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#01 | setembro 2013 distribuição on-line gratuita Ana Guadalupe Bruno Palma e Silva Edu Suppion Fabiano Calixto Luana Vignon Lubi Prates Marília Garcia Mirella Carnicelli Múcio Góes 5 9 14 Editorial 3 Créditos e contato 43 18 As fotos da capa e ao longo da edição são de Camila Lordelo 31 23 34 27 39 3 b em-vindos (não que “bem-vindos” Parênteses, no nosso caso, é uma re- seja o termo correto para quem abre uma vista literária independente que será dis- revista, e ainda mais virtual, mas na falta tribuída gratuitamente na Internet, em de algo que se aplique melhor) ao nosso formato PDF e ePUB, com circulação a primeiro número! princípio trimestral. Parênteses, do grego (não que falemos grego) παρένθεσις, inserção. No nosso caso, é um projeto com meses de planos, de pesquisas, de gestação que Entre dois parênteses cabe uma ob- agora vem à luz. Parênteses são conversas. servação. Entre dois parênteses cabe uma São anseios, são colaborações, são opi- explicação (ou uma dúvida), cabe um co- niões. São, por que não, sonhos. Parênte- mentário, cabe uma ressalva, um esclare- ses é amizade. cimento. Entre parênteses, um detalhe (mas às vezes um detalhe pequeno é grande coisa). Bastante coisa. Entre dois parênteses cabe (será?) um mundo inteiro. Não temos nenhuma grande pretensão, apenas a intenção sincera de divulgar bons trabalhos de prosa e poesia. E, já que começamos com “bem-vindos” e ainda na falta de termos que se apliquem, sintam-se em casa. Estejam todos à vontade. Ana Guadalupe vamos perder e retomar o contato vamos perder o contato? visto que não há motivo para mantê-lo por meio de encontros e recados se a cada dia acordamos outro e não vamos manter nem em sonho nosso outro de ontem outrora foi mais fácil cortar os laços todos vamos retomar e perder o contato só no arquivo permanente do passado o outro ficará pra sempre lacrado prêmio que apenas antecipamos cromo raríssimo pacote intacto 5 6 quando cortam a internet quando cortam a internet coisas absurdas acontecem daqui a pouco mas não sem a tentativa de refresh depois quando não existe um lapso passageiro depois não existe só o agora continua insistente se fosse um homem ou mulher de olhos grandes o agora telefonaria muitas vezes até que alguém atendesse pra que a gente se gostasse no primeiro instante e vivesse dias inteiros estragados por detalhes aparelhos com defeito, despencamento de cabides um amigo inconveniente, o gênero errado de filme alergia a pólen alergia a cabelos e do refresco de cogitar antes raios insetos no aparelho quando a página some levando embora um link que se perderá pra sempre, é aí que uma coceira aparece então descobre-se que o eu lírico carregava meses de urticária ou brotoejas ou micose da pior espécie quando ninguém mais digita palavra nenhuma, nosso herói ou heroína se levanta com tontura pra ir à esquina descobre árvores inesperadas na sacada, quatro ou cinco parentes desacordados na escada de casa infeliz em santa catarina 7 fui infeliz em santa catarina em manhãs tétricas voltando pra casa em tardes chuvosas escorregando nas ruas de chinelos e camiseta branca com um pássaro na estampa em santa catarina fui infeliz na maioria dos dias cultivei bichos de pé e outros parasitas os animais de casa tiveram pulgas e é claro que morreram jovens no vento fatal de santa catarina os eletrônicos mofaram ao mesmo tempo em orquestra não sobrou aparelho de som ou secador de cabelo pra movimentar o quarto fui infeliz em santa catarina quando meu primeiro amor me chamou pra um encontro que não passava de um culto religioso em que apenas o espírito santo me beijaria em santa catarina fui infeliz em casa, no ponto de ônibus, na ponte, na barraca de crepes, na pastelaria enquanto os catarinenses abriam os dentes e repetiam “meu senhor, guria” comprovei nas praias perigosas de santa catarina que as águas do rio tendem a te afogar no mangue e as águas do mar podem trazer o cadáver de um homem em pleno domingo 7 8 fitas pra segunda foto e comprovante de residência pra abrir a ficha que inaugura uma lista nunca cumprida nem com todos os sábados e dezembros da sua vida ana guadalupe nasceu em novembro de 1985 em londrina (PR), estudou letras em uma história sem fim com dezenove sequências maringá (PR) e hoje mora em são paulo todos os retornos, regressos e referências (SP), onde trabalha como redatora. seus um dia que se repetirá ao infinito num longo close no rádio-relógio poemas foram publicados em antologias como peso pena, be my mafia family, escuela brasileña de antropofagia (méxico e chile), cityscapes (estados unidos) e otra é melhor que descubra agora línea de fuego – quince poetas brasileñas todas as fitas que você leva pra casa ultracontemporáneas estarão pra sempre num espaço escuro do móvel da sala (espanha); sites literários como o portal literal, as escolhas afectivas, germina, confeitaria e the scrambler; veículos como o globo, o estado de s. paulo, zero hora, correio brazi- o móvel da sala é você em versão animada liense, plástico bolha, lado7, suplemento pernambuco e esferas; além de projetos/ as fitas com devolução marcada pra segunda são suas sem volta e sem capa (embora o papel diga segunda) exposições como blooks (idealizada por heloísa buarque de hollanda), obra aberta (pinacoteca do estado de são paulo), poema para viagem (mostra SESC de artes), estão cravadas à sua memória paisagens & poéticas (bienal internacio- guardadas num canto da sua nuca nal de são paulo) e na tábua (do escritor na pele empoeirada das suas costas paulo scott). seu primeiro livro, relógio de pulso, foi publicado pela ed. 7letras em 2011. ana escreve poemas no blog roxy carmi- talvez você devolva amanhã chael nunca voltou e bobagens no twitter talvez nunca @anaguadalupe. 