acórdão n.º 4/2016 - Tribunal Administrativo

Transcrição

acórdão n.º 4/2016 - Tribunal Administrativo
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE
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TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
PLENÁRIO
Processo n.º 11/2015-P
ACÓRDÃO N.º 4/2016
Acordam, em conferência, no Plenário do Tribunal Administrativo:
FERNAVE SA., Sociedade Anónima de Direito Português, com os
demais elementos de identificação constantes dos autos do processo à
margem indicado, inconformada com a decisão proferida nos autos do
Processo n.º 168/2006-1.ª, através do Acórdão n.º 233/2014, de 2 de
Setembro, que julgou procedente o recurso interposto por Marta Maria
V. Barrotti, declarando nulo e de nenhum efeito o despacho de
revogação do DUAT sobre a Parcela n.º 262, do Aterro de Maxaquene,
contido na Nota n.º 945/DMCU/2006, de 20 de Abril, do Presidente do
Conselho Municipal da Cidade de Maputo, veio perante esta instância
jurisdicional, nos termos do disposto nos artigos 139 e 140, ambos da
Lei n.º 9/2001, de 7 de Julho, Lei do Processo Administrativo
Contencioso (LPAC), interpor recurso de apelação, louvando-se nos
factos e fundamentos seguintes:
Na fundamentação do referido acórdão, o tribunal a quo considerou a
posição do ora apelante em termos do objecto da demanda (DUAT)
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como sendo idêntica à da Transcom e ao consequente Projecto
Transcom, o que não constitui verdade, pois, a Fernave é uma
Sociedade Comercial autónoma de direito português, que detém uma
participação na Transcom, uma empresa do direito moçambicano.
Com efeito, o litígio emergente do Direito de Uso e Aproveitamento da
Terra entre o Município de Maputo e a ora apelada, foi de todo
estranho ao ora apelante, que só veio a conhecê-lo a partir dos
presentes autos.
Desconhecendo, em absoluto, de qualquer litígio, o ora apelante
decidiu comprar a título oneroso e de boa-fé, a uma empresa de direito
moçambicano – CESI, mediante escritura pública outorgada a 21 de
Maio de 1998, o Talhão em causa, incluindo as respectivas benfeitorias,
compostas por um grupo gerador e um edifício de portaria, descritos
na Certidão n.º 1615/2008, emitida pela Autoridade Tributária de
Moçambique.
No entanto, o tribunal a quo desconsiderou a referida escritura
pública, e concluiu que a ora apelante e, consequentemente, a
Transcom, nunca adquiriu algum direito sobre o referido Talhão, em
virtude da nulidade do negócio, celebrado por escritura pública, de
compra e venda, pois nela (escritura pública), não vem mencionadas as
benfeitorias descritas na Certidão n.º 1615/2008, emitida pela
Autoridade Tributária, em particular, um grupo gerador e um edifício
de portaria, daí que não se pode considerar as duas sociedades como
terceiros de boa-fé, porque sabiam que não podem celebrar um
negócio jurídico de compra e venda de terra.
Desde logo, é de discordar com esta fundamentação do tribunal a quo,
pois, tanto nos preliminares como a posterior, a Transcom não
interveio directa nem indirectamente no negócio de compra e venda
havido entre a ora apelada e a CESI, nem de forma alguma teve
conhecimento, daí que não pode proceder.
Na verdade, a ora apelante adquiriu as benfeitorias e o Talhão do
Aterro de Maxaquene segundo as regras legalmente definidas,
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sobretudo as registrais, exigidas para a celebração do negócio; ou seja,
não se tratou de um negócio de DUAT, mas, sim, de um direito sobre
um bem imóvel já registado possuidor de formalismos legais quais
sejam as registrais e fiscais.
Segundo veio apurar da CESI, só se pode registar o talhão após a
obtenção de todos os documentos necessários para o respectivo
registo, de entre os quais o Título definitivo de propriedade n.º 12.505 e
o Alvará.
Para o efeito, e segundo a Lei de Terras, as Entidades Legais
permitiram porque consideraram preenchidos todos os requisitos
necessários à passagem do título definitivo, tendo em conta as
benfeitorias já devidamente registadas.
Neste contexto, além de pagar o preço relativo às benfeitorias e ao
talhão, o ora apelante efectuou o pagamento dos impostos relativos ao
mesmo, pelo que não se lhe pode imputar qualquer culpa pela
deficiente ou má redacção da escritura pública de compra e venda e
consequente registo.
Ainda, e considerando que se trata de um negócio sobre um bem
imóvel sujeito a registo, outro comportamento não se podia exigir à
ora apelante que não fosse o que por ela foi assumido, em
cumprimento da lei.
