X Mostra de Pesquisa Produzindo História a partir de fontes primárias

Transcrição

X Mostra de Pesquisa Produzindo História a partir de fontes primárias
X Mostra de Pesquisa
Produzindo História a
partir de fontes
primárias
Porto Alegre/RS
CORAG - 2013
Governo do Estado do Rio Grande do Sul
Governador Tarso Genro
Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos
Secretária Stella Farias
Departamento de Arquivo Público
Diretora Isabel Oliveira Perna Almeida
Corag – Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas
Diretora-Presidente: Vera Oliveira
Diretor Administrativo-Financeiro: Dorvalino Santana Alvarez
Diretor Industrial: Antonio Alexis Trescastro da Silva
Dados Técnicos: Maria Helena Bueno Gargioni
Capa: Sid Monza
Diagramação: Ana Maria dos Santos
Ficha Técnica
Seleção dos trabalhos e organização das mesas do evento:
Comissão de Avaliação e Seleção da X Mostra de Pesquisa
- Associação dos Amigos do Arquivo Público do Estado do RS - AAAP-RS: Bruno Stelmach Pessi
- Associação dos Arquivistas do Estado do Rio Grande do Sul - AARS: Camila
Lacerda Couto
- Associação Nacional de História - ANPUH/RS: Charles Monteiro
- Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul - APERS: Clarissa de Lourdes
Sommer Alves, Luiz Antonio de Oliveira, Vanessa Tavares Menezes, Maria Cristina
Kneipp Fernandes.
Organização e formatação da publicação
Clarissa de Lourdes Sommer Alves
Jiullian Fan Sodré
M915a Mostra de pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio
Grande do Sul (10.: 2012 : Porto Alegre, RS).
Anais : produzindo história a partir de fontes primárias /
10. Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre 11, 18, 25 de agosto e 01 de
setembro de 2012. – Porto Alegre : Companhia Rio-grandense
de Artes Gráficas - CORAG, 2013.
p. 460
ISBN: 978-85-7770-208-4
1.
Pesquisa histórica. 2. Fontes primárias. 3. História – Brasil. 4. Documentação histórica. 5. Fontes históricas.
I. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. II. Alves, Clarissa de Lourdes
Sommer. III. Sodré, Jullian Fan. IV. Título
CDU – 930”2012”(816.5)
Catalogação elaborada pela Biblioteca da Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos –
Bibliotecária responsável: Adriana Arruda Flores, CRB10-1285.
Sumário
Apresentação
Secretária Stella Farias...................................................................................................... 7
Introdução
Clarissa de Lourdes Sommer Alves.................................................................................... 9
Resumos de Pôsteres
Indígenas no sul da América através dos relatos jesuítas
Ismael Calvi Silveira e Vinicius Furquim de Almeida...................................................... 13
“Fechou-me o caminho com pedras e subverteu as minhas veredas” (Lam. 3,9): a
vida de Anselmo Eckart nas prisões pombalinas (1757-1777)
Aline Scheffer.................................................................................................................. 15
Ferramenta de Software Livre: Archivematica
Bruna Paim Reis e Fabiana Fontana............................................................................... 17
Onde será a casa deste anjo? O fenômeno da exposição na Freguesia Madre de
Deus de Porto Alegre
Edmilson Pereira Cruz e Eliane Rosa da Silva................................................................ 19
A Construção da recreação pública em Porto Alegre (RS): contribuições de Frederico Guilherme Gaelzer
Paulo Renato Vicari, Vanessa Bellani Lyra e Janice Zarpellon Mazo.............................. 21
A Criação da Federação Riograndense de Esgrima: uma pesquisa às fontes impressas e documentais
Eduardo Klein Carmona e Janice Zarpellon Mazo........................................................... 23
1. Resgatando a história indígena do Sul da América
O Êxodo Missioneiro: um Estudo sobre os fluxos migratórios de Guaranis das
Missões (fronteira do Rio Pardo, 1801-1845)
Leandro Goya Fontella e Max Roberto Pereira Ribeiro.................................................... 27
Pedro Lozano e o trabalho missioneiro no Paraguai através da Carta Ânua de la
Provincia Jesuítica del Paraguay 1735-1743
Camila Margarisi de Almeida......................................................................................... 47
Vivendo nas margens: respostas indígenas ao avanço colonial na pampa bonaerense (século XVIII).
Juliana Aparecida Camilo da Silva.................................................................................. 63
“Sufría allí una pobre india de crueles dolores de parto”: um estudo sobre a saúde da mulher indígena e sua atuação como curandeira na província jesuítica do
Paraguai
Elisa Fauth da Motta...................................................................................................... 77
2. Igreja Católica: doutrinas e posturas nos séculos XVII ao XIX
Entre a Ciência e a Santidade: representações e memória post-mortem de missionários Jesuítas na América Meridional (Século XVIII)
Mariana Schossler......................................................................................................... 95
As Visitas Diocesanas no extremo sul da América Portuguesa (século XVII e
XVIII)
Lucas Maximiliano Monteiro.....................................................................................111
“O cristão no espelho da morte: uma análise dos necrológios das cartas ânuas
do século XVII”.
Tarcila Stein...............................................................................................................125
3. Transformações no Rio Grande do Sul na passagem do século XIX para
o século XX
“Ao meo compadre e verdadeiro amigo Randolpho ”: tecendo redes, discutindo
hierarquias sociais no Vale do Jaguari
Hermes Gilber Uberti.................................................................................................143
Colônias e estâncias no Sul do Brasil: o caso de São Lourenço.
Patrícia Bosenbecker....................................................................................................167
Ferrovia na província de São Pedro: o caso da estrada de ferro Rio Grande –
Bagé
Maira Eveline Schmitz...............................................................................................191
Eleitores nas paróquias: uma análise do eleitorado municipal a partir dos alistamentos eleitorais (São Sebastião do Caí, 1870-1890)
Carina Martiny..........................................................................................................209
4. Preservação e Difusão de Fontes de Pesquisa
Os Arquivos Sonoros do Judiciário: breve relato sobre a migração de suporte de
fitas magnéticas de áudio cassete no Tribunal Regional da Quarta Região (TRF4)
Mauro Sérgio da Rosa Amaral...................................................................................231
Conservação e difusão do acervo de história demográfica do CDH-FURG: preservação de um patrimônio documental Rio-grandino
Carmem G. Burgert Schiavon e Sara Orcelli dos Santos.............................................. 247
5. Escravidão no Rio Grande do Sul: crime, família e trabalho.
A escrava Olina, filha de Eva e neta da africana Rosa Catarina: as relações familiares na escravaria de Maria Angélica Barbosa
Natália Garcia Pinto..................................................................................................267
O estranho julgamento do escravo Nazário, assassinato e abrandamento da pena
Maximiliano Meyer....................................................................................................283
6. Ditadura no Brasil: da estruturação ao processo de abertura política.
Episódios de uma trajetória: o apelo das Mulheres pela Anistia em meio ao trágico
retorno do presidente deposto pelo golpe civil-militar
Mariluci Cardoso de Vargas.............................................................................................297
O Pensamento Militar e a Política de Segurança Nacional: a elaboração do conceito
estratégico nacional, 1968-1969.
Diego Oliveira de Souza...................................................................................................317
7. Diferentes olhares sobre a primeira metade do século XX
Os primeiros anos da Previdência Pública no estado do Rio Grande do Sul (19291937): a estruturação do Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul
(IPERGS)
Carlos César Bento Filho e Lucas Iorio Guinteiro............................................................ 345
O Gênero na Justiça: o caso do Juízo dos Órfãos de Porto Alegre.
José Carlos da Silva Cardozo............................................................................................365
Processos criminais, violência e relações de poder na região de abrangência da Comarca de Passo Fundo (1920-1940).
Felipe Berté Freitas...........................................................................................................383
Boêmios do Sul: a noite pelotense a partir de processos criminais (1930-1945)
Thaís de Freitas Carvalho................................................................................................399
Na semana santa de 1938, fanáticos monges barbudos tomam a Igreja de Santa
Catarina na Bela Vista. Prisões e mortes em Soledade e Sobradinhos /RS.
Maria da Glória Lopes Kopp...........................................................................................419
Os Monges Barbudos nos documentos policiais
Fabian Filatow.................................................................................................................445
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Apresentação
É
O fim do silêncio e do esquecimento!*
uma honra escrever a apresentação de uma publicação como esta,
que ora chega ao público. Aqui está registrado o esforço intelectual de pesquisadores que trabalharam em fontes primárias,
documentos, registros históricos – todos conservados com o zelo por várias instituições, com destaque ao Arquivo Público do Rio Grande do Sul (APERS). Não
é uma tarefa fácil, uma vez que todos os trabalhos aqui publicados apresentam
méritos. Não vou esconder que, em virtude da minha afinidade com o tema, fiz escolhas que considerei as mais oportunas, principalmente pela atualidade do debate
sobre a reabertura dos arquivos da Ditadura Militar e pelo fim do esquecimento
imposto, há mais de 20 anos, pela Anistia.
Inicio destacando o trabalho da professora Mariluci Cardoso de Vargas,
que é de fundamental importância. A pesquisa apresenta a trajetória do Movimento Feminino pela Anistia no Rio Grande do Sul (MFPA/RS), formado exclusivamente por mulheres, em atividade entre os anos de 1975 a 1979 e responsável pela
mobilização nacional para a criação dos Comitês Brasileiros pela Anistia (CBA). O
estabelecimento desses núcleos civis colaborou decisivamente para a popularização do tema, que se tornou palavra de ordem para os chamados novos movimentos sociais.
Trata-se de resgatar um aspecto, raramente mencionado, que é o papel das
mulheres no restabelecimento da democracia em nosso país. Curiosamente, no levantamento documental feito por Mariluci, aparecem os registros da seção gaúcha
do MFPA que recebeu, da então militante Dilma Rousseff, o Manifesto da Mulher
Brasileira – um libelo que muito contribuiu para a organização das ações femininas
em prol da luta pela democracia.
A lógica e o pensamento dos militares brasileiros são os temas do trabalho
de Diego Oliveira de Souza, que revela, entre outros fatos, a forte influência das
doutrinas militares francesa e norte-americana, no final da década de 1960. Souza
destaca que o papel político dos militares brasileiros foi muito mais passivo do que
se conhecia até então, sujeito às forças econômicas e políticas internas e externas.
O autor derruba a tese de que, no golpe civil-militar de 1964, as Forças Armadas
operaram isoladamente, atuando separadas das forças sociais do país. Em seu trabalho, Diego deixa claro que o golpe ocorreu para operar transformações na estrutura política brasileira, a fim de deter o processo de transformação estrutural em
curso antes da interdição de direitos, processo este que permitiria desenvolvimento
econômico, social e político do país.
7
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
São duas pesquisas que resgatam aspectos importantes desse período histórico, que esteve por mais de duas décadas interditado e que somente agora volta
a ser pautado junto à sociedade brasileira. A instituição de uma Comissão Nacional
da Verdade para retomar a memória e garantir que mais de 20 anos de História não
se percam no esquecimento, tampouco na mitificação, é sem dúvida um momento
extremamente auspicioso da nossa jovem democracia.
O fato de, no ocaso dos generais presidentes, ter havido um forte apelo
social pelo perdão e volta dos exilados, não significa de maneira nenhuma que
ocorreu a anistia desejada pelos movimentos populares e intelectuais daquela época. A Anistia proposta pelos militares veio para pôr panos quentes, para apaziguar.
Felizmente, a concepção de república e democracia defendida pelo atual governo
brasileiro é a de que esse debate precisa ser feito e precisa ser esclarecido. A desconstrução do mito da reconciliação e o fim do esquecimento são elementos fundamentais para a nossa consolidação como nação – justa e transparente.
*Stela Farias,
Secretária da Administração e dos Recursos Humanos do RS
8
E
Introdução
stamos em tempo de Lei de Acesso à Informação1 e debate
público a respeito de nossa história e suas conseqüências na
realidade brasileira atual, seja a partir da criação da Comissão
Nacional da Verdade2, que investigará os crimes de violação aos direitos humanos perpetrados durante a ditadura civil-militar no Brasil, seja a partir da
ampla discussão sobre a política nacional de cotas raciais e sociais, legitimadas
pelo Superior Tribunal Federal (STF) como medida constitucional e recentemente aprovadas e regulamentadas pelo Senado, discussão esta que remete
diretamente ao nosso passado escravista e às marcas por ele deixadas, como o
aprofundamento das desigualdades sociais e a manutenção do racismo.
Neste tempo – que não pode ser apontado como época de questões
resolvidas e igualdade plena, mas que se apresenta como reflexo de muitas lutas por equidade e pelo aprofundamento e consolidação da democracia – torna-se ainda mais evidente a importância de conhecermos e nos apropriarmos
de nossa história e nossos patrimônios, enquanto fontes de conhecimento e
crítica do passado e de suas reminiscências no presente; de fomentarmos e
valorizarmos o exercício da cidadania; de garantirmos que o acesso às informações públicas seja sempre uma realidade.
É neste contexto que publicamos mais um exemplar dos anais da
Mostra de Pesquisa do APERS, que neste ano de 2012 chega à sua 10ª edição.
Comemoramos os 10 anos da Mostra com a certeza de que iniciativas como
esta auxiliam na difusão do conhecimento e dos espaços de memória que
salvaguardam e socializam história e informação. Além disto, celebramos a
realização da X Mostra de Pesquisa com a satisfação de ver este projeto consolidado, reconhecido pelos usuários do Arquivo Público, por acadêmicos e
por pesquisadores em geral.
A partir da experiência dos anos anteriores, percebendo a demanda
por espaço para divulgação de pesquisas no âmbito das Ciências da Informação, nesta edição, além de pesquisas ligadas ao campo das Ciências Humanas
produzidas a partir da análise de fontes primárias passamos a aceitar também
estudos relativos às instituições arquivísticas, suas funções e ações. Assim,
amplia-se o leque de discussões suscitadas fomentando reflexões sobre o fazer arquivístico que viabiliza o acesso qualificado aos documentos de arquivo.
Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, disponível em http://www.planalto.gov.br/
1
ccivil_03/_ato2011-2014/ 2011/Lei/L12527.htm.
Criada através da Lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011, disponível em http://www.
2
planalto.gov.br/ ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htm.
9
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Outra novidade desta edição foi a ampliação da parceria com a Associação
dos Amigos do APERS, que além de apoiar a iniciativa passou a participar também da Comissão de Seleção do evento na pessoa de seu presidente, o historiador Bruno Stelmach Pessi, que se juntou aos representantes do Arquivo Público,
da Associação Nacional de História Seção RS (ANPUH-RS) na pessoa do Profº
Charles Monteiro, e da Associação dos Arquivistas do RS (AHRS), através de Camila Lacerda Couto. Recebemos neste ano 28 artigos e dez resumos de pôsteres
para análise e seleção. E ainda que o regulamento apontasse para o aceite de até 20
artigos, levando-se em consideração a alta qualidade dos trabalhos recebidos, a Comissão viu-se empenhada a aceitar um número maior de propostas. Assim, entre os
trabalhos aceitos e apresentados ao longo do evento nos dias 11, 18, 25 de agosto
e 1º de setembro, chegamos a uma publicação com 23 artigos e seis resumos de
pôsteres, que ora entregamos aos leitores.
São trabalhos ricos que contribuem para conhecermos mais da história
de nosso estado em relação a diversos outros espaços e em diferentes contextos,
nos fazendo refletir a respeito de temáticas fundamentais para compreensão da
constituição histórica do Rio Grande do Sul atualmente. Acreditamos que assim,
apropriando-nos da história e das diferentes memórias a partir dela construídas,
teremos mais elementos para questionar o passado e intervir no presente para a
construção de um futuro mais democrático e igualitário. Desta forma, desejamos a
todas e todos uma ótima leitura!
Clarissa de Lourdes Sommer Alves
Historiadora | Técnica em Assuntos Culturais
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul
10
Resumos de Pôsteres
Indígenas no sul da América através dos relatos jesuítas
Ismael Calvi Silveira
Vinicius Furquim de Almeida
[...]Cerca de ponerse el sol cenan, y luego se recogen á dormir, eccepto los
mozos, y solteras, que á boca de noche se juntan á baylar delante de la
ramada[...] (Pe. Geronimo Herron, 1786, AGN)
Resumo: O presente trabalho estuda manuscritos jesuítas do século XVIII que se encontram
Archivo General de La Nación, na cidade de Buenos Aires, Argentina. São cartas, diários, balanços
administrativos etc., arquivos que ao longo das décadas foram sendo reunidos em uma grande massa documental para a posteridade. Estes documentos alimentam o projeto de pesquisa
desenvolvido pela professora Maria Cristina Bohn Martins, no PPG História da Unisinos, que
investiga os quatorze anos durante os quais indígenas da pampa buenaerense foram reduzidos
em três missões: Nossa Senhora dos Pampas, Nossa Senhora do Pilar e Mãe dos Desamparados. Dentro desses amplos compêndios documentais, viemos nos debruçando principalmente
sobre as descrições dos padres missioneiros que, no século XVIII, escreveram suas experiências
através de diários. Nossos estudos se referem aos aspectos culturais e sociais das populações indígenas estabelecidas na região da Prata. Seus hábitos cotidianos, bem como seus rituais festivos,
passando por suas descrições físicas até seus aspectos organizacionais, são alguns dos elementos
que encontramos através do manuseio destas fontes documentais, e que agregam cada vez mais
informações para a nossa compreensão acerca da relação destas populações autóctones. Nossa
metodologia implica na transcrição dos manuscritos, sua leitura e interpretação, que leva em
conta as condições em que os textos foram produzidos (De Certeau, 1982). Como resultados
preliminares, destacamos a identificação de uma retórica jesuítica que avalia os indígenas a partir
da perspectiva que ressalta a infidelidade – que por vezes resultaram em atos de hostilidade da
parte nativa - e a sua necessária conversão.
Palavras-chave: Jesuítas; Indígenas; Missões.
13
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
14
“Fechou-me o caminho com pedras e subverteu as minhas veredas”
(Lam. 3,9):
a vida de Anselmo Eckart nas prisões pombalinas (1757-1777)
Aline Scheffer
Bolsista de iniciação científica da UNISINOS
Resumo: Essa pesquisa, que integra o projeto: “A contribuição dos jesuítas expulsos, em 1759,
para o conhecimento das culturas indígenas da Vice-Província do Grão-Pará e Maranhão”,
centra-se na figura do P. Anselmo Eckart, missionário jesuíta, encarcerado nas prisões pombalinas, de 1757 a 1777. As narrações histórico-hagiográficas (L. KAULEN, relação de algumas
cousas [...]. BNL, FG, Ms.7997; A. ECKART, Memórias de um jesuíta-prisioneiro de Pombal.
Loyola.SP, 1987) sobre o missionário nos permitem recuperar a construção e fixação de um
modelo de “vida exemplar”, proposto como arquétipo ideal de jesuíta na prisão. O objetivo
desta pesquisa é evidenciar e analisar dois aspectos: (a) virtudes morais e ascéticas; e (b) modelos comportamentais. Portanto, buscar-se-á explorar nas narrações apologético-hagiográficas o
gênero pedagógico que caracteriza a construção do modelo ideal de um modo de ser jesuíta, sobretudo em situação adversa, proposto tanto para os membros da hierarquia eclesiástica, quanto
para a própria sociedade européia. Para Certeau (M. de Certeau, A escrita da História. Forense
Univer. RJ, 1982), nosso referencial teórico, a vida de um santo é a cristalização literária das percepções de uma consciência coletiva, já que se inscreve na vida de um grupo, Igreja ou comunidade; e supõe que este grupo seja pré-existente, representando a consciência que ele tem de si
próprio, associando uma imagem a um lugar. O método de elaboração desta pesquisa baseia-se
na análise retórica das cristalizações apologético-hagiográficas sobre os jesuítas nas prisões portuguesas, e sobre Eckart, buscando recuperar a consciência que a própria Companhia de Jesus
expulsa (e, depois, supressa) tinha de si mesma ao associar a figura deste missionário alemão a
um lugar e ações específicas. Focalizando a pesquisa a partir da figura de A. Eckart, espera-se
relevar o protótipo ideal de comportamento religioso, espiritual, ascético e, até mesmo, cívico
e intelectual. Estas representações poderão fornecer uma valiosa fonte para a compreensão da
mentalidade jesuítica, individual e coletiva. E, para além da apreensão do momento histórico
como tal, poder-se-á recuperar muitos outros elementos que ajudarão a esboçar a contribuição
que o grupo dos jesuítas expulsos deu para o conhecimento das culturas indígenas brasileiras.
Palavras-chave: Anselmo Eckart, jesuítas e prisão de São Julião da Barra
15
Ferramenta de Software Livre: Archivematica
Bruna Paim Reis
Fabiana Fontana
Resumo: Tendo atualmente um grande desafio que é a preservação de documentos digitais
em longo prazo e o acesso a informação, essa pesquisa resulta das atividades de um projeto
de pesquisa. Com o objetivo de demonstrar estudos e análise de ferramentas de software livre
para a Gestão Eletrônica de Documentos, desenvolveu-se esta pesquisa, neste momento em
sua segunda fase. Tendo em vista a constatação de diversas deficiências no que se refere à
adaptação do software livre Ica-atom como repositório digital, tendo ele sido instalado e analisado
anteriormente na fase inicial da pesquisa, tornou-se necessário a busca por soluções para esses
problemas diagnosticados anteriormente. Após realizadas as atividades da pesquisa, apresenta-se a utilização do software livre Archivematica como meio de suprir as necessidades quanto ao
armazenamento, acesso e suporte de diferentes mídias e formatos de documentos. Dentre os
resultados desta pesquisa estão apresentados: Verificação dos procedimentos de instalação do
software livre Archivematica, em sistema operacional Ubuntu, o apontamento das dificuldades
encontradas no uso deste software, a identificação de suas funcionalidades e sua aplicabilidade
no desempenho de funções arquivísticas. A metodologia utilizada na pesquisa desenvolveu-se
a partir da leitura de bibliografias arquivísticas, o levantamento de informações referentes a
padrões, normas e modelos de referência tais como: OAIS, (Open Archival Information System), a realização de testes de aplicabilidade do software livre Archivematica em conjuntos documentais, a instalação do software, a análise, observações, quanto ao armazenamento de objetos
digitais, e apontamento de possíveis barreiras para o profissional da informação. Sendo um dos
papéis da arquivística, através de seus instrumentos, garantir o acesso e preservar os documentos, obedecendo a normas e legislação específica, observamos que, para cumprir estes objetivos
é necessário o uso de um software adequado, sendo assim, conclui-se a extrema necessidade de
desenvolver pesquisas dentro deste contexto.
Palavras chave: Gestão Eletrônica - Software livre - Preservação Digital.
Referências
ARCHIVEMATICA. Main Page. Disponível em: <http://archivematica.org/wiki/index.php?title=Main_Page>. Acesso em: 30 abril 2012.
BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Trad. Luiz Antero Reto e Augusto Pinheiro. Lisboa:
Edições 70, 1977.
BRASIL. Ministério da Justiça. Conarq. Conselho Nacional de Arquivos. Disponível em:
<http://www.conarq.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm>. Acesso em:
30 abril 2012.
17
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
BRASIL. Ministério da Justiça. Conarq. Conselho Nacional de Arquivos. Diretrizes Gerais para a Construção de Websites de Instituições Arquivísticas. Disponível em:
<http://www.conarq.arquivonacional.gov.br/Media/publicacoes/diretrizes_para_a_
construo_de_websites.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2011.
FLORES, Daniel. A Gestão Eletrônica de Documentos (GED) e o Impacto das Políticas de Software Livre: uma perspectiva “transdisciplinar”, comparada nos arquivos do
Brasil e Espanha. 2006. 538 f. Tese (Doutorado) - Universidad de Salamanca, Facultad de
Traduccion y Documentacion, Departamento de Biblioteconomia y Documentacion, Doctorado en Metodologias y Lineas de Investigacion en Biblioteconomia y Documentacion,
Espana, 2006.
JARDIM, José Maria. A arquivologia e as novas tecnologias da informação. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 251-60, 1992.
18
Onde será a casa deste anjo? O fenômeno da exposição na Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre
Edmilson Pereira Cruz, Bolsista IC/CNPq
Eliane Rosa da Silva, Bolsista Pibic/CNPq
Resumo: A presente comunicação é parte integrante do Projeto “Família e Sociedade no Brasil
Meridional (1772-1835)” (financiado pelo CNPq) coordenado pela Professora Doutora Ana Silvia
Volpi Scott e vinculado ao Grupo de Pesquisa CNPq “Demografia & História”. A pesquisa está
voltada para a apreciação dos registros paroquiais de batismo, casamento e óbito correspondente
a Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre entre os anos de 1772 (fundação da mesma) e 1835
(Revolução Farroupilha). Propomos verificar o fenômeno da exposição de crianças entre os anos de
1802 a 1817. Segundo o dicionário de Raphael Bluteau (1712-1721) o abandono seria [...] o Menino
engeitado, He o que desamparado de seus pays, e exposto no adro de huma Igreja, ou deixado no lumiar da porta de
hum Convento, ou de pessoa particular, ou depositado no campo a Deos. [...]. Nosso objetivo é a análise do abandono dessas crianças deixadas às portas dos domicílios, já que a instituição da Roda dos Expostos
em Porto Alegre se dá em 1838. Até o presente momento temos cerca de 3864 assentos de batismo
cadastrados em nosso banco de dados, sendo que desse total 264 (7%) são batismos de crianças expostas. A partir desta constatação podemos analisar diversas questões, entre elas: o sexo das crianças
enjeitadas, sazonalidade do abandono, a condição social das famílias que recebem as crianças. Será
que o fenômeno da exposição na Freguesia da Madre de Deus ocorria de maneira semelhante como
em tantas outras freguesias do passado colonial brasileiro? Levando em consideração que, não se
dispunha de uma Santa Casa de Misericórdia, com uma roda de expostos ativa que pudesse amparar
estas crianças, que eram, então, enjeitadas na porta das casas desta população. Salientamos que segundo VENÂNCIO, existiam dois tipos de abandono, o civilizado (quando o evento se dá na casa
de uma família, onde o intuito é a salvação do mesmo) e o selvagem (quando o evento acontece em
lugar ermo, aumentando a chance da morte do inocente). Este último sendo um tema interessante e
podemos nos perguntar: Será que isto seria um fator determinante na hora de se enjeitar o inocente?
Nossas análises preliminares revelam que o sexo da criança não era uma variável determinante, já
que houve uma diferença pouco representativa nesse quesito: foram abandonados 135 meninos e
129 meninas. Outra tendência registrada foi à elevação do número de abandonos a partir de 1808, e
isto pode estar vinculado ao crescimento populacional e a elevação de Porto Alegre a condição de
vila, o que em princípio poderia funcionar como um fator de atração para a localidade. Quanto ao
ambiente de abandono, até o presente momento, não fica claro se existe uma preferência por aqueles
domicílios social e economicamente mais privilegiados.
Palavras-chave: Madre de Deus de Porto Alegre – Exposição – Crianças – Famílias
19
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
20
A Construção da Recreação Pública em Porto Alegre (RS):
Contribuições de frederico guilherme Gaelzer
Paulo Renato Vicari 1
Vanessa Bellani Lyra 2
Janice Zarpellon Mazo 3
Resumo: A pesquisa surgiu do interesse em compreender como se constituiu historicamente
o campo da educação física e do esporte sul-rio-grandense. Em busca de respostas a este problema de pesquisa nos deparamos com várias referências ao professor Frederico Guilherme
Gaelzer, nas fontes históricas. A trajetória deste professor passa pela atuação em clubes, na
Escola de Educação Física da UFRGS, mas antes disso pela participação na organização dos
espaços públicos de lazer em Porto Alegre. O objetivo do trabalho é identificar as contribuições de Frederico Guilherme Gaelzer para a construção da recreação pública de Porto Alegre.
A documentação selecionada e transformada em fonte de informação histórica consistiu em
manuscritos de autoria do próprio professor Gaelzer, livros, jornais, artigos científicos, monografias, dissertações, teses, Atlas do Esporte no Rio Grande do Sul e o Banco de dados das
associações esportivas e de Educação Física de Porto Alegre/Rio Grande do Sul (1867-1945).
As informações coletadas foram submetidas à análise documental, conforme procedimentos
recomendados em Bacellar (2005). Nas duas primeiras décadas do século XX em Porto Alegre,
as práticas corporais e esportivas despontavam como uma opção de divertimento e imprimiam
na cidade o imaginário da modernidade. Nesse cenário, uma figura se destacou por idéias que
seguiam esse contexto moderno, trata-se de Frederico Guilherme Gaelzer (1897-1972), um
professor de educação física que conseguiu sensibilizar o poder público sobre a importância
da recreação e do esporte para os jovens. Nos seus argumentos defendia a prática de atividades
de lazer como uma forma de prevenir a delinquência e como uma possibilidade de qualificar a
sociedade. Nesta direção organizou o Serviço de Recreação Pública da cidade em 1926, visando
propiciar aos porto-alegrenses, vivências onde experenciavam situações de sociabilidade, lazer,
entretenimento e recreação. Cabe aqui também ressaltarmos o papel educativo destes espaços
Aluno do curso de Licenciatura em Educação Física da Escola de Educação Física (ESEF)
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Integrante do Núcleo de Estudos em
História e Memória do Esporte e da Educação Física (NEHME) da ESEF/UFRGS. Bolsista do
Programa de Educação Tutorial (PET) da Educação Física da ESEF/UFRGS.
1
Prof. Ms. do curso de Educação Física da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Integrante
do Núcleo de Estudos em História e Memória do Esporte e da Educação Física (NEHME) da
ESEF/UFRGS.
2
Prof. Dra. dos cursos de Licenciatura e Bacharelado em Educação Física da ESEF/UFRGS.
Coordenadora do NEHME. Tutora do PET da Educação Física da ESEF/UFRGS.
3
21
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
de sociabilização: ali, crianças eram educadas em seus hábitos e atitudes, em prol da saúde individual e social. O papel desempenhado por Gaelzer foi relevante, pois Porto Alegre foi pioneira
na América Latina em espaços de recreação pública. Essa colaboração foi tão reconhecida, que
Gaelzer seguiu a frente de cargos públicos em diferentes governos e recebeu muitas homenagens. Acerca desses apontamentos em diferentes contextos, percebe-se que o “entusiasmo” do
professor Gaelzer, como relata os jornais da época, foi essencial para a educação física conquistar um espaço na escola e para que o lazer, por meio dos esportes e da recreação, pudesse
incluir todos.
Palavras-chave: História - Educação Física - Recreação Pública - Lazer.
22
A Criação da Federação Riograndense de Esgrima: uma pesquisa às
fontes impressas e documentais
Eduardo Klein Carmona 1
Janice Zarpellon Mazo 2
Resumo: A esgrima enquanto um esporte de combate tem sua origem atrelada à criação de um
dos primeiros armamentos bélicos da história, a espada, sendo esta, o principal instrumento de
batalha dos povos da antiguidade, e que ao longo dos tempos veio se modificando quanto à estrutura, ao peso, à matéria-prima e à sua finalidade. Durante grande parte da Idade Média e nos
primeiros séculos da Idade Moderna, a esgrima, ou melhor, a arte de utilizar a espada era praticada nas cortes europeias em duelos de exibição como um modo de entretenimento da nobreza,
mas também era realizada como meio de resolver disputas e desentendimentos entre homens.
Posteriormente, com o advento das armas de fogo, a esgrima perde seu poderio bélico e passa
a receber status e configuração de esporte. As organizações militares da Europa, em especial à
francesa, são as grandes responsáveis pela institucionalização da esgrima. Os primeiros registros
de sua prática em nosso país datam do ano 1885 na Turnerbund, atual Sociedade Ginástica
Porto Alegre (SOGIPA). A partir de então, a esgrima passa a se disseminar por clubes e outros
instituições do Estado, porém até a década 1930, este se mostra um processo muito lento. Mas
nos início dos anos de 1940 membros das instituições que possuíam a esgrima, uniram-se para
criar a Federação Riograndense de Esgrima. Sendo assim, este estudo apresenta como objetivo
reconstituir a história esgrima no Estado do Rio Grande do Sul, dando maior atenção para o
processo de criação e legitimação da FRGE, o qual ocorreu na década 1940 e primeiros anos
da década 1950. Construímos o estudo por meio de uma pesquisa em documentos oficiais da
FRGE; Catálogo da Revista do Globo; Almanaque Esportivo do Rio Grande do Sul; entre outros. Antes mesmo da criação da FRGE, já haviam sido feitas, em Porto Alegre, ações em prol
da esgrima gaúcha, como torneios e jogos amistosos entre clubes e associações. Porém, em um
determinado momento, os representantes destas instituições perceberam a necessidade de se
unir para que o esporte tivesse representatividade no cenário gaúcho e posteriormente nacional.
Esta união também se deu como uma forma de legitimar uma identidade “esgrimística” sul-rio-grandense. Com isso, em 1943, este grupo de “entusiastas” cria a FRGE. No ano seguinte, as
mobilizações da federação renderam frutos, conquistando a vinda do campeonato brasileiro de
esgrima para Porto Alegre. Em prol da esgrima, a FRGE cria um calendário esportivo para a
modalidade e passa a promover a sua expansão no Estado, além de organizar equipes para as
Graduando em Educação Física pela UFRGS. Bolsista de Iniciação Científica. Membro
NEHME – UFRGS.
1
Professora do Departamento de Educação Física da UFRGS. Coordenadora do NEHME
– UFRGS.
2
23
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
competições nacionais, e, a partir de então, a esgrima sul-rio-grandense sempre figurou entre as
quatro melhores equipes do país.
Palavras-chave: História – Esporte – Esgrima – Federação – Rio Grande do Sul.
24
1. Resgatando a história indígena do
Sul da América
O Êxodo Missioneiro: um Estudo sobre os fluxos migratórios de
Guaranis Das Missões (fronteira do Rio Pardo, 1801-1845)
Leandro Goya Fontella
Max Roberto Pereira Ribeiro
Resumo: Este artigo analisa o processo de êxodo dos guaranis naturais das missões orientais –
região anexada aos domínios da Coroa Portuguesa, a partir de 1801 –, e sua reacomodação em
meio à sociedade luso-brasileira da primeira metade do século XIX. Mostra algumas características destas migrações e, também, identifica algumas das estratégias organizadas por estes sujeitos
frente à empresa expansionista lusitana. O foco de pesquisa recai sobre uma das Capelas do
Império Português, depois Império do Brasil, localizada na Fronteira do Rio Pardo, conhecida
à época por Capela de Santa Maria. A partir dos registros de batismos, observa-se que a decisão
de migrar fazia parte de estratégias ordenadas, sendo estas organizadas coletivamente.
Palavras-chave: guarani - migração - família
D
Introdução
esde a segunda metade do século XVIII, os povoados que
formavam as 30 reduções jesuítico-guaranis, espalhadas em
territórios hoje pertencentes aos países do Brasil, Argentina e Paraguai, vinham sofrendo um processo degenerativo de suas unidades
político-sociais. Estes territórios pertenciam à Coroa Espanhola que, em
1767, determinou a expulsão dos padres jesuítas daqueles povos. Como demonstra Guillermo Wilde (2009), parte da população guarani missioneira
passou a abandonar aquele espaço, tomando como destino rumos diversos.
A situação ficou ainda mais dramática para as sete povoações que se
localizavam do lado oriental do rio Uruguai – região anexada aos domínios
da Coroa Portuguesa, em 1801 –, obrigando os guaranis a posicionarem-se de forma variada dentro de uma conjuntura de grandes instabilidades
institucionais.1 Esta situação se mostrou crônica nos anos que se seguiram
após a tomada luso-brasileira. Muitos destes índios escolheram passar para
o lado português. Isso, no entanto, como destaca Elisa Garcia (2007) já
ocorria desde o fim da Guerra Guaranítica (1753-1756), fruto das estratégias
de atração destas populações por parte da Coroa Portuguesa.
1
Região conhecida na historiografia como Sete Povos das Missões Orientais.
27
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Alguns destes guaranis missioneiros foram transladados dos antigos
domínios espanhóis para o lado português, sendo posteriormente alocados
em aldeamentos onde se tentava impor sobre eles projetos integracionistas
e “civilizatórios” aos moldes portugueses.2 Porem, também existiram outros
aldeamentos que se formaram de modo espontâneo, contribuindo como
base populacional de algumas das localidades que conformavam a Fronteira
do Rio Pardo. Estes aldeamentos se formaram em virtude de muitas famílias missioneiras terem se colocado em êxodo daqueles territórios.
Neste artigo, a partir das correspondências dos comandantes da
Fronteira de Missões e Rio Pardo, apresenta-se um estudo sobre as motivações destas migrações e o rumo tomado por algumas destas famílias.
Mostra-se, em seguida, com base numa análise serial, algumas características
do êxodo a partir dos 853 assentos batismais do acampamento, depois Capela de Santa Maria, entre 1804-1845, nos quais os guaranis missioneiros se
fazem representar.
Êxodo X Mito: migrações como partes de estratégias ordenadas
Em 1978, foi publicada a obra clássica de Hélèle Clastre, antropóloga francesa, intitulada Terra Sem Mal, responsável em produzir uma visão mítica acerca
das constantes migrações das populações tupi-guarani. Em termos gerais, como
demonstra Karina Melo (2011), a teoria de Clastre remete ao mito guarani sobre
a procura de um paraíso terreno (yvy marã ei) como fator exclusivo das constantes migrações praticadas por esses índios ao logo da história. Esta concepção,
apesar de suas importantes contribuições, nega que a busca por novos territórios
pudesse fazer parte de planos pragmáticos, como, por exemplo, a busca por sobrevivência, organizada a partir de estratégias concretas.
Como destaca Eduardo Neumann (2009), não há indícios empíricos sobre tal fato, fazendo desta linha interpretativa um mito acadêmico. Além disso,
para este autor, os historiadores, por algum tempo, confiaram excessivamente
nas conclusões dos antropólogos acerca desse fenômeno, produzindo a falta de
averiguação detalhada desta hipótese. Aliada a esta interpretação controversa, há
outras concepções que ajudaram a distorcer a história dos índios guaranis. Qual
seja, a título de exemplo, a clássica obra de Aurélio Porto, de 1943, cujo título
História das Missões Orientais do Uruguai, proporciona o confinamento histórico
dos guaranis às Missões.
Sobre os aldeamentos ver: LANGER, 1997; FLORES, 2001; GARCIA, 2007; KÜHN, 2007;
SIRTORI 2008; MELO, 2010.
2
28
Em termos mais precisos, Porto entendia que a história dos guaranis
só existiu enquanto duraram as Missões, ou melhor, enquanto os jesuítas
estiveram presentes, até o ano de 1768. Para Porto, depois disso, não haveria
mais história para os guaranis. Há, nesta obra, a construção de uma imagem
que coloca as Missões como a época de ouro dos guaranis, e porque não
dizer, que elas representaram o ápice da história destes índios.
É bem verdade que as Missões chamaram a atenção de muitos, desde
Voutaire no século XVIII, até os trabalhos mais recentes da historiografia.
No entanto, houve uma superprodução historiográfica sobre as Missões
– séculos XVII-XVIII – e um esvaziamento de pesquisas sobre o século
seguinte (XIX), dando a falsa noção de que não haveria história para os guaranis após a expulsão dos jesuítas da América Espanhola, em 1768. Alguns
autores produziram um cenário bastante catastrófico para a época, como é
possível ver no trecho que segue:
aos índios restaram as alternativas da integração, da miscigenação ou à volta ao modo de vida quase neolítico, levando para as
aldeias no interior das florestas, alguns instrumentos materiais,
herança dramática do contato com os ibero-americanos.3
A aparente desordem nos movimentos migratórios, e seu atrelamento exclusivo a razões transcendentais, encobrem uma complexidade inexorável a respeito do êxodo dos guaranis missioneiros. Algumas das causas
desse fenômeno foram apontadas por Maximiliano Menz (2001). Apresentando motivações socioeconômicas para as migrações, Menz destaca que:
A mão-de-obra guarani foi muito importante para a acumulação primitiva de capital. Além de ter fornecido os braços livres
para atividades complementares, os índios surgiram como opção
ao escravo africano, especialmente para os proprietários menos
abastados que devido a seus baixos ganhos buscavam sujeitar o
trabalhador livre a relações semi-servis de produção.4
Menz considera que a integração dos guaranis missioneiros estava relacionada com as atividades socioeconômicas do Rio Grande do Sul em que
os indígenas, ao perder seus meios de produção nas Missões, acabaram se
apeonando nas estâncias, engrossando o contingente de mão-de-obra livre.
Para o autor, a expropriação das estâncias e a dilapidação dos bens missioneiros, por parte dos portugueses, são as causas primordiais do êxodo, a
partir da conquista lusitana, em 1801. Contudo, a integração por meio da
3
GOLIN, 1999, p. 559
4
MENZ, 2001, p. 130
29
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
venda de força de trabalho está longe de ser a única via interpretativa da
presença missioneira em meio à sociedade luso-brasileira.
A consulta na documentação produzida pelas autoridades militares,
ou seja, pelos homens que ocuparam altos postos de comando no exército
português, no entanto, nos trazem informações bastante significativas. Esta
documentação foi analisada sob a luz de uma pergunta-mestre: quais fatores
geraram o êxodo de parte da população guarani missioneira? Nota-se, neste
sentido, uma relação dicotômica da incorporação dos guaranis à vassalagem
do rei português.
Em agosto de 1801, Patrício José Correia da Câmara, então comandante da Fronteira do Rio Pardo, enviou um informe ao cabildo de São
Miguel. Nele, Correia da Câmara, em nome do “ilustríssimo comandante,
tenente general governador”, felicitava aos corregedores por terem aceitado
viver em união com os vassalos portugueses.5 Na sequência, o comandante
dava garantias de bom tratamento dizendo que “serão conservados vosmecês cada um [...] no comando, regimento, costumes e boa ordem com que se
regulavam até o presente”.6 Com isso, Correia da Câmara esforçava-se para
garantir a ordem nos povos e, junto a isso, consolidar as novas possessões
do Império Português. Ainda no mesmo documento, encontram-se mais
ofertas pela rendição dos povos missioneiros:
pelo meu Excelentíssimo Senhor General Governador na defesa
de todos os povos sujeitos a referida obediência de meu soberano livrando-os das tiranias com que possa ameaçar o inimigo
espanhol será reciprocamente comunicado todo o negócio dos
portugueses com os povos sujeitos a vassalagem do Príncipe Regente, nosso senhor, porém todo o negócio será lícito por de
baixo das determinações dos seus respectivos tenentes corregedores, cabildo ou administradores para que não haja a menor
deterioração.7
Percebe-se que havia negociação direta com as lideranças guaranis.
Com isso, nota-se que o avanço português rumo as Missões, como já assinalou Elisa Garcia (2007), não se deu como um rolo compressor sobre aqueles povos. Houve a participação das lideranças indígenas que, por sua vez,
barganhavam vantagens na troca da vassalagem espanhola pela portuguesa.
A primeira atitude dos portugueses, como se vê, foi manter os cabildos,
reconhecendo sua autoridade e o modo pelo qual o órgão garantia a “autor
AHRS. Fundo Autoridades Militares. Patrício José Correia da Câmara. 1801, maço 1.
Ibid.
7
Ibid.
5
6
30
regulação” dos povos. Em outro documento, Correia da Câmara emitiu
uma série de determinações em que dizia “serão atendidas todas as requisitórias dos cabildos e tenentes corregedores quando estes constem
de furtos fazendo os entregar castigando com rigor os culpados”.8
No mesmo ano de 1802, o cabildo do Povo de São Miguel, certamente valendo-se do que foi prometido pelo comandante da Fronteira
do Rio Pardo, em nome do governador da capitania, exigia a devolução
de uma eguada tomada por particulares portugueses daquela povoação.
A carta era endereçada a Joaquim Felix da Fonseca, comandante dos
povos missioneiros. Assinada pelos corregedores, o documento diz:
O Corregedor e Cabildo deste Povo de São Miguel Arcanjo
com o mais profundo respeito posto diante de V. M. pedimos que olhando-nos com piedade a nossos Povos se digne
a V. M. para nós a caridade a ser com que nos entregue a
eguada que nos tem levado os senhores portugueses para as
estâncias no interior do Rio Pardo pertencente esta eguada a
esta comunidade que trazem (a soma) das que faltam seis mil
seiscentos e trinta éguas sabemos que havia levado o Sr. Felipe Santiago ao menos mil cento e cinco (entre todas) brancas
e as demais todas se acham (dispersas) pelas estâncias da [?]
em mãos de vários senhores sem que (sejam) entregues a esta
comunidade por enquanto.9
Não foi encontrada resposta para o pedido do cabildo de São
Miguel. Contudo, percebe-se pela documentação que os guaranis acionavam os mecanismos formais que a eles eram endereçados e que lhes
garantiam alguns direitos. No entanto, o avanço português tinha duas
faces. Se no nível político administrativo havia acordos e pontos de
convergência, entre lideranças indígenas e portuguesas, que asseguravam o bem-estar dos povos missioneiros, no campo social, da ação
dos populares portugueses, nota-se ao contrário. Parece assertivo sugerir que, as autoridades portuguesas não conseguiram reprimir a ação
predatória destes populares. Isso, também, foi incentivado por alguns
administradores dos povos.
Joaquim Felix da Fonseca, encarregado do comando de todos os
povos missioneiros, escreveu ao governador interino da capitania do
Rio Grande de São Pedro, Francisco João Rocio, em 1802, uma correspondência informando do atual estado das Missões naquele ano.
AHRS. Fundo Autoridades Militares. Patrício José Correia da Câmara. 1801, maço 1.
AHRS. Fundo Autoridades Militares. Joaquim Felix da Fonseca, Miguel Guarani e Outros.
1802, maço 2. Documento original em espanhol. A tradução é livre.
8
9
31
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Felix da Fonseca, informando de sua chegada ao comando daqueles povos, dizia que:
depois da geral desordem e desolação causada não só pelos espanhóis expulsos, cujo empenho e esforço foi exaurirem estes
povos de tudo o que pudessem levar e passar para o outro lado
do Uruguai antes da invasão dos portugueses como também
pelos excessos e abusos de alguns destes mesmos portugueses
praticaram na sua primeira entrada cujos excessos foram aumentados de igual modo por alguns daqueles que tinham o dever de
reprimi-los.10
Nota-se que há a cobrança de Felix da Fonseca àqueles que não reprimiram os excessos durante o que ele chamou de “invasão portuguesa”.
A conquista do território se dava em nome do rei de Portugal. Logo, tudo o
que havia nele seria de pertencimento da Coroa; animais, armas, alfaias das
igrejas, estâncias etc. Com isso, furtar alguns destes bens significava roubar
ao próprio rei. Assim como, o bom tratamento garantido aos guaranis, sujeitados à vassalagem portuguesa, buscava “harmonizar” a união de portugueses e guaranis. Percebe-se com isso que, no campo jurídico, o desrespeitar
aos guaranis seria o mesmo que desrespeitar aos próprios portugueses.
Contudo, além dos abusos da guerra, ao longo do período, observam-se queixas dos maus tratos de parte dos portugueses em relação aos
guaranis. Francisco das Chagas Santos, comandante da Fronteira de Missões, em 1810, informou ao governador da capitania, Dom Diogo de Souza,
sobre a má administração das autoridades portuguesas nos povos missioneiros. Segundo Chagas Santos, os administradores portugueses tratavam
os índios “como se fossem seus escravos”, dizendo também que havia o
“inhumano [sic] costume de alguns portugueses de tirarem violentamente os
índios de menor idade os quais passo a restituir a seus pais quando estes se
queixam”.11
Os trechos citados anteriormente não trazem maiores novidades sobre o que já se sabe sobre a conquista das Missões, como a violência e a coação. Porem, a agência indígena, frente a este processo, ainda não foi devidamente observada. O termo agency (agência), entendido como ação consciente,
foi problematizado por John Manuel Monteiro durante o simpósio temático
Os Índios e o Atlântico, ocorrido no XXVI Simpósio Nacional de História, na
cidade de São Paulo, em julho de 2011.12 Para Monteiro, nem toda a ação é
AHRS. Fundo Autoridades Militares. Joaquim Felix da Fonseca. 1802, maço 2.
AHRS. Fundo Autoridades Militares. Francisco das Chagas Santos. 1810, maço 16.
12
Evento promovido pela Associação Nacional de História - ANPUH
10
11
32
consciente. O autor propôs que o conceito mais adequado seria entender o
termo agency como capacidade de agir.
Estes documentos, de modo geral, expressam a capacidade de agir
dos guaranis frente a uma conjuntura de incertezas e precariedade, dentro
de uma extensa cadeia complexa de eventos que, atrelados um ao outro, podem ajudar a explicar o êxodo dos guaranis daqueles territórios. A situação
de guerra e o caos instaurado pela disputa entre as Coroas Ibéricas contribuíram diretamente para que alguns guaranis dessem início à retirada daqueles
povos. Contudo, isso não se deu de forma simples.
A expropriação das terras missioneiras, por exemplo, foi um processo mais complexo do que aquele apresentado por Menz (2001). Segundo o
autor, a dominação portuguesa, implacável, teria deixado poucas oportunidades aos guaranis. Ao contrário, durante a invasão dos portugueses, como
apontou Felix da Fonseca, em 1802, muitas estâncias foram abandonadas
pelos índios que, possivelmente, fugiram da guerra.13 Estas terras passaram
a ser ocupadas por portugueses, que as consideravam devolutas. Sem negar
que durante esta ocupação possa ter ocorrido disputas violentas, entre portugueses e guaranis, a má administração dos povos e, a violência imposta
por estas autoridades, não podem ser tomados como fatores principais destas migrações.
Joaquim Felix da Fonseca, em 1802, endereçou uma correspondência ao governador interino da capitania, Francisco João Rocio informando
que:
Vossa Excelência determinará o que lhe for mais preciso e mais
conveniente devendo eu por último manifestar-lhe que quase todos os naturais destes povos, tem estado depois da publicação
da paz, tímidos e receosos de que os povos se restituam aos
espanhóis, a quem temem, cada vez mais, persuadindo-se de que
eles irão castiga-los como rebeldes.14
Este fragmento nos coloca a par de toda a conjuntura instaurada
após a tomada daqueles territórios pelos portugueses. O medo da guerra e
a restituição dos povos à Espanha povoaram o imaginário dos índios guaranis, produzindo um cenário repleto de incertezas. Junto a isso, a má gestão
das autoridades portuguesas, a ação predatória de populares às estâncias e
aos bens missioneiros; tudo isso, esta convergência de forças, provocou a
retirada de algumas famílias missioneiras das Missões.
AHRS. Fundo Autoridades Militares. Joaquim Felix da Fonseca. 1802, maço 2.
AHRS. Fundo Autoridades Militares. Francisco João Rocio. 1802, maço2.
13
14
33
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Francisco das Chagas Santos, em 1809, escreveu ao governador
Paulo José da Silva Gama, sobre o estado da população missioneira. Chagas Santos queixou-se do esvaziamento populacional que vinha ocorrendo
devido a muitas famílias guaranis terem se retirado para a Fronteira do Rio
Pardo. Segundo ele informa, havia uma ordem provincial, de 1803, que garantia o direito aos guaranis de poderem se retirar daqueles povos para Rio
Pardo.15 Chagas Santos pedia, com isso, que se recolhessem os guaranis que
andavam dispersos pela capitania, com suas famílias, que segundo ele, não
possuíam domicílio. Ele ainda oferece algumas cifras da população guarani
que, naturalmente, não se pode levar como números precisos. No entanto,
eles dão uma ideia do esvaziamento demográfico ocorrido nas Missões.
No momento da tomada portuguesa, segundo o comandante, havia
14.000 índios nas Missões. Já naquele ano de 1809, restavam apenas 8.000
almas. Observa-se, com isso, que em apenas sete anos a população missioneira teria se reduzido pela metade. O argumento que se defende aqui é o
seguinte: o medo de restituição dos povos à Coroa Espanhola foi responsável por boa parte do êxodo guarani dos povos missioneiros. Neste sentido,
torna-se interessante analisar um caso concreto.
Em 1802, um ano depois da incorporação definitiva daquela faixa
de terras às possessões lusitanas, apresentou-se a um oficial português, no
Povo de São Borja, um guarani de nome João Antonio Yaicha, Capitão dos
Naturais, dizendo que ele e seus soldados eram vassalos do rei português. O
índio relatou a este oficial que, quando se publicou a guerra entre Portugal
e Espanha, ele e seus soldados decidiram não obedecer a Coroa Espanhola.16 Depois que soube da entrada do Capitão Borges do Canto no Povo
de São Miguel, no dia 10 de agosto de 1801, intentou defender o referido
Povo de São Borja dos espanhóis, “pelo desejo que tinha em servir ao rei
português”.17
A insubordinação dos guaranis de São Borja não terminou aí. Segundo ele, João Antonio, fez prender o administrador espanhol daquele
povo, remetendo-o, no dia 25 de agosto daquele ano, ao Capitão Borges do
Canto que se achava em São Miguel. Enquanto isso, o guarani João Antonio,
animava aos demais índios de São Borja para defenderem o lugar, enquanto esperava pela ajuda do Capitão Canto, a qual não recebeu. Conseguiu
juntar 10 homens, três com armas de fogo e os demais com lanças, arcos
e flechas, permanecendo eles sozinhos na defesa da povoação, até o dia
AHRS. Fundo Autoridades Militares. Francisco das Chagas Santos. 1810, maço 16.
Trata-se da Guerra das Laranjas, curto período beligerante entre Portugal e Espanha.
17
Fundo Autoridades Militares. Joaquim Felix da Fonseca. Maço 3 (1802). AHRS.
15
16
34
5 de setembro quando se uniu a eles 19 homens vindos do Boqueirão do
Santiago.18
Juntos, sofreram vários ataques dos espanhóis. Passaram, então, a
patrulhar e guarnecer a costa oriental do rio Uruguai, ajudando aos portugueses com todos os seus soldados. João Antonio, Capitão dos Naturais, ao
apresentar-se ao militar português, naquele ano de 1802, seguiu seu relato
argumentando que:
E como agora não há certeza de como ficaram estes Povos para
o futuro, portanto, pede a Vossa Majestade, caso fique estes Povos para a Espanha, como de antes, lhe conceda ao suplicante
(João Antonio) e seus soldados, e famílias, respectivas retirarem-se para as Fronteiras do Rio Pardo, determinando-lhes o Senhor
Governador um pedaço de Campo, onde se conservem o suplicante e seus soldados em defesa da referida Coroa de Portugal,
onde mais útil for à mesma Coroa, isentando-lhes de outros serviços que não pertençam às armas (grifos nossos).19
Nota-se que a incerteza sobre o futuro dos povos missioneiros,
claramente, se fez presente no imaginário dos índios missioneiros. Outro
aspecto importante de ser observado é o modo pelo qual se estruturou o
êxodo guarani. Como já destacou Guillermo Wilde (2009), as estratégias
tomadas pelos guaranis reduzidos, após a expulsão dos jesuítas da América
Espanhola, foram variadas. No entanto, para o caso dos guaranis das Missões Orientais, havia uma estratégia muito bem definida de buscar refugio
na Fronteira do Rio Pardo. Estas migrações, ao que tudo indica, faziam
parte, também, de uma estratégia familiar ordenada.
Evidentemente, o relato não afirma em qual localidade da Fronteira do Rio Pardo fixaram-se João Antonio e seus soldados junto com suas
famílias. Nem mesmo se os pedidos feitos se concretizaram. No entanto,
a partir dele, é possível sugerir que muitos outros guaranis das Missões
tenham decidido trocar de lado; saindo do jugo da Espanha para tornarem-se vassalos do rei português. Isso, como já demonstrou Elisa Garcia
(2007), era de grande interesse da Coroa Portuguesa que vinha, desde o
século XVIII, mantendo uma política de atração dessas populações para
seus domínios.
Além do medo de restituição dos povos à Espanha, outro fator que
também contribuiu com as migrações foi à mobilidade das milícias guaranis. Durante a Guerra Cisplatina (1825-1828), os luso-brasileiros mobilizaram
Boqueirão do Santiago, hoje, é um município da fronteira oeste do Rio Grande do Sul.
Fundo Autoridades Militares. Joaquim Felix da Fonseca. Maço 3 (1802). AHRS.
18
19
35
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
grandes contingentes de milicianos em que se incluíam os guaranis das Missões. Em 1828, as investidas do general Frutuso Rivera, militar uruguaio,
na Fronteira de Missões, havia deixado os luso-brasileiros em alerta. Como
precaução, certamente, o presidente da província do Rio Grande de São
Pedro solicitou ao tenente-general João de Deus Menna Barreto que fizesse
a transferência do regimento de guaranis de São Borja, na Fronteira de Missões, para a Freguesia de São Gabriel, na Fronteira do Rio Pardo.
Durante a marcha, Visconde de Castro, Comandante de Rio Pardo
informou ao presidente da Província que:
Havendo-me representado o EXMO Tenente-General João de
Deus Menna Barreto que quando chegou em São Gabriel o Regimento de Guaranis Vindo de São Borja que por ordem do
Exmo Senhor General Em Chefe, seguiu para o Exército, do
mesmo Regimento chegaram aquela povoação duzentas chinas entre elas algumas crianças as quais na retirada do dito
Tenente General a Caçapava para ali acompanharam onde se
acham passando grandes misérias e infelicidades pela ausência de seus pais; maridos que presentemente existem com
as armas na mão em campanha. Ora atendendo a estes motivos
me parece que estão nas circunstancias de serem tratados com
algum socorro e humanidade; por isso rogo a V. Ex. se digne
aprovar que se mande dar as mencionadas famílias algum monício ainda que seja somente de carne, afim de não perecerem de
fome. Espero portanto que V. Ex. se digne responder-me a este
respeito com brevidade. (grifos meus)20
Como se vê, há evidências sobre a existência de famílias entre os
guaranis, mesmo num contexto adverso, entre guerras e instabilidades,
provocadas pelas disputas na região platina. Muito embora se acredite que
construir família naquele mundo não era tarefa fácil, nem mesmo as dificuldades parecem ter abalado a união familiar. Com isso, torna-se necessário
perceber as estratégias familiares elaboradas pelos guaranis das Missões naquele contexto. Assim, observa-se uma parte da história dos guaranis um
tanto desconhecida e que se revela à luz da primeira década do século XIX.
Ao contrário do que apontava a historiografia, os guaranis não regressaram às matas, tampouco se ausentaram de manejar sua própria história, depois da expulsão dos jesuítas da América Espanhola. Mesmo entre a
dramática situação de guerra instaurada pelas Coroas Ibéricas, os guaranis
mantiveram estratégias ordenadas de acordo com os recursos dos quais possivelmente dispunham, no decorrer dos anos, após a conquista portuguesa.
AHRS. Fundo Autoridades Militares. Visconde de Castro. Maço 111, 1828.
20
36
É elementar fazer-nos a pergunta: o que teria ocorrido com os guaranis que
migraram? Para onde foram?
Tentando buscar alguns indícios para responder estas questões adotou-se a redução da escala de análise e, o que se verá a seguir, é o caminho seguido
por parte da população que se projetou para além das Missões, rumo à Fronteira
do Rio Pardo. O recorte recai sobre uma das capelas do Império Português, mais
tarde Império do Brasil, conhecida à época por Capela de Santa Maria (atual município de Santa Maria - RS), lugar que conformava aquela região. Neste estudo,
buscou-se pela presença missioneira nos registros de batismos daquela Capela
e, o que se apresenta, a partir daqui, são alguns padrões de matrimônio e compadrio efetuados pelos guaranis remanescentes das Missões naquela localidade.
A Capela de Santa Maria e os Guaranis das Missões
O povoado de Santa Maria originou-se a partir de um acampamento
erigido por tropas lusitanas, em 1797, que faziam a demarcação da nova fronteira
estabelecida pelo tratado de Santo Ildefonso, de 1777, entre os domínios portugueses e espanhóis, na região do Prata. No acampamento também havia um oratório
onde os padres ministravam os sacramentos. Segundo as evidências, estes padres
deslocavam-se da Freguesia de São João da Cachoeira, (atual município de Cachoeira do Sul), até o acampamento onde se realizavam os batismos, de modo
coletivo, em incursões anuais.21 Provavelmente, muitos destes registros tenham
se perdido ou deixaram de ser registrados nestes livros em virtude destes deslocamentos.
Em 1812, o Acampamento de Santa Maria foi elevado à categoria de Capela Curada, tendo iniciado suas atividades sacramentais no ano de 1814, como
atesta a nota de abertura do Livro I de batismos.22 Neste tempo, Santa Maria era
um dos distritos da Freguesia de São João da Cachoeira, ficando nesta condição
até 1858, ano de sua emancipação política. O local, desde sua origem, servia
como base avançada da Fronteira do Rio Pardo, através da qual se promovia o
avanço para oeste, mais precisamente, até a costa oriental do rio Uruguai – atual
região oeste do Rio Grande do Sul –, bem como até aquelas localidades mais ao
sul, que hoje integram os municípios da campanha sul-riograndense (FARINATTI, 2010).
A partir de 1804, observa-se a ocorrência das primeiras cerimônias batismais que envolveram guaranis das Missões no Acampamento de Santa Maria.
Arquivo da Mitra Diocesana de Cachoeira do Sul. Cachoeira. Livro de Batismos. 1799-1809,
Livro I.
22
Fonte: Registros de Batismo. Santa Maria da Boca do Monte. Mitra Diocesana de Santa
Maria – Livro I.
21
37
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Entre os anos 1804-1814, não há regularidade destas cerimônias, por não terem ocorrido batismos em alguns anos e, também, por que não se teve acesso
ao Livro II de batismos da Freguesia da Cachoeira, acarretando na falha da
contabilidade de batismos entre os anos 1810-1813.23 Contudo, mesmo contando com estes pequenos percalços na pesquisa a análise em série não é invalidada. Na soma geral de ocorrências, levando em conta a média de batismos
dos guaranis (20 batismos por anos), tem-se um total de 910 cerimônias (28%)
entre aproximadamente 3200 batizados (100%), celebrados entre 1804-1845.
A grande maioria das cerimônias é composta por batizados de filhos
de luso-brasileiros vindos de São Paulo. Outra parte é composta por migrados da região litorânea do Rio Grande do Sul à época como Viamão, Porto
Alegre, Santo Antonio da Patrulha e Rio Grande. Também se fazem representar, em grande número, migrados de Rio Pardo e Cachoeira. Há também
a ocorrência de cerimônias de batismo envolvendo escravos, tanto crioulos
quanto africanos.
Pelos registros paroquiais de batismo também nota-se a existência de
aldeamentos de guaranis que, possivelmente, tenham servido de base populacional na fundação de muitas freguesias da Fronteira de Rio Pardo. Na documentação há referências diretas a três aldeamentos citados como: Povo da
Cachoeira, na Freguesia da Cachoeira; Povo de São Gabriel, na Capela de São
Gabriel e a aldeia que existiu na Capela de Santa Maria.24 Muito possivelmente,
estes aldeamentos tenham sido conglomerados de guaranis que, com licença
do governador geral da capitania, retiraram-se para a Fronteira do Rio Pardo.
Ao que tudo indica, a Capela de Santa Maria serviu de alternativa para
uma parte desta população que decidiu migrar para aquela região, fazendo
com que, possivelmente, a localidade não fosse um lugar totalmente desconhecido por eles. Há autores, como Julio Quevedo (2010) que defendem a
tese de que este lugar teria sido uma antiga redução, formada ainda na primeira metade do século XVII. A partir de 1804, observa-se, pelos registros de batismos, a ocorrência de fluxos migratórios contínuos, realizados por guaranis
oriundos dos 30 povos das missões jesuíticas para a Capela de Santa Maria.
Muito provavelmente, os guaranis que se fixaram em Santa Maria procuraram por outras Capelas nas adjacências do acampamento para batizar
seus filhos. Com isso, estima-se que estes fluxos tenham sido muito maiores
e que, consequentemente, tenha havido muito mais índios missioneiros do
que estes registrados nos livros de batismos de Cachoeira e Santa Maria. A
O Livro II não pôde ser consultado em virtude do processo de sua digitalização, que estava
em andamento.
24
São, respectivamente, os municípios de São Gabriel, Cachoeira do Sul e Santa Maria.
23
38
área de abrangência das Capelas não obedecia a linhas geográficas precisas. A
circulação constante de gente pode ter sido um fator determinante para esta
questão. Os padres batizavam a todos independente da naturalidade de quem
procurava o sacramento.
No caso dos guaranis, a grande maioria era natural dos povos do lado
oriental do rio Uruguai (Sete Povos das Missões Orientais). Observando o número
de cerimônias, verifica-se uma média de 20 batizados de guaranis por ano, na
Capela de Santa Maria. Contudo, o padrão encontrado mostra uma absoluta
irregularidade na ocorrência destes batismos, com baixas e sobressaltos anuais
bem acentuados. Estas oscilações que ocorreram nas cerimônias batismais
se concentram, sobretudo, entre os anos 1814-1824. Em relação a este fator
é preciso se levar em conta algumas variáveis. A primeira seria a própria disposição dos padres em ministrar os sacramentos. Em uma carta do oficial
comandante da Capela Santa Maria, por exemplo, há queixas, de sua parte, em
respeito à igreja da localidade que, segundo ele, teria caído em desgraça depois
que o reverendo José Correia Leites tomou conta dela. Entre as queixas do
comandante consta “a descontinuidade dos sacramentos”.25 Outro fator que
poderia interferir na ocorrência dos batizados reside na procura do batismo
por parte dos índios. Em terceiro, e talvez mais determinante, fosse a situação
de fronteira experimentada pela povoação da Capela.
Durante o período estudado, houve diversas guerras que, por sua
vez, mobilizavam toda esta região. As agitações da Banda Oriental ocasionadas pelas investidas de José Artigas pela fronteira (1811-1820), as guerras
de independência do Uruguai (Cisplatina 1825-1828) e guerra Farroupilha
(1835-1845) ilustram muito bem um quadro de profundas instabilidades
e de incertezas que poderiam ter interferido na migração dos guaranis e,
até mesmo, no funcionamento da Capela em Santa Maria, produzindo este
reflexo nas fontes. Mas foi durante a guerra Farroupilha que se verifica a
maior queda na frequência de batizados. Entre os anos de 1840-1842, por
exemplo, não houve nenhum batismo, o que sugere uma relação direta com
a guerra.
Destes guaranis que migraram para a Capela de Santa Maria, no
entanto, a ampla maioria era oriunda dos povos que se localizavam na margem oriental do rio Uruguai (os chamados Sete Povos das Missões). Desse
modo, como sugere Elisa Garcia (2007), havia por parte da Coroa Portuguesa uma política de atração das populações missioneiras. A licença dada aos
guaranis de retirarem-se para a Fronteira do Rio Pardo parece ir ao encontro
AHRS. Fundo Autoridades Militares. João Machado de Bittencourt. Maço 95, 1823.
25
39
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
da proposição feita pela autora. Isso, aliado ao medo de restituição dos povos por parte dos guaranis, pode indicar bons vetores explicativos para este
fenômeno. Contudo, os mecanismos causais da migração de guaranis não
se explicam apenas pela vontade das autoridades portuguesas em atrair as
populações missioneiras para os domínios lusitanos.
Isso também dependeu da disposição dos guaranis de procurar ou
não refúgio nos domínios portugueses. Ao perceberem a possibilidade de
migrar como um desses recursos, possivelmente, alguns desses índios acionaram os mecanismos formais para efetivarem as migrações. Observa-se,
também, que entre os assentos com referência de origem, 329 registros para
pais e 660 para mães, 76% e 78%, respectivamente, eram naturais dos povos
orientais do rio Uruguai; ou seja, Missões. Entre os naturais do Outro Lado
do Uruguai (lado ocidental), verifica-se a presença de guaranis vindos de
várias povoações das antigas reduções jesuíticas da Argentina e do Paraguai.
Estes assentos correspondem a 15% para pais e 16% para mães. Também
se fazem representar nos batismos, guaranis naturais de diversas freguesias
e aldeamentos do Rio Grande de São Pedro, embora em número reduzido,
chegando a 7% para ambos.
A diferença entre pais e mães nas migrações explica-se pelo fato de
os padres terem classificado grande parte dos batizandos guaranis como
filhos de pai incógnito; ou seja, filhos concebidos fora do sacramento do matrimônio. Isso, muito possivelmente, por ter existido uniões consensuais,
filhos bastardos ou mesmo de crianças cujas mães desconheciam a identidade dos pais. Para todos estes casos, considera-se o rebento como filho
ilegítimo. Em um primeiro momento, poderia se pensar em anomia por parte
das mulheres guaranis.
Saint-Hilaire, cruzando pelo Rio Grande de São Pedro, em 1820,
destacou que “as mulheres guaranis, não tendo nenhuma ideia de futuro,
não podem possuir pudor”.26 O viajante, seguindo sua descrição, completou
dizendo que elas “entregam-se ao primeiro que se apresenta, seja negro, seja
branco, e a mais das vezes não exigem retribuição alguma”.27 Entretanto, o
mesmo viajante, em passagem pela Capela de Santa Maria no mesmo ano de
1820, observou que nas “estâncias dos arredores de Santa Maria há índios
desertados das aldeias. Os homens empregam-se como peões e tem consigo
toda sua família”.28 Como se vê, a ambiguidade – que se torna visível para
nós – presente na narrativa deste viajante, frente ao comportamento das
SAINT-HILAIRE, 1999, p. 156.
Idem, 1999, p. 157.
28
Idem, 1999, p. 173.
26
27
40
mulheres guaranis, possibilita, por sua vez, que se façam outras colocações.
Muito possivelmente, as famílias observadas por Saint-Hilaire tenham sido
remanescentes do êxodo missioneiro. Também encontram-se vestígios sobre a existência destas famílias nos assentos batismais da Capela de Santa
Maria.
Para a Igreja Católica, a união entre homens e mulheres, para uma
vida marital, só seria considerada legítima unicamente pela via do sacramento do matrimônio, representando a união indissolúvel entre os dois.
Com isso, os padres classificavam todas as crianças concebidas dentro desta
relação com a expressão filho legítimo. Os assentos compostos por filhos legítimos entre os guaranis da Capela de Santa Maria chegam a 45% do total;
percentual nada desprezível. Ou seja, trata-se de evidências sobre a migração e a permanência de famílias guaranis naquele lugar. Centrando-se nos
filhos classificados com o binômio pai incógnito, verifica-se que entre estes,
em alguns casos, os padres classificaram algumas mães com a expressão mãe
solteira, totalizando 24% (190 registros) do total de assentos batismais.
Esta situação, no entanto, exige alguns apontamentos iniciais. Uma
hipótese para tal fato reside no decréscimo demográfico dos homens guaranis, os quais se encontravam nas guerras, tanto do lado hispano-americano
quanto do lado luso-brasileiro. Sabe-se que ambos se valeram das milícias
formadas por índios das reduções nas contendas de fronteira. Saint-Hilaire
([1820] 1999) de passagem pelos povos missioneiros orientais, em 1821, reparou que a população era composta, em sua maioria, por velhos, mulheres e crianças. Possivelmente, os homens em idade produtiva, não detectados pelo viajante,
estivessem integrando estas milícias, contudo, esta é uma hipótese que precisa ser
melhor avaliada.
Voltando à questão da legitimidade, é importante ressaltar que os 45%
de filhos legítimos representam, sobretudo, a existência de famílias missioneiras
na Capela de Santa Maria. Entre os ilegítimos, muito possivelmente, também
pode ter ocorrido a formação de famílias, porém, não reconhecidas pela igreja.
Observa-se que pelo menos 19 casais batizaram mais de um filho, o que sugere
a existência de um núcleo fixo de moradores naturais de missões na Capela de
Santa Maria. Soma-se a estes outros 11 registros em que aparece a mãe sendo
solteira, residindo como agregada de outrem. É o caso de Joanna solteira, “china”,
agregada de Thomazia da Costa.29 Estes dados sugerem, por outro lado, que,
possivelmente, havia uma ampla circularidade territorial entre os guaranis, visto
que o número de casais que batizaram mais de uma vez, somados com os regis ACSM. Santa Maria. Livros de Batismo. Livro I, folha 194v.
29
41
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
tros de mães agregadas, é quase residual frente à totalidade de cerimônias de
batismos que envolveram guaranis das missões.
Focando nos padrões de legitimidade, por sua vez, entre os 373 registros arrolados para filhos legítimos, verifica-se a ausência de uniões mistas, ou
seja, de guaranis com outros como, luso-brasileiros, escravos e libertos. Isso,
porém, não significa dizer que não ocorreram uniões consensuais entre estes.
Em uma primeira vista, vê-se que o padrão nas relações de matrimônio era
endógeno. Contudo, antes de pensar em uma possível homogeneidade étnica
entre os guaranis das missões, através do matrimônio, é preciso que se leve em
conta outras informações que constam nos assentos batismais.
Observando a relação da legitimidade com o lugar de origem dos pais
e mães de filhos legítimos, tem-se que o conjunto dos pais e mães missioneiros, casados, que levaram seus filhos ao batismo, era formado, em maior parte,
por naturais de um mesmo povo. Dos 373 (100%) índios batizados como filhos legítimos, 219 deles (59%), apresentam naturalidade em comum; ou seja,
pai e mãe naturais de um mesmo povo. O que se vê, inicialmente, é que estas
migrações ocorriam em grupos familiares pertencentes a uma mesma localidade. Estes dados fornecem subsídios para que, também, se reavalie a noção
de unidade entre os povos missioneiros; ideia que perdurou por algum tempo
na historiografia missioneira (WILDE, 2009). Em trabalho anterior, realizado
em conjunto com Luís Augusto Farinatti, foi feito um estudo comparativo,
a partir de registros de batismo, entre as Capelas de Santa Maria e Alegrete
(1812-1827).30
Os padrões de fluxo migratório e legitimidade, para estas duas localidades, são semelhantes e reiteram o aspecto de migrações coletivas para fora
dos povos missioneiros. Em Alegrete, por exemplo, nos registros de filhos
legítimos, 55% das mães e 44% dos pais que aparecem nos assentos batismais
eram naturais das missões orientais. Entre o total de batizados envolvendo
guaranis, 85% deles apresenta pai e mãe naturais de um mesmo povo.
A forte endogenia matrimonial entre os naturais de um mesmo povo
missioneiro sugere que se observe, também, as relações de compadrio estabelecidas pelos guaranis das Missões. Pode-se observar, até aqui, que o êxodo
não foi um ato desesperado em uma cena dramática. Migrar para a Fronteira
do Rio Pardo, ao que tudo indica, fazia parte de um plano possível que se
estruturava com base nas estratégias familiares. Estes grupos, porém, eram
FARINATTI, Luís Augusto; RIBEIRO, Max Roberto P. Guaranis nas capelas da fronteira:
migrações e presença missioneira no Rio Grande de São Pedro (Alegrete e Santa Maria, 18121827). In: XII Simpósio Internacional HIU. A experiência missioneira: território, cultura e identidade, CD-ROM, 2010.
30
42
amplos, envolvendo, possivelmente, não só parentes de sangue como também
os parentes fictícios (compadres).
Considerações Finais
Em primeiro lugar, torna-se pertinente ressaltar a importância do
uso das fontes paroquiais para o estudo das populações guaranis no Brasil
do século XIX. Na historiografia brasileira há poucos estudos que se utilizam deste tipo de fonte para a escrita da história dos índios. Por meio delas,
analisadas em série, por exemplo, foi possível observar um movimento importante de reorganização de parte da população missioneira frente às convulsões ocorridas em um contexto de disputas entre as Coroas de Espanha
e Portugal na região platina.
A anexação dos povos da margem oriental do rio Uruguai pelos
portugueses, em 1801, acarretou mudanças dramáticas no modo de vida
dos guaranis que lá viviam. As evidências, no entanto, mostram que a conquista se deu de forma negociada com os cabildos. Os portugueses, por sua
vez, deram garantias de bom tratamento àquelas lideranças, contudo, ao que
parece, faltava uma maior força fiscalizadora, por parte da Coroa, contra a
ação predatória de populares e administradores lusitanos aos bens missioneiros. Por parte dos guaranis, havia o medo de restituição daqueles povos
aos espanhóis, levando muitas famílias a abandonarem aquele espaço.
Esse movimento deu origem a diversos fluxos migratórios que tinham como destino a Fronteira do Rio Pardo, ocasionando uma acentuada
queda demográfica na região missioneira. Estas migrações eram consentidas pelas autoridades portuguesas, desde 1803, contribuindo com a origem
de pequenos bolsões de população que mais tarde tornar-se-iam freguesias e
capelas dentro do Império Português, depois Império do Brasil, favorecendo diretamente o povoamento de territórios recém conquistados. Todavia,
estas migrações obedeciam a planos e estratégias bem definidas, sendo estabelecidas em grupos familiares que, provavelmente, pertenciam a cacicados.
Se esta interpretação estiver correta, significa dizer que os guaranis
missioneiros tentavam manter partes de sua estrutura social tradicional frente
à sociedade luso-brasileira. Por algum tempo, possivelmente, mesmo depois
da expulsão dos jesuítas, em 1768, e da conquista das Missões, em 1801, pelos
portugueses, os guaranis conseguiram manter e reiterar os cacicados, a exemplo do que acontecia nos tempos jesuíticos. O êxodo, ao que tudo indica,
estruturava-se em pequenos fluxos migratórios em que os cacicados tinham
papel fundamental. Operavam dentro de uma lógica coletiva, visando traçar
43
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
estratégias de sobrevivência em um mundo incerto onde segurança significava
algum grau de previsibilidade e, neste sentido, a busca por novos territórios
possibilitava reduzir as ameaças que por ventura colocassem em risco a existência do grupo.
Fontes
Fundo Autoridades Militares. Anos 1801 a 1845. AHRS.
Livros de Batismos da Capela Curada de Santa Maria da Boca do Monte, nº
1-2, 1814-1845.
Livros de Batismos da Freguesia de São João da Cachoeira, nº 1, 1799-1810.
Referências
BANDEIRA, L. A. Moniz. O Expansionismo Brasileiro e a Formação dos Estados
na Bacia do Prata: Argentina, Uruguai e Paraguai – da colonização à guerra da Tríplice Aliança. Brasília: Editora UNB, 1995.
BELEM, João. História do Município de Santa Maria 1797-1933. 3 ed. Santa Maria:
Ed. da UFSM, 2000.
BELTRÃO, Romeu. Cronologia Histórica de Santa Maria e do Extinto Município de
São Martinho. 2ª Edição. Canoas (RS): Tipografia Editora La Salle, 1979.
BOCCARA, Guillaume. “Gênesis y estructura de los complejos fronterizos euroindígenas. Repensando los márgenes americanos a partir (y más allá) de la obra de
Nathan Wachtel”, in Memoria Americana 13, Año 2005.
Fronteras, mestizajes y etnogénesis en las Américas”, in MANDRINI, Raul
J y PAZ, Carlos D.(comp.). Las fronteras hispanocriollas del mundo indígena latinoamericano en lós siglos XVIII-XIX. Un estudio comparativo. Tandil/IEHS, 2003.
BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Escolha de Padrinhos e Relações de Poder: uma
análise do compadrio em São João de Rei (1736-1850), In: CARVALHO, Jose Murilo
de (org.). Nação e Cidadania no Império. Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 2007.
CERUTTI, Simona. Processo e Experiência: indivíduos, grupos e identidades
em Turim no século XVII. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a
experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.
A construção das categorias sociais. In: BOUTIER, Jean e JULIA,
Dominique (orgs.). Passados recompostos: campos e canteiros da História.
Rio de Janeiro: Editora UFRJ – Editora FGV, 1998.
FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Família, Relações de Reciprocidade e Hierarquia Social na Fronteira Meridional do Brasil (1816-1845). X Encontro
Estadual de História – ANPUH-RS: Santa Maria, 2010.
RIBEIRO, Max Roberto P. Guaranis nas capelas da fronteira: migrações e presença missioneira no Rio Grande de São Pedro (Alegrete e Santa
44
Maria, 1812-1827). In: XII Simpósio Internacional HIU. A experiência missioneira: território, cultura e identidade, CD-ROM, 2010.
FONTELLA, Leandro Goya. Ao sopé da serra geral: escravidão e hierarquias
sociais no Brasil Meridional (Santa Maria da Boca do Monte, 1814-1822). Trabalho Fina de Graduação – UNIFRA, 2010. CD-ROM
FRAGOSO, João. Principais da terra, escravos e a República: o desenho da
paisagem agrária do Rio Seiscentista,” Ciência e ambiente, nº33 (2006).
GARCIA, Elisa Frühauf. As Diversas Formas de Ser Índio: políticas indígenas
e políticas indigenistas no Extremo Sul da América Portuguesa. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. (tese de doutorado)
GIL, Tiago Luís. Infiéis Transgressores: os contrabandistas das fronteiras de
Rio Grande e Rio Pardo (1760-1810). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007.
GINZBURG, Carlo. A Micro-História e Outros Ensaios. RJ: Bertrand Brasil,
1989.
GOLDSHMIT, Eliana Rea. Casamentos Mistos: liberdade e escravidão em
São Paulo colonial. São Paulo: FAPESP, 2004.
HAMEISTER, Martha Daisson. Para dar Calor à Nova Povoação: estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir dos registros Batismais da vila do
Rio Grande (1738-1763). Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. (tese de doutorado)
KÜHN, Fabio. O “Governo dos Índios:” a Aldeia dos Anjos durante a administração de José Marcelino de Figueiredo (1769-1780). Terceiro Encontro de Escravidão e Liberdade, 2006.
LANGER, Protásio. A Aldeia Nossa Senhora dos Anjos: a resistência do guarani
missioneiro ao processo de dominação do sistema luso. Porto Alegre, EST Edições, 1997.
LEVI, Giovanni. Sobre micro-história. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992
MELO, Karina Moreira Ribeiro da Silva e. Práticas Indígenas nos Discursos de
Políticos: histórias vividas por índios guaranis na Província de São Pedro. Anais do
X Encontro Estadual de História: Santa Maria, 2010.
A Aldeia de São Nicolau do Rio Pardo: mobilidades guaranis em tempos
provinciais. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História. São Paulo, 2011.
MENZ, Maximiliano. A Integração do Guarani Missioneiro na Sociedade Rio-grandense. São Leopoldo: UNISINOS, 2001. (dissertação de mestrado)
NEUMANN, Eduardo. A Fronteira Tripartida: a formação do continente do
Rio Grande – Século XVIII IN: GUAZELLI, Cezar Augusto Barcellos e NEUMANN, Eduardo dos Santos (org). Capítulos de História do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: ed. UFRGS, 2004.
POLONI-Simard, Jacques. Redes y mestizaje: propuestas para el análisis de la sociedad colonial”. In: Boccara, Guillaume & Galindo, Sylvia. Lógica Mestiza en
45
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
América. Temuco, Chile: Instituto de Estudios Indígenas,1999.
RIBEIRO, Max R. P. Guaranis Missioneiros e Estratégias Familiares em um Contexto de Dispersão (Capela de Santa Maria, 1814-1845). Artigo apresentado no:
XXVI Simpósio Nacional de História. São Paulo, 2011. Texto disponível em:
http://www.ifch.unicamp.br/ihb/SNH2011/ST111.htm
SIRTORI, Bruna. Entre a Cruz, a Espada, a Senzala e a Aldeia. Hierarquias sociais
em Uma Área Periférica do antigo Regime. Dissertação (Mestrado em História
Social) – Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em História Social, UFRJ,
2008.
THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
VELHO, Gilberto. Projetos e Metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
WILDE, Guillermo. Los guaraníes despues de la explusión de los jesuítas: dinâmicas políticas y transaciones simbólicas. Revista Complutense de História de América, 2001, n. 27, pp. 69-106.
Territorio y Etnogénesis Misional en el Paraguay del Siglo XVIII. Fronteiras, Dourados, MS, v. 11, n. 19, p. 83-106, jan./jun. 2009.
46
Pedro Lozano e o trabalho missioneiro no Paraguai através da Carta
Ânua de la Provincia Jesuítica del Paraguay 1735-1743
Camila Margarisi de Almeida*
Resumo: O presente artigo surgiu a partir de estudos realizados no grupo de pesquisa da Professora
Maria Cristina Martins intitulada “Jesuítas, missões e viagens nos ‘confins do império’ (século XVII)”.
Como parte deles, trabalhamos com a Carta Ânua enviada pelo Jesuíta Pedro Lozano ao seu Superior,
referente aos anos de 1735-1743, relatando os acontecimentos de ineresse na Província do Paraguai.
O foco desse estudo será, a partir de uma análise baseada no conceito de Michel de Certeau (1976)
sobre “lugares de produção”, mostrar como o jesuíta descreve seus irmãos da Ordem, as dificuldades
enfrentadas, bem como os nativos encontrados por eles.
Palavras-chave: Jesuítas - Pedro Lozano - Carta Ânua – nativos.
Jesuítas, Missões e Escrita
S
abemos que a Companhia de Jesus esteve presente no território
americano desde o século XVI. Os jesuítas estenderam sua atividade
missionária sobre áreas do Paraguai, Argentina, Chile e Bolívia. Em
meados da década de 1580, seus padres se apresentavam no Paraguai e em Tucumán, dando início a um trabalho que teve consequências múltiplas de acordo com
os espaços e grupos acometidos por ele.
A presença jesuítica foi marcante nas cidades onde se dedicaram ao ensino, e também em zonas cujo controle espanhol era impreciso, nas regiões fronteiriças, muitas vezes conflituosas. Depois de vários anos trabalhando em “missões
volantes”, os jesuítas passam, a partir de 1611, a formar as celebradas “reduções”
de guaranis que chegaram a formar um grupo de 30 “pueblos” de índios cristãos,
com uma disposição urbana que seguia o que era recomendado nas Leyes de Indias.
Além do ambiente físico da missão, elas tinham também estâncias e plantações,
ocupando alongados territórios nas atuais fronteiras de Argentina, Brasil, Paraguai
e Uruguai.
O enfoque deste artigo são os anos centrais do século XVIII quando é
empreendido um conjunto de missões e viagens ao sul de Buenos Aires por padres
da Companhia. Cabe ressaltar que nesse período é notável a expansão desta Ordem
* Graduanda do curso de História - Unisinos. Bolsista de Iniciação Científica UNIBIC/UNISINOS. Orientanda da Prof. Dr. Maria Cristina Martins. [email protected]
47
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
em terras americanas; suas iniciativas foram tão importantes que este século pode
ser considerado o “século dos jesuítas”1.
O contexto vivido pelos jesuítas nos Setecentos, entretanto, é marcado
também pelas críticas que vão sofrer em virtude do avanço da Ilustração e da valorização da ciência e da razão como meio de conhecimento, e não da religião e da
tradição como nos séculos anteriores. Esta nova epistemologia pretendia conduzir
ao progresso, a razão e ao saber.
Nesse momento, a escrita jesuítica ganha novos sentidos. Além de sua
importância institucional ela é também meio de defender a ordem dos ataques que
sobre. Além disto, ela serve também para os interesses da coroa espanhola, pelas
informações que fornece sobre as regiões mais afastadas – isto é, das fronteiras dos
domínios coloniais. Por isto, os textos dos jesuítas sobre estas regiões se enchem de
valor para o estudo destas áreas.
Podemos dizer que a Companhia faz parte de uma rede internacional de
informações. A partir da conexão de documento com documento era possível o
conhecimento de áreas mais remotas do globo2. Segundo Ivone Del Valle, “los
jesuítas cumplíam una importante función em la busqueda de informacíon: eran
quien fisicamente se encontraban allá, conviviendo com los indígenas y en un médio
ambiente lleno de objetos “novedosos” y por lo tanto esperando su catalogacion”.3
(Como dissemos, neste século se funda um cientificismo que enfatiza a investigação
da natureza. Por isso, os sítios periféricos eram de grande importância (como o caso
da pampa-patagônia), pois os seus interiores delineiam os materiais para o estudo
da natureza e do primitivo.
Porém, como verificamos na leitura de textos dos jesuítas do XVIII, o
cientificismo da nova epistemologia se manifesta mesmo nas obras e no fazer dos
missionários. Além de fazer catequese, eles se ocuparam em conhecer a geografia e
a natureza das áreas que visitavam. A catalogação nesse momento se tornava uma
forma de mostrar o conhecimento. Este tipo de registro aparece em diários, mapas,
etc. Um pouco diferente é o viés da Carta ânua de la Provincia del Paraguay de 1735 –
1743, escrita pelo Padre Lozano, que estamos estudando.
Padre Pedro Lozano foi historiador oficial da Companhia de Jesus. Ele
inicia sua carta salientando que estava fazendo uma compilação de outras missivas
que deveriam ter sido enviadas.
Los ochos años que han passado, desde que mi antecessor en el
oficio há enviado a Vuestra Paternidad, en Marzo de 1735, las
BARCELOS, 2006
DEL VALLE, Ivone Del. Escribiendo desde los márgenes: colonialismo y jesuítas em el
siglo XVIII. México: Siglo XXI, 2009.
3
DELVALLE, 2009, p. 52.
1
2
48
últimas Cartas Anuas, van descritas en estas, y para que, a lo
menos lo más importante, de lo que la Compañia, por este
tiempo, ha realizado4.
Ele foi também, responsável por construir uma “História dos Jesuítas” na Região Sul da América Espanhola. Para isto, ele escreveu Historia de la
Compañia de Jesus en la Pricincia del Paraguay, em 1754.
A escrita jesuítica e a Carta Ânua do P. Lozano
Desde seu início, a Companhia de Jesus esteve empenhada em registrar as experiências e manter a comunicação entre seus membros. Seu fundador, o padre Inácio de Loyola, sempre se preocupou com o registro escrito,
talvez devido ao fato de ser um competente letrado. Desse modo, encontramos diversos relatos sobre a importância que os membros da ordem davam a
isto, e o quanto Loyola fazia com que seus irmãos o seguissem nesse sistema
que, mais tarde, viria a ser a espinha dorsal da comunicação entre os jesuítas.
Assim, no século XVI, a escrita servia como uma rede de informações
entre os missionários que, aos poucos iam se espalhando pelos continentes,
uma forma de se manterem conectados com o mundo cristão tão distante
deles. A partir dessas missivas, inicia-se uma vasta documentação na qual podemos encontrar desde cartas particulares e oficiais, mapas de locais pouco
conhecidos, crônicas, diários, etc. Uma infinidade de material que os jesuítas
produziram ao longo de vários anos, trazem informações acerca, por exemplo,
da vida das parcialidades indígenas que encontraram ao longo de suas jornadas e também relatos das suas experiências de evangelização. Temas de que
nos ocupamos neste artigo.
A escrita sem dúvida foi uma forma predominantemente de comunicação, ação e registro entre os membros da Ordem. O objetivo fundamental
de qualquer carta era a união dos ânimos em torno da procura da vontade de
Deus5. Sabemos que também pretendiam com isso produzir uma imagem da
Companhia através das letras, levando ao público leigo as histórias vividas
pelos missionários em terras distantes. Desse modo, a escrita não tinha como
fim o âmbito privado, mas o público. O mesmo vale para a maioria das cartas,
Cartas Anuas de la Provincia del Paraguay. Anõs 1735-1743. Tradución de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1928. Tradução Digitada, São Leopoldo, Instituto Anchietano de
Pesquisas/UNISINOS,1994, p.2. Importante referir que a partir daqui a Carta Ânua será identificada pela abreviação C.A.
5
TORRES LONDOÑO, Fernando. Escrevendo cartas: jesuítas, escrita e missão no século XVI.
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, n◦ 43, 2002. Disponível em http//www.scielo.
br. Acesso em agosto de 2011, p.17
4
49
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
principalmente as de Relação, que não tinham foro íntimo, mas prestavam contas dos feitos ou não feitos a um superior.6
A abundância de relatos escritos, aliada à consciência histórica da Companhia, possibilitou o desenvolvimento de uma prodigiosa historiografia sobre a
Companhia de Jesus e seus trabalhos evangelizadores ao redor do mundo.7.
O foco desse artigo será estudar a Carta Ânua de la Provincia del Paraguay
enviada pelo P. Pedro Lozano ao Geral em Roma, abrangendo os ano de 1735 até
1743. Nossa tentativa será a de compreender de que maneira o jesuíta apresenta
para os leitores os nativos encontrados nessa região e as missões empreendidas
com tais grupos.
Documentos de caráter mais oficial, as cartas ânuas serviam para que o
Geral da Companhia de Jesus, sediado na cidade de Roma, pudesse saber melhor
o que seus irmãos estavam fazendo e produzindo nos diferentes espaçosos de
missões a que eram destinados. Esses documentos trazem informações mais amplas das missões empreendias por jesuítas em determinada localidade. Essas cartas
“gerais”, como também eram conhecidas,
...eram produzidas a partir de informações de duas naturezas.
Por um lado, elas sintetizavam outras ânuas parciais, provenientes das missões ou reduções e dos colégios. De outro, agregavam
informações colhidas pelos Superiores em suas viagens de visitas, assim como aquelas contidas em cartas particulares.8
Vale lembrar que a produção das cartas segue normas estabelecidas pela Companhia de Jesus. Sua escrita também era redigida para um determinado público,
com objetivos definidos. Por isso é importante analisarmos esses documentos a
partir do que Michel de CERTEAU (1976) chamou de “lugares de produção”, ou
seja, quem escreveu o texto, para que estava escrevendo, quando e onde foi produzido. Partindo dessa premissa, podemos entender esses documentos não como
um espelho do real, mas como a representação do jesuíta sobre o mundo em que
estava inserido.
A iniciativa de construção de uma história oficial da Companhia de Jesus
pode ser ligada ao nome do quinto Geral da Companhia em Roma, o Padre Claudio Acquaviva9, que atuou nesse cargo de 1581 até 1615. É nesse momento então,
que as cartas ânuas começam a ser publicadas, e para que isso ocorra de forma que
FERNANDES; REIS, 2006, p. 31
OLIVEIRA, 2011, p. 267
8
FRANZEN, FLECK, MARTINS, 2008, p. 10
6
7
9
Claudio Acquaviva nasceu em Nápoles em outubro de 1543. Aos vinte e cinco anos, deixando
a Corte, na qual estava bem situado, entrou para a Companhia de Jesus. Em 1581 foi nomeado
Geral da Ordem a em Roma, onde ocupou o cargo ate falecer em janeiro de 1615.
50
se construa uma história oficial da Companhia, Acquaviva envia aos Provinciais
instruções para a organização e produção das missivas.
Solicita aos provinciais que informem os acontecimentos mais
relevantes de suas províncias, que servirão de “matéria” para a
história geral. Recomenda que a narrativa deveria obedecer a
uma ordem, começando pelos fatos mais antigos e terminando com os mais recentes. Orienta também que recorressem
aos arquivos e às pessoas confiáveis, e que devessem maior
atenção aos “assuntos antiquíssimos y grandes”. Tudo deveria
ser “ratificado y confirmado”, respeitando “lugares, tempos y
personas”.10
Assim, podemos analisar a carta ânua produzida pelo P. Lozano como
uma construção e descrição da Província Jesuítica do Paraguai. Na medida em
que ele segue as instruções criadas por Acquaviva, sua missiva obedece aos padrões estabelecidos naquele momento.
Josefina G. Cargnel11, em artigo publicado em 2007, afirma que a vida de
Lozano não deixou muitos registros documentais, em comparação a sua produção historiográfica12. Portanto, as informações apresentadas no presente artigo
sobre a vida de Pedro Lozano serão sucintas.
Nos catálogos jesuíticos ele figura como Historiographus Provinciae13 e, de
fato, sua vida americana foi consagrada a esta função. Nascido em Madri, em
1697, entrou na Companhia de Jesus em 1711, com quatorze anos. Acredita-se
que Lozano chegou ao Rio da Prata em 1714. No ano seguinte estava vivendo
em Córdoba, já havia feito seus primeiros votos e estava destinado aos estudos
da humanidade e retórica. Em 1724 foi destinado a Santa Fé onde teve a seu
cargo a congregação de índios e negros. Após essa estada em Santa Fé, passa por
Corrientes e Assunção, para depois retornar para Córdoba. É a partir de 1730
que seu nome aparece nos catálogos como “historiógrafo provincial”, cargo esse
BOJERGE, in: OLIVEIRA, 2011, p.268
Josefina G. Cargnel, é professora de história da Faculdade de Ciências Humanas – UNNE.
Doutoranda na Faculdade e Filosofia e Ciências Humanas - UNC com o projeto intitulado “A
historiografia oficial da Companhia de Jesus no século XVIII, Pedro Lozano, seu historiador”.
Faz parte do grupo de pesquisa em História da Historiografia e da Antropologia Histórica em
Resistência e em Buenos Aires.
12
CARGNEL, 2007, p. 316
13
Padre Pedro Lozano também escreveu uma vasta obra historiográfica relativa à Companhia,
dentre ela citamos: Historia de la Compañia de Jesús, publicada em Madri em 1754; Historia de
las Revoluciones del Paraguay, publicada em Madri, entre 1732-1735; Descripción corográfica
del Chaco, publicada na Espanha em 1733 e reeditada em 1940; Historia de la conquista del
Paraguay, Rio de la Plata y Tucumán, publicada em Buenos Aires por Andrés Lamas entre 18731875. Também fez trabalhos de tradução e biografias de padres.
10
11
51
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
ocupou até 1751, quando foi designado Comissário para apresentar ao vice-rei
em Lima os argumentos dos jesuítas a respeito dos inconvenientes do Tratado de
Madri. Foi nessa viagem que Pedro Lozano morreu, em 1752.
Como historiador oficial da Companhia, Pedro Lozano foi privado da
vida em missão. A Carta produzida por ele pode ser entendida então como um
texto baseado no que outros jesuítas escreveram. É uma interpretação de Lozano
sobre o mundo encontrado por seus companheiros. Portanto, ao destacar um
relato, lembramos que está é uma interpretação da vivência do outro.
A carta ânua que utilizaremos para o desenvolvimento do presente trabalho se refere aos anos de 1735-1743 e é relativa à Província Jesuítica do Paraguai.
Com 603 páginas, divididas em oito capítulos, ela descreve os acontecimentos
daquela região. Destaca os trabalhos realizados pelos missioneiros, bem como as
tentativas de missão com grupos nativos diversos.
Sua organização segue o que Claudio Acquaviva elaborou no século
XVI, para a produção de uma historiografia jesuítica. As normas da Companhia
dividem a estrutura das cartas em três blocos.
O primeiro diz respeito às atividades dos jesuítas, como as
fundações e os progressos dos colégios e casas, os nomes dos
fundadores e as respostas que as cidades davam à presença
dos jesuítas. O segundo conjunto de temas seria dos sucessos “prósperos y adversos” da Companhia. O terceiro deveria
abordar as virtudes e grandes gestos dos jesuítas mortos, com
desataque para a vida santa que cultivaram14.
Podemos perceber essa divisão, ao observar a sequência de capítulos
proposta por P. Lozano em sua carta. Ele a divide em:
Capitulo I – De los colegios en geral
Capitulo II – las continuas predicaciones apostólicas habidas
en cada uno de los colégios al pueblo, con un êxito extraordinário;
Capitulo III – las excursiones que se han hecho, desde estos
colégios a los pueblos circunvecinos en cada año;
Capítulo IV – la vuelta a nuestro colégio de la Asunción, y la
recién fundada residência en el purto de Buenos Aires;
Capítulo V - los trabajos de los nuestros em las misiones del
Paraná y Uruguay;
Capítulo VI - los trabajos de los mismos en la misión de los
chiquitos;
Capítulo VII - las antiguas y nuevas estaciones misionales entre
infieles;
14
52
OLIVEIRA, 2011, p. 268
Capítulo VIII - Nuestros hermanos en religión, difuntos en
esta Provincia15.
