PDF – clique aqui - Revista Parênteses

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#01 | setembro 2013
distribuição on-line gratuita
Ana
Guadalupe
Bruno Palma
e Silva
Edu
Suppion
Fabiano
Calixto
Luana
Vignon
Lubi
Prates
Marília
Garcia
Mirella
Carnicelli
Múcio
Góes
5
9
14
Editorial 3
Créditos e contato 43
18
As fotos da capa
e ao longo da
edição são de
Camila Lordelo
31
23
34
27
39
3
b
em-vindos (não que “bem-vindos”
Parênteses, no nosso caso, é uma re-
seja o termo correto para quem abre uma
vista literária independente que será dis-
revista, e ainda mais virtual, mas na falta
tribuída gratuitamente na Internet, em
de algo que se aplique melhor) ao nosso
formato PDF e ePUB, com circulação a
primeiro número!
princípio trimestral.
Parênteses, do grego (não que falemos
grego) παρένθεσις, inserção.
No nosso caso, é um projeto com meses
de planos, de pesquisas, de gestação que
Entre dois parênteses cabe uma ob-
agora vem à luz. Parênteses são conversas.
servação. Entre dois parênteses cabe uma
São anseios, são colaborações, são opi-
explicação (ou uma dúvida), cabe um co-
niões. São, por que não, sonhos. Parênte-
mentário, cabe uma ressalva, um esclare-
ses é amizade.
cimento.
Entre parênteses, um detalhe (mas às
vezes um detalhe pequeno é grande coisa). Bastante coisa.
Entre dois parênteses cabe (será?) um
mundo inteiro.
Não temos nenhuma grande pretensão, apenas a intenção sincera de divulgar
bons trabalhos de prosa e poesia.
E, já que começamos com “bem-vindos”
e ainda na falta de termos que se apliquem, sintam-se em casa.
Estejam todos à vontade.
Ana
Guadalupe
vamos perder e retomar o contato
vamos perder o contato?
visto que não há motivo para mantê-lo
por meio de encontros e recados
se a cada dia acordamos outro
e não vamos manter nem em sonho
nosso outro de ontem
outrora foi mais fácil
cortar os laços todos
vamos retomar e perder o contato
só no arquivo permanente do passado
o outro ficará pra sempre lacrado
prêmio que apenas antecipamos
cromo raríssimo
pacote intacto
5
6
quando cortam
a internet
quando cortam a internet
coisas absurdas acontecem
daqui a pouco
mas não sem a tentativa de refresh
depois quando não existe
um lapso passageiro
depois
não existe
só o agora continua insistente
se fosse um homem ou mulher de olhos grandes
o agora telefonaria muitas vezes
até que alguém atendesse
pra que a gente se gostasse no primeiro instante
e vivesse dias inteiros estragados por detalhes
aparelhos com defeito, despencamento de cabides
um amigo inconveniente, o gênero errado de filme
alergia a pólen
alergia a cabelos
e do refresco de cogitar antes
raios
insetos no aparelho
quando a página some
levando embora um link que se perderá
pra sempre, é aí que uma coceira aparece
então descobre-se que o eu lírico
carregava meses de urticária
ou brotoejas
ou micose da pior espécie
quando ninguém mais digita palavra
nenhuma, nosso herói ou heroína
se levanta com tontura pra ir à esquina
descobre árvores inesperadas
na sacada, quatro ou cinco
parentes desacordados
na escada de casa
infeliz
em santa
catarina
7
fui infeliz em santa catarina
em manhãs tétricas voltando pra casa
em tardes chuvosas escorregando nas ruas
de chinelos e camiseta branca com um pássaro na estampa
em santa catarina fui infeliz na maioria dos dias
cultivei bichos de pé e outros parasitas
os animais de casa tiveram pulgas
e é claro que morreram jovens
no vento fatal de santa catarina
os eletrônicos mofaram ao mesmo tempo em orquestra
não sobrou aparelho de som ou secador de cabelo
pra movimentar o quarto
fui infeliz em santa catarina
quando meu primeiro amor me chamou pra um encontro
que não passava de um culto religioso
em que apenas o espírito santo me beijaria
em santa catarina fui infeliz
em casa, no ponto de ônibus,
na ponte, na barraca de crepes,
na pastelaria
enquanto os catarinenses abriam os dentes
e repetiam “meu senhor, guria”
comprovei nas praias perigosas de santa catarina
que as águas do rio tendem a te afogar no mangue
e as águas do mar podem trazer o cadáver de um homem
em pleno domingo
7
8
fitas pra segunda
foto e comprovante de residência
pra abrir a ficha que inaugura uma lista
nunca cumprida nem com todos os sábados
e dezembros da sua vida
ana guadalupe nasceu em novembro de
1985 em londrina (PR), estudou letras em
uma história sem fim com dezenove sequências
maringá (PR) e hoje mora em são paulo
todos os retornos, regressos e referências
(SP), onde trabalha como redatora. seus
um dia que se repetirá ao infinito
num longo close no rádio-relógio
poemas foram publicados em antologias
como peso pena, be my mafia family, escuela brasileña de antropofagia (méxico
e chile), cityscapes (estados unidos) e otra
é melhor que descubra agora
línea de fuego – quince poetas brasileñas
todas as fitas que você leva pra casa
ultracontemporáneas
estarão pra sempre num espaço escuro
do móvel da sala
(espanha);
sites
literários como o portal literal, as escolhas afectivas, germina, confeitaria e the
scrambler; veículos como o globo, o estado de s. paulo, zero hora, correio brazi-
o móvel da sala é você em versão animada
liense, plástico bolha, lado7, suplemento
pernambuco e esferas; além de projetos/
as fitas com devolução marcada pra segunda
são suas sem volta e sem capa
(embora o papel diga segunda)
exposições como blooks (idealizada por
heloísa buarque de hollanda), obra aberta
(pinacoteca do estado de são paulo), poema para viagem (mostra SESC de artes),
estão cravadas à sua memória
paisagens & poéticas (bienal internacio-
guardadas num canto da sua nuca
nal de são paulo) e na tábua (do escritor
na pele empoeirada das suas costas
paulo scott). seu primeiro livro, relógio de
pulso, foi publicado pela ed. 7letras em 2011.
ana escreve poemas no blog roxy carmi-
talvez você devolva amanhã
chael nunca voltou e bobagens no twitter
talvez nunca
@anaguadalupe.
