas mudaram visivelmente, outras não; sem contar que novas tradições são criadas dentro da dinâmica da globalização (GIDDENS, 2003), outro termo usual que tenta 65 66 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 57-72 dar conta do que está acontecendo. A máquina de escrever e o computador, a máquina fotográfica que utiliza filmes e a digital, o velho e o novo coexistem – mas os primeiros estão destinados ao fim, ainda que não se saiba exatamente quando, pouco importa, pois, do ponto de vista da lógica baseada no consumo, há espaço para todas as gerações de mercadorias. Segundo Lipovetsky, o consumo se transformou em hiperconsumo – a característica de um tempo baseado na customização e na superficialidade. Aliás, a leitura de sua obra nos sugere outro neologismo, “sociedade hiperbólica”, por conta dos muitos exageros que marcam o que o filósofo citado denomina a terceira fase do consumo. Na civilização do desejo, os novos atores são o acionista e o consumidor (LIPOVETSKY, 2006, p. 7), sendo o consumo elevado à condição de núcleo das formações identitárias no espaço antes ocupado pela religião e pela política (id, p.38) . Autores como Lipovetsky, Bauman (1998) e Giddens (1997) estudam exaustivamente a chamada sociedade pós-moderna e, tanto o consumo, como a modernidade líquida ou a sociedade reflexiva têm na comunicação um multiplicador comum. Em sentido amplo, a comunicação é vital à existência das sociedades baseadas em fluxos, sejam eles mercadoria, ideias ou informações. Desde o século XIX, a noção de totalidade está presente no trabalho de diferentes pensadores. A ligação entre os interesses econômicos, políticos, religiosos e sociais tornou comum os conceitos de modo de produção, sistema social, sociedade em rede, entre outros, mas que se apresentam ocultos ao homem comum, semelhante ao que o marxismo denomina fetichismo da mercadoria. A comunicação tornou transparente a natureza holística da relação social desde que McLuhan (2005) consagrou a expressão “aldeia global”. As mídias visual, auditiva e digital compôem o palco da “sociedade do espetáculo” (DEBORD, 1997): da “cultura de massa” ao “ciberespaço”, algumas décadas apenas criaram transformações tão profundas nos processos comunicativos que tornaram ultrapassadas algumas das antevisões consagradas nos filmes de ficção científica do passado. Os recursos digitais trouxeram a concepção de um mundo virtual em que a ilusão e a realidade – hiper-realidade (ECO, 1984) convivem ou há destruição (e sobreposição) do real (BAUDRILLARD, 2001)? É evidente que o computador alterou não apenas as rotinas do dia-a-dia, como pagar uma conta ou se comunicar com alguém distante, mas também alterou os mecanismos de produção de pensamento social e suas representações. Os espaços de discussão coletiva, característicos do século XIX, foram transformados radicalmente no mundo contemporâneo, face às novas tecnologias. Multiplicaram-se os meios de manifestação e troca de ideias, sejam elas consideradas positivas (“politicamente corretas”) ou não pelos “especialistas”. O mundo virtual estreitou os relacionamentos a tal ponto que “aldeia global” tornou-se uma expressão modesta. Na atualidade, pessoas desco nhecidas tornam-se celebridades ins Decifra-me ou te Devoro: A Representação Social no Mundo Virtual tantâneas no Youtube, enquanto opi niões circulam nos blogs e celebridades se misturam aos “reles mortais” nas redes sociais. Propomos um exercício de imaginação, pensar nas consequências em setores dominados antes pela figura do “especialista”: pacientes que chegam aos consultórios já informados previamente sobre seus problemas e, até, sobre possíveis soluções por meio de uma simples consulta ao Google; alunos que se antecipam aos conteúdos ministrados pelo professor – exemplos rápidos para situações desconcertantes que ocorrem no dia a dia. 4. Esfera pública: ressignifcação ou abandono? Em relação à esfera pública, nossa premissa é clara: o conceito teve vitalidade para a compreensão das representações sociais, mas está defasado porque o mundo passou por grandes transformações. Além de praças, esquinas, feiras, escolas, igrejas, enfim, espaços tradicionais de reunião entre pessoas, há também novas possibilidades de trocas e encontros no mundo virtual. Mas, o que é mundo virtual? Não se trata de uma estratégia capitalista de alienação das massas – se é que alguém já acreditou sinceramente nisso um dia. Pierre Levy procurou analisar os muitos significados do termo “virtual”, refutando a ideia comum que o associa à irrealidade e nos ensina que o digital é sua expressão técnica (LEVY, 2007, p.32). Assim, concluímos que, tal como nos espaços tradicionais, abriga e põe em circulação valores e crenças compartilhadas, sendo um campo au- têntico de representação social. Hoje, é possível aprender, conversar e se divertir pelo computador com gente do mundo inteiro – e também praticar sexo, reverenciar os mortos, participar de grupos diversos, entre muitas outras formas de sociabilidade pouco convencionais. Assim, a palavra de ordem atual é conexão; televisão e rádio estimulam a participação online de seus espectadores, que passam a fazer parte da equipe de jornalismo por meio de denúncias, fotos, registros de fatos relevantes ou simples comentários a respeito de uma partida de futebol. A queda do ditador egípcio foi promovida, em grande parte, por uma população árabe usuária de Facebook e do Twitter. Nem mesmo o mais ferrenho tradicionalista pode fugir completamente às novas tecnologias digitais, ainda que em suas modalidades mais simples – algo como passar um e-mail ou enviar uma mensagem pelo celular, por exemplo. Na verdade, o computador integra um sistema dinâmico que inclui celulares, tocadores de música, câmeras fotográficas e aparelhos baseados na conexão. Mas é preciso levar em consideração que, em países de grande desigualdade social, como é o caso do Brasil, não há acesso à internet ou às tecnologias para todos. Como falar de compras online a milhões de habitantes que recebem um salário mínimo? Em relação ao proble ma, foi criado um termo alentador: “inclusão digital” – estratégia educacional para acabar com o “analfabetismo digital” – uma demanda prioritária do mercado de trabalho na “era do conhecimento”. Os destaques em negrito expressam o tripé sobre o qual o 67 68 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 57-72 capitalismo pós-moderno é assentado: tecnologia, conhecimento e inovação. Belos termos que podem receber, na teorização de Bauman (2010), o nome de capitalismo parasitário. Independen temente dos adjetivos e da veia crítica de seus analistas, a sociedade está em transformação e a “esfera pública digital” tornou-se tão importante quanto os processos tradicionais. Não há mais como se pensar a esfera pública exclusivamente nos termos do século XIX. As tecnologias criaram novos tipos de sociabilidade que influenciam, decisivamente, o trabalho de representação em todos os níveis (individual e coletivo) e a mídia, hoje, nas palavras de Guareschi (2009, p. 81), “é como o ar que respiramos, como a água para o peixe. É a alma da nossa sociedade”. Jovchelovitch (1994, 2000, 2008) utilizou o conceito de esfera pública para caracterizar os ambientes em que a representação social se torna presente – e o fez em sentido “físico”. Fiel ao postulado habermasiano, ela destacou os espaços nos quais pessoas se encontram tête-à-tête e dialogam, pensam sobre o que ouvem, negociam o que podem dizer. Mas o conceito de esfera pública precisa levar em conta o novo contexto criado pelos recursos multimídias. Historicamente, o advento da televisão e do rádio não se contrapôs ao enfoque clássico da esfera pública, uma vez que a interatividade entre telespectadores e ouvintes não era tão visível, ainda que tais mídias tenham se firmado como importantes veículos de comunicação social. Hoje, o computador promove a interatividade em todos os níveis, pois a Web é bidirecional. Do cidadão que faz uma foto de um acidente e o põe, imediatamente, nas redes sociais a agressão ocorrida em um canto qualquer do pla neta e que gera milhares de visualizações e comentários no Youtube: o que era anônimo é, agora, publicizado e retocado para ser exposto “em tempo real”, para colher elogios e críticas, veladas ou expressas publicamente. A sociedade do espetáculo transformou-se na sociedade da computação gráfica, o que leva a antropóloga e comunicóloga Paula Sibilia a se perguntar como, em tempos de Web 2.0, a intimidade é transformada em “extimidade”, outro neologismo para dar conta do que a autora caracteriza como “mutação na produção de subjetividades” (SIBILIA, 2008, p. 79). Em termos sintéticos: o que leva alguém a se expor em uma rede social? Segundo Nicholas Carr, o que está acontecendo na atualidade é muito mais inquietante do que a simples mudança de comportamentos. O tipo de interação realizada na Internet favorece a fragmentação dos estados de atenção e fortalece um grupo de neurônios diferente daqueles que são acionados pela leitura tradicional, profunda e li near (CARR, 2011). O autor nos alerta quanto às consequências decorrentes da substituição do livro pelo computador e sua conclusão é sombria: “Dúzias de estudos de psicólogos, neurobiólogos, educadores e web designers indicam a mesma conclusão: quando estamos online entramos em um ambiente que promove a leitura descuidada, o pensamento apressado e distraído e o aprendizado superficial” (ibid., p. 162). Por outro lado, entre os que acreditam serem positivas as mudanças, destacam-se os as- Decifra-me ou te Devoro: A Representação Social no Mundo Virtual pectos lúdicos e interativos do mundo virtual. Mas não podemos nos esquecer daqueles que se beneficiam financeiramente de um mercado que movimenta cifras expressivas e seus “especialistas” – defensores ardorosos de sua profissão. Um exemplo notório: a velocidade geométrica com que a geração de iPho nes foi comercializada, a despeito da propalada crise econômica atual. As vendas de notebooks, netbooks, tablets e celulares de última geração, entre ou tros engenhos digitais, não são guiadas pelos debates entre “especialistas” e, assim, invadem, cada vez mais, o nosso cotidiano, pois, como diz Gitlin (2003, p. 54), “viver é estar conectado”. A esfera pública, enquanto espaço de negociação simbólica, teve valor heurístico para a psicologia centrada na representação social. Porém, é preciso incorporar as transformações causadas pelas tecnologias de informação ou simplesmente abandonar o conceito. O mundo não é mais o mesmo e a “cultura da virtualidade real”, para utilizarmos os termos de Castels (1999, p. 415), está na base de estruturas sociais organizadas em “rede”. A sociedade informacional (e não de informação) se utiliza de um “novo sistema de comunicação que fala cada vez mais uma língua universal digital” (CASTELLS, 1999, p. 40). Assim, de um lado a globalização subverte os interesses nacionais e a territorialidade dos processos de produção, de outro as comunidades virtuais ampliam, igualmente, as possibilidades de formação de laços de pertencimento. O crescimento do ciberespaço, segundo Pierre Levy, é a expressão de uma inteligência coletiva (LEVY, 2007, p. 96) e, de nossa parte, é tentador estabelecer uma ponte entre essa vontade de saber – do que faço agora pelo Twitter, Instagram e outros aplicativos – e os mecanismos de controle social. Como pensar a esfera pública sem levar em conta que: Se é muito provável que os poderes sociais, nas democracias do século XXI, não venham a cair de novo nas ruas, como sucedeu na Europa e na América durante as fases cruciais em que foram constituídos os espaços públicos burgueses, dificilmente se negará que estes não deixarão de andar muito pela Web (ou pela Grid) [...] (ROSAS, 2010, p. 118). Paralelamente à fragmentação identitária das comunidades virtuais, a esfera pública se estilhaça em microespaços caracterizados por uma pluralidade de manifestações descentralizadas. Um bom exemplo é a democratização trazida pela “blogosfera”, capaz de romper com o unilateralismo dos peritos e expressar, de fato, os interesses da sociedade, principalmente aqueles que jaziam sob a pressão do que é consi derado “politicamente correto”. Na verdade, como aponta Rodrigues (2006), as novas mídias têm reagrupado as identidades fragmentadas. Então, se a modernidade foi o tempo da exclusão, na atualidade, todos os que não tinham voz e vez podem se manifestar, nem que seja em uma lan house. As novas mídias derrubaram fronteiras e encurtaram o tempo de comunicação. O que nos leva a crer que, em relação a TRS, a dinâmica de ancoragem e objetivação já não é 69 70 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 57-72 mais a mesma que ao tempo de sua formulação original. 5. Considerações finais Ao longo do artigo, procuramos problematizar o conceito de esfera pública a partir de seu uso na TRS e, como dissemos logo de início, trata-se de uma discussão teórica que faz parte de um projeto de investigação empírica. Assim, o que aqui chamamos de considerações finais são apenas reflexões iniciais de uma caminhada longa. A “Esfinge” que nos motivou a pesquisar a relação entre as novas tecnologias de informação e comunicação e as representações sociais vai aguardar mais um pouco. A esfera pública é uma dimensão vital para os saberes forjados no senso comum – a modalidade de conhecimento que se tornou predominante na modernidade. Ou seja, os espaços onde possam circular crenças, valores, ideias, afetos e informações são essenciais à Psicologia centrada na representação social. Não se trata apenas da mera ampliação de espaços – de incluir, entre cafés, teatros e bares, os chats, blogs, redes sociais, entre outros recursos das mídias digitais. A hipótese aqui defendida é a de que os novos espaços criados pela Web influenciam diretamente a representação social. O virtual e o real estão imbricados de tal forma que inclusão digital e cidadania digital, por exemplo, figuram entre as prioridades de estudiosos e autoridades públicas em geral. Então, no estudo dos processos de formação de subjetividades há que se considerar este novo ambiente de pensamento no qual o virtual é uma das facetas da realidade. Referências ABRIC, Jean-Claude. A Abordagem Estrutural das Representações Sociais. In: MOREIRA, Antônia Silva Paredes & OLIVEIRA, Denize Cristina de. (Org.) Estudos Interdisciplinares de Representação Social. 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A partir da noção de “trabalho para entender”(Bezerra, 2007) e da noção antitecnicista de “letramento crítico”(Freire, 1996), a comunidade exploratória envolvida buscou re-narrar suas práticas pedagógicas, considerando o conceito de “tempo morto” (Carrière,1994), oriundo da linguagem cinematográfica. Palavras-chave: Prática Exploratória, trabalho para entender; ensino de língua inglesa; linguagem cinematográfica. Abstract: This article presents excerpts from an Exploratory Practice research (Allwright e Hanks, 2009), performed in a community English course with a team of six volunteers teachers. Its main objectives were constructing understadings on classroom practice, during professional talks and meetings, and investigating the reflexive vocation of cinema language, when used as a base for pedagogical thinking. From the notion of “working to understand” (Bezerra, 2007) and the antitechnicist notion of “critical literacy” (Freire, 1996), the exploratory community involved has tried to re-narrate their pedagogical practices, considering the concept of “dead time” (Carrière, 1994)”, taken from cinema language. Keywords: Exploratory Practice; working to understand; English language teaching; cinema language. Sabine Mendes Lima Moura, Doutoranda e Mestre em Estudos da Linguagem (PUC-Rio), Bacharel em Comunicação Social/Cinema (UFF). Professora, Coordenadora da Pós-Graduação Lato Sensu em Língua Inglesa e do Núcleo de Publicações da Universidade Veiga de Almeida. * • Artigo “Tempos mortos ou pausas para a criação?”: trabalhando a partir da linguagem cinematográfica para entender um curso de inglês comunitário 74 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 73-85 Introdução “Ensinar exige criticidade” e “ensinar exige pesquisa” (FREIRE,1996, pp.29-31). Esses dois enunciados, no contexto educacional em que vivemos, podem soar como tarefas extras (muitas vezes, extraclasse) para professores que se veem forçados a uma constante atua lização tecnicista, baseada em políticas educacionais que pretendem “instalar o novo deixando de perceber o sempre igual” (KRAMER, 1992, p. 47). Consi dero que pesquisar e exercer criticidade são características de toda atividade humana, limitadas, muitas vezes, pelas exigências da cultura tecnicista. Entendemos atividade não somente como ação expressa no mundo, mas, também, segundo o conceito sociointeracional de inspiração vygotskiana em que “estar engajado em uma atividade particular significa tão somente que o indivíduo está funcionando em algum contexto socioculturalmente definido” (KRAMSCH, 2000, p.134). Tal contexto, atualmente, é permeado por uma linguagem audiovisual, derivada da linguagem cine matográfica, que interage com nossa perspectiva de vida, transformando nosso conceito de “realidade”. Como pode um professor de língua estrangeira converter-se em pesquisador crítico de sua realidade se esse papel acaba se tornando uma nova exigência para a qual não é recompensado ou se, entusiasmado de qualquer maneira com a árdua tarefa, tem de esquecer o que sabe, aquilo em que crê, o que tem para contar e se submeter a pacotes ins titucionais de ensino? E como podem tais profissionais subverter essa relação de poder em meio a uma “sociedade audiovisual” (DUARTE,2002, p.14) como a nossa? O presente trabalho surgiu em um momento em que eu trabalhava, voluntariamente, como coordenadora peda gógica de um curso de inglês comunitário - o Future Builders Community Course – junto a seis outros professores voluntários com diferentes históricos acadêmicos. Eu acabara de entrar em contato com uma forma inclusiva de pesquisa do praticante - a Prática Exploratória - em que se propunha “trabalhar para entender a vida, não tentando resolver os problemas diretamente, mas dando um passo atrás e vendo-os no contexto mais amplo da vida (e vidas) que eles afetam”(ALLWRIGHT, 2003, p. 128). As questões de pesquisa na PE, denominadas puzzles em inglês, podem ser descritas como “algo que nos intriga” (SENA, 2006, p.34) e não são, necessariamente, um problema ou algo a ser resolvido. Os puzzles “são a concreti zação de seus questionamentos sobre aspectos positivos ou não”(MORAES BEZERRA, 2007, p.3) presentes no cotidiano dos participantes. Esses “episódios elucidativos” (ALLWRIGHT, 2002, p. 24) deveriam ser trazidos à consciência, tocados, enfatizados. Como Bacharel em Comunicação Social, atuando na área de ensino de língua inglesa, puzzles ou questões acompanhavam minha prática: a) Por que, em nossas reuniões, professores com formação acadêmica mais avançada (pós-graduação lato sensu ou Mestrado em Letras) diziam ter problemas de relação com os alunos em sala de aula, além de dificuldades com o planejamento de Tempos mortos ou pausas para a criação? aula, e professores sem educação formal na área pareciam não tê-los?; b) Por que os professores que reportavam mais problemas justificavam suas questões a partir das teorias que haviam estudado e os professores sem formação na área pareciam não ter os recursos discursivos para comentarem acerca de seu su cesso em sala?; c) Por que os professores reportavam o desejo de darem aulas perfeitas, em que tudo “fluiria”?; d) Por que os professores estavam em busca de técnicas que apoiassem esse “fluir” da aula? e e) O que seria esse “fluir”? Considerando a minha própria formação e de que maneira ela poderia ser útil ao debate em nossas reuniões pedagógicas, comecei a desenhar Ativi dades com Potencial Exploratório (MOURA, 2007), em que a linguagem cinematográfica pudesse servir como doadora de conceitos para reflexão. Esperava, também, gerar um vocabulário comum entre os professores com dife rentes formações, partindo de noções de que eles poderiam se apropriar por analogia, a partir de seu conhecimentos como espectadores de produtos audiovisuais. A Prática Exploratória parecia ser um caminho para incentivar a pesquisa “viva”, mais do que a imposição de novas “formas de fazer”. Tentava descobrir, a partir de minhas próprias perspectivas e expectativas, “o que tem o professor a narrar?”(KRAMER,1992, p.53). Considerava, ainda, que o trabalho poderia ter uma vocação para o letramento crítico freireano, ao propôr que a linguagem cinematográfica fosse contemplada a partir de casos da prática docente. Por conta de minha formação, acredito que: é preciso desmistificar o cinema e sua linguagem, que camufla a contradição imagem, movimento e som em prol da confusão entre o que é real e o que não é real, causando no consumidor uma confusão entre a vida e o filme, o espectador confunde o cotidiano com um prolongamento do filme que está em cartaz (CARRIÈRE,1994, p. 31) 1. Linguagem Cinematográfica e Ensino Experiências com a análise crítica da linguagem audiovisual aplicada ao fazer pedagógico – em especial, a desenvolvimentos metodológicos - são abundantes entre os pesquisadores da área de Educação. O projeto do Núcleo de Ensino da UNESP, junto a alunos do Curso de Licenciatura em História, alunos do Ensino Fundamental e professores da rede pública, enfatiza “o contato e exploração da linguagem cinematográfica como documento histórico e sua oportuna utilização como recurso didáticopedagógico” (DAVID,1992, p.1). Os pesquisadores afirmam, ainda, que “o uso do filme, na mesma proporção em que ilustra uma aula, pode, sem a apreciação crítica do espectador, conduzir à idéia de um fiel registro dos acontecimentos ou, na mesma ordem, ser rejeitado sob a ótica pré-estabelecida, de uma visão particularizada”, o que parece indicar uma intenção de explorar o viés sociointeracional e despertar a criticidade na formação de professores. Em outra referência, temos o suporte da UNESCO, afirmando que: 75 76 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 73-85 a melhor forma de defender o público, e em particular a juventude, de excessos e erros das mensagens audiovisuais é a formação e a criação de hábitos pelos espectadores, de forma a garantir a possibilidade de escolha e a melhor compreensão da mensagem audiovisual (apud RIBEIRO, 2002: p.1). Este mesmo órgão declara que “a educação cinematográfica tem já, em muitos países, um lugar estabelecido nos planos curriculares do ensino (...) cabendo-lhe uma função educativa essencial”(id, p.2). Existem, ainda, projetos que mesclam a análise da linguagem cine matográfica à sua prática, como maneira de perceber, mais claramente, a influência do olhar de cada autor na confecção de produtos audiovisuais. Tal experiência, claramente sociointeracional, é conhecida como vídeo-processo (produção de vídeos amadores acerca de tópicos relevantes para uma determinada comunidade pedagógica e sua posterior análise) e foi implementada na aula de Prática de Ensino da Educação Física da UFSC como maneira de aprofundar o conceito de educação do corpo, aliada à análise de um filme brasileiro sobre futebol. Como colocado pelos pesquisadores: realizada no âmbito da formação inicial de professores, a tematização da arte e dos meios de comunicação, tem o intuito de provocar as futuras gerações de professores para a força que estes fenômenos passaram a ter na formação do sujeito, e em conseguinte, da identidade do povo brasileiro” (PINTO e RIBEIRO, 2004, não paginado). Entre os projetos de pesquisa brasi leiros realizados na área podemos citar Bruzzo (1995, p. 5), que se refere ao “despreparo dos professores para lidar com essa forma de expressäo tão presente no seu cotidiano e de seus alunos”; Monteiro (1990, p.5), que se dedica ao estudo da “capacidade de decodificação e leitura das mensagens” audiovisuais por crianças e a “lançar um olhar antropológico diante do espec tador infantil”; Morrone (1997, p. 2), que analisa as tentativas de emprego do filme educativo e “as formas de sua apropriação pelo contexto escolar”, entre outros. Em todos esses estudos, disponíveis no banco de teses do Mnemocine, podemos observar uma abordagem sociointeracional do pro cesso de ensino-aprendizagem sen do revisitada e aplicada ao discurso que permeia a comunidade escolar. Não observamos, entretanto, estudos voltados para o que aqui denomino “leitura audiovisual do mundo”, ou seja, dedicados a pesquisar a influência do audiovisual nas práticas cotidianas. Por outro lado, cada espectador pode ser (e efetivamente é) um novo autor de cada filme. Sua experiência prévia influencia ativamente a maneira como irá interpretar aquilo a que assiste. No entanto, para que a voz co-autora de cada expectador seja ouvida (por outros e por ele mesmo), há que se permitir um certo espaço de troca, há que se enxergar a alteridade na tela bem como na vida cotidiana. Para dialogar com um conceito da Lingüística Aplicada, há que se permitir que o senso de plausibilidade (PRABHU,1987) – a noção do que é possível em cada comunidade Tempos mortos ou pausas para a criação? discursiva dentro da realidade de cada praticante - atue e esteja evidente como possibilidade de intercâmbio. Jean Claude-Carriere nos conta que, em sessões de cinema organizadas por administradores coloniais franceses logo após a Primeira Guerra Mundial, personalidades e líderes religiosos afri canos viam-se obrigados a prestigiar as apresentações, mas conservavam os olhos fechados ao longo de toda proje ção por serem, em sua grande maioria, muçulmanos, proibidos, por uma antiga tradição, de representarem a forma e a face humana, criações de Deus. Diz ele: Às vezes, acho que nós também não somos diferentes daqueles muçulmanos na África, quando vemos um filme.