Essa divisão também nos apresenta o objetivo central da carta de mostrar
para o Superior da Companhia os trabalhos que estavam sendo feitos naquela região. Junto a isto, se faz a edificação da obra dos padres, que nunca desistiam de
evangelizar os nativos, apesar das dificuldades encontradas pelo caminho.
Como já mencionado anteriormente, a carta ânua é produzida a partir do que
outros jesuítas escreveram. Portanto, esse texto pode ser entendido, através da perspectiva que nos dá Paulo Rogério Melo de Oliveira (2011), acerca da “preservação da
memória escrita”. Lozano reescreve a partir das cartas de outros jesuítas, tornando-as
documentos de informação para o Geral da Companhia.
Logo no início da missiva, Lozano explica que era preciso enviar mais
irmãos para ajudar nos trabalhos evangelizadores daquela região, pois
sin embargo es este reemplazo muy insignificante en comparación con tan grande escassez de obreros evangélicos. Por lo tanto
se les ha duplicado el trabajo a los cultivadores de esta porción
de la viña del Senhor, y en consecuencia de esto, se han debilitado y gastado antes del tiempo, hasta disminuirse su múnero
por la muerte de muchos de ellos, contando ellos ahora sólo 311
sujetos16
No decorrer dessa primeira parte, ele narra informações gerais; conta
como se desenvolvem as atividades nos colégios construídos pelos padres, sua rotina de ensinamentos e os percalços que esses “servos do senhor”, atravessam para
levar a palavra de Deus ao coração de fiéis e infiéis. Chega a falar que, como os ensinamentos dos colégios são bons, a boa fama deles se espalha por todo o reino17.
Também relata a peste que assolou Córdoba e o porto de Buenos Aires no ano de
1742 até 1743. Conta das dificuldades e problemas que os padres enfrentavam para
chegar até os enfermos para levar a salvação.
Ninguno de los nuestros se sustrajo al inminente peligro de vida,
encaminándose ellos generosamente e impertérritos adonde los
llamaban, [...], no haciendo caso de lo avanzado de la hora, o
del mal olor, a veces intolerable, procurando, con toda su alma,
consolar a los enfermos, y reconciliarlos con su Dios. Sucedió no
pocas veces que aquellas casas eran tan reducidas y el número de
los enfermos tan excesivo, que en un sólo aposento estaban postrados seis u ocho enfermos, habiendo poco espacio entre ellos,
encontrándose hasta dos en una sola cama. !Qué apuro para el
C.A. 1735-1743, p.2.
C.A. 1735-1743, p 3.
17
C.A. 1735-1743, p 6.
15
16
53
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
confesor! ? Cómo podía arreglarse? ?Cómo podia desempeñar
su cargo? No quedó remedio sino acercarse lo más posible, a
la cara del enfermo, casi tocándolo, con inminente peligro de
contagiarse18.
Esse trecho também nos mostra como Lozano representa heroicamente
os irmãos que, em sua perspectiva, arriscavam suas vidas em nome de seu trabalho
evangelizador. Compreender isto significa, como apontamos antes, levar em conta
as condições de produção do texto.
O mesmo vale para outro tema. Não podemos deixar de mencionar que,
nessa escrita, há uma forte presença da vontade de Deus. Ou seja, as coisas que
estavam acontecendo, ocorriam para aproximar os homens da palavra de Deus.
Sin embargo había en todo, al considerarlo un poco más profundamente, cierto consuelo, porque, mientras que [la peste] arrebató los abitantes de la ciudad, los coloco en el cielo, y los demás,
sacudió un salubadle temor de Dios, para que se enmendasen de
sus vicios19.
Foram desenvolvidas também, as chamadas missões volantes, uma maneira que os jesuítas encontraram de levar os ensinamentos cristãos para os grupos
sociais que vivam afastados das cidades. Desse modo, eram empreendidas, a cada
ano, viajens aos arredores das cidades para levar a palavra de Deus e os sacramentos para esses grupos isolados.
Las misiones campestres (así llamadas, porque suelen hacerse
por los campos, y por los distritos vecinos de cada una de las
ciudades, y esto cada año) son un medio muy útil, del cual se
aprovecha la Campañia en estas partes para el bien espiritual de
las almas. Descuidándolo, seria incalculable la ruina de las alma20.
Lozano também relata em seu discurso a importância que, os chamados
“Exercícios Espirituais” possuíam para manter a organização social nas cidades. A
vida, que, segundo essa perspectiva cristã, era desregrada e movida pelo pecado, se
transforma, homens e mulheres começam a trilhar o bom caminho21.
Para finalizar seu texto ele escreve: “al fin, para testificar los grandes trabajos de los de esta Provincia, presentó em prueba las informaciones, dirigidas al Rey
católico por el obispo y el gobernador del Tucumán22,”terminado assim o capítulo
referente aos colégios em geral.
18
C.A. 1735-1743, p 8-9.
C.A. 1735-1743, p 9.
20
C.A. 1735-1743, p 208.
21
C.A. 1735-1743, p 38.
22
C.A. 1735-1743, p 95.
19
54
Sua retórica é carregada de sentimentalismo, marcando o sentido apelativo
que deviam ter essas missivas. A intenção de mostrar como era dura a vida desses
servos do Senhor pretendia levar o leitor a compreender o importante papel que
estavam desempenhando e também, uma tentativa de ganhar novos irmãos para a
Ordem.
Ao longo de sua missiva, Lozano vai expondo a rotina de seus irmãos
na conversão de infiéis e na preservação dos fiéis. Cria, portanto, uma narrativa
bastante descritiva do dia-a-dia dos missionários. Em seu capítulo dedicado as
missões, podemos perceber um pouco o intuito que possui o documento.
El remédio eficaz, que ha enviado la misericórdia de Dios, estos
años pasados, a estas tierras, con singular provecho de las almas,
contra las multiformes constumbres depravados, há sido la misión apostólica, predicada, por tres años seguidos, en todas las
ciudades de nuestra Provincia, por el Padre Ignacio Oyarzábal,
elegido por Dios en preclaro instrumento de su mayor gloria, dándo singular eficacia a su palabra para conmover a los fieles a un
sincero arrependimiento de sus pecados, y a un firme propósito
de enmienda23.
Como se sabe, a região descrita por Lozano não estava desabitada quando houve a colonização. Ali viviam diferentes nações, que geralmente entraram em
conflito com os espanhóis. O trabalho realizado pelos missionários da Companhia
de Jesus com esses nativos pode ser entendido então, como uma forma de acalmar
os ânimos entre espanhóis e nativos. Porém algumas dessas nações não aceitavam as
reduções.
Segundo Lozano, os nativos que viviam na região do Chaco, os mocobíes
e abipones, eram cruéis e sanguinários24 tanto que organizavam ataques aos colonos
espanhóis para roubar-lhes cavalos e gado para vender para outros espanhóis. Esses
assaltos, geralmente deixavam muitas vitimas.
O cacique Chilomé, dos mocobíes, que dominava a região do Rio da Prata e
Tucumán, era descrito pelo jesuíta, como muito feroz, era causador de grandes estragos para as aldeias de espanhóis cristãos. Esse cacique atacava inclusive as reduções
dos jesuítas.
Respiraron un poco nuestros indios y sus misioneiros, al llegar
la noticia de la victoria de los españoles sobre los mocobíes. Al
saber los españoles que el cacique Chilomé se había ido para llevarse las vacas, le esperaron en el río Paraguay, [...] Matáronle los
españoles unos treinta mocobíes, hirieron gravemente al mismo
Chilomé, y recuperaron la presa. Logró escaparse Chilomé, pero
C.A. 1735-1743, p 95-96.
C.A. 1735-1743, p 444.
23
24
55
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
seis cautivos mocobíes fueron llevados ala ciudad de la Asunción
y Obligados a hacer las paces con el español25.
Chilomé termina sua trajetória sendo morto por um grupo de espanhóis da
cidade de Corrientes. “Así acabo este bárbaro, jurado enemigo del nombre español y
cristiano, el cual había causado tan horrendos estragos, el hombre más funesto que
jamás produjo el Gran Chaco, este nido de enemigos de los más bárbaros26”.
Foram também organizadas missões aos índios chiquitos,
Pertencen estas misiones a la jurisdicción del gobernador y del
obispo de Santa Cruz, ya que están situadas em las provincias del
Perú. Son siete los pueblos de los neófitos, en seis de los cuales
se habla preferencialmente la lengua de los chiquitos, y el séptimo lo forman los zamucos, los cuales se sierven de su lengua especial. Es dedicado este pueblo a nuestro santo Padre Ignacio27.
Como entre estes índios a pregação dos jesuítas encontrou melhores condições, os chiquitos, na perspectiva de Lozano, são excelentes cristãos. Seguem
rigorosamente os ensinamentos dos padres a que estão submetidos. Segundo ele,
frequência que esse grupo tem em missas, rosários, enterros e demais sacramentos
é mais do que se poderia esperar de um povo bárbaro.
El tenor de vida de aquellos indios, en lo general es conforme a
la ley cristiana. Pero entre ellos se distinguen de un modo especial los sodales de la Santíssima Virgen, habiéndose fundado una
congregación de ellos en cada uno de los pueblos28.
Percebemos assim, a diferença apresentada pelo jesuíta entre os nativos acima referidos. O primeiro é descrito como sanguinário e causador de muitos
problemas, em contrapartida o segundo é caracterizado por ser dócil e aceitar os
ensinamentos cristãos.
Sobre os índios, que ocupavam a região de Buenos Aires, observamos que,
Lozano apresenta uma distribuição e uma nomenclatura. A “classificação” que ele
realiza, contudo, não obedece qualquer consideração à forma como os índios se
denominavam e reconheciam.
La nación de los pampas, a la cual los primeros conquistadores
de aquellas províncias llamaban querandies, fu ela dueña de todo
el distrito de Buenos Aires, estendiendose su domínio muy lejos
el sur y occidente. Era ella muy numerosa, y muy valerosa por lo
cual, em los principios resistió tan ferozmente a la dominacion
27
28
25
26
56
C.A. 1735-1743, p 445.
C.A. 1735-1743, p 447.
C.A. 1735-1743, p 448.
C.A. 1735-1743, p 447-448.
española, retarandola mucho. [...]
Dizemados por estos males, se redujeron, al fin, a un número tan
insignificante, que consisten ahora sólo de tres parcialidades no
muy numerosas29.
Segundo Lozano, cada uma dessas parcialidades possui um dialeto próprio, mas derivado da mesma língua matriz. A primeira tribo a que ele se refere são
os Pampas Cordobeses e Mendozanos, que vivem nas terras de Córdoba e Tucumán. A segunda tribo é a dos índios Pampas Serranos, que vivem ao sul, e em seu
idioma se chamam puelches. E a terceira tribo, que vive mais ao norte de Buenos
Aires e se chamam também de puelches30. Além de classificação, esses jesuítas também
carregavam nas críticas aos nativos, elencando um vasto repertório de vícios e defeitos,
como a vagabundagem e a bebedeira, que tais grupos, do seu ponto de vista, possuíam.
Tais representações podem ser entendidas como mecanismo de autoafirmação para os
trabalhos feitos pela ordem naquela região.
hay que advertir también, que con todo su continuo trato con los
españoles, jamás se aficionaran con la ley cristiana, al contrario, constantemente, quedaron desafectos a ella, sea esto a causa de las malas costumbre, observadas por ellos en alguno cristiano depravados,
como se los excesos de los mortales influyesen en la santidad de la ley
cristina, o desculpan los errores y las superticiones de los bárbaros, o
sea, que la santidad de nuestras leyes parecia intolerable a esta gente tan viciosa. Por estas razaones se contentaban los pampas con
su vida brutal, perseverando en allá, haciendo ilusório el trabajo de
los varones apostólicos, los cuales em diferentes épocas procuraban, sin resultado ninguno, que se rindisen a Cristo y a su Evangelio. También algunos insignes misioneros de nuestra Compañia se
han aburrido, abandonándolos al fin, como a gente incorregible31.
O primeiro grupo, os Pampas Cordobeses, são nômades vivendo principalmente ao ocidente da cidade de Buenos Aires, distante dela umas cem léguas.
Deslocam-se por todo o distrito de Córdoba, São Luis de Loyola, Mendoza e Buenos Aires.
Son ellos muy insignificantes en número, llegando apenas a setenta
familias; y, sin embargo, han caudado ellos muy graves prejuicios
a los españoles, habitantes de Luján y de sus alrededores, como
también a viajeros que iban a Mendoza. Se alimentan ellos de carne
de potros, de avestruces, y de liebres, muy abundantes en aquellas
tierraas; y, aunque abunden en estos campos también los puercos, no
los tocan, porque creen que habían sido hombres. Por lo demás es su
C.A. 1735-1743, p 579-580.
C.A. 1735-1743, p 581-583.
29
30
31
C.A. 1735-1743, p 585-586.
57
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
tierra, lo mismo que el centro, estéril, arenosa, y casi completamente
destituída de árboles, y muy pobre en água dulce32.
Essa nação também faz negócios com outras nações com os espanhóis. Com
os araucanos, eles trocam as éguas selvagens que caçam por ponchos. E com os espanhóis, além dos ponchos, fazem também tiras de couro para trocar por aguardente e
vinho. Este tipo de notícia é muito importante para refletirmos sobre a complexidade
das relações que se estabelecem entre brancos e índios e entre índios e índios.
O segundo grupo, os Pampas Serranos, possui quatro caciques: Cacapol, chamado pelos espanhóis de o Bravo, Dom Nicolas, filho de Cacapol, Galimeu e Cancaliac.
Junto com eles vivem três caciques araucanos, seus amigos e aliados: Amolepi, Nicolasquen e Colopichun.
O terceiro grupo, o Puelches, que também são conhecidos como “amigo dos
espanhóis”, compõe em grande parte a redução de Nossa Senhora da Conceição que se
estabeleceu naquela região. Estes índios, segundo ele:
Geralmente son de una estatura alta, de cuerpo robusto, y no
mal proporcionado, los pampas de las dichas tres parcialidades.
Viven ellos en toldos de cuero de caballo, a los cuales facilmente
pueden transladar ellos, cuando les conviene, de una parte a la
outra, sin que tuviessen una morada fija. Por donde resulta, que
jamás se ocupan de la agricultura, vivendo ellos únicamente de
la caza. Ya que aquellos campos inmensos, entre el rio Saladillo
(a cuyas orillas está situada la reducción nueva) y el primer cerro
de Tandil, abundan muchísimo en yeguas cimarrones, avanzan
los pampas serranos, en verano, hacia el citado primer cerro, con
sus aliados, para cazar con más êxito caballos y yeguas, con sus
potros, llevándoles, para, al entrar el invierno, poder alimentarse
con la carne de estos animales, allá en sus tierras33.
Lozano também fala que esses nativos são uma nação forte e aguerrida. Ele se
refere principalmente ao grupo dos Pampas Serranos, que do seu ponto de vista, são os
mais agressivos desses grupos.
Antecipadas estas noticias generales sobre los pampas, hay que
advertir también, que con todo su continuo trato con los españoles, jamás se aficionaran con la ley cristiana, al contrario,
constantemente, quedaron desafectos a ella, sea esto a causa de
las malas costumbre, observadas por ellos en alguno cristiano
depravados, como se los excesos de los mortales influyesen en
la santidad de la ley cristina, o desculpan los errores y las superticiones de los bárbaros, o sea, que la santidad de nuestras leyes
parecia intolerable a esta gente tan viciosa. Por estas razaones se
C.A. 1735-1743, p 581.
C.A. 1735-1743, p 583-584.
32
33
58
contentaban los pampas con su vida brutal, perseverando en allá,
haciendo ilusório el trabajo de los varones apostólicos, los cuales
em diferentes épocas procuraban, sin resultado ninguno, que se
rindisen a Cristo y a su Evangelio. También algunos insignes misioneros de nuestra Compañia se han aburrido, abandonándolos
al fin, como a gente incorregible34.
Com os pampas os jesuítas formariam então, a missão Nuestra Señora de
lo Concepción de los Pampas, fundada em 1740.
Vale lembrar que esses nativos que descreve Lozano, possuem costumes completamente diferentes dos já mencionados guaranis, são nômades
e não conseguem se adaptam ao sedentarismo necessário para o cultivo da
terra. Este era um dos maiores problemas enfrentado pelos missionários,
segundo se lê na carta.
Os primeiros fundadores dessa redução foram os caciques pampas-carayhet: Dom Lorenzo Machado, Dom José Massiel e Dom Pedro Milián. E também junto a eles estava um cacique dos Pampas Serranos, Dom Yahati. A carta
também nos evidencia a enorme queda da demografia indígena: todas as famílias
pampas desta parcialidade formavam um grupo de trezentas pessoas.
Considerações Finais
Buscamos aqui, num exercício de Iniciação Científica, trabalhar com um
documento escrito, um texto do século XVIII e compreendê-lo a partir do que
Michel de Certeau chamou de “lugares de produção”. Isto é, onde estava escrevendo o documento, a situação institucional do autor, para quem escrevia, e qual era
a intenção desse texto no período de sua escrita. Sem dúvidas, é analisando esse
documento a luz desse conceito que podemos apontar para a retórica edificante
com que constrói sua narrativa.
Fica evidente o cunho enaltecedor que o jesuíta traz à sua narrativa quanto
a construção de uma imagem gloriosa dos membros da Ordem. Esse caráter pode
ser percebido através de um viés edificante com que é escrita a missiva. “Pues, el
Espírito espira por dondo quire, y cuando quiere, y la impresión producida en las
almas no está ligada a una vana elocuencia, ni a la autoridade del que habla. Es la
obra del Señor, el cual se deleita maravillosamente por la conversación de los sencillos35.”
Construída com um forte caráter descritivo, a ânua de Lozano, faz com
que percebamos as disputas travadas diariamente por esses missionários e o quanto
C.A. 1735-1743, p 585-586.
34
35
C.A. 1735-1743, p 409.
59
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
era importante informar, não só ao superior da Companhia, mas ao público letrado
em geral, os trabalhos realizado nas Américas.
Referências Bibliográficas e Fontes
Bibliografia
BARCELOS, Artur Henrique Franco. O Mergulho no Seculum: exploração, conquista
e organização espacial jesuítica na América espanhola colonial. Tese (Doutorado em
História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-Graduação em História, Porto Alegre, 2006.
CAÑIZARES ESGUERRA, Jorge. Cómo escribir la historia del Nuevo Mundo:
Historiografias, epistemologias e identidades em el mundo del Atlántico del siglo XVIII.
México: FCE, 2007.
CARGNEL, Josefina G. Pedro Lozano S.J., um historiador oficial. Projeto História.
São Paulo, n◦ 35, 2007.
CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1982.
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados. São Paulo,
v. 5, n.11, 1990. Disponível em http//www.scielo.br. Acesso em agosto de 2011.
FANTIN, Odair José. “Obedeciendo a la intrución de compendiar”: Registros de viagens de jesuítas nas Cartas Ânuas da Província Jesuítica do Paraguai (segunda metade do
Século XVII). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade do Vale do Rio do
Sinos, Programa de Pós Graduação em História, São Leopoldo, 2010.
PIZARRO, Ana (org.). América Latina: Palavra, Literatura e Cultura. São Paulo:
Memorial; Campinas: UNICAMP, 1994.
TORRES LONDOÑO, Fernando. Escrevendo cartas: jesuítas, escrita e missão no século XVI. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, n◦ 43, 2002. Disponível em
http//www.scielo.br. Acesso em agosto de 2011.
VALLE, Ivone Del. Escribiendo desde los márgenes: colonialismo y jesuítas em
el siglo XVIII. México: Siglo XXI, 2009.
Sites consultados:
http://ec.aciprensa.com/c/claudiusacqua.htm acessado em 22 de abril de 2012
http://seer.ufrgs.br/EspacoAmerindio/article/viewFile/19736/13851 acessado em 27
de abril de 2012
Fontes:
Cartas Anuas de la Provincia del Paraguay. Anõs 1735-1743. Tradución de Carlos
60
Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1928. Tradução Digitada, São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS,1994, p. 294).
Carta Ânua da Província Jesuítica do Paraguai 1659-1662, São Leopoldo: Unisinos;
Oikus, 2008. Organizaçao, Introdução e Notas de FRANZEN, Beatriz Vasconcelos,
FLECK, Eliane Cristina Deckmann, MARTINS, Maria Cristina Bohn.
61
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
62
Vivendo nas margens: respostas indígenas ao avanço colonial na
pampa bonaerense (século XVIII).
Juliana Aparecida Camilo da Silva
Resumo: Em meados dos Setecentos a Coroa Espanhola realizou vários iniciativas que visavam expandir as suas fronteiras coloniais no Novo Mundo. Muitos destes empreendimentos
foram realizados principalmente pelos padres da Companhia de Jesus. O território da pampa-bonarense fazia parte destas áreas marginais, por isso, foi um dos desígnos desta nova politica.
Neste trabalho avaliaremos as relações que se estabeleceram nesta fronteira entre o mundo
hispano-crioulo e o mundo índio, para assim, analisarmos as respostas indigenas para tal avanço.
Palavras-chave: Fontes jesuíticas – Fronteira - Missões – Indígenas.
O
século XVIII foi caracterizado por inúmeros empreendimentos que visavam o avanço das fronteiras coloniais espanholas.
Dentre eles, podemos fazer referência às inúmeras iniciativas
de viagens e novas frentes de missões realizadas pelos padres da Companhia
de Jesus. Tais feitos foram possíveis a partir das reformas bourbônicas1, que
podem mesmo ser consideradas como uma “segunda conquista dos territórios
americanos”2. A região da pampa - bonaerense fazia parte das áreas periféricas
do império espanhol, por isso, foi alvo desta nova política de expansão.
Dessa forma, nesta centúria as autoridades coloniais realizaram importantes medidas no sentido de garantir suas fronteiras contra potenciais inimigos
de países estrangeiros, assim como contra as populações indígenas que permaneciam fora da sua jurisdição. Entre estas medidas, esteve a constituição de reduções junto aos índios “pampas e serranos” denominação que generaliza as
inúmeras parcialidades da região de acordo com sua localização. Assim, neste
trabalho avaliaremos as relações que se estabeleceram nesta fronteira colonial,
como se constituíram as três missões; Nuestra Señora de La Concepción de los
As Reformas Bourbônicas foram medidas administrativas e econômicas do sistema colonial
espanhol visando “modernizá-lo”, fortalecer a monarquia e o controle da metrópole sobre seus
territórios no Novo Mundo. Elas tinham a intenção de recuperar o poder do Estado espanhol
por meio de uma exploração mais racional e eficiente de suas colônias, buscando, inclusive,
reconquistar o espaço perdido para os criollos na América, aos comandos de Carlos III (17591788).
2
DEL VALLE, Ivonne. Escrebiendo desde las márgenes. Colonialismo y jesuítas en el siglo
XVIII. México, Siglo XXI, 2009, p.38.
1
63
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Pampas (1740) Nuestra Señora Del Pillar (1746) e Madre de los Desamparados
(1750), e quais foram às respostas dos índios “pampas e serranos” para tais feitos.
Para isso, descreveremos este ensaio em três partes. A primeira irá tratar
das nossas fontes e metodologia, ou seja, a forma pela qual abordamos a documentação jesuítica, pois, a nossa matéria de análise principal é composta especialmente por textos produzidos pelos próprios missionários. Embora secundariamente, também lidamos com fontes manuscritas, tal como os “Bandos” do
governador de Buenos Aires, seu conteúdo principal trata-se de documentação
referente a punições impostas aos hispanos-crioulos quanto aos índios, mestiços
e negros na Província do Rio da Prata nos Setecentos. No segundo momento,
trataremos a partir destes textos, das relações que se definiram nesta fronteira colonial e, finalmente no terceiro tópico, apontaremos quais as respostas indígenas
perante as missões austrais.
Nossa crítica preocupa-se justamente em desmistificar a forma como a
grande maioria da historiografia tradicional apresenta os indígenas, ou seja, como
sujeitos passivos as ações colonizadoras. Para os índios “pampas e serranos”
existe um preconceito ainda maior, por conta de seu nomadismo. Este conceito
muitas vezes é categorizado a se tratar exclusivamente de caçadores e coletores,
ou ainda, que seus movimentos estavam condicionados ao meio ambiente, ou,
que limitavam suas atividades à subsistência, que eram seriam “selvagens” por
não praticarem a agricultura, ou, que não programavam seus movimentos nem
suas vidas.
Dessa forma, o próprio fracasso das missões austrais é associado ao nomadismo, ao não sedentarismo dos índios, quando comparados com as missões
guaranis. No entanto, este pode ser um dos motivos, porém a conjuntura é bem
mais complexa do que isto. Sabemos que os pampas e serranos passaram por um
processo de transformação de práticas econômicas e sociais - começaram a explorar o gado selvagem que se proliferava na região, além de adotarem inúmeras
práticas e técnicas européias - que modificaram seus contextos. De tal modo, eles
possuíam uma extensa rede comercial que unia pontos remotos na região, e esta
não só com o mundo indígena, mas também com o mundo espanhol.
Nas últimas duas décadas, um conjunto de novos estudos procurou estar
atento às respostas dos índios ao contato com o ocidente. Estes estudos observaram que nem sempre eles rechaçaram este contato. Também o fizeram, mas
em vários momentos buscaram se aproximar das cidades e mercados, a fim de
adquirir produtos que cobiçavam. Ao mesmo tempo, podiam buscar proteção
junto às fazendas e às missões. Portanto, o que pretendemos é explorar a ativa
participação indígena e suas diversas formas na fronteira colonial bonaerense.
64
A escrita jesuítica como fonte:
Desde seus primórdios a Companhia de Jesus demonstrou intenso interesse
pelo trabalho histórico. A sua produção de documentos é extraordinária. Eles deixaram um acervo colossal sobre suas múltiplas atividades, tais como: crônicas, diários, cartas, informes, instruções, memoriais, mapas, sermões, doutrinas, gramáticas
e entre outros. Documentar não era apenas uma forma de fazer memória sobre um
trabalho evangélico que logo assumiu caráter internacional, mas também de consolidar a sua própria memória, as lembranças de quem eram e quais eram suas obrigações. Eles seriam aqueles “viajantes” que se moviam até as fronteiras e que “são eles
próprios marcos de fronteira”. Eram, assim, a presença colonial nas áreas marginais
que, na ocasião em especial, se constituíam no centro da política bourbônica para a
expansão dos confins do império.
A Companhia de Jesus fazia parte ainda de uma rede internacional de informações; a partir da conexão de documento com documento era possível o conhecimento das áreas mais “remotas do globo”3 . Segundo Ivone Del Valle “Los jesuítas
cumplíam una importante función em la busqueda de informacíon: eran quien fisicamente se encontraban allá, conviviendo con los indígenas y en un médio ambiente
lleno de objetos “novedosos” y por lo tanto esperando su catalogacion [...]”4.
Contudo, a escrita jesuítica era dotada e empenhada em recordar os “grandes
feitos” e o “belo trabalho” de conversão em todas as partes do mundo. Os inacianos
possuíam traços em comum em todas as suas obras, e também instruções normativas
para composição das mesmas. Dessa maneira, devemos atentar que contrariamente a
uma historiografia positivista que via o documento como reflexo do real, este trabalho indaga tal escrita de maneira a compreender a luz dos condicionantes que operam
sobre o ato da escrita.
Por isso, é necessário levar em conta os “lugares de produção”, lembrando
a necessidade de avaliar as condições de enunciação dos textos - “ligados a operações
e definidos por funcionamentos”5 -, os objetivos implicados no ato de narrar e o
público leitor a que se destinam. Assim sendo, a partir destas ponderações investigaremos nossas fontes, na busca de respostas, porém levando em conta “as condições
de produção” 6.
As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem a universalidade de um diagnostico fundado na razão, são
DEL VALLE, Ivonne. Escrebiendo desde las márgenes. Colonialismo y jesuítas en el siglo
XVIII. México, Siglo XXI, 2009, p.51
4
Op. Cit. p.52.
5
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p.31.
6
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1990.
3
65
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam.
Dai, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos
proferidos com a posição de quem os utiliza. As percepções do
social não são de forma alguma discursos neutros: produzem
estratégias e praticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a
impor uma autoridade a custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os
próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas7.
As relações na fronteira da pampa - bonaerense:
Fronteira – bonaerense, Missões austrais.
Quando pensamos no conceito de fronteira, logo vem à memória algo que
delimita uma separação, ou até mesmo uma divisão de dois espaços territoriais;
pensamos na fronteira como linha. No entanto, o sentido de fronteira abarca algo
mais amplo e intrincado. A região da pampa bonaerense demarcava este limite com
o mundo indígena, mas também uma zona de contato entre ele e o mundo dos
espanhóis. Este local era um espaço marginal, uma área pobre e ampla no vastíssimo império espanhol. Assim, em meados do século XVII se produziu nele uma
enorme proliferação de gado vacum e cavalar introduzido pelos espanhóis em tempos da primeira ocupação. Este foi aproveitado tanto pelos colonizadores, quanto
pelos indígenas. De tal maneira, até primórdios do século XVIII nas relações entre
europeus e índios, se alternavam momentos com mais e menos conflitos.
Assim sendo, pensamos a fronteira como espaço de inteiração que permite
aos grupos em situação de contato aplicar estratégias para manter sua autonomia,
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1990. p.17
7
66
através de inúmeras adaptações; “sejam políticas e econômicas, de mestiçagem
biológica e cultural, e de reconfigurações éticas” 8. A fronteira na qual trabalhamos se assinala por proporcionar uma ampla interpenetração entre indígenas
e espanhóis, circulação e intercâmbio de idéias, pessoas e bens. Um local que
conforma domínios “porosos, flexíveis e criativos” 9. Esta região não demarcava
a dicotomia brancos e índios, ela era na verdade um espaço de transição, uma
localidade mestiça que se produzia uma mistura de práticas sociais e culturais.
Um indício destas trocas culturais apresenta-se na adoção do gado cavalar ao cotidiano dos “pampas e serranos”, condição que trouxe inúmeras transformações. Ainda que, estes indígenas não desdenhassem bois, cabras e ovelhas,
o gado cavalar era o mais considerado. Pois, além da carne, aproveitava-se ainda
o couro, as crinas, os tendões e os ossos dos animais abatidos. Segundo Sanchez
Labrador10: “De esta gran multitud de animales proveen los índios dichos de
comida, vestido, y casa, ó habitassem. Para el alimento sale uno, ó mas índios,
armado, de sus Bolas, y Lazo em seguimiento de los Baguales”11
A utilização deste animal possibilitou uma mobilidade enorme, além de
facilidade de caça de animais e movimento de cabeças de gado, melhoramento
nas relações comerciais com diversos grupos, principalmente com os aucas ou
araucanos assentados na cordilheira sul do Chile, e também um aumento nos
malones12 para descontentamento dos espanhóis.
NACUZZI, Lidia R. Pueblos nômades: en un estado colonial, Chaco, Pampa, Patagonia,
siglo XVIII. 1 ed. Buenos Aires, 2008.
9
BOCARRA, Guillaume. “Notas acerca de los dispositivos de poder em la sociedade fronteiriza, la resistência y a transculturacion de os reche-mapuche del centro-sur de Chile (XVI-XVIII). In: Revista de Indias LVI (208): 659-695. Madrid.1996. p.16.
10
José Sanchez Labrador nasceu em La Guardia, Toledo, em 19 de setembro de 1717. Ingressou na Companhia de Jesus em 1732 com 15 anos, já havendo cursado gramática e ciências
humanas no colégio de Valladolid. Ele chega a Província do Paraguai em 1734 e estuda deste
período até 1739 teologia e filosofia. Foi ordenado sacerdote em Córdoba em 1739. Por 12 anos
atuou como missionário entre os índios guaranis. Em 1759 foi professor de Teologia em Assunção. Em 1760 fundou a redução de Belém, perto da desembocadura de Ypané no Paraguai,
com os índios Mbayá. Depois da expulsão dos jesuítas em 1767 foi morar na cidade de Ravena,
na Itália. Faleceu em 10 de outubro de 1798. Sua bibliografia é composta no exílio. A expulsão
dos jesuítas implanta diferenças em relação a outros registros, produzidos em outros contextos.
Esta literatura, ao mesmo tempo em que descreve o valor do trabalho da ordem e a injustiça
cometida com sua expulsão, argumenta sobre a necessidade de continuar o que tinham sido
obrigados a deixar..
11 SANCHEZ LABRADOR, Jose. Paraguay Cathólico. Los indios pampa-puelches-patagones
Buenos Aires: Imprenta de Coxi Hermanos, 1910, p.34.
12
Estes malones incidiam em assaltos a fazendas e povoados espanhóis, em busca de gado,
roupas, armamentos e, freqüentemente, mulheres e crianças. Estas pessoas capturadas pelos
povos indígenas acabavam, por vezes, tornando-se intérpretes e, de certa forma, “mediadores”
8
67
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Além disso, outro indício do contato na fronteira são as redes comerciais. Esses
indígenas comercializavam não apenas o gado cavalar, mas também couros, plumas e
especialmente ponchos, com os espanhóis, e estes em troca negociavam, erva, tabaco,
açúcar, aguardente, vinho e entre outros. Notamos tal comércio, em trecho da Carta
Anua de Pedro Lozano13:
Era Ella muy numerosa, y muy valerosa por lo cual, em los princípios resistió tan ferozmente a la dominación española, ratardandola
mucho. [...]obligó a los pampas, a desistir de su resistencia, y hacer las
paces. [...] Pronto, por el trato familiar con los españoles, comenzó
a arraigarse su vicio principal, al cual se entregaron ellos desesperadamente, y que consiste en la ebriedad proporcionándos elos vino
natural de uva, y aguardente, en trueques de algunas cositas, que ellos
traen para vender 14.
No entanto, com a exploração desmedida cometida tanto por índios, quanto
pelos povoadores espanhóis, o “gado chimárron” (gado selvagem), começou a se extinguir. E neste momento, as relações na fronteira que tinham períodos de certo equilíbrio
e outros de discordância começaram a mostrarem-se mais conflituosas. Dessa maneira,
os espanhóis procuraram manter o gado em zonas onde o cuidado era mais simples, e
assim, dando origem ao progresso das estâncias coloniais. E foi justamente neste período (1730) que as invasões indígenas aumentaram. E apesar dos jesuítas possuírem
autorização real desde 168115, para o estabelecimento de missões junto aos “pampas e
serranos” foi só em 1740 que a primeira missão foi constituída na região.
Portanto, ressaltamos que com união das forças dos estancieiros, descontentes
pela situação conflituosa dos intensos malones, unidos ao poder colonial, ao mesmo
entre estes dois mundos. Segundo Bocarra (1998) os malones como forma de guerra possível
se cristalizou em um complexo econômico bélico que pode entender-se em duas dimensões:
como forma institucionalizada de abastecimento e intercambio e como maneira de manter a
autonomia política dos grupos frente as pressões coloniais.
13 Pedro de Lozano nasceu em Madrid em 1697 e ingressou em 1711, aos 14 anos, na Ordem
dos Jesuítas Não se tem certeza de quando chegou ao Rio da Prata, mas em 1715 ele se encontrava em Cordoba consagrado aos estudos de humanidade e retórica. A partir de 1730, Lozano
consta no Catálogo da Companhia como “historiographus provinciae”, ocupação de que se
incumbiu a partir de então. Ele faleceu em Humahuaca em 1752, quando viajava para Lima para
levar ao conhecimento das autoridades vice-reinais as preocupações dos jesuítas diante da assinatura do Tratado de 1750. O desígnio da Carta Ânua era de um texto mais circunspecto, um
relato generoso do que acontecia nas reduções e, principalmente, o meio que os jesuítas tinham
de fazer o anúncio de seus feitos e angariar donativos e novos missionários
14
LOZANO, Pedro. Carta Ânua de la Provncia del Paraguay año 1735 – 1743 Traducción de
Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1928. Transcrición 1994 Instituto Anchietano de Pesquisa,
UNISINOS. p. 580
15
Real cédula de 1681, expedida pelo rei ao Bispo e ao Sr. Governador de Buenos Aires a
conversão dos índios “pampas e serranos”.
68
tempo incentivada pelas novas estratégias expansionistas das reformas bourbônicas e juntamente com a colaboração (mesmo que dissimulada) dos índios “pampas
e serranos” foi possível o estabelecimento das três missões austrais pelos padres da
Cia de Jesus; assunto do nosso próximo tópico.
As três missões austrais com os índios “pampas e serranos”:
As missões austrais foram em número de três, sendo a primeira Nuestra Señora de la Concepcion de los Pampas (1740) a segunda Nuestra Señora
del Pillar (1746) e última e mais breve foi Madre de los Desamparados (1750).
Foi em maio de 1740 que os jesuítas Manuel Querini e Matías Strobel, que já
haviam trabalhado em reduções guaranis, deram a fundação de Nuestra Senora
de La Concepción de los Pampas. Esta inicialmente se colocou em um terreno
próximo ao Rio Salado, para mudarem-se alguns anos depois, por conta de alagamentos, para o sudoeste em terras mais elevadas. Os motivos para constituição destas reduções são muitos; alguns apontam que os conflitos internos das
parcialidades indígenas seriam o motor para a negociação com os colonizadores.
Outros demonstram que foram as ações violentas, contra os malones, do maestro
de campo Juan de San Martín que impulsionaram os indígenas a procura de ajuda
hispano-criola.
Como aponta o padre Sanchez Labrador; “Para catigar los agresores se
junto um cuerpo de milicianos, que ao comando de Del Maestre de Campo Don
Juan de San Martin, siguio las huellas de los índios malhechores”16. Por conta do temor dos indígenas, segundo o padre, os caciques pampeanos se encaminharam até
a cidade e se apresentaram ao governador Don Miguel de Salzedo e “Suplicaronle
por lãs vidas, y também le pidieron, que les permitiese habitar entre los Españoles
[...]. Prostestaron que guardarian la paz con los Españoles, no damnificandoles en
nada.” 17.
Contudo, como dissemos anteriormente, estamos absorvidos pelo intuito
de reaver a centralidade das sociedades indígenas, atentos as suas respostas perante
o contato com os ocidentais. De tal modo, partimos do propósito que os diversos
grupos indígenas que se relacionaram com as missões, aproveitaram a circunstância estável para conseguir bens reais dos espanhóis, ou ainda, compreendemos que
maiores foram os benefícios para os índios, porque os compromissos essenciais de
não atacar e “reduzir-se” não foram cumpridos18.
SANCHEZ LABRADOR, Jose. Paraguay Cathólico. Los (indios pampa-puelches-patagones Buenos Aires: Imprenta de Coxi Hermanos, 1910, p.82).
17
Op. Cit., p.83.
18
NESPOLO, Eugenia. “Las misiones jesuíticas bonaerenses del siglo XVIII? una estratégia
16
69
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Dessa forma, mesmo depois da fundação da redução de Concepción de
los Pampas, os espanhóis não podiam dar os indígenas como vencidos, nem repelir ou reduzir os conflitos, pois os ataques continuavam19. Estes tinham como
protagonista o cacique Cangapol, o Bravo, conhecido pelas ações violentas contra
os espanhóis. Além disso, em vários trechos da crônica de Sanchez Labrador notamos a estratégia indígena e sua verdadeira intenção perante as missões, como a
seguir; “Para mas aficionarlos al rezo, y cosas espirituales, les regalaban con algunas
cosillas, que ellos estimaban”20. Em outro momento da escrita deste padre, vimos
também a forma pela qual os pampas trabalhavam na redução, ou seja, diante de
pagamento; “[...] quando se les caia el techo de la casa, le componian, peró pagandoles o Misionero o trabajo, y mateniendoles de Yerba del Paraguay, y tabaco;
de outro modo ni trabajaban para si mismos, ni para bien de si Pueblo”21. Ainda
Sanchez Labrador, falando sobre as plantações “aunque gustasen de los granos, y
frutos, que se les repartían, los mas decían, que no eran esclavos para sujetarse al
trabajo. Algunos pocos se esforzaban a hacer sus sementeras con la dirección de
los Padres Misioneros, pero los holgazanes les hurtaban los frutos.”22
Dando continuidade aos trabalhos, entre 1746-1747, Jose Cardiel e Thotra ra
mas Falkner fundaram N S del Pilar23 próxima da atual cidade de Mar del Plata.
Esta seria uma missão de índios que os jesuítas chamaram “serranos”. A ocupação desta redução não foi permanente, os grupos entravam e saiam da missão, e
a utilizavam para realizar atividades comerciais, intercambio de cativos, acesso a
informação e logo retornavam aos seus territórios. Como nos mostra o padre Labrador “[...] reconocian ser muy poco el fruto de sus instrucionais en unos índios,
que gastaban el tiempo en idas y venidas á Buenos Ayres, y a los lugares, em que
havia algun Pulpero.” 24. Esta redução foi abandonada em 1751, pelas ameaças de
ataque do cacique Bravo, seus habitantes foram remanejados para Concepción de
los Pampas.
A última das nossas reduções é Madre de los Desamparados, esta se distanciava quatro léguas da anterior, era destinada aos índios patagones ou tehuelches,
foi constituída em 1750 e o padre Lorenzo Balda ficou a cargo da mesma. Esta teve
uma curta existência e foi desocupada em fevereiro de 1751 pelos ataques do cacique Bravo. Segundo Sanchez Labrador o cortejo do cacique Bravo era composto:
político econômica indígena?”.In: Tefros 5(1). Buenos Aires. 2007.
19
Ver: SANCHEZ LABRADOR, Jose. Paraguay Cathólico. Los indios pampa-puelches-patagones Buenos Aires: Imprenta de Coxi Hermanos, 1910,
20
Op. Cit. p. 86.
21
Op. Cit. p.91.
22
Op. Cit.110.
23 Ou “Pilar del Volcon”.
24 Op. Cit. p. 105.
70
La comitiva del Barbaro se componia de 500 hombres, aun que
todos eran sus vassalos, porque venian con el otros caciques aliados, entre los quales habia uno da nacion Auca, llamado Piñacal.
Esta tropa de infieles sento sus reales, ó toldos en un lugar, que
se dice Tandil, por un cerro de este nombre que allí se halla. De
este cerrocorre un Arroyo, que tiene el nombre de Monte de
Tinta [...].25
Assim sendo, as três missões tiveram uma duração bastante curta: 17401753 para a primeira delas, 1746-1751 para a segunda e 1750-1751 para a última.
Dessa maneira, estas reduções não obtiveram o sucesso esperado, assim como as
afamadas missões de guaranis. De tal modo, notamos que o esforço dos missioneiros em conter os indígenas e evitar sua presença violenta foi frustrado. No entanto,
estas três reduções acabaram sendo utilizadas pelos indígenas por suas vantagens,
sendo na aquisição de regalias, sendo por proteção, ou ainda como ponto de interseção cultural.
Cacique Cangapol o Bravo, por Tomas Falkner. Fonte FURLONG, Entre los Pampas de Buenos Aires (según noticias de los misioneros jesuitas Matías Strobel, José Cardiel, Tomás Falkner,
Jerónimo Rejón, Joaquín Caamaño, Manuel Querini, Manuel Gracia, Pedro Lozano y José Sánchez
Labrador). Buenos Aires, talleres Gráficos San Pablo, 1938. p.2.
Op. Cit p. 130.
25
71
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Redução de Concepcion de Los Pampas, por José Cardiel.FURLONG, Entre los Pampas de Buenos Aires (según noticias de los misioneros jesuitas Matías Strobel, José Cardiel, Tomás Fal kner,
Jerónimo Rejón, Joaquín Caamaño, Manuel Querini, Manuel Gracia, Pedro Lozano y José Sánchez
Labrador). Buenos Aires, talleres Gráficos San Pablo, 1938. p.29.
Considerações Finais
Podemos destacar que as parcialidades indígenas da pampa -bonaerense no
século XVIII, “não foram receptores imparciais das inovações culturais introduzidas
pelo colonialismo, mas participantes e atores dos métodos de transformação em curso”
26
. Assim, toda a mobilidade e plasticidade da fronteira entre mundo hispânico e mundo
indígena, possibilitaram a estes índios, ainda que reduzidos, uma maneira de viver que
acomodava esta condição com a suas formas anteriores de existência. Isto fica evidente
principalmente com relação às suas “idas e vindas” nas missões, o que permitia flexibilizar a imobilidade que era o principal pressuposto da vida em redução.
Estes povos indígenas foram os protagonistas; pois abraçaram e acomodaram
diversos bens, intercambiaram, determinaram, comerciaram e, como vimos, não estiveram em uma contínua situação de conflito, bem pelo contrário, em certos momentos
puderam viver com menos tensões. Quando reduzidos estes povos usaram as missões
como tática, um núcleo de conhecimentos e aprendizagem, desenvolvendo-se justamente no local que serviria como meio de dominação da sociedade opositora. Sabemos
MANDRINI, Raúl. Las fronteras y la sociedad indígena en el ámbito pampeano. Anuario
del IEHS. n.12, Tandil. pp. 23-34, marzo de 2004.
26
72
também que entre as próprias parcialidades existiam conflitos, notamos este aspecto
nos intensos ataques do então conhecido cacique Cangapol, o Bravo, e como forma de
defesa a estes investimentos os índios ainda usavam as reduções como meio de amparo.
Portanto, estas missões austrais ficaram longe de tornarem-se “meios de superioridade”
para evangelizar e transformar os indígenas em dóceis súditos, frustrando tanto jesuítas
quanto colonizadores.
Além disso, apesar de nossas principais fontes serem justamente textos escritos
pelos próprios missionários, ou seja, possuindo marcas de eurocêntrismo, cristianismo
exacerbado, relatos edificantes e regras internas intensas, foi fatível a luz da Nova História a possibilidade de indagá-los dando voz justamente a que deveria estar emudecido,
ou seja, os índios. Os rebates indígenas aparecem nos “lapsos do discurso” observando
a sugestão metodológica de Michel de Certeau, buscando a identificação das “falhas”
ou “lapsos na sintaxe construída”, ou seja, daquilo que “devolve nas franjas do discurso
ou nas suas falhas: ‘resistências’, ‘sobrevivências’27. Portanto, desse modo, foi possível
encontrarmos as respostas indígenas, mesmo em textos jesuíticos, observando as diferentes formas de resistência índia na fronteira sul de Buenos Aires nos Setecentos.
Fontes
BANDOS 1763-1777. Sala IX. División colonial. Seccion gobierno. Archivo general de
la nacion. Buenos Aires. Argentina.
CARDIEL, José. Diario de viaje y Misión al Río Sauce realizado en 1748, con prólogo de G.
Furlong-Cardiff y F. Outes, Buenos Aires, 1930.
FALKNER, P. Tomas. Descripción de la Patagonia y de las partes contiguas de la América del sur,
traducción de Samuel Lafone Q uevedo. Estudio preliminar de Salvador Canals Frau. (2ª. Ed
1974). Buenos Aires, Hachette. 1969 [reed de1910].
LOZANO, Pedro. Carta Ânua de la Provncia del Paraguay año 1735 – 1743 Traducción de
Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1928. Transcrición 1994 Instituto Anchietano de Pesquisa, UNISINOS.
SANCHEZ LABRADOR, Jose. Paraguay Cathólico. Los indios pampa-puelches-patagones Buenos Aires: Imprenta de Coxi Hermanos, 1910.
Bibliografia
BARCELOS, Artur, O mergulho no seculum: exploração conquista e organização espacial na América espanhola colonial, Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2006.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
pp. 31 e 52.
27
73
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
BOCARRA, Guillaume. “Notas acerca de los dispositivos de poder em la sociedade fronteiriza, la resistência y a transculturacion de os reche-mapuche del centro-sur de Chile (XVI-XVIII). In: Revista de Indias LVI (208): 659-695. Madrid. 1996.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1982.
DEL VALLE, Ivonne. Escrebiendo desde las márgenes. Colonialismo y jesuítas en el
siglo XVIII. México, Siglo XXI, 2009.
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1990.
FRANZEN, Beatriz Vasconcelos, FLECK, Eliane Cristina Deckmann, MARTINS, Maria Cristina Bohn. Organização, Introdução e Notas. In: Carta Ânua da
Província Jesuitica do Paraguai 1659-1662, 2008.
FURLONG,. Entre los Pampas de Buenos Aires (según noticias de los misioneros
jesuitas Matías Strobel, José Cardi el, Tomás Fal kner, Jerónimo Rejón, Joaquín Caamaño, Manuel Querini, Manuel Gracia, Pedro Lozano y José Sánchez Labrador).
Buenos Aires, talleres Gráficos San Pablo, 1938.
GRUZINSKI , Serge. 1986. La red agujereada. Identidades étnicas y occidentalización en el
México Colonial (siglos XVI – XIX), en América Indígena, vol. XLVI , núm 3.Julio-septiembre.
MANDRINI, Raúl. Las fronteras y la sociedad indígena en el ámbito pampeano.
Anuario del IEHS. n.12, Tandil. pp. 23-34, marzo de 2004.
MANDRINI, Raúl. La historiografía argentina, los pueblos originarios y la incomodidad
de los historiadores. Quinto Sol, n. 11, 2007, pp. 19-38.
MANDRINI, Raúl. Procesos de especialización regional en la economía indígena pampeana (siglosXVIII-XIX): en el caso del suroeste bonaerense, en Boletín Americanista,
vol. 41:113-136, Barcelona.1991.
MANDRINI, Raúl. Indios y Fronteras en el área pampeana (siglo XVI y XIX):
Balance y perspectivas en Anuario del IEHS, N° 7:59-72. Tandil, UNCPBA.1992.
MANDRINI, Raúl. “Las transformaciones de la economía indígena bonaerense
(1600-1820)”, en: Mandrini, Raúl y Andrea Reguera (eds.), Huellas en la Tierra. Indios, agricultores y hacendados en la pampa bonaerense. Tandil, IEHS/UNCPBA,
pp. 45-74. 1993.
MARTINS, Maria Cristina Bohn. Jesuítas na América do Sul: práticas missionárias, escrita
política. In: MOREIRA, Luiz Felipe Viel (coordenador). Instituições, Fronteiras e
Políticas na História Sul-Americana.Curitiba: Juruá Editora, p.11-22, 2007.
MARTINS, Maria Cristina Bohn. “Misiones”e “Pueblos de Índios”: o império nas
Fronteiras. In: Simpósio Internacional do Instituto Humanitas. A experiência missioneira: território, cultura e identidade, 2010. São Leopoldo.
MARTINS, Maria Cristina Bohn. José Cardiel: Uma viagem um diário. In: Anpuh-Rs, 2010. Cdroom.
74
MONCAUT, Carlos A. Historia de un pueblo desaparecido a orillas del río Salado bonaera
rense. Reducción de Nra S de la Concepción de los Pampas, 1740-1753. Buenos
Aires: Depto. Impresiones del Min. de Economía de la Prov. de Bs. As, 1981.
NACUZZI, Lidia R. Pueblos nômades: em un estado colonial, Chaco, Pampa, Patagonia, siglo
XVIII. 1 ed. Buenos Aires, 2008.
NESPOLO, Eugenia. “Las misiones jesuíticas bonaerenses del siglo XVIII,? una
estratégia político econômica indígena?”.In: Tefros 5(1). Buenos Aires. 2007.
PALERMO, Miguel Ángel, 1988. “La innovación agropecuaria entre los indígenas
pampeano patagónicos. Génesis y procesos”, en Anuario del IEHS, N° 3: 43-90.
Tandil, UNCPBA.
75
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
“Sufría allí una pobre india de crueles dolores de parto”: um es-
tudo sobre a saúde da mulher indígena e sua atuação como curandeira na província jesuítica do paraguai
Elisa Fauth da Motta1
Resumo: O presente artigo apresenta os resultados preliminares da pesquisa que venho desenvolvendo como bolsista UNIBIC junto ao projeto “Medicina e Missão na América meridional:
Epidemias, saberes e práticas de cura (séculos XVII e XVIII)”. O subprojeto prevê, a partir da leitura
e da análise das Cartas Ânuas da Província Jesuítica do Paraguai referentes à segunda metade do
século XVII, a identificação das enfermidades que atingiam os indígenas sul-americanos e das
práticas curativas que eles adotavam. 2 Neste artigo, especificamente, me detenho nas informações relativas à saúde da mulher indígena e aos recursos terapêuticos empregados por mulheres
xamãs referidos pelos padres relatores das Ânuas, cotejando-as com a produção histórica e
antropológica existente sobre o tema.
Palavras-chave: Companhia de Jesus – Cartas Ânuas – Mulher Indígena – Doença/Saúde Xamanismo
Cartas Ânuas – fontes analisadas
A
s Cartas Ânuas3 constituem-se em correspondência de caráter informativo sobre a atuação missionária jesuítica em diferentes regiões em que se encontravam – Europa, América e Oriente –, com
destaque para aquelas que davam conta do funcionamento das residências, dos
colégios e das fazendas, e do projeto de missionação junto às populações nativas.
A troca de informações através de cartas foi proposta e instituída por Inácio de
Loyola, constituindo-se em elemento fundamental para o modus operandi da Compa Graduanda do 4° semestre do Curso de Licenciatura em História da Universidade do Vale
do Rio dos Sinos. Bolsista de Iniciação Científica UNIBIC, desde março de 2011, orientada pela
Professora Drª Eliane Cristina Deckmann Fleck.
2
Sobre as percepções dos indígenas sobre as enfermidades e as práticas de cura, ver LÉVI-STRAUSS (1967) e SCHADEN (1974).
3
As Cartas Ânuas que analisei foram transcritas a partir dos originais que encontram-se no
Colégio del Salvador, em Buenos Aires, Argentina. O conjunto de Cartas Ânuas do século XVII
e XVIII transcrito pelo Padre A. Bruxel SJ. está à disposição dos pesquisadores no Instituto
Anchietano de Pesquisas (IAP), em São Leopoldo, RS. Infelizmente, algumas destas cartas apresentam trechos incompletos, muito provavelmente resultantes das dificuldades de transcrição
encontradas pelo Padre Bruxel.
1 77
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
nhia de Jesus4. É preciso, no entanto, considerar que mais do que informar, estas
narrativas epistolares tinham uma clara intencionalidade e um evidente caráter
edificante, como observado por Londoño:
Boa parte das cartas teria sido produzida com o propósito claro de edificar, na expressão ascética da época, que apontava
para as ações que serviam para manifestar a presença divina,
estimular a Fé do próximo e infundir piedade. As cartas estavam determinadas pela sua função, seus destinatários e objetivos particulares5.
Portanto, ao escrever sobre os povos indígenas, os Padres Provinciais
relatavam principalmente as dificuldades de conversão, a bestialidade de alguns
grupos e sua oposição à fé cristã. Essas características eram importantes, pois
mostravam o quanto os missionários precisavam se dedicar ao trabalho de conversão e o quanto era dura a vida entre gentios; dificuldades que, segundo as concepções da Companhia de Jesus, enalteciam o trabalho realizado por esses padres. Essas cartas visavam, consequentemente, estimular novas vocações, atrair
e garantir o financiamento da obra missionária e divulgar o trabalho que vinha
sendo realizado pela Ordem.
As Cartas Ânuas analisadas até o momento abarcam a Província Jesuítica
do Paraguai6 e a segunda metade do século XVII, mais especificamente, os anos
de 1650 a 1675. Essa documentação nos fornece inúmeras informações acerca
das populações indígenas contatadas pelos missionários no período. Nelas são
relatados concepções e tradições dos indígenas guaranis, caracterizadas, em sua
maioria, como indicativos da barbárie, da selvageria que precisaria ser eliminada.
Ao realizar o levantamento das doenças que acometiam os indígenas e as
práticas de cura por eles utilizadas nas Ânuas, constatei que os padres relatores
dedicavam especial atenção à saúde da mulher indígena. Este destaque suscitou
alguns questionamentos, dentre os quais, destaco: quais eram as doenças que
atingiam as mulheres? Qual seria o motivo para a ênfase dada à saúde/doenças
LONDOÑO, 2002, p. 14-15.
LONDOÑO, 2002, p. 12.
6
De acordo com Fleck, “A antiga Província do Paraguay abrangia, na época colonial, limites
bastante mais extensos que os da moderna República Paraguaia. Recebendo o nome do rio que
banhava, compreendia uma imensa região que se estendia entre o Brasil e o Peru, até o Prata e
o Oceano Atlântico. O antigo Paraguai limitava-se, ao norte, com a Capitania de São Vicente,
pois a linha imaginária a separar os territórios de Portugal, passava sobre o Iguape, no atual estado de São Paulo; ao sul, com o Rio da Prata; a leste com o Oceano Atlântico e a oeste com a
província de Tucumán, atualmente território argentino. Os atuais Estados brasileiros do Paraná,
Santa Catarina, Rio Grande do Sul e sul do Mato Grosso, subindo daí até a bacia do Amazonas,
eram jurisdição do Paraguay.” (FLECK, 2007, p63)
4
5
78
das mulheres pelos relatores? As mulheres curavam-se a si mesmas? Algumas
delas exerciam o papel de curandeiras/xamãs7 dentro das reduções?
A ocorrência de epidemias
As epidemias são tema recorrente nas Cartas Ânuas, e, em diversos momentos, os padres relatores referem pestes/epidemias8, não apenas nas reduções,
mas em toda a Província Jesuítica do Paraguai. Sabe-se que o contato entre os
povos americanos e os europeus favoreceu a disseminação de diversas doenças
desconhecidas dos indígenas e para as quais eles não possuíam anticorpos9, do que
resultaram elevados índices de mortalidade, como fica evidenciado neste trecho da
Carta Ânua de 1650-52:
Afligió, el año pasado, la peste todas estas provincias, de tal
modo, que especialmente de los indios y morenos murió la tercera parte de una viruela muy fuerte. Deshizo la enfermedad
a los pobres de suerte, que al levantar los brazos a los niños
difuntos se soltaron del cuerpo. El olor de los enfermos era intolerable, tanto que vino el desmayo a los sanos que se acercaban10.
[grifos meus]
As reduções jesuíticas também contribuíram para a propagação dessas doenças, não só por concentrarem um número elevado de indígenas, mas, devido à
falta de alimentos que as acometiam, às secas ou às inundações. “Cabe lembrar
que os surtos epidêmicos provocaram a desestruturação e a desterritorialização
tribal que levou à desnutrição, ou ainda às mudanças de dieta que, por sua vez,
produziram novos distúrbios de saúde devido à fome ou a introdução de novos
alimentos11”. O quadro abaixo exemplifica o quão frequente eram os relatos sobre
epidemias nas Ânuas.
O termo xamanismo é empregado conforme BRUNELLI (1989), TAUSSIG (1993), FLECK (1999, 2004).
8
Ao se referirem às doenças que estavam atingindo as populações da Província, os padres
relatores não faziam distinção entre os termos peste e epidemia, muitas vezes, utilizando os dois
com o mesmo sentido.
7
9 Ver mais em FLECK, 2005.
Carta Ânua de 1650-52, (1927) Tradução de Carlos Leonhart, S.J. Buenos Aires. São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994, p. 37
11
FLECK, 2005, p. 75.
10
79
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Figura 1 - Número de referências a epidemias nas Cartas Ânuas
A tabela (figura 1) apresenta o número de vezes em que foi referido o
termo epidemia nas Ânuas analisadas, sendo que apenas a Carta do ano de 1668
não faz qualquer referência à peste ou à epidemia. Se, nas primeiras Cartas encontramos um grande número de menções a pestes, elas parecem ter se reduzido
significativamente no final do século XVII. Diante desta constatação, me parece
ser pertinente questionar se a ausência ou diminuição das menções nas cartas é
acompanhada efetivamente da diminuição de surtos epidêmicos. A leitura das cartas revela que os padres continuam fazendo referência a enfermidades, como se
observa nesse trecho da Ânua de 1672-75, não empregando mais o termo peste
ou epidemia:
A uno de los Padres vino cierto indio de cuarenta anos, para
confesarse, echándose a los pies del sacerdote, todo bañado en
lágrimas. Al preguntársele por el motivo [de su lloro] dijo que
no sabía todavía que es confesión. Pero la deseaba mucho por
sentirse gravemente enfermo12.
Parece plausível supor que as frequentes menções a epidemias nas cartas
da primeira metade do século XVII apontam para a disputa de poderes e de saberes entre os jesuítas e os xamãs. O xamã, cabe ressaltar, além de atuar como líder
espiritual, era o responsável pela cura13, através da utilização de plantas e ervas,
opondo-se, portanto, ao missionário que se apresentava como “médico do corpo
e da alma”:
Carta Ânua de 1672-75 (1927) Tradução de Carlos Leonhart, S.J. Buenos Aires. São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994, p. 14.
13
Segundo Lévi-Strauss, a eficácia da magia está relacionada com a crença em relação a ela,
precisa haver uma confiança coletiva no feiticeiro e ele próprio precisa crer nos seus poderes.
LÉVI-STRAUSS, 1967, p, 164.
12
80
Ao perceberem que os índios conferiam autoridade religiosa ao
curandeiro da tribo, os jesuítas tentaram assumir esse papel, e,
para competirem com a autoridade religiosa dos pajés, começaram a se dedicar ao atendimento médico dos índios e adaptar os
rituais dos sacramentos cristãos aos usos locais14.
Nas cartas que analisei fica bastante evidente essa disputa, como nesta
passagem em que o padre relator registra que “podíamos lograr todavía mucho
más de estas naciones por hacerlas cristianas, si no los acobardasen [a los salvajes]
los muchos hechiceros con sus embustes, temibles por su trato con el demonio,
alegando ellos que irían a perder su libertad [al hacerse cristianos]15”.
Doenças
Neste tópico, apresento o levantamento sobre as doenças que atingiam as
populações indígenas em contato com os missionários jesuítas, tanto das que se
encontravam nas reduções, quanto daquelas que se encontravam nos pueblos de
espanhóis. A tabela abaixo apresenta as doenças mencionadas pelos missionários
na documentação e informa também o número de vezes em que foram referidas
pelos padres relatores.
Figura 2 – Incidência de doenças nas Cartas Ânuas da segunda metade do século XVII16.
Doença/Sintoma
Desmaios
Infecções na garganta
Abcesso/Ferida
Disenteria
Vômitos
Paralisia
Febres
Complicações no parto
Dores no corpo
Cegueira
Hemorragia
Nódulo no seio
Pneumonia
Incidência nas Cartas
3
6
1
1
1
3
2
6
4
2
2
1
2
EISENBERG, p. 61
Carta Ânua de 1672-75 (1927) Tradução de Carlos Leonhart, S.J. Buenos Aires. São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994, p. 27.
16
Para a elaboração desta tabela foram consideradas quantas vezes os missionários mencionaram as doenças/os sintomas referidos na documentação.
14
15 81
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Febre tifoide
Varíola
Perda dos movimentos
Apatia
Vermes
1
1
1
1
1
Os dados desta tabela (figura 2) requerem algumas observações. Em
primeiro lugar, constata-se que os padres ou não tinham conhecimento acerca
das doenças que estavam atingindo essas populações ou não tinham interesse em
referir quais seriam, restringindo-se a mencionar apenas os sintomas, tais como
desmaios, febre e vômitos. Isso pode ser atribuído ao fato de estarem muito
mais preocupados em destacar os efeitos que elas poderiam causar – em termos
de conversão17 – ou ao pouco conhecimento médico que possuíam. Apesar de
serem considerados “médicos de corpo e alma”18, nem sempre tinham conhecimento médico ou farmacêutico, dedicando-se com mais afinco a “salvar as almas” dos
doentes:
Sólo quisiera yo añadir que por nuestro empeño sucedió que esta
peste, tan fatal para la salud corporal, ha sido, al fin y al cabo,
muy provechosa para la salud de las almas, lo mismo que
para el buen nombre de la Compañía19. [grifos meus]
O gráfico (figura 2) indica que, em algumas situações [raras], os padres conseguiram identificar quais eram as doenças que estavam atingindo os indígenas, como a
febre tifóide e a varíola. Os dados (figura 2) revelam o interesse dos padres em referir
problemas de saúde específicos das mulheres, como é o caso das complicações decor É preciso considerar que as Ânuas são uma documentação caracterizada por uma intencionalidade e que, muitas vezes, os episódios relatados ressaltavam os casos-exceção, com uma
intenção nitidamente pedagógica.
18 De acordo com Carlos Leonhardt (1937, p. 103, 104) os jesuítas adquiriram o direito de
praticar medicina, exclusivamente, para tratar da saúde deles mesmos ou de qualquer outro
indivíduo que necessitasse: “Pero lo que respecta a la Compañía de Jesús, ha existido un privilegio otorgado por Gregório XIII en 1576. Véanse los precisos términos de esta gracia: […]
… damos este presente indulto con autoridad apostólica… a todos y a cada uno de la referida
Compañía de Jesús, entendidos en medicina, que hay ahora o que hubiere en adelante, para que,
con el permiso de sus superiores libre y lícitamente curen… tanto a los enfermos de la misma
Religión, como a extraños y seglares,/104/ con tal que no se trate de adustión o incisión hecha
por ellos en persona; y en el caso de que no pueda cómodamente acudir a los médicos seglares.
Roma, 11 de febrero de 1576, Gregorio Papa XIII”.
19
Carta Ânua de 1650-52, (1927) Tradução de Carlos Leonhart, S.J. Buenos Aires. São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994, p.39.
17
82
rentes do parto [com alta incidência, aliás] e, inclusive, de constatação de um nódulo no
seio de uma indígena. A distinção feita entre doenças que acometiam indistintamente
todos os indígenas e aquelas que acometiam somente homens ou, então, somente mulheres, me levou à elaboração de outro quadro que se encontra abaixo:
Figura 3 – Relação doenças femininas x masculinas20
Esta tabela (figura 3) aponta para a ênfase dada à saúde das mulheres21 pelos
padres jesuítas, visto que mais da metade das menções a doenças que acometiam os
indígenas refere-se às que atingiam as mulheres, o que me levou a questionar quais
teriam sido as razões para este destaque.
Ao mencionar uma menina que sofria de uma cegueira, o padre relator explica que ela teria sido curada através de um azeite que teria sido aplicado em seus
olhos: “había una niña completamente ciega; ya cuatro veces le habían sus padres
aplicado a los ojos la misma aceite, siempre constantes en la fe, la cual no falló,
porque sanó al fin la enferma”22. Esse azeite teria curado também outro menino
que havia adquirido uma pneumonia “cuando le aplicaron algo de la grasa que
emplean en las lámparas del santuario de la Virgen en lugar de aceite de oliva, y se
quebró la fuerza de la enfermedad”. Essas práticas de cura, mediante a utilização
de relíquias, eram bastante freqüentes nos relatos: “Hubo una india, a la cual se había hinchado la garganta y estaba al punto de sofocarse. Le pusieron un poco
Nesta tabela não foram consideradas as complicações no parto por se tratarem de casos que
só podem acontecer com as mulheres. O caso de varíola também não foi considerado por se
referir a uma epidemia e não um caso isolado.
21
Sobre a saúde feminina na Europa dos séuclos XVI e XVII, ver Berriot-Salvadore (1991) e
Del Priore (2010).
22
Carta Ânua de 1650-52 (1927) Tradução de Carlos Leonhart, S.J. Buenos Aires. São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994, , p. 14.
20
83
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
del aceite de la lámpara del santuario, y, cosa maravillosa, acudió al socorro de la
pobre india el Señor de la vida... y por su potente mirada al instante desapareció el
tumor de la garganta, en presencia de muchos, sanando aquella por completo23”.
De acordo com Fleck,
É plausível afirmar que os missionários soubessem que «o controle proporcionado por tais ritos mágicos era necessariamente
ilusório» e que os amuletos, os encantamentos e a água benta
«não possuíam qualquer virtude sobrenatural intrínseca», mas
produziam «preciosos efeitos colaterais», diminuindo a ansiedade e predispondo o doente à cura pela imaginação e pela fé24.
Esses fatores, por sua vez, facilitariam o processo de conversão desses
indígenas. “O controle do corpo e de suas sensações foi tomado pelos missionários como indicativo de uma vivência virtuosa e da derrota da ação nociva do
demônio25”, apontando para o êxito das conversões realizadas. Os padres relatavam casos em que a consciência em relação à culpa era um fator a ser considerado
nas doenças que atingiam as mulheres: “Una pobre mujer dejóse vencer por un
seductor, y después le sobrevino tanta tristeza por el crimen que había cometido,
que entre muchas lagrimas pidió al cielo que le enviase una enfermedad que
la desfigurase para no causar peligro a otros, y para hacer penitencia de sus
pecados”. Em alguns casos, elas “pediam” uma enfermidade para poder se livrar
da culpa por alguma má atitude sua e eram então atendidas “No lo pidió en vano;
pues, aunque era de constitución robusta, enfermóse de disentería, que ya no
la deja en paz, sufriendo ella con gran paciencia y conformidad con la voluntad
de Dios”26 [grifos meus]. A doença era, então, e ao mesmo tempo, uma forma de
punição e de expiação.
Os relatos das Cartas ligados à saúde feminina tinham o interesse em exaltar o processo de conversão das mesmas, mostrando o ótimo resultado que os
padres estavam obtendo. Identificamos nesses casos, um discurso que apresenta a
indígena não mais como uma figura demoníaca encontrada nas Cartas da primeira
metade do século XVII, como menciona Fleck27, mas mulheres que aceitaram a fé
Carta Ânua de 1659-62 (1927) Tradução de Carlos Leonhart, S.J. Buenos Aires. São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994, , p. 28.
24
FLECK, 2006, p.161.
25
FLECK, 2006, p. 614.
26 Carta Ânua de 1663-66, (1927) Tradução de Carlos Leonhart, S.J. Buenos Aires. São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994, p. 56.
27
Para Fleck, é “Interessante observar que, à medida que se intensificam, na documentação
jesuítica, as referências ao sucesso do projeto jesuítico, as mulheres assumem gradativamente
uma outra função, determinando novas representações. Da condição de auxiliares do demônio,
de incitadoras da lascívia e da luxúria, as mulheres passam a ser representadas como aquelas que
23
84
cristã, como percebemos neste relato: “Con esta ocasión encontraron una india
de 90 años de edad, ya moribunda, pidiendo ella ser bautizada. Había pasado por
cristiana, pero después de examinada resultó que no lo era. Fue bautizada, y al instante, como por señal, murió28”. Mesmo após ter vivido tantos anos sem ter sido
batizada, em seus últimos momentos de vida, a indígena expressou seu desejo de
se tornar cristã. É, no entanto, interessante ressaltar que, apesar das muitas doenças
que acometiam as mulheres, muitas delas conseguiam chegar a uma idade bastante
avançada.
Como já mencionado anteriormente, as complicações relacionadas ao parto
são bastante frequentes na documentação. Ao descrever esses casos, os padres ainda
mostravam que as índias utilizavam as relíquias do Santo Pe. Ignácio para lhes auxiliar
a superar as dores e problemas que poderiam ocorrer:
Algunas indias experimentaron la eficacia de la intercesión de
nuestro Santo Padre [Ignacio]. Una de ellas sufrió tan crueles
dolores de vientre, que si revolcaba en el suelo, como fuera de sí;
pero apenas tocó una medalla con la efigie de San Ignacio y San
Francisco Javier, cuando al instante sanó. […] Más frecuentes
son los casos, en que el Santo asiste poderosamente a mujeres de
parto. Después de haber dado a luz a su séptimo hijo, estaba para
morir una india; no pudiendo desprenderse de las secundinas,
pudriéndose ellas de un modo perceptible. Aplicósele la efigie de
San Ignacio, y se libró y sanó29.
Além disso, outras referências, como as hemorragias por exemplo, podiam
também estar relacionadas a complicações surgidas durante ou após o parto. Também elas eram contornadas com o auxílio das relíquias de Pe. Ignácio:
Había otra moribunda de parto con hemoragia. Por su extremada debilidad estaba desahuiciada por las parteras, diciendo
ellas, que la criatura se había muerto en el seno de ella. Auxiliaron a la moribunda con los últimos sacramentos de la Iglesia, y
trajeron una reliquia de nuestro Santo Padre. Hizo entonces la
mujer la promesa de comulgar por la fiesta de San Ignacio, en
caso de escaparse del peligro. Dió a luz uma criatura pequeña,
pero viva. Apenas bautizada voló al cielo; mientras la madre sanó
por completo30. [grifos meus]
expressam seu arrependimento e divulgam, através de seu exemplo, os valores morais cristãos”
(2006, p. 631)
28
Carta Ânua de 1650-52 (1927) Tradução de Carlos Leonhart, S.J. Buenos Aires. São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994, p. 44.
29
Carta Ânua de 1650-52 (1927) Tradução de Carlos Leonhart, S.J. Buenos Aires. São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994, p. 53-54.
30
Carta Ânua de 1650-52 (1927) Tradução de Carlos Leonhart, S.J. Buenos Aires. São
85
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Se, por um lado, as cartas parecem apontar para um elevado número de
natimortos ou de parturientes que morriam ao dar à luz, por outro lado, o grande
número de referências a partos nas Ânuas da segunda metade do século XVII parece indicar que as reduções da Província Jesuítica do Paraguai estavam vivenciando um crescimento demográfico, decorrente da estabilização das reduções. Ao se
referirem ao grande número de gravidezes, os padres não descuidam de mencionar
que quando elas aconteciam fora da instituição do casamento, algumas índias praticavam o aborto 31:
Había una india, la cual, cuando todavía era niña, había perdido
su virginidad por culpa de una persona eclesiástica, quedando ella embarazada, sin poder ya ocultar su estado. Temía
mucho la niña a su madre piadosa y honrada, e hizo lo posible para que aquella no descubriese lo que había. Ya cerca
de dar a luz, se alejó a un Valle solitario, y después de nacer la
criatura, la mató con una crueldad más grande que la de
un tigre, siendo ella doblemente asesina, ya que la criatura no
alcanzó bautismo. Hecha la doble barbaridad, se propuso de no
confesarla nunca, seducida por una verguenza sacrílega32. [grifos
meus]
Esse relato mostra como algumas mulheres residentes nas reduções introjetaram noções de culpa, enquanto outras permaneceram apegadas às pautas tradicionais de sua cultura. Vale lembrar que para as tribos indígenas sul-americanas,
não havia problemas em conceber fora de uma relação formal de “casamento”,
contudo, nas reduções, elas eram orientadas a se considerarem culpadas tanto pelo
adultério, quanto pela prática do aborto e do infanticídio.
A mulher xamã
Apesar da enfática condenação das práticas mágico-rituais utilizadas pelos
indígenas em seus processos de cura, a figura do xamã se manteve atuante nas reduções. Nas Cartas Ânuas, os padres procuram dar ênfase aos relatos que indicam
Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994, , p. 53-54
Como explica Chamorro, a mulher estaria diretamente relacionada aos pecados –
principalmente à luxúria – devido ao pecado de Eva. Esse seria um dos motivos para a Igreja
se sentir no direito de regular o corpo feminino: Por contraste, la mujer es víctima del discurso
sobre el cuerpo lascivo. Esa es la versión montoyana de Génesis 3. Eva, como causante del
pecado de Adán, transmite a todas las mujeres, sus hijas, una radical impotencia delante del mal.
Sobre esa base, la iglesia entendía que era su deber controlar el cuerpo de la mujer (2008, p. 292)
31
Carta Ânua de 1650-52 (1927) Tradução de Carlos Leonhart, S.J. Buenos Aires. São
Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994, p. 21.
32
86
que os indígenas deixaram de lado essas práticas, contudo, é possível perceber sua
permanência, através dos relatos que mencionam as dificuldades de conversão, devido à ação de “feiticeiros” ou quando eles aparecem se convertendo: “Podíamos
lograr todavía mucho más de estas naciones por hacerlas cristianas, si no los acobardasen [a los salvajes] los muchos hechiceros con sus embustes, temibles
por su trato con el demonio, alegando ellos que irían a perder su libertad [al
hacerse cristianos]33” [grifo meu].
A atuação de mulheres como xamãs também está presente nas Cartas e
se dá principalmente através das parteiras, já que, de acordo com Tedlock “os
simbolismos e os rituais que envolvem o nascimento são ricos e complexos. [...]
a chegada de uma nova vida, que invocava espíritos dos ancestrais, conectava os
reinos do passado, presente e futuro em um ato sacramental misterioso. As parteiras, ao evocar esses espíritos, são xamãs que acessam o outro mundo34”, como fica
evidenciado neste relato:
Había otra moribunda de parto con hemoragia. Por su extremada debilidad estaba desahuiciada por las parteras, diciendo
ellas, que la criatura se había muerto en el seno de ella.
Auxiliaron a la moribunda con los últimos sacramentos de la
Iglesia, y trajeron una reliquia de nuestro Santo Padre35 […].
[grifos meus]
O relato refere a existência de parteiras nas reduções, contudo, não deixa
clara a sua atuação como xamã., na medida em que os padres não se referem a elas
como tal. Chama a atenção o fato de o padre ter dado destaque à incapacidade das
parteiras e ao uso das relíquias do Santo Padre Ignácio, que como já foi mencionado,
eram utilizadas pelas mulheres em trabalho de parto. Já as menções a mulheres “feiticeiras” nas Cartas sugerem que elas, a exemplo dos xamãs homens, prejudicavam
a conversão, como neste registro em que uma mulher é acusada de tentar impedir a
cura e o batismo do filho de um cacique:
Mucho más trabajo costó el bautizar al hijo del cacique que estaba gravemente enfermo; porque una vieja de gran autoridad
entre aquella gente. [...]Viendo ellos que su trabajo era inútil,
mientras estaba presente aquella vieja hechicera, se les
ocurrió un ingenioso estratagema. Con el pretexto de querer
curar al enfermo mejor, lo hicieron sacar de su casa, y trasladarlo
Carta Ânua de 1672-75 (1927) Tradução de Carlos Leonhart, S.J. Buenos Aires. São
Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994, p. 27.
33
34
TEDLOCK, 2008, p. 222
35 Carta Ânua de 1650-52 (1927), Tradução de Carlos Leonhart, S.J. Buenos Aires. São
Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994, p. 53-54
87
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
a la de los misioneros. Santo remedio. Al llegar allí, comenzaron
ellas de nuevo a insistir al moribundo [que procurase su salvación]. Pidió aquel ser bautizado, y pronto después se fue al cielo36. [grifos meus]
A existência dessas “feiticeiras” nas reduções é também atestada nos registros em que os padres ressaltam a sua conversão, após grande empenho por parte
do padre encarregado da missão:
Había una vieja hechicera muy famosa y muy obstinada, la
cual aseguraba que jamás quería saber algo de la religión
cristiana, ni cambiar de vida. El Padre creyó inconveniente
hablarle por intérprete, y se puso a estudiar aquella lengua, y
después volvió a la carga en un lenguaje que ella entendía, y consiguió al fin, que aquella le suplicara llorando, la instruyera
en la religión católica, y que la bautizara cuanto ántes; lo
cual alcanzó37.
Considerações Finais
Através do gráfico (figura 1) pudemos observar que as epidemias/pestes
eram constantes na Província Jesuítica do Paraguai, atingindo principalmente as populações indígenas em contato com os missionários. Por não possuírem anticorpos
para combater essas doenças, essas populações precisaram se submeter aos tratamentos dos padres jesuítas em algumas ocasiões. Os relatos acerca da saúde da mulher indígena encontrados nas Cartas Ânuas da segunda metade do século XVII
constituem um assunto ainda mais frequente, como pudemos observar nas tabelas
(figura2 e figura3). Apesar de muitas vezes não conseguirem identificar especificamente quais eram as doenças que estavam acometendo essas populações, se limitando a dar apenas os sintomas de algumas delas na maioria das vezes. Isso de deveu a
sua dificuldade de identificar às doenças, mas também ao interesse que tinham em
trazer outras informações sobre esses povos, associando-os à barbárie ou enaltecendo o processo de conversão exitoso devido à essas doenças. É preciso destacar que,
por se tratarem de uma documentação edificante e por isso as Cartas Ânuas tinham
uma grande intencionalidade no seu discurso.
Ao trazer relatos acerca das doenças que atingiam as mulheres, os padres se
Carta Ânua de 1672-75 (1927) Tradução de Carlos Leonhart, S.J. Buenos Aires. São
Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994, p. 24-25.
36
Carta Ânua de 1663-66 (1927), Tradução de Carlos Leonhart, S.J. Buenos Aires. São
Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994, p. 31.
37
88
utilizavam de casos-exceção para então, comprovar que o processo civilizatório
de conversão estava obtendo sucesso. Em alguns momentos, foi possível observar como a noção da culpa foi absorvida por essas indígenas reduzidas e seu
“fervor” cristão. Com relação aos trechos referentes às complicações enfrentadas durante as gravidezes ou partos, podemos observar que estava acontecendo
um crescimento demográfico nos ambientes reducionais, como notamos neste
trecho da Carta de 1668:
Son por todo 18 reducciones muy pobladas de gente, las que
tiene que administrar la Compañía. Viven en ellas 11.036 familias, con 47.088 almas. Nacieron este año 3.330 criaturas, muriendo entre grandes y chicos 2.000. Muy buena
señal de la religiosidad de esta gente, y de la bondad de Dios
para con ellos, es que no murió ninguna criatura sin bautismo,
y ningún adulto sin los últimos sacramentos38. [grifos meus]
Apesar do grande número de mortos devido às epidemias e aos problemas durante a gestação, a população das reduções estava crescendo. Os dados relativos aos nascimentos também apontam para a presença de xamãs, visto que as
parteiras eram assim consideradas. As mulheres xamãs, assim como os homens,
foram então retratados na documentação como criaturas associadas ao demônio
e dificultadoras do processo de conversão dos grupos indígenas. E mesmo com
o grande número de mortos, os padres se recusavam a mencionar os feiticeiros
como um auxiliares nos processos de cura, e quando são mencionados eles aparecem como ineficazes:
Otro semejante caso hubo, en que un matrimonio indio, después de haber consultado inutilmente a los hechiceros
para alcanzar la salud de su hijo ya grande, contra su costumbre llamaron al sacerdote, el cual, fracasado el arte de
Hipócrates para salvar la vida temporal, le procuró la vida
eterna, disponiéndolo para recibir los sacramentos, y sanar con
la sangre de Cristo39. [grifos meus]
A forte incidência de relatos acerca da saúde da mulher indígenas nas
Cartas Ânuas da Província Jesuítica do Paraguai tem a intenção de mostrar o êxito do processo de conversão dos povos indígenas reduzidos pelos missionários,
seja através dos processos de cura exercidos pelos padres, seja através da menção
acerca do crescimento demográfico que atesta a aceitação da missão. A presença
Carta Ânua de 1668 (1927), Tradução de Carlos Leonhart, S.J. Buenos Aires. São
Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994, p. 10.
38
Carta Ânua de 1652-54 (1927), Tradução de Carlos Leonhart, S.J. Buenos Aires. São
Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994, p. 11.
39
89
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
das xamãs na documentação, por sua vez, tem o objetivo de mostrar os vícios aos quais
os índios ainda estavam ligados e às dificuldades enfrentadas por esses inacianos.
Referências
ALBECK, María Ester. La vida agraria en Los Andes del sur. In: TARRAGÓ, Myriam
N. Nueva Historia Argentina, tomo I. Los pueblos originarios y la conquista. Buenos
Aires: Editorial Sudamericana, 2000.
BERRIOT-SALVADORE, Évelyne. O discurso da medicina e da ciência. In: DUBY,
Georges; PERROT, Michelle (org.). História das Mulheres: do Renascimento à Idade
Moderna. São Paulo: EBRADIL, 1991, p. 408-455
BRUNELLI, Gilio. El sistema medico tradicional. In: ____________. De los espiritus
a los microbios: Salud y camnio social entre los Zoró de la Amazonía Brasileña. Quito:
1989. p.179-275.
CARTAS ÂNUAS DE LA PROVINCIA DEL PARAGUAY (C. A). Anõs 1650-1652.
Tradución de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1927. Tradução Digitada, São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994.
CARTAS ÂNUAS DE LA PROVINCIA DEL PARAGUAY (C. A). Anõs 1652-1654.
Tradución de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1927. Tradução Digitada, São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994.
CARTAS ÂNUAS DE LA PROVINCIA DEL PARAGUAY (C. A). Anõs 1658-1660.
Tradución de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1927. Tradução Digitada, São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994.
CARTAS ÂNUAS DE LA PROVINCIA DEL PARAGUAY (C. A). Anõs 1659-1662.
Tradución de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1927. Tradução Digitada, São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994.
CARTAS ÂNUAS DE LA PROVINCIA DEL PARAGUAY (C. A). Anõs 1663-1666.
Tradución de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1927. Tradução Digitada, São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994.
CARTAS ÂNUAS DE LA PROVINCIA DEL PARAGUAY (C. A). Anõ 1667. Tradución de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1927. Tradução Digitada, São Leopoldo,
Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994.
CARTAS ÂNUAS DE LA PROVINCIA DEL PARAGUAY (C. A). Anõs1668. Tradución de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1927. Tradução Digitada, São Leopoldo,
Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994.
CARTAS ÂNUAS DE LA PROVINCIA DEL PARAGUAY (C. A). Anõs 1669-1672.
Tradución de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1927. Tradução Digitada, São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994.
CARTAS ÂNUAS DE LA PROVINCIA DEL PARAGUAY (C. A). Anõs
1672-1675. Tradución de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1927. Tradu-
90
ção Digitada, São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS,
1994.
CHAMORRO, Gacriela. Decir el cuerpo: Historia y entnografia del cuerpo en
los pueblos Guaraní. Assunción: Tiempo de Historia, Fondec, 2009.
___________________. Historia del cuerpo durante la “Conquista Espiritual”. Fronteiras, Dourados, MS, v. 10, nº 18, p. 277-299, jul/dez. 2008.
DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e
mentalidades no Brasil colônia. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1995.
_________________. Por dentro do corpo feminino: uma viagem ao passado. Revista Espaço Plural, Marechal Cândido Rondon, Ano XI, Nº 23, 2010,
p. 11-19.
EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno:
Encontros culturais, aventuras históricas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.
FLECK, Eliane Cristina Deckmann. Sentir, Adoecer e Morrer. Sensibilidade
e Devoção no Discurso Missionário Jesuítico do Século XVII. 1999. Tese
(Doutorado), Porto Alegre.
__________________________. A morte no centro da vida: reflexões sobre
a cura e a não-cura nas reduções jesuítico-guaranis (1609-75). História, Ciências, Saúde - Manguinhos Rio de Janeiro, RJ,v.11,n.03,p.635-660,2004.
__________________________. De mancebas auxiliares do demônio a devotas congregantes: mulheres e condutas em transformação (reduções jesuítico-guaranis, séc. XVII). Estudos feministas, Florianópolis, 14 (3): 272, set-dez, 2006.
__________________________. Nas franjas do texto e do tempo: sensibilidade e espaço das experiências reducionais. Revista de História USPnº 156,
São Paulo-SP, 2007, P. 59-77
FURLONG, Guillermo. La cultura feminina en la epoca colonial. Buenos Aires: Kapelusz, 1951.
GUTIERREZ, Rámon. As Missões Jesuíticas dos Guaranis. Rio de Janeiro:
Ed. UNESCO, 1987.
LÉVI-STRAUSS, Claude.. O feiticreiro e sua magia. In: ______________.
Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973. p. 193-213.
LEONHARDT, Carlos. Los Jesuitas y la Medicina en el Rio de la Plata. Revista Estudios. Argentina, 1937.
LONDOÑO, Fernando Torres. Escrevendo cartas. Jesuítas, escrita e missão
no século XVI. Revista Brasileira de História, São Paulo: ANPUH, n.43, p.1132,2002.
LORANDI, Ana María. Las rebeliones indígenas. In: TANDETER, Enrique.
Nueva Historia Argentina, tomo II. La Sociedade Colonial. Buenos Aires:
Editorial Sudamericana, 2000.
91
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
MIRANDA, Carlos Alberto Cunha. A Arte de Curar nos tempos da colônia:
Limites e espaços da cura. Recife: Fundação da Cultura Cidade do Recife,
2004.
PALOMEQUE, Silvia. El mundo indígena. Siglos XVI-XVIII. In: TARRAGÓ, Myriam N. Nueva Historia Argentina, tomo I. Los pueblos originarios y
la conquista. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2000.
PORTER, Roy. “Expressando sua enfermidade”: A linguagem da doença na
Inglaterra Georgiana. IN: BURKE, Peter e PORTER, Roy. Linguagem, Indivíduo e sociedade: história social da linguagem. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993.
RODRIGUES, Luís F. Medeiros. A formula scribendi na companhia de
Jesus: origem, leitura paleográfica e fonte documental para a ação dos
jesuítas. X encontro estadual de História, Santa Maria, RS, 2010.
RUIZ DE MONTOYA, Antonio. A Conquista Espiritual: feita pelos religiosos da companhia de Jesus nas províncias do Paraguay, Paraná, Uruguai e
Tape. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1997.
SCHADEN, Egon. Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani. São Paulo:
Ed. da Universidade de São Paulo, 1974.
SEBE, José Carlos. Os Jesuítas. São Paulo: Brasiliense, 1982.
TAUSSIG, Michael. Realismo mágico. In: ____________. Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem: Um estudo sobre o terror e a cura. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1993. p. 166-170.
92
2. Igreja Católica: doutrinas e posturas
nos séculos XVII ao XIX
93
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Entre a Ciência e a Santidade: representações e memória post-mortem de missionários Jesuítas na América Meridional (Século
XVIII)
Mariana Schossler1
Resumo: O presente artigo apresenta um estudo comparativo entre as trajetórias de vida dos
missionários jesuítas Segismundo Asperger, Heinrich Peschke e Joseph Zeitler, enfocando a forma como foram apresentados, tanto pela Companhia, quanto pela historiografia jesuítica e leiga.
Utilizando-nos do método prosopográfico para a coleta de dados nos necrológios inseridos
nas Cartas Ânuas da Província Jesuítica do Paraguai, apresentamos, em um primeiro momento,
uma breve biografia de cada um dos jesuítas aqui estudados para, em um segundo momento,
nos determos na análise do processo construção de memória post-mortem ocorrido ao longo de
quase três séculos.
Palavras-chave: Companhia de Jesus – século XVIII – necrológios – historiografia – memória.
Introdução
“E
l nombre de este venerable varón ha pasado a la posteridad
envuelto en una aureola de ciencia y santidad”2. Estas são
as palavras de Guillermo Furlong SJ. ao se referir ao modo
como o jesuíta Segismundo Asperger era lembrado em meados do século passado.
“Ciência e santidade” se unem para formar a base da construção de memória3: “sa Graduanda em História pela Unisinos. Bolsista PIBIC/CNPq vinculada ao Projeto de Pesquisa Medicina e Missão na América Meridional (séculos XVII e XVIII), orientado pela Profª
Drª Eliane Cristina Deckmann Fleck.
2
FURLONG, 1947, p. 83
3
Em sua obra História e Memória, Jacques Le Goff reconstitui os caminhos traçados pela
memória de diferentes povos desde a antiguidade até o tempo presente. O autor constata que,
mesmo antes do surgimento da escrita, os indivíduos preocupavam-se com a conservação da
chamada memória étnica, a partir dos conhecidos “mitos de origem”. Em sociedades que já
possuíam a técnica da escrita, as primeiras manifestações de construção de memória se dão a
partir de estelas e monumentos consagrados a determinados indivíduos, sendo os mais notórios
os governantes e reis. Têm-se aí as primeiras tentativas de conservação dos grandes feitos destes
indivíduos, com o intuito de lembrar a todos de suas realizações e de torná-los como exemplos
para as próximas gerações. Com a Idade Média, a conservação da memória nas sociedades
cristãs se dá a partir de valores e crenças considerados ideais para a conduta do bom cristão.
Note-se que a memória conservada e transmitida baseia-se naquilo que as sociedades desejavam
que fosse conservado e transmitido, servindo de exemplo para as futuras gerações e sociedades
1
95
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
cerdote ejemplar y misionero celoso consagró sus energías todas a la dura labor de
cristianizar a nuestros indígenas; médico meritísimo de la ciencia curativa, dedicóse
con afán y con éxito, nunca rivalizado em las regiones del Río de la Plata, al alivio
de sus semejantes”4. Situação semelhante ocorre com outros dois missionários,
Heinrich Peschke e Joseph Zeitler. Entretanto, não é Furlong quem nos informa
sobre o modo como são lembrados. No caso de Heinrich Peschke, a própria Companhia toma para si, ainda no século XVIII, a tarefa de construir uma memória
acerca da trajetória do missionário a partir de seu necrológio5. No caso de Zeitler,
uma historiografia bastante recente tem se empenhado na reconstituição da trajetória6 do jesuíta que atuou em Santiago do Chile e sobre quem existem poucos
estudos acadêmicos.
Em relação a este processo de construção de uma memória, constata-se
que, no caso da Companhia de Jesus e de suas missões na América Meridional,
houve um grande esforço por parte da própria Ordem em assegurar que o trabalho
realizado pelos missionários jesuítas no Novo Mundo fosse registrado e preservado. No tempo presente, esta produção vem sendo revisitada a partir de pontos de
vista deferentes, quer por historiadores da própria Companhia, quer por historiadores leigos que se debruçam sobre a história dos territórios que hoje constituem
Argentina, Paraguai, Uruguai e Chile.
Neste artigo, apresentamos um estudo comparativo entre as trajetórias
de vida dos missionários jesuítas Segismundo Asperger, Heinrich Peschke e Joseph Zeitler, enfocando a forma como foram apresentados, tanto pela Companhia,
quanto pela historiografia jesuítica e leiga. Utilizando-nos do método prosopográfico7 para a coleta de dados nos necrológios inseridos nas Cartas Ânuas da
e instrumento de exaltação de suas conquistas, de seus progressos, de seus feitos, constituindo-se assim em uma construção de memória acerca de indivíduos e sociedades, prática utilizada
também no século XVIII e atualmente no que se refere à atuação dos missionários jesuítas no
Novo Mundo. Ver mais em Le Goff (1990).
4 FURLONG, 1947, p. 83.
5
Os necrológios se constituem de elogios fúnebres que integravam o texto das Cartas Ânuas.
Além da função de informar ao padre geral da Companhia sobre os óbitos ocorridos durante
determinado período, apresentavam um relato da trajetória do jesuíta que faleceu, enaltecendo
suas virtudes e desprendimento, já que “La vida de un jesuita “virtuoso”, una vez desaparecido,
se convertia en atractiva para su imitacion” (BURRIEZA SÁNCHEZ, 2009, p. 523).
6
Para Benito Schmidt, a trajetória de vida nada mais é do que o “curso da vida”, a “carreira”
do indivíduo. Entretanto, não deve-se entender por carreira apenas a atuação profissional. É
necessário que se considere, também, como carreira o viés pessoal e privado do indivíduo a que
se deseja estudar, abarcando-se, assim, múltiplas facetas da trajetória de vida em uma mesma
narrativa. Sobre a reconstituição de trajetórias de vida ver os trabalhos de Schmidt (1997, 2004).
7
A prosopografia, ou biografia coletiva, é um método largamente utilizado por pesquisadores
que se propõem a esclarecer questões sobre determinado grupo utilizando-se, para isso, das trajetórias de vida dos vários personagens deste grupo. Ao contrário da biografia – que se preocu-
96
Província Jesuítica do Paraguai8 procuraremos, em um primeiro momento, apresentar os jesuítas já referidos e, em um segundo momento, explorar a construção
de memória post-mortem que se deu ao longo de quase três séculos.
1. Ciência e santidade: os missionários e a construção de memória post-mortem
O Padre Segismundo Asperger nasceu em 16789 na cidade de Innsbruck,
atual Áustria. Ingressou na Companhia de Jesus em 170510 e atuou como missionário de 1717 a 177211. Não permaneceu por todo este período no Colégio
de Córdoba12, atuando também em algumas reduções, com destaque para a de
Apóstoles. Sabe-se que Asperger não estudou Medicina, mas que trouxe consigo
para a América um vasto conhecimento sobre práticas curativas e plantas medicinais,
já que, durante o período de sua formação, trabalhou junto a um hospital na Europa. Embora tenha atuado primeiramente como professor no Colégio de Córdoba13,
exerceu já neste período concomitantemente o ofício de médico, que se tornou uma
pa em partir do indivíduo e, a partir daí, situá-lo em um contexto – a prosopografia preocupa-se
em partir de um determinado objeto mais geral (como a cátedra de uma Universidade, a elite
de uma determinada cidade, etc) e, a partir das reconstituições das trajetórias dos diferentes
personagens envolvidos no processo, apurar como estes contribuíram para a história do objeto
geral em questão. Segundo Stone (2011, p. 3) “A prosopografia é a investigação das características comuns de um grupo de atores na história por meio de um estudo coletivo de suas vidas.
O método empregado constitui-se em estabelecer um universo a ser estudado e então investigar
um conjunto de questões uniformes - a respeito de nascimento e morte, casamento e família,
origens sociais e posição econômica herdada, lugar de residência, educação, tamanho e origem
da riqueza pessoal, ocupação, religião, experiência em cargos e assim por diante. Os vários tipos
de informações sobre os indivíduos no universo são então justapostos, combinados e examinados em busca de variáveis significativas. Eles são testados com o objetivo de encontrar tanto
correlações internas quanto correlações com outras formas de comportamento ou ação”. No
caso deste trabalho, o grupo estudado é o de jesuítas que exerceram as artes de curar na América
Meridional durante os séculos XVII e XVIII. Embora aqui sejam explorados apenas três trajetórias de vida, o método utilizado nesta pesquisa é prosopográfico. Sobre o método em sua
totalidade, ver os trabalhos de Heinz (2006) e Stone (2011).
8
As Cartas Ânuas da Província Jesuítica do Paraguai foram copiadas e digitadas a partir das
originais redigidas em espanhol arcaico e que se encontram na Biblioteca del Salvador, em Buenos Aires. As cópias digitadas encontram-se sob a guarda do Instituto Anchietano de Pesquisas,
em São Leopoldo – RS.
9
STORNI, 1980, p. 16.
10
STORNI, 1980, p. 16.
11
FURLONG, 1936; 1947.
12
O Colégio de Córdoba foi um importante centro de formação dos jesuítas na Província
Jesuítica do Paraguai, se constituindo também em residência fixa para alguns dos missionários.
13
SZÉKÁSY, n/d
97
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
de suas principais funções com o passar dos anos. Já em 1718, prestou atendimento
médico durante uma epidemia em Córdoba14. Asperger foi também um grande observador das práticas curativas autóctones15, utilizando-se deste conhecimento para
escrever um Receituário, intitulado Tratado breve de medicina,16 e no qual foram relacionadas diversas plantas nativas americanas e suas aplicações. Além desta obra, foram
publicadas algumas descrições de plantas medicinais no periódico Telégrafo mercantil,
rural, político-econômico, e historiógrafo del Río de la Plata17. Embora os artigos tenham sido
publicados apenas em 1802, algumas décadas após a morte do missionário, o Telégrafo
atribui a autoria dos textos a Asperger.
Quando da expulsão da Companhia dos domínios coloniais castelhanos em
1767, Segismundo Asperger foi o único missionário autorizado a permanecer na
Província do Paraguai, pois ele
se encontraba en el pueblo de Apóstoles, del territorio de Misiones, cuando acaeció la expulsión de los Jesuítas de 1767 y 1768,
pero se hallaba entonces tan avanzado en edad, tan cargado de enfermedades, tan imposibilitado de poder valerse, que fue el único
Jesuíta que no participó de los rigores del ostracismo.18
De 1768 até 1772, ano de sua morte, o missionário foi assistido por religiosos de outras ordens que se encontravam nas proximidades, tendo falecido em
Apóstoles, a 23 de novembro de 177219.
