contempt of court - Conselho da Justiça Federal

Transcrição

contempt of court - Conselho da Justiça Federal
CONTEMPT OF COURT: EFETIVIDADE DA JURISDIÇÃO FEDERAL E MEIOS DE
COERÇÃO NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E PRISÃO POR DÍVIDA - TRADIÇÃO
NO SISTEMA ANGLO-SAXÃO E APLICABILIDADE NO DIREITO BRASILEIRO
MARCELO GUERRA
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Série Cadernos do CEJ, 23
I
nicialmente, antes de entrar no
tema, agradeço-lhes o convite,
extremamente honroso, para
participar deste debate com meus colegas, juízes, professores e alguns convidados. Agradeço também ao Conselho da Justiça Federal, na pessoa
do ministro Hélio Mosimann, e à Universidade Federal Fluminense (UFF), na
pessoa do Dr. Ricardo Perlingeiro, a
quem, aliás, vai um agradecimento especial e sincero, pois, se por ele já nutria admiração enquanto jurista, passei a admirá-lo ainda mais como excelente empreendedor acadêmico e figura humana ímpar, como prova este
curso.
O Módulo V denomina-se
“Contempt of Court e Fazenda Pública”. O Dr. Ricardo Perlingeiro pediu-me
para tentar substituir a Dra. Ellen Gracie
Northfleet na seguinte exposição:
“Comtempt of Court: Efetividade da jurisdição federal e meios de coerção no
Código de Processo Civil. Prisão civil e
prisão por dívida tradição no sistema
anglo-saxão e aplicabilidade no Direito
brasileiro”. Daí se infere que minha tarefa será fazer uma exposição comparativa entre o sistema de tutela executiva anglo-americano e o sistema de tutela executiva brasileiro, abordando as
medidas coercitivas postas à disposição do juiz em ambos os sistemas e
dando ênfase à questão do uso da pri-
são civil como medida coercitiva; portanto, a ordem lógica do nosso trabalho não pode deixar de ser a de uma
breve exposição sobre o sistema angloamericano, na perspectiva das medidas
coercitivas, e o sistema brasileiro, anterior à Reforma de 1994 e à atual, para
estabelecer essa comparação e tirar algumas conclusões.
Quanto ao sistema, inicialmente, gostaria de estipular uma terminologia que será usada freqüentemente:
por sistema de tutela executiva, pretendo significar o conjunto de meios executivos postos à disposição, em um
dado ordenamento, do juiz para prestar tutela executiva, que pode ser definida, de modo amplo, como a entrega
ao titular de um direito subjetivo, de
um resultado prático, igual ou correspondente ao que obteria se esse direito viesse a ser espontaneamente satisfeito. Portanto, no conceito de tutela executiva, se faz abstração da disciplina
processual que, em cada ordenamento,
pode ser diversamente estabelecida
para se obter esse resultado. Abstraise, pois, nesse tratamento, uma idéia
muito rígida de processo de execução.
Analisaremos a questão na perspectiva da tutela executiva enquanto resultado prático e do sistema de tutela executiva como o conjunto de meios judiciais, abstraindo – insisto – a disciplina
procedimental da utilização desses
Execução contra a Fazenda Pública
meios. Por meio executivo, por sua vez,
pretendo significar o ato ou conjunto
de atos judiciais com os quais concretamente o juiz obtém ou procura obter
o resultado concreto, ou seja, a tutela
executiva.
Após essa estipulação prévia
terminológica, trataremos da exposição
do sistema de tutela executiva angloamericano e do sistema de tutela executiva brasileiro, por meio de um resumo extremamente sucinto.
O primeiro ponto para se entender o sistema de tutela executiva
norte-americano é dar a conhecer que
não existem títulos executivos
extrajudiciais nessa família de
ordenamentos, especialmente na Inglaterra e nos Estados Unidos. Portanto,
toda execução é judicial. Feita essa observação, precisamos compreender
uma distinção extremamente relevante
entre os chamados money judgments
e os others than money judgments,
ou seja, as sentenças que impõem condenação pecuniária e todas as demais
sentenças, entre essas há tanto as
declaratórias e constitutivas quanto as
que impõem outro tipo de obrigação
que não a de pagar quantia, o que nos
importa, porque, obviamente, os others
than money judgments, que consistem
em uma sentença declaratória ou
constitutiva, não comportam execução.
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Por que essa distinção é importante? Porque, quando se trata de sentença pecuniária, o money judgment, a
sentença que impõe uma condenação
em se pagar quantia, normalmente o
meio executivo vem previsto na própria
lei, o qual se assemelha, nos seus aspectos essenciais, à nossa conhecida
expropriação forçada, ou seja, os money
judgments, sentenças pecuniárias, são
executados, predominantemente, por
meio executivo tipificado em lei e consistem em apreensão de patrimônio do
devedor, transformando-o em dinheiro.
Já as sentenças não-pecuniárias, aquelas, obviamente, que comportam execução, impõem ao réu a obrigação de
dar coisa diversa de dinheiro, fazer ou
não-fazer, são executadas mediante
meios fixados livremente pelo juiz. Este
é um aspecto dos mais característicos
da execução no sistema anglo-americano: a liberdade do juiz na fixação dos
meios executivos mais adequados a cada
caso. Esses meios tanto podem ser subrogatórios como coercitivos.
Lembro-lhes que, por meios
sub-rogatórios, temos aquelas medidas
judiciais com as quais o juiz, substituindo se a pessoa do devedor, realiza a prestação devida e, por meios
coercitivos, temos aquelas medidas
com as quais o juiz ameaça o devedor de modo a induzi-lo a realizar a
prestação devida.
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É nesse contexto que situaremos o contempt of court, porque está
associado às medidas não exclusivamente coercitivas, que o juiz pode utilizar. Repito: o uso de medidas coercitivas pelo juiz americano situa-se no âmbito desse Instituto, que envolve outras
medidas, inclusive heterogêneas.
O estudo do contempt of court
suscita-nos algumas dificuldades prévias, que são simples de serem resolvidas logo no início, mas requerem certo
esclarecimento terminológico. Realmente, a qualificação jurídica de uma determinada conduta da parte, do terceiro ou de um advogado, como o
contempt of court foi o que permitiu
desenvolver, na tradição anglo-americana, um conjunto de medidas judiciais e identificar ou reivindicar o poder de o juiz utilizá-las. Confunde-se
um pouco, do ponto de vista
terminológico, muito freqüente entre
nós, a expressão contempt of court,
pois, normalmente, referimo-nos não
apenas ao que literalmente quer dizer
– trata-se de uma conduta –, mas, também, às medidas que o juiz pode utilizar para reagir a ela. Precisamos estar
atentos, porque, quando falamos que
o contempt of court consiste na possibilidade de prisão civil, não estamos
inteiramente corretos, ou melhor dizendo, trata-se de certa figura de linguagem em que tomamos o todo pela parte.