(...) será que não abrigamos, no fundo de nós mesmos, algum tabu, ou hábito, ou incapacidade, ou obssessão, que nos impede de ver o todo ou uma parte do audiovisual que cintila fugazmente diante de nós?(CARRIÈRE,1994, p. 10) Sugiro que somente uma “abordagem sociointeracional da linguagem cinematográfica” pode dar conta desses dois extremos, nos quais se encontram os impasses que validam nosso inte resse pelo diálogo entre o audiovisual e o ensino de língua inglesa. Christian Metz (2002, p. 23) concebe o “empreendimento filmo-lingüístico” como possível e necessário já que “em tese, a lingüística não é senão um setor da semiologia: em realidade, a semiologia constrói-se a partir da lingüística.” 2. Conceitos da Linguagem Cinematográfica Nunca antes o espaço da representação iconográfica havia invadido tanto o espaço do “real”. Sobre o conceito de “real”, Jean Claude-Carrière cita o exemplo do diretor argelino Ahmed Rachedi que, ao filmar nas montanhas da Calíbia, no Norte da Argélia, com uma figurante não profissional, teve problemas, pois a senhora se recusava a repetir uma cena ensaiada anteriormente: - Nós vamos matar seu filho de novo – disse - Basta chorar da mesma forma que ontem. Mas a mulher não entendeu. Para ela, o jovem que atuava como seu filho tinha morrido no dia anterior. Ela vira, com seus próprios olhos, o sangue jorrar dos pequenos sacos plásticos escondidos sob a roupa e que estouram à distância (CARRIÈRE, 1994, pp.51-52) A linguagem cinematográfica é o conjunto de códigos negociado ao longo do século passado e do início do século XXI, entre cineastas e suas platéias, ao se contar uma história que é, impreterivelmente, permeada por cons trangimentos técnicos e não é, para nada, óbvia: parte de um aprendizado social constante. Tal linguagem tem sua primeira sistematização, em termos de produção audiovisual, no documento conhecido como roteiro literário. O roteiro literário é um instrumento técnico e pode ser definido como “a forma escrita de qualquer projeto audiovisual” (COMPARATO, 1995:19), tendo um tempo curto de vida, pois, uma 77 78 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 73-85 vez que seu conteúdo seja traduzido em filme, este só se tornará produto se for comercializado em forma de livros. Dentre os aspectos a serem levados em consideração, quando da escrita de um roteiro, Comparato menciona o chamado “tempo de atenção”, referente a quantos minutos passamos interessados em alguma coisa; um tempo que, no filme, é de algo em torno de vinte minutos e, na televisão, é de apenas três minutos. No cinema, “o tempo de atenção é determinado pela intensidade do tempo dramático na sucessão de imagens”, pois existe uma “distorção da dimensão” já que “a imagem nos domina”(id, p.59). Na televisão, o fato de que o ambiente em que se assiste ao produto normalmente não é propício (é iluminado, barulhento, podendo ter a intervenção de outras pessoas) e que pode não exis tir uma pré-disposição à concentração semelhante à de ir ao cinema (já que o aparelho está tão acessível em casa), “o atrativo da grande dimensão é substituído pelo dinamismo da imagem”(id, p.60). Na publicidade, o tempo de atenção é de sete segundos. Jean-Claude Carriére explica que o tempo cinematográfico não é nem o tempo teatral nem o tempo do romance... Nada é mais fácil do que escrever esta frase num romance: ‘no dia seguinte, de manhã’; nada é tão difícil como mostrar num filme, que estamos no dia seguinte e que é de manhã...[Devemos] pensar a cada instante na fórmula sacrossanta, tão frequen temente esquecida: “Não anunciar o que se vai ver. Não contar o que já se viu”(CARRIÈRE apud COMPARATO,1995,p. 240). Tratando-se o cinema de uma arte na qual “o personagem sempre encontra um táxi desocupado, pronto para apanhá-lo no instante em que ele precisa”, ou em que “ao telefone (tempo totalmente perdido, razão pelo qual os bons roteiristas o evitam), os personagens do cinema sempre discam rapidíssimo” e “a pessoa do outro lado atende imediatamente, como se esperasse pela chamada do outro lado do aparelho”(CARRIÈRE, 1994, p. 82), a necessidade de evitar “tempos mortos” parece ser evidenciada. O que aqui entendo como “tempo morto” está diretamente relacionado ao que Carrière chama de “tempo totalmente perdido” e à necessidade de, por meio da “exploração de associações (...) entre imagens, emoções, personagens.” (id, p. 34) criar “imagens virtuais ou sintéticas” (id, p.60) que diminuam o “troca-troca de canais” (id, p.26), preocupação máxima da parte comercial de qualquer produção audiovisual. Segundo ele, os roteiros produzidos por estúdios de TV franceses são frequen temente marcados com um aviso escrito em lápis vermelho indicando danger de zapping ou perigo de que o telespectador troque de canal: um alerta para “cortar para a perseguição! aumentar o ritmo! não embromar! As outras emissoras já estão nos nossos calcanhares, não vamos desperdiçar tempo e perder espectadores com essa beleza soporífera!” (id, p. 26). Tal preocupação faz com que a técnica sobrepasse o literário não só nos produtos televisivos, mas também nos projetos cinematográficos pois estes, inevitavelmente, terminam sua carreira comercial na televisão, nos vídeos e DVDs. Tempos mortos ou pausas para a criação? Refletindo sobre a possibilidade de ter a linguagem cinematográfica como base para meu trabalho para o entendimento, a analogia entre as exigências tecnicistas de dinamismo em sala de aula – em especial, no ambiente de cursos de língua inglesa – e a necessidade de evitar os “tempos mortos” no audiovisual pareceu-me evidente. 3. Buscando uma nova forma de relação O curso de inglês comunitário aqui mencionado foi organizado pela ONG A Comunidade para o Desenvolvimento Humano, parte do Movimento Huma nista, da qual fui diretora por quatro anos. Reconhecida pela ONU em sua luta pela paz, atua em mais de cem países no mundo e é inteiramente constituída por voluntários. Compactuando com a difusão da Campanha pela Não Violência Ativa, o projeto do Future Builders Community Course foi lançado por mim em 2000, no Centro Psiquiátrico do Hospital Pedro II (CPPII) no Engenho de Dentro, Rio de Janeiro. Em agosto de 2003, já afastada da iniciativa no CCPPII, comecei a organizar um Future Builders Community Course em maior escala, com a ajuda de uma equipe da ONG. Por meio de cartazes em universidades e divulgação pela internet, chamamos professores voluntários e abrimos quatro turmas no Maracanã, em uma escola técnica particular, que nos cedeu o espaço para o trabalho. As aulas tinham duas horas de duração e aconteciam sempre aos sábados, de oito às dez da manhã e de dez ao meio-dia. Estabelecemos uma idade mínima de doze anos e uma contribuição semes tral de cinquenta reais por aluno (de caráter não obrigatório) e começamos atendendo, em média, a cento e vinte pessoas. Em dezembro de 2004, realiza mos inscrições para o curso em Nova Iguaçú, no campus de uma instituição federal de ensino superior e técnico, em Monte Castelo. As aulas eram acom panhadas por seminários, palestras e oficinas relacionadas ao tema da não violência. A metodologia de pesquisa qualitativa que inspirou este projeto, a Prática Exploratória (doravante PE), baseia-se em sete princípios, apresentados, em seus trabalhos, em diferentes versões (MORAES BEZERRA, 2007) e que podem ser resumidos em: • priorizar a qualidade de vida; • trabalhar, primeiramente, para entender a vida na sala de aula e em outros contextos profissio nais; • envolver a todos no processo; • trabalhar para unir as pessoas • trabalhar, também, para o desenvolvimento mútuo; • integrar o trabalho para o entendimento às atividades da comunidade exploratória; • fazer do trabalho uma atividade contínua. A necessidade de integrar o trabalho para o entendimento às atividades do grupo é, normalmente, interpretada como necessidade de não criar contextos específicos para a pesquisa, inte grando a atividade habitual da comunidade exploratória ao trabalho para 79 80 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 73-85 entender seus puzzles. Portanto, como minha coordenação se baseava em conversas e reuniões, optei por registrá-las em diário de campo e incluir a apresentação dos conceitos cinematográficos em nosso dia a dia. As conversas foram registradas entre 15 de Maio e 25 de Junho de 2005 e somadas a observações pessoais do histórico do projeto. A pesquisa original incluiu, além dos professores, coordenadores e alunos do curso. Para este artigo, considero somente as respostas dos professores, descritos nos diários da seguinte maneira: • Professora 1 - formou-se em um curso livre de idiomas, em um curso específico de treinamento de professores, mas nunca havia lecionado e declarou que seu grande sonho sempre foi o de estar em sala de aula. Ela insistia em agradecer a oportunidade dada e a boa vontade com a qual fora recebida pelos alunos. • Professor 2 – estava terminando o curso de Letras. Tinha experiência dando aulas para grupos de apoio escolar em casa e como pesquisador na área de Lingüística (bolsista). • Professora 3 – pós-graduada em Lingüística Aplicada (Mestrado), graduada em Letras, lecionava em uma escola bilíngue de ensino fundamental e em curso livres de idiomas. • Professora 4 - graduada em Letras, cursando uma Pós-graduação lato sensu em Língua Inglesa, lecionava em um curso voltado para o atendimento de profissionais em empresas, utilizandose de uma abordagem sociointeracional em que textos eram utilizados para promover o desenvolvimento oral. • Professora 5 - funcionária pública, formada em inglês em um curso livre de idiomas e sem experiência prévia em sala de aula. • Professor 6 – cursava o primeiro período da Graduação em Letras. Aca bou optando por abandonar seu curso de Artes por conta da experiência que teve lecionando no curso comunitário. Elaborei três Atividades com Potencial Exploratório, envolvendo conceitos de linguagem cinematográfica. Para este artigo, exponho aquela que envolvia o conceito de “tempo morto”(doravante APE). Apresentei o conceito como “as partes do filme que o produtor corta, que não têm ação, que são dispensáveis do ponto de vista comercial, como, por exemplo, um personagem escovar os dentes ou ir ao banheiro ou acordar”. As perguntas feitas, então, eram: “Você sente isso em sua aula ? Esses ‘tempos mortos’? Você acha que eles têm alguma função?”. Por conta do caráter educacional da APE, optei por transcrições sem gravação (e sem marcações de entonação ou pausa) que, posteriormente, foram analisadas e “ajustadas” pelos próprios pesquisadores praticantes, considerando os entendimentos que construimos ao longo do processo. 4. Vozes da comunidade A primeira observação que posso fazer é a de que os conceitos nem sempre foram compreendidos da mesma maneira, servindo mais como gancho para reflexões pessoais de cada um dos voluntários em relação às imagens que tinham de suas salas de aulas. Quando apresentei a proposta da APE aqui mencionada, três dos professores identifi- Tempos mortos ou pausas para a criação? caram os momentos de “tempo morto” como negativos (P1, P3 e P5), dois como naturais (P4 e P6) e um como negativo, mas interessante para o processo de ensino aprendizagem (P2). As justificativas dos professores para verem os “tempos mortos” em sala de aula como negativos pareceu estar relacionada a um suposto dinamismo que a aula deve ter, responsabilidade do professor, para que se obtenha o interesse do aluno. Isso pode ser observado em comentários como: “A gente fica preocupado com a dinâmica da aula, em não deixar que o cara pense: ‘O que eu tô fazendo aqui?’”(P2). Neste caso específico, a própria utilização do referente “a gente” parece se remeter à classe de professores, o que parece indicar que a preocupação é compartilhada. Em outros casos, pareceu haver grande dose de ansiedade, como em : “Quando você pergunta alguma coisa e ninguém responde, fica aquele silêncio. Falo alguma coisa, repito [o que disse]...Não deixo o silêncio ficar por muito tempo” (P1) ou “Tento procurar alguma carta na manga para não deixar a aula chata, não deixar esse tempo ocioso. Mas sempre acontece. Acontece, não tem como evitar e aí tem que ter jogo de cintura”(P3). Uma das professoras colocou, claramente, tal ansiedade: “Eu fico assim, meio nervosa, não, tensa, eu sei que está acontecendo o tempo morto e fico ansiosa de não conseguir buscar interesse de quem está desinteressado. Aí eu acho que entra uma falta de recurso nosso, porque, se tivessemos um livro, poderia pedir para que o aluno fizesse a atividade alternativa tal, mas, assim, fico sem alternativa”(P5). Em nenhum momento, apresentei o “tempo morto” como positivo ou negativo. No entanto, a conotação provável da palavra “morto” pode sugerir, em nossa cultura, algo “ruim”. Além disso, a explicação sobre como tal conceito é visto no mundo dos roteiros, que introduzia a APE, sugere que, ao menos no contexto do cinema, eles são ruins. Ainda assim, as analogias poderiam ter sido outras: o grupo poderia se posicionar, indicando que o que serve para o cinema não necessariamente serve para a sala de aula. A partir dos relatos negativos, traçamos, em grupo, um perfil de modelo dominante de aula, no qual : a) não existem “tempos mortos” - entendidos como tempo ocioso; b) os alunos estão sempre interessados; c) os professores são dinâmicos (estão sempre propondo tarefas que captem o interesse do aluno). Esse interesse que, uma vez mais, é responsabilidade do professor, pode ser caracterizado como: a) “tenho muito que fazer aqui”; b) “nunca estou parado esperando”; c) “este é o melhor lugar em que poderia estar neste momento”. Existiram divergências em relação ao marcador do “silêncio”. Enquanto a P1 coloca que não deixa ficar o silêncio, a P5 parece crer que qualquer atividade, ainda que silenciosa, é suficiente para manter o interesse dos alunos (de onde parte a sugestão de uso de um livro). A noção de dinamismo, que não foi explicitada em outros relatos, parece estar dividida entre o “ter-o-que-fazer” e o “produzir oralmente”. O professor que identificou o “tempo morto” como negativo, porém, possivelmente, útil (P2), parece ter reconstruído sua visão de dinamismo em sala de aula 81 82 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 73-85 a partir da proposta da APE, finalizando com um: “É interessante pensar nisso”. Apesar de, em um primeiro momento, ter colocado a mesma preocupação com a “dinâmica da aula”, declarou a importância de pensar no que acontece ao deixarmos a aula “se transformar em show megalomaníaco, pirotécnico, que é isso que os cursos são, porque pode ser que isso não propicie a troca de conhecimento vivo”, indicando uma perspectiva crítica frente a suas próprias experiências como aluno em cursos livres. Os professores que consideraram os “tempos mortos” como naturais (P4 e P6), colocaram-nos como momentos de “reorganização do pensamento” (P4) ou como tendo a única função de “pegar fôlego antes de continuar” (P6). Nesse caso, chamo as colocações de naturais, pois os professores incluiram os “tempos mortos” em sua prática pedagógica cotidiana. Isso fica claro em colocações como a de que são “momentos de reorganização, pegar material, colocar o alarme do celular para despertar ao final da aula” (P4) ou de que “me parece que, ao passar de um assunto, ao outro os professores têm esse momento de descanso” (P6). Ou seja, “tempos mortos” cumprindo com uma função clara na organização de uma aula. Existe, no entanto, uma diferença clara na maneira como os dois professores parecem vivenciar tais ocasiões. No caso da P4, uma das professoras que chegou a comentar acerca da influência do conceito em sua vida pessoal, parece existir uma diferença entre sua atitude frente aos “tempos mortos” em sala de aula e fora dela. Ela cria uma gradação na qual podemos ter tempos “muito mortos” ou uma “mortandade temporária” dos alunos, encarada como momento de reflexão. Seria uma “hora de parar para refletir sobre como a aula está processando”, embora ela diga: “eu vou preenchendo com ‘So, how are you?’, o que o transforma de alguma maneira em um tempo morto aproveitado”. A referência mesma à capacidade de fazer com que o “tempo morto” seja “aproveitado”, parece uma negatividade, já que, caso não se tome uma atitude em relação a ele, não tem “proveito”. A questão se problematiza na parte do relato em que a professora coloca: “Sinto uma pressão por parte do aluno na questão do produzir sempre e aí preciso ganhar o aluno para uma reflexão. Se eu não prestar atenção, me deixo embarcar no que o aluno quer. Se ele disser que quer que eu bata palmas dez vezes, eu vou bater palma dez vezes. Às vezes, por que estou cansada”. Ao ouvir o relato, relacionei o exemplo de “bater palmas dez vezes” com um tipo de abordagem, nesse caso supostamente esperada pelos alunos, que se encontra em cursos livres, a qual, anteriormente, chamei de tecnicista. Ao referir-se à sua vida pessoal, no entanto, a professora afirma: “gosto deles. Porque são momentos em que... digamos que eles são tempos que contribuem para um caminhar da narrativa”. Ou seja, enquanto que, desde seu ponto de vista, em sua vida profissional se espera a “questão do produzir sempre”, em sua vida pessoal as expectativas são outras, havendo uma lacuna causada aparentemente pela “pressão” que ela sente “por parte do aluno”. Já o P6 pareceu deixar subentendida Tempos mortos ou pausas para a criação? uma certa desvalorização dos “tempos mortos” ao dizer que, por necessitar de um tempo para “pegar fôlego”, antes de dar prosseguimento à aula, “você acaba criando um tempo morto”. O uso do verbo “acaba” parece indicar uma certa falta de opção frente à necessidade de fazer uma pausa. Por outro lado, o professor diz que “teoricamente, seria um tempo morto quando estou explicando algo para uma pessoa, ou um grupo de pessoas e não para a turma toda.” A utilização de “teoricamente” parece indicar que o exemplo citado não deveria acontecer. Todas as visões de “tempo morto” foram apresentadas pelo comunidade exploratória como justificativas de alguma forma, relacionadas a um tempo perdido que, embora possa ser entendido como prejudicial ou natural, tornase inevitável e deve ser minimizado ou aceito como parte da prática pedagógica. Em posteriores discussões com o grupo, apresentei APEs voltadas para a construção do diálogo em sala de aula (como/se suas “falas” eram pensadas/ construídas em sala e como eram as “falas” dos alunos) e para a construção da sala de aula como narrativa (como/ se eles roteirizavam a aula e como/ se pensavam nos efeitos que queriam gerar em termos estéticos e afetivos). Embora as considerações acerca dessas APEs não sejam objeto deste artigo, é importante dizer que, a partir do repensar dos “tempos” em sala de aula, pudemos dar início a uma série de debates que envolveram a todos e valorizaram o “conhecimento vivo”, gerado no trabalho para entender. 5. Conclusão Tentei aqui apresentar uma parte da trajetória interdisciplinar co-construída, em um curso de inglês comunitário de caráter humanista, por uma “comunidade exploratória” de professores, a partir de meus puzzles quanto a nossa interação em reuniões e conversas pedagógicas. Para tanto, coloquei-me em sintonia com o modelo de Paulo Freire de problematização de um contexto educacional para gerar educadores e educandos críticos e construtores da realidade que vivenciam. Inspirei-me na proposta de trabalhar para entender e de priorizar a qualidade de vida no contexto em que atuava. Considerando a riqueza da análise, os pontos que ficaram em aberto e a variedade de arcabouços teóricos que poderiam servir de enquadre para um sem-número de releituras desse mesmo material, acredito que os conceitos cinematográficos tenham possibilitado uma expansão na comu nicação e, portanto, na relação entre os voluntários. Considero, ainda, que a participação dos professores sem formação na área de Letras, ou em estágios iniciais de sua formação, tenha sido facilitada pela oportunidade de usarem conceitos que podiam apreender por analogia. Acredito, também, que tenhamos avançado na construção de entendimentos sobre o que é uma aula que “flui”, embora não tenhamos pensado mais profundamente sobre o impacto que o “analisar cinematograficamente” tenha tido em termos de letramento audiovisual crítico. Por minha parte, posso dizer que 83 84 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 73-85 o processo de ressignificar minha formação anterior em Cinema - em busca de minha identidade como coordenadora pedagógica iniciante - foi extremamente importante em minhas práticas posteriores, dentro e fora de sala de aula. Registro-o como um processo de valorização de minha trajetória e de compartilhamento daquilo que eu acreditava poder oferecer ou, como diria Kramer, daquilo que eu tinha a narrar. Referências ALLWRIGHT, D. Exploratory Practice: rethinking practitioner research in language teaching. Language Teaching Research, Volume 7, n. 2. Arnold, 2003. ALLWRIGHT & HANKS. The developing language learner. London: Palgrave-Macmillan, 2009. BRUZZO, C. O cinema na escola: o professor, um espectador. 1995. 190 f. Tese (Doutorado em Educa ção). Faculdade de Educação. Univer sidade Federal de Campinas. São Paulo. 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Palavras-chave: sofrimento psíquico, sofrimento no trabalho; gestão participativa. Abstract: The objective of this paper is to discuss the relationship between mental health and psychological distress at work and the impact of interactive management in the workplace. Besides performing a brief retrospective on work in the history of mankind, more specifically in modern society, we will also publicize some qualitative research results. We have involved four teams of servers, from a multiple cases study in a public university library, trying to identify what was present in their resistance to labor psychological distress. Interactive management has emerged as a prominent element in this process. Keywords: psychological distress, suffering at work; participatory management. * Alzira Mitz Bernardes Guarany, Doutoranda e Mestre em Serviço Social (UFRJ). Professora e coordenadora do curso de Graduação e de Pós-Graduação Lato Sensu em Serviço Social da Universidade Veiga de Almeida. SAÚDE NO TRABALHO E GESTÃO PARTICIPATIVA Introdução Sabedores de que não existe uma solução definitiva para o fenômeno do sofrimento no trabalho numa sociedade capitalista, torna-se fundamental que tracemos estratégias para nos fortalecer diante da ferocidade do capital para com o homem em geral e para com o trabalhador em particular, demons trada pelas engrenagens da produção. A despeito da capacidade do sistema de se reinventar e se (re)fortalecer1, a manutenção de instâncias de lutas coletivas e denúncias é fundamental para o avanço da legislação que protege o trabalhador. No entanto, há uma dimensão particular dessa luta, mais imediata e também importante, que é o cotidiano, o qual não pode ter sua relevância secundarizada. O que podemos fazer para tornar este dia a dia do trabalho menos duro e penoso, servindo como elemento fortalecedor desse trabalhador diante das adversidades do trabalho na contemporaneidade? Em presença dos constrangimentos, da pressão e cobranças, o que fazer? Como auxiliá-lo? Viver situações como essas faz o trabalhador sofrer, mesmo que nem sempre o leve ao adoecimento. Conhecer e entender os elementos e as forças presentes no ambiente laboral que possam auxiliar o trabalhador a lidar com este sofrimento, evitando a transposição da linha saúde/doença, é uma forma de fortalecê-lo, mantendo-o firme enquanto não são produzidas mudanças estruturais capazes de modificar este cenário. Promover ambientes laborais cada vez mais democráticos e participativos pode tornar esses ambientes também mais saudáveis para os trabalhadores, fortalecendo sua agenda de lutas e tendo em vista elevar o padrão de vida desse trabalhador. Atualmente, a classe trabalhadora é um dos atores sociais mais agredidos no panorama de ideario neoliberal, independentemente do nível hierárquico em que se encontre no processo produtivo. O presente artigo pretende fazer um breve histórico da discussão teórica acerca da questão da saúde no trabalho, do sofrimento psíquico e da gestão participativa, bem como publicizar alguns dos resultados de uma pesquisa, em verdade um estudo de casos múltiplos, realizado em 2006 na biblioteca de uma universidade pública do Rio de Janeiro. O objetivo da pesquisa foi encontrar o(s) elemento(s) presente(s) no cotidiano laboral que contribuíssem, mesmo que minimamente, para o fortalecimento desses trabalhadores diante do so frimento psíquico no trabalho. Durante o estudo, emergiu a importância da gestão participativa, naquele contexto, como componente de fortalecimento do trabalhador diante das adversidades do mundo do trabalho na contemporaneidade, que geram sofrimento e adoecimento. 