9 Peixe dourado Lembro de ter lido uma vez, coisa dessas com que se esbarra por aí, que um No entanto, não me lembro se li ou in- peixe dourado deixado num aquário sem ventei que, devolvido ao antigo aquário luz perde a cor, acaba só um vulto esbran- iluminado, o peixe retoma sua cor, torna- quiçado. É um fantasma. Lembro de ter se de novo o que nasceu para ser e o que pensado que tem algo de trágico e muito marca, afinal, seu lugar no mundo: volta profundo nisso. a ser dourado. Pois se um peixe dourado deixa de ser dourado, o que resta dele? Bruno Palma Assim são os peixes, assim somos nós. (Assim sou eu, pelo menos.) Aos pedaços com os braços para trás é o dono da outra uma certa rua numa certa altura, do raio parte. Mas temos convivido pacificamente. de luz vermelho –só do vermelho– que Volta Não chego ao ponto de tomar casas in- passa pelo vitral lateral da basílica numa teiras, não sou assim possessivo. Mas sou certa época do ano, do barulho oco que o dono, por exemplo, do telhadinho em faz quando se pisa numa certa pedra sol- forma de cone na entrada de um casarão, ta do calçamento. e meia me pegam olhando para um banco de praça, um tufo de grama que brotou no meio do asfalto e me puxam as orelhas porque fiquei mudo e me perdi na conversa. O pessoal costuma não entender. Sei lá quando começou; sei que é de menino. Uma vez me mudei de cidade, de estado, e tive de começar tudo do zero, foi uma barra. Agora, anos depois, já estou bem estabelecido e sigo firme no meu ofício, quem sabe um dia os especialistas em RH inventarão um nome: eu me aproprio de pedaços da cidade. É impossível amar uma cidade inteira, o que me interessa são só uns pedacinhos. Alguns me agradam em especial, então eu os tomo para mim. Meu inventário é repleto de árvores: tenho, por exemplo, uma meia dúzia de paineiras, dois pessegueiros e três figueiras. Araucárias são oito, desde que uma foi derrubada semana passada, vítima de gente incomodada com os galhos caídos no quintal. Sou dono também de uma cerejeira, mas não dela toda: são meus só os galhos do lado de cá. Tenho quase certeza de que um senhor japonês que volta e meia encontro caminhando pela praça assim como da janela rodeada de trepa- É tudo meu, pago com sorrisos silen- deiras no segundo andar de um predinho ciosos, olhares admirados, suspiros de e dos lambrequins na varanda de uma satisfação. Às vezes à vista, às vezes em casinha de madeira. O relógio sem pon- prestações. teiros na fachada de um sobrado colonial caindo aos pedaços: é meu. Mas não é assim tão fácil, não ganhei nada assim, de mão beijada. É trabalho Uma vez cheguei a ter um anjo de tú- duro, muitos passeios, muitos torcicolos mulo, um querubim magnífico de asas de olhar para cima, muitos esbarrões no abertas e espada em punho que aparecia poste porque estava olhando para outro por cima do muro do cemitério, mas o aca- lado. Sem contar que é difícil ser dono de bei trocando por um metro e meio do ca- tantas coisas; preciso sempre passar pelos minho de pedras em frente de uma capela. meus pedaços de cidade para ver se tudo De algumas coisas eu sou dono só em vai bem. certos horário do dia. Aquele trechinho Mas, tirando um portãozinho que foi da alameda só me interessa às quatro e arruinado por uma nova pintura cinza, quinze da tarde, quando a luz passa en- sem graça e quase criminosa, não tenho tre os galhos dos álamos e tinge a fachada do quê reclamar. da charutaria de um tom esverdeado. Já Esses dias, tenho desviado meu ca- a poça que amanhece na praça depois de minho por uns quarteirões para passar uma noite de chuva só é minha pela ma- numa rua onde dez ou doze ipês amare- nhã, quando os sabiás vão tomar banho los coloriram o chão e o teto de um dou- por lá; depois pode ser de quem quiser. rado que, por Deus, só vendo para saber. Já outros bens são mais difíceis de lis- Estou me segurando para não tomá-los tar. Sou o feliz proprietário do cheiro de todos, de uma vez só, para mim. Acho que café que se sente quando se atravessa não resistirei, amanhã cedinho passo lá. 10 11 Parábola dos porcos Assim que ele, segurando a respira- baixo dos galhos; vai que uma bomba des- — Aquela grande ali é a lua. Meu vô as- sas cai na cabeça?–, e seguir na ponta dos sistiu uma vez na televisão que uns ho- pés em direção do chiqueiro. A lanterna mens viajaram até lá. continuou desligada mesmo: era noite de lua cheia. E que lua! O garoto repetiu com cada um dos filhotes –a mãe era pesada demais, mas ção, não pôde ouvir mais nada além da A porca esparramada de lado, os por- quem sabe quando ele crescesse e ficas- coruja no pomar, o menino segurou fir- quinhos aconchegados uns em cima dos se mais forte?– o mesmo ritual. Mostrou me a lanterna e saltou, já de tênis e tudo, outros. O avô dizia que porco é bicho es- a todos o Cruzeiro do Sul –pouco prová- de baixo das cobertas. Esqueceu da tábua perto, sabe quando a gente chega com co- vel que um deles se aventure muito mais solta do assoalho e, quando a madeira mida na mão e quando chega com a faca longe do que a cerca atrás do chiqueiro, rangeu alto, ficou ali paralisado, pensan- escondida debaixo da camisa. Mas o me- mas enfim–, a lua cheia, as galáxias e até do que tinha botado tudo a perder. Mas nino chegava com coisa melhor e, por isso, um avião que passava. não: o avô já roncou logo em seguida. Ufa, nenhum reclamou quando ele, chegando à missão. de mansinho, agachou rente ao cercado. É que, mais cedo, segurando um pedaço de broa de milho numa mão e uma revista Missão que era nobre, que valia o peri- Foi ganhando