contempt of court - Conselho da Justiça Federal
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contempt of court - Conselho da Justiça Federal
CONTEMPT OF COURT: EFETIVIDADE DA JURISDIÇÃO FEDERAL E MEIOS DE COERÇÃO NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E PRISÃO POR DÍVIDA - TRADIÇÃO NO SISTEMA ANGLO-SAXÃO E APLICABILIDADE NO DIREITO BRASILEIRO MARCELO GUERRA 312 Série Cadernos do CEJ, 23 I nicialmente, antes de entrar no tema, agradeço-lhes o convite, extremamente honroso, para participar deste debate com meus colegas, juízes, professores e alguns convidados. Agradeço também ao Conselho da Justiça Federal, na pessoa do ministro Hélio Mosimann, e à Universidade Federal Fluminense (UFF), na pessoa do Dr. Ricardo Perlingeiro, a quem, aliás, vai um agradecimento especial e sincero, pois, se por ele já nutria admiração enquanto jurista, passei a admirá-lo ainda mais como excelente empreendedor acadêmico e figura humana ímpar, como prova este curso. O Módulo V denomina-se “Contempt of Court e Fazenda Pública”. O Dr. Ricardo Perlingeiro pediu-me para tentar substituir a Dra. Ellen Gracie Northfleet na seguinte exposição: “Comtempt of Court: Efetividade da jurisdição federal e meios de coerção no Código de Processo Civil. Prisão civil e prisão por dívida tradição no sistema anglo-saxão e aplicabilidade no Direito brasileiro”. Daí se infere que minha tarefa será fazer uma exposição comparativa entre o sistema de tutela executiva anglo-americano e o sistema de tutela executiva brasileiro, abordando as medidas coercitivas postas à disposição do juiz em ambos os sistemas e dando ênfase à questão do uso da pri- são civil como medida coercitiva; portanto, a ordem lógica do nosso trabalho não pode deixar de ser a de uma breve exposição sobre o sistema angloamericano, na perspectiva das medidas coercitivas, e o sistema brasileiro, anterior à Reforma de 1994 e à atual, para estabelecer essa comparação e tirar algumas conclusões. Quanto ao sistema, inicialmente, gostaria de estipular uma terminologia que será usada freqüentemente: por sistema de tutela executiva, pretendo significar o conjunto de meios executivos postos à disposição, em um dado ordenamento, do juiz para prestar tutela executiva, que pode ser definida, de modo amplo, como a entrega ao titular de um direito subjetivo, de um resultado prático, igual ou correspondente ao que obteria se esse direito viesse a ser espontaneamente satisfeito. Portanto, no conceito de tutela executiva, se faz abstração da disciplina processual que, em cada ordenamento, pode ser diversamente estabelecida para se obter esse resultado. Abstraise, pois, nesse tratamento, uma idéia muito rígida de processo de execução. Analisaremos a questão na perspectiva da tutela executiva enquanto resultado prático e do sistema de tutela executiva como o conjunto de meios judiciais, abstraindo – insisto – a disciplina procedimental da utilização desses Execução contra a Fazenda Pública meios. Por meio executivo, por sua vez, pretendo significar o ato ou conjunto de atos judiciais com os quais concretamente o juiz obtém ou procura obter o resultado concreto, ou seja, a tutela executiva. Após essa estipulação prévia terminológica, trataremos da exposição do sistema de tutela executiva angloamericano e do sistema de tutela executiva brasileiro, por meio de um resumo extremamente sucinto. O primeiro ponto para se entender o sistema de tutela executiva norte-americano é dar a conhecer que não existem títulos executivos extrajudiciais nessa família de ordenamentos, especialmente na Inglaterra e nos Estados Unidos. Portanto, toda execução é judicial. Feita essa observação, precisamos compreender uma distinção extremamente relevante entre os chamados money judgments e os others than money judgments, ou seja, as sentenças que impõem condenação pecuniária e todas as demais sentenças, entre essas há tanto as declaratórias e constitutivas quanto as que impõem outro tipo de obrigação que não a de pagar quantia, o que nos importa, porque, obviamente, os others than money judgments, que consistem em uma sentença declaratória ou constitutiva, não comportam execução. 313 Por que essa distinção é importante? Porque, quando se trata de sentença pecuniária, o money judgment, a sentença que impõe uma condenação em se pagar quantia, normalmente o meio executivo vem previsto na própria lei, o qual se assemelha, nos seus aspectos essenciais, à nossa conhecida expropriação forçada, ou seja, os money judgments, sentenças pecuniárias, são executados, predominantemente, por meio executivo tipificado em lei e consistem em apreensão de patrimônio do devedor, transformando-o em dinheiro. Já as sentenças não-pecuniárias, aquelas, obviamente, que comportam execução, impõem ao réu a obrigação de dar coisa diversa de dinheiro, fazer ou não-fazer, são executadas mediante meios fixados livremente pelo juiz. Este é um aspecto dos mais característicos da execução no sistema anglo-americano: a liberdade do juiz na fixação dos meios executivos mais adequados a cada caso. Esses meios tanto podem ser subrogatórios como coercitivos. Lembro-lhes que, por meios sub-rogatórios, temos aquelas medidas judiciais com as quais o juiz, substituindo se a pessoa do devedor, realiza a prestação devida e, por meios coercitivos, temos aquelas medidas com as quais o juiz ameaça o devedor de modo a induzi-lo a realizar a prestação devida. 314 Série Cadernos do CEJ, 23 É nesse contexto que situaremos o contempt of court, porque está associado às medidas não exclusivamente coercitivas, que o juiz pode utilizar. Repito: o uso de medidas coercitivas pelo juiz americano situa-se no âmbito desse Instituto, que envolve outras medidas, inclusive heterogêneas. O estudo do contempt of court suscita-nos algumas dificuldades prévias, que são simples de serem resolvidas logo no início, mas requerem certo esclarecimento terminológico. Realmente, a qualificação jurídica de uma determinada conduta da parte, do terceiro ou de um advogado, como o contempt of court foi o que permitiu desenvolver, na tradição anglo-americana, um conjunto de medidas judiciais e identificar ou reivindicar o poder de o juiz utilizá-las. Confunde-se um pouco, do ponto de vista terminológico, muito freqüente entre nós, a expressão contempt of court, pois, normalmente, referimo-nos não apenas ao que literalmente quer dizer – trata-se de uma conduta –, mas, também, às medidas que o juiz pode utilizar para reagir a ela. Precisamos estar atentos, porque, quando falamos que o contempt of court