Amostra - Livros de Ontem Crowdpublishing

Transcrição

Amostra - Livros de Ontem Crowdpublishing
Penélope mantinha-se fiel. Ulisses, seu
esposo, desaparecera fazia mais de dez
anos. Partira com seus homens para a
guerra com Troia e, desde então, nunca
mais dele se soube. Andava triunfante
por terras distantes a inventar ardilosos
cavalos de madeira que o infiltrassem
dentro de muralhas alheias. Penélope
mantinha-se fiel. Não importava se
estava Ulisses morto ou desaparecido,
a combater na guerra ou a procurar os
escritores do amanhã. Sabia que casara
com destemido guerreiro, respeitado
pelos homens e agraciado pelos deuses,
escolhido na terra e nos céus para
completar as mais difíceis missões.
Num dia combatia, no outro carregaria
os livros do conhecimento. Podiam vir
príncipes e reis, mercadores e magnatas.
Penélope mantinha-se fiel e assim
continuaria.
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Exemplar n.º :
Penélope
Coletânea
Liberdade, Medo e Solidão
Título: Coletânea Penélope
Revisão: Bárbara Soares * The Art Boulevard
Ilustração de capa: André Freitas Santos
Paginação: Nádia Amante * Livros de Ontem
©2014, Livros de Ontem
Reservados todos os direitos, para esta edição,
de acordo com a legislação em vigor
1ª edição: Outubro 2014
Tiragem: 200 exemplares
Depósito Legal: 383237/14
ISBN: 978-989-8762-11-5
Livros de Ontem
Rua João Ortigão Ramos, 34, 6ºF
1500 - 364 Lisboa • Portugal
www.livrosdeontem.pt
The Art Boulevard
www.theartboulevard.org
Penélope
Coletânea
Liberdade, Medo e Solidão
ÍNDICE
Contos
14
Álvaro Cordeiro
44
Ana Rita Sousa
72
Bárbara Lopes
88
Hélder Magalhães
106
124
Luísa Carvalho
Cidália Carvalho
146
154
Rita Só
Sílvia Mota Lopes
172
Soraia Ribeiro
186
Vasco Ricardo
Autor Convidado
8
Edson Athayde
ÍNDICE
Fotografia
Catarina Lopes
12
Flávio Moreira
42
Felipe Almeida
70
Fabielle Vieira
86
Paulo Cintra
104
Marina Barbim
122
Ricardo Reis Pereira
Ana Costa
144
152
Cristiana Gomes
Fábio Roque
170
184
Ilustração
André Freitas Santos
224
Edson Athayde
Edson Athayde é escritor, guionista, publicitário, dramaturgo, produtor musical,
português, brasileiro, carioca, alfacinha, tripeiro, catalão, flamenguista, lampião, míope
e acima do peso, nada disso, necessariamente, nessa ou por nenhuma outra ordem.
QUATRO
O rapaz sem braços e sem pernas queria nadar. Sonhava em
atravessar o Canal da Mancha. Queria mesmo bater o recorde
mundial dessa travessia. E por isso ele podia ser visto pelas
manhãs nas margens do canal a passear na sua cadeira de rodas
prateada. Era nesses passeios que ele treinava. Dava braçadas
ilusórias contra ondas irreais. Não tinha braços, não tinha pernas,
mas tinha sonhos. O rapaz não tinha pais, parentes, descendentes.