confiança, acariciou pri- dessas de curiosidades na outra, o menino go de uma aventura na madrugada –para meiro a mãe e depois os filhotes. Esticou descobrira que os porcos não conseguem quem dorme à oito, qualquer dez horas já os braços no meio das ripas e pegou um olhar para cima. Foi um momento de re- é madrugada. O menino respirou fundo, dos sete. Subiu o porquinho até em cima velação. Os porcos não podem ver o céu, girou a maçaneta e saiu correndo de uma da cerquinha e notou, com alívio, que ele e lhe pareceu injusto que alguém viva –e vez só, sem olhar para cima –não precisa- não se agitava. E então carregou-o no colo justo no campo, onde não há postes que va; nessa noite não havia morcegos nas até o meio do terreiro. apaguem as estrelas– sem nunca ver o céu. tábuas do telhado da varanda. Eram agora as férias de inverno. Uns Na roça, onde não há postes que apaguem as estrelas, o céu cintilava: Daí a missão nobre, daí ele estar no meio do terreiro, com os braços cansados de segurar filhotes acima da cabeça. dias antes, o pai e a mãe o haviam deixa- — Olha só como é bonito. Tá vendo do –junto com a mochila, a lanterna, o te- aquelas bem ali? É o Cruzeiro do Sul, eu Talvez, na ingenuidade, ele nem tenha lescópio e uma pilha de revistas– no sítio aprendi na escola que é só saber achar ele notado a indiferença dos porquinhos. Ar- do avô. A irmã teve que ficar na cidade, de no céu que a gente nunca vai se perder. risco dizer que os bichinhos não deram recuperação em português. Ficaram os dois ali, um momento meio A coruja girou a cabeça, curiosa, quan- solene, meio engraçado: um menino com do viu a sombra passar pelo galpão, con- os braços esticados, um porquinho sus- tornar a jaqueira –não é bom passar por penso lá em cima. grande importância. Os porcos que viram o céu. Mas para o menino foi a melhor noite nas melhores férias de todas. 12 P.S. Uma noite dessas coloco um capuz e saio com uns papéis debaixo do braço E aí junto com esses cartazes de amarração para o amor com pagamento após o resultado prego um outro que diz “mas que tipo de amor pode começar amarrado?” Nascido em São Paulo, 1982, e adotado por Curitiba, 1994. Prefere sempre se esconder, mas alguns textos seus, acidentalmente, já foram parar em algumas revistas e até no vestibular. É designer gráfico, cozinheiro de fim de semana, cervejeiro caseiro e pai do Fábio. Ainda não se denominou escritor, mas mantém -respirando por aparelhos- o blog Acepipes escritos. 14 Edu Suppion escreva, a poesia. escrever poesia é viver quantas vezes mais for possível viver. não garante uma vida melhor, também não acredito que faz de nossa vida pior. mas, pelo menos, pode-se viver livremente. nem que seja por algumas linhas. 15 o sonho sonhado. um dia, dizem, não sei se é verdade. um os humanos, dizem, estavam com muito dia, dizem, os mortais queriam ser deuses. medo e tremiam, ficaram mudos e se abra- e lá foram. subiram os montes, andaram çaram. um se colocou à frente. “temos um quiserem enquanto dormem. poderão fa- pelas trilhas e chegaram à ponta da pedra pedido. queremos ter poderes dos deuses zer o que quiserem, poderão voar, subir mais alta. de lá podiam ser ouvidos. os também.” foi um riso só vindo das carru- montanhas, nadar, ficar invisíveis, carre- mortais se reuniram, e gritaram, juntos. agens. “querem ser deuses?” “não sabem gar casas, atravessar rochas, ser imortais, lá estavam os deuses bebendo, comendo que isso é impossível?” foi quando uma desfrutar qualquer amor, construir qual- e se divertindo quando ouviram aquele linda deusa surgiu de sua carruagem. “eu quer coisa. serão deuses, todas as noites. som. “o que é isso?” “quem ousa gritar as- posso fazer de vocês deuses, vocês podem dentro de vocês. apenas dentro de vocês.” sim?” “são os mortais que gritam?” pois co- ser deuses, claro que podem!” “está lou- e os deuses riram, e ficaram olhando os locaram suas coroas e desceram com suas ca!” gritavam todos no céu. “calma,” disse corpos caídos em sono, mexendo para lá carruagens até a pedra. uma luz se abriu a deusa para os seus. os humanos ficaram e para cá. as carruagens voltaram para o no céu e dezenas de cavalos surgiram ali, petrificados. a um gesto, todos caí- céu. os mortais para a terra. desde então, puxando carros de ouro. os deuses apa- ram num sono profundo. “vocês querem dizem, os mortais são deuses nos seus so- receram. “por que a bagunça, a gritaria?” ser deuses?” “pois terão todo o poder que nos. começaram a sonhar. 16 a ddois. você quer um amor literário, eu sei. é um amor literário, eu sei. e amores assim seu direito. seu sonho talvez. construído não entendem nem um pouco a língua por horas e horas a céu aberto. prometi- do imprevisto, desses iguais ao nosso, que do entre amigas, uma jura de sangue por seguem os impulsos. sem planos, tocando aquela vida perfeita. custa muito quebrar de improviso. às vezes, abro você numa esse pacto. você quer um amor revisado, página qualquer e leio culpa no seu corpo, eu já sei. talvez, eu seja real demais para caindo sem pensar. ali, onde nossos va- sua verdade. quem sabe, eu seja fantasia zios se encontram. se entregam. e partem. demais para sua realidade. confesso, não deixando apenas nós, a sós, a dois. como sei, olhando as entrelinhas do nosso en- deveria ser. deveria, eu sei. mas eu tenho contro. penso, se o seu olhar me quer, se defeitos, eu sou imperfeito, não sou amor a sua boca me afasta, se a sua escrita me literário nem tão pouco romance. sou só ilude, se a sua solidão me deseja. você quer aventura. posso escrever a minha vida inteira, mas escrever sobre mim é sempre estar frente a frente com o impossível. melhor deixar para outros. não eu. o que sei de mim é