consiste na possibilidade de prisão civil, não estamos inteiramente corretos, ou melhor dizendo, trata-se de certa figura de linguagem em que tomamos o todo pela parte. Esclareçamos que contempt of court designa, especificamente, várias condutas, que, como veremos, são diversificadas e até heterogêneas. Ao poder de reagir a essas condutas, deveríamos reservar uma expressão mais precisa, como é feito na literatura inglesa: contempt power ou poder de reagir ao contempt. As medidas com as quais o juiz pode reagir a essas condutas chamar-se-íam contempt sanctions ou sanções ao contempt. Haveria ainda os contempt procedings, que seriam os procedimentos mediante os quais se apura a ocorrência dessa conduta, contempt of court, empregando as medidas designadas ou relativas ao seu combate. Pessoalmente, sinto a importância de fazer esse esclarecimento, porque lhes permite uma maior clareza. Nessa realidade, não consigo dizer instituto jurídico, porque, normalmente, é um conjunto de normas jurídicas, e o contempt of court, como conjunto, vai além da idéia de instituto jurídico, pois envolve a qualificação jurídica de determinadas condutas, o poder de reagir e as medidas utilizadas nessa reação judicial. Apenas no sentido metafórico, podemos falar no contempt of court como um instituto, já que é mais um aspecto de um segmento do ordenamento anglo-americano. Execução contra a Fazenda Pública Após esses esclarecimentos, analisemos rapidamente as diferentes modalidades de contempt of court, que são relevantes aqui, ou seja, as diferentes condutas que podem ser qualificadas como contempt of court, porque, com base em uma categorização dessas condutas, encontraremos as distintas medidas possíveis para a reação. Chega a ser engraçado o elenco de situações concretas, que, na jurisprudência e doutrina anglo-americana, são qualificadas como contempt of court. Não sei se os senhores tiveram a oportunidade de acompanhar ou se se lembram do caso O. J. Simpson, em que o promotor fez uma afirmação, um comentário, uma expressão de revolta, algo assim, diante do juiz, e este o advertiu que, se insistisse naquilo, seria considerado contempt of court; ou seja, o contempt of court pode ser considerado como condutas diversas, desacato à corte literalmente, desprezo ao Tribunal, não apenas o descumprimento de ordem judicial: a roupa com que a parte ou o advogado vai ao Tribunal; a expressão facial de um advogado ou de uma parte, a publicação de uma matéria relativa a um processo em andamento; a tentativa de se agredir o juiz, o advogado, algum oficial de justiça ou alguma parte. Há um elenco enorme de condutas que são pratica- 315 das tanto em relação ao órgão jurisdicional como à parte, ao advogado e ao oficial de justiça. No entanto, dentre essa extrema variedade de condutas qualificadas como contempt of court, vislumbrase a possibilidade de várias classificações ou categorizações. Uma das mais importantes, mas não no nosso contexto, é a que distingue o contempt direto do indireto: o direto é a conduta desrespeitosa, praticada perante o juiz, in face of the court, “na cara da corte”, e o indireto é aquela praticada fora do estrito ambiente judicial, da presença do juiz. Essa distinção é importante para estabelecer a questão do proceding, porque a um contempt direto se reage rapidamente, sem maiores formalidades. Se um juiz entender que alguém o desacatou, imediatamente o condena em contempt e estipula a sanção, aspecto muito criticado no instituto do Direito americano, em que dizem os críticos que o juiz, nessa hipótese, acumula as posições de vítima, testemunha e acusador também. Só que, no nosso caso, essa crítica não se aplica, porque, como veremos, o tipo de contempt associado ao desrespeito e ao descumprimento de ordem judicial é sempre o indireto. A classificação mais importante para nós é a que distingue o contempt 316 Série Cadernos do CEJ, 23 of court civil do contempt of court penal, que certamente não é a conduta em si, porque qualquer conduta tanto pode ser qualificada como civil ou penal, nem as sanções, pois essas podem ser utilizadas para reagir a um e a outro, sendo em tudo idênticas, mas o propósito da reação. Ao contempt civil o juiz reage para obter o cumprimento de uma prestação do contemptor, ou seja, daquele que cumpre conduta desrespeitosa; no contempt penal, o propósito da medida reativa é apenas a punição. Essa distinção é extremamente importante, porque as nossas medidas coercitivas estão estritamente relacionadas ao contempt civil. O que existe, no Direito norte-americano e no Direito inglês, como medida coercitiva, são as sanções ao contempt civil. Até pela natureza de uma medida coercitiva, encontramos um limite, isto é, não se pode induzir alguém a fazer algo: primeiro, quando já está feito; segundo, quando é praticamente impossível de ser realizado; esses são os critérios utilizados para se distinguir um e outro. O desrespeito a uma ordem judicial pode ser caracterizado como contempt civil e contempt penal, podendo reagir-se a ambas situações. Se a ordem judicial não pode ser mais cumprida, jamais aquele descumprimento vai se caracterizar como contempt civil e jamais vai dar lugar a uma medida coercitiva. Exemplo: se uma ordem judicial determinou que fosse exibida no dia 07 de setembro uma determinada propaganda, e essa ordem foi desrespeitada – quer dizer, naquele dia específico, ela não foi exibida –, no dia seguinte, a ordem não poderá ser cumprida, o que jamais poderia ser qualificado como contempt civil, e não se poderia utilizar uma medida coercitiva como reação a essa conduta; esse ato desrespeitoso apenas será punido. A distinção entre contempt civil e penal é essencial para estabelecermos o regime das medidas sancionadoras ou reativas à conduta desrespeitosa. Portanto, há dois regimes: o coercitivo e o punitivo. O que os distingue é, precisamente, o propósito. Quando, na verdade, para se reagir a uma atitude desrespeitosa, busca-se o cumprimento de uma decisão, ocorre o contempt civil, e a medida caracteriza-se como coercitiva, com todas as conseqüências daí decorrentes, sendo a mais importante a impossibilidade de aplicação quando não for mais praticamente possível o cumprimento, devendo cessar sua aplicação quando cumprida a sentença; daí se dizer, por exemplo, quando a sanção utilizada seja a prisão civil ou a prisão, no caso de contempt civil, que se conhece a fórmula: o ofensor vai à cadeia com a Execução contra a Fazenda Pública chave no bolso, sai na hora que quer, basta apenas cumpri-la; ao passo