O Irmão Heinrich Peschke nasceu em 167420. Natural de Glatz, Boêmia, atual República Tcheca, ingressou na Ordem em 1694 e atuou no Colégio de
Córdoba entre os anos de 1698 e 1729. Estudou medicina, obtendo diploma de
“físico”21 e, ao chegar à América, ficou encarregado do ofício de boticário. Em uma
carta escrita pelo Ir. Peschke ao Padre Geral da Companhia, o missionário se refere
FURLONG, 1947, p. 85.
FECHNER (2010); MAÑÉ GARZÓN (1996).
16
MEIER, n/d, p. 79. Este receituário é tido como extraviado, sendo referido nas obras de
Furlong (1936; 1947) e de Anagnostou (2011).
17
Embora tenhamos tido acesso a apenas três artigos de Asperger (1802a; 1802b; 1802c),
Anagnostou (2011) refere a existência de mais um artigo de autoria (presumida) do missionário.
Estes artigos trazem uma descrição morfológica de plantas como a “yerba del Paraguay”, a
“nuez moscada” e a “vireyna silvestre”, as suas propriedades medicinais, o modo de utilização
(inclusive descrevendo a maneira como os indígenas se utilizam das plantas, instrumento fundamental utilizado pelos jesuítas para a descrição das propriedades curativas de espécies nativas da
América), suas contra-indicações e efeitos colaterais. Os artigos tinham por objetivo informar a
população de como poderiam proceder na utilização destas plantas em práticas curativas.
18
FURLONG, 1947, p. 83.
19
FURLONG, 1947, p. 90.
20
STORNI, 1980, p. 219.
21
À época, utilizava-se o termo “físico” para designar ofícios ligados às artes de curar.
14
15
98
às condições de trabalho na botica, dizendo que “El boticario tiene aquí que desempeñar el oficio de médico. [...] a veces en medio de tempestades, otras con calor
sofocante”22. Em uma segunda carta ao Padre Geral, Peschke afirma ainda que a
única botica da região é esta, instalada em Córdoba, o que faz com que se necessite
de grande quantidade de medicamentos para o auxílio aos enfermos23. Embora
se mostrasse preocupado com as condições do atendimento da botica, conseguiu
“realizar [...] una obra altamente benéfica en favor de la población cordobesa, aliviando a los enfermos y asistiendo a los del Colegio y a cuantos acudían a él em
busca de drogas, medicinas y recetas”24. Peschke faleceu em 1729, após cerca de 30
anos de trabalho missionário. Ao cotejarmos os períodos de atuação de Asperger e
Peschke, constata-se que o jesuíta da Boêmia conviveu com o austríaco, no período
em que este último esteve atuando no Colégio de Córdoba.
Na Carta Ânua de 1720-1730, o padre relator, ao registrar a sua morte,
dedicou-lhe as seguintes linhas:
Cerró la lista de los difuntos del Colégio de Córdoba el Hermano Coadjutor Enrique (sic) Peschke, natural del Condado de
Glatz en Alemania, y de la ciudad del mismo nombre. Había
vivido en el Paraguay por espacio de treinta y un años, y desempeñado el cargo de farmacéutico, y de procurador. Piadosamente, como había vivido, espiró el 14 de Noviembre de 1729, a la
edad de cinquenta y tres años. Hacía 35 años que había entrado
en la Provincia de Bohemia.25
Já o Irmão Joseph Zeitler era natural da Baviera, região da atual Alemanha.
Exerceu os ofícios de “químico, farmacéutico y en la práctica de la medicina”26
junto ao Colégio de Santiago27, no Chile, entre 1748 e 1772. Chegou a possuir
uma extensa biblioteca, com cerca de 130 títulos que versavam sobre medicina e
farmácia28. Assim como Peschke, era o único boticário na região. Sendo iniciado
em química, “fue el primero en realizar ensayos químicos, de los cuales se destaca
el análisis de las aguas minerales chilenas”29. Quando da expulsão da Companhia
de Jesus da América, foi o único jesuíta dentre os que atuavam no Chile autorizado
a permanecer em território americano, pois “Al no encontrar un reemplazante que
PESCHKE apud FURLONG, 1947, p. 94.
PESCHKE apud FURLONG, 1947, p. 95.
24
FURLONG, 1947, 94.
25
C. A. 1720-1730 [1928] p. 472.
26
MÜLLER, n/d, p. 90.
27
Assim como em Córdoba, o Colégio de Santiago foi um importante centro de formação dos
jesuítas na Província Jesuítica do Chile, se constituindo também em residência fixa para alguns
dos missionários.
28
PENACCHIOTTI MONTI (2000); SANDOVAL MORAGA (2002).
29 PENACCHIOTTI MONTI, 2000, p. 4.
22
23
99
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
tuviera el conocimiento farmacêutico del hermano Zeitler, la Real Audiencia lo
dejó transitoriamente en Chile porque “no hay quien lo subrogue en su habilidad
de farmacéutico, para que no se malogren los intereses del Rey y satisficiese el clamor del público””30. Residiu ainda no Chile até o ano de 1772, quando o cabildo
de Santiago encontrou um substituto para o missionário. Durante estes cinco anos
em que permaneceu na América após a expulsão da Ordem, Zeitler não se dedicou
apenas à cura dos enfermos. Além deste ofício, ficou encarregado de realizar um
inventário dos bens da botica de Colégio de Santiago, que havia sido confiscada,
passando a pertencer à Coroa castelhana31. Não há informações sobre seu destino
após sua partida do Chile em 1772 e, infelizmente, não se sabe a data exata de sua
morte.
Como procura mostrar Le Goff32, as sociedades, mesmo antes do surgimento da escrita, procuravam criar meios de representação de pessoas e fatos que
considerassem importantes. É importante ressaltar que a valorização de determinados eventos e/ou indivíduos está sujeita a uma série de motivações e condicionantes, pois “de fato, o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento
temporal do mundo e da humanidade”33. Deve-se, ainda, considerar que
[...] nenhum grupo social, nenhuma instituição, por mais estáveis
e sólidos que possam parecer, têm sua perenidade assegurada.
Sua memória, contudo, pode sobreviver a seu desaparecimento,
assumindo em geral a forma de um mito que, por não poder se
ancorar na realidade política do momento, alimenta-se de referências culturais, literárias e religiosas.34
Nesse sentido, pode-se afirmar que a construção de uma memória sobre
a atuação da Companhia de Jesus no Novo Mundo, a partir da valorização das
atuações de determinados indivíduos, se propõe, de fato, a garantir uma visão
positiva do trabalho realizado pela Ordem por cerca de 160 anos35.
No caso do Padre Segismundo Asperger, foram fundamentais para este
processo os trabalhos de Guillermo Furlong SJ, na medida em que este historiador, baseando-se numa concepção positivista de História – e, consequentemente,
SANDOVAL MORAGA, 2002, p. 120.
PENACCHIOTTI MONTI (2000); SANDOVAL MORAGA (2002).
32
LE GOFF, 1990.
33
LE GOFF, 1990, p. 535.
34
POLLAK, 1989, p. 11.
35
A Companhia de Jesus instalou sua primeira missão na Província do Paraguai em 1607,
sendo expulsa dos domínios coloniais americanos da Coroa castelhana em 1767 (BARNADAS,
2008).
30
31
100
apoiando-se em documentos36 – construiu uma narrativa que exalta e idealiza a atuação de Asperger, descrevendo-o como exemplo a ser seguido pelos demais jesuítas.
O primeiro texto escrito por Furlong e totalmente dedicado ao jesuíta foi
publicado na revista Estudios, em 1936. O artigo intitulado Un médico colonial: Segismundo Aperger[sic]37 possui 31 páginas, das quais dezenove são dedicadas à reconstituição da trajetória de vida do missionário. Neste espaço, Furlong recorre a 29
citações extraídas de documentos, sempre com o intuito de “comprovar”38 suas
afirmações e reconstituir historicamente a atuação exemplar de Asperger. Esta estratégia discursiva – que confere legitimidade ao que é narrado mediante o recurso
às fontes documentais – pode ser também explicada pelo fato de Furlong ser também jesuíta, portanto, um historiador identificado com um projeto de construção
de uma memória da Companhia de Jesus.
As citações selecionadas por Furlong procuram sempre ressaltar o grande
conhecimento e a caridade praticada por Asperger. Podemos citar como exemplo,
em primeiro lugar, uma carta escrita pelo Abade Bestschon, onde o missionário diz
que “El Padre Segismundo Aperger [sic] salvó de la muerte en Córdoba de Tucumán a tanta gente con las medicinas que había traído de Europa y con diversas plantas medicinales
que descubrió en el país, que el Obispo y la Ciudad le dieron las Gracias”39. Em segundo
lugar, temos uma carta do Padre Maag, na qual diz que Asperger era “gran médico de
los cuerpos no lo es menos de las almas. Su celo no se retrae por ninguna dificultad; donde quiera
que se presenta una ocasión de hacer algo provechoso para las almas acude él”40.
Fato notório, ao analisarmos o conteúdo das citações, é o de que Furlong
procura exaltar não apenas os conhecimentos científicos do Padre Asperger, mas
em maior grau, o esforço e a abnegação com que exerceu seu ofício, sem negar atendimento a nenhum enfermo, como referido na carta do Abade Bestschon e, também por ter prestado auxílio espiritual àqueles que necessitavam, como se constata
na correspondência escrita pelo Padre Maag. A partir daí, Asperger é apresentado
como um modelo de atuação, devendo ser seguido por gerações futuras, principalmente, de missionários jesuítas.
Tendo sido este o primeiro trabalho dedicado exclusivamente a Asperger,
toda uma literatura subsequente sobre o assunto se apoia nas afirmações de Furlong,
Em uma concepção positivista de história, o documento escrito é extremamente importante
na construção da narrativa. No caso de Segismundo Asperger, Furlong não contava com seu necrológio, pois Asperger faleceu após a expulsão da Companhia de Jesus dos domínios coloniais
castelhanos. Entretanto, o historiador teve acesso a algumas cartas pessoais e oficiais trocadas
entre outros missionários, o que embasa sua narrativa.
37
FURLONG, 1936.
38 LE GOFF, 1990, p. 538.
39
BESTSCHON apud FURLONG, 1936, p. 120, grifos meus.
40
MAAG apud FURLONG, 1936, p. 122, grifos meus.
36
101
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
utilizando-se do mesmo discurso de exaltação da figura do missionário. Já em 1937,
ao abordar o exercício de práticas médicas por jesuítas na região do Rio da Prata,
Carlos Leonhardt SJ41, além de citar o trabalho de Furlong, ainda utiliza-se de citações
de cartas e outros documentos para dar crédito às suas afirmações sobre os conhecimentos científicos de Asperger. Em 1947, Furlong publica obra de caráter prosopográfico intitulada Médicos argentinos durante la dominación hispánica. Esta obra, que tem
por objetivo apresentar todos aqueles profissionais que exerceram as artes de curar
durante o período colonial americano traz informações não apenas jesuítas, mas
também sobre médicos leigos. Asperger ganha atenção especial, ao lado do também jesuíta Pedro Montenegro. O texto que podemos ler nesta obra é praticamente o mesmo daquele que encontramos no artigo publicado pelo autor em 193642.
Nas últimas décadas há um esforço por parte dos estudiosos do tema em
transpor o discurso elogioso de Furlong, embora este autor ainda seja considerado
como referência básica para investigações sobre a atuação da Companhia de Jesus
na América meridional. Autores como Fabian Fechner e Sabine Anagnostou43, apesar de se utilizarem das ricas informações contidas na obra de Furlong, procuram
não cair nas armadilhas discursivas dos textos deste historiador.
Diferentemente de Asperger – que mereceu destaque em obras e artigos
de jesuítas e leigos –, a memória de Peschke foi construída pela própria Companhia
de Jesus, e, exclusivamente, através de seu necrológio. É interessante notar que
nos casos aqui estudados, os necrológios, ora procuram salientar as qualidades do
indivíduo, ora possuem apenas um caráter informativo sobre a morte do jesuíta.
Enquanto os necrológios de outros missionários na Carta Ânua de 1720-1730 chegam a possuir algumas páginas (e outros necrológios estudados possuem número
semelhante de páginas), no caso de Peschke, o obituário possui apenas poucas
linhas, nas quais aparecem apenas as informações necessárias. Como se vê, em
outros elogios fúnebres, os padres relatores das cartas enviadas ao Provincial e ao
Padre Geral se preocupam em exaltar as virtudes do missionário falecido, destacando a sua conduta exemplar. Isso parece não ter ocorrido em relação a Peschke,
que não foi apresentado como exemplo para os demais missionários. Entretanto, é
necessário lembrar que as Cartas Ânuas possuíam certas regras de escrita. Nelas, os
missionários precisavam incluir informações “sobre os frutos alcançados nas suas
atividades, por quanto fosse possível saber e que servissem à maior glória de Deus
e para a edificação de quantos viessem a conhecer com a sua leitura”44. Portanto,
o fato de alguns necrológios possuírem maior número de páginas em detrimento
43
44
41
42
LEONHARDT, 1937.
FURLONG, 1947.
FECHNER, 2010; ANAGNOSTOU, 2011.
RODRIGUES, 2010, p. 7.
102
de outros parece apontar para aspectos das trajetórias individuais que eram mais
valorizados, enquanto que outros não mereciam tanto destaque ou, inclusive, não
deveriam ser repetidos.
Esta pouca visibilidade dada ao boticário do Colégio de Córdoba pode estar
relacionada com duas cartas que escreveu para o Padre Geral da Companhia. Na
primeira, ele refere as enormes dificuldades que encontrou para realizar seu trabalho
na América, e na segunda, destacando as precárias condições da botica do Colégio
de Córdoba, da qual estava encarregado. É interessante notar que, embora o missionário se mostre preocupado com tais condições de trabalho no Colégio de Córdoba,
e, também, com as dificuldades enfrentadas pela botica do mesmo – o que mostra
que havia risco de desabastecimento de remédios – a Companhia parece não ter visto
com bons olhos esta correspondência. O fato de o missionário não ter recebido destaque pela Companhia na ocasião de sua morte pode estar relacionado ao teor destas
missivas – nas quais Peschke, não apenas expressou suas preocupações com a botica,
como deixou evidente o seu descontentamento. Estas podem ter sido as razões para
que o missionário não tenha sido apresentado como um bom exemplo para as gerações futuras de jesuítas, e por isso não tenha merecido maior atenção por parte da
Ordem, como se pode deduzir da leitura de seu necrológio, que parece apontar para
a construção de uma memória inversa, na tentativa do esquecimento45.
Nas obras de referência que consultamos, Peschke é apenas mencionado
por Furlong, o qual se preocupa em reproduzir suas cartas. Ao comentá-las, acaba
por disseminar a visão da Companhia acerca do missionário, dizendo que “como
todo innovador, exagera, sin duda, Peschke sus asertos cuando se refiere al estado de
la medicina en Córdoba, al llegar él a esa ciudad”46. Temos assim um discurso inaugurado pela Ordem no século XVIII e que ainda é repetido em meados do século XX,
por um historiador jesuíta, o único preocupado em garantir que Peschke figure entre
os jesuítas que atuaram como boticários.
A reconstituição da trajetória de vida do irmão Zeitler é bastante recente, já
que os estudos sobre a atuação da Companhia de Jesus no Chile parecem ter se intensificado apenas nas duas últimas décadas. Nota-se, no entanto, que os historiadores
que tratam do tema se assemelham, em termos de abordagem, ao enfoque dado por
Furlong, recorrendo ao uso de documentos para comprovar e difundir uma imagem
sobre o jesuíta. Acreditamos que, mais do que isso, os historiadores pouco inovam,
repetindo-se uns aos outros ao caracterizar a atuação do missionário.
Dentre os principais autores chilenos que vem se dedicando à reconstituição das trajetórias de vida de jesuítas que se dedicaram aos ofícios das “artes de
curar” no Chile, destacam-se Irma Penacchiotti Monti, Carmen Sandoval Moraga
POLLAK, 1989.
FURLONG, 1947, p. 94.
45
46
103
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
e Michael Müller47. Entretanto, cabe lembrar que as duas primeiras autoras não são
historiadoras, e sim farmacêuticas, que pesquisam sobre a história da ciência na
América. Em razão disso, sua preocupação primeira não é fazer uma leitura crítica dos dados obtidos, mas de sistematizá-los, construindo os primeiros registros
sobre o tema.
Ao se referirem à atuação do Irmão Joseph Zeitler, Penacchiotti Monti e
Sandoval Moraga acabam por reproduzir informações. Ao se referir à atuação do
missionário, Monti afirma: “El hermano Zeitler, era un hombre austero y sencillo,
de gran cultura, con dominio del alemán, francés, español, inglés y latín […]”48. Já
Sandoval Moraga, escrevendo subsequentemente à primeira autora, utiliza-se de
frase extremamente semelhante, dizendo que “El hermano Zeitler era un hombre
probo, austero y sencillo, de cultura adquirida con el conocimiento del alemán,
francés, español, inglés y latín”49. A semelhança entre os discursos se torna ainda
mais interessante se levarmos em conta que Sandoval Moraga não cita o trabalho
de Penacchiotti Monti em seu texto. Além disso, as autoras se utilizam dos mesmos
documentos para a reconstituição da trajetória de vida de Zeitler, citando uma carta de Enrique de Laval e dados encontrados nos arquivos da Audiência do Chile.
Assim como no caso do Padre Segismundo Asperger, as passagens extraídas de
documentos são utilizadas para conferir legitimidade e autoridade às informações
levantadas sobre o missionário.
Nos textos das duas autoras acima referidas, percebe-se um discurso de
exaltação das virtudes do missionário, principalmente, no que diz respeito aos seus
conhecimentos. A santidade e a ciência novamente se unem para definir o perfil
ideal de missionário da Companhia de Jesus. Aspecto que merece ser destacado é
o de que, se anteriormente era a própria Ordem ou um historiador ligado a ela que
se responsabilizava pela construção de uma memória acerca da atuação da Companhia, sobretudo, nas áreas circunscritas à Província Jesuítica do Paraguai, no caso
do Irmão Zeitler, que atuou no Chile, são pesquisadores leigos que vêm se dedicando a esta tarefa, assumindo para si os processos de conservação e construção
de memória já empregados pela Companhia de Jesus no século XVIII.
Os três jesuítas aqui apresentados não exerceram as artes de curar apenas
por necessidade ou em função de sua formação anterior ao ingresso na Companhia de Jesus. A própria Ordem incentivava a dedicação às Ciências, na medida em
que eram um meio de exaltação da obra divina e também exercício de caridade.
[...] em primeiro lugar, muitos jesuítas tinham a profissão de
físicos e farmacêuticos e eles consideravam que seus cuidados
PENACCHIOTTI MONTI (2000); SANDOVAL MORAGA (2002); MÜLLER, n/d.
PENNACCHIOTTI MONTI, 2000, p. 4.
49
SANDOVAL MORAGA, 2002, p. 120.
47
48
104
com os doentes era uma das obrigações do bom cristão. [...]Em
segundo lugar[...], a natureza refletia a onipotência de Deus e a
divina providência. Descrever e explorar a natureza era, assim,
uma maneira de louvar a Deus.50
A valorização deste conhecimento, tanto por parte da historiografia leiga,
como também pela própria historiografia jesuítica aponta para a intenção de creditar à Ordem as bases da ciência americana atual. Afinal, grande parte das plantas
nativas da América Meridional que hoje conhecemos como tendo propriedades
medicinais foi catalogada por estes missionários através da rigorosa observação,
primeiramente, de sua utilização pelos indígenas, e, posteriormente, pelas próprias
experiências que realizaram com ervas, folhas e cascas nas boticas das reduções e
dos colégios jesuíticos.
Entretanto, o que se vê nos necrológios e nas cartas que analisamos é que
a valorização ou, então, a descrição elogiosa das atuações de Asperger, Peschke
e Zeitler se dá muito mais por menções às demonstrações de virtude e à boa
conduta do que pelas demonstrações de seus conhecimentos e habilidades. Os
textos reproduzem um padrão fixado pela Companhia para as correspondências
(as Cartas Ânuas) que deveriam ser trocadas entre seus membros, nas quais deveriam ser privilegiadas as informações de caráter edificante, isto é, que difundissem
uma visão positiva da Companhia entre aqueles que as estivessem lendo. Assim,
ao noticiar quaisquer eventos, eram observadas “as instruções sobre o modo de
escrever na Companhia (a Formula Scribendi) [que] manifestam a preocupação de
Inácio [de Loyola] em evitar que os jesuítas fossem causa ou ocasião, ainda que
involuntariamente, de escândalo e pecado para os outros”51.
Percebe-se, assim, o grande esforço por parte da Companhia em construir e preservar uma memória acerca de sua atuação. No caso de Furlong52, as
descrições que faz das atuações do Padre Asperger e do Irmão Peschke destacam
a sua adequação (ou não) a um modelo de missionário pré-definido pela Companhia de Jesus. No caso de outros autores, como Penacchiotti Monti e Sandoval
Moraga53, há certa aproximação, na medida em que parecem reproduzir o discurso da Companhia acerca das atuações de seus missionários na América. Em
relação a esta constatação, consideramos pertinente a observação feita por Roger
Chartier, de que
A história deve respeitar as exigências da memória, necessárias
para curar as infinitas feridas, mas, ao mesmo tempo, ela deve
52
53
50
51
ANAGNOSTOU, 2007, p. 1-2, tradução minha.
RODRIGUES, 2010, p. 15.
FURLONG 1936; 1947.
PENACCHIOTTI MONTI (2000); SANDOVAL MORAGA (2002).
105
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
reafirmar a especificidade do regime de conhecimento que lhe é
próprio, o qual supõe o exercício da crítica, a confrontação entre
as razões dos atores e as circunstâncias constrangedoras que eles
ignoram, assim como a produção de um saber possibilitada por
operações controladas por uma comunidade científica.54
2. Considerações finais
A reconstituição das trajetórias de vida do Padre Segismundo Asperger
e dos Irmãos Heinrich Peschke e Joseph Zeitler revelou que estes missionários
jesuítas atuaram em momentos muito próximos e de forma semelhante, possuindo extenso conhecimento acerca do preparo de medicamentos e de terapêuticas
curativas. Se Asperger sistematizou seu conhecimento sobre as propriedades curativas das plantas medicinais nativas em um Receituário, Peschke empenhou-se em
garantir um abastecimento qualificado de medicamentos para a botica do Colégio
de Córdoba, enquanto Zeitler realizou a primeira análise das águas minerais em
Santiago do Chile.
Ao serem apresentados pela historiografia, tanto jesuítica, quanto leiga,
tiveram as suas virtudes religiosas e o ardor apostólico apresentados como exempla
vitae pela Companhia de Jesus. O empenho na aquisição de conhecimentos relativos à farmacopeia americana parece ter sido relegado a um segundo plano, sendo inclusive ignorado, como no caso de Peschke, que pelo teor queixoso de suas
missivas se tornou uma espécie de exemplo contrário, ou seja, ele acabou por ser
identificado com aquilo que um missionário não deveria ser.
A construção de uma memória sobre a atuação de Peschke iniciou-se já no
século XVIII, com a redação de seu necrológio. No caso de Asperger, o início desta construção data de meados do século passado e é realizada por um historiador
ligado à Companhia de Jesus. Já no que refere a Zeitler, o processo de resgate de
sua atuação foi inaugurado por autores chilenos e leigos nas últimas duas décadas
do século passado, e que se aproxima do objetivo traçado pela Ordem ainda no
século XVI, o de registrar – e conservar – a história de sua atuação junto aos povos
por converter.
Parece-nos ter ficado evidente que, nos casos dos jesuítas aqui estudados,
a construção de memória não se deu apenas para exaltar seu vasto conhecimento,
mas, sobretudo, em função de um modelo de conduta – de missionário caridoso
e abnegado – que deveria ser seguido pelos outros missionários e também servir
de modelo para os noviços da Companhia de Jesus. As narrativas das trajetórias de
vida destes três jesuítas, como pudemos comprovar, estiveram condicionadas ao
atendimento deste modelo de missionário que a Ordem queria honrar, celebrar
e guardar.
CHARTIER, 2010, p. 12.
54
106
Referências
ANAGNOSTOU, Sabine. The international transfer of medicinal drugs by the
Society of Jesus (sixteenth to eighteenth centuries) and connections with the
work of Carolus Clusius. Disponível em http://www.knaw.nl/Content/Internet_
KNAW/publicaties/pdf/20061066_Clusius_13.pdf. Acessado em 20/09/2011.
____________________. Missionspharmazie: konzepte, praxis, organization
wissenschaftliche ausstrahlung. Stuttgart: Franz Steiner Verlag, 2011.
ASPERGER, Segismundo. Las virtudes de la yerba del Paraguay. In: Telégrafo
mercantil, rural, político-econômico, e historiógrafo del Río de la Plata Tomo 3.
Nº 6, 1802a, p. 79-81. Disponível em: http://babel.hathitrust.org/cgi/pt?u=1&nu
m=87&seq=105&view=image&size=100&id=njp.32101025281500. Acessado em
10/04/2012.
_____________________. Nuez Moscada. Sus usos, y virtudes. In: Telégrafo
mercantil, rural, político-econômico, e historiógrafo del Río de la Plata Tomo 3. Nº
6, 1802b, p. 79-81. Disponível em: http://babel.hathitrust.org/cgi/pt?u=1&num
=109&seq=244&view=image&size=100&id=njp.32101025281500. Acessado em
24/04/2012.
_____________________. Vireyna silvestre. Sus usos, y virtudes. In: Telégrafo
mercantil, rural, político-econômico, e historiógrafo del Río de la Plata Tomo 3. Nº
6, 1802c, p. 79-81. Disponível em: http://babel.hathitrust.org/cgi/pt?view=image
;size=100;id=njp.32101025281500;page=root;seq=244;num=222;orient=0 . Acessado em 24/04/2012.
BARNADAS, Joseph M.. A Igreja Católica na América Espanhola Colonial. In.
BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina: Volume I América Latina
Colonial. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, p. 521-551.
BURRIEZA SANCHÉZ, Javier. Los jesuitas: de las postrimerias a la muerte ejemplar. Hispania Sacra, LXI,124, julio-diciembre 2009, 513-544.
CARTAS ÂNUAS DE LA PROVINCIA DEL PARAGUAY (C. A). Años 17201730. Tradución de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1928. Tradução Digitada,
São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994.
CHARTIER, Roger. “Escutar os mortos com os olhos”. Estudos Avançados, Vol.
24, Nº 69, 2010, p. 7-30.
FECHNER, Fabian. Heilkunde und Mission – Zum Quellenwert der Heilpflanzenkompendien aus der Jesuitenprovinz Paraguay. Archivum Historicum Societatis Iesu, Nº 79, p. 89-113, 2010.
FURLONG, Guillermo. Un médico colonial: Segismundo Aperger. Estudios. Nº
54, p. 117-148, 1936.
________________. Médicos argentinos durante la dominación hispánica.
Buenos Aires: Editora Huarpes S.A., 1947.
107
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
HEINZ, Flávio M. (Org.). Por outra história das elites. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2006.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da UNICAMP.
1990.
LEONHARDT, Carlos. (org.). CARTAS ANUAS DE LA PROVINCIA DEL
PARAGUAY. (C. A.) (Mimeo inédito), 1927.
__________________. Los jesuítas y la medicina en el Río de Plata. Estudios, 57,
Buenos Aires, 1937, p. 101-118.
MAÑÉ GARZÓN, Fernando. Historia de la Ciencia en el Uruguay. Tomo I. Del
Descubrimiento al Fin de las Misiones Jesuíticas. Uruguay: Imprenta Tradinco S/A.,
1996.
MEIER, Johannes. «Totus mundus nostra fit habitatio» Jesuitas del territorio de
lengua alemana en la América portuguesa y española. Disponível em http://www.
bn.gov.ar/descargas/pnbc/estudios/pnbc_estudio8_jesuitasalemanes.pdf. Acessado
em 13/08/2011.
MÜLLER, Michael. Jesuitas centro-europeos ó «alemanes» en las misiones de
indígenas de las antiguas provincias de Chile y del Paraguay (siglos XVII y
XVIII). Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4320.pdf, Acessado
em 02/04/2012.
PENACCHIOTTI MONTI, Irma. Facultad de Ciencias Quimicas y Farmaceuticas.
Anales de la Universidad de Chile. VI serie: 12, octubre de 2000. Disponível em:
http://www2.anales.uchile.cl/CDA/an_completa/0,1281,SCID%253D3687%2526IS
ID%253D261%2526ACT%253D0%2526PRT%253D3625,00.html
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, Vol. 2, Nº 3, 1989, p. 3-15.
RODRIGUES, Luiz Fernando Medeiros. A formula scribendi na Companhia de Jesus:
origem, leitura paleográfica e fonte documental para o estudo da ação dos Jesuítas. X
Encontro Estadual de História. Disponível em http://www.eeh2010.anpuh-rs.org.
br/resources/anais/9/1279402723_ARQUIVO_ST01-Ahistoriografiaentreoparticular_TextoAnaisdeLuizFernandoRodrigues.pdf. Acessado em 16/11/2011.
SANDOVAL MORAGA, Carmen . Estudios de farmacia em Concepción – Chile.
Anal. Real Acad. Nac. Farm., VOL. 68, (1) 2002
SCHMIDT, Benito Bisso. Construindo Biografias... Historiadores e Jornalistas: Aproximações e Afastamentos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 19, 1997, p. 3 - 21.
____________________. Grafia da vida: reflexões sobre a narrativa biográfica. História Unisinos, Vol. 8, N º 10, Jul/ Dez, 2004, p. 131-142.
STONE, Lawrence. Prosopografia. Revista de Sociologia e Política, Vol. 19, Nº 39,
Curitiba, Junho, 2010.
STORNI, Hugo. Catálogo de los Jesuítas de La Província del Paraguay (18751768). Roma, Institutum Historicum S.I., 1980.
108
SZÉKÁSY, Miklós. La Obra de los Jesuítas Húngaros en Sudamérica. Disponível em http://www.bn.gov.ar/descargas/pnbc/estudios/pnbc_estudio9_hungaros.pdf. Acessado em 13/08/2011.
109
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
As Visitas Diocesanas
América Portuguesa (séXVII e XVIII)
no extremo sul da
culo
Lucas Maximiliano Monteiro
Resumo: As Visitas Diocesanas, ou Pastorais, eram um importante instrumento utilizado
pelos bispos para controlar os costumes morais dos moradores das freguesias. Seu principal
objetivo era moralizar as atitudes do clero e, com isso, levar aos povoadores a moral religiosa
cristã. Além disso, foi um importante aliado do Santo Ofício no mapeamento de heresias as
quais seriam da sua alçada. O objetivo deste texto é apresentar as Visitas Diocesanas em Rio
Grande de São Pedro na segunda metade do século XVII e início do XVIII. Estas atividades
do bispado se intensificaram durante os governos dos Bispos Castelo Branco e Coutinho e
estavam alinhados com as ordens tridentinas de moralização clerical.
Palavras-chave: Visitas Diocesanas – Rio Grande de São Pedro – Bispo Castelo Branco –
Bispo Coutinho
A
s Visitas Diocesanas, sendo um meio empregado pela Igreja para
o controle das práticas religiosas e servindo de auxiliar da Inquisição na perseguição às heresias, deveriam ocorrer em todas as
regiões do bispado. Era dever do bispo percorrer o maior número de freguesias
possível ou, quando fosse impossibilitado disso, nomear um delegado para fazê-lo.1 Assim a diocese poderia assegurar a sua presença nas distantes freguesias,
fazendo cumprir as determinações das Constituições baianas e levando ao povo
e aos eclesiásticos a moralidade cristã.2 O território sulino da América Portuguesa não foi deixado de lado pelos bispos, tendo recebido visitas de delegados ou do
próprio prelado.
Segundo o Concílio de Trento, realizado entre os anos de 1548 e 1563, as visitas deveriam
ocorrer a cada ano, sendo realizadas pelo próprio bispo ou, em razão de seu impedimento, pelo
vigário geral ou visitador nomeado pelo prelado. Era necessário visitar a diocese por completo
ou a sua maior parte, sendo completados os trabalhos no ano seguinte caso necessário. MONTEIRO, Lucas Maximiliano. A Inquisição não está aqui? A Presença do Tribunal do Santo
Ofício no extremo sul da América Portuguesa (1680-1821). Dissertação (Mestrado em História) – UFRGS, Porto Alegre, 2011, p. 25.
2
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia foram promulgadas em 1707 pelo Arcebispo baiano D. Sebastião Monteiro de Vide. A Igreja portuguesa no Brasil ficou submetida
a ela em suas principais orientações, inclusive no que diz respeito às visitas diocesanas. Estas constituições também foram adotadas nos territórios portugueses em San Tomé e Angola.
MONTEIRO, Lucas Maximiliano. Idem. p. 25-27.
1
111
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
O extremo sul passou a ser visitado com maior freqüência a partir da segunda metade do século XVIII. As visitas diocesanas estavam diretamente relacionadas
ao projeto orientado pelos bispos de reforma moral dos costumes da população
sulina. Tal reforma respondia aos ideais do Concílio de Trento, que via nas visitas a
principal arma para o controle e correção dos desvios praticados pelos moradores.
Dessa forma, os bispos, que também utilizavam as cartas pastorais, farão uso desse
tipo de atuação para a região sul.3
Os bispos fluminenses tiveram maior atenção com o território sulino a partir da segunda metade do século XVIII, sobretudo com o governo do bispo D. Castelo Branco. A partir da chegada do visitador Vicente José da Gama Leal em 1782, as
visitas pastorais passaram a ter maior periodicidade. É importante frisar que Castelo
Branco havia servido aos quadros inquisitoriais, e isso auxilia na compreensão do
maior empenho do prelado com as visitas diocesanas: por conhecer por dentro o
trabalho do Santo Ofício, o bispo estaria ainda mais aliado ao trabalho de repressão
às heresias e utilizava sua jurisdição para realizar as visitas diocesanas com esse propósito. Contudo, outros fatores podem ter influenciado a escassez de visitadores ao
Rio Grande de São Pedro no período anterior a 1780. O primeiro deles é o caráter
bélico que marcou notadamente a região ao longo de praticamente todo o século
XVIII. As disputas entre portugueses e espanhóis, ocasionaram invasões dos castelhanos à Vila de Rio Grande, por exemplo, podem ter influenciado o prelado do Rio
de Janeiro a não realizar as visitas diocesanas. Como já mencionado, era dever visitar o maior número de freguesias possível e, para isso, eram necessários constantes
deslocamentos para percorrer o território, sendo que, em uma região em litígio, não
havia segurança no translado. Outro fator é o escasso número de freguesias além da
distância entre elas.
A primeira freguesia do Rio Grande de São Pedro foi fundada em 1738, um
ano depois da fundação do presídio Jesus Maria José4 pelo primeiro pároco designado para a região, o padre José Carlos da Silva. Essa freguesia contava com jurisdição
territorial extensa, chegando até a chamada Guarda de Viamão. Posteriormente, foi desmembrada da paróquia de Laguna, a qualmanteve a jurisdição dos territórios de Viamão,
Cima da Serra e Tramandaí. Por ser durante muito tempo a única paróquia do Continente de São Pedro e também devido à distância de outros centros populacionais da região,
A respeito das Visitas Pastorais no Rio Grande do Sul há apenas a dissertação de mestrado
defendida em 1996 por Fabio Kuhn, que se dedica à análise destas com o foco centrado naquelas coordenadas pelos Bispos José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castelo Branco e José Caetano Coutinho, sobretudo no que diz respeito ao projeto reformador destes dois prelados para
a moralização dos costumes. O projeto reformador da diocese do Rio de Janeiro: as visitas
pastorais no Rio Grande de São Pedro: (1780-1815). 1996. 176 f. Dissertação (Mestrado em
História)-UFRGS, Porto Alegre, 1996.
4
Atualmente cidade de Rio Grande.
3
112
houve a construção de diversos oratórios e capelas.5 A segunda freguesia criada foi a
de Nossa Senhora da Conceição de Viamão. Embora já houvesse moradores naquele
território antes mesmo da fundação de Rio Grande, a região estava sob jurisdição da
freguesia de Laguna. Contudo, em 1741 foi erguida a Capela Grande e, devido ao grande
contingente populacional e à distância de Laguna, os moradores solicitaram a elevação
à freguesia, o que foi atendido em 1747.6 Outras freguesias foram fundadas após Rio
Grande e Viamão, dentre elas Triunfo (1756), Estreito (1761), Rio Pardo (1762), Santo
Antônio da Patrulha (1763) e Porto Alegre (1772). A última paróquia fundada antes da
visita de Vicente José da Gama Leal foi São Nicolau do Jacuí, em 1779, sob ordens do
bispo D. Castelo Branco.7 O Rio Grande de São Pedro contava até esse período com 16
freguesias, número que parece ter sido suficiente para que o prelado fluminense passasse
a se dedicar mais ao controle religioso dos habitantes sulinos por meio das visitas pastorais. Antes, porém, havia poucas paróquias e, além disso, a longa distância entre elas
parece ter dificultado uma presença constante de visitadores na região.
Mesmo tendo maior freqüência no período posterior a 1780, houve visitadores
para essa região em três oportunidades. A primeira delas foi em 1743, com o Visitador
Antônio Pestana Coimbra. Quando da sua visita, a única paróquia existente era a de Rio
Grande. Nela, o visitador permaneceu por meio ano, possivelmente por falta de navios
que o conduzissem. Durante o período de sua permanência, Antônio não rubricou os
livros paroquiais e concedeu faculdades para celebrar missa ao superior de um grupo de
jesuítas que naufragaram próximo da costa de Rio Grande quando se dirigiam para o
Chile. Não há referências à realização de devassa eclesiástica durante os trabalhos desse
visitador.8
O segundo a visitar o extremo sul foi o padre Manoel José Vaz. Manoel foi
designado para visitar a região pelo bispo de São Paulo, que na época tinha a jurisdição dos territórios sulinos.9 Esse visitador, que era cônego em São Paulo, esteve
RUBERT, Arlindo. História da Igreja no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EDIPUCRS,
1994, p. 59-61
6
Ibidem. P. 71-72.
7
RUBERT, Arlindo. História da Igreja no Rio Grande do Sul. Op. cit., p. 76-105.
8
Ibidem, p. 143. KUHN, Fabio. O projeto reformador da diocese do Rio de Janeiro. Op. cit.,
p. 63-64.
9
O Bispado de São Paulo foi criado em 1745. Constava na bula de criação que a jurisdição da
nova diocese seria dos territórios da parte sul do rio Paraíba. Logo o bispo paulista D. Bernardo
Rodrigues Nogueira reclamou para si a jurisdição dos territórios de Santa Catarina até Colônia de Sacramento, inclusive nomeando párocos para as regiões. O prelado do Rio de Janeiro
contestou essas jurisdições alegando que aquelas partes pertenciam ao governo cível do Rio
de Janeiro e, logo, deveriam ser consideradas da mesma forma nas jurisdições da diocese. As
disputas entre as dioceses se encerrou em 1750 com a ordem superior determinando que o Rio
Grande faria parte da diocese fluminense. RUBERT, Arlindo. História da Igreja no Rio Grande
do Sul. Op. cit., p. 64-65.
5
113
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
certamente em Viamão, embora não se saiba de sua presença em Rio Grande.
Sua visita a Viamão, em 25 de fevereiro de 1750, ocorreu meses antes da retomada da jurisdição dessa freguesia, assim como Rio Grande, pelo Bispado do Rio de
Janeiro. Segundo Rubert é possível que não tenha chegado essa notícia ao padre,
que permaneceu realizando o seu trabalho sob as ordens do bispo paulista.10
Em 1752 foi a vez do padre Domingos Pereira Telles visitar a paróquia
de Rio Grande. Não se tem informação de sua visita a Viamão. Domingos foi o
primeiro pároco de Nossa Senhora das Necessidades em Santa Catarina e posteriormente pároco de Conceição da Lagoa e Vigário da Vara do Desterro. Não
consta a realização de devassa durante os seus trabalhos em Rio Grande.11
Após estes visitadores, Rio Grande de São Pedro passou cerca de trinta
anos sem receber um novo visitador.12 Este longo período sem a realização de visitas diocesanas foi encerrado com a atuação dos bispos Castelo Branco e Coutinho. A partir do governo de Castelo Branco, o extremo sul passou a receber com
maior freqüência o trabalho de controle dos costumes e trabalhos dos párocos.
Estas visitas foram regulamentadas por um regimento destinado especificamente aos visitadores do Bispado do Rio de Janeiro. Este Regimento dos
Visitadores estipulava as normas de como deveriam ser conduzidas as visitas pelos
bispos ou delegados. Dentre estas recomendações, cabia:
[...]cuidar muito particularmente em receber, e tratar todas as
pessoas com urbanidade política, e caridade cristã para delas ser
igualmente tratado com toda a reverência devida ao Ministério
que vai exercer. Deve fugir de toda a ostentação de grandeza,
usando de hábitos os mais decentes, e próprios de Eclesiásticos;
de toda a parcimônia assim na Mesa como na família, para nem
ser pesada a sua assistência em casa alheia, nem dar escândalo
com um fausto popular, e indecente, impróprio a um Eclesiástico, que deve reformar os defeitos dos outros homens, e reparar
os abusos que achar.13
Segundo este regimento, era dever dos visitadores examinar os capítulos de visitas antecedentes, examinar a clareza dos assentos dos livros paroquiais, visitar as capelas
e oratórios verificando as suas licenças, certificar-se de que os párocos residem nas suas
paróquias além de outras determinações a respeito da conduta moral do clero. É importante destacar que diversas das atribuições do visitador estavam direcionadas à conduta
Ibidem, p. 144.
KUHN, Fabio. O projeto reformador da diocese do Rio de Janeiro. Op. cit., p.64.
12
Há algumas referências a respeito de outros cinco visitadores além dos três primeiros, embora não se tenha informações documentais que comprovem suas visitas. Ibidem, p. 65-66.
13 ACMRJ, Regimento dos Visitadores das Capitanias do Espírito Santo, Porto Seguro
e Rio Grande... Livro de Visitas Pastorais 1 (1780).
10
11
114
dos párocos. Esta é parte fundamental das visitas diocesanas e seu projeto reformador:
era fundamental a moralização do clero local para que se pudessem alcançar as almas
cristãs.
Há neste regimento a mesma intenção de colaboração com as atividades inquisitoriais. Quando é mencionado as atitudes do visitador perante os culpados de suas
devassas, o Regimento dos Visitadores afirma: “Dará livramento sumário a todos os
culpados na devassa da Visita, como até agora se praticou pelos regimentos dos N. Antecessores, exceto nos crimes graves, como heresia, blasfêmia, incesto em primeiro, e segundo
grau, Sacrilégio real, ou pessoal grave”. Embora não conste ordem para que o visitador
de conta dos casos de heresias ao Santo Ofício, por ser um regimento que se subordina
às Constituições baianas,14 é certo afirmar que os visitadores conheciam qual atitude a
ser tomada.
O bispo D. José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castelo Branco não se ocupou pessoalmente das visitas diocesanas realizadas em Rio Grande de São Pedro. Enquanto esteve à frente da diocese carioca, delegou diversos visitadores que partiram
rumo ao sul da América Portuguesa com o objetivo de verificar e corrigir as atividades
religiosas dos moradores das freguesias existentes. O primeiro visitador de seu governo
foi o Padre Doutor Vicente José da Gama Leal.
Gama Leal era doutor em cânones pela Universidade de Coimbra, atuou como
pároco na freguesia de Nossa Senhora das Necessidades, em Santa Catarina. Foi
também vigário da Vara de Santa Catarina um ano antes de ser nomeado visitador
pelo bispo Castelo Branco em 1780. Na nomeação do prelado constava que Gama
Leal deveria realizar visitas aos territórios sulinos em Santa Catarina e Rio Grande
de São Pedro. Nas paróquias catarinenses o visitador encontrou dificuldades em seus
trabalhos, sofrendo oposição de alguns párocos. Após encerrar seu trabalho em Santa Catarina, se dirigiu para o Continente de São Pedro.15
Chegando ao extremo sul, é possível que Gama Leal tenha visitado praticamente todas as freguesias existentes na região entre os anos de 1782 e 1783. É
possível traçar o trajeto do visitador no território sulino por meio do cruzamento de
fontes paroquiais com as correspondências do Governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara endereçadas tanto ao próprio delegado da diocese quanto aos
párocos e aos Capitães dos Distritos a serem visitados. Os trabalhos de Gama Leal se
iniciaram na freguesia de Santa Ana do Morro Grande das Lombas16 em 8 de março
de 1782, data da correspondência enviada por ele ao governador do Continente, o
Afirma o Regimento dos Visitadores: “Este é o Regimento que por ora mandamos observar
ao N. R. Visitador; e em tudo o mais que nele não expressarmos se governará pelas Constituições que
neste Bispado se observam, e pelas Regras de Direito”. O grifo é meu.
15
RUBERT, Arlindo. História da Igreja no Rio Grande do Sul. Op. cit., p. 144.
16
Esta Freguesia era situada no interior de Viamão e foi criada em 1772. RUBERT, Arlindo.
História da Igreja no Rio Grande do Sul. Op. cit., p. 96.
14
115
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
qual respondeu pouco mais de um mês após: “Hoje tive a honra de receber a Carta
que vossa mercê se dignou enviar-me da Freguesia de Vila Nova de Santa Ana datada
a 8 de março próximo, e nem a circunstância de chegar as minhas mãos tão retardada
foi capaz de diminuir o alvoroço e a estimação com que corresponde a um favor tão
exemplar”.17 Não há registro de Capítulos de Visita para essa freguesia e, assim, não
é possível determinar com exatidão a data de sua chegada. Contudo, ao que parece,
permaneceu durante dois meses em Santa Ana, uma vez que seu próximo destino
foi Porto Alegre, onde deu início aos seus trabalhos em 20 de maio de 1782. Permaneceu nessa paróquia realizando sua visita até o dia 20 de julho. Cinco dias depois se
encontrava em Rio Pardo:
Vicente José da Gama Leal, presbítero secular, Bacharel formado nos Sagrados Cânones pela Universidade de Coimbra e Visitador Geral de todo o Continente do Sul pelo Exmo. e Rmo. Sr.
D. José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castelo Branco, bispo
diocesano. Faço saber que aos vinte e cinco dias do mês de julho de mil setecentos e oitenta e dois anos, visitei pessoalmente
essa Igreja de Nossa Senhora do Rosário do Rio Pardo em companhia do R. Vigário encomendado José Antônio de Mesquita,
sacerdote, confrarias, nobreza e povo da dita freguesia, e Igreja
Matriz: fiz a procissão de defuntos, visitei o sacrário, pia batismal, altares e paramentos dela.18
Permanecendo por dois meses nessa paróquia, seguiu para Cachoeira, em
setembro; Taquari, em novembro e Santo Amaro, em dezembro. No ano seguinte,
esteve em Santo Antônio da Patrulha no mês de maio, permanecendo até o início
de junho. Entre essa freguesia e a próxima que se tem registros em Capítulos de
Visita, Viamão, é provável que Gama Leal tenha passado pouco tempo na freguesia
de Cima da Serra/Vacaria.19 Em carta datada de 12 de junho de 1783, o governador
Sebastião cita a notícia enviada pelo visitador de um atentado sofrido pelo Padre
João Ferreira Rodrigues, pároco daquela freguesia, fazendo menção à visita a essa
região.20 Dessa forma, é possível que Gama Leal tenha estado naquela freguesia
AHRS. Correspondência do Governador Sebastião Xavier Cabral da Câmara (17801784). Códice A1. 06. O grifo é meu.
18
AHCMPA. Capítulos de Visita (Freguesia de Rio Pardo).
19
As freguesias de São Francisco de Paula de Cima da Serra e Nossa Senhora da Oliveira de
Vacaria, criadas respectivamente em 1756 e 1768, apesar de serem duas, tiveram por muito
tempo apenas um pároco as comandando. Isso fez com que ora uma fosse considerada sede da
paróquia, ora a outra. Somente no início do século XIX, Vacaria passou a ter pároco próprio.
RUBERT. Arlindo. História da Igreja no Rio Grande do Sul. Op. cit., p. 90-94.
20
“São bem diferentes das que eu esperava as notícias que recebo de vossa mercê e do Rd.
Dr. João Ferreira Roriz [Rodrigues]. A respeito deste, o caso que acaba de lhe suceder ou para
melhor dizer o ocorrido insulto que encerra pede uma demonstração e um castigo exemplar,
17
116
antes de se dirigir a Viamão, onde chegou em 29 de junho. A visita a essa paróquia
teve maior duração: Gama Leal finaliza seus trabalhos em 13 de novembro de
1783.
Esse trajeto de Vicente José da Gama Leal pode ter sido maior. Percebe-se, por exemplo, que o tempo médio de permanência desse visitador nas freguesias era de cerca de dois meses. Como explicar o período entre dezembro de 1782,
onde esteve em Santo Amaro, e maio de 1783, quando chegou a Santo Antônio
da Patrulha? Faltam documentos que demonstrem outros destinos de Gama Leal,
mas é possível que tenha estado em outras freguesias durante esses cinco meses.
As correspondências enviadas ao visitador pelo governador Sebastião Xavier permitem, além de auxiliar na definição do trajeto percorrido por Gama Leal,
perceber o envolvimento do administrador do Continente com a visita diocesana.
Durante o tempo em que permaneceu percorrendo as freguesias do Rio Grande
de São Pedro, o visitador recebeu sete correspondências. Da mesma forma, Gama
Leal se comunicava constantemente com o governador, como nas oportunidades
já destacadas anteriormente, em que informava sobre o andamento de seu trabalho
nas paróquias.
Contudo, antes mesmo da chegada do enviado do bispo, Sebastião Xavier
já tinha informações de que as freguesias sob sua jurisdição receberiam a ilustre
presença de Gama Leal. Em carta datada de 7 de abril de 1781, o governador responde ao padre João Manuel Xavier de Matos a respeito de uma solicitação para
interceder a seu favor junto ao bispo. Não há menção do motivo dessa intervenção,
contudo o que é importante destacar é a recomendação dada pelo governador ao
que Deus me livre de disfarçar, o arbítrio porém que vossa mercê aponta de ser imediatamente
substituído na Freguesia de Cima da Serra é sem dúvida nas circunstâncias presentes o mais
prudente principalmente com o pretexto de se preparar para o novo emprego de Capelão das
demarcações para que se acha destinado pelo Ilmo. e Exmo. Sr. Vice-rei. Eu sempre julguei o
mesmo que vossa mercê vai experimentando isto é que o tempo lhe embaraçasse até princípios
do verão a visita da Freguesia de Nossa Senhora da Oliveira ainda não passando do Distrito de
Cima da Serra como me parece que assentamos nas Mostardas. Estimarei muito que as cartas
inclusas se conformem com o gosto de vossa mercê e ainda mais que no caso de não irem a sua
vontade me declare para me saber regular em conformidade sempre do seu agrado”. O padre foi
surpreendido, conforme o governador por “três mascarados de mão armada para lhe tirarem a
vida na própria sacristia que serve de casa da sua residência”. Esse atentado recebeu a atenção
de Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara: possivelmente por ter sido nomeado Capelão
das Demarcações de Limites, enviou o Juiz Ordinário do Continente para a região de Cima da
Serra com o objetivo de investigar e punir os responsáveis pelo crime: “Ordeno a vossa mercê
que [...] se transporte com o seu escrivão a referida Freguesia de Cima da Serra [...] inquirindo
e devassando imediatamente dele [o delito] com a imparcialidade e retidão que dispõem as leis
e dita a consciência”. Da mesma forma, enviou João da Costa Severino, Capitão dos Dragões,
para fazer a segurança do Juiz Ordinário e garantir a tranqüilidade das inquirições. AHRS. Correspondências do Governador Sebastião Xavier...
117
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
reverendo padre: “Conheço que vossa mercê a tem em todas as impossibilidades que
alega, mas ignoro que isso baste sem consultar o tempo o modo e a pessoa que deve
deferir a sua súplica, cujo exame a meu ver toca ao Rvdo. Visitador, que ouço está a chegar a este
Continente [...]”.21 Ou seja, o governador tinha conhecimento da chegada de Gama Leal e
indicava que o padre fizesse suas queixas e solicitações a ele. Próximo da chegada do visitador, Sebastião Xavier encaminha uma carta informando o recebimento da notícia de
sua chegada, informando também que estaria disposto na colaboração de seu trabalho:
Recebo a carta que vossa mercê por efeito de urbanidade me dirigiu
com a feliz notícia da sua desejada vinda a este Continente, aonde
todos os moradores e eu principalmente o esperamos penetrados do
reconhecimento mais sincero de haver a Divina Providência inspirado ao Exmo. Rmo. Sr. Bispo Diocesano a eleição de um tão conspícuo e tão digno delegado da sua iminente autoridade. Eu estou certo
que vossa mercê há de exercitada com a ciência, exemplo e caridade
inseparáveis do seu caráter e virtudes: quisera se persuadisse no mesmo tempo que tanto para este fim como todos os mais que forem de
seu agrado pode vossa mercê não só contar mas dispor inteiramente
sobre a minha obediência e fiel vontade.22
O governador do Continente demonstrou estar ao lado dos objetivos da visita
realizada pela diocese em seus territórios. Na mesma data em que encaminhou a carta citada, enviou outra, agora endereçada aos Capitães dos Distritos informando da chegada
do visitador e ordenando a todos “além das particulares recomendações que por esta lhe
faço, a prestar ao Senhor Delegado todo o auxílio de que necessitar e ainda a contemplá-lo e fazê-lo contemplar a mais obsequiosa e servilmente que couber no possível”. É
de se destacar as constantes trocas de correspondências entre Sebastião Xavier e Gama
Leal. O governador recebia informações sobre o andamento das visitas, inclusive acerca
da atuação de alguns padres. Como não se tem acesso às cartas enviadas por Gama
Leal, apenas indicação naquelas enviadas por Sebastião Xavier, não há como precisar o
conteúdo das mesmas.23 Contudo, é possível supor que o visitador desse informações
precisas dos resultados de sua visita, indicando os desvios encontrados nas atuações dos
padres residentes nas freguesias visitadas. Como exemplo, há a correspondência datada
de 8 de junho de 1782 – data em que o visitador estaria em Porto Alegre –, a respeito
da situação do Padre João Manoel Xavier de Matos:
Protestando a devida veneração as sabias e prudentes deliberações de vossa mercê, desejo sem a menor ofensa delas explicar Idem.
AHRS. Correspondências do Governador Sebastião Xavier...
23
Foi consultada somente a correspondência ativa do Governador Sebastião. As correspondências passivas se encontram no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Contudo, não houve a
possibilidade de consulta a essas fontes.
21
22 118
-me a respeito da notícia que recebo das circunstâncias em que
atualmente se acha o Rdo. Padre João Manoel Xavier de Matos.
Este sacerdote de admiráveis costumes e notório desinteresse
poderá como homem dar causa a que vossa mercê lhe lembre o
desempenho dos seus deveres, mas não desmerecer que usando
da sua natural benevolência o restitua ao livre exercício das suas
ordens a graça de sua Exa. Rma. e a posse das verdadeiras felicidades em que eu particularmente interesso, e pelas quais rogo a
vossa mercê com o mais crescido empenho [...]24
Essas cartas demonstram o envolvimento de Sebastião Xavier nos trabalhos realizados por Gama Leal nas freguesias sulinas. Durante suas visitas diocesanas, o visitador contou com o apoio do governador, o informou acerca dos resultados e solicitou informações a respeito dos párocos residentes no Continente.
Ao contrário de Santa Catarina, onde teve dificuldades e encontrou oposição, no
Rio Grande de São Pedro, graças à intervenção de Sebastião Xavier, pode finalizar
todas as visitas com êxito. Logo, essas correspondências demonstram não apenas
a importância que a visita diocesana teve para a região – principalmente após um
longo período sem a presença de um visitador –, mas também que o governador
estava empenhado em colaborar com o delegado diocesano em seu objetivo de
reformar os costumes do Continente.
Durante a visita a Santo Antônio da Patrulha, Gama Leal realizou uma devassa. Embora não se tenha encontrado os registros da mesma, em que constariam
as denúncias e denunciados, há referências nos Capítulos de Visita daquela freguesia. O visitador faz recomendações ao pároco para observar todos os implicados
durante a devassa fazendo o termo de separação do pecado:
O Rev. Pároco terá particular cuidado em observar a conduta de
seus fregueses, e em especialidade daqueles que ficarem compreendidos na Devassa da presente Visita, para o que lhes faça
rol dos que assinaram o [termo] de separação do pecado, e que
por ausentes o não fizeram os admoestará com paternal amor
se abstenham das ofensas de Deus, paguem as multas, que me
remeterá o R. Pároco, e quando nela persistam os denunciará ao
Rev. Vigário da Vara da Comarca para os castigar com o rigor
que mandam as Constituições, ou segundo as circunstâncias o
pedirem.25
Há outras referências da realização de uma devassa pelo visitador em Santo Antônio da Patrulha: na habilitação de casamento de Manoel Gonçalves Ribei AHRS. Correspondências do Governador Sebastião Xavier...
AHCMPA. Capítulos de Visita Pastoral (Freguesia de Santo Antônio da Guarda Velha).
24 25
119
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
ro e Antônio Inácia de Mendonça consta a informação de que o casal vivia em
concubinato e, sendo advertidos pelo pároco e denunciados na “Visita Geral pelo
mesmo concubinato”, resolveram regularizar a sua situação frente à Igreja.26
Gama Leal encerrou sua visita ao Continente em novembro de 1783 e o
próximo visitador chegaria à região cerca de sete anos depois, quando Agostinho
José Mendes dos Reis fez sua visita às paróquias sulinas. Agostinho era natural do
Desterro e fora nomeado pelo bispo Castelo Branco visitador de Santa Catarina e
Rio Grande de São Pedro. Segundo Rubert, o visitador agradou em seu trabalho
ao bispo, sendo requisitado em diversas oportunidades para realização de visitas
às freguesias sulinas. Sendo assim esteve em Rio Grande de São Pedro em quatro
oportunidades: 1790-1791, 1795-1797, 1803-1804 e 1811-1812.
Em sua primeira visita, pelas informações que nos fornecem os Capítulos
de Visita, sabe-se que Agostinho esteve primeiramente na freguesia de Porto Alegre, após Rio Pardo, Santo Amaro e Viamão.27 Contudo, há informações de que
o visitador esteve também em Vacaria e Osório.28 Tendo finalizado o seu trabalho
nas freguesias, Agostinho foi nomeado pelo bispo Castelo Branco pároco de Rio
Grande, para facilitar a sua locomoção em território sulino. Essa medida se deveu
ao fato de que dois anos depois ele estaria novamente percorrendo as freguesias
como Visitador Geral. Segundo Rubert, nessa ocasião ele visitou todas as “freguesias e curatos do sul, mesmo os mais distantes e de difícil acesso”.29 Dentre
as informações encontradas nos Capítulos de Visita, consta passagem por Porto
Alegre, Viamão, Santo Antônio e Rio Pardo respectivamente. Esteve à frente da
freguesia de Rio Grande até 1799, quando se tornou Vigário da Vara de Santa
Catarina.
Sua terceira visita aos territórios sulinos ocorreu entre 1803 e 1804. Nesse
período esteve nas mesmas freguesias da oportunidade anterior, incluindo apenas
Santo Amaro, conforme os Capítulos de Visita. Por fim, Agostinho esteve no início da segunda década do século XIX em território sulino para sua Visita Pastoral.
Nessa ocasião, o visitador percorreu 20 freguesias ao longo do Continente, incluindo a região dos Sete Povos.30 Após ser o padre que mais vezes esteve percorrendo
as paróquias de Rio Grande de São Pedro, Agostinho José Mendes dos Reis morreu em 1821 em Desterro.31
O terceiro visitador foi Bento Cortez de Toledo. Entre as visitas de Agostinho de 1796 e 1803, foi de Bento a oportunidade de percorrer as paróquias averi 28
29
30
31
26
27
KUHN, Fabio. O projeto reformador da diocese do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 71.
Ver os Capítulos de Visita das respectivas freguesias.
KUHN, Fábio. O projeto reformador da diocese do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 74.
RUBERT, Arlindo. História da Igreja no Rio Grande do Sul. Op. cit., p. 145.
ACMRJ. Livro de Visitas Pastorais 11
RUBERT, Arlindo. História da Igreja no rio Grande do Sul. Op. cit. p. 145.
120
guando as condutas morais dos habitantes e eclesiásticos. Foi também vice-reitor
do Seminário São José do Rio de Janeiro e no ano de 1798 foi nomeado pelo
bispo Castelo Branco Visitador Geral de Santa Catarina e Continente de São Pedro. Esse visitador esteve em 13 freguesias, conforme seus registros que contém
informações de todas as freguesias percorridas. No “livro de informações” consta o número de fogos e de almas existentes em cada paróquia, além de outras
questões envolvendo a realidade da freguesia. Por exemplo, sobre a igreja Matriz
de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira, o visitador relatou o estado de
penúria em que se encontrava:
Quando cheguei a essa freguesia achei a Matriz dela com a
maior indecência, porque além de ser de palha, estava ameaçando uma total ruína, que até os moradores temiam entrar
nele [sic], eu que o devia deixar interdito procurei adiantar decentemente a nova Matriz, e fiz transladar os Santos no dia
27.10.1799 e no dia 28 se festejou a Padroeira sendo esta ação
toda agradável não só aos moradores desta freguesia como ainda a muitos, que concorreram de outras.32
O último visitador delegado pelo bispo Castelo Branco foi seu sobrinho José Fernando Mascarenhas Castelo Branco. A respeito desse visitador não
se tem muitas informações, possivelmente por ter sido ele delegado a visitar a
região oeste do Continente, principalmente os Sete Povos. Não há Capítulos de
Visita para se mapear as freguesias percorridas. Sobre ele se sabe que foi ordenado visitador em 1802 quando era pároco de Rio Pardo, realizando as visitas
diocesanas em suas jurisdições no mesmo período de Agostinho nas freguesias
do leste. Segundo Rubert, levou dois anos realizando seu trabalho, sem registros
de devassas realizadas. Após, voltou a administrar a sua paróquia, morrendo em
1829.33
Com o sobrinho do bispo Castelo Branco se encerra o período de visitas
diocesanas sob sua administração. Em 1808 assume o bispado do Rio de Janeiro
D. Caetano Coutinho, que foi o único bispo a percorrer pessoalmente as mais
distantes freguesias de sua jurisdição, conforme ordenava as ordens tridentinas.
Em 1815, dedicou-se à realização de sua visita pastoral ao Rio Grande de São
Pedro. Ao longo dos três meses em que permaneceu em território rio-grandense,
esteve em freguesias como Triunfo, Taquari e Canguçu. Ao todo foram 15 as visitadas. Realizou uma devassa eclesiástica durante sua visita. No Livro de visitas
pastorais referente ao bispo carioca há a informação dessa devassa na paróquia
de Santo Antônio da Patrulha: “Dos três, ou quatro amancebados públicos, que
ACMRJ. Livro de Visitas Pastorais 6.
RUBERT, Arlindo. História da Igreja no Rio Grande do Sul. Op. cit., p. 145-146.
32
33
121
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
saíram nessa Devassa, o João José deu uma ótima satisfação, porque casou. O João
da Silva ficou em termo disso. Os mais [...] ficaram alinhavados mais dois outros
casamentos”.34
Todos os visitadores que estiveram no Rio Grande de São Pedro a partir de
1780 deixaram registrados nas freguesias seus Capítulos de Visita. A riqueza de detalhes varia para cada visitador. Contudo, é por meio deles que se percebe quais eram
as preocupações do projeto de reforma dos costumes empreendido pelos prelados
cariocas. Nesses capítulos constam informações acerca da atuação dos párocos, a
situação de cada freguesia, os costumes dos moradores e toda e qualquer informação
que o visitador tenha achado interessante relatar.
A preocupação com a reforma das atitudes dos eclesiásticos foi uma constante durante o governo dos bispos Castelo Branco e Coutinho. A principal característica do projeto reformador empreendido pelos prelados era a moralização de seu
clero, ou seja, “o pré-requisito básico para uma reforma geral dos costumes deveria
ser a reforma do clero, [...] de nada adiantava tentar coibir os ‘abusos’ que encontrava
na população, se os agentes eclesiásticos não dessem antes o exemplo de uma conduta ilibada”.35
Essa preocupação dos bispos mereceu constantes cartas pastorais dirigidas
aos eclesiásticos. Contudo, quando da chegada dos visitadores, os párocos foram
novamente lembrados da importância de manterem uma conduta moral frente à
população e também de seu trabalho de catequização e instrução dos povos. O visitador Vicente José da Gama Leal, quando esteve em Rio Pardo fez recomendações
ao pároco nesse sentido:
E como a instrução dos povos, conforme os Santos Padres, é a
mais essencial das funções do sacerdócio e dos deveres de um
pároco, que pelo governo das almas, se lhe aumenta [ainda] mais
essa obrigação, não posso por isso dispensar-me de lhe advertir
essa importantíssima obrigação, a fim de que por falta da mesma
instrução não venha o seu rebanho a perecer. O pároco foi instituído a pastor senão para distribuir ao povo o alimento espiritual,
para lhe anunciar a palavra de Deus, e para separar e desviar de
todo o mau caminho. Se ele não cumpre com sua indispensável
obrigação do seu ofício, é um cão mudo que com o seu silêncio
consente que o lobo devore o rebanho, que lhe está entregue, e do
qual Deus lhe há de pedir contas muito rigorosa.36
Gama Leal lembrou o pároco das ordens tridentinas, as quais declaram que
é dever do responsável pela paróquia “instruir o Povo nos sacramentos e dias de
ACMRJ.Livro de Visitas Pastorais 15.
KUHN, Fabio. O projeto reformador da diocese do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 40.
36
AHCMPA. Capítulos de Visita Pastoral (Freguesia de Rio Pardo).
34
35 122
festas”, além de ser sua obrigação conduzir “as suas ovelhas com a palavra Divina,
administração dos sacramentos e exemplo das boas obras remediar com paternal
caridade aos enfermos e miseráveis como bom pastor”.
Na mesma freguesia, o visitador Agostinho José Mendes dos Reis registrou em seus capítulos de visita as principais formas de conduta esperadas de um
eclesiástico. Para ele, é obrigação do pároco “dar três maneiras de pasto, de Doutrina de exemplo de vida e de oração”. Afirma também que não se deve se contentar
com a implantação da doutrina cristã, afastando da freguesia os resquícios de heresia, é
necessário “aplicar todas as suas forças em inflamar aos Povos, com repetidas admoestações em temor da religião, da paz, da inocência [...] em uma palavra, a pureza da Santa
Fé católica e Doutrina da Igreja, da vida e costumes do povo é a principal obrigação de
um perfeito pároco”. Em sua segunda visita à freguesia, Agostinho teceu reclamações a
respeito dos hábitos curtos utilizados pelos eclesiásticos. Segundo ele, as recomendações
para que se usassem os hábitos conforme mandam as Constituições haviam sido feitas
na sua visita anterior, o que não foi seguido pelos reverendos.
Na visita do bispo José Caetano Coutinho não foi diferente. Quando esteve
na freguesia de Rio Pardo fez recomendações a respeito do catecismo da população,
importante função esperada de um pároco:
Desejando sumamente remediar a geral falta de instrução do catecismo, que lamentamos em quase todo o nosso Bispado; recomendamos, e ordenamos por Capítulo de Visita, que os Reverendos
Párocos presentes, e futuros desta Igreja não deixem passar um só
Domingo, em que não façam a explicação do Catecismo aos meninos, e aos Adultos, que necessitarem; que se lembrem que esta é
a principal de suas obrigações; e que as suas omissões nesta parte
devem ser por Nós corrigidas com as penas de suspensão, e a mais
de Direito, e que reservamos a nosso arbítrio.37
Essas recomendações feitas aos eclesiásticos se repetiram em todas as freguesias visitadas, demonstrando a importância dada pelos prelados às atitudes e moralidade
dos párocos. Era importante para a verdadeira reforma dos costumes e o afastamento
dos desvios religiosos ter um clero moralizado, empenhado em passar essa moralidade
ao seu rebanho, conduzindo-o, por meio do catecismo, à verdadeira doutrina cristã.
As visitas pastorais eram um importante instrumento dos bispados para o controle das atitudes religiosas. Com suas constantes visitas às mais distantes freguesias,
seria possível a vigilância permanente tanto da população quanto do clero. Além destas
prerrogativas, também auxiliavam no trabalho inquisitorial, sendo um importante instrumento repressivo da religiosidade colonial.
Idem.
37
123
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
BIBLIOGRAFIA
KÜHN, Fabio. O projeto reformador da diocese do Rio de Janeiro: as visitas pastorais no Rio Grande de São Pedro: (1780-1815). 1996. 176 f. Dissertação (Mestrado em História)-UFRGS, Porto Alegre, 1996.
MONTEIRO, Lucas Maximiliano. A Inquisição não está aqui? A Presença
do Tribunal do Santo Ofício no extremo sul da América Portuguesa (16801821). Dissertação (Mestrado em História) – UFRGS, Porto Alegre, 2011.
RUBERT. Arlindo. Historia de la Iglesia en Brasil. Madrid: Editorial Mapfre,
1992.
__________. História da Igreja no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994.
FONTES
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro
Livros de Visitas Pastorais.
# 1 (1780) Regimento do Visitador da Diocese (18.07.1780).
# 6 (1799) Livro das Informações da Visita do Sul de São Pedro, e Ilha
de Sta. Catarina.
# 11 (1811) Livro para a Informação da Visita Geral do Continente do
Sul.
# 15 (1815) Visita de D. José Caetano da Silva Coutinho, bispo do Rio de
Janeiro.
# 16 (1815) Continuação do livro # 15.
# 17 (1815) Livro de Devassas da Visita ao Sul.
Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre
Capítulos de Visita Pastoral
Porto Alegre (1782-1815)
Rio Pardo (1782-1897)
Santo Amaro (1782-1824)
Santo Antônio da Guarda Velha (1783-1824)
Viamão (1783-1815)
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
Correspondência do Governador Sebastião Xavier Cabral da Câmara
(1780-1784). Códice A1. 06
124
“O cristão no espelho da morte: uma análise dos necrológios das cartas ânuas do século xvii”.
Tarcila Stein1
Resumo: Este artigo apresenta resultados preliminares da pesquisa que venho desenvolvendo
como bolsista FAPERGS, junto ao projeto “Medicina e Missão na América meridional: Epidemias,
saberes e práticas de cura (séculos XVII e XVIII)”. Contempla a leitura que fiz das Cartas Ânuas da
Província Jesuítica do Paraguai referentes ao período de 1645 a 1672, em especial, dos necrológios, tópicos das Ânuas que relatam as mortes de missionários jesuítas2, visando à identificação das causas mortis e a análise da forma como as mortes destes padres foram retratadas, com
destaque para a sua importância como instrumento pedagógico e formador dos quadros da
Companhia de Jesus.
Palavras-chave: Companhia de Jesus – Cartas Ânuas – Necrológios – Doença – Morte
As Cartas Ânuas – uma introdução
As Cartas Ânuas analisadas neste artigo são relatos produzidos pelos
jesuítas em missão, retratando suas experiências na América Meridional, em
especial na Província do Paraguai3, estabelecida a partir de critérios eclesiásticos e não políticos. Sobre estas cartas, cabe, inicialmente, a advertência de
que foram produzidas pela Companhia de Jesus e para a Companhia de Jesus4,
razão pela qual se deve estar atento à finalidade destas fontes, e, sobretudo, para
Graduanda do 6° semestre do Curso de Licenciatura em História da Universidade do Vale do
Rio dos Sinos. Bolsista de Iniciação Científica FAPERGS, desde janeiro de 2011, orientada pela
Professora Drª Eliane Cristina Deckmann Fleck.
2
Sobre as percepções de morte e de salvação vigentes no período, ver DELUMEAU (1990),
LE GOFF (1984) e ARIÉS (1982).
3 Segundo Fleck (2007) A antiga Província do Paraguay abrangia, na época colonial, limites
bastante mais extensos que os da moderna República Paraguaia. Recebendo o nome do rio que
banhava, compreendia uma imensa região que se estendia entre o Brasil e o Peru, até o Prata e
o Oceano Atlântico. O antigo Paraguai limitava-se, ao norte, com a Capitania de São Vicente,
pois a linha imaginária a separar os territórios de Portugal, passava sobre o Iguape, no atual estado de São Paulo; ao sul, com o Rio da Prata; a leste com o Oceano Atlântico e a oeste com a
província de Tucumán, atualmente território argentino. Os atuais Estados brasileiros do Paraná,
Santa Catarina, Rio Grande do Sul e sul do Mato Grosso, subindo daí até a bacia do Amazonas,
eram jurisdição do Paraguay.
4
Sobre a Companhia de Jesus, ver trabalhos de FRANZEN (2008), FLECK (2004) e EISENBERG (2000).
1
125
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
a sua condição de relato edificante.5 Essa condição explica o tipo de
discurso encontrado nas Cartas e a forma como são relatadas as mortes
destes jesuítas, com ênfase em suas virtudes e para atitude demonstrada
diante da morte iminente. Como nos lembra Fernando Londoño: “A
carta, desde o início, foi o principal instrumento da Companhia para
a disseminação do seu trabalho por toda América, e não obstante, um
material seriado de extrema importância para que historiadores pudessem remontar o cotidiano, o imaginário e as condições das reduções
jesuíticas”6.
As Ânuas do século XVII e do XVIII que analisamos se encontram
sob a guarda do Arquivo do Instituto Anchietano de Pesquisa, que funciona
junto à Antiga Sede da Unisinos, já os seus originais, escritos em espanhol
arcaico, se encontram no Colégio Del Salvador, em Buenos Aires/Argentina.
Alguns trechos não foram transcritos devido às condições em que se encontravam os originais, o que impede, em alguns momentos, a continuidade da
leitura e a compreensão. Além disso, existem hiatos de tempo entre as cartas
disponíveis para consulta, dificultando uma pesquisa contínua destas.
Estes relatos produzidos pelos missionários jesuítas são uma fonte
riquíssima para a investigação que venho realizando desde 2011, pois, a partir
delas, podemos extrair informações sobre as doenças mais frequentes e sobre
os índices de mortalidade nas regiões onde os jesuítas atuaram. Elas apresentam uma sequência formal de apresentação [definida a partir de regras do
século XVI] que é rigorosamente observada pelos padres relatores em missão
na América. As cartas, convém lembrar, eram a forma de comunicação mais
direta entre os jesuítas, como explica Luis Fernando Medeiros Rodrigues:
Dispersos na seara do Senhor, Inácio via na correspondência
a base para a união dos jesuítas entre si e com os seus superiores. A rede de informações, que pouco a pouco se formará
com a circulação da correspondência jesuítica, servirá para
que a Companhia faça uma contínua revisão do trabalho feito e estabeleça a previsão sobre o futuro, lançando as bases
As cartas jesuíticas possibilitaram uma série de pesquisas sobre o período colonial da Bacia
do Prata. Porém, a incansável busca por uma reconstituição do período deu origem a dois
grandes problemas: analisar essas cartas como fonte informativa – reproduzindo e cristalizando
conceitos que evidenciariam a realidade missioneira – ou rejeitar qualquer interpretação
historiográfica oriunda da leitura dessas fontes, uma vez que essas constituiriam apenas um
recurso estilístico próprio da retórica seiscentista. Ver mais em BERTO, Carla. Milagre, retórica
e conflitos. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, 2011.
6
LONDOÑO, Fernando Torres. Escrevendo Cartas. Jesuítas, escrita e missão no século XVI.
PUC-SP. P. 05.
5
126
para um novo método de governo de uma ordem religiosa, essencialmente voltada para a ação missionária7.
Para a análise das Ânuas, especialmente dos necrológios nelas contidos, foi fundamental a familiarização com alguns documentos fundacionais da Companhia de Jesus
– como, por exemplo, os Exercícios Espirituais, propostos por Santo Inácio de Loyola –,
e, especialmente, o entendimento sobre como os jesuítas percebiam o martírio e como
concebiam a santidade. Segundo as orientações do fundador da Companhia de Jesus,
uma vida de doação e de virtude, encarada com destemor e de forma resignada diante
das privações, este era o exemplo a ser seguido pelos demais cristãos e missionários8. Ao
analisá-las, priorizei o levantamento das informações – para sua posterior tradução em
tabelas e gráficos –, relativas ao número de mortes de missionários, à causa mortis, à idade
que tinham ao falecer, ao período de atuação e, ainda, dados sobre as reduções ou os
colégios onde exerceram suas atividades. Para uma abordagem qualitativa, considerei, especialmente, a forma como estas mortes foram relatadas, com destaque para as menções
feitas à postura resignada que alguns jesuítas adotavam diante da iminência da morte,
bem como sua vinculação ao martírio ou à virtude.
Neste artigo, abordarei alguns dos questionamentos suscitados pela leitura das
Ânuas, dentre os quais destaco: Com que idade e de que morriam os padres que atuavam
na Província Jesuítica do Paraguai no século XVII? Qual a relação entre os índices de
mortalidade e as condições de vida dos padres jesuítas? Qual a postura dos missionários
diante da doença ou da morte iminente? Quais as diferenças entre os mártires, santos e
os que tiveram uma “boa morte”?
1. Sobre as idades e os índices de mortalidade de jesuítas
Para a elaboração das tabelas, foram consideradas as informações que extraí
das Ânuas, especificamente, o nome do padre, a idade que tinha ao falecer, o tempo de
Companhia, a redução ou colégio em que se encontrava atuando no momento do óbito
e ainda, a causa da morte.
Considerando as informações levantadas nas Ânuas, pode-se afirmar que,
dentre as causas mortis dos missionários (vide Figura 1), estão a idade avançada e
RODRIGUES, Luis Fernando M. A formula scribendi na Companhia de Jesus :Origem, leitura paleográfica e fonte documental para o estudo da ação dos jesuitas. Anais do X Encontro estadual de História,
2010.
8
Outra obra utilizada como referência para a temática da pesquisa foi a Conquista Espiritual,
de 1639, produzida pelo jesuíta Antônio Ruiz de Montoya. Apesar de anteceder temporalmente
o recorte da investigação, considerei o relato bastante relevante, devido às informações que traz
sobre as condutas exemplares almejadas pela Companhia de Jesus, especialmente, de registros
de martírio de jesuítas.
7
127
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
aquelas associadas às condições adversas, sobretudo, as climáticas, que eram experimentadas pelos padres tanto nos colégios, quanto nas reduções. Em relação
às reduções, é preciso considerar que algumas delas contavam com instalações
precárias, desprovidas de hospital ou botica, dificultando a assistência aos padres
e indígenas e implicando no agravamento das condições dos doentes ou na morte.
Em alguns dos casos que analisei, se constata o desejo expresso de morrer pelo
padre adoentado, que recusa qualquer remédio ou atendimento, como se pode
perceber no trecho abaixo:
Otra vez fue sacado medio muerto de un río muy crecido, al cual
quería pasar en una miserable canoa de corteza, para acudir a un
enfermo. Tuvo que confesar repetidas veces a un hombre enfermo que exhalaba olor pestilencial, tanto que nadie se atrevía a
acercársele (...) El mismo Padre se enfermó a consecuencia de aspirar tal
olor, y tuvo que sufrir bastante tiempo. Pues se le ulceró la garganta y,
tuvo que operarse la campanilla, así que casi perdió la voz. Pero
por estos inconvenientes no se detuvo de sus actos caritativos
de asistir a los moribundos (…) Hasta siguió, aunque con trabajo, catequizando y predicando a la gente ruda y española, siendo también muy concurrido su confesionario. Siguió hasta su
avanzada edad con sus austeridades, disciplinándose en la iglesia
muy entrada la noche, tanto que la gente de afuera que lo oía se
espantaba. Al fin, después de una larga enfermedad, murió este
santo varón.9
Figura 2. Causa da morte
Carta Ânua de 1772 (1928), Tradução de Carlos Leonhart, S.J. Buenos Aires. São Leopoldo,
Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994 p. 47.
9 128
Foi possível constatar que as doenças referidas para os padres que
se encontravam nos colégios são diferentes daquelas que causaram a morte dos missionários que atuavam nas reduções. Vale lembrar que os colégios, tal como o de Córdoba, estavam equipados com boticas, contavam
com enfermeiros, boticários e médicos, o que implicava, na maioria das
vezes, na adoção de medidas profiláticas, de isolamento dos doentes e na
administração de medicamentos previamente testados. Já os padres que
atuavam junto às reduções, estavam mais propensos ao contágio em situações de epidemia, pois, pela própria natureza do seu trabalho apostólico,
entravam necessariamente em contato com os indígenas enfermos, como
nos mostra a citação abaixo:
(...) recorriam as casas dos enfermos, tanto para levar os consolos espirituais, como para ver se estavam bem assistidos,
procurando que não lhes faltasse o alimento conveniente ao
seu estado e para administrar as medicinas possíveis e, às vezes,
também atuavam como médicos e enfermeiros, manejando a lanceta por
suas próprias mãos.10
Além das doenças já citadas, cabe uma observação acerca da forma
como estas doenças eram descritas pelos padres, uma vez que o sintoma era
contemplado como causa e, em outros casos, nem sempre era específico, deixando margem para interpretações. Dentre os sintomas citados, eventualmente
encontramos menções à estafa e ao esgotamento, que podem estar relacionados
a alguma outra enfermidade, que levou a óbito. Há referência a dores no peito,
o que pode apontar tanto para sintomas pulmonares, quanto cardíacos. Também
encontramos menções às angústias do coração, que parecem apontar para casos
de depressão entre os missionários. Localizei, ainda, referências a frio nos ossos,
sintoma que pode estar relacionado a problemas reumáticos, menções a vômito e
à febre, que, mais uma vez, podem estar relacionados a várias enfermidades, mas
que nos necrológios são mencionadas como as causas mortis.
[…] Ya muy anciano, sufrió mucho de gota en pies y manos,
quejándose, no de sus dolores, sino de su ociosidad, y de que le
alimentaban de balde en la Compañía. Por esta razón, cuando
en su enfermedad se le ofrecían aquellos alivios, que se suelen
ofrecer a los enfermos, o para excitar su apetencia, o para levantar su buen humor, los rechazaba con inflexible modestia.
Resplandeció sobre manera su paciencia en los tres últimos
años de su grave y dolorosa enfermedad venciendo con ella
los agijones de sus intolerables sufrimientos. […] Resplandeció
HERNÁNDEZ S. J., Pablo. Organización social de las doctrinas guaraníes de La Compañía
de Jesús. Barcelona: Gustavo Gili, 1913. p. 16.
10 129
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
sobre manera su paciencia en los tres últimos años de su grave
y dolorosa enfermedad venciendo con ella los agijones de sus
intolerables sufrimientos.11
Assim, podemos perceber a margem para interpretações que estes registros oferecem, tanto da parte dos que prestavam a assistência, como médicos de
alma do que de corpo e daqueles que registraram o óbito, quanto para aqueles que
viriam a ler a Ânua.
Nos necrológios que integram as Ânuas da segunda metade do século
XVII que analisei, o maior número de óbitos registrados ocorreu nas reduções, o
que parece apontar para uma maior incidência de mortes de padres jesuítas nestes
espaços de atuação da Companhia de Jesus na América. Dentre as causas deste alto
índice de mortalidade pode-se destacar a precariedade das instalações de muitas
destas reduções que, geralmente, estavam situadas longe dos colégios, caracterizando-se pelo trabalho de evangelização desenvolvido entre os indígenas. As cartas
registram também a assistência prestada aos padres pelos próprios nativos, que é
descrita como imediata e voltada apenas para abreviar as dores e sintomas momentâneos. Os dados que levantei parecem também indicar que os jesuítas com idade
mais avançada – acima dos setenta anos – viveram seus últimos dias em colégios,
como o de Córdoba, enquanto que aqueles que tinham entre cinqüenta e sessenta anos, se encontravam atuando em reduções, quando de seu falecimento. Para
Charlotte Castelnau12, para atuar como missionário era exigido o cumprimento de
uma série de pré-requisitos definidos pela Companhia de Jesus. Considerando esta
política de “repartição de talentos”, o padre enviado para áreas de missão deveria
ser bom pregador, conhecer o idioma e ser maduro para desempenhar tal tarefa,
corroborando com as informações encontradas nas Cartas.
Carta Ânua de 1658-1660 (1927) Tradução de Carlos Leonhart, S.J. Buenos Aires. São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994, p. 14-15.
12
CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte de. Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a
conversão dos índios no Brasil 1580-1620.
11
130
Figura 2. Incidência de morte por colégio/redução
Apesar do número de óbitos de padres jovens que as Ânuas registram, a
maioria dos missionários falecia já com idade avançada (vide Figura 3), contando
com muitos anos de Companhia. Em grande parte dos casos, as mortes decorriam
da saúde debilitada, devido à idade avançada, podendo ser agravada, ou não, por
enfermidade. Dentre as moléstias que costumeiramente são associadas a pessoas
idosas e que são recorrentemente referidas nos necrológios, estavam artrites, reumatismos, complicações renais, gripes, febres e infecções. No levantamento que
venho fazendo das doenças que acometiam os missionários há, no entanto, um
grande número de causas mortis não especificadas, não havendo qualquer menção à
doença ou, então, apenas a informação “causa desconhecida”, ou o que pode ser
explicado pela maior importância dada à forma de narrar e dignificar a morte do que
apresentar a sua causa, aspecto que abordarei a seguir.
131
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Figura 3. Idade ao morrer
2. A extrema unção, o bem morrer e o martírio
Dada a natureza edificante das Cartas e a valorização das condutas exemplares nos necrológios, constata-se o destaque dado à vida virtuosa e a busca do
martírio por muitos daqueles que mereceram o elogio fúnebre em seus obituários,
o que parece apontar para a definição de um tipo de missionário ideal pela e para a
Companhia de Jesus. Como nos diz Fernando Londoño: “A edificação, assim, ganha
nesse contexto, um traço de modernidade onde através da escrita se colocava em
evidência o real além de uma releitura à luz da experiência de cristianização.”13
Segundo Renato Cymbalista14, a valorização do martírio se dá por guardar
semelhança com o sofrimento experimentado por Cristo. A partir da era moderna
há inclusive uma circulação de obras que versavam sobre a imitação da trajetória dos
últimos momentos de Jesus. A ideia de que este sofrimento os aproximava dos santos
que haviam sido martirizados, garantindo, por conseqüência, a aproximação com
Deus, acabava conferindo grande prestígio ao mártir, por sua condição de modelo a
ser seguido.
Estes aspectos podem ser observados na Carta de 1647-1649, na qual encontrei uma passagem que refere que, após sua morte, o Irmão jesuíta Claudio Flores receberia grande honra:
LONDOÑO, Fernando Torres. Escrevendo Cartas Jesuítas, escrita e missão no século XVI.
São Paulo, SP: PUC 2010.
14
CYMBALISTA, Renato. Sangue, ossos e terras: os mortos e a ocupação do território luso-brasileiro. São Paulo, SP: Editora Alameda, 2011.
13
132
[...] Al correr la noticia de la muerte del Padre, todo el mundo le apellidó mártir, y habló con el mayor respecto de él, diciéndose que era un varón de
una virtud acabada, lleno de Dios y de un insaciable deseo de ganar almas
para Cristo, nuestro Señor, un espíritu emprendedor irresistible
cada vez cuando se trataba de promover la gloria de Dios.15
Como pude constatar nos necrológios que analisei, morrer em martírio ou
por qualquer outra privação (de alimento, por exemplo) não era algo assim tão temido pelos padres – jovens ou já com idade avançada –, na medida em que entendiam
que todo o sofrimento enfrentado reverteria numa morte gloriosa, como se pode
perceber no trecho abaixo:
Murió en este colegio en 1647 el Padre José Quevedo, natural de
Córdoba del Tucumán, a la edad de 26 años, apenas acabados los
estudios teológicos. Era muy devoto de María Santísima, de su
virginal esposo, y de nuestros Santos, en cuyo honor había prometido ayunar en las vísperas de su fiesta a pan y agua. Así preparado
no era de admirar, que sin miedo esperase la muerte.16
A questão da postura dos jesuítas em relação à morte também pode ser
analisada à luz dos necrológios que destacam o que era considerado edificante para
a Companhia17 e definem aqueles que, após vida virtuosa ou martírio deveriam gozar da “glória eterna no reino dos céus”. A boa morte mencionada nas Ânuas está
vinculada ao processo de provação e privação a que os missionários se submetiam,
mediante rigorosa observância dos votos de pobreza e castidade e de uma vida de
virtude e penitência, em nome da maior glória de Deus. Na iminência da morte, esta
vida devotada seria ainda mais valorizada com a administração dos últimos sacramentos àqueles que eram merecedores da glória eterna, da boa morte.
Os discursos encontrados nos necrológios têm nítido caráter pedagógico,
fazendo do morto um exemplo a ser seguido para, desta forma, inspirar e incentivar
a vinda de missionários para a América. Sempre que falamos em sofrimento, em
provações, em exemplo a ser seguido, o exemplo primeiro é a paixão de Cristo, este
é o parâmetro e modelo que os jesuítas têm de abnegação, de altruísmo. A morte é
percebida como momento de glória e de paz, como momento em que todo o sofrimento pelo qual passou o missionário será capaz de elevá-lo, pois quanto maior o
sofrimento, maior se torna a glória.
Carta Ânua de 1647-1649 (1928), Tradução de Carlos Leonhart, S.J. Buenos Aires. São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994 p. 62.
16 Carta Ânua de 1647-1649 (1928).Tradução de Carlos Leonhart, S.J. Buenos Aires. São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994 p. 07.
17
Podemos perceber o destaque dado as virtudes destacadas e reforçadas pelo “modo de proceder” jesuíta. A vida abnegada e o altruísmo são termos recorrentes encontrados nas Cartas.
Assim, podemos perceber as qualidades que a Companhia busca reforçar nesses discursos.
15
133
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Os casos de martírio, apesar de em menor número, também estão presentes nas cartas do século XVII. Elas referem aqueles que morreram trabalhando pela Companhia e, sobretudo, de maneira brutal, tendo sido esfolados,
apedrejados ou queimados – como verdadeiros mártires jesuítas, evocando
exemplos como os dos Padres Roque González, João Afonso e Afonso Rodriguez, cujo assassinato é relatado por Antônio Ruiz de Montoya:
Pediu o Padre que o levassem à presença de seus irmãos ainda vivos, para que de todos juntos se fizesse um holocausto
[...] Três quartos de légua arrastaram-no por pedregais tão
ásperos, que em breve as pedras lhes roubaram as vestes.
Com isso, sua honestidade sentia mais a desnudez que as
feridas. Era, porém, tão grande seu desejo de ver consumado
seu martírio que, achando-se quase solta a corda com que o
arrastavam, disse-lhe a eles: tornai a atar-me, pois eu morro
por boa vontade! [...] descarregaram sobre sua cabeça duas
grandes pedras: golpe que o santo recebeu ao pronunciar os
doces nomes de Jesus e Maria, a quem entregou sua alma
ditosa.18
Os escassos registros de martírio nas cartas da segunda metade do
século XVII que analisei podem ter sua explicação no efetivo estabelecimento
das reduções, o que parece ter garantido o afastamento dos xamãs descontentes, a diminuição de manifestações de resistência indígena à conversão e o
abandono das práticas tradicionais indígenas por aqueles já assentados e cristianizados. As vidas virtuosas de jesuítas, no entanto, mantêm-se em destaque,
apontando para um trabalho mais constante e duradouro entre as populações
indígenas.19
É preciso, contudo, estabelecer a diferença existente entre mártir e
santo. Nem todos os padres foram santos ou mártires, mas todos os mártires
se tornaram santos, em virtude da morte tão assemelhada à Paixão de Cristo.
O sofrimento e a morte, como já destaquei anteriormente, eram almejados
pelos jesuítas, sobretudo, por aqueles que se dirigiam à América para trabalhar
como missionários entre os indígenas.
Ainda em relação à boa morte, deve-se ter presente a importância da
administração dos últimos sacramentos, em especial, da extrema unção, que
consiste na preparação da alma do indivíduo para o seu passamento. Esta
MONTOYA, Antonio Ruiz de. A conquista Espiritual, 1985, p.201
Essa é uma constatação oriunda também da ausência da presença do Xamã nos discursos.
Sempre associada a disputa de poder entre estes e os Padres. Em um primeiro momento, percebemos a forte presença e influência destes indígenas. Com o passar dos anos, as Cartas tão
gradualmente deixando de mencionar ou citando as vitórias da conversão. Esta ausência indica
o sucesso da missão, de certa maneira.
18
19
134
prática era mencionada nos documentos fundacionais da Companhia. Eliane
Fleck cita as instruções e o papel do santo viático na missão:
10º artigo: Aos índios já cristãos hão de dar a extrema-unção
(unção dos enfermos) a seu tempo, depois de lhes haver explicado a virtude deste Sacramento, administrando-o, bem
como os demais (Sacramentos), sempre com toda a decência
e solenidade. Em particular valha isso dos Batismos, máxime
dos primeiros a fazer, em que se há de juntar a principal gente adulta e bem catequizada. Faça-se o mesmo nos enterros,
levando-se grinaldas para as criaturas inocentes. E procurem
despertar toda a reverência às coisas sagradas, como à água
benta, aplicando-a aos enfermos e ordenando que a tenham
em decência em suas casas, e com ela crucifixos em todas,
especialmente nas dos cristãos. Diante deles somente se diga
a missa, não consentindo, sem causa grave, que a ela assistam
os infiéis.20
Nas Ânuas, esta prática aparece referida tanto em relação aos padres,
quanto em relação aos indígenas, estando associada à crença de que este procedimento garantiria a “boa morte”. Para ilustrar este procedimento, apresento, primeiramente, uma situação em que um índio procura o padre para que o
sacramento fosse administrado:
Otro semejante caso hubo, en que un matrimonio indio, después de haber consultado inutilmente a los hechiceros para
alcanzar la salud de su hijo ya grande, contra su costumbre
llamaron al sacerdote, el cual, fracasado el arte de Hipócrates
para salvar la vida temporal, le procuró la vida eterna, disponiéndolo para recibir los sacramentos, y sanar con la sangre
de Cristo.21
A unção poderia, em alguns casos, salvar não apenas a alma do indígena, mas restituir a saúde daquele que se encontrava enfermo, como se pode
constatar neste trecho que reforça a compreensão que os missionários jesuítas
tinham deste sacramento:
Había un indio, el cual estaba muriéndose, y sin embargo
tenía miedo de recibir la Extrema Unción, porque pensaba que esto le mataría. Nuestro Padre le quitó esta ignorancia,
enseñándole que este sacramento era útil como remedio. Dejó el índio
FLECK, Eliane Cristina Deckmann. Almas em busca de salvação: sensibilidade barroca no
discurso jesuítico (século XVII). São Paulo, SP Revista brasileira de História, v.24, n.48, p.12,
2004.
21
Carta Ânua de 1647-1649 Tradução de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires. São Leopoldo,
Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994, P.08.
20
135
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
administrárselo, y realmente, apenas acabado el sacerdote, se mejoró y
sanó, conociendo toda esta pobre gente que la Extrema Unción no era
mortífera, sino muy saludable para cuerpo y alma.22
Cabe ressaltar que, muitas vezes, este era o último recurso a ser administrado,
tanto aos nativos, quanto aos próprios padres da Companhia, como forma de preparação para o descanso final:
Era un hombre muy piadoso y mortificado, y muy fiel en el cumplimiento de sus votos, y nadie le pudo sorprender en una falta
contra ellos. [...]. Se le administraron los últimos sacramentos, después de
lo cual decayó de fuerzas rápidamente, y pronto murió.23
Em relação aos registros sobre o bem morrer, é preciso considerar que os
missionários estavam recorrendo a uma estratégia discursiva denominada de “pedagogia da boa morte” por Burrieza Sanchéz, que produzia os efeitos desejados
entre os missionários enviados ou por aqueles destinados à evangelizar e também
entre os próprios nativos As posturas adotadas pelos padres eram as que deveriam
ser seguidas pelos demais e isto implicava em“Aprender a morir, significaba aprender a
vivir adecuadamente. Para ello, la didactica del discurso sabia ponerejemplos para conducir hacia
una conversion de vida.”24
3. Considerações finais
As informações relativas à mortalidade de missionários registradas nas
Ânuas da primeira metade do século XVIII apontam para mortes decorrentes de
causas naturais, bem como para raras situações de epidemia, o que parece apontar
para a melhoria das condições nas reduções e nos colégios e para um maior investimento em hospitais, enfermarias e boticas e, sobretudo, para um maior conhecimento sobre as plantas medicinais nativas. A consolidação das reduções e dos colégios não apenas reduziu o número de mortes trágicas que caracterizam o período
dos primeiros contatos com os indígenas e de instalação das missões junto a eles.
A tarefa de sistematizar as causas mortis se apresentou um desafio, devido à
ausência destas informações nas cartas que analisamos. Nos Necrológios, percebemos a intenção em exaltar as virtudes de determinado indivíduo, enfatizando suas
obras e descrevendo sua trajetória na Companhia. Por muitas vezes, a forma como
este faleceu, as demonstrações de fé ou a narração de um milagre tomam mais
Idem 16
Carta Ânua 1552-1554. Tradução de Carlos Leonhart, S.J. Buenos Aires. São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994, P.15.
24
SANCHÉZ, Burrieza. De las postrimerias a la muerte ejemplar. Espanha: Hispania Sacra,
2009.
22
23 136
destaque nas narrativas do que a causa da morte propriamente. Podemos supor que
esta dificuldade de delimitar uma causa específica possa estar relacionada com o
pouco (ou nenhum) conhecimento médico que muitos destes missionários tinham,
pois, como nos diz Guilermo Furlong, os jesuítas estavam muito mais “empenhados em atender “a todas las necesidades espirituales de aquellos pobres indios”25.
Outra questão é a atribuição da morte a um sintoma, dificultando uma melhor definição sobre as causas que levaram a óbito, na medida em que doenças diferentes podem apresentar os mesmos sintomas. A partir das informações levantadas,
pude constatar que a idade avançada era um dos maiores fatores de mortalidade
encontrados. A relação entre a localidade e a causa da morte também é um fator a
ser considerado. Não podemos desvincular as doenças do meio onde os padres se
inseriam. Assim, podemos estabelecer diferenças entre as doenças que acometiam
os jesuítas nas reduções daquelas que eles contraíam ao atuarem junto aos colégios.
No primeiro caso, percebi que havia uma maior exposição do missionário às epidemias que acometiam os indígenas, além disso, as reduções se localizavam, muitas
vezes, em locais suscetíveis a inundações ou em áreas muito frias. Em contrapartida, os Colégios estavam mais bem equipados e preparados já que contavam com
boticas e enfermarias, razão pela qual nestes locais, encontramos incidência maior
de registros de mortalidade relacionados a causas naturais. Nas reduções, encontrei
menções a doenças reumáticas, cardiotorácicas, entre outras.
Ainda sobre a vinculação existente entre doenças e o meio, vale destacar os
casos de depressão, registrados como “angústias del corazón”. Charlotte Castelnau
atribui à tristeza ao isolamento e à desvalorização que o missionário sentia. Assim,
a desvalorização, a solidão, o isolamento a que se submetiam causava o descontentamento, que levava à doença, à loucura. Sabe-se que a Companhia de Jesus
relacionava as virtudes e as qualidades de cada um de seus membros em catálogos,
considerando-as no momento da designação para o trabalho do qual deveriam ser
encarregar. Essa “política de pessoal” determinava que os missionários deviam possuir uma série de requisitos, fundamentais para o trabalho junto às populações por
converter. A experiência exigida nas áreas de missão parece apontar para um quadro
composto por homens mais maduros. Os necrológios que analisei confirmam a
adoção deste critério para a Província Jesuítica do Paraguai, pois, em sua maioria, os
padres morriam com idade avançada, após anos de trabalho missionário.