muito pouco. me vejo apenas por dentro. não é uma visão completa. mas, se preciso falar, melhor dizer apenas o que sou. o que posso ver daqui. e sou poucas coisas. prefiro assim, ser pouco, para não me perder com esse tudo do mundo. sou Eduardo Suppion. sou filho. sou irmão. sou tio. sou amigo. sou apaixonado pelo humano. sou otimista. sou perseverante. sou crente do bem. sou seguidor do amor. ponto. e pronto. e dentro desse limitado sou, posso estar muitas coisas, infinitamente. hoje, apenas por hoje, estou publicitário, estudante de psicologia, escritor e poeta. amanhã, sinceramente, não sei se estarei. mas sempre serei. a canção do vendedor de pipocas para Angélica Freitas Fabiano Calixto em frente ao noticiando o acidente na Rebouças Banco de La Nación Argentina (“foi feio pra caralho, mano!”) o vendedor de pipocas logo envelopa a fala, se cala da avenida Paulista a chuva recomeça sua cantilena desvenda os mistérios do Honda prata preciso das horas, mas não encontro que passa lentamente, soberbo (“coisa mais sem gente!”) pensa na noite crônica no organismo da tiazinha de vestido florido (onde predomina o ruivo) agora assobia e coloca milho na panela os estouros acordam a minha fome (no El País El presidente apuesta por las políticas a favor de los “más olvidados” meu celular uma moça linda (ensopada) pára em frente a mim, balbucia can you help me remember how to smile? silencio e lembro de uma rua que tem o nome do meu amor – imagino que as canções de Bob Dylan existam para nos fazer suportar dias como este – a cidade se altera, oxida de y “los que pueden menos” – alteridade e acídia risco outro fósforo, acendo outro cigarro, (La Contenta Bar outra melodia está muito muito longe e frustrated incorporated) a noite passada quando chega o outro, de bicicleta você não veio me ver 19 oratório meninos jogam dos bem-nascidos com seu carro de entulhos & rebocam sua vaidade & idiotia fuma sua guimba de cigarro na cara da geral, observa o sol outra poesia é feita que se põe morno no horizonte neste mundo & nas gotas de suor em seu rosto na universidade desconhecida enquanto jogam na vida sem fim ensaia dentro de um assovio capoeira de quem chegou até aqui um velho bolero entre os ramos do berimbau derrubando, aos murros, o muro que fala de uma cidade fantasma antes da chuva moldando o mundo a muque onde mora uma mulher solitária capoeira em frente ao muro da creche onde, escrita a tiros, lê-se a epígrafe destes dias que faz pães pela manhã & à tarde com as nuvens § a quem ele gostaria de levar um pote de manteiga § o terreno baldio &, nas noites claras, ensinar trava-línguas os tijolos vermelhos lodosos a quadra de futebol de salão & contar estrelas as casas pela metade o bamba rodando, mão em mão, andaimes, latas de tinta vazias, a ginga da ganja pedras, cimento, cal na gramática feroz do desânimo jogam capoeira enquanto os burrocratas do pensamento § § § discutem mais-valia & idolatria mercancia & democracia no barraco à beira lucracia & poesia do córrego fétido o coração na sala de justiça um velho negro aflito 20 § § chove ainda que exausta há mais de uma semana a existência não fechou seus olhos § uma velhinha no ônibus me ofereceu uma oração no esgoto em frente & seu riso desmantelou à entrada da biblioteca todos os músculos de seu rosto uma ratazana, no meio da sopa de merda, devora não rezei com ela restos de milho fizemos silêncio juntos & nos exilamos em nosso subúrbio § portátil sob uma cortina de sangue as notícias da guerra jorram sangue onde, do outro lado, & fedem de longe havia um cão sarnento tremendo de frio Cabul & um bailarino imbecil pedindo mais conhaque no muro (de outra guerra) o grafito de um grito sem público (entardecido na memória) exila-se dos dias: mano Jorge saudade 21 e-mail para Tom Waits XIX e a Etiópia, Rimbaud teria dado um demais. Democrático demais, como a morte tiro em um de seus criados por este ten- – amar-te amor-te, morrer. Carente demais. tar lhe roubar, enquanto dormia, duas Fácil. Só o amor parece não caber no amor. ou três moedas de ouro. Nós, definitiva- Estranho, né? Fiquei quieto novamente. uma angústia hopperiana, encos- mente, não acreditávamos em verdades. Estava bêbado demais e o amor – o que tada no balcão, tomava dry martini e sol- E isso acabou em tesão. Então, o dancing eu tinha para falar sobre o amor – com tava imensas baforadas de fumaça. Fitava quase vazio, ela pegou em meu braço, sa- certeza havia deixado em alguma velha sua própria sombra – que era ela mesma, cou o batom e escreveu a palavra sinta- canção que fala de perdedores e bêbados em versão instrumental, tomando dry xe. Do nada. E do nada, lembrei de uma incorrigíveis. Eu era apenas um cachorro martini e soltando imensas baforadas de canção interpretada por Johnny Cash e molhado esperando a cidade se esvaziar fumaça. Meu pigarro cínico deu início à fiquei curioso em saber se houvera ele para que eu pudesse vasculhar os sacos conversa. Eu sabia que ela era mais uma passado por algo parecido quando pen- de lixo e, quem sabe, encontrar um amor bela garota que queria chegar num sebo sou em cantar “Hurt”. Johnny Cash não se qualquer e matar minha fome. E ela era e comprar um livro do Larry Brown, lê-lo lembrava dos sonhos das noites anteriores aquela doce desordem dos sentidos. Po- em êxtase, guardando sob o grafite o que – ela disse. Fiquei quieto e pedi a ela outro rém, a doce desordem dos sentidos jamais a memória provavelmente vacilaria, e na cigarro. O que me enoja no amor é que ele havia ouvido nenhum dos seus discos. noite seguinte encontrar alguma amiga é uma coisa fácil demais. É como comprar Tive que cantar uma a uma as suas can- para dizer que a mãe