9
Peixe dourado
Lembro
de ter lido uma vez, coisa
dessas com que se esbarra por aí, que um
No entanto, não me lembro se li ou in-
peixe dourado deixado num aquário sem
ventei que, devolvido ao antigo aquário
luz perde a cor, acaba só um vulto esbran-
iluminado, o peixe retoma sua cor, torna-
quiçado. É um fantasma. Lembro de ter
se de novo o que nasceu para ser e o que
pensado que tem algo de trágico e muito
marca, afinal, seu lugar no mundo: volta
profundo nisso.
a ser dourado.
Pois se um peixe dourado deixa de ser
dourado, o que resta dele?
Bruno
Palma
Assim são os peixes, assim somos nós.
(Assim sou eu, pelo menos.)
Aos pedaços
com os braços para trás é o dono da outra
uma certa rua numa certa altura, do raio
parte. Mas temos convivido pacificamente.
de luz vermelho –só do vermelho– que
Volta
Não chego ao ponto de tomar casas in-
passa pelo vitral lateral da basílica numa
teiras, não sou assim possessivo. Mas sou
certa época do ano, do barulho oco que
o dono, por exemplo, do telhadinho em
faz quando se pisa numa certa pedra sol-
forma de cone na entrada de um casarão,
ta do calçamento.
e meia me pegam olhando para
um banco de praça, um tufo de grama que
brotou no meio do asfalto e me puxam as
orelhas porque fiquei mudo e me perdi na
conversa. O pessoal costuma não entender.
Sei lá quando começou; sei que é de
menino. Uma vez me mudei de cidade, de
estado, e tive de começar tudo do zero, foi
uma barra. Agora, anos depois, já estou
bem estabelecido e sigo firme no meu ofício, quem sabe um dia os especialistas em
RH inventarão um nome: eu me aproprio
de pedaços da cidade.
É impossível amar uma cidade inteira,
o que me interessa são só uns pedacinhos.
Alguns me agradam em especial, então
eu os tomo para mim.
Meu inventário é repleto de árvores:
tenho, por exemplo, uma meia dúzia de
paineiras, dois pessegueiros e três figueiras. Araucárias são oito, desde que uma
foi derrubada semana passada, vítima de
gente incomodada com os galhos caídos
no quintal. Sou dono também de uma cerejeira, mas não dela toda: são meus só
os galhos do lado de cá. Tenho quase certeza de que um senhor japonês que volta
e meia encontro caminhando pela praça
assim como da janela rodeada de trepa-
É tudo meu, pago com sorrisos silen-
deiras no segundo andar de um predinho
ciosos, olhares admirados, suspiros de
e dos lambrequins na varanda de uma
satisfação. Às vezes à vista, às vezes em
casinha de madeira. O relógio sem pon-
prestações.
teiros na fachada de um sobrado colonial
caindo aos pedaços: é meu.
Mas não é assim tão fácil, não ganhei
nada assim, de mão beijada. É trabalho
Uma vez cheguei a ter um anjo de tú-
duro, muitos passeios, muitos torcicolos
mulo, um querubim magnífico de asas
de olhar para cima, muitos esbarrões no
abertas e espada em punho que aparecia
poste porque estava olhando para outro
por cima do muro do cemitério, mas o aca-
lado. Sem contar que é difícil ser dono de
bei trocando por um metro e meio do ca-
tantas coisas; preciso sempre passar pelos
minho de pedras em frente de uma capela.
meus pedaços de cidade para ver se tudo
De algumas coisas eu sou dono só em
vai bem.
certos horário do dia. Aquele trechinho
Mas, tirando um portãozinho que foi
da alameda só me interessa às quatro e
arruinado por uma nova pintura cinza,
quinze da tarde, quando a luz passa en-
sem graça e quase criminosa, não tenho
tre os galhos dos álamos e tinge a fachada
do quê reclamar.
da charutaria de um tom esverdeado. Já
Esses dias, tenho desviado meu ca-
a poça que amanhece na praça depois de
minho por uns quarteirões para passar
uma noite de chuva só é minha pela ma-
numa rua onde dez ou doze ipês amare-
nhã, quando os sabiás vão tomar banho
los coloriram o chão e o teto de um dou-
por lá; depois pode ser de quem quiser.
rado que, por Deus, só vendo para saber.
Já outros bens são mais difíceis de lis-
Estou me segurando para não tomá-los
tar. Sou o feliz proprietário do cheiro de
todos, de uma vez só, para mim. Acho que
café que se sente quando se atravessa
não resistirei, amanhã cedinho passo lá.
10
11
Parábola
dos porcos
Assim
que ele, segurando a respira-
baixo dos galhos; vai que uma bomba des-
— Aquela grande ali é a lua. Meu vô as-
sas cai na cabeça?–, e seguir na ponta dos
sistiu uma vez na televisão que uns ho-
pés em direção do chiqueiro. A lanterna
mens viajaram até lá.
continuou desligada mesmo: era noite de
lua cheia. E que lua!
O garoto repetiu com cada um dos filhotes –a mãe era pesada demais, mas
ção, não pôde ouvir mais nada além da
A porca esparramada de lado, os por-
quem sabe quando ele crescesse e ficas-
coruja no pomar, o menino segurou fir-
quinhos aconchegados uns em cima dos
se mais forte?– o mesmo ritual. Mostrou
me a lanterna e saltou, já de tênis e tudo,
outros. O avô dizia que porco é bicho es-
a todos o Cruzeiro do Sul –pouco prová-
de baixo das cobertas. Esqueceu da tábua
perto, sabe quando a gente chega com co-
vel que um deles se aventure muito mais
solta do assoalho e, quando a madeira
mida na mão e quando chega com a faca
longe do que a cerca atrás do chiqueiro,
rangeu alto, ficou ali paralisado, pensan-
escondida debaixo da camisa. Mas o me-
mas enfim–, a lua cheia, as galáxias e até
do que tinha botado tudo a perder. Mas
nino chegava com coisa melhor e, por isso,
um avião que passava.
não: o avô já roncou logo em seguida. Ufa,
nenhum reclamou quando ele, chegando
à missão.
de mansinho, agachou rente ao cercado.