1-Breve histórico do significado social do trabalho na história Desde a antiguidade, o termo trabalho tem sido associado à imagem de sofrimento. Na Odisséia de Homero, temos o relato de Sísifo que, por ter desafiado os deuses, foi condenado a empurrar eternamente, montanha acima, 87 88 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 86-99 uma rocha que rolava de volta, assim que atingia o cume. A interpretação desse mito relata que o desespero de Sísifo não estava no empenho de ter de empurrar o pedregulho sempre, mas no defrontar-se com seu destino: ter consciência de que seu esforço foi em vão, assistir diariamente a seu trabalho produzindo re-trabalho, não perceber naquela tarefa qualquer sentido. Segundo Borges (apud ZANELLI, 2004, p. 24), este mito é considerado a tradução do trabalho inútil e da desesperança, que não produz satisfação naquele que o realiza. Já em sua origem latina, o termo trabalho vem da palavra tripalium, que tanto podia significar uma ferramenta de arado de tração animal como um instrumento de tortura. O sofrimento sempre esteve presente, não só na representação semântica ou social do trabalho, como também em sua dimensão real. Até hoje, há pessoas que empregam a expressão: “Primeiro o trabalho, depois o lazer!”, supondo que o primeiro não pode e nem está associado a uma atividade prazerosa, colocando os termos em contraposição. Na Grécia Antiga, não era muito diferente: tratava-se de uma tarefa própria do escravo da Polis. Trabalhar era visto como uma atividade menor e, de certa forma, constrangedora, e os trabalhadores não eram considerados cidadãos. A atividade nobre era o pensar. Filósofos clássicos como Platão e Aristóteles exaltavam o ócio e deixavam claro que o trabalho era uma atividade degradante, inferior e desgastante, que deveria ser executada pelos escravos. Com o advento do cristianismo no Ocidente, esse cenário ganha outra di- mensão: a espiritual. A ética cristã apresenta o trabalho como algo necessário aos homens. Ora aparece como obrigação para sua subsistência, ora como benção e, pode, ainda, em outros momentos, surgir como castigo pelo pe cado original: “[...] ganharás o pão com o suor de seu rosto[...]” (GÊNESIS, 3, p.19). Na Idade Média, no contexto do Feudalismo, o sofrimento apresentava outras facetas: a possibilidade de mobilidade social era praticamente nula e havia absoluta falta de liberdade para o trabalhador. Ali nasciam, ali deveriam morrer. As condições de trabalho, de vida, de saúde, sanitárias, econômicas e sociais eram muito desiguais. No século XVI, com a Reforma Protestante, o trabalho ganhou uma ética própria e certo status social. Sua prática passou a ser identificada como fonte de cultura e de toda riqueza, período muito bem explorado e analisado por Weber em seu livro A ética protestante e o espírito do capitalismo (1904/2005). Ainda que essa visão não afaste do trabalho o espectro do sofrimento, pelo menos, naquele momento, trabalhar significava exercer uma atividade positiva, socialmente falando, que traz retorno a quem o pratica e, se feita à exaustão, pode trazer até riqueza. Com o desenvolvimento de novas forças econômicas no interior da sociedade feudal, o crescimento da classe de comerciantes foi possibilitando a mudança dessa ordem social. O surgimento de um novo modo de produção – o capitalismo – levou a uma nova configuração de classes sociais e à ascensão da burguesia. Mas o sofrimento do tra- SAÚDE NO TRABALHO E GESTÃO PARTICIPATIVA balhador não acabou. Segundo Marx, ficou ainda mais cruel: na sociedade capitalista, que sucede a feudal, a exploração sofrida pelo trabalhador vem mascarada e oculta. Com um discurso de que agora o homem é livre para trabalhar onde e para quem queira, o trabalhador é mais espoliado, pois é absolutamente alienado do produto que produz, de sua condição de homem e da possibilidade de reconhecer no outro um igual em quem possa buscar apoio e com quem possa, até, organizar-se para lutar por melhores condições de trabalho e de vida. Não tem mais controle sobre o que é produzido, sobre a forma como deve ser produzido, nem sobre como e quando produzir. O trabalho é transformado em mercadoria, seu produto é reificado e fetichizado. 2 - O contexto e o significado social do trabalho na contemporaneidade A entrada da lógica de acumulação neoliberal representou um duro golpe no mundo do trabalho, principalmente no Brasil, que, no final da década de 80, havia garantido direitos sociais e de cidadania a sua população. O reordenamento das organizações de trabalho, agora sob uma “nova” estratégia de gestão, impõe aos trabalhadores duras mudanças, espoliando-os ainda mais da dimensão de realização por meio da atividade laboral. A temporalidade das relações também sofre com essas mudanças. As palavras de ordem, agora, são flexibilidade, agilidade e rapidez, em diversos âmbitos. A referência de bom trabalhador não é mais um histórico que mostre uma carreira longa dentro de uma mesma empresa. A inexistência do longo prazo desestabiliza a ação duradoura e afrouxa os laços de confiança. A flexibilidade do tempo, proposta como vantajosa, embora pareça prometer maior liberdade que a do trabalhador que ficava atrelado à rotina de uma fábrica “clássica”, está, ao contrário, envolvendo-o em uma nova trama de controle: o controle de sua subjetividade. Um trabalhador que usa o tempo de forma flexível pode até controlar a rotina de seu local de trabalho, mas não adquire maior controle sobre o processo de trabalho em si, o que é um dos fatores geradores de sofrimento. Senett (1999), baseado no relato de duas gerações, promove uma discussão sobre a fragilidade dos valores morais e éticos, impostos e necessários para esse novo padrão de acumulação flexível, e sobre seus impactos no caráter do homem. Como conseqüência desses ajustes, há uma crescente onda de desemprego, de postos de trabalho mal remunerados, de retrocesso no movimento sindical em termos de seu poder de luta e organização, de aumento da velocidade de produção e, consequentemente, um maior índice de sofrimento imposto à classe trabalhadora. O movimento mais flexível do capital acentua o novo, o fugidio, o efêmero, em vez de valores sólidos que antes vigiam no cenário corporativo. Somados a isso, temos, ainda, o individualismo exacerbado, em que cada um preocupase consigo e com seus problemas. Com diz Dejours, temos um sofrimento que é causado pela organização do trabalho, 89 90 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 86-99 mas que acaba por ser aprofundado pelos fracos laços que os trabalhadores estabelecem entre si. [...] todas as formas clássicas de solidariedade estão em processo de desestruturação – e não apenas as estratégias coletivas de defesa. Diante dos constrangimentos do trabalho, todos se encontram, psicologicamente, cada dia mais só. O ‘assédio moral’, por exemplo, [...] nada tem de novo, os ‘chefes’ e os patrões sempre perseguiram os trabalhadores. O que mudou é o crescimento desmesurado das patologias decorrentes destas perseguições, não apenas contra operários e contra os empregados, de maneira mais ampla, como também, agora, nas fileiras da hie rarquia intermediária. Por quê? Porque diante da perseguição não há mais solidariedade. E quando se está só, abandonado pelos demais, é psicologicamente muita mais difícil suportar a injustiça do que quando se conta com a cumplicidade dos colegas. Todas as patologias relacionadas ao trabalho, hoje, são, antes, patologias da solidão. Este desaparecimento das solida riedades manifesta-se até mesmo no espaço público, onde se assiste a uma despolitização global... O individualismo é uma derrota e não um ideal. (DEJOURS apud SNELZWAR, p. 17, 2004). Proposto como alternativa para enfrentar a crise do capital, o neoliberalismo trouxe novo nexo para a correlação de forças sociais e, com ele, mudanças profundas no mundo do trabalho. Dentre elas, destaca-se a reestruturação produtiva, a precarização do trabalho, o desemprego estrutural e, consequentemente, o temor de ser excluído do processo produtivo formal. Todo esse clima gera grande sofrimento. O trabalhador no contexto neoli beral sente-se pressionado durante toda a jornada de trabalho, jornada esta que, com algumas exceções, excede as 8 horas diárias e, não raro, o mantém ainda “ligado” e “logado” ao trabalho, mesmo quando está em casa, pensando nas pendências, preocupado com seu desempenho e com o fantasma da demissão diante do desemprego estrutural. Há ainda as “facilidades” permitidas pela Revolução Tecnológica, que nos colocam aparatos eletrônicos como o celular, o computador e o notebook, que também contribuem com essa “disponibilidade” para a atividade laboral. Enfim, o mundo do trabalho só fez crescerem os elementos que podem aprofundar o sofrimento no trabalho. No momento em que deveria desligarse dos seus afazeres para se dedicar-se às outras atividades de sua vida, o trabalhador permanece vinculado ao trabalho e, o que é pior, em uma ligação de permanente temor, pois o medo encontra-se no cerne dessa relação. Medo de não dar conta das tarefas, medo do desemprego, medo de não atingir a expectativa do gestor, medo de não entregar o trabalho a tempo, só para citar alguns dos muitos temores que o assolam. É interessante notar que, quando se fala do sofrimento no trabalho, o cenário que se desenha é o de uma sociedade capitalista, guiada pelo lucro. Porém, o sofrimento no trabalho não SAÚDE NO TRABALHO E GESTÃO PARTICIPATIVA está presente somente no capitalismo. Segundo Heloani (2003), mesmo em países que instauraram um modelo de organização ideopolítica e econômica baseada nos preceitos marxistas, com uma lógica socialista de mercado, de produção e apropriação coletiva das riquezas produzidas, o sofrimento no trabalho é presente. Mesmo nesses países, o trabalhador deve se adequar à organização do trabalho e à racionalização da atividade laboral e não o contrário. Na China, por exemplo, a “desmaoização” da economia promoveu a abertura para o mercado, criando novas empresas que implementaram mecanismos incrementadores do trabalho, com adoção de medidas disciplinares muito severas, incluindo o aumento da jornada de trabalho e a cobrança de multas - o que dá mostras do implemento de um taylorismo aplicado com um rigor inaudito. Pode-se, daí, depreender que, em última instância, é a organização do trabalho que está por trás do sofrimento. As relações sociais são historicamente determinadas pelo modo de produção hegemônico adotado pela sociedade, mas são, também, resultado da correlação de forças existente no interior desta. Diversas classes e frações de classes lutam pela garantia de suas próprias causas. Marx (1851/1974) já dava conta desta complexidade desde seu livro O 18 Brumário, no qual ana lisa os fatos históricos que levaram Luis Bonaparte ao poder, garantindo-se em alianças aparentemente impensáveis. Nesse texto, Marx identifica mais do que a correlação entre as duas grandes classes estruturais. Podemos encontrar nessa obra, enumeradas, em torno de 12 classes e frações de classes que se alia ram para garantir a ascensão burguesa. Na contemporaneidade, percebemos a complexificação dessa correlação de forças gerando muitas consequências e, dentre elas, o sofrimento impingido ao trabalhador. É nesse espaço contraditório que a Gestão Participativa se inscreve, podendo desempenhar um papel favorável ao trabalhador em suas lutas reinvidicatórias. Sendo, num primeiro momento, uma ferramenta (re)acessada2 pela administração mo derna para “otimizar” a produtividade do trabalhador, pode também servir de instrumento para o seu fortalecimento, na medida em que se baseia em sua participação no processo decisório3. 3- O trabalho na contemporaneidade e o sofrimento psíquico A questão do sofrimento psíquico no trabalho chamou-nos a atenção quando, inseridos numa empresa multinacional, mais especificamente na área de Recursos Humanos, observamos alguns eventos que nos despertaram para a questão da saúde do trabalhador e da qualidade do ambiente laboral. Em apenas quatro meses, mais de meia dezena de funcionários apresentaram sérios transtornos psíquicos, a ponto de terem de ser afastados do trabalho. É interessante apontar que esses traba lhadores integravam níveis variados da estrutura hierárquica da empresa, não denotando, em um primeiro momento, relação direta entre o fenô meno e o cargo que ocupavam na 91 92 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 86-99 organização. Havia gestores com crise depressiva, empregados da área comercial com surtos psicóticos e síndrome do pânico e até alguns funcionários da linha de operações da fábrica apresentando distúrbios mentais. Quando confrontados com a possibilidade de voltarem ao trabalho ou, ainda, quando mantinham qualquer tipo de contato com o ambiente laboral (indo ao local ou por telefone), apresentavam comportamentos que denotavam angústia, depressão e, em alguns casos, rompimento do contato com a realidade. Havia aqueles que, sustentando coerência em seu discurso, colocavam-se veementemente contra a possibilidade de voltar para seu posto de trabalho ou ter contato com seu superior imediato. A equipe interdisciplinar e interinstitucional que os acompanhou e atendeu nesses períodos concluiu que os quadros patológicos apresentados tinham relação direta com trabalho e com o tipo de gestão a que estes trabalhadores eram submetidos. A despeito de ser uma empresa que tinha como premissa atender à legislação de Saúde e Segurança do Trabalhador e que possuía em seus quadros alguns profissionais dedicados à questão da saúde do trabalhador - como médicos, assistentes sociais e técnicos de segurança do trabalho - o número de funcionários afastados por sofrimento psíquico era, no mínimo, significativo. Dentre as ações da equipe inter disciplinar, estava a busca por autores, pesquisadores, que se debruçassem sobre a questão do sofrimento psíquico no trabalho, na tentativa de dar base científica às atuações organizacionais. No entanto, verificou-se que, naque la época (2003), os estudos não abordavam, prioritariamente, a questão da prevenção do adoecimento. Em sua maioria, constatavam, quantificavam e discutiam a doença já instalada e causada pelo sofrimento no trabalho. Propôs-se, então, empreender uma pesquisa para compreender o mecanismo de sofrimento psíquico. Que elementos poderiam existir no ambiente laboral que pudessem engendrar resistência nesses trabalhadores? De que forma eles conseguiriam se defender diante do risco a sua saúde mental? Seriam as relações interpessoais, os laços sociais com os colegas de trabalho e/ou intragrupais, o “suporte” para tal resistência, que lhes permitiam não sucumbir e até fazer com aquele ambiente tivesse uma atmosfera menos hostil? Seria o tipo de gestão ao qual estavam submetidos o que levava seus integrantes a transformarem as adversidades em suas aliadas? Seria algum fator individual o que os ajudava diante do sofrimento? Estas perguntas foram o mote da pesquisa: quais elementos poderiam, ou não, estar presentes no ambiente laboral, de forma a amenizar o sofrimento psíquico impingido pela a atividade laborativa ou, minimamente, auxiliar o trabalhador a reagir diante dele, fortalecendo-o e, ainda, fortalecendo seu processo de luta coletiva. Na pesquisa teórica empreendida, encontramos em Dejours a possibilidade de estratégias individuais e coletivas de defesa diante do sofrimento ocasionado pelo trabalho. Esses conceitos surgem, primeiramente, em A Loucura do SAÚDE NO TRABALHO E GESTÃO PARTICIPATIVA Trabalho (1980/2003) e evoluem no decorrer de sua trajetória acadêmica. Para o autor, estratégias de defesa seriam formas encontradas pelos trabalhadores para se manterem como sujeitos diante de um trabalho que tenta aliená-los ou ainda “[...] uma forma específica de cooperação entre os trabalhadores para lutarem juntos contra o sofrimento engendrado pelos constrangimentos do trabalho” (DEJOURS apud SNELZWAR, 2004, p.16). Há, ainda, as estratégias individuais. Algumas delas não levam, necessariamente, a um bom termo, isto é, elas podem se traduzir em abuso do álcool, exposição maior a riscos ou evitação de regras de segurança para demonstrar domínio sobre a atividade laboral. Outras aparecem sob forma de reivindicações para melhorar, ou até mudar, a organização do trabalho, por meio de atitudes que não encontramos nos manuais organizacionais e das quais o trabalhador lança mão, como que para se manter “blindado”, ou ainda “anestesiado”, diante dos riscos à sua saúde mental. As estratégias podem ser individuais ou coletivas, como indicado pelo próprio Dejours. “[...] A proteção da saúde mental não depende apenas do talento de cada indivíduo [...] essa proteção passa também pelas ‘estratégias coletivas de defesa’, que desempenham um papel relevante [...]” (id, p. 17). A formação psicanalítica do autor deixa marcas claras em sua metodo logia, que prioriza a escuta da fala do cliente/ reclamante/ trabalhador. Ainda assim, ele avança para além dos paradigmas psicanalíticos, na medida em que aponta alguns desafios dessa abordagem, como as estratégias coletivas de enfrentamento. Selligman-Silva, em seu livro Desgaste Mental no Trabalho Dominado (1994), no qual faz uma retrospectiva de diversas linhas de estudo sobre saúde mental no trabalho, também aponta estratégias individuais e coletivas de defesa. No entanto, diferentemente de Dejours, faz uma distinção semântica entre resistência e defesa, apontando que a última não tem necessariamente o compromisso de alterar ou transformar as condições geradoras de sofrimento, mas somente o de tornar suportável a penosidade do trabalho. Entre as estratégias enumeradas pela autora, encontramos mecanismos psicológicos de defesa como sublimação, repressão e isolamento, brincadeiras e ironias entre os trabalhadores, relacionadas ou não a seus gestores, defesas compensatórias, entre outras. Não identificamos, nem em Selligman-Silva nem em Dejours, nenhuma estratégia que incluísse o estabelecimento ou aprofundamento dos laços sociais que os trabalhadores constituem entre si, a partir do seu ambiente laboral, ou a importância do gestor (do chefe, gerente, coordenador, enfim, o responsável pela gestão do cotidiano laboral) na condução do trabalho, junto a sua equipe. Para não cometermos uma injustiça, as únicas exceções quanto à questão dos laços sociais ficam por conta de uma citação que Selligman-Silva faz a um estudo empreendido nos anos 80 por um pesquisador francês - Robert Linhart - em uma fábrica da Citröen, em que o autor aponta a importância das relações entre os trabalhadores, mais 93 94 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 86-99 especificamente da solidariedade entre os trabalhadores. Porém, tal estudo centra seus olhares no processo de resistência por meio da organização de um movimento de lutas do coletivo dos trabalhadores, com foco na garantia de suas reinvidicações pelos direitos trabalhistas e não na relação saúde/ doença laborais. Por sua vez, Dejours começa a tocar nesses pontos, em um livro publicado no Brasil em 2004, organizado por Selma Lancman e Laerte Idal Sznelwar, de nome Christophe Dejours – Da psicopatologia à Psicodinâmica do Trabalho, que, em seu avant-propos, relaciona o sofrimento psíquico no trabalho às estratégias coletivas de defesa. Menciona, entre elas, as relações, os laços, os vínculos sociais estabelecidos entre os trabalhadores e o apoio representado por ele. Menciona, ainda, a importância da relação entre os chefes e suas equipes, na questão do reconhecimento e do apoio dos primeiros à participação dos trabalhadores no processo decisório. Em verdade, é pela leitura “invertida” que fazemos do exposto em alguns trechos do livro, que percebemos que o autor começa a ver como importantes os laços sociais estabelecidos no ambiente laboral e o suporte que essas relações representam como uma forma do trabalhador resistir diante do sofrimento psíquico. Consideramos o trecho:“[...] Diante dos constrangimentos do trabalho, todos se encontram, psicologicamente cada dia mais sós.”, ou, ainda, o trecho: “[...] E quando se está só, abandonado pelos demais, é psicologicamente muito mais difícil suportar a injustiça do que quando se conta com a cumplicidade dos colegas.” (ibid, 2004, p. 17). Quanto à discussão da participação do trabalhador no processo decisório ou da questão da gestão participativa, podemos, num esforço intelectual, identificá-lo quando o autor introduz o conceito de alteridade: “[...] É a partir do ‘olhar do outro’ que nos constituímos como sujeitos; [...]” (ibid), ou seja, se este outro é representando por um gestor que exerce a gestão participativa, reconhece a participação de cada um no processo produtivo, valorizando-me como trabalhador. Isso se traduz em um ambiente menos penoso do que um em que o gerente assediasse moralmente seus subordinados ou fosse autoritário. Na literatura sobre saúde do trabalhador, questões que fujam à dimensão orgânica, ou objetiva e mensurável, no processo de adoecimento, têm, em geral, sua participação secundarizada. Porém, atualmente, o tema sofrimento psíquico no espaço laboral não é apenas matéria de especialistas, estudiosos ou cientistas da área de Saúde do Trabalho, atraindo para si a atenção de leigos. Tocar nesse assunto mobiliza, rapidamente, interessados em discuti-lo; alguns, inclusive, dando testemunhos de experiências próprias, de amigos ou conhecidos que viveram experiências relacionadas ao assunto. Em empresas modernas, o perigo não mora mais, necessariamente, em ambientes escandalosamente insalubres, barulhentos ou úmidos, mas nas imposições de horário, de ritmo, de formação, de informação, das relações estabelecidas ali, além dos aspectos visíveis da organização e do processo de trabalho. SAÚDE NO TRABALHO E GESTÃO PARTICIPATIVA Em 1991, a American Psychologist alertou para o fato de o sofrimento psíquico no trabalho ser a segunda causa de afastamento no trabalho nos Estados Unidos. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o estresse é um dos mais graves problemas de trabalho na atualidade: estatísticas da OIT apontam que, no Brasil, pelo menos metade da População Economicamente Ativa (PEA) já passou por um momento de estresse no ambiente de trabalho, causado pelos fatores já enumerados aqui ou por fatores extra-ambiente la boral, mas que devem urgentemente ser avaliados. Ações devem ser tomadas, já que tais fatores são a causa da morte de mais de 2 milhões de pessoas no mundo, matando mais do que as drogas e o álcool juntos. A própria Previdência aponta os transtornos mentais como a terceira maior incidência nos casos de auxílio-doença. Como registra Pereira, em seu estudo realizado com fisioterapeutas que trabalhavam em um único hospital, isto é, não tinham jornadas de trabalho múltiplas (na área da assistência), 46% apresentavam alto índice de exaustão emocional e apenas 7% deles tinha alta satisfação no trabalho que executavam (2002, p. 97). Em 2003, é publicado o estudo Safety in numbers: pointers for a global safety culture at work, da OIT, mostrando-nos números estarrecedores: ocorrem em média 270 milhões de acidentes de trabalho por ano no mundo e 75% deles (isto é, algo em torno de 200 milhões) poderiam ser facilmente evitados com ações preventivas. As mortes, os acidentes e as doenças causadas pelo tra- balho consomem em torno de 4% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial, e, só no Brasil, estima-se que esse custo gire em torno de 10% do nosso PIB (OIT, 2003). É importantíssimo pontuar que este âmbito – a saúde do trabalhador seja talvez o único em que forças estruturalmente antagônicas do capitalismo tenham uma confluência temática de interesse, que se coloca, obviamente, de maneira distinta para ambos os lados. Para o capital, é uma questão relacionada a “problemas de produção”; para outros é um “problema de vida”. 