acórdão n.º 4/2016 - Tribunal Administrativo
Transcrição
acórdão n.º 4/2016 - Tribunal Administrativo
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE _______________ TRIBUNAL ADMINISTRATIVO PLENÁRIO Processo n.º 11/2015-P ACÓRDÃO N.º 4/2016 Acordam, em conferência, no Plenário do Tribunal Administrativo: FERNAVE SA., Sociedade Anónima de Direito Português, com os demais elementos de identificação constantes dos autos do processo à margem indicado, inconformada com a decisão proferida nos autos do Processo n.º 168/2006-1.ª, através do Acórdão n.º 233/2014, de 2 de Setembro, que julgou procedente o recurso interposto por Marta Maria V. Barrotti, declarando nulo e de nenhum efeito o despacho de revogação do DUAT sobre a Parcela n.º 262, do Aterro de Maxaquene, contido na Nota n.º 945/DMCU/2006, de 20 de Abril, do Presidente do Conselho Municipal da Cidade de Maputo, veio perante esta instância jurisdicional, nos termos do disposto nos artigos 139 e 140, ambos da Lei n.º 9/2001, de 7 de Julho, Lei do Processo Administrativo Contencioso (LPAC), interpor recurso de apelação, louvando-se nos factos e fundamentos seguintes: Na fundamentação do referido acórdão, o tribunal a quo considerou a posição do ora apelante em termos do objecto da demanda (DUAT) 1 como sendo idêntica à da Transcom e ao consequente Projecto Transcom, o que não constitui verdade, pois, a Fernave é uma Sociedade Comercial autónoma de direito português, que detém uma participação na Transcom, uma empresa do direito moçambicano. Com efeito, o litígio emergente do Direito de Uso e Aproveitamento da Terra entre o Município de Maputo e a ora apelada, foi de todo estranho ao ora apelante, que só veio a conhecê-lo a partir dos presentes autos. Desconhecendo, em absoluto, de qualquer litígio, o ora apelante decidiu comprar a título oneroso e de boa-fé, a uma empresa de direito moçambicano – CESI, mediante escritura pública outorgada a 21 de Maio de 1998, o Talhão em causa, incluindo as respectivas benfeitorias, compostas por um grupo gerador e um edifício de portaria, descritos na Certidão n.º 1615/2008, emitida pela Autoridade Tributária de Moçambique. No entanto, o tribunal a quo desconsiderou a referida escritura pública, e concluiu que a ora apelante e, consequentemente, a Transcom, nunca adquiriu algum direito sobre o referido Talhão, em virtude da nulidade do negócio, celebrado por escritura pública, de compra e venda, pois nela (escritura pública), não vem mencionadas as benfeitorias descritas na Certidão n.º 1615/2008, emitida pela Autoridade Tributária, em particular, um grupo gerador e um edifício de portaria, daí que não se pode considerar as duas sociedades como terceiros de boa-fé, porque sabiam que não podem celebrar um negócio jurídico de compra e venda de terra. Desde logo, é de discordar com esta fundamentação do tribunal a quo, pois, tanto nos preliminares como a posterior, a Transcom não interveio directa nem indirectamente no negócio de compra e venda havido entre a ora apelada e a CESI, nem de forma alguma teve conhecimento, daí que não pode proceder. Na verdade, a ora apelante adquiriu as benfeitorias e o Talhão do Aterro de Maxaquene segundo as regras legalmente definidas, 2 sobretudo as registrais, exigidas para a celebração do negócio; ou seja, não se tratou de um negócio de DUAT, mas, sim, de um direito sobre um bem imóvel já registado possuidor de formalismos legais quais sejam as registrais e fiscais. Segundo veio apurar da CESI, só se pode registar o talhão após a obtenção de todos os documentos necessários para o respectivo registo, de entre os quais o Título definitivo de propriedade n.º 12.505 e o Alvará. Para o efeito, e segundo a Lei de Terras, as Entidades Legais permitiram porque consideraram preenchidos todos os requisitos necessários à passagem do título definitivo, tendo em conta as benfeitorias já devidamente registadas. Neste contexto, além de pagar o preço relativo às benfeitorias e ao talhão, o ora apelante efectuou o pagamento dos impostos relativos ao mesmo, pelo que não se lhe pode imputar qualquer culpa pela deficiente ou má redacção da escritura pública de compra e venda e consequente registo. Ainda, e considerando que se trata de um negócio sobre um bem imóvel sujeito a registo, outro comportamento não se podia exigir à ora apelante que não fosse o que por ela foi assumido, em cumprimento da lei. Até porque, desde o ano de 1998, data da escritura e registo, nunca existiu qualquer acção de terceiros em oposição ao negócio da ora apelante, nos termos do artigo 291.