Esclareçamos que contempt of
court designa, especificamente, várias
condutas, que, como veremos, são
diversificadas e até heterogêneas. Ao
poder de reagir a essas condutas, deveríamos reservar uma expressão mais
precisa, como é feito na literatura inglesa: contempt power ou poder de
reagir ao contempt. As medidas com
as quais o juiz pode reagir a essas condutas chamar-se-íam contempt
sanctions ou sanções ao contempt.
Haveria ainda os contempt procedings,
que seriam os procedimentos mediante os quais se apura a ocorrência dessa conduta, contempt of court, empregando as medidas designadas ou relativas ao seu combate.
Pessoalmente, sinto a importância de fazer esse esclarecimento,
porque lhes permite uma maior clareza. Nessa realidade, não consigo dizer instituto jurídico, porque, normalmente, é um conjunto de normas jurídicas, e o contempt of court, como
conjunto, vai além da idéia de instituto jurídico, pois envolve a qualificação jurídica de determinadas condutas, o poder de reagir e as medidas
utilizadas nessa reação judicial. Apenas no sentido metafórico, podemos
falar no contempt of court como um
instituto, já que é mais um aspecto
de um segmento do ordenamento
anglo-americano.
Execução contra a Fazenda Pública
Após esses esclarecimentos,
analisemos rapidamente as diferentes
modalidades de contempt of court,
que são relevantes aqui, ou seja, as
diferentes condutas que podem ser
qualificadas como contempt of court,
porque, com base em uma categorização dessas condutas, encontraremos as distintas medidas possíveis
para a reação.
Chega a ser engraçado o elenco de situações concretas, que, na jurisprudência e doutrina anglo-americana, são qualificadas como contempt of
court. Não sei se os senhores tiveram
a oportunidade de acompanhar ou se
se lembram do caso O. J. Simpson, em
que o promotor fez uma afirmação, um
comentário, uma expressão de revolta,
algo assim, diante do juiz, e este o advertiu que, se insistisse naquilo, seria
considerado contempt of court; ou
seja, o contempt of court pode ser
considerado como condutas diversas,
desacato à corte literalmente, desprezo ao Tribunal, não apenas o descumprimento de ordem judicial: a roupa
com que a parte ou o advogado vai ao
Tribunal; a expressão facial de um advogado ou de uma parte, a publicação
de uma matéria relativa a um processo
em andamento; a tentativa de se agredir o juiz, o advogado, algum oficial de
justiça ou alguma parte. Há um elenco
enorme de condutas que são pratica-
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das tanto em relação ao órgão jurisdicional como à parte, ao advogado e
ao oficial de justiça.
No entanto, dentre essa extrema variedade de condutas qualificadas
como contempt of court, vislumbrase a possibilidade de várias classificações ou categorizações. Uma das mais
importantes, mas não no nosso contexto, é a que distingue o contempt direto do indireto: o direto é a conduta
desrespeitosa, praticada perante o juiz,
in face of the court, “na cara da corte”,
e o indireto é aquela praticada fora do
estrito ambiente judicial, da presença
do juiz. Essa distinção é importante
para estabelecer a questão do
proceding, porque a um contempt direto se reage rapidamente, sem maiores formalidades. Se um juiz entender
que alguém o desacatou, imediatamente o condena em contempt e estipula
a sanção, aspecto muito criticado no
instituto do Direito americano, em que
dizem os críticos que o juiz, nessa hipótese, acumula as posições de vítima,
testemunha e acusador também. Só
que, no nosso caso, essa crítica não se
aplica, porque, como veremos, o tipo
de contempt associado ao desrespeito e ao descumprimento de ordem judicial é sempre o indireto.
A classificação mais importante
para nós é a que distingue o contempt
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of court civil do contempt of court penal, que certamente não é a conduta
em si, porque qualquer conduta tanto
pode ser qualificada como civil ou penal, nem as sanções, pois essas podem
ser utilizadas para reagir a um e a outro,
sendo em tudo idênticas, mas o propósito da reação. Ao contempt civil o juiz
reage para obter o cumprimento de
uma prestação do contemptor, ou seja,
daquele que cumpre conduta desrespeitosa; no contempt penal, o propósito da medida reativa é apenas a punição. Essa distinção é extremamente importante, porque as nossas medidas
coercitivas estão estritamente relacionadas ao contempt civil. O que existe, no
Direito norte-americano e no Direito inglês, como medida coercitiva, são as
sanções ao contempt civil. Até pela natureza de uma medida coercitiva, encontramos um limite, isto é, não se
pode induzir alguém a fazer algo: primeiro, quando já está feito; segundo,
quando é praticamente impossível de
ser realizado; esses são os critérios utilizados para se distinguir um e outro.
O desrespeito a uma ordem judicial pode ser caracterizado como
contempt civil e contempt penal, podendo reagir-se a ambas situações. Se
a ordem judicial não pode ser mais
cumprida, jamais aquele descumprimento vai se caracterizar como
contempt civil e jamais vai dar lugar
a uma medida coercitiva. Exemplo: se
uma ordem judicial determinou que
fosse exibida no dia 07 de setembro
uma determinada propaganda, e essa
ordem foi desrespeitada – quer dizer,
naquele dia específico, ela não foi exibida –, no dia seguinte, a ordem não
poderá ser cumprida, o que jamais poderia ser qualificado como contempt
civil, e não se poderia utilizar uma
medida coercitiva como reação a essa
conduta; esse ato desrespeitoso apenas será punido.
A distinção entre contempt civil
e penal é essencial para estabelecermos o regime das medidas sancionadoras ou reativas à conduta desrespeitosa. Portanto, há dois regimes: o coercitivo e o punitivo. O que
os distingue é, precisamente, o propósito. Quando, na verdade, para se reagir a uma atitude desrespeitosa, busca-se o cumprimento de uma decisão,
ocorre o contempt civil, e a medida
caracteriza-se como coercitiva, com todas as conseqüências daí decorrentes,
sendo a mais importante a impossibilidade de aplicação quando não for mais
praticamente possível o cumprimento,
devendo cessar sua aplicação quando
cumprida a sentença; daí se dizer, por
exemplo, quando a sanção utilizada
seja a prisão civil ou a prisão, no caso
de contempt civil, que se conhece a
fórmula: o ofensor vai à cadeia com a
Execução contra a Fazenda Pública
chave no bolso, sai na hora que quer,
basta apenas cumpri-la; ao passo que,
se o propósito da reação for o de punir, a prisão é estipulada com o prazo
certo, e ele continuará preso enquanto
não esgotado o prazo.