que, se o propósito da reação for o de punir, a prisão é estipulada com o prazo certo, e ele continuará preso enquanto não esgotado o prazo. Feita essa distinção, passemos às sanções. Há um ponto muito importante para nossa futura comparação: as sanções utilizadas para se reagir ao contempt of court, apesar de a mais famosa ser a prisão civil, não é apenas essa, ao contrário, existe o poder indeterminado de o juiz fixar a sanção cabível em cada caso. O uso da prisão como reação ao contempt of court tem sido de fato muito criticado, especialmente no Direito americano, porém, apenas como reação ao contempt penal; o uso coercitivo da prisão como reação ao contempt of court permanece intacto, com o seu valor reconhecido. No entanto, a crescente humanização do Direito tem levado a que tenha sido praticamente abolida a prisão indeterminada como medida coercitiva, porque, pela estrita lógica do instituto, como medida coercitiva que é, o único limite seria o cumprimento da obrigação. Em princípio, poder-se-ia passar o resto da vida na cadeia enquanto não se cumprisse uma determinada ordem judicial, o que ocorreu muito na tradição anglo-americana. Há um fato muito 317 curioso: pensamos que o Direito americano é todo casuístico, feito pelo juiz, porém, quase todo Direito americano está legislado hoje em dia, e a tendência é aumentar. Resultado: em quase todos os estados, há legislação estipulando um limite temporal à prisão como reação ao contempt civil, ou à prisão civil ou coercitiva. Além de prisão, pode-se impor multa diária. As duas grandes medidas coercitivas no Direito anglo-americano são a prisão e a multa diária. Há outras muito interessantes, algumas extremamente curiosas, outras muito úteis a um sistema que esteja buscando exemplos, como é o nosso caso. Um exemplo de medida coercitiva muito utilizada na Inglaterra, especialmente contra sindicato que se recusa a cumprir uma ordem judicial de cessar uma greve considerada ilegal, é o seqüestro coercitivo. Em vez do seqüestro cautelar, em que se realiza uma constrição da porção de um fragmento do patrimônio do devedor para assegurar uma futura execução, no seqüestro coercitivo, todo o patrimônio é constrito com a única finalidade de complicar ao máximo a sua vida. Por isso, o seqüestro envolve todo o patrimônio do devedor, do qual apenas pode se dispor mediante autorização; a esperança é de que a parte ceda, na sua resistência psicológica, ao cumprimento daquela ordem judicial. 318 Série Cadernos do CEJ, 23 Equiparo o seqüestro coercitivo com a prisão civil de empresa, porque sua liberdade consiste na disposição de seu patrimônio. Apreender esse patrimônio é como prender alguém. Esse tipo de seqüestro é, realmente, muito mais próximo de uma medida pessoal do que de uma patrimonial, já que nele, em princípio, não haverá desembolso de quantia, ou seja, a parte que sofre seqüestro não desembolsa quantia alguma. Outra medida curiosa encontramos, por exemplo, em uma cidadezinha americana, onde um xerife que porfiava em ofender, com expressões racistas, determinados grupos de negros, diante de ser condenado a não reproduzi-las, insistia em não cumprir a decisão judicial. O juiz, como medida coercitiva, tomou o seu distintivo – não o desconstituiu da função, apenas fêlo em um ato simbólico, o que, em uma cidade pequena, provincianíssima, pode ser de extrema relevância – e, com essa atitude, obteve o cumprimento. Sem aquele distintivo, uma autêntica capitis diminutio, o xerife, então, cumpriu a decisão. Outra medida, não curiosa, mas extremamente útil, é o impedimento de atividade. Há aquele dilema de como se obrigar alguém a cumprir uma obrigação de fazer não apenas infungível, mas que envolva elementos de criatividade. Em um determinado estado norte-americano, uma dessas divas da ópera recusava-se a cumprir um contrato, a se apresentar em determinada companhia, em determinado espetáculo. Como medida coercitiva, o juiz determinou que, naquele estado, a diva estava impedida de cantar enquanto não cumprisse as apresentações contratadas. Ela não desembolsou dinheiro, não foi colocada na cadeia, porque, se o juiz assim determinasse, ela não teria como cantar. Por aí os senhores vêem como é aberto o leque de opções dadas ao juiz no uso das medidas coercitivas, sanções com as quais reage ao contempt civil. O último tópico, para encerrar a exposição sobre o sistema anglo-americano, é o campo de aplicação das medidas coercitivas. Vimos que as medidas coercitivas, no Direito anglo-americano, podem ser utilizadas em qualquer tipo de obrigação que não seja a de pagar quantia. Não por alguma tradição, mas por um movimento, ao que parece mundial, do século passado, que culminou na abolição por dívida stricto sensu a prisão civil, no cumprimento de obrigação de pagar quantia, foi banida do sistema anglo-americano, hoje, por adesão a leis que baniam essa medida. Execução contra a Fazenda Pública Qualquer tipo de obrigação que não seja pecuniária, exceção feita aos créditos alimentícios, mediante os quais também é possível a prisão civil no Direito americano, pode ser tutelada por meio de medidas coercitivas, ou seja, o descumprimento de qualquer decisão judicial, que não seja a que imponha o pagamento de quantia, pode ser qualificado como contempt of court, conduta a que se reage por meio de prisão civil. Insisto em um ponto: as medidas coercitivas podem ser utilizadas contra qualquer pessoa. Não há limite de que somente a parte, no processo, pode cometer contempt e sofrer medida punitiva ou coercitiva; parte, terceiros, jurados, advogados, oficiais de justiça, qualquer um pode ser considerado em contempt; contra qualquer um pode ser dirigida uma determinada ordem, e o seu cumprimento pode ser efetivado por meio de medida coercitiva. O fundamento jurídico que permite uma utilização tão ampla do contempt power é muito interessante. Apesar de pouca sustentação teórica, dizem os juristas anglo-americanos que – aliás, nessa decisão que o Dr. Ricardo fez circular da ação declaratória constitucional, vi invocar-se a idéia de poder imanente do Judiciário como poder de 319 conceder medidas cautelares não previstas em lei, exatamente o fundamento que vem sendo utilizado há quatro ou cinco séculos, porque, no começo, a fundamentação era sutilmente diversa, era algo embrionário – é inerente à condição de juiz o poder de manter, de assegurar a autoridade do órgão e fazer cumprir as suas determinações. Por isso, dispensa-se qualquer autorização legislativa expressa para utilizar medidas que impliquem a obtenção desses objetivos. Hoje em dia, quase toda a legislação estadual norte-americana, a federal e a inglesa já prevê o uso dessas medidas. Há, inclusive, uma lei sobre contempt of court no Direito inglês. Recentemente, no Direito americano, foi resgatada a idéia de poderes inerentes quando se considerou inconstitucional uma determinada limitação legislativa ao uso de medidas coercitivas, limites esses estipulados por uma lei. A Corte Suprema decidiu que o poder de punir o desacato nas suas duas modalidades, por ser inerente aos tribunais, não admite uma restrição excessiva do legislador. O legislador pode, sim, estabelecer restrições, mas que não cheguem a esvaziar esse poder, porque este é inerente à Corte. Em linhas gerais, essa é a exposição sobre o Direito americano. 