º do Código Civil. Outrossim, e como já foi esclarecido, não comprou a Parcela n.º 262, no âmbito do DUAT, nem sequer a questão em litígio se colocava na altura (2006), tendo adquirido a título oneroso e de boa-fé, o talhão e as benfeitorias nele implantadas, mediante escritura pública e registo, mantendo de forma ininterrupta a posse sobre o mesmo até à presente data, não existindo na respectiva certidão de registo predial qualquer ónus impeditivo de compra por estrangeiros. 3 Independentemente das relações entre o Município e a ora apelada, no que se refere ao DUAT e ao projecto Transcom, há a referir que na qualidade de participada da Transcom, considerou à data o seu interesse no projecto Transcom e esta, sendo uma sociedade de direito moçambicano, tinha toda a legitimidade para requerer a concessão de um DUAT para o seu investimento. Assim sendo, não se oferecem dúvidas sobre a legalidade do negócio, no que concerne à sua natureza (bem imóvel), a título oneroso, bem assim quanto à legitimidade da compradora, a ora apelante. A ter havido qualquer vício no momento da aquisição, o que por mera cautela se admite, só pode ter sido em face do já anteriormente alegado, de todo o desconhecido pela ora apelante, o que prova a sua boa-fé. É do conhecimento da ora apelante e de modo oficioso, que estão a decorrer negociações entre os litigantes com vista à reparação e à justa compensação de alegados erros, incompreensões ou situações semelhantes a este assunto, por isso, a ora apelante não pode ficar prejudicada nos seus direitos em consequência de litígios judiciais, de natureza administrativa ou outra, de que não é parte. A ora apelante é proprietária do Talhão e das benfeitorias nele implantadas, exercendo a posse de forma ininterrupta, pacífica e pública e nunca teve oposição de terceiros. O tribunal a quo, ao não reconhecer o direito de propriedade e a posse da ora apelante sobre o talhão e as benfeitorias nele implantado e nos documentos de suporte, viola a lei. Outrossim, o tribunal a quo, não tem competência para se pronunciar sobre a nulidade da posse e do direito de propriedade da ora apelante sobre o Talhão e as benfeitorias nele implantadas, dada a natureza privada das partes (Fernave - CESI) negociais e ao objecto da lide, em clara violação da lei, em especial, o disposto nos artigos 62.º, 66.º, 67.º, 4 e 68.º todos do Código Civil, 5, alíneas e) e f), e 6, ambos da Lei n.º 25/2009, de 28 de Setembro e 4 e seguintes do Código de Registo Predial, o que o torna o acórdão recorrido nulo, nos termos do disposto no artigo 668.º, alínea d), do Código de Processo Civil. Termina, requerendo a procedência do presente recurso, reconhecendo-se o direito de propriedade e posse da ora apelante sobre o Talhão em causa e as respectivas benfeitorias e consequentemente, declarar nulo o acórdão recorrido por violação da lei, em particular do disposto no artigo 668.º, alínea c) do Código de Processo Civil. No mais, dá-se, aqui, por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais o conteúdo da petição de folhas 231 a 240 dos autos. Juntou o documento de folhas 248 a 261 dos autos. Notificada, a apelada, Marta Maria V. Barroti, respondeu pela forma constante de folhas 262 a 281 dos autos referindo, com interesse para a causa, o seguinte: 1. Questão prévia - Da Deserção do Recurso. O requerimento para a interposição do presente recurso de apelação do Acórdão n.º 233/2014, de 2 de Setembro, da 1.ª Secção do Tribunal Administrativo, foi formulado pela TRANSCOM, uma empresa de direito moçambicano, com personalidade e capacidade jurídica próprias que, à notificação do despacho da sua admissão, não apresentou alegações, tendo, as mesmas, sido apresentadas pela FERNAVE, SA., uma empresa do direito português, com personalidade e capacidade jurídica diferente da TRANSCOM. Deste modo, questiona-se a legitimidade com que a FERNAVE, SA., apresenta alegações de um recurso interposto pela TRANSCOM. Ora, sendo a FERNAVE, SA., parte ilegítima para apresentar alegações de um recurso interposto pela Transcom, o recurso ficou 5 deserto por falta de alegações, nos termos do disposto no artigo 690.