4 - O sofrimento no trabalho e a gestão participativa Na instituição pública de ensino na qual ocorreu a pesquisa, encontramos, nos relatórios da área de saúde do trabalhador de 2003, 2.214 afastamentos do trabalho por doença, em um grupo de aproximadamente 4.000 trabalhadores, sendo que 24,4% foram motivados por transtorno mental! Cabe ressaltar que a medicina já reconhece que muitas outras patologias podem estar relacionadas ao estresse, o que aumenta ainda mais a possibilidade de, no número global de adoecimentos, termos também ocorrências motivadas pelo sofrimento psíquico no trabalho, o que multiplicaria exponencialmente esse número. Após cuidadoso estudo dos documentos e estatísticas, produzidos pelo departamento de saúde do trabalhador da universidade, decidiu-se eleger como universo da pesquisa os servidores que atuavam na rede de bibliotecas, por ser um setor que mantinha ambientes, 95 96 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 86-99 processos e organizações de trabalho bastante similares, além de apresentar um representativo número de adoecimentos, inclusive por patologia mental. Os fatores que poderiam alterar a dinâmica do grupo seriam o ambiente, as relações que o grupo estabeleceria entre si, além da gestão direta do trabalho e do cotidiano, elementos que compõem as hipóteses desta pesquisa. Seguindo o conselho metodológico de Codo (2002), adotamos, ainda, a postura de incluir nos estudos a análise daqueles indivíduos que adoecem e daqueles que não adoecem, pois, apesar de estarem submetidos a condições semelhantes, os resultados obtidos em pesquisas junto aos dois grupos têm se mostrado complementares, enriquecendo e ampliando a visão do problema. Desta forma, optamos por entrevistar dois tipos de setores: aqueles que apresentassem o maior índice de adoecimento e aqueles com menores índices, como forma de tentar estabelecer alguma relação entre eles. A amostra contou com quatro equipes diferentes, o que representa perto de 20% do contingente de equipes da rede e mais de 10% de seu total de servidores, escolhidos por apresentarem os menores e os maiores índices de adoecimento. Foram realizadas 21 en trevistas utilizando um roteiro semi-estruturado que buscou levantar informações mais objetivas, referentes ao tempo de serviço na universidade e ao tempo de serviço no setor onde se encontravam lotados naquele momento, bem como idade, sexo, cargo atual, estado civil e grau de instrução, além de outras questões mais subjetivas, acerca do co- tidiano no trabalho, das impressões sobre a chefia, do sofrimento no trabalho, das angústias e experiências de cada um deles no ambiente laboral. Cabe ainda destacar que trabalhamos com dois roteiros, um para o gestor e outro para sua equipe, já que há o entendimento de que o papel de gestor faz com que a vivência e as expectativas sejam diferentes daquelas de sua equipe. Dos entrevistados, 50% exercem cargos de bibliotecários; 45% são assistentes e agentes administrativos, cargos de nível médio; e 5% são auxiliares ope racionais, função de nível fundamental. 15% dos entrevistados são homens e 85% mulheres, entre 30 e 60 anos de idade. A maioria tem mais de 10 anos na universidade e 98% deles estão na rede de bibliotecas desde o início de suas atividades na instituição. A todos os entrevistados foi soli citado que definissem sofrimento no trabalho. 50% não souberam definir o que seria este sentimento e aqueles que o fizeram relataram já terem passado por isso, mas em outros tempos, identificando o sofrimento como sentimento de inadequação ao lugar e às tarefas, falta de respeito e reconhecimento do seu trabalho e, ainda, ausência de direção nas atividades laborais. Para a maioria dos servidores entrevistados, não era relevante o significado da reação, individual ou coletiva, diante do so frimento, ou seja, o entendimento que tinham acerca do sofrimento não era importante, já que não estavam vivendo isso naquele momento, e aqueles que relataram que estavam passando por isso tinham encontrado saídas em movimentos individuais. Contudo, ficou SAÚDE NO TRABALHO E GESTÃO PARTICIPATIVA patente a importância e a influência que, para eles, têm o modo como é feita a gestão do seu cotidiano e a existência de sofrimento: “[...] a gente não se sente bem com a falta de gestão [...] e então cobra um pouco dela que se posicione [...] principalmente quando temos um conflito [...]” ou, como vemos em outra entrevista: “[...] como pessoa é excelente, muito boa pessoa mesmo, mas assim na postura ele se põe assim... eu acho que falta se posicionar como chefe [...] até hoje a gente não teve uma reunião [...] eu acho que chefia é isso você saber coordenar os trabalhos [...]”. Esses e outros trechos deixam claro que, nas equipes pesquisadas em que os subordinados vivenciam a falta de gestão, temos o sofrimento agravado, já que ele já existe em função do contexto de penúria no qual a universidade se insere. Fica então, nesse aspecto, patente que o estilo de gestão pode estar agravando esse sofrimento, quando poderia ajudar a amenizá-lo. Em todas as entrevistas realizadas e entre todos os elementos investigados, pode-se verificar que o tipo de gestão direta exercida no ambiente laboral tem certa importância no nível de satisfação e sofrimento no trabalho, influenciando a dinâmica de suas equipes e, conse quentemente, a resistência ou não diante disso. Nos grupos nos quais o sofrimento se fazia presente, o fator foi associado pelos entrevistados ao estilo de gestão, fosse pelo fato de ser permissiva, sem dar direcionamento e com baixíssima ocorrência de reco nhecimento, ou porque o grupo estava, naquele momento, acéfalo, sem direção, cabendo a cada um gerir seu próprio trabalho. As equipes com menores índices de adoecimentos sentiam-se respeitadas, confiantes, criativas, valorizadas e creditavam isso ao gestor que têm; nas equipes com níveis de insatisfação e sofrimento elevados, o cenário relatado foi de descompasso entre eles e o gestor, de falta de práticas de reconhecimento e de abandono na equipe, estimulando mais a relação individualizada. Cabe destacar que nem sempre a participação significa efetividade da presença do trabalhador no processo decisório. Os estudos realizados sobre as formas de gestão participativa no Brasil indicam que, na maioria das experiências, a participação dos trabalhadores aponta para uma aliena ção maximizada na medida em que se exige, além do trabalho, a afetividade e/ou até o inconsciente (HELOANI, 2003). E, quando se trata da análise da participação dos trabalhadores versus poder, observa-se que ela é apenas consultiva e que o poder de decisão não pertence a eles, particularmente em questões cruciais como no caso de demissões, por exemplo. Heloani (2003) ainda coloca que se deve, então, promover uma revisão dos métodos tradicionais de gestão, e mesmo daqueles métodos modernizantes que foram adaptados a uma forma de organização empresarial que responde às necessidades da valorização do capital, da acumulação capitalista. Apesar desses limites, estimular e buscar exercer e fomentar formas efetivamente democráticas e partici pativas no ambiente de trabalho pode contribuir, mesmo que em parte, para a garantia de um ambiente laboral 97 98 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 86-99 que não atente contra a saúde mental do trabalhador, fortalecendo-o diante do sofrimento e dando-lhe condições para resistir àquilo que não podemos transformar em curto prazo. 5 - Considerações Finais Este artigo foi elaborado tendo como base um estudo de casos múltiplos desenvolvido a partir de uma investigação na qual a gestão participativa emerge como elemento diferencial diante do sofrimento psíquico e de seu processo de resistência. Por ter utilizado esta metodologia, os resultados do estudo retratam uma realidade particular, mas que pode funcionar como ponto de partida para uma análise que busque estabelecer relações com o macrocontexto social, podendo ser utilizadas como explanações e até aplicadas a ou tros casos. O “[...] objetivo é fazer uma análise generalizante e não particularizante [...]” (Lipset, Trow & Coleman, 1956, p. 419-420 apud Yin, 2001, p. 27) como afirma o pesquisador e defensor do instrumento Robert Yin. Há aqueles que veem como única saída a organização coletiva dos trabalhadores para, juntos, elaborarem uma agenda reivindicatória, de forma a pautar seus movimentos e suas lutas contra os efeitos deletérios da organização do trabalho. Esta instância é de fundamental importância e seu histórico de conquistas na correlação de forças em nossa sociedade é testemunha de seu alcance. Não há como negar a importância destas ações. Porém, há espaços, mediações e clivagens nas quais se podem engendrar ações que são circunscritas nessas mesmas lutas, só que em dimensões do cotidiano do trabalho. É o caso das ações que se dão no campo da cultura organizacional e da gestão do trabalho e que também podem contribuir na luta pela democratização dos espaços organizacionais ou, ainda, apoiar as relações estabelecidas a partir do espaço laboral, mediando conflitos e estimulando a formação de laços sociais, como forma de fortalecer os trabalhadores e sua saúde, conforme apontam os resultados deste estudo. NOTAS (1) Montaño em seu livro Terceiro Setor e Questão Social (2003) aponta que o capitalismo, a despeito de enfrentar “[...] no último quarto de século [...] uma crise estrutural [...]” (apud Coggiola, 1997: 149, in Montaño: 2003: 25) “[...] tem demonstrado, historicamente, uma notável capacidade de se refazer como a ‘fênix’, de ‘corrigir’, de ‘neutralizar’ (temporariamente) suas crises, mediante mecanismos (econômicos, políticos, ideológicos, le- gais ou não) que interceptam ou anula transitoriamente os efeitos [...]” (2) Em verdade a gestão participativa não é tão moderna assim, pois segundo Maximiniano (2006) a “[...] Administração participativa é uma das idéias mais antigas da administração [...] é uma idéia que nasceu na Grécia, há mais de 2.000 anos, com a invenção da democracia”. SAÚDE NO TRABALHO E GESTÃO PARTICIPATIVA (3) Ainda segundo Maximiniano (2006) a “[...] administração participativa é uma filosofia ou uma doutrina que valoriza a participação das pessoas no processo de tomar decisões [...]”, isto é, tem como importante a participação de todos os envolvidos com a organização e não somente dos trabalhadores. A sua adoção implica, entre outras coisas, em ter consciência de que a alienação promovida pelos modelos convencionais de gestão não traz os melhores resultados nem para a organização muito menos para o trabalhador. Referências CODO, Wanderley e JACQUES, M. G. (orgs). Saúde mental e trabalho. Rio de Janeiro: Ed.Vozes, 2002. DEJOURS, Christophe. A loucura do trabalho. São Paulo: Cortez Editora, 2003. HELOANI, R. Gestão e organização no capitalismo globalizado. História da manipulação psicológica no mundo do trabalho. São Paulo: Atlas, 2003. MARX, K. O 18 brumário. São Paulo: Abril Cultural, 1978. Coleção Os pensadores. PEREIRA, A. M. T. B. (Org.). Burnout: quando o trabalho ameaça o bem-estar do trabalhador. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002. YIN, Robert K. Estudo de Caso – Planejamento e Métodos, Porto Alegre: Ed. Bookman, 2001 SELIGMANN-SILVA, Edith. Desgaste mental no trabalho dominado. São Paulo: Cortez Editora, 1994. SENETT, R. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999. ______¬¬¬¬__. O capital: o processo de produção do capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. Livro 1, v. 1. SZNELWAR, L. I.; LANCMAN, S. (Orgs.). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004. MAXIMIANO, Antonio César Amaru. Da revolução Urbana a Revolução Digital. São Paulo: Editora Atlas, 2006. WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2005. MONTAÑO, C. Terceiro setor e a questão social. São Paulo: Cortez, 2003. ZANELLI, J. C. et al. (Orgs.). Psicologia, organizações e trabalho no Brasil. São Paulo: Artmed, 2004. OIT – Organização Internacional do Trabalho. Disponível em: <http// <www. oit.org.br>. Acesso em: 10 de outubro de 2003. 99 100 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 100-110 Responsabilidade Social Empresarial: necessidade e criatividade • ENSAIO/ENTREVISTA Corporative Social Responsibility: need and creativity • Álvaro Enrique Rodriguez Hernandez * Originalmente publicado pela Revista Poliantea (n.11, Jul/Dez, 2010) da Institución Universitaria Politécnico Grancolombiano (Rede Ilumno). Tradução para a Língua Portuguesa por Fabíola Costa (Licenciada em Letras Português/Inglês, Universidade Veiga de Almeida). Resumo: Este trabalho apresenta a criatividade como um ponto de vital importância quando se pensa em Responsabilidade Social Empresarial (RSE) nas organizações. Determina e defende a necessidade que o país possui de contar com empresas comprometidas com processo de RSE. Apresenta exemplos de histórias de sucesso em RSE e fontes de consulta diretas, que conceituam e fornecem um quadro contextual para seu desenvolvimento e seus fundamentos. Apresenta, ainda, entrevista com um dos mais proeminentes estudiosos da RSE da Espanha, revelando o status dessa área de estudo na Europa e algumas recomendações para aperfeiçoar a implementação da RSE. Palavras-chave: Responsabilidade social corporativa, criatividade, organização, oportunidades de negócios, compromisso social. Abstract: This work presents creativity as a point of vital importance when thinking about the corporate social responsibility of organizations. It determines and supports the need for the country to have companies committed to CSR processes. It also shows successful cases of CSR and consults direct sources that conceptualize and provide a contextual framework for CSR’s development and fundamentals. It also presents an interview with one of the leading scholars of corporate social responsibility in Spain, through which it is possible to know the status of this field in Europe and to have some recommendations in order to optimize CSR’s implementation. Keywords: Corporate Social Responsibility, creativity, organizations, business opportunities, social commitment. Álvaro Enrique Rodriguez Hernandez, Especialista em Docência Universitária. Radialista, Colunista, Professor da Instituición Universitaria Politécnico Grancolombiano * J osé Miguel Insulza, secretário-geral da Or ganização dos Estados Americanos (OEA), disse: “A pobreza e a desigualdade afetam a qualidade da democracia e impedem a sua plena realização na região”. Disse, ainda: “que mais de um terço de pessoas da região ainda permanecem vivendo em meio à pobreza, o que não corresponde a um continente com o nosso nível de desenvolvimento” (Agência Andina, 2011). Segundo dados do DANE, 48,3% das famílias, a nível nacional, são consideradas pobres. Luis Pérez Gutiérrez, no jornal El Mundo de Medellín, disse: “Na América Latina existem 34 milhões de analfabetos absolutos, o que nos demons tra o quão sério é o nosso convívio com o pós-modernismo”(2011). Rádio Múnera revela dados da Unesco: “É crescente o índice de analfabetismo na Colômbia. Sete em cada cem colombianos, maiores de 15 anos, não sabem ler ou escrever, apesar dos esforços recentes para combater este fenômeno, assegurou a Unesco”. Enquanto isso, El Universal intitula “Afrocolombianos rejeitam a inviabilização de seus direitos”, e a Corporación Humanas da Colômbia relata: “77% das mulheres colombianas se sentem discriminadas e 84% acreditam que a Colômbia é um país machista. Foi o que revelou a primeira pesquisa nacional de percepção das mulheres sobre sua situação e condições de vida na Colômbia”. Os dados acima marcam um contexto que tem números e casos muito mais Responsabilidade Social Empresarial: necessidade e criatividade 101 arrepiantes do que os mostrados aqui: abusos, maus tratos, exploração de trabalho e a pobreza, entre outros, são uma realidade que não se deve ignorar mais. De fato, os pensamentos utópicos e filantrópicos possuem espaço de sobra na atualidade , ainda mais quando vemos manchetes como a de The Spectator, de 15 de fevereiro de 2010: “os lucros do setor financeiro atingiram 8,5 bilhões de pesos.” O setor privado, além dos planos e políticas de governo, é chamado a ajudar aqueles que estão em condições desfavoráveis e, claro, o exemplo deve começar em casa: uma empresa com saudáveis práticas de negócios e um compromisso com o bem-estar de seus colaboradores faz com que esses planos sejam irradiados por seu ambiente. Ou seja, é necessário que cada empresa: a família, as PME (pequenas e médias empresas), as multinacionais e outras, entrem de, forma programada e sustentável, no desenvolvimento de políticas e planos de responsabilidade social empresarial (RSE). “Oh! Novamente a mesma história, mas, se mais de uma vez perdemos números por causa disso e o dinheiro se torna insuficiente para atender a folha de pagamento...” Precisamente desde a própria folha de pagamento, pode-se gerar um programa de RSE. Seus funcionários podem ser o início de um plano que tenha grande impacto positivo sobre o desenvolvimento e bem-estar de uma população em condições adversas. Mas o que é a RSE? Segundo o Centro Colombiano de Responsabilidade Corporativa (CCRE), ela é definida como: 102 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 100-110 a capacidade de resposta que uma empresa ou uma organização possui, a partir dos efeitos e implicações de suas ações sobre os vários grupos com os quais interage (stake holders e grupos de interesse). Assim, as empresas são socialmente responsáveis quando as atividades são voltadas para atender às necessidades e expectativas de seus membros, da sociedade e daqueles que se beneficiam da sua atividade comercial, bem como aos cuidados e preservação do meio ambiente (CCR, 2010, não paginado) Se esta definição tivesse uma implementação eficaz, definitivamente, o pa norama mostraria uma sociedade cons truída sobre a equidade e igualdade de oportunidades; mas, às vezes, tais ideias são mal interpretadas ou mal utilizadas, como bem explica o jornalista e analista econômico Francisco Leal Mateus: A RSE tornou-se uma salva à bandeira. A maioria das empresas fazem doações a fundações ou ONGs para ajudar as populações mais vulneráveis, mas muitas dessas organizações são montadas por elas mesmas. O auxílio, de uma forma ou de outra, é deduzido dos impostos, mas retorna para a mesma caixa ou para os bolsos dos proprietários. Definitivamente, o setor privado responde a um modelo de negócios amplamente conhecido como empresa com fins lucrativos. A RSE é mais uma oportunidade para aumentar a receita, mas não deve ser abandonada à própria sorte, como explica Leal: A RSE é algo que funciona se for aplicada como deve ser. Mas, acontece com a RSE o mesmo que aconteceu com o conceito de corporativismo; é bom em sua base, mas, quando aqueles que o aplicam o convertem em negócio, perdem-no. Uma coisa é que seja rentável e outra é transformá-la num negócio. Muitas das empresas que estão na Superintendência de Empresas e na Bolsa de Valores aplicam o conceito com boas práticas de governança. Para Francisco Leal, a RSE deve fornecer um cenário “que contribua com a formação no crescimento humano, o desenvolvimento social e econômico das pessoas. É a criação de empresas sociais que ajudam a reduzir o hiato de pobreza”. 1. A RSE oferece novas oportunidades Jacqueline Butcher de Rivas, presidenta do conselho de administração do Centro Mexicano para a Filantropia (Cemefi), diz: “No mundo de hoje, a responsabilidade social empresarial é uma nova forma de fazer negócios para a construção do bem comum”. Um dos exemplos mais claros de diversificação de negócios oriundos da RSE é o caso do canal internacional Discovery. Com dois projetos, o Discovery expandiu o seu âmbito, baixou custos operacionais em marketing, modernizou a interação entre os telespectadores ou usuários e incorporou tecnologias de comunicação, colocando-as a serviço da educação e do meio ambiente, tudo graças a uma Responsabilidade Social Empresarial: necessidade e criatividade grande exibição de criatividade. Sem sair das telas, o Discovery consolidou dois novos espaços, o primeiro intitulado Discovery na Escola, com produções que chegam às salas de aula via satélite ou a cabo. O projeto é patrocinado por organizações e indivíduos que buscam uma massa de conhecimento e, em muitos casos, é apoiado pelos próprios operadores de cabo. Dessa forma, os professores possuem uma ferramenta didática a partir da qual podem preparar suas aulas, partindo das ideias contidas no projeto; a Discovery retoma suas produções, adaptando-as em um formato mais simples para facilitar o uso do material. O segundo é Planeta te quiero verde, um plano focado que envolve o setor ambiental e engloba desde Discovery Kids até seus espectadores mais jovens. Encoraja as crianças a se aproximarem e desenvolverem novas tecnologias e a, por meio de vídeo, desenvolverem propostas que partem de seu cotidiano para ajudar a melhorar o planeta. Incluem totalmente os seus stake holders, aproveitam as atuais tecnologias dinâmicas existentes e promovem a gestão ambiental por meio da educação das novas gerações, além de aumentar a dinâmica da família, com a construção de micro vídeos. Definitivamente, um dos aspectos relevantes da RSE é a questão do meio ambiente: a consciência ambiental deve ser incluída a partir da gestão de recursos internos da empresa, do impacto ambiental da produção e de sua contribuição para a sustentabilidade dos recursos de seus ambientes nos níveis local, regional e global. 