320 Série Cadernos do CEJ, 23 Como é o sistema de tutela executiva no Direito brasileiro hoje? Antes disso, vamos entender como era o sistema até a Reforma de 1994. Havia um sistema de tutela executiva que observava estritamente a tradição românico-germânica, que tem, no Código de Processo Civil alemão, o seu referencial máximo no que diz respeito às legislações processuais recentes, às grandes codificações do processo na matéria de execução. Segundo essa tradição, o legislador brasileiro tipificou os meios executivos cabíveis com base em uma correspondente tipologia das obrigações, adotando aquela tipologia clássica que distingue as obrigações de dar dinheiro, coisas diversas, de fazer e não-fazer, criou um sistema de tutela executiva típico, ou seja, um sistema em que estabeleceu, para cada tipo de obrigação, a medida ou as medidas executivas cabíveis, retirando inteiramente a possibilidade de o juiz criar alguma medida não prevista em lei. Nosso sistema era típico, precisamente porque toda e qualquer medida executiva a ser utilizada pelo juiz precisava estar prevista em lei. A orientação de observar estritamente o princípio da tipicidade na construção de um sistema de tutela executiva tem a óbvia vantagem de assegurar a previsibilidade da atuação jurisdicional evitar os arbítrios dos órgãos jurisdicionais, o que, nesse ponto, foi uma conquista. Além disso, a idéia do legislador germânico foi criar um sistema completo quando estabeleceu meios executivos para todo tipo de obrigação. Já que não há outro tipo de obrigação que não seja o de pagar, dar coisas, fazer ou não-fazer e que, para cada um desses tipos de obrigação há um meio executivo correspondente – às vezes há mais de um, como é o nosso caso –, temos, pelo menos em tese, um sistema completo de tutela executiva no qual não existe um tipo de obrigação a que não corresponda uma medida executiva. Ocorre que essa completitude, se está presente em uma consideração abstrata do sistema, embora tenha sido sentida nos diversos sistemas europeus já há algum tempo, no caso brasileiro, é falha, não existe em uma perspectiva concreta. Definitivamente, nosso sistema típico de tutela executiva apresenta insuficiências. Por insuficiência, vamos entender não as situações em que a execução tornou-se praticamente impossível, por exemplo: não se trata de insuficiência do sistema de tutela executiva quando, para prestar tutela executiva de obrigação de entregar Execução contra a Fazenda Pública coisa, esta se deteriora; ou, para pagar quantia, o devedor é pobre; ou, quando se trata de obrigação de fazer, esta se torna praticamente impossível, como, por exemplo, se o cantor ficar mudo, o pintor ficar cego, perder as mãos ou ambos os casos. As insuficiências dizem respeito àquelas situações em que é praticamente possível a realização da obrigação, mas não pelos meios previstos. Um exemplo de insuficiência: em um sistema em que só se admite, como medida coercitiva, a multa diária, naquela situação em que o devedor de uma obrigação infungível não tem patrimônio suficiente para ser ameaçado pela imposição de multa diária, é ineficaz e, por isso, embora a obrigação seja realizável, a medida coercitiva prevista é insuficiente para exercer pressão psicológica bastante a induzir o devedor ao cumprimento. Outro exemplo: em um sistema como o nosso, em que a medida sub-rogatória de obrigação de fazer apenas é adequada a situações extremamente simples, singelas, ou seja, à realização de um serviço barato, porque, se for caro, torna-se inviável também, tendo em vista que o credor deve antecipar as despesas da execução por terceiro, somente serve para executar um serviço, destruir algo que 321 foi feito, não para uma situação cada vez mais continuada na sociedade contemporânea, em que a obrigação de fazer corresponde, na verdade, a uma reestruturação parcial de pessoa jurídica ou ao cumprimento de uma atividade no âmbito interno de pessoa jurídica, como ocorre, freqüentemente, contra a Fazenda Pública. Não se pode licitar para que o administrador implante um determinado índice. A obrigação é fungível, mas não mediante execução por terceiro que, no caso, é inteiramente inadequada, insuficiente. Essas são as situações que caracterizam a insuficiência de um sistema de tutela executiva. Estão excluídas, portanto, as situações de execução praticamente impossível. Para compreendermos melhor o status, o significado constitucional das insuficiências, como podemos, de lege lata – porque toda perspectiva de lege ferenda é muito importante, mas bastante frustrante na perspectiva imediata –, saná-las hoje, independentemente de reformas, é extremamente conveniente fazermos uma brevíssima digressão sobre a teoria dos direitos fundamentais, porque, nos quadrantes dessa teoria, podemos adequadamente resolver a problemática. Aqui se falou muito no direito fundamental à tutela efetiva. Ora, quan- 322 Série Cadernos do CEJ, 23 to ao principal conteúdo, à principal exigência que podemos reconhecer como integrante desse direito fundamental, não é nova sua expressão na cultura jurídica. Na verdade, a principal expressão da exigência que integra a essência do direito fundamental à tutela efetiva já havia sido captada por Giuseppe Chiovenda, em 1901, quando escreveu um artigo sobre as ações relativas à obrigação de prestar declaração de vontade. Nesse artigo, ele cunhou a famosa fórmula chiovendiana de que o processo deve dar a quem tem razão tudo e exatamente aquilo que tem direito a obter. Assim como quando falamos em direito fundamental à liberdade, à vida, esses conteúdos, essas exigências são quase tão antigas quanto a humanidade. Da maneira como conhecemos a reivindicação de exigências hoje, claro que é fruto de uma peculiar cultura