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por força do disposto no artigo 2 da Lei n.º 7/2014, de 28 de Fevereiro, o que desde já se requer. 2. À Cautela, por impugnação. Concorda com os termos e fundamentos do acórdão recorrido, por preencher todos os requisitos contidos no artigo 89 da Lei n.º 7/2014, de 28 de Fevereiro e não enferma de qualquer vício, nem de nulidades constantes do artigo 668.º do CPC. Com efeito, é ambíguo e de difícil compreensão o vertido nos articulados 2 e 4 das alegações da apelante, pois, o acórdão é claro ao julgar improcedente a excepção de ilegitimidade, suscitada pela Transcon, por constar nos autos, evidências (Termo de autorização do projecto Transcon) de que o Talhão objecto da presente lide, fora indicado como sendo a sede do referido projecto e pelo facto de o mesmo ter sido subscrito por várias entidades, não havendo assim necessidade de citar cada uma delas, bem como pelo facto de através da TRANSCOM, a FERNAVE, SA., ter intervindo nos autos. Para corroborar com o acórdão recorrido, há a referir que em sede de contestação, não obstante ter-se julgado parte ilegítima, a TRANSCOM referiu ter tomado conhecimento que a FERNAVE, SA., adquiriu a título oneroso o Talhão n.º 262, do Aterro de Maxaquene e, daí em diante passou a defender os interesses da FERNAVE., SA, falando como se da mesma se tratasse. Portanto, quem contextualiza a posição da FERNAVE, SA., e da TRANSCOM de forma idêntica são as mesmas e não o Tribunal. Outrossim, as alegações de recurso apresentadas pela FERNAVE, SA., e não pela TRANSCOM, são evidências dessa contextualização. O acórdão recorrido, em face da prova produzida e de forma fundamentada, declarou nulo e de nenhum efeito o acto de revogação do DUAT, facto que não é impugnado tanto pelo 6 Conselho Municipal da Cidade de Maputo, como pela FERNAVE, SA. Ademais, admitindo que as alegações de recurso apresentadas pela FERNAVE, SA., são comunicadas à contra interessada, TRANSCOM, pode se concluir que a mesma, em momento algum contesta o mérito da declaração de nulidade do acto de revogação, constante no acórdão recorrido, nem apresenta fundamentos de facto e de direito que demonstrem que a decisão (de declaração de nulidade do acto) do tribunal, foi tomada de forma errada. Com efeito, as alegações de recurso apresentadas pela ora apelante discutem, em toda a sua extensão, a aquisição do talhão, por escritura pública, pela FERNAVE, SA., e a aquisição do DUAT do referido Talhão pela Transcom. Para a fundamentação da sua decisão, o tribunal a quo, analisou e rebateu as provas apresentadas tanto pela TRANSCOM, como pela FERNAVE, SA., sobre a concessão do referido DUAT à TRANSCOM e a consequente aquisição do talhão e respectivas benfeitorias pela FERNAVE, SA., tendo concluído que o Termo de Autorização do Projecto TRANSCOM, que serviu como prova para a concessão do DUAT à mesma empresa, não tem efeito constitutivo de DUAT a favor do referido Projecto. Na verdade, esta posição do tribunal a quo é incensurável, uma vez que a Lei n.º 19/97, de 23 de Outubro, Lei de Terras, atribui competência aos Conselhos Municipais para a concessão de DUAT’s, facto que justifica a incompetência do Vice-Ministro das Finanças (entidade que autorizou o Projecto de Investimento TRANSCOM), para atribuir DUAT sobre o Talhão n.º 262. Acresce-se que não só o Vice-Ministro das Finanças é incompetente para atribuir o Direito de Uso e Aproveitamento de Terra Sobre a Parcela n.º 262, como, também, o Termo de Autorização do Projecto TRANSCOM ou despacho que aprova o Projecto Transcom não obedeceu o formalismo previsto na legislação em vigor sobre a 7 matéria, designadamente, a Lei n.º 19/97, de 23 de Outubro, Lei de Terras, no Regulamento do Solo Urbano, aprovado pelo Decreto n.º 60/2006, de 26 de Dezembro e nas Normas de Funcionamento dos Serviços da Administração Pública, aprovadas pelo Decreto n.º 30 /2001, de 15 de Outubro. Ou seja, o referido acto, não só enferma de vício de incompetência, como também padece de violação de lei. Não obstante a ora apelante defender, em sede das suas alegações, que a TRANSCOM é concessionária do DUAT sobre a Parcela n.º 262 do Aterro de Maxaquene, não apresenta provas que sustentam o afirmado nem provas que abalam a decisão contida no Acórdão n.