Feita essa distinção, passemos
às sanções. Há um ponto muito importante para nossa futura comparação: as sanções utilizadas para se reagir ao contempt of court, apesar de a
mais famosa ser a prisão civil, não é
apenas essa, ao contrário, existe o
poder indeterminado de o juiz fixar a
sanção cabível em cada caso. O uso
da prisão como reação ao contempt
of court tem sido de fato muito criticado, especialmente no Direito americano, porém, apenas como reação ao
contempt penal; o uso coercitivo da
prisão como reação ao contempt of
court permanece intacto, com o seu
valor reconhecido. No entanto, a crescente humanização do Direito tem levado a que tenha sido praticamente
abolida a prisão indeterminada como
medida coercitiva, porque, pela estrita lógica do instituto, como medida
coercitiva que é, o único limite seria o
cumprimento da obrigação. Em princípio, poder-se-ia passar o resto da
vida na cadeia enquanto não se cumprisse uma determinada ordem judicial, o que ocorreu muito na tradição
anglo-americana. Há um fato muito
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curioso: pensamos que o Direito americano é todo casuístico, feito pelo juiz,
porém, quase todo Direito americano
está legislado hoje em dia, e a tendência é aumentar. Resultado: em quase todos os estados, há legislação estipulando um limite temporal à prisão
como reação ao contempt civil, ou à
prisão civil ou coercitiva.
Além de prisão, pode-se impor
multa diária. As duas grandes medidas
coercitivas no Direito anglo-americano
são a prisão e a multa diária. Há outras
muito interessantes, algumas extremamente curiosas, outras muito úteis a
um sistema que esteja buscando exemplos, como é o nosso caso. Um exemplo de medida coercitiva muito utilizada na Inglaterra, especialmente contra
sindicato que se recusa a cumprir uma
ordem judicial de cessar uma greve
considerada ilegal, é o seqüestro coercitivo. Em vez do seqüestro cautelar, em
que se realiza uma constrição da porção de um fragmento do patrimônio
do devedor para assegurar uma futura
execução, no seqüestro coercitivo, todo
o patrimônio é constrito com a única
finalidade de complicar ao máximo a
sua vida. Por isso, o seqüestro envolve
todo o patrimônio do devedor, do qual
apenas pode se dispor mediante autorização; a esperança é de que a parte
ceda, na sua resistência psicológica, ao
cumprimento daquela ordem judicial.
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Equiparo o seqüestro coercitivo com a prisão civil de empresa, porque sua liberdade consiste na disposição de seu patrimônio. Apreender esse
patrimônio é como prender alguém.
Esse tipo de seqüestro é, realmente,
muito mais próximo de uma medida
pessoal do que de uma patrimonial, já
que nele, em princípio, não haverá desembolso de quantia, ou seja, a parte
que sofre seqüestro não desembolsa
quantia alguma.
Outra medida curiosa encontramos, por exemplo, em uma cidadezinha americana, onde um xerife que
porfiava em ofender, com expressões
racistas, determinados grupos de negros, diante de ser condenado a não
reproduzi-las, insistia em não cumprir
a decisão judicial. O juiz, como medida
coercitiva, tomou o seu distintivo – não
o desconstituiu da função, apenas fêlo em um ato simbólico, o que, em uma
cidade pequena, provincianíssima,
pode ser de extrema relevância – e, com
essa atitude, obteve o cumprimento.
Sem aquele distintivo, uma autêntica
capitis diminutio, o xerife, então, cumpriu a decisão.
Outra medida, não curiosa,
mas extremamente útil, é o impedimento de atividade. Há aquele dilema de
como se obrigar alguém a cumprir uma
obrigação de fazer não apenas
infungível, mas que envolva elementos
de criatividade.
Em um determinado estado
norte-americano, uma dessas divas da
ópera recusava-se a cumprir um contrato, a se apresentar em determinada
companhia, em determinado espetáculo. Como medida coercitiva, o juiz determinou que, naquele estado, a diva
estava impedida de cantar enquanto
não cumprisse as apresentações contratadas. Ela não desembolsou dinheiro, não foi colocada na cadeia, porque,
se o juiz assim determinasse, ela não
teria como cantar. Por aí os senhores
vêem como é aberto o leque de opções dadas ao juiz no uso das medidas coercitivas, sanções com as quais
reage ao contempt civil.
O último tópico, para encerrar a
exposição sobre o sistema anglo-americano, é o campo de aplicação das medidas coercitivas. Vimos que as medidas
coercitivas, no Direito anglo-americano,
podem ser utilizadas em qualquer tipo
de obrigação que não seja a de pagar
quantia. Não por alguma tradição, mas
por um movimento, ao que parece mundial, do século passado, que culminou
na abolição por dívida stricto sensu a
prisão civil, no cumprimento de obrigação de pagar quantia, foi banida do sistema anglo-americano, hoje, por adesão a leis que baniam essa medida.
Execução contra a Fazenda Pública
Qualquer tipo de obrigação que
não seja pecuniária, exceção feita aos
créditos alimentícios, mediante os
quais também é possível a prisão civil
no Direito americano, pode ser tutelada por meio de medidas coercitivas,
ou seja, o descumprimento de qualquer decisão judicial, que não seja a
que imponha o pagamento de quantia, pode ser qualificado como
contempt of court, conduta a que se
reage por meio de prisão civil.
Insisto em um ponto: as medidas coercitivas podem ser utilizadas
contra qualquer pessoa. Não há limite de que somente a parte, no
processo, pode cometer contempt e
sofrer medida punitiva ou coercitiva;
parte, terceiros, jurados, advogados,
oficiais de justiça, qualquer um pode
ser considerado em contempt; contra qualquer um pode ser dirigida uma
determinada ordem, e o seu cumprimento pode ser efetivado por meio de
medida coercitiva.
O fundamento jurídico que permite uma utilização tão ampla do
contempt power é muito interessante.
Apesar de pouca sustentação teórica,
dizem os juristas anglo-americanos que
– aliás, nessa decisão que o Dr. Ricardo
fez circular da ação declaratória constitucional, vi invocar-se a idéia de poder
imanente do Judiciário como poder de
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conceder medidas cautelares não previstas em lei, exatamente o fundamento que vem sendo utilizado há quatro
ou cinco séculos, porque, no começo,
a fundamentação era sutilmente diversa, era algo embrionário – é inerente à
condição de juiz o poder de manter,
de assegurar a autoridade do órgão e
fazer cumprir as suas determinações.