Até porque, desde o ano de 1998, data da escritura e registo, nunca
existiu qualquer acção de terceiros em oposição ao negócio da ora
apelante, nos termos do artigo 291.º do Código Civil.
Outrossim, e como já foi esclarecido, não comprou a Parcela n.º 262,
no âmbito do DUAT, nem sequer a questão em litígio se colocava na
altura (2006), tendo adquirido a título oneroso e de boa-fé, o talhão e
as benfeitorias nele implantadas, mediante escritura pública e registo,
mantendo de forma ininterrupta a posse sobre o mesmo até à presente
data, não existindo na respectiva certidão de registo predial qualquer
ónus impeditivo de compra por estrangeiros.
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Independentemente das relações entre o Município e a ora apelada, no
que se refere ao DUAT e ao projecto Transcom, há a referir que na
qualidade de participada da Transcom, considerou à data o seu
interesse no projecto Transcom e esta, sendo uma sociedade de direito
moçambicano, tinha toda a legitimidade para requerer a concessão de
um DUAT para o seu investimento.
Assim sendo, não se oferecem dúvidas sobre a legalidade do negócio,
no que concerne à sua natureza (bem imóvel), a título oneroso, bem
assim quanto à legitimidade da compradora, a ora apelante.
A ter havido qualquer vício no momento da aquisição, o que por mera
cautela se admite, só pode ter sido em face do já anteriormente
alegado, de todo o desconhecido pela ora apelante, o que prova a sua
boa-fé.
É do conhecimento da ora apelante e de modo oficioso, que estão a
decorrer negociações entre os litigantes com vista à reparação e à justa
compensação de alegados erros, incompreensões ou situações
semelhantes a este assunto, por isso, a ora apelante não pode ficar
prejudicada nos seus direitos em consequência de litígios judiciais, de
natureza administrativa ou outra, de que não é parte.
A ora apelante é proprietária do Talhão e das benfeitorias nele
implantadas, exercendo a posse de forma ininterrupta, pacífica e
pública e nunca teve oposição de terceiros.
O tribunal a quo, ao não reconhecer o direito de propriedade e a posse
da ora apelante sobre o talhão e as benfeitorias nele implantado e nos
documentos de suporte, viola a lei.
Outrossim, o tribunal a quo, não tem competência para se pronunciar
sobre a nulidade da posse e do direito de propriedade da ora apelante
sobre o Talhão e as benfeitorias nele implantadas, dada a natureza
privada das partes (Fernave - CESI) negociais e ao objecto da lide, em
clara violação da lei, em especial, o disposto nos artigos 62.º, 66.º, 67.º,
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e 68.º todos do Código Civil, 5, alíneas e) e f), e 6, ambos da Lei n.º
25/2009, de 28 de Setembro e 4 e seguintes do Código de Registo
Predial, o que o torna o acórdão recorrido nulo, nos termos do
disposto no artigo 668.º, alínea d), do Código de Processo Civil.
Termina, requerendo a procedência do presente recurso,
reconhecendo-se o direito de propriedade e posse da ora apelante
sobre o Talhão em causa e as respectivas benfeitorias e
consequentemente, declarar nulo o acórdão recorrido por violação da
lei, em particular do disposto no artigo 668.º, alínea c) do Código de
Processo Civil.
No mais, dá-se, aqui, por integralmente reproduzido para todos os
efeitos legais o conteúdo da petição de folhas 231 a 240 dos autos.
Juntou o documento de folhas 248 a 261 dos autos.
Notificada, a apelada, Marta Maria V. Barroti, respondeu pela forma
constante de folhas 262 a 281 dos autos referindo, com interesse para a
causa, o seguinte:
1. Questão prévia - Da Deserção do Recurso.
O requerimento para a interposição do presente recurso de
apelação do Acórdão n.º 233/2014, de 2 de Setembro, da 1.ª Secção
do Tribunal Administrativo, foi formulado pela TRANSCOM, uma
empresa de direito moçambicano, com personalidade e capacidade
jurídica próprias que, à notificação do despacho da sua admissão,
não apresentou alegações, tendo, as mesmas, sido apresentadas pela
FERNAVE, SA., uma empresa do direito português, com
personalidade e capacidade jurídica diferente da TRANSCOM.
Deste modo, questiona-se a legitimidade com que a FERNAVE, SA.,
apresenta alegações de um recurso interposto pela TRANSCOM.
Ora, sendo a FERNAVE, SA., parte ilegítima para apresentar
alegações de um recurso interposto pela Transcom, o recurso ficou
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deserto por falta de alegações, nos termos do disposto no artigo
690.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por força do
disposto no artigo 2 da Lei n.º 7/2014, de 28 de Fevereiro, o que
desde já se requer.