Outro aspecto que deve ser considerado ao nos debruçarmos sobre a morte de jesuítas missionários é o martírio. Percebi que na segunda metade do século
XVII, houve um declínio destas mortes violentas que eram causadas por ataques
FURLONG, Guillermo. Misiones y sus Pueblos de Guaraníes. Buenos Aires: Teorema,
1962, p. 604.
25 137
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
de indígenas. Quanto às causas dessa redução, podemos levantar duas hipóteses. A
de que os martírios – como nos lembra Renato Cymbalista – eram um instrumento
que sacramentava o estabelecimento da missão, que respaldava a presença dos jesuítas em solo americano. Assim, a diminuição poderia representar o sucesso da missão, isto é a aceitação da conversão ao Cristianismo. A outra pode estar relacionada
com um novo conceito de mártir, já que em alguns dos necrológios que analisei,
constata-se a exaltação da vida abnegada e de doação à causa, daqueles que viviam
em privação em nome da conversão, que, em razão disso, poderiam ser chamados
de mártires também. Como percebemos na citação da Carta Ânua:
Consecuencia de tantos trabajos y privaciones era que cayó el
Padre enfermo de la atroz enfermedad de lepra. Pero sospecho
que él mismo se pidió del cielo semejante prueba; pues, al estar,
un día, arrodillado delante del altar de la Virgen, pidió por gracia
una enfermedad molesta, como penitencia por sus pecados. Parece que el cielo le mandó esta enfermedad al volver de la tierra de
los guaycurúes. Propagóse pronto por todo su cuerpo, y le hizo
sufrir horriblemente postrado en la cama por tres años y 2 meses,
pelándosele todo el cutis, y volviendo cubrirlo de nuevo, desfigurándole formidablemente y privándole de la nariz. Estaba chorreando sangre y pus de los apostemas que le cubrían, así que uno
no le pudo ver sin compasión. […] Estaba siempre unido con
Dios, haciendo continuamente actos de virtud heroica, hasta que
plugo a Dios premiar su constancia, sacando su alma del cuerpo
destrozado, para que viviese entre los bienaventurados del cielo.26
Por fim, podemos relacionar o exemplo dos mártires com o objetivo maior
da missão, a conversão do indígena, que previa a adoção de práticas cristãs, tais como
a dos sacramentos (a missa, o batismo, o casamento, a eucaristia, a comunhão e a extrema unção). Em relação ao último sacramento, o santo viático, pode-se perceber
o destaque que lhe era dado, na medida em que era administrado aos moribundos
com o intuito de salvar sua alma e, assim, garantir a entrada no reino dos céus. A administração deste sacramento era acompanhada de um discurso sobre o bem morrer,
que se constituía em recurso pedagógico muito eficiente para a conversão, por estar
amparado em exemplos e, também, em casos de exceção27. Momentos como este,
em que o moribundo era levado a avaliar sua vida e a confessar-se, devem ter, com
certeza, colocado os cristãos convictos e também os recém-convertidos diante
do “espelho da morte”.
Carta Ânua de 1663 (1929). Tradução de Carlos Leonhart, S.J. Buenos Aires. São Leopoldo,
Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994 p. 45.
27 Casos exceção é o termo que atribuímos aos exemplos apresentados nas Cartas. Onde estão
os milagres, as curas e punições, essencialmente.
26 138
Referências e Fontes
ARRIÈS, Phillipe. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1982.
BERTO, Carla. Milagre, retórica e conflitos. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, 2011.
CARTAS ÂNUAS DE LA PROVINCIA DEL PARAGUAY (C. A). Anõs
1645-1646. Tradución de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1928. Tradução Digitada, São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS,
1994.
CARTAS ÂNUAS DE LA PROVINCIA DEL PARAGUAY (C. A). Anõs
1647-1649. Tradución de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1928. Tradução Digitada, São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994.
CARTAS ÂNUAS DE LA PROVINCIA DEL PARAGUAY (C. A). Anõs
1652-1654. Tradución de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1928. Tradução Digitada, São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994.
CARTAS ÂNUAS DE LA PROVINCIA DEL PARAGUAY (C. A). Anõs
1658-1660. Tradución de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1928. Tradução Digitada, São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994.
CARTAS ÂNUAS DE LA PROVINCIA DEL PARAGUAY (C. A). Anõs
1660-1662. Tradución de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1928. Tradução Digitada, São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994.
CARTAS ÂNUAS DE LA PROVINCIA DEL PARAGUAY (C. A). Anõs
1667. Tradución de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1928. Tradução Digitada,
São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994.
CARTAS ÂNUAS DE LA PROVINCIA DEL PARAGUAY (C. A). Anõs
1668. Tradución de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1928. Tradução Digitada,
São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994.
CARTAS ÂNUAS DE LA PROVINCIA DEL PARAGUAY (C. A). Anõs
1669-1672. Tradución de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1929. Tradução Digitada, São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994.
CYMBALISTA, Renato. Sangue, ossos e terras: os mortos e a ocupação do
território luso-brasileiro. São Paulo: Editora Alameda, 2011.
CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte de. Operários de uma vinha estéril: os
jesuítas e a conversão dos índios no Brasil 1580-1620. Tradução de Ilka Stern
Cohen. Editora Bauru, São Paulo: EDUSC. 2006.
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente : 1300-1800: uma cidade
sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno.
Minas Gerais: Editora UFMG, 2000.
139
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
FRANZEN, Beatriz Vasconcelos; FLECK, Eliane Cristina Deckmann; MARTINS, Maria Cristina Bohn (organização, introdução e notas). Carta Anua da
província Jesuítica do Paraguai (1659-1662). São Leopoldo, RS: Oikos; Unisinos; Cuiabá, MT: EdUFMT, 2008.
FLECK, Eliane Cristina Deckmann. Sobre martírios e curas: medicina e edificação nas reduções jesuítico-guaranis (século XVII). Porto Alegre, RS: Estudos Ibero-Americanos, v. XXXI, n. n. 1, p. 35-50, 2005.
_____________________________. A morte no centro da vida: reflexões
sobre a cura e a não-cura nas reduções jesuítico-guaranis (1609-75). Rio de
Janeiro, RJ: História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 11, n. 03, p. 635-660, 2004.
_____________________________. Almas em busca de salvação: sensibilidade barroca no discurso jesuítico (século XVII). São Paulo, SP: Revista
brasileira de História, v.24, n.48, p.255-300, 2004.
_____________________________.Nas franjas do texto e do tempo: sensibilidade e espaço das experiências reducionais. São Paulo: Revista de História USP nº 156, São Paulo-SP. P. 59-77 FURLONG, Guillermo, S.J. Los Jesuítas y la Cultura Rioplatense. Montevideo: Urta y Curbelo, 1933.
____________________________. Misiones y sus Pueblos de Guaraníes.
Buenos Aires: Teorema, 1962.
HERNÁNDEZ S. J., Pablo. Organización social de las doctrinas guaraníes
de La Compañía de Jesús. Barcelona: Gustavo Gili, 1913.
LE GOFF, Jacques. O nascimento do purgatório. Madri, ES: s/Ed. 1989.
LONDOÑO, Fernando Torres. Escrevendo Cartas: Jesuítas, escrita e missão
no século XVI. São Paulo/SP: EDUSP.
MAEDER, Ernesto. Cartas Ânuas da Província Jesuítica do Paraguai (16371639). Argentina: FACIC, 1984.
SÁNCHEZ, Burrieza. De las postrimerias a la muerte ejemplar. Espanha: Hispania Sacra, 2009.
STORNI, Hugo. Catálogo de los Jesuítas de La Província del Paraguay (18751768). Roma, Institutum Historicum S.I., 1980.
RODRIGUES, Luis Fernando Medeiros. A formula scribendi na companhia
de Jesus: origem, leitura paleográfica e fonte documental para a ação dos
jesuítas. X encontro estadual de História, Santa Maria, RS, 2010.
140
3. Transformações no Rio Grande do
Sul na passagem do século XIX para o
século XX
141
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
“Ao meo compadre e verdadeiro amigo Randolpho ”1: tecendo redes, discutindo hierarquias sociais no Vale do Jaguari
Hermes Gilber Uberti
Resumo: O presente artigo se propõe a analisar as redes sociais firmadas por Randolpho José
da Silva Pereira enquanto estratégias familiares de uma camada social intermediária, que na busca de reconhecimento social e segurança econômica configurou malhas de caráter horizontal e
vertical dentro da paisagem agrária do Vale do Jaguari entre meados do século XIX e princípio
do XX. Concomitantemente ocorrerá o mergulho sobre a dinâmica das teias buscando verificar
que tipo de liames elas representavam e os bens que por elas circulavam. Almejando, assim, ver
o tecido social no qual o estancieiro e seus compadres estavam imiscuídos, para tanto traçaremos
um perfil desses personagens, dando ênfase às relações de vizinhança, as conexões profissionais
e as urdiduras junto aos militares.
Palavras-chave: Compadrio – Estratégia – Família – Redes.
D
Primeiras palavras
iante das possibilidades e liberdades pessoais de construção da
narrativa histórica, visualizamos na micro-história italiana importante referencial teórico por entendê-la enquanto tentativa de
reconstituir o vivido a partir de uma escala reduzida de observação que se coloca atenta a pequenas realidades cotidianas, dando nomes e reconstituindo papéis
na história de indivíduos de “pequeno quilate”. Ao mesmo tempo a redução do
campo de análise trouxe, em seu bojo, a renovação nos procedimentos analíticos
inerentes à ciência histórica, uma vez que, “enriqueceu” as investigações dos processos através de categorias interpretativas mais palpáveis e da possibilidade mais
concreta da verificação experimental, na medida em que o cruzamento de fontes
pode possibilitar maior consistência na obra e ganhos em termos de profundidade.
Entre as categorias do referido procedimento analítico, que dá grande ênfase ao caráter empírico e se apresenta ainda como uma prática dos historiadores
e de historiografia, iremos nos valer do método onomástico, onde o nome
de certa forma passa a “conduzir” a trama, pois segundo Poni e Ginzburg o
centro de “investigación micronominativa persigue a individuos concretos, bus AMFT, Título da carta enviada por João Victorino Filho a Randolpho José da Silva
Pereira. São Vicente, 24 de setembro de 1876. Na referida missiva a liderança da parcialidade
liberal, do povoado de São Vicente, conclamava seu compadre a tomar partido em uma reunião
que iria ocorrer na casa de moradia do Barão de Candiota.
1
143
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
cando descubrir una especie de tela de araña tupida, a partir de la cual sea posible
obtener la imagen gráfica de la red de relaciones sociales en que el individuo está
integrado”2. Assim, a investigação micronominal que aqui propomos encontra-se
nas linhas que partem e convergem para o nome, compondo uma espécie de teia
de malha fina, onde se pode ter um panorama do tecido social3 no qual os agentes
históricos estavam inseridos. Desse modo Randolpho José da Silva Pereira adquire
a condição de pretexto, de ponto de partida para que possamos olhar outros sujeitos que estabeleceram conexões com o personagem que empresta seu nome como
norteador deste trabalho.
Ainda no que toca ao exercício de micro-análise que ora pretendemos
desenvolver, tencionamos utilizar também o paradigma indiciário proposto por
Ginzburg4, buscando pistas, pequenos detalhes e indícios, juntando peças e “costurando-as” durante o processo de construção da narrativa. Mesmo se valendo do
“cisco” existe a possibilidade de “reconstrução do real em sua totalidade, mesmo
que essa reconstrução seja sempre atravessada pela subjetividade do historiador e
datada historicamente”5.
No que tange ao cotejo das fontes manuscritas, elas foram garimpadas principalmente junto ao Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul
(APERS), Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS), Arquivo do Judiciário
Centralizado (AJC), Arquivo do Museu Fragmentos do Tempo (AMFT), Mitra
Diocesana de Bagé e Mitra Diocesana de Santa Maria. Destarte, elas serão tratadas
de uma maneira intensiva buscando seguir os personagens que fazem parte do
enredo “nas múltiplas relações que os formavam, o que significava investigar tais
sujeitos em vários tipos de fontes, ou melhor, em todas que retratassem os diversos
aspectos - cultural, econômico, político etc. - do seu cotidiano”6.
Mesmo encaminhando nosso olhar “ao rés do chão” temos consciência de
que ele não se constituiu em uma panacéia. Conforme salientou Maurizio Gribaudi7, só a redução da escala de observação não é suficiente para garantir uma maior
In: SERNA, Justo e PONS, Anaclet. El ojo de la aguja ¿De qué hablamos cuando hablamos de
microhistoria? In: TORRES, Pedro Ruiz. La historiografia. Madrid: Marcial Pons, 1993, p. 113.
3
Tecido social aqui entendido enquanto “o substrato a partir do qual e para dentro do qual o indivíduo
gira constantemente e tece suas finalidades na vida. Esse tecido social é o curso real de sua mudança como um todo,
porém, não é obra da intenção nem do planejamento de ninguém” (ELIAS, 1993, p. 194).
4
GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989.
5
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: A arte de inventar o passado.
Ensaios de teoria da História. Bauru: Edusc, 2007, p. 102.
6
FRAGOSO, João Luis Ribeiro. Afogando em nomes: temas e experiências em história
econômica. Topoi, vol. 03, n.° 5, jul. – dez. 2002, p. 62. Disponível em www.revistatopoi.org/
acessado em 09/2009.
7
In: IMÍZCOZ, José Maria. Actores, redes, procesos: reflexiones para una historia más
2 144
cientificidade, pois pode haver variações segundo o objeto de estudo. Afora isso,
que não sejamos mal interpretados, de forma alguma estamos negando a importância das metanarrativas, pois conforme arguiu Revel não existe um “hiato, menos
ainda uma oposição, entre história local e história global. O que a experiência de
um indivíduo, de um grupo, de um espaço permite perceber é uma modulação particular da história global”, de uma forma “particular e original, pois o que o ponto
de vista micro-histórico oferece à observação não uma versão atenuada, ou parcial,
ou mutilada, de realidades macrossociais; é, uma versão diferente”8. Ou seja, é impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, como é impossível conhecer o
todo sem conhecer particularmente as partes.
Nos últimos tempos, a temática da história da família e suas articulações
têm despertado o interesse de muitos cientistas sociais. Tais pesquisas têm ratificado certos axiomas, entre os quais, a família enquanto a mais antiga e a mais disseminada de todas as instituições sociais, pois “la familia es un hecho necesario y fatal
[...] superior a la voluntad humana, no siento dueño el hombre de nacer fuera de
ella, ni de dejar de pertenecer a alguna”9. Eis que, “antes de sermos nós mesmos,
somos o filho ou a filha de Fulano ou Beltrano; nascemos numa família, antes que
possamos ter uma existência social própria, é por um nome de família que se nos
referem”10. Todavia os trabalhos também têm apontado para experiências singulares que variam no tempo e no espaço, sendo “um consenso entre os estudiosos
à dificuldade que se impõe para analisar o conceito de ‘família’, instituição praticamente universal em todas as sociedades [...] que no senso comum, significa ser
amado e amparado [...] mas que se constituiu um terreno movediço”11. Na medida
em que, na “história da família ocidental desde o século XVI aos nossos dias [...]
nunca existiu, um sistema familiar único. O ocidente sempre se caracterizou pela
diversidade das formas familiares, não só ao longo dos tempos, mas em pontos
precisos do tempo”12. Caracterizando uma instituição que encerra diferentes facetas enquanto espaço de “socialización, derechos y obligaciones jurídicas, ritos de
global. Revista da Faculdade de Letras. História III série, vol. 5, 2004. p.115-139.
8
REVEL, Jacques (org.). Jogo de Escalas: A experiência da Microanálise. Rio de Janeiro:
FGV, 1998.
9
LÓPEZ, Pilar Muñoz. Sangre, amor e interés: La familia en la España de la restauración.
Madrid: Marcial Pons, 2001, p. 15.
10
ZONABEND, Françoise. Da família: olhar etnológico sobre o parentesco e a família. In:
BURGUIERÉ, André (org.). História da Família: mundos longínquos. Lisboa: Terramar,
1998, p.14.
11
SCOTT, Ana Silvia Volpi. Da reconstituição de famílias à reconstituição de comunidades históricas: um exemplo do Noroeste de Portugal. 2008, p. 2. Disponível em http://
historia_demografica.tripod.com/ acessado em 03/2010.
12
ANDERSON, Michael. Elementos para a História da Família Ocidental 1500-1914.
Lisboa: Editorial Querco, 1984, p. 10.
145
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
paso, sentimientos de amor y odio, estructuras económicas, relaciones de poder”13,
constituindo-se num importante espaço que possibilita a “configuração de relações
de grande importância na definição das atividades e relações sociais dos sujeitos,
bem como era um vetor que influía na estratificação e reprodução social”14. Particularmente iremos nos valer da concepção de família extensa onde a definição de
quem era parente não ficava restrita a consanguinidade e afinidade, passava também por situações que envolviam as relações de parentesco ritualizado.
Entre os escritos que versaram sobre as relações de compadrio elenca-se
os de Martha Hameister15 que, entre outros pontos, tratou o parentesco fictício
enquanto um importante mecanismo de afirmação social, de consubstanciação de
relações de reciprocidade e de uma herança imaterial ligada ao nome. Onde o tamanho do capital social16 de um indivíduo passava pelo número de vezes que havia
comparecido a pia batismal na condição de padrinho. Paralelamente discorre sobre
as relações de apadrinhamento enquanto um jogo ligado à trilogia da graça, ou seja,
no dar, receber e retribuir17 onde o ponto de partida estaria na dádiva de oferecer
um membro de sua prole como afilhado, e a pessoa que havia sido escolhida aceitar
o “presente”, passado algum tempo o indivíduo retribuir a gentileza, tornando-se compadres duplamente. Outro ponto levantado pela autora fica por conta da
transmissão do prenome recebido no momento do batismo enquanto uma graça
que possibilitava a pessoa adentrar no mundo da cristandade. Ademais, o ato de
nomeação do indivíduo, enquanto prática social, passível de estabelecer, ratificar
e de romper elos, em muitos casos, buscava “perpetuar” um nome que poderia
circular numa mesma família em várias gerações. Também há que se destacar as
reflexões de Silvia Brügger que discorre sobre a via de mão dupla que o batizado
engendrava, pois “tanto os padrinhos podiam beneficiar-se dos trabalhos, dos
préstimos e da fidelidade dos afilhados quanto estes esperavam contar com o
cuidado, a proteção e o reconhecimento daqueles”18. Frisou ainda que as relações
de parentesco ritual não eram homogêneas, isto é, um indivíduo poderia “apa LÓPEZ, Pilar Muñoz. op. cit. p. 24.
FARINATTI, Luís Augusto E. Sobre a cinza da mata virgem lavradores nacionais na província do Rio Grande do Sul (Santa Maria, 1845-1880). Porto Alegre: PUCRS-PPGH, 1999, p. 258.
15
HAMEISTER, Martha D. Para Dar Calor à Nova Povoação: estudo sobre estratégias
sociais e familiares a partir dos registros batismais da Vila do Rio Grande (1738-1763). Rio de
Janeiro: UFRJ - Programa de Pós-Graduação em História Social, 2006, 474F. (Tese de Doutorado).
16
BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. 11ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
17
MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia: Ensaio sobre a dádiva - forma e razão da troca
nas sociedades arcaicas. São Paulo: EPU, 1974. Vol. II.
18
BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Escolhas de padrinhos e relações de poder: uma análise do
compadrio em São João Del Rei (1736-1850). In: CARVALHO, José Murilo de (org.). Nação e
cidadania no império: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007a, p. 338.
13
14 146
drinhar na mesma oportunidade um escravo e o filho de um rico minerador”19,
destarte, pessoas pertencentes a diferentes substratos sociais poderiam se tornar
próximas através das teias do parentesco simbólico.
Por estratégia Jacques Revel defende que “serve para qualificar, de maneira mais prosaica, os comportamentos dos atores individuais ou coletivos que
foram bem-sucedidos [...] mas sem perder as noções de fracasso, de incerteza e
de racionalidade limitada”20. Manuela Pedroza chamou atenção para os cuidados
inerentes ao se tratar as estratégias sociais a partir de um “desenrolar mecânico
de uma estrutura fixa de regras infalíveis a serem seguidas, mas sim como um
conjunto por vezes caótico de ações, onde jogadores devem transformar seus
lances a cada novo movimento no tabuleiro”21. Ao tratar das estratégias familiares Revel22 assinalou que “não podem ser compreendidas ao nível da família
tomada como unidade residencial”, mas deve-se pensar “em frentes familiares
formadas por unidades que não residem juntas, mas unidas por laços de parentesco consanguíneo, por alianças ou relações de parentesco fictícias”. Assim os
estratagemas serão de grande valia principalmente quando discutirmos os mecanismos de afirmação social adotados pelos agentes históricos que fazem parte
desta narrativa, entretanto vale salientar que as estratégias serão tratadas enquanto possibilidades de se conseguir algo sujeitas ao êxito ou ao fracasso.
Outra categoria a ser explicitada é a de rede, para isso nos filiamos à definição proposta por Cacilda Machado enquanto “um complexo sistema relacional que
permite a circulação de bens e serviços, tanto materiais como imateriais, dentro de
um conjunto de relações estabelecidas entre seus membros, que os afeta a todos direta ou indiretamente, ainda que de maneira desigual”23. Outro aspecto pertinente
foi apontado por Ramella ao propugnar que, “las implicaciones metodológicas y teóricas
de la noción de red social están hoy, directa o indirectamente, en el centro del trabajo de
revisión que se ha abierto en amplios sectores de las ciencias sociales”24. Do ponto de
BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas patriarcal: família e sociedade (São João Del Rei Séculos XVIII e XIX). São Paulo: Annablume, 2007b, p. 382.
20
REVEL, op. cit., p. 26.
21
PEDROZA, Manoela da Silva. Capitães de bibocas: casamentos e compadrios construindo redes sociais originais nos sertões cariocas (Capela de Sapopemba, freguesia de Irajá, Rio de
Janeiro, Brasil, século XVIII). Rio de Janeiro: UFRJ, 2008. Revista Topoi, vol. 9, n.° 17, jul.-dez.
2008, p. 69. Disponível em www.revistatopoi.org/ acessado em 02/2010.
22
In: LEVI, Giovanni. Herança Imaterial: A Trajetória de um Exorcista no Piemonte do
Século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 30.
23
MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: Negros, pardos e brancos na produção da
hierarquia social do Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008, p. 18.
24
RAMELLA, Franco. Por un uso fuerte del concepto de red en los estudios migratorios. In:
BJERG, María e OTERO, Hernán. Inmigración y redes sociales en la Argentina moderna.
Tandil: CEMLA-IEHS, 1995, p. 10.
19 147
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
vista analítico elas podem se constituir em poderosa ferramenta permitindo “al mismo
tiempo, el recorte analítico y la restituición de la unidad ambigua de las cosas” refletindo
sobre “la frontera entre la descripción y la elaboración de modelos”25, um mecanismo
operativo que possibilita “medir y representar las relaciones entre individuos […] que
tiende a valorar más los aspectos cualitativos de las relaciones”26.
Dentro do processo de construção de uma micro-história intensiva e nominativa partindo do pressuposto que a família era um importante instrumento no mundo
rural e que o compadrio permitia à criação de um capital social ligado a formação de redes, abriremos espaço para os nomes de outros indivíduos que fizeram parte do círculo
de convivência do personagem que de certa forma assume a condição de pedra angular
deste texto. Objetivando desenvolver um rápido exercício a partir do desafio proposto
por João Fragoso de “afogar-se em nomes”. Isto é, ao investigar o sujeito em diferentes
tipos de fontes e ambientes abre-se a porta para que outros nomes também participem
da trama, podendo chegar assim “às relações sociais vivenciadas pelos sujeitos e, ao
mesmo tempo [...] o entendimento de sua sociedade”27, buscando desta forma, verificar
o tramado social. Por conseguinte, “el análisis de redes de vínculos primarios constituye
un adecuado instrumento para reconstruir la articulación de agentes sociales, pertinente
para comprender la acción colectiva que generan las relaciones mutuas en el interior de
configuraciones cambiantes”28. Para isso, realizaremos o cruzamento da documentação
eclesiástica com os registros cartoriais (certidões, escrituras, procurações e registros de
imóveis) e autos de qualificação da Guarda Nacional, para tentar compreender que tipo
de conexões o compadrio firmou ou sedimentou, buscando traçar um “perfil” de alguns
desses compadres e analisar que tipos de vínculos se mantiveram após o estabelecimento do parentesco espiritual29.
MOUTOUKIAS, Zacarias. Narración y análisis en la observación de vínculos y dinámicas
sociales: el concepto de red personal en la historia social y económica In: BJERG, María e
OTERO, Hernán. Inmigración y redes sociales en la Argentina moderna. Tandil: CEMLAIEHS, 1995, p. 227.
26
MITCHELL apud IMÍSCOZ, José Maria. Actores, redes, procesos: reflexiones para una
historia más global. Revista da Faculdade de Letras. História III série, vol. 5, 2004. p.122.
27
FRAGOSO, op. cit. p. 62.
28
MOUTOUKIAS, op. cit., p. 238.
29
Foram usados os seguintes documentos da Guarda Nacional na tentativa de apurar os ofícios, estabelecer o local de moradia e principalmente para observar a presença ou não de patente
militar.
AHRS, Qualificação Guarda Nacional. São Gabriel, a. 1872, m. 59.
Idem, a. 1873, m. 58.
Ibidem, a. 1874, m. 60.
AHRS, Quadro da força Guarda Nacional. São Vicente, a. 1886, m. 60.
Idem, a. 1894, m. 63.
APERS, Livros notariais de transmissões e notas. São Vicente do Sul, 1º tabelionato, a.1890, liv. 04.
Idem, Livros notariais de transmissões e notas. São Vicente do Sul, 1º tabelionato, a. 1893, liv. 08.
25
148
O séquito de compadres: diferentes ofícios, objetivos comuns
Com o intuito de apurarmos quem eram esses sujeitos que faziam parte
do grupo de compadres do estancieiro Randolpho elaboramos um quadro e duas
tabelas buscando assim desenvolver um exercício metodológico de quantificação
e paralelamente articular as tendências sugeridas pelos números a situações que
envolveram esses personagens no que toca a busca de notoriedade social.
Ao olharmos somente as figuras masculinas e tendo Randolpho como
parâmetro, constatamos que ele detinha vinte e sete compadres, conforme pode
ser visto no quadro que segue, onde se destaca a ocupação profissional, se havia
uma relação anterior ao apadrinhamento, se os indivíduos desempenharam alguma
função militar e o local de moradia, tentando caracterizar possíveis relações de vizinhança. Quanto àqueles atores históricos que apresentaram divergência para o local de moradia escolhemos o local que foi mencionado mais de uma vez. O mesmo
vale para a questão profissional, as diferenças que surgiram nos documentos onde
um mesmo indivíduo aparece desempenhando atividades diferentes, nos levaram
a optar pela ocupação que apareceu o maior número de vezes. Esses desencontros
no tocante ao exercício profissional podem estar relacionados a ocupações múltiplas, realização paralela de mais uma atividade30, a equívocos dos qualificadores,
ou no decurso da vida o personagem pode ter trocado de ofício. Ainda há que se
destacar que a documentação relativa às qualificações da Guarda Nacional longe
de ser um censo fidedigno ou algo semelhante a uma lista nominativa se constitui
numa fonte sujeita a todo tipo de manipulação, uma vez que, poderiam comportar
grande possibilidade de fraude, pois laços clientelares31 podiam influenciar na preIbidem, Livros notariais de transmissões e notas. São Vicente do Sul, 1º tabelionato, a. 1894, liv. 09.
Ibidem, Livros notariais de transmissões e notas. São Vicente do Sul. 1º tabelionato, a. 1895, liv. 10.
Ibidem, Livros notariais de transmissões e notas. São Vicente do Sul, 1º tabelionato, a. 1896, liv. 12.
Ibidem, Livros notariais de transmissões e notas. São Vicente do Sul, 1º tabelionato, a. 1897, liv. 14.
Certidão de casamento de Quirino Alves da Silva e Rita Alves Machado. Tabelionato de
registros públicos de São Vicente a. 1907, liv. 01, ff. 67v. e 68r., n.° 127.
Certidão de óbito do capitão João Antonio de Oliveira. Tabelionato de registros civis de
Mata a. 1912, liv. 1-c, ff. 81v., n.° 30.
Livros de transcrições e transmissões: 3A, 3B, 3C, 3D, 3E, 3F, 3G, 3I, 3J, e 3L. Tabelionato de registros de imóveis de São Vicente do Sul. a. 1920-1955.
30
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de
sombras: a política imperial. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
31
Quanto à dinâmica do clientelismo a entendemos enquanto sistema que fazia com que “todas as relações sociais consistissem numa troca de proteção por lealdade, o que acentuava a hierarquia social e
promovia, como fim último, o controle social, já que lealdade significava também obediência e, porque não dizer,
submissão” (GRAHAM, 1997, p. 16). Pilar Leiva defendeu que uma das principais contribuições
para os estudos históricos das redes clientelares de cunho vertical estaria ligada a condição de
que elas apontam que, mesmo havendo hierarquias sociais, se “establece una conexión entre los podero-
149
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
sença dos nomes de alguns homens. Do mesmo modo, a renda anual tendia a ser
largamente arbitrária e não serve para estimar uma hierarquia de riqueza confiável,
mas diante da impossibilidade de trabalhar com os inventários post-mortem de São
Vicente usamos as qualificações de forma especulativa para observar as hierarquias
sociais presentes na milícia cidadã.
Quadro 1 - Ofícios, locais de moradia, relações de parentesco e patente militar
nas redes de compadrio
Compadres
Antonio Alves Machado
Basílio José da Silva Pereira
Boaventura José de Quadros
Candido Ferreira da Trindade
Domingos Rosa
Felisberto d’Alencastro
Galdino Candido da Costa
Honorio d’Oliveira Sanches
Jenuino Machado de Bittencourt
Jerônimo Pereira de Quadros
João Alves Machado
João Antonio de Oliveira Filho
João Ignácio Nunes
João Victorino Filho
Joaquim Machado Vieira
José Antônio Rodrigues Evangelho
José da Silva Pereira
José Canabarro Filho
José Fernandes Junior
José Crispim Jardim Fernandes
Manoel José de Serqueira
Manuel Eneas Flores
Martimiano Eggres da Costa
Ofícios
Local de moradia
Relação de
parentesco
anterior ao
compadrio
Patente
militar
Lavrador
Lavrador
Rincão dos Alves
10° quarteirão
Cunhado
Irmão
Criador
Lavrador
Lavrador
Agências
Criador
Criador
Criador
Criador
Negociante
Agências
Lavrador
Lavrador
Lavrador
Criador
Lavrador
Lavrador
Oleiro
Criador
9° quarteirão
9° quarteirão
9° quarteirão
2° quarteirão
8° quarteirão
Rincão dos Alves
Rincão dos Alves
4° quarteirão
7° quarteirão
7° quarteirão
1° quarteirão
São Rafael
10° quarteirão
São José
São José
9° quarteirão
5° quarteirão
São José
Cunhado
Cunhado
Filho
Genro
Sobrinho
Genro
Sargento
Tenente
coronel
Cabo
Sargento
Capitão
Capitão
Coronel
Capitão
Tenente
Major
Capitão
Capitão
Capitão
sos y las capas inferiores de la sociedad” (2007, p. 03), através da qual “se trata de una relación que implica
unas pautas de comportamiento, de intercambios y de obligaciones más o menos explícitos” (IDEM), onde os
clientes não devem ser vistos como meros joguetes nas mãos de seus patrões, mas devem ser
pensados enquanto pessoas que, ao escolherem em que malha da rede iriam se inserir exercitavam o seu poder de barganha obtendo os maiores ganhos possíveis.
150
Quirino Alves Machado
Rufino L. Fernandes
Zeferino Alves Machado
Zeferino da Silva Pereira
Lavrador
Lavrador
Criador
São Rafael
10° quarteirão
São Xavier
Cunhado
Sogro
Filho
Capitão
-
Fonte: Registros religiosos, registros cartoriais (certidões de casamento, óbito, escrituras, procurações e registros de imóveis) e Guarda Nacional (qualificação e quadro da força).
No que tange as relações familiares Randolpho converteu em compadres o sogro (Zeferino Alves Machado), o irmão (Basílio José da Silva Pereira),
os cunhados (João Antonio de Oliveira Filho, Antonio, Quirino e João Alves Machado), os filhos (José e Zeferino da Silva Pereira) e fora convidado para servir de
padrinho pelo sobrinho Manuel Eneas Flores, pelos genros José Canabarro Filho
e Martimiano Eggres da Costa. Desta forma, onze entre os vinte e sete compadres
que formavam o grupo já possuíam algum tipo de relação de parentesco anterior,
afim e ou sanguínea, que fora ratificada mediante o estabelecimento do parentesco
ritual. Mas além da ratificação dos laços familiares percebe-se um sentimento de
reforço das conexões com os vizinhos, pois pelo menos dezesseis compadres viviam nas imediações de São Rafael, estabelecimento produtivo onde ficava a casa
de moradia do estancieiro. O distrito de São Vicente até o ano de sua emancipação
(1883) era subdivido em dez partes, Randolpho e boa parte de seus compadres
eram moradores do nono e do décimo quarteirão32.
Também foi possível observar a ocupação profissional de vinte e três
compadres, onze deles desenvolviam a atividade de lavrador, outros oito desempenhavam a função de criador, dois viviam de suas agências33, um ganhava a vida
Após o estabelecimento do novo município, surgiram novas expressões para os locais de residência, desta forma os moradores do 9° quarteirão passaram a viver nas localidades de Rincão
dos Sanches (depois Demétrio Ribeiro), São Xavier e Rincão dos Alves. Situação semelhante
ocorrera com aqueles que habitavam o 10° quarteirão que passaram a ser designados como
ocupantes das localidades de São Rafael, Rincão dos Weis, São Miguel e São José.
33 O termo agência é de difícil definição, aparecendo muitas vezes acompanhado de outras
profissões. O dicionário Moraes Silva (1813, p. 806) indica agência como “trabalho, indústria,
grangearia, modo de ganhar a vida. Administração; solicitação de algum negócio”, e também “procurar, tratar
negócio alheio, como agente deles” Adhemar Lourenço da Silva Junior (2004, p.200) trata da dificuldade em definir os status e ocupações específicas de cada ofício indicado. Ele inseriu, mesmo
que com ressalvas, os que “viviam de agência (seja qual for o sentido da expressão)”, entre os pobres
sem qualificação profissional. Usando as informações dadas por um funcionário encarregado de
várias estatísticas no município de Pelotas, Adhemar reforça seu argumento, já que este explica
que “sob o título de ‘Diversas’ estão compreendidos todos aqueles que vivem de agência e que não têm profissão
reconhecida”. Jonas Vargas (2010) chega à idêntica conclusão ao analisar a lista de votantes de
1880, da paróquia do Rosário, de Porto Alegre. Assim, mesmo que admitamos que possa haver
uma pequena variação entre o universo urbano e o rural (mesmo em um período em que os
mesmos eram intercambiáveis), podemos conjecturar que agência era referencia profissional de
32
151
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
como oleiro e havia outro que era negociante. A fim de melhor articular a questão
das profissões e da renda, elaboramos as tabelas que seguem, onde estão expressos
os ofícios e os valores pelos quais foram qualificados os cidadãos do 4° distrito de
São Gabriel em 1873, local onde vivia a maior parte desses indivíduos.
Tabela 1 - Profissão pela qual foram qualificados os cidadãos do 4° distrito
Agências
Carreteiro
Criador
Lavrador
Negociante
Outras
Total
135
28
52
108
14
65
405
33,33%
6,91%
12,83%
26,66%
3,45%
16,82%
100%
Fonte: Qualificação da Guarda Nacional. São Gabriel, a. 1873, m.58.
Tabela 2 - Renda em mil réis pela qual foram qualificados os cidadãos do
4° distrito
100-200
300-400
500-700
800-900
1:000$000
Total
239
133
26
4
3
405
59,01%
32,84%
6,43%
0,98%
0,74%
100%
Fonte: Qualificação da Guarda Nacional. São Gabriel, a. 1873, m.58.
É possível observar na tabela 1, que entre as profissões mais citadas,
destacaram-se aqueles que viviam de agências (33,33%), seguida pelos lavradores
(26,66%) e em terceiro lugar os criadores (12,83%), os carreteiros (6,91%) e negociantes (3,45%). As demais profissões que aparecem na tabela que foram expressas
sob a denominação de outras, correspondente a 65 indivíduos, são os ofícios de
carpinteiro, pedreiro, capataz, ferreiro, sapateiro, caixeiro, oleiro e fazendeiro que
em termos percentuais chegaram a 16,82%. É mister dizer que esses números representam de forma parcial as gentes que viviam no distrito de São Vicente, pois
não abarcavam todos os homens que habitavam a localidade. Neles não aparecem
os sujeitos que não conseguiam ganhar os 100$000 de réis anuais, valor mínimo
exigido pela lei, ou aqueles que por inexistência de documentação a fim de comprovar a renda também não puderam se qualificar. Dos quatrocentos e cinco cidadãos aptos a servirem na milícia, tanto no serviço ativo como na reserva, duzentos
e trinta e nove (59,01%) foram qualificados com renda inferior a 200$00034, sendo
setores sociais subalternos ou medianos. Eram indivíduos que se ocupavam em atividades diversas, sendo parte delas concentrada na ação como intermediários (principalmente em atividades
mercantis), sempre como “agentes” de terceiros tratando “negócio alheio”.
34
Segundo Jonas Vargas “a maneira mais comum de se provar a renda era através de pagamento de imposto
de profissão ou indústria, de anexo de bens recebidos em inventário ou de registro de compra de imóvel rural ou
152
a ampla maioria composta por lavradores e pessoas que viviam de suas agências,
mas se somarmos também os cento e trinta e três que foram agrupados na segunda
coluna da tabela 2 chegamos a 91,85% dos milicianos. Dos dezessete compadres
que foi possível observar a renda, dezesseis ficaram dentro deste percentual, sendo
que o ganho mais comum, nove casos, foi de 300$000, aliás, esse também foi o
valor pelo qual o próprio Randolpho foi qualificado.
Conforme demonstrado no quadro 1 o estancieiro possuía dois compadres que vivam de suas agências, em relações de apadrinhamento onde ele fora escolhido para servir como pai espiritual, possivelmente essas conexões representaram redes verticais para baixo, uma vez que os indivíduos foram qualificados com
o valor mínimo. No mesmo quadro é possível visualizar que cerca de 40,7% dos
compadres desempenhava a função de lavrador, e com exceção de José Antônio
Rodrigues do Evangelho, morador do 1° quarteirão, todos os demais eram moradores do nono e décimo quarteirão. Ao olharmos especificamente para esses dois
locais, algo chama atenção, 50% de todos os lavradores que foram qualificados junto ao distrito de São Vicente eram habitantes daqueles pontos, ou seja, de um total
de cento e oito agricultores presentes na lista, cinquenta e nove deles ocupavam
aqueles lugares. Uma possível explicação talvez fique por conta de que as referidas
localidades eram em boa parte áreas de relevo acidentado, o que a princípio não
favorecia muito o desenvolvimento da pecuária extensiva e desta forma, talvez não
tenha despertado o mesmo interesse que os grandes proprietários demonstravam
por terras de menor declive, proporcionando, desse modo, que pessoas de menor posse
se estabelecessem e explorassem os referidos sítios. Tais como Honório d’Oliveira Sanches, conforme declarado nos registros paroquiais de terras sua família era detentora de
“huma posse mansa e pacifica nos matos da Serra Geral no Districto de Sam Vicente
municipio de Sam Gabriel no lugar denominado Sam Xavier35. Em 1878 Randolpho se
tornou seu compadre por ocasião do batizado de Marcelino36. A condição humilde de
Honório foi pensada pela pequena gleba de terras que possuía e nas três qualificações a
que tivemos acesso da Guarda Nacional, o nome do lavrador figurou somente na que
urbano. O cálculo sobre o valor dos bens de raiz é que definia se o requerente estava apto para ser eleitor ou não.
Somava-se o valor das terras ou imóveis e calculava-se 6% do mesmo” (2010, p. 168).
35
APERS, Registros Paroquiais de Terras. São Gabriel, a. 1856, liv. 47, ff. 68, n.° 320. A
serra de São Xavier é o modo como é chamada a Serra Geral (SAINT-HILAIRE, 1987, p. 393),
local onde Luís Farinatti (1999), em seu estudo sobre a paisagem agrária de Santa Maria da Boca
do Monte, entre 1845 a 1880, percebeu expressiva presença de homens e mulheres que fizeram
da lavoura de alimentos uma forma alternativa de sobrevivência e, em alguns casos, encontraram uma possibilidade de prosperar.
36
MITRA DIOCESANA DE SANTA MARIA, Registro de batismo de Marcelino. São
Vicente, a. 1878, liv. 1, ff. 56, n.º 157.
153
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
foi produzida em 187437. Cacilda Machado ao estudar as relações assimétricas que envolviam o estabelecimento do parentesco espiritual junto à freguesia de São José dos Pinhais, no final do século XVIII e início do XIX, defendeu que “ser compadre de alguém
também significava estar em boa amizade. Pois a casa de um compadre passava à condição de território amigo, ou familiar, onde o outro compadre e sua família teriam trânsito
livre”38. Parece-nos que este batizado configurou, por parte de Randolpho e sua esposa
Joaquina, uma relação vertical para baixo, que buscava entre os subalternos formas de
consenso e legitimação, criando de certa forma um espírito de coesão. Já do ponto de
vista de Honório e de sua consorte Paulina os papéis se inverteram, pois ligar-se a “pessoas situadas num patamar superior da hierarquia social representava um mecanismo
de ascensão”39, simultaneamente criar laços morais com pessoas de recursos poderia
significar proteção para si e para seus filhos diante de situações adversas, tais como os
frequentes recrutamentos e mobilizações militares da população sul-riograndese para
compor as tropas de primeira linha no decorrer do século XIX40. Este tipo de relação
de apadrinhamento nos sugere que “nos interstícios dos sistemas normativos estáveis
ou em formação, grupos e pessoas jogam uma estratégia significativa própria, capaz de
marcar a realidade” que de forma alguma impedem “as formas de dominação”, mas
eram capazes de “condicioná-las e modificá-las”41.
Durante as discussões sobre a instalação de uma linha regular de navegação a vapor, proposta por Augusto Cavamartori junto à câmara de São Gabriel,
ligando o 4° distrito até o povoado de Uruguaiana, no ano de 1876, os camaristas
argumentaram que tal linha iria dar ainda mais “vida e animação à agricultura” no
município de São Gabriel. Com o objetivo de justificar a viabilidade do projeto
os vereadores enviaram a presidência da província um relatório onde destacavam
alguns dados ligados a fabricação de farinha de mandioca. A produção girava em
torno de 10.000 alqueires-ano que era “toda exportada para fronteira por água e
por Serra [...] sendo que cada barco transportava de 6 a 10 cargas cada um [...] além
disso grande quantidade de milho, feijão e madeiras”42. Tanto os documentos da
câmara quanto as qualificações da Guarda Nacional nos sugerem que a agricultura
tinha importância junto ao 4° distrito, mais do que isso, muitas famílias labutavam
nessa atividade e ela deveria figurar como uma das principais fontes de renda para
aqueles lavradores. Revelando-nos um panorama bem diferente daquele proposto
39
40
41
42 37
38
AHRS, Guarda Nacional. São Gabriel, a. 1874, m. 60.
MACHADO, Cacilda. op. cit., p. 198.
BRÜGGER, op. cit. 2007a, p. 321.
FERTIG, André. Clientelismo político em tempos belicosos. Santa Maria: UFSM, 2010.
LEVI, op. cit., p. 45.
AHRS, Correspondências da câmara. São Gabriel, a. 1875, cx. 207, m. 243, ff. 06.
154
por Gampert43, Malgarin44, Malfatti e Agostini45 que deram pouca evidência ou
simplesmente negligenciaram esses sujeitos históricos ao propalar que o desenvolvimento da atividade agrícola junto ao Vale do Jaguari como um todo só teria ocorrido após o estabelecimento dos imigrantes europeus no final do século XIX46.
Feitas essas considerações a respeito do modus vivendi desses lavradores, passaremos
a apresentar outras situações que envolveram outros compadres que ganhavam à
vida dedicando-se a outras fainas.
Queremos também apresentar as relações firmadas entre Randolpho e Jeronimo Pereira de Quadros. Redes de compadrio construídas por dois vizinhos
que se dedicavam ao ofício de criador 47, profissão desenvolvida por oito indivíduos
conforme aparece no quadro 1. Em 1866 se tornaram compadres quando Randolpho batizou sua filha Christina48, pois bem, passados dez anos inverteram-se
os papéis, quando por ocasião do batizado de Randolfo Filho tendo na pessoa de
Jeronimo seu “pai espiritual”49. Entendemos que os registros nos mostram muito
GAMPERT, Otto. Jaguari -350 anos de história -1632-1982. Santa Maria: Editora do
autor, [1982].
44
MALGARIN, Volmar Antonio et al. Síntese histórica de Mata. Mata: Arquivo da Prefeitura Municipal de Mata, 1984.
45
MALFATTI, Selvino Antonio e AGOSTINI, Lenir Cassel. Mata: ontem madeira, hoje
pedra. Santa Maria: UNIFRA, 2006.
46
Em seu trabalho sobre a imigração italiana desenvolvida entre a depressão central e o planalto gaúcho Cleto Vicente Durlo até admite a presença de posseiros na encosta da serra, não
obstante, segundo o autor estes últimos viviam somente da exploração de madeira e para que
os italianos se estabelecessem no núcleo de colonização de Jaguari “as autoridades governamentais
tiveram que enfrentar uma batalha judicial contra os posseiros” que se “consideravam donos das terras, mas
que legalmente eram consideradas devolutas, ou seja, de propriedade do governo” ((2009, p. 86-96). Dois
comentários se impõem, o primeiro é que de certa forma os trabalhadores anteriores a chegada
dos laboriosos italianos são apresentados de certa forma como parasitas, tendo em vista que
viviam exclusivamente da derruba de árvores e do comércio de madeira. Outra situação que
merece ser destacada é de que eles representavam uma espécie de estorvo e só depois da árdua
batalha judicial, que os expulsou daquelas terras, os colonos puderam finalmente se estabelecer
e cumprir seu “destino manifesto” de fazer aquelas áreas verdadeiramente produzirem.
47
Em relação ao ofício desenvolvido pelos compadres foi possível averiguar tal informação
através da documentação da milícia cidadã onde por três anos seguidos eles apareceram na
condição de criadores. Já a condição de proprietário e de vizinho de Jeronimo foi passível de
verificação mediante uma ação de demarcação da estância da Palma ponto de moradia da estirpe
dos Quadros.
AJC, Ação de demarcação e divisão da fazenda da Palma. São Vicente, a. 1897, cx. 344,
n.° 70.
48
MITRA DIOCESANA DE BAGÉ, Registro de batismo de Christina. São Gabriel, freguesia de São Vicente, a. 1866, liv. 8, ff. 150, n.º 249.
49
MITRA DIOCESANA DE BAGÉ, Registro de batismo de Randolfo. São Vicente, a.
1877, liv. 1 ff. 19, n.º 40.
43
155
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
mais do que uma simples troca de afilhados, nos fazem pensar em “una reciprocidad que emanaba de la buena voluntad y la amistad”50. Concomitantemente nos fazem pensar na herança imaterial de Randolpho que ao transmitir seu “bom nome”
a seu filho nos sugere que o nome próprio muito além de um constitutivo ligado
a personalidade de um indivíduo assumia a condição de um patrimônio familiar
suscetível a ser transmitido de geração a geração.
Em 1873, a terceira filha do casal Randolpho e Joaquina Alves da Con51
ceição foi batizada junto à capela de São Vicente Ferrer. Naquela feita, a menina Cândida52 teve escolhidos para servirem como seus “pais espirituais” sua tia
Cândida Victorino dos Santos e o irmão de sua madrinha João Victorino Filho,
este último um verdadeiro “especialista na arte de apadrinhar”. Entre os registros
da capela, depois matriz, de São Vicente, arquivados na Mitra de Bagé e de Santa
Maria, contam-se dezenas de assentos onde seu nome é citado na condição de
padrinho, sugerindo que ele detinha uma posição de prestígio no contexto de uma
vizinhança alargada. Os autos de qualificação da Guarda Nacional sugerem que o
negociante despontava como um dos homens melhor situados economicamente
daquelas paragens. Entre os quatrocentos e cinco cidadãos, ver tabela 1, que foram
qualificados para o serviço ativo e para servirem na reserva em 1873, junto ao 4°
distrito de São Gabriel, João Victorino Filho foi qualificado com renda equivalente
a 500$00053. No caso específico dos negociantes, profissão desempenhada pelo
LEVI, Giovanni. Reciprocidad mediterránea. Tiempos Modernos: Revista Electrónica
de Historia Moderna n.º 7. 2002, p. 109. Disponível em http://www.tiemposmodernos.org/
acessado em 03/2010.
51 MITRA DIOCESANA DE BAGÉ, Registro de casamento de Randolpho José da Silva
Pereira e Joaquina Alves da Conceição. São Gabriel, freguesia de São Vicente, a. 1868, liv. 4,
ff. 82v., n.º 33. Os nubentes haviam se unido em matrimônio em 10 de outubro de 1868 junto
à capela de São Vicente e o consórcio representou a sedimentação de vínculos de vizinhança.
Permaneceram casados até o ano de 1907 quando ocorreu o falecimento de Joaquina quando
ela contava com 56 anos de idade, sendo que do referido consórcio nasceram quinze filhos.
Pouco depois Randolpho arranjaria uma nova esposa, no entanto, desta segunda união com
Alsira Mello não resultou em nenhuma criança. O estancieiro faleceu em 1914, aos setenta e três
anos de idade, junto à estância de São Rafael, deixando para seus herdeiros um patrimônio, em
termos de bens materiais, mediano.
Tabelionato de registros civis de Mata. Certidão de óbito de Joaquina Alves da Silva. a. 1907,
liv.1, ff. 47, n.° 161.
Tabelionato de registros civis de Mata. Certidão de óbito de Randolpho José da Silva Pereira. a. 1914, liv.1-c, ff. 90v., n.° 04.
52
AJC, Inventário post-mortem de Randolpho José da Silva Pereira. São Vicente, a.
1914, cx. 361, n.° 114.
MITRA DIOCESANA DE BAGÉ, Registro de batismo de Cândida. São Gabriel, freguesia
de São Vicente, a. 1873, liv. 10a, ff. 292, n.° 01.
53
AHRS, Guarda Nacional. São Gabriel, a. 1873, m. 58.
50
156
personagem citado anteriormente, se tratavam, em sua maioria, de homens com
menos de quarenta anos. Foram somente quatorze indivíduos que em termos percentuais representaram apenas 3,45%, mas apresentaram os maiores valores em
termos de renda. Para se ter uma ideia a menor qualificação entre os comerciantes
ficou por conta de João Victorino Filho e de Cândido José da Silva Pereira, irmão
mais velho do personagem que nos empresta o nome para trilarmos a senda da
onomástica, que foram apresentados com meio conto de réis, mas na categoria
daqueles que viviam de mercadejar apareceram três indivíduos que chegaram a
1:000$000 (ver tabela 2).
João Victorino Filho talvez seja um dos poucos compadres de Randolpho
que podem ser inseridos na categoria de elite54. O referido personagem, além da
atuação no campo da economia, também galgaria projeção política e militar dentro
do Vale do Jaguari, ao conseguir em pelo menos uma oportunidade ser escolhido
como eleitor de 2° grau num seleto grupo de quatorze cidadãos de São Gabriel.
Naquela feita suplantando, em nove votos, o poderoso Barão de Cambay, uma
das principais lideranças políticas dos conservadores em São Gabriel e em toda a
região da campanha55. Quanto ao poder militar João Victorino, no início da década
de 1890, ascenderia ao cargo de coronel do 36º regimento de cavalaria sediado
em São Vicente. Desta forma, do ponto de vista de Randolpho, o compadrio com
esse membro da elite local representou uma relação vertical para cima, estabelecida
junto a um homem situado “socialmente num patamar superior”56. Ao se inserir
na rede de aliados de um poderoso, o estancieiro teve a seu “dispor [...] mais re Segundo Fábio Kühn (2006) os três atributos básicos para a definição de elite estariam relacionados à riqueza, status e poder. Flávio Heinz entende que “trata-se de um termo empregado em um
sentido amplo e descritivo, que faz referência a categorias ou grupos que parecem ocupar o ‘topo’ de ‘estruturas
de autoridade ou de distribuição de recursos’”. Ou seja, “os dirigentes, as pessoas influentes, os abastados ou os
privilegiados”. Destarte, as elites são definidas pela “detenção de um certo poder ou então como um produto
de uma seleção social ou intelectual”, o estudo da referia categoria social “seria um meio de determinar
quais os espaços e os mecanismos do poder nos diferentes tipos de sociedade ou os princípios empregados para o
acesso às posições dominantes” (2006, p. 7-9), isto é, as estratégias que esses grupos se valem para se
sentirem e serem reconhecidos enquanto a fina flor da sociedade. Cristina Cancela ao tratar das
elites paraenses no final do século XIX e nas três primeiras décadas do XX demonstrou que:
“embora a fortuna lhes abrisse a possibilidade de participação no universo restrito da elite [...] nem sempre ela era
garantia de prestígio e reconhecimento. Fazia-se fundamental unir à riqueza a outros fatores como nome e tradição familiar [...] Deve-se aliar a estas prerrogativas a capacidade de mostrar-se e ser reconhecido como pertencente
a uma determinada classe social, ter um status diferenciado. Elementos como comportamento, modos de falar,
relacionamentos estabelecidos, roupas e educação constituem-se em alguns dos predicados que expressam a forma
pela qual as pessoas se reconhecem na sociedade, determinam seu lugar, o qual deve não apenas ser mapeado por
si, mas também pelos demais. Essa espécie de capital simbólico é tão fundamental quanto o conjunto de bens e
riqueza mantidos pelos indivíduos” (2009, p. 28).
55
AHRS, Eleições. São Gabriel, a. 1871, cx. 205, m. 242.
56 BRÜGGER, Silvia. op. cit., 2007b, p. 286.
54
157
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
cursos – não só financeiros, mas também políticos e de prestígio”57. O que nos faz
especular que, mesmo não sendo um notável, havia canais que lhe possibilitavam
chegar até a esses estratos superiores na hierarquia social. Talvez estejamos diante
daquela situação proposta por Jaqueline Lalouette que apregoa a possibilidade do
conceito também ser estendido para além da “fina flor da sociedade”, abarcando
“também a uma camada média de elites subordinadas [...] que mantêm relação de
subordinação com estratos cimeiros”58.
Outra rede de parentesco simbólica firmada por Randolpho e que sedimentou laços de vizinhança, deu-se com o major José Fernandes Junior, eles se
tornaram compadres em maio de 1891, mediante o batizado de Maria59. O referido
militar e sua esposa Christina Alves Jardim Fernandes eram moradores da localidade de São José, espaço vizinho a São Rafael. O local de moradia foi apurado através
de uma escritura de compra de duas datas de matos junto a serra de São Xavier60.
Num negócio no mínimo curioso, pois num intervalo de oito dias o major comprou e vendeu a mesma porção de terra pelo valor 400$00061. A peculiaridade reside no fato de que a primeira transação ocorreu quando ele adquiriu a propriedade
de Dona Francisca Pereira Pinto, matriarca dos Silva Pereira e mãe do personagem
central desta história. Pouco depois negociou o quinhão de terras com Randolpho.
A menos que tenha surgido algum imprevisto, que motivou o futuro compadre a
se desfazer das duas datas de matos, nos parece que ele atuou como uma espécie
de intermediário.
No referido assento atentamos também para o título registrado pelo pároco, o padrinho ostentava a patente militar de major reformado, o que sugere que
o batizado da ulltimogenita representou, além do reforço das redes de vizinhança,
a inserção na rede de um oficial graduado. Renato Pinto Venâncio62 aponta que a
presença de expressões ligadas a algum tipo de prestígio social eram importantes
indicadores para se ter um panorama das malhas sociais em que os agentes históricos
estavam inseridos. O interessante é que ao olharmos os assentos de batismo em que
ele se fez presente até o ano de 1890, em apenas duas oportunidades se fez menção
Idem
LALOUETTE, Jacqueline. Do exemplo a série: história da prosopografia. In: HEINZ,
Flávio M. Por outra história das elites. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 70.
59
MITRA DIOCESANA DE SANTA MARIA, Registro de batismo de Maria. São Vicente, a. 1891, liv. 4, ff. 12v., n.° 35.
60
APERS, Livros notariais de transmissões e notas. São Vicente do Sul, 1º tabelionato, a.
1890, liv.4, ff. 63 - 65r.
61
Idem, ff. 55 - 57r.
62
VENÂNCIO, Renato Pinto [et. al]. O compadre governador: redes de compadrio em Vila
Rica de fins do século XVIII. São Paulo: Revista Brasileira de História, 2006, vol. 26, n.° 52.
Disponível em www.scielo.br/ acessado em 06/2010.
57
58
158
à patente militar que ele ostentava, quando isso ocorreu pela primeira vez foi citado ocupando o posto de capitão e pouco depois como major reformado, de certa
forma nos parece que talvez estejamos diante de uma nova dinâmica em relação à
valorização dos oficiais do exército brasileiro após a proclamação da república em
188963. Outra situação interessante que fecha os pontos da teia foi percebida a partir
do batizado de Junia, filha legítima do Major Fernandes e de Cristiana A. Jardim que
teve como “pais espirituais” João Victorino Filho e sua esposa Carolina da Silva Victorino64. Portanto, Randolpho era compadre de João Victorino e do Major Fernandes
que, paralelamente, também haviam estabelecido laços através do parentesco fictício.
Considerações finais
Ao trilharmos a senda da micro-história, com ênfase na onomástica e no
paradigma indiciário, tratamos das relações de compadrio firmadas pelo estancieiro
de posses medianas Randolpho José da Silva Pereira junto a outras famílias residentes no Vale do Jaguari enquanto estratégias familiares estabelecidas com o intuito
de obter reconhecimento social. Ao construir o tramado analisamos o tecido social
e a configuração de cadeias tanto de caráter horizontal, entre pessoas situadas num
mesmo extrato, e as verticais, malhas diádicas firmadas entre estirpes que ocupavam
diferentes patamares na hierarquia social. Ao traçarmos um perfil desses personagens, demos ênfase às redes de vizinhança, as conexões firmadas junto aos militares
e as teias profissionais.
Desta forma, evidenciamos a inserção junto aos lavradores, função predominante entre os compadres de Randolpho, buscando não só caracterizar a dinâ A bem da verdade essa maior evidência do exército já vinha ocorrendo desde o final da guerra com o Paraguai. Antes, porém, ser um oficial que servia no exército não possuía o mesmo
“glamour” que ser oficial da Guarda Nacional, conforme aponta José Iran Ribeiro, pois era “um
sinal de status político e social [...] um reconhecimento público de que o indivíduo era um cidadão ativo naquela
sociedade, comprometido com a ordem estabelecida, e não um desordeiro” (2005, p. 191). Enquanto junto
à milícia cidadã os guardas nacionais passavam por um processo de qualificação, os praças do
exército eram recrutados “quase sempre pela força, ou a laço, como se dizia na época” (CARVALHO,
1980, p. 148). Na maioria das vezes, o recrutamento recaía sobre “elementos insubmissos e que, a
fim de não perturbarem mais o sossego público” eram “recrutados como uma forma de punição e controle (ou
correção). Serviço militar no Exército ou Armada, que atingia quase que unicamente as camadas mais baixas
da população, não era visto como um prêmio ou uma prova de coragem, mas como castigo exemplar” (MOREIRA, 2009, p.46). Desta forma, “ao sujeitar os indivíduos à dura disciplina militar” esperava-se “podar
os maus instintos, os vícios da ociosidade e do crime” (IDEM p.48). Assim, muitos homens usavam “o
Exército como a Polícia como refúgio; o alistamento podia encobrir a condição de cativo ou um passado criminoso” (IBIDEM, p. 67). Ao mesmo tempo eram símbolos de poder o “fardão vistoso, os passamanes
de ouro e prata [...] os bonés galantes, o coruscar das dragonas, o tintinar das espadas roçagantes” (VIANA,
2005, p. 218).
64
MITRA DIOCESANA DE SANTA MARIA, Registro de batismo de Junia. São Vicente,
1892, liv. 4, ff. 26v., n.° 49.
63
159
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
mica das redes sociais, mas também destacar a presença deles junto a Serra Geral,
bem como a importância que possuíam na economia num primeiro momento de
São Gabriel depois para São Vicente. Destacamos as relações tecidas junto aos
setores menos privilegiados economicamente através da relação de apadrinhamento de Marcelino, filho do posseiro Honório, nos sugerindo que ao trançar
urdiduras com os subalternos buscava-se uma aproximação de diferentes estratos sociais a partir do parentesco ritualizado.
Ainda no tocante as profissões, discorremos sobre as relações de parentesco espiritual firmadas por nosso personagem principal com o criador Jeronimo Pereira de Quadros, atividade econômica que naquele momento propiciava
as condições materiais de sobrevivência aos dois compadres. A troca bilateral de
afilhados foi tratada enquanto um processo gerador de uma solidariedade entre
pares (não só pela atividade profissional em comum mas pelo fato de entendermos que se tratavam de famílias de condição social semelhante) onde o apadrinhamento serviu para aproximar e solidificar laços de vizinhança.
Por fim debruçamo-nos sobre as relações de compadrio firmadas junto
aos militares num processo de aproximação de pessoas que possuíam poder de comando bélico, tanto da parte daquele que desempenhava profissionalmente junto
ao exército como para outros que ostentaram patentes dentro da Guarda Nacional.
Fontes manuscritas
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
Eleições. São Gabriel, a. 1871, cx. 205, m. 242.
Qualificação Guarda Nacional. São Gabriel, a. 1872, m. 59.
Guarda Nacional. São Gabriel, a. 1873, m. 58.
Guarda Nacional. São Gabriel, a. 1874, m. 60.
Quadro da força Guarda Nacional. São Vicente, a. 1886, m. 60.
Correspondências da câmara. São Gabriel, a. 1875, cx. 207, m. 243.
Quadro da força Guarda Nacional. São Vicente, a. 1894, m. 63.
Arquivo da Mitra Diocesana de Bagé
Registro de batismo de Christina. São Gabriel, freguesia de São Vicente, a. 1866,
liv. 8, ff. 150, n.° 249.
Registro de casamento de Randolpho José da Silva Pereira e Joaquina Alves da
Conceição. São Gabriel, freguesia de São Vicente, a. 1868, liv. 4, ff. 82v., n.° 33.
Registro de batismo de Randolfo. São Gabriel, freguesia de São Vicente, a. 1868,
liv. 9b, ff. 185, n.° 358.
Registro de batismo de Cândida. São Gabriel, freguesia de São Vicente, a. 1873,
liv. 10a, ff. 292, n.° 01.
160
Arquivo da Mitra Diocesana de Santa Maria
Registro de batismo de Marcelino. São Vicente, a. 1878, liv. 1, ff. 56, n.° 157.
Registro de batismo de Maria. São Vicente, a. 1891, liv. 4, ff. 12v., n.° 35.
Registro de batismo de Junia. São Vicente, a. 1892, liv. 4, ff. 26v., n.° 49.
Arquivo do Judiciário Centralizado
Ação de demarcação e divisão da fazenda da Palma. São Vicente, a. 1897, cx. 344,
n.° 70.
Inventário post-mortem de Randolpho José da Silva Pereira. São Vicente, a. 1914,
cx. 361, n.° 114.
Arquivo Museu Fragmentos do Tempo
Carta do compadre João Victorino Filho a Randolpho José da Silva Pereira. São
Vicente, 24 de setembro de 1876.
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul
Registros Paroquiais de Terras. São Gabriel, a. 1856, liv. 47, ff. 68, n.° 320.
Livros notariais de transmissões e notas. São Vicente do Sul, 1º tabelionato, a.
1890, liv. 04.
Livros notariais de transmissões e notas. São Vicente do Sul, 1º tabelionato, a.
1893, liv. 08.
Livros notariais de transmissões e notas. São Vicente do Sul, 1º tabelionato, a.
1894, liv. 09.
Livros notariais de transmissões e notas. São Vicente do Sul, 1º tabelionato, a.
1895, liv. 10.
Livros notariais de transmissões e notas. São Vicente do Sul, 1º tabelionato, a.
1896, liv. 12.
Livros notariais de transmissões e notas. São Vicente do Sul, 1º tabelionato, a.
1897, liv. 14.
Tabelionato de registros civis de Mata
Certidão de óbito de Joaquina Alves da Silva. a. 1907, liv. 01, ff. 47, n.° 161.
Certidão de óbito do capitão João Antonio de Oliveira. a. 1912, liv.1-c, ff. 81v.,
n.° 30.
Certidão de óbito de Randolpho José da Silva Pereira. a. 1914, liv.1-c, ff. 90v., n.°
04.
Tabelionato de registros públicos de São Vicente
Certidão de casamento de Quirino Alves da Silva e Rita Alves Machado. a. 1907,
liv. 1, ff. 67v. e 68r., n.° 127.
161
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Tabelionato de registros de imóveis de São Vicente do Sul
- Livros de transcrições e transmissões. 3A, 3B, 3C, 3D, 3E, 3F, 3G, 3I, 3J, e 3L para
o período de 1920 a 1955.
Referências bibliográficas
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: A arte de inventar o
passado. Ensaios de teoria da História. Bauru: Edusc, 2007.
ANDERSON, Michael. Elementos para a História da Família Ocidental
1500-1914. Lisboa: Editorial Querco, 1984.
BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. 11ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2007.
BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Escolhas de padrinhos e relações de poder: uma
análise do compadrio em São João Del Rei (1736-1850). In: CARVALHO, José
Murilo de (org.). Nação e cidadania no império: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007a.
_________. Minas patriarcal: família e sociedade (São João Del Rei - Séculos
XVIII e XIX). São Paulo: Annablume, 2007b.
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial.
Rio de Janeiro: Editora Campus Ltda, 1980.
_______. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras:
a política imperial. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
DURLO, Cleto Vicente. Sonho e saga de um povo: História da imigração italiana
em Jaguari e da família Durlo. Santa Maria: Pallotti, 2009.
ELIAS, Norbert. O processo civilizatório. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.
FARINATTI, Luís Augusto E. Sobre a cinza da mata virgem lavradores nacionais na província do Rio Grande do Sul (Santa Maria, 1845-1880). Porto
Alegre: PUCRS-PPGH, 1999, (Dissertação de Mestrado).
FERTIG, André. Clientelismo político em tempos belicosos. Santa Maria:
UFSM, 2010.
GAMPERT, Otto. Jaguari -350 anos de história -1632-1982. Santa Maria: Editora do autor, [1982].
GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989.
GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do Século XIX. Rio de
Janeiro: UFRJ, 1997.
HAMEISTER, Martha D. Para Dar Calor à Nova Povoação: estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir dos registros batismais da Vila do Rio Grande
(1738-1763). Rio de Janeiro: UFRJ - Programa de Pós-Graduação em História
162
Social, 2006, 474F. (Tese de Doutorado).
HEINZ, Flávio M. Por outra história das elites. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
IMÍZCOZ, José Maria. Actores, redes, procesos: reflexiones para una historia
más global. Revista da Faculdade de Letras. História III série, vol. 5, 2004. p.115139.
KÜHN, Fábio. Gente da Fronteira: Família, Sociedade e poder no sul da América
Portuguesa – Século XVIII. Niterói: UFF-PPGH, 2006, 479F. (Tese de Doutorado).
LALOUETTE, Jacqueline. Do exemplo a série: história da prosopografia. In:
HEINZ, Flávio M. Por outra história das elites. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
LEVI, Giovanni. Herança Imaterial: A Trajetória de um Exorcista no Piemonte
do Século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
LÓPEZ, Pilar Muñoz. Sangre, amor e interés: La familia en la España de la restauración. Madrid: Marcial Pons, 2001.
MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: Negros, pardos e brancos na produção da hierarquia social do Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.
MALFATTI, Selvino Antonio e AGOSTINI, Lenir Cassel. Mata: ontem madeira,
hoje pedra. Santa Maria: UNIFRA, 2006.
MALGARIN, Volmar Antonio et al. Síntese histórica de Mata. Mata: Arquivo
da Prefeitura Municipal de Mata, 1984.
MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia: Ensaio sobre a dádiva - forma e
razão da troca nas sociedades arcaicas. São Paulo: EPU, 1974. Vol. II.
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Entre o deboche e a rapina: Os cenários
sociais da criminalidade popular em Porto Alegre. Porto Alegre: Armazém Digital,
2009.
MOUTOUKIAS, Zacarias. Narración y análisis en la observación de vínculos y
dinámicas sociales: el concepto de red personal en la historia social y económica
In: BJERG, María e OTERO, Hernán. Inmigración y redes sociales en la Argentina
moderna. Tandil: CEMLA-IEHS, 1995.
RAMELLA, Franco. Por un uso fuerte del concepto de red en los estudios migratorios.
In: BJERG, María e OTERO, Hernán. Inmigración y redes sociales en la Argentina
moderna. Tandil: CEMLA-IEHS, 1995.
REVEL, Jacques (org.). Jogo de Escalas: A experiência da Microanálise. Rio de Janeiro:
FGV, 1998.
RIBEIRO, José Iran. Quando o serviço os chamava: Milicianos e guardas nacionais
no Rio Grande do Sul (1825-1845). Santa Maria: UFSM, 2005.
SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul. Porto Alegre: ERUS,
1987.
163
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
SERNA, Justo e PONS, Anaclet. El ojo de la aguja ¿De qué hablamos cuando hablamos
de microhistoria? In: TORRES, Pedro Ruiz. La historiografia. Madrid: Marcial Pons,
1993.
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Língua Portugueza. Volume II. Lisboa,
Tipografia Lacérdina, 1813. [1ª impressão: 1789].
SILVA JUNIOR, Adhemar Lourenço da. As sociedades de socorros mútuos: estratégias privadas e públicas (estudo centrado no Rio Grande do Sul- Brasil, 1854-1940).
Porto Alegre: PUCRS, 2004, 574 F. (Tese de Doutorado).
VARGAS, Jonas Moreira. Entre a paróquia e a corte: os mediadores e as estratégias
familiares da elite política do Rio Grande do Sul (1850-1889). Santa Maria: UFSM, 2010.
VIANA, Oliveira. Populações Meridionais do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2005.
Vol. 27.
ZONABEND, Françoise. Da família: olhar etnológico sobre o parentesco e a família.
In: BURGUIERÉ, André (org.). História da Família: mundos longínquos. Lisboa:
Terramar, 1998, p.13-66.
Referências digitais
CANCELA, Cristina Donza. Famílias de elite: transformação da riqueza e alianças
matrimoniais. Belém 1870-1920. Topoi, vol. 10, n.° 18, jan.-jun. 2009, p. 24-38. Disponível em www.revistatopoi.org/ acessado em 02/2010.
FRAGOSO, João Luis Ribeiro. Afogando em nomes: temas e experiências em história
econômica. Topoi, vol. 03, n.° 5, jul. – dez. 2002, p.41-70. Disponível em www.revistatopoi.org/ acessado em 09/2009.
LEIVA, Pilar Ponce. Versatilidad social y poderes múltiples en la América colonial. Revista Nuevo Mundo, Mundos Nuevos. Coloquios, 2007. p. 1-10. Disponível em
nuevomundo.revues.org/index acessado em 08/2010.
LEVI, Giovanni. Reciprocidad mediterránea. Tiempos Modernos: Revista
Electrónica de Historia Moderna n.º 7. 2002. Disponível em http://www.tiemposmodernos.org/ acessado em 03/2010.
PEDROZA, Manoela da Silva. Capitães de bibocas: casamentos e compadrios
construindo redes sociais originais nos sertões cariocas (Capela de Sapopemba,
freguesia de Irajá, Rio de Janeiro, Brasil, século XVIII). Rio de Janeiro: UFRJ, 2008.
Revista Topoi, vol. 9, n.° 17, jul.-dez. 2008, p. 67-92. Disponível em www.revistatopoi.org/ acessado em 02/2010.
SCOTT, Ana Silvia Volpi. Da reconstituição de famílias à reconstituição de
comunidades históricas: um exemplo do Noroeste de Portugal. 2008. Disponível em http://historia_demografica.tripod.com/ acessado em 03/2010.
164
VENÂNCIO, Renato Pinto [et. al]. O compadre governador: redes de compadrio em Vila Rica de fins do século XVIII. São Paulo: Revista Brasileira de História,
2006, vol. 26, n.° 52. Disponível em www.scielo.br/ acessado em 06/2010.
165
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Colônias e estâncias no Sul do Brasil: o caso de
São Lourenço.
Patrícia Bosenbecker
Resumo: A Colônia São Lourenço foi fundada em 1857, no quarto distrito do município de
Pelotas, em uma região que concentrava um grande número de estancieiros e estava constituída pelo sistema de criação extensiva de gado e pela comercialização do charque, o principal
elemento da economia do Rio Grande do Sul, nesta época. Esta configuração delegou a Pelotas a condição de centro econômico-político-social da província. Tais características estão, em
parte, presentes no projeto e na construção da colônia alemã de Jacob Rheingantz. O presente
trabalho apresenta algumas questões relevantes sobre o contraponto colônia/estâncias, enumerando as principais estâncias da região onde se estabeleceu o empreendimento colonial, e, por
conseguinte, alguns dados preliminares sobre a origem e história das referidas fazendas, para,
finalmente, tratar da fundação da colônia São Lourenço.
Palavras-chave: colonização – estâncias – povoamento – São Lourenço do Sul.
A
Colônia São Lourenço,1 conforme Jean Roche, foi “uma ilha agrícola numa mancha florestal, no meio de uma zona luso-brasileira
de pecuária, na planície”.2 Essa descrição define de maneira singular a situação da referida colônia, fundada dentro dos limites do município de
Pelotas, que era um pólo de colonização portuguesa e o centro econômico da Província na época, posição demarcada pelo sistema de criação de gado e de produção
regional de charque, ou seja, pelas estâncias e pelas charqueadas. Os imigrantes que
chegaram à Colônia se instalaram dentro da Serra dos Tapes, formando uma ilha
cercada por estâncias. No entanto, a expressão “ilha de colonização” foi empregada
no sentido de salientar o isolamento dos colonos, afastados dos grandes centros de
colonização e que, por tal razão, apresentariam diferenças sutis nas condições de
vida comparando-se com as dos colonos da região serrana do Rio Grande do
O presente trabalho é uma versão revisada e reorganizada, baseada no capítulo intitulado A
Colônia São Lourenço e Suas Primeiras Famílias, da minha dissertação de mestrado, defendida em
julho de 2011. No texto original, a ênfase do trabalho se encontra no estudo da colônia alemã
de Jacob Rheingantz, já neste artigo, o texto foi ampliado com o desenvolvimento da pesquisa
sobre os estancieiros da região, centrando o tema, portanto, no povoamento local realizado por
fazendeiros de origem luso-brasileira. Confira: BOSENBECKER. Patrícia. A colônia cercada de
estâncias: imigrantes em São Lourenço/RS (1857-1877). Porto Alegre, PPG-História/UFRGS, 2011.
(Dissertação de Mestrado).
2 ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ed. Globo, 1969. p. 179.
1
167
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Sul. No entanto, a multiplicidade de contextos e de grupos que se entrecruzaram na região de colonização alemã mais ao sul do Estado gaúcho apagou a
solidão da ilha e a reconfigurou como espaço central de relacionamentos entre
diferentes grupos étnicos.
Se, de um lado, estavam os estancieiros, criadores de gado, escravistas
e detentores de grandes propriedades de terra, de outro, estavam os imigrantes, os chamados colonos, pequenos proprietários dedicados à agricultura, com
base no trabalho familiar. A Colônia São Lourenço forneceu gêneros alimentícios para as duas maiores cidades da região, Pelotas e Rio Grande, e abasteceu
a outras, como a de Jaguarão, que também chegou a receber mercadorias. Os
produtos eram conduzidos do interior do núcleo até ao pequeno porto local
e levados por embarcações, que cruzavam a Laguna dos Patos,3 até ao seu
destino final. Esse porto estava localizado no centro da região estancieira,
comandada pelos genros e descendentes de José da Costa Santos, um dos
fundadores do principal povoado local. O pequeno porto fluvial do arroio
São Lourenço e o vilarejo ao seu redor (atual cidade de São Lourenço do Sul e
sede do município de mesmo nome) foi “doado” e loteado pelo neto materno
de Costa Santos, o estancieiro José Antônio de Oliveira Guimarães. Tal porto
e o núcleo urbano ao redor, fora da área colonial – confira figura -,expandiu-se ao mesmo tempo em que a colônia se desenvolveu. Oliveira Guimarães foi
sócio de Jacob Rheingantz na fundação da Colônia São Lourenço, auxiliando
na instalação do núcleo. Rheingantz assumiu a função de diretor da mesma até
1877, ano em que faleceu, na Alemanha.4
No que tange a historiografia que trata da história da Colônia São
Lourenço, ou da sua fundação, poucos são os autores que avaliam a formação
local antes do estabelecimento dos imigrantes de Rheingantz, e, mesmo os
escritores, que tem por objetivo a formação histórica do município de São
Lourenço do Sul, não apresentam dados mais aprofundados sobre a questão,
que carece, portanto, de uma pesquisa histórica criteriosa sobre o estabelecimento dos fazendeiros e/ou sobre a situação local na época da instalação
do empreendimento de Rheingantz.5 Neste trabalho, pretendemos avaliar alguns
Por mais que seja corrente o uso do termo Lagoa dos Patos, utilizaremos a expressão Laguna
dos Patos, uma vez que uma laguna consiste em um lago ou extensão de água que possui ligação
com o mar, o que ocorre com a Laguna dos Patos.
4 A família Rheingantz continuou administrando a colônia até 1893, quando vendeu o empreendimento para João Baptista Scholl.
5
Não pretendemos desenvolver uma discussão mais detalhada sobre a historiografia local, no
entanto, sugerimos algumas obras que podem auxiliar os pesquisadores interessados no tema:
PAES, Augusto Moreira. A Colônia São Lourenço. IN: RODRIGUES, Alfredo Ferreira. Almanak literário e estatístico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Pinto e Cia/Livraria Americana, 1909.
3
168
pontos do contraponto colônia e estância, além de proporcionar, a partir da descrição de um levantamento inicial das estâncias e dos fazendeiros da região, alguns
dados sobre o povoamento local, relacionando estâncias, fazendeiros e a localização das propriedades. Esse levantamento foi produzido a partir de uma pesquisa
realizada inicialmente com o intuito de mapear as estâncias que estavam localizadas
ao redor da colônia São Lourenço, no entanto, avançamos (ou retrocedemos) no
período inicialmente estipulado, e apresentamos agora alguns dados produzidos
com o cruzamento de registros de sesmarias e de inventários post mortem. A seleção
nominal de moradores das circunvizinhanças começou a ser realizada a partir dos
livros de registros de batizados e casamentos da Freguesia do Boqueirão, 4º distrito
de Pelotas, local onde se estabeleceu a colônia.
Algumas considerações teóricas
A região de São Lourenço do Sul foi composta, na sua configuração anterior à construção da colônia, a partir de sesmarias doadas a portugueses ou para
brasileiros, assentados na margem da Laguna dos Patos, entre o Arroio Grande e o
Rio Camaquã, disseminando as estâncias no pé da Serra dos Tapes. O povoamento
extensivo do local começou com algumas concessões de sesmarias para militares
ou comerciantes vinculados a Rio Grande, cidade portuária no extremo sul do Rio
Grande do Sul, fazendo parte da proposta de povoamento da região, respeitando critérios ligados ao seu caráter fronteiriço e aos conflitos com os vizinhos do Prata, englobando estratégias político-militares que remontam ao período de Rafael Pinto Bandeira,
no último quartel do século XVIII.
De maneira geral, o povoamento da região sul brasileira acabou fomentando
o estabelecimento das grandes propriedades, sem o caráter agrícola apresentado pelo
p. 164-167. RHEINGANTZ, Carlos Guilherme. Colônia de São Lourenço. Breve Histórico de
sua fundação, extrahido das notas do archivo de seu fundador Jacob Rheingantz. IN: RODRIGUES, Alfredo Ferreira. Almanak literário e estatístico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Pinto e
Cia/Livraria Americana, 1909. p. 143-164. COARACY, Vivaldo. A Colônia São Lourenço e o seu
fundador Jacob Rheingantz. São Paulo: Saraiva, 1957. COSTA, Jairo Scholl. Origens históricas do
município de São Lourenço do Sul. IN: COMISSÃO CENTRAL DO CENTENÁRIO. São
Lourenço do Sul cem anos: 1884-1984. Porto Alegre, CORAG, 1984. COSTA, Jairo Scholl.
Navegadores da Lagoa dos Patos. A saga náutica de São Lourenço do Sul. São Lourenço do Sul: Ed.
Hofstater, 1999. HAMMES, Edilberto Luiz. São Lourenço do Sul: radiografia de um município – das origens ao ano 2000. São Leopoldo: Studio Zeus, 2010 (4 vols.). IEPSEN, Eduardo.
Jacob Rheingantz e a colônia São Lourenço: da desconstrução de um mito à reconstrução de uma história. São
Leopoldo: PPG-História/UNISINOS, 2008. (Dissertação de Mestrado). WEBER, Regina. BOSENBECKER, Patrícia. Disputas pela memória em São Lourenço do Sul: uma visão histórica
de representações étnicas. Cadernos do CEOM. Centro de Memória do Oeste de Santa Catarina.
Chapecó/SC. Ano 23, n. 32, jun. 2010.
169
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
restante do Brasil. Se em nível nacional se desenvolveu uma rede fundiária baseada no
capitalismo comercial, produzindo em larga escala aquilo que o mercado europeu necessitava, no interior e sul do Brasil Colônia o povoamento esteve ligado à criação de
gado, “uma atividade subsidiária da economia de mercado externo” que também estava
associada ao latifúndio “como decorrência da criação extensiva e da grande disponibilidade de terras”.6
O início do latifúndio ocorre, então, com a ocupação de terras para utilização
de campos nativos e a formação de estâncias pastoris. O surgimento destas estâncias
está ligado à presença militar,7 pois estes militares recebiam “terras” como gratificação
ou pagamento por uma vitória sobre os platinos nas lutas em solo rio-grandense. Entretanto, não eram apenas os comandantes que conseguiam a posse de terras, pois muitos
comerciantes também recebiam essa benesse. Luís Augusto Farinatti (2007) critica a preponderância legada aos militares na historiografia do Rio Grande do Sul, para o autor:
Associação entre a elite agrária e os altos comandos militares na
Campanha Rio-grandense é praticamente uma “idéia-força” na historiografia. Contudo, essa afirmação costuma ser feita por si mesma,
sem que esteja acompanhada de um estudo sobre a sua amplitude e
as suas características. Como veremos, nem todo abastado senhor da
Fronteira era também uma autoridade militar. Muitos deles jamais
ocuparam qualquer posto nas forças marciais. Isso, porém, não retira
a importância singular que os comandos militares tiveram na estruturação da sociedade do extremo-sul, nem sua conexão inextrincável
com a economia e a sociedade.8
Em outros casos, a posse das terras era adquirida através da apropriação
das áreas que, com o passar do tempo, acabavam por serem legalizadas. Para Farinatti, da mesma forma que os grandes senhores simplesmente se apossavam de
faixas de terra durante a primeira metade do século XIX, a “ocupação simples foi,
desde o início dos tempos coloniais, um instrumento utilizado maciçamente por
pequenos posseiros produtores de alimentos, que tinham dificuldades para conseguir uma sesmaria”.9
A estância, apesar da dedicação à pecuária, mantinha relativa auto-suficiência na produção de alimentos; peões e escravos utilizavam roças e criavam
PETRONE, Maria T. S. O imigrante e a pequena propriedade. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1982.
p. 15.
6 Ver discussão em ZARTH, Paulo Afonso. História agrária do planalto gaúcho (1850-1920). Ijuí:
Ed. Unijuí, 1997. p. 39-51.
7
FARINATTI, Luís Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul
do Brasil (1825-1865). Rio de Janeiro, PPG-História Social/UFRJ, 2007, p. 168.
8
FARINATTI, Luís Augusto. Op. cit., p. 101.
170
9
pequenos animais domésticos para o consumo de quem vivia na propriedade.10 As
atividades da estância requeriam menos mão-de-obra escrava se as compararmos
com a utilizada em uma charqueada, por exemplo. Nas estâncias viviam além de
escravos e peões, agregados, pequenos lavradores e outros grupos que não tinham
propriedades próprias e mantinham uma complexa relação com os estancieiros.11
A pecuária como forma extensiva do povoamento também foi responsável pela expansão de núcleos populacionais irradiados a partir do eixo Pelotas-Rio Grande, do qual se origina São Lourenço do Sul, pois neste contexto surge
o povoado do Boqueirão, que é a base do futuro município. Assim, a atividade
charqueadora contribuiu para a ocupação extensiva das imediações, isto é, o charque e a instalação e desenvolvimento das charqueadas foram os responsáveis pela
formação de povoados e vilas, em outras palavras:
desse ciclo pastoril resultou a repartição do eixo centro-sul, do
que nasceram São Borja, Itaqui, Uruguaiana, Dom Pedrito, Rosário, Livramento, Quaraí, São Vicente e São Sepé, no interior
da campanha; e Piratini, Pinheiro Machado, Canguçu, Tapes,
Camaquã e Arroio Grande, na serra do sudeste. Até 1850 estava
praticamente apossada a metade sul da Província.12
Como podemos observar, São Lourenço do Sul não aparece na descrição de
povoados ou municípios criados com o ciclo pastoril. Nessa época, o principal
povoado era conhecido pela denominação de Freguesia do Boqueirão, mas sua formação é semelhante aos outros lugares citados do sul da província. Um exemplo da
configuração deste ciclo pastoril local pode ser percebido a partir das informações
contidas no mapa da população de Pelotas, de 1833. Segundo este “censo”, Boqueirão, então 4º Distrito de Pelotas, possuía cerca de 250 casas e 1830 habitantes;
sendo que, deste total, 800 moradores eram escravos e outros 250 eram libertos.
Esses números são semelhantes aos outros distritos da região, exceto da sede Pelotas, que possuía maior contingente escravo.13
São Lourenço do Sul foi elevado à categoria de município, somente em
14
1884, e sua criação está associada à colônia São Lourenço e à imigração alemã,
10
ZARTH, Paulo. Op. cit., p. 112.
11
Uma discussão sobre estas questões pode ser encontrada em FARINATTI, Luís Augusto.
Op. cit., p. 369-374.
BARROSO, Vera Lucia Maciel. O povoamento do território do rio grande do sul/brasil o oeste como
direção. Revista digital Estudios Historicos – CDHRP, Agosto 2009, nº 2. p. 17.
12
Ao todo Pelotas estava dividida em cinco distritos. Confira: Mapa da população da vila
de São Francisco de Paula, e de seu termo, em dezembro de 1833. IN: ARRIADA, Eduardo.
Pelotas: Gênese e desenvolvimento urbano (1780-1835). Pelotas: Armazém Literário, 1994. p. 98.
14
A sede do município de São Lourenço do Sul, na época em que foi elevado a esta categoria,
13
171
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
como fatores propulsores do desenvolvimento comercial, principalmente, através
do pequeno porto local – construído pelos estancieiros fora do núcleo colonial - e
do crescimento populacional nutrido pela colonização;15 cabe ressaltar, no entanto,
que a fundação do núcleo colonial ocorre, apenas, em 1858, quando já existia uma
comunidade fixada nos arredores e uma relativa organização dessa sociedade, derivada do sistema da estância e do charque.
Os núcleos coloniais de imigrantes começam a surgir no Brasil com a vinda da Corte portuguesa no início do século XIX. A ideia era implantar a pequena
propriedade ao lado da grande propriedade, não concorrendo com esta no mercado de trabalho. Para tanto:
a pequena propriedade devia ocupar espaços vazios promovendo a valorização fundiária, e criar condições para o aparecimento
de uma camada social intermediária entre latifúndio e escravo,
camada essa que pudesse ao mesmo tempo ser mercado consumidor, oferecer braços no mercado de trabalho e diversificar
a economia com a produção de gêneros para os quais a grande
propriedade não se prestava.16
Dessa forma, no Rio Grande do Sul a imigração foi dirigida em geral para
zonas serranas, enquanto os estancieiros ocupavam os campos do pampa ou do
litoral, como no caso de parte das estâncias locais, situadas na costa da Laguna dos
Patos. Como afirma Beatriz Azevedo Courlet, em seu trabalho sobre as identidades
em zonas fronteiriças, a “pequena e a grande propriedade nunca chegaram a disputar o mesmo espaço físico no RGS, os colonos tendo sido instalados em terras
impróprias para a pecuária, pois o foram em zonas de florestas, de montanhas e,
muitas vezes, em florestas habitadas por índios”.17
ainda era a Vila de Boqueirão, sendo que o primeiro nome do termo era Conceição do Boqueirão. Somente em 1890 é que ocorre a transferência administrativa municipal para a Vila de
São Lourenço, tanto a transferência quanto as alterações na nomenclatura fazem parte de uma
acirrada disputa política local, na qual teve importante papel José Antônio de Oliveira Guimarães, idealizador do projeto. A Vila de São Lourenço foi construída a partir do loteamento dos
terrenos de Oliveira Guimarães e o porto era um dos principais negócios que o estancieiro incrementava, com o intuito de prosseguir com sua proposta de alterar o local mais “urbanizado”
da região, do Boqueirão para a Vila São Lourenço.
15
Segundo discurso predominante na historiografia local: “O imenso progresso da colônia
alemã e naturalmente do porto de São Lourenço, pode ser facilmente constatado, pois no ano
de 1858, o porto não tinha qualquer expressão regional. Próximo a ele, apenas fazendeiros e
trabalhadores das estâncias que por ali viviam, sem qualquer significado demográfico. Porém,
decorridos apenas três anos da fundação da colônia, ou seja, em 1861, é fundada a capela de São
Lourenço” COSTA, Jairo Scholl (1999), Op. cit., p. 36.
16
PETRONE, Maria T. S. Op. cit, p.17.
17
COURLET, Beatriz Azevedo. Identidadesem uma zona de fronteira : a região do prata no período
colonial. Anais eletrônicos da Segunda Jornada de História Comparada/FEE: Porto Alegre, out.
172
No nosso caso específico, São Lourenço do Sul possuía uma colônia encravada na Serra dos Tapes, literalmente rodeada por estâncias e fazendeiros, criando uma condição que, de certa forma, é impar na configuração gaúcha, onde na
maior parte das vezes, as colônias permaneceram afastadas ou isoladas da zona
pecuarista. De maneira geral, tanto a configuração das estâncias quanto dos lotes
coloniais, nos remetem ao turbulento processo que envolveu a distribuição e regularização das terras brasileiras.18 Outro conflito pela terra na região teve origem com
a extração de madeiras nos matos da Serra dos Tapes, recurso ou alternativa financeira
muito utilizada por estancieiros, posseiros, pequenos produtores e também pelos colonos alemães.
Pequena propriedade e imigração estão ligadas pelo decreto de 25 de novembro de 1808 que permitiu a posse de terras para estrangeiros. Conforme Giralda Seyferth, este decreto é o ponto de partida para a imigração e para as colônias de imigrantes
europeus no Brasil. A colonização varia conforme a região do país, mas o seu principal
resultado “está ligado à formação de uma sociedade rural diferente da sociedade rural
brasileira tradicional, onde não havia lugar para o pequeno proprietário”.19 Em algumas
regiões, incluindo o Rio Grande do Sul, surge uma sociedade camponesa, baseada na
pequena propriedade policultora, trabalhada pela família do proprietário.
Esta pequena propriedade deveria ser auto-suficiente, vendendo os excedentes e produzindo alguns gêneros em maior volume para o mercado interno,
mas tal auto-suficiência era aparente, pois ela já estava submetida às leis do mercado, dependendo de atividades externas à comunidade.20 Para Aldair Lando e Eliane
Barros,21 a substituição da produção escravista para a produção capitalista marcará
2005. p. 10.
18 Outra configuração diferente da forma padrão (colonização de regiões serranas, afastadas
de zonas de pecuária e, relativamente, “isoladas” da população brasileira) pode ser encontrada
no litoral norte do Rio Grande do Sul. Esta região, também definida por Roche como uma ilha
de colonização de caráter antigo, está próxima de pequenos lavradores nacionais e outros proprietários de maior porte, mas diferente da região onde se localiza São Lourenço, na parte norte
não havia “a pressão” ou poder político-social do centro-sul – latifundiários-estâncias-charque
–, o que foi desfavorável para as colônias litorâneas, uma vez que o governo provincial mantinha uma política “discriminatória” com relação a situação econômica do litoral norte. Outro
importante ponto de diferenciação entre parte norte/sul seria a dispersão dos colonos entre a
população local, maior na parte norte. Confira: WITT, Marcos. Política no litoral norte do Rio Grande do Sul: a participação de nacionais e de colonos alemães – 1840/1889. São Leopoldo, PPG-História/
Unisinos: 2001. (Dissertação de Mestrado). p. 88 e seguintes.
19
SEYFERTH, Giralda. Imigração e cultura no Brasil. Brasília: Ed. UNB, 1990. p. 21.
20
A discussão pode ser vista em: SEYFERTH, Giralda. Op. cit., p. 21; e PETRONE, Maria
T. S. Op. cit., p.60-61.
21
LANDO, Aldair e BARROS, Eliane. Capitalismo e Colonização. Os alemães no Rio Grande
do Sul. IN: Dacanal, José H. e Gonzaga, Sérgius. RS: Imigração e Colonização. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980, p. 41 e 42.
173
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
a transição para dois tipos de sociedade diferentes: na primeira, a propriedade é um
privilégio para um grupo bem definido; na segunda sociedade, o investimento na
força de trabalho proporcionará melhor gerenciamento nas aplicações da produção, onde a terra transforma-se em equivalente de capital.
De maneira mais genérica, no que concerne às colônias, estas possuíam
uma organização própria que não só a diferenciava da forma como viviam os moradores dos povoados gaúchos mas também da forma pela qual viviam os imigrantes ainda na Europa, onde se localizavam em aldeias e raramente no campo. Ou
seja, a configuração colonial de picadas, que é adotada nas colônias em questão, é
um aspecto diferenciado do processo, que seguia o modelo de colonização:
implantado durante a ocupação de São Leopoldo, cuja área foi dividida em doze picadas ou linhas as quais, direta ou indiretamente desembocavam na sede da colônia. Os lotes
dos colonos agricultores situavam-se nas picadas. Na sede
da colônia encontravam-se a administração colonial, os
primeiros comerciantes e artesãos, a igreja, o padre ou o
pastor. Invariavelmente, durante todo o processo de colonização, as sedes das colônias que foram sendo instaladas se transformaram em pequenos povoados – vilas ou
picadas – que não passavam inicialmente de aglomerados
rurais, nos quais se constituíam os centros administrativos
das colônias e também seu centro comercial, artesanal, escolar, religioso e social. Esta organização social foi muito
importante na reprodução do sistema agrário colonial, na
medida em que essas vilas funcionavam como ponto de encontro dos agricultores.22
No entanto, as diferenças entre colonos e estancieiros não estavam apenas
na organização de suas propriedades e na forma como construíram os seus sistemas produtivos. Os estancieiros, por exemplo, formavam uma sociedade centrada
em valores próprios, inserida no contexto da sociedade colonial e, posteriormente,
imperial, constituindo uma rede de várias famílias, algumas interligadas por casamentos, outras por alianças originadas na escolha dos padrinhos para o batismo
das crianças, criando, assim, relações de compadrio e parentescos fictícios.23 Os
membros destes grupos ainda demonstravam ou desejavam possuir um status de
superioridade, como elite dominante, condutora dos costumes, devendo ser copia MERTZ, Marli. As origens de um sistema agrário singular no Rio Grande do Sul. Textos para discussão da Fundação de Economia e Estatística/RS. Porto Alegre, set 2008 nº. 40. p. 8.
23
Uma discussão sobre o tema pode ser obtida em: HAMEISTER, Martha Daisson. Na pia
de batismo: Estratégias de interação, inserção e exclusão social entre migrantes açorianos e a
população estabelecida na Vila de Rio Grande através do estudo das relações de compadrio e
parentesco fictício (1738-1763). IN: Anais eletrônicos do congresso da ABPHE, 2003.
22
174
dos e imitados por todos aqueles que tencionavam fazer parte desta sociedade “única”.
Podemos ainda mencionar um sentimento de posse com o lugar, observada
a partir dos documentos, quando estes referem-se ao povoado do Boqueirão e às propriedades dos estancieiros, o que inclui, no pensamento deles, os escravos existentes na
região, gerando nos “luso-brasileiros” uma tendência de poder, que se apresenta como
um meio de legitimação para a posição social que eles próprios se atribuíram, como
uma posição de vantagem, seja ela moral ou material. Por estarem fortemente identificados com o meio, “um local por eles constituído”, demonstram aspectos semelhantes
à definição de estabelecidos.24 Os moradores antigos, os estabelecidos, formavam um grupo
de famílias que possuíam um passado comum, que moravam na região há duas ou três
gerações, passaram por um processo grupal juntas, uma configuração que garantia certa
coesão ao grupo, uma vez que, no princípio da colonização alemã na região, a mesma
coesão não podia ser percebida nos grupos migrantes.
Relacionadas algumas questões centrais sobre o tema proposto, passaremos a
descrever a formação do principal povoado local, a Freguesia do Boqueirão, onde foi
instalada, em 1857, a colônia São Lourenço, e a relacionar alguns estancieiros da região.
A Freguesia do Boqueirão
O centro político e social local era o povoado de Boqueirão,25 região formada
por grupos de povoadores descendentes dos primeiros moradores do local e da região
(Rio Grande, Canguçu e Camaquã). Além de estancieiros, formavam o pequeno povoado, capatazes, peões e seus familiares, assim como, um contingente de trabalhadores
livres, dedicados ao extrativismo e à agricultura de subsistência. Esta última atendia às
demandas dos habitantes do povoado e também das estâncias, que nem sempre garantiam, dentro dos seus limites, a produção de todos os itens que necessitavam. Estes lavradores raramente tinham a posse da terra onde produziam e grande parte deles estava
subjugada pelo controle político e econômico dos estancieiros.26
Os lavradores e peões tinham origens muito diversas, contemplando desde portugueses, procedentes de várias localidades (Lisboa, Porto, Braga, Açores,
etc.); brasileiros (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco, Bahia,
As definições aqui utilizadas são de Elias e Scotson, confira: ELIAS, Norbert e SCOTSON,
John. Os estabelecidos e os outsiders. Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio Janeiro: Zahar Editor, 2000.
25 A partir de 1830, Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Boqueirão. A Freguesia
compreendia uma área que seria maior do que o atual município de São Lourenço do Sul, o qual
tem sua gênese nessa freguesia. O povoado era a parte mais “urbana” da freguesia, onde estavam a igreja, o cemitério, a residência onde o subdelegado recebia a população, as residências de
moradores e alguns comércios.
26
Uma discussão sobre o tema pode ser vista em ZARTH, Paulo. Op. cit.