º 233/2014, de 2 de Setembro. Refira-se que o ónus de prova impende sobre quem invoca a titularidade desse mesmo direito, conforme dispõe o artigo 342.º do Código Civil, o que não aconteceu com a empresa FERNAVE, SA. Por outro lado, o tribunal concluiu que o negócio de compra e venda do Talhão n.º 262 do Aterro de Maxaquene é nulo, nos termos do disposto no artigo 280.º do Código Civil, por violação do consagrado no artigo 109 da Constituição da República de Moçambique, o qual prevê que a terra é propriedade do Estado e como tal não pode ser vendida nem de qualquer forma alienada. As provas (título translativo de propriedade sobre o imóvel) apresentadas pela Contra-interessada, revelam que o objecto da escritura de compra e venda do imóvel, foi apenas o Talhão n.º 262, sem incluir as benfeitorias nele existentes designadamente, o grupo gerador e o edifício de portaria, conforme a apelante pretende fazer entender; ou seja, o alegado documento que comprovaria a titularidade do direito da FERNAVE, SA., sobre o talhão em causa, revela que celebrou um contrato de compra e venda de terra, pois se assim não fosse, as benfeitorias que alega ter comprado conjuntamente com o talhão, estariam descritas detalhadamente na referida escritura, por forma a individualizá-lo, o que não aconteceu, visto que o que se encontra descrito é apenas o talhão. 8 Outrossim, a certidão do registo predial do Talhão n.º 262, faz prova plena de que o prédio objecto de descrição e inscrição a favor da FERNAVE, SA., não passa de uma parcela de terra, por ter apenas a descrição das confrontações do prédio sem menção das alegadas benfeitorias (grupo gerador e um edifício de portaria). Importa referir que os registos compõem-se da descrição do prédio a que respeitam e da inscrição de direitos e encargos que sobre os prédios recaem, conforme o disposto no artigo 73.º do Código do Registo Predial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 42.565, de 8 de Outubro de 1959. E, as descrições têm exclusivamente por fim a identificação física, económica e fiscal do prédio, conforme prescreve o artigo 143.º do mesmo diploma legal. Logo, se no Talhão n.º 262 encontrava-se, à data da escritura de compra e venda do imóvel, implantada qualquer benfeitoria, tal teria sido objecto de descrição e constaria da respectiva Certidão do Registo Predial que se juntou nos presentes autos. Outrossim, além de entrar em contradição com a escritura de compra e venda e com a certidão de registo predial, tal certidão matricial é datada de 2008, ou seja, dez anos após a alegada aquisição do imóvel por parte da FERNAVE, SA. Do exposto, conclui-se que por escritura pública de compra e venda de imóvel, a FERNAVE, SA., celebrou um negócio jurídico nulo, por ser contrário á lei, sendo que tal nulidade não poderia deixar de ser declarada pelo tribunal a quo por lhe competir decidir sobre todas as questões suscitadas pelas partes, não procedendo deste modo, a alegada incompetência do Tribunal Administrativo para se pronunciar sobre a nulidade do direito de propriedade da FERNAVE, SA., sobre o Talhão n.º 262, por tal direito resultar de um negócio celebrado entre duas entidades privadas. 9 Com efeito, esclarece-se, ainda, que o objecto do acórdão recorrido é a revogação do DUAT da ora apelada, pelo Conselho Municipal da Cidade de Maputo e, para o tribunal decidir validamente sobre o objecto do recurso contencioso, era necessário analisar os argumentos e as provas apresentadas pelas partes, sendo que a questão do direito de propriedade da FERNAVE, SA., sobre o Talhão n.º 262, foi suscitada nos presentes autos, pela contra-interessada e competia ao tribunal analisá-la, sob pena de nulidade da sua decisão, nos termos do disposto no artigo 668.º, alínea d) do Código de Processo Civil, em atenção ao disposto no n.º 1 do artigo 96.º do mesmo código. De igual modo, não procede a alegada nulidade do acórdão recorrido, porquanto não se verifica qualquer oposição entre os seus fundamentos e a decisão tomada, tanto é que a FERNAVE, SA., não cuidou de demonstrar em que é que a decisão tomada se contradiz com os seus fundamentos, ou em que é que o tribunal apreciou e/ou deixou de apreciar questões que devia ter conhecido. No ordenamento jurídico moçambicano, não está prevista ou seja, não existe a figura de título de propriedade de terra, por esta pertencer ao Estado, sendo que o pagamento contínuo de impostos que incidem sobre o Talhão n.