Por isso, dispensa-se qualquer autorização legislativa expressa para utilizar
medidas que impliquem a obtenção
desses objetivos.
Hoje em dia, quase toda a legislação estadual norte-americana, a
federal e a inglesa já prevê o uso dessas medidas. Há, inclusive, uma lei sobre contempt of court no Direito inglês. Recentemente, no Direito americano, foi resgatada a idéia de poderes inerentes quando se considerou
inconstitucional uma determinada limitação legislativa ao uso de medidas coercitivas, limites esses estipulados por uma lei. A Corte Suprema
decidiu que o poder de punir o desacato nas suas duas modalidades, por
ser inerente aos tribunais, não admite uma restrição excessiva do legislador. O legislador pode, sim, estabelecer restrições, mas que não cheguem a esvaziar esse poder, porque
este é inerente à Corte. Em linhas
gerais, essa é a exposição sobre o
Direito americano.
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Como é o sistema de tutela executiva no Direito brasileiro hoje?
Antes disso, vamos entender
como era o sistema até a Reforma
de 1994.
Havia um sistema de tutela executiva que observava estritamente a tradição românico-germânica, que tem,
no Código de Processo Civil alemão, o
seu referencial máximo no que diz respeito às legislações processuais recentes, às grandes codificações do processo na matéria de execução. Segundo
essa tradição, o legislador brasileiro
tipificou os meios executivos cabíveis
com base em uma correspondente
tipologia das obrigações, adotando
aquela tipologia clássica que distingue
as obrigações de dar dinheiro, coisas
diversas, de fazer e não-fazer, criou um
sistema de tutela executiva típico, ou
seja, um sistema em que estabeleceu,
para cada tipo de obrigação, a medida
ou as medidas executivas cabíveis, retirando inteiramente a possibilidade de
o juiz criar alguma medida não prevista em lei. Nosso sistema era típico, precisamente porque toda e qualquer medida executiva a ser utilizada pelo juiz
precisava estar prevista em lei.
A orientação de observar estritamente o princípio da tipicidade na
construção de um sistema de tutela
executiva tem a óbvia vantagem de assegurar a previsibilidade da atuação
jurisdicional evitar os arbítrios dos órgãos jurisdicionais, o que, nesse ponto, foi uma conquista. Além disso, a
idéia do legislador germânico foi criar
um sistema completo quando estabeleceu meios executivos para todo tipo
de obrigação. Já que não há outro tipo
de obrigação que não seja o de pagar, dar coisas, fazer ou não-fazer e
que, para cada um desses tipos de
obrigação há um meio executivo correspondente – às vezes há mais de
um, como é o nosso caso –, temos,
pelo menos em tese, um sistema completo de tutela executiva no qual não
existe um tipo de obrigação a que não
corresponda uma medida executiva.
Ocorre que essa completitude, se está
presente em uma consideração abstrata do sistema, embora tenha sido
sentida nos diversos sistemas europeus já há algum tempo, no caso brasileiro, é falha, não existe em uma
perspectiva concreta. Definitivamente,
nosso sistema típico de tutela executiva apresenta insuficiências.
Por insuficiência, vamos entender não as situações em que a execução tornou-se praticamente impossível, por exemplo: não se trata de insuficiência do sistema de tutela executiva quando, para prestar tutela executiva de obrigação de entregar
Execução contra a Fazenda Pública
coisa, esta se deteriora; ou, para pagar quantia, o devedor é pobre; ou,
quando se trata de obrigação de fazer, esta se torna praticamente impossível, como, por exemplo, se o cantor
ficar mudo, o pintor ficar cego, perder
as mãos ou ambos os casos. As insuficiências dizem respeito àquelas situações em que é praticamente possível a realização da obrigação, mas
não pelos meios previstos.
Um exemplo de insuficiência:
em um sistema em que só se admite,
como medida coercitiva, a multa diária, naquela situação em que o devedor de uma obrigação infungível não
tem patrimônio suficiente para ser ameaçado pela imposição de multa diária,
é ineficaz e, por isso, embora a obrigação seja realizável, a medida coercitiva prevista é insuficiente para exercer
pressão psicológica bastante a induzir
o devedor ao cumprimento.
Outro exemplo: em um sistema como o nosso, em que a medida
sub-rogatória de obrigação de fazer
apenas é adequada a situações extremamente simples, singelas, ou seja,
à realização de um serviço barato,
porque, se for caro, torna-se inviável
também, tendo em vista que o credor
deve antecipar as despesas da execução por terceiro, somente serve para
executar um serviço, destruir algo que
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foi feito, não para uma situação cada
vez mais continuada na sociedade contemporânea, em que a obrigação de
fazer corresponde, na verdade, a uma
reestruturação parcial de pessoa jurídica ou ao cumprimento de uma atividade no âmbito interno de pessoa
jurídica, como ocorre, freqüentemente,
contra a Fazenda Pública. Não se pode
licitar para que o administrador implante um determinado índice. A obrigação é fungível, mas não mediante
execução por terceiro que, no caso, é
inteiramente inadequada, insuficiente. Essas são as situações que caracterizam a insuficiência de um sistema
de tutela executiva. Estão excluídas,
portanto, as situações de execução praticamente impossível.
Para compreendermos melhor
o status, o significado constitucional
das insuficiências, como podemos, de
lege lata – porque toda perspectiva de
lege ferenda é muito importante, mas
bastante frustrante na perspectiva imediata –, saná-las hoje, independentemente de reformas, é extremamente
conveniente fazermos uma brevíssima
digressão sobre a teoria dos direitos
fundamentais, porque, nos quadrantes
dessa teoria, podemos adequadamente resolver a problemática.
Aqui se falou muito no direito
fundamental à tutela efetiva. Ora, quan-
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to ao principal conteúdo, à principal
exigência que podemos reconhecer
como integrante desse direito fundamental, não é nova sua expressão na
cultura jurídica. Na verdade, a principal
expressão da exigência que integra a
essência do direito fundamental à tutela efetiva já havia sido captada por
Giuseppe Chiovenda, em 1901, quando escreveu um artigo sobre as ações
relativas à obrigação de prestar declaração de vontade. Nesse artigo, ele cunhou a famosa fórmula chiovendiana
de que o processo deve dar a quem
tem razão tudo e exatamente aquilo que
tem direito a obter.