2. À Cautela, por impugnação.
Concorda com os termos e fundamentos do acórdão recorrido, por
preencher todos os requisitos contidos no artigo 89 da Lei n.º
7/2014, de 28 de Fevereiro e não enferma de qualquer vício, nem de
nulidades constantes do artigo 668.º do CPC.
Com efeito, é ambíguo e de difícil compreensão o vertido nos
articulados 2 e 4 das alegações da apelante, pois, o acórdão é claro
ao julgar improcedente a excepção de ilegitimidade, suscitada pela
Transcon, por constar nos autos, evidências (Termo de autorização
do projecto Transcon) de que o Talhão objecto da presente lide,
fora indicado como sendo a sede do referido projecto e pelo facto de
o mesmo ter sido subscrito por várias entidades, não havendo assim
necessidade de citar cada uma delas, bem como pelo facto de
através da TRANSCOM, a FERNAVE, SA., ter intervindo nos autos.
Para corroborar com o acórdão recorrido, há a referir que em sede
de contestação, não obstante ter-se julgado parte ilegítima, a
TRANSCOM referiu ter tomado conhecimento que a FERNAVE,
SA., adquiriu a título oneroso o Talhão n.º 262, do Aterro de
Maxaquene e, daí em diante passou a defender os interesses da
FERNAVE., SA, falando como se da mesma se tratasse. Portanto,
quem contextualiza a posição da FERNAVE, SA., e da TRANSCOM
de forma idêntica são as mesmas e não o Tribunal.
Outrossim, as alegações de recurso apresentadas pela FERNAVE,
SA., e não pela TRANSCOM, são evidências dessa contextualização.
O acórdão recorrido, em face da prova produzida e de forma
fundamentada, declarou nulo e de nenhum efeito o acto de
revogação do DUAT, facto que não é impugnado tanto pelo
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Conselho Municipal da Cidade de Maputo, como pela FERNAVE,
SA.
Ademais, admitindo que as alegações de recurso apresentadas pela
FERNAVE, SA., são comunicadas à contra interessada, TRANSCOM,
pode se concluir que a mesma, em momento algum contesta o
mérito da declaração de nulidade do acto de revogação, constante
no acórdão recorrido, nem apresenta fundamentos de facto e de
direito que demonstrem que a decisão (de declaração de nulidade
do acto) do tribunal, foi tomada de forma errada.
Com efeito, as alegações de recurso apresentadas pela ora apelante
discutem, em toda a sua extensão, a aquisição do talhão, por
escritura pública, pela FERNAVE, SA., e a aquisição do DUAT do
referido Talhão pela Transcom.
Para a fundamentação da sua decisão, o tribunal a quo, analisou e
rebateu as provas apresentadas tanto pela TRANSCOM, como pela
FERNAVE, SA., sobre a concessão do referido DUAT à TRANSCOM
e a consequente aquisição do talhão e respectivas benfeitorias pela
FERNAVE, SA., tendo concluído que o Termo de Autorização do
Projecto TRANSCOM, que serviu como prova para a concessão do
DUAT à mesma empresa, não tem efeito constitutivo de DUAT a
favor do referido Projecto.
Na verdade, esta posição do tribunal a quo é incensurável, uma vez
que a Lei n.º 19/97, de 23 de Outubro, Lei de Terras, atribui
competência aos Conselhos Municipais para a concessão de
DUAT’s, facto que justifica a incompetência do Vice-Ministro das
Finanças (entidade que autorizou o Projecto de Investimento
TRANSCOM), para atribuir DUAT sobre o Talhão n.º 262.
Acresce-se que não só o Vice-Ministro das Finanças é incompetente
para atribuir o Direito de Uso e Aproveitamento de Terra Sobre a
Parcela n.º 262, como, também, o Termo de Autorização do Projecto
TRANSCOM ou despacho que aprova o Projecto Transcom não
obedeceu o formalismo previsto na legislação em vigor sobre a
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matéria, designadamente, a Lei n.º 19/97, de 23 de Outubro, Lei de
Terras, no Regulamento do Solo Urbano, aprovado pelo Decreto n.º
60/2006, de 26 de Dezembro e nas Normas de Funcionamento dos
Serviços da Administração Pública, aprovadas pelo Decreto n.º 30
/2001, de 15 de Outubro. Ou seja, o referido acto, não só enferma de
vício de incompetência, como também padece de violação de lei.