º 262 e a alegada posse pública sem qualquer oposição, não confere qualquer validade jurídica ao negócio de compra e venda da terra, visto que o negócio nulo não produz quaisquer efeitos. Pelas razões acima expostas, não se pode, de forma alguma, considerar a FERNAVE, SA., como sendo terceiro de boa-fé, na medida em tinha a consciência da ilicitude do objecto do negócio celebrado. Aliás, dispõe o n.º 3 do artigo 291.º do Código Civil que é considerado de boa-fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável. Por outro lado, não procede a alegação segundo a qual à FERNAVE, SA., não pode ser imputada a culpa pela deficiente ou má redacção 10 da escritura pública de compra e venda e do consequente registo visto que lhe cabia o dever de antes da celebração da referida escritura, efectuar uma visita ao local para certificar a existência das benfeitorias que estava em vias de adquirir e conferir se estavam inscritas a favor do vendedor, do mesmo modo que lhe incumbia o dever de verificar se tal escritura pública descrevia, com exactidão, os bens que estava a adquirir. Com efeito, ainda que tenha sido um comprador desleixado, aquando do registo da aquisição dos bens, teve a oportunidade de constatar a alegada má ou deficiente redacção da escritura pública e iniciar o processo de correcção, o que não aconteceu, pelo que não procede a sua inocência, volvidos cerca de 17 anos. A ora apelante contradiz-se nas suas alegações, ao afirmar, por um lado, que adquiriu as benfeitorias implantadas no Talhão n.º 262 e, por outro, afirmar que a TRANSCOM tinha legitimidade de adquirir o DUAT sobre o talhão em causa, tomando em consideração que as duas empresas são associadas não podiam concorrer para o mesmo objecto em simultâneo. Ademais, não obstante a FERNAVE SA., suscitar a incompetência do Tribunal Administrativo para apreciar a legalidade do contrato de compra e venda do imóvel em causa, vem em sede das conclusões requerer que o mesmo lhe reconheça o direito de propriedade sobre o tal imóvel, ou seja, para a ora apelante, o Tribunal Administrativo é incompetente para apreciar a legalidade do negócio de compra e venda do imóvel por um lado e, por outro, é competente para reconhecer o seu direito de propriedade sobre tal imóvel, o que se mostra contraditório. Conclui referindo que no acórdão recorrido, o tribunal a quo decidiu de forma irrepreensível, aplicando correctamente a lei à questão controvertida, não havendo qualquer fundamento para o recurso jurisdicional. 11 Termina, requerendo que o tribunal julgue deserto o recurso interposto pela TRANSCOM, por falta de alegação e caso assim não se entenda, seja julgado improcedente o recurso interposto, por falta de provas e fundamentos legais. No mais, dá-se, aqui, por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, o conteúdo da contestação de folhas 262 a 281 dos autos. Quanto ao Presidente do Conselho Municipal da Cidade de Maputo, veio pela forma constante de folhas 288 dos autos referir que não é parte legítima desta lide, até porque a aquisição do espaço em causa resultou de um negócio jurídico de compra e venda, daí que não tem interesse em se opor ao acórdão recorrido. Termina, requerendo a procedência das presentes alegações e consequentemente, a manutenção do acórdão recorrido. No visto, o Digníssimo Magistrado do Ministério Público pronunciou-se nos seguintes termos: “Tudo visto Não se mostram nulidades ou quaisquer questões prejudiciais ou prévias que obstam a apreciação do mérito da causa”. Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir. 1. Questões prévias 1.1. Da incompetência do Tribunal Administrativo. A competência do Tribunal Administrativo é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria, conforme resulta das disposições conjugadas dos artigos 4 e 79, n.º 1, ambos da Lei n.º 9/2001, de 7 de Julho, Lei do Processo Administrativo Contencioso, em vigor na altura dos factos, aplicável por força do disposto no artigo 228 da Lei n.º 7/2014, de 28 de Fevereiro. 12 A ora apelante suscitou a incompetência do Tribunal Administrativo, nos termos do disposto nas alíneas e) e f), do n.º 1 do artigo 5 da Lei n.