A única pessoa que algum dia vi com ele foi a sua enfermeira,
gorda como uma baleia. Era ela que empurrava, de cá para lá,
de lá para cá, a sua cadeira. Gostava de levá-lo para passear
no canal por causa das gaivotas e dos ventos. Havia lido, nuns
quaisquer documentos, que os espaços abertos contribuíam para
a tranquilidade de uma alma sofrida. Mal sabia das intenções
secretas do pobre rapaz. De qualquer maneira, pensava, «passear
mal não faz.» A enfermeira, além de gorda, também se achava
muito sabida. Passados alguns anos, o rapaz sem braços e sem
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pernas já era um atleta. Nadara milhares de quilómetros dentro
da sua cabeça. Ganhara medalhas de ouro, prata e bronze, todas
atribuídas por um juiz que existia apenas em seu cérebro. E,
por mais que pareça absurdo, dentro do seu ranking etéreo, ele
ocupava o primeiro lugar do mundo. Um belo dia, o rapaz sem
braços e sem pernas cansou-se da ilusão. Se ele queria atravessar
o canal, teria que cair na água, sair do chão. Faria isto de qualquer
maneira, contra tudo, contra todos, contra a enfermeira. Ele não
tinha braços, nem pernas, mas era um homem duro. E depois
de tantos anos de treino, sentia-se seguro. Conhecia cada palmo
da Mancha, sabia que se o seu desejo fosse verdadeiro, se a sua
vontade fosse muita, podia atravessar o canal e ser recebido na
outra margem com uma grande festança. E então não seria mais
o rapaz que braços e pernas não tinha, seria um herói nacional,
mundial, interplanetário. Dedicaria a vitória a todos os que
ultrapassaram barreiras algum dia. E mostraria que, mesmo
sem metade do corpo, estava no páreo. A enfermeira nem viu
quando o rapaz, a utilizar apenas a força da mente, soltou o
travão da cadeira, que saiu ladeira abaixo em desabalada carreira.
Não demorou a cair na água. E então o rapaz sem braços e sem
pernas descobriu o que era um mergulho de verdade. Sentiu as
ondas a acariciarem-lhe o corpo, a deixarem-no louco. Nesse
momento ele tornou-se um puro de espírito, um ser sem vaidade.
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Riu, sorriu, gargalhou. O seu sonho mais secreto tornara-se
verdade. Foi aí que o rapaz deixou de ser ele mesmo e passou
a simbolizar todos nós, a representar na sua débil estrutura os
nossos mais íntimos desejos, as nossas mais estúpidas loucuras.
Ele iria atravessar o Canal da Mancha não mais para ganhar um
prémio, para vencer uma aposta, nem porque gosta, ele iria fazer
aquilo como um santo moderno para salvar-nos do inferno. E,
pela primeira vez em décadas, parou de chover na Mancha e os
raios de um sol muito forte iluminaram as águas. Quem lá estava
relata, talvez num exagero de prosa, que as nuvens tornaram-se
algumas azuis e outras cor-de-rosa. É pouco provável, mas o
rapaz pensa ter visto um golfinho a indicar-lhe o caminho. E
ao mover a cabeça, ao girar o tronco, ao agitar o dorso, bendito
seja, encontrou a paz necessária para cumprir o seu destino, para
sentir-se uno, para sentir-se inteiro, para sentir-se todo. Levaram
uma semana para encontrar o seu corpo.
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Catarina Lopes
Nasceu em Lisboa e licenciou-se na Faculdade Nova de Lisboa em Ciências da
Comunicação, na vertente de Cinema e Televisão. A fotografia acompanha-a desde
os 16 anos e também mais recentemente o vídeo. É apaixonada pela área da imagem e
espera que esta área integre sempre a sua vida, tanto lúdica como profissionalmente.
Álvaro Cordeiro
Álvaro Cordeiro é o nome da personalidade literária do autor nascido em Lisboa em
1964. Licenciado em História, é professor do Ensino Básico e Secundário desde 1987,
tendo trabalhado também na área da Formação Profissional. Apaixonado pelo teatro,
dinamiza grupos amadores desde 1997, repartindo-se entre a escrita, a representação
e a encenação. Ao mesmo tempo desenvolve experiências na ficção narrativa e, mais
raramente, na poesia. Em 2013, publicou Nós, Vida, o seu primeiro romance.
TODOS OS DIAS
1.
O homem entrava no café todos os dias, quase à mesma hora.
Como se esperasse que, quase à mesma hora todos os dias, a mesa
do canto estivesse vaga, para poder ocupá-la. Vestia sempre a
elegância de um fato engomado, camisa lisa e gravata a condizer,
um invólucro de esmero e aprumo para um conteúdo devastado,
um corpo elanguescido que se movia com artificial rigidez, como se
a elegância do fato lhe proibisse o abandono de escorrer pelo chão,
liquefeito. Ao vê-lo era inevitável pensar na inalienável duplicidade
da existência, em como ela se apodera de nós sem darmos conta,
em como nos tornamos cúmplices dela, se dermos conta.
O homem entrava no café todos os dias, quase à mesma hora.
Sentava-se na mesa do canto que, quase à mesma hora todos
os dias, estava vaga. Rabiscava um gesto para o empregado, um
gesto rígido no braço, não na mão, a qual floreava um arabesco
donairoso, como se o pulso fosse uma fronteira de libertação.