É que, mais cedo, segurando um pedaço
de broa de milho numa mão e uma revista
Missão que era nobre, que valia o peri-
Foi ganhando confiança, acariciou pri-
dessas de curiosidades na outra, o menino
go de uma aventura na madrugada –para
meiro a mãe e depois os filhotes. Esticou
descobrira que os porcos não conseguem
quem dorme à oito, qualquer dez horas já
os braços no meio das ripas e pegou um
olhar para cima. Foi um momento de re-
é madrugada. O menino respirou fundo,
dos sete. Subiu o porquinho até em cima
velação. Os porcos não podem ver o céu,
girou a maçaneta e saiu correndo de uma
da cerquinha e notou, com alívio, que ele
e lhe pareceu injusto que alguém viva –e
vez só, sem olhar para cima –não precisa-
não se agitava. E então carregou-o no colo
justo no campo, onde não há postes que
va; nessa noite não havia morcegos nas
até o meio do terreiro.
apaguem as estrelas– sem nunca ver o céu.
tábuas do telhado da varanda.
Eram agora as férias de inverno. Uns
Na roça, onde não há postes que apaguem as estrelas, o céu cintilava:
Daí a missão nobre, daí ele estar no meio
do terreiro, com os braços cansados de segurar filhotes acima da cabeça.
dias antes, o pai e a mãe o haviam deixa-
— Olha só como é bonito. Tá vendo
do –junto com a mochila, a lanterna, o te-
aquelas bem ali? É o Cruzeiro do Sul, eu
Talvez, na ingenuidade, ele nem tenha
lescópio e uma pilha de revistas– no sítio
aprendi na escola que é só saber achar ele
notado a indiferença dos porquinhos. Ar-
do avô. A irmã teve que ficar na cidade, de
no céu que a gente nunca vai se perder.
risco dizer que os bichinhos não deram
recuperação em português.
Ficaram os dois ali, um momento meio
A coruja girou a cabeça, curiosa, quan-
solene, meio engraçado: um menino com
do viu a sombra passar pelo galpão, con-
os braços esticados, um porquinho sus-
tornar a jaqueira –não é bom passar por
penso lá em cima.
grande importância. Os porcos que viram
o céu.
Mas para o menino foi a melhor noite
nas melhores férias de todas.
12
P.S.
Uma noite dessas
coloco um capuz
e saio com uns papéis
debaixo do braço
E aí
junto com esses cartazes
de amarração para o amor
com pagamento após o resultado
prego um outro que diz
“mas que tipo de amor
pode começar amarrado?”
Nascido em São Paulo, 1982, e adotado por
Curitiba, 1994. Prefere sempre se esconder, mas
alguns textos seus, acidentalmente, já foram
parar em algumas revistas e até no vestibular.
É designer gráfico, cozinheiro de fim de semana, cervejeiro caseiro e pai do Fábio. Ainda não
se denominou escritor, mas mantém -respirando por aparelhos- o blog Acepipes escritos.
14
Edu Suppion
escreva, a poesia.
escrever poesia é viver quantas vezes mais for possível viver. não garante uma vida melhor, também não acredito que faz de nossa vida pior. mas, pelo menos, pode-se viver livremente. nem que seja por algumas linhas.
15
o sonho
sonhado.
um dia, dizem, não sei se é verdade. um
os humanos, dizem, estavam com muito
dia, dizem, os mortais queriam ser deuses.
medo e tremiam, ficaram mudos e se abra-
e lá foram. subiram os montes, andaram
çaram. um se colocou à frente. “temos um
quiserem enquanto dormem. poderão fa-
pelas trilhas e chegaram à ponta da pedra
pedido. queremos ter poderes dos deuses
zer o que quiserem, poderão voar, subir
mais alta. de lá podiam ser ouvidos. os
também.” foi um riso só vindo das carru-
montanhas, nadar, ficar invisíveis, carre-
mortais se reuniram, e gritaram, juntos.
agens. “querem ser deuses?” “não sabem
gar casas, atravessar rochas, ser imortais,
lá estavam os deuses bebendo, comendo
que isso é impossível?” foi quando uma
desfrutar qualquer amor, construir qual-
e se divertindo quando ouviram aquele
linda deusa surgiu de sua carruagem. “eu
quer coisa. serão deuses, todas as noites.
som. “o que é isso?” “quem ousa gritar as-
posso fazer de vocês deuses, vocês podem
dentro de vocês. apenas dentro de vocês.”
sim?” “são os mortais que gritam?” pois co-
ser deuses, claro que podem!” “está lou-
e os deuses riram, e ficaram olhando os
locaram suas coroas e desceram com suas
ca!” gritavam todos no céu. “calma,” disse
corpos caídos em sono, mexendo para lá
carruagens até a pedra. uma luz se abriu
a deusa para os seus. os humanos ficaram
e para cá. as carruagens voltaram para o
no céu e dezenas de cavalos surgiram
ali, petrificados. a um gesto, todos caí-
céu. os mortais para a terra. desde então,
puxando carros de ouro. os deuses apa-
ram num sono profundo. “vocês querem
dizem, os mortais são deuses nos seus so-
receram. “por que a bagunça, a gritaria?”
ser deuses?” “pois terão todo o poder que
nos. começaram a sonhar.
16
a ddois.
você quer um amor literário, eu sei. é
um amor literário, eu sei. e amores assim
seu direito. seu sonho talvez. construído
não entendem nem um pouco a língua
por horas e horas a céu aberto. prometi-
do imprevisto, desses iguais ao nosso, que
do entre amigas, uma jura de sangue por
seguem os impulsos. sem planos, tocando
aquela vida perfeita. custa muito quebrar
de improviso. às vezes, abro você numa
esse pacto. você quer um amor revisado,
página qualquer e leio culpa no seu corpo,
eu já sei. talvez, eu seja real demais para
caindo sem pensar. ali, onde nossos va-
sua verdade. quem sabe, eu seja fantasia
zios se encontram. se entregam. e partem.
demais para sua realidade. confesso, não
deixando apenas nós, a sós, a dois. como
sei, olhando as entrelinhas do nosso en-
deveria ser. deveria, eu sei. mas eu tenho
contro. penso, se o seu olhar me quer, se
defeitos, eu sou imperfeito, não sou amor
a sua boca me afasta, se a sua escrita me
literário nem tão pouco romance. sou só
ilude, se a sua solidão me deseja. você quer
aventura.