européia moderna, pós-Idade Média, pois se trata de exigências antigas, nesse ponto de vista. O que há de novidade em referir-se a esses valores ou à efetividade da tutela jurisdicional como direito fundamental? Será que é apenas um modismo referir-se a coisas que todos conhecemos? Não. Para se caracterizar essas exigências como direitos fundamentais é preciso invocar um aparato conceitual e jurídico que lhes atribui um regime muito peculiar, o qual se caracteriza, predominantemente, pela força positiva, normativa imediata que se lhes reconhece em um dado ordenamento, ou seja, falar que um determinado valor é um direito fundamental não é apenas utilizar uma terminologia nova para algo antigo, mas utilizar um paradigma inteiramente novo no enfrentamento de questões jurídicas antigas cruciais. Dizer que um determinado valor é direito fundamental é reconhecer que aquele valor é imediatamente aplicável, exigível em um ordenamento jurídico, não se trata apenas de uma exortação de cunho moral ou ético, à qual o Direito, o ordenamento jurídico, é indiferente na falta de norma expressa. Reconhecer, portanto, que um determinado valor é direito fundamental é dizer que está protegido por uma norma jurídica imediatamente aplicável e hierarquicamente superior a todas as demais. Em síntese, de um modo muito geral, a aplicabilidade imediata das normas jus fundamentais caracteriza-se precisamente por tudo aquilo, em um aspecto positivo, que for compatível e Execução contra a Fazenda Pública necessário à concretização desse valor, considera-se exigível tal como se fosse expressamente autorizado em uma regra; ao passo que tudo o que é contrário a esse valor se considera vedado no sistema tal como se essa proibição resultasse de uma norma específica. Há dois fatores principais que permitiram que o constitucionalismo contemporâneo chegasse a essa conquista, que já foi qualificada por Jorge Miranda como uma revolução copernicana, no sentido de que o centro gravitacional do universo jurídico transferiu-se da lei para a dignidade da pessoa humana, matriz de todos os direitos fundamentais. Um deles foi uma sacudida em nossas convicções ideológicas, proporcionada pela segunda guerra mundial, na qual foram cometidas atrocidades, horrores, barbaridades, todas legais. A necessidade de se reagir a essa conduta sem invocar um direito natural levou o Tribunal Constitucional alemão a reconhecer seriamente as normas constitucionais. O primeiro passo, portanto, da conquista dos direitos fundamentais é levar a sério a Constituição. Aquelas palavras bonitas não são apenas palavras bonitas, mas normas que vinculam o Estado. O que permitiu a conquista, do ponto de vista teórico, foi a superação, 323 no campo da teoria do ordenamento jurídico, daquela concepção estritamente positivista de ordenamento como conjunto de regras, ou seja, conjunto de normas jurídicas de estrutura lógica fechada, segundo a qual, à determinada previsão de um fato, se atribuía determinado e específico efeito ou conseqüência jurídica. O principal construtor desse modelo de ordenamento jurídico, composto não apenas de normas com essa estrutura, mas, também, de normas com estrutura aberta, foi Ronald Dworkin, que fez oposição a Harth, um dos expoentes máximos do positivismo inteligente, que concebia o ordenamento jurídico como um conjunto de regras. Ronald Dworkin fez a distinção: existem normas jurídicas de estrutura fechada, que são regras, e normas jurídicas com estrutura aberta, que são princípios; essas últimas apenas positivam ou reconhecem determinado valor como uma das pilastras de determinado ordenamento jurídico. O ordenamento jurídico não é, portanto, composto apenas por normas de estrutura lógica fechada, em que à previsão de um fato era imputada uma determinada conseqüência jurídica, mas por valores reconhecidos como nele vigentes, os princípios. As normas de direito fundamental são normas com estrutura aberta, porque apenas um valor é reconhecido: “A lei não excluirá, 324 Série Cadernos do CEJ, 23 da apreciação no Judiciário, ameaça ou lesão a direito.” A norma constitucional não tratou de traçar um fato típico e imputou à ocorrência desse fato um determinado efeito, apenas disse que um determinado valor tem de ser buscado. Ao dar status teórico de norma jurídica às normas abertas constantes na Constituição, que representam as normas asseguradoras dos direitos fundamentais, deu-se um avanço importante na atual configuração dos direitos fundamentais como uma categoria jurídica dotada de regime próprio: o regime da aplicabilidade imediata. Trazendo para o campo da atuação jurisdicional, a aplicabilidade imediata se desdobra em alguns corolários. O que significa para o juiz a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais? Primeiro, o poder dever de interpretar as normas aplicáveis ao caso, de forma a extrair-lhes um alcance e um sentido que maior proteção assegure aos direitos fundamentais em jogo. Trata-se da famosa interpretação, conforme a Constituição, na sua feição moderna, porque existe outra feição da interpretação conforme, em que se busca simplesmente salvar a constitucionalidade de uma norma infraconstitucional; ambas são válidas, mas, nessa vertente, a interpretação conforme é que invoca o cânone da hermenêutica especificamente constitucional, o princípio da máxima eficiência. O primeiro corolário da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais é que o juiz, na sua atividade hermenêutica, procure dar um alcance, um sentido à norma que permita conceder maior proteção possível a um determinado direito fundamental. O segundo e terceiro corolários, ambos relacionados à aplicabilidade imediata para o juiz, quanto a todas as medidas judiciais que se revelem necessárias para concretizar um determinado direito fundamental, é que o juiz tem o poder dever de adotálas: primeiro, mesmo que não previstas em lei; segundo, ainda que expressamente vedadas em lei – apesar de ser algo expresso em um tom tão radical, não é como parece. Vamos por partes. As normas que asseguram os direitos fundamentais insistem no ponto de vincular o Estado e, fazendo assim, em nada podem ser convertidas, salvo em exortação. Se, no âmbito dessa norma, para dar-lhe cumprimento, o juiz vislumbra a possibilidade de adotar determinada medida que não está prevista em lei, pouco importa, pois a aplicação de uma norma superior não pode ser obstaculizada pela ausência de uma Execução contra a Fazenda Pública norma inferior. Se tomamos a sério a Constituição, se reconhecemos a posição