103 Além disso, os processos de aprendizagem são muito bem recebidos e melhor aproveitados quando se trata de construir bases sólidas com crianças, como no caso da Faber Castell, que criou Fábrica Ecolápiz. Aproveitando que, nos primeiros anos, o que mais se faz é desenhar, colorir, e a maior distração dos pequenos inclui a pintura, a multinacional alemã ensina, por meio dessa atração, como são fabricados os lápis de colorir, utilizando um método com o qual o meio ambiente sofre impacto mínimo. Em acompanhamento permanente, as crianças vão conhecendo fatos divertidos, como quantas cores são obtidas a partir de uma árvore ou de como é feito o grafite do lápis, durante uma apresentação, que dura em torno de 30 minutos e é indicada para toda a familia. A partir daí, vão surgindo vários personagens clássicos, em um castelo, que ajudam as crianças a interagirem com a fábrica Ecolápiz e gerarem aprendizagem significativa, aumentando a consciência sobre o que significa o lápis no contexto ambiental. Mas nem tudo é positivo na área de RSE. Enquanto a perspectiva é promissora quando se pensa em negócios economicamente auto-sustentáveis, devese ter muito cuidado em seu processo de formação. O Centro de Integração, Cooperação Internacional e Desenvolvimento (CICODI) - uma agência de pesquisa e aconselhamento sobre questões de integração regional, cooperação internacional e desenvolvimento - identificou os seguintes dez erros durante a execução dos projetos de RSE (2009, não paginado): 104 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 100-110 1. Falta de análise situacional; 2. falta de planejamento; 3. ações isoladas; 4. inexperiência nas linhas de ação; 5. falta de coordenação; 6. falta de um orçamento determinado; 7. programas inflexíveis; 8. sistematização de informações inadequada; 9. falta de monitoramento do projeto e 10. falta de um plano de comunicação interno e externo. A RSE não pode esperar Em conversa com Julián Hernandez Rincon, notável economista, acadêmico e especialista em gestão da Universidad de los Andes, é confirmada a urgência de gerir esse processo de compensação: Hoje, a RSE é uma questão de obrigação absoluta para as empresas, uma vez que é o conjunto de ações que devem ter um impacto sobre a sociedade, o meio ambiente da empresa; com a remuneração e reconhecimento de uma sociedade que nos aceita e nos dá o estímulo para continuar fazendo as coisas como organização. Na grande maioria dos casos, os empregadores fogem da RSE, usando como argumento a falta de recursos financeiros para a implementação de tais planos, por isso: A discussão pode ser determinada com base no que as empresas, que têm um certo tamanho, uma certa estrutura e certos recursos, po- dem efetivamente desenvolver e implementar em projetos de RSE; isso cria uma classificação na qual a pequena e média empresa não é forçada ou não vai ter esse compromisso, quando a responsabilidade não deve ser necessariamente associada a ter um orçamento ou recursos: deve se reportar a elementos filosóficos da organização, para que possam ser devolvidos, a um setor da população, os benefícios econômicos que a organização tem recebido, em troca dos serviços prestados em um mercado, diz Hernandez. Uma vez que os gerentes de negócios estejam cientes de que a RSE pode gerar muitas oportunidades, mas que estas não funcionam superficialmente, Julian Hernandez é enfático ao dizer: o compromisso das empresas pode ser desvirtuado por má interpretação ou por falta de uma definição mais apropriada em relação a esse compromisso que as organizações têm. Desvirtuada pelo desejo que as empresas têm de mostrar à sociedade seus resultados, dando a entender que esse compromisso é cumprido. O tema que deve ser revisto é se essa responsabilidade social gera benefícios verdadeiros àquelas aos quais se dirige e se não termina nesse desejo de dizer “estamos fazendo”, mas sem medir se esse compromisso está sendo cumprido. Os processos criativos, o conhecimento do contexto social e o suporte de pessoas pró-ativas e emocionalmente estáveis, que realmente cumpram o Pac- Responsabilidade Social Empresarial: necessidade e criatividade to Global da Organização das Nações Unidas no campo da responsabilidade social corporativa, são parte da proposta lançada por Kofi Annan, Secretário-Geral da ONU, em 31 de Janeiro de 1999, no Fórum Econômico Mundial em Davos. Os dez princípios do Pacto Global No site www.pactomundial.org, estão inscritos os princípios que dão um quadro de referência para a RSE, que se concentram em convenções e declarações universais: 1. As empresas devem apoiar e respeitar a proteção dos direitos humanos fundamentais, reconhecidos internacionalmente, dentro da sua esfera de influência. 2. As empresas devem se assegurar de que não são cúmplices da vulnerabilidade dos direitos humanos. 3. As empresas devem apoiar a liberdade de associação e o reconhecimento efetivo do direito à negociação coletiva. 4. As empresas devem apoiar a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou compulsório. 5. As empresas devem apoiar a abolição efetiva do trabalho infantil. 6. As empresas devem apoiar a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação. 7. As empresas devem apoiar uma abordagem preventiva aos desafios ambientais. 8. As empresas devem desenvolver iniciativas para promover maior responsabilidade ambiental. 105 9. As empresas devem incentivar o desenvolvimento e a difusão de tecnologias que respeitem o meio ambiente. 10. As empresas devem combater a corrupção em todas as suas formas, inclusive a extorsão e a propina. Criatividade e atualidade: fórmula ideal para a RSE O profesor Bicente (pelo Bicen tenário) é um dos exemplos mais claros de criatividade e atualidade da RSE: este caricatural personagem, de gravata vinho tinto, vestido em tons de terra, bigode proeminente, óculos Lenno e olhos protuberantes, encarna um amante da história do bicentenário pedindo ajuda para terminar o livro que ele está escrevendo sobre a navegação por mares e rios no processo de independência do território americano. Esse pitoresco professor, a Fundação Telefónica, o prefeito de Cartagena das Índias e a Fundação Bicentenário cria ram o Conexão Bicentenário 2010: “uma aventura educativa com conhecimentos marítimos e históricos por meio das novas tecnologías”. A iniciativa foi desenvolvida em Sail Cartagena de Indias 2010, que é o festival internacional de veleiros e marinheiros de todo o mundo rumo ao Caribe colombiano, com o propósito de comemorar o bicentenário do grito de Independência. O Conexão Bicentenario 2010 é visto como um processo de RSE, já que, atualmente, como parte da comemoração do Bicentenário, combina tecnologias para educar de forma 100% interativa: incentivando uma participação permanente e o espírito 106 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 100-110 de competição entre os integrantes do programa, motivando com prêmios ações produtivas que tendem a gerar processos de formação no futuro. Ele contribui para o processo de construção de redes de cooperação entre empresas privadas e agências governamentais locais. Um dos resultados mais impor tantes é a formação de uma grande Rede de Pesquisa do Bicentenário. Esse produto foi precedido por outro projeto intitulado Conexão Picasso, em 2008, e foi revivido e adaptado tendo em conta a situação do Bicentenário. Faz faz parte de uma ideia macro da Fundação Telefónica chamada EducaRed, que, como é expresso por seu gerente, Juan Andrés Beltrán, procura incorporar novas tecnologias ao processo educacional por meio de qualquer tipo de tema. Por exemplo, este ano foi o tema do bicentenário de atividades. As exigências da construção de todos os tipos de programa de RSE têm como foco a participação de um grupo formado por diferentes profissionais que podem fornecer uma solução abrangente, ou seja, primeiro, determinar claramente a linha de ação a ser tomada e, em seguida, iniciar o trabalho em equipe. No EducaRed, a pluralidade profissional é ampla: Nós somos um grupo interdisciplinar que possui economistas, advogados, jornalistas, educadores, especialistas em sistemas, mas o que temos aqui é uma experiência e um entendimento da dinâmica das novas tecnologias na sala de aula – que é o que consideramos necessário para gerar esse tipo de atividade e iniciativa, diz Beltran. Os produtos devem ser muito bem estudados para sua alcançar eficácia; na Fundação Telefónica, temos uma equipe de professores que conhece o funcionamento das novas tecnologias na sala de aula e, além disso, o que propomos é a discussão de ideias para que a direção e gestão do EducaRed o aprovem. Temos diretrizes claras sobre a qualidade, temos um guia de projeto, em que se pode ver quantas pessoas podem se beneficiar até a chegada do produto final e isso é o que nos interessa: que não seja uma atividade momentânea, mas que transcenda o tempo e beneficie a professores e alunos que dele participam, diz Juan Andrés Beltrán, gerente do EducaRed. A RSE na Europa José Miguel Rodríguez Fernández, Mestre com honras em Ciências Econômicas e Empresariais da Universidade de Valladolid, e que é, há mais de sete anos, Decano da Faculdade de Economia e Negócios da Universidade de Valladolid e membro de seu Conselho de Governadores, concordou em responder a algumas perguntas sobre a situação da RSE na Europa. As experiências do velho continente nos podem servir como novo olhar para os processos que existem em nossa região e, é claro, dada a natureza global da nossa realidade, podem ser adaptados ao contexto latino-americano. Responsabilidade Social Empresarial: necessidade e criatividade Álvaro Enrique Rodriguez Hernandez: Em que se concentra a RSE na União Europeia? José Miguel Rodríguez Fernández: Fundamentalmente, parece centrar-se na busca de boa reputação e imagem da empresa e, por meio delas, na criação de valor a longo prazo para os acionistas ou proprietários, dentro de um quadro em que se considera a RSE como uma opção voluntária para as empresas, embora com certos incentivos do governo. A: Como você lida com a formação de estudantes universitários para o tema da RSE? JMRF: Em muitos países, as admi nistrações públicas responsáveis pelas universidades, as agências de acreditação da qualidade das universidades e as próprias universidades têm aproveitado as recentes reformas de qualificações e currículos universitários para incluir a formação em RSE como uma competência ou habilidade que deve ser alcançada até o final dos estudos relevantes. Mas, o modo de obtê-la é variado. Em alguns casos, existem cursos específicos sobre o assunto (disciplinas obrigatórias ou opcionais). Em outras ocasiões, esperase que a questão da RSE seja abordada por meio de matérias intercurriculares, cada uma a partir de sua perspectiva. Do ponto de vista educacional, a formação teórica nesse campo pode ser completada com a análise de casos, visitas ou estágios de estudantes em empresas com políticas de RSE e assim por diante. Além disso, começaram a aparecer títulos de pós-graduação dedicados, exclusivamente, à formação em RSE e/ou em sustentabilidade. 107 A: Como conseguir trabalhar com a RSE para ter um impacto global e não apenas um impacto local? JMRF: Eu acho que, antes de tudo, é necessário conhecer o que é RSE. Hoje, é um conceito maleável, quase livremente interpretável, difuso e, finalmente, confuso. Em parte, isso é gerado pelas inconsistências entre o que é observado localmente e que é percebido em um contexto global. Empresas claramente multinacionais ou simplesmente grandes, mas operando em vários países, têm um comportamento mais responsável em alguns lugares (normalmente, nos países desenvolvidos) do que nas nações em desenvolvimento. Por trás disso, não há, somente, uma incoerência evidente, mas também uma concepção relativista da RSE: toma-se mais cuidado nos países desenvolvidos porque se acredita que a informação sobre um possível comportamento irresponsável seria mais rapidamente difundida e/ ou que esses países podem afetar a sua imagem, já que ali estão os seus principais investidores ou seus clientes mais influentes e assim por diante. Uma vantagem da globalização da informação e da progressiva facilidade de acesso de diversas populações à internet é que esse tipo de raciocínio está se tornando inadequado. Quando, finalmente, se chega a manter um comportamento consistente em todos os países de atuação, evidencia-se um mesmo respeito aos direitos humanos, individuais e coletivos ou comunitários: compensação horária semelhante em termos reais (ou seja, em termos de poder de compra) para os funcionários da empresa que exercem atividades semelhantes 108 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 100-110 em diferentes países; as mesmas preocupações com os riscos profissionais, a preservação ambiental ou a proteção do cliente ou consumidor; controle similar da responsabilidade social dos diversos fornecedores da cadeia de abastecimento. Para conseguir tudo isso, juntamente com a divulgação de informações e comparativos, parece importante a ação dos meios de comunicação independentes e organizações não-governamentais (ONGs). Mas uma pergunta é se seria apropriado termos alguma regulamentação ou regulação de RSE a nível mundial, ou o desenvolvimento de tais regulamentos dentro de alguma organização política ou econômica internacional (ONU, OCDE, UNCTAD, etc.). A atual crise internacional econômica e financeira demonstrou, mais uma vez, que a RSE não pode ser deixada por conta da mera vontade das empresas (a irresponsabilidade de empresas financeiras tem sido óbvia), mesmo porque nelas estão os defensores do mercado sem autocontrole e, muitas vezes, de um modelo único de racionalidade humana, em que somente o interesse próprio guia o comportamento. E esse modelo existe, há mais de dois séculos, sem ser capaz de demonstrar, na prática, de forma rigorosa e sólida, que o egoísmo pessoal leva, pelo duvidoso meio das vias milagrosas, ao bem-estar coletivo. A: Como uma empresa deve lidar com os ganhos econômicos que envolvem o estabelecimento de programas de RSE? JMRF: Parece certo que a maioria das abordagens sobre a RSE nas empresas é baseada em um conceito de RSE que leva a falar de investimento em RSE e obtenção de resultados de desempenho e, portanto, em última análise, econômicos. Os diretores ou gerentes mais favoráveis às políticas de RSE dizem que é um investimento, não uma despesa. Eu admito que não gosto desse tipo de linguagem, embora, certamente, ela represente um avanço em relação a ou tras opiniões contrárias à RSE. Essa linguagem evidencia uma análise de RSE semelhante à aplicada para avaliar o investimento em máquinas ou em pu blicidade e relações públicas. Quer dizer, então, que se abandonariam as políticas de RSE se os gerentes de contabilidade da empresa e de finanças provassem, em suas projeções ou previsões, que, mesmo a longo prazo, a RSE não geraria um aumento da riqueza dos acionistas ou proprietários? Portanto, o primeiro ponto a considerar ao gerenciar o custo dos programas de RSE não é o lidar com eles como custos e sim como investimentos. Programas de RSE são uma moral, derivam de fundamentos éticos e de justiça, que exigem tanto das empresas quanto dos indivíduos. Por sua vez, esses programas também têm uma fundamentação de análise econômica, mas que não é um caso de negócio! Com esse último comentário, quero dizer que a análise ou teoria econômica sempre alertou para a necessidade de “internalizar”, isto é, para analisar e calcular efeitos externos (“externalidades”) decorrentes do desempenho das dife rentes partes interessadas, tais como as empresas. Assim, da mesma forma que dizemos que “quem contamina, paga”, também teríamos que dizer “quem, in- Responsabilidade Social Empresarial: necessidade e criatividade justificadamente, destrói empregos, reduz o bem-estar social de uma comunidade local ou fornece produtos de má qualidade, paga”. Além disso, existe uma vertente em que se combina a ética com esse ponto de vista da análise econômica. E, além de tudo isso, a criação de valor para um grupo (por exemplo, líquido) não pode ser feita às custas de outro (por exemplo, os clientes), tanto por razões morais quanto porque seria uma expropriação ou espoliação de renda para o primeiro em detrimento do segundo, que abandonará a empresa. Mas, geralmente, não há razão para que a criação de valor seja para um grupo e não para outros. A: Enquanto a RSE é um processo voluntário, quais são os pontos principais para que uma empresa se sinta motivada a desenvolver um processo de RSE? JMRF: Hoje, temos a impressão de que adotar um processo de RSE é, muitas vezes, a consequência lógica de várias razões que se entrelaçam: o assunto está na moda e a própria pressão social e da mídia nos obriga a não estar fora dele; os especialistas em marketing e em reputação corporativa não duvidam de suas muitas vantagens para a imagem da empresa; os administradores financeiros estão convencidos de que o valor das ações pode aumentar a longo prazo; o gerente de recursos humanos vê que a RSE pode atrair especialistas melhores para serem funcionários da organização e, por sua vez, motivar e unir o pessoal; a alta direção tende a compreender que a RSE pode ser uma excelente maneira de ganhar legitimidade social e, ainda melhor, status para a empresa frente aos 109 governos e administrações públicas, etc. Além disso, todos os responsáveis pela introdução e implementação de políticas ou ações de RSE podem se sentir melhores, de um ponto de vista afetivo e emocional. A: Quais são os obstáculos mais frequentes no desenvolvimento de programas de responsabilidade social na Europa? JMRF: Em primeiro lugar, a própria diversidade conceitual e dos programas em RSE. Essa diversidade significa, na prática, às vezes, incorrer em aparentes contradições: apresentar relatórios ou informes de RSE que destacam as rea lizações sociais mais significativas, mas não dizem nada sobre as “manchas escuras” das próprias ações empresariais. Não se deveria avançar para uma RSE com menos discursos simbólicos, menos beleza e mais conteúdo verídico, inclusive em termos de democratização na distribuição de renda e riqueza? Não deveríamos reorientar a formação de líderes e gestores em escolas de negócios e perceber que a RSE tem a obrigação moral e econômica de criar valor equilibrado para todos e cada um dos interessados ou stake holders, não somente para os acionistas? É realmente possível um programa de RSE em que, por exemplo, um grande banco que tem contribuído para a crise financeira atual, tenha recebido uma ajuda de fundos públicos e, agora, use o seu dinheiro para especular em mercados de dívida pública, decida resistir diante de regulamentos mais rígidos ou pressionar para que os governos não limitem os salários exorbitantes de seus executivos? 110 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 100-110 Além disso, esses projetos realmente podem ser deixados nas mãos de empresas que aplicam de forma voluntária as políticas de RSE? Os governos e administrações públicas não têm nada a dizer? Não seria conveniente a criação de um conjunto de regulamentos que introduzissem alguns requisitos no campo da RSE, bem como incentivassem a implementação voluntária de políticas nesta área? No final, a pergunta pode ser: cabe uma autêntica RSE no atual modelo econômico e social, sem a introdução de reformas fundamentais, que envolvam uma reestruturação ideológica, econômica e política daquilo em que se baseou o mundo últimos trinta anos e como podem esses antigos paradigmas estarem resistindo, de maneira tão tranquila, às pressões da opinião pública para a mudança? A responsabilidade social corporativa é uma necessidade para a Colômbia, sem excluir nenhum tipo de organização; os programas a serem implementados devem ser feitos em uma linha clara e específica, baseada no contexto da nossa realidade e na criatividade de um grupo interdisciplinar que otimize todos os recursos possíveis e, prefe rencialmente, recordando as palavras do escritor e jornalista uruguaio Eduar do Galeano: “A caridade é humilhante porque é exercida verticalmente e de cima; a solidariedade é horizontal e envolve respeito mútuo.” Referências CCRE. Centro Colombiano de Res ponsabilidad Empresarial. Disponível em: http://www.ccre.org.co Acesso em 19/04/2010. United States of America: SAGE, 2005. CICODI, 10 errores frecuentes en los proyectos de RSE. Disponível em: http://www.cicodi.org/Novedades. aspx?NovedadId=873. Acesso em: 29/11/2012. Fernández, A.; Gutiérrez, E. Responsabilidad social empresarial: modelos de aplicación. Forum calidad.Volume 29, n. 209, p. 62-68, Madrid, 2010. Fernández García, R. Responsabilidad social corporativa. Espanha: Editorial Club Universitario, 2008. Ramírez Padilla, D. N. Integridad en las empresas, ética para los nuevos tiempos. México: McGraw Hill, 2007. Werther, W. B. J.; Chandler, D. Strategic Corporate Social Responsibility, Stakeholders in a Global Environment. União Europea. El libro verde para fomentar la responsabilidad social de las empresas. Bruxelas, 2011. Universidad Antonio Nariño. Revista Enlace Empresarial, Edição 23. Colombia, 2010. Disponível em: http:// www.revistaenlaceuan.com/edicion23/ inicio.html. Acesso em 29/11/2012. Páginas web: 1. http://www.pactomundial.org 2. http://www.alternativaresponsable.org 3. http://www.colombiaincluyente.org 4. http://www.cicodi.org/ Estudo de Caso de Um Novo Entrante no Mercado Brasileiro de Perfurações de Petróleo 111 Estudo de Caso de Um Novo Entrante no Mercado Brasileiro de Perfurações de Petróleo • Carlos Francisco Simões Gomes * e Daniel Guerreiro Menahem ** Resumo: Este trabalho apresenta uma síntese do mercado brasileiro e mundial de perfurações de poços de petróleo e gás, analisando alguns de seus principais players e suas projeções de crescimento. É apresentado o caso da WWT International Inc., empresa de Protetores de Tubos Não Rotacionais, que tentava, há anos, entrar no mercado brasileiro, mas sem sucesso. A união da WWT com a empresa de comércio exterior Reimpex foi um passo estratégico que resultou na WWT do Brasil e possibilitou a aquisição de novos clientes, devido à nova abordagem da Reimpex sobre os produtos. Os produtos passaram a ser apresentados como um seguro de capital nas operações. Conclui-se o trabalho com propostas estratégicas para que ambas as empresas continuem crescendo e com uma avaliação do processo como um todo. Palavras-Chave: mercado, poços de petróleo, perfuração. Abstract: This paper presents an overview of the Brazilian and worldwide market of oil and gas well drilling, analyzing some of its key players and growth projections. The case of WWT International Inc., a Non-Rotational Tubes company, is presented. The company had been trying to enter the Brazilian market for years without success. The union of WWT with the foreign trade company Reimpex was a strategic move which resulted in WWT do Brazil and made the acquisition of new customers possible, due to Reimpex’s new approach to the products. The products started to be presented as capital insurance in the operations. Concluding the paper, strategic proposals for the continued growth of both companies are presented, as well as an assessment of the process as a whole. Keywords: market, oil wells, drilling * Carlos Francisco Simões Gomes, Doutor em Engenharia de Produção (UFRJ), Mestre em Engenharia de Produção (UFF), Professor Adjunto Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade Veiga de Almeida (UVA). ** Daniel Guerreiro Menahem, WWT e Ibmec_RJ • Artigo WWT International Inc. in the Brazilian Market 112 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 111-126 1. Introdução O mercado internacional era a base de trabalho em que a da WWT Internacional estava estabelecida e tinha seu produto reconhecido. Entretanto, o mercado brasileiro está evoluindo e crescendo com o apoio do governo. Sua estabilidade é uma grande força, quando comparado ao mercado de petróleo em outros países. Os tipos de poços de petróleo interferem, diretamente, na necessidade dos serviços da WWT International. A profundidade e posição dos poços foram os principais quesitos a gerarem oportunidades para a empresa. A cadeia produtiva do petróleo e gás, desde sua prospecção, passando pela exploração e a distribuição dos seus produtos e serviços, é considerada uma atividade de altos riscos e incertezas durante todo o seu processamento [1]. A indústria do petróleo e gás tem registrado, nos últimos anos, um aumento significativo nos seus custos de exploração e produção (ARAÚJO & ALMEIDA, 2009). 1.1 Mercado Internacional de Petróleo As empresas petrolíferas têm longo histórico de formação de arranjos coo perativos como maneira, principalmente, de reduzirem seus riscos em face aos elevados investimentos que são inerentes a sua atividade (GONÇALVES NETO, 2002). Como exemplo, cita-se a série de fusões envolvendo as grandes empresas desse importante segmento da economia mundial - conhecidas como majors - que caracterizou o período de 1995 a 2010. Uma forma costumeira de associação entre as empresas de petróleo é a formação de consórcios para a participação em projetos de exploração e produção (E&P) de blocos explorató rios ofertados em leilões internacionais. Trata-se de uma das características do modelo de concessão para exploração de petróleo e gás, um dos mais utilizados pelos países produtores (COSTA & LOPES, 2010). O termo petróleo refere-se à emul são de óleo cru, água e gás natural encontrada na natureza. Reservatórios são rochas porosas e permeáveis que contêm óleo, gás e água. Reservas são os volumes estimados de óleo e gás recuperáveis de um reservatório específico. Elas são classificadas em provadas, prováveis e possíveis, de acordo com a probabilidade de os volumes estimados serem economicamente produzidos. Produção é a extração de fluidos dos reservatórios (ARAÚJO & ALMEIDA, 2009). Esses fluidos são compostos ba sicamente por hidrocarbonetos e água. Os hidrocarbonetos são compostos por gás natural, condensado e óleo. Condensado é um fluido que se apresenta na forma gasosa nas condições de temperatura e pressão do reservatório e como líquido nas condições padrão de superfície (standard). O líquido do gás natural (LGN) é produzido por meio do processamento desse gás em plantas industriais denominadas unidades de processamento de gás natural (MILANI JÚNIOR, BOMTEMPO & PINTO JÚNIOR, 2005). O petróleo é uma das principais variáveis da economia mundial, uma Estudo de Caso de Um Novo Entrante no Mercado Brasileiro de Perfurações de Petróleo alta ou baixa em seu preço pode causar graves crises ou impulsionar economias. Sendo o petróleo um bem estratégico de tamanha importância, todos querem entrar em seu mercado. Apenas alguns países conseguem extrair petróleo suficiente para sua demanda interna, a maioria ainda depende de importações. As exportações de Petróleo no mundo são, basicamente, controladas pela OPEP (Organização dos Países Produtores de Petróleo), que, segundo seu site (http://www.opec.org/opec_web/ en/), em 2011, detinha 81% das reservas mundiais de petróleo e, assim, controlava parte considerável da oferta em um mercado de enorme demanda, o que acaba influenciando o preço comercia lizado mundialmente. 