Não obstante a ora apelante defender, em sede das suas alegações,
que a TRANSCOM é concessionária do DUAT sobre a Parcela n.º
262 do Aterro de Maxaquene, não apresenta provas que sustentam o
afirmado nem provas que abalam a decisão contida no Acórdão n.º
233/2014, de 2 de Setembro.
Refira-se que o ónus de prova impende sobre quem invoca a
titularidade desse mesmo direito, conforme dispõe o artigo 342.º do
Código Civil, o que não aconteceu com a empresa FERNAVE, SA.
Por outro lado, o tribunal concluiu que o negócio de compra e
venda do Talhão n.º 262 do Aterro de Maxaquene é nulo, nos
termos do disposto no artigo 280.º do Código Civil, por violação do
consagrado no artigo 109 da Constituição da República de
Moçambique, o qual prevê que a terra é propriedade do Estado e
como tal não pode ser vendida nem de qualquer forma alienada.
As provas (título translativo de propriedade sobre o imóvel)
apresentadas pela Contra-interessada, revelam que o objecto da
escritura de compra e venda do imóvel, foi apenas o Talhão n.º 262,
sem incluir as benfeitorias nele existentes designadamente, o grupo
gerador e o edifício de portaria, conforme a apelante pretende fazer
entender; ou seja, o alegado documento que comprovaria a
titularidade do direito da FERNAVE, SA., sobre o talhão em causa,
revela que celebrou um contrato de compra e venda de terra, pois se
assim não fosse, as benfeitorias que alega ter comprado
conjuntamente com o talhão, estariam descritas detalhadamente na
referida escritura, por forma a individualizá-lo, o que não
aconteceu, visto que o que se encontra descrito é apenas o talhão.
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Outrossim, a certidão do registo predial do Talhão n.º 262, faz prova
plena de que o prédio objecto de descrição e inscrição a favor da
FERNAVE, SA., não passa de uma parcela de terra, por ter apenas a
descrição das confrontações do prédio sem menção das alegadas
benfeitorias (grupo gerador e um edifício de portaria).
Importa referir que os registos compõem-se da descrição do prédio
a que respeitam e da inscrição de direitos e encargos que sobre os
prédios recaem, conforme o disposto no artigo 73.º do Código do
Registo Predial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 42.565, de 8 de
Outubro de 1959.
E, as descrições têm exclusivamente por fim a identificação física,
económica e fiscal do prédio, conforme prescreve o artigo 143.º do
mesmo diploma legal.
Logo, se no Talhão n.º 262 encontrava-se, à data da escritura de
compra e venda do imóvel, implantada qualquer benfeitoria, tal
teria sido objecto de descrição e constaria da respectiva Certidão do
Registo Predial que se juntou nos presentes autos.
Outrossim, além de entrar em contradição com a escritura de
compra e venda e com a certidão de registo predial, tal certidão
matricial é datada de 2008, ou seja, dez anos após a alegada
aquisição do imóvel por parte da FERNAVE, SA.
Do exposto, conclui-se que por escritura pública de compra e venda
de imóvel, a FERNAVE, SA., celebrou um negócio jurídico nulo, por
ser contrário á lei, sendo que tal nulidade não poderia deixar de ser
declarada pelo tribunal a quo por lhe competir decidir sobre todas
as questões suscitadas pelas partes, não procedendo deste modo, a
alegada incompetência do Tribunal Administrativo para se
pronunciar sobre a nulidade do direito de propriedade da
FERNAVE, SA., sobre o Talhão n.º 262, por tal direito resultar de um
negócio celebrado entre duas entidades privadas.
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Com efeito, esclarece-se, ainda, que o objecto do acórdão recorrido
é a revogação do DUAT da ora apelada, pelo Conselho Municipal da
Cidade de Maputo e, para o tribunal decidir validamente sobre o
objecto do recurso contencioso, era necessário analisar os
argumentos e as provas apresentadas pelas partes, sendo que a
questão do direito de propriedade da FERNAVE, SA., sobre o Talhão
n.º 262, foi suscitada nos presentes autos, pela contra-interessada e
competia ao tribunal analisá-la, sob pena de nulidade da sua
decisão, nos termos do disposto no artigo 668.º, alínea d) do Código
de Processo Civil, em atenção ao disposto no n.º 1 do artigo 96.º do
mesmo código.
De igual modo, não procede a alegada nulidade do acórdão
recorrido, porquanto não se verifica qualquer oposição entre os seus
fundamentos e a decisão tomada, tanto é que a FERNAVE, SA., não
cuidou de demonstrar em que é que a decisão tomada se contradiz
com os seus fundamentos, ou em que é que o tribunal apreciou
e/ou deixou de apreciar questões que devia ter conhecido.