Assim como quando falamos
em direito fundamental à liberdade, à
vida, esses conteúdos, essas exigências
são quase tão antigas quanto a humanidade. Da maneira como conhecemos
a reivindicação de exigências hoje, claro
que é fruto de uma peculiar cultura européia moderna, pós-Idade Média, pois
se trata de exigências antigas, nesse
ponto de vista.
O que há de novidade em referir-se a esses valores ou à efetividade
da tutela jurisdicional como direito fundamental? Será que é apenas um modismo referir-se a coisas que todos
conhecemos?
Não. Para se caracterizar essas
exigências como direitos fundamentais é preciso invocar um aparato
conceitual e jurídico que lhes atribui
um regime muito peculiar, o qual se
caracteriza, predominantemente, pela
força positiva, normativa imediata que
se lhes reconhece em um dado ordenamento, ou seja, falar que um determinado valor é um direito fundamental não é apenas utilizar uma terminologia nova para algo antigo, mas
utilizar um paradigma inteiramente
novo no enfrentamento de questões
jurídicas antigas cruciais. Dizer que um
determinado valor é direito fundamental
é reconhecer que aquele valor é imediatamente aplicável, exigível em um
ordenamento jurídico, não se trata
apenas de uma exortação de cunho
moral ou ético, à qual o Direito, o ordenamento jurídico, é indiferente na falta de norma expressa. Reconhecer,
portanto, que um determinado valor
é direito fundamental é dizer que está
protegido por uma norma jurídica imediatamente aplicável e hierarquicamente superior a todas as demais.
Em síntese, de um modo muito
geral, a aplicabilidade imediata das normas jus fundamentais caracteriza-se
precisamente por tudo aquilo, em um
aspecto positivo, que for compatível e
Execução contra a Fazenda Pública
necessário à concretização desse valor,
considera-se exigível tal como se fosse
expressamente autorizado em uma regra; ao passo que tudo o que é contrário a esse valor se considera vedado no
sistema tal como se essa proibição resultasse de uma norma específica.
Há dois fatores principais que
permitiram que o constitucionalismo
contemporâneo chegasse a essa conquista, que já foi qualificada por Jorge Miranda como uma revolução
copernicana, no sentido de que o centro gravitacional do universo jurídico
transferiu-se da lei para a dignidade
da pessoa humana, matriz de todos
os direitos fundamentais. Um deles foi
uma sacudida em nossas convicções
ideológicas, proporcionada pela segunda guerra mundial, na qual foram cometidas atrocidades, horrores, barbaridades, todas legais. A necessidade
de se reagir a essa conduta sem invocar um direito natural levou o Tribunal Constitucional alemão a reconhecer seriamente as normas constitucionais. O primeiro passo, portanto,
da conquista dos direitos fundamentais é levar a sério a Constituição.
Aquelas palavras bonitas não são apenas palavras bonitas, mas normas que
vinculam o Estado.
O que permitiu a conquista, do
ponto de vista teórico, foi a superação,
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no campo da teoria do ordenamento
jurídico, daquela concepção estritamente positivista de ordenamento como
conjunto de regras, ou seja, conjunto
de normas jurídicas de estrutura lógica
fechada, segundo a qual, à determinada previsão de um fato, se atribuía determinado e específico efeito ou conseqüência jurídica. O principal construtor desse modelo de ordenamento jurídico, composto não apenas de normas com essa estrutura, mas, também,
de normas com estrutura aberta, foi
Ronald Dworkin, que fez oposição a
Harth, um dos expoentes máximos do
positivismo inteligente, que concebia o
ordenamento jurídico como um conjunto de regras. Ronald Dworkin fez a
distinção: existem normas jurídicas de
estrutura fechada, que são regras, e
normas jurídicas com estrutura aberta,
que são princípios; essas últimas apenas positivam ou reconhecem determinado valor como uma das pilastras de
determinado ordenamento jurídico.
O ordenamento jurídico não é,
portanto, composto apenas por normas
de estrutura lógica fechada, em que à
previsão de um fato era imputada uma
determinada conseqüência jurídica,
mas por valores reconhecidos como
nele vigentes, os princípios. As normas
de direito fundamental são normas com
estrutura aberta, porque apenas um
valor é reconhecido: “A lei não excluirá,
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da apreciação no Judiciário, ameaça ou
lesão a direito.” A norma constitucional
não tratou de traçar um fato típico e
imputou à ocorrência desse fato um
determinado efeito, apenas disse que
um determinado valor tem de ser buscado. Ao dar status teórico de norma
jurídica às normas abertas constantes
na Constituição, que representam as
normas asseguradoras dos direitos fundamentais, deu-se um avanço importante na atual configuração dos direitos fundamentais como uma categoria
jurídica dotada de regime próprio: o
regime da aplicabilidade imediata.
Trazendo para o campo da
atuação jurisdicional, a aplicabilidade
imediata se desdobra em alguns
corolários. O que significa para o juiz
a aplicabilidade imediata dos direitos
fundamentais?
Primeiro, o poder dever de interpretar as normas aplicáveis ao caso,
de forma a extrair-lhes um alcance e
um sentido que maior proteção assegure aos direitos fundamentais em
jogo. Trata-se da famosa interpretação,
conforme a Constituição, na sua feição
moderna, porque existe outra feição da
interpretação conforme, em que se
busca simplesmente salvar a constitucionalidade de uma norma infraconstitucional; ambas são válidas, mas, nessa vertente, a interpretação conforme
é que invoca o cânone da hermenêutica especificamente constitucional, o
princípio da máxima eficiência. O primeiro corolário da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais é que
o juiz, na sua atividade hermenêutica,
procure dar um alcance, um sentido à
norma que permita conceder maior
proteção possível a um determinado
direito fundamental.
O segundo e terceiro corolários,
ambos relacionados à aplicabilidade
imediata para o juiz, quanto a todas
as medidas judiciais que se revelem
necessárias para concretizar um determinado direito fundamental, é que
o juiz tem o poder dever de adotálas: primeiro, mesmo que não previstas em lei; segundo, ainda que expressamente vedadas em lei – apesar de
ser algo expresso em um tom tão radical, não é como parece.
Vamos por partes. As normas
que asseguram os direitos fundamentais insistem no ponto de vincular o
Estado e, fazendo assim, em nada podem ser convertidas, salvo em exortação. Se, no âmbito dessa norma, para
dar-lhe cumprimento, o juiz vislumbra
a possibilidade de adotar determinada
medida que não está prevista em lei,
pouco importa, pois a aplicação de uma
norma superior não pode ser
obstaculizada pela ausência de uma
Execução contra a Fazenda Pública
norma inferior. Se tomamos a sério a
Constituição, se reconhecemos a posição hierarquicamente superior das normas constitucionais, a omissão legislativa jamais pode ser obstáculo ao
cumprimento de uma norma constitucional; portanto, trata-se de uma inversão que, durante muito tempo, prevaleceu por razões ideológicas, porque,
posta nos seus devidos termos, reflete
uma contradição lógica insolúvel:
condicionar-se a aplicação de norma
superior a uma inferior, o que não pode
ocorrer.