113 Os membros atuais da OPEP são: Argélia, Angola, Equador, Iran, Iraque, Kuwait, Líbia, Nigéria, Qatar, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Venezuela; todos enfrentam problemas sérios tais como (Figura 1): • Guerras civis; • ditaduras; • líderes opressores e/ou • grande quantidade de pessoas abaixo da linha da pobreza. Esses problemas resultam em uma organização altamente instável e perigosa para empresas petroleiras e países importadores de petróleo. Talvez sejam esses os motivos que mantêm (justificam) a Rússia, o maior produtor de petróleo do mundo, fora do cartel[2]. Figura 1 - Reservas de Petróleo e países membros da OPEP Fonte: http://www.opec.org/opec_web/en/data_graphs/330.htm 114 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 111-126 O caso da Líbia é o melhor e mais atual exemplo do que a instabilidade política e econômica desses países pode gerar. Estrangeiros trabalhadores das empresas de perfuração situadas na Líbia já deixaram o país e, como 80% da produção nacional[3] está em locais sob o domínio dos rebeldes, até os trabalhadores locais preferiram a segurança de suas casas a voltar ao trabalho. A diminuição na produção da Líbia pode ser contornada pelo aumento da produção de outros grandes exportadores, que costumam ter uma reserva para esses casos. Porém, não se sabe o que poderá acontecer se a rebelião durar muito tempo ou se alastrar para outros países produtores. Segundo dados da AIE (Agência Internacional de Energia), o consumo mundial de petróleo tem caído depois do ápice em 2008, quando a capacidade de produção era apenas 3,1% superior à demanda, o que fez o preço chegar a US$150 por barril. Apesar disso, os países produtores têm aumentado a capacidade de produção mundial à espera de uma retomada. Essa queda pode ser explicada pela crise de 2008 e pela crise de 2010, que, para muitos, é continuação da crise de 2008. As crises e as alterações de demanda, bem como de produção, justificam o fato de o mercado de perfurações precisar trabalhar sempre com projeções, visto que a produção de equipamentos, a logística operacional, a procura e confirmação de poços e a operação em si demoram muito tempo. O mercado sempre fica otimista com perspectivas de novas tecnologias, aumento da demanda e perfurações em novas profundidades, esperando voltar a crescer como no intervalo entre 2004 e 2008, quando foram feitos os maiores investimentos e recebidos os maiores retornos. O Gráfico 1 demonstra perspectiva de aumento nos investimentos em perfuração. Gráfico 1 - Investimento Global em Perfurações Offshore entre 2000 e 2015. Fonte: GBI Research - http://www.gbiresearch.com/ Estudo de Caso de Um Novo Entrante no Mercado Brasileiro de Perfurações de Petróleo O aumento na demanda por produtos de exploração de petróleo, nos anos que antecederam a crise de 2008, chegou a causar inflação [4] no preço de plataformas de alcance em maior profundidade. Grandes players mundiais como Exxon Mobil Corp. e BP Plc - brigaram por elas, vendo os preços de seus aluguéis subirem até 50.000 dólares por dia. As plataformas ou navios de perfuração são a base do sistema de perfuração e o aumento de vendas desses na vios causa um aumento na demanda por equipamentos periféricos importantes na operacionalização desse processo. Entretanto, a demanda de plataformas pela Petrobras, para a exploração do pré-sal, causa uma nova “inflação” na busca por essas estruturas [5]. 1.2 Mercado Nacional de Petróleo O Brasil produz quantidade suficiente de petróleo para suas necessidades, mas ainda possui deficit na Balança de Petróleo. Exporta um tipo pesado de produto, mas, para ter sua demanda atendida, precisa importar o tipo leve. A descoberta e a possível futura comercialização do petróleo dos poços do pré-sal levarão o Brasil a ser um dos principais países exportadores. Os dois únicos países membros do BRIC com produção grande o suficiente para impulsionar ainda mais suas economias serão o Brasil e a Rússia. O mercado brasileiro de exploração no setor está aquecido. A descoberta do pré-sal impulsionou pesquisas, compras de equipamentos e outros diversos in- 115 vestimentos na área. José Sergio Gabrielli (ex-presidente – CEO - da Petrobras e atual Secretário do Planejamento do Estado da Bahia) afirmou em palestra, sua expectativa de que as reservas de petróleo e gás da Petrobras dobrem até 2016, chegando a 36 bilhões de barris, se os novos poços do pré-sal se confirmarem comercialmente viáveis [6]. Quanto aos investimentos, Gabrielli também afirmou previsão de aumento, entre 2010 e 2014. Hoje, são de 224 bi lhões de dólares e em 2010, eram de 93 bilhões. 1.2.1 Gás Natural A continuidade dos investimentos em exploração e produção de gás natural permitirá elevar a produção para mais de 250 milhões de m3 por dia em 2030, com uma taxa de crescimento média de 6,3% ao ano no período em projeção. Ainda assim, o aumento da demanda a longo prazo sinaliza a necessidade de complementação da oferta de gás natural com a importação de mais de 70 mi lhões de m3/dia em 2030, o que significa ampliar em 40 milhões de m3/dia a capacidade de importação atual (via gaso duto Bolívia-Brasil). Quanto à importação de gás natural liquefeito (GNL), a necessidade adicional em 2030 será de 20 milhões de m3/dia (TOLMASQUIM, GUERREIRO & GORINI, 2007). 1.2.2 Petróleo e Derivados Em face à política continuada de investimento na área, estima-se que a produção possa atingir três milhões de barris por dia em 2020. Ao lado da demanda, o consumo de petróleo deverá seguir trajetória de vigoroso crescimen- 116 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 111-126 to, acompanhando as condicionantes do cenário macroeconômico. Mesmo assim, espera-se que, até 2030, haja superavit no balanço de produção e consumo de petróleo. Em 2030, os derivados de petróleo manteriam a posição de liderança entre as fontes, com uma participação de cerca de 30% da matriz energética brasileira, mas cerca de nove pontos percentuais em relação a 2005, acentuando-se assim a tendência verificada nos últimos anos (ibid, 2007). A Petrobras [7] licitou sete das 28 sondas que pretende comprar a longo prazo. As primeiras custaram US$ 662.428.590,00 dólares cada. A curto prazo, a Petrobras causou inflação no mercado internacional de plataformas, citado anteriormente, quando alugou 80% das 21 plataformas de águas profundas disponíveis no mundo. O primeiro poço de águas ultraprofundas do pré-sal a produzir petróleo comercialmente foi o Baleia Branca - na bacia de Campos em julho de 2010 - que está servindo de estudo para as operações em todos os outros poços que sequer foram perfurados ou que estão sendo estudados em produção não comercial. O poço Baleia Branca está a 4.785 metros de profundidade. Apesar de estar no pré-sal, pode apenas ser uma base de testes para outros poços a profundidades de até 7.000 metros, onde as condições são imprevisíveis, segundo o geólogo húngaro, membro do centro de pesquisa da Petrobrás, Peter Szatmari. Pesquisas sugerem que, quando se perfura abaixo do sal, entra-se no “rei no do desconhecido”. Encontra-se algo inteiramente novo abaixo do oceano. Em analogia a Colombo, podemos dizer que se está descobrindo um novo continente [8]. Apesar do forte aquecimento do mercado de perfuração de petróleo, o país ainda é extremamente dependente de investimentos externos e equipamentos de empresas não brasileiras. Com previsões antigas de crescimento na produção, a Petrobras investe em pesquisas e inovações desde antes das descobertas recentes de poços no présal. Graças a essa base, avançou muito e está com equipamentos de última geração para desbravar esse novo continente abaixo da camada de sal. Porém, a empresa não pode fazer tudo sozinha e importa ou aluga grande quantidade de equipamentos de empresas não brasilei ras, pois o mercado nacional não produz equipamentos ou produz equipamentos não competitivos. 1.3 Tipos de Poços Existem basicamente dois tipos de perfuração de poços de petróleo: o Vertical e o Direcional. 1.3.1 Poço Vertical Um poço é definido como vertical quando a perfuração é feita em linha reta a um ângulo de 90°, com desvio de até 5° em relação à plataforma. Apesar de ser o caminho mais curto e, apa rentemente, o melhor, poços verticais enfrentam vários desafios para serem feitos, o que os invibializa em muitos casos. 1.3.2 Poço Direcional Na maioria dos casos, os engenhei ros optam pela Perfuração Direcional, Estudo de Caso de Um Novo Entrante no Mercado Brasileiro de Perfurações de Petróleo em que faz-se um caminho definido de acordo com: os tipos de rocha; a espessura; a pressão; a temperatura; a posição da plataforma; o tamanho e a forma do poço e o local em que a perfuração chegará ao poço. Os poços direcionais revolucionaram a indústria de perfuração e pode se dizer que influenciaram a história do mundo. Uma de suas grandes qualidades é que extraem uma proporção maior de petróleo do que os verticais, possibilitando até que poços já fechados possam ser perfurados de novo, caso seja financeiramente viável. O resultado é o aumento da quantidade de petróleo mundial que pode ser extraída e o prolongamento em anos da possibilidade de dependência mundial do petróleo. Apesar de ser a melhor opção, o poço direcional oferece alguns ris- 117 cos (PICININ, KOVALESKI & REIS, 2010) ao equipamento de perfuração, que deve ser mais resistente. Dependendo da complexidade da perfuração, o equipamento extra de proteção é essencial. A figura 2 demonstra alguns tipos de poços direcionais. O poço direcional pode ser feito: quando uma estrutura faz mais de uma perfuração até o poço; quando existe uma falha no terreno; quando o poço está em um local impossível de ser atingido verticalmente, caso tenha acontecido um problema e a perfuração tenha de ser refeita, ou quando o poço está protegido por uma formação geológica. Essas são as utilidades básicas dos poços direcionais e, em outras finalidades, os engenheiros usam variações desse tipo. Figura 2 - Tipos de Poços Direcionais Fonte: http://knol.google.com/k/po%C3%A7os-horizontais-na-engenharia-depetr%C3%B3leo# 118 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 111-126 2. A WWT International Inc. A WWT International Inc. é uma empresa reconhecida do ramo equipamentos de perfuração de poços de petróleo e gás com sede em Houston e atuação mundial. Os produtos comercializados são: o Non-Rotating Protector, um protetor não rotacional de tubo de perfuração; Coiled Tubing Tractor Systems, um sistema de tração para a broca de perfuração e, em pequena escala, Hole Covers, “tampas” que protegem a abertura da perfuração (PIMENTEL, 2011). O valor da empresa é reconhecido mundialmente. Seu protetor foi utilizado com sucesso em perfurações no Golfo do México, nas áreas das Montanhas Rochosas e no Texas (EUA), no Cazaquistão, no Mar do Norte (entre Inglaterra e Escandinávia), em Qatar, na Rússia, na Argentina, na China, no Canadá e no Peru. Os protetores de tubos não rotacionais minimizam os problemas causados pela fricção do poço com o tubo de perfuração [9]. Sem o protetor, a fricção aquece o tubo e o poço em um local onde a temperatura já é mais alta e em profundidades como do pré-sal, que chegam de 80 a 100 graus Celsius [10]. A temperatura e a fricção causam desgaste e danos aos tubos ou poço. A rotação do tubo contra o poço desloca o tubo e, em conseqüência, a broca e a base mecânica da plataforma, bem como a potência da broca, são reduzidas. A figura 3 mostra como o protetor impede o contato entre o tubo e a parte já perfurada e protegida. Essa parte da figura é especialmente importante, pois é onde acaba o mar e começa a área perfurada, que sofre com deslocamentos da corrente marinha. O tubo se desgastaria contra a parede da perfuração sem os protetores. Figura 3 – Exemplo Prático Fonte: http://www.wwtco.com/protectors02.html Estudo de Caso de Um Novo Entrante no Mercado Brasileiro de Perfurações de Petróleo 119 Gráfico 2 – Comparação do Ângulo Máximo Fonte: http://www.wwtco.com/protectors02.html Existem vários benefícios mensuráveis na utilização do protetor, como: evitar o desgaste; reduzir torque e arrasto; aumentar a taxa de penetração; minimizar a instabilidade; aumentar a segurança em condições adversas; diminuir vibrações; preservar o poço para reutilização futura; aumentar o peso na broca e proteger o tubo. Todos esses benefícios são apenas meios para um fim maior. Os protetores são um seguro de capital, pois muito dinheiro é investido na operacionalização da perfuração. A maior velocidade e eficiência na perfuração, o caminho percorrido e a maior segurança do processo são fatores importantes, que, quando atrasam ou adiantam a perfuração, influenciam seu total de custos. Estes causam muito menos impacto do que o aluguel da plataforma que custa em média entre 500.000 e 600.000 dólares por dia em caso de inflação [11], como ocorrido em 2008 quando a ofer- ta de plataformas disponíveis diminuiu. A ação de fechar ou consertar um poço com problemas, somada a todos os tipos de custos não previstos, gera um resultado bem maior, em termos de custo, do que se a empresa tivesse utilizado os protetores. O gráfico 2 demonstra um exemplo do ângulo máximo aceitável de segurança para perfurações offshore, com e sem os protetores. Na plataforma estudada como exemplo, a perfuração era feita com ângulo dos tubos de até 1,5 graus com segurança, inclusive com o mar revolto antece dente a um furacão que passou na área e, posteriormente, obrigou a todos que parassem os trabalhos e deixassem a plataforma. O estudo dos dados revelou que a perfuração teria que ser suspensa em 55% dos seus 27 dias de operação, por perigo de quebra do material. Porém, devido ao uso dos protetores, pôde seguir ininterruptamente. Um cál- 120 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 111-126 culo simples mostra que, com um custo de 500.000 dólares por dia, multiplicado pelos 15 dias perdidos, a suspensão resultaria em um gasto extra de 7.5 mi lhões de dólares (12.000.000 de reais), desconsiderando o atraso na produção da plataforma, o custo de capital desse dinheiro e o possível aumento do preço do aluguel após o fim do contrato. A WWT não vende protetores de tubos não rotacionais: vende um serviço que engloba o aluguel dos protetores, o estudo do ambiente e do solo que será perfurado, a utilização do software, a participação de um técnico que coloca os protetores nos tubos e outras assistências necessárias (PIMENTEL, 2011). 3. Entrada no Mercado Brasileiro A WWT já possuiu negócios no Brasil vinte anos atrás. Os protetores da época estavam começando a serem usados nas perfurações, que ainda estavam em fase inicial no país, tanto tecnologicamente quanto em termos de produção. Eram usados protetores de metal, mais rústicos, e talvez esse tenha sido o principal motivo pelo insucesso da época (Guerrero, 2011). 3.1. Insucesso Em uma das perfurações, alguns protetores se soltaram do tubo de perfuração e inutilizaram o poço, pois eram muito duros para serem perfurados pelas brocas. O poço teve de ser fechado e refeito em outro lugar. O que deveria proteger a operação de atrasos acabou causando um atraso e, consequentemente, um aumento considerá vel nos gastos da perfuração. A equipe, na época, era basicamente de pessoas de áreas operacionais e, apesar de saberem bastante sobre o produto, não conseguiram vendê-lo depois do acontecido, não tinham conhecimentos comerciais e de marketing que pudessem reverter a situação, o que levou a seus 20 anos de insucesso (MENAHEM, 2011). É importante que haja equilíbrio e comunicação na empresa. A equipe operacional estava de acordo com as necessidades da empresa, mas esta já não satisfazia as necessidades do produto em relação ao mercado brasileiro depois do acontecimento. Por ser uma equipe basicamente de americanos, a capacidade de negociação do produto, que já era mal visto, foi ainda mais afetada. A diferença cultural e, talvez, um preconceito em relação ao estrangeiro inviabilizaram o negócio. O ruído ou falta de comunicação, entre a equipe no Brasil e a sede, sacramentou o insucesso do produto. Em vez de mandarem uma equipe comercial e de marketing mais hábil para consertar o estrago, mantiveram a equipe como estava (GUERRERO, 2011). Entre 2000 e 2010, a empresa trouxe Andrew, seu gerente regional da América do Sul, para o Brasil, com a missão de entrar novamente no mercado brasilei ro. Dessa vez, contava com um produto mais moderno e bem-sucedido em diversas áreas do globo. Durante dois anos de tentativas, a WWT não conseguiu nenhum trabalho: apenas um produto mais moderno não foi suficiente para fazer diferença em seus negócios no país (id, 2011). Estudo de Caso de Um Novo Entrante no Mercado Brasileiro de Perfurações de Petróleo 3.2. WWT do Brasil A Reimpex é uma pequena empresa brasileira de comércio exterior do ramo de petróleo, gás e certificações marítimas. Estava procurando empresas para representar e, durante uma busca na internet, encontrou a WWT. Foi quando surgiu a WWT do Brasil. As duas empresas podiam sair ga nhando com essa união: a Reimpex, com uma nova representada e novas possibilidades de negócios, e a WWT, com uma nova equipe, totalmente adaptada ao mercado brasileiro, com conexões e uma visão diferente. Mesmo não sendo totalmente go vernamental, a Petrobras é gerida pelo governo, que tem como metas diminuir o desemprego e desenvolver o mercado de perfuração. Atualmente, esse mercado depende da importações de produtos e serviços. O governo “força” as empresas que querem trabalhar com a Petrobras a abrirem fábricas e escritórios no Brasil: seu objetivo é gerar CNPJ. As empresas não são obrigadas a fazê-lo, porém esse quesito tem um forte peso no processo de escolha, chegando ao ponto em que empresas com produtos e serviços menos qualificados e competitivos são contratadas em vez de empresas estrangeiras. A Petrobras é a maior contratante de produtos e serviços de perfuração de petróleo no Brasil, possuindo parceiras na maioria dos poços. Para cada contrato seu ou de suas parceiras, é preciso que a contratada esteja em seu cadastro e as notas dadas nos diferentes quesitos de avaliação são consideradas para que a empresa seja contratada. Esse foi um dos piores erros da WWT: apesar de 121 terem se cadastrado e conseguirem o certificado de avaliação, diversas notas, inclusive algumas muito importantes, estavam baixas. Corrigir isso foi uma das primeiras ações da WWT do Brasil. A empresa teria se tornado uma boa fornecedora de serviços, não fosse o acidente de 20 anos atrás. A WWT do Brasil e a Petrobras sabem que os protetores são mais importantes ainda nas perfurações do pré-sal, o “reino do desconhecido”, como anteriormente mencionado. Porém, o passado não pode ser apagado (ibid, 2011), embora possa ser contornado. Devido a um acidente ocorrido na Bacia de Santos, uma perfuração teve de ser paralisada por duas semanas, trazendo uma grande despesa inesperada. O ocorrido e a busca da WWT do Brasil, com sua nova equipe, por reabrir os negócios com a Petrobras fizeram com que a Petrobras reconsiderasse o uso dos protetores e, depois de várias reuniões, a nova equipe da WWT do Brasil conseguiu firmar um teste nesse poço do pré-sal de menor profundidade. Dependendo de seu sucesso, outros contratos poderiam ser firmados no futuro. Foi implantado um serviço padrão no mundo todo: um funcionário é encarregado de ficar na plataforma e prender os tubos; uma equipe estrangeira faz o estudo do poço, com dados da Petrobras, utilizando o software que diz o espaçamento ideal entre um protetor e outro e a WWT do Brasil cuida da importação e logística de transporte dos protetores, dos funcionários estrangeiros no Brasil e do contrato e comunicação com a Petrobras (id, 2011). 122 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 111-126 4. Análise Swot A Análise SWOT (Strengths, Weak, Opportunities e Threats) ou análise FOFA em português (Força, Oportunidade, Fraqueza, e Ameaça) é uma ferramenta estrutural utilizada na análise do ambiente interno para a formulação de estratégias (Hitt, Ireland e Hosksson, 2008). Permite identificar as Forças e Fraquezas da empresa, variáveis internas e sob seu controle, associando tais variáveis às Oportunidades e Ameaças, variáveis externas que não estão sob seu controle. As Oportunidades e Ameaças são, assim, fatores de criação (ou destruição) de valor, os quais a empresa não pode controlar, mas que emergem da dinâmica competitiva do mercado em questão ou de fatores demográficos, econômicos, políticos, tecnológicos, sociais ou legais (DYSON, 2004). A análise SWOT foi feita com o intuito de verificar/identificar novas opções estratégicas para a empresa. A seguir, são apresentados os dados da matriz analisada. 4.1 Pontos Fortes A WWT possui experiência em diversas partes do globo com vários contratantes diferentes, inclusive a Petrobras, que utiliza os protetores em outros países. Em perfurações no pós-sal, seu produto é bem reconhecido no exterior (Ponto Forte 1). A empresa já possui um escritório no país e um dos objetivos da Petrobras é gerar CNPJ, deixando, inclusive, de contratar empresas prestadoras de serviço de fora do país. Empresas concorrentes sem escritório no país terão de passar por todo processo para abri-lo, o que, especialmente no Brasil, é demorado, burocrático e requer tempo, trabalho e muita espera (Ponto Forte 2). A REIMPEX tem uma excelente equipe, contratos de outras representadas trabalhando para a Petrobras e outras empresas do ramo de petróleo e gás, além de estar crescendo estruturadamente. A aproximação da REIMPEX a outras representadas é um link para aproximação da WWT com essas empresas contratantes (Ponto Forte 3). 4.2. Pontos Fracos A WWT está pagando até hoje pelo acidente de 20 anos atrás e espera que, com o sucesso na Bacia de Santos, esse acidente seja esquecido. Porém, não se sabe se a Petrobras deixará de levá-lo em consideração. O fato de a Petrobras ter participação em grande quantidade das perfurações do Brasil afetou ainda mais a WWT, já que as outras empresas também consideram o posicionamento da Petrobras ao tentarem contratar os protetores (Ponto Fraco 1). 4.3 Oportunidades O mercado brasileiro de perfuração, por si só, é uma grande oportunidade: com as grandes descobertas de petróleo feitas na ultima década que podem tornar o Brasil um dos maiores produtores do mundo; o potencial de crescimento tecnológico de um mercado muito pouco desenvolvido, menos desenvolvido ainda se levarmos em consideração que a empresa está sendo pioneira e a vontade do governo de que o pré-sal tenha conseqüências sociais, diminuindo o desemprego, treinando pessoas e de- Estudo de Caso de Um Novo Entrante no Mercado Brasileiro de Perfurações de Petróleo senvolvendo o mercado de perfuração, bem como mercados periféricos que atuam em outras áreas. Tudo isso pode ser somado a um fator importantíssimo: a carência no mercado de diversos tipos de equipamentos e serviços que obrigam a Petrobras a importar. Com a recente criação da WWT do Brasil, esse se torna um ponto positivo (Oportunidade 1). A oportunidade mais importante da WWT foi dada pela Petrobras na perfuração da Bacia de Santos, uma oportunidade concreta que, em caso de sucesso, pode trazer muitos contratos em outros poços. Soma-se a isto a fraca concorrência dos protetores (Oportunidade 2) 4.4. Ameaças A perfuração na bacia de Santos é uma grande oportunidade, mas também uma ameaça em potencial. A WWT levou aproximadamente 20 anos para conseguir outra chance depois do acidente com os protetores antigos e, dependendo do resultado da perfuração atual, pode ficar mais vários anos sem contratos. Caso o protetor funcione, mas não tenha um resultado muito bom, a Petrobras procuraria a WWT só em casos extremos (Ameaça 1). Não existe nenhum protetor concorrente direto no mercado brasileiro. Porém, há outros produtos podem ser usados com algumas das mesmas finalidades, como a diminuição de vibrações, por exemplo. Produtos concorrentes podem, ainda, chegar ao mercado bra sileiro (Ameaça 2). A distância da equipe de desenvolvimento das operações é um perigo, visto que não se tem certeza de como será o ambiente nas perfurações mais profun- 123 das do pré-sal. A perfuração da Bacia de Santos tem 4.000 metros de profundidade, mas outros poços chegam a 7.000 metros (Ameaça 3). 