º 25/2009, de 28 de Setembro, Lei Orgânica da Jurisdição Administrativa, para apreciar e decidir sobre a matéria dos presentes autos por, alegadamente, a questão controvertida referir-se à posse e ao direito de propriedade do Talhão n.º 262 do Aterro de Maxaquene, uma matéria do direito privado, cuja competência está por lei reservada a outros tribunais, aliado ao facto de as partes envolvidas no conflito serem entes de direito privado. No entanto, a questão controvertida que deu início ao litígio decorre do acto administrativo de revogação do Direito de Uso e Aproveitamento do Talhão n.º 262, do Aterro de Maxaquene, pertencente a Marta Maria V. Barrotti, praticado pelo Conselho Municipal da Cidade de Maputo, por alegado motivo de interesse público, o qual foi declarado nulo e de nenhum efeito, através do Acórdão n.º 233/2014, de 2 de Setembro, da Secção do Contencioso Administrativo, por estar inquinado dos vícios de forma que consistiu na falta de fundamentação e de violação da lei (vide folhas 2 a 11, 69, 206 a 219 dos autos). Por outro lado, constata-se que no acórdão recorrido, o tribunal a quo analisou os elementos de prova da aquisição da titularidade do direito de uso e aproveitamento do talhão em causa, designadamente a escritura de compra e venda, a certidão do registo predial bem como o despacho do Vice-Ministro das Finanças que autoriza o projecto TRANSCOM e o respectivo Termo de Autorização daquele Projecto, fornecidos pelas partes, e concluiu que tais documentos não são prova da aquisição da Titularidade de Direito de Uso e Aproveitamento daquele talhão, dado que tal aquisição, resultou de um negócio jurídico ilegal – compra e venda de terra -, portanto, nulo, pelo facto de a terra pertencer ao Estado e estar proibida a sua venda, alienação, hipoteca ou penhora, nos termos do disposto no artigo 109 da Constituição da República. 13 Outrossim, pronunciou-se sobre a fundamentação do acto recorrido (despacho de revogação do DUAT a favor da então recorrente), onde concluiu que o mesmo encontra-se ferido de vício de forma, por falta de fundamentação, por não ter sido descortinado o referido “motivo de interesse público”, expresso de forma vaga (vide o acórdão recorrido de folhas 206 a 208 dos autos). Ainda, sobre o acto recorrido, referiu que o mesmo enferma de vício de violação de lei, por não terem sido seguidas as formalidades legais inerentes à expropriação por motivo de interesse público, ou seja, não foi precedida de pagamento de uma justa indemnização e/ou compensação, conforme estabelece o artigo 18, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 19/97, de 1 de Outubro. Do exposto resulta que, na verdade, a questão controvertida prende-se com o acto de revogação do DUAT a favor da ora apelada, praticado pelo Presidente do Conselho Municipal da Cidade de Maputo, o qual foi declarado nulo e de nenhum efeito pelo Acórdão n.º 233/2014, de 2 de Setembro, da Primeira Secção do Tribunal Administrativo, uma matéria cuja competência para a sua apreciação e decisão, está reservada, por lei, ao Tribunal Administrativo, por se tratar de um litígio emergente das relações jurídicas administrativas, nos termos do disposto no artigo 4 da Lei n.º 5/92, de 6 de Maio, em vigor à data dos factos e da interposição do recurso, pelo que não procede a alegada incompetência. 1.2. Ilegitimidade do Conselho Municipal da Cidade de Maputo. O Conselho Municipal da Cidade de Maputo julgou-se parte ilegítima nesta lide, por considerar que a aquisição do Talhão em causa, resultou de um negócio jurídico de compra e venda e, nesse sentido, não tem interesse em se opor ao acórdão em crise. Nos termos do disposto no artigo 138, n.º 1 da Lei n.º 9/2001, de 7 de Julho, podem recorrer a parte ou interveniente no processo que 14 fique vencido, a pessoa directa e efectivamente prejudicada pela decisão. Por seu turno Tomás Timbana, Lições de Processo Civil I, páginas 211, Escolar Editora, citando Paula Costa e Silva, refere que a parte para ser legítima, deverá ter um interesse directo em demandar ou contradizer, que não é o caso. Pelo contrário, apesar de o acórdão recorrido ter declarado nulo e de nenhum efeito o acto de revogação do DUAT da ora apelada, praticado pelo Presidente do Conselho Municipal da Cidade de Maputo este conformou-se com a decisão, referindo que não tem interesse em contradizer o acórdão em crise, mas, sim, requer a sua manutenção, pelo que improcede a excepção de ilegitimidade. 