No ordenamento jurídico moçambicano, não está prevista ou seja,
não existe a figura de título de propriedade de terra, por esta
pertencer ao Estado, sendo que o pagamento contínuo de impostos
que incidem sobre o Talhão n.º 262 e a alegada posse pública sem
qualquer oposição, não confere qualquer validade jurídica ao
negócio de compra e venda da terra, visto que o negócio nulo não
produz quaisquer efeitos.
Pelas razões acima expostas, não se pode, de forma alguma,
considerar a FERNAVE, SA., como sendo terceiro de boa-fé, na
medida em tinha a consciência da ilicitude do objecto do negócio
celebrado. Aliás, dispõe o n.º 3 do artigo 291.º do Código Civil que é
considerado de boa-fé o terceiro adquirente que no momento da
aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou
anulável.
Por outro lado, não procede a alegação segundo a qual à FERNAVE,
SA., não pode ser imputada a culpa pela deficiente ou má redacção
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da escritura pública de compra e venda e do consequente registo
visto que lhe cabia o dever de antes da celebração da referida
escritura, efectuar uma visita ao local para certificar a existência das
benfeitorias que estava em vias de adquirir e conferir se estavam
inscritas a favor do vendedor, do mesmo modo que lhe incumbia o
dever de verificar se tal escritura pública descrevia, com exactidão,
os bens que estava a adquirir.
Com efeito, ainda que tenha sido um comprador desleixado,
aquando do registo da aquisição dos bens, teve a oportunidade de
constatar a alegada má ou deficiente redacção da escritura pública e
iniciar o processo de correcção, o que não aconteceu, pelo que não
procede a sua inocência, volvidos cerca de 17 anos.
A ora apelante contradiz-se nas suas alegações, ao afirmar, por um
lado, que adquiriu as benfeitorias implantadas no Talhão n.º 262 e,
por outro, afirmar que a TRANSCOM tinha legitimidade de adquirir
o DUAT sobre o talhão em causa, tomando em consideração que as
duas empresas são associadas não podiam concorrer para o mesmo
objecto em simultâneo.
Ademais, não obstante a FERNAVE SA., suscitar a incompetência do
Tribunal Administrativo para apreciar a legalidade do contrato de
compra e venda do imóvel em causa, vem em sede das conclusões
requerer que o mesmo lhe reconheça o direito de propriedade sobre
o tal imóvel, ou seja, para a ora apelante, o Tribunal Administrativo
é incompetente para apreciar a legalidade do negócio de compra e
venda do imóvel por um lado e, por outro, é competente para
reconhecer o seu direito de propriedade sobre tal imóvel, o que se
mostra contraditório.
Conclui referindo que no acórdão recorrido, o tribunal a quo
decidiu de forma irrepreensível, aplicando correctamente a lei à
questão controvertida, não havendo qualquer fundamento para o
recurso jurisdicional.
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Termina, requerendo que o tribunal julgue deserto o recurso
interposto pela TRANSCOM, por falta de alegação e caso assim não
se entenda, seja julgado improcedente o recurso interposto, por
falta de provas e fundamentos legais.
No mais, dá-se, aqui, por integralmente reproduzido para todos os
efeitos legais, o conteúdo da contestação de folhas 262 a 281 dos
autos.
Quanto ao Presidente do Conselho Municipal da Cidade de Maputo,
veio pela forma constante de folhas 288 dos autos referir que não é
parte legítima desta lide, até porque a aquisição do espaço em causa
resultou de um negócio jurídico de compra e venda, daí que não
tem interesse em se opor ao acórdão recorrido.
Termina, requerendo a procedência das presentes alegações e
consequentemente, a manutenção do acórdão recorrido.
No visto, o Digníssimo Magistrado do Ministério Público
pronunciou-se nos seguintes termos: “Tudo visto
Não se mostram nulidades ou quaisquer questões prejudiciais ou
prévias que obstam a apreciação do mérito da causa”.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.
1. Questões prévias
1.1.
Da incompetência do Tribunal Administrativo.
A competência do Tribunal Administrativo é de ordem pública e o
seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria, conforme
resulta das disposições conjugadas dos artigos 4 e 79, n.º 1, ambos
da Lei n.º 9/2001, de 7 de Julho, Lei do Processo Administrativo
Contencioso, em vigor na altura dos factos, aplicável por força do
disposto no artigo 228 da Lei n.º 7/2014, de 28 de Fevereiro.