havia telefonado, um Chicabon na padaria. É como chegar ções – sem lembrar sequer de uma. Antes aos prantos, dizendo que o pai continu- atrasada ao trabalho e esfarrapar um ver- de adormecer, ela disse: a culpa e os cadá- ava com uma sede insana e que o irmão bo qualquer. Deveria haver uma lata para veres escondidos são a essência das cidades. metera-se com traficantes, mas mesmo o amor entre a coleta seletiva de lixo. Mas Aqueles braços eram como um imenso assim sempre haveria um espaço na vida, não, não, as pessoas o guardam consigo e beijo e neles me guardei durante toda a mesmo que mínimo (aquele que há en- o levam para o jantar, com a esposa e com noite. Foi então que um caixão apareceu tre a morte clínica e o paciente estendido o amante, entre uma e outra senha. Levam- no meio da sala. Eu, confortavelmente sobre a mesa de cirurgia), para a vida. Da no para as reuniões sobre superfaturamen- anestesiado, beijei-lhe o rosto, e, antes mesma maneira que ela sabia que eu era to e para o jogo de futebol com o filho, no do pássaro com odor de óleo diesel abrir o sujeito mais solitário da cidade, e que Playstation. No amor cabe tudo, o catarro, seu voo, depus o amor, quieto e esquecido, meu cigarro estava acabando e que eu a lágrima, o esperma, o sangue, o carinho, atrás do seu sono – perigosamente próxi- diria que em algum lugar entre o século a mentira, a verdade, a sujeira. É amplo mo ao açúcar dos sonhos. Ela, 22 versos de circunstância em torno de eu não entendia um disco repetindo-se & ela se mexia tanto ao meu lado uniforme & aqueles bancos apertados a dor presente Fabiano Calixto nasceu em Garanhuns, PE, o ar condicionado gelando tudo como um salmo em 1973. É anarquista e também mestre em (os brincos dela, o meu humor) esquecido na página Teoria Literária e Literatura Comparada mais de uma hora cruzando carburada de um baseado ruas, avenidas, parágrafos – pela USP. Tem poemas e artigos publicados em vários jornais e suplementos do Brasil e do exterior. Publicou os seguintes o livro gritando alto & continua livros de poesia: Algum (edição do au- num mundo surdo redemoinho melódico tor, 1998), Fábrica (Alpharrabio Edições, depois de arrumar-se um transe, incêndio 2000), Um mundo só para cada par mais algumas dezenas de vezes prelúdio & fuga passou batom nos lábios (Alpharrabio Edições, 2001), Música possível (CosacNaify/7Letras, 2006), Sangüínea (Editora 34, 2007) – este finalista do Prêmio o sol já estava no meio do céu um molusco carregando a parede Jabuti de 2008 na Categoria Melhor Livro quando ela se levantou como um código de Poesia –, e A canção do vendedor de pipocas (7Letras, 2013). Traduziu poemas foi então que percebi que três pequenos pássaros uma mosca decorando a paz voavam em suas costas do prato sujo de Gonzalo Rojas, Allen Ginsberg, John Lennon, Laurie Anderson, entre outros. Traduz atualmente as obras de Kenneth Rexroth e Benjamín Prado. Editou, contínua com Angélica Freitas, Marília Garcia e agonia do futuro Ricardo Domeneck, a revista de poesia rezando em mim como um relógio Modo de Usar & Co. Atualmente edita O Almanaque Lobisomem. Seu novo livro de poemas, intitulado Nominata morfina, sairá em breve. Luana Vignon 23 blindagem barata tenho uma caixa feita de ossos para evitar desvarios de qualquer músculo burro ou tive, sei lá o tal músculo bateu inchou, murchou deu umas cambalhotas explodiu e se recompôs é assim, o canalha a gente se acostuma pior são os estilhaços um pedaço qualquer de alegria que fica preso em lugares de difícil remoção tem o frio na barriga tem o nó na garganta tem uma sensação estranha no céu da boca tem o medo tem o cheiro tem sua imagem desaparecendo aos poucos em meio a nuvens de fumaça cartões de embarque malas, roletas russas e saltos no escuro quando olhei no fundo dos teus olhos percebi que redes de proteção seriam inúteis e que absolutamente nada poderia ser feito para impedir que todos meus músculos entrassem em colapso. (inédito) 24 Não quero que Shirley desapareça Shirley é o tipo de pessoa especializada em perder aviões algumas pessoas realmente nunca conseguem partir tudo se transforma previsivelmente em desculpas (sete doses de tequila e um flerte com um argentino chamado Peco não foram suficientes para impedir uma salsa às cinco da manhã) Embora Shirley não consiga permanecer por muito tempo no mesmo lugar é o tipo de pessoa que nunca consegue dizer adeus seus olhos estão sempre fechados sonhando com o dia em que possa simplesmente ficar sem ressalvas Shirley bebeu dezenas de cervejas com sua amiga Rebeca Rebeca acha que uma amizade se faz com muitos brindes e eventuais pedidos de desculpas principalmente após algumas doses de tequila e um discurso fervoroso em defesa de Caio Fernando Abreu amizade é algo como carregar uma bomba armada dentro do coração (poema dedicado a Thaís Regina, publicado na coletânea Peso Pena, Black Demon Press, São Paulo: 2010) 25 Seu herói foi embora Levou junto aquela coleção de tampinhas e transfix logo você, campeão de bafo e burquinhas logo você que nunca repetia o mesmo enredo você deixou a porta aberta porque disse que não tinha medo mas a solidão não é algo que acontece de repente você quase escutou aquela canção do Solomom Burke abafada pelo barulho do chuveiro mas agora é só essa ligeira impressão deixada no corrimão da escada só essa foto desgastada daquela antiga polaroid esquecida numa gaveta seu herói foi embora junto com o meu os dois pularam daquele viaduto na marechal rondon era uma manhã de chuva e operários voltavam pra casa de bicicleta era segunda-feira e a gente se esquecia daquela conversa quando ele dizia que nem tudo ia dar certo quando a gente nem queria