posso escrever a minha vida inteira, mas escrever sobre mim é sempre estar frente a frente com o impossível. melhor deixar para outros. não eu. o que sei de mim é muito pouco. me vejo apenas por dentro.
não é uma visão completa. mas, se preciso falar, melhor dizer apenas o que sou. o que posso ver daqui. e
sou poucas coisas. prefiro assim, ser pouco, para não me perder com esse tudo do mundo. sou Eduardo
Suppion. sou filho. sou irmão. sou tio. sou amigo. sou apaixonado pelo humano. sou otimista. sou perseverante. sou crente do bem. sou seguidor do amor. ponto. e pronto. e dentro desse limitado sou, posso estar
muitas coisas, infinitamente. hoje, apenas por hoje, estou publicitário, estudante de psicologia, escritor e
poeta. amanhã, sinceramente, não sei se estarei. mas sempre serei.
a canção do vendedor
de pipocas
para Angélica Freitas
Fabiano
Calixto
em frente ao
noticiando o acidente na Rebouças
Banco de La Nación Argentina
(“foi feio pra caralho, mano!”)
o vendedor de pipocas
logo envelopa a fala, se cala
da avenida Paulista
a chuva recomeça sua cantilena
desvenda os mistérios do Honda prata
preciso das horas, mas não encontro
que passa lentamente, soberbo
(“coisa mais sem gente!”)
pensa na noite crônica no organismo
da tiazinha de vestido florido (onde
predomina o ruivo)
agora assobia e coloca milho na panela
os estouros acordam a minha fome
(no El País
El presidente apuesta por las políticas
a favor de los “más olvidados”
meu celular
uma moça linda (ensopada) pára
em frente a mim,
balbucia
can you help me remember how to smile?
silencio e lembro de uma rua
que tem o nome do meu amor
– imagino que as canções de Bob Dylan
existam para nos fazer suportar dias
como este – a
cidade se altera, oxida de
y “los que pueden menos” –
alteridade e acídia
risco outro fósforo, acendo outro cigarro,
(La Contenta Bar
outra melodia
está muito muito longe e
frustrated incorporated)
a noite passada
quando chega o outro, de bicicleta
você não veio me ver
19
oratório
meninos jogam
dos bem-nascidos
com seu carro de entulhos
& rebocam sua vaidade & idiotia
fuma sua guimba de cigarro
na cara da geral,
observa o sol
outra poesia é feita
que se põe morno no horizonte
neste mundo
& nas gotas de suor em seu rosto
na universidade desconhecida
enquanto
jogam
na vida sem fim
ensaia dentro de um assovio
capoeira
de quem chegou até aqui
um velho bolero
entre os ramos do berimbau
derrubando, aos murros, o muro
que fala de uma cidade fantasma
antes da chuva
moldando o mundo a muque
onde mora uma mulher solitária
capoeira
em frente ao muro da creche
onde, escrita a tiros,
lê-se a epígrafe destes dias
que faz pães pela manhã & à tarde
com as nuvens
§
a quem ele gostaria de levar um pote de
manteiga
§
o terreno baldio
&, nas noites claras, ensinar trava-línguas
os tijolos vermelhos lodosos
a quadra de futebol de salão
& contar estrelas
as casas pela metade
o bamba rodando, mão em mão,
andaimes, latas de tinta vazias,
a ginga da ganja
pedras, cimento, cal
na gramática feroz
do desânimo
jogam
capoeira
enquanto os burrocratas
do pensamento
§
§
§
discutem mais-valia & idolatria
mercancia & democracia
no barraco à beira
lucracia & poesia
do córrego fétido
o coração
na sala de justiça
um velho negro
aflito
20
§
§
chove
ainda que exausta
há mais de uma semana
a existência não fechou seus olhos
§
uma velhinha no ônibus
me ofereceu uma oração
no esgoto em frente
& seu riso desmantelou
à entrada da biblioteca
todos os músculos de seu rosto
uma ratazana, no meio da sopa
de merda, devora
não rezei com ela
restos de milho
fizemos silêncio juntos
& nos exilamos em nosso subúrbio
§
portátil
sob uma cortina de sangue
as notícias da guerra jorram sangue
onde, do outro lado,
& fedem de longe
havia um cão sarnento tremendo de frio
Cabul
& um bailarino imbecil
pedindo mais conhaque
no muro (de outra guerra)
o grafito de um grito
sem público
(entardecido na memória)
exila-se dos dias:
mano Jorge
saudade
21
e-mail para
Tom Waits
XIX e a Etiópia, Rimbaud teria dado um
demais. Democrático demais, como a morte
tiro em um de seus criados por este ten- – amar-te amor-te, morrer. Carente demais.
tar lhe roubar, enquanto dormia, duas
Fácil. Só o amor parece não caber no amor.
ou três moedas de ouro. Nós, definitiva-
Estranho, né? Fiquei quieto novamente.
uma angústia hopperiana, encos-
mente, não acreditávamos em verdades.
Estava bêbado demais e o amor – o que
tada no balcão, tomava dry martini e sol-
E isso acabou em tesão. Então, o dancing
eu tinha para falar sobre o amor – com
tava imensas baforadas de fumaça. Fitava
quase vazio, ela pegou em meu braço, sa-
certeza havia deixado em alguma velha
sua própria sombra – que era ela mesma,
cou o batom e escreveu a palavra sinta-
canção que fala de perdedores e bêbados
em versão instrumental, tomando dry
xe. Do nada. E do nada, lembrei de uma
incorrigíveis. Eu era apenas um cachorro
martini e soltando imensas baforadas de
canção interpretada por Johnny Cash e
molhado esperando a cidade se esvaziar
fumaça. Meu pigarro cínico deu início à
fiquei curioso em saber se houvera ele
para que eu pudesse vasculhar os sacos
conversa. Eu sabia que ela era mais uma
passado por algo parecido quando pen-
de lixo e, quem sabe, encontrar um amor
bela garota que queria chegar num sebo
sou em cantar “Hurt”. Johnny Cash não se
qualquer e matar minha fome. E ela era
e comprar um livro do Larry Brown, lê-lo
lembrava dos sonhos das noites anteriores
aquela doce desordem dos sentidos. Po-
em êxtase, guardando sob o grafite o que
– ela disse. Fiquei quieto e pedi a ela outro
rém, a doce desordem dos sentidos jamais
a memória provavelmente vacilaria, e na
cigarro. O que me enoja no amor é que ele
havia ouvido nenhum dos seus discos.