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A ora apelante suscitou a incompetência do Tribunal
Administrativo, nos termos do disposto nas alíneas e) e f), do n.º 1
do artigo 5 da Lei n.º 25/2009, de 28 de Setembro, Lei Orgânica da
Jurisdição Administrativa, para apreciar e decidir sobre a matéria
dos presentes autos por, alegadamente, a questão controvertida
referir-se à posse e ao direito de propriedade do Talhão n.º 262 do
Aterro de Maxaquene, uma matéria do direito privado, cuja
competência está por lei reservada a outros tribunais, aliado ao
facto de as partes envolvidas no conflito serem entes de direito
privado.
No entanto, a questão controvertida que deu início ao litígio
decorre do acto administrativo de revogação do Direito de Uso e
Aproveitamento do Talhão n.º 262, do Aterro de Maxaquene,
pertencente a Marta Maria V. Barrotti, praticado pelo Conselho
Municipal da Cidade de Maputo, por alegado motivo de interesse
público, o qual foi declarado nulo e de nenhum efeito, através do
Acórdão n.º 233/2014, de 2 de Setembro, da Secção do Contencioso
Administrativo, por estar inquinado dos vícios de forma que
consistiu na falta de fundamentação e de violação da lei (vide
folhas 2 a 11, 69, 206 a 219 dos autos).
Por outro lado, constata-se que no acórdão recorrido, o tribunal a
quo analisou os elementos de prova da aquisição da titularidade do
direito de uso e aproveitamento do talhão em causa,
designadamente a escritura de compra e venda, a certidão do
registo predial bem como o despacho do Vice-Ministro das
Finanças que autoriza o projecto TRANSCOM e o respectivo Termo
de Autorização daquele Projecto, fornecidos pelas partes, e
concluiu que tais documentos não são prova da aquisição da
Titularidade de Direito de Uso e Aproveitamento daquele talhão,
dado que tal aquisição, resultou de um negócio jurídico ilegal –
compra e venda de terra -, portanto, nulo, pelo facto de a terra
pertencer ao Estado e estar proibida a sua venda, alienação,
hipoteca ou penhora, nos termos do disposto no artigo 109 da
Constituição da República.
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Outrossim, pronunciou-se sobre a fundamentação do acto
recorrido (despacho de revogação do DUAT a favor da então
recorrente), onde concluiu que o mesmo encontra-se ferido de
vício de forma, por falta de fundamentação, por não ter sido
descortinado o referido “motivo de interesse público”, expresso de
forma vaga (vide o acórdão recorrido de folhas 206 a 208 dos
autos).
Ainda, sobre o acto recorrido, referiu que o mesmo enferma de
vício de violação de lei, por não terem sido seguidas as
formalidades legais inerentes à expropriação por motivo de
interesse público, ou seja, não foi precedida de pagamento de uma
justa indemnização e/ou compensação, conforme estabelece o
artigo 18, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 19/97, de 1 de Outubro.
Do exposto resulta que, na verdade, a questão controvertida
prende-se com o acto de revogação do DUAT a favor da ora
apelada, praticado pelo Presidente do Conselho Municipal da
Cidade de Maputo, o qual foi declarado nulo e de nenhum efeito
pelo Acórdão n.º 233/2014, de 2 de Setembro, da Primeira Secção do
Tribunal Administrativo, uma matéria cuja competência para a sua
apreciação e decisão, está reservada, por lei, ao Tribunal
Administrativo, por se tratar de um litígio emergente das relações
jurídicas administrativas, nos termos do disposto no artigo 4 da Lei
n.º 5/92, de 6 de Maio, em vigor à data dos factos e da interposição
do recurso, pelo que não procede a alegada incompetência.
1.2.
Ilegitimidade do Conselho Municipal da Cidade de
Maputo.
O Conselho Municipal da Cidade de Maputo julgou-se parte
ilegítima nesta lide, por considerar que a aquisição do Talhão em
causa, resultou de um negócio jurídico de compra e venda e, nesse
sentido, não tem interesse em se opor ao acórdão em crise.
Nos termos do disposto no artigo 138, n.º 1 da Lei n.º 9/2001, de 7 de
Julho, podem recorrer a parte ou interveniente no processo que
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fique vencido, a pessoa directa e efectivamente prejudicada pela
decisão.
Por seu turno Tomás Timbana, Lições de Processo Civil I, páginas
211, Escolar Editora, citando Paula Costa e Silva, refere que a parte
para ser legítima, deverá ter um interesse directo em demandar ou
contradizer, que não é o caso.
Pelo contrário, apesar de o acórdão recorrido ter declarado nulo e
de nenhum efeito o acto de revogação do DUAT da ora apelada,
praticado pelo Presidente do Conselho Municipal da Cidade de
Maputo este conformou-se com a decisão, referindo que não tem
interesse em contradizer o acórdão em crise, mas, sim, requer a sua
manutenção, pelo que improcede a excepção de ilegitimidade.