1.3. Deserção do Recurso Interposto pela TRANSCOM. Em sede da sua contestação, a apelada requer que o presente recurso seja declarado deserto por falta de alegação, porque, no seu entender, o pedido da interposição do presente recurso de apelação foi submetido pela TRANSCOM, e as alegações do mesmo foram apresentadas pela FERNAVE SA., uma empresa com capacidade e personalidade jurídica distinta da TRANSCOM. Porém, da leitura tanto dos autos, como do acórdão recorrido, percebe-se que uma empresa é participada da outra e, mesmo em juízo, sempre intervieram como se de uma mesma empresa se tratasse. Aliás esta questão foi profundamente analisada em sede do recurso contencioso na primeira instância, onde se concluiu que não procede a ilegitimidade que havia sido suscitada pela TRANSCOM, pelas razões ali expostas, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais, do mesmo modo que não procede a alegada deserção. 2. Apreciando 15 Dos autos constata-se que através do Acórdão n.º233/2014, de 2 de Setembro, foi julgado procedente o recurso contencioso interposto pela ora apelada, contra o despacho exarado pelo Presidente do Conselho Municipal da Cidade de Maputo, que revogou o Direito de Uso e Aproveitamento da Terra que havia sido emitido a seu favor. Para o efeito, o tribunal a quo concluiu que o acto recorrido enferma de vício de violação de lei, por não terem sido cumpridas as formalidades legalmente prescritas, relativas à expropriação por razões de interesse público, nomeadamente, a justa compensação ou justa indemnização, nos termos do artigo 18, alínea b) da Lei n.º 18/97, de 1 de Outubro; e do vício de forma, por falta de fundamentação, por não ter descortinado o sentido do declarado interesse público, visto tratar-se de um conceito vago, tendo, assim, declarado nulo e de nenhum efeito jurídico o referido acto administrativo. Nas suas alegações, a ora apelante não apresentou fundamentos ou factos novos que possam abalar a decisão tomada em primeira instância. Insiste nos mesmos fundamentos que apresentou em sede do recurso contencioso, os quais todos foram escalpelizados no acórdão recorrido, designadamente: i. no negócio jurídico de compra e venda, celebrado por escritura pública outorgada a 21 de Maio de 1998, não só comprou o Talhão n.º 262 do Aterro de Maxaquene, como, também, adquiriu as benfeitorias nele implantadas compostas por um edifício de portaria e um grupo gerador. No entanto, dos autos constata-se que tanto a escritura pública de compra e venda, como a Certidão de Registo Predial do Talhão n.º 262, do Aterro do Maxaquene, ambos passados em 1998, limitam–se a fazer a descrição do referido talhão sem mencionar qualquer benfeitoria, designadamente, o referido grupo gerador e o edifício de portaria, constantes 16 da Certidão n.º 1615/2008, de 9 de Julho, passada pela Autoridade Tributária de Moçambique (vide folhas 113 a 115 versos e 117 dos autos). Outrossim, que a referida Certidão n.º 1615/2008, de 9 de Julho, é posterior à data da aquisição do talhão (1998), visto ter sido emitida 10 anos após a celebração da escritura pública (vide folhas 168 dos autos). Dispõe o artigo 72.º do Código de Registo Predial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47611, de 28 de Março de 1967 que o registo compõe-se da descrição do prédio a que respeita, da inscrição dos direitos ou encargos que recaem sobre esse mesmo prédio e dos respectivos averbamentos. Outrossim, as descrições têm exclusivamente por fim a identificação física, económica e fiscal do prédio a que respeitam os factos inscritos, conforme estabelece o artigo 147.º do mesmo código. Na verdade, se tanto na escritura pública, como no registo predial, não vem descrita nenhuma benfeitoria, significa que à data da conclusão do negócio, não estava implantada qualquer benfeitoria naquele talhão, o que leva a concluir que se tratou de um negócio de compra e venda de terra. Ora, na ordem jurídica moçambicana o negócio jurídico de compra e venda da terra é contrário à Constituição da República que, no seu artigo 109, n.ºs 1 e 2, dispõe que a terra é propriedade do Estado e, não pode ser vendida ou por qualquer forma alienada, nem hipotecada ou penhorada. Nos termos do disposto no artigo 280.