Quando falamos “aplicar contra
a lei”, temos que nos lembrar de uma
característica muito importante dos direitos fundamentais: embora sejam
abstratamente coerentes entre si, até
porque todos têm a mesma matriz, a
dignidade da pessoa humana, concretamente, eles entram em conflito. Todos estamos de acordo com a preservação do meio ambiente, com o desenvolvimento da economia, mas, no
momento em que se construir um
shopping center, esses dois valores
podem se revelar em conflito. É quase
da essência dos direitos fundamentais,
em uma sociedade democrática inclusiva, em que os mais diversos segmentos vão encontrar agasalho no seu texto fundamental, a existência de uma
ordem pluralista de valores e, portanto, a possibilidade sempre latente de
325
choque entre esses valores em uma
perspectiva concreta. Esse choque,
porém, é dotado de um status especial. Ao contrário de um conflito de regras em que o aplicador afasta uma
delas, considerando-a não aplicável ao
caso ou excluindo-a do ordenamento
jurídico por critérios hermenêuticos, o
conflito entre princípios, direitos fundamentais, não pode ser resolvido dessa maneira, até porque ambas as normas preservam sua legitimidade, sua
validade. Elas não se chocam 100%,
mas, no caso concreto, ambas têm o
mesmo status: nenhuma é superior a
outra; ambas são abertas: dão lugar a
um sem-número de aplicações e, nem
em todas, se revelam em conflito.
É necessário, pois, um procedimento ou um conjunto de critérios
que permitam, precisamente, realizar
aquilo que se chama de concordância
prática entre esses valores, preservando-os ao máximo possível, ainda que,
em alguma medida, um deles seja
topicamente sacrificado em relação ao
outro. Esses critérios correspondem ao
princípio da proporcionalidade. Há,
aqui, uma advertência que diz respeito
à aplicação contra legem: o princípio
da proporcionalidade, hoje se reconhece, não é apenas um critério hermenêutico, mas uma norma constitucional, porque não se admitiria um ordenamento constitucional que previsse
326
Série Cadernos do CEJ, 23
valores em conflito, em que não estivesse implícita uma norma que determinasse a preservação ao máximo possível desses valores na solução do conflito entre ambos.
O princípio da proporcionalidade, como mandamento de otimização dos valores em conflito, é uma
norma constitucional. O aplicador,
quando constatar que uma determinada norma infraconstitucional violou excessivamente, em um determinado
caso concreto, a realização de um direito fundamental, deve, naquele caso,
afastar a aplicação daquela norma, não
por um arroubo de autoridade, mas
porque lhe demanda o princípio da
proporcionalidade.
Nós, juízes, estamos vinculados
ao princípio da proporcionalidade, justificando que o juiz, para dar aplicação
a um direito fundamental, pode tomar
medidas vedadas em lei sempre que,
e exclusivamente, na perspectiva de caso concreto, uma determinada vedação
legal se revele uma excessiva restrição
a outro direito fundamental. Não é uma
possibilidade abstrata, genérica de que
o juiz sempre pode fazê-lo. Da mesma
forma, o juiz pode deixar de aplicar uma
medida autorizada em lei sempre que
o seu uso resultar de uma excessiva
violação a outro direito fundamental. A
prisão civil está abstratamente autori-
zada na lei, mas não é em toda situação que seu uso passa no crivo da proporcionalidade, é o que a prática jurisprudencial recente, a doutrina, tem
evidenciado no campo da prisão de alimentos. A lei não estabelece que a prisão de alimentos seja utilizada apenas
em alimentos vencidos; no entanto, utiliza inconscientemente o princípio da
proporcionalidade, sendo a isso que
chegaram a jurisprudência e a doutrina, limitando o uso onde não existia
essa limitação na prisão civil. O uso indiscriminado na prisão civil, mesmo na
hipótese autorizada pela lei, violaria excessivamente o princípio da proporcionalidade.
A justificação desses dois últimos corolários da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, no
que diz respeito à possibilidade de
o juiz concretizar esses direitos, adotando medidas não previstas em lei
e mesmo medidas vedadas expressamente em lei, é importante para
compreendermos o atual significado
do direito fundamental à tutela efetiva no campo da execução e o seu
impacto no sistema de tutela executiva, notadamente na qualificação das
insuficiências desse sistema.
No que diz respeito ao processo de execução, o que significa
dar a quem tem razão tudo aquilo,
Execução contra a Fazenda Pública
exatamente aquilo que tem direito
a obter?
Significa a exigência de um sistema concretamente completo de tutela executiva. No campo da execução, o
direito fundamental da tutela efetiva,
significa que o sistema deve armar o
juiz de meios concretamente capazes
de promover a satisfação integral de
qualquer direito, contra quem quer que
seja – essa advertência é importante.
Se é assim, a insuficiência que apresentamos ou constatamos do sistema
tutela executiva significa violação ao
direito fundamental. Dizer “desculpeme, credor, seu direito é reconhecido
pelo ordenamento, mas, infelizmente,
não posso satisfazê-lo por não haver
meio previsto para isso, ou o meio previsto não se aplica a seu caso, está vedado” é utilizar um paradigma que
deve ser considerado ultrapassado, pois
é permitir a denegação de tutela jurisdicional efetiva, portanto, violar o direito fundamental à tutela efetiva.
Nessa perspectiva, temos que o
§ 5º do art. 461 do Código de Processo Civil, ao reconhecer expressamente
poderes ao juiz de criar medidas executivas não-previstas em lei nas obrigações de fazer e não-fazer, revela-se
como uma concretização apenas parcial do direito fundamental à tutela efetiva, pois, do artigo 5º, inciso XXXV, da
327
Constituição, se deduz o poder de o
juiz criar medidas mais adequadas,
quando falhem aquelas previstas na lei,
em qualquer hipótese, não apenas nas
obrigações de fazer.
Por que o legislador só falou
em obrigações de fazer e não-fazer?
Significa invocar que, onde o legislador quis, disse e, onde não quis, calou, ou seja, que ele o fez vedando
esse poder em outros sistemas?