mais ele por perto. (poema publicado no livro “Seu herói foi embora”, Yiyi Jambo, Paraguai: 2010) Patos de borracha (para Adriana Brunstein) Cometemos uma pequena chacina Pela manhã Os patos não têm sangue azul (lembranças) Nem mesmo os de borracha Após o café nos servimos de Sanduiches de vento Para aplacar o silêncio que a chuva traz Para tirar esse animal (o amor)da toca E fazê-lo partir com as outras aves Noturnas. (inédito) 26 Cuidado Foi o que eu disse: Cuidado, eu sempre aposto em perdedores. Logo eu, que nunca imaginei a convivência pacífica entre mim e uma garrafa de tequila. Ficamos assim, cara a cara sem uma acabar com a outra faz dias. E têm essas escolhas absurdas, o destino é um albino meio maluco vestido de cowboy gritando 22 dois patinhos na lagoa. Bingo. Eu digo. E saio sacudindo os cabelos, inventando um novo jeito de andar dentro de casa. (poema publicado na Revista Coyote 17, Coyote Edições, Londrina: 2008) Luana Vignon, 32 anos, poeta, escritora e editora. Publicou os livros Seu herói foi embora (Yiyi Jambo, 2010), Os Tiros vêm do paraíso (Panelinha Books, 2010) e participou de algumas coletâneas e publicações virtuais. Atualmente é uma das organizadoras da Festa Soul Kitchen, evento que promove a interação entre literatura, música e gastronomia Lubi Prates sobre você impressiona-me esse viver em looping voltas e voltas e voltas e fazer refazer um circuito de fórmula I ao redor do próprio umbigo sobre você impressiona-me o não-rompimento, uma continuidade nadar com uma âncora presa ao s pés sobre você impressiona-me o não ter fim. 28 boa vista descobri pelo google maps: da minha casa até seu ouvido são 4.654 quilômetros implacáveis distância que torna-se perto quando eu, encantada recordo seu rosto antes de despertar: minha eterna boa vista. furto não notei quando me furtei. amor foi embora, mas pode devolver minhas palavras? 29 Possessividade II o que faço é te negar pelo que já disse tantas vezes: possessividade e viver em círculos com frases frases que não são poemas. ignorar os atalhos do seu corpo: ignorar porque me vem sempre como inspiração não ir direto ao ponto sua presença. ligar todos os seus poros com dedos e não te quero e língua lábio palavra idioma de outrém caminhar por seu corpo não quero repartir minhas migalhas. sem usar meus pés. Nasceu em 86, em São Paulo. Estudante de Psicologia, atua como consultora e professora de recursos humanos e orientadora de carreiras. Traduz e participa em elaborações de projetos fotográficos. Tem publicado o livro “coração na boca” e algumas participações em revistas literárias nacionais. Marília Garcia 31 na 19ª edição da meia maratona de lisboa dificilmente se arranca a lembrança mas na lista de notas estou sentada em uma padaria, tem um suco de mamão, um garçom que não olha pra mim, um quadro negro na parede com o cardápio anotado em giz branco. da janela de manhã os corredores da maratona atravessavam a ponte. sou brasileira, estou em lisboa sentada em um balcão perto da ponte em algum dia de abril. você lembra? 32 ela traz sua lista que passava na calçada em frente. e enumera os dados da história: aí você vê um mamão na vitrine uma manga, uma feira ao ar livre e pensa, mesmerizada: e algo que você dizia sobre aqui ser tropical, assim: tem – afinal, eu sou tropical! mamão mas o que era ser tropical, então pede a ela um suco de pergunto dizendo que não me mamão imagino falando essa frase, mas ela, escandalizada e ela dizia algo sobre – mas isto é uma fruta trop’cal. o tropismo só usamos para colocar ou o braço se erguendo alguns pedaços até que você pudesse na salada de frutas. chamar o garçom. depois de externada ou seriam os tanta indignação braços atravessando a ponte com o desperdício, em sinfonia, maestros em silêncio depois de um longo no movimento de se projetar correndo longo longo sermão para frente? pergunta tentando – você lembra se tomou buscar a lembrança: o suco trop’cal? – queria um suco de mamão, por favor. você lembra? na minha lembrança existiu sobretudo um mamão. você entra naquela padaria, uma senhora portuguesa vem te atender. ela que todas as vezes acenava para o neto 33 o que é um começo estou procurando a receita para fazer um crepe francês um crepe francês de emental derretido e um crepe doce um crepe doce francês feito de farinha de centeio com açúcar mascavo derretido e manteiga président então faço uma busca pela receita de crepes para fazer um crepe francês e no meio da busca pela receita, ao buscar pela palavra crepe encontro uma tradução da inês oséki e entendo nesse momento que fechar pode significar abrir. mas isso depende, você me diz e pergunto mas o que seria um começo? pensando que fechar ali só podia ser o fim o fim era sem começo me convenço lembrando daquele dia começo era outra coisa ainda estou aprendendo mas entendo que fechar em português queria dizer que a forma de uma pode significar abrir cidade muda mais rapidamente só que a vida não disse isso do que o coração dos mortais quando precisei queria dizer que talvez porque estivesse vivendo embora meu coração ainda buscasse em outra língua, você me diz. uma lembrança qualquer talvez, não sei bem um vestígio, um sinal que pudesse ser o recomeço, ao chegar no jardim na tradução do poema a loja de crepe já não existia dizia inês oséki tinha fechado suas portas que o vendedor de crepe eu queria dizer que embora buscasse tinha acertado o negócio começar, enquanto isso, o poema original dizia fechar ali era o fim. que o vendedor de crepe tinha fechado o negócio querendo dizer que o vendedor de crepe tinha falido, que tinha fechado a loja fechar era literal: uma porta em movimento pronta para bater isso era o fim deserto falência. fechar não poderia mais Marília Garcia nasceu no Rio de Janeiro, em 1979. É autora dos livros 20 poemas para o seu walkman ser positivo e nem significar (Cosac Naify, 2007) e Engano geográfico (7letras, um acerto bem-sucedido. 