4.5 Propostas Estratégicas A análise SWOT mostrou quatro grandes Estratégias para a empresa: Estratégia A – Ponto forte 1 e Oportunidade 1: participar ativamente das licitações da Petrobras e/ou buscar parcerias com a Petrobras. Comentário: Essa estratégia vem sendo adotada pela empresa. Estratégia B – Ponto Forte 2 e Oportunidade 2: explorar a vantagem competitiva da empresa na exploração da Bacia de Santos. Comentário: Essa estratégia vem sendo adotada pela empresa. Estratégia C – Ponto Forte 3 e Ameaça 1: aproveitar a capacitação da equipe para buscar novos parceiros; em especial, parcerias com outras empresas que trabalhem com a Petrobras na Bacia de Santos. Comentário: Foi criado um projeto para implementar esta estratégia. Estratégia D – Ponto Fraco 1, Ameaça 2 e Ameaça 3: usar a equipe de marketing para mostrar a atual situação da empresa e utilizar as Estratégias A, B e C para mostrar que empresa superou os problemas do passado. Comentário: Foi criado um projeto para implementar esta estratégia. 124 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 111-126 5. Considerações Finais A proposta da WWT do Brasil é mostrar a eficiência do produto no poço de aproximadamente 4.000 metros e, futuramente, fornecer protetores para serem usados em poços de até 7.000 metros. Porém, o serviço padrão aplicado pela WWT não pode ser utilizado nesse caso. É preciso que os engenheiros que trabalham com o protetor estejam presentes e descubram como é o “reino do desconhecido” no pré-sal e como será seu efeito nos protetores. Variáveis como temperatura e pressão são dife rentes no pré-sal, e a resposta dos equipamentos a elas é imprevisível. Foi dada uma chance a WWT e essa chance requer atenção especial. Atualmente, já na parte operacional do projeto, com os tubos sendo colocados e a perfuração em estado inicial, ainda está acontecendo um erro comum, porém de uma forma diferente. Antigamente, a equipe operacional não tinha uma equipe co mercial, o que resultou em diversos investimentos sem retorno, mas, atualmente, é a equipe operacional que está longe da comercial e das operações. Muito maiores do que a receita de uma perfuração são os contratos de várias perfurações posteriores. Mais interessante ainda é a chance de estar presente e poder estudar o que, muito provavelmente, serão as perfurações do futuro no mundo todo e que dariam uma vantagem competitiva e valorização muito importante ao produto. A Petrobras é a grande contratante no Brasil, porém possui participação de diversas empresas em todos os poços, empresas que tem direito de escolha e podem agir a favor da WWT, caso esta beneficie a perfuração do poço. Um movimento importante pode ser ligado diretamente à marca Reimpex. Com seu crescimento e à medida que for conseguindo mais representadas e tendo sucesso em seus contratos (todos na área de perfuração ou certificação de navios e projetos offshore), os ou tros possíveis clientes dos protetores de tubos passarão a conhecer a empresa e ficarão mais abertos a propostas de produtos de outras representadas, como os protetores. O mercado brasileiro de petróleo mostra, com características internas e externas, ter a melhor prospecção de crescimento e segurança no mundo. Junto com a Rússia, está em forte crescimento e admite um futuro pro missor como exportador de petróleo que não precisa se preocupar com grandes revoltas populares capazes de atrapalharem a produção ou inimigos que a ameacem. Os investidores estrangeiros também estão contando fortemente com a ajuda do governo no crescimento do mercado nacional de petróleo. Isenção de impostos e outros benefícios podem trazer, ou até forçar, empresas de fora a virem ao país para estruturar o crescimento do mercado e, mais que isso, gerar emprego, renda, bem-estar e vantagens. Segundo o governo, esse benefícios serão, direta ou indiretamente, afetados pelo desenvolvimento desse mercado. O subdesenvolvimento, no mercado nacional, em relação a produtos e serviços resulta em baixa concorrência com os protetores, configurando uma grande oportunidade. As perfurações Estudo de Caso de Um Novo Entrante no Mercado Brasileiro de Perfurações de Petróleo no pré-sal são o principal objetivo e oportunidade da WWT. Sabe-se que o mercado é subdesenvolvido para perfurações no pós-sal e o problema se intensifica quando esse mercado precisa estar adaptado para algo que demanda ainda mais tecnologias e serviços mais complexos. 6. Conclusão e perspectivas futuras A fraca concorrência dos protetores é uma grande oportunidade para o estabelecimento da WWT (Oportunidade 2). O único produto concorrente direto não oferece o serviço que a WWT ofe rece e, por isso, é desconsiderado rapidamente. Outros produtos possuem algumas características dos protetores, mas, por serem características mais pontuais, não são concorrentes. Por conta disso, 125 a empresa vem participando ativamente de licitações (Estratégia A) O melhor movimento da WWT, que não conseguia entrar no mercado brasi leiro, foi se incorporar a uma pequena parte do mercado, a Reimpex, e formar a WWT do Brasil, movimento que de sencadeou todo o resto. Outro contrato de utilização dos protetores foi firmado com a principal empresa de perfuração do país depois de 20 anos. Há perspectiva de novos poços em um futuro pró ximo e outros movimentos estratégicos no futuro (Estratégias A, B e D). A parte brasileira da WWT está diminuindo distâncias com outras empresas do ramo de perfuração no Brasil, em busca de que a WWT seja parte importante no mercado mais promissor do mundo na área de perfuração. Para isso, foram criados os projetos para implementação das Estratégias C e D. Referências ARAÚJO, A. G. & ALMEIDA , A. T. Apoio à decisão na seleção de investimentos em petróleo e gás: uma aplicação utilizando o método PROMETHEE Gestão de Produção. Volume 16, n.4. São Carlos: Out./Dez., 2009 COSTA, A.R & LOPES, F. D.Participação de empresas estrangeiras e consórcios em leilões de blocos exploratórios de petróleo e gás no Brasil Revista de Administração. Contemporânea. Volume 14, n.5. Curitiba: Set./Out, 2010 DYSON, R. G Strategic development and SWOT analysis at the University of Warwick. European Journal of Operational Research. Volume 152, n. 3, 1 Elsevier: Fev., 2004. GONÇALVES NETO, A. C. A utilização Matriz de Perdas na Determinação de Riscos de uma Unidade de Produção de Petróleo no Mar. 2002. 116 f. Tese (Doutorado em Engenharia de Produção) – COPPE. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. GUERRERO, K. (Sócia da PMT). Comunicação pessoal realizada em 21 de Fevereiro de 2011 HITT, M, IRELAND, R. D. & HOSKSSON, R. Administração Estratégica. São Paulo: Cengage Learning, 2008 MENAHEM, D. G. Entrada da WWT 126 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 111-126 International no Mercado Brasileiro. 2011. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Administração) - Facul dades IBMEC, Rio de Janeiro. MILANI JÚNIOR, A; BOMTEMPO, J. V & PINTO JÚNIOR, H. Q, Processo Decisório na Exploração e Produção de Petróleo. Revista Produção On-line. Volume 5, n. 3. Santa Catarina: Set., 2005 PICININ, C T , KOVALESKI , J L & REIS , D R Application of technology transfer in management of logistic risk’s practices. Revista Produção On-line. Volume 10, n. 1. Santa Catarina, 2010. PIMENTEL, J. R. (Sócio da Reimpex). Comunicação pessoal realizada em 9 de Março de 2011 TOLMASQUIM , M. T.; GUERREIRO & A.; GORINI , R; Matriz energética brasileira: uma prospectiva Novos estud. – CEBRAP, n.79. São Paulo, Nov. 2007 Notas [1] Acidente no pré-sal custou US$ 30 milhões. <http://www.geofisicabrasil. com/noticias/35-noticias/1037-acidentepre-sal-custou-30-mi.html> Acesso em: 1 de junho de 2011 tural e Bicombustíveis. Disponível em: <http://www.anp.gov.br/?pg=38591&m =&t1=&t2=&t3=&t4=&ar=&ps=&cache bust=1300062840952>. Acesso em: 5 de março de 2011 [2] OPEC Share of the World Crude Oil Reserves. Disponível em: <http://www. opec.org/opec_web/en/data_graphs/330. htm> Acesso em: 20 de março de 2011. [7] Petrobras cria empresa de sondas do pré-sal. Disponível em: <http://exame. abril.com.br/negocios/empresas/noticias/ petrobras-cria-empresa-de-sondas-dopre-sal> Acesso em: 20 de março de 2011 [3] Produção de petróleo da Líbia caiu 80%. Disponível em: http://www.istoedinheiro.com.br/noticias/51376_PRODU CAO+DE+PETROLEO+DA+LIBIA+C AIU+80. Acesso em: 23 de novembro de 2012 [4] Petrobras Hires 80% of Deepwater Rigs, Inflates Rents. 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Porém, no início do século XX, os carros movidos a gasolina, conquistaram todo o espaço deixando para trás tanto os carros movidos a vapor quantos carros elétricos. O surgimento de ativos complementares, como o desenvolvimento de uma infraestrutura de abastecimento que solidificou seu uso, deu condições para que o motor a gasolina prevalecesse. Este texto mostra, estritamente, o desenvolvimento tecnológico de baterias e a ação governamental como condicionantes relevantes para a difusão do carro elétrico, Apesar de ser uma ideia antiga, o carro elétrico volta a ser vislumbrado, principalmente após o início da década de 1990, quando inúmeras questões de ordem ambiental passam a ser colocadas, bem como a possibilidade de esgotamento das reservas de petróleo. Palavras-chave: carro elétrico, condicionantes, difusão * Claudia do Nascimento Martins, Doutoranda em Políticas Públicas, Estratégia e Desenvolvimento (UFRJ), Mestre em Economia (UFF). Economista, Professora da Universidade Veiga de Almeida. • Artigo Condicionantes relevantes para a difusão do carro elétrico: o desenvolvimento tecnológico de baterias e a ação governamental 128 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 127-139 Abstract The first automobiles which arose in the 18th century were the result of successive technological approximations and adaptations. Until the end of the 19th century, cars were manufactured in small batches in Europe. However, in the beginning of the 20th century, the auto industry started to take shape with Henry Ford’s mass production of gasoline powered cars. In the end of the 19th century, cars were powered by three different types of energetic source: steam power (this one since the 18th century), electric power and combustion, i.e., gasoline. But, in the beginning of the 20th century, gasoline powered cars conquered all the space, leaving behind both the steam powered cars and the electric cars. The appearance of complementary assets, such as the development of a supply infrastructure which solidified its use, gave conditions for the prevailing of the gasoline motor. This text strictly shows the technological development of batteries and governmental action as relevant constraints for the diffusion of the electric car. Even though this is an old idea, the electric car, once again, gains visibility, mainly after the beginning of the 90s, when innumerous issues about environment preservation began to be considered, as well as the possibility of oil reserves exhaustion. Keywords: electric car, constraints, diffusion 1. Introdução Os primeiros automóveis, que surgiram no século XVIII, foram frutos de sucessivas aproximações e adaptações tecnológicas que, gradualmente, foram se desenvolvendo em torno de um objetivo comum: viajar rápido, com comodidade e, sobretudo, com um mínimo de esforço e máximo de segurança para seus ocupantes. Enquanto na Europa o automóvel continuou a ser produzido em pequenas séries, orientado para os ricos, o crescimento do número de carros a gasolina nos Estados Unidos era sinônimo de produção em larga escala, de preços menores e da criação de um mercado amplo. Com a produção em massa de Henry Ford, no início do século XX, a indústria automobilística realmente começou a tomar forma e as inovações ocorridas ao longo do século XX e início do século XXI têm sido exemplo para outros setores industriais. Argumenta-se que a energia elétrica (bateria) não é, atualmente, a fonte padrão por ser ineficiente vis-àvis o motor a combustão (gasolina). O contra-argumento é o de que, na virada do século XIX para o século XX, se a indústria automobilística tivesse deci dido utilizar energia elétrica, a pesquisa nesse ramo teria avançado o suficiente para tornar essa tecnologia tão eficiente, se não mais, do que a atualmente utilizada. O estudo de Cowan e Hultén (1996) ressalta os problemas técnicos de cada opção (incluindo o carro a vapor – o Locomobile que, na virada do século XX, era o carro mais popular nos Estados Unidos): i) carro a gasolina: era barulhento, problema este que, até hoje, não foi Condicionantes relevantes para a difusão do carro elétrico totalmente resolvido; era difícil dar a partida; consumia muita água; tinha autonomia relativamente baixa e a velocidade máxima alcançada também era baixa. ii) carro a vapor: necessitava aquecer vinte minutos antes da viagem e consumia uma imensa quantidade de água. iii) carro elétrico: não conseguia su bir terrenos íngremes; sua autonomia era baixa e a velocidade máxima alcançada era baixa. Todos esses problemas estavam relacionados à baixa capacidade de armazenamento de energia das baterias e, uma vez que o desenvolvimento dessas baterias era lento, os problemas permaneceram. Segundo Cowan e Hultén (id), a indústria automobilística começou a se desenvolver rapidamente na década de 1890 e o seu mercado foi dividido principalmente entre elétrico e vapor. De acordo com os autores, em 1899 foram vendidos 1575 veículos elétricos, 1681 carros a vapor e 936 carros a gasolina. Entretanto, já nessa época, o problema da baixa capacidade da bateria já existia e, apesar da promessa, Thomas A. Edison não conseguiu solucioná-lo. Logo, enquanto as vendas de veículos elétricos nos Estados Unidos mais do que duplicaram entre 18991909, as vendas de carros a gasolina aumentaram mais de 120 vezes. O surgimento de ativos complementares ao motor a gasolina - como a descoberta de petróleo no Texas em 1901, a entrada no mercado de grandes empresas como a Texaco e criação de postos de abastecimento - deram condições para que essa tecnologia prevalecesse em relação às outras. 129 Nos primeiros anos do século XX, o veículo a gasolina superou seus concorrentes no mercado americano. Essa mesma evolução já se apresentara na França, na Grã-Bretanha e na Alema nha. Desta forma, o motor a combustão tornou-se o padrão da indústria automotiva, o que não significa que o veículo elétrico tenha desaparecido da mente dos homens durante o século XX. O início da década de 1990 foi marcado por inúmeras questões de ordem ambiental, cujos desdobramentos se tornariam irreversíveis em decorrência de suas repercussões de caráter global. Questões relacionadas às mudanças climáticas, aos desequilíbrios do efeito estufa e às implicações devastadoras da poluição do ar para a saúde dos seres vivos, tornaram-se relevantes na esfera global. Nas grandes cidades, o pro blema agravou-se devido às emissões de dióxido de carbono dos veículos a gasolina. Além disso, a existência da possibilidade de finitude do petróleo parece cada vez mais real, principalmente por dois motivos: (i) a exploração completa das reservas de petróleo existentes e (ii) as novas descobertas de jazidas de petróleo que exigem custos maiores para sua exploração, bem como a consideração de seus impactos ambientais. Logo, quanto mais perto do fim, considerando que o petróleo é uma fonte de energia não renovável, mais alto deverá ser seu preço. Assim sendo, o carro elétrico se apresenta como uma possível resposta para as questões discutidas. Logo, uma ideia com mais de um século voltou a ser o centro das atenções. Fatores como alterações climáti- 130 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 127-139 cas, preços do petróleo, maior demanda por mobilidade, novos desenvolvimentos tecnológicos para motores e baterias passaram a contribuir para dar vida nova a uma ideia antiga: os automóveis elétricos. Muitos projetos relacionados aos carros elétricos, e que antes existiam apenas no papel, puderam se concretizar na primeira década do século XXI. Atualmente, diversos fabricantes de carros já oferecem ao mercado, nos salões anuais de automóveis, modelos totalmente elétricos, híbridos e plug-in, tanto para venda quanto para sua apreciação como carros-conceito. Nos carros totalmente elétricos, a energia que alimenta o motor é armazenada em uma bateria e provém de uma fonte externa, como por exemplo, uma rede elétrica, com autonomia na faixa de 70 a 160 Km. Os carros híbridos não se conectam a uma fonte externa e a energia elétrica que move o motor é produzida no interior do próprio veículo. O motor de combustão interna que aciona o gerador pode ser movido a gasolina, etanol ou óleo diesel. Logo, a energia não utilizada é armazenada para quando for necessária. Os carros plug-in constituem uma combinação dos veículos elétricos e dos veículos híbridos, pois sua bateria pode ser alimentada tanto por uma fonte externa quanto por um motor gerador situado a bordo do veículo (Erber, 2010). Assim, este texto visa fundamentar os condicionantes capazes de provocar uma difusão do carro totalmente elétrico. Primeiramente, far-se-á uma breve contextualização sobre o conceito de inovação e difusão tecnológica. Em seguida, verificar-se-á alguns dos condicionantes necessários à difusão do carro elétrico. 2. Inovação e difusão tecnológica: breve contextualização Dosi (1988) define a atividade inovadora como um conjunto de processos de busca, descoberta, experimentação, desenvolvimento, imitação e adoção de novos produtos, novos processos e novas técnicas organizacionais. As inovações, segundo Freeman (1984), podem ser incrementais ou radicais. As inovações incrementais são aquelas que introduzem aperfeiçoamentos em produtos ou processos pré-existentes, enquanto que as inovações radicais são aquelas que introduzem novos produtos, novos processos e novas formas de organização da produção. Schumpeter (1951) entende o processo de inovação como um processo de “destruição criadora”, pois a inovação cria novos produtos e oportunidades, acarretando a obsolescência e eliminação de outros. Assim, a dinâmica do capitalismo depende da criação de ino vações e da destruição de produtos e processos preexistentes. Na abordagem teórica elaborada por Schumpeter, a inovação tecnológica assume um papel central na explicação do desempenho econômico, sendo um fator de diferenciação competitiva entre as empresas e o elemento principal da dinâmica capitalista. Nelson e Winter (1982), da corrente evolucionária, iniciaram uma linha de investigação apoiada principalmente em Schumpeter e consideram que a dinâmica econômica é baseada em ino Condicionantes relevantes para a difusão do carro elétrico vações em produtos, processos e nas formas de organização da produção. Os autores entendem a empresa como um depósito, em sua teoria evolutiva da mudança econômica e tecnológica, onde os conhecimentos são armazenados sob a forma de padrões de comportamento regulares e previsíveis: são os genes que assumem a forma de rotinas. A inovação, segundo eles, é uma mutação inerentemente imprevisível das rotinas. Segundo Rogers e Schoemaker (1971), a difusão pode ser definida como o processo pelo qual uma inovação é transmitida por meio de determinados canais, ao longo do tempo, entre os membros de um sistema social. Os processos de inovação e difusão não são distintos, pois, em muitas situações, a difusão contribui para o processo de inovação. A difusão nutre e orienta a trajetória de inovação, mostrando as necessidades da demanda por soluções técnicas. O sucesso da difusão tecnológica depende da capacidade de aperfeiçoamento e adaptação de um novo produto ou processo às condições específicas de um setor ou país. Desta forma, segundo Tigre, “uma inovação só produz impactos econômicos abrangentes quando se difunde amplamente entre empresas, setores e regiões, desencadeando novos empreendimentos e criando novos mercados” (2006, p.71). Tigre (id) argumenta que o processo de difusão tecnológica é examinado, usualmente, a partir de quatro dimensões básicas: (i) direção ou trajetória tecnológica, referindo-se às opções técnicas adotadas ao longo de uma trajetória evolutiva; 131 (ii) ritmo ou velocidade de difusão, que indica a velocidade de sua adoção pela sociedade, medida pela evolução do número de adotantes ao longo do tempo dentro do universo potencial de usuários; (iii) fatores condicionantes, tanto positivos, que estimulam a adoção da tecnologia, quanto negativos, que restringem seu uso. Os condicionantes podem ser de natureza técnica, econômica ou institucional: os técnicos ocorrem, à medida que uma tecnologia se difunde, com a necessidade de desenvolvimento de um conjunto de tecnologias complementares para apoiá-la; os econômicos referem-se aos custos de aquisição e implantação da nova tecnologia, assim como às expectativas de retorno do investimento e incluem também os custos de manutenção e a possibilidade de aproveitamento de investimentos já realizados em equipamentos; os insti tucionais referem-se a fatores como disponibilidade de financiamentos e incentivos fiscais para a inovação, clima favorável ao investimento no país, acordos internacionais de comércio e investimento, sistema de propriedade intelectual e existência de capital humano e instituições de apoio. (iv) impactos econômicos e sociais, trazendo consequências positivas e negativas para diferentes setores da economia, que podem ser analisados a partir de sua natureza econômica, social e ambiental: econômica, no sentido de alterar a demanda por determinados produtos, afetando a produção e o comércio internacional; social, no que se refere ao impacto das novas tecnologias sobre o emprego e 132 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 127-139 as qualificações; e ambiental, tendo em vista as preocupações da sociedade com a preservação dos recursos naturais, da água e do ar. 3. Condicionantes para a difusão do carro elétrico: algumas considerações quanto ao desenvolvimento tecnológico de baterias e a ação governamental Para North e Davis, um arranjo institucional é “(..) um arranjo entre unidades econômicas, que governa a forma pela qual essas unidades podem cooperar e/ou competir” (1971, p.7). De acordo com Fiani, “(...) os arranjos institucionais definem, por conseguinte, a forma particular como um sistema econômico coordena um conjunto específico de atividades econômicas” (2011, p. 4). Logo, considerando o setor automobilístico como um arranjo institucional, a promoção do desenvolvimento dos carros elétricos passa efetivamente por uma questão de coordenação desta atividade econômica. Contudo, não é possível promover o desenvolvimento e a difusão dos carros elétricos sem que haja uma cooperação dos agentes envolvidos. Ainda segundo Fiani (id), sem cooperação não é possível atingir o objetivo de promover o desenvolvimento, já que o progresso necessita de uma série de mudanças e investimentos que modificam significativamente as atividades econômicas, a renda e a riqueza; assim, vários agentes tomam decisões que têm que ser consistentes entre si. Desta forma, promover a coo peração entre os agentes envolvidos na produção dos carros movidos a energia elétrica não implica apenas a redução das possibilidades de conflito, mas entende-se como uma condição sine qua non para a sua difusão. Alguns movimentos estão sendo realizados nesse sentido. Empresas privadas, em parceria com governos de diferentes países, têm incentivado a P&D (Produção e Desenvolvimento) tanto dos ativos complementares que envolvem o veículo elétrico – como as baterias – quanto do veículo em si. Segundo Teece (1986), inovações tecnológicas requerem o uso de determinados ativos para produzir e distribuir novos produtos e serviços, ou seja, uma tecnologia não funciona isoladamente e demanda um conjunto de ativos complementares. Logo, pode-se dizer que os ativos complementares representam um agregado de bens, tecnologias e fatores que formam o âmbito de um produto ou serviço. No início do século XX, o carro elétrico foi preterido em relação ao carro a gasolina, justamente pela formação dos ativos complementares que solidificaram esta tecnologia. A descoberta de petróleo no Texas em 1901, no momento em que Henry Ford desenvolve a produção em massa de carros, a criação de uma rede de postos de gasolina e o ingresso de grandes empresas de petróleo como a