noite seguinte encontrar alguma amiga
é uma coisa fácil demais. É como comprar
Tive que cantar uma a uma as suas can-
para dizer que a mãe havia telefonado,
um Chicabon na padaria. É como chegar
ções – sem lembrar sequer de uma. Antes
aos prantos, dizendo que o pai continu-
atrasada ao trabalho e esfarrapar um ver-
de adormecer, ela disse: a culpa e os cadá-
ava com uma sede insana e que o irmão
bo qualquer. Deveria haver uma lata para
veres escondidos são a essência das cidades.
metera-se com traficantes, mas mesmo
o amor entre a coleta seletiva de lixo. Mas
Aqueles braços eram como um imenso
assim sempre haveria um espaço na vida,
não, não, as pessoas o guardam consigo e
beijo e neles me guardei durante toda a
mesmo que mínimo (aquele que há en-
o levam para o jantar, com a esposa e com
noite. Foi então que um caixão apareceu
tre a morte clínica e o paciente estendido
o amante, entre uma e outra senha. Levam-
no meio da sala. Eu, confortavelmente
sobre a mesa de cirurgia), para a vida. Da
no para as reuniões sobre superfaturamen-
anestesiado, beijei-lhe o rosto, e, antes
mesma maneira que ela sabia que eu era
to e para o jogo de futebol com o filho, no
do pássaro com odor de óleo diesel abrir
o sujeito mais solitário da cidade, e que
Playstation. No amor cabe tudo, o catarro,
seu voo, depus o amor, quieto e esquecido,
meu cigarro estava acabando e que eu
a lágrima, o esperma, o sangue, o carinho,
atrás do seu sono – perigosamente próxi-
diria que em algum lugar entre o século
a mentira, a verdade, a sujeira. É amplo
mo ao açúcar dos sonhos.
Ela,
22
versos de
circunstância em torno de
eu não entendia
um disco repetindo-se
& ela se mexia tanto ao meu lado
uniforme
& aqueles bancos apertados
a dor presente
Fabiano Calixto nasceu em Garanhuns, PE,
o ar condicionado gelando tudo
como um salmo
em 1973. É anarquista e também mestre em
(os brincos dela, o meu humor)
esquecido na página
Teoria Literária e Literatura Comparada
mais de uma hora cruzando
carburada de um baseado
ruas, avenidas, parágrafos –
pela USP. Tem poemas e artigos publicados em vários jornais e suplementos do
Brasil e do exterior. Publicou os seguintes
o livro gritando alto
& continua
livros de poesia: Algum (edição do au-
num mundo surdo
redemoinho melódico
tor, 1998), Fábrica (Alpharrabio Edições,
depois de arrumar-se
um transe, incêndio
2000), Um mundo só para cada par
mais algumas dezenas de vezes
prelúdio & fuga
passou batom nos lábios
(Alpharrabio Edições, 2001), Música possível (CosacNaify/7Letras, 2006), Sangüínea
(Editora 34, 2007) – este finalista do Prêmio
o sol já estava no meio do céu
um molusco carregando a parede
Jabuti de 2008 na Categoria Melhor Livro
quando ela se levantou
como um código
de Poesia –, e A canção do vendedor de
pipocas (7Letras, 2013). Traduziu poemas
foi então que percebi que
três pequenos pássaros
uma mosca decorando a paz
voavam em suas costas
do prato sujo
de Gonzalo Rojas, Allen Ginsberg, John
Lennon, Laurie Anderson, entre outros.
Traduz atualmente as obras de Kenneth
Rexroth
e
Benjamín
Prado.
Editou,
contínua
com Angélica Freitas, Marília Garcia e
agonia do futuro
Ricardo Domeneck, a revista de poesia
rezando em mim
como um relógio
Modo de Usar & Co. Atualmente edita O
Almanaque Lobisomem. Seu novo livro
de poemas, intitulado Nominata morfina, sairá em breve.
Luana
Vignon
23
blindagem
barata
tenho uma caixa feita de ossos
para evitar desvarios
de qualquer músculo burro
ou tive, sei lá
o tal músculo bateu
inchou, murchou
deu umas cambalhotas
explodiu e se recompôs
é assim, o canalha
a gente se acostuma
pior são os estilhaços
um pedaço qualquer de alegria
que fica preso em lugares
de difícil remoção
tem o frio na barriga
tem o nó na garganta
tem uma sensação estranha
no céu da boca
tem o medo
tem o cheiro
tem sua imagem desaparecendo aos poucos
em meio a nuvens de fumaça
cartões de embarque
malas, roletas russas e saltos no escuro
quando olhei no fundo dos teus olhos
percebi que redes de proteção seriam inúteis
e que absolutamente nada poderia ser feito
para impedir que todos meus músculos
entrassem em colapso.
(inédito)
24
Não quero que
Shirley desapareça
Shirley é o tipo de pessoa especializada em perder aviões
algumas pessoas realmente nunca conseguem partir
tudo se transforma previsivelmente em desculpas
(sete doses de tequila
e um flerte com um argentino chamado Peco
não foram suficientes para impedir uma salsa
às cinco da manhã)
Embora Shirley não consiga permanecer por muito tempo
no mesmo lugar
é o tipo de pessoa que nunca consegue dizer adeus
seus olhos estão sempre fechados
sonhando com o dia em que possa simplesmente ficar
sem ressalvas
Shirley bebeu dezenas de cervejas com sua amiga Rebeca
Rebeca acha que uma amizade se faz com muitos brindes
e eventuais pedidos de desculpas
principalmente após algumas doses de tequila
e um discurso fervoroso em defesa de Caio Fernando Abreu
amizade é algo como carregar uma bomba armada dentro do coração
(poema dedicado a Thaís Regina, publicado na coletânea Peso Pena, Black Demon Press,
São Paulo: 2010)
25
Seu herói foi
embora
Levou junto aquela coleção de
tampinhas
e transfix
logo você, campeão de bafo
e burquinhas
logo você que nunca repetia o mesmo
enredo
você deixou a porta aberta
porque disse que não tinha medo
mas a solidão não é algo que acontece
de repente
você quase escutou
aquela canção do Solomom Burke
abafada pelo barulho do chuveiro
mas agora é só essa ligeira impressão
deixada no corrimão
da escada
só essa foto desgastada
daquela antiga polaroid
esquecida numa gaveta
seu herói foi embora
junto com o meu
os dois pularam daquele viaduto
na marechal rondon
era uma manhã de chuva
e operários voltavam pra casa de
bicicleta
era segunda-feira
e a gente se esquecia daquela conversa
quando ele dizia que nem tudo ia dar
certo
quando a gente nem queria mais ele
por perto.