1.3.
Deserção do Recurso Interposto pela TRANSCOM.
Em sede da sua contestação, a apelada requer que o presente
recurso seja declarado deserto por falta de alegação, porque, no seu
entender, o pedido da interposição do presente recurso de apelação
foi submetido pela TRANSCOM, e as alegações do mesmo foram
apresentadas pela FERNAVE SA., uma empresa com capacidade e
personalidade jurídica distinta da TRANSCOM.
Porém, da leitura tanto dos autos, como do acórdão recorrido,
percebe-se que uma empresa é participada da outra e, mesmo em
juízo, sempre intervieram como se de uma mesma empresa se
tratasse. Aliás esta questão foi profundamente analisada em sede
do recurso contencioso na primeira instância, onde se concluiu que
não procede a ilegitimidade que havia sido suscitada pela
TRANSCOM, pelas razões ali expostas, que aqui se dão por
integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais, do mesmo
modo que não procede a alegada deserção.
2. Apreciando
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Dos autos constata-se que através do Acórdão n.º233/2014, de 2 de
Setembro, foi julgado procedente o recurso contencioso interposto
pela ora apelada, contra o despacho exarado pelo Presidente do
Conselho Municipal da Cidade de Maputo, que revogou o Direito de
Uso e Aproveitamento da Terra que havia sido emitido a seu favor.
Para o efeito, o tribunal a quo concluiu que o acto recorrido
enferma de vício de violação de lei, por não terem sido cumpridas as
formalidades legalmente prescritas, relativas à expropriação por
razões de interesse público, nomeadamente, a justa compensação
ou justa indemnização, nos termos do artigo 18, alínea b) da Lei n.º
18/97, de 1 de Outubro; e do vício de forma, por falta de
fundamentação, por não ter descortinado o sentido do declarado
interesse público, visto tratar-se de um conceito vago, tendo, assim,
declarado nulo e de nenhum efeito jurídico o referido acto
administrativo.
Nas suas alegações, a ora apelante não apresentou fundamentos ou
factos novos que possam abalar a decisão tomada em primeira
instância.
Insiste nos mesmos fundamentos que apresentou em sede do
recurso contencioso, os quais todos foram escalpelizados no
acórdão recorrido, designadamente:
i.
no negócio jurídico de compra e venda, celebrado por
escritura pública outorgada a 21 de Maio de 1998, não só
comprou o Talhão n.º 262 do Aterro de Maxaquene, como,
também, adquiriu as benfeitorias nele implantadas compostas
por um edifício de portaria e um grupo gerador.
No entanto, dos autos constata-se que tanto a escritura
pública de compra e venda, como a Certidão de Registo
Predial do Talhão n.º 262, do Aterro do Maxaquene, ambos
passados em 1998, limitam–se a fazer a descrição do referido
talhão sem mencionar qualquer benfeitoria, designadamente,
o referido grupo gerador e o edifício de portaria, constantes
16
da Certidão n.º 1615/2008, de 9 de Julho, passada pela
Autoridade Tributária de Moçambique (vide folhas 113 a 115
versos e 117 dos autos).
Outrossim, que a referida Certidão n.º 1615/2008, de 9 de
Julho, é posterior à data da aquisição do talhão (1998), visto
ter sido emitida 10 anos após a celebração da escritura pública
(vide folhas 168 dos autos).
Dispõe o artigo 72.º do Código de Registo Predial, aprovado
pelo Decreto-Lei n.º 47611, de 28 de Março de 1967 que o
registo compõe-se da descrição do prédio a que respeita, da
inscrição dos direitos ou encargos que recaem sobre esse
mesmo prédio e dos respectivos averbamentos.
Outrossim, as descrições têm exclusivamente por fim a
identificação física, económica e fiscal do prédio a que
respeitam os factos inscritos, conforme estabelece o artigo
147.º do mesmo código.
Na verdade, se tanto na escritura pública, como no registo
predial, não vem descrita nenhuma benfeitoria, significa que à
data da conclusão do negócio, não estava implantada
qualquer benfeitoria naquele talhão, o que leva a concluir que
se tratou de um negócio de compra e venda de terra.
Ora, na ordem jurídica moçambicana o negócio jurídico de
compra e venda da terra é contrário à Constituição da
República que, no seu artigo 109, n.ºs 1 e 2, dispõe que a terra é
propriedade do Estado e, não pode ser vendida ou por
qualquer forma alienada, nem hipotecada ou penhorada.
Nos termos do disposto no artigo 280.º, n.º 1 do Código Civil,
aplicável por força do disposto no artigo 1 da Lei n.º 9/2001, de
7 de Julho, é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja
contrário à lei.