hierarquicamente superior das normas constitucionais, a omissão legislativa jamais pode ser obstáculo ao cumprimento de uma norma constitucional; portanto, trata-se de uma inversão que, durante muito tempo, prevaleceu por razões ideológicas, porque, posta nos seus devidos termos, reflete uma contradição lógica insolúvel: condicionar-se a aplicação de norma superior a uma inferior, o que não pode ocorrer. Quando falamos “aplicar contra a lei”, temos que nos lembrar de uma característica muito importante dos direitos fundamentais: embora sejam abstratamente coerentes entre si, até porque todos têm a mesma matriz, a dignidade da pessoa humana, concretamente, eles entram em conflito. Todos estamos de acordo com a preservação do meio ambiente, com o desenvolvimento da economia, mas, no momento em que se construir um shopping center, esses dois valores podem se revelar em conflito. É quase da essência dos direitos fundamentais, em uma sociedade democrática inclusiva, em que os mais diversos segmentos vão encontrar agasalho no seu texto fundamental, a existência de uma ordem pluralista de valores e, portanto, a possibilidade sempre latente de 325 choque entre esses valores em uma perspectiva concreta. Esse choque, porém, é dotado de um status especial. Ao contrário de um conflito de regras em que o aplicador afasta uma delas, considerando-a não aplicável ao caso ou excluindo-a do ordenamento jurídico por critérios hermenêuticos, o conflito entre princípios, direitos fundamentais, não pode ser resolvido dessa maneira, até porque ambas as normas preservam sua legitimidade, sua validade. Elas não se chocam 100%, mas, no caso concreto, ambas têm o mesmo status: nenhuma é superior a outra; ambas são abertas: dão lugar a um sem-número de aplicações e, nem em todas, se revelam em conflito. É necessário, pois, um procedimento ou um conjunto de critérios que permitam, precisamente, realizar aquilo que se chama de concordância prática entre esses valores, preservando-os ao máximo possível, ainda que, em alguma medida, um deles seja topicamente sacrificado em relação ao outro. Esses critérios correspondem ao princípio da proporcionalidade. Há, aqui, uma advertência que diz respeito à aplicação contra legem: o princípio da proporcionalidade, hoje se reconhece, não é apenas um critério hermenêutico, mas uma norma constitucional, porque não se admitiria um ordenamento constitucional que previsse 326 Série Cadernos do CEJ, 23 valores em conflito, em que não estivesse implícita uma norma que determinasse a preservação ao máximo possível desses valores na solução do conflito entre ambos. O princípio da proporcionalidade, como mandamento de otimização dos valores em conflito, é uma norma constitucional. O aplicador, quando constatar que uma determinada norma infraconstitucional violou excessivamente, em um determinado caso concreto, a realização de um direito fundamental, deve, naquele caso, afastar a aplicação daquela norma, não por um arroubo de autoridade, mas porque lhe demanda o princípio da proporcionalidade. Nós, juízes, estamos vinculados ao princípio da proporcionalidade, justificando que o juiz, para dar aplicação a um direito fundamental, pode tomar medidas vedadas em lei sempre que, e exclusivamente, na perspectiva de caso concreto, uma determinada vedação legal se revele uma excessiva restrição a outro direito fundamental. Não é uma possibilidade abstrata, genérica de que o juiz sempre pode fazê-lo. Da mesma forma, o juiz pode deixar de aplicar uma medida autorizada em lei sempre que o seu uso resultar de uma excessiva violação a outro direito fundamental. A prisão civil está abstratamente autori- zada na lei, mas não é em toda situação que seu uso passa no crivo da proporcionalidade, é o que a prática jurisprudencial recente, a doutrina, tem evidenciado no campo da prisão de alimentos. A lei não estabelece que a prisão de alimentos seja utilizada apenas em alimentos vencidos; no entanto, utiliza inconscientemente o princípio da proporcionalidade, sendo a isso que chegaram a jurisprudência e a doutrina, limitando o uso onde não existia essa limitação na prisão civil. O uso indiscriminado na prisão civil, mesmo na hipótese autorizada pela lei, violaria excessivamente o princípio da proporcionalidade. A justificação desses dois últimos corolários da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, no que diz respeito à possibilidade de o juiz concretizar esses direitos, adotando medidas não previstas em lei e mesmo medidas vedadas expressamente em lei, é importante para compreendermos o atual significado do direito fundamental à tutela efetiva no campo da execução e o seu impacto no sistema de tutela executiva, notadamente na qualificação das insuficiências desse sistema. No que diz respeito ao processo de execução, o que significa dar a quem tem razão tudo aquilo, Execução contra a Fazenda Pública exatamente aquilo que tem direito a obter? Significa a exigência de um sistema concretamente completo de tutela executiva. No campo da execução, o direito fundamental da tutela efetiva, significa que o sistema deve armar o juiz de meios concretamente capazes de promover a satisfação integral de qualquer direito, contra quem quer que seja – essa advertência é importante. Se é assim, a insuficiência que apresentamos ou constatamos do sistema tutela executiva significa violação ao direito fundamental. Dizer “desculpeme, credor, seu direito é reconhecido pelo ordenamento, mas, infelizmente, não posso satisfazê-lo por não haver meio previsto para isso, ou o meio previsto não se aplica a seu caso, está vedado” é utilizar um paradigma que deve ser considerado ultrapassado, pois é permitir a denegação de tutela jurisdicional efetiva, portanto, violar o direito fundamental à tutela efetiva. Nessa perspectiva, temos que o § 5º do art. 461 do Código de Processo Civil, ao reconhecer expressamente poderes ao juiz de criar medidas executivas não-previstas em lei nas obrigações de fazer e não-fazer, revela-se como uma concretização apenas parcial do direito fundamental à tutela efetiva, pois, do artigo 5º, inciso XXXV, da 327 Constituição, se deduz o poder de o juiz criar medidas mais adequadas, quando falhem aquelas previstas na lei, em qualquer hipótese, não apenas nas obrigações de fazer. Por que o legislador só falou em obrigações de fazer e não-fazer? Significa invocar que, onde o legislador quis, disse e, onde não quis, calou, ou seja, que ele o fez vedando esse poder em outros sistemas? Não. Ocorre que, realmente, no campo das obrigações de