Texaco tornaram o motor a combustão o padrão da indústria automobilística. Caracterizam-se como ativos complementares do veículo elétrico o desenvolvimento tecnológico de componentes, especialmente no que diz respeito aos fabricantes de baterias; a infraestrutura de abastecimento, que in- Condicionantes relevantes para a difusão do carro elétrico clui equipamentos específicos, e o tipo de postos de abastecimento, além das questões ambientais e da ação governamental em favor do novo paradigma. No Brasil, a Itaipu Binacional, em Foz do Iguaçu, no estado do Paraná, vem desenvolvendo seu carro elétrico há alguns anos, em cooperação com a Fiat - o Projeto VE (Veículo Elétrico). Uma área na usina hidrelétrica de Itaipu abriga uma oficina de montagem e centro de teste da versão elétrica do Palio Weekend. As carrocerias dos carros, montados especialmente para o projeto, são feitas na fábrica da Fiat Automóveis, em Betim (MG) e, em Itaipu, recebem os componentes específicos do carro elétrico – motor, transmissão e baterias. Os carros não estão à venda, mas já circulam na sede da usina. No final de setembro de 2011, as empresas Itaipu Binacional e a Kraftwerke Oberhasli AG – KWO inauguraram em Meiringen, na Suíça, um laboratório para o desenvolvimento de uma nova bateria de sódio considerada 100% reciclável e com alta densidade energética. O projeto tem recursos da FINEP (Financiadora de Estudos e Projetos), vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, enquanto que a gestão do financiamento, no valor de US$ 16 mi lhões, está a cargo da Fundação Parque Tecnológico Itaipu (FPTI), que realizou parceria com a empresa suíça Battery Consult, coordenadora do desenvolvimento da nova bateria. Além do laboratório na Europa, o projeto prevê a instalação de outro, idêntico, na própria FPTI. Atualmente, as baterias utilizadas nos carros da Itaipu/FIAT são da marca Zebra, de origem suíça, à base de só- 133 dio, níquel e cádmio e com custos de importação muito altos. Essas baterias são totalmente recicláveis, permitindo uma autonomia de aproximadamente 100 quilômetros com carga completa e suprindo, assim, as necessidades de quilômetros diários de transporte urbano. O KWO prevê transferência de tecnologia e possibilitará o desenvolvimento da nova bateria, com tecnologia nacional e custo menor, permitindo o licenciamento de empresas, no Brasil e no exterior, para a sua produção. Uma outra iniciativa nacional, mas na esfera privada, é o Triciclo Pompéo, que esteve em desenvolvimento na incubadora tecnológica da Itaipu Binacional. Esse projeto tem por objetivo produzir soluções para o transporte urbano, estimulando a geração de novas qualificações, desenvolvendo e criando novas tecnologias. Trata-se de um carro elétrico e compacto, com baterias de íons de lítio, que busca atender às necessidades de transporte do dia a dia: de três rodas, fechado, com design arrojado, projetado para solucionar o transporte urbano de passageiros de forma econômica e ecologicamente correta. O Pompéo foi desenhado para duas pessoas: com pequenas dimensões, baixo custo de energia, emissão nula de poluentes, uso de energia renovável, segurança e conforto. Em se tratando de um veículo leve, de aproximadamente 450kg, o Pompéo requer uma menor capacidade de armazenamento de energia elétrica para oferecer uma autonomia viável e muito superior à necessária em trajetos urbanos e àquela oferecida, atualmente, no mercado. Reduz-se, assim, o custo de um item de peso significativo na com- 134 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 127-139 posição do produto: a bateria. Quanto à questão das baterias, esta ainda é um grande desafio, pois elas são caras, pesadas demais e ocupam um bom espaço do porta-malas. As baterias de sais de níquel, por exemplo, trazem a vantagem de serem totalmente recicláveis, mas ocupam quase todo o espaço do bagageiro. A alternativa tem sido as baterias de íons de lítio, utilizadas em celulares, por serem mais leves, duráveis e mais flexíveis na montagem, já que podem ser alocadas também sob o assoalho do carro. Assim, a questão da autonomia e da logística reversa das baterias ainda é uma preocupação. Ainda no que se refere às baterias, a Dinamarca está desenvolvendo uma bateria ilimitada para carros elétricos, prometendo acabar com a falta de autonomia, que é um dos maiores pro blemas do veículo elétrico. Em vez de gasolina ou diesel, o abastecimento é de eletricidade, devido à existência de uma rede nacional de postos de bateria. Um veículo movido à bateria não percorre mais do que 200 quilômetros. Logo, é necessário parar para recarregar durante pelo menos seis horas. Com o sistema desenvolvido na Dinamarca, não existe mais limite, pois, quando a carga chega perto do fim, basta trocar a bateria por outra completamente carregada. A Dinamarca foi, também, um dos primeiros países a implementar iniciativas para promover os carros elétricos, de forma a também reduzir a dependência do petróleo e limitar a emissão de gases de efeito de estufa. Copenhagen começou a incluir os carros elétricos em sua frota municipal em maio de 2009. O governo dinamarquês começou a promover esses veículos atribuindo subsídios, como incentivos fiscais, e também estabelecendo vários projetos ambientais (Veículoselectricospt, 2011). Com o objetivo de reduzir seus preços, o governo dinamarquês isentouos de impostos até este ano de 2012, havendo planos para estender esse prazo até 2015. As reduções podem alcançar cerca de 60% do custo do veículo, o que levou muitos fabricantes a escolherem o país para introduzirem os primeiros carros elétricos. A Dinamarca é, ainda, o maior produtor do mundo de energia eólica e os carros elétricos permitirão uma utilização eficiente dos exceden tes de energia gerados durante a noite. Existe, então, um grande interesse em poder usar a rede elétrica para o consumo da energia proveniente de fontes renováveis (ibid). No Brasil, foi lançado e inaugurado, em dezembro de 2011, por meio da cooperação entre GE e Petrobras, o primeiro carregador de carros elétricos da GE no Brasil, o DuraStation. O equipamento está em funcionamento no Posto do Futuro da Petrobras, na Barra da Tijuca, na cidade do Rio de Janeiro, e está disponível para o uso dos consumidores que já possuem veículos elétricos. O DuraStation faz parte de um portfólio da GE chamado Industrial Solutions, que está no GE Energy Management, pertencente ao GE Energy, juntamente com a GE Power & Water e GE Oil & Gas. O equipamento já havia sido lançado nos mercados norte-americano, asiático e europeu e o início do funcionamento de suas primeiras unidades no Posto do Futuro marca a entrada dessa solução no mercado brasileiro (GE Re- Condicionantes relevantes para a difusão do carro elétrico ports Brasil, 2012). Esse equipamento com tecnologia de ponta é capaz de reduzir o tempo de recarregamento de um veículo elétrico de seis a oito horas para cerca de duas horas. No caso do Posto do Futuro, no centro de recarga de veículos elétricos, estão disponíveis duas estações de carregamento GE, que possibilitam, simultaneamente, a carga de até três veículos. Os grandes desafios tecnológicos dos carros elétricos estão, de fato, relacionados aos projetos das baterias. A grande questão é como armazenar a maior capacidade de carga em volumes e pesos cada vez menores no menor espaço de tempo. Os grandes desafios governamentais seriam estabelecer novos conceitos para a mobilidade urbana e a implantação do Smart Grid. Entendese por Smart Grid, ou rede inteligente, a aplicação de tecnologia de informação para o sistema elétrico, integrada aos sistemas de comunicação e infraestrutura de rede automatizada (Smartgrid News, 2012). Assim, a lógica da Smart Grid está em uma palavra: inteligência. Logo, novas redes serão automatizadas com medidores de qualidade e de consumo de energia em tempo real. A inteligência também será aplicada no combate à ineficiência energética, isto é, à perda de energia ao longo da transmissão. Quanto aos veículos elétricos, o sistema do Smart Grid permite aos usuários controlar a recarga dos carros, enquanto estes estão conectados a uma tomada normal. Quanto às empresas do setor automobilístico que estão avançando na produção de carros elétricos, temos a Ford com o Ford Focus Electric, a 135 General Motors com o Volt e a Nissan com o Leaf. A Nissan vem sendo uma das maiores incentivadoras na produção de carros 100% elétricos na Europa, no Japão e em Israel. Em 2011, a empresa deu mais um salto em direção à popularização desses veículos ao ganhar a licitação realizada pela TLC (Taxi and Limousine Commission) da cidade de Nova Iorque para produzir a próxima geração de taxis movida à eletricidade. A montadora japonesa venceu a americana Ford e a turca Kassan Otomotiv. A licitação foi ganha com o comprometimento da Nissan de produzir os táxis elétricos nos Estados Unidos e, em 2017, ter toda sua frota movida à eletricidade. Pode-se dizer que os carros 100% elétricos estão evoluindo, mas, com certeza, terão de superar grandes obstáculos antes de se tornarem interessantes no uso diário. Sua autonomia ainda é pequena, algo grave em um país de grandes distâncias; faltam postos de recarga - o tempo necessário para recarga continua longo, apesar de sua redução considerável - e os pacotes de baterias ainda são muito caros. Como têm custos altos de produção, os elétricos precisam de incentivos governamentais para que sejam economicamente viáveis. Os governos de países como Dinamarca, já mencionado anteriormente, Reino Unido, França, Estados Unidos, Holanda e Alemanha estão investindo em P&D de baterias, bem como criando incentivos para a aquisição desses veículos. Para criar novas opções de mobilidade dentro das cidades, o governo da Alemanha, por meio do Ministério da Educação e Pesquisa, anunciou, neste 136 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 127-139 ano de 2012, um investimento de 10,8 milhões de euros no financiamento de projetos de carros elétricos. O objetivo é desenvolver automóveis que utilizem energia renovável e unam eficiência e segurança, com preço acessível para a população. Batizado de Vision M, o plano conta com cientistas da Universidade Técnica de Munique (TUM, sigla em alemão) e com a indústria automotiva do país - incluindo a BMW, líder do projeto, e a Daimler AG, dona da Mercedes (Notícias Automotivas, 2012). No Brasil, o aspecto tributário torna inviável a popularização de elétricos. A alta carga tributária é sinal de que a circulação dos carros movidos à energia elétrica irá demorar. Na tabela de impostos da Receita Federal, esses veículos são tributados como “outros” e, sobre eles, incidem 25% de IPI, enquanto que automóveis convencionais 1.0 de motor a gasolina pagam 7% de imposto e, se cumprirem metas de redução de consumo, podem ter alíquota diminuída. Logo, o encarecimento do carro elétrico é motivado. No início de 2010, o governo brasileiro chegou a cogitar um programa de estímulo ao desenvolvimento do carro elétrico, mas o plano foi cancelado por divergências internas. Com a ausência de incentivos, um veículo como esse, no Brasil, está em torno de R$ 200 mil, caso do Leaf da Nissan. Esse mesmo carro é vendido nos Estados Unidos na faixa de R$ 50 mil. Na realidade, existe uma compreensão do governo brasileiro de que uma nova tecnologia como o carro elétrico poderia tirar de cena o etanol, o que parece ser algo equivocado, pois existiria a possibili- dade de agregação sem exclusão. Os desafios para a introdução dos veículos elétricos no mercado mundial, nas suas mais diversas modalidades, são imensos. Novos componentes deverão ser projetados, um novo conceito de “postos de abastecimento” deverá ser implantado, e a infraestrutura de energia elétrica deverá ser adaptada e expandida; logo, um novo conjunto de normas sociais deverá ser desenvolvido. Segundo Fiani, “(...) as normas sociais – que emergem espontaneamente na sociedade - têm a capacidade de estabelecer e garantir regras que favoreçam as mudanças necessárias ao desenvolvimento, ao minimizarem as possibilidades de atuação oportunista e com isso reduzirem os custos de transação” (2011, p. 141). No caso dos carros elétricos, como mencionado anteriormente, uma série de investimentos complementares deve ser realizada ao longo de sua cadeia produtiva. Entretanto, no momento da realização desses investimentos, se os agentes envolvidos começarem a atuar de forma oportunista, tentando obter condições mais vantajosas, o processo de desenvolvimento dos veículos movidos à energia elétrica pode ser comprometido, ou até mesmo fracassar. Assim, as normas sociais devem evitar o comportamento oportunista como algo que caminha em direção oposta ao comportamento cooperativo. Adicionalmente, como em toda tecnologia inovadora, mecanismos de incentivos e de fomento deverão ser, necessariamente, implementados em prol dos elétricos. Assim, uma nova indústria automobilística está a caminho, com novos postos de trabalho, exigindo Condicionantes relevantes para a difusão do carro elétrico também novas qualificações. Fica clara a importância da participação do Estado no desenvolvimento e difusão desses veículos. Dietrich Rueschemeyer e Peter Evans (1985) identificam três motivos para a necessidade da intervenção do Estado no sistema econômico, que não são necessariamente independentes: (i) superação de falhas de mercado; (ii) superação de resistências sociais ao processo de desenvolvimento econômico; e (iii) superação de resistências sociais à redistribuição de renda na sociedade. No que se refere aos veículos elétricos, a intervenção do Estado na superação de falhas de mercado é extremamente cabível. Percebe-se claramente que o setor automobilístico, enquanto arranjo institucional, neces sita de apoio governamental para tornar viável um produto com tecnologia não convencional, mas que tem que ser vislumbrada, considerando uma futura mudança motivada pela grande preocupação com as questões ambientais. Políticas públicas vêm tornando mais rígidas as leis quanto à emissão de gases veiculares como o dióxido de carbono. Douglass North e Lance E. Davis (1971) definem ambiente institucional como “(...) o conjunto de regras fundamentais de natureza política, social e legal, que estabelece a base para a produção, a troca e a distribuição” (1971, p.6). Rueschemeyer e Evans reconhecem que a tensão entre agir de acordo com o interesse geral da sociedade e agir como instrumento de dominação de grupos mais poderosos é intrínseca ao funcionamento do Estado. Sendo assim, faz 137 parte do Estado ser, simultaneamente, agente do bem comum e promotor de interesses particulares. Como argumentam os autores, “(...) deve-se reconhe cer que a ação do Estado, em apoio às tarefas fundamentais, muito provavelmente também tem implicações loca lizadas” (1985, p. 48). De fato, quando o Estado promove o bem comum, que engloba os objetivos mais gerais da sociedade, as suas ações têm, frequentemente, resultados que são apropriados como benefícios por agentes particulares. Desta forma, a difusão dos veículos elétricos, que beneficia toda a sociedade, gera, ao mesmo tempo, ganhos expressivos, não somente na indústria automobilística, como também em uma indústria nas cente de baterias, de postos de recarga e no setor energético, Pode-se dizer que a importância do Estado na formação desse novo paradigma tecnológico é primordial. Necessita-se, para sua alavancagem, de um Estado Desenvolvimentista, que, na compreensão de Peter Evans (2004), é aquele que consegue combinar autonomia e parceria. Segundo Rueschemeyer e Evans, por autonomia entende-se que o “Estado deve adquirir certo grau de autonomia relativa da classe dominante com o objetivo de promover efetivamente a transformação econômica, sendo que essa autonomia relativa seria necessária não apenas para formular objetivos coletivos, mas para implementá-los também” (ibid, p. 49). Logo, é imprescindível a parceria do Estado com os agentes privados; no caso, a parceria com as empresas privadas que estão investindo na produção 138 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 127-139 dos carros elétricos é fundamental para a promoção do seu desenvolvimento. O fato é que apenas incentivos fiscais podem não ser suficientes para aumentar as vendas dos veículos em questão. Embora países europeus e os Estados Unidos disponibilizem incentivos fiscais para este tipo de carro, eles ainda não são atraentes aos consumidores. O consumo desses veículos é afetado pela ausência de infraestrutura. Os consumidores ficam inseguros em adquirir um carro elétrico já que não sabem onde irão abastecê-lo. Portanto, os incentivos são relevantes, mas a criação de uma infraestrutura é primordial e o Estado, em cooperação com os agentes privados, deve criar condições reais não somente para o desenvolvimento tecnológico do veículo movido a energia elétrica, como também para sua difusão. Fica claro que os condicionantes técnicos, como a P&D em baterias; os condicionantes econômicos, como os ganhos gerados para o setor automobilístico e para uma indústria nascente de baterias, de postos de recarga e para o setor energético e, principalmente, os condicionantes institucionais como a cooperação e parceria entre empresas privadas e o Estado podem provocar um novo direcionamento para o setor automobilístico. 4. Conclusão A indústria automobilística está em um ponto decisivo, depois de mais de 100 anos de história, com a perspectiva de um novo paradigma tecnológico. O motor a combustão interna poderá estar presente nos próximos anos, mas o início desta década de 2010 pode marcar seu declínio. Se a indústria reverter seu curso, como parece ser possível, a cada ano, novos avanços poderão ocorrer em relação aos carros totalmente e recarregá-los será mais natural do que parar para abastecer um carro, como se faz atualmente. Entretanto, é extremamente necessário que haja uma inte gração entre empresas privadas e go verno para o desenvolvimento de ativos complementares que envolvam o carro elétrico, especialmente a infraestrutura de abastecimento e a maior autonomia das baterias, além de incentivos fiscais e regulação ambiental. A difusão do carro elétrico vai ao encontro das atuais preocupações da sociedade quanto à preservação dos recursos naturais, do ar e da água. O carro elétrico corrobora, então, o momento atual de se buscar desenvolver produtos que não agridam o meio ambiente. Desta forma, a ação governamental, tanto no que se refere à regulamentação ambiental quanto no referente aos incentivos fiscais e à criação de uma infraestrutura que viabilize os carros elétricos, é necessária para trilhar um rumo sólido para esses veículos. Condicionantes relevantes para a difusão do carro elétrico 139 Referências COWAN, R. & HULTÉN, S. Escape lockin: the case of the electric vehicle. Technological Forecasting and Social Change. Volume 53, n. 1. Ontario, 1996. DAVIS, Lance & NORTH, Douglass C. Institutional change and american economic growth. Cambridge: Cambridge University Press, 1971. DOSI, G. The Nature of the innovative process. In: DOSI, G.; FREEMAN, C.; NELSON, R. SILVERBERG, G. & SOETE, L.(eds). Technical Change and Economic Theory. Londres: Pinter, 1988. ERBER, Pietro. Automóveis elétricos a bateria uma política para sua utilização no Brasil. Estratégia de Implantação do Carro Elétrico no Brasil versão preliminar. Estudos e Pesquisas. 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Acesso em 14 de dezembro de 2011. 140 ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 140-141 BUENO, C., PARDO, F. L., REIFF, F. P. E VINHA, V. Ecoturismo Responsável e seus Fundamentos. Rio de Janeiro:Technical Books Editora, 256 p., 2011. • RESENHA-RESUMO • Cecília Bueno * Poucos segmentos na economia se apresentam de maneira tão multidisciplinar quanto a indústria do Turismo; a começar pelas próprias opções ofe recidas, tais como: Ecoturismo, Turismo Cultural, Turismo de Aventura, Turismo de Negócio e Eventos, Turismo Náutico, Turismo Rural. Dentro desses diversos segmentos são inúmeras as disciplinas envolvidas e um profissional de visão mais eclética tende a se sobressair nesse ramo de atividade. O Turismo envolve o conhecimento de História, Geografia, Arquitetura, Sociologia, Antropologia, Meio Ambiente, Logística, Agricultura, Educação, Empreendedorismo, Direito, Hospitalidade, Marketing, Política e de muitas outras ciências, que desafiam os gestores e empreendedores desse fascinante mundo, tão representativo na economia do País. Voltado principalmente para estudantes de cursos de graduação e de especialização, além de profissionais de Turismo e guias, o livro aqui resenhado se propõe a levantar questões que ajudem a elucidar a relação entre Ecotu rismo e conservação do meio ambiente, apontando as contradições associadas às práticas e atividades reconhecidas pelo senso comum como ambientalmente corretas, mas que podem causar impactos severos, como, por exemplo, o pisoteio excessivo em trilhas, que leva à compactação do solo e, por conseguinte, à deflagração de processos erosivos. Ecoturismo Responsável e seus Fundamentos não tem a pretensão de cobrir em profundidade todas as disciplinas do setor, mas é um livro que oferece, de forma objetiva, um pouco de informação a cada tipo de leitor, seja ele estudante de turismo, profissional da área, praticante de ecoturismo, ambientalista ou qualquer pessoa interessada na relação saudável do Turismo de Natureza com os três pilares que os sustentam: o econômico, o social e o ambiental. Com texto fácil e didático, os autores ajudam o leitor a entender as possibilidades de exploração da beleza e diversidade da natureza brasileira de maneira responsável. No primeiro capítulo, o livro aborda a história dos deslocamentos humanos e como esse processo foi ocorrendo, de forma cada vez mais organizada, até se estabelecer como “Tu rismo”, além de comentar acerca do pa- Cecília Bueno, Doutora em Geografia (UFRJ), Mestre em Gestão Ambiental (UNESA). Consultora na área de serviços ambientais, Professora da Universidade Veiga de Almeida. * resenha-resumo: Ecoturismo Responsável e seus Fundamentos pel da natureza nesse contexto e acerca de como esse setor se encaixa na engrenagem dos “produtos comercializáveis”. No Turismo, para explorar o meio de forma segura, consciente e contextualizada, é fundamental o papel do guia e/ou condutor. As expectativas em relação a essa função e suas principais responsabilidades são apresentadas no Capítulo 2. Outra questão importante apresentada no livro é a das relações entre os prestadores de serviços e seus clientes, e, consequentemente, o envolvimento, no processo turístico, de inú meras relações humanas, passíveis de uma extraordinária gama de problemas jurídicos. Quando se fala da exploração comercial do Turismo de Natureza, exis tem, ainda, vários aspectos legais que envolvem a relação Homem/Natureza. O Capítulo 3 aborda, de forma geral, as principais implicações jurídicas dessas relações. Não se pode falar de uma atividade sustentável sem abordar os impactos socioambientais do Ecoturismo. O Capítulo 4 explora com mais detalhe as diversas modalidades do Turismo na natureza e as questões cruciais sobre os impactos dessas atividades. Já o Capítulo 5 ajuda o leitor a entender melhor as oportunidades comerciais que existem 141 no Ecoturismo e o que os turistas buscam, bem como de que maneira atender às suas expectativas, que são muito subjetivas e complexas. Também ajuda a divulgar os diversos serviços possíveis e a ganhar vantagem competitiva nas diferentes oportunidades de negócios. O Capítulo 6 aborda outro pilar fundamental na relação sustentável da atividade turística: a Economia. O leitor entenderá o papel da indústria do Tu rismo, no cenário nacional e mundial, e seu impacto nas diversas economias e ciclos. Finalmente, são tratadas as várias interrelações entre Ecoturismo e Conservação, com destaque para os temas ambientais da atualidade, como os efeitos das mudanças climáticas nas atividades ecoturísticas. O livro conta também com Anexos, incluindo textos sobre atividades re creativas em ambientes naturais, sobre a conduta consciente de mínimo impacto nesses ambientes e sobre o Código Mundial de Ética do Turismo. Para explicitar o acesso às fontes, facilitar a lei tura e estimular a pesquisa, o livro traz as referências bibliográficas enumeradas e indicadas no fim de cada capítulo, seguidas por uma lista de títulos e sites, como sugestão de leitura. Esta obra foi composta em Minion Pro corpo 10,5 entrelinha 13, com títulos em Legacy Sans e foi impressa em offset no Rio de Janeiro em dezembro de 2012.