2012). Coedita a revista Modo de usar & co. e, atualmente, trabalha com tradução. 34 Mirella Carnicelli cincos de agosto amassou o quarto filtro manchado estava se sentindo disposta: uma dorzinha de vermelho no cinzeiro de vidro e olhou chata, “coisa de mulher”. ela sabia que o o relógio pela primeira vez desde que chefe nunca soube lidar muito bem com chegou no café onde tinham se visto pela coisas de mulher (e isso ele tinha confi- última vez. denciado numa cerveja de departamento. vinte e oito. oito e vinte e oito. contou toda a história chatíssima da sua no mesmo dia, às quatro e doze, fingiu educação sentimental. quatro mulheres uma dor de cabeça usando uma cara que ao todo: ana maria, solange, maria hele- ensaiou muito bem no espelho antes de na e uma que ele não mencionava. justa- sair de casa. disse para o chefe que não mente a mais fascinante: a que fez com 35 que ele se decidisse comprometer com ajeitou o cabelo de um jeito diferente. pu- vezes não. mas na quinta, quarenta e cin- a solidão) e ele prontamente lhe pagou xou tudo para um lado e enfeitou o outro co minutos de atraso significa que ele vai um taxi para que ela pudesse ir para casa com uma presilha nova. demorou vinte chegar a qualquer momento. tranquila, descansar, tomar uma aspirina e três minutos e algumas bolas de algo- e será que brigará com ela quando des- e estar sorrindo e falante na reunião que dão para conseguir reproduzir nos olhos cobrir que ela começou a fumar? e será teriam na manhã seguinte. típico. a pintura que tinha arrancado da revista que por isso iria embora de novo? será que se o chefe prestasse um pouquinho de do dentista, duas semanas antes. vestiu o ele engordou? que ele ainda tem aqueles atenção, perceberia que ela fazia a mes- casaco e percebeu que ele agora apertava cachos? que amanhã chove? será que ele ma coisa, com a mesma cara ensaiada, um pouco nos braços. teria percebido que ainda faz cara de dor quando goza? que os no mesmo dia do ano, há cinco anos. nos também a saia azul apertava um pouco e anos não conseguiram destruir o sorriso três primeiros – antes de descobrir como não mais lhe caía tão bem quanto antes. de criança? será que ainda usa o mesmo apertar no chefe aquela parte que doía – mas se dedicasse alguns minutos a mais relógio que tantas vezes lhe anunciou as ela usou desculpas menos verossímeis do ao espelho, ela ia se atrasar. e se hoje ele horas tempranas? quantas vezes em seis que absurdas. o chefe nunca fez pergun- chegasse na hora? anos será que se troca a bateria de um re- só se permitiu os trinta segundos de lógio? será que ele se esqueceu do acordo? já em casa, demorou a encontrar o saca passar o batom vermelho que um outro será que ela era, dele, a mulher que ele rolhas que ela nem sabia se ainda tinha. homem num outro café uma vez lhe disse não mencionava? tomou duas taças de um vinho que não que despertava pensamentos lúbricos. na nove e meia. sete cigarros. sabia ser bom ou ruim. acendeu uma vela ocasião, ela foi ao banheiro procurar na pagou a conta, vestiu o casaco e voltou no banheiro e se deu um banho – o ba- internet do celular o que “lúbrico” signi- para casa pensando em qual roupa usará nho longo da semana, que ela geralmente ficava. retocou o batom e menos de uma no ano que vem. tomava aos sábados. raspou os pêlos das hora depois, não tinha mais nem sinal de pernas para vestir aquela saia azul que, vermelho na boca. tas. um dia, ele disse que era bonita. passou hoje, tudo o que ela queria era que ele na pele um óleo de banho que tinha sido tivesse pensamentos lúbricos por causa presente de uma amiga vaidosa. esfregou daquele batom. mas acontece que o ba- especialmente o óleo na barriga. porque tom não resistiu ao quinto cigarro. oito e hoje está sol e deu tudo certo e ele com quarenta e cinco. ela não podia sair para certeza vai passar a mão na barriga dela. o banheiro retocar. das últimas quatro 36 ricos no Rio se hoje, como nos jogos da infância, eu pudesse escolher qualquer coisa do mundo pra querer, eu com certeza ia escolher ser rica no rio com você. quando eu conheci você, eu não conhecia o rio. e fiquei assim, ignorante do rio, por muito tempo. por todo o tempo em que eu passei me educando em você. quando eu, enfim, conheci o rio, no depois do eu-e-você, não foi nenhuma surpresa. porque eu conhecia você. e depois de amar tanto você, era óbvio que eu também ia amar o rio. porque você sempre teve esse jeito de quem faz parte do rio. o érre sutil. o jeito que você abre a palavra e faz o érre sumir. o jeito que a sua voz desvanece e deixa tudo aberto. do mesmo jeito que você sempre deixa todas as coisas abertas. o seu problema com portas. os olhos fechadinhos. como se você tivesse o sol o tempo todo virado pra você. e o jeito como essa luz refletia e iluminava os meus olhos quando nós nos orbitávamos. os cachos. próximos de estarem sujos. e como eles brilhavam e se mexiam de acordo com seu passo. como quem saiu do mar e se secou na areia. a sua maneira de quem simplesmente não se importou o suficiente. as roupas largas de algodões e linhos. o arrastar dos chinelos. o seu passo. como ricos no rio, a gente vai frequentar pouco a praia. e sempre elegantes. e com o cachorro. é claro que, como ricos no rio, a gente vai dar um jeito de o cachorro não morrer nunca. e a gente vai passear o cachorro cumprimentando conhecidos bronzeados. e chegar atrasado em coquetéis na livraria da travessa. deixar