(poema publicado no livro “Seu herói foi
embora”, Yiyi Jambo, Paraguai: 2010)
Patos de
borracha
(para Adriana Brunstein)
Cometemos uma pequena
chacina
Pela manhã
Os patos não têm sangue azul
(lembranças)
Nem mesmo os de borracha
Após o café nos servimos de
Sanduiches de vento
Para aplacar o silêncio que a chuva traz
Para tirar esse animal (o amor)da toca
E fazê-lo partir com as outras aves
Noturnas.
(inédito)
26
Cuidado
Foi o que eu disse:
Cuidado,
eu sempre aposto em perdedores.
Logo eu,
que nunca imaginei a convivência pacífica
entre mim e uma garrafa de tequila.
Ficamos assim,
cara a cara
sem uma acabar com a outra
faz dias.
E têm essas escolhas absurdas,
o destino é um albino meio maluco
vestido de cowboy
gritando 22
dois patinhos na lagoa.
Bingo. Eu digo.
E saio sacudindo os cabelos,
inventando um novo jeito de andar dentro de casa.
(poema publicado na Revista Coyote 17, Coyote Edições,
Londrina: 2008)
Luana Vignon, 32 anos, poeta, escritora e editora. Publicou os livros Seu herói foi embora (Yiyi
Jambo, 2010), Os Tiros vêm do paraíso (Panelinha
Books, 2010) e participou de algumas coletâneas
e publicações virtuais. Atualmente é uma das organizadoras da Festa Soul Kitchen, evento que
promove a interação entre literatura, música e
gastronomia
Lubi
Prates
sobre você impressiona-me
esse viver em looping
voltas e voltas e voltas e
fazer refazer um circuito
de fórmula I
ao redor do próprio umbigo
sobre você impressiona-me
o não-rompimento, uma continuidade
nadar com uma âncora presa ao s pés
sobre você impressiona-me
o não ter fim.
28
boa vista
descobri pelo google maps:
da minha casa até seu ouvido são
4.654 quilômetros
implacáveis
distância que torna-se perto quando
eu, encantada
recordo seu rosto antes de
despertar:
minha eterna boa vista.
furto
não notei quando me furtei.
amor foi embora, mas
pode devolver minhas palavras?
29
Possessividade II
o que faço é te negar
pelo que já disse tantas
vezes: possessividade
e viver em círculos com
frases frases que não são
poemas.
ignorar os atalhos
do seu corpo: ignorar
porque me vem sempre
como inspiração
não ir direto ao ponto
sua presença.
ligar todos os seus poros com dedos
e não te quero
e língua
lábio palavra idioma
de outrém
caminhar por seu corpo
não quero
repartir minhas migalhas.
sem usar meus pés.
Nasceu em 86, em São Paulo. Estudante de
Psicologia, atua como consultora e professora de recursos humanos e orientadora de carreiras. Traduz e participa em
elaborações de projetos fotográficos. Tem
publicado o livro “coração na boca” e algumas participações em revistas literárias
nacionais.
Marília
Garcia
31
na 19ª edição da
meia maratona
de lisboa
dificilmente se arranca
a lembrança mas na lista de notas
estou sentada em uma
padaria, tem um suco de
mamão, um garçom que não
olha pra mim, um quadro
negro na parede com o cardápio
anotado em giz branco.
da janela de manhã
os corredores da maratona
atravessavam a ponte.
sou brasileira, estou em
lisboa sentada em um balcão
perto da ponte em algum
dia de abril. você lembra?
32
ela traz sua lista
que passava na calçada em frente.
e enumera os dados da história:
aí você vê um mamão na vitrine
uma manga, uma feira ao ar livre
e pensa, mesmerizada:
e algo que você dizia sobre
aqui
ser tropical, assim:
tem
– afinal, eu sou tropical!
mamão
mas o que era ser tropical,
então pede a ela um suco de
pergunto dizendo que não me
mamão
imagino falando essa frase,
mas ela, escandalizada
e ela dizia algo sobre
– mas isto é uma fruta trop’cal.
o tropismo
só usamos para colocar
ou o braço se erguendo
alguns pedaços
até que você pudesse
na salada de frutas.
chamar o garçom.
depois de externada
ou seriam os
tanta indignação
braços atravessando a ponte
com o desperdício,
em sinfonia, maestros em silêncio
depois de um longo
no movimento de se projetar correndo
longo longo sermão
para frente? pergunta tentando
– você lembra se tomou
buscar a lembrança:
o suco trop’cal?
– queria um suco de mamão,
por favor. você lembra?
na minha lembrança
existiu sobretudo um mamão.
você entra naquela padaria, uma senhora
portuguesa vem te atender.
ela que todas as vezes
acenava para o neto
33
o que é um começo
estou procurando a receita
para fazer um crepe francês
um crepe francês
de emental derretido
e um crepe doce
um crepe doce francês
feito de farinha de centeio
com açúcar mascavo derretido
e manteiga président
então faço uma busca
pela receita de crepes
para fazer um crepe francês
e no meio da busca pela receita,
ao buscar pela palavra crepe
encontro uma tradução da inês oséki
e entendo nesse momento
que fechar pode significar abrir.
mas isso depende,
você me diz
e pergunto mas o que seria um começo?
pensando que fechar ali só podia ser o fim
o fim era sem começo me convenço
lembrando daquele dia
começo era outra coisa ainda estou
aprendendo
mas entendo que fechar em português
queria dizer que a forma de uma
pode significar abrir
cidade muda mais rapidamente
só que a vida não disse isso
do que o coração dos mortais
quando precisei
queria dizer que
talvez porque estivesse vivendo
embora meu coração ainda buscasse
em outra língua, você me diz.
uma lembrança qualquer
talvez, não sei bem
um vestígio, um sinal que pudesse
ser o recomeço, ao chegar no jardim
na tradução do poema
a loja de crepe já não existia
dizia inês oséki
tinha fechado suas portas
que o vendedor de crepe
eu queria dizer que embora buscasse
tinha acertado o negócio
começar,
enquanto isso, o poema original dizia
fechar ali era o fim.
que o vendedor de crepe
tinha fechado o negócio
querendo dizer que o vendedor de crepe
tinha falido, que
tinha fechado a loja
fechar era literal:
uma porta em movimento
pronta para bater
isso era o fim
deserto falência.
fechar não poderia mais
Marília Garcia nasceu no Rio de Janeiro, em 1979. É
autora dos livros 20 poemas para o seu walkman
ser positivo e nem significar
(Cosac Naify, 2007) e Engano geográfico (7letras,
um acerto bem-sucedido.