fazer e não-fazer, é que essas insuficiências se revelam de forma mais intensa e dramática, mas podem se revelar no campo da obrigação de dar também. Sobretudo no campo da obrigação de fazer, quando o devedor é uma pessoa jurídica, essas insuficiências se revelam não apenas dramáticas, pois o leque de possibilidades de novos meios executivos é muito maior. Quando há um devedor, pessoa física, que não tem bens expropriáveis, pelo menos visíveis, realmente, não há o que se fazer. A expropriação forçada é muito adequada, mas, em se tratando de pessoa jurídica, a questão é muito diferente. Pensem na possibilidade de ser o devedor pessoa jurídica e na nomeação de um interventor ou junta de 328 Série Cadernos do CEJ, 23 interventores para fazer auditoria ou devassa nos livros da empresa a fim de levantar a real situação patrimonial, ou seja, o que, realmente, entra e o que sai daquela empresa, para estipular uma forma mais proporcional que não reduza a empresa a nada e que satisfaça o crédito; pensem na possibilidade de empresas, as quais insistem em utilizar expedientes procrastinadores, que têm bens, mas que indicam bens, ainda que obedecendo à ordem legal, de escassa liquidez; pensem na possibilidade de um juiz aplicar uma multa diária à empresa – fiquei muito honrado ao saber que essa possibilidade, que defendi na minha tese, também foi defendida no 2º Grau, no Rio Grande do Sul. O Dr. Carlos Alberto Alves de Oliveira me enviou um acórdão em que defendia que à empresa foi aplicada multa diária na obrigação de pagar quantia. Há um colega, na Justiça do Trabalho, que tem procedido da mesma forma, tendo obtido muito sucesso na execução trabalhista contra a empresa. Nessa perspectiva, a indeterminação ou o poder executivo geral, reconhecido no § 5º do artigo 461, no âmbito das obrigações de fazer, deve ser interpretado como uma concretização parcial do direito fundamental à tutela executiva no processo de execução. Hoje, podemos dizer que o juiz pode, respeitados os limites da dignidade do devedor, impostos pela proporcionalidade, utilizar qualquer meio executivo que se lhe revele necessário e adequado para proporcionar satisfação integral de qualquer direito contra quem quer que seja: obrigação de dar coisa, de pagar quantia e, obviamente, de fazer e não-fazer. Esses meios envolvem intervenções subrogatórias e coercitivas. É importante a comparação com a prática estrangeira e que nos alimentemos da experiência angloamericana na criatividade, porque, no fundo, esta será necessária ao juiz na escolha de meios coercitivos não previstos na lei, além da multa diária, que poderá ser aplicada pelo juiz em outras obrigações, contra terceiros, como pode utilizar medidas coercitivas dela diversas. Ainda nessa perspectiva, examinaremos a questão da prisão civil no nosso sistema atual. À luz dessa abertura, estaria compatível a utilização da prisão civil com a previsão, com a autorização genérica da Constituição, parcialmente concretizada no § 5º do artigo 461, para o juiz criar meios não-previstos em lei? Perfeitamente, mas não podemos sustentar isso simplesmente, sem enfrentarmos uma angustiante questão constitucional, que é a inter- Execução contra a Fazenda Pública 329 A determinação do exato alcance e sentido dessa norma constitucional é uma questão prejudicial, que não pode ser desprezada pelo intérprete. Não podemos sair defendendo a prisão civil, sem antes estabelecer o exato sentido da norma constitucional. O intérprete tem que “arregaçar as mangas” – se ele tem uma suposição de trabalho, como tenho, de que é justa a utilização de prisão civil fora das hipóteses previstas na Constituição –, resolver esse problema, sem desconsiderá-lo, porque a norma constitucional admite uma interpretação, segundo a qual só será constitucionalmente lícito o uso de dois tipos de prisão civil: para devedor de alimentos e para depositário infiel. É uma interpretação sustentável da norma constitucional. Se quisermos defender outras hipóteses, precisamos descobrir outra interpretação possível e argumentar que seja melhor. interpretações distintas, dependendo do sentido que se atribua à expressão “dívida”. Se por “dívida” se entender obrigação civil tout court, a conseqüência é que as únicas exceções à vedação constitucional são as que o próprio texto aponta ou se entendermos que “não se admite a prisão civil como medida coercitiva para a satisfação de obrigações civis (...)”, as exceções são taxativas. Se o âmbito de aplicação da prisão civil é generalizado por meio da expressão “dívida” como obrigação civil pura e simplesmente, admitem-se apenas duas exceções, ou, como diziam os latinos, tollitur quaestio, “acabou-se a questão”. Não teremos o que discutir, a não ser reivindicar, de lege ferenda, uma emenda constitucional, se é que tal emenda seria admissível, tendo em vista as cláusulas pétreas. A proteção dada ao direito fundamental não pode retroceder. Por emenda constitucional, então, não poderíamos restringir a proteção supostamente dada pela vedação da prisão civil. Tentei fazer isso, concentrando a questão em torno do sentido da expressão “dívida”. A norma constitucional que diz que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”, admite duas O problema é que a expressão “dívida” apresenta um outro sentido possível, que é o de obrigação de pagar quantia. Sendo assim, poderíamos ler a norma constitucional como “não se admite a prisão civil para tutelar a obrigação de pagar quantias, salvo devedor de alimentos e depositário infiel”. pretação da norma constitucional que veda e autoriza a prisão civil. 