Não. Ocorre que, realmente,
no campo das obrigações de fazer
e não-fazer, é que essas insuficiências se revelam de forma mais intensa e dramática, mas podem se revelar no campo da obrigação de dar também. Sobretudo no campo da obrigação de fazer, quando o devedor é
uma pessoa jurídica, essas insuficiências se revelam não apenas dramáticas, pois o leque de possibilidades
de novos meios executivos é muito
maior. Quando há um devedor, pessoa física, que não tem bens expropriáveis, pelo menos visíveis, realmente, não há o que se fazer. A expropriação forçada é muito adequada, mas,
em se tratando de pessoa jurídica, a
questão é muito diferente.
Pensem na possibilidade de ser
o devedor pessoa jurídica e na nomeação de um interventor ou junta de
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Série Cadernos do CEJ, 23
interventores para fazer auditoria ou
devassa nos livros da empresa a fim
de levantar a real situação patrimonial,
ou seja, o que, realmente, entra e o
que sai daquela empresa, para estipular uma forma mais proporcional que
não reduza a empresa a nada e que
satisfaça o crédito; pensem na possibilidade de empresas, as quais insistem
em utilizar expedientes procrastinadores, que têm bens, mas que indicam
bens, ainda que obedecendo à ordem
legal, de escassa liquidez; pensem na
possibilidade de um juiz aplicar uma
multa diária à empresa – fiquei muito
honrado ao saber que essa possibilidade, que defendi na minha tese, também foi defendida no 2º Grau, no Rio
Grande do Sul. O Dr. Carlos Alberto
Alves de Oliveira me enviou um acórdão
em que defendia que à empresa foi
aplicada multa diária na obrigação de
pagar quantia. Há um colega, na Justiça do Trabalho, que tem procedido da
mesma forma, tendo obtido muito sucesso na execução trabalhista contra a
empresa.
Nessa perspectiva, a indeterminação ou o poder executivo geral,
reconhecido no § 5º do artigo 461, no
âmbito das obrigações de fazer, deve
ser interpretado como uma concretização parcial do direito fundamental
à tutela executiva no processo de execução. Hoje, podemos dizer que o juiz
pode, respeitados os limites da dignidade do devedor, impostos pela proporcionalidade, utilizar qualquer meio
executivo que se lhe revele necessário
e adequado para proporcionar satisfação integral de qualquer direito contra
quem quer que seja: obrigação de dar
coisa, de pagar quantia e, obviamente,
de fazer e não-fazer. Esses meios envolvem intervenções subrogatórias e
coercitivas.
É importante a comparação
com a prática estrangeira e que nos
alimentemos da experiência angloamericana na criatividade, porque, no
fundo, esta será necessária ao juiz na
escolha de meios coercitivos não previstos na lei, além da multa diária, que
poderá ser aplicada pelo juiz em outras obrigações, contra terceiros, como
pode utilizar medidas coercitivas dela
diversas.
Ainda nessa perspectiva, examinaremos a questão da prisão civil no
nosso sistema atual. À luz dessa abertura, estaria compatível a utilização da prisão civil com a previsão, com a autorização genérica da Constituição, parcialmente concretizada no § 5º do artigo
461, para o juiz criar meios não-previstos em lei? Perfeitamente, mas não
podemos sustentar isso simplesmente,
sem enfrentarmos uma angustiante
questão constitucional, que é a inter-
Execução contra a Fazenda Pública
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A determinação do exato alcance e sentido dessa norma constitucional é uma questão prejudicial,
que não pode ser desprezada pelo intérprete. Não podemos sair defendendo
a prisão civil, sem antes estabelecer o
exato sentido da norma constitucional. O intérprete tem que “arregaçar
as mangas” – se ele tem uma suposição de trabalho, como tenho, de que
é justa a utilização de prisão civil fora
das hipóteses previstas na Constituição –, resolver esse problema, sem
desconsiderá-lo, porque a norma constitucional admite uma interpretação,
segundo a qual só será constitucionalmente lícito o uso de dois tipos de
prisão civil: para devedor de alimentos e para depositário infiel. É uma
interpretação sustentável da norma
constitucional. Se quisermos defender
outras hipóteses, precisamos descobrir outra interpretação possível e argumentar que seja melhor.
interpretações distintas, dependendo
do sentido que se atribua à expressão “dívida”. Se por “dívida” se entender obrigação civil tout court, a conseqüência é que as únicas exceções à
vedação constitucional são as que o
próprio texto aponta ou se entendermos que “não se admite a prisão civil
como medida coercitiva para a satisfação de obrigações civis (...)”, as exceções são taxativas. Se o âmbito de
aplicação da prisão civil é generalizado por meio da expressão “dívida”
como obrigação civil pura e simplesmente, admitem-se apenas duas exceções, ou, como diziam os latinos,
tollitur quaestio, “acabou-se a questão”. Não teremos o que discutir, a não
ser reivindicar, de lege ferenda, uma
emenda constitucional, se é que tal
emenda seria admissível, tendo em
vista as cláusulas pétreas. A proteção
dada ao direito fundamental não pode
retroceder. Por emenda constitucional,
então, não poderíamos restringir a proteção supostamente dada pela vedação
da prisão civil.
Tentei fazer isso, concentrando a questão em torno do sentido da
expressão “dívida”. A norma constitucional que diz que “não haverá prisão
civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e
inescusável de obrigação alimentícia
e a do depositário infiel”, admite duas
O problema é que a expressão
“dívida” apresenta um outro sentido
possível, que é o de obrigação de pagar quantia. Sendo assim, poderíamos
ler a norma constitucional como “não
se admite a prisão civil para tutelar a
obrigação de pagar quantias, salvo devedor de alimentos e depositário infiel”.
pretação da norma constitucional que
veda e autoriza a prisão civil.
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Série Cadernos do CEJ, 23
Surge, então, a questão de que depositário não é obrigação de dar. Sim,
mas se não se escusa, não pode satisfazer a obrigação pagando pelo preço da coisa? Está na disciplina do Código de Processo Civil. Então, pode
se converter em dívida também, stricto
sensu. Há algum argumento, algum
princípio da hermenêutica especificamente constitucional que possa fundamentar essa interpretação? Entendo que sim. Primeiro, uma interpretação histórica, que não é um método
estritamente constitucional, mas relevante. O que aconteceu com a abolição da prisão civil, no século passado, foi em relação à prisão civil por
dívida, stricto sensu, como forma de
coagir alguém a pagar uma determinada quantia. Pode-se dizer que o que
foi banido pelas diversas legislações
mundiais e pelas nossas repetidas
constituições foi o uso da prisão civil
como forma de tutelar o patrimônio.
E as únicas hipóteses de se tutelar
patrimônio – se é que são hipóteses
dessa natureza, e aí se entra em uma
outra questão – admitidas no nosso
ordenamento são relativas a alimentos e depositário infiel.