2012). Coedita a revista Modo de usar & co. e, atualmente, trabalha com tradução.
34
Mirella
Carnicelli
cincos de agosto
amassou o quarto filtro manchado
estava se sentindo disposta: uma dorzinha
de vermelho no cinzeiro de vidro e olhou
chata, “coisa de mulher”. ela sabia que o
o relógio pela primeira vez desde que
chefe nunca soube lidar muito bem com
chegou no café onde tinham se visto pela
coisas de mulher (e isso ele tinha confi-
última vez.
denciado numa cerveja de departamento.
vinte e oito. oito e vinte e oito.
contou toda a história chatíssima da sua
no mesmo dia, às quatro e doze, fingiu
educação sentimental. quatro mulheres
uma dor de cabeça usando uma cara que
ao todo: ana maria, solange, maria hele-
ensaiou muito bem no espelho antes de
na e uma que ele não mencionava. justa-
sair de casa. disse para o chefe que não
mente a mais fascinante: a que fez com
35
que ele se decidisse comprometer com
ajeitou o cabelo de um jeito diferente. pu-
vezes não. mas na quinta, quarenta e cin-
a solidão) e ele prontamente lhe pagou
xou tudo para um lado e enfeitou o outro
co minutos de atraso significa que ele vai
um taxi para que ela pudesse ir para casa
com uma presilha nova. demorou vinte
chegar a qualquer momento.
tranquila, descansar, tomar uma aspirina
e três minutos e algumas bolas de algo-
e será que brigará com ela quando des-
e estar sorrindo e falante na reunião que
dão para conseguir reproduzir nos olhos
cobrir que ela começou a fumar? e será
teriam na manhã seguinte. típico.
a pintura que tinha arrancado da revista
que por isso iria embora de novo? será que
se o chefe prestasse um pouquinho de
do dentista, duas semanas antes. vestiu o
ele engordou? que ele ainda tem aqueles
atenção, perceberia que ela fazia a mes-
casaco e percebeu que ele agora apertava
cachos? que amanhã chove? será que ele
ma coisa, com a mesma cara ensaiada,
um pouco nos braços. teria percebido que
ainda faz cara de dor quando goza? que os
no mesmo dia do ano, há cinco anos. nos
também a saia azul apertava um pouco e
anos não conseguiram destruir o sorriso
três primeiros – antes de descobrir como
não mais lhe caía tão bem quanto antes.
de criança? será que ainda usa o mesmo
apertar no chefe aquela parte que doía –
mas se dedicasse alguns minutos a mais
relógio que tantas vezes lhe anunciou as
ela usou desculpas menos verossímeis do
ao espelho, ela ia se atrasar. e se hoje ele
horas tempranas? quantas vezes em seis
que absurdas. o chefe nunca fez pergun-
chegasse na hora?
anos será que se troca a bateria de um re-
só se permitiu os trinta segundos de
lógio? será que ele se esqueceu do acordo?
já em casa, demorou a encontrar o saca
passar o batom vermelho que um outro
será que ela era, dele, a mulher que ele
rolhas que ela nem sabia se ainda tinha.
homem num outro café uma vez lhe disse
não mencionava?
tomou duas taças de um vinho que não
que despertava pensamentos lúbricos. na
nove e meia. sete cigarros.
sabia ser bom ou ruim. acendeu uma vela
ocasião, ela foi ao banheiro procurar na
pagou a conta, vestiu o casaco e voltou
no banheiro e se deu um banho – o ba-
internet do celular o que “lúbrico” signi-
para casa pensando em qual roupa usará
nho longo da semana, que ela geralmente
ficava. retocou o batom e menos de uma
no ano que vem.
tomava aos sábados. raspou os pêlos das
hora depois, não tinha mais nem sinal de
pernas para vestir aquela saia azul que,
vermelho na boca.
tas.
um dia, ele disse que era bonita. passou
hoje, tudo o que ela queria era que ele
na pele um óleo de banho que tinha sido
tivesse pensamentos lúbricos por causa
presente de uma amiga vaidosa. esfregou
daquele batom. mas acontece que o ba-
especialmente o óleo na barriga. porque
tom não resistiu ao quinto cigarro. oito e
hoje está sol e deu tudo certo e ele com
quarenta e cinco. ela não podia sair para
certeza vai passar a mão na barriga dela.
o banheiro retocar. das últimas quatro
36
ricos no Rio
se hoje, como nos jogos da infância, eu pudesse escolher qualquer coisa do mundo pra querer, eu com certeza ia escolher ser
rica no rio com você.
quando eu conheci você, eu não conhecia o rio. e fiquei assim,
ignorante do rio, por muito tempo. por todo o tempo em que eu
passei me educando em você.
quando eu, enfim, conheci o rio, no depois do eu-e-você, não
foi nenhuma surpresa. porque eu conhecia você. e depois de
amar tanto você, era óbvio que eu também ia amar o rio.
porque você sempre teve esse jeito de quem faz parte do rio.
o érre sutil. o jeito que você abre a palavra e faz o érre sumir.
o jeito que a sua voz desvanece e deixa tudo aberto. do mesmo
jeito que você sempre deixa todas as coisas abertas. o seu problema com portas.
os olhos fechadinhos. como se você tivesse o sol o tempo todo
virado pra você. e o jeito como essa luz refletia e iluminava os
meus olhos quando nós nos orbitávamos.
os cachos. próximos de estarem sujos. e como eles brilhavam
e se mexiam de acordo com seu passo. como quem saiu do mar
e se secou na areia. a sua maneira de quem simplesmente não
se importou o suficiente.
as roupas largas de algodões e linhos. o arrastar dos chinelos.
o seu passo.