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E o empregado, atento ou até nem por isso, descodificava no
gesto o pedido de sempre, todos os dias, quase à mesma hora.
Quando se aproximava já trazia, na bandeja baça do serviço
acumulado, a chávena da bica e o balão com gelo. E a garrafa.
Colocava os objetos sobre a mesa em movimentos que diziam
mais do que as palavras circunstanciais e vazias que trocava com
o homem, as mesmas de sempre, quase à mesma hora todos os
dias. Depois, segurava a garrafa de whisky novo e vertia sobre o
gelo do balão, enquanto o homem fitava aquela cascata com um
esgar ritual, como se contemplasse uma maravilha da natureza
ou uma revelação sobrenatural. Ou, talvez, como se apenas
invejasse aquela liberdade de escorrer liquefeito que, afinal de
contas, não possuía.
Porque ele era um homem desfeito. Lia-se no seu rosto
barbeado uma tristeza irreparável escrita em cada ruga. Depois
de o empregado se afastar, ele bebia a bica dum trago, com a
voragem com que vivera os fugazes momentos de felicidade da
sua existência. A seguir, concentrava-se no balão, embalava-o na
mão rígida, já penitenciada do anterior arremedo de descontração,
detinha-se a observar o bailado das pedras de gelo mergulhadas
no whisky, como escolhos à deriva numa consciência sem forma
própria. E, enquanto sorvia, em pequenos tragos, aquela bebida
amarga que lhe adoçava os fins de tarde, todos os dias, quase
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à mesma hora, revisitava a interrogação com que partilhava a
vida há seis anos, quase sete, a interrogação que o queimava por
dentro mais intensamente do que o ardor do esófago a cada
deglutição do whisky vivamente desaconselhado pelos médicos
que só podem curar os corpos: onde é que eu errei?...
Onde é que eu errei?... Em que impercetível momento da
minha existência pouco mais do que vulgar terei cometido o
ato despercebido que levou à derrocada de tudo? Que atitude,
continuada num traço prolongado de temperamento ou
episodicamente assumida na brusquidão dum comportamento
fortuito, terá provocado este mórbido desfecho que agora arrasto
comigo sem saber até quando?...
Porque eu era feliz quando não me apercebia disso. Singrava
no mar da tranquilidade de uma vida harmoniosa onde tudo
fazia sentido sem que isso tivesse qualquer importância. Quando
te conheci foi sem sobressaltos nem surpresas. Olhei para ti num
gesto natural e tu devolveste-me o olhar como se isso fizesse
parte do meu gesto. Nem a aparente ridicularia da tua posição
agachada, à procura de um brinco caído que nunca encontraste,
parecia deslocada, porque eu olhei para ti num gesto natural e tu
devolveste-me o olhar como se isso fizesse parte do meu gesto e
percebemos logo ali que éramos a razão de ser um do outro. Ou,
se calhar, não percebemos nada disso. Não nos conhecíamos,
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nunca nos tínhamos visto e apenas descobrimos a novidade de
eu olhar para ti num gesto natural e tu devolveres-me o olhar
como se isso fizesse parte do meu gesto e bastava. Aproximeime como se não houvesse outra coisa a fazer, dirigi-te a
palavra e conversámos um pouco, talvez sobre o brinco caído
que procuravas e nunca encontraste. De tudo o que dissemos
nesse dia só recordo a forma como pronunciaste o meu nome:
«Anselmo». O tom quente e interior da tua voz, a entoação
aveludada com que encadeaste as sílabas: «Anselmo». Fizeste
o meu nome parecer outra coisa. Deixou de ser o meu nome,
tornou-se qualquer coisa bonita e colorida e envolvente, como
uma lareira a crepitar num salão de inverno onde as próprias
chamas ganham eco. «Anselmo». Olhava para ti mais perto e
mais fixamente e, de repente, fui eu que deixei de ser apenas a
pessoa contida no meu nome, tornei-me mais bonito e colorido
e envolvente, porque olhávamos fixamente um para o outro num
gesto natural, devolvíamo-nos mutuamente o olhar como se isso
fizesse parte do nosso gesto e já tínhamos percebido logo ali que
éramos a razão de ser um do outro.