24
175
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
de cidades como Curitiba, Laguna, e do próprio Rio Grande do Sul); espanhóis
(ou seus descendentes); além de argentinos, uruguaios e um paraguaio. Tal multiplicidade de povoadores, que também é percebida em todo o território do Rio
Grande do Sul, é importante para o estudo do grupo, pois estes contribuem na
formação das identidades locais.27
Existiam, ainda, outros imigrantes na região, como era o caso de italianos
e franceses, que moravam na Freguesia do Boqueirão, exercendo em geral atividades comerciais,28 e um considerável número de escravos, quilombolas,29 libertos
e descendentes, que também estão inclusos no grupo de estancieiros devido à sua
relação social, política e econômica com os demais integrantes, constituindo parte
significativa dos habitantes do povoado e arredores.
Entre as primeiras famílias que constituíram o grupo de povoamento do
local estavam os descendentes de Joaquim Gonçalves da Silva e da família Centeno,
que por sua vez, tem ligações muito próximas com os Gonçalves da Silva; os descendentes dos irmãos José e João Cardoso de Gusmão; os filhos e netos dos irmãos capitão José Rodrigues Martins e do capitão Antônio Rodrigues Barbosa; de Melchior
Cardoso Osório, filho de Thomaz Luís Osório; a família do coronel Simão Soares
da Silva; além dos Rodrigues da Silva; Rodrigues de Quevedos; os Rodrigues Prates;
os Sanches; os Bilhalva; entre outros tantos nomes que juntos somam cerca de 250
famílias, que começaram a se estabelecer na região entre 1786 e o final das disputas
na região cisplatina.
Portanto, à época da chegada das primeiras levas de imigrantes, o povoado
do Boqueirão concentrava as atividades dos moradores locais, principalmente, ao
redor da igreja do povoado, originada de um antigo oratório de estância, construído
por moradores da fazenda que deu nome ao lugar e por um dos estancieiros de maior
Levantamento de dados realizado pela autora, entre 2007 e 2008, principalmente, nos livros
de registros católicos do povoado, relativo ao período de 1848 a 1870, (Cf. BISPADO DE
PELOTAS. Livros I, II e III de Batismos da Freguesia Nossa Senhora da Conceição do Boqueirão). Para anos anteriores e sobre os primeiros grupos familiares da região, conferir livros
de registros de Rio Grande, Pelotas e Canguçu. As próximas informações também são retiradas
desses livros.
28
Acredita-se que, estabelecidos antes ou no decorrer da Guerra Farroupilha (1835-1845), podemos citar as famílias de Felipe Olimpiado, João Labegorre, Paschoal Russo, Antônio e Vicente
Marroni, Signorin, André Manfrino, entre outras.
29
Segundo as atas da Câmara de Vereadores de Pelotas, pertencentes ao Museu da Biblioteca
Pública de Pelotas, em especial as discussões entre os anos de 1847 a 1860, quando aparecem
reclamações de moradores da Freguesia do Boqueirão sobre bandos que praticavam ataques
a fazendas da localidade e que moravam nos chamados quilombos. Alguns homens foram recrutados na comunidade para destruírem os quilombos, mas devido a contingentes de número
insignificante e pouca organização das autoridades, os grupos armados, ao que tudo indica, não
foram realizados.
27 176
expressão local, José da Costa Santos (avô materno de José Antônio de Oliveira Guimarães, financiador da colônia e um dos responsáveis pelo desenvolvimento da vila
de São Lourenço, à margem da Laguna dos Patos e fora da área colonial).
O oratório foi construído, em 1807, na Fazenda do Boqueirão, possuindo
também um cemitério. O coronel Simão Soares foi um dos organizadores da construção. Em 1826, José da Costa Santos deixou em testamento um novo terreno para
a construção de uma igreja, que foi finalizada em 1830, ano em que foi criada a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Boqueirão. Portanto, a capela de Nossa
Senhora da Conceição, instalada no antigo oratório, saiu da sua localização original,
mudando também de fazenda, sendo que o local onde está atualmente a referida
igreja é mais ao sul da antiga localização.
As estâncias da freguesia
Para compreendermos a situação e as condições da inserção da colônia, passaremos a examinar as principais estâncias da região, enumerando as
propriedades, com a sua localização, o que pode ser acompanhado pelo mapa
a seguir (Figura 1). Neste trabalho, apresentaremos 8 propriedades principais
e 3 regiões com vários moradores vizinhos ao núcleo, com uma descrição
resumida dos proprietários e das comercializações realizadas, começando a
descrição pelos campos de São Lourenço.30
1. Estância de São Lourenço, também chamada de Estância Grande
de São Lourenço, formada a partir de duas ou três sesmarias (dados ainda não
confirmados). Em 1789, adquiriram sesmarias na região, o negociante Jorge
Colaço, que recebeu a sesmaria de Cerrito, e Tomás José da Silveira, que recebeu a Sesmaria do Arroio Grande. As sesmarias foram adquiridas por Manoel
Bento da Rocha, que, provavelmente, formou a estância.31 Entre 1798 e 1804,
a estância, e a propriedade nº 2, citada abaixo, foram adquiridas pelo filho e
pelos genros do Alferes João Pereira Chaves. As duas propriedades foram
compradas por Manoel José de Oliveira Guimarães, em 1807. Em 1819, a
família Oliveira Guimarães vendeu a estância para José da Costa Santos. Em
1834, a viúva de Costa Santos, Ana Joaquina da Silva Santos dividiu todos
os bens da família, incluindo as estâncias, entre seus três genros. A Estância
de São Lourenço foi dividida em Fazenda São Lourenço (ou do Sobrado),
A relação de proprietários de estâncias e sesmarias foi produzida a partir de um levantamento de dados paralelo e auxiliar a pesquisa sobre a colônia São Lourenço. Os dados foram
obtidos com documentos relativos a cartas de sesmarias (AHRS) e inventários dos fazendeiros
(APERS). Foram relacionados os principais fazendeiros e a localização das propriedades é aproximada.
31
Manoel Bento da Rocha era cunhado do sesmeiro Tomás José da Silveira, e também de
Antônio Furtado de Mendonça, proprietário de uma sesmaria que formou a propriedade nº 2.
30
177
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
passando a pertencer a Antônio Francisco dos Santos Abreu, e a Fazenda do
Arroio Grande, entregue ao Coronel Francisco Vieira Braga, confrontação
que persistiu até a instalação da colônia.32
2. Estância do Porto de São Lourenço (também chamada Fazenda do
Carahá, e conhecida primeiramente como lugar da Olaria). Sempre comercializada juntamente com a propriedade nº 1, porém provinha de outras sesmarias,
e em sua formação englobou datas menores de mato e terra, na direção da
Serra dos Tapes (Oeste). José da Costa Santos doou parte de seu terreno para
a formação do que hoje é a sede do distrito do Boqueirão e para a construção
da igreja local. Em 1834, conforme a divisão de Ana Joaquina, a fazenda foi
repassada para Inácio José de Oliveira Guimarães, descendente de antigos
proprietários da mesma fazenda. Nesta área, o filho de Inácio, José Antônio,
doou um terreno para a construção da atual cidade de São Lourenço do Sul,
loteando o restante da sua propriedade para o desenvolvimento da cidade.33
3. Sesmaria dos Potreiros. Pertenceu a Inácio Ribeiro Leite, um dos
primeiros moradores efetivos da margem da Serra dos Tapes. Ribeiro Leite
morreu antes de ser concedida oficialmente a sesmaria, em 1823, por ter entrado em litígio com os proprietários da estância de São Lourenço. Na sesmaria, além de alguns descendentes do povoador, estavam assentados vários
agregados e posseiros. A propriedade, ou quase toda a área da sesmaria, foi
comprada por Jacob Rheingantz, entre 1858 e 1865, sendo demarcada e medida em 1867.34
Conforme: Justificação de Requerimento de Sesmaria de Ignácio Ribeiro Leite. AHRS. Coleção Sesmarias. Nº 536 – maço 39, caixa 14; Inventário de Manoel José de Oliveira Guimarães.
APERS. Processo de Inventário nº 92, ano 1812, caixa 005.081; Inventário do Tenente-coronel
José Antônio de Oliveira Guimarães. APERS. Processo de Inventário nº 37, ano 1829, (maço 2,
estante 59); Inventário de José da Costa Santos. APERS. Processo de Inventário nº 113, caixa
006.0385, com cobrança judicial do pagamento da estância São Lourenço e documentos da
compra da fazenda, anexos aos autos; Inventário de Ana Joaquina Gonçalves da Silva Santos.
APERS. Processo de Inventário nº 152, caixa 005.0267, com documentos das doações anexos
ao processo.
33
Inventário de Manoel José de Oliveira Guimarães. APERS. Processo de Inventário nº 92,
ano 1812, caixa 005.081; Tenente-coronel José Antônio de Oliveira Guimarães. APERS. Processo de Inventário nº 37, ano 1829, (maço 2, estante 59); Inventário de José da Costa Santos.
APERS. Processo de Inventário nº 113, caixa 006.0385, com cobrança judicial do pagamento
da estância São Lourenço e documentos da compra da fazenda, anexos aos autos; Inventário de Ana Joaquina Gonçalves da Silva Santos. APERS. Processo de Inventário nº 152, caixa
005.0267, com documentos das doações anexos ao processo.
34
Segundo: Inventário de Maria das Neves, 1827, com inventário do marido Ignácio Ribeiro Leite, anexo aos autos. APERS. Comarca de Pelotas. Processo de Inventário nº 118, caixa
006.0385; Justificação de Requerimento de Sesmaria de Ignácio Ribeiro Leite. AHRS. Coleção
Sesmarias. Nº 536 – maço 39, caixa 14.
32
178
4. Sesmaria do Boqueirão. Pertenceu a Melchior Cardoso Osório. Foi
o lugar escolhido pelos estancieiros para erguer uma capela a Nossa Senhora
da Conceição, que em 1826 começou a ser transferida para um terreno doado
por Costa Santos, onde se formou um novo povoado. Melchior foi primeiramente administrador da Estância de São Lourenço, quando Manoel Bento da Rocha foi o seu proprietário. Adquiriu a sesmaria tempos depois, mas
não foi possível identificar quem foi o primeiro proprietário da Fazenda do
Boqueirão. No local, a partir das divisões de heranças das duas mulheres de
Melchior, foram se estabelecendo vários genros e filhos de Cardoso Osório
(Melchior teve ao todo 18 filhos), como na região do Espinilho, onde residiu
uma de suas filhas com o genro Antônio Manoel Rodrigues de Carvalho, e às
margens do Arroio Carahá, onde outro genro, Balthazar José Rodrigues Soares,
construiu uma olaria e casa para fazer farinha.35
5. Fazenda Santa Cruz, com 5 léguas e meio de cumprimento. Estância de
Coronel Simão Soares da Silva, formada a partir de duas sesmarias: uma comprada
do Capitão Bernardo José Pereira, em 1805, com carta de sesmaria e confirmação
em 1815; e outra comprada de Antônio José Pereira, concedida legalmente, mas
sem confirmação até a morte do coronel, em 1818.36 A propriedade foi dividida
entre os herdeiros do coronel.
6. Estância das Almas, pertenceu ao Tenente-coronel Antônio Baptista
Barbosa, foi dividida em inventário e várias partes foram vendidas, sendo que José
Soares da Silva, filho do Coronel Simão Soares, comprou duas partes da herança.37 7. Fazenda São João e Fazenda Santa Isabel (delimitadas pelos arroios Santa Isabel e Evaristo), pertenceram ao sargento-mor João Cardoso de Gusmão, que
comprou a Fazenda Santa Isabel da herança do Dr. Firmino José da Silva Falcão.
Informações de: Inventário de Melchior Cardoso Osório. APERS. Comarca de Pelotas.
Processo de Inventário nº 280, caixa 006.0396, com os inventários de suas duas esposas anexos
aos autos, o título de carta de sesmaria foi retirado dos autos, por uma bisneta de Melchior em
1905; Inventário de Isabel Eufrásia Ozório, ano 1845. APERS. Processo de Inventário nº 11,
caixa 006.101; e Inventário de Antônio Manoel Rodrigues de Carvalho. APERS. Comarca de
Pelotas. Processo de Inventário nº 290, caixa 006.0397.
36
As informações referentes aos limites da propriedade estão confusas na justificação de sesmaria, no entanto, confrontando-se com as descrições contidas nos inventários é possível chegar a confrontações mais coerentes. Confira: Inventário de Joaquina Rosa do Nascimento, 1825.
Com inventário do Coronel Simão Soares da Silva, 1819, anexo aos autos. APERS. Comarca do
Rio Grande do Sul. Vara de Família, Sucessão e Provedoria. Processo de Inventário nº 90, caixa
006.0384; e Justificação de Requerimento de Sesmaria de Simão Soares da Silva. AHRS. Coleção
Sesmarias. Nº 836 – maço 73, caixa 27.
37
Ainda não encontramos a carta de sesmaria de referida propriedade. Confira: Inventário de
José Soares da Silva, 1820. APERS. Comarca de Pelotas. Processo de Inventário nº 55, caixa
006.0380.
35
179
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Dr. Firmino havia herdado a propriedade do pai, Luiz da Silva Pereira, um dos primeiros
povoadores efetivos da região. Outras datas de terra, de menor tamanho, foram acrescentadas às propriedades. João Cardoso de Gusmão faleceu por volta de 1816, tempos
depois, as fazendas foram adquiridas pela família de João Francisco Vieira Braga, e após
a morte deste, repartidas entre os seus herdeiros.38
8. Estância do Evaristo, pertenceu ao Alferes José Cardoso de Gusmão, após
a morte do alferes em 24 de novembro de 1824, a viúva vendeu a fazenda entre 1832 e
1833 e a família retirou-se para a Vila de São Francisco de Paula.
Figura 1 - Localização das estâncias e da área colonial de São Lourenço.
Estas são as principais propriedades localizadas próximas à Colônia São Lourenço, em especial, a propriedade nº 2, como veremos no tópico seguinte, e a propriedade nº 3, que teve partes compradas por Rheingantz, para a expansão do núcleo colonial.
No entanto, existem várias outras grandes fazendas na região, bem como moradores e
proprietários menores, citamos três regiões que contemplem vários moradores:
9. Várias propriedades na costa do Rio Camaquã. No local, existiam datas de
terras pertencentes a diversos proprietários, entre eles estão as família Pereira da Silva,
João Emílio, Reis Padilha, Silveira Duarte, Gomes de Farias, entre outras.
Conforme: Justificação de Requerimento de Sesmaria de João Cardoso de Gusmão, nº 544 –
maço 40, caixa 14; e Inventário de Maria Angélica Barbosa, 1847. Comarca de Pelotas. Processo
de Inventário nº 286, caixa 006.0397. Com inventário do Capitão João Francisco Vieira Braga
anexo aos autos.
38
180
10. Região conhecida como Faxinais, possuindo vários proprietários, entre eles: família
Moraes, descendentes de Francisco Caetano da Fonseca, família de Francisco Luna,
descendentes de João Pereira da Silva.
11. Região dos Quevedos. Terras da família Rodrigues de Quevedo, Bilhalva,
Andrade, Leal, Almeida, entre outras. A maior parte desses grupos familiares possuem
vínculos de parentesco através de casamentos. A família Rodrigues de Quevedo era um
grupo familiar bastante extenso, oriundo de São Paulo, e assentados no lugar que hoje é
o limite dos municípios de São Lourenço e Canguçu. Tal região ficou conhecida como
Campos Quevedos, atual distrito do município de São Lourenço, assim como uma parte
da colônia, em áreas que pertenceram à família, foi denominada Picada Quevedos.
Tratamos, portanto, de algumas das principais propriedades, ou fazendas, ao
redor da colônia. Passaremos a tratar de uma importante relação estabelecida entre um
estancieiro local e o empresário estrangeiro Jacob Rheingantz.
A fundação da colônia São Lourenço: o apoio local
A construção e organização da Colônia São Lourenço foi um projeto do empresário renano Jacob Rheingantz, que, até 1857, foi sócio de uma casa comercial em
Rio Grande, no sul do Rio Grande do Sul. Ele havia emigrado da Europa por volta
de 1840, esteve nos Estados Unidos por cerca de 3 anos, onde deveria encontrar um
dos seus irmãos, que já morava naquele país. Ao desembarcar, no entanto, recebeu a
notícia de que seu irmão falecera. Forçado a reorganizar seus planos, conseguiu trabalho em uma empresa envolvida com o comércio de embarcações e, assim, acabou
no Brasil, quando acompanhou a entrega do Vaporzinho Rio-grandense à firma de
Guilherme Ziengenbein, em Rio Grande. Após a chegada, Rheingantz ficou trabalhando com Ziengenbein, até que em 1848 casou com a enteada de seu patrão,
Maria Carolina, e tornou-se sócio da firma, passando a zelar pela filial da empresa
em Pelotas.39
Nos anos seguintes, Rheingantz procurou terra e recursos para organizar
uma colônia. Em 1855, com informações do Vereador de Pelotas Domingos José de
Almeida, tomou conhecimento de um terreno devoluto na Serra dos Tapes,40 que já
Conforme COARACY, Vivaldo. Op. cit.
Conforme carta do vereador Domingos de Almeida para Jacob Rheingantz: “Importo
Vmçe. por a presente de que na Freguesia do Boqueirão existe um ótimo terreno devoluto com
proporções para acomodação de mais de 500 famílias, que queiram cultivar e enriquecer-se
do produto da lavoura e da indústria, que podem desenvolver pela facilidade de transporte na
Lagoa dos Patos, que lhe fica próxima, não desista do projeto concebido, contando como deve
contar com o franco e leal apoio do Exmo. Sr. Presidente da Província e comigo para tudo o
mais em que ver espera ser prestável.” (Carta de Domingos de Almeida a Jacob Rheingantz,
enviada em 30 de outubro de 1855. Acervo da Biblioteca Pública de Pelotas).
39
40
181
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
era visado pelo governo provincial e, também, pelo municipal para a construção de
uma colônia de imigrantes, pelo menos, desde 1847. Entre 1856 e 1857, comprou
as terras do Império e buscou possíveis financiadores dispostos a colaborar com o
empreendimento, mas precisava convencer os brasileiros de que sua colônia seria
viável e que era digno de confiança para administrar o negócio. Uma tarefa difícil que
angustiava o seu procurador, Luiz Braga, fazendo este concluir que eram poucos os
que conheciam o tipo de empreendimento na região, e que “eles [os estancieiros e
charqueadores, descendentes de luso-brasileiros estabelecidos em Pelotas] só gostam
de ver os dinheiros amontoados e sem aplicação alguma para benefício seu ou do público”, sendo esta “a ilustração destes ricos que só enxergam a ponta de seu nariz”.41
Apesar do desapontamento de Braga, o principal financiador, o estancieiro
Oliveira Guimarães, já havia se comprometido com o projeto, e Rheingantz passou
a lutar para conseguir dinheiro com outros estancieiros e charqueadores. Após a assinatura do contrato com Guimarães, Luiz Braga articulou charqueadores da Costa
do Arroio Pelotas, através do Sr. Paiva, para arrecadar valores para trazer a primeira leva de imigrantes. Conforme uma de suas cartas, ele apenas havia conseguido
“poucas assinaturas”, mas que as subscrições continuariam e o apoio de alguns vereadores de Pelotas e Rio Grande era uma vantagem que se conseguia perante o
Governo Provincial.42 Independentemente destes “empréstimos”, a construção da
colônia se efetuou por contrato entre Rheingantz e Oliveira Guimarães, que delegou
ao “prussiano”,43 no primeiro momento, a tarefa de agenciar os colonos e entregar a
eles comida e ferramentas.
O contrato entre os dois foi firmado em 15 de março de 1857, sendo que
cabia ao empresário Rheingantz o recrutamento dos colonos e administração do núcleo colonial, tarefa exercida pelo seu pai, Guilherme Rheingantz, no momento inicial da colônia, e ao estancieiro ficou designado o papel de comprar outras terras para
dar acesso à colônia e completar seus espaços, além de prover agasalhos, alojamento
e transporte aos colonos do porto de São Lourenço até seus lotes, incluindo ainda
Carta de Luiz Braga a Jacob Rheingantz escrita em 31 de março de 1857. BRG. Coleção
Família Rheingantz.
42
Braga falou em 3 contos e 400 mil réis arrecadados inicialmente, e citou entre as famílias
apoiadoras: Ribas e o Dr. Affonso Guimarães. Cf. Cartas de Braga para Rheingantz, em 31 de
março e 13 de abril de 1857. BRG. Coleção da Família Rheingantz.
43
O uso do termo prussiano (natural da Prússia) é recorrente nas fontes, sejam elas listas de
imigrantes, livros de registros católicos, correspondências, entre outros documentos. Não queremos dizer que não encontramos o termo alemão ou Alemanha em alguns documentos, aliás,
podemos dizer que ao longo do século XIX a documentação que confrontamos mostra um
crescimento do uso do termo alemão, ou seja, é mais frequente encontrarmos o termo “alemão”
nos documentos que trabalhamos, principalmente, com a aproximação do fim do século e da
Unificação Alemã, mas salientamos a considerável regularidade com a qual nos deparamos com
o termo prussiano ou Prússia.
41
182
o repasse de animais vacuns, cavalares e aves de criação. Uma das últimas cláusulas
do contrato definiu que Oliveira Guimarães poderia “tirar dinheiros a prêmio” para
realizar as medições e subdivisões dos lotes. Para este trabalho, em 8 de julho do
mesmo ano, o estancieiro contratou o agrimensor Carlos Otto Knüppeln e lavrou
outro contrato com seus aliados, que financiaram recursos em moeda corrente,44
onde garantia o pagamento do dinheiro que recebeu.
De certa forma, o contrato entre Oliveira Guimarães e Rheingantz, que
durou 5 anos, possibilitou a construção da colônia, ligando o empresário alemão
ao líder político local e, dessa maneira, às redes familiares locais (possíveis investidores). Tal proximidade foi importante para a fundação do núcleo colonial e
para o estabelecimento do empresário no interior da Serra dos Tapes, ao mesmo
tempo em que Rheingantz contribuiu com sua colônia para a formação do porto
comercial nas terras de Oliveira Guimarães e para o crescimento do comércio na
região. Sendo, portanto, uma aliança estratégica para ambos, pois possibilitava a
realização dos planos políticos e comerciais tanto de Oliveira Guimarães como de
Rheingantz.
Um exemplo da força dessa aliança, e dos resultados que ela pôde alcançar
em um momento mais imediato à fundação do núcleo, é o primeiro relatório da
colônia enviado à Presidência da Província, em 1858. O documento é uma “carta
de apresentação” escrita por Oliveira Guimarães, que detalha a fundação do núcleo, e introduz politicamente Rheingantz como o seu sócio e articulador do projeto colonizador.45 O diretor mantinha um diálogo com os governantes provinciais
e possuía contatos políticos suficientes para transitar no âmbito político do Rio
Grande do Sul, mas, certamente, uma aliança desta proporção, com nomes locais,
parecia garantir maior segurança para o desenvolvimento dos planos de ambos
fundadores. Entretanto, no decorrer da década de 1860, a aliança entre os dois
enfraquece, e Oliveira Guimarães rompe com Jacob Rheingantz, ou Rheingantz
rompe com Oliveira Guimarães, uma vez que não está claro quais foram os motivos do rompimento.
O contrato com Rheingantz teria gerado discórdias entre a família de Guimarães, que não
queria tal associação (ABREU, s/d, p. 21), mesmo assim os principais parentes se responsabilizaram juntamente com Guimarães. Entre os aliados estavam o tio e sogro Antônio Francisco
dos Santos Abreu e o tio Francisco Vieira Braga, além da parentela com grau mais distante
de parentesco e demais fiéis aliados do distrito: Paulo Joaquim de Souza Prates; Zeferino José
Soares; Jeronymo Pereira da Silva; Pedro Ferreira Lapubla; Francisco de Paula Soares; Vicente
Vieira Braga; Lourenço Henrique Crespo; Américo Pereira da Silva; Antero Rodrigues Soares;
José Maria Ferreira e Vicente Caetano Pinto (PAES, 1909, p. 166, 167).
45 Relatório de José Antônio de Oliveira Guimarães ao Presidente da Província Ângelo Muniz
da Silva Ferraz, em 20 de Fevereiro de 1858. AHRS. Colonização. São Lourenço – Anos de
1863-1867. Maço 72, Caixa 37.
44
183
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
No que compete ao estancieiro, cabe dizer que seus projetos obtiveram algum apoio. Entre 1857 e 1858, Oliveira Guimarães, que era Subdelegado do distrito,
usando de toda a sua rede de relações e de seu prestígio, tentou transferir a sede da
freguesia do Boqueirão, que ficava mais próxima do núcleo colonial, para um pequeno povoado que ele estava construindo em uma faixa de terras doada por
ele mesmo, junto a sua fazenda (propriedade nº 2 – Figura 1). Nesse lugar,
chamado de porto (ou de praia – referência à costa litorânea da Laguna dos
Patos), Oliveira Guimarães conseguiu reunir alguns moradores e construir um
porto fluvial (no Arroio São Lourenço, que desemboca na Laguna dos Patos
e, na época, cortava suas terras) para receber os imigrantes alemães. A ideia
do Subdelegado era incentivar o comércio e ampliar o vilarejo com a venda
de novos terrenos desmembrados da sua propriedade. Um relatório do padre
Francisco Theodório de Almeida Leme para o governo provincial, em 1858,
expôs a situação social da freguesia, do povoado e dos primeiros moradores
da colônia, e foi uma das ferramentas que o governo utilizou para entender
se a transferência da freguesia iria prejudicar ou auxiliar os moradores locais.
Resumidamente, o cônego Almeida Leme mostrou aos governantes
a situação de pobreza vivida pelos moradores da região. Segundo ele, após a
guerra farroupilha, a falência e a morte de muitos moradores que podiam levar
ao crescimento do povoado fez com que a freguesia entrasse em decadência
econômica e social. O padre reclamou que os moradores não respeitavam as
autoridades, nem a ele, padre, pois até sepultamentos eram realizados na frente das casas, desrespeitando a religião, de tal forma que chegou a pedir ajuda
das autoridades policiais para que cessassem essas afrontas. Mostrou, segundo
relatos dos mais velhos, que os fazendeiros se uniram e escolheram aquele lugar, o exato centro de uma região de estâncias, para construírem uma capela,
e que, depois de doações desses estancieiros, muitas pessoas se arrancharam
ao redor da igreja, formando o povoado.
Se, em outros momentos, a pobreza geral da freguesia fazia com que
as pessoas fossem favoráveis à transferência da sede para um lugar com possibilidades maiores de comércio e de acesso, já que as estradas foram melhoradas, apenas em 1857, para receberem os colonos, a instalação do núcleo colonial alterou a opinião do padre e de outras autoridades. Para Almeida Leme:
a Igreja [mística] de Jesus Cristo é para edificar, e não para
destruir, máxime que se achando a Colônia do Rheingantz
tão perto, que os colonos todos os dias de preceito vem a pé
assistirem as missas paroquiais, não se há de agora mudar a
Freguesia para o aqui há pouco tempo tornar-se criar nova
paroquia por causa daquela colônia, e quase mil almas de ha-
184
bitantes da distancia de uma légua ao redor, que pela necessidade
de todos, estariam sempre a reclamar pela antiga Freguesia.46
Assim, ao mesmo tempo em que a colônia atendia as demandas
e projetos de Oliveira Guimarães, trazendo bons negócios para o seu porto, barrava suas intenções mais políticas de trazer a sede da freguesia para
a vizinhança da sua propriedade. O padre Almeida Leme reconheceu que a
perspectiva dos negócios na parte portuária de São Lourenço traria bons resultados e trabalho para “a gente”, mas se preocupava com a exploração dos
moradores mais pobres, pois na Freguesia do Boqueirão “há [havia] terrenos
para a pobreza edificar suas habitações, sujeitas a algum arrendamento, e não
em S. Lourenço onde o dono não os dará grátis”.
Mesmo tendo seu projeto de transferência da sede administrativa local negado nesta época, o crescimento do porto e o desenvolvimento daquele
povoado, na Fazenda do Porto de São Lourenço, possibilitaram a criação de
uma nova igreja e, anos depois, da criação da Freguesia de São Lourenço, no
entanto, a sede administrativa somente foi retirada do Boqueirão depois da
emancipação política local, e após a instauração da República, em 1890.
Referências Bibliográficas
ALVES. Francisco das Neves. Fontes documentais para o estudo da história do Rio
Grande do Sul no acervo da biblioteca rio-grandense: a coleção Rheingantz (Levantamento
parcial). IN: Biblos, Rio Grande, n. 12, 2000. p, 49-64.
ARRIADA, Eduardo. Pelotas: Gênese e desenvolvimento urbano (1780-1835). Pelotas: Armazém Literário, 1994.
BARROSO, Vera Lucia Maciel. O povoamento do território do rio grande do sul/brasil
o oeste como direção. Revista digital Estudios Historicos – CDHRP, Agosto 2009, nº
2. ISSN: 1688 – 5317. Disponível em: http://www.estudioshistoricos.org/
edicion_2/vera_maciel.pdf Acesso em: 20/02/2010.
BETEMPS, Leandro; JACOTTET, Alda Maria. Povoadores de Pelotas/RS. Freguesia de São Francisco de Paula (1812-1825). Pelotas: Ed. Universitária/UFPEL,
2006.
BOSENBECKER. Patrícia. A colônia cercada de estâncias: imigrantes em São Lourenço/RS (1857-1877). Porto Alegre, PPG-História/UFRGS, 2011. (Dissertação de Mestrado).
Relatório do cônego Francisco Theodório de Almeida Leme ao presidente da Província Ângelo Muniz da Silva Ferraz, em 24 de outubro de 1858. AHRS. Clero Católico, Paróquias. Nossa
Senhora da Conceição do Boqueirão. AR09. Maço 18.
46
185
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
COARACY, Vivaldo. A Colônia São Lourenço e o seu fundador Jacob Rheingantz. São
Paulo: Saraiva, 1957.
COSTA, Jairo Scholl. Origens históricas do município de São Lourenço do Sul.
IN: IN: COMISSÃO CENTRAL DO CENTENÁRIO. São Lourenço do Sul cem
anos: 1884-1984. Porto Alegre, CORAG, 1984.
COSTA, Jairo Scholl. Navegadores da Lagoa dos Patos. A saga náutica de São Lourenço
do Sul. São Lourenço do Sul: Ed. Hofstater, 1999.
COURLET, Beatriz Azevedo. Identidadesem uma zona de fronteira : a região do prata
no período colonial. Anais eletrônicos da Segunda Jornada de História Comparada/
FEE: Porto Alegre, out. 2005. Disponível em: http://www.fee.tche.br/sitefee/
download/jornadas/2/h4-03.pd”das/2/h4-03.pd. Acesso em: 20/02/2010.]
ELIAS, Norbert e SCOTSON, John. Os estabelecidos e os outsiders. Sociologia das
relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio Janeiro: Zahar Editor, 2000.
FARINATTI, Luís Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária
na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Rio de Janeiro, PPG-História Social/UFRJ,
2007. 421p (tese de doutorado)
GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas e olarias: um estudo do espaço pelotense.
Pelotas: Ed. Universitária, 1994.
HAMEISTER, Martha Daisson. Na pia de batismo: Estratégias de interação, inserção e exclusão social entre migrantes açorianos e a população estabelecida na Vila
de Rio Grande através do estudo das relações de compadrio e parentesco fictício
(1738-1763). IN: Anais eletrônicos do congresso da ABPHE, 2003. www.abphe.
org.br/congresso2003/textos/abph_2003_91.pdf Acesso em 17 de junho de
2007.
IEPSEN, Eduardo. Jacob Rheingantz e a colônia São Lourenço: da desconstrução de
um mito à reconstrução de uma história. São Leopoldo: Universidade do Vale do
Rio dos Sinos, 2008. 280 pg. (Dissertação de Mestrado).
KLIEMANN, Luiza Helena Schmitz. RS: terra e poder. História da questão agrária.
Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986.
LANDO, Aldair e BARROS, Eliane. Capitalismo e Colonização. Os alemães no
Rio Grande do Sul. IN: Dacanal, José H. e Gonzaga, Sérgius. RS: Imigração e Colonização. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980.
MERTZ, Marli. As origens de um sistema agrário singular no Rio Grande do Sul. Textos
para discussão da Fundação de Economia e Estatística/RS. Porto Alegre, set
2008 nº. 40. Disponível em: http://www.fee.tche.br/sitefee/download/tds/040.
pdf. Acesso em: 20/02/2010.
NEVES, Ilka. Canguçu/RS. Primitivos moradores, primeiros batismos. Pelotas: Ed. Universitária/UFPEL, 1998.
186
OSÓRIO, Helen. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores
e comerciantes. Porto Alegre: EDUFRGS, 2007.
PAES, Augusto Moreira. A Colônia São Lourenço. IN: RODRIGUES,
Alfredo Ferreira. Almanak literário e estatístico do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: Pinto e Cia/Livraria Americana, 1909. p. 164-167.
PELLANDA, Ernesto. A colonização alemã no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Oficinas gráficas da Livraria do Globo, 1925.
PETRONE, Maria T. S. O imigrante e a pequena propriedade. São Paulo: Ed.
Brasiliense, 1982.
RHEINGANTZ, Carlos Grandmassom. Jacob Rheingantz (1817-1877).
Fundador da Colônia de São Lourenço. Seus ascendentes e descendentes.
Separata da Revista Genealógica Brasileira. São Paulo, II Ano, n. 4, 1941.
RHEINGANTZ, Carlos Guilherme. Colônia de São Lourenço. Breve
Histórico de sua fundação, extrahido das notas do archivo de seu fundador Jacob Rheingantz. IN: RODRIGUES, Alfredo Ferreira. Almanak
literário e estatístico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Pinto e Cia/Livraria
Americana, 1909. p. 143-164.
ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ed.
Globo, 1969. 2 volumes
RUBERT, Arlindo. História da Igreja no Rio Grande do Sul. Porto Alegre:
EDPUCRS, 1998.
SEYFERTH, Giralda. Imigração e cultura no Brasil. Brasilia: Ed. UNB, 1990.
WEBER, Regina. A construção da “origem”: os “alemães” e a classificação trinária. In: RECKZIEGEL, Ana Luiza Setti, FELIX, Loiva Otero.
RS: 200 anos definindo espaços na história nacional. Passo Fundo: Editora da
UPF, 2002. p. 207-215.
____________, BOSENBECKER, Patrícia. Disputas pela memória em
São Lourenço do Sul: uma visão histórica de representações étnicas. Cadernos do CEOM. Centro de Memória do Oeste de Santa Catarina. Chapecó/SC. Ano 23, n. 32, jun. 2010. p. 347-369. Disponível em: http://apps.
unochapeco.edu.br/revistas/index.php/rcc/issue/view/77/ShowToc
WILLEMS, Emílio. A aculturação dos alemães no Brasil: estudo antropológico
dos imigrantes alemães e seus descendentes no Brasil. 2 ed. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, Brasília: INL, 1980 [1946].
WITT, Marcos. Em busca de um lugar ao sol: estratégias políticas, imigração
alemã, Rio Grande do Sul, Século XX. São Leopoldo: Oikos, 2008.
WITT, Marcos. Política no litoral norte do Rio Grande do Sul: a participação
de nacionais e de colonos alemães – 1840/1889. São Leopoldo, PPG-História/Unisinos: 2001. (dissertação de mestrado).
187
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
WOORTMANN, Ellen F. Identidades e memória entre teuto-brasileiros: os dois lados do Atlântico. In: Horizontes Antropológicos – Relações
interétnicas. UFRGS-IFCH Ano 6, nº 14. 2000. pp. 205-238.
ZARTH, Paulo Afonso. História agrária do planalto gaúcho (1850-1920).
Ijuí: Ed. Unijuí, 1997.
Fontes Consultadas
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
Relatório do cônego Francisco Theodório de Almeida Leme ao presidente da
Província Ângelo Muniz da Silva Ferraz, em 24 de outubro de 1858. AHRS.
Clero Católico, Paróquias. Nossa Senhora da Conceição do Boqueirão. AR09.
Maço 18.
Relatório de José Antônio de Oliveira Guimarães ao Presidente da Província
Ângelo Muniz da Silva Ferraz, em 20 de Fevereiro de 1858. AHRS. Coleção
Terra e colonização. São Lourenço/empresário/diretor/diversos, maço 72,
caixa 37.
Mappa dos Casamentos, Baptismos e Obitos das pessoas livres como captivas
que tiverão lugar na Freguesia de N. S. da Conceição do Boqueirão desde 1º
de Janeiro até 30 de Junho de 1854. AHRS. Clero Católico. Paróquias. Nossa
Senhora da Conceição do Boqueirão. AR 09. Maço 18. 1853-58.
- Sesmarias
Justificação de Requerimento de Sesmaria de Ignácio Ribeiro Leite, nº 536 –
maço 39, caixa 14.
Justificação de Requerimento de Sesmaria de Simão Soares da Silva, nº 836 –
maço 73, caixa 27.
Justificação de Requerimento de Sesmaria de José Cardoso de Gusmão, nº
827 – maço 63, caixa 24.
Justificação de Requerimento de Sesmaria de João Cardoso de Gusmão, nº
544 – maço 40, caixa 14.
Justificação de Requerimento de Sesmaria de Ignácio Ribeiro Leite. Nº 536 –
maço 39, caixa 14.
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul
-Processos de Inventário:
- Isabel Eufrásia Osória, 1845. APERS. Comarca de Pelotas. Processo nº 11,
caixa 006.101.
188
- Joaquina Rosa do Nascimento, 1825, com inventário do Coronel Simão Soares da Silva, 1819, anexo aos autos. APERS. Comarca do Rio Grande do Sul.
Vara de Família, Sucessão e Provedoria. Processo nº 90, caixa 006.0384.
- José Soares da Silva, 1820. APERS. Comarca de Pelotas. Processo nº 55, caixa
006.0380.
- Melchior Cardoso Osório, 1849. APERS. Comarca de Pelotas. Processo nº 280,
caixa 006.0396.
Inventário de Antônio Manoel Rodrigues de Carvalho, 1850. APERS. Comarca
de Pelotas. Processo nº 290, caixa 006.0397.
- José Cardoso de Gusmão, 1826. APERS. Processo de Inventário nº 85, caixa
006.0383.
- Maria das Neves, 1827, com inventário do marido Ignácio Ribeiro Leite anexo
aos autos. APERS. Comarca de Pelotas. Processo nº 118, caixa 006.0385.
- Manoel José de Oliveira Guimarães, 1812. APERS. Comarca de Rio Grande.
Processo nº 92, caixa 005.081.
- Tenente-coronel José Antônio de Oliveira Guimarães, 1829. APERS. Comarca
de Rio Grande. Processo de Inventário nº 37, (maço 2, estante 59).
- José da Costa Santos, 1827. APERS. Comarca de Pelotas. Processo nº 113, caixa
006.0385
- Ana Joaquina Gonçalves da Silva Santos, 1867. APERS. Processo nº 152, caixa
005.0267.
- José Soares da Silva, 1820. APERS. Comarca de Pelotas. Processo nº 55, caixa
006.0380.
- Maria Angélica Barbosa, 1847. APERS. Comarca de Pelotas. Processo nº 286,
caixa 006.0397.
- José Cardoso de Gusmão. APERS. Processo nº 85, caixa 006.0383.
Biblioteca Pública de Pelotas
Carta de Domingos de Almeida a Jacob Rheingantz, enviada em 30 de outubro
de 1855.
Bispado de Pelotas
- Freguesia de Nossa Senhora da Conceição Do Boqueirão:
Livro I de Batismos do Boqueirão, de 1848 a 1858.
Livro II de Batismos do Boqueirão, de 1858 a 1862.
Livro III de Batismos do Boqueirão, de 1862 a 1873.
Livro I de Casamentos do Boqueirão, de 1848 a 1873.
189
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Biblioteca Rio Grandense
- Coleção Família Rheingantz:
Carta de Luiz Braga a Jacob Rheingantz em 31 de março de 1857.
Carta de Luiz Braga a Jacob Rheingantz em 13 de abril de 1857.
RHEINGANTZ, Carlos Guilherme. Relátorio enviado à Presidencia da Província em
resposta ao pedido de esclarecimento sobre a Colonia São Lourenço em 24 de outubro de 1877.
190
Ferrovia na província de São Pedro: o caso da estrada de ferro
Rio Grande – Bagé
Maira Eveline Schmitz
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo traçar um histórico das primeiras discussões sobre a estrada de ferro Rio Grande – Bagé, localizada na região meridional do Rio Grande do Sul.
Pretende-se, assim, contribuir para a construção do saber relativo à rede férrea no Estado, bem
como demonstrar a riqueza da documentação primária existente, apontando possíveis locais de
pesquisa. Em um primeiro momento, assim, abordar-se-á brevemente a história da rede férrea
gaúcha, apontando suas principais motivações e as condições necessárias para sua efetivação.
Após, analisar-se-á os debates e discussões relativos ao traçado da estrada de ferro focalizada.
Palavras-chave: História – Ferrovia – Estrada de ferro – Rio Grande-Bagé
Introdução
O
século XIX, de forma geral, pode ser considerado um momento
de transformação, mais do que de estruturas políticas ou econômicas, das formas de ver, sentir e estar no mundo. Palco para
novidades produzidas pelo homem, foi o século da revolução industrial, do desenvolvimento da técnica, do fortalecimento do regime do tempo e do relógio
e da aproximação dos mundos. Inúmeros ícones desta “virada moderna”, assim,
podem ser citados, como os motores a vapor para a indústria, a iluminação a gás,
o telégrafo, o telefone, a eletricidade, a fotografia, as estradas de ferro. Acelerando
a comunicação e o transporte e criando confortos que a nova classe média requisitava, estes melhoramentos são representantes de um novo modo do ser social e
cultural no ocidente.
Reconhecendo que este momento de transição se apresenta – e se representa – por meio de variados símbolos, Peter Gay defende que, de todas as
invenções do século XIX, são as estradas de ferro as que melhor exemplificam a
“sensação vertiginosa” que possuíam as pessoas “de viver numa tempestade de
prodigiosas transformações daquilo a que estavam habituados”1. As ferrovias ocasionaram transformações não somente por sua existência física e “real”, desenvolvendo o transporte, propiciando ou impedindo a urbanização. Os trens passaram
a adentrar a imaginação das pessoas, modificando a forma como estas se afinavam
com o tempo, com a velocidade e seus estímulos e com o próprio espaço.
GAY, Peter. O século de Schnitzler: a formação da cultura da classe média. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002, p.164.
1
191
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Metaforicamente falando, apesar de as ferrovias serem um objeto histórico por excelência, pois lidam e interferem com os dois principais conceitos da História – o tempo e o espaço – os estudos sobre esta temática, no Rio Grande do Sul,
ainda não obtiveram um relevo considerável. Poucos são os esforços em construir
reflexões e narrativas sobre o seu processo de instauração, desenvolvimento e usos,
principalmente no tocante aos seus primeiros anos de funcionamento.
Esta escassez de pesquisas, além de acarretar em uma lacuna historiográfica, traz efeitos sobre a própria organização das fontes primárias sobre o tema. Não
ignorando os esforços de alguns arquivos específicos – como o Museu do Trem,
na cidade de São Leopoldo-RS – a documentação sobre a ferrovia no Estado se
encontra bastante dispersa e, principalmente, pouco conhecida. Se a falta de sistematização documental reflete dificuldades para as pesquisas, a falta de pesquisas
acaba por manter esta situação, uma vez que estes acervos não são explorados em
toda a sua potencialidade.
Levando em conta esta situação, o presente trabalho tem por objetivo
traçar um histórico das primeiras discussões sobre a estrada de ferro Rio Grande
– Bagé, localizada na região meridional do Rio Grande do Sul. Pretende-se, assim,
contribuir para a construção do saber relativo à rede férrea no Estado, bem como
demonstrar a riqueza da documentação primária existente, apontando possíveis
locais de pesquisa.
A Ferrovia na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul
A história das estradas de ferro no Rio Grande do Sul, conforme o inventário das estações ferroviárias elaborado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico do Estado (IPHAE), tem início em 1866, com os debates na Assembléia
Provincial acerca da construção de uma linha que interligasse a zona de colonização alemã, no vale do Rio dos Sinos, com a capital Porto Alegre2. O direito de
construção foi cedido a uma empresa inglesa, sendo inaugurada a primeira seção
da estrada em 1874.
De acordo com o historiador Caryl Eduardo Jovanovich Lopes, “o assunto dos transportes era a tônica na pauta da Assembléia” e seguindo a febre dos trilhos
de ferro que varria o Império brasileiro, a solução encontrada foi a fundação de uma
estrada de ferro até Hamburger-Berg – atual Novo Hamburgo3. Posteriormente a
IPHAE (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado). Patrimônio Ferroviário
no Rio Grande do Sul: Inventário das Estações 1874-1959. Porto Alegre: Pallotti, 2002. p.19.
3 LOPES, Caryl E. J. A Compagnie Auxiliare de Chemins de Fér au Brésil e a cidade de
Santa Maria no Rio Grande do Sul, Brasil. 2002. Tese (Doutorado em Arquitetura). Universidade Politécnica da Catalunha, Barcelona. p.70.
2
192
esta linha pioneira, foi sendo implantada na Província uma rede de estradas de ferro,
seguindo quatro linhas principais: as Estradas de Ferro Porto Alegre – Uruguaiana,
Rio Grande – Bagé, Santa Maria – Marcelino Ramos e Barra do Quarai – Itaqui. “A
ferrovia rio-grandense era estratégica e de incontestável poder político, importante
elemento de repressão ao contrabando nas fronteiras do Uruguai e Argentina, valioso instrumento para a atenção as colônias de imigrantes e, por isso, meta do governo
gaúcho”4.
Focalizar-se-á, aqui, a linha que vai do Rio Grande à Bagé por sua importância na região de Pelotas e por ser a primeira via férrea a passar pela cidade. Esta
estrada fazia parte do projeto inicial da rede ferroviária para a Província, apresentada
em 1872 pelo engenheiro J. Ewbank da Câmara, sendo aquela denominada por ele
de “Tronco Sul”. Sua construção foi autorizada a partir de um decreto imperial, em
1873, juntamente com a linha Porto Alegre – Uruguaiana.
A concessão de sua construção passou por vários nomes, começando pelo
empresário Hygino Corrêa Durão, que a princípio parece ter desistido dos direitos.
A concessão passa para a Compagnie Imperiale des Chemins de Fer du Rio Grande do Sul, de
origem belga, a qual em 17 de fevereiro de 1883 foi autorizada a fundir-se com a Southern Brazilian Rio Grande do Sul Company. Foi a partir desta fusão que, afinal, ocorreu a
construção da linha5. A Southern Brazilian Rio Grande do Sul Company deteve os direitos
da estrada até 1905. Neste ano, o controle passa para a Compagnie Auxiliare des Chemins
de Fer au Brésil, até ser encampada pelo governo estadual em 1920, federalizada em
1957 e desestatizada, voltando ao capital privado, ao longo da década de 1990. Os
primeiros contratos, projetos e discussões datam da década de 1870 e podem ajudar a
compreender as dinâmicas que de certa forma determinaram o próprio trabalho das
companhias que prosseguiram na concessão.
Como afirma Lopes, a rede ferroviária gaúcha, ao contrário da tendência
geral brasileira, foi fruto de um planejamento. Ela “não nasceu da união ocasional
de vias, mas, sim, como resultado de um projeto fundamentado que se tornou realidade nas últimas décadas do século XIX e princípios do XX”6. A ideia das vias
férreas como uma rede é abordada também por Lidia Maria Possas, no seu estudo
sobre a Noroeste paulista, aonde esta aparece como discurso somente nas décadas
de 30 e 40:
Ela [a rede férrea] deveria ser pensada como “artérias” que conduzem o fluxo sanguíneo, alimentando todo o organismo nacional. Essa idéia compartilhava também com a possibilidade
LOPES, Caryl E. J. A Compagnie Auxiliare de Chemins de Fér au Brésil... p.70.
IPHAE (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado). Patrimônio Ferroviário
no Rio Grande do Sul... p.20.
6
LOPES, Caryl E. J. A Compagnie Auxiliare de Chemins de Fér au Brésil... p.70.
4
5
193
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
de os trilhos energizarem o papel das cidades grandes, alimentando, provendo as menores e assim realizando as trocas comerciais e econômicas, intensificando a propagação de idéias e
alargando progressivamente o horizonte nas localidades mais
isoladas, pela penetração de focos de civilização. Era a completa racionalidade em prol da domesticação do sertão selvagem
e bárbaro.7
Se na Europa ocidental de meados do XIX, a ferrovia solidifica um ideário de mudança, acompanhando uma série de transformações técnicas e científicas, no Brasil as estradas de ferro ganham ares de “energizadoras”, literalmente
transportando os benefícios e a civilização pelos locais mais incautos. Houve
uma crença muito fortalecida de que os caminhos de ferro, ao adentrarem sertões, selvas e regiões pouco habitadas, poderiam levar em seus trilhos a cultura,
os modos e a condição de vida das “civilizações”.
E na região sul da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul não seria diferente. A atuação esperada das linhas férreas era em relação principalmente
ao fortalecimento comercial, industrial e econômico. Ao lado disto, evidentemente, o desenvolvimento das localidades, fossem elas cidades consolidadas, ou
povoações necessitando de um impulso. Não faltavam, assim, motivações bem
fundamentadas para a construção da estrada de ferro.
As pessoas ainda as menos versadas nos conhecimentos econômicos e administrativos não desconhecem que as fáceis vias
de communicação marítimas, fluviaes e terrestres são no presente século um dos principais elementos do desenvolvimento
das industrias e progresso da riqueza das nações.
É, portanto, certo, e incontestável que se devem promover e auxiliar
todas as vias de communicação entre os centros productores e os mercados
commerciaes e consumidores, e principalmente em paizes novos como o Brasil,
onde o systema de viação agora é que se começa a ensaiar.8
Este fragmento foi retirado de um pequeno livreto, Considerações sobre a
directriz da Estrada de Ferro da cidade do Rio Grande a Alegrete na província do Rio Grande
do Sul, editado em 1874 no Rio de Janeiro e assinado somente como “Um Rio-Grandense na corte”. As razões específicas de sua publicação serão abordadas
mais adiante, mas neste momento já se pode perceber a coadunação do autor com
POSSAS, Lidia Maria V. Mulheres, trens e trilhos: modernidade no sertão paulista. São
Paulo: EDUSC, 2001. p.88.
8
UM RIO-GRANDENSE na corte. Considerações sobre a directriz da Estrada de Ferro
da cidade do Rio Grande a Alegrete na província do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro:
Typographia Universal de E. & H. Laemmert, 1874. p.3. Acervo do Centro de Documentação
e Obras Valiosas da Bibliotheca Pública Pelotense.
7
194
a noção que permeava o tema das ferrovias e dos transportes neste período. A
interligação dos territórios era a tônica do momento, visando fortalecer o ideal de
nação e de Império.
Em seu livro Estradas de ferro no Brazil, José Gonçalves de Oliveira aponta também esta característica. Particularmente, coloca as linhas do Rio Grande
do Sul, ao lado da que liga São Paulo e Matto Grosso, como as que merecem a
atenção do governo mais do que todas as outras, “por interessarem directamente
a integridade da nação”9. Lidia Maria Vianna Possas explica de certa forma esse
ideário:
No Brasil, no entanto, esse conjunto de artefatos de ferro, os trens, os
trilhos e as locomotivas com suas estações feitas de vidro e ferro não foram associadas à arte, como “monumentos móveis”, exaltação estética do espetáculo
fabril da modernidade urbano-industrial. Para justificar o alto custo de seus investimentos e defender traçados na maioria das vezes decididos pelas particularidades e interesses pessoais, o projeto era ajustado a imagens fortes de integração
nacional e continental e de uma civilização que chegava para libertar o país da
condição de atraso e distribuir condições de riqueza.10
No Brasil, a ferrovia e todos os seus elementos não chegam
para consolidar e fortalecer o momento industrial e urbano.
Pelo contrário, por muito tempo foram a esperança do desenvolvimento desta condição moderna para o país, de possibilitar
a criação de uma indústria interligada à produção agrícola e,
por conseqüência, estimular o crescimento de cidades. Mas estas escolhas não se davam de forma aleatória, ou baseadas no
que possivelmente poderia ser “o melhor para a nação”; como
todo empreendimento, muitos interesses pessoais e privados
se encontravam em jogo, os quais necessitavam forjar ideários
e discursos que os legitimassem de forma a ser aceitos pela
massa populacional.
Se esta noção apresentada é mais genérica, as peculiaridades locais da
Província não deixam de receber ênfase nos escritos:
Não há uma só pessoa que, tendo viajado pelo centro do Brasil, deixe
de admirar a fertilidade do nosso sólom que produz todas as espécies de cultura
nas diversas zonas que o atravessão; ao mesmo passo que observa a carestia dos
gêneros mais communs da nossa alimentação, porque os lavradores deixão de
planta-los em grande escala por ser difficil e caro o seu transporte para as cida OLIVEIRA, José Gonçalves. Estradas de ferro no Brazil. 2ªed. São Paulo: Casa Vanorden,
1912. Acervo do Museu do Trem, São Leopoldo.
10
POSSAS, Lidia Maria V. Mulheres, trens e trilhos: modernidade no sertão paulista. São
Paulo: EDUSC, 2001. p.70.
9
195
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
des populosas e commerciaes, e por isso não chega o producto das vendas paras
despezas dos fretes: todos são unanimes e concordes em que a mais urgente
necessidade do Brasil é traçar e construir vias férreas, e de rodagem em todas as
direções dos centros populosos das nossas cidades centraes e marítimas.11
Comparando o solo gaúcho ao restante do país, o autor consegue tornar a
produção agrícola da Província o principal motivo para a construção de uma ferrovia e, ao mesmo tempo, o grande problema a ser solucionado por ela. Demonstra
que a região tem as condições para suprir as necessidades comerciais de uma estrada de ferro, mas ao mesmo tempo necessita dela – é uma motivação – para que
efetive tal capacidade.
No relatório publicado pelo engenheiro chefe Eduardo José de Moraes, o tema
produtividade também é apresentado. Ele aponta que em um relatório do Ministério da
Agricultura do ano de 1877 foi afirmado que a região sul, ao contrário da zona norte da
Província, por mais que parecesse rica, criadora e industrial por ora, não teria condições
de manter uma estrada de ferro futuramente. Sendo assim, a construção desta deveria se
dar com base não nos critérios produtivos, mas somente como meio de defesa territorial. Ao que o engenheiro Eduardo José de Moraes rebate:
...a região entre Pelotas e Bagé, por Cangussú, póde manter na actualidade
uma estrada de ferro, da mesma bitola adoptada na linha do Norte, por ser ella immediatamente productiva, o que aliás nunca foi demonstrado para a denominada
estrada de ferro do Norte.
A construcção da estrada de ferro entre Pelotas e Bagé (...) se é grande a
sua utilidade sob o ponto de vista commercial, maior é ainda sua necessidade sob
o ponto de vista militar.12
Há uma combinação, nesta perspectiva, das condições comerciais produtivas
e estratégicas militares. Ainda que os pontos de vista não concordem quanto ao grau
de efetividade de cada um deles para uma estrada de ferro no sul, ambos são sempre
citados e levados em consideração nos motivos da construção da linha. A comparação
entre Norte e Sul mostra que os interesses pela ferrovia estavam presentes em toda a
Província, buscando sua relevância e muitas vezes se confrontando. O discurso, no entanto, acaba sempre pendendo para a união dos territórios e José Eduardo de Moraes
termina seu ponto argumentando que, após a construção de ambas as vias, um ramal
que as interligue poderia – e deveria – ser efetivado.
Chama a atenção na citação acima, ainda, o adendo “por Cangussú” como
ligação entre as cidades de Pelotas e Bagé. O fato da localidade ter sido mencionada pelo
Um Rio-Grandense na corte. Considerações sobre a directriz... p.4.
MORAES, Eduardo José. A estrada de ferro de Pelotas a Bagé (Memória apresentada á
consideração do governo imperial). São Paulo: Typographia de Jorge Seckler, 1878. p.4. Acervo
do Centro de Documentação e Obras Valiosas, Bibliotheca Pública Pelotense.
11
12
196
engenheiro, mesmo não sendo um ponto considerado nos projetos iniciais, leva a análise
para outra questão: a do traçado que deveria tomar a Estrada de Ferro do Rio Grande a
Bagé e os inúmeros debates e interesses que permearam esta escolha.
A estrada de ferro do Rio Grande a Bagé: debates sobre o traçado
O primeiro contrato para os estudos e construção da linha do sul da Província foi firmado entre o Governo Imperial e o empresário Hygino Corrêa Durão,
em 10 de setembro de 1873, sendo comprovado por decreto em março de 1874:
DECRETO N. 5565 - DE 14 DE MARÇO DE 1874
Approva o contracto para explorações e estudos da linha ferrea
da Cidade do Rio Grande até a Cidade de Alegrete.
Hei por bem Approvar o contracto celebrado com Hygino Corrêa Durão, para explorações e estudos relativos á projectada linha ferrea de que trata a Lei nº 2397 de 10 de Setembro do anno
passado, na parte que se dirige da Cidade do Rio Grande até a
Cidade de Alegrete, sob as clausulas que com este baixam, assignadas por José Fernandes da Costa Pereira Junior, do Meu Conselho, Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da Agricultura, Commercio e Obras Publicas, que assim o tenho entendido
e faça executar. Palacio do Rio de Janeiro em quatorze de Março
de mil oitocentos setenta e quatro, quinquagesimo terceiro da
Independencia e do Imperio.
Com a rubrica de Sua Magestade o Imperador.
José Fernandes da Costa Pereira Junior.13
O decreto imperial que firma a concessão de Hygino Corrêa Durão, ao
lado do relatório (1874) e da memória justificativa (1876) elaborados pelo empresário, é de suma importância no contexto documental e histórico sobre a linha Rio
Grande – Bagé. Seguiu-se, assim, um método de análise que visou confrontar e
comparar a posição de Durão em suas principais questões – perspectiva que teoricamente seria a “oficial” – com a abordagem dada a estas por relatórios, impressões e correspondências de outras origens. Ao fim e ao cabo, espera-se conseguir
perceber as circunstâncias, tensões e posições que envolveram este empreendimento férreo, pelo menos de forma a clarificá-lo um pouco.
Quanto ao traçado da linha do Rio Grande a Bagé, este estava pré-delimitado, pelo menos quanto aos principais pontos, no próprio decreto de 1874. Diz o
contrato firmado por Durão e o Ministério da Agricultura, na condição II:
BRASIL. Decreto nº 5565 de 14 de Março de 1874, o qual approva o contracto
para explorações e estudos da linha ferrea da Cidade do Rio Grande até a Cidade de Alegrete.
Disponível
em
<<http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.
action?id=57089&norma=72941>> acesso em jan. 2012.
13
197
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
A estrada dividir-se-ha provisoriamente em duas partes. A primeira parte será da Cidade do Rio Grande á Cidade de Bagé
constando de cinco secções, sendo a 1ª do Rio Grande á Cidade
de Pelotas, a 2ª de Pelotas á margem do rio Piratinim, a 3ª do
Piratinim ás Pedras Altas, a 4ª das Pedras Altas a Candiota, a 5ª
do Candiota a Bagé; a segunda parte será de Bagé ao Alegrete
constando de tres secções, sendo a 1ª da Cidade de Bagé a D.
Pedrito, a 2ª de D. Pedrito a Santa Maria do Rosario, e a 3ª de
Santa Maria do Rosario a Alegrete. O Governo fará neste plano
as modificações que julgar convenientes.14
Percebe-se que a parte que vai do Rio Grande até Bagé, nesse momento,
ainda segue uma determinação semelhante aos primeiros projetos apresentados
na assembléia provincial por Ewbank da Câmara. Constituiria nominalmente uma
parte da estrada maior até Alegrete, a original “Tronco Sul”, que percorreria as
fronteiras meridionais da Província. Hygino Corrêa Durão ficou incumbido pelo
decreto de fazer “todos os estudos technicos necessarios” e apresentar “planos
definitivos de toda a linha em condições que habilitem para encetar a locação e as
construcções”, entregando posteriormente “a construcção de plantas e perfis das
linhas estudadas” e organizando os “orçamentos e memorias descriptivas do projecto”. De modo geral, os pontos denominados no decreto acabaram se mantendo
nestes relatórios e memórias.
É importante dar ênfase à última frase: “O Governo fará neste plano as
modificações que julgar convenientes”, o que abriu brechas para contestações ao
projeto delineado pelo contratante. Fato este percebido e utilizado como justificativa para a elaboração do já mencionado Considerações sobre a directriz da Estrada
de Ferro da cidade do Rio Grande a Alegrete na província do Rio Grande do Sul (1874). Ao
deixar clara a possibilidade de mudanças no trajeto, o Governo autoriza e incita as
diferentes opiniões a se manifestarem.
Mesmo amenizando sua posição, ao afirmar que não censura a concessão feita pelo Governo Imperial ao empresário, o autor das Considerações visa com
estes escritos comprovar que o traçado escolhido por Durão não responde aos
interesses comerciais, industriais, estratégicos e militares da Província. Afiança sua
posição alegando ser esta a “nossa opinião e a de todos quantos conhecem aquellas
localidades” e “o que a plena luz tem sido demonstrado na imprensa do Rio Grande de todas as cores e credos políticos”. Comprovar que esta não seria uma ideia
simplesmente pessoal, mas consensualmente aceita, foi uma tentativa de lhe dar
certo respaldo social.
As vias de communicação nas províncias limitrophes com os
Estados confinantes devem ser muito estudadas pelo Governo
BRASIL. Decreto nº 5565 de 14 de Março de 1874...
14
198
antes de determinar-lhes a direcção que devem seguir, porque nessas estradas se devem attender as conveniências dos transportes e
aos meios de defesa nas occasiões de guerras com os Estados limitrophes; e nos parece que o Sr. Conselheiro Ministro da Agricultura, Commercio e Obras Publicas não cogitou destes princípios
quando firmou o contracto com o Sr. Durão.
O Governo Imperial, sem oppôr embaraços ao systema de viação terrestre,
deve ser muito cauteloso na concessão de caminhos de ferro para a província do Rio
Grande, e para as outras que com esta limitão o Imperio com as Republicas que o circumdão; jamais se deve decidir sómente em vista das informações e planos apresentados pelos pretendentes de semelhantes emprezas, porque assim procedendo evitará complicações futuras e prejudiciaes aos interesses que lhe cumpre salvaguardar.15
O autor dá forte ênfase ao caráter eminentemente bélico da região escolhida
por Hygino Durão e não poupa críticas, mais do que a este, ao Ministro da Agricultura, por ter aceitado tais termos. Este fato, somado à possível fraca capacidade de
atendimento comercial e industrial, atestaria que a diretriz escolhida não compensa
nenhum dos princípios de uma via férrea. Chega mesmo de forma irônica a afirmar
que o Ministro não teria nenhum conhecimento sobre os territórios em questão –
ainda que tivesse sido presidente da Província alguns anos antes – e que, portanto,
provavelmente teria se deixado convencer de tal traçado pelo empresário.
O interesse de Hygino Côrrea Durão em manter este trajeto, na perspectiva
“de simples intuição” das Considerações, se justificaria pelo desejo de que a estrada
percorresse próxima às minas de carvão de Candiota, de cuja exploração também era
o concessionário. O desgosto do autor parece ser tão profundo que não lhe permite
evitar o cômico comentário de que o empresário “parece que não calculou bem os
seus interesses”, não sendo o traçado a melhor escolha até mesmo para esta motivação16. Sugere, então, que seria
muito melhor que S. Ex.(...) não devia sómente ouvir a parte interessada, porém sim as pessoas mais competentes e praticas dos
municípios que tinha de percorrer a estrada, e até mesmo, encontrando divergência de opiniões, lhe cumpria mandar examinar os
pontos divergentes por engenheiros ao serviço de seu ministério,
ou pelos engenheiros da província; e as despezas que fizesse com
estes estudos, devião correr por conta do Sr. Durão, que requeria
esse privilegio.17
Recorrer ao governo imperial, nos termos do contrato, parece ser a única
alternativa legal para quem buscasse alterações no projeto. Os pedidos para que outras
Um Rio-Grandense Na Corte. Considerações sobre a directriz... p.5-6.
Um Rio-Grandense Na Corte. Considerações sobre a directriz... p.11.
17
Um Rio-Grandense Na Corte. Considerações sobre a directriz... p.11-12.
15
16
199
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
partes e interesses fossem ouvidos eram constantes, mas os pedintes não se limitavam a
isto. O autor das Considerações, assim como outros, sugeriu sua própria noção de melhor
traçado: “os homens mais considerados e práticos dos municípios de Pelotas, Cangussú,
Piratiny e Bagé são unanimes em pensar que a estrada de ferro de Pelotás á Bagé deve
seguir a directriz da antiga estrada de rodagem”18, uma vez que “os negociantes de Bagé
sempre conduzirão as mercadorias compradas em Pelotas em carretas puxadas por bois
por uma estrada geral, que em qualquer estação do anno offerece fácil trajecto”19. A idéia
era fazer com a estrada de ferro seguisse pelos mesmos territórios percorridos pela estrada de rodagem, os quais eram mais habitados e com uma produção agrícola fortalecida.
Eis o traçado sugerido:
Esta estrada, que é percorrida há mais de meio século, se dirige da
cidade de Pelotas atravessando as 38 ou 39 leguas que as separão de
Bagé sempre por cima de collinas que se ligão entre si nos municípios
de Pelotas, Cangussú, Piratiny e Bagé.
Começa por cima da coxilha (collina) que principiando nas proximidades de Pelotas vai passar junta da Villa de Cangussu, e desta
continuando pela coxilha de Santo Antonio, que passa a uma légua
de distancia da Villa de Piratiny, e á mesma distancia da freguezia da
Luz das Cassimbinhas até encontrar a coxilha das Velledas, e por
esta segue até despontar o arroio de Candiota, entrando depois na
coxilha da Bolena e d’ahi até Bagé.20
A principal justificativa para tal trajeto é reforçada várias vezes ao longo
do tempo: a supremacia comercial e estratégica frente ao projeto de Hygino Corrêa Durão. E o “rio-grandense na côrte” termina sua proposição pedindo que o
Ministro da Agricultura “nomeie uma Comissão de Engenheiros de sua confiança
para irem fazer um reconhecimento sobre as directrizes que apontamos”21 a fim de
verificar os argumentos.
Neste ponto, novamente se observa o conhecimento que possui o autor do
decreto que delimita os termos da concessão. Diz a condição XI do Contrato: “É’
livre ao Governo, em todo o tempo, mandar Engenheiros de sua confiança acompanhar os trabalhos a fim de examinar se são executados com proficiencia e methodo,
e a precisa actividade”22. O governo, desta forma, realmente detinha o poder de
inspecionar os estudos e nomear uma equipe de engenheiros responsável para tanto.
O livreto analisado acima foi publicado com a data de 1º de julho de 1874.
Já no fim do mês de março, no entanto, encontram-se correspondências entre a
20
21
22
18
19
Um Rio-Grandense Na Corte. Considerações sobre a directriz... p.20.
Um Rio-Grandense Na Corte. Considerações sobre a directriz... p.24.
Um Rio-Grandense Na Corte. Considerações sobre a directriz... p.11.
Um Rio-Grandense Na Corte. Considerações sobre a directriz... p.31.
BRASIL. Decreto nº 5565 de 14 de Março de 1874...
200
Repartição de Obras Públicas da Província e o governo imperial, falando sobre
um suposto pedido de acompanhamento dos trabalhos, onde o assunto principal é
justamente a probabilidade do traçado que passasse pelas localidades de Canguçu e
Piratini ser mais vantajoso do que o que cruzaria o Passo de Maria Gomes, Pedras
Altas e Candiota. Percebe-se que Rio Grande, Pelotas e Bagé são pontos incontestes, ficando a discussão centrada no trecho que ligaria estas duas últimas cidades.
Em correspondência do dia 28 de março de 1874, expedida pela Repartição
em Porto Alegre, têm-se detalhadas as duas possibilidades:
Há duas únicas direcções a seguir, e são aquellas que vem na
planta designada com as cores carmesim e azul. (...)Se partindo
de Pelotas seguisemos a direcção carmesim iremos passar o rio
Piratinim no ponto C. (passo de Maria Gomes). Seguindo pela
direcção da estrada d’aquella cidade a de Jaguarão até o ponto
em que ella muda de direcção para tomar a Freguesia do Herval
ou suas proximidades a buscar uma subida suave para a serra
dos Tapes pela ramificação conhecida pelo nome de Pedras Altas e por ella decaer ao passo do arroio Candiota. Si se toma
outra direção sobe-se a serra dos Tapes no ponto em que ella
mais se approxima da cidade de Pelotas, segue se pelo seu dorso
passando pela Villa de Cangussu e em ponto próximo á Villa
do Piratinim até a Capella da Luz, ponto de inserção da serra
dos Tapes com o seu contraforte Coxilha Grande, podendo d’ali
ou descer para Candiota ou seguir pelo contraforte até a cidade de
Bagé. Esta ultima hypothese tem a seu favor a ausência completa de
rios e arroios, mas tem contra si não só um maior desenvolvimento
de estrada como também o afastamento d’ella do arroio Candiota,
ponto interessante por estae n’elle situado o mais importante jasigo
carbonífero da Provincia.23
Observa-se que a dúvida a pairar pela Província era praticamente a mesma, o
que pode atestar a afirmação do “Um rio-grandense na corte” de que o assunto vinha
sendo fortemente discutido pelos interessados e entendidos, bem como pela imprensa.
A correspondência, infelizmente, não identifica os responsáveis pela explanação dos
dois traçados e também não estava acompanhada da planta mencionada.
A partir destas breves explanações, pode-se observar que o fato da necessidade
da construção de uma estrada de Ferro que ligasse Pelotas a Bagé – podendo partir de
Rio Grande – era unânime nas opiniões. O que ainda divergia era o melhor traçado, as
localidades a serem atendidas, os interesses que possuíam maior força nos cenários político e econômico. Como afirma Possas, “os caminhos de ferro venceram as resistências
dos incrédulos sem, no entanto, eliminar a constante oposição perante os gastos e privi CORRESPONDÊNCIA. Repartição das Obras Publicas Provinciaes em Porto Alegre 28
de março de 1874.
23 201
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
légios que eram concedidos e que, na maioria das vezes, tinham caráter eminentemente
político”24.
A condição XXXVI do Contrato firmado por Hygino Corrêa Durão pode
auxiliar a pensar sobre esta questão, ao tratar sobre as indenizações dos terrenos:
O emprezario fica obrigado a pagar aos proprietarios dos terrenos
atravessados pela via-ferrea todas as indemnizações a que tiverem
direito na fórma da Lei.
Assim responderá sempre pelas bemfeitorias que estragar e pelo valor do solo, quando o proprietario provar com documentos authenticos que o primitivo titulo de dominio directo ou util expressamente
o isentava de prestar-se ás servidões publicas.
Cede-lhe o Governo gratuitamente os terrenos nacionaes que fôr
necessario occupar com o leito da estrada, estações, depositos e mais
accessorios indispensaveis ao trafego.25
O empresário, pelo decreto, teria livre acesso aos terrenos nacionais, ou
seja, aos que já eram de posse do Império – ou de posse de ninguém. A questão
se complexificaria quando, para efetivar a construção da linha, fosse necessário expropriar terras de particulares, os quais nesta região da Província eram geralmente
grandes proprietários estancieiros. A escolha do traçado – sendo uma hipótese que
não se pode comprovar por enquanto – poderia ter, assim, relação também com
quais eram estes proprietários que viriam a receber as indenizações. Teriam grandes
influências políticas e econômicas, a ponto de conseguir fazer a estrada passar por
suas terras? Possuíram relações fraternais e amigáveis com Hygino Corrêa Durão?
Ou ainda, por outro lado, essas terras não teriam sido apropriadas por ninguém
que pudesse atestar a posse, podendo o empresário diminuir o valor total das
indenizações? No momento, são somente perguntas. A falta de respostas conclusivas não significa, porém, que elas não ajudem a pensar e atestar o quanto os
interesses particulares influenciavam no empreendimento público.
Se as motivações privadas eram visíveis, as de caráter público também se
faziam manifestar. As câmaras municipais de Canguçu e Piratini aplicaram, assim,
seus esforços a fim de mudar a traçado da linha férrea. Em correspondência do
dia 19 de maio de 1874, assinada por José Francisco dos Santos Queima – ajudante da comissão fiscal das estradas de ferro –, fica-se sabendo que os engenheiros
José Maria dos Campos e Alexandre da Silva Brandão realizaram seus estudos a
fim de comprovar a superioridade do traçado alternativo, a passar por aquelas
localidades.26
POSSAS, Lidia Maria V. Mulheres, trens e trilhos: modernidade no sertão paulista. São
Paulo: EDUSC, 2001. p.69.
25 BRASIL. Decreto nº 5565 de 14 de Março de 1874...
26
CORRESPONDÊNCIA de Jose Francisco dos Santos Queima, Ajudante da Commissão
24
202
Em 23 de julho do mesmo ano, segue outro ofício também de Santos
Queima com o pedido das duas câmaras para que se mude efetivamente o traçado27. Alegam, sobretudo, que Hygino Corrêa Durão deve ser obrigado a realizar
os estudos efetivos naqueles territórios. Baseiam-se na condição VIII do Contrato, a qual determina que quando se apresentassem duas ou mais direções que oferecessem vantagens proximamente iguais, o empresário fica incumbido de realizar
os estudos em cada um delas, submetendo os respectivos planos e orçamentos28.
Não foram encontradas fontes que demonstrem que estes estudos foram realizados por Hygino Corrêa Durão. Ao contrário, em 1874 é publicado seu relatório
e em 1876 Suas memórias, ambos tratando somente do traçado originalmente
proposto.
A discussão pela linha, como se observa, segue na mesma direção. Contudo, aqui outra questão pode ser levantada: o papel dos engenheiros na validação
dos argumentos. De acordo com Possas,
Como entre os europeus, os trilhos no Brasil vieram reforçar a
crença nas virtudes da técnica e da ciência, e esses profissionais,
identificados como “doutores”, com seus argumentos competentes , passaram a subordinar tudo e todos, assumindo, tanto
no Rio de Janeiro como em São Paulo, a condução da hierarquia
administrativa da ferrovia, das oficinas ao controle de toda a
extensão da linha com seus homens e mulheres.29
O engenheiro chefe da estrada de ferro do Rio Grande a Bagé, nesse momento, era Eduardo José de Moraes, que de acordo com o contrato, em sua condição VI, foi nomeado perante aprovação do governo30. Estes profissionais da
construção, “bacharéis”, adquiriram com sua formação um status de conhecimento indiscutível. Praticamente todos os argumentos em prol de um ou outro traçado
levavam em consideração o aval de um engenheiro – para validá-lo – ou a falta
de estudos com a presença de um, para contestá-lo. Esses homens, ao longo do
tempo, sempre fizeram parte das diretorias ferroviárias, não só em São Paulo e Rio
de Janeiro, mas também no Rio Grande do Sul. As estradas de ferro acabaram por
criar novas categorias sociais a partir de funções trabalhistas, com as quais adviriam
também novos conflitos e relações sociais – questões estas que serão retomadas ao
longo dos próximos capítulos.
fiscal das estradas de ferro. 19 de maio de 1874.
27
CORRESPONDÊNCIA. Repartição das obras públicas provinciaes em Porto Alegre 20 de
Junho de 1874. Officio do Bel José Queima ao Ministro da Agricultura, em 23 de julho de 1874.
28
BRASIL. Decreto nº 5565 de 14 de Março de 1874...
29
POSSAS, Lidia Maria V. Mulheres, trens e trilhos: modernidade no sertão paulista. São
Paulo: EDUSC, 2001. p.85.
30
BRASIL. Decreto nº 5565 de 14 de Março de 1874...
203
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
O traçado definitivo
Bagé?
Mas afinal, como ficou o traçado da estrada de ferro de Rio Grande a
José Gonçalves de Oliveira, na publicação Estradas de ferro no Brazil,
apresenta esta descrição:
Estudando-se os pormenores do traçado na planta da exploração, vê-se que de Pelotas a linha procura a margem do rio
Piratinim, que deságua na Loga Mirim, e sobe-o até as cabeceiras; transpõe pouco acima d’ellas a cumiada da Cochilha
das Pedras Altas; corta os valles dos rios confluentes Candiota e Jaguarão; vae passar por uma garganta da Cochilha
Grande; atravessa o Rio Negro e quatro arroios affluentes
d’elle, attingindo na altitude de 214 metros a cidade de Bagé
situada na encosta de uma cochilha.31
Efetivamente, percebe-se que a construção do caminho de ferro seguiu o projeto inicial proposto no contrato entre governo imperial e Hygino
Corrêa Durão, consistindo-se o trecho, outrora em dúvida, pelos pontos de
Passo das Pedras, Maria Gomes e Candiota. Nas memórias de Alberto Coelho
da Cunha – cidadão pelotense autor de vários textos sobre assuntos da cidade
no final do século XIX e início do XX – intituladas “Viação Pública”, há comentários sobre esta estrada de ferro que trazem informações sobre o traçado
final. Conforme tabela apresentada, a linha em 1884 contava, em toda a sua
extensão, com 16 estações, “collocadas ás seguintes distancias kilometricas,
a partir da Estação Marítima” – esta última construída em 1888, elevando o
traçado até o litoral da cidade do Rio Grande:
Estações
Distância kilometrica
Central do Rio Grande
2,8
Quinta
19,9
Povo Novo
35,8
Pelotas (Central)
55,3
Capão do Leão
70,0
Passo das Pedras
89,8
Piratiny
104,4
Basílio
126,8
Cerro Chato
156,3
OLIVEIRA, José Gonçalves. Estradas de ferro... p.74.
31
204
Nascentes
182,2
Pedras Altas
196,7
Candiota
225,3
Santa Rosa
243,2
Rio Negro
258,8
Bagé
283,0
Fonte: CUNHA, Alberto Coelho da. Viação Pública. s/d. Acervo do Centro de
Documentação e Obras Valiosas da Bibliotheca Pública Pelotense.32
Contando com pouco mais de 280 quilômetros de extensão de trilhos, cada
parada se localizava a uma média de 20 km de distância da próxima. Detalhe para as estações de Pelotas a Capão do Leão (14,7 km) e Nascentes a Pedras Altas (14,5 km) com
as menores distâncias e de Basílio a Cerro Chato (29,5 km) e Pedras Altas a Candiota
(28,6 km) com a maior quilometragem entre si. O aumento ou diminuição das distâncias
entre estações ajuda a pensar quais territórios eram mais povoados – ou se eram de propriedade de pessoas influentes –, justificando a presença das paradas. De forma geral, a
zona com as menores distâncias se concentra na região que inicia em Rio Grande e vai
até a localidade de Maria Gomes (atual Pedro Osório). A cidade de Pelotas, assim, é o
ponto médio desta abrangência (52,5km de Rio Grande e 49,1km da estação Piratiny),
indicando sua centralidade na região.
De acordo com as memórias de Alberto Coelho da Cunha, a construção da
estrada de ferro de Rio Grande a Bagé foi por decreto nº 7.056 de 23 de outubro de 1878
concedida a James Gracie Taylor e Miguel G. da Cunha. Pelo decreto 7.934 e 7.941 de
11 de Dezembro de 1880 foram os referidos concessionários autorizados a transferir a
concessão à Companhia Chemins de Fer de Rio Grande do Sul33.
Pelo decreto nº 8.887 de 17 de fevereiro de 1883, a construção foi transferida
para a Southern Brazilian Rio Grande do Sul Railway Company Limited, “com cessão completa
de todos os direitos, privilégios e garantias de juros”34. Os trabalhos teriam sido iniciados
na cidade do Rio Grande em 27 de novembro de 1881, e concluídos em 27 de novembro de 1884, sob a direção do engenheiro francês Bonafous. Cunha frisou, ainda, que no
ano de 1901 se inaugurou um ramal, “que partindo de Bagé, vai entroncar em Cacequy
com a estrada de ferro de Porto Alegre a Uruguayana, ficando por essa forma ligado
CUNHA, Alberto Coelho da. Viação Pública (memórias). Fundo Alberto Coelho da
Cunha. Acervo do Centro de Documentação e Obras Valiosas, Bibliotheca Pública Pelotense.
Este documento foi encontrado no local de pesquisa na forma manuscrita, sendo a tabela reproduzida pela autora.
33
CUNHA, Alberto Coelho da. Viação Pública...
34
CUNHA, Alberto Coelho da. Viação Pública... p.86.
32
205
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
este município a todos aquelles por onde passa, não só essa estrada, como a que vae de
Santa Maria ao Passo Fundo”35.
O manuscrito de Alberto Coelho da Cunha não possui datação, parecendo ser
a compilação de escritos analíticos feitos sobre a cidade de Pelotas e região ao longo de
anos. A parte relativa à via férrea, contudo, parece ter sido redigida aproximadamente
no ano de 1903, estimativa feita a partir de dados apresentados em algumas tabelas e
afiançada pelo fato de ainda não haver menção à Compagnie Auxiliare, responsável pela
linha a partir de 1905. Para Marluza Harres, foi através de um acordo com a companhia belga que buscou-se “a constituição de uma rede ferroviária ligando os diferentes
centros econômicos do estado”36. A região sul estava, afinal, relacionada ao restante da
Província de São Pedro do Rio Grande do Sul por uma projetada e ordenada rede de
caminhos de ferro.
Considerações finais
A partir das considerações acima discorridas e, principalmente, da análise das
fontes primárias pode-se observar que as discussões e debates sobre o desenvolvimento
de uma rede férrea na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul ocorreram em
consonância com uma lógica de progresso e modernidade que permeava o país a partir
da década de 1850. Os principais motivos e argumentos defendidos são relacionados a
uma melhoria econômica e comercial para a Província. A estrada de ferro do Rio a Bagé,
além de se coadunar com todas estas condições, possuía a característica de ser um instrumento de segurança bélica e militar, em virtude de sua posição de fronteira.
As discussões em torno de seu traçado envolveram interesses públicos, mas
principalmente privados – como os dos municípios a serem atingidos pelo serviço e,
por outro lado, das pessoas influentes na região e do próprio empresário concessionário
da linha. Todos estes debates e opiniões divergentes possuíam por mote central o desenvolvimento da região, o que atesta a importância que a ferrovia passa a adquirir na
esperança, no imaginário e na prática das pessoas.
Como afirmado anteriormente, os estudos sobre ferrovia no Estado ainda são
incipientes, o que não significa, contudo, que não existam fontes ricas e pertinentes
que possibilitem a pesquisa. Espera-se, com este trabalho sobre a estrada de ferro Rio
Grande – Bagé, ter dado mostras das inúmeras questões que ainda podem ser postas,
problematizadas e compreendidas.
CUNHA, Alberto Coelho da. Viação Pública...
HARRES, Marluza. Ferroviários : disciplinarização e trabalho (VFRGS. 1920-1942).
1994. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre. p.11.
35
36
206
Referências Bibliográficas
GAY, Peter. O século de Schnitzler: a formação da cultura da classe média. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002.
HARRES, Marluza. Ferroviários: disciplinarização e trabalho (VFRGS. 1920-1942).
1994. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre.
IPHAE (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado). Patrimônio Ferroviário no Rio Grande do Sul: Inventário das Estações 1874-1959. Porto Alegre:
Pallotti, 2002.
LOPES, Caryl E. J. A Compagnie Auxiliare de Chemins de Fér au Brésil e a cidade de Santa Maria no Rio Grande do Sul, Brasil. 2002. Tese (Doutorado em
Arquitetura). Universidade Politécnica da Catalunha, Barcelona.
POSSAS, Lidia Maria Vianna. Mulheres, trens e trilhos: modernidade no sertão paulista. São Paulo: EDUSC, 2001.
Lista de Fontes
Documentos oficiais
BRASIL. Decreto nº 5565 de 14 de Março de 1874, o qual approva o contracto para
explorações e estudos da linha ferrea da Cidade do Rio Grande até a Cidade de Alegrete. Disponível em <<http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.
action?id=57089 &norma=72941>> acesso em jan. 2012.
CORRESPONDÊNCIA. Repartição das Obras Publicas Provinciaes. Porto Alegre, 28
de março de 1874. Fundo da Secretaria de Obras Públicas, acervo do Arquivo Histórico
do Rio Grande do Sul.
CORRESPONDÊNCIA. Repartição das Obras Publicas Provinciaes. Porto Alegre, 19
de maio de 1874. Illmo. Fundo da Secretaria de Obras Públicas, acervo do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.
OFÍCIO. Repartição das Obras Públicas Provinciaes. Porto Alegre, 20 de Junho de
1874. Fundo da Secretaria de Obras Públicas, acervo do Arquivo Histórico do Rio
Grande do Sul.
Relatórios e Memórias
CUNHA, Alberto Coelho da. Viação Pública (memórias). Fundo Alberto Coelho da
Cunha. Acervo do Centro de Documentação e Obras Valiosas, Bibliotheca Pública Pelotense.
DURÃO, Hygino Corrêa. Relatório sobre os estudos definitivos da estrada de ferro do Rio Grande à Bagé na província do RS. 1874. DPRS-007. Acervo do Centro
de Documentação e Obras Valiosas, Bibliotheca Pública Pelotense.
207
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
DURÃO, Hygino Corrêa. Memória Justificativa sobre os estudos definitivos para a
Estrada de Ferro do Rio Grande ao entroncamento no Cacequy. 1876. DPRS-007.
Acervo do Centro de Documentação e Obras Valiosas, Bibliotheca Pública Pelotense.
MORAES, Eduardo José. A estrada de ferro de Pelotas a Bagé (Memória apresentada á consideração do governo imperial). São Paulo: Typographia de Jorge Seckler, 1878.
DPM-002. Acervo do Centro de Documentação e Obras Valiosas, Bibliotheca Pública
Pelotense. cx.
OLIVEIRA, José Gonçalves. Estradas de ferro no Brazil. 2ªed. São Paulo: Casa Vanorden, 1912. Acervo do Museu do Trem, São Leopoldo.
UM RIO-GRANDENSE na corte. Considerações sobre a directriz da Estrada de
Ferro da cidade do Rio Grande a Alegrete na província do Rio Grande do Sul.
Rio de Janeiro: Typographia Universal de E. & H. Laemmert, 1874. DPRS-007. Acervo
do Centro de Documentação e Obras Valiosas da Bibliotheca Pública Pelotense.
208
Eleitores nas paróquias: uma análise do eleitorado municipal a partir
dos alistamentos eleitorais (São Sebastião do Caí, 1870-1890)
Carina Martiny1
Resumo: O presente artigo tem por objetivo traçar o perfil do eleitorado municipal de São
Sebastião do Caí (RS), levando em conta tanto as legislações eleitorais quanto as especificidades
características da população local. A análise de três alistamentos de votantes e eleitores deste
município, elaborados nas décadas de 1870 e 1890, demonstra que o grau de participação eleitoral e o perfil dos eleitores pouco foram alterados pela mudança de regime político no país.
Dentre os qualificados, destacam-se aqueles que se dedicavam às atividades agrícolas, qualificados com a renda mínima exigida pela legislação e que eram, em sua maioria, alfabetizados. Esta
última característica foi determinante para diminuir o impacto da Lei Saraiva de 1881 e da legislação eleitoral do período republicano, que excluíram da participação nos pleitos os analfabetos.
Palavras-chave: Cidadania política; eleitores; Listas de qualificação eleitoral.
Introdução: ser cidadão nos Oitocentos
P
or muito tempo a historiografia brasileira acreditou que a participação dos votantes e eleitores nos pleitos eleitorais constituía critério
essencial para o exercício da cidadania política no Brasil do século
XIX. A Constituição de 1824 e a legislação vigente no século XIX, apontam para
a existência de uma clara distinção construída no Brasil Oitocentista entre “sociedade política” e “sociedade civil” ou, mais precisamente, “cidadãos ativos”, possuidores de direitos políticos, e “cidadãos inativos ou cidadãos simples”, detentores
apenas “dos direitos civis da cidadania”.2
É esta visão hierárquica e exclusiva que moldou a concepção de cidadania
existente à época do Império brasileiro e que, em grande medida, foi mantida após
a Proclamação da República.3 Ser eleitor poderia tanto significar pertencer a uma
Mestre em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
CARVALHO, José Murilo. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p.44.
3
Grande parte dos estudos sobre política do século XIX centram-se nas instituições e nos
meios formais de exercício da cidadania, contribuindo de maneira significativa para o entendimento das relações Estado-população. Mesmo que não seja nossa intenção, neste artigo, ampliar
a análise para além da esfera formal de exercício da cidadania política, cumpre destacar que, mais
recentemente, a historiografia brasileira tem ampliado o entendimento do que pode ter consti1
2
209
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
camada privilegiada – e minoritária – da sociedade brasileira, quanto sustentar um instrumento de barganha no jogo das relações sociais. Estas relações
eram, ainda no final do século XIX, marcadas por relações clientelistas, nas
quais o voto poderia representar moeda de troca na busca por favores e privilégios.4 Ser cidadão no final do século XIX era, portanto, exercer tanto um
papel político quanto social diferenciado.
O presente artigo analisa uma pequena parcela daqueles que compunham
o grupo dos considerados, no século XIX, cidadãos políticos. Tomamos por base
os votantes e eleitores de um pequeno município do Vale do Rio Caí: São Sebastião
do Caí (RS).
Até 1875, São Sebastião do Caí pertencia ao município de São Leopoldo.
Inicialmente colonizado por luso-brasileiros, ao longo do século XIX, também serviu como destino para imigrantes germânicos. Foi, especialmente, o crescimento
econômico gerado pelo comércio de excedentes agrícolas determinante para que,
no dia 1º de maio de 1875, o povoado fosse elevado à categoria de Vila e sede do
novo município através da Lei Provincial nº 995.
Desse modo, este artigo analisa a parcela da população votante de São
Sebastião do Caí em dois momentos distintos do século XIX – o Império e a República – tendo por base listas de qualificação eleitoral de cada período.
As eleições
Os dias em que ocorriam eleições nos municípios eram especiais, pois
neles os indivíduos que possuíam status de cidadão político, concedido pela legislação, compareciam ao local do pleito em sua paróquia que, na maioria das vezes,
correspondia à Igreja-Matriz. Foi o que ocorreu nas paróquias de São José do
tuído ação política no século XIX. Esta ampliação deriva do sentido mais amplo que é dado ao
conceito de cultura política, para além do plano institucional. Sofrendo uma dupla influência
– da História Cultural e da Nova História Política –, estudos sobre cultura política têm, cada
vez mais, deslocado seu foco de análise do Estado e de suas instituições administrativas para
centrar-se na organização política e cultural das sociedades, num movimento de politização das
ações que antes eram destituídas desta dimensão. Essa renovação historiográfica que permeia,
pois, o próprio entendimento do conceito de cultura política é marcada pelo rompimento com
uma matriz estruturalista e com estudos que tinham como mote a idéia de dominação segundo
a qual o dominante sempre anulava os dominados. Sobre este conceito mais ampliado de cultura
política ver SOIHET, Rachel; BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva (orgs.). Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino
de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005.
4
GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 1997.
210
Hortêncio e Santana do Rio dos Sinos, em 1875, quando os votantes do município
recém-criado de São Sebastião do Caí compareceram às Igrejas-Matriz das referidas paróquias para participar do pleito que elegeria a primeira Câmara Municipal
deste município.
Se, por um lado, nem todos os indivíduos participavam do processo
eleitoral no século XIX, dados os critérios de exclusão impostos pela legislação,
por outro lado, as eleições certamente interferiam no cotidiano dos habitantes
das paróquias em que ocorriam. Afinal, era um processo que normalmente durava mais de um dia e trazia à sede paroquial moradores de distintos e distantes
povoados do município. Assim, nos dias 24 e 25 de outubro, de 1875, dirigiram-se à Igreja-Matriz da Paróquia de São José do Hortêncio, para participar do
primeiro processo eleitoral do novo município, além dos residentes do povoado de São José do Hortêncio, moradores de Picada Feliz, Nova Petrópolis e da
própria Sede municipal, a Vila de São Sebastião. As distâncias que separavam os
povoados do local de votação eram, em alguns casos, muito grandes, obrigando o votante a realizar horas de viagem e, muito provavelmente, obrigando-o
a pernoitar no lugar em que se dava a eleição. Assim, a paróquia tinha alterada
sua rotina. Pelas ruas do povoado, votantes iam e vinham. As tabernas, muito
provavelmente, incrementavam suas vendas.
Esta alteração da rotina municipal, ocasionada por alguma eleição,
ocorria com grande frequência. Richard Graham, ao analizar a dinâmica do
processo eleitoral brasileiro do século XIX, observa que “Las elecciones bien
pudieron ocupar la atención de las comunidades casi todo el tiempo”.5 A cada
quatro anos elegiam-se os juízes de paz de cada paróquia e os vereadores para
a Câmara. Também a cada quatro anos realizavam-se eleições para os cargos
de deputados gerais. Para tanto, até 1881, realizavam-se eleições nas quais os
votantes elegiam os eleitores que formariam os Colégios Eleitorais que, por sua
vez, elegeriam os deputados. Como o Senado era um cargo vitalício, as eleições
para tal ocorriam somente no caso de morte de um senador. Como avaliou Nunes, “Surgida a vaga, logo eram convocados os eleitores para a escolha do novo
senador, e, por conseguinte, a ocorrência de mais de um pleito por ano não era
incomum”.6 Com a criação das Assembleias Legislativas Provinciais, mais um
processo foi adicionado à vida política brasileira com a eleições dos deputados
GRAHAM, Richard. Formando un gobierno central: las elecciones y el orden monárquico
en el Brasil del siglo XIX. In: ANNINO, Antonio (coord.). Historia de las elecciones em
Iberoamérica, siglo XIX: de La formación del espacio político nacional. Buenos Aires:
Fondo de Cultura Econômica de Argentina, 1995, p.357.
6 NUNES, Neila Ferraz Moreira. A Experiência Eleitoral em Campos dos Goytacazes (18701889): Freqüência Eleitoral e Perfil da População Votante. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 46, n.2, 2003, p.316.
5
211
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
provinciais. E, após 1860, os pleitos tornaram-se ainda mais frequentes, pois, como
a legislação determinava que não houvesse suplentes, nova eleição era realizada por
ocasião do falecimento de algum deputado – geral ou provincial – ou vereador. A lei
eleitoral nº 1.082 de 18 de Agosto de 1860, que alterava as leis anteriores – Lei nº 387
de 19 de agosto de 1846 e o Decreto nº 842 de 19 de setembro de 1855 – determinava no Artigo 1º §5º que “Não haverá suplentes de deputados à Assembléia Geral. no
caso de morte do deputado, opção por outro distrito, ou perda do seu lugar por qualquer motivo, proceder-se-á à nova eleição no respectivo distrito”, valendo as mesmas
disposições para os membros das Assembléias Provinciais (Artigo 1º§7º).7 Além desta intensa prática eleitoral, parte da população via-se envolvida, durante boa parte do
ano, no processo de qualificação eleitoral que era realizado anualmente. Assim, “Las
elecciones repetidas con tanta frecuencia, llegaron a covertirse en una preocupación
constante de la vida local y pocos se mantenían al margen de este proceso”.8
Entretanto, é importante lembrar que as eleições não estavam abertas à participação de todos, nem durante o período imperial, nem no período republicano,
como demonstraram as listas de qualificação de votantes e eleitores que serão analisadas a seguir.
Qualificando eleitores: o processo de qualificação eleitoral e as listas de
qualificação
A Constituição do Império do Brasil de 25 de março de 1824 estabelecia,
no capítulo 6º, denominado Das eleições, quem poderia participar dos pleitos, bem
como aqueles que destes seriam excluídos. Assim, de forma geral, determinava que,
para ser eleitor, era necessário ser cidadão brasileiro ou estrangeiro naturalizado, com
pelo menos 25 anos e provar ter uma renda líquida anual.9 A renda mínima prevista
pela Constituição de 1824 era de 100 mil-réis para votante e 200 mil-réis para eleitor,
compreendendo-se votante o cidadão com direito a voto nas eleições primárias e
eleitor aquele com direito a voto nas eleições secundárias e, portanto, também elegível para cargos municipais, como vereador e Juiz de Paz.
BRASIL. Lei nº 1082, de 18 de agosto de 1860. Alteração da Legislação Eleitoral. In: BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto. Textos políticos da história do Brasil. 3.ed. Brasília:
Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. v. 2, p. 242-243).
8
GRAHAM, Richard. Formando un gobierno central: las elecciones y el orden monárquico
en el Brasil del siglo XIX. In: ANNINO, Antonio (coord.). Historia de las elecciones em
Iberoamérica, siglo XIX: de La formación del espacio político nacional. Buenos Aires:
Fondo de Cultura Econômica de Argentina, 1995, p.358.
9 BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brasil: promulgada em 25
de maio de 1824. In: BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto. Textos políticos da história
do Brasil. 3.ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. v. 8, p.209.
7
212
Após a Constituição, a lei que primeiro estabeleceu critérios reguladores
das eleições em suas várias instâncias foi a Lei nº 387 de 19, de Agosto de 1846.
Esta, inclusive, alterava algumas disposições da Constituição, como, os critérios
de cálculo de renda. No Artigo 53, Capítulo 2º, Título 2º, a lei de 1846, dobrou a
renda mínima a ser provada pelo eleitor, já que esta passou a ser avaliada em prata.10
Aponta Richard Graham que “A lei eleitoral de 1846 acrescentou gratuitamente a
frase ‘em prata’” de modo que o governo determinou, através do Decreto 484 de
25 de novembro de 1846, que 100 mil-réis em prata deveriam equivaler a 200 mil
réis em dinheiro, “quantia mantida até o final do Império”.11 Assim, para ser votante era necessário provar ter renda anual de 200 mil-réis, enquanto que o eleitor
deveria ter renda anual de 400 mil-réis.
Após a promulgação da Lei de 1846, outras legislações versaram sobre a
temática eleitoral, como a Lei n 842 de 19 de setembro de 1855, conhecida como
Lei dos Círculos12; a Lei do Terço, nº 2675 de 20 de outubro de 187513; e a Lei
Saraiva, nº 3029 de 9 de janeiro de 1881.14 Todas estas, apesar de constituírem
reformas da legislação eleitoral, mantiveram os critérios de definição dos eleitores
já determinados, com exceção da Lei Saraiva, que excluiu do universo de votantes
os analfabetos.
Vale lembrar que as eleições provinciais e gerais eram, até 1881, indiretas,
ou seja, realizadas em dois turnos. Primeiramente os votantes elegiam os eleitores,
que então deveriam eleger os deputados e senadores. Daí a distinção, especificada na
legislação, entre votantes e eleitores. Ainda é importante fazer referência à forma de
eleição dos senadores. As eleições para o cargo – que era vitalício – ocorriam toda vez
que um senador falecia. Os eleitores, então, elegiam uma lista tríplice, e era o Imperador
que, desta lista, escolhia aquele que ocuparia a vaga.
Após a proclamação da República, a primeira regulamentação em relação ao
eleitorado republicano foi o Decreto nº 6 de 19 de novembro de 1889, que declara BRASIL. Lei nº 387 de 19 de agosto de 1846. Primeira Lei Eleitoral do Brasil. In: BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto. Textos políticos da história do Brasil. 3.ed. Brasília:
Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. v. 2, p.158.
11
GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 1997, p.414, nota 6.
12
BRASIL. Lei nº 842, de 19 de setembro de 1855. Lei dos Círculos, Alteração da Lei Eleitoral
de 1846. In: BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto. Textos políticos da história do Brasil. 3.ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. v. 2, p. 238-241.