como ricos no rio, a gente vai frequentar pouco a praia. e
sempre elegantes. e com o cachorro. é claro que, como ricos no
rio, a gente vai dar um jeito de o cachorro não morrer nunca.
e a gente vai passear o cachorro cumprimentando conhecidos
bronzeados. e chegar atrasado em coquetéis na livraria da travessa. deixar umas palavras baratas sobre o papel da crítica na
literatura e logo depois ir embora. a gente vai em restaurantes
caros de qualidade questionável nas travessas da orla, encontrar nossos colegas de circunstância: os outros ricos no rio. e lá
a gente vai usar o nosso humor mais domesticado. a gente vai
falar sobre a vida amorosa do amigo divorciado e sobre como
o pedido de concordata da american airlines vai afetar a nossa
próxima viagem pra macau, johanesburgo ou ilha da madeira.
a gente vai ouvir coisas sobre estúdios de pilates, alimentos orgânicos e personal trainers. e a gente vai se cansar bem rápido
e voltar pra sacada com vista pro mar e pro cachorro. no dia seguinte, a gente vai beber cerveja na praia com os nossos amigos
de coração. e lá, a gente vai usar o nosso humor mais precioso,
a gente vai falar de coisas da alma e depois vai rir dos colegas
ricos no rio do dia anterior.
e esse vai ser o nosso hobby favorito. rir e rir muito. rir sem
parar. rir até morrer. de nós e de todos os outros ricos no rio.
37
em
automático
são poucas as coisas nesse mundo que
têm a capacidade tão incisiva de me colocar a vida em perspectiva como o subir-edescer de um avião. e por dois motivos:
o primeiro, e também o mais óbvio,
pelo distanciamento físico que um vôo
de culatra. numa coxinha estragada. eu
odeio aviões e agora me parece tão imprudente assumir isso assim, por escrito
e publicamente.
cerca de 80% do tempo que eu passo
dentro de um avião, gasto pensando: na
morte. incêndios. explosões. asfixia. carbonização. nos outros 20%, consigo, não
com pouco esforço, distrair o medo pen-
de avião oferece. estar a trinta e cinco mil
sando em: sexo. música pra fazer sexo. re-
pés da própria vida faz com que ela dimi-
feições fartas. mar. gramados. todas essas
nua em tamanho e praticamente suma
coisas que, no final, não deixam de ser
em meio à grandeza absurda da cidade
feitas da mesma matéria que a morte.
vista de cima. diminuída em tamanho,
de certa forma, cada vez que um avião
também acaba reduzida em relevância e
acelera pra me levantar vôo é como se
isto nos atira à constatação inquietante
me cravassem no peito um termómetro
da pequenez da nossa existência, do nos-
bizarro de medir se estou cuidando bem
so corpo e de tudo que o orbita e o penetra.
de mim e se estou sabendo ser feliz. como
o segundo motivo, menos universal,
um diálogo no escuro com os recônditos
creio, é decorrente do medo nem um pou-
do próprio coração. talvez uma versão em
co razoável que eu tenho de aviões. pou-
miniatura dessas experiências de quase-
cas coisas me parecem mais absurdas do
morte que a gente ouve por aí.
que um monte de lata pressurizado que
da mesma forma, subir num avião
acelera e levanta vôo. danem-se as leis da
com alguém é abrir as portas pro coração
física que permitem que isso aconteça e
se manifestar sem filtros e despejar sobre
dane-se a estatística que me conta que é
nós suas entranhadas opiniões.
mais provável que eu morra num aciden-
uma vez eu subi num avião com um
te de carro. num hipopótamo. num tiro
homem e a idéia de morrer ali, ao lado
38
dele, me apavorou de tal maneira que eu
não consegui parar de tremer durante
as seismilequinhentas horas que durou
aquele vôo. eu não queria que aquela mão
pegasse a minha no instante em que o
motor parasse. nem que aquela mão me
puxasse pr’aqueles braços quando começasse a queda. nem que fossem aqueles
ouvidos a ouvir minhas últimas palavras
ou que fosse aquela a última voz que eu
ouviria nesta vida. eu não queria estar ali.
claro que eu teria percebido mais cedo
ou mais tarde, mas o distanciamento do
resto da minha vida (primeiro motivo) e a
iminência da morte no monte de lata voador (segundo motivo), me pouparam de
alguns momentos (meses, talvez até anos)
orbitando uma pessoa cuja mão eu não
queria apertar durante a queda.
e nisso, sou grata às tantas horas intranqüilas e ao medo irrazoável. eu o alimento. vejo filmes sobre histórias horrorosas. cuido do medo e faço paz com ele.
porque se essa vida não é senão abrir
espaço aos encontros com as pessoas cujas
mãos a gente gostaria de apertar quando
sofre de L.E.R no coração desde os 4 anos. tem 3 medalhas
nosso avião cair, então eu não sei.
de ouro de campeonatos de par ou ímpar. foi diagnosticada
por uma cigana como tendo sido um crepe suzete na vida
passada. escreveu mais de 500 cartas que nunca enviou.
“mirella carnicelli” é apenas um pseudônimo
Múcio Góes
amar não é coisa
para qualquer um
não conheço ninguém
feliz sozinho
antes / durante / depois
amar é coisa para dois
40
me espere
de braços abertos
só feche
os braços quando
eu chegar
só feche os braços
e tudo
comigo dentro
aquilo
que foi tão lindo
ora jaz
lá no fundo
tudo findo
feito um barco
indo
41
era um punhado de sol
o diabo
sol podia ser
até que tentou
aquele brilho nos olhos
mas o meu pão
da moça que dançava
foi deus mesmo
ciranda na tarde
quem amassou
à beira-mar
Múcio Góes, poeta pernambucano, de verso de
baque solto, rima & remo. apreciador das simplezas, domador de palavras tardias, defensor da
lira delirante, do verso rasteiro, do relâmpago no
papel. passa uma chuva em recife, e escreve diariamente no facebook.
Edição
Lubi Prates e Bruno Palma e Silva
Fotos
Camila Lordelo
Projeto gráfico
Bruno Palma e Silva
Um agradecimento muito especial a
Stephanie Borges, que nos ajudou na
ideia inicial e batizou a revista.
A bênção, madrinha!
A Parênteses tem distribuição livre e gratuita, sinta-se à vontade para compartilhar.
Todos os textos e imagens aqui reunidos são, e sempre serão, de propriedade de seus autores.
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