Fomos inseparáveis desde então. O mar da tranquilidade
ganhou um colorido maior, variegado, que me fez perceber como
até aí não fora mais do que uma monotonia cinzenta. Tudo fazia
pleno sentido sem que isso tivesse qualquer importância porque
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nós éramos a razão de ser um do outro e isso bastava. O nosso
mundo fechava-se num sorriso iluminado e era perfeito. Depois,
o rapaz veio expandir o brilho de tudo, torná-lo irradiante. Antes
dele, éramos feitos de luz. A partir dele, senti que espalhávamos
luz por todo o espaço em redor.
Onde é que eu errei?...
Foi quando te queixaste a primeira vez e eu não valorizei, quando
perdi e te fiz perder a oportunidade de agirmos a tempo? Terá sido
antes disso, quando não te tenha ouvido queixares-te, quando não
te dei a atenção suficiente para te fazer crer que a tua queixa era
suficientemente importante para que insistisses nela até que eu
ouvisse? Terá sido antes ainda, quando me convenci, e a ti, que nós
éramos a razão de ser um do outro e isso bastava, porque um dia
eu olhei para ti num gesto natural e tu devolveste-me o olhar como
se isso fizesse parte do meu gesto e nada podia alterar ou destruir
o pleno sentido que tudo isso fazia e, por isso, não tinha qualquer
importância e nunca haveria qualquer queixa a fazer?...
Por que razão?... Que razão mais forte do que o pleno sentido
de tudo poderia vir encapelar o variegado mar da tranquilidade
em que vogávamos e tingi-lo do sangue da tua dor, da minha
dor pela tua, um sangue de corrosão silenciosa, de dissolução,
de abismo e de fim? Por que razão o nosso mundo perfeito,
primeiro fechado num sorriso iluminado e depois expandido
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num brilho irradiante, mereceu ser destruído dessa forma ignóbil
e dissimulada que reduz à impotência e ao absurdo o esforço dos
médicos que só podem curar os corpos e limitam-se a deixar
uma ferida impossível de sarar na alma que sobrevive?
Onde é que eu errei?...
Porque tu queixaste-te, meu amor. Detetaste o monstro sem
sentido submerso no nosso mar da tranquilidade e quiseste
alertar-me, mas já era tarde quando ambos percebemos. E ele
atacou, reduzindo à impotência e ao absurdo o esforço dos
médicos que só podem curar os corpos, roubou a tua vida e
aniquilou a minha, dissolveu o teu corpo para se apoderar de
ti e esvaziou a minha alma para já não haver nada em mim de
que se apoderar. E eu assisti a tudo, revoltado e impotente.
Em vão. Onde é que eu errei?...
Agora, nada faz sentido, mas não tem qualquer importância.
Porque toda a importância está para trás, no tempo em que tudo
fazia sentido e não tinha importância então, e é este desfasamento
de perceção das coisas que agita o mar outrora tranquilo e me
transforma num náufrago à deriva de mim próprio. E é por isso que
acabo os dias aqui, sentado nesta mesa do canto, a embalar o balão
e a observar o bailado das pedras de gelo mergulhadas no whisky,
como escolhos à deriva numa consciência sem forma própria.
Onde é que eu errei?...
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2.
O café animava-se ao fim da tarde. Algumas horas de acalmia
Se gostou e quer
após a agitação dos almoços, como se todo o espaço hibernasse
continuar a ler compre o
numa preguiçosa sesta de água mineral e dominó de reformados,
e logo renascia na juventude barulhenta e universitária que
seu exemplar na nossa
ocupava as mesas com grossos compêndios e entupia o ar com
fumo de tabaco e pedidos de cerveja.
LOJA ONLINE.
Era o único estabelecimento das redondezas onde era
permitido fumar, por isso muitos estudantes concentravam-se
ali, os amigos do cigarro e os amigos deles, numa nuvem de
sonhos cinzenta e opaca que rapidamente isolava da atenção a
mesa do canto, livre para o homem poder ocupá-la todos os dias,
quase à mesma hora.
Quando o rapaz chegava, ainda não. Por isso ele nem olhava
para lá, dirigia-se para o epicentro de toda a animação, reconhecia
os colegas de quem se despedira pouco antes, na faculdade, e os
amigos que já não via há um ou mais dias, sem que se tivesse
despedido deles então.
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