330 Série Cadernos do CEJ, 23 Surge, então, a questão de que depositário não é obrigação de dar. Sim, mas se não se escusa, não pode satisfazer a obrigação pagando pelo preço da coisa? Está na disciplina do Código de Processo Civil. Então, pode se converter em dívida também, stricto sensu. Há algum argumento, algum princípio da hermenêutica especificamente constitucional que possa fundamentar essa interpretação? Entendo que sim. Primeiro, uma interpretação histórica, que não é um método estritamente constitucional, mas relevante. O que aconteceu com a abolição da prisão civil, no século passado, foi em relação à prisão civil por dívida, stricto sensu, como forma de coagir alguém a pagar uma determinada quantia. Pode-se dizer que o que foi banido pelas diversas legislações mundiais e pelas nossas repetidas constituições foi o uso da prisão civil como forma de tutelar o patrimônio. E as únicas hipóteses de se tutelar patrimônio – se é que são hipóteses dessa natureza, e aí se entra em uma outra questão – admitidas no nosso ordenamento são relativas a alimentos e depositário infiel. Além disso, quando pensamos que a prisão civil pode ser medida de concretização de outros direitos fundamentais, tais como o direito fundamental ao ambiente, à preservação da intimidade, à honra, à tutela efetiva, devemos fazer uma interpretação desse dispositivo, segundo o princípio da máxima concordância ou da concordância prática, atribuindo a ele um sentido que restrinja ao mínimo possível a concretização de outros direitos fundamentais em conflito. Temos aqui um conflito entre a proteção da liberdade do devedor e a proteção de outros direitos fundamentais. De saída, o direito fundamental à tutela efetiva e outros que se lhe acrescentam: direito fundamental à vida, ao ambiente, à honra, etc, poderiam ser adequadamente tutelados pela prisão civil. Pensem na heterogeneidade de situações. Por que para se salvar a vida de uma pessoa, autoriza-se a prisão civil, mas esta não é autorizada para assegurar a preservação da integridade física, e, às vezes, da própria vida de dezenas, centenas, milhares de pessoas, como seria o caso de uma obrigação de fazer, cuja violação implicasse um aumento do atentado ao meio ambiente? Então, à luz dessas idéias, desses critérios – concordância prática, etc. –, é que defendi que “dívida” deve ser interpretada como obrigação de pagar quantia. Sendo assim, está aberta a porta ao legislador para criar outras formas de prisão civil, que não para a tutela de obrigações de pagar quantia; Execução contra a Fazenda Pública e, se ele já a escancarou ao juiz, estaria dentro do poder indeterminado deste, estabelecido no § 5º do artigo 461, adotar a prisão civil, não para tutelar obrigações de cunho estritamente patrimonial, que não seja obrigação de fazer. Insisto nesse ponto e estou concluindo – como diz o professor Leonardo Greco – um artiguete sobre a prisão civil de depositário infiel, no qual defendo a utilização das mesmas limitações já reconhecidas na doutrina e na jurisprudência para a prisão civil de devedor de alimentos, ou seja, se já se reconheceu que não se pode aplicar a prisão civil irrestritamente, mesmo nos casos autorizados por lei, mas só quando a sua aplicação for necessária à preservação de um valor mais alto que o patrimonial, a mesma limitação deve ser utilizada em relação ao depositário infiel; seria invocar o princípio da proporcionalidade. Sustentei que só é lícito – se é que ainda existe a figura da prisão civil de depositário infiel no nosso ordenamento, pois se trata de uma questão ainda em aberto, mas, admitindo que seja resolvida, como tende a ser pelo Supremo Tribunal Federal, no sentido de mantê-la, ou admitindo justamente isso – ou só passaria no crivo da proporcionalidade a utilização dessa medida, quando para preservar um valor mais alto que o patri- 331 monial, jamais para fazer, por exemplo, com que uma instituição financeira recupere um bem; isso nunca, porque, se assim fosse, teríamos uma profunda isonomia dentro do sistema entre o devedor de alimentos e a instituição financeira. Não se poderia, então, obter seis meses de prestação alimentícia atrasada por meio da prisão civil, mas se reaver um carro ou o pagamento a ele correspondente. Seria um absurdo. Prisão civil só quando o depositário infiel for o depositário judicialmente constituído. Aqui há outro elemento que não o patrimonial, mas a preservação da dignidade da Justiça, ou, em casos excepcionais, quando, por exemplo, a coisa dada em depósito foram instrumentos cirúrgicos essenciais ou carteiras de um colégio; a um tipo de coisa assim, um tanto quanto fantasiosa, é que ficará reduzida a prisão civil de depositário infiel, se formos coerentes com a restrição imposta no campo dos alimentos. Defendo a prisão civil como medida coercitiva indeterminada, com base nessa interpretação constitucional, mas que não seja indiscriminadamente utilizada em todas as obrigações que não sejam as de pagar quantia e sempre quando, do cumprimento dessa obrigação, revelar-se a 332 Série Cadernos do CEJ, 23 preservação de outro valor que não o estritamente patrimonial. Farei agora, para fechar, a comparação entre o sistema anglo-americano e o sistema brasileiro. Hoje, o sistema brasileiro rompeu inteiramente com a tradição continental ou romano-germânica. No campo da execução, o juiz brasileiro está inteiramente aproximado do juiz americano. E o uso da prisão civil como medida coercitiva, o famoso contempt of court, é hoje reconhecido dentro dessa interpretação controvertida do Texto Constitucional, como uma possibilidade do nosso ordenamento jurídico. Além do que, não temos nada a dever ao Direito americano, ou anglo-americano, em termos de fundamentação teórica, porque eles, até por uma questão de tradição cultural, não se dão muito ao trabalho de encontrar um fundamento jurídico para o uso dessas medidas. Nos livros, apenas três ou quatro linhas, um parágrafo ou dois cuidam do fundamento jurídico do contempt power. É absolutamente trivial. Temos uma construção teórica de peso. Invocamos teorias dos direitos fundamentais, até porque precisamos dessa construção, pois a nossa tradição cultural não é a de um Judiciário forte, mas um Judiciário que nos permita não cumprir a lei. Por isso, minhas palavras causam um certo espanto. Recentemente, ministrando um curso em Curitiba, estava presente uma advogada que atua no campo da execução fiscal. Lamentou-se em relação às empresas, porque consideramos – e com razão – que todo imposto, no Brasil, é injusto, pois não há retorno. Mas, pensem em um país como a Dinamarca, por exemplo, onde se paga mais de 50% de impostos e, no entanto, tudo provém desse pagamento. É profundamente injusto que alguém sonegue imposto. Aqui, o rigor para cumprir as obrigações tributárias é sentido como algo injusto, porque o próprio tributo é tido como injusto; isso é o que está no subterrâneo da resistência ao uso de medidas fortes. Se se reconhece a legitimidade do ordenamento jurídico, nenhuma medida de força se revelaria, em princípio, excessiva para assegurar o seu cumprimento. Se esse ordenamento é tido como legítimo, o órgão a quem cabe assegurar o seu cumprimento efetivo, se não estiver armado com todas as forças, com todas as medidas – inclusive drásticas – será visto como farsante e todas as normas nele postas serão reduzidas a uma mera exortação. _____________________________________ MARCELO GUERRA: Professor Doutor da Universidade Federal do Ceará.