13
BRASIL. Lei nº 2675, de 20 de outubro de 1875. Lei do Terço, Reforma da lei eleitoral.
In: BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto. Textos políticos da história do Brasil. 3.ed.
Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. v. 2, p. 660-674.
14
BRASIL. Lei nº 3029, de 9 de janeiro de 1881. Lei Saraiva, Reforma da Legislação Eleitoral:
Sufrágio Direto. In: BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto. Textos políticos da história
do Brasil. 3.ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. v. 2, p. 685-713.
10
213
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
va serem eleitores “todos os cidadãos brasileiros, no gozo dos seus direitos civis
e políticos, que souberem ler e escrever” (Artigo 1º).15 Em seguida, o Decreto
nº 200-A de 8 de fevereiro de 1890, regulamentando o processo de eleição para
deputados à Assembleia Constituinte16 e o Regulamento Cesário Alvim de 12 de
junho de 189017 mantiveram, em relação ao eleitorado, as disposições do decreto
de 1889. Em linhas gerais, a Constituição republicana de 1891 manteve os critérios
de definição do eleitorado já determinado pelo Governo Provisório. Esta, se por
um lado adotou critérios que teoricamente ampliariam a participação eleitoral em
relação ao período imperial – diminuindo a idade mínima dos votantes de 25 para
21 anos e estendendo a cidadania aos “estrangeiros que, achando-se no Brasil aos
15 de novembro de 1889, não declararem, dentro em seis meses depois de entrar
em vigor a Constituição, o ânimo de conservar a nacionalidade de origem” (Título
IV, Artigo 69º) – por outro lado manteve importante critério de exclusão ao manter
a exigência de alfabetização (Título IV, Artigo 70, §1º). 18
Também as legislações eleitorais dos períodos imperial e republicano determinavam o modo pelo qual deveria ser realizada a qualificação dos votantes.
A Lei Eleitoral de 1846 determinava que a qualificação dos votantes e eleitores
deveria ser realizada por uma junta de qualificação, composta juiz de paz mais votado do distrito – que assume o cargo de presidente da Junta – e por outros quatro
membros oriundos do grupo dos eleitores.19 Já para o período republicano, o Capítulo III, Artigo 6º do Regulamento eleitoral de 1890, determinava que a qualificação dos eleitores deveria ser “preparada em cada distrito da República por uma
comissão distrital e definitivamente organizada nos municípios por uma comissão municipal”, sendo esta presidida pelo juiz municipal mais votado do distrito e
BRASIL. Decreto nº 6, de 19 de novembro de 1889. Disposição sobre o eleitorado às Câmaras Gerais, Provinciais e Municipais. In: BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto. Textos
políticos da história do Brasil. 3.ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. v. 3,
p. 135.
16
BRASIL. Decreto nº 200-A, de 8 de fevereiro de 1890. Promulgação do Regulamento Eleitoral.. In: BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto. Textos políticos da história do Brasil.
3.ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. v. 3, p. 177-192.
17
BRASIL. Decreto nº 511, de 12 de julho 1890. Regulamento Cesário Alvim (Eleição do primeiro Congresso Nacional). In: BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto. Textos políticos
da história do Brasil. 3.ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. v. 3, p. 235-249.
18
BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil:
promulgada em 24 de fevereiro de 1891. In: BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto. Textos
políticos da história do Brasil. 3. ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. v. 8,
p. 525-548.
19
BRASIL. Lei nº 387 de 19 de agosto de 1846. Primeira Lei Eleitoral do Brasil. In: BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto. Textos políticos da história do Brasil. 3.ed. Brasília:
Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. v. 2, p.150-151.
15 214
composta pelo subdelegado da paróquia e por “um cidadão com as qualidades de
eleitor, residente no distrito, nomeado pelo presidente da Câmara ou Intendência
Municipal”. 20
Eram, portanto, as juntas de qualificação eleitoral que elaboraram as listas de
qualificação eleitoral que analisamos neste artigo. A partir destas listas foi possível, por um lado, traçar um perfil do eleitorado e, por outro lado, complexificar o
impacto da legislação eleitoral, tomando por base as especificidades da população
local.
Votantes e eleitores em São Sebastião do Caí
A partir da análise dos alistamentos eleitorais do município de São Sebastião do Caí, datados do final da década de 1870, percebe-se que o recém-criado
município São Sebastião do Caí contava com algo em torno de 932 votantes21, o
que correspondia a 8,9% da população total do município, considerando os dados
constantes no Censo de 1872 para esta região.
Apesar de tais percentuais parecerem modestos, vale lembrar que José
Murilo de Carvalho já apontou para o fato de que “A legislação brasileira sobre
eleições, na parte que se refere à amplitude do sufrágio, era das mais liberais da
época se comparada à dos países europeus”.22 A Constituição francesa do período,
por exemplo, além de exigir dos votantes o pagamento de uma contribuição de 300
francos, estabelecia a idade mínima de 30 anos, idade maior, portanto, que a exigida
BRASIL. Decreto nº 200-A, de 8 de fevereiro de 1890. Promulgação do Regulamento Eleitoral.. In: BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto. Textos políticos da história do Brasil.
3.ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. v. 3, p. 179-180.
21
Fica muito difícil determinar o número exato de eleitores em função da escassez de fontes
que dispomos. Como não encontramos alistamentos eleitorais das duas paróquias que compunham o município – Santana do Rio dos Sinos e São José do Hortêncio – referentes ao mesmo
ano, utilizamos o Alistamento da Paróquia de Santana do Rio dos Sinos de 1878 e o alistamento
da Paróquia de São José do Hortêncio de 1879. Como nos anos de 1878 e 1879 não houve
mudança na legislação eleitoral do Império, observando-se nestes anos para a qualificação o
disposto na Lei nº 2675 de 20 de Outubro de 1875, conhecida como Lei do Terço e, observando, ao comparar com alistamentos anteriores, que o número de eleitores pouco variava,
acreditamos que o número total obtido possa ser considerado, com as devidas ressalvas, em boa
parte fidedigno ao total de eleitores do município ao final da década de 1870. Ver: SANTANA
DO RIO DOS SINOS. Junta Paroquial da Freguesia de Sant’Anna do Rio dos Sinos. Lista dos
cidadãos votantes qualificados pela Junta Municipal do município da Villa de São Sebastião do
Cahy, Parochia de Sant’Anna do Sinos. 1878 jul. 12. e, SÃO JOSÉ DO HORTÊNCIO. Junta
Paroquial da Freguesia de Sant’Anna do Rio dos Sinos. Lista geral dos cidadãos qualificados pela
junta municipal de votantes, Município da Villa de São Sebastião do Cahy, Parochia de São José
do Hortêncio. 1879 jun. 23.
22
CARVALHO, José Murilo. Cidadania: tipos e percursos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 18, 1996. Disponível em: < http://www.cce.udesc.br/titosena/Arquivos/Artigos_textos_sociologia/Cidadania.pdf>. Acesso em 12 fev. 2009, p.5.
20
215
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
pela Constituição brasileira de 1824, que estabelecia como idade mínima 25 anos, exceto
para casados, oficiais militares, bacharéis e clérigos, para os quais a exigência era de 21
anos.23
A partir da comparação das listas de votantes das paróquias de São José Hortêncio e de Santana do Rio dos Sinos referentes ao período imperial com os dados do
Censo de 1872, levando em consideração a população masculina adulta - maior de 21
anos - é possível ter uma ideia mais específica do grau de participação eleitoral, como
demonstra a tabela:
Tabela 1 – Porcentagem de votantes em relação aos homens livres adultos das
paróquias de São Sebastião do Caí na década de 1870
Paróquia de São José do Hortêncio
Paróquia de Santana do Rio
dos Sinos
Total municipal
População masculina adulta
e livre
1609
Votantes
%
501
31,14
798
431
54,01
2407
932
38,72
Tabela elaborada pela autora com base em SANTANA DO RIO DOS SINOS, 1878; SÃO JOSÉ DO
HORTÊNCIO, 1879.
Se compararmos com os dados de participação eleitoral para todo o Brasil,
percebemos uma certa disparidade nos resultados obtidos. Richard Graham aponta que
“50,6% de todos os homens adultos livres, de 21 anos ou mais, independente de raça
ou instrução, constavam nos róis de votantes qualificados”.24 Assim, o percentual de
votantes do município de São Sebastião do Caí ficava significativamente abaixo da média brasileira. Já se tomarmos em separado os dados das paróquias que compunham o
município, observamos que, enquanto o percentual de participação da paróquia de São
José do Hortêncio (31%) estava muito abaixo da média brasileira, a participação eleitoral
na paróquia de Santana do Rio dos Sinos (54%) era superior a esta.
Antonio Annino, ao debruçar-se sobre a temática das eleições na América Latina observa
que, se nos demais países ocidentais, as elites tiveram que experimentar um gradativo aumento
da participação eleitoral, com a difusão do voto e a expansão da cidadania, na América Latina
o processo foi inverso, já que “desde el primer momento el cuerpo electoral fue muy amplio”,
levando-se em consideração as especificidades de cada país. Ver ANNINO, Antonio. Introducción. In: ANNINO, Antonio (coord.). Historia de las elecciones em Iberoamérica, siglo
XIX: de La formación del espacio político nacional. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica de Argentina, 1995. p. 13.
24
GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 1997, p.147.
23
216
Mesmo identificando o avanço da legislação eleitoral brasileira em relação
a de outros países, Carvalho não deixa de atentar para o fato de que a elite política
imperial brasileira buscou diferentes formas de restringir uma maior participação
eleitoral. Segundo este historiador, uma das preocupações centrais das reformas
eleitorais do Império e das discussões da elite política brasileira esteve centrada na
questão da cidadania, ou seja, na definição de quem teria ou não o direito de eleger
e ser eleito. Neste sentido, concluiu que a legislação eleitoral vigente no século
XIX buscou, de todas as maneiras, restringir o direito ao sufrágio. Isto pode ser
constatado nas inúmeras leis que se sucederam ao longo do século XIX, e que buscaram impor restrições, visando evitar uma ampla participação nos pleitos.25 Uma
das formas estabelecidas pela legislação para restringir o acesso da população foi
a determinação de uma renda mínima. Entretanto, mesmo que teoricamente este
tenha sido um critério central para a definição do eleitorado brasileiro ao longo do
Império, na prática não representava tão grande empecilho para a participação eleitoral. Como mostram alguns estudos mais recentes, a comprovação de uma renda
anual de 200 ou 400 mil-réis não era tão difícil. Tratando desta questão, Richard
Graham corrobora a visão de Carvalho, afirmando que
Las elecciones movilizaban el interés de la mayoría de la población adulta masculina de los pueblos. No existían restricciones
de raza o grado de alfabetización. El requisito de propiedad era
bajo y, por efectos de la inflación, descendió aún más. [...] Um
ensayista político expresaba que la ley excluía solo a ‘mujeres,
niños y los idiotas del pueblo’.26
Para o caso do município de São Sebastião do Caí, a análise das listas
eleitorais referentes ao período imperial demonstram que o controle da política
municipal esteve nas mãos de um grupo muito reduzido da população municipal.
Considerando que para ser eleito vereador era necessário ser eleitor, ou seja, era
exigida a renda mínima de 400 mil-réis, no caso do município analisado, menos
de um quarto dos votantes o poderiam ser na década de 1870, como demonstra a
Tabela 2. Menor ainda o grupo de alistados que, porventura, poderia, atendendo
as exigências da lei, concorrer a um cargo provincial, já que a renda anual mínima
exigida era de 800 mil-réis: apenas 5%. E, além do mais, a partir do cruzamento
destes dados com os apresentados no Censo de 1872, temos que somente 2,18%
CARVALHO, José Murilo de. A Construção da ordem: a elite política imperial. Teatro
de Sombras: a política imperial. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.393-394.
26
GRAHAM, Richard. Formando un gobierno central: las elecciones y el orden monárquico
en el Brasil del siglo XIX. In: ANNINO, Antonio (coord.). Historia de las elecciones em
Iberoamérica, siglo XIX: de La formación del espacio político nacional. Buenos Aires:
Fondo de Cultura Econômica de Argentina, 1995, p.358.
25
217
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
da população municipal participava do processo eleitoral na condição de elegível;
portanto, uma fração muito restrita da população.
Ao informar a renda anual dos votantes e eleitores, os alistamentos eleitorais do
período imperial permitem-nos traçar um perfil econômico da população votante e elegível de São Sebastião do Caí com maior precisão, como demonstrado na tabela abaixo:
Tabela 2 – Renda anual comprovada por votantes e eleitores das
paróquias de São Sebastião do Caí
São José do Hortêncio
Santana do Rio
dos Sinos
Total municipal
200-300 mil-réis anuais
79,24%
70,63%
75,27%
400-600 mil-réis anuais
14,37%
25,87%
19,68%
800-1600 mil-réis anuais
6,39%
3,50%
5,05%
Elaborado pela autora com base em SANTANA DO RIO DOS SINOS, 1878; SÃO JOSÉ
DO HORTÊNCIO, 1879.
Conforme a tabela, em ambas as paróquias que formavam o município, a situação econômica dos votantes e eleitores era muito semelhante. A maior parte dos votantes (quase 80%) comprovava somente a renda mínima exigida para participação nos
pleitos. Assim, mais de três quartos dos presentes nas listas acabavam sendo excluídos,
pelo critério renda, do segundo turno das eleições.
Ao considerarmos que, segundo dados do Censo de 1872, pouco mais de 21%
da população da Província do Rio Grande do Sul sabia ler e escrever, concluímos que
o intento de exclusão da população do processo eleitoral teve maior êxito com a lei Saraiva, de 1881, que excluiu grande parcela da população do processo eleitoral ao proibir
o voto aos analfabetos. 27 Entretanto, em São Sebastião do Caí o impacto da Lei Saraiva
pouco se fez sentir, ou então, teve diferentes consequências nas paróquias que compunham o município.
Como não encontramos listas eleitorais posteriores à promulgação da Lei
Saraiva e, com o intento de determinar o impacto desta lei em São Sebastião do Caí,
buscamos uma aproximação do possível universo de votantes pós-1881 excluindo
das listas de qualificação de votantes de São José do Hortêncio e de Santana do
Rio dos Sinos, respectivamente de 1879 e 1878, os indivíduos que não sabiam ler e
Se levarmos em conta o censo de 1872, pouco mais de 21% da população da província do
Rio Grande do Sul sabia ler e escrever. Ver FEE – FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA. De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul: Censos do RS:
1803-1950. Porto Alegre: FEE/ Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, 1981,
p.80..
27 218
escrever. Dos 501 votantes de São José do Hortêncio, de apenas dois não conseguimos obter informações sobre se eram alfabetizados ou não. Entretanto, dos demais
499, apenas 26 – por serem analfabetos – seriam excluídos de participação após a
Lei Saraiva. Neste caso, o impacto não teria sido tão grande. Entretanto, em Santana
do Rio dos Sinos a situação era outra. Dos 431 votantes em 1878, seriam excluídos
155. As duas listas de qualificação de votantes analisadas revelam a diferença existente, em termos de alfabetização, entre as duas paróquias. Enquanto em São José
do Hortêncio, dos 501 votantes, a elevada percentagem de 94,42% eram votantes
alfabetizados, em Santana do Rio dos Sinos a percentagem de alfabetizados era bem
menor – dos 431 votantes, 64,04% eram alfabetizados. Assim, constata-se que em
termos municipais – somando-se os votantes e alfabetizados das duas paróquias, cuja
relação correspondia a 80,36% de votantes alfabetizados dentre os 932 votantes do
município – cerca de 20% da população votante acabaria excluída pela lei de 1881,
em função do critério alfabetização. Deste modo, o impacto da Lei Saraiva no eleitorado do município de São Sebastião do Caí foi bem menor do que o apresentado
por José Murilo de Carvalho para o Brasil. Segundo Carvalho, se em 1872, 10,8% da
população brasileira era alistada como votante, com a Lei Saraiva de 1881 tal percentagem diminuiu, de modo que em 1886, apenas 0,8% da população estava qualificada
para participar dos pleitos.28
Com a República, a realidade parece não ter se modificado. A Constituição
republicana de 1891, ao manter a cláusula imposta pela lei Saraiva de proibir o voto a
analfabetos, excluiu grande parcela da população brasileira. Assim, com a República
os números mudariam muito pouco: em 1894, apenas 2,2% da população brasileira
votava.29 A exclusão de analfabetos – introduzida pela Lei de 1881 e mantida na República – concorreu para uma significativa diminuição da participação da população
brasileira nas eleições, de modo que “a República conseguiu quase literalmente eliminar o eleitor e, portanto, o direito de participação política através do
voto”.30
Entretanto, mais uma vez o impacto da legislação em São Sebastião do
Caí foi em distinto. Houve, como demonstra a tabela a seguir, um aumento do
eleitorado municipal em 1890: se no final da década de 1870 o percentual de
votantes em relação à população municipal era de 8,85%, após a proclamação
da República esta participação elevou-se para 9,61%. Na Tabela 3 é possível
observar esta estimativa da população votante em São Sebastião do Caí no
CARVALHO, José Murilo de. A Construção da ordem: a elite política imperial. Teatro
de Sombras: a política imperial. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.395.
29
CARVALHO, José Murilo de. A Construção da ordem: a elite política imperial. Teatro
de Sombras: a política imperial. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.395.
30
CARVALHO, José Murilo. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não
foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p.86.
28
219
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
período final do século XIX, correlacionando os Censos de 1872 e 1890 com
as listas de qualificação de votantes. Os dados do Censo de 1872 são cruzados
com o alistamento de eleitores de Santana do Rio dos Sinos de 1878 e com o
alistamento de São José do Hortêncio de 1879. Já o Censo de 1890 teve seus
dados relacionados com o alistamento eleitoral municipal de 1890. Apesar dos
alistamentos do período imperial não coincidirem com o ano do Censo, mas
apenas se aproximarem deste, acreditamos que o cruzamento dos dados destas fontes nos permitem traçar, ao menos de modo aproximado, um quadro
da participação eleitoral da população no município. Como até 20 de junho
de 1890, o distrito de Santa Tereza de Caxias pertencia ao município de São
Sebastião do Caí e, portanto, estava incluído no alistamento de 1890, apresentamos, na tabela abaixo, tanto a percentagem de votantes incluindo Caxias31
quanto aquela que resulta se o excluirmos, para termos uma ideia da situação
eleitoral nos anos imediatamente posteriores a 1890.
Tabela 3 - População votante em relação ao total da população municipal
Ano do Censo/Ano da
qualificação eleitoral1
População total
Ano da lista de
qualificação
Nº de votantes
Votantes
em %
1872/1878 e 1879
10532
1878/1879
932
8,85
1890/1890
35 753 com Caxias
1890
3 436
9,61
1890/1890
17 247 sem Caxias
1890
2 343
13,58
Elaborado pela autora com base em DECON, 2006;32 FEE, 1981, p. 94-96;33 SANTANA DO RIO DOS
SINOS, 1878; SÃO JOSÉ DO HORTÊNCIO, 1879; SÃO SEBASTIÃO DO CAÍ, 1890.
Os números apresentados pela tabela para o período imperial não diferem muito do que já foi calculado, em termos de participação nas eleições, para todo o Brasil. Se
em 1872, 10,8% da população brasileira era votante, a realidade de São Sebastião do Caí
não diferia muito do cenário brasileiro. Entretanto, o percentual de participação pode
O Censo de 1890 não incluiu, para o município de São Sebastião do Caí, os habitantes de
Caxias. Neste Censo, Caxias já aparecia como município. Diante disso, para possibilitar a relação
que pretendíamos estabelecer entre Censo e Alistamento eleitoral, optamos por somar o número de habitantes de São Sebastião do Caí com os de Caxias para fins de elaboração da tabela.
32
Dados consultados na planilha em formato Microsoft Excel denominada População considerada em relação às profissões - Paróquias de S. José do Hortêncio e de Sant’Anna do Rio dos Sinos.
33
Dados consultados no Quadro 1.3.8. População recenseada, por sexo, segundo os municípios do Rio Grande do Sul – 1890.
31
220
se diferenciar do de outros municípios brasileiros ou mesmo sul-rio-grandenses. Neila
Ferraz Moreira Nunes, ao analisar a inclusão eleitoral em Campos de Goytacazes (Rio
de Janeiro), encontrou um percentual menor: apenas 6,9% da população total votava.
A menor percentagem encontrada, segundo Nunes, pode ser justificada pela grande
presença de população escrava na região.34 Já em Rio Pardo (Rio Grande do Sul), município assim como São Sebastião do Caí marcado pelo processo de imigração, a partir
dos dados levantados por Miguel Ângelo Silva da Costa, ao cruzar o total de votantes do
município com os dados do Censo de 1872, constata-se que cerca de 5,3% da população
municipal tinha acesso ao sufrágio.35
Se a percentagem da população votante de São Sebastião do Caí no período
imperial aproxima-se da percentagem brasileira, apontada por Carvalho, no período republicano as distinções são marcantes. Enquanto que em 1894, somente 2,2% da população brasileira votava, em São Sebastião do Caí o percentual de eleitores em 1890 era
maior: 9,6% da população caiense era alistada, se incluirmos na contagem o distrito de
Caxias, ou então 13,6%, com a exclusão deste distrito. Acreditamos que, possivelmente,
essa maior participação política em São Sebastião do Caí fosse decorrente do elevado
índice de alfabetização, sobretudo nas áreas imigrantes. Também relacionando participação eleitoral com grau de alfabetização, Ana Luiza Setti Reckziegel, baseada nos dados
apontados por Joseph Love, aponta que o grau de analfabetismo era muito distinto,
se compararmos as regiões da Serra e Litoral com a região da Campanha. Segundo
Reckziegel, com a República, mudou o cenário político do Rio Grande do Sul. O crescimento econômico e populacional – levando-se em conta o maior grau de alfabetismo,
um dos critérios determinantes para ser eleitor – deram maior importância política a
outras áreas, em detrimento da Campanha, como a região da Serra e do Litoral.36 Como
zona de colonização, São Sebastião do Caí parece ter seguido tal tendência.
Mas afinal, quem eram os eleitores que participavam dos pleitos no município de São Sebastião do Caí? Qual era o perfil do eleitorado caiense? As tabelas a
seguir traçam um panorama das atividades ocupacionais destes votantes. A primeira refere-se ao período imperial, tendo por base os alistamentos eleitorais do final
da década de 1870. A Tabela 5 refere-se ao período republicano e tem por base
NUNES, Neila Ferraz Moreira. A Experiência Eleitoral em Campos dos Goytacazes (18701889): Freqüência Eleitoral e Perfil da População Votante. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 46, n.2, 2003, p.319.
35
COSTA, Miguel Ângelo Silva da. Entre a “flor da sociedade” e a “escória da população”: a experiência de homens pobres no eleitorado de Rio Pardo (1850-1880). 2006.
Dissertação (Mestrado em História) --Programa de Pós-Graduação em História. Universidade
do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, 2006, p.159.
36
RECKZIEGEL, Ana Luiza Setti. 1893: A Revolução além fronteira. In: RECKZIEGEL,
Ana Luiza Setti; AXT, Gunter (dir.). República: República Velha (1889-1930). Passo Fundo:
Méritos, 2007. v.3 t.1. (Coleção História Geral do rio Grande do Sul). p.32.
34
221
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
o alistamento municipal de eleitores de 1890. Para facilitar a comparação entre as
tabelas, optamos por desmembrar, na primeira tabela, a paróquia de São José do
Hortêncio de acordo com os diferentes povoados que a compunham. Esclarecemos que, em razão do distrito de Santa Tereza de Caxias ter deixado de integrar o
município de São Sebastião do Caí em 1890, na Tabela 5 apontamos, mais uma vez,
duas somas gerais de eleitores, uma incluindo este distrito e, outra, o excluindo.
Tabela 4 - Atividades ocupacionais37 dos eleitores de São Sebastião do
Caí no final da década de 1870
Atividades
Atividades
agro-pastoris
Paróquias e proprie-tários
Atividades
comerciais
Atividades
mecânicas
e prestadores
de serviços
Profis-sionais
liberais
Não identifi-cado
Total
Nº
Total %
SÃO JOSÉ
DO HORTÊNCIO
75,05
5,79
15,17
3,99
-
501
100,00
Vila
62,45
6,12
25,31
6,12
-
245
100,00
São José do Hortêncio
87,50
5,63
5,63
1,25
-
160
100,00
Santa Catarina da
Feliz
91,14
5,06
3,80
-
-
79
100,00
Nova Petrópolis
64,71
5,88
11,76
17,65
-
17
100,00
SANTANA DO
RIO DOS SINOS
87,94
3,94
6,73
1,16
0,23
431
100,00
TOTAL Nº
755
46
105
25
1
932
TOTAL %
81,01
4,94
11,27
2,68
0,11
100,01
Elaborado pela autora com base em: SANTANA DO RIO DOS SINOS, 1878, f. 21v-39; SÃO
JOSÉ DO HORTÊNCIO, 1879, f. 24v-44.
Em virtude da grande diversidade de atividades profissionais dos votantes, realizamos um
agrupamento por categorias, que procuraram enquadrar as profissões que localizamos na consulta às fontes: *Atividades agro-pastoris e proprietários: criador, fazendeiro, lavrador e proprietário;
*Atividades comerciais: negociante e caixeiro; *Atividades mecânicas e prestadores de serviço: capataz, carpinteiro, curtidor, jornaleiro, marítimo, ofícios, oleiro, pedreiro, sapateiro, trançador, açougueiro,
agenciador, alfaiate, calafate, carroceiro, cervejeiro, chapeleiro, droguista, ferreiro, funileiro, maquinista, marceneiro, passageiro, seleiro, serrador, tamanqueiro e padeiro; *Profissionais Liberais:
boticário, médico, pároco, professor, advogado, coletor, escrivão, fiscal, militar, oficial de justiça,
solicitador, tabelião e diretor da colônia.
37 222
Tabela 5 - Atividades ocupacionais38 dos eleitores de São Sebastião do Caí
em 1890
Profissionais
liberais
Não
identificado
Total
Nº
Total %
23,68
5,45
-
587
100,00
3,49
10,22
1,61
-
372
100,00
83,62
4,24
10,21
1,93
-
519
100,00
87,57
2,33
8,03
1,81
0,26
386
100,00
93,53
4,59
0,63
1,25
-
479
100,0
68,34
7,23
21,87
2,56
-
1093
100,00
TOTAL
com Caxias Nº
2653
190
503
89
1
3436
TOTAL
com Caxias Nº%
77,21
5,53
14,64
2,59
0,03
Atividade
Atividades
agro-pastoris
e proprie-
Atividades
comerciais
Distritos
tários
Vila
63,20
7,67
São José
do Hortêncio
Santa
Catarina da
Feliz
Nova
Petrópolis
Santana
do Rio dos
Sinos
Santa
Tereza de
Caxias
84,68
Atividades
mecânicas e
prestadores
de serviços
100,00
As categorias definidas para a elaboração da tabela procuraram contemplar as profissões referidas no Alistamento dos eleitores do município de 1890: Atividades agro-pastoris e proprietários: agricultor, criador, lavrador, fazendeiro e proprietário; *Atividades comerciais: caixeiro,
mascate e negociante; *Atividades mecânicas e prestadores de serviço: açougueiro, agenciador,
agrimensor, alfaiate, barbeiro, calafate, caldeireiro, canteiro, carpinteiro, carreteiro, cervejeiro,
cesteiro, chapeleiro, charuteiro, cigarreiro, confeiteiro, cordoeiro, curtidor, encadernador, escultor, ferreiro, fotógrafo, funileiro, hoteleiro, industrialista, jardineiro, jornaleiro, lombilheiro,
maquinista, marceneiro, marinheiro, moleiro, musico, oleiro, ourives, padeiro, pedreiro, pintor,
relojoeiro, retratista, sapateiro, seleiro, serrador, tamanqueiro, tanoeiro, tecelão, trançador e tropeiro; *Profissionais Liberais: advogado, cirurgião, empregado público, engenheiro, escrivão de
órfãos, escrivão de paz, farmacêutico, fiscal da Câmara, magistrado, oficial de justiça, pároco/
sacerdote/vigário, pastor evangélico, porteiro da Câmara, promotor público e tabelião.
38
223
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
TOTAL
sem Caxias Nº
1906
111
264
61
1
TOTAL
sem Caxias %
81,35
4,74
11,27
2,60
0,04
2343
100,00
Elaborado pela autora com base em SÃO SEBASTIÃO DO CAÍ, 1890.
Como demonstram as duas tabelas, em todas as paróquias e distritos, os
votantes eram, em sua maioria, ligados a atividades agro-pastoris, constando nos
alistamentos sob a denominação “lavradores”. Na paróquia de São José do Hortêncio, percebemos uma maior participação eleitoral daqueles indivíduos que se
dedicavam a atividades mecânicas e prestadoras de serviços, enquanto a participação destes profissionais era ínfima na paróquia de Santana do Rio dos Sinos,
sobretudo no período republicano. Entretanto, cumpre ressaltar que o que elevou
a participação desse setor na paróquia de São José do Hortêncio, em 1879, foi o
alto percentual desta categoria de votantes concentrado no povoado conhecido
como Vila, consequência direta dos processos de urbanização e crescimento econômico pelos quais passou a sede municipal no quartel final do século. Em 1879,
25,31% dos votantes habitantes da Vila dedicavam-se a atividades mecânicas ou de
prestação de serviço. Como se pode perceber tanto na Tabela 4 quanto na Tabela
5, era o distrito da Vila que detinha o maior percentual de votantes concentrado
nessa categoria profissional.
Se compararmos as duas tabelas, concluímos que, em termos de ocupação
profissional, o perfil dos votantes de São Sebastião do Caí não se modificou com a
mudança de regime político no Brasil. Lavradores e fazendeiros, juntamente com
proprietários e criadores, representaram, nos dois momentos ilustrados nas tabelas,
cerca de 80% do total dos votantes, seguidos por aqueles que se dedicavam ao setor
mecânico e de serviços, que em ambos períodos representou 11,27% do total de
votantes (desconsiderando para o período republicano o distrito de Caxias).
Foi esta parcela da população, em grande parte alfabetizada e formada
por indivíduos que trabalhavam na agricultura, que participou dos pleitos eleitorais
ocorridos no município de São Sebastião do Caí nas últimas três décadas do século
XIX.
Considerações finais
As listas de qualificação eleitoral, elaboradas tanto no período imperial
quanto no republicano, constituem importante fonte para traçarmos um perfil do
224
eleitorado brasileiro no Brasil Oitocentista. Certamente a análise de outras listas de
qualificação eleitoral para além das utilizadas neste artigo, assim como a comparação com listas de diferentes municípios sul-rio-grandenses, e mesmo brasileiros,
faz-se necessária para uma visão mais completa do universo de participação política
via qualificação eleitoral. Assim também, a análise de outros meios de participação
política para além da formalidade das eleições pode enriquecer o conhecimento
sobre o funcionamento da política no âmbito municipal no século XIX.
No caso deste artigo, a análise de três listas de qualificação eleitoral permitiu-nos elaborar um perfil do eleitorado do município de São Sebastião do Caí que,
em boa medida, era representativo do desenvolvimento socioeconômico local. Assim, se o grau de participação eleitoral no município de São Sebastião do Caí se
aproximava do brasileiro no período imperial, deste diferia no período republicano
em função de algumas características específicas da população caiense, como o elevado grau de alfabetização dos potenciais candidatos à qualificação eleitoral. Assim
também foi possível observar, através da análise das listas de eleitores, o impacto
que tiveram determinadas legislações eleitorais no município de São Sebastião do
Caí. Foi este o caso da Lei Saraiva de 1881, que teve considerável impacto sobre o
eleitorado brasileiro, mas que pouco se fez sentir no município de São Sebastião do
Caí, dado o considerável grau de alfabetização do eleitorado local.
Fontes primárias
BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do
Brasil: promulgada em 24 de fevereiro de 1891. In: BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto. Textos políticos da história do Brasil. 3. ed. Brasília: Senado
Federal, Conselho Editorial, 2002. v. 8, p. 525-548.
BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brasil: promulgada em 25 de maio de 1824. In: BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto.
Textos políticos da história do Brasil. 3.ed. Brasília: Senado Federal, Conselho
Editorial, 2002. v. 8, p.199-222.
BRASIL. Decreto nº 511, de 12 de julho 1890. Regulamento Cesário Alvim (Eleição do primeiro Congresso Nacional). In: BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto. Textos políticos da história do Brasil. 3.ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. v. 3, p. 235-249.
BRASIL. Lei nº 1082, de 18 de agosto de 1860. Alteração da Legislação Eleitoral. In:
BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto. Textos políticos da história do Brasil.
3.ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. v. 2, p. 242-244.
BRASIL. Lei nº 2675, de 20 de outubro de 1875. Lei do Terço, Reforma da lei eleitoral.
In: BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto. Textos políticos da história do Brasil.
3.ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. v. 2, p. 660-674.
225
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
BRASIL. Lei nº 387 de 19 de agosto de 1846. Primeira Lei Eleitoral do Brasil. In:
BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto. Textos políticos da história do Brasil. 3.ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. v. 2, p.149-170.
BRASIL. Lei nº 842, de 19 de setembro de 1855. Lei dos Círculos, Alteração da Lei
Eleitoral de 1846. In: BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto. Textos políticos
da história do Brasil. 3.ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. v.
2, p. 238-241.
BRASIL. Lei nº 3029, de 9 de janeiro de 1881. Lei Saraiva, Reforma da Legislação
Eleitoral: Sufrágio Direto. In: BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto. Textos
políticos da história do Brasil. 3.ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. v. 2, p. 685-713.
SANTANA DO RIO DOS SINOS. Junta Paroquial da Freguesia de Sant’Anna
do Rio dos Sinos. Lista dos cidadãos votantes qualificados pela Junta Municipal
do município da Villa de São Sebastião do Cahy, Parochia de Sant’Anna do Sinos.
1878 jul. 12. In: SÃO SEBASTIÃO DO CAÍ. Junta Paroquial da Freguesia de
Sant’Anna do Rio dos Sinos. Livro Junta Municipal Qualificação de Votantes
da Parochia de Sant’Anna do Rio dos Sinos. [Manuscrito]. f. 21v- 39. Localização: Arquivo Histórico Municipal Bernardo Mateus, São Sebastião do Caí (RS).
SÃO JOSÉ DO HORTÊNCIO. Junta Paroquial da Freguesia de Sant’Anna do Rio
dos Sinos. Lista geral dos cidadãos qualificados pela junta municipal de votantes,
Município da Villa de São Sebastião do Cahy, Parochia de São José do Hortêncio.
1879 jun. 23. In:
SÃO JOSÉ DO HORTÊNCIO. Junta Paroquial da Freguesia de São José do Hortêncio. Livro Junta Municipal para lançar as listas dos Cidadãos qualificados
votantes, [Manuscrito]. f. 24v- 44. Localização: Arquivo Histórico Municipal Bernardo Mateus, São Sebastião do Caí (RS).
SÃO SEBASTIÃO DO CAÍ. Junta Municipal de São Sebastião do Caí. Alistamento dos eleitores do Município de São Sebastião do Caí. 1890 jun. 20 [Manuscrito]. Localização: Arquivo Histórico Municipal Bernardo Mateus, São Sebastião do Caí (RS).
Referências bibliográficas
ANNINO, Antonio. Introducción. In: ANNINO, Antonio (coord.). Historia de
las elecciones em Iberoamérica, siglo XIX: de La formación del espacio político nacional. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica de Argentina, 1995.
p. 7-18.
CARVALHO, José Murilo. Cidadania: tipos e percursos. Estudos Históricos, Rio
de Janeiro, n. 18, 1996. Disponível em: < http://www.cce.udesc.br/titosena/Arquivos/Artigos_textos_sociologia/Cidadania.pdf>. Acesso em 12 fev. 2009.
226
CARVALHO, José Murilo. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República
que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
CARVALHO, José Murilo de. A Construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de Sombras: a política imperial. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007.
COSTA, Miguel Ângelo Silva da. Entre a “flor da sociedade” e a “escória da
população”: a experiência de homens pobres no eleitorado de Rio Pardo
(1850-1880). 2006. Dissertação (Mestrado em História) --Programa de Pós-Graduação em História. Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, 2006.
DECON - DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Censo de 1872: Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Pelotas: DECON, 2006. Disponível em: <httpich.ufpel.edu.breconomiaconteudo.phppagina=15>. Acesso em: 10 set. 2008.
FEE – FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA. De Província de
São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul: Censos do RS: 1803-1950. Porto
Alegre: FEE/ Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, 1981.
GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 1997.
GRAHAM, Richard. Formando un gobierno central: las elecciones y el orden monárquico en el Brasil del siglo XIX. In: ANNINO, Antonio (coord.). Historia de
las elecciones em Iberoamérica, siglo XIX: de La formación del espacio político nacional. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica de Argentina, 1995.
p. 347-379.
NUNES, Neila Ferraz Moreira. A Experiência Eleitoral em Campos dos Goytacazes (1870-1889): Freqüência Eleitoral e Perfil da População Votante. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 46, n.2, 2003, p.311-343.
RECKZIEGEL, Ana Luiza Setti. 1893: A Revolução além fronteira. In: RECKZIEGEL, Ana Luiza Setti; AXT, Gunter (dir.). República: República Velha
(1889-1930). Passo Fundo: Méritos, 2007. v.3 t.1. (Coleção História Geral do rio
Grande do Sul). p.23-56.
SOIHET, Rachel; BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva (orgs.). Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005.
227
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
4. Preservação e Difusão de Fontes de
Pesquisa
229
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Os Arquivos Sonoros do Judiciário: breve relato sobre a migração
de suporte de fitas magnéticas de áudio cassete no Tribunal Regional da Quarta Região (TRF4)
Mauro Sérgio da Rosa Amaral
Resumo: O presente trabalho descreve e analisa as atividades desenvolvidas no Setor de Gestão Documental do Arquivo do Tribunal Regional Federal da Quarta Região - TRF4 (DIMI),
aprovadas pela Portaria n. º 104, de 31/05/2007, durante o trabalho de conclusão de curso de
Arquivologia da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação. Trata-se de um estudo de caso
feito a partir da organização, escolha de amostra, aplicação de técnicas de restauração, conservação preventiva, digitalização, arquivamento e disponibilização de parte do acervo de fitas
cassete, enfim, da migração de suporte, e estruturação de procedimentos padronizados para a
implantação do programa de digitalização de fitas magnéticas de áudio da instituição, conforme
prescrevem a Instrução Normativa IN-40-D-024/TRF4, de 24/04/2009, a Resolução nº 023,
de 19/09/2008-TRF4, e a Lei Federal n.º 8159, de 08/01/1991, que dispõe sobre a política
nacional de arquivos públicos.
Palavras - chave: Digitalização - Fita cassete - Fita magnética de áudio - Migração de suporte
-TRF4.
Introdução – Duas décadas de silêncio
E
m maio de 1988 começaram as primeiras gravações em fitas de
áudio magnético (fitas cassetes) das seções de julgamentos do
Tribunal Regional Federal da Quarta Região (TRF4).
Situado na cidade de Porto Alegre e com jurisdição abrangendo três
estados brasileiros (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul), o TRF4 herdou, ainda quando de sua criação, um considerável resíduo processual do extinto
Tribunal Federal Regional (TFR) que, no período pré-abertura política, sozinho
julgava todos os recursos advindos das primeiras instâncias federais do país.
No início de abril de 2011, o rico e histórico conteúdo informacional
que jaz neste tipo de suporte físico obsoleto e suscetível a todo tipo de intempérie (que ainda hoje pode vir a comprometer o acesso as suas informações)
começou finalmente a ser digitalizado como consequência dos efeitos da Lei
Federal n. º 8.159, de 08 de janeiro de 1991, da Resolução n. º 023 do Conselho
da Justiça Federal, de 19 de setembro de 2008, e da Instrução Normativa IN-40-D-02, de 24/04/2009, da Presidência do TRF4, que regem a gestão documental
no Poder Judiciário.
231
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
As fitas magnéticas de áudio utilizadas entre os anos de 1989 e 2000
constituíam, junto com o papel e caneta, ferramentas essenciais para a transcrição das sessões de julgamentos ou qualquer outro tipo de evento ou solenidade
que prescindisse de registro taquigráfico, como palestras, sindicâncias, posses de
juízes, cursos, etc., totalizando um montante de 6.166 peças.
Fitas de vídeo-cassete e fitas de rolo (open reel) eram os meios oficiais pelos quais o Tribunal Regional Federal da 4ª Região registrava esses eventos, sendo
que as gravações com fitas de rolo ficavam a cargo do setor de áudio, hoje parte
da Divisão de Registros e Notas (taquigrafia). Quando ocorria algum problema
com determinada fita cassete ou parte da gravação ficava ininteligível, para tornar
possível sua transcrição, eventualmente o setor de taquigrafia também recorria às
gravações contidas nesses rolos.
Em 2000, o TRF4 começou a substituir as fitas cassetes por mídias digitais, adotando, primeiramente, os MDs, também conhecidos por minidisc. Semelhante a um disquete comum de computador, porém menor, o MD possui uma
capacidade de armazenamento de 140 milhões de bytes, cem vezes mais do que
um disquete comum de dupla face e alta densidade. Logo chegou a vez do CD,
que tinha uma grande vantagem sobre o MD: o acesso direto aos arquivos pelo
computador, pois um minidisc depende sempre de um aparelho que reproduza
seu áudio.
Atualmente, as gravações taquigráficas são feitas diretamente no computador via software. Alguns desses documentos sonoros estão preservados em
mídias de CDs e, mais recentemente, o DVD, por sua capacidade maior de armazenamento, foi adotado como forma de guarda.
Do porquê da migração de suporte ao seu produto final, enfatizando técnicas, problemas e soluções, sem deixar de levar em conta as políticas de arquivo
adotadas pela instituição (em especial àquelas concernentes aos documentos em
suporte magnético), este artigo discorre sobre a pioneira experiência ocorrida no
Judiciário gaúcho brasileiro, iniciada em meados de 2009 no Arquivo do TRF4,
mas que só recentemente, no início de abril, começou a entrar em prática.
Da necessidade surge a oportunidade
Para cumprir o que exigem a Lei Federal n. º 8.159, de 08 de janeiro de
1991, a Resolução n. º 023 do Conselho da Justiça Federal, de 19 de setembro de
2008, e a Instrução Normativa IN-40-D-02, de 24/04/2009, da Presidência do
TRF4, e ainda tornar possível a digitalização do imenso acervo de fitas cassetes
sem descaracterizar o sentido de autenticidade e fidedignidade da documentação
original, com o intuito de disponibilizar suas informações, a administração do
TRF4 sentiu a necessidade de um estudo preliminar que apontasse as diretrizes
232
básicas para uma correta migração de suporte das fitas magnéticas de áudio.
Foi então que, em meados de 2009, o Tribunal encomendou ao autor
deste trabalho, pertencente ao quadro de funcionários do Arquivo da própria
instituição (à época graduando de Arquivologia da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul), o desenvolvimento de um estudo, a fim de estabelecer parâmetros, procedimentos e metas para uma futura migração de suporte de toda a
documentação de áudio que fora produzido em meio magnético durante sua fase
de arquivo corrente.
Para tal, primeiramente foram feitas algumas pesquisas sobre o universo
da fita magnética de áudio: um breve histórico de seu surgimento, sua aplicabilidade e evolução para o formato cassete; a problemática advinda do tipo de
suporte para fins de arquivo; formatos de gravação e composição físico-química,
com o intuito de trazer à luz o entendimento dos agentes envolvidos na degradação (natural ou induzida) que acomete o meio magnético; relações, semelhanças e diferenças entre os formatos papel, filme e meio magnético; vantagens e
desvantagens de cada um desses meios como forma de armazenagem da informação. Tal estudo viria trazer à tona a necessidade de mais pesquisa, desta vez
relacionada à natureza da informação contida neste tipo de ambiente.
Da relevância das propriedades do som, formas de produção, propagação e percepção, sairiam como contribuição a ferramenta técnica que viria a
apontar parâmetros mais confiáveis, embasando o referencial teórico necessário
para a obtenção de tais parâmetros, dando, assim, um caráter científico ao projeto, tanto no que diz respeito à migração como um todo, bem como à digitalização propriamente dita, mas, também, aos procedimentos cotidianos de trabalho
descritos em formas de texto e fluxograma.
A pesquisa histórico-organizacional do Tribunal Regional Federal da
Quarta Região – TRF4 (sua origem, contextualização histórica, atividades meio e
fim, abrangência geográfica, etc.) e o conhecimento da criação, contextualização
e importância do Arquivo dentro do organograma da instituição (estrutura político-administrativa, condições do prédio, tipo de acervo e formas de tratamento
e guarda do fundo documental) foram de suma importância para a elaboração de
um planejamento adequado à necessidade da instituição e a realidade do problema a ser enfrentado.
Por fim, um breve apanhado sobre as fitas cassetes do TRF4 (importância e contextualização dentro do acervo da instituição, órgão produtor da documentação e em que estado de conservação essas se encontravam) viria a justificar
e consolidar definitivamente a condição de documento histórico e, portanto, de
guarda permanente, que deveria ser dada a esse tipo de acervo pertencente à
documentação especial do Tribunal.
233
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Do diagnóstico à preservação e amostragem
Como metodologia para a migração do suporte, uma pequena amostra
do acervo de fitas cassetes seria digitalizada como teste para embasar as etapas e
procedimentos das quais dependeria a continuidade do projeto.
Para tal prática, foram utilizados softwares de digitalização, restauração e arquivamento associados a técnicas de conservação preventiva (higienização), materiais e ferramentas específicas, bem como o uso de equipamentos reprodutores de fitas magnéticas
de áudio no processo de elaboração (gravadores, amplificadores, cabos de conexão, plugues e fone de ouvidos acoplados em computador).
As unidades documentais armazenadas nos arquivos deslizantes da instituição
foram então organizadas cronologicamente, ao mesmo tempo em que foram adotados
os seguintes critérios para a avaliação do estado das peças: bom (para aquelas fitas que
não apresentassem problemas e estivessem prontas para a digitalização), regular (para
aquelas cujos problemas fossem facilmente resolvidos via software após sua digitalização),
ruim (para aquelas que, antes da digitalização, necessitassem de restauração e/ou higienização) e irrecuperável (para aquelas peças que apresentassem algum estágio avançado de
degradação, como a síndrome do vinagre, síndrome de estiramento, descolamento dos
aglutinantes, oxidação ou fita rompida).
De sua parte, a instituição disponibilizaria para a migração de suporte os seguintes equipamentos: um gravador Auto Reverse Doublé Cassete Deck ADD-5.0 da
marca Gradiente, um fone de ouvido profissional da marca Phillips, um cabo com um
plugue P2 estéreo numa ponta e dois plugues RCA na outra, do tipo “macho”, conectando o aparelho reprodutor a um computador Pentium Quatro de marca Compaq,
placa de som Creative SB Extigy - Sound Blaster, sistema operacional Windows XP, 1.4
MH e um software de pós-produção de áudio.
Os cassetes do acervo dessa documentação especial são de marcas e especificações técnicas diferentes. São fitas em suporte de poliéster com disponibilidade de
gravação para 60 e 90 minutos. Em sua quase totalidade, dizem respeito a uma mesma
série documental – as notas taquigráficas das sessões de julgamento. Vale lembrar, também, que uma sessão de julgamento (em qualquer instância do Poder Judiciário) não tem
tempo de duração definido, podendo levar minutos ou até horas.
Escolheu-se, a partir daí, uma amostra qualitativa não aleatória que viesse
a representar não somente as sessões de julgamento mais antigas encontradas, mas
as duas situações possíveis do caso: uma fita gravada com mais de uma sessão de
julgamento e uma sessão de julgamento gravada ao longo de mais de uma fita.
Cinco fitas cassetes foram separadas para o processo de digitalização (uma fita
contendo as sessões de julgamento da 2ª Turma, referente aos dias 11/05/1989,
18/05/1989 e 01/06/1989 e quatro fitas contendo a sessão da 1ª Turma, referente
ao dia 15/05/1989).
234
Entendendo o suporte a ser trabalhado
Em se tratando de digitalização de áudio, alguns aspectos deveriam ser
levados em conta antes de qualquer intervenção: o suporte (fita cassete, fita de rolo,
disco de vinil, etc.), o tipo de conteúdo (música, texto falado ou sons da natureza),
o tipo de equipamento (gravadores, toca-discos, microfones, cabos conectores e
softwares digitalizadores), o objetivo da digitalização (preservação e/ou disponibilidade de documentação permanente, criação artística, entretenimento diletante ou
mero registro familiar) e a forma mais adequada de como realizar o serviço.
Sobreposta a uma camada de filme espessa o suficiente para servir de suporte, a fita magnética é nada mais do que uma fina camada capaz de registrar um
sinal magnético; cobertura constituída de um pigmento magnético sustentado por
uma substância glutinosa de polímero ou aglutinante. Conforme Bogard:
A fita magnética consiste de uma fina camada capaz de registrar
um sinal magnético, montada sobre um suporte de filme mais
espesso. A camada magnética, ou cobertura superficial consiste de um pigmento magnético suspenso em um aglutinante de
polímero. Conforme o próprio nome diz, o aglutinante mantém
as partículas magnéticas juntas entre si e presas ao suporte da
fita. A estrutura da cobertura superficial de uma fita magnética é
similar à estrutura de uma gelatina contendo pedaços de frutas
– o pigmento (pedaços de fruta) está suspenso na gelatina e é
mantido coeso pela mesma. A cobertura superficial, ou camada
magnética é responsável pelo registro e armazenamento dos sinais magnéticos gravados sobre ela. 1
Constituída basicamente por dois carretéis, com a fita magnética (que
pode ter duas faixas de áudio mono ou dois pares de faixa estéreo) e todo o seu
mecanismo de movimento alojado em uma caixa plástica de 10cm x 7cm, a cassete
veio para facilitar o manuseio e utilização, permitindo que a fita fosse colocada ou
retirada do aparelho reprodutor em qualquer ponto da gravação, sem a necessidade
de ser rebobinada como acontece com as fitas open reel, as fitas de rolo. E, por ser
pequena, permitia uma enorme economia de espaço em relação às fitas tradicionais. Cassete é uma palavra que vem do francês e significa “pequena caixa”.
BOGARD, John W. C. Van. Armazenamento e manuseio de fitas magnéticas. 2 ed. Rio
de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001. (Conservação Preventiva em Bibliotecas e Arquivos, 42).
p.10.
1
235
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Figura – Fita Cassete da TDK de sessenta minutos.
Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Compact_Cassette
Devido a sua pequena largura e baixa velocidade necessária a garantir uma
duração de pelo menos 30 minutos por lado, as primeiras fitas cassetes apresentavam uma desvantagem: sua qualidade sonora era inferior à das fitas de rolo. Com o
desenvolvimento dos cabeçotes de gravação e a reprodução através de filtros para
redução de ruídos (dolby, dnr) nos aparelhos, e o acréscimo de novas camadas magnéticas à fita (Low Noise, Cromo, Ferro Puro e Metal), em pouco tempo a qualidade
de som da k7 seria elevada para níveis bastante razoáveis.
Ainda que se possa encontrar no mercado, hoje a fita cassete na sua forma
tradicional está praticamente aposentada. Seus substitutos, porém, também não
poderão prescindir da tecnologia magnética. É o caso da fita de áudio digital (DAT,
digital áudio tape) e do cassete compacto digital (DCC, digital compact cassette),
que permitem o registro de um som analógico em um meio magnético com grande
aumento da qualidade da reprodução.
Meios magnéticos aumentam a capacidade de captura e armazenamento
de todo tipo de artefatos e eventos, porém, em contrapartida, e diferentemente dos
materiais tradicionais, esses suportes exigem necessidades especiais de manuseio,
guarda, tratamento e armazenagem em longo prazo.
Ambientes especiais com temperatura, umidade do ar e luminosidade controlados, além de formas específicas de manuseio e acondicionamento do material,
serão sempre necessidades básicas para assegurar que coleções de áudio e vídeo,
por exemplo, tenham os registros de sua informação preservados.
A transcrição de meios antigos para meios modernos devido à rápida obsolescência tecnológica dos sistemas de gravação e instabilidade dos meios de armazenagem também se torna imprescindível no caso de preservação indefinida da
informação.
Em termos de estabilidade, a fita magnética, como meio de armazenamento de informação, é inferior ao filme e ao papel. Esses, se devidamente cuidados
e livres da ação de ácidos, conseguem manter-se em bom estado por séculos. A
fita magnética, por sua vez, não resistirá a duas ou três décadas, mesmo em boas
condições de preservação.
236
Outra questão que aflige o profissional da informação com relação ao uso
de meios magnéticos para armazenagem de dados, é a confusão e perplexidade causados pelos vários formatos existentes nesses tipos de mídias (U-matic, VHS, S-VHS,
8mm, BetaCam, etc.), pelos tipos de meios em que se apresentam (óxido de ferro,
dióxido de cromo, ferrita de bário, particulado de metal evaporado) e pelos meteóricos avanços tecnológicos desses meios de armazenamento. Segundo o jornalista e
arquivista Silva:
Mais abstruso fica quando citamos os outros elementos que compõem os suportes, como o aglutinante ou as partículas magnéticas.
As partículas magnéticas ainda são diferenciadas pelo elemento
químico que as compõem, como o Óxido de Ferro, o Dióxido
de Cromo, a Ferrita de Bário. Como se não bastasse, este tipo de
documento sofre ainda com os rápidos avanços na tecnologia. Por
estas razões e pela escassa literatura a respeito destes documentos
arquivísticos especiais especializados eletrônicos é que se faz necessário o aprofundamento no contexto, aqui desenvolvido. 2
Por séculos os livros não apresentaram mudanças significativas em sua estrutura; evoluíram as tintas, apareceram novos tipos de papéis, porém seu formato
como meio de armazenamento continua quase que exclusivamente o mesmo: tinta
sobre o papel, dispensando tecnologia especial para o acesso da informação registrada. Igualmente, os microfilmes mais recentes, a microficha e o filme cinematográfico, se mantidos em ambientes apropriados, possuem reconhecida estabilidade e,
com o passar dos anos, suas formas de leitura não tiveram alterações significativas.
O principal cuidado, no caso dos filmes antigos, se dá com problemas advindos da
degradação do suporte de acetato, também presente em algumas fitas magnéticas de
áudio do passado.
Entendendo o conteúdo da informação
Quer gostemos ou não, a digitalização de documentos como forma de preservação parece ser inevitável. Conhecer os processos e agentes que a envolvem,
bem como a natureza da matéria prima da informação neles contida, neste caso o
som, ainda é a maneira menos turbulenta de enfrentarmos essa jornada, aumentando,
assim, as chances de sucesso.
As ondas sonoras são ondas longitudinais, isto é, são produzidas por uma
sequência de pulsos longitudinais e podem se propagar com diversas frequências,
SILVA, Yuri Victorino Inácio da. A produção da informação audiovisual na televisão:
um estudo preliminar sobre os documentos U-Matic do Arquivo da TVE-RS. 2008. 132 f. Trabalho de Conclusão de Curso - Faculdade de Biblioteconomia e
Comunicação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. p.65.
2
237
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
mas o ouvido humano só é sensibilizado por frequências que se encontram numa
faixa aproximada entre 20Hz e 20.000Hz.
As freqüências maiores que 20.000Hz e menores que 20Hz, são, respectivamente, as chamadas ondas sônicas e infrassônicas. Tais ondas não são audíveis
pelo ser humano, porém podem ser ouvidas por certos animais, como os cães. Um
abalo sísmico, por exemplo, produz infrasons.
De acordo com sua frequência, os sons podem ser classificados em graves ou agudos. A frequência da voz do homem varia entre 100Hz e 200Hz, e a
da mulher entre 200Hz a 400Hz. Em geral, a voz da mulher é aguda (fina) e a do
homem grave (grossa). Essa qualidade do som, que é composta por uma vibração
“elástica”, é chamada de altura. A altura de um som qualquer é proporcional à
frequência (rapidez) de suas vibrações. Quanto mais elevada for a frequência, mais
agudo será o som. Acima de 16.000 períodos (vibrações completas, incluindo ida
e volta) por segundo, já estaremos no campo dos ultrassons, portanto, inaudíveis
ao ouvido humano.
O volume no qual se revelam os sons fortes e fracos é a qualidade do som
que leva o nome de intensidade. Está diretamente ligada à energia, ou seja, ao poder
acústico do fenômeno sonoro. Sons de intensidade acima de 130dB, por exemplo,
provocam uma sensação dolorosa, e acima de 160dB, podem romper o tímpano e
até causar surdez. Já a intensidade subjetiva é difícil de avaliar, depende da sensibilidade do ouvido, que varia com a altura dos sons de maneira muito desordenada.
As ondas sonoras audíveis são produzidas basicamente por três tipos de
vibrações: vibração de cordas, vibração de colunas de ar e vibração de discos e
membranas. A vibração das ondas sonoras humanas é produzida pelas cordas vocais.
A qualidade do som que permite nossa audição reconhecer o tipo de fonte
sonora que está gerando um determinado tipo de vibração (cordas, coluna de ar
ou materiais que pode ser percutidos), e também atribuir valores e características
subjetivas ao som, chama-se timbre. O timbre é um som musical composto de
uma mistura de sons puros (harmônicos), cujas frequências são os múltiplos da
frequência de seu som fundamental. Para emitir diferentes vogais, que representam
vários tipos de timbres, modificamos a forma de nossa boca, o que favorece certos
harmônicos e desfavorece outros. O timbre também é determinado pelos sons
transitórios de ataque e de terminação.
Escolhendo o software
Após o domínio das noções básicas das propriedades do som, era hora de
se escolher e aprender a dominar o software que iria digitalizar nossa amostra.
Existem vários softwares que cumprem a função de digitalizar fitas analó-
238
gicas. Numa primeira seleção, fez-se uma análise comparativa da sinopse de seis
programas de pós-produção de áudio em sítios da web, todos bem conceituados
no universo profissional da área: Cool Record Edit, Sound Forge, Audacity, CyberPower,
Audio Editing Lab e o DC Live/Forensics.
Algumas instituições utilizam softwares de produção de áudio para migração de suporte. Embora executem as mesmas tarefas (além de muitas outras que
não dizem respeito à intervenção arquivística), os softwares de produção de áudio
são mais apropriados para gravações de música. O Instituto Moreira Sales (IMS),
por exemplo, utiliza o software ProTools para suas digitalizações. Considerado o “Photoshop” para a música, esse poderosíssimo programa de produção de áudio tem sido a
grande “febre” entre as principais gravadoras do mercado fotográfico.
Em casos como o do IMS, que provavelmente deve ter a guarda de fitas-master
de raríssimas e históricas gravações musicais que constituem parte de seu acervo, o uso
de um software de produção de áudio se justifica. Ressaltamos, porém, o grande perigo da
maior facilidade com que um documento pode vir a ter sua integridade alterada, ainda
que se trate de um documento artístico-musical.
Há vários sítios na web contendo manuais para digitalização de áudio do tipo
“passo a passo” que prometem excelentes resultados. E alguns até os cumprem. Porém,
não recomendamos aos profissionais da informação que utilizem tais guias. Em geral,
não passam de experiências pessoais de leigos ou profissionais de outras áreas (músicos,
técnicos em eletrônica, profissionais da área da informática, etc.) que, após dominar
determinado software, na melhor das intenções acabam por desenvolver seus próprios
manuais.
Foram baixadas da rede as versões demos dos softwares Sound Forge 9.0 e o DC
Live Forensics Audio Lab 7.5, quando um teste piloto foi posto em prática com cada um
desses programas e através dos quais os conceitos básicos necessários a uma boa digitalização de fita de áudio foram experimentados. Entenda-se aqui como boa aquela
digitalização pela qual se consiga restaurar uma gravação analógica em estado avançado
de degeneração fonográfica, alterando o mínimo possível seu conteúdo informacional
e de forma a garantir a integridade do documento de arquivo (como deve acontecer em
qualquer outro suporte). Nesta etapa do processo, erros e acertos ajudaram a dirimir as
dúvidas e minimizar possíveis futuros problemas de ordem operacional e econômica,
contribuindo, assim, para o desenvolvimento de um procedimento padronizado e, consequentemente, mais ágil.
Tanto o Sound Forge como o DC Live Forensics (DCLF) mostraram-se plenamente satisfatórios em suas performances. Porém, o prazo de validade da versão
demo do DCLF, por ser muito curto, não deixou margem de tempo para que fossem
testados alguns novos recursos (plug ins) que prometiam ser específicos para tribunais (tribunais norte-americanos, diga-se de passagem). Por esse único “critério de
desempate” decidiu-se que o Sound Forge seria o programa a ser usado, o que não
239
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
seria empecilho caso a instituição desejasse escolher o DCLF ou, até mesmo, outro
software.
Buscando parâmetros para uma digitalização segura
Ao se jogar dados analógicos para dentro de um computador, a primeira
coisa a ser pensada é uma boa relação sinal/ruído. E uma boa relação sinal/ruído
deve ser aquela em que a amplitude do sinal seja significativamente superior à amplitude do ruído.
Após a transferência do áudio de cada fita, via entrada de linha (Line IN)
para o computador, e já com os níveis sonoros da placa de som regulados, aplicou-se o plug in “DC offset” para que fosse detectado e eliminado o nível de ruído emitido pelo próprio sistema de gravação (placa de som, cabos, gravador e o próprio
computador) e que fatalmente se agrega a uma gravação quando da transferência
do sinal sonoro analógico para o computador. Ao eliminar esse tipo primeiro de
ruído é como se estivéssemos “calibrando” a máquina digitalizadora.
O nível DC é um sinal que se mistura ao sinal de áudio oriundo da fonte
de alimentação dos circuitos eletrônicos da placa de som, do computador e, em alguns casos, do microfone utilizado. Esse sinal, dependendo de sua amplitude, pode
saturar o sinal de áudio e também dificultar ao alto-falante a reprodução adequada
do arquivo sonoro. 3
Foram aferidos os espectros do sinal de cada fita cassete de nossa amostra
que, em linhas gerais, constitui o áudio que desejamos trabalhar. Tal procedimento
serviu de base para a renderização do áudio da amostra através da correta escolha dos valores em hertz (Hz) e bits para a sua correspondente digital na tela do
computador, as chamadas taxas de amostragem (sample rate) e taxa de quantização
(bit-depth).
O processo pelo qual se pode obter o produto final de um processamento
digital qualquer é chamado de renderização Quando o projeto está concluído, ou
em qualquer momento que se queira fazer uma aferição de qual será o resultado
final, faz-se a “renderização” do trabalho.
Dominar a ferramenta que analisa o espectro do sinal de áudio (Spectrum
Analysis) ajuda a personalizar o trabalho de eliminação de ruídos sem prejudicar o
seu resultado. O plug-in Spectrum Analysis decompõe o sinal na sua frequência fundamental e demais frequências associadas. Essa poderosa ferramenta foi desenvolvida tomando por base os conceitos matemáticos e físicos do cientista francês Jean
Baptiste Joseph Fourier (1768-1830), conhecido por ter iniciado a investigação da
MACHADO, André Campos; LIMA, Luciano Vieira; LIMA, Sandra Fernandes de Oliveira.
Sound Forge 6.0: restauração de sons de LPs e gravação de CDs. São Paulo: Érica, 2002. p.112.
3 240
série de Fourier e sua aplicação a problemas de transferência de calor, culminando
com a descoberta do efeito estufa.
Esta ferramenta também é utilizada na eliminação de ruídos em que
encontramos um parâmetro FFT que significa Fast Fourrier Transform, que permite rapidamente conhecer o espectro de um sinal
(daí o nome Fast = rápido). Assim, quando dizemos fazer uma
análise de Fourrier de um sinal, estamos nos referindo a conhecer
as freqüências que o compõe. (...) (...) A armazenagem do sinal
passa por um processo denominado amostragem. É nesta hora
que entra a escolha da taxa de amostragem e do número de bits
que se responsabilizarão por criar uma imagem do sinal dentro do
computador. ³
As principais taxas de amostragem disponíveis comercialmente são
11.025Hz, padrão geralmente usado para a qualidade telefone; 22.050Hz, rádio;
44.100Hz, CD; e 32.000Hz, que proporciona uma qualidade inferior à usada para
gravar CD, porém superior as outras duas.
Enquanto a taxa de amostragem nos dá o tamanho da mostra a ser analisada, a quantização nos garante a fidelidade dessa amostra que irá ser armazenada no
computador, indicando quantos bits serão utilizados para representar cada ponto
do sinal de áudio que será digitalizado em cada instante da amostragem (8, 16, 24,
32 ou 64 bits).
Para a escolha dos valores das taxas de amostragem levou-se em conta
primeiro o que diz o teorema de amostragem Nyquist-Shannon (parte da teoria da
informação aplicada à transmissão de áudio). Segundo esse conceito matemático,
para se conseguir o máximo de qualidade possível em gravação de áudio, o valor da
taxa de amostragem (sample rate) deve ser o dobro do valor da frequência mínima
que o ouvido humano é capaz de escutar (20.000 Hz), ou seja, 40.000 Hz.
Um processamento inadequado pode eliminar o som de instrumentos mais agudos, tais como: um chimbal da bateria, a respiração de um músico em seu instrumento de sopro, o som do
dedilhado em um violão, etc. É devido a um processamento inadequado do sinal que muitas pessoas afirmam que um disco de
vinil possui uma qualidade sonora superior ao correspondente
CD, apesar dos chiados e cliques existentes nele. (...) (...) Para
isto, o profissional deve conhecer os conceitos aqui mostrados
e apresentados de uma forma mais amena e evitar processos de
masterização automáticos. Cada efeito ou ação efetuada no arquivo digitalizado deve ser cuidadosamente estudado para obter
os melhores resultados. Daí para frente é pura arte e muita tecnologia. 4
MACHADO; LIMA; LIMA, 2002, p.187.
4
241
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Também se levou em conta o custo-benefício de usar ou não determinada
taxa, pois, neste caso, não houve necessidade de se aplicar o maior valor, uma vez
que para a obtenção de uma maior qualidade na gravação de um texto falado a taxa
mínima já bastaria.
Chegou-se a conclusão, então, que uma taxa de amostragem de 22.050 Hz
a uma resolução de 16 bits seria o ideal. Como a documentação sonora foi produzida originalmente em dois canais (estereofônico), a rigor deveria ser mantida
em dois canais. Porém, optou-se por salvar em mono, pois uma única voz por vez
falando em um microfone não faz a mínima diferença se for ouvida em um ou dois
canais, mas fatalmente faz muita diferença nos bytes aumentando o tamanho do
arquivo e tornando mais demorado processamento das informações pelo software.
De posse dos valores das taxas de amostragem e quantização e o número
de canais devidamente escolhidos, os dados foram transferidos para dentro do
computador.
Os novos originais e as cópias para disponibilizar
Neste ponto do trabalho nos deparamos com uma questão, a Instrução
Normativa IN-40-D-02, de 24/04/2009, da Presidência do TRF4 prevê que os
arquivos gerados do resultado da digitalização de áudio sejam salvos em formato
mp3. E para esta amostragem foi adotada tal regra.
Porém, quando da execução do projeto em 2011, optamos por criar um
novo original digital que correspondesse, com o máximo de fidelidade, ao original
da fita magnética. E, na medida em que os arquivos viessem a ser solicitados pelos
consulentes, faríamos cópias editadas em mp3. Assim, não desrespeitaríamos a
norma, mas também manteríamos coerência com os padrões arquivísticos. E até
mesmo porque em médio espaço de tempo não será mais possível o acesso às informações contidas nas fitas magnéticas.
Com toda razão a opção da norma pelo formato mp3, neste caso, se justifica por uma questão de espaço e por se tratar apenas de voz humana falada, embora, por mais que se consiga minimizar estes novos originais através da escolha das
taxas de amostragens, os arquivos do TRF4 hão de ocupar, muitos bytes uma vez
que, duas, quatro, oito horas de áudio, etc., serão as mesmas duas, quatro ou oito
horas em qualquer quantidade de bytes. Pareceu-nos, portanto, infrutífera a idéia de
disponibilizar, em rede, arquivos dessa natureza.
Como nem sempre lado A e lado B das fitas correspondiam a sua respectiva continuação, pois enquanto os três primeiros arquivos de nossa amostra
constituíam um único cassete e o quarto e último encontrava-se espalhado ao longo de quatro fitas, a atenção redobrada na hora de editar os arquivos, para evitar
confusão na montagem de uma única sessão de julgamento, fez-se primordial. Fe-
242
lizmente, os taquígrafos anotavam alguma informação à caneta sobre as partes
da sessão contidas nos cassetes.
Desde a edição do primeiro documento, ficou clara a necessidade de se
adotar, como procedimento padrão, uma conferência a cada conversão. Isso quer
dizer que após a transferência para o computador de um dos lados de uma fita,
ao invés de se gravar o outro lado, o material capturado já era logo trabalhado,
quando se fazia, então, um salvamento preliminar indicando a qual parte do todo
correspondia a esse material.
Depois de gerada a minuta, representante digital do documento, uma
última conferência era feita da seguinte maneira: escutavam-se alguns minutos
do começo e do fim de cada lado do áudio analógico e em seguida escutava-se o
início e o fim de cada seguimento editado no áudio digital. De resto, uma rápida
checada na imagem da onda sonora já bastava.
Não se pode deixar de apontar, ainda, a importância de retornar o item
documental para a gaveta imediatamente após sua utilização. Esse procedimento
facilita não só pela garantia de que se está realmente trabalhando o material correspondente ao seu original, mas principalmente por se tratar de documentação
delicada.
Para as cópias em mp3, chiados, ruídos de microfones, estalidos, etc., e
casos de áudio abafado devido ao elevado tempo de vida da fita, eram eliminados através de filtros e compressores de limpeza básicos, disponibilizados em
qualquer programa de pós-produção (Noise Reduction, Click and Crackle Removal e
Clipped Peak Restoration).
Eliminar ruídos de um sinal é uma providência a ser tomado
antes de aplicar efeitos, equalizar, normalizar, editar e masterizar o sinal de áudio. Antes de adentrarmos na redução ou
eliminação de um ruído, devemos entender e diferenciar ruído
de sinal e obter uma boa relação entre eles. (...) (...) Tenha em
mente que nenhuma restauração será perfeita. Se você limpar
demais os clicks e ruídos, fatalmente seu áudio perderá o brilho
(...) (...) Assim, procure não abusar da ferramenta de restauração para eliminar todos os riscos e chiados. Procure tornar o
resultado o mais agradável possível, preservando a qualidade e
os timbres dos instrumentos de seu áudio original. 5
Os autores supracitados nos dão um excelente subsídio, quando falam
sobre o limite mínimo da audição de um ruído:
Bom, podemos afirmar que qualquer ruído abaixo (inferior)
de 70db é praticamente inaudível para a maioria dos ouvintes,
principalmente para aqueles que já foram a concertos de Rock
MACHADO; LIMA; LIMA, 2002, p. 116-117.
5 243
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
heavy metal ou que gostam de escutar música no volume máximo
utilizando fones de ouvido. 6
Em verdade não se elimina o ruído, apenas se o joga a níveis inferiores,
onde não será mais perceptível pelo ouvido humano, tomando o cuidado para que
o mesmo não aconteça com frequências sonoras necessárias à inteligibilidade do
documento sonoro.
Com todas as partes de uma sessão de julgamento trabalhadas digitalmente
e pré-salvas em arquivos separados, só restava montar o documento final através das
ferramentas “copia” (Copy), “recorta” (Cut) e “cola” (Paste) para, mais tarde, salvar o
trabalho editado com o nome definitivo do novo arquivo (Save As).
Depois da “limpeza” e edição de cada arquivo, foram aplicados dois tipos
de normalização: primeiro, uma normalização feita pelo pico mais alto atingido pelo
sinal de áudio (Peak Level) e depois pela média dos picos (RMS), ambos na configuração speech (para sinais com predomínio de falas e locuções).
A normalização é o procedimento que possibilita aumentar o volume de um
arquivo sonoro sem saturá-lo (“clipping”). Tal ferramenta examina minuciosamente a
forma de onda do arquivo e aplica um determinado ganho especificado (aumentando
ou diminuindo) com o objetivo de igualar os níveis sonoros de um arquivo de áudio.
Por fim, seguindo o que prescreve a Instrução Normativa IN-40-D-02, de
24/04/2009, da Presidência do TRF4, os arquivos trabalhados foram salvos na extensão mp3 e sua relação bits/fita ficou numa média de 50MB.
Cada minuta digital, então, recebeu um número de protocolo gerado automaticamente pelo sistema de gestão documental do TRF4, o GeDoc. No campo
observação (único do sistema que permite detalhar informações ou inserir outras)
foi-lhe atribuído um código alfa-numérico vinculando-o ao número de protocolo,
possibilitando, assim, a rápida recuperação da informação, esteja ela em seu suporte
original (cassete), no local físico (gaveta) ou no novo suporte digital (CD, DVD, etc.).
Como último procedimento desse experimento, etiquetas com o número
de protocolo, código alfa-numérico e código de barras foram afixadas à lombada do
“case” de cada cassete, permitindo o acesso visual da localização física da informação
contida em cada peça, sem a necessidade de retirá-la da gaveta.
Considerações finais
Conway 7 deixa claro que, para se implantar um projeto de digitalização em
um acervo de arquivo ou biblioteca, deve-se ter em mente os seguintes critérios:
Id., 2002, p.168.
CONWAY, Paul. Preservação no universo digital. 2 ed. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,1997. (Conservação Preventiva em Bibliotecas e Arquivos, 52).
6
7
244
de seleção de material, de conversão para controle de qualidade da digitalização, de gerenciamento da coleção, de disponibilidade e de armazenamento do
acervo digital.
A IFLA8, por sua vez, desenvolveu um guia no qual são descritas algumas diretrizes básicas para auxiliar projetos de digitalização em arquivos e bibliotecas. Segundo seus autores, devido ao alto custo que envolve um projeto
de digitalização, é de fundamental importância que as instituições estabeleçam
objetivos muito claros antes de partirem para a prática da digitalização de seus
acervos.
Por ser um arquivo especializado e a documentação, em questão, especial, optou-se por adotar um planejamento próprio e mais ajustado à especificidade do caso.
Os acervos carregam em si a natureza de suas instituições, expressando sua filosofia, atividades meio e fim, suas relações sociais, mas também nos
ajudam a compreender o contexto histórico político e social no qual estão
inseridas.
Embora a Instrução Normativa IN-40-D-02/2009 não contemple a
especificidade que envolve o suporte magnético, suas lacunas ainda assim podem ser interpretadas como uma excelente oportunidade para o desenvolvimento de novos projetos na área da Arquivologia.
A devida intervenção arquivística que merecem os documentos de
áudio em suporte magnético do TRF4, diante desse contexto, parece ser uma
realidade prestes a acontecer, pois o que até então impossibilitava projetos
envolvendo tais documentos era o total desconhecimento da natureza diversa
das fitas magnéticas de áudio e a primazia que a grande massa documental judicial (formato papel) vinha exercendo sobre os documentos administrativos.
Mas não se pode esquecer que o TRF4 é uma instituição pública governamental inserida em um contexto político de regime democrático, pelo
menos no que se refere à alternância de poder. E como a troca de gestão no
Judiciário brasileiro se dá a cada dois anos, seu corpo administrativo tenderá
a ser sempre flutuante. A continuidade ou não de atos administrativos e projetos, portanto, dependerá do novo jogo político que irá se delinear, exigindo
que o profissional de arquivo esteja bem preparado para as mudanças bruscas
decorrentes das peculiaridades do serviço público.
INTERNATIONAL FEDERATION OF LIBRARY ASSOCIATIONS. Guidelines for
digitalization projects for collections and holding in the public domain, particulary
those held by libraries and archives. [S.l]: IFLA, 2002. Disponível em: < http://archive.ifla.
org/VII/s19/pubs/digit-guide.pdf>. Acesso em: 03 abr. 2012.
8
245
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Referências:
BOGARD, John W. C. Van. Armazenamento e manuseio de fitas magnéticas. 2 ed.
Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001. (Conservação Preventiva em Bibliotecas
e Arquivos, 42).
CONWAY, Paul. Preservação no universo digital. 2 ed. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional,1997. (Conservação Preventiva em Bibliotecas e Arquivos, 52).
INTERNATIONAL FEDERATION OF LIBRARY ASSOCIATIONS. Guidelines for digitalization projects for collections and holding in the public
domain, particulary those held by libraries and archives. [S.l]: IFLA, 2002.
Disponível em: < http://archive.ifla.org/VII/s19/pubs/digit-guide.pdf>. Acesso
em: 03 abr. 2012.
MACHADO, André Campos; LIMA, Luciano Vieira; LIMA, Sandra Fernandes de
Oliveira. Sound Forge 6.0: restauração de sons de LPs e gravação de CDs. São
Paulo: Érica, 2002. p.112.
SILVA, Yuri Victorino Inácio da. A produção da informação audiovisual na
televisão: um estudo preliminar sobre os documentos U-Matic do Arquivo da
TVE-RS. 2008. 132 f. Trabalho de Conclusão de Curso - Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
2008. p.65.
246
Conservação e Difusão do Acervo de História Demográfica do
Cdh-Furg: Preservação de um Patrimônio Documental RioGrandino
Carmem G. Burgert Schiavon1
Sara Orcelli dos Santos2
Resumo: Este texto apresenta as ações de pesquisa realizadas junto ao Acervo de História Demográfica, localizado no Centro de Documentação Histórica “Professor Hugo Alberto Pereira
Neves” na Universidade Federal do Rio Grande - RS (CDH-FURG). Neste pontua-se uma
relação entre a teoria e a prática arquivística aplicadas ao acervo, com vistas à organização e
conservação do mesmo. Apresenta-se, também, a metodologia utilizada na elaboração de um
Quadro de Arranjo para os três fundos documentais que compõem o acervo, assim como, a sua
ordenação e disposição dentro do CDH-FURG. Ressalta-se que estas ações buscam garantir a
integridade do acervo e um melhor acesso ao patrimônio documental representado pelo AHD.
Palavras-chave: Arquivologia – Acervo – História Demográfica – Patrimônio Documental.
Introdução
O
Centro de Documentação Histórica “Professor Hugo Alberto
Pereira Neves” da Universidade Federal do Rio Grande (CDH-FURG) está ligado ao Instituto de Ciências Humanas e da Informação da mencionada Universidade (ICHI-FURG) e teve origem nos primeiros
anos da década de oitenta do século anterior, a partir do esforço coletivo dos professores do antigo Departamento de Biblioteconomia e História (DBH-FURG).
Originalmente, o CDH-FURG funcionava junto às salas de permanência dos docentes do Curso de História, os quais haviam projetado o espaço. Posteriormente,
a partir do momento em que as doações passaram a avolumar-se, o acervo do
CDH-FURG exigiu um espaço maior para sua acomodação, passando, então para
a sala 14 do Pavilhão 04 – ao lado do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Arqueologia e Antropologia (LEPAN) – do Campus Carreiros da FURG, onde dispõe,
em seu interior, de três unidades menores; uma destinada à constituição do banco
Doutora em História (PUCRS) e Professora do Instituto de Ciências Humanas e da Informação (ICHI) da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
2
Acadêmica do 8º semestre do Curso de Arquivologia da Universidade Federal do Rio Grande
(FURG) e Bolsista do Projeto de Pesquisa “O patrimônio cultural e ambiental da cidade do Rio
Grande: fonte para a inserção da educação patrimonial no local”, financiado pela FAPERGS.
1 247
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
de dados (informática) e ao laboratório de história oral; outra, ao arquivamento
de periódicos e, por fim, um espaço destinado à higienização do acervo.
Em 1998, a partir de um projeto que tramitava junto aos Conselhos Superiores da FURG, o CDH passou a ser denominado com o nome
de “Professor Hugo Alberto Pereira Neves”3, um dos principais ícones
e defensores da ideia de criação deste centro de pesquisa. Neste mesmo
momento, teve início um processo de inventário do acervo, atividade esta
que originou a sua distribuição a partir de 08 coleções e uma biblioteca,
conforme descrição apresentada na sequência.
Na atualidade, O CDH-FURG encontra-se disponível à consulta e
à pesquisa para o público em geral4 todavia, o local configura-se, principalmente, como um aporte à realização de pesquisas e práticas pedagógicas
dos Cursos de História, Arquivologia e Biblioteconomia da Universidade.
No que se refere ao seu acervo, destacam-se as seguintes coleções:
* Acervo Coriolano Benício: este é constituído de recortes, folhas de
anotações e prospectos relacionados às atividades culturais como, cinemas, teatros, clubes e circos, as quais ocorreram na cidade do Rio Grande, no período
de 1923 até 1982. Ressalta-se que o material deste acervo está organizado em
pastas, que contém as atividades relacionadas ao cinema, teatro e companhias
teatrais, bem como as revistas que noticiaram a realização de tais eventos. Além
destas documentações, o acervo conta, ainda, com anotações que versam sobre
a sua própria vida e que contam a trajetória do Clube Carnavalesco Irresistíveis
e da Companhia de Teatro Amador Beira-Mar. O teatro rio-grandino é outro
destaque no acervo Coriolano Benício e esta parte é composta por fotografias,
desenhos (realizados pelo próprio Coriolano), assim como alguns modelos de
alegorias carnavalescas e cenários de teatro elaborados para o carnaval em Rio
Grande.
* Acervo de Documentação Eclesiástica: apresenta-se pela composição de aproximadamente 4.700 documentos eclesiais relacionados aos autos
de casamento, proclamas, justificativas de casamento, procurações, habilitações,
justificativa do estado de solteiro, de batismos e falecimentos. Destaca-se que a
documentação compreende o período de 1805 até 1912 (aproximadamente) e
que grande parte deste acervo encontra-se microfilmada.
* Acervo da União Operária: este acervo é composto por 38 livros
com atas, relatórios e o controle contábil do sindicato (relacionadas ao período
de 1900 a 1932); 02 pastas que apresentam folhetos de peças teatrais; 148 jornais
O Professor Hugo Alberto Pereira Neves faleceu no início da década de 1990.
Mais informações sobre o seu acervo em: www.cdh.furg.br
3 4
248
operários; 01 caixa com documentos diversos e o acervo da biblioteca da União
Operária (778 livros).
* Acervo de Revistas e Jornais: este acervo é composto revistas e jornais
locais, regionais e nacionais, compreendendo o período de 1905 até 1990 (com algumas interrupções) e conta com, aproximadamente, 8.000 fascículos e 65 títulos.
Neste acervo destacam-se as Revistas Fon-Fon; O Malho; Rio Grande do Sul; Revista
Ilustrada, Revista Souza Cruz; o semanário carioca Tico-Tico, o qual é tido como uma
das 4 coleções existentes em todo o Brasil; o jornal A Voz do Povo, apesar de estar
incompleto, constitui uma coleção única também.
* Acervo Fotográfico: apresenta caixas com fotografias da fachada e de
operários da Fábrica Reighantz; dos Casarões Ipiranga; inúmeras charqueadas de
Pelotas; Clube de Regatas e antigas residências da cidade do Rio Grande.
* Processo do Inventário do Comendador Faustino Corrêa: o Inventário do Comendador Domingos Faustino Corrêa faz parte do acervo do CDH-FURG desde o período de maio de 2006 e constitui um dos acervos de mais destaque da Instituição; o processo do inventário tramitou durante 107 anos e constitui
o mais longo de toda a história do Judiciário do Brasil. Seu acervo é constituído por
482 caixas contendo petições de habilitados, as quais comprovam a descendência
por intermédio de certidões de nascimentos, batismo, casamento, óbito, inventários
e testamentos; 33 caixas que apresentam decisões e peças judiciais (estas caixas compreendem a documentação referente aos séculos XVIII e XX) e 06 caixas contendo
documentos avulsos, sendo que estes apresentam uma datação mais próxima dos
dias atuais.
* Acervo de História Demográfica: apresenta fichas de reconstituição de
famílias da cidade do Rio Grande, compreendidas entre o período de 1737 a 1850.
As mencionadas fichas possibilitam o desenvolvimento de pesquisas relacionadas
à genealogia e a estudos populacionais. Este acervo apresenta, ainda, 43 rolos de
microfilmes da Diocese do Rio Grande, com os registros de batismos, matrimônios
e óbitos ocorridos na paróquia rio-grandina durante o já mencionado período.
* Laboratório de História Oral: constitui-se de entrevistas e transcrições
destas, disponibilizando à consulta temas como imigração, pesca, indústrias, relatos
relacionados à cidade do Rio Grande. Além das entrevistas, o referido Laboratório
apresenta o registro de algumas palestras e eventos ocorridos na FURG.
* Biblioteca: o CDH-FURG apresenta, ainda, uma biblioteca com, aproximadamente, 1230 exemplares de livros relacionados à história regional, local e
nacional; assim como catálogos, anais, periódicos e boletins. Além dos livros, o
CDH-FURG também apresenta alguns documentários e monografias dos cursos
de graduação e especialização em História e vídeos relacionados à mesas redondas, as quais abrangem diversos temas ministrados na FURG.
249
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Além desses acervos, também podem ser encontrados no CDH-FURG os
acervos “História Oral”, “Cartográfico” e “Variedades e Raridades”.
Dentro dessa perspectiva, o Acervo de História Demográfica – AHD, foco
desse trabalho, está constituído pelos acervos de “Documentação Eclesiástica” e
do “Primeiro Cartório do Rio Grande”, somados aos documentos do “Núcleo de
História Demográfica”, institucionalizado pela Professora Maria Luiza Bertulini
Queiroz, no âmbito de sua pesquisa de Doutorado.
Quanto à estrutura organizacional, o CDH-FURG possui laboratórios, os
quais visam associar conhecimentos de diversas áreas e auxiliar os pesquisadores
em suas atividades cotidianas. São eles: Laboratório de História Oral (LHO), Laboratório de História Indígena e Afro-brasileira (LHIAB), Laboratório de Educação
Patrimonial (LEP) e o Laboratório de História Demográfica (LAHDE). Conforme
o site do CDH-FURG, o LAHDE visa fomentar e incentivar pesquisas no âmbito
das “análises demográficas, comportamentos coletivos e os padrões demográficos a
partir de métodos e técnicas específicas”5.
Sabe-se que, na Arquivística, antes do início de qualquer intervenção no arquivo, é fundamental que o arquivista tenha conhecimento sobre o acervo que pretende
tratar e, para tanto, se faz necessário tomar conhecimento sobre a Instituição que produziu e/ou armazena esses documentos. Nesta direção, PAES (2009, p. 35) diz que a
organização de arquivos implica no desenvolvimento de algumas fases de trabalho. A
primeira fase consiste no levantamento de dados sobre a organização e funcionamento
da Instituição, quais os documentos que produziu (ou armazena), identificação dos recursos que possui e suas instalações físicas. A segunda fase, por sua vez, relaciona-se à
análise desses dados, etapa comumente denominada pela Arquivística de diagnóstico. A
terceira e quarta fases, citadas pela autora, consistem, respectivamente, no planejamento
e na realização de ações com vistas à organização do acervo.
Conforme o preconizado pela autora, a primeira fase desse trabalho procedeu à
realização de um levantamento e um diagnóstico dos fundos documentais pertencentes
ao AHD.
Nesse, constatou-se que o acervo do Núcleo de História Demográfica é constituído por fichas (em bom estado de conservação) com dados extraídos dos registros de
Batismos, Casamentos e Óbitos, e outras fichas de Reconstituição de Famílias, nas quais
os dados dos registros foram compilados. Os registros utilizados, na pesquisa que deu
origem ao acervo, compreendem o período de 1737 a 1850. Além desses documentos, o
acervo também possui 43 rolos de microfilmes de 35 mm, cópias dos registros originais
que se encontram na Matriz de São Pedro.
O acervo Documentação Eclesiástica encontra-se composto por documentos
que tratam sobre os trâmites derivados de batismos, casamentos e, em sua maioria do
FURG. Regimento do Centro de Documentação Histórica. Rio Grande, 2009.
5 250
século XIX. Esses estão agrupados em volumes e distribuídos em 80 caixas de arquivo
das quais 17 estão sinalizadas por conterem documentos aguardando restauro.
Já o acervo do Primeiro Cartório de Rio Grande, está em bom estado de conservação, os documentos que o compõe são registos civis de nascimentos, casamentos e
óbitos que datam de meados do século XX.
Para uma melhor compreensão acerca desse texto apresentam-se, a seguir, algumas discussões relacionadas aos Centros de Documentação e à importância destes
para a difusão do patrimônio documental.
Sobre Centros de Documentação e outras Unidades de Informação
Desde as origens, os homens vêm documentando suas atividades cotidianas, e estas compreendem desde as pinturas rupestres, até os documentos digitais.
Como sociedade, registram-se ações para que se torne possível voltar a elas em
momentos distintos e pelos mais diversos motivos. Nesse contexto, foi criado o
conceito de documento, que consiste no “registro de uma informação independentemente da natureza do suporte que a contém”6 (PAES, 2009, p.26).
Sendo assim, se faz pertinente uma breve discussão a respeito dos diferentes documentos e as respectivas Instituições especializadas em preservá-los,
organizá-los, disponibilizá-los e disseminá-los. Tais Instituições consistem em unidades de informação e podem ser: bibliotecas, museus, arquivos e centros de documentação.
Embora todos possam ser considerados documentos, os objetos de trabalho dessas Instituições diferem, conforme as indicações abaixo.
Documentos de Biblioteca são impressos, derivados de criação artística
ou científica, e se encontram em vários exemplares. Documentos Museológicos,
geralmente, são peças únicas e resultam da criação artística ou, que foram utilizadas
no cotidiano de épocas anteriores.
Documentos de Arquivo são produzidos, recebidos e acumulados, por
Instituições públicas ou privadas, no âmbito de suas funções e atividades. Destaca-se que os mesmos são dotados de relações orgânicas7 entre si.
Já, os Centros de Documentação são considerados uma reunião dessas
unidades de informações; possuem a qualidade de reunir, através de compra, doação, permuta etc., acervos com características museológicas, bibliográficas e arquivísticas. Conforme TESSITORE, as principais características dos Centros de
Documentação são:
PAES, Marilena Leite. Arquivo: teoria e prática. 3.ed.rev.ampl.Rio de Janeiro: FGV, 2004.
Organicidade: Rede de relações que os documentos arquivísticos guardam entre si e que
expressa as funções e atividades da pessoa ou organização que os produziu. A organicidade
se constitui em um atributo essencial para que um determinado conjunto de documentos seja
considerado um arquivo (Câmara Técnica de Documentos Eletrônicos, 2008, p. 17).
6 7
251
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
- possuir documentos arquivísticos, bibliográficos e/ou museológicos, constituindo conjuntos orgânicos (fundos de arquivo)
ou reunidos artificialmente, sob a forma de coleções, em torno
de seu conteúdo;
- ser um órgão colecionador e/ou referenciador;
- ter acervo constituído por documentos únicos ou múltiplos,
produzidos por diversas fontes geradoras;
- possuir como finalidade o oferecimento da informação cultural, científica ou social especializada;
- realizar o processamento técnico de seu acervo, segundo a natureza do material que custódia (TESSITORE, 2003, p. 14)8.
Desta forma, ratifica-se, a qualidade do CDH-FURG como um Centro de
Documentação, haja vista a que o mesmo guarda diversos acervos documentais,
bibliográficos, cartográficos, entre outros.
Em seu livro “Arquivos permanentes”, BELLOTO (2006) apresenta as
principais diferenças dessas unidades de informação. Uma síntese do que a autora
discute no “Capítulo 2 – Documento, informação e meios institucionais de custódia e informação” pode ser observada na Tabela 3 (indicada com esta numeração
no texto da autora), intitulada Características das unidades de informação, apresentada a seguir.
TABELA 1 – Características das Unidades de Informação
Arquivo
Biblioteca
Museu
Centro de Documentação/ banco
de dados
Tipo de
suporte
Manuscritos, impressos, audiovisuais,
exemplar único
impressos, manuscritos, audiovisuais, exemplares
múltiplos
objetos bi/tridimensionais, exemplar único
audiovisuais
(reproduções) ou
virtual, exemplar
único ou múltiplo
Tipo de
conjunto
fundos; documentos
unidos pela proveniência (origem)
coleção; documentos unidos
pelo conteúdo
coleção; documentos unidos pelo
conteúdo ou pela
função
coleção; documentos unidos pelo
conteúdo
Produtor
a máquina administrativa
atividade humana
individual ou
coletiva
atividade humana, a
natureza
atividade humana
TESSITORE, Viviane. Como Implantar Centros de Documentação. São Paulo: Arquivo
do Estado, Imprensa Oficial, 2003. 52 p. (Projeto Como Fazer, 09)
8
252
Arquivo
Biblioteca
Museu
Centro de Documentação/ banco
de dados
Fins de
produção
administrativos, jurídicos, funcionais, legais
culturais, científicos, técnicos,
artísticos, educativos
culturais, artísticos,
funcionais
Científicos
Objetivo
provar, testemunhar
instruir, informar
informar, entreter
Informar
Entrada dos
documentos
passagem natural
compra, doação,
permuta de fontes
múltiplas
compra, doação,
permuta, de fontes
múltiplas
compra, doação,
pesquisa
Processamento
técnico
registro, arranjo, descrição: guias, inventários,
catálogos etc.
tombamento, classificação, catalogação: fichários
tombamento, catalogação: inventários,
catálogos
tombamento,
classificação, catalogação: fichários
ou computador
Público
administrador e pesquisador
grande público e
pesquisador
grande público e
pesquisador
Pesquisador
Fonte: BELLOTO, 2006, p. 43.
Contata-se que a autora oportuniza ênfase diferente ao tipo de suporte
dos documentos encontrados nos Centros de Documentação.
Para BELLOTTO (2006, p. 37) os Centros de Documentação reúnem
em geral reproduções de documentos “(em microforma ou não) ou referências virtuais, que originalmente poderiam ser tipificados como documentos
de biblioteca, arquivo ou museu. Material sonoro ou gravado ou ainda em
suporte eletrônico, desde que em cópia ou reprodução [...]”9.
Já, para TESSITORE (2003, p. 15), nessas instituições podem ser encontrados documentos bibliográficos relacionados à especialidade do Centro
de Documentação (no caso do CDH-FURG bibliografias predominantemente
sobre História) e elas também tem características de arquivos, tendo em vista que recolhem originais ou reproduções de conjuntos arquivísticos; fator
que possibilita que sejam cumpridas as funções de preservação documental e
apoio à pesquisa.
Percebe-se que as autoras não divergem, não obstante, BELLOTTO
(2006) evidencia uma ênfase maior ao Centro de Documentação, tido como um
órgão colecionador ou referenciador. Enquanto TESSITORE (2003) sugere que o
BELLOTO, Heloísa Liberalli. Arquivos Permanentes: tratamento documental. 4.ed. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2006.
9 253
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Centro de Documentação guarda e preserva documentos originais. A mesma autora, ainda, justifica a predominância, que se observa na atualidade, dessas instituições adquirirem acervos arquivísticos, no momento em que faz a seguinte ressalva:
[...] os Centros de Documentação tornaram-se depositários de
documentos únicos por natureza, os quais, em poder de seus
detentores originais, eram, normalmente, pouco ou nada acessíveis e não contavam com outro local que os reunisse e tratasse
adequadamente (TESSITORE, 2003, p.15)10.
Sendo assim, observa-se que a realidade vivenciada pelo CDH-FURG está
de acordo com o descrito pelas autoras, afinal, além de apresentar um rico acervo
bibliográfico com obras e monografias na área da História, a Instituição possui
diversos acervos arquivísticos de valor histórico e que, dessa forma, constituem um
verdadeiro patrimônio documental da cidade do Rio Grande e, entre eles, destaca-se o AHD.
Contextualizando o acervo: o que é História Demográfica, suas fontes
e método
Em se tratando de um acervo denominado Acervo de História Demográfica – AHD faz-se necessário uma breve discussão acerca do que essa dimensão11
da área da História trata.
Ao realizar um levantamento bibliográfico sobre o assunto, verificou-se
a existência de dois conceitos complementares o de Demografia Histórica e o de
História Demográfica.
HOLLINGSWORTH (1977) em seu artigo intitulado “Uma conceituação
de Demografia Histórica e as diferentes fontes utilizadas em seu estudo”, publicado na obra organizada por Maria Luiza Marcílio (intitulada Demografia Histórica),
apresenta a distinção e os aspectos complementares entre esses dois conceitos. O
autor diz que a Demografia Histórica
[...] descreverá o processo de desenvolvimento da população,
em alguns aspectos, calculando mudanças através dos nascimentos, mortes e migrações, que, por sua vez, serão discutidos
em termos de fatores explicativos, tais como a idade de casar,
as medidas de saúde pública, o crescimento de cidades e assim
TESSITORE, Viviane. Como Implantar Centros de Documentação. São Paulo: Arquivo
do Estado, Imprensa Oficial, 2003. 52 p. (Projeto Como Fazer, 09)
11 BARROS (2008, p.20) relata que o Campo da História está composto por dimensões que
consistem em enfoques historiográficos; abordagens que estão relacionadas às fontes e métodos
utilizados e; domínios que dirigem a atenção do historiador (seu foco de pesquisa). O autor diz
também que os historiadores podem em seu trabalho combinar uma dimensão, uma abordagem e
um domínio.
10 254
por diante. Diferenças regionais podem ser discutidas e a significância das mudanças na população pode ser considerada em
suas interações com a política ou a economia. O conjunto
poderá ser considerado como uma parte da História fazendo
um relato do que ocorreu, como ocorreu e sugerindo porque
ocorreu.(MARCÍLIO apud HOLLINGSWORTH, 1977 p.
24)12
E, ainda, diz que a História Demográfica é algo diferente e que pode
ser considerada como a matéria-prima para a Demografia Histórica, caracterizando esta a partir do seu interesse que
[...] reside no reexame de dados antigos e nas análises do
material aparentemente sem qualquer conteúdo demográfico. Os formulários básicos dos censos podem fornecer
muito mais informações do que as originalmente colhidas e
os registros paroquiais constituem uma rica fonte de análise demográfica quando empregados com cuidado e técnicas
eficientes. (MARCÍLIO apud HOLLINGSWORTH, 1977 p.
25)13
HOLLINGSWORTH (1977 p. 32) também apresenta as fontes da
Demografia Histórica, as quais variam conforme a abordagem e dimensão
tratadas pelo historiador. Tais fontes podem ser classificadas em três grupos:
escritas e não escritas; aquelas que dizem respeito à população como um todo
e, ainda, aquelas que dizem a uma parte da sociedade e; os censos e enumerações (também chamados de dados estáticos e dinâmicos). Em seguida, o
autor elenca e explica a utilização de alguns exemplos como o censo, registro
civil, censos eclesiásticos, listas de taxações de impostos, registros paroquiais,
genealogias entre outros.
De acordo com BARROS (2008, p. 29) as obras sobre História Demográfica começaram a ser publicadas na década de 1950, tendo como principal
incentivo o método de “reconstituição familiar” sistematizado pelo demógrafo Louis Henry. O método consiste em vincular as informações relativas
a nascimentos, casamentos e mortes em uma determinada região e pode ser
encontrados no manual traduzido para português como “Técnicas de análise
em demografia histórica”.
HOLLINGSWORTH, Thomas H. Uma conceituação de Demografia Histórica e as diferentes fontes utilizadas em seu estudo. In: MARCÍLIO, Maria Luiza (Org.). Demografia
Histórica: organizações técnicas e metodológicas. São Paulo: Novos Umbrais, 1977. p. 23-39.
13
HOLLINGSWORTH, Thomas H. Uma conceituação de Demografia Histórica e as diferentes fontes utilizadas em seu estudo. In: MARCÍLIO, Maria Luiza (Org.). Demografia Histórica: organizações técnicas e metodológicas. São Paulo: Novos Umbrais,1977. p. 23-39.