Além disso, quando pensamos
que a prisão civil pode ser medida
de concretização de outros direitos
fundamentais, tais como o direito fundamental ao ambiente, à preservação
da intimidade, à honra, à tutela efetiva, devemos fazer uma interpretação
desse dispositivo, segundo o princípio da máxima concordância ou da
concordância prática, atribuindo a ele
um sentido que restrinja ao mínimo
possível a concretização de outros direitos fundamentais em conflito. Temos aqui um conflito entre a proteção da liberdade do devedor e a proteção de outros direitos fundamentais. De saída, o direito fundamental
à tutela efetiva e outros que se lhe
acrescentam: direito fundamental à
vida, ao ambiente, à honra, etc, poderiam ser adequadamente tutelados
pela prisão civil. Pensem na heterogeneidade de situações. Por que para
se salvar a vida de uma pessoa, autoriza-se a prisão civil, mas esta não
é autorizada para assegurar a preservação da integridade física, e, às vezes, da própria vida de dezenas, centenas, milhares de pessoas, como seria o caso de uma obrigação de fazer,
cuja violação implicasse um aumento
do atentado ao meio ambiente?
Então, à luz dessas idéias, desses critérios – concordância prática, etc.
–, é que defendi que “dívida” deve ser
interpretada como obrigação de pagar
quantia. Sendo assim, está aberta a
porta ao legislador para criar outras
formas de prisão civil, que não para a
tutela de obrigações de pagar quantia;
Execução contra a Fazenda Pública
e, se ele já a escancarou ao juiz, estaria dentro do poder indeterminado deste, estabelecido no § 5º do artigo 461,
adotar a prisão civil, não para tutelar
obrigações de cunho estritamente patrimonial, que não seja obrigação de
fazer. Insisto nesse ponto e estou concluindo – como diz o professor Leonardo Greco – um artiguete sobre a
prisão civil de depositário infiel, no qual
defendo a utilização das mesmas limitações já reconhecidas na doutrina e
na jurisprudência para a prisão civil de
devedor de alimentos, ou seja, se já se
reconheceu que não se pode aplicar a
prisão civil irrestritamente, mesmo nos
casos autorizados por lei, mas só quando a sua aplicação for necessária à
preservação de um valor mais alto que
o patrimonial, a mesma limitação deve
ser utilizada em relação ao depositário infiel; seria invocar o princípio da
proporcionalidade.
Sustentei que só é lícito – se é
que ainda existe a figura da prisão civil de depositário infiel no nosso ordenamento, pois se trata de uma questão ainda em aberto, mas, admitindo
que seja resolvida, como tende a ser
pelo Supremo Tribunal Federal, no
sentido de mantê-la, ou admitindo justamente isso – ou só passaria no crivo da proporcionalidade a utilização
dessa medida, quando para preservar um valor mais alto que o patri-
331
monial, jamais para fazer, por exemplo, com que uma instituição financeira recupere um bem; isso nunca,
porque, se assim fosse, teríamos uma
profunda isonomia dentro do sistema
entre o devedor de alimentos e a instituição financeira. Não se poderia,
então, obter seis meses de prestação
alimentícia atrasada por meio da prisão civil, mas se reaver um carro ou o
pagamento a ele correspondente. Seria
um absurdo.
Prisão civil só quando o depositário infiel for o depositário judicialmente constituído. Aqui há outro
elemento que não o patrimonial, mas
a preservação da dignidade da Justiça, ou, em casos excepcionais, quando, por exemplo, a coisa dada em depósito foram instrumentos cirúrgicos
essenciais ou carteiras de um colégio;
a um tipo de coisa assim, um tanto
quanto fantasiosa, é que ficará reduzida a prisão civil de depositário infiel,
se formos coerentes com a restrição
imposta no campo dos alimentos.
Defendo a prisão civil como
medida coercitiva indeterminada, com
base nessa interpretação constitucional, mas que não seja indiscriminadamente utilizada em todas as obrigações que não sejam as de pagar
quantia e sempre quando, do cumprimento dessa obrigação, revelar-se a
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Série Cadernos do CEJ, 23
preservação de outro valor que não o
estritamente patrimonial.
Farei agora, para fechar, a comparação entre o sistema anglo-americano e o sistema brasileiro. Hoje, o
sistema brasileiro rompeu inteiramente
com a tradição continental ou romano-germânica. No campo da execução,
o juiz brasileiro está inteiramente aproximado do juiz americano. E o uso da
prisão civil como medida coercitiva, o
famoso contempt of court, é hoje reconhecido dentro dessa interpretação
controvertida do Texto Constitucional,
como uma possibilidade do nosso
ordenamento jurídico. Além do que,
não temos nada a dever ao Direito americano, ou anglo-americano, em termos de fundamentação teórica, porque eles, até por uma questão de tradição cultural, não se dão muito ao trabalho de encontrar um fundamento
jurídico para o uso dessas medidas.
Nos livros, apenas três ou quatro linhas, um parágrafo ou dois cuidam
do fundamento jurídico do contempt
power. É absolutamente trivial. Temos
uma construção teórica de peso. Invocamos teorias dos direitos fundamentais, até porque precisamos dessa construção, pois a nossa tradição cultural
não é a de um Judiciário forte, mas
um Judiciário que nos permita não cumprir a lei. Por isso, minhas palavras causam um certo espanto.
Recentemente, ministrando um
curso em Curitiba, estava presente uma
advogada que atua no campo da execução fiscal. Lamentou-se em relação
às empresas, porque consideramos –
e com razão – que todo imposto, no
Brasil, é injusto, pois não há retorno.
Mas, pensem em um país como a Dinamarca, por exemplo, onde se paga
mais de 50% de impostos e, no entanto, tudo provém desse pagamento. É profundamente injusto que alguém sonegue imposto. Aqui, o rigor
para cumprir as obrigações tributárias
é sentido como algo injusto, porque
o próprio tributo é tido como injusto;
isso é o que está no subterrâneo da
resistência ao uso de medidas fortes.
Se se reconhece a legitimidade do ordenamento jurídico, nenhuma medida de força se revelaria, em princípio,
excessiva para assegurar o seu cumprimento. Se esse ordenamento é tido
como legítimo, o órgão a quem cabe
assegurar o seu cumprimento efetivo,
se não estiver armado com todas as
forças, com todas as medidas – inclusive drásticas – será visto como farsante
e todas as normas nele postas serão
reduzidas a uma mera exortação.
_____________________________________
MARCELO GUERRA: Professor Doutor
da Universidade Federal do Ceará.

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