umas palavras baratas sobre o papel da crítica na literatura e logo depois ir embora. a gente vai em restaurantes caros de qualidade questionável nas travessas da orla, encontrar nossos colegas de circunstância: os outros ricos no rio. e lá a gente vai usar o nosso humor mais domesticado. a gente vai falar sobre a vida amorosa do amigo divorciado e sobre como o pedido de concordata da american airlines vai afetar a nossa próxima viagem pra macau, johanesburgo ou ilha da madeira. a gente vai ouvir coisas sobre estúdios de pilates, alimentos orgânicos e personal trainers. e a gente vai se cansar bem rápido e voltar pra sacada com vista pro mar e pro cachorro. no dia seguinte, a gente vai beber cerveja na praia com os nossos amigos de coração. e lá, a gente vai usar o nosso humor mais precioso, a gente vai falar de coisas da alma e depois vai rir dos colegas ricos no rio do dia anterior. e esse vai ser o nosso hobby favorito. rir e rir muito. rir sem parar. rir até morrer. de nós e de todos os outros ricos no rio. 37 em automático são poucas as coisas nesse mundo que têm a capacidade tão incisiva de me colocar a vida em perspectiva como o subir-edescer de um avião. e por dois motivos: o primeiro, e também o mais óbvio, pelo distanciamento físico que um vôo de culatra. numa coxinha estragada. eu odeio aviões e agora me parece tão imprudente assumir isso assim, por escrito e publicamente. cerca de 80% do tempo que eu passo dentro de um avião, gasto pensando: na morte. incêndios. explosões. asfixia. carbonização. nos outros 20%, consigo, não com pouco esforço, distrair o medo pen- de avião oferece. estar a trinta e cinco mil sando em: sexo. música pra fazer sexo. re- pés da própria vida faz com que ela dimi- feições fartas. mar. gramados. todas essas nua em tamanho e praticamente suma coisas que, no final, não deixam de ser em meio à grandeza absurda da cidade feitas da mesma matéria que a morte. vista de cima. diminuída em tamanho, de certa forma, cada vez que um avião também acaba reduzida em relevância e acelera pra me levantar vôo é como se isto nos atira à constatação inquietante me cravassem no peito um termómetro da pequenez da nossa existência, do nos- bizarro de medir se estou cuidando bem so corpo e de tudo que o orbita e o penetra. de mim e se estou sabendo ser feliz. como o segundo motivo, menos universal, um diálogo no escuro com os recônditos creio, é decorrente do medo nem um pou- do próprio coração. talvez uma versão em co razoável que eu tenho de aviões. pou- miniatura dessas experiências de quase- cas coisas me parecem mais absurdas do morte que a gente ouve por aí. que um monte de lata pressurizado que da mesma forma, subir num avião acelera e levanta vôo. danem-se as leis da com alguém é abrir as portas pro coração física que permitem que isso aconteça e se manifestar sem filtros e despejar sobre dane-se a estatística que me conta que é nós suas entranhadas opiniões. mais provável que eu morra num aciden- uma vez eu subi num avião com um te de carro. num hipopótamo. num tiro homem e a idéia de morrer ali, ao lado 38 dele, me apavorou de tal maneira que eu não consegui parar de tremer durante as seismilequinhentas horas que durou aquele vôo. eu não queria que aquela mão pegasse a minha no instante em que o motor parasse. nem que aquela mão me puxasse pr’aqueles braços quando começasse a queda. nem que fossem aqueles ouvidos a ouvir minhas últimas palavras ou que fosse aquela a última voz que eu ouviria nesta vida. eu não queria estar ali. claro que eu teria percebido mais cedo ou mais tarde, mas o distanciamento do resto da minha vida (primeiro motivo) e a iminência da morte no monte de lata voador (segundo motivo), me pouparam de alguns momentos (meses, talvez até anos) orbitando uma pessoa cuja mão eu não queria apertar durante a queda. e nisso, sou grata às tantas horas intranqüilas e ao medo irrazoável. eu o alimento. vejo filmes sobre histórias horrorosas. cuido do medo e faço paz com ele. porque se essa vida não é senão abrir espaço aos encontros com as pessoas cujas mãos a gente gostaria de apertar quando sofre de L.E.R no coração desde os 4 anos. tem 3 medalhas nosso avião cair, então eu não sei. de ouro de campeonatos de par ou ímpar. foi diagnosticada por uma cigana como tendo sido um crepe suzete na vida passada. escreveu mais de 500 cartas que nunca enviou. “mirella carnicelli” é apenas um pseudônimo Múcio Góes amar não é coisa para qualquer um não conheço ninguém feliz sozinho antes / durante / depois amar é coisa para dois 40 me espere de braços abertos só feche os braços quando eu chegar só feche os braços e tudo comigo dentro aquilo que foi tão lindo ora jaz lá no fundo tudo findo feito um barco indo 41 era um punhado de sol o diabo sol podia ser até que tentou aquele brilho nos olhos mas o meu pão da moça que dançava foi deus mesmo ciranda na tarde quem amassou à beira-mar Múcio Góes, poeta pernambucano, de verso de baque solto, rima & remo. apreciador das simplezas, domador de palavras tardias, defensor da lira delirante, do verso rasteiro, do relâmpago no papel. passa uma chuva em recife, e escreve diariamente no facebook. Edição Lubi Prates e Bruno Palma e Silva Fotos Camila Lordelo Projeto gráfico Bruno Palma e Silva Um agradecimento muito especial a Stephanie Borges, que nos ajudou na ideia inicial e batizou a revista. A bênção, madrinha! A Parênteses tem distribuição livre e gratuita, sinta-se à vontade para compartilhar. Todos os textos e imagens aqui reunidos são, e sempre serão, de propriedade de seus autores. Novas contribuições são bem vindas, fale conosco! revistaparenteses.com.br facebook.com/revistaparenteses [email protected]