12
255
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
HENRY (1977, p.41) em seu artigo14 intitulado “O levantamento dos registros
paroquiais e a técnica de reconstituição de famílias” faz uma descrição sucinta das modalidades do método.
Além disso, segundo HENRY (1977 p. 43), as fichas servem para apresentar
de “forma cômoda, o essencial das informações contidas em cada ato dos registros (batismos, casamentos e óbitos)”15. O autor salienta, também, que estas fichas são consideradas documentos intermediários que são utilizados para constituir as fichas de família.
Além disso, esse sistema de fichas permite que seja estabelecido um fichário alfabético
dos registros assim como um sistema de cores que diferenciam as fichas de casamento,
brancas; de batizado, rosas e; de óbito, verdes. Após o levantamento em fichas, os dados
são cruzados em fichas de família.
Sendo assim, verifica-se que o acervo do “Núcleo de História Demográfica”,
assim como, o acervo de “Documentação Eclesiástica” e do “Primeiro Cartório de Rio
Grande” estão diretamente ligados à História Demográfica, o que justifica estarem incluídos em um conjunto maior denominado Acervo de História Demográfica – AHD.
Conservação e difusão do Acervo de História Demográfica do CDH-FURG
Considerando-se a importância do AHD, foram realizadas ações com vistas
a sua organização e conservação, possibilitando aos pesquisadores melhor acesso aos
documentos e, com isso, a difusão do referido acervo. Sendo assim, buscaram-se dois
princípios fundamentais da Arquivologia: o princípio de proveniência (também denominado princípio de respeito aos fundos) e o princípio de respeito à ordem original.
O primeiro consiste em um princípio, “segundo o qual os arquivos originários
de uma instituição ou de uma pessoa devem manter a sua individualidade, não sendo
misturados aos de origem diversa”16 (BELLOTTO e CAMARGO, 1996, p.61). Já, o
princípio de respeito à ordem original, leva “em conta as relações estruturais e funcionais que presidem a gênese dos arquivos e garante sua organicidade”17 (BELLOTTO e
CAMARGO, 1996, p.61).
A partir dessas considerações, constata-se que esses princípios básicos da teoria
arquivística são de fundamental importância para a organização de qualquer arquivo e, nesta direção, HERRERA (1989 p. 253) afirma que a organização de arquivos
MARCÍLIO, Maria Luiza (Org.). Demografia Histórica: organizações técnicas e metodológicas. São Paulo: Novos Umbrais,1977.
15
HENRY, Louis. O levantamento dos registros paroquiais e a técnica de reconstituição de
famílias. In: MARCÍLIO, Maria Luiza (Org.). Demografia Histórica: organizações técnicas e
metodológicas. São Paulo: Novos Umbrais,1977. p. 41-63.
16 17
BELLOTTO, Heloísa Liberalli; CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Dicionário de Terminologia Arquivística. São Paulo: Associação dos Arquivistas Brasileiros, 1996.
17
14
256
possui duas dimensões, uma intelectual e outra mecânica, as quais devem ser realizadas, respectivamente. A autora afirma que a dimensão intelectual, corresponde à
classificação, enquanto a mecânica, à ordenação dos arquivos.
Quanto à classificação, BELLOTTO (2006, p. 135) salienta que, no Brasil,
existem duas terminologias para fazer referência a essa atividade; são elas: “classificação”, mais utilizada para arquivos correntes e “arranjo”, utilizada em arquivos
permanentes; sendo assim, quando se trabalha com “classificação”, o resultado
será um “Plano de Classificação”. Já, quando se utiliza o termo “arranjo”, o resultado obtido desse procedimento constituirá um “Quadro de Arranjo”. Considerando-se o acervo em questão, a terminologia que será utilizada nesse projeto
consiste naquela referente aos arquivos permanentes (arranjo).
Desse modo, para se proceder ao arranjo em documentos de arquivo, é
fundamental identificar o fundo a que se propõe à organização, de forma a não
se correr o risco relativo ao comprometimento do princípio da proveniência. Para
tanto, BELLOTTO (2006) apresenta os principais pontos que devem ser observados para identificação dos fundos, conforme indicação a seguir:
•
•
•
•
•
possuir nome e ter sua existência jurídica resultante de lei,
decreto resolução etc.;
ter atribuições precisas, também estabelecidas por lei, decreto, resolução etc.;
ter subordinação conhecida firmada por lei;
ter um chefe com poder de decisão, dentro de sua área
legal de ação;
ter uma organização interna fixa (BELLOTTO 2006, p.
132)18.
A partir destas considerações, reitera-se a existência de três fundos que
compõem o AHD. São eles: Documentação Eclesiástica; Primeiro Cartório do Rio
Grande; e Núcleo de História Demográfica. Trata-se de fundos fechados, ou seja,
que não produzem, recebem ou acumulam documentos, tal situação decorre do
fato de que a instituição não se encontra mais em atividade ou, simplesmente, não
continua realizando atividade com o mesmo fim. Por exemplo, a Igreja Católica,
continua a realizar registros de batismos e casamentos, entretanto, na atualidade,
tais registros não são mais utilizados para fins de anotação civil.
BERNARDES e DELATORRE (2008) afirmam que o objetivo da classificação/do arranjo consiste em facilitar a localização da informação por isso deve
BELLOTO, Heloísa Liberalli. Arquivos Permanentes: tratamento documental. 4.ed. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2006.
18 257
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
ser criado um Quadro de Arranjo que indique o grupo do documento através da
atribuição de um código.
Para desenvolver um quadro de arranjo deve-se utilizar um elemento que
será um aporte metodológico para o agrupamento das séries. SCHELLENBERG
cita que existem três elementos que podem ser considerados “a) a ação a que os
documentos se referem; b) a estrutura do órgão que os produz e c) o assunto dos
documentos” (2006 p. 84)19.
Em se tratando de arquivos correntes de órgãos públicos e empresas privadas, não é recomendada a utilização do elemento por assunto devido ao fato de
este ser muito subjetivo, variando conforme a interpretação de cada arquivista ou
usuário. Não obstante, pode ser utilizado em determinados acervos, desde que sejam
observados critérios como: facilidade de compreensão pelos usuários; apresentar estabilidade e permitir expansão para a incorporação de novas séries.
Com relação ao código numérico atribuído a cada agrupamento das séries,
sugere-se que sejam utilizados os métodos duplex ou decimal. Conforme PAES
(2004), o método decimal, foi criado por Melvil Dewey, ex-presidente da Associação
dos Bibliotecários Americanos. Esse sistema divide o saber humano em nove áreas
do conhecimento e reserva a décima para assuntos gerais, sendo que as classes são,
igualmente, divididas em subclasses. Segundo PAES (2004, p. 85), “o mais difícil é
determinar quais as nove classes principais que compreendem em si toda e qualquer
espécie de documentos produzidos ou recebidos pela instituição, família ou personalidade”.
A mesma autora apresenta, ainda, o método duplex. Esse método não possui a dificuldade relativa à previsão antecipada das séries, tendo em vista que possibilita a criação de novas classes, conforme a sua necessidade; sendo que a relação entre
estas é indicada por um algarismo e um traço de união.
Após a escolha dos elementos de classificação/arranjo e o método a ser
utilizado no código numérico, procede-se à elaboração do Quadro de Arranjo, atentando-se sempre para que este seja facilmente compreendido, estável, e que permita
à expansão das classes.
Nesse sentido, procedeu-se à criação de um Quadro de Arranjo para o acervo obedecendo aos princípios arquivísticos; sendo assim, não foi proposto o desmembramento do AHD em três acervos, tampouco que estes fossem misturados
uns aos outros e sim, a elaboração de um Quadro de Arranjo para o acervo, classificando cada um dos três fundos constituintes.
Levando-se em conta que tais acervos são fundos fechados e que, no decorrer das décadas, diversas partes destes acervos tiveram destinações distintas até a sua
SCHELLENBERG. T.R. Arquivos Modernos: princípios e técnicas. 6. ed. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2006.
19 258
guarda no CDH e, principalmente, que não se tem conhecimento da estrutura organizacional que os originou, assim como das funções específicas da instituição, foi utilizado o
elemento assunto na criação das séries.
Tendo em vista a qualidade do CDH como um órgão “arrecadador” de acervos, utilizou-se no código numérico das séries, o método dígito decimal. Assim, o Quadro de Arranjo está sujeito à possibilidade de serem inseridas novas séries, caso o CDH
proceda à aquisição de novos documentos relativos à História Demográfica.
Para dar prosseguimento à organização do acervo, se faz necessário ordenar os
documentos fisicamente; em outras palavras, é necessário relacioná-los utilizando métodos de arquivamento (conforme PAES, 2004) ou unidade-ordem (conforme HERRERA, 1989). A autora salienta que deve sempre se considerar o seguinte:
•
•
•
•
A ordenação arquivística dos documentos se faz a partir
de um dos elementos (data, nome de pessoas, lugar ou
assunto) que nos aproximem de seu conteúdo
Cada série exigirá um tipo de ordenação independente
Existe uma ordem entre as unidades que integram cada
série e outra para cada unidade arquivística
Além da ordenação dos documentos, existe uma ordenação da informação (índices) com vistas a sua recuperação
(HERRERA, 1989, p. 286; tradução nossa)20.
Após a organização do acervo procedeu-se à conservação, tendo em vista que
não basta organizar o acervo e deixar que o processo de degradação se instale ou se perpetue no local. Desse modo, no que se refere à conservação, CASSARES e TANAKA
(2008, p. 38) elucidam que a conservação atua por meio de intervenções não invasivas,
que são realizadas diretamente nos documentos que estão em processo de degradação
com o objetivo de estabilizar esse processo retardando, dessa forma, a deterioração.
Importante salientar que CASSARES e MOI (2000 p. 12) apresentam a diferenciação dos conceitos de conservação e preservação. As autoras dizem que a conservação prevê o controle ambiental e tratamentos específicos, tais como: higienização,
reparos e acondicionamento.
Já, no que concerne à preservação, aponta-se que esta constitui “um conjunto de medidas e estratégias de ordem administrativa, política e operacional
que contribuem direta ou indiretamente para a preservação da integridade dos
materiais” (CASSARES e MOI, 2000, p.12)21. Com relação ao desenvolvimento
HEREDIA HERRERA, Antónia. Organización II: ordenación de documentos y de series
documentales. Archivistica general: teoria y practica. 4. ed. Sevilha: Gráficas Del Sur, 1989.
21 23 24
CASSARES, Norma Cianflone; MOI, Cláudia. Como Fazer Conservação Preventiva
em Arquivos e Bibliotecas. São Paulo: Arquivo do Estado e Imprensa Oficial, 2000.
20 259
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
de ações de conservação, muitas pessoas leigas no que se refere ao tratamento de
acervos documentais, deduzem que a restauração também está prevista. Nesse
sentido, entende-se ser igualmente importante salientar o conceito de restauração, apresentado pela mesma autora, tendo em vista que o mesmo constitui
um conjunto de medidas que objetivam a estabilização ou a reversão de danos físicos ou químicos adquiridos pelo documento
ao longo do tempo e do uso, intervindo de modo a não comprometer sua integridade e seu caráter histórico (CASSARES e
MOI, 2000, p.12)22.
Por outro lado, menciona-se que o AHD consiste em um acervo formado,
principalmente, por documentos em suporte papel, constituído por fibras de celulose
sendo assim, fez-se primordial “encontrar soluções que permitam oferecer o melhor
conforto e estabilidade ao suporte” (CASSARES e MOI, 2000 p. 13)23, pois as autoras
explicam que a acidez e a oxidação representam os principais processos de deterioração
da celulose e que existem, também, fatores ambientais, biológicos, intervenções inadequadas e problemas no manuseio, os quais estão ligados entre si e que podem fazer com
que o processo de deterioração seja de proporções devastadoras.
Com relação aos agentes biológicos devem ser igualmente combatidos; segundo CASSARES e MOI (2000 p. 17) esses são, entre outros, os insetos (baratas, brocas,
cupins), os roedores e os fungos; a existência destes depende quase que, exclusivamente,
das condições ambientais do local onde o acervo encontra-se acondicionado.
CASSARES e TANAKA (2008 p. 43) também salientam que as intervenções
que visam proteger os documentos podem ser realizadas de forma inapropriada, o que
contribui para sua degradação, assim como, problemas de manuseio pelos funcionários
e usuários, furtos e vandalismo também são considerados fatores de deterioração.
Após o conhecimento de tais fatores, deve-se passar ao planejamento das atividades, as quais serão importantes na estabilização do processo de degradação. Nesta
direção, CASSARES e MOI (2000) discorrem sobre algumas técnicas e materiais necessários à conservação. A primeira delas caracteriza-se pela higienização (caso o acervo,
ainda, não tenha passado por esse processo), afinal, a sujidade é o agente deterioração
que mais afeta os documentos. Essa atividade também pode ser aproveitada para realizar
um diagnóstico sobre o estado de conservação do acervo e executar os primeiros socorros para que o processo de deterioração seja interrompido.
O acondicionamento deve ser realizado de forma adequada, pois visa à proteção dos documentos. Conforme CASSARES e MOI (2000 p. 35), o acondicionamento
deve ser confeccionado com material de qualidade arquivística24.
24 Qualidade arquivística: Propriedades físico-químicas dos suportes que permitem a conser22
23
260
SPINELLI JUNIOR (1997) indica um método para a confecção de uma
“caixa para preservação de volumes”, a qual proporciona uma vedação contra os
agentes ambientais, assim como, a favor da integridade física do volume.
Um procedimento semelhante ao que o autor apresenta foi utilizado para o
acondicionamento dos talões do Primeiro Cartório do Rio Grande, o mesmo procedimento será utilizado para o acondicionamento da documentação eclesiástica (a
qual apresenta volumes).
Os talões provenientes do Primeiro Cartório do Rio Grande, onde constam os registros e nascimentos, casamentos e óbitos foram classificados e ordenados
numericamente (de acordo com a numeração dos talões atribuída no cartório de
origem). Em seguida, procedeu-se à higienização e à confecção dos invólucros de
proteção para os documentos.
Ao modelo proposto por SPINELLI, foram feitas adequações, em vez da
utilização do cadarço de algodão, para fechar os invólucros, foram reutilizadas tiras
de papel remanescente daquele utilizado para os invólucros.
Além disso, como a maioria dos talões de registro possui as mesmas
dimensões, foi utilizado um molde para traçar o desenho dos mesmos e, por
fim, foram feitas as dobraduras, as quais deram ao papel o formato de invólucro e possibilitam ao usuário abrir e fechar os mesmos, facilmente. Além dos
invólucros, os talões também são acondicionados em caixas de arquivo. Sendo
assim, se procedeu à troca das caixas de papelão por caixas de polietileno, nas
quais foram identificadas por novas etiquetas no padrão utilizado pelo CDH.
Não obstante, destaca-se que as ações de organização e conservação estão
em fase de conclusão junto ao acervo do Primeiro Cartório do Rio Grande. Outras
ações no mesmo sentido já estão projetadas para os acervos de Documentação Eclesiástica e Núcleo de História Demográfica.
Conclusão
A Cidade do Rio Grande é uma cidade histórica, fundada em 1737, é a cidade mais antiga do Estado do Rio Grande do Sul, por isso, é notória a sua riqueza,
em termos culturais e históricos. Nesta direção, é significativo o esforço, por parte
das autoridades locais, em preservar edifícios que possuem características históricas (como a arquitetura colonial e neoclássica); além disso, a grande quantidade de
museus históricos existentes na cidade evidencia um empenho na preservação da
memória e do patrimônio cultural local.
vação indefinida dos documentos, observadas as condições adequadas de acondicionamento,
armazenamento e climatização (BRASIL, Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística,
2005, p.141).
261
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Contudo, apenas em 2008, foi instituído na FURG o Curso de Arquivologia, e com esse, diversas ações em prol da preservação do patrimônio documental
local estão sendo desenvolvidas. Salienta-se que na cidade não existe uma instituição de arquivo estruturada para fins de difusão e acesso da comunidade local aos
documentos históricos, sendo assim, é com atividades pontuais, como as desenvolvidas no CDH-FURG, que a conservação ocorre e, em consequência disso, um
maior acesso (portanto, a difusão) a esse patrimônio.
Referências:
BARROS, José D’Assunção. O Campo da História: especialidades e abordagens.
5. ed. Petrópolis; Rio de Janeiro: Vozes, 2008.
BELLOTO, Heloísa Liberalli. Arquivos Permanentes: tratamento documental.
4. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
BELLOTTO, Heloísa Liberalli; CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Dicionário
de Terminologia Arquivística. São Paulo: Associação dos Arquivistas Brasileiros, 1996.
BERNARDES, Ieda Pimenta; DELATORRE, Hilda. Gestão Documental Aplicada. São Paulo: Arquivo Público do Estado de São Paulo, 2008.
CASSARES, Norma Cianflone; TANAKA, Ana Paula Hirata. Preservação de
Acervos Bibliográficos: homenagem à Guida Mindlin. São Paulo: Associação
Brasileira de Encadernação e Restauro, Arquivo do Estado, Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2008.
CASSARES, Norma Cianflone; MOI, Cláudia. Como Fazer Conservação Preventiva em Arquivos e Bibliotecas. São Paulo: Arquivo do Estado e Imprensa
Oficial, 2000.
FURG. Histórico do CDH.< www.cdh.furg.br> Acesso em 26/04/2012.
HENRY, Louis. O levantamento dos registros paroquiais e a técnica de reconstituição de famílias. In: MARCÍLIO, Maria Luiza (Org.). Demografia Histórica:
organizações técnicas e metodológicas. São Paulo: Novos Umbrais,1977. p. 41-63.
HEREDIA HERRERA, Antónia. Organización I: clasificación de fondos. Archivistica general: teoria y practica. 4. ed. Sevilha: Gráficas Del Sur, 1989.
________. Organización II: ordenación de documentos y de series documentales.
Archivistica general: teoria y practica. 4. ed. Sevilha: Gráficas Del Sur, 1989.
HOLLINGSWORTH, Thomas H. Uma conceituação de Demografia Histórica e as diferentes fontes utilizadas em seu estudo. In: MARCÍLIO, Maria
Luiza (Org.). Demografia Histórica: organizações técnicas e metodológicas. São Paulo: Novos Umbrais,1977. p. 23-39.
PAES, Marilena Leite. Arquivo: teoria e prática. 3. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro:
FGV, 2004.
262
TESSITORE, Viviane. Como Implantar Centros de Documentação. São Paulo:
Arquivo do Estado, Imprensa Oficial, 2003. (Projeto Como Fazer, 09)
SCHELLENBERG. T.R. Arquivos Modernos: princípios e técnicas. 6. ed. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2006.
SPINELLI JUNIOR, Jayme. A conservação de acervos bibliográficos & documentais. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Dep. De Processos Técnicos, 1997
TESSITORE, Viviane. Como Implantar Centros de Documentação. São Paulo:
Arquivo do Estado, Imprensa Oficial, 2003. 52 p. (Projeto Como Fazer, 09).
263
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
5. Escravidão no Rio Grande do Sul:
crime, família e trabalho.
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
A Escrava Olina, fulha de Eva e Neta da Africana Rosa Catarina:
As Relações Familiares na Escravaria de Maria Angélica Barbosa
Natália Garcia Pinto1
Resumo: É Objetivo do trabalho de analisarmos as pistas familiares dos escravos arrolados
nos inventários pelotenses. Cientes da limitação da fonte resolvemos seguir o método proposto pelas historiadoras cubanas Díaz e Fuentes (2006), isto é, de reconstituir os laços familiares
dos cativos através dos registros de batismos, para posteriormente realizarmos o cruzamento
com as informações presentes nos inventários. Abordaremos o estudo de caso de uma escravaria específica na tentativa de perseguir a trajetória do grupo familiar, quem sabe podemos
elaborar as redes de relações presentes dentro do plantel examinado. Avaliaremos, em nosso
estudo de caso, à possibilidade da comunidade familiar de terem acesso ao projeto de liberdade
ou a obtenção de algum bem material, legados, e se porventura os seus afetos foram separados
no momento da partilha dos bens de seus proprietários.
Palavras-chave: Escravidão- Famílias Negras - Pelotas
E
m 1847, ao morrer na cidade de Pelotas, Maria Angélica Barbosa
deixou aos seus herdeiros um plantel de 136 escravos, sendo que
destes setenta e 66 eram homens e mulheres, respectivamente. Legava também aos seus familiares suas estâncias, terras, animais e bens existentes na
cidade do Rio de Janeiro, arrolados em seu inventário.2 Em seu solene testamento
consta o seu desejo de libertar uma de suas escravas. Era a parda Clara, de trinta e
cinco anos, filha da crioula Simpliciana, já liberta há algum tempo, a qual a inventariante passara a manumissão na verba de seu testamento.
A comunidade de senzala que se formara na escravaria de Maria Angélica
Barbosa, aparece-nos como sendo excepcional, visto quem seu plantel foi possível
computarmos uma expressiva rede de relações familiares, algo surpreendente na
documentação. Os laços parentais, em sua grande maioria, estavam relacionados
aos rebentos e suas mães, sendo pouco representativo o universo familiar declarado entre a figura paterna e a criança.
É interessante comentar o certo equilíbrio entre os sexos nessa escravaria, pois
51,5% e 48,5% eram de escravos do sexo masculino e feminino, compondo uma razão de
masculinidade de 106, 1. Destacamos também a presença de crianças não apenas de colo,
Mestre em História UNISINOS. E-mail para contato: [email protected]
Inventário de Maria Angélica Barbosa. Ano de 1847, Número 286. Vara de Família, Sucessão
e Provedoria. APERS.
1 2
267
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
mas também até por volta dos 14 anos de idade, fato que aponta para uma reprodução
endógena dentro do plantel dessa senhora. Outro dado relevante é a presença considerável
de escravos crioulos em idade produtiva na senzala, situação que assinala a possibilidade de
reposição da escravaria via produção natural, não sendo necessário recorrer ao comércio
de escravos via o tráfico para a reposição da mão de obra escrava em sua senzala.
Contabilizamos cinco famílias escravas que conviviam em uma rede de parentela
com avós, tios, sobrinhos, primos e netos. Notamos que os núcleos familiares eram chefiados pelas mulheres, tendo nas avós africanas uma presença forte, especialmente entre
as figuras de seus netos e com seus filhos. Manolo Florentino já advertiu em seu trabalho
Em Costas negras, da dificuldade de capturar o parentesco escravo nessa documentação em
virtude de os avaliadores estarem mais interessados em diagnosticar a avaliação da peça
listada entre os bens do que preocupado em informar os laços de consanguinidade entre
os escravizados arrolados. Conforme Florentino,
Considerando-se apenas aqueles cativos unidos por parentesco
de primeiro grau sancionado pela Igreja – casais com ou sem
filhos e as mais solteiras e seus rebentos – em plantéis com mais
de um escravo, tem-se que no mínimo, de quinze a 35 entre cada
cem escravos rurais e de dez a trinta entre cada grupo de cem escravos urbanos ligavam-se por laços parentais de primeiro grau.3
Nessa mesma esteira de pensamento as pesquisadoras cubanas formularam o
seguinte método:
Esta manera de reconstruir las familias a partir del nascimento de los
niños y no del matrimonio de los padres, nos permitia incluir, además,
a todos los nascidos. De haber comenzado solo com la serie de matrimonios, hubiéramos identificado a las parejas y localizado a sus hijos,
pero dejábamos fuera a los hijos de madres solteras, a los famosos
hijos naturales o de padre no conocido. Esto era, precisamente, lo que
se habia alegado como uma de las dificuldades para la reconstrucción:
el alto porcentaje de ilegitimidad. Pero como bien piensan y sienten
alguns pueblos africanos, son los niños los que dan sentido a la familia
y no el matrimonio.4
É possível que a comunidade da senzala dessa proprietária tenha envelhecido
ao longo do tempo, no sentido de fazer história como pontuaram Fragoso e Rios,
em que “pouco a pouco o parentesco transformava bandos hostis em comunidade
de pais, filhos, tios, primos, compadres. Mais longo o tempo de convivência, menor
a interferência de novatos, mais parentes e mais fortes os laços”.5 Observemos o
gráfico abaixo:
FLORENTINO, 1997, p. 55.
DÍAZ & FUENTES, 2006, pp. 35-36.
5
FRAGOSO & RIOS, 1995, p. 214.
3 4
268
Gráfico Genealógico A: Famílias escravas da escravaria de Maria Angélica Barbosa
Simpliciana
Dorotéia Bonifácio Felisbina
Clara Desidéria
Níria
Pompeo
Simpliciana
Arminda
Rosa
Camundá
Florinda Cristina Virgilina
Rosa
Micaela
Maria FaustinaCarolina Inália Waldina Claudiana Rosa
Florinda
Rosa
Catarina
Eva
Eleutéria
Felizarda
Tito
Balthazar
Ibrahim Eliseu
Caetano
Suzana
Olina Quincio
Rosa
Antônia
Raquel Túlia
Fany
David
Antônia
Maria
Teresa
Teresa
Antônia
Eufrásia Balbina Claudiana Manoel Maria
Maria Teresa
Fonte: Inventário de Maria Angélica Barbosa. Ano de 1847, Número 286. Vara de Família,
Sucessão e Provedoria. APERS.
Observando o núcleo familiar da crioula Simpliciana, das africanas, Rosa
Camundá, Rosa Antônia, Rosa Catarina e de Maria Teresa, pensamos que essas
mulheres encarnaram em suas figuras maternas e de avós, o posto de chefia de suas
famílias. É provável que essas mulheres, especialmente as de origem africana, compartilhavam tradições e memórias que remontavam as lembranças trazidas de seu
grupo familiar deixados na África. Essas mulheres foram arrancadas de suas raízes,
de seus relacionamentos e afetos pela fúria da força do comércio negreiro. Muito
269
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
provavelmente podem ter sido levadas a outras partes das províncias do Império
brasileiro, para posteriormente, serem designadas a escravaria de sua senhora Maria
Angélica Barbosa. Quantas e quantas vezes os laços de amizade, parceria e afetos
foram desfeitos e rompidos durante a vida em cativeiro dessas escravas. Quiçá chegaram individualmente a essa comunidade, sendo vistas como “estranhas” ou “estrangeiras” em um plantel que deveria ter seus códigos e regras de funcionamento
entre os pares escravos, assim a “sua aceitação no novo grupo, fundamental para
a sua própria sobrevivência, passava pela aceitação destas regras”6, interessando
ambas as partes que instaurasse a paz dentro da comunidade.
Passado o momento de estranhamento dentro do plantel de sua senhora,
e inseridas dentro do funcionamento e das normas sociais da comunidade cativa,
essas mulheres formaram suas famílias, ao que tudo indica guiada pela matrifocalidade, mas possivelmente seus filhos e netos poderiam conviver com a figura
do pai ou avô, pois sugerimos que essas cativas tivessem uniões consensuais na
comunidade.
Mas antes de analisarmos o gráfico acima, gostaríamos de tecer alguns
comentários sobre a família da crioula liberta Simpliciana. A liberdade para ela
foi concedida gratuitamente por sua senhora, Maria Angélica Barbosa, impondo
a condição de que os filhos que já tivera em cativeiro, continuariam sendo seus
escravos, os que porventura, tivesse após a condição de liberta, seriam, portanto,
pessoas livres.7 Imaginemos a situação vivenciada pelo núcleo familiar dessa crioula
liberta. Parte dessa família negra era formada por indivíduos de condição social
distintas. A mãe era liberta, mas a maioria de seus filhos e netos, não, eles portavam
o signo do status da condição de escravos. Situação vivenciada por muitas famílias
escravas dentro do regime escravista. Conforme relatou Isabel Reis, “eles tiveram
que dividir com os seus familiares não cativos as agruras impostas pelo regime do
cativeiro”.8 Talvez convivessem distantes uns dos outros, não sabemos qual o destino da crioula liberta Simpliciana depois da liberdade. Teria tentando alguma
negociação, quem sabe em vão, de pelo menos de tentar comprar a alforria
de algum filho ou neto enquanto desfrutava de sua liberdade? Para a crioula
liberta Simpliciana, esse momento deveria ser de muitas incertezas. De um
lado, uma mulher egressa da escravidão, de outro, uma mãe e avó que, talvez
à distância, sofria com a situação de cativeiro que seus familiares continuavam
a viver e a enfrentar. Simpliciana, como liberta, experimentou a difícil linha
tênue entre a fronteira da liberdade e da escravidão. Muitas perguntas, e quase
nada de respostas que elucidem a situação vivenciada por essa ex-cativa.
FRAGOSO & RIOS, 1995, p. 215.
A carta foi concedida em 01/11/1835 e registrada em 15/09/1840. Livro 13, fl. 25v. APERS.
8
REIS, 2007, p. 27.
6
7
270
Situação semelhante pode ter sido vivenciada pela africana Rosa Camundá, uma mulher liberta, porém com filhos e netos ainda sob o domínio
do cativeiro. Não sabemos como essa ex-escrava conseguiu alforriar-se. No
inventário consta que era mãe de três escravas: Florinda Rosa, Cristina e Virgilina. No entanto, vasculhando as alforrias cartorárias descobrimos que essa
liberta africana era mãe também do crioulo Manoel José. Primeiramente, a
africana Rosa Camundá libertou sua filha mais velha, a africana Florinda Rosa,
pagando o referente a duzentos e cinquenta mil réis ao seu ex-sinhô moço, o
senhor João Francisco Vieira Braga. Intrigante que a manumissão da crioula
Florinda Rosa foi também custeada pelos herdeiros do espólio de Dona Maria
Angélica, tendo seu filho e testamenteiro doado a quantia de trinta e dois mil
réis “sendo a favor do ato de humanidade”, conforme consta na carta. 9 Talvez
a motivação de libertar a crioula Florinda Rosa não esteja apenas relacionada
a um ato de humanidade de seu antigo proprietário. Observamos que essa
escrava dera a luz a nada menos que sete crias para a senzala de sua senhora,
que após o seu falecimento, tocou o restante dos negócios ao filho mais velho,
João Francisco Vieira Braga. Além disso, a crioula Florinda Rosa pertencia a
uma das famílias escravas, provavelmente mais antiga da escravaria de Dona
Maria Angélica Barbosa. Essa senhora dava preferência por alforriar escravos
com laços de parentesco, como vimos anteriormente, quiçá seu filho continuasse com a mesma política após o seu falecimento. É factível supormos que
além da agência da mãe da crioula Florinda Rosa de resgatá-la do cativeiro,
tenha pesado na decisão final do acerto da alforria a quantidade de crias ofertadas ao plantel de seu sinhô moço.10
Passados seis anos depois disso, a africana Rosa Camundá projeta a
libertação de seu único filho homem, o crioulo Manoel José, Desembolsando
a quantia e um conto e cem mil réis. Porém, a liberdade seu filho vinha acompanhada da seguinte cláusula:
com a condição, porém de viver sempre em companhia de sua
mãe, para fazer-lhe todo o serviço que ela precise, tratando com
toda a caridade que requer a sua avançada idade, e se assim o não
fizer ficará de nenhum efeito a carta.11
Interessante a condição imposta por João Francisco Vieira Braga ao
seu escravo. Este deveria zelar pelo cuidado a saúde de sua mãe, uma vez que A carta foi concedida em 11/08/1852 e registrada em 16/08/1852. Livro 04, fl. 12r. APERS.
Podemos ver o interessante caso de Antonio e Rosa, que empreenderam uma fuga pela fronteira meridional acompanhados de cinco filhos, irritados pela senhora não concordar em dar a
liberdade a esta cativa, que já fornecera 11 crias aos seus senhores. MOREIRA, 2011, pp. 21-43.
11 A carta foi concedida em 09/01/1858 e registrada em 11/01/1858. Livro 05, fl. 32v. APERS.
9
10
271
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
brando esse comportamento o colocaria novamente sob o poder de seu domínio. Parece-nos que o senhor João Francisco Vieira Braga queria continuar
ditando as normas e regras, ou melhor, regulando o “governo dos escravos”,12
de como o crioulo Manoel José deveria viver dali em diante como um homem
liberto, porém preso a ameaça de voltar ao cativeiro se descumprisse o acordo
senhorial para viver como “senhor de si”. Porém, não nos esqueçamos do papel fundamental desempenhado por sua mãe, a africana Rosa Camundá, pois
sem os seus esforços, quem sabe, a liberdade do crioulo Manoel José apenas
ficaria limitada a uma esperança remota. Pois foram mulheres como ela, distantes ou não do cativeiro, as principais responsáveis pelas libertações de seus
parentes.
Um dado interessante assinalado no gráfico onde expusemos as famílias escravas acima é de transmissão intergeracional dos nomes de cativos
aos seus semelhantes, especialmente os passados pelas avós às netas. Conforme destaca Rodrigo Weimer, “o nome também situa um lugar social para o
sujeito na medida em que assinala o prestígio de que gozam as famílias a ele
referidas”.13 Talvez as avós, crioula Simpliciana e Maria Teresa e a africana
Rosa Camundá tivessem reconhecimento e consideração entre seus familiares,
para que seus nomes14 fossem invocados para nomearem suas netas, atravessando gerações e tendo como referência a família; segundo a análise da historiadora Ana Lugão Rios que:
A maneira de nomear as crianças mostra que o parentesco entre
os escravos foi ampliado e atravessou gerações. A importância
atribuída a essas relações ao que tudo indica não foi isolado ou
restrito a determinadas regiões escravistas. Com algumas modificações, os nomes dos escravos foram maneiras de exprimir,
nas mais diversas regiões escravistas, um referencial importante
de suas vidas: a família.15
Por ora assinalamos a repetição de nomes entre os familiares, como por
exemplo, Florinda Rosa filha de Rosa Camundá e mãe de Maria Florinda, ou Teresa Antônia filha de Maria Teresa e mãe de Manuel Maria. A explicação plausível
para essa situação, segundo as observações de Weimer, deve-se pelo “intercâmbio geracional na composição do nome, isto é, uma variação na ordenação dos
elementos que o compunham – prenomes e sobrenomes advindos de familiares
MARQUESE, 2004; VARGAS, 2011.
WEIMER, 2008, p. 238.
14
OLINTO, 2009, pp. 173-174.
15
APUD WEIMER, 2008, p.238. In: RIOS, 1990.
12 13
272
diversos” 16, e indicando, conforme sugere ele, “o pertencimento familiar, do
que uma identificação pessoal com seu ancestral”.17
Essas famílias cativas da comunidade de senzala que investigamos,
poderiam obter alguns privilégios ou concessões conquistados, quem sabe
ativados pelos laços de parentesco solidificados pelo tempo na escravaria. O
direito de terem um compartimento individualizado dentro da área da senzala,
para dividir o alimento entre os seus descendentes e um espaço de autonomia
próprio18 para desfrutar de pequenas conversas, danças ou cultos a santos, ou
uma moradia fora dessa região, talvez no pátio da estância em que ao lado da
habitação pudessem plantar uma horta ou roçado (feijão, verduras, milho)
para incrementarem a dieta alimentar de seus filhos e netos, não ficando restrita apenas a ração diária que os capatazes ou feitores distribuíam rotineiramente aos escravos de Maria Angélica Barbosa.
A família desta estancieira e charqueadora possuía duas senzalas de
moradia aos escravos, feitas de madeira e cobertas de palhas.19 Normalmente
elas poderiam ser dividas em cômodos, baseando-se na divisão dos sexos, ou
por aposentos separados por grupos de escravos que tivessem laços de parentesco. Salles descreve que as senzalas eram
grandes construções térreas em linha ou em quadra, que
formavam, com outras edificações, como visto, as alas de
terreiros, dessa maneira fechados e para os quais estavam
voltadas suas poucas portas e, quando as havia, janelas.
Eram dividas em compartimentos separados por sexo. Nestes compartimentos havia cubículos destinados a pequenos
grupos de escravos. As poucas famílias que haviam se constituído tinham seus próprios cubículos, ou excepcionalmente,
podiam, como alternativa, habitar em pequenas choupanas
separadas.20
Na realidade quase nada sabemos a respeito das moradias e senzalas
escravas. Intriga-nos a situação vivenciada pela família da crioula Simpliciana,
uma vez que ela era uma mulher liberta antes mesmo da feitura do inventário
de sua sinhá, no entanto, a maioria de seus filhos e netos continuavam escravos.21 Continuaria residindo entre os seus descendentes que ainda estavam
WEIMER, 2008, pp. 239-240; HAMEISTER, 2006.
WEIMER, 2008, p. 240.
18
SLENES, 1999; MATTOS, 1995.
19 Inventário de Maria Angélica Barbosa. Ano de 1847, número 286. Vara de Família, Sucessão
e Provedoria. APERS.
20
SALLES, 2008, p. 180.
21
A carta foi concedida em 01/11/1835 e registrada em 15/05/1840. Livro 13, fl. 25v. APERS.
16
17
273
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
subjugados ao poder de Dona Maria Angélica Barbosa? Uma circunstância delicada de
sabermos com exatidão dos fatos.
Temos o conhecimento da separação física da convivência entre a escrava Cristina, filha da africana Rosa Camundá, e mãe da pequena Micaela de apenas oito anos
de idade. Elas estavam sob o poder do genro de Dona Maria Angélica, Antônio José
Afonso Guimarães antes mesmo de ter iniciado o momento da partilha dos bens da
estancieira. Desconhecemos se as propriedades fossem próximas uma da outra. Somente obtivemos a informação de que a escrava Cristina fugira com sua pequena filha em
direção para o Estado Oriental, quando ainda encontrava-se nos domínios do genro de
sua senhora, o Comendador Antônio José Afonso Guimarães. O raciocínio traçado para
a possível fuga coletiva,22 da mãe e da filha, possa ser compreendido pela separação física
e da convivência diária junto a seus familiares. O desespero de fugir para longe dessa
conjuntura talvez implicasse em uma reivindicação dessas cativas em insistir em viverem
em companhia dos seus. Direito que lhes foram extirpados com a separação de compartilharem os momentos difíceis ou agradáveis junto de seus familiares. Provavelmente, a
impaciência de ver que sua prerrogativa não era atendida, a alternativa encontrada para
sair dessa circunstância, talvez fosse escapar do cativeiro em direção da fronteira.
Como enfatizaram João Fragoso e Ana Rios, “se a comunidade e o parentesco
escravo eram também o solo sobre o qual se cultivava a principal renda política dos
senhores”, este poder estava amparado e construído “sobre privilégios e concessões
dados/conquistados por aquela comunidade”, 23 uma vez que houvesse o rompimento
desses benefícios a paz se desfazia, especialmente em se tratando de partilhar seus relacionamentos e afetos, tirando o direito adquirido de conviver entre o grupo familiar,
instaurando o possível conflito, como no caso da fuga dos parentes da africana Rosa
Camundá.
Partilhando Afetos
Conforme alegava o historiador Sidney Chalhoub, o falecimento do proprietário poderia acarretar:
(...) mudanças significativas na vida de um escravo, incluindo a possibilidade da alforria. Mais do que um momento de esperança,
Petiz comenta que (2006, p. 104) “entre os fugitivos há também o indicativo de que o negro
buscava na fuga uma possibilidade para a sociabilidade e, mesmo diante da precariedade que
lhe era característica, alcançava nela um momento de encontro”, o autor menciona que uma das
motivações para o escapulir dos escravos estivesse baseado em ficar mais próximos de parceiros,
amigos ou afetos, pois as fugas “sedimentava em ações arriscadas, que somente poderiam ocorrer de maneira compartilhada, entre iguais de sangue, origem ou muito próximos afetivamente,
pois seria necessária a troca de idéias, planos e informações”. Ver CARATTI, 2010.
23
FRAGOSO & RIOS, 1995, p. 215.
22
274
porém, o falecimento do senhor era para os escravos o início de
um período de incerteza, talvez semelhante em alguns aspectos à
experiência de ser comprado ou vendido. Eles percebiam a ameaça de serem separados de seus familiares e de companheiros de
cativeiro, havendo ainda a ansiedade da adaptação ao jugo de um
novo senhor, com todo um cortejo desconhecido de caprichos
e vontades.24
A separação de Cristina e Micaela de seu núcleo familiar ocorreu antes da
partilha feita no inventário de Maria Angélica Barbosa em 1847. Analisando essa situação talvez a escrava Cristina temesse um novo afastamento de seus laços familiares,
nesse caso, de uma possível separação ou até mesmo a comercialização de sua filha
Micaela com a proximidade de dividirem os bens de sua senhora falecida.
Em nosso estudo de caso, ao que tudo indica que em grande parte os afetos foram partilhados. O grupo familiar de Rosa Camundá, por exemplo, foi dividido para vários familiares de sua senhora. Ao herdeiro, João Francisco Vieira Braga,
filho e testamenteiro da inventariante, foram designados os irmãos, Florinda Rosa,
Virgilina e Manoel José, filhos da africana Rosa Camundá. Á dona Teresa Angélica
Braga dos Anjos, filha da proprietária, coube a escravinha Waldina, de sete anos; ao
Alferes Joaquim Vieira Braga, também filho da inventariante, ficou com a pequena
Claudiana, com cinco anos, Maria Florinda, Inália e Carolina foram herdados ao
Doutor Miguel Vieira Braga, filho da estancieira e Rosa a Vicente Vieira Braga também filho de Maria Angélica Barbosa. A escrava Faustina manteve sob o domínio do
Coronel Francisco Vieira Braga, viúvo da inventariante.
Em relação à família da crioula liberta Simpliciana na partilha suas netas
Níria e Simpliciana foram herdadas por João Francisco Vieira Braga. Por sua vez,
Arminda e Dorotéia ficaram sob a tutela do comendador Antônio José Afonso Guimarães, genro de Maria Angélica Barbosa, Bonifácio e Desidéria, legadas ao Alferes
Joaquim Vieira Braga Filho, Pompeo e Felisbina foram transmitidas ao legatário Vicente Vieira Braga.
O destino da família de Rosa Antônia foi semelhante aos anteriores. A escrava Raquel e sua filha Antônia foram transmitidas ao filho de sua senhora, o doutor
Miguel Vieira Braga, Fany foi legada ao doutor José Vieira Braga, Tulia ao genro de
sua dona, Francisco José Gonçalves da Silva e a matriarca dessa família escrava foi
encaminhada para o doutor Antônio Vieira Braga, filho da proprietária falecida.
A distribuição da família de Rosa Catarina, na partilha, manteve grande parte de seus parentes sob um mesmo legatário. Por exemplo, os escravos Tito, Suzana,
Ibrahim, Eliseu e Felizarda foram deixados ao filho de sua senhora, João Francisco
Vieira Braga, já a escrava Eleutéria foi passada ao doutor Antônio Vieira Braga, filho
CHALHOUB, 1990, p. 111.
24
275
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
da senhora, o cativo Caetano, Rosa Catarina juntamente com Olina foram passados ao
poder do genro de sua proprietária, o Coronel Francisco José Gonçalves da Silva.
Somente o grupo familiar encabeçado pela escrava Maria Teresa, não foi totalmente separado na partilha do espólio dos bens de sua dona. Todos os parentes legados
ao filho João Francisco Vieira Braga.
Tudo leva a crer que a repartição dos escravos na partilha do inventário de
Dona Maria Angélica Barbosa correspondia à separação das famílias escravas de sua escravaria. Todavia, é necessário pensarmos sobre a possibilidade de que os herdeiros beneficiados com o espólio dos bens partilhados morassem juntos na mesma propriedade,
ou então em residências que fossem circunvizinhas umas das outras, o que implicaria em
uma separação formal das famílias cativas, conforme pontuou Rocha em seu trabalho.25
Podemos observar que, em alguns casos, que um núcleo familiar não foi estilhaçado por
completo durante o espólio, por exemplo, a família (i)legítima de Felizarda e seus filhos,
Eliseu e Ibrahim, que se manteve unida entre si, por outro lado, distantes de outros parentes.
Cristiany Rocha argumenta que:
(...) considerarmos que a avaliação do impacto da morte do senhor
sobre a vida familiar dos escravos deve ser feita mediante abordagens
mais qualitativas, que permitam o cruzamento de várias fontes além
dos inventários. Como vimos, a simples comparação entre lista de
avaliação e partilha do inventário pode produzir imagens distorcidas do cotidiano dos escravos. O acompanhamento das famílias ao
longo do tempo e das gerações de proprietários pode ajudar-nos a
compreender melhor os efeitos causados pelas mudanças na vida
dos senhores sobre as famílias de escravos.26
Concordamos com o esclarecimento da autora, porém este estudo exaustivo
de acompanhar as famílias ao longo do tempo e das gerações dos herdeiros escapa do
alcance dos objetivos de nossa pesquisa. Mesmo que a partilha dos parentes não os
mantivessem muito distantes uns dos outros, dependendo da localização onde residiam
os herdeiros de Maria Angélica Barbosa, uma separação da convivência do afeto de seus
familiares sempre é um nó um tanto delicado de vivenciarem.
Em suma, o momento da partilha do espólio dos proprietários poderia em
alguns casos trazer a separação de familiares, somente o grupo familiar de Maria Teresa,
ao que parece permaneceram juntos após a divisão material dos bens. Não queremos
enfatizar que a separação das famílias escravas era regra habitual nesse momento ou que
o contrário jamais poderia acontecer, apenas quisemos explorar nosso estudo de caso e
tentar demonstrar algumas hipóteses sobre essa circunstância vivenciada pelos cativos.
ROCHA, 2004, p. 107.
IDEM, p. 107.
25
26 276
Reconstituindo Famílias Escravas
Aos quinze dias do mês de Janeiro de mil oitocentos e trinta e dois, na
matriz da Catedral de São Francisco de Paula, o agricultor, David Pampulona Corte
Real encaminhou-se a essa instituição com suas duas escravas para batizá-las. A primeira a receber os santos óleos foi Margarida, nação Mina, tendo como padrinhos
os escravos José e Joaquina. Posteriormente, a batizada foi a sua filha, a crioula
Eva, nascida no dia quinze de julho de mil oitocentos e trinta e um. Mãe e filha
tiveram os mesmos padrinhos espirituais, os cativos José e Joaquina.27 Ao que parece,
o lavrador David Pampulona Corte Real não batizara a escrava africana, Margarida,
nação mina, no momento que a adquiriu como sua propriedade. Quem sabe ao
compra-lá, já estivesse grávida da menina Eva ou possivelmente conhecera algum
escravo na escravaria de seu senhor, e só a partir de então, a gestação de Margarida,
nação Mina, fosse realmente concretizada.
O lavrador e agricultor David Pampulona Corte Real possuía um plantel
de escravos modesto. Ao todo era senhor de treze cativos, sendo a maioria de escravos do sexo feminino, nove e quatro, mulheres e homens, respectivamente. 28
Analisando os registros batismais, novamente encontramos esse senhor, levando
seus escravos a Igreja da cidade para receberem o primeiro sacramento. No dia
vinte e um de junho de mil oitocentos e trinta e cinco, a crioula Henriqueta, filha natural da escrava Domingas, nação Congo, foi apadrinhada por José Joaquim
Salgado e pela escrava Rosa. Ainda nesse mesmo dia, o pequeno crioulo Isidoro,
nascido aos quatro de abril daquele mesmo ano, filho natural da escrava Joaquina,
nação Moçambique, teve como padrinhos os escravos Mateus e Vitória. 29
A africana Joaquina, nação Moçambique, além de ser mãe do crioulo Isidoro, deu a luz também a uma menina, a parda Bonifácia, nascida aos quatorze de
julho do ano de mil oitocentos e trinta e sete, sendo batizada por José Bernardino
da Rocha, de condição social livre, e como madrinha tendo a coroa de Nossa Senhora. 30
Em 1838, o crioulo Adão, nascido aos sete de agosto daquele mesmo ano,
filho natural de Mariana, nação Gege, recebeu os santos óleos e as bênçãos de seus
padrinhos, Domingos Alves e Francisca Jesus, os quais não tiveram a condição
social devido á falta de informações não prestadas pelo pároco. 31
Livro 01 de Batismos de Escravos da Catedral São Francisco de Paula, fl. 190. ACDP.
Inventário de David Pampulona Corte Real. Ano 1846. Número 255. Vara de Família, Sucessão e Provedoria. APERS.
29
Livro 02 de Batismos de Escravos da Catedral São Francisco de Paula, fl. 05. ACDP.
30
Livro 02 de Batismos de Escravos da Catedral São Francisco de Paula, fl. 22. ACDP.
31
Livro 02 de Batismos de Escravos da Catedral São Francisco de Paula, fl. 28. ACDP.
27
28
277
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Seguindo o método onomástico32 de perseguir indivíduos pelo rastro do
nome, fomos então, a procura por meio desse “fio condutor”, nos inventários na
tentativa de “reconstituir o vivido”, ou melhor, de reconstituir os grupos familiares
em questão. A partida inicial se deu nos batismos, para depois, avançarmos em outras
documentações em prol de analisarmos a reconstituição dos grupos de indivíduos e
“identificar as estruturas visíveis segundo as quais esse vivido se articula”.33
No ano de 1846, foi aberto o processo de inventário do agricultor Davis
Pampulona Corte Real, encabeçado por sua esposa Rita Joaquina Pampulona Corte
Real.34 Entre os bens arrolados para a avaliação e consequentemente para a partilha
da herança entre os herdeiros, encontramos o grupo familiar da africana Margarida,
nação Mina, com sessenta anos de idade e sua filha a crioula Eva, com dezesseis anos.
O núcleo familiar da africana, Joaquina Moçambique, também foi identificado nos bens arrolados pelos avaliadores. O crioulo Isidoro o filho mais velho
possuía treze anos de idade, sua irmã, a parda Bonifácia, a caçula da família, estava na
tenra idade dos dez anos. Já Joaquina, nação Moçambique, carregava consigo o peso
da experiência de viver em cativeiro, talvez desde jovem, tendo sido avaliada com
quarenta e quatro anos. Porém, algo de diferente havia nesse grupo familiar. A mãe
do crioulo Isidoro e da parda Bonifácia fora agraciada pela liberdade e via os últimos
desejosos declarados em testamento pelo seu senhor, David Pampulona Corte Real.
Joaquina, nação Moçambique foi alforriada sob a condição de continuar acompanhando a qualquer um dos herdeiros de seu dono por mais dez anos. Liberdade
limitada, pois além dos anos já trabalhados na propriedade de seu falecido senhor,
deveria continuar trabalhando por mais dez longos anos para um dos herdeiros do
lavrador Corte Real, só depois dessa passagem de tempo poderia se considerar uma
mulher livre. Não temos o conhecimento se Joaquina buscou a liberdade para seus
filhos, Isidoro e Bonifácia. A situação real dessa família mostra que a estratégia de
liberdade familiar era um tanto tênue, pois nem sempre a alforria poderia ser angariada por todos os indivíduos que compunham o núcleo familiar, geralmente as
circunstâncias demonstram que um membro é privilegiado com a liberdade, ficando
O método onomástico foi proposto pelos historiadores Ginzburg e Poni no final da década de 70. E conforme Jacques Revel (2000, p. 17) “apoiados pela enorme jazida arquivística
italiana, os autores propunham outra “maneira” de conceber a história social acompanhando o
“nome” próprio dos indivíduos ou dos grupos de indivíduos. O paradoxo é apenas aparente.
Pois a escolha do individual não é considerada contraditória com a do social: torna possível
uma abordagem diferente deste último. Sobretudo, permite descartar, ao longo de um destino
específico – o destino de um homem, de uma comunidade, de uma obra -, a complexa rede de
relações, a multiplicidade dos espaços e dos tempos nos quais de inscreve”.
33
REVEL, 2000, p. 17.
34
Inventário de David Pampulona Corte Real. Ano 1846. Número 255. Vara de Família, Sucessão e Provedoria. APERS.
32
278
os demais parentes restritos a essa oportunidade, permanecendo a alforria como um
objetivo distante. Esse caso, ou em outros semelhantes, mostram o quão claramente
eram complexas as configurações familiares dos escravos, onde os relacionamentos
familiares e afetivos comportavam indivíduos de condição social distintos, isto é, em
uma mesma família poderiam existir sujeitos escravos, libertos ou livres, ligados por
laços de parentesco.35
Em relação à família da africana Domingas, nação Congo, somente identificamos a presença de sua filha, a crioula Henriqueta com treze anos de idade. A
ausência dessa mãe africana é explicada pelo seu falecimento ocorrido antes mesmo
da abertura do processo de inventariar os bens de David Pampulona Corte Real. A
mãe da crioula Henriqueta morreu em 1845, constando em seu óbito que morrera
repentinamente. 36 Nada descobrirmos a respeito da família de Mariana, nação Gege,
no inventário. Possivelmente, foram vendidos ou talvez tivessem falecidos, mas não
achamos os registros obituários nem da mãe Mariana, nação Gege, e tampouco de
seu filho, o crioulo Adão.
Verificando o momento da partilha dos bens do casal Pampulona Corte
Real, observamos que a parda Bonifácia e a escrava Margarida, nação Mina foram
herdadas pela viúva do lavrador, Dona Rita Joaquina Pampulona Corte Real. Á herdeira Flora, filha do casal coube a crioula Eva, por sua vez, o escravo crioulo Isidoro
foi designado ao filho caçula da viúva, chamado Leopoldo. A filha da escrava falecida, Domingas, nação Congo, antes do espólio da herança já se encontrava sob o
poder da herdeira Dona Leopoldina casada com o Alferes José Maria de Camacho. A
primeira vista pensaríamos que houve realmente a separação dos grupos familiares.
Porém, a história não é bem assim. Os herdeiros Dona Flora e Leopoldo eram os filhos mais jovens do casal, tendo 15 e 12 anos, respectivamente. Tudo leva a acreditar
que ainda residiam na mesma propriedade junto a sua mãe, Dona Rita Joaquina Corte Real, pois ainda eram solteiros, visto que os demais irmãos já haviam contraído o
enlace do matrimônio. Se realmente nossa hipótese estiver correta, as famílias escravas identificadas não tiveram seus afetos partilhados, ao menos até que os herdeiros
mais jovens tomassem outro rumo na vida, como por exemplo, casarem e residirem
em outro lugar longe das vistas da matriarca Corte Real.
Palavras Finais
Apesar da dificuldade de fisgar os indícios dos laços familiares nos inventários post-mortem, observamos que não é impossível detectar a presença deles
REIS, 2007, p. 19.
Óbito do dia 03/06/1845. Livro 02 de Óbitos de Escravos da Catedral São Francisco de
Paula, fl. 220v. ACDP.
35
36
279
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
com um esforço do cruzamento de informações em outras fontes. especialmente
em se tratando da excepcionalidade do caso da escravaria de Dona Maria Angélica Barbosa. Nesse plantel constatamos cinco núcleos familiares em que havia
a presença da avó, mães, filhos, netos, sobrinhos e tios. Famílias que deveriam
encontrar o conforto afetivo e solidariedade para enfrentar as agruras da vida em
cativeiro. Analisamos essas famílias no momento delicado da partilha dos bens
dos senhores falecidos. É bem provável que, essa situação trouxesse o medo da
separação, da partilha dos afetos. Contudo, fizemos a ressalva que nem sempre
esse isolamento da convivência entre os seus, poderia ser de fato uma separação formal, pois talvez houvesse a possibilidade dos herdeiros de morarem próximos uns
dos outros, impedindo um afastamento tão profundo dos laços parentais entre as
famílias escravas analisadas. Porém, mesmo em se tratando de uma separação que
não envolvessem grandes distâncias, salientamos que deveria ser uma circunstância
delicada, pois mesmo assim, haveria aquela separação de afetos, das conversas, das
trocas, memórias e lembranças partilhadas rotineiramente enquanto viviam sob o
mesmo domínio senhorial.
Mesmo que encontrássemos dificuldade em reconstituir os laços familiares nos inventários post-mortem, essa tarefa não era de todo impossível. Graças
aos registros de batismos conseguimos resgatar e reconstituir núcleos familiares
de escravos, em alguns casos específicos, dos plantéis escravistas pelotenses. Por
outro lado se o momento da partilha do espólio trazia consigo a possibilidade
do afastamento de familiares, também podia ocasionar aos cativos a esperança de
poder alcançar a liberdade legada em testamento como uma das últimas vontades
expressada pelos senhores.
Esse foi o caso da família (i)legítima da africana Joaquina, nação Moçambique, escrava do lavrador e agricultor David Pampulona Corte Real, e mãe dos
crioulos Isidoro e Bonifácia. A liberdade somente foi concedida a mãe, seus filhos
ficaram de fora dessa oportunidade de deixarem o cativeiro. Como salientamos
ao longo da escrita desse artigo, a liberdade, em muitas ocasiões, era vislumbrada
em um horizonte pelos escravos, sendo muito difícil de todos os familiares conseguirem serem alforriados, normalmente apenas um do grupo familiar atingia a
condição social de liberto. Famílias negras37 que conviviam com indivíduos de diferentes configurações sociais, como a da africana Joaquina, nação Moçambique,
ela uma libertanda (pois deveria cumprir a cláusula de trabalhar por mais dez anos
a um herdeiro, para posteriormente ser uma mulher livre) e seus filhos escravos.
Lembremos da crioula Simpliciana, ex-cativa de Dona Maria Angélica Barbosa,
uma egressa do cativeiro antes mesmo da abertura do inventário de sua ex-senhora,
sendo, portanto, liberta, mas seus netos e a maioria dos seus filhos continuavam
Realidade também encontrada nos seguintes trabalhos: REIS, 2007; PERUSSATO, 2010.
37
280
cativos de outrem. Somente a sua filha, a parda Clara, tinha conseguido alforriar-se
do domínio da charqueadora Dona Maria Angélica Barbosa.
Uma das estratégias disponíveis aos escravos para conseguirem a liberdade
era através dos esforços coletivos de parentes e aliados na tentativa de quebrarem os
grilhões do cativeiro e resgatarem seus filhos ou parceiros étnicos da condição vivida
em cativeiro. Mães escravas ou libertas, sendo em grande parte partícipes atuantes
pela formação e manutenção das famílias negras, lutando sozinhas ou em grupos, contra as agruras de um regime escravista que tentava oprimi-las.
Fontes Pesquisadas e Acervos
Arquivo da Cúria Diocesana de Pelotas – ACDP
Livros de Batismos e Óbitos de Escravos de 1830/1850
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul – APERS
Inventários post-mortem de Pelotas/RS – 1830/1850
Catálogo Seletivo de Cartas de Liberdade – Tabelionatos de Pelotas/
RS – 1830/1850
Referências Bibliográficas
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da
escravidão na corte. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.
CARATTI, Jônatas Marques. O Solo da Liberdade: As trajetórias da preta Faustina e
do pardo Anacleto pela fronteira rio-grandense em tempos do processo abolicionista
uruguaio (1842-1862). 2010. Dissertação (História) - Universidade do Vale do Rio
dos Sinos.
DÍAZ, Aisnara Perera; FUENTES, María De Los A. Meriño. Esclavitud, familia y parroquia em Cuba: outra mirada desde la microhistoria. Santiago de Cuba:
Editorial Oriente, 2006.
FLORENTINO, Manolo. Em costas negras. Uma história do tráfico de escravos
entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
FRAGOSO, João Luís Ribeiro; RIOS, Ana Maria Lugão. Um empresário brasileiro nos oitocentos. In: CASTRO, Hebe de Mattos; SCHNOOR, Eduardo
(orgs.). Resgate: uma janela para o Oitocentos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.
HAMEISTER, Martha Daisson. Para dar calor à nova povoação: estudo sobre
estratégias familiares a partir dos registros batismais da Vila do Rio Grande
(1738-1763). Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. Tese de Doutorado.
MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste
escravista. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
281
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do Corpo, Missionários da Mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1600-1860. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt.Com ela tem vivido sempre como o cão com
o gato – Alforria, maternidade e gênero na fronteira meridional. GOMES, Flávio dos Santos; CÔRTES, Giovana Xavier da Conceição; FARIAS, Juliana Barreto
(ORGS.). Mulheres Negras no Brasil escravista e do pós-emancipação. São Paulo, Editorial
SUMMUS, 2011, pp. 21-43.
OLINTO, Antônio. A casa da água. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.
PERUSSATTO, Melina. Como se de ventre livre nascesse: experiências de cativeiro, emancipação e liberdade nos derradeiros anos da escravidão – Rio Pardo, RS, c.1860c.1888. Dissertação de mestrado. São Leopoldo, UNISINOS, 2010.
PETIZ, Silmei. Buscando a liberdade: as fugas de escravos da província de São Pedro
para o além-fronteira (1815-1851). Passo Fundo: Editora da UPF, 2006.
RIOS, Ana Lugão. Família e Transição (famílias negras em Paraíba do Sul, 1872-1920).
Niterói: UFF, 1990. Dissertação de Mestrado.
REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. A Família negra no tempo da escravidão: Bahia, 18501888. Tese de Doutorado. Campinas, UNICAMP, 2007.
REVEL, Jacques. “História ao rés-do-chão”. Prefácio. In: LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000.
ROCHA, Critiany Miranda. Histórias de famílias escravas: Campinas, Século XIX.
Campinas: UNICAMP, 2004.
SALLES, Ricardo. E o vale era escravo. Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no
coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
SLENES, Robert. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da
família escrava. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
VARGAS, Jonas. “Para conter os seus delírios: os charqueadores e o governo dos escravos em Pelotas (c.1820-1850)”. In: V Jornada Histórica do PPGH-UFRJ. Rio de Janeiro, 2011. Publicação em prelo.
Weimer, Rodrigo de Azevedo. Os Nomes da Liberdade: ex-escravos na serra
gaúcha no pós-abolição. São Leopoldo: Oikos, 2008.
282
O estranho julgamento do escravo Nazário,
assassinato e
abrandamento da pena
Maximiliano Meyer*
Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar um processo crime que se passa em Rio Pardo, no ano de 1863, onde o jovem escravo Nazário, menor de idade assassina sua senhora com
crueldade e as implicações que podemos obter deste processo. Capturado e levado à julgamento,
os autos processuais nos revelam ricas informações que ajudam a abordar e analisar questões
variadas relativas à escravidão como os valores das peças, quantidade de cativos nos planteis e
claro as penas aplicadas à estes casos e em especial a pena inferida a este réu, que é bastante
notória. Como veremos, mesmo tendo todos os atributos necessários à pena capital, o escravo
tem seu castigo comutado em açoites, ainda que enquadrado na lei de exceção. Com relação a
isso faremos algumas suposições.
Palavras-chave: Escravidão – Rio Pardo – Lei de exceção – enforcamento.
Introdução
D
esde os seus primórdios o Brasil usou a exploração do trabalho
escravo como meio de produção principal em suas lavouras, minas, florestas, etc. Por toda colônia e posteriormente, por todo o
Império, incluindo a província de São Pedro do Rio Grande do Sul1, milhares de
homens, mulheres, velhos, crianças, negros e indígenas foram forçados a trabalhar
nos rendimentos de seu senhorio sem a menor preocupação com sua saúde, bem-estar ou dignidade. Na grande maioria das vezes, estes explorados não se opuseram ao sistema dominante com reações violentas e extremas, porém seguramente
não consentiam com sua situação de subjugados, a resistência então, acontecia e
era diária, passiva e negociativa. Sobre isto, Gorender fala que
* Graduando em História pela Universidade de Santa Cruz do Sul e bolsista de Iniciação Científica. O artigo apresentado aqui é uma pequena amostra da pesquisa coordenada pelos professores doutores Roberto Radünz e Olgário Vogt. Contato: [email protected]
Segundo Maestri, valendo-se de Guilhermino Cezar, os primeiros casais que chegaram por
aqui já traziam escravos. A frota de João de Magalhães, por exemplo, em 1725 compunha-se de
31 pessoas, “sendo a maior parte deste corpo, homens pardos escravos”. MAESTRI, Mário. O
escravo no Rio Grande do Sul: a Charqueada e a gênese do escravismo gaúcho. Porto Alegre:
Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1984. p. 29
1 283
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Conforme tem sido dito, a grande maioria dos escravos não
participou de levantes, não cometeu atentados, nem fugiu. À exceção da geração que chegou à Abolição, a grande maioria viveu
a escravidão até a morte. Centenas de milhares de escravos nativos – crioulos – suportaram esse destino do nascimento à morte. Isso não quer dizer que aceitaram a escravidão. Precisariam
conduzir-se como todos os seres humanos em circunstâncias
extremamente desfavoráveis: adaptar-se para tentar sobreviver. [...]
Adaptação não é sinônimo de passividade.
Para a esmagadora maioria, a resistência à escravidão se manifestava como resistência ao trabalho. O escravo precisava ser mau
trabalhador para não ser bom escravo. Daí o relaxamento, a incúria, a subserviência fingida, o trato ruinoso dos animais e ferramentas, a sabotagem, etc.2
Contudo, quando esses cativos resolviam se opor ao domínio de forma
violenta, as consequências podiam ser nefastas àqueles que julgavam serem seus
donos. Trabalhando com processos crimes da época isto fica ainda mais evidente.
Diferentes tipos de ocorrências são encontradas envolvendo cativos que se rebelavam contra seus senhores: Insurreições, agressões físicas, envenenamentos, roubo
e venda de propriedades alheias e claro, homicídios. Os homicídios são de longe os
casos mais emblemáticos quando se discute resistência escrava de alguma forma,
entre eles se encontram casos onde a agressão e a violência recebida e acumulada
lentamente durante anos, de uma hora para a outra, estoura em uma retribuição
extremada. Como diz Nabuco “a penalidade exagerada, em vez de reprimir os
crimes, provoca-os”3.
Em pesquisa anterior4, levantei 23 processos crime no APERS envolvendo
escravos, que ocorreram na localidade de Rio Pardo entre os anos de 1850 – 1871.
Dentre estes 23 crimes, cinco deles eram homicídios, cerca de 23% das ocorrências5.
Rio Pardo, sempre fora desde sua formação, um importante território da
Colônia de São Pedro do Rio Grande do Sul. Inicialmente compreendia um vasto
território que se desmembraria em mais de 200 cidades durante os séculos seguintes. A Rio Pardo do recorte temporal desta pesquisa porém, já não ostentava mais a
condição econômica de prosperidade que outrora lhe fizera tão rica e detentora de
GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990. p. 34-35
NABUCO, Joaquim. A escravidão. Rio de Janeiro: Batel, 2010. p. 47
4
MEYER. Maximiliano. A escravidão e os focos de resistência em Rio Pardo. – Trabalho
de Conclusão de Curso (Curso História) – Universidade de Santa Cruz do Sul – Unisc. Santa
Cruz do Sul, 2012
5
Os outros crimes foram: Furto ou roubo, 9 ocorrências, fermentos e outras ofensas públicas,
8 ocorrências e insurreição e roubo com 1 ocorrência. Idem, p. 7.
2 3
284
um dos maiores planteis de escravos da província à época. Em 1814 a cidade contava
com 2.429 escravos, que perfaziam 23,2% de sua população total6. Narrações como
a do naturalista francês Arsène Isabelle que passou por Rio Pardo em 1833, época
em que a cidade ainda gozava de fartura, aponta em seus relatos que “O comércio
é próspero, porque este ponto é o armazén de abastecimento das cidades e vilas do
norte e oeste; dali parte continuamente tropas de mulas e carretas para todas as povoações do interior”7. Segundo o mesmo viajante, o tráfico de “carne humana” era
dinâmico8.
Em 1872, já em crise e após inúmeras emancipações9, a cidade contava
com 2.800 escravos, ou 13,8% da população total segundo o censo imperial daquele
ano. A cidade já não era mais a principal rota de conexão com o interior, o porto e
o mercado público já não tinham mais o intenso movimento de antes e as casas de
comércio também não eram mais tão agitadas. Consequentemente os escravos empregados na cidade não eram relativamente tão numerosos quanto foram antigamente, mesmo assim ainda eram eles que faziam girar a roda da economia e da ordem
social. Eram utilizados no cultivo de grãos, lidas do campo, preia do gado, serviços
públicos, alguns poucos no porto, escravos de ganho como sapateiros, ferreiros ou
outros serviços, em obras públicas, entre outras ocupações. O ator principal deste
nosso estudo pelo que podemos obter do processo crime era um escravo campeiro,
mais precisamente, sua profissão era servir10 conforme suas próprias palavras.
O presente artigo irá, portanto, se debruçar sobre um processo de assassinato recolhido na pesquisa citada anteriormente. Nele veremos como o escravo
Nazário em 1863 aproveitou-se da ausência de seu senhor, e atacou sua senhora
com golpes na cabeça e com golpes de espada, matando-a e posteriormente tentando a fuga11.
FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA (RS). De província de São Pedro a
estado do Rio Grande do Sul: censos do RS : 1803-1950. Porto Alegre: FEE, 1981. p. 69
7
ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio Grande do Sul: 1833-1834. 2. ed. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1983. p. 52
8
Ibidem, p. 62
9 Segundo Oliveira, duas das 5 cidades com maior população relativa de escravos da província
em 1859, faziam parte direta do território original de Rio Pardo. OLIVEIRA, Vinícius Pereira
de. Escravos em Bagé: Fugas, Quilombos e Insurreições, in. Anais: Produzindo História a
partir de fontes primárias. VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Rio Grande
do Sul. Porto Alegre: Corag. 2010
10
Todas as passagens grifadas em itálico são fases dos personagens do processo e podem ser
encontradas no mesmo.
11
APERS: Processo Crime. Comarca de Rio Pardo. Tribunal do Júri. Caixa 349. Processo 58.
Maço 2. Ano 1863
6
285
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
O crime de Nazário
Nazário, analfabeto, solteiro, brasileiro, nascido em Camaquã, Freguesia
de São José, município de Encruzilhada, desconhecedor de sua própria idade,
escravo de Feliciano Luiz Machado, respondeu por crime de homicídio contra sua
senhora, Dona Rosa Alves da Silveira.
O crime, confessado e descrito por ele se deu da seguinte forma: Em 14
– ou 17 – de abril de 1863, aproveitando-se que seu senhor não se encontrava na
propriedade, havia ido à casa de seu sogro ou de seu cunhado, o réu aproveitou-se
da oportunidade e atacou sua vítima sem piedade. Nazário deu-lhe duas pauladas
com uma mão de pilão que estava usando para socar canjica, e, quando sua senhora caiu no chão, pegou a espada de seu senhor que estava na parede do quarto e
lhe deu mais dois talhos na cabeça terminando o serviço.
Segundo informantes, naquele mesmo dia, antes de sair de casa, o seu
senhor e mais um homem haviam posto ferros aos pés de Nazário. O motivo não
é descrito no processo em nenhum momento, porém dá a ideia de que Nazário
não era um escravo de fácil tratamento. Com os pés presos, e querendo o escravo
achar meios de se livrar daqueles entraves, arrombou com a mesma mão de pilão
a fechadura da despensa e pegou um martello que usaria para se pôr em liberdade
e fugir. Foi preso enquanto tentava chegar à fazenda de seu antigo senhor: Rafael,
em Camaquã, quando parou à noite para pedir comida, pois não aguentava mais. Capturado e enviado a residência do subdelegado em Rio Pardo, foi preso e iniciaram-se
as medidas cabíveis.
Como de praxe, foi necessário fazer o exame de corpo de delito e para
tal, o subdelegado Zeferino Silveira Gularte incumbiu Antonio Jozé Lopes de
Carvalho, pesçoa entendida da materia e Antonio Maria da Crus, tãobem pesçoa entendida
para efetuarem a tarefa e apresentarem o laudo. Após os devidos exames e mediante juramento aos Santos Evangelhos, os peritos concluíram, com uma riqueza
de detalhes enorme que a morte de Dona Rosa Alves se deu em concequençia de dois
grandes golpes na cabeça de dimenção de tres quartos de comprido e duas pollegadas de profundidade pellos quais aparecia os miollos. Uma das testemunhas, Antonio Joze Lopes de
Carvalho descreveria a cena com mais horror ainda, segundo ele, além dos miolos estarem visíveis, a vítima tinha mais contuzões sobre a cabeça e uma junto ao olho que o fez saltar fora.
Com o corpo de delito pronto fez-se necessário os inquéritos aos envolvidos.
Nazário foi o primeiro a ser ouvido. Em seus relatos ao delegado Doutor Abilio Alvaro
Martins e Castro é possível captar uma informação bastante interessante. Quando perguntado sobre o motivo que teria para cometer tal crime, Nazário revela que foi devido
ao castigo que ele recebeu injustamente por ordens de sua senhora. Segundo ele as
punições que levou foi fruto de alguém ter dito à ela que ele tinha feito declarações perante o
Delegado de Policia disfavoraveis a seu senhor Feliciano Luiz Machado por occazião de se forma o pro-
286
cesso contra este pela morte de Boaventura Nelcis da Cunha. É no mínimo curioso o fato de que
o senhor de Nazário também tivesse um processo na justiça contra ele por assassinato.
Paremos por um instante com o caso de Nazário e coloquemos um parêntese
para discutir brevemente sobre este processo do seu senhor Feliciano Luiz Machado12.
Neste processo o réu Feliciano foi acusado de juntamente com outros 5 indiciados terem causado a morte de Boaventura Nelcis da Cunha, sua mulher e seu genro em 7 de
dezembro do ano de 1861 através de armas de fogo e golpes de espada, visto que no
corpo de delito, uma das vítimas foi encontrada com os membros todos cortados e separados
em pedaços e a cabeça toda retalhada e em fragmentos. Os criminosos também atearam fogo na
morada das vítimas. Procedendo aos interrogatórios, Feliciano negou tudo, inclusive
estar no local do crime no dia em que o mesmo ocorreu. Os jurados acreditaram na
versão de Feliciano e ele não é sentenciado, pois os mesmo entenderam que o réu estava
pernoitando na casa de seus pais na ocasião. Porém o depoimento de Nazário não se
encontra arrolado no processo, não sabemos se é verídica sua queixa e nem sabemos ao
menos se ele de fato depôs. Fechando este parêntese, voltemos ao processo principal de
nossa análise.
Alguns dados econômicos sobre a escravidão local
Continuando os interrogatórios, podemos obter dos autos de perguntas às testemunhas – ou às informantes, no caso das escravas – algumas informações interessantes que dão uma ideia sobre algumas questões pertinentes à analise. Por exemplo,
podemos levantar a discussão sobre o plantel de escravos de Feliciano Luiz Machado.
Segundo os autos identificamos 3 peças sob propriedade do mesmo, além do citado
Nazário, havia as negras Marciana e Benedicta.
Através do livro de inventários publicados pelo APERS13, é possível formar um panorama sobre a média de planteis de escravos para a região de Rio
Pardo à época. Entre os anos de 1850 – 1871 foram testamentados 1632 escravos
divididos entre 267 senhores, uma média de 6 escravos por senhor. Fazendo uma
abordagem diferente, separando os senhores por número de escravos que possuíam, Feliciano se enquadra no maior grupo, o grupo de proprietários que possuíam
a menor quantidade de escravos, de 1 a 3 cativos. 104 senhores estão inclusos neste
grupo, ou 34% do total levantado. Feliciano e sua esposa não eram portanto detentores de um grande plantel, muito pelo contrário, eles se enquadravam no grupo
mais modesto dentre os donos de escravos. Segue o gráfico sobre os senhores e a
APERS. Processo Crime. Comarca de Rio Pardo. Tribunal do Júri. Caixa 348. Processo 53.
Maço 2
13
PESSI, Bruno Stelmach (Coord.). Documentos da escravidão no Rio Grande do Sul: o
escravo deixado como herança : inventários. Porto Alegre: CORAG, 2010.
12 287
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
quantidade de escravos em seus planteis referentes a Rio Pardo entre os anos de
1850 – 1871:
Gráfico elaborado com base em PESSI, 2010, p. 407 – 416, 433 – 454.
Quando da morte e posterior inventário14 de bens da falecida, podemos
ter ideia dos bens do casal. A parte que competia à Rosa somava 1:666$200 réis.
Entre eles estavam uma parte de campo com feitorias e casas de capim no valor de
300$000, 249 reses no valor de 3$000 cada, totalizando 747$000, 12 hegoas xucras no
valor de 1$600 cada, totalizando 19$200 e uma escrava. Esta escrava, Benedicta, 27
anos, sofria de asma e foi avaliada em 600$000 réis, mesmo debilitada valia 2 vezes
o valor do campo ou mais de 200 animais de criação. O interessante de notar é que
nos depoimentos que prestou como informante, esta mesma escrava se refere à D.
Rosa Alves, a vítima, como sua senhora moça, e à Anna Alves Coelho, mãe da vítima,
como sua senhora velha. No entanto, no inventário, a posse da escrava aparece exclusivamente como sendo de Rosa Alves, sua mãe até o momento de sua morte não
tinha parte nenhuma na propriedade da mesma. Podemos imaginar que a escrava
tivesse sido propriedade de sua mãe – pois chamá-la de senhora velha denota certa
intimidade, e nos dá a impressão de que já havia servido a essa senhora em outros
tempos – e teria sido dada à sua filha como dote, ou por algum outro motivo. Já
o fato de se referir à Rosa como senhora moça nos faz pensar sobre a idade que tinha a vítima, pois dá a entender que Benedicta a conhecia há algum tempo, tendo
até mesmo ajudado na criação da mocinha, reforçando portanto a teoria de ter
Inventário de Rosa Alves. 1ª Vara do cível e crime de Rio Pardo, processo 160, maço 4. Ano
1864
14
288
prestado serviço à mãe. Infelizmente não temos como comprovar ou refutar este
pensamento, pois em nenhum momento o processo nos dá dados como a idade
da senhora moça ou algum registro onde comprove que Anna Alves tenha passado a
escrava para sua filha.
Como o casal não tinha filhos, com a morte de Rosa, suas propriedades e
a escrava inclusive, foram divididas entre o viúvo e sua mãe, seus únicos herdeiros.
Pouco depois, em 1864, José Feliciano compraria a parte da escrava que tinha sido
herdada por Anna Alves, a senhora velha, por 300$00015. Em relação à quantidade de escravos, Anna Alves estava mais bem servida, ela morreria pouco tempo
depois a estes acontecimentos, e em 1865 se registra o seu inventário16. Ela tinha
7 escravos, porém era um plantel já cansado, 5 eram acima dos 40 anos e 2 abaixo
dos 15. Juntos estes escravos somavam o valor de 2:700$000.
A pena aplicada
Já em posse da confissão de Nazário, do corpo de delito e dos depoimentos das testemunhas, tudo estava pronto para o enquadramento do réu nas penas
da lei, porém havia um detalhe de suma importância a ser esclarecido. Tendo visto
o juiz municipal e delegado Abílio Alvaro Martins e Castro que Nazário aparentava
ser menor de idade e que a resolução deste impasse era capital para a implicação
da pena, foram designados dois peritos para tratarem desta questão. Foram eles
Antonio Augusto Malheiros e Antonio Ferreira de Andrave Neves, que deveriam
analisar a peça e verificado que á tenha legal [idade], deve ser pronunciado no artigo 1º da lei
de 10 de junho de 1835. Segundo esta lei de exceção
Art. 1°: Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem
veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave
offensa physica a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou
ascendentes, que em sua companhia morarem, a administrador,
feitor, e ás suas mulheres, que com eles viverem. Se o ferimento
ou offensa physica forem leves, a pena será de açoutes á proporção das circunstâncias mais ou menos agravantes17
Mas qual seria a legal idade pronunciada pelo juiz? A lei de exceção não fazia menção a este detalhe em nenhum de seus 5 artigos. Apenas o código criminal
APERS. Livros Notariais de Transmissões e Notas, livro 18, 2º tabelionato de Rio Pardo ,
1863 – 1867. p.88v
16
APERS. Inventário de Rosa Alves. 1ª Vara do cível e crime de Rio Pardo, processo 694, ano
1865
17
Lei de 10 de junho de 1835. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
lim/LIM-4-1835.htm Acesso em abril de 2012
15
289
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
de 1830 fala algo sobre o assunto, segundo ele, em seu artigo “10. Tambem não se
julgarão criminosos: 1º Os menores de quatorze annos”18. De acordo com o laudo
dos peritos foi concluído que Nazário devia ter dezecete annos de idade, para mais ou
menos, apto porém a ser enquadrado na lei de exceção. Contudo, Nazário não foi
condenado à forca e aí está o grande mistério deste processo como veremos mais
adiante.
Já sabendo agora a idade do indivíduo, chegou o momento do juiz Francisco Vieira da Costa fazer aos jurados as perguntas finais e com isso montar a
condenação. Quatro foram as perguntas feitas ao júri em dois libelos, em ocasiões
diferentes, porém, as mesmas perguntas: a primeira foi se havia de fato o escravo
Nazário assassinado a sua senhora Rosa Alves, a segunda foi se havia prova além
da confissão do réu, na terceira foi perguntado se os jurados achavam que ele era
maior de quatorze anos e na última se ele era menor de dezessete. Todas as respostas foram unânimes e positivas.
De acordo com a situação, o Juiz Francisco Vieira da Costa implicou as
seguintes penas ao réu:
Art. 1° da lei de 10 de junho de 1835 combinado com a seg. parte do Art.
10, e 35 do Cod. Criminal: não podendo impor-lhe a pena de galés: porque
a isso obsta a dispozição do Art. 45 na seg. parte, o condenno em conformidade do disposto no Art. 60 do me.o C. Criminal a sofrer seiscentos
açoites; e depois de os sofrer será entregue a seo senhor, que se obrigará, por
um termo, a trazelo com ferros ao pescoço por espaço de dous annos e pague
o seu senhor as custas.
E aqui chegamos à já citada dúvida do processo; tentaremos explicar nosso questionamento analisando a penalidade que foi imposta pelo juiz. Embora
tenha sido pedido pela acusação que o escravo fosse incurso no Art. 1º da Lei especial
de 10 de Junho de 1835, que seria o enforcamento iminente, e sua condição de maior
de 14 anos o colocava em disposição legal para tal pena, o réu não foi morto. Foi
condenado neste artigo, porém com combinação à segunda parte do artigo 10 que
dizia que “Tambem não se julgarão criminosos: [...] 2º Os loucos de todo o genero,
salvo se tiverem lucidos intervallos, e nelles commetterem o crime.”19 Contudo
em nenhum momento do inquérito um perito é designado para atestar a condição
mental de Nazário, ou sequer se cogita sua insanidade, a sentença do juiz mediante
este artigo parece no mínimo passível de contestação e de investigação. Já o artigo
35 rege que “A complicidade será punida com as penas da tentativa; e a complicidade da tentativa com as mesmas penas desta, menos a terça parte, conforme
Código criminal de 1830. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/
lim-16-12-1830.htm Acesso em abril de 2012
19
Ibidem
18
290
a regra estabelecida no artigo antecedente”20. Os outros 2 artigos que Nazário é
enquadrado explicam melhor a questão do porque ter sido condenado aos açoites.
De acordo com a segunda parte do artigo 45 A pena de galés nunca será
imposta: “[...] 2º Aos menores de vinte e um annos, e maiores de sessenta, aos quaes se substituirá esta pena pela de prisão com trabalho pelo mesmo tempo”21. Nazário não podia portanto receber galés pois tinha menos que os 21 anos que previa
a lei, e aí chegamos ao último artigo da condenação. No artigo 60 verifica-se que
“Se o réo fôr escravo, e incorrer em pena, que não seja a capital, ou de galés, será
condemnado na de açoutes, e depois de os soffrer, será entregue a seu senhor, que
se obrigará a trazel-o com um ferro, pelo tempo, e maneira que o Juiz designar”22.
Temos portanto a descrição da pena que o réu fora incurso. As referidas custas do
processo que deveriam ser pagas por seu senhor somaram 140$700.
Infelizmente este processo deixa algumas dúvidas no ar que não podem
ser respondidas por hora, como por exemplo, a questão da suposta mentalidade
de Nazário ou então o motivo que levou o juiz a não condená-lo a forca mesmo
ele estando apto para isso e tendo o promotor insistido na pena capital. Quanto
a esta última dúvida podemos apenas especular: Mesmo que não houvesse qualquer empecilho para o enforcamento, e a lei de exceção não dava margem para
qualquer tipo de recurso, a única hipótese que se poder objetivar é que Nazário foi
poupado em vista de sua idade. No código criminal, artigo 18, seção em que trata
dos atenuantes de um crime, a décima parte diz justamente que é atenuante “Ser
o delinquente menor de vinte e um annos. Quando o réo fôr menor de dezasete
annos, e maior de quatorze, poderá o Juiz, parecendo-lhe justo, impôr-lhe as penas
da complicidade”23. É necessário lembrar que o juiz não citou este atenuante em
seu momento de proferir a sentença, mas lhe aplicou justamente o artigo 35 de que
falamos e é que é referente à cumplicidade. Outra hipótese seria de que conforme
se fala na lei de exceção em seu “Art. 4º Em taes delictos a imposição da pena de
morte será vencida por dous terços do numero de votos; e para as outras pela
maioria; e a sentença, se fôr condemnatoria, se executará sem recurso algum”24.
Porém a única informação que temos dos jurados é de que eles foram unânimes
nas perguntas do libelo acusatório, não dispomos de nada além disto.
Mais uma suposição que deve ser levada em conta é de que este episódio
ocorre na década de 1860, mais de 10 anos após a promulgação da lei Eusébio de
Queiróz, do fim do tráfico internacional de escravos e consequente menor oferta
Ibidem
Ibidem
22
Ibidem
23
Ibidem
24
Lei de 10 de junho de 1835. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
lim/LIM-4-1835.htm Acesso em abril de 2012
20
21
291
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
e maior procura, o que estava deixando o preço dos cativos cada vez mais elevado.
Como Feliciano não era detentor de um grande plantel de escravos, seria mais proveitoso para ele se livrar do assassino vendendo-o pela quantia que fosse, do que
perdê-lo de graça e ainda arcar com todas as custas do processo. Conforme dito
no início deste artigo, em levantamento que apontou 5 casos de homicídios envolvendo escravos na região, apenas 1 deles foi levado à forca. Este caso foi registrado
em 1850, antes do mercado sofrer alta nos preços e quando uma peça não era de
tão difícil substituição como em época de Nazário, além disto, neste caso o castigo
exemplar aos outros cativos, e havia uma quantidade bem mais substancial nesta
propriedade, parecia ser mais importante. O preto Ricardo foi enforcado após atacar e matar o capataz de sua fazenda25.
Condenado a 600 açoites, Nazário começou sua punição em 28 de setembro daquele mesmo ano e só completaria seu calvário em 16 de janeiro de
1864, quando levaria seus últimos 50 açoites. Embora a câmara de Porto Alegre
tenha aprovado uma postura em 10 de fevereiro de 1831 que determinava: “Artigo
Adicional. Ficam proibidos os castigos feitos, em lugares patentes e públicos, aos
escravos, os quais serão castigados em parte inferior da cadeia, e por uma só vez.
Outrossim não excederão os castigos a 40 açoites” (GOULART, 1971, p.110).
Essa determinação do Código de Postura de Porto Alegre, no entanto não teria
efeito prático em Rio Pardo, pois como sabemos Nazário tomou 12 seções de
espancamento de 50 açoites cada, embora muito provável o castigador possa ter
“errado” a conta e dado alguns a mais, isto quando não obrigava o ofendido a ter
de contar em voz alta – quando sabia – os golpes que tomava. Todas as seções estão
registradas nos autos do processo e por mais de uma vez o escravo teve de sofrer o
castigo por 2 dias seguidos. Aos 18 dias do mês de fevereiro, Nazário foi entregue a
seu senhor após este assinar o termo de manter o escravo em ferros por dois anos.
No entanto, menos de 3 meses após esta data, em 10 de maio de 1864,
Feliciano Luiz Machado venderia Nazário. O comprador, Capitão João de Freitas
Travassos, morador em Porto Alegre, que talvez não soubesse do delito da peça
que estava comprando, pagou 600$00026 por ela. Porém, o preço parecia denunciar
que nem tudo estava certo com aquele escravo. Notemos que ele foi vendido pelo
mesmo preço que a escrava Benedicta, que era mulher, não tinha profissão declarada,
de mais idade e que ainda sofria de asma. Nazário foi vendido com o preço muito
abaixo do mercado. Embora pouco, o valor conseguido por Feliciano com a venda
Para saber mais sobre este caso ver: RADÜNZ, Roberto; VOGT, Olgário Paulo. “A mais
severa e exemplar punição: O rito processual contra o preto Ricardo”. In. MÉTIS: história &
cultura. Caxias do Sul: EDUCS, 2010. p.181 – 200.
26
APERS. Livros Notariais de Transmissões e Notas, livro 18, 2º tabelionato de Rio Pardo ,
1863 – 1867. p. 74v.
25
292
de Nazário poderia ajudar na aquisição de outro escravo campeiro para tomar conta da
sua criação ou então, a título de ilustração, daria conta de comprar em torno de 200 reses
ou 375 éguas xucras, conforme valores obtidos no testamento de Dona Rosa Alves.
Para termos uma breve ideia do preço de mercado que era praticado nos cativos, citemos aqui, apenas para comparação, alguns registros de compra e venda de
escravos. Gabriel, roceiro e carpinteiro, com 50 anos de idade, mais do que o dobro da
idade de Nazário, seria vendido menos de 2 meses depois pelos mesmos 600$00027. Já
Honório, com 20 anos, sem profissão, foi comercializado por 1:200$00028, o dobro de
Nazário.
Conclusão
Nazário exemplifica bem o escravo que vai absorvendo os castigos para, no
momento oportuno, explodir em uma reação extremada e fatal. Embora jovem, o cativo
não se afobou, aguardou o momento certo e com crueldade acertou as contas com sua
senhora.
Sua condenação, no entanto, que parecia ser óbvia e sensata, enquadramento
na lei de exceção, não lhe foi aplicada. O código criminal vigente no período previa que
escravos que matassem seus senhores ou familiares próximos e capatazes seriam condenados na lei de exceção e punidos com a pena capital, sem objeções. Os motivos para
a não condenação de Nazário são incertos. Em nossa pesquisa tentamos conjecturar,
porém sem nenhuma certeza de nossas suposições. A questão fica portanto aberta às
novas pesquisas.
O processo crime que trabalhamos neste artigo é muito rico em informações e
nos dá várias pistas sobre o cotidiano e sobre o quadro socioeconômico da escravatura
no período. Como vimos várias questões ainda carecem de respostas, o próprio fato de
Nazário ter tentado conseguir asilo na propriedade de seu antigo senhor é chamativa.
Qual a relação que havia entre os 2? Quais os motivos desta escolha?
Deixamos estas questões para as pesquisas vindouras.
Referências Documentais
APERS – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul
Inventário de Anna Alves. 1ª Vara do cível e crime de Rio Pardo, processo 694,
1865
Inventário de Rosa Alves. 1ª Vara do cível e crime de Rio Pardo, processo 160,
maço 4 ano 1864
Idem p. 89v
Idem p. 21v
27
28
293
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Livros Notariais de Transmissões e Notas, livro 18, 2º tabelionato de Rio
Pardo , 1863 – 1867.
Processo Crime. Comarca de Rio Pardo. Tribunal do Júri. Caixa 348. Processo 53. Maço 2. Ano 1861
Processo Crime. Comarca de Rio Pardo. Tribunal do Júri. Caixa 349. Processo 58. Maço 2. Ano 1863
Referências Gerais
BRASIL. Código criminal de 1830. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm Acesso em abril de 2012
BRASIL. Lei de 10 de junho de 1835. Disponível em https://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/leis/lim/LIM-4-1835.htm
Acesso em abril de 2012
FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA (RS). De província de São
Pedro a estado do Rio Grande do Sul: censos do RS : 1803-1950. Porto Alegre:
FEE, 1981.
GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990.
GOULART, José Alípio. Da palmatória ao patíbulo: castigos de escravos no
Brasil. Rio de Janeiro: Conquista; Brasília: INL, 1971.
ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio Grande do Sul: 1833-1834. 2. ed. Porto
Alegre: Martins Livreiro, 1983.
MAESTRI, Mário. O escravo no Rio Grande do Sul: a Charqueada e a gênese
do escravismo gaúcho. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço
de Brindes, 1984
MEYER. Maximiliano. A escravidão e os focos de resistência em Rio Pardo.
– Trabalho de Conclusão de Curso (Curso História) – Universidade de Santa Cruz
do Sul – Unisc. Santa Cruz do Sul, 2012
NABUCO, Joaquim. A escravidão. Rio de Janeiro: Batel, 2010.
OLIVEIRA, Vinícius Pereira de. Escravos em Bagé: Fugas, Quilombos e Insurreições, in. Anais: Produzindo História a partir de fontes primárias. VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Rio Grande do Sul. Porto Alegre:
Corag. 2010
PESSI, Bruno Stelmach (Coord.). Documentos da escravidão no Rio Grande
do Sul: o escravo deixado como herança : inventários. Porto Alegre: CORAG,
2010.
RADÜNZ, Roberto; VOGT, Olgário Paulo. A mais severa e exemplar punição:
O rito processual contra o preto Ricardo. In. MÉTIS: história & cultura. Caxias do
Sul: EDUCS, 2010. p. 181 – 200.
294
6. Ditadura no Brasil: da estruturação
ao processo de abertura política.
295
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Episódios de uma trajetória: o apelo das Mulheres pela Anistia em
meio ao trágico retorno do presidente deposto pelo golpe civil-militar
Mariluci Cardoso de Vargas
Resumo: O Movimento Feminino pela Anistia no Rio Grande do Sul (MFPA/RS) foi um
grupo formado exclusivamente por mulheres que esteve em atividade de 1975 a 1979. Durante
anos de movimentação política o grupo liderado pelas presidentes Lícia Peres e Mila Cauduro
recorreu à autoridades e instituições no objetivo de que estas ampliassem a luta em prol da
anistia. Dentre os episódios históricos que o grupo do MFPA/RS esteve envolvido destaca-se o velório e o enterro do Presidente João Goulart deposto pelo golpe civil-militar. A partir
da documentação do próprio MFPA/RS, dos discursos dos Anais da Assembleia Legislativa
e de algumas entrevistas este artigo pretende apontar alguns protagonistas gaúchos do tenso
momento de retorno de Jango ao Brasil já após a sua morte, e as repercussões desse caso obrigando parlamentares e a própria imprensa a noticiarem, se posicionarem ao apenas incluírem
nos seus discursos a palavra Anistia tão clamada pelas mulheres.
Palavras-chave: Assembleia Legislativa- Ditadura civil-militar- João Goulart-MFPA/RS-Mulheres.
A luta pela Anistia ontem e hoje
D
esde o golpe-civil militar de 1964 e de suas primeiras cassações e casos de violação aos Direitos Humanos a demanda da
Anistia passou a ser uma realidade dentre alguns políticos, intelectuais e até mesmo artistas. Todavia apenas em 1975 a Lei de Anistia passou a
ser pauta de um grupo organizado, que expuzesse de forma pública o seu pedido no intuito de sensiblizar os organismos internacionais de Direitos Humanos
para pressionar as autoridades brasileiras na intenção de que os presos políticos
fossem libertados e os brasileiros banidos ou exilados pudessem retornar com
segurança ao Brasil. Sendo assim, no mesmo ano instituiído pela Organização
das Nações Unidas (ONU) como o Ano Internacional da Mulher, um grupo de
mulheres encabeçado pela Advogada paulista Therezinha Zerbini deu início ao
Movimento Feminino pela Anistia (MFPA) que se espalhou ao longo da segunda
metade dos anos 1970 pelo Brasil em dez núcleos que mobilizaram assinaturas e
adesões para a Campanha que ganhou ainda mais vigor a partir de 1978 com os
Comitês Brasileiros pela Anistia (CBA’s) e com a popularização da Anistia que se
tornou palavra de ordem para os chamados novos movimentos sociais.
297
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
No Rio Grande do Sul o Comitê Central do MFPA foi o segundo a se
constituir a nível nacional. Meses após a primeira reunião feminina na casa de
Zerbini, a pedido da Presidente do MFPA Nacional, a então militante política
Dilma Rousseff trouxe para Porto Alegre o documento que seria o cartão de
visitas do MFPA, o Manifesto da Mulher Brasileira, para que um grupo de mulheres
iniciasse as ações em prol da Anistia para, segundo o grupo paulista, promover a
pacificação nacional. O grupo no RS foi estruturado pela Sociológa Lícia Peres,
esposa do vereador emedebista Glênio Peres, e se formou cimentado em três
pilares: no Movimento Democrático Brasileiro (MDB) a partir do Instituto de
Estudos Políticos e Sociais (I.E.P.E.S.) que era composto por militantes mais
à esquerda do MDB gaúcho e que promovia diversas atividades de formação
política além de palestras e reuniões com a participação de intelectuais do qual
fazia parte Dilma, Glênio e Lícia; no curso de Ciências Sociais da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) a partir dos laços de Lícia com muitas
estudantes as quais aderiaram ao MFPA e acabaram fazendo parte de suas atividades; e por fim um grupo enraizado no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) que
tinha como referências políticas Leonel Brizola e o seu cunhado e ex-Presidente
João Goulart, que após o golpe civil militar de 1964 encontravam-se exilados no
Uruguai.
A partir da análise da trajetória1 do MFPA no RS foi possível perceber
suas ações políticas e sociais, seus projetos, seus vínculos ideológicos e suas lideranças. Assim, optou-se por fazer uma leitura sociológica desse movimento
buscando o aparato conceitual em Scherer-Warren que tratou de definir sintetizadamente a ideia complexa de movimentos sociais que pode ser entendido
por: “uma ação grupal para transformação (a práxis) voltada para a realização
dos mesmos objetivos (o projeto), sob a orientação mais ou menos consciente
de princípios valorativos comuns (a ideologia) e sob uma organização diretiva
mais ou menos definida (a organização e sua direção).”2 A mesma pesquisadora,
em outro momento diferencia as organizações reivindicativas dos movimentos
sociais na medida em que o primeiro é o que cimenta o segundo, ou seja, as
organizações se preocupam em incorporar uma demanda específica, enquanto
que o movimento como um todo ultrapassa esta demanda não a excluindo, mas
proporcionando o elo entre esta e as demais necessidades, portanto ampliando
o campo de luta. Dito isto o Movimento Social deve ser entendido como uma rede
Este artigo é parte da Dissertação de Mestrado em História pela UNISINOS defendida
pela autora em 2010 cujo título é: Deslocamentos, vínculos afetivos e políticos, conquistas e
transformações das mulheres opositoras à ditadura civil-militar: A trajetória do Movimento
Feminino pela Anistia no Rio Grande do Sul (1975-1979).
2
Scherer-Warren, 1987, p.20.
1
298
que conecta sujeitos e organizações de movimentos, expressões de diversidades
culturais e de identidades abertas, em permanente constituição, que buscam reconhecimento na sociedade civil.3
Entende-se que esses movimentos sociais estariam integrados por “mediadores”, agentes sociais que são identificados por Scherer-Warren como “portadores da experiência política e conhecimento formal trazidos ‘de fora’ para atuar junto
ao grupo-base do movimento.”4 Ao visualizar as lideranças do MFPA-RS com estreita
relação com intelectuais e líderes políticos buscamos entender as influências que estes
agentes acabaram exercendo nas práticas políticas. O trabalho de pluralização da ideia
de Anistia na segunda década do período ditatorial brasileiro serviu de alavanca para as
lutas que tomariam as ruas posteriormente clamando por liberdades democráticas e por
respeito aos Direitos Humanos. O projeto de abertura lenta, segura e gradual muito bem
estruturada pelo General Geisel prometia uma redemocratização que só teria início uma
década depois. As mulheres foram pioneiras em levantar organizadamente a faixa da
Anistia que chegou de forma parcial, limitada e recíproca em agosto de 1979 resultado
de um projeto elaborado pelos próprios ditadores no governo do General Figueiredo.