º, n.º 1 do Código Civil, aplicável por força do disposto no artigo 1 da Lei n.º 9/2001, de 7 de Julho, é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja contrário à lei. 17 Há a referir que no acórdão recorrido, o tribunal a quo, ao declarar a nulidade do negócio jurídico de compra e venda do Talhão n.º 262 do Aterro de Maxaquene, fê-lo, dentro das suas competências, visto que a nulidade pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal, conforme estabelece a última parte do artigo 286.º do Código Civil (CC). ii. à data da celebração do referido negócio de compra e venda por escritura pública, desconhecia o conflito existente entre o Conselho Municipal e a ora apelada, daí que deve ser reconhecido como terceiro de boa-fé. Na verdade, diz-se de boa-fé, o terceiro adquirente que no momento da aquisição, desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável, conforme dispõe o artigo 291.º, n.º 3 do CC, o que não é o caso. No caso vertente, ainda que o ora apelante desconhecesse o conflito existente entre a ora apelada e o Município de Maputo, tal não significa, de forma alguma, o desconhecimento da ilegalidade do negócio jurídico de compra e venda de terra, nos termos da Constituição da República e na demais legislação em vigor sobre a matéria, pelo que não procede o alegado desconhecimento, tanto da lei como do conflito para ser declarado terceiro de boa-fé. iii. ter havido deficiente ou má redacção da escritura pública de compra e venda e consequente registo, não se pode imputar a correspondente culpa à ora apelante, pois, além de pagar o preço relativo ao talhão e as respectivas benfeitorias, efectuou o pagamento dos impostos relativos ao mesmo. Ainda que tenha efectuado o pagamento dos valores e dos impostos relativos ao talhão, tal não confere a legalidade do negócio, permanecendo nulo e de nenhum efeito jurídico, razão pela qual a ora apelante não adquiriu a titularidade do Direito de Uso e Aproveitamento do mesmo. 18 Sublinha-se que a titularidade de Direito de Uso e Aproveitamento de Terra adquire-se nos termos previstos nos artigos 12 e seguintes da Lei de Terras e em outra legislação em vigor sobre a matéria. Concluindo: o objecto dos presentes autos é o acto administrativo praticado pelo Presidente do Conselho Municipal da Cidade de Maputo, de revogação do DUAT da ora apelada. O tribunal a quo, declarou nulo e de nenhum efeito o referido acto, após uma análise e apreciação das provas apresentadas pelas partes, significando, deste modo, que pronunciou-se sobre a matéria cuja competência é a si reservada por lei. Assim sendo, não se vislumbra, nos autos, quaisquer indícios de ilegalidade que possam inquinar o acórdão recorrido, nos vícios previstos no artigo 668.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil, que justifiquem a sua nulidade. Por todo o exposto, acordam os Juízes Conselheiros deste Tribunal, reunidos em Plenário, em negar provimento ao recurso interposto pela FERNAVE SA., por falta de fundamento legal e, consequentemente mantêm o Acórdão n.º 233/2014, de 2 de Setembro. Quanto ao pedido de reconhecimento da posse e do direito de propriedade da ora apelante sobre o Talhão n.º 262 do Aterro de Maxaquene, o Tribunal considera-se incompetente para conhecer o mérito desta questão, em virtude de ser uma matéria de direito privado, cuja competência está reservada a outros tribunais, conforme estabelece o artigo 5, n.º 1, alíneas e) e f) da Lei n.º 25/2009, de 28 de Setembro, conjugado com o disposto nos artigos 66.º, 68.º, n.º 1 e 1033.º e seguintes, todos do CPC, aplicável por força do disposto no artigo 1 da Lei n.º 9/2001, de 7 de Julho, ex vi do artigo 228 da Lei n.º 7/2014, de 28 de Fevereiro. 19 Custas a pagar pela apelante e que se fixam em 20.000,00MT (vinte mil meticais). Registe-se e notifique-se. Maputo, 14 de Março de 2016. Machatine Paulo Marrengane Munguambe José Luís Maria Pereira Cardoso – Relator Januário Fernando Guibunda Amílcar Mujovo Ubisse Filomena Cacilda Maximiano Chitsonzo David Zefanias Sibambo Aboobacar Zainadine Dauto Changa João Varimelo Paulo Daniel Comoane José Maurício Manteiga 20 Isabel Cristina Pedro Filipe Pelo Ministério Público Fui Presente, Edmundo Carlos Alberto, Vice-Procurador-Geral da República 21