17
Há a referir que no acórdão recorrido, o tribunal a quo, ao
declarar a nulidade do negócio jurídico de compra e venda do
Talhão n.º 262 do Aterro de Maxaquene, fê-lo, dentro das suas
competências, visto que a nulidade pode ser declarada
oficiosamente pelo tribunal, conforme estabelece a última
parte do artigo 286.º do Código Civil (CC).
ii.
à data da celebração do referido negócio de compra e venda
por escritura pública, desconhecia o conflito existente entre o
Conselho Municipal e a ora apelada, daí que deve ser
reconhecido como terceiro de boa-fé.
Na verdade, diz-se de boa-fé, o terceiro adquirente que no
momento da aquisição, desconhecia, sem culpa, o vício do
negócio nulo ou anulável, conforme dispõe o artigo 291.º, n.º 3
do CC, o que não é o caso.
No caso vertente, ainda que o ora apelante desconhecesse o
conflito existente entre a ora apelada e o Município de
Maputo, tal não significa, de forma alguma, o
desconhecimento da ilegalidade do negócio jurídico de
compra e venda de terra, nos termos da Constituição da
República e na demais legislação em vigor sobre a matéria,
pelo que não procede o alegado desconhecimento, tanto da lei
como do conflito para ser declarado terceiro de boa-fé.
iii.
ter havido deficiente ou má redacção da escritura pública de
compra e venda e consequente registo, não se pode imputar a
correspondente culpa à ora apelante, pois, além de pagar o
preço relativo ao talhão e as respectivas benfeitorias, efectuou
o pagamento dos impostos relativos ao mesmo.
Ainda que tenha efectuado o pagamento dos valores e dos
impostos relativos ao talhão, tal não confere a legalidade do
negócio, permanecendo nulo e de nenhum efeito jurídico,
razão pela qual a ora apelante não adquiriu a titularidade do
Direito de Uso e Aproveitamento do mesmo.
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Sublinha-se que a titularidade de Direito de Uso e
Aproveitamento de Terra adquire-se nos termos previstos nos
artigos 12 e seguintes da Lei de Terras e em outra legislação
em vigor sobre a matéria.
Concluindo: o objecto dos presentes autos é o acto administrativo
praticado pelo Presidente do Conselho Municipal da Cidade de
Maputo, de revogação do DUAT da ora apelada. O tribunal a quo,
declarou nulo e de nenhum efeito o referido acto, após uma análise e
apreciação das provas apresentadas pelas partes, significando, deste
modo, que pronunciou-se sobre a matéria cuja competência é a si
reservada por lei.
Assim sendo, não se vislumbra, nos autos, quaisquer indícios de
ilegalidade que possam inquinar o acórdão recorrido, nos vícios
previstos no artigo 668.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil,
que justifiquem a sua nulidade.
Por todo o exposto, acordam os Juízes Conselheiros deste Tribunal,
reunidos em Plenário, em negar provimento ao recurso interposto pela
FERNAVE SA., por falta de fundamento legal e, consequentemente
mantêm o Acórdão n.º 233/2014, de 2 de Setembro.
Quanto ao pedido de reconhecimento da posse e do direito de
propriedade da ora apelante sobre o Talhão n.º 262 do Aterro de
Maxaquene, o Tribunal considera-se incompetente para conhecer o
mérito desta questão, em virtude de ser uma matéria de direito
privado, cuja competência está reservada a outros tribunais, conforme
estabelece o artigo 5, n.º 1, alíneas e) e f) da Lei n.º 25/2009, de 28 de
Setembro, conjugado com o disposto nos artigos 66.º, 68.º, n.º 1 e 1033.º
e seguintes, todos do CPC, aplicável por força do disposto no artigo 1
da Lei n.º 9/2001, de 7 de Julho, ex vi do artigo 228 da Lei n.º 7/2014, de
28 de Fevereiro.
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Custas a pagar pela apelante e que se fixam em 20.000,00MT (vinte mil
meticais).
Registe-se e notifique-se.
Maputo, 14 de Março de 2016.
Machatine Paulo Marrengane Munguambe
José Luís Maria Pereira Cardoso – Relator
Januário Fernando Guibunda
Amílcar Mujovo Ubisse
Filomena Cacilda Maximiano Chitsonzo
David Zefanias Sibambo
Aboobacar Zainadine Dauto Changa
João Varimelo
Paulo Daniel Comoane
José Maurício Manteiga
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Isabel Cristina Pedro Filipe
Pelo Ministério Público
Fui Presente,
Edmundo Carlos Alberto,
Vice-Procurador-Geral da República
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