A Lei 6.683 de 28 de agosto de 1979 ficou aquém da Anistia Ampla, Geral e Irrestrita que
desde 1978 se tornou palavra de ordem dos movimentos pela anistia (CBA’s e MFPA’s)
pelo Brasil e ainda hoje é objeto de discussões entre juristas, pesquisadores e pelos próprios Movimentos pelos Direitos Humanos.
A elaboração deste artigo só foi possível a partir da documentação atualmente
localizada no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, como Acervo Particular Lícia
Peres e Mila Cauduro organizado pelas ex-presidentes do MFPA-RS. O dia 28 de agosto desde 1979 marcou o calendário histórico no Brasil tornando-se emblemático para
ensejar discussões sobre a transição política para a democracia brasileira. Ao completar
21 anos da Lei 6.683/79 em 2000 no Memorial do RS foi realizada uma solenidade de
comemoração pelo primeiro ano da criação da Comissão do Acervo de Luta Contra a
Ditadura5 – formado em 2000, na gestão do Governador Estadual Olívio Dutra (Partido
dos Trabalhadores). Na oportunidade criou-se um evento em que foram doados documentos que pudessem subsidiar o conhecimento público da história da ditadura
no RS. Na ocasião Mila Cauduro, a segunda presidente do MFPA-RS, junto ao
advogado Omar Ferri entregou documentos pessoais de relevância pública à coordenadora do órgão na época, a militante dos Direitos Humanos Suzana Lisboa,
que falou sobre suas intenções em “construir um patrimônio da luta pela democra SCHERER-WARREN, 2003, p.30, grifo da autora.
SCHERER-WARREN, 1993, p.49.
5
A documentação, anteriormente localizada no “Acervo de Luta contra a Ditadura” passou,
em 2008, a integrar o “Centro da Memória Documental da Ditadura Militar no Rio Grande do
Sul”, sob a responsabilidade do Arquivo Histórico do Estado do Rio Grande do Sul.
3
4
299
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
cia e de denúncia de violações da liberdade democrática e dos Direitos Humanos
cometidas durante a ditadura.”6
Desde 2009, quando completaram-se 30 anos da sanção da Lei a Anistia
de 1979, a lei 6.683 vem sendo rediscutida a partir de ações da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que propos uma reinterpretação acerca do seu caráter recíproco, uma vez que estendeu o perdão aos crimes de lesa-humanidade cometidos por
agentes estatais envolvidos em violações dos Direitos Humanos, crimes estes que
não são passíveis de anistia. Muitos são os casos de mortes e desaparecimentos que
não foram esclarecidos pelo governo aos familiares que desde os anos do golpe se
concentram na exigência legítima de Memória, Verdade e Justiça. No final de 2011 a
Presidenta Dilma Rousseff, a mesma que trouxe o Manifesto da Mulher Brasileira
para lutar pela Anistia em 1975 no RS, sancionou a lei que cria a Comissão da Verdade que tem por objetivo “examinar e esclarecer as graves violações de direitos
humanos praticadas no período fixado (...) a fim de efetivar o direito à memória
e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.”7 Embora as atividades
da Comissão não tenham um caráter jurisdicional ou persecutório é possível que
este seja um passo importante na direção da consolidação democrática que ainda
caminha a passos lentos.
Dito isto é imprescindível compreendermos que as lutas por justiça em
relação aos crimes cometidos pelos agentes estatais e o embate social em relação a
transição democrática pactuada não é uma novidade e tem o seu início ainda nos
anos ditatoriais. O MFPA/RS foi protagonistas de alguns episódios que retratam
a dificuldade que se tinha em avançar democraticamente uma vez que as barreiras
do estado de exceção iam além do aparato repressor, pois estavam inseridas em
parte da sociedade, sobretudo na política, a qual deu sustentação ao regime por
todo o período em que esteve em vigência. Este artigo pretende apresentar e analisar alguns vínculos e ações políticas das mulheres do MFPA/RS em específico
no momento em que o Presidente deposto com o golpe civil-militar retornou ao
Brasil. O retorno de João Goulart foi após a sua morte caracterizada em seu óbito
por uma “enfermidade”, já que resultara de um ataque cardíaco, no entanto a causa
tida como morte natural encontra-se atualmente em estágio de investigação tanto
por autoridades brasileiras como por autoridades argentinas após declarações de
um ex-agente da inteligência uruguaia8 que fez com que se levantassem suspeitas
CORREIO DO POVO, 29/08/2000, p.06.
Projeto de Lei 7376 que cria a Comissão da Verdade, inteiro teor disponível em: <http://
www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=478193>. Acesso em
abril de 2012.
8
“Mário Neira Barreiro é um presidiário de 54 anos, detido desde 2003 na Penitenciária de
Alta Segurança de Charqueadas, no Rio Grande do Sul, por assalto a banco e tráfico de armas,
crimes cometidos no Brasil. Mas, sob o codinome Tenente Tamuz, pertenceu ao grupo Gama,
6 7
300
sobre a possibilidade de Jango ter sido mais uma vítima da Operação Condor que
tratou de exterminar muitas pessoas consideradas “ameaçadoras” aos regimes ditatoriais do cone sul. Este é apenas mais um episódio que carece de respostas, as
quais queremos crer que em breve virão à público, sobre o longo período ditatorial
que neste texto será enfatizado.
O MFPA-RS em busca de adesões em meio à violência estatal da Ditadura
Geisel
Após o choque do assassinato de Vladimir Herzog, entre fatalidades e
mortes mal explicadas, o ano de 1976 foi também de muitas perdas de pessoas
públicas. A estilista Zuzu Angel que travou uma luta corajosa e interminável com
os militares, desde o desaparecimento em maio de 1971 do seu filho Stuart Edgar
Angel Jones, foi calada após cinco anos de muitas denúncias sobre a violação dos
Direitos Humanos no Brasil. Zuleika Angel Jones morreu em um acidente de carro, quando surpreendida por outros carros da polícia repressiva do Rio de Janeiro,
que causaram o acidente da estilista fazendo-a desviar para a capotagem na saída
do Túnel Dois Irmãos9. A versão oficial de morte por causa acidental foi desvendada pelas provas levantadas pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos
que fez com que o caso fosse deferido em 1998.
Os ex-presidentes do Brasil, cassados pela ditadura nos seus direitos políticos, Juscelino Kubitscheck e João Goulart, morreram em situações “naturais”10 que
mais tarde passariam a ser investigadas. JK faleceu em um desastre automobilístico,
quatro meses antes de Jango morrer no exílio vitimado de um ataque cardíaco em
Mercedes, na vizinha Argentina. Este era o segundo país, pelo qual Jango passara
a viver desde a sua saída do Brasil. Em 1964 quando seguiu para o Uruguai viveu
alguns anos em Montevidéu e viu este país sofrer o golpe, assim como quando estava em Mercedes em 1976 e vivenciou os primeiros meses de autoritarismo militar
na Argentina até falecer em dezembro daquele ano.
do serviço de inteligência uruguaio. Ele diz que, de 1973 até o dia da morte de Jango, vigiou o
ex-presidente 24 horas por dia.” Nota completa disponível em: <http://www.institutojoaogoulart.org.br/conteudo.php?id=38. Acesso em abril de 2012.
9
BRASIL, 2007, p.414.
10
Os articuladores da Frente Ampla, que foi organizada em oposição a política golpista dos
militares, os ex-presidentes Jango e JK e pelo ex-governador da Guanabara, Carlos Lacerda, foi
desfeita em 1976 por fatalidades em um período de nove meses. Embora não se tenha comprovações que possam interpretar as mortes como assassinatos, os casos “naturais” de falecimento
de Juscelino e Jango levantaram suspeitas de que poderiam estar vinculadas às ações desenvolvidas pela Operação Condor, por ocorrerem muito próximas temporalmente, e num momento
em que no Cone Sul se praticavam ações vinculadas Operação Condor. Ver Bauer (2006, p.214).
301
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Em fevereiro de 1976 a primeira vitória da liberalização diante da linha
dura surgiu da morte do metalúrgico Manuel Fiel Filho, quando o ditador-militar Geisel
resolveu se indispor com o Ministro do Exército, Sylvio Frota, ao exonerar o comandante do II Exército, General Ednardo D’Ávila Mello. Dessa forma, “abre-se, então,
um confronto claro entre Geisel e militares mais à direita, que só terminaria com a queda de Sylvio Frota do comando do Exército, em outubro do ano seguinte.”11. Grupos
contrários ao projeto de liberalização mostraram ao longo do ano suas posições através
de ataques à OAB, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e ao Centro Brasileiro de
Pesquisa (CEBRAP)12.
É importante salientar que a substituição do General Ednardo D’Ávila Mello
por Dilermando Gomes Monteiro, mais ligado à linha de Geisel que se reconhecia ilusoriamente por “militares liberais”, não impediu que outros civis fossem executados.
A onda repressiva paulista iniciada em 1975 foi consolidada somente em dezembro de
1976 na operação que resultou na morte dos três principais dirigentes do PC do B (entre
eles a alta direção: Ângelo Arroyo e Pedro Pomar) no “Massacre da Lapa”. Segundo
o relatório Direito à Memória e à Verdade “essa foi a última das grandes operação de
aniquilamento de opositores políticos realizada pelos órgãos de segurança do regime
militar.”13
Sem imaginar o que o ano de 1976 lhes reservava, a expectativa do MFPA/
RS estava depositada na vitória do MDB nas eleições de novembro, na tentativa de
virar o jogo político por dentro das próprias instituições legais da ditadura. Assim,
o fortalecimento da oposição por meio da campanha política era o horizonte das
mulheres engajadas no MFPA no RS.
No plano nacional o MFPA alcançou o nordeste do Brasil formando núcleos em Fortaleza, Ceará, João Pessoa, Bahia. A receptividade da Igreja Católica
foi positiva representada pelo apoio dos Arcebispos daquelas regiões: Dom Aluísio
Lorscheider (Fortaleza), Dom Hélder Câmara (Recife) e Dom Avelar Brandão Vilela
(Bahia)14. Na capital federal, em julho de 1976, o Movimento Feminino pela Anistia
esteve presente na 28ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência (SBPC), onde pediu por anistia geral.
Já no Rio Grande do Sul a presidência do MFPA foi transferida de Lícia
Peres para a até então vice-presidente Mila Cauduro. Lícia optou pelo afastamento
da presidência do MFPA em razão de seu marido Glênio Peres concorrer novamente
às eleições municipais para vereador de Porto Alegre em novembro de 1976. Por
BRASIL, 2007, p.28.
Em agosto de 1976 no Rio de Janeiro as sedes da Associação Brasileira de Imprensa e da
Ordem dos Advogados do Brasil foram atacadas por bombas. O mesmo ocorreu em setembro
de 1976 em São Paulo na sede do CEBRAP.
13
BRASIL, 2007, p. 422.
14
JORNAL DE DEBATES, 29/03 a 04/04/1976.
11
12 302
esse motivo, para dar maior apoio ao marido e para que a luta pela anistia não fosse
confundida com um movimento atrelado à campanha direta de Glênio, Lícia passou
à companheira a responsabilidade de presidir o MFPA-RS.
O casal Lícia e Glênio, que até então não tinham proximidade com Leonel
Brizola, visitou o ex-governador gaúcho exilado desde 1964 no Uruguai, a pedido do
mesmo por curiosidade acerca daqueles que encabeçaram a luta pela Anistia no RS.
Leonel, por sua vez, recebia com frequência a sua comadre Mila Cauduro (que nesse
momento já havia passado a Presidência do MFPA-RS) e alguns políticos do MDB
que de tempos em tempos atravessavam a fronteira para abraçar o amigo.
A movimentação para as eleições funcionou paralelamente a campanha
pela anistia, as mulheres decidiram se fazer presente em todos os comícios aos quais
fossem convidadas. A participação das mulheres nos comícios realizados em Porto
Alegre foi facilitada por um dos membros do Diretório Metropolitano do MDB, fiel
amigo de Leonel Brizola, João Carlos Guaragna.15
Este mesmo ano eleitoral de movimentações para o MDB foi marcado pela
morte trágica o ex-presidente Juscelino Kubitschek. O MFPA-RS se manifestou
com pesar, enviando um telegrama à viúva do presidente anistiador. O fato de o
ex-presidente ter falecido na situação de cassação dos seus direitos políticos causou
indignação em pessoas públicas que na oportunidade de prestar homenagem à JK
trouxeram a questão da urgência da anistia. No Grande Expediente realizado na
Assembleia Legislativa em setembro de 1976, o Deputado Romildo Bolzan (MDB)
refletiu na Tribuna:
A morte do ex-presidente Juscelino Kubitschek, recentemente,
ensejou, ao povo brasileiro, momentos de reflexão. (...) Estes
brasileiros, rememoravam: com efeito, Juscelino perdoara aqueles que desejaram impedir sua posse; Juscelino anistiara os que
conspiraram para depô-lo, através dos movimentos de Jacareacanga e Aragarças e, finalmente, Juscelino morreu cassado em
seus direitos políticos pelos mesmos grupos que anistiara... (...)
O mais trágico de tais atos, contudo, reside no detalhe de que essas cassações, decretadas pelo período de dez anos, foram, posteriormente, transformados em perpétuas, uma particularidade
exclusiva do atual modelo brasileiro de democracia. (...) Estou
fazendo um apelo aos governantes deste País, para que tantos
erros, tantas falhas e tantas injustiças não sejam odiosas punições perpétuas, tão detestadas e repudiadas pela índole nobre e
generosa do povo brasileiro. Já é hora de restabelecer a paz e a
tranquilidade no seio da família brasileira, a qual, somente unida,
poderá enfrentar as dificuldades inevitáveis que estão por vir. (...)
MFPA-RS, Ata nº3, 20/07/1976. Assinaram a Ata nº3: Lygia de Azeredo Costa, Mila Cauduro, Lícia Peres, Francisca Brizola Rotta, Cláudia M.R. Behrensdorf.
15
303
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
julgamos chegado o momento de se conceder ANISTIA, como
diz Anselmo Amaral, em seu trabalho apresentado em 1971,
“ANISTIA PARA TODOS OS CHAMADOS POLÍTICOS –
PLENA, GERAL E ABSOLUTA. (...) Anistia é paz. Anistia não
é dádiva.”16
O secretário geral do MDB, Bolzan, reiterou a definição de Anistia lançada
por Anselmo Amaral em 1971, que não estava muito distante da qualificação de
anistia pregada pelo MFPA-RS. É certo que o discurso de anistia como pacificação,
concórdia, reconciliação, perdão e squecimento tem a ver com a definição do movimento primeiramente fundado em São Paulo. É o que aparece na fala de Waldir
Walter:
Anistia é um esquecimento dos atritos e das divergências passadas; anistia não é sequer perdão, mas é fazer com que as coisas
sejam esquecidas. Isso é uma anistia política; o mundo está cheio
desses exemplos e sempre foi e sempre será considerado um
ato de grandeza; um ato que credencia os estadistas perante a
História.17
É de se atentar para as estreitas relações que as lideranças do RS têm com
o MDB, e alguns dos seus políticos. Envolvidas na campanha de 1976, após o
Deputado Federal Aldo Fagundes (MDB) se lançar para a candidatura ao Senado,
o MFPA-RS na pessoa de Mila Cauduro lhe enviou os cumprimentos por esse político se mostrar favorável da anistia ampla. Por outro lado, na intenção de angariar
apoios pelo lado da “situação”, o Deputado paulista Alcides Franciscato (ARENA)
também recebeu atenção das mulheres gaúchas que destacaram em uma carta enviada ao deputado arenista, que “homens como V.Exa. nos dão a certeza de que
mesmo lutando em campos opostos, os brasileiros visam um ideal comum, o da
liberdade inquebrantável.”18
No encerramento da campanha do MDB, nos últimos comícios, Mila Cauduro acompanhou de perto e dividiu os palanques com os políticos mais conhecidos e mais prováveis de conseguirem a vitória. Ao menos no Rio Grande do Sul a
campanha gerou resultados positivos e até surpreendentes diante das restrições das
campanhas eleitorais nos meios de comunicação. O possível projeto liberalizante
de Geisel disputava espaço com o processo autoritário que, após a vitória emedebista de 1974, se caracterizou por tentar impedir o fortalecimento do partido de
oposição.
BOLZAN, set.1976, p.420-22.
WALTER, nov.1976, p.593.
18
MFPA-RS, 29/09/1976.
16
17
304
A Lei Falcão assinada pelo Ministro da Justiça, Armando Falcão, foi um
Decreto Lei de nº 6.639 que impedia a livre exposição dos candidatos na TV e no
rádio. A vitória surpreendente do MDB em 1974 fez com que os arenistas investigassem sobre quais os fatores que influenciaram para o ganho de votos da oposição. Diante dos debates acalorados, onde os candidatos emedebistas expunham
opiniões e criticavam os arenistas, o resultado foi positivo para o MDB que despertou na população o interesse eleitoral, num momento em que o governo já vinha
perdendo legitimidade. O projeto de liberalização de Geisel veio justamente para
suportar os efeitos dos altos índices de repressão do governo Médici, não esquecendo que controlar a oposição. Esvaziar a propaganda eleitoral de argumentação
e debates, limitando os candidatos a apenas apresentarem seus nomes, seu número
e seu currículo foi uma estratégia que se somou ao poder logístico que a ARENA
tinha, visto que “toda a burocracia do Estado Central e dos diferentes estados foi
colocada à disposição dos interesses eleitorais da ARENA.”19
Por todas essas condições e pelo possível veto à liberalização, o MDB
do RS só tinha que comemorar a demonstração de insatisfação do povo com os
militares nas urnas. No Estado “a legenda do Movimento Democrático Brasileiro
alcançou a cifra de 1.470.389 votos e a Aliança Renovadora Nacional 1.314.475
votos” e ainda dos 10 maiores municípios gaúchos o MDB venceu em nove: Porto
Alegre, Pelotas, Caxias do Sul, Santa Maria, Canoas, Rio Grande, Passo Fundo,
Novo Hamburgo, São Leopoldo, apesar dessa vitória o MDB perdeu a maioria
dos municípios.20 O abandono do boicote ao sistema eleitoral elaborado pelo regime militar foi possível a partir do momento em que a oposição ao regime percebeu que a luta poderia ser travada por dentro do próprio sistema, e não mais na
clandestinidade. Para Carvalho: “até mesmo os grupos da esquerda armada, após
serem desestruturados pela repressão e se desvencilharem da estratégia de luta
revolucionária, passaram a valorizar a conquista do poder pela via institucional,
reforçando a representatividade do MDB.”21
A faixa branca marcada em vermelho pela palavra Anistia: Objeto de
campanha do MDB e mensagem sobre o ex-Presidente morto
A euforia por parte da oposição em relação às eleições foi interrompida
em dezembro 1976, quando foi noticiado o falecimento do ex-presidente João
Goulart no exílio, fato que lhe daria a infeliz exclusividade de ser o único presidente do Brasil a morrer no exílio. O Deputado Carlos Augusto de Souza (MDB) não
MOREIRA ALVES, 2005, p.230.
SOUZA, nov. de 1976, p.29.
21
CARVALHO, 2005, p.130.
19
20
305
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
deixou passar em branco a morte de Jango no exílio e trouxe novamente a questão
da anistia:
É hora, neste momento, passados quase 13 anos desse acontecimento, que se possibilite a pacificação da família brasileira,
através de uma anistia ampla, plena e irrestrita. É preciso acabar
com as restrições aos direitos políticos. (...) o acontecimento da
morte do ex-presidente da República, João Goulart, mostrou
claramente um doloroso quadro que vive a nossa Pátria, a ponto
de muitos irmãos, de muitos compatriotas, de muitos brasileiros, só terem o direito de regressar à sua Pátria depois de mortos.
(...) A História Brasileira registra, em todas as suas etapas, em
todos os movimentos revolucionários, gestos de grandeza dos
vencedores aos vencidos, com a concessão da plena, irrestrita e
ampla anistia política. (...) É preciso que exista a pacificação de
todos os brasileiros, através da anistia.22
O pronunciamento de Carlos Augusto de Souza foi bem recebido pelo
MFPA-RS, que fez questão de lhe enviar uma carta de apoio às reclamações pelos
treze anos de ditadura. A fatalidade de Jango voltar ao país já em condições de
sepultamento repercutiu nos discursos na Assembleia Legislativa, assunto que se
somou ao desejo de anistia e a esperança que o natal sensibilizasse as autoridades.
O Deputado Porfírio Peixoto (MDB) se pronunciou nessa conjuntura, demonstrando indignação ao tratamento dado aos exilados:
Por ocasião do falecimento do Presidente João Goulart tomei
conhecimento que o seu neto, nascido em Londres, não pode
ser registrado porque cometeu o crime de ser neto de um exilado
político. Vejam bem V.Exas.: neto de um exilado político. Até
quando isso vai durar. Até quando teremos uma pátria dividida
entre irmãos. Quando o governo revolucionário irá compreender
da necessidade de anistiar aqueles que praticaram simplesmente
crimes de pensamento. (...) Espero que o momento inspirado,
do Natal, faça com que se abram os corações das autoridades
governamentais para que deem um fim a este triste episódio que
denigre, mancha a imagem do nosso país no exterior.23
O MFPA-RS também lamentou a morte de Jango, e participou do seu velório e sepultamento em São Borja, acontecimento que mobilizou muita gente, especialmente políticos da oposição que seguiram para a cidade gaúcha. Jango tinha
muita vontade de voltar a viver no Brasil e completava mais de doze anos fora do
país, após o golpe militar no Uruguai que provocou a partida para um novo asilo
João Goulart foi com a família para a Argentina. A fazenda La Villa, em Mercedes,
SOUZA, dez.1976, p.710-11.
PEIXOTO, dez.1976, p.521-22.
22
23
306
foi o local em que foi acometido pelo súbito (fato que está sob investigação atual
como mencionado na introdução deste artigo), nas terras argentinas, aos seis dias
do mês de dezembro. Ernesto Geisel não declarou luto oficial e depois de muitas
conversações autorizou o retorno do exilado embalsamado a São Borja. O retorno
dramático dos filhos que moravam na Inglaterra também foi realizado a partir de
acordos com o Itamaraty. A irmã de Jango, Neusa Goulart Brizola, casada com
o também exilado Leonel Brizola, se deslocou até São Borja para se despedir do
irmão. O ex-ministro do Trabalho de Jango, Almino Afonso, com a ajuda de Maria
Goulart Dornelles, irmã de Jango, colocaram a bandeira nacional em cima do caixão. A passagem do MFPA-RS pelo velório foi registrada pelo jornal Zero Hora que
acompanhou a cerimônia, Mila Cauduro chegou com Francisca Brizola e deram
força à Neusa, amiga de Mila e cunhada de Francisca. Mila falou à imprensa da
importância que Jango tinha para os seus conterrâneos, visto que “São Borja foi o
município onde o Movimento pela Anistia conseguiu o maior número de assinaturas, depois de Porto Alegre.”24
Logo a seguir da chegada dos filhos, João Vicente e Denise, a pedido do
MFPA-RS à ex primeira dama, Maria Tereza, o caixão foi coberto por inteiro com
a faixa branca com letras vermelhas dizendo ANISTIA como foi lembrado por
Peres:
No enterro do Jango foi posta a faixa da anistia, aí o pessoal
na Suíça me disse que quando viram aquela faixa em cima da
[esquife], fotografia que percorreu o mundo inteiro, o presidente
morto no exílio, foi enterrado ali, uma comoção. O movimento
pediu licença a viúva para pôr a faixa da anistia, essa foto correu o
mundo inteiro.25
No livro de atas da reunião, a seguir da morte de Jango, há o registro de que
a faixa levada a São Borja tinha servido durante o ano de 1976 como material de campanha, o qual “Glênio Peres afixara em todos os comícios eleitorais nesta capital e em
algumas cidades do interior.”26
Depois do enterro de Getúlio Vargas o Brasil novamente virou as atenções para
São Borja, “a cidade símbolo do trabalhismo brasileiro”27 que naquela ocasião trouxe de
volta à sua terra João Goulart. O acontecimento movimentou cerca de 20 mil pessoas
que acompanharam o cortejo fúnebre28. Ao invés de carro o caixão seguiu carregado
ZERO HORA, 08/12/1976. No livro de Atas do MFPA-RS está registrado que foram mil
assinaturas arrecadadas em São Borja.
25
PERES, 2009.
26
MFPA-RS, Ata nº4, 10/12/1976.
27
Disponível em DHBB, verbete Brizola, <http://cpdoc.fgv.br/acervo/dhbb>. Acesso em
abril de 2010.
28
CORREIO DO POVO, 07/12/1976.
24
307
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
por familiares e políticos a pé, e depois pela população que gritava Liberdade, Liberdade,
Anistia, Jango, Jango até o cemitério. O discurso de Tancredo Neves à beira do túmulo
foi permeado pelo pedido de “reconciliação nacional”.29
O coronel Peri Cunha ofereceu à presidente do MFPA-RS para a divulgação
uma poesia feita em homenagem a Jango e dedicada aos filhos João Vicente e Denise
Goulart, com o título de: “Volta o Rincão”. A presidente Mila Cauduro respondeu expressando seu apreço pela “integração incansável na luta pela causa da democracia com
que traduz seus profundos sentimentos de amor e liberdade”30.
A missa de sétimo dia foi realizada numa capela discreta no Bairro Auxiliadora
e procurou reunir somente familiares e amigos mais próximos. Embora e Igreja Católica do RS, através da sua autoridade máxima, não tenha se expressado publicamente
favorável ao retorno de exilados ao Brasil e a soltura dos presos políticos, o cardeal
Dom Vicente Scherer foi quem proferiu a oração lembrando que tinha amizade pelo
ex-presidente, quando se conheceram em 1950.31
Ato repressivo contra o povo que homenageava Jango e as discussões sobre o ocorrido no parlamento gaúcho
O convite para a missa de um mês do falecimento de Jango foi muito mais
amplo e bem divulgado pela imprensa do que a de sétimo dia. As notas da família
eram acompanhadas pelos chamados do Diretório Regional do MDB-RS, do Diretório Metropolitano do MDB de Porto Alegre e seus setores Feminino, Jovem e
Trabalhista, e pelo comunicado do MFPA-RS, que dizia:
O Movimento Feminino pela Anistia, representado por Mila Cauduro, Lícia Peres, Francisca Brizola Rotta, Lygia de Azeredo
Costa e Angelina Guaragna, convida as senhoras e a juventude rio-grandenses para a missa a ser realizada hoje, dia 6, quinta-feira, às
19h30min, na Catedral Metropolitana de Porto Alegre, em memória
do ilustre PRESIDENTE JOÃO GOULART morto longe da Pátria, em que tanto desejou viver. Porto Alegre, 6 de janeiro de 1977.32
A sociedade porto-alegrense foi solidária ao chamado e compareceu na
noite do dia seis de janeiro na Catedral. Cerca de duas mil pessoas33 acompanharam
a missa que ao final transformou-se em manifestação, Lícia recorda:
No momento da missa do trigésimo dia nós estávamos ajoelhadas ali rezando, a catedral lotada, aí na saída todo mundo espe 31
32
33 29
30
ZERO HORA, 08/12/1976.
MFPA-RS, 08/01/1977.
CORREIO DO POVO, 12/12/1976.
CORREIO DO POVO, 06/01/1977, grifos originais.
CORREIO DO POVO, 08/01/1977.
308
rando, nós sentíamos o burburinho. Todo mundo querendo uma
palavra, eu disse: “Mila tu estás na presidência, o pessoal está
esperando a nossa manifestação, está esperando a nossa manifestação!”, aí ela gritou Anistia na escadaria, aí foi uma coisa e
ninguém segurava, o pessoal todo: “Anistia! Anistia!” Aí vieram
mais de 300 brigadeanos, foi de uma brutalidade, empurravam
para dentro da igreja, pancadas, mas desceram o porrete, acontece que no dia seguinte estava estampado em toda a imprensa
nacional o Movimento da Anistia nisso tudo com a brigada. E as
luzes do Palácio apagadas na hora, o governador mandou apagar
as luzes por conhecimento. Foi uma coisa muito dura.34
lheres:
A neta de uma das integrantes do MFPA-RS lembrou a coragem das muEram mulheres que não se intimidavam, podia ter aparelhamento,
podia ter polícia, elas encaravam, encararam aqui a brigada do lado
da [Catedral] na Espírito Santo e foram para cima sem medo de
apanhar. (...) Foi nesse dia também da “brigadeanada” que tocou a
mulherada lá pra baixo, aquilo foi uma humilhação bárbara, eu estava, mas mais longe porque a “vó” não deixava eu ficar muito de
pertinho, mas eu estava.35
Como disse Lícia mais acima, o episódio da missa foi noticiado em alguns
jornais no dia seguinte, e reparamos que o número de militares expressado pela
memória de Lícia – de 300 – e o do expressado pelos jornais – o de 80 – e a repressão ao ato foi interpretada de forma diferente nos dois recortes que foi arquivado
pelo MFPA. A notícia do Correio do Povo se posiciona ao lado do MDB, pois contou
o episódio a partir da manifestação de repúdio ao acontecido, elaborada pela Executiva Regional do partido de oposição, a narração do acontecido se deu através
das palavras do MDB:
Encerrada a missa, o povo aglomerou-se pacificamente diante
da Catedral, expressando abertamente os desejos de uma vida de
liberdade, onde imperem a justiça e a integração, como fatores
fundamentais para uma vida democrática.
Esse povo, no qual contavam-se pessoas da mais alta representatividade no mundo político – parlamentares, ex-ministros, assessores e membros da família, além de líderes trabalhistas e partidários – foi violentamente atingido pela investida de pelotões
da Brigada Militar do Estado, que, sob a justificativa de dispersar
a multidão, fez gerar um tumulto no qual foram envolvidos deputados federais e estaduais do MDB, vereadores, membros da
PERES, 2009.
SOUZA, 2009.
34
35 309
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
família Goulart, além de pessoas idosas e crianças, que tiveram
sua incolumidade ameaçada pelo ataque injusto dos soldados da
Brigada Militar.
O MDB lamenta que os atos tenham sido assistidos, em sua total
duração, das sacadas do Palácio Piratini, cuja plateia limitou-se a
assistir a agressão, sem tomar qualquer atitude impeditiva.36
Já o Estado de São Paulo destacou em uma reportagem menor sob o título:
“Tumulto na missa por João Goulart”, noticiado pela Sucursal de Porto Alegre, de
forma a criminalizar o Movimento espontâneo que se deu ao final da missa. O jornal
afirmou que os manifestantes tiveram de ser dispersos pelos policiais, pois “os gritos
de ‘Jango, anistia e liberdade’ (...) motivaram a intervenção de cerca de 80 soldados
da Brigada Militar. Os PMs não entraram na Igreja, mas usaram cassetetes para dispersar 300 manifestantes.”37
A ação da Brigada Militar foi motivo suficiente para gerar uma fervorosa
discussão entre os parlamentares do MDB e da Arena, na Assembleia Legislativa
do RS. Os deputados emedebistas Waldir Walter, Rospide Neto, Carlos Augusto
de Souza e Cezar Schirmer além de repudiarem os atos repressivos dos policiais
fizeram questão de responsabilizarem o Governador Sinval Guazzelli pelo comando da Polícia Militar, já que seria impossível que aquele pelotão se organizasse para
uma ação em frente ao Palácio Piratini, sede do governo estadual, sem o devido conhecimento do governador. Segundo Waldir Walter, um dos motivos pelos quais o
governador não impediu, ou até mesmo comandou a ação da brigada militar, estava ligado à audiência que Guazzelli teria com o presidente Geisel naquele início de
ano. Rospide Neto narrou os acontecimentos que ocorreram em frente à catedral:
Ao sair da missa, as pessoas que lá haviam comparecido, e ao
manifestarem-se com palavras, como o retorno da liberdade à
nossa Pátria, como a manifestação, clamando por anistia, e também como uma homenagem póstuma gritavam o nome de João
Goulart, pois a Brigada Militar, através de seus integrantes já
estava devidamente ali instalada para intervir contra qualquer
manifestação quando o povo saía da catedral. (...) Sob ordens de
um oficial da Brigada Militar, a massa foi dispersa brutalmente,
aos empurrões, como se ali reunissem, como se ali estivessem
criminosos, malfeitores ou subversivos. (...) Correram, afastaram-se para que não sofressem uma violência talvez maior. Mas,
mesmo assim alguns foram vítimas de empurrões. Entre eles,
cito apenas dois casos de lamentar: um que foi jogado ao chão,
Deputado Federal Magnus Guimarães que, no momento, passava em frente à formação do pelotão comandado para dissolver
CORREIO DO POVO, 08/01/1977.
O ESTADO DE SÃO PAULO, 07/01/1977.
36
37 310
a massa humana que ali se aglomerava; o outro foi o intelectual,
jornalista e escritor Josué Guimarães38, que saía junto da família
do Ex-Presidente João Goulart,
por pouco muito pouco os familiares ficaram impunes da agressão praticada pelos brigadianos. (...) E não foram agredidos jornalistas, outras autoridades ou mesmo os Parlamentares, porque
se afastavam. Mulheres, crianças, todos tinham que correr, sob
pena de receber uma agressão mais violenta por parte dos brigadianos.39
Em defesa das práticas autoritárias e antidemocráticas o deputado arenista
Hugo Mardini se pronunciou acusando os emedebistas de estarem distorcendo os
fatos com seus exageros verbais que serviam aos apetites eleitorais. Mardini fez
questão de registrar a sua versão arenista do acontecido:
Vivemos em paz, vivemos em tranquilidade, vivemos em ampla
liberdade, vivemos o direito de debate à luz das Leis e da Constituição, emanadas do Movimento Revolucionário de Março de
1964. E é necessário que fique bem claro àqueles que não pensam desta forma que esta Revolução é um ato histórico, militar e
político, irreversível na vida Nacional; que o Brasil marcha para
a (sic) frente; e que a agitação, a contestação, o saudosismo não
há de se dar no bojo da agitação de rua, presa fácil de agitadores,
profissionais e de comunistas conhecidos, infiltrados, desde os
meus tempos de líder estudantil, no trabalho e no propósito de
transformar qualquer concentração num ato de violência e num
ato de repúdio às instituições brasileiras e republicanas.40
O discurso de Mardini ainda foi endossado por um aparte de Romeu Martinelli que, de forma irônica, colocou o desafio: se houve violência física que aparecessem os feridos, pois caso contrário não teria havido violência, era uma questão
de demagogia. Ao que Waldir Walter rebateu: “é preciso sangue, é preciso haver
fraturas, é preciso haver gente hospitalizada...”41 e Martinelli respondeu: “Exatamente, a violência deve ser materialmente provada.”42 O deputado Waldir Walter
O jornalista-escritor foi eleito em 1951 vereador da cidade de Porto Alegre pelo Partido
Trabalhista Brasileiro, onde atuou até 1954 e chegou a ocupar a vice-presidência da Câmara
Municipal. Após ter estreitado relações com políticos como Getúlio Vargas e Leonel Brizola
na década de 1950, o jornalista se retirou do PTB por ter sido impedido por Brizola de fazer
algumas ações. No entanto, na década de 1960 Guimarães se doou à campanha da legalidade,
dando aparato a Brizola e após o golpe de 1964 esteve com os exilados Jango e Brizola diversas
vezes. Ver Moura (2008).
39
NETO, jan.fev.de 1977, p.29-30.
40
MARDINI, jan.fev. de 1977, p.31.
41
Idem, p.32
42
Idem, p.32.
38
311
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
não se intimidou e seguiu a defender os princípios de liberdade, sendo rebatido por
Guido Moesch (ARENA) que voltou na ideia de que “o MDB está se notabilizando por sua tática de mistificar a verdade, de engodar e enganar a opinião pública.”43
É interessante notar que essa discussão foi possível talvez por aquela sessão ser presenciada apenas pelos “autênticos” do MDB, pois os moderados, incluindo o Presidente Estadual, Simon, não compareceram nessa sessão. Martinelli
ainda atentou para as contradições que deixavam transparecer os “autênticos”:
Ao mesmo tempo em que pregam a democracia; ao mesmo tempo que pregam o Estado de direito, a liberdade ampla e total, cultuam a memória e o ideário político do finado Getúlio Vargas, o
maior ditador brasileiro de todos os tempos. E ainda, lhes prestam homenagem permanente, através de portentosa fotografia
existente na sala da Bancada do Movimento Democrático Brasileiro. Defendem a democracia e cultuam a memória do maior
ditador de todos os tempos. Ao mesmo tempo que preconizam
eleições livres, nas tribunas, nos comícios, na Imprensa escrita e
falada, endeusam o mesmo líder morto, que suprimiu todos os
pleitos eleitorais, no País, nos Estado e no município. Ao mesmo
tempo que condenam a censura parcial estabelecida pela Revolução de 1964, esquecem que Getúlio Vargas sufocou a imprensa
brasileira, através do famigerado DIP. (...) E mais: ao mesmo
tempo que nas tribunas, jornais e comícios se dizem defender a
reforma agrária, prestam homenagem, em sua vida e morte, ao
maior latifundiário de todos os tempos, em nosso País, o finado
ex-presidente João Goulart.44
Neste momento da discussão, o Deputado Carlos Augusto de Souza, em
defesa do MDB, acusou o Deputado Martinelli de estar deslocando o foco da
discussão e acrescentou que o deputado Martinelli era um ex-petebista, e que nutria discórdia contra seu fundador Vargas, pelo fato de ter sido expulso daquele
partido. Augusto de Souza afirmou que nenhum deputado arenista seria dotado
de autoridade para criticar Vargas, pois eram do partido que defendia o estado de
exceção. O arenista Antonino Fornari investiu novamente em uma resposta ao
emedebista, e Martinelli apoiado pelo colega Hugo Mardini se colocaram ofendidos por Augusto de Souza que contou com o apoio de Cezar Schirmer. Entre críticas, contradições, afirmações, provocações, os deputados travaram uma discussão
quase que infinda e que foi salientada não apenas na Assembleia Legislativa, como
no Legislativo municipal, sobretudo pelo Vereador Glênio Peres do MDB até o seu
mandato ser cassado ainda no início de 1977.
MOESCH, jan.fev. de 1977, p.33.
MARTINELLI, jan./fev. de 1977, p.36-7.
43
44 312
Considerações Finais
O episódio da morte do Presidente em exílio João Goulart teve um significado bastante forte entre os gaúchos, sobretudo aos fieis simpatizantes do trabalhismo ligados ao PTB, já que com a sua ausência morria também as esperanças
da possibilidade do Presidente eleito democraticamente retornar ao poder político, ainda mais que desde a década de 1950 Jango dava indícios de projetar reformas tão necessárias ao Brasil como exemplo a agrária e a educacional. Os anos
de exílio para Jango foram também uma eternidade para os que permaneceram
no Brasil sem abandonar o desejo de ver o país novamente como um Estado
de Direito, de liberdades democráticas sem o medo de que qulquer oposição
declarada se tornasse motivo para cassações, perseguições, prisões, torturas e
assassinatos. Por outro lado pode-se perceber pelos acalourados debates registrados no Parlamento gaúcho que os deputados arenistas faziam questão de se
prununciar frente aos acontecimentos repressivos atacando os opositores emedebistas e com isso demonstrando que uma parte da sociedade não compactuou
com a luta pela anistia e pelas liberdades democráticas. Após o sepultamento de
Jango ainda tivemos treze anos sem eleições presidenciais diretas e muitas foram
as histórias sobre violações aos direitos políticos e Humanos amparados pela Lei
de Segurança Nacional.
As mulheres tiveram um papel importantíssimo na luta pacífica pelos
Direitos Humanos, o que desviou a possibilidade da repressão ao grupo que
se utilizou da pacificação da família brasileira para levantar a bandeira da Anistia. Após muitos momentos tensos, enfrentando a polícia, enfrentando políticos
conservadores que compactuavam com os absurdos da repressão, enfrentando
a própria sociedade que se deixou levar pela ideologia golpista e que muitas
vezes as julgou como subversivas por defenderem “comunistas e terroristas”,
as mulheres do MFPA construíram uma frente de luta pelas liberdades democráticas que seguiu pela década de 1980 com ainda mais efervescência. Embora
a Lei de Anistia sancionada em 1979 não tenha sido a ideal já que era limitada e
não atingia todos os que se encontravam presos por crimes políticos, a Lei foi
interpretada pelos movimentos que tanto a desejavam como uma vitória dos
familiares e amigos daqueles que saíram das prisões ou dos que retornaram com
vida ao Brasil. Contudo é importante ressaltar que a reconciliação nacional foi
alcançada com base no que era possível para aquele momento diferentemente do
que é possível ser feito para os dias de hoje, passados quase cinquenta anos do
golpe civil-militar. Para a sua infelicidade João Goulart não teve a chance de ver
a abertura política do país que o elegeu, no entanto nós estamos tendo a oportunidade de reescrever uma outra história com avanços que consolidem de uma
vez por todas a democracia.
313
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Arquivos Consultados
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS)
Acervo de Luta Contra a Ditadura (extinto em 2008 passando a fazer parte do
AHRS)
Biblioteca do Solar dos Câmara
Fontes Primárias
Documentação referente ao Acervo particular Lícia Peres e Mila Cauduro (Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul):
MOVIMENTO FEMININO PELA ANISTIA/RS (MFPA-RS). Livro de
Atas. Ata nº1, nº2, nº3, nº4, nº5, nº6, nº7, nº8, nº9.
Mulheres a favor da anistia. Jornal de Debates. 29 de mar. a 04 de abr. de 1976.
MOVIMENTO FEMININO PELA ANISTIA/RS (MFPA-RS). Minuta da
carta endereçada ao Deputado Alcides Franciscato. Porto Alegre, 29 de set. de
1976.
Cenas de emoção marcaram o enterro de João Goulart. Correio do Povo. Porto
Alegre, 07 de dez. de 1976.
Tancredo fala em reconciliação nacional à beira da sepultura. Zero Hora. Porto
Alegre, 08 de dez. de 1976, p.21
Só parentes e amigos íntimos na missa em memória de Jango. Correio do Povo.
Porto Alegre, 12 de dez. de 1976.
Convite para missa de 30º dia. Correio do Povo. Porto Alegre, 06 de jan. de
1977.
Tumulto na missa por João Goulart. O Estado de São Paulo. São Paulo, 07 de
jan. De 1977.
MDB condena incidente ocorrido após a missa em memória de Goulart. Correio do Povo, Porto Alegre, 08 de jan. de 1977.
MOVIMENTO FEMININO PELA ANISTIA/RS (MFPA-RS). Minuta da
carta endereçada ao Cel. Peri Cunha. Porto Alegre, 08 de jan. de 1977.
Anais da Assembléia Legislativa Do Rio Grande Do Sul:
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Discurso do Deputado Romildo
Bolzan. Anais da Assembleia Legislativa. Porto Alegre: CORAG, 1977. Setembro de 1976. p.420-22.
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Discurso do Deputado Waldir Walter. Anais da Assembleia Legislativa. Porto Alegre: CORAG, 1977. Novembro de 1976. p.593-94.
314
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Discurso do Deputado Lélio
Souza. Anais da Assembleia Legislativa. Porto Alegre: CORAG, 1977.
Novembro de 1976. p.29-30.
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Discurso do Deputado Carlos
Augusto de Souza. Anais da Assembleia Legislativa. Porto Alegre: CORAG, 1977. Novembro de 1976. p.710-711.
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Discurso do Deputado Porfírio
Peixoto. Anais da Assembleia Legislativa. Porto Alegre: CORAG, 1977.
Dezembro de 1976. p.521-22.
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Discurso do Deputado Rospide
Neto. Anais da Assembleia Legislativa. Porto Alegre. Janeiro/Fevereiro
de 1977, p.29-30.
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Discurso do Deputado Hugo
Mardini. Anais da Assembleia Legislativa. Porto Alegre. Janeiro/Fevereiro de 1977, p.30-31.
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Discurso do Deputado Guido
Moesch. Anais da Assembleia Legislativa. Porto Alegre. Janeiro/Fevereiro de 1977, p.33-34.
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Discurso do Deputado Romeu
Martinelli. Anais da Assembleia Legislativa. Porto Alegre. Janeiro/Fevereiro de 1977. p.36-7.
Entrevistas:
PERES, Lícia Margarida Macedo de Aguiar. Conversa-Entrevista. Porto
Alegre, abril de 2009. Conduzida e arquivada por Mariluci Cardoso de Vargas, acompanhada por Gabriel Dienstmann, a convite da entrevistadora.
SOUZA, Patrícia Coelho. Conversa-Entrevista. Porto Alegre, setembro de
2009. Conduzida e arquivada por Mariluci Cardoso de Vargas.
Jornais fora do Acervo particular:
Repasse de documentos no 21º ano da anistia. Correio do Povo. 29 de
agosto de
2000. Nº334, p.06
Referências Bibliográficas
BAUER, Caroline. Avenida João Pessoa, 2050, 3º andar: terrorismo de
Estado e ação da polícia política do Departamento de Ordem Política
315
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
e Social do Rio Grande do Sul (1964-1982). Porto Alegre: Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, 2006. Dissertação de Mestrado em História.
BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à verdade e à memória:
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília:
Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007. 400p.
CARVALHO, Aloysio. Geisel, Figueiredo e a Liberalização do Regime Autoritário (1974-1985). Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol.48, nº1, 2005, p.115-147.
MOREIRA ALVES, Maria Helena. Estado e oposição no Brasil (19641984). Bauru, SP: EDUSC, 2005. (1ªed. no Brasil, 1985).
MOURA, Vanessa dos Santos. A literatura gaúcha contesta o regime militar:
uma análise interpretativa do romance Os Tambores Silenciosos de Josué
Guimarães.
Anais eletrônicos do IX Encontro Estadual de História da ANPUH/
RS. Porto Alegre: UFRGS, 2008.
SCHERER-WARREN, Ilse. Movimentos sociais: um ensaio de interpretação sociológica. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1987 – 2ª edição.
SCHERER-WARREN, Ilse. Redes de Movimentos Sociais. São Paulo:
Edições Loyola, 1993.
316
O Pensamento Militar e a Política de Segurança Nacional:
a elaboração do conceito estratégico nacional, 1968-1969.
Diego Oliveira de Souza1
Resumo: Este artigo trata do pensamento militar acerca da Política de Segurança Nacional, enfatizando a influência da Escola Superior de Guerra (ESG) para o desenvolvimento da estratégia militar de atuação na sociedade brasileira. O lugar do pensamento militar definido neste trabalho, no período de 1968-1969, são os estudos militares relacionados à elaboração do Conceito
Estratégico Nacional (CEN), bem como as Atas de Sessões do Conselho de Segurança Nacional
(CSN) do mesmo período. Procuramos abordar a influência doutrinária norte-americana e francesa no pensamento militar brasileiro, bem como os objetivos da Política de Segurança Nacional
e as suas Políticas de Consecução no Brasil, no final da década de 1960.
Palavras-chave: Pensamento Militar – Escola Superior de Guerra - Política de Segurança Nacional – Conceito Estratégico Nacional
Palavras Iniciais
E
ste artigo parte da constatação da falta de estudos sobre os termos guerre revolutionnaire e “defesa da civilização cristã”, apontada
por João Roberto Martins Filho como algo recorrente na historiografia brasileira, apesar de figurarem na maioria das pesquisas de historiadores e
cientistas sociais. O historiador lembra que há concentração de estudos na Doutrina de Segurança Nacional (DSN) e falta de pesquisas com relação ao conceito de
guerre revolutionnaire, introduzido na Escola Superior de Guerra (ESG), em 1959.2
Neste trabalho, o marco temporal adotado perpassa o ano de surgimento
da anomalia institucional do Ato nº5, dezembro de 1968, e chega ao período considerado de anarquia, pelas Forças Armadas, em setembro de 1969, após a morte
do General Costa e Silva. Como lembra Elio Gaspari, Emílio Médici era o militar
que menos esforços havia feito para chegar a presidência, pois quando Costa e
Acadêmico do 9º Semestre do Curso de Licenciatura Plena e Bacharelado em História da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Técnico Administrativo do Ministério Público
Federal, lotado na Procuradoria da República no Município de Santa Maria/RS. Endereço
Eletrônico: [email protected], Telefone: (51) 9238-4574.
2
MARTINS FILHO, João Roberto. A influência doutrinária francesa sobre os militares brasileiros nos anos de 1960. IN: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 23 nº 67, Junho
de 2008, p. 39.
1
317
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Silva morreu, Médici ocupava o cargo de Comandante do III Exército.3 Entretanto,
os laços de lealdade constituídos entre o general-presidente Emílio Médici e seu Ministro do Exército, Orlando Geisel, levando-se em consideração os acontecimentos após
dezembro de 1968, representam um exemplo militar capaz de afastar a tipologia dos
grupos militares baseada apenas na divisão entre duros e moderados. Ao se analisar o
pensamento militar, do final da década de 1960, os laços de lealdade são significativos
para ilustrar a união em torno de algumas ideias incomum.
A partir da institucionalização das medidas contidas no AI-5, desenvolveram-se condições necessárias para manutenção política da Ditadura Civil-Militar. A relação
pessoal desenvolvida por Emílio Médici, general-presidente, e Orlando Geisel, Ministro
do Exército, representa a naturalidade do arbítrio da ditadura como forma de governo.
Ainda assim, Maud Chirio nos lembra que 1969 era tempo em que a política deveria ser
praticada somente nos altos escalões das Forças Armadas, pois seria a medida adequada
para controlar o período de anarquia e preservar a instituição militar, bem como Orlando Geisel, então Ministro do Exército, havia recomendado que a ação política fosse
praticada apenas pelas elites hierárquicas, sendo que os assuntos de Estado não deveriam
ser tratados por Capitães, majores, coronéis e mesmo os generais de brigada.4
Procuramos ao longo deste trabalho abordar os estudos relacionados à formulação do Conceito Estratégico Nacional, bem como ao planejamento da atuação
estratégia do Estado brasileiro, marcado pela Política de Segurança Nacional, no final
da década de 1960. A formulação do Conceito Estratégico Nacional, naquele período,
corresponde ao desenvolvimento das discussões, ocorridas no primeiro momento na
Escola Superior de Guerra, e no segundo momento, no espaço de planejamento da
ação governamental: O Conselho de Segurança Nacional. No espaço do Conselho de
Segurança Nacional foram apresentadas e discutidas diversas alterações nos elementos
fundamentais da política governamental de Segurança Nacional.
A fonte primária principal desta investigação está relacionada aos estudos da
formulação do Conceito Estratégico Nacional, de 1968, elaborados pela Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional (CSN), beneficiando-se de subsídios da Escola
Superior de Guerra. O Conceito Estratégico Nacional constitui-se no documento básico para todo o planejamento da Política de Segurança Nacional, fixando os objetivos e a
orientação para alcançá-los, através de ações estratégicas a serem empreendidas pelo Estado na área da Segurança Nacional, notadamente nos campos político, econômico, militar e psicossocial, visando à eliminação ou à minimização dos antagonismos internos.5
GASPARI, Elio. A Ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 125.
CHIRIO, Maud. A política nos quartéis: revoltas e protestos de oficiais na ditadura militar
brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p.7.
5 Exposição de Motivos nº 14-2S/68. Brasília-DF, 22/06/1968, p.2. Disponível em:
http://www.an.gov.br/sian/Multinivel/Imagem_Mapa.asp?visualiza=1&v_CodReferencia_
id=1074386, Acess em dezembro de 2011.
3
4 318
Como nos assevera Maurice Halbwachs, podemos criar representações
do passado assentadas na percepção de outras pessoas, no que imaginamos ter
acontecido ou pela internalização de representações de uma memória histórica.
A memória coletiva de um período histórico pode ser reconstituída se levarmos
em consideração que “a sucessão de lembranças, mesmo as mais pessoais, sempre
se explica pelas mudanças que se produzem em nossas relações com os diversos
ambientes coletivos”.6 Além disso, na construção da memória, lembra-se esquecendo, esquece-se lembrando, desloca-se o foco, em um movimento. Através dessa
perspectiva, Denise Rollemberg propõe que durante o processo de abertura da
Ditadura Civil-Militar, o esquecimento era algo essencial. Com isso, militares e a
sociedade queriam esquecer o passado no presente, tratava-se de realizar a negação da história.7 A Ditadura Civil-Militar e os e seus crimes, desconhecidos pela
sociedade brasileira, essa dualidade tem sido um eixo estrutural da construção da
memória coletiva da luta armada e do abuso da força.
Neste trabalho, a relação do pensamento militar brasileiro com a doutrina
militar francesa e norte-americana, no final da década de 1960, é reconstituída
através de fontes históricas e também a partir da memória militar do período. De
se ressaltar que a postura teórico-metodológica deste artigo, corresponde àquela
adotada por José Carlos Reis, de que a verdade na pesquisa histórica é impossível
de ser alcançada, sendo que apenas conseguimos nos aproximar dela, produzindo
uma versão do que efetivamente aconteceu no passado.8
Diante disso, necessário notarmos que o papel político dos militares não é
idêntico nem no tempo, nem no espaço latino-americano, bem assim não obedece
a causas únicas ou simples, pois os militares representam instrumentos passivos de
forças internas e externas, conforme Alain Rouquié.9 Sendo assim, ao analisarmos
o golpe civil-militar de 1964, de acordo com Nelson Werneck Sodré, a suposição
de que as Forças Armadas operam isoladamente, atuando separadas das forças
sociais do país não se sustenta. O golpe deflagrado em 1964, militar na sua exteriorização, correspondeu a inegável alteração na correlação de forças, foi político na
sua essência, e atendeu a interesses políticos inconfundíveis:
as Forças Armadas brasileiras foram acionadas para operar
transformação cirúrgica na estrutura política brasileira, a fim
de deter o processo de transformação estrutural que permitiria
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006, p. 69.
ROLLEMBERG, Denise. Esquecimento das Memórias. In: MARTINS FILHO, João Roberto (Org.). O Golpe de 1964 e o Regime Militar: novas perspectivas. São Carlos: Eduscar,
2006, p. 88.
8
REIS, José Carlos. As identidades do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2000, p.9
9
ROUQUIÉ, Alain. O extremo Ocidente: Uma introdução à América Latina. São Paulo:
EDUSP, 1991, p.179.
6
7
319
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
desenvolvimento do país, econômico, social, político, dentro de
normas democráticas.10
O fenômeno político da Ditadura Civil-Militar deve ser também analisado
a partir da perspectiva do estabelecimento do Estado militar na sociedade. De
acordo com Alain Rouquié, na visão dos militares, em 1964 ocorreu a intervenção
do Exército, no Brasil, para salvar a ‘democracia’, e esse acontecimento representa
modificação do padrão moderador do Exército Brasileiro, herdado desde o tempo
do Império, posto que:
as intervenções do Exército nem sempre são estritamente
militares. E a tomada do poder pelo Exército em 1964 não
escapa dessa característica; entretanto, podemos perguntar-nos por que os militares se instalaram então direta e duradouramente no governo, contrariamente a sua prática anterior. Dizendo de outra forma, por que o Exército não se
limitou a uma intervenção corretiva?11
Na Década de 1970, Maurice Latey afirmava a existência de uma forma comum de governo, a Ditadura Militar. Na sua visão, “quase que por definição é um
governo tirânico; porque, quando os militares usurpam o poder civil, estão agindo
além de seus desígnios. Em emergências extremas os políticos, algumas vezes, se
alegram em deixar que isso aconteça.”12 Além disso, também considera as Forças
Armadas como corpo do Estado que possui esprit de corps (espírito de corporação),
respeito hierárquico e obediência ao seu líder, que os torna um instrumento natural
e eficiente de mando. Sendo a Ditadura Militar o domínio do mais forte, podendo
a qualquer tempo prevalecer na maioria dos países, Maurice Latey questiona-se o
porquê a consideramos em quase todas as circunstâncias como anormal, um abuso
de poder, uma forma de tirania?13
De toda maneira, como nos lembra Carlos Fico, devemos enfatizar que
a multiplicidade de exemplos militares dificulta a elaboração de uma determinada
tipologia dos grupos militares, tendo em vista que a formação militar, os laços
de lealdade e a posição em relação ao desenvolvimento econômico do país são
elementos basilares opostos a um tipologia elaborada apenas através da prática da
tortura.14
SODRÉ, Nelson Werneck. História militar do Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2
ED, 2010, p. 473-74.
11
ROUQUIÉ, Alain. O estado militar na América Latina. São Paulo: Alfa-Omega, 1984,
p. 330.
12
LATEY, Maurice. Ditadura: ontem e hoje. Rio de Janeiro: Edições Novo Tempo, 1970, p.
238.
13
Ibid., p. 240.
14
FICO,Carlos. Vesões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. In. Revista Brasileira
10
320
Diante disso, o pensamento militar compreendido, neste trabalho, trata-se
da modificação do pensamento militar brasileiro através da incorporação de determinados conceitos relacionadas diretamente à doutrina de guerra revolucionária
francesa ou à doutrina militar norte-americana. A partir dessa infuência estrangeira, procuramos demonstrar a forma como os militares, pertencentes às três forças
singulares, organizaram um conjunto de ideias em torno do objetivo central da
Política de Segurança Nacional brasileira. Por fim, a estruturação deste trabalho
está compreendida no nascimento da Escola Superior de Guerra, no conceito de
guerras e revoluções, perpassado pelas formas de defesa da liberade em oposição
à tirania, bem como no surgimento do Conceito Estratégico Nacional e o seu
contexto histórico de 1968-1969.
O Nascimento da Escola Superior de Guerra
A alteração na formação dos Exércitos considerados modernos, em países dependentes, remonta ao início do Século XX. Nesse período, o Exército de
nações dependentes se modernizou através de empréstimos de recursos e técnicas
militares, sendo a base desta modernização os dois modelos universais de Exército,
o Exército Alemão, de tradição prussiana, e o Exército Francês. Nesse período,
desenvolve-se intensa luta de influência na América do Sul diante da escolha do
modelo militar a ser adotado, evidenciando-se relações privilegiadas no domínio
diplomático e boas expectativas no comércio de armamentos. O Peru e o Brasil
são exemplos de países que optaram pelo modelo francês para reformar seus Exércitos.15
A influência francesa sobre as Forças Armadas brasileira remonta ao ano de
1919. Nesse ano, militares franceses são contratados para transformar o Exército nacional, originando a Missão Militar Francesa, dirigida pelo General Gamelin. No contexto
brasileiro, a influência francesa é duradoura, tendo em vista que, nos anos de 1934-1960,
todos Ministros de Guerra brasileiros receberam formação de orientação militar francesesa.16 Conforme Aurélio de Lira Tavares, a Missão Militar Francesa tornou-se órgão de
assessoramento do Estado-Maior brasileiro, e a partir da assinatura do contrato Brasil-França:
de História. Dossiê Brasil: do ensaio ao golpe (1954-1964), v. 24, n. 47, p.34.
15 ROUQUIÉ, Alain. O extremo Ocidente: Uma Introdução à América Latina. São Paulo:
EDUSP, 1991, p. 181.
16
ROUQUIE, A, op. cit, p. 181. Ainda sobre a influência francesa sobre as Forças Armadas
brasileiras, convém destacarmos a matéria da Revista Veja, intitulada “Príncipe do Planalto”, a
qual definiu o general Ernesto Geisel como “[...] uma espécie de De Gaulle dos trópicos, com
todas as características de personalismo, autoconfiança e sentido do falecido presidente francês”.Ver: Revista Veja, Edição 549, 14/03/1979. São Paulo: Editora Abril, p.46.
321
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Estabeleceu-se uma orientação doutrinária de base. Foram criadas várias Escolas modernas, a começar pela de Estado Maior
(École Superieur de Guerre) e de Aperfeiçoamento de Oficiais,
no Rio de Janeiro. Elas passaram a ser os centros essenciais da
criação de uma nova mentalidade militar, que começou, então, a
surgir. Todos os oficiais foram obrigados a fazer os novos cursos. Reorganizaram-se as Armas e os Serviços do Exército.17
Durante a Segunda Guerra Mundial, os antigos membros da Força Expedicionária Brasileira (FEB), foram influenciados pelos ideais liberais norte-americanos,
levando-se em consideração que “(...) tomaram parte na Campanha da Itália, formaram
um núcleo de oficiais bastante prestigiado, um verdadeiro grupo de pressão militar, interessado na defesa da manutenção da amizade americano-brasileira, tanto quanto no
american way of life’”.18 Este grupo de oficiais pró-americanos, antigetulistas e ligados à
livre empresa tomou papel significativo na elaboração da Escola Superior de Guerra
(ESG) e na Doutrina de Segurança Nacional.
Em tempo, a historiadora Maud Chirio destaca a influência da queda da ditadura do Estado Novo de Vargas, sobre o ativismo político dos militares brasileiros.
Conforme a historiadora francesa, inaugura-se uma era de polarização e mobilização
política da sociedade brasileira, cujas Forças Armadas ocupam lugar central, ocorrendo
a participação de oficias de todas as patentes, sendo que :
A principal caixa de ressonância é o Clube Militar, que no pós-guerra recuperou seu papel de foco de agitação política no
Exército: ali são asperamente discutidas as grandes questões que
eletrizam a cena política nacional, e ali se enfrentam, às vezes virulentamente, a facção nacionalista, solidária do campo getulista,
e a direita liberal e anticomunista, aglutinada a partir de 1952 na
chapa da Cruzada Democrática.19
A origem da Escola Superior de Guerra (ESG) está relacionada ao Curso de
Alto Comando, criado em 1942, pela Lei de Ensino Militar, voltado apenas para Generais e Coronéis do Exército. Em dezembro 1948, nos moldes do National War College,
fora elaborado o anteprojeto do regulamento da ESG, com a participação de três americanos entre o grupo de militares brasileiros, liderados pelo General Oswaldo Cordeiro
de Farias, encarregado desta tarefa. O anteprojeto do regulamento da Escola Superior
de Guerra previa que: “o Instituto a ser criado convergiria esforços no estudo e solução
TAVARES, Aurélio de Lyra. Brasil-França, ao longo de 5 séculos. Rio de Janeiro: BIBLIEX, 1979, p. 268-271.
18
ROUQUIÉ, Alain. O estado militar na América Latina. São Paulo: Alfa-Omega, 1984,
p. 333.
19
CHIRIO, Maud. A política nos quartéis: revoltas e protestos de oficiais na ditadura militar
brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 11.
17
322
dos problemas de Segurança Nacional, mediante um método de análise e interpretação
dos fatores políticos, econômicos, diplomáticos e militares, que condicionam o Conceito Estratégico Nacional em um espaço de ampla compreensão entre os grupos nele
representados.”20
Dessa maneria, a Escola Superior de Guerra (ESG) foi criada através da Lei
nº.785, de 20 de agosto de 1949, sendo um Instituto de Altos Estudos diretamente
subordinado ao Ministro de Estado Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas. Na
visão de José Alfredo Amaral Gurgel, a motivação básica da criação dessa instituição
deve-se a desinteligência lavrada entre poderosos Estados-Nações, que arrastaram para
a Segunda Guerra Mundial, mais da metade do Globo, fato que impôs às organizações
nacionais revisão de comportamentos internos e externos, para fazer frente às novas
contingências.21 Em síntese, as proposições que ocasionaram o surgimento da ESG
encontram-se na seguinte assertiva:
o desenvolvimento geral do País é o caminho da Segurança
Nacional, alcançando esse desenvolvimento setores demográficos, econômicos e financeiro. O primeiro relacionado com o
número, físico, cultura e moral; o segundo, com a produção,
distribuição e consumo; e o terceiro, com o mercado interno e
externo de moedas. Em razão desse reconhecimento, os órgãos
responsáveis pela segurança da Nação têm o dever de zelar pelo
desenvolvimento do potencial geral desta; decorrentemente, o
direito de intervenção das Forças Armadas, pelos órgãos
adequados, no aproveitamento das potencialidades brasileiras.22
Depois da Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria trouxe a redefinição
da prática repressiva política e ideológica. Com isso, essas novas circunstâncias
trazidas oportunizaram o surgimento de novas doutrinas militares adequadas à
definição do novo inimigo.23 Na primeira década de funcionamento da ESG, o pla A ESG registra a diplomação de mais de 8 mil “esguianos”, sendo que entre eles encontram-se quatro Presidentes da República, 45 Ministros de Estado, 20 Senadores, 31 Deputados
Federais, vários diplomatas, Oficiais Generais e personalidades do cenário nacional e internacional. Para maiores detalhes sobre o histórico da ESG, sob o ponto de vista militar, ver: http://
www.esg.br/wordpress/a-esg/historico/, acesso em 13 de janeiro de 2012.
21
GURGEL, José Alfredo Amaral. Segurança e Democracia: uma reflexão política sobre
a doutrina da Escola Superior de Guerra. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, J. Olympio,
1975, p.27.
22
Ibid, p. 31. Grifos nossos.
23
Interessante observar o novo conceito de resposta flexível, desenvolvido pelo teórico e
diplomata norte-americano Henry Alfred Kissinger, conforme Fernand Schneider: “(...) uma
réplica do tipo ‘olho por olho’, qualquer que seja a gravidade da ameaça. É preciso, dizia essencialmente, Henry Kissinger, encontrar uma estratégia capaz de apoiar a nossa diplomacia sem
pôr em xeque a nossa existência como nação cada vez que é aplicada .”Ver: SCHNEIDER,
Fernand. História das doutrinas militares. São Paulo: DIFEL, 1975, p. 156.
20
323
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
nejamento da Segurança Nacional abrangia tanto o “Preparo do Poder Nacional”,
como a sua “Aplicação”, visando essencialmente à guerra clássica. Nesse contexo,
o governo militar institucionaliza o planejamento da ação governamental, através
da qual os campos da Segurança e do Desenvolvimento ganharam contornos diferentes, passando a compor área mais ampla da Política Nacional.24
A influência do pensamento miliar norte-americano sobre os oficiais
militares latino-americanos é percebida, por Joseph Comblin, quando ocorre o
funcionamento dos colégios militares da região do Canal do Panamá e dá-se o
desenvolvimento da noção de guerra revolucionária, a partir da ótica norte-americana, no início da década de 1960.25 O religioso belga destaca em seu trabalho a
importância do termo guerra revolucionária no cenário intelectual militar, no anos
de 1961/1962: “Foi também nos Estados Unidos que se formou a ideia de guerra
revolucionária, que vai tornar-se o prato predileto dos militares latino-americanos,
a partir do momento em que entram em funcionamento os colégios militares destinados a preparar os oficiais e soldados na região do Canal do Panamá.”26
A Doutrina Política de Segurança Nacional, elaborada a partir da década
de 1950, em decorrência do desenvolvimento das atividades da Escola Superior de
Guerra, sofreu alteração em sua nomenclatura, inicialmente, de Segurança Nacional no seu conceito mais abrangente, passou a ser, de 1967 em diante, intitulada
de Segurança e Desenvolvimento – ou de ‘Desenvolvimento e Segurança’ – em
FRAGOSO, Augusto. Prefácio, p. X e XIV. In: GURGEL, José Alfredo Amaral. Segurança
e Democracia: uma reflexão política sobre a doutrina da Escola Superior de Guerra. Rio de
Janeiro: Biblioteca do Exército, J.Olympio, 1975, p.27.
25
Josep Comblin foi criticado por ser um dos primeiros a simplificar a noção de Guerra
Revolucionária, bem como por adotar uma interpretação genérica do ideário da Doutrina de
Segurança Nacional. Ver: MARTINS FILHO, João Roberto. A Influência doutrinária francesa
sobre os militares brasileiros nos anos de 1960. IN: Revista Brasileira de Ciências Sociais.
Vol. 23 nº 67. Junho de 2008, p. 40.
26
COMBLIN, Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional. O Poder Militar na América
Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980, p. 44. O padre belga Joseph Comblin foi
anistiado pelo Estado brasileiro em 26 de novembro de 2010, demostrando assim as limitadas
iniciativas atuais do governo federal em promover as medidas de justiça transicional no contexto
político brasileiro. Joseph Jules Comblin chegou ao Nordeste do Brasil em 1965, convidado
por Dom Helder, aceitou o convite e “a fim de facilitar a comunicação com povo nordestino,
a partir daquele momento, Joseph Jules Comblin, fez-se, simplesmente, ‘JOSÉ’, aquele mesmo
que desde a sua juventude, defendia ideais políticos que conflitavam com o regime de governo
à época, sempre ao lado de Dom Helder, passando então a ser brutalmente perseguido por tais
razões”. Ao regressar da Europa dia 24 de março de 1972, foi impedido de desembarcar no
Recife, sendo então expulo do Brasil. Ver: Requerimento de Anistia n.º 2010.01.67333 – Requerente: JOSEPH JULES COMBLIN - Relatora Maria Emilia Guerra Ferreira, p. 06. Disponível
em: http://www.cehila.org/uploads/Requerimento_de_Anistia_Jose_Comblin.pdf, acesso em
11/01/2012.
24
324
decorrência da publicação do Decreto-lei nº. 200, de 25/02/1967, o qual definia o
planejamento da ação governamental como devendo encarar, simultaneamente, o
desenvolvimento econômico-social e a segurança nacional.
Em termos pouco diferenciados, o governo de Emílio Garrastazu Médici
(1970-1973) é marcado pela busca da democracia e do desenvolvimento, conforme
suas palavras: “Democracia e desenvolvimento não se resume em iniciativas governamentais: são atos de vontade coletiva que cabe ao Governo coordenar e transformar em autênticos e efetivos objetivos nacionais”.27 Ainda devemos enfatizar
que para auxiliar os esforços da Ditadura Civil-Militar. na busca por seus objetivos,
o Exército Brasileiro desenvolveu uma linha de ação genuinamente brasileira, a
qual serviu de ensinamento para vários outros países:
Isso ocorreu com a criação dos CONDI, dos CODI e dos DOI
e com o empenho de apenas 450 homens do seu efetivo, distribuídos aos DOI. O restante do pessoal dos DOI era complementado com os bravos e competentes membros das Polícias
Civil e Militar dos Estados. O Exército, através dos Generais-de-Exército, Comandantes Militares de Área, centralizou, ordenou,
comandou e se tornou responsável pela condução da Contra-subversão no país.28
De outra forma, para Elio Gaspari a Doutrina de Segurança Nacional seria
caracterizada pela utilização de conceitos teóricos para explicar a brutalização da política,
por parte dos militares brasileiros. Em relação ao conteúdo da base doutrinária militar, o
autor acentua que “a deficiência central da Doutrina de Segurança Nacional, tanto para
quem combateu a ditadura como para quem a adorou, está no fato de que ela nada teve
de doutrina, muito menos ideologia”.29
Realizadas as breves considerações sobre o nascimento da Escola Superior de
Guerra, em especial a indicação da influência francesa para a modernização do Exército
Brasileiro, em 1919, passamos a analisar algumas ideias de guerras e revoluções, inclusive
sobre a perspectiva do marxismo-leninismo, bem como tratamos das diferentes formas
de defesa da liberadade em oposição à tirania.
MÉDICI, Emílio Garrastazu. O Jogo da Verdade. Brasília: Departamento de Imprensa
Nacional, 2 Ed., 1970, p.11.
28
USTRA, Carlos Alberto Brilhante. Rompendo o silêncio: OBAN, DOI/CODI.29set.70-24jan.74.Brasília: Editerra, 1987, p. 68.
29
GASPARI, Elio. A Ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 39.
A análise realizada por Elio Gaspari apresenta elementos superficiais, tendo em vista que contraria a orientação central da Ditadura Civil-Militar através da definição do binômino segurança-desenvolvimento, bem como desconsidera a influência da doutrina de guerra francesa, a partir
de 1960, sobre a formação da base doutrinária do pensamento militar brasileiro.
27
325
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
As Guerras e as Revoluções
Interessante observarmos no pensamento militar norte-americano, do final
dos anos 1960, a ideia de guerra não-convencional. Conforme James Atkinson, “cada
época e sociedade possui sua própria justificação para a guerra, seu próprio ponto de vista a respeito e, acima de tudo, um modo particular de encará-la”.30 Diante disso, pondera
o autor que os comunistas de orientação chinesa ou soviética haviam compreendido que
a guerra tradicional, nas nações democráticas, havia chegado ao fim, erguendo-se em
seu lugar uma guerra não-declarada, essencialmente de espírito, de ideias e de vontade
humana:
A guerra não-convencional de nosso tempo é não só a guerra
limitada no sudeste da Ásia e as guerrilhas em algumas regiões
da Ásia e da América Latina. É igualmente a guerra psicopolítica
de estudantes que promovem distúrbios em Atenas; dos manifestantes em marcha pela paz em Londres; de demonstrações
de protesto diante do Consulado Americano de Toronto, sem
esquecer também os manifestantes estudantis, os participantes
de demonstrações e os fomentadores de discórdia e desordem
civil nos Estados Unidos.31
Nas palavras do então segundo general-presidente Marechal Arthur da Costa e
Silva, em entrevista coletiva à imprensa, na cidade de Belo Horizonte, em 27/10/1967,
a ideia de guerrilha e mesmo de realização de obra revolucionária no Brasil faziam parte
da pauta dos jornalistas: “Guerrilha é subversão, sobretudo num país como o nosso
cujo Governo exprime os anseios mais profundos do povo, na luta pelo desenvolvimento”, além disso, “Como segundo Governo da Revolução, o atual Governo tem
por missão consolidar a obra revolucionária e, sobretudo, promover a aceleração do
desenvolvimento.”32
Julian Lider, em Da Natureza da Guerra, pretende expor de maneira imparcial e
objetiva, opiniões acerca do conflito armado e suas relações com a política, a causalidade histórica, o pensamento filosófico e a ideologia. Desse modo, o Juan Lider procura
confrontar o pensamento ocidental, não-marxista, e o pensamento soviético, do final
da década de 1970, para o qual “todo o conjunto de conceitos do marxismo-leninismo
se sustenta na hipótese de que a guerra é um fenômeno de classe: se se demonstrar que
houve guerras antes da evolução das classes econômicas, a ideologia marxista-leninista
trepidará na base, afetando toda a estrutura.”33
ATKINSON, James D. A política de luta: As frentes e a guerra pelo poder. Rio de Janeiro:
Biblioteca do Exército, 1968, p.9.
31
Ibid, p.288. Grifos nossos.
32
Conceito Estratégico Nacional (Estudos). Volume III. Brasília-DF, 1969, p 56. Documento
Confidencial. Arquivo Nacional.
33
LIDER, Julian. Da natureza da guerra. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1987, p.
30
326
Para Suzanne Labin, a guerra política comunista difere da atitude política normal, porque esta última tende a agrupar consciências em torno de objetivos bastante
definidos, e a guerra política dos soviéticos tende a manipular fidelidades em favor de
objetivos tão dissimulados quanto possível.34 Além disso, na visão da autora, a guerra
política
é o conjunto das ações montadas pelo Kremlin, na vida de cada
povo, para destruir, por dentro, os regimes de liberdade e em seu
lugar instaurar um poder absolutista e totalitário. Os seus principais
meios são a propaganda, a infiltração, a corrupção, a conspiração, a
sabotagem, a guerrilha; vale tudo, à exceção do engajamento regular
das fôrças armadas soviéticas numa guerra quente.35
De outro modo, no intuito de analisarmos a influência do anticomunismo, no
pensamento militar brasileiro, interessante observar as considerações de Fernand Schneider sobre o desenvolvimento do pensamento militar, ao longo do tempo:
o desenvolvimento do pensamento militar através da História
aparece como uma criação incessante. Mas esse pensamento,
como qualquer evolução humana, comporta tanto períodos de
maturidade, marcados pelo signo da qualidade, como momentos
de regressão, durante os quais, pelo contrário, o esforço doutrinal e o espírito de invenção dos estrategistas e dos tácticos
parecem adormecer.36
A compreensão da atuação política das Forças Armadas brasileiras, durante o
período de 1964-1985, deve ser realizada à luz do anticomunismo militar e a também
da Doutrina de Segurança Nacional (DSN). O argumento anticomunista foi o principal
elemento do discursooriginador do Golpe Civil-Militar de 31 de março, e a ideia de que
o Brasil corria o risco de ser dominado pelos comunistas constituiu-se como a principal
justificativa para a derrubada de João Goulart.37
De acordo com Rodrigo Motta, o anticomunismo tradicional sofreu um “enriquecimento”, a partir da incorporação de novos conceitos como o de guerra revolucionária e segurança nacional, expressões que tiveram larga utilização na primeira metade
dos anos 1960.38 Dentre as características da guerré revolutionnaire francesa, a qual influenciou o desenvolvimento da Política de Segurança Nacional, adotada pelos militares bra317.
34
LABIN, Suzanne. Em cima da hora. Rio de Janeiro: Record, 1963, p. 07.
35
Ibid, p. 25. Grifos da autora.
36
SCHNEIDER, Fernand. História das doutrinas militares. Lisboa: Bertrand, 1975, p.8.
37
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O anticomunismo militar. In: MARTINS FILHO, João Roberto
(Org.). O Golpe de 1964 e o Regime Militar: novas perspectivas. São Carlos: Eduscar, 2006,
p. 11-12.
38
Ibid, p. 20.
327
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
sileiros, talvez a mais significativa seja a forma genérica para referir-se ao comunismo.
Essa doutrina militar oferecia aos militares, tanto brasileiros quanto argentinos, definição
flexível e funcional do inimigo, ao mesmo tempo em que, no plano geopolítico, valorizava o Terceiro Mundo como cenário do confronto mundial da Guerra Fria:
o inimigo era definido de forma ampla o suficiente para servir
as mais variadas situações nacionais. A idéia geral era de que
a civilização cristã estava envolvida numa guerra permanente e
mundial, em que as distinções tradicionais entre guerra e paz
passavam a ser insignificantes, assim como – na expressão de
um analista – as diferenças entre anticolonialismo, nacionalismo
anti-Ocidente e comunismo.39
Além disso, devemos lembrar que guerras e revoluções, na visão de Hannah
Arendt, são acontecimentos que determinaram a fisionomia do século XX, tendo em
vista que sobreviveram a todas as suas justificativas ideológicas, ao contrário das ideologias oitocentistas tais como o nacionalismo e o internacionalismo, o capitalismo e o
imperialismo, o socialismo e o comunismo, pois:
Numa constelação onde a ameaça de aniquilação total pela guerra se contrapõe à esperança de emancipação de toda a humanidade por meio da revolução (…) não resta nenhuma outra causa
a não ser a mais antiga de todas, a única, de fato, que desde o
início de nossa história determinou a própria existência da política: a causa da liberdade em oposição à tirania.40
Por fim, a partir da reflexão exposta em torno do conceito de guerras e revoluções, passamos a seguir a analisar a elaboração do Conceito Estratégico Nacional,
na qual buscamos denotar a influência da Escola Superior de Guerra (ESG), além da
contribuição da doutrina militar francesa e norte-americana para o surgimento do documento direcionado ao estabelecimento das diretrizes da Política de Segurança nacional
da Ditaduta Civil-Militar, no período de 1968-1969.
O Conceito Estratégico Nacional
O Conselho de Segurança Nacional (CSN) foi criado durante o período do
Estado Novo, através do artigo 162 da Constituição Federal de 1937, inicialmente
com a função de estudar todas as questões relativas à segurança nacional41. A par MARTINS FILHO, João Roberto, op. cit., p. 42.
ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução. São Paulo: Cia das Letras, 2011, p. 35. Grifos
nossos.
41
O acervo de documentos oriundos do Conselho de Segurança Nacional, recolhido ao Arquivo Nacional, é composto por processos nominais sobre cassação de direitos políticos e mandatos eletivos, fichas e pastas individuais, referente ao período de 1964 a 1980. Este recolhimento
39
40 328
tir do Decreto-Lei nº 900/1969, o CSN tornou-se o “órgão de mais alto nível de
assessoramento direto do presidente da República, na formulação e na execução
da Política de Segurança Nacional”. No período do final da Ditadura Civil-Militar,
o Conselho de Segurança Nacional passou a ter um novo regimento determinado
pelo Decreto nº 85.128/1980. Já, durante a década de 1980, o CSN foi perdendo
suas funções até a criação do Conselho de Defesa Nacional em 1988.
Embora, o surgimento do documento Conceito Estratégico Nacional
(CEN) tenha ocorrido em agosto de 1968, o mesmo havia sido previsto na Reforma Administrativa de 1967. Ainda assim, desde o ano de 1946, os temas relacionados ao Planejamento da Segurança Nacional são debatidos na Escola Superior de
Guerra. Conforme lembra o General Orlando Geisel, a época Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas: “(...) o assunto versado nessa reunião [o Conceito
Estratégico Nacional] é costumeiro no Estado-Maior das Forças Armadas e, mais
ainda, na Escola Superior de Guerra, subordinada a este Estado Maior”.42 Ademais, a política governamental daquele período, na visão do militar, afetada pela
doutrina de guerra revolucionária francesa, carecia “de uma estratégia adequada
para enfrentar os novos processos da Guerra Revolucionária Mundial conduzida
pelo Movimento Comunista Internacional”43
A Exposição de Motivos nº 14-2S/68 apresenta a definição e a aplicação
do Conceito Estratégico Nacional, no ano de 1968.44 Trata-se de documento capaz
de registrar o pensamento militar em torno de eixos centrais do controle político
militar: a segurança e o desenvolvimento. Além disso, o referido expediente é um
documento produzido em cumprimento aos dispositivos da Constituição do Brasil, promulgada em 24 de janeiro de 1967, a qual em seu Artigo 90 definia que “o
Conselho de Segurança Nacional destina-se a assessorar o Presidente da República
na formulação e na conduta da Segurança Nacional”.
refere-se às ações iniciadas após a publicação do Decreto nº 5.584, de 18 de novembro de 2005,
que incluíram ainda o recebimento pela Coordenação Regional do Arquivo Nacional no Distrito Federal, dos acervos dos extintos Serviço Nacional de Informações – SNI e da Comissão
Geral de Investigações – CGI em 21 de dezembro de 2005. Em relação aos documentos do
Conselho de Segurança Nacional, foram realizados ainda dois recolhimentos em 14 de junho e
15 de setembro de 2006. Ver: http://www.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm,
acesso em Janeiro de 2010.
42
Ata da 42ª Sessão do Conselho de Segurança Nacional. 26 de agosto de 1968, p.48. Documento Confidencial. Arquivo Nacional.
43
Ibidem, p.47.
44 A Exposição de Motivos nº 14-2S/68, elaborada pelo Secretário Geral do Conselho de
Segurança Nacional (CSN), General-de-Brigada Jayme Portella de Mello, foi aprovada pelo
General-Presidente Artur da Costa e Silva e submetida para análise dos membros do Conselho
de Segurança Nacional, durante a realização da 42ª Sessão do Conselho de Segurança Nacional,
em 26/08/1968.
329
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Posteriormente, o Decreto-Lei nº 348, de 4 de janeiro de 1968, em seu
Artigo 82, asseverava que ao Conselho de Segurança Nacional competia: “A formulação da Política de Segurança Nacional basicamente, mediante o estabelecimento do CONCEITO ESTRATÉGICO NACIONAL e das Diretrizes
Gerais de Planejamento, incluindo a fixação dos Objetivos Nacionais Permanentes e dos Objetivos Nacionais Estratégicos, bem como das Hipóteses de
Guerra.” Importante notar na manifestação do Vice-Presidente da República,
Pedro Aleixo, durante a realização da 42ª Sessão do Conselho de Segurança
Nacional, a influência da Escola Superior de Guerra (ESG) na elaboração do
Conceito Estratégico Nacional:
É uma classificada análise, sucinta onde todos ensinamentos, todas as formulações que algumas vezes se faziam, especialmente,
na Escola Superior de Guerra, são abordados. Nós meditamos
em torno do assunto e há na verdade uma série de objetivos traçados em torno do assentimento geral da doutrinação na Escola
Superior de Guerra, que por mais de vinte anos são dados por
oficiais das Forças Armadas45.
Em relação a Carta Constituinte de 196746, de se ressaltar que esta havia
estabelecido a eleição indireta para presidente da República e tornado a Segurança
Nacional responsabilidade de todos cidadãos, conforme seu artigo 89, “Toda pessoa natural ou jurídica é responsável pela segurança nacional, nos limites definidos
em lei”. Agrega-se a este estabelecimento, a alteração promovida na composição
do Supremo Tribunal Federal (STF), pois houve aumento em seu número de membros, alcançando o total de 16 ministros.47
Necessário enfatizar que os acontecimentos do ano de 1968, na Europa e na Ásia, marcaram com bastante intensidade a vida cultural e política da
sociedade brasileira, tendo em vista que:
O planeta tornava-se uma aldeia global: os tiros dos soldados
Ata da 42ª Sessão do Conselho de Segurança Nacional. 26 de agosto de 1968, p.12. Documento Confidencial. Arquivo Nacional.
46
Conforme Pedro Aleixo, Vice-Presidente da República, a institucionalização da “Revolução
de 1964” teria ocorrido através da Constituição de 1967: “(...) terminado o período presidencial
do Marechal Castelo Branco, foi considerada como indispensável a institucionalização da própria revolução num diploma Constitucional. Foi então promulgado o Ato Institucional nº.4, que
afirmava que a revolução continuava existindo, que ela estava em seu desenvolvimento. Continha, no entanto, esse Ato Institucional nº.4, a promessa de que, votada aquela Constituição nos
termos e nas condições estabelecidas, nós teríamos, nesse diploma, a própria institucionalização
da Revolução.” Ver: Ata da 43ª Sessão do Conselho de Segurança Nacional. 13 de dezembro de
1968, p. 05. Documento Confidencial. Arquivo Nacional
47
VILLA, Marco Antônio. A história das constituições brasileiras. São Paulo: Leya, 2011,
p. 98-100.
45
330
norte-americanos nas selvas do Vietnã ecoavam nas salas de
jantar das cidades brasileiras, assim como as mulheres norte-americanas queimando sutiãs, e os negros queimando cidades, e
os protestos dos estudantes franceses contra a repressão sexual,
e as pernas das garotas londrinas com suas ousadas minissaias,
e os Beatles cabeludos com sua irreverência (hoje, face ao hard
rock, como parecem tão bem comportados!) e os guardinhas
vermelhos, no outro lado do mundo, agitando o livrinho vermelho do grande timoneiro.48
O ano de 1968 é marcado pela resistência à Ditadura Civil-Militar, imposta
ao Brasil no ano de 1964, destacando-se nesse período a atuação política do Movimento Estudantil.49 O quarto ano da deposição do presidente constitucionalmente
eleito, João Goulart, é apontado como aquele no qual “[…] o protagonismo juvenil
foi o cerne de uma luta que se externou nas ruas do país, clamando por liberdade e
democracia numa batalha ferrenha contra o regime militar”.50.No período de 19671968, Maria Helena Moreira Alves assevera que havia união entre os setores de
oposição ao autoritarismo, posto que:
Embora se organizassem independentemente, os setores da
oposição uniram-se nas grandes manifestações e passeatas de
protestos de 1967-1968. Três setores principais adquiriram força
e coordenação suficientes para afetar em profundidade as estruturas políticas do país: o movimento estudantil, o dos trabalhadores e a Frente Ampla.51
Mesmo levando-se em consideração a existência da união entre os setores de
REIS, Daniel Aarão. 1968: O curto ano de todos os desejos. In. Revista Acervo, Rio de
Janeiro, v.11, nº 1-2, Jan/Dez 1998, p. 32.
49
A cobertura da atuação política do Movimento Estudantil, por parte da Revista Veja, durante o ano de 1968, pode ser apreciada nas seguintes edições e matérias: Edição 01, 11/09/1968:
“A culpa da violência. Quem jogou a primeira pedra, os moços ou a polícia?”; Edição 02,
18/09/1968: “Passeatas em Férias. A Polícia quer prender os estudantes. Eles estão mais cautelosos”; Edição 03, 25/09/1968: “Por quem chora Ana Maria Palmeira? Seu marido, Vladimir,
é um líder foragido”, Edição 04; 02/10/1968: “Palavra de Vladimir, entrevista com líder dos
estudantes escondido no Rio de Janeiro”; Edição 05, 09/10/1968: “A Incrível Batalha dos Estudantes”; Edição 06, 16/10/1968: “Todos Presos. Assim acabou o Congresso da ex-Une”;
Edição 08, 30/10/1968: “Os dias amargos de Costa e Silva”; Edição 11, 20/11/1968: “Paz na
prisão. Um mês no Forte Itaipu mostra a coexistência pacífica dos estudantes com os militares.”
Importante notar que a UNE é referida como ex-UNE pelos meios de comunicação da época,
tendo em vista os efeitos da Lei Suplicy de Lacerda de 1964.
50
MULLER, Angélica. O Congresso de Ibiúna: uma narrativa a partir da memória dos atores.
IN. FICO, Carlos; ARAUJO, Maria Paula (orgs.). 1968: 40 anos depois. História e Memória. Rio
de Janeiro: 7 letras, 2009, p.63.
51
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Bauru: EDUSC,
2005, p.141.
48
331
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
oposição à Ditadura Civil-Militar, durante o ano de 1968, compactuamos com as ideias
de Daniel Aarão Reis, o qual propõe os estudantes como sendo os principais atores
do ano de 1968. A atuação do Movimento Estudantil (universitário e secundarista) é
descrita como sendo aquela de maior significância no cenário político daquele ano, mesmo considerando as mobilizações em torno das greves dos trabalhadores de Contagem
(MG) e de Osasco (SP).52
De outro lado, importar lembrar que o Conceito Estratégico Nacional
está dividido em duas partes. Na primeira parte, estão contemplados os Objetivos Nacionais Permanentes, os elementos essenciais da Política Governamental, as
Pressões Dominantes, as Hipóteses de Guerra e as Premissas de Segurança Interna. A segunda parte do documento trata dos Objetivos de Segurança Nacional, da
capacidade do Poder Nacional para a realização desses Objetivos, dos Objetivos
Nacionais Atuais Estratégicos, especificando os Objetivos de Guerra, bem como
das Políticas de Consecução.
De acordo com o Conceito Estratégico Nacional, as repercussões mútuas
entre a Política Governamental em curso e as pressões externas e internas determinaram a identificação das seguintes pressões dominantes: 1. Pressão Comunista, 2.
Pressão Sócio-Econômica, 3. Pressão Econômica, 4. Pressão Política Interna e 5.
Pressão Política Externa. A pressão dominante com o maior grau de periculosidade para as pretensões da Ditadura Civil-Militar era a Pressão Comunista.53
A atuação interna da Pressão Comunista correspondia aos campos psicossocial e político, materializando-se através da clandestinidade e da infiltração
ideológica, da propaganda subversiva, sabotagem, dos atos de terrorismo, agitação
social e tentativas de guerrilhas. A atuação externa era definida no campo político
e visava solapar o prestígio internacional do Brasil, procurando criar pela propaganda una imagem deformada da “Revolução Brasileira de 1964”. Importa notar o
grau atribuído a Pressão Comunista, tendo em vista ser considerada:
uma pressão de alta periculosidade, pelas características dos grupos que a exercem, pelo seu crescimento rápido e imprevisível.
Associada às demais pressões, poderá criar graves problemas de
Segurança Interna ou até mesmo, gerar um clima de guerra subversiva.54
Diante disso, em setembro de 1968, ocorria, na cidade do Rio de Janeiro,
a VIII Conferência dos Exércitos Americanos. O tema central da Conferência,
REIS, Daniel Aarão, op. cit., p.29.
Exposição de Motivos nº 14-2S/68. Brasília-DF, 22/06/1968, p.5. Documento Confidencial. Arquivo Nacional.
54 Exposição de Motivos nº 14-2S/68. Brasília-DF, 22/06/1968, p.6. Documento Confidencial. Arquivo Nacional.
52
53
332
realizada nas dependências da Escola de Comando do Estado-Maior do Exército
(ECEME), era a defesa do continente americano e a contribuição dos Exércitos
para o desenvolvimento nacional.55 A tese sustentada pelos militares brasileiros
afirmava que a segurança da América dependia do desenvolvimento econômico,
político e social de cada país. Com isso, evidenciava-se o binômino Segurança e
Desenvolvimento característico do pensamento militar nacional do período. O
evento militar contou com a participação de delegados, representantes do Exército, de dezoito países, destacando-se entre eles a participação do General do Exército norte-americano William Westmoreland, ex-comandante das tropas militares de
Saigon, no Vietnã, bem assim como do representante do Exército Boliviano que
combateu e matou Che Guevara, no intuito de promover a troca de experiências
entre as forças militares americanas. A nova preocupação dos Exércitos Americanos, o combate ao inimigo interno, foi registrada pela Revista Veja:
Toda a teoria da Escola Superior de Guerra, do Brasil, baseou-se nos últimos vinte anos, na hipótese de uma Terceira Guerra
Mundial, os armamentos dentro dessa teoria supunham a guerra
externa. Agora, os militares estão mais preocupados com eventuais inimigos internos. Na opinião dos Estados Unidos, os
países latino-americanos devem adquirir apenas os armamentos
próprios para antiguerrilhas. A compra de aviões supersônicos
Mirage feita pelo Peru foi considerada injustificável para a realidade latino-americana.56
No final do ano de 1968, durante a realização da 41ª Sessão do Conselho
de Segurança Nacional, o Ministro da Justiça, Gama e Silva, falava abertamente
em Guerra Psicológica promovida pelos comunistas, além de asseverar que estudantes são massa de manobra “pano de boca do palco em que nos situamos”.57 O
Comunismo na imprensa e o perigo das ideias subversivas eram preocupações do
Ministro da Justiça, pois o mesmo identificava intelectuais comunistas em ação,
trabalhando em editoras de livros, citando como exemplo a Editora Civilização
Brasileira. Na conclusão de sua exposição, afirmava Gama e Silva que estava ocorrendo a vitória psicológica da contra-revolução no Brasil.
Em relação aos aspectos tratados na primeira parte do Conceito Estratégico Nacional, devemos observar o registrado acerca das Hipóteses de Guerra e a
Premissa de Segurança Interna. A Hipótese Alfa trata da guerra revolucionária na
América Latina, sendo definida pela eclosão de movimentos armados, identifica Revista Veja, Edição 03, 25/09/1968. São Paulo: Editora Abril, p.23.
Revista Veja, Edição 03, 25/09/1968. São Paulo: Editora Abril, p. 24. Grifos nossos.
57
Ata da 41ª Sessão do Conselho de Segurança Nacional.(continuação da sessão interrompida
no dia 11 de julho de 1968). 16 de julho de 1968, p. 23. Documento Confidencial. Arquivo
Nacional.
55
56
333
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
dos com a Pressão Comunista, que exijam o emprego preponderante do Poder
Militar, no Território Nacional e/ou com países latino-americanos. A premissa
da Segurança Interna está contida no seguinte excerto: “O problema brasileiro
basicamente é o seu incipiente desenvolvimento; por isso mesmo, o objetivo
principal do Governo é o desenvolvimento que há de estar a serviço do progresso social - da valorização do Homem Brasileiro”.58
Na segunda parte do Conceito Estratégico Nacional, destacamos dois
temas significativos, os objetivos da Política de Segurança Nacional e as Políticas
de Consecução. Na conjuntura do ano de 1968, os seguintes Objetivos de Segurança Nacional eram admitidos: Consolidação da Democracia e manutenção
da estabilidade política, Neutralização da ação do comunismo internacional no
País, Garantia do desenvolvimento harmônico do País, Anulação das atividades
dos grupos econômicos externos e internos, contrários aos interesses nacionais
e Manutenção da Segurança Continental e da Paz Mundial.
Em relação ao objetivo da Política de Segurança Nacional de Consolidação da Democracia e manutenção da estabilidade política, na análise do Ministro de Exército Aurélio Lyra Tavares, havia necessidade de se elaborar leis mais
severas para preservar o Poder Militar e enfraquecer o poder das comunicações
e sua influência sobre a opinião pública. Na visão de Aurélio Lyra Tavares, ao
que nos parece, a restrição da liberdade de expressão dos meios de comunicação
deveria ser praticada de forma mais rígida, posto que os limites impostos pela
Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, a chamada Lei de imprensa, não eram
suficientes. Seguimos a restrição da atuação dos meios de comunicação, nas palavras do militar:
a legislação básica se tem mostrado ineficaz para preservar o
Poder Militar dos ataques que visam à desgastá-lo em sua essência moral, cumprindo considerar que êle se compõem, não
apenas do elemento material, mas, sobretudo do elmento humano, sujeito às influências do espírito. O Poder das comunicações atuando livremente, para o fim de enfraquecê-lo, armando
contra êle a opinião pública pode compremeter a sua eficiência
caso a lei continue a ser incapaz de impedí-lo.59
Além disso, a Exposição de Motivos originadora do Conceito Estratégico Nacional, trazia a preocupação com o inimigo interno e afirmava a capacidade
do Poder Nacional para alcançar o objetivo da Neutralização da ação do comunismo internacional no País. Bastante interessante é observar que mesmo antes
Exposição de Motivos nº 14-2S/68. Brasília-DF, 22/06/1968, p.6. Documento Confidencial. Arquivo Nacional.
59
Ata da 42ª Sessão do Conselho de Segurança Nacional. 26 de agosto de 1968, p.18. Documento Confidencial. Arquivo Nacional
58
334
da edição do Ato Institucional nº 5, de 13/12/1968, a cúpula militar responsável
pela elaboração do Conceito Estratégico Nacional, acreditava que:
O Poder Nacional, no campo interno, está dotado de um
sistema político alicerçado em novos instrumentos jurídicos
e de uma expressão militar que o habilitam à consecução do
Objetivo visado. No que concerne à Hipótese de Guerra Revolucionária, o Poder Nacional é considerado suficiente para neutralizar a
atuação comunista no Território Brasileiro.60
Ainda assim, em relação às Políticas de Consecução do objetivo da
Neutralização da ação do comunismo internacional no País, o Conceito Estratégico Nacional previa que o meio mais seguro de neutralizar a ação do
Movimento Comunista Internacional, no Brasil, era a consolidação da Democracia Brasileira.61
De outro lado, durante setembro e outubro de 1969, eclodiu uma
crise política de sucessão provocada pela doença do general-presidente Costa
e Silva. Nesse período, houve recusa institucional dos militares de permitir
que o vice-presidente civil, Pedro Aleixo, assumisse a presidência.62 Segundo
pondera Alfred Stepan, ocorreu grave conflito dentro das fileiras militares,
marcada por total fragmentação militar, tendo em vista que:
Envolveu intensa campanha política entre os oficiais, pesquisa
de opinião dos oficiais até o nível de batalhão e a publicação
de numerosos manifestos. Nestas circunstâncias prevaleceu a
tradicional tendência militar de resolver os conflitos com base
na antiguidade e foi eleito o general Emílio Garrastazu Médici,
ex-chefe do SNI e general de quatro estrelas.63
Exposição de Motivos nº 14-2S/68. Brasília-DF, 22/06/1968, p.14. Documento Confidencial. Arquivo Nacional.
61
Exposição de Motivos nº 14-2S/68. Brasília-DF, 22/06/1968, p.19. Documento Confidencial. Arquivo Nacional.
62 O general-presidente Marechal Artur da Costa e Silva assim se manifestou acerca do posicionamento contrário do Vice-Presidente da República, Pedro Aleixo, sobre a implementação
do Ato Institucional nº 5: “São, sem dúvida, consideráveis as observações de Sua Excelência o
Senhor Vice-Presidente da República que, como jurista e grande parlamentar, vê que damos um
passo definitivo, quando talvez pudéssemos, na sua opinião, passar por uma fase intermediária;
eu, em todo o caso, considero que, dentro do Conselho de Segurança Nacional, devamos, pesando a opinião de cada membro, adotar o voto da maioria.” Ver: Ata da 43ª Sessão do Conselho de Segurança Nacional. 13 de dezembro de 1968, p. 27. Documento Confidencial. Arquivo
Nacional.
63
STEPAN, Alfred. Os militares na política: As mudanças de padrões na vida brasileira. Rio
de Janeiro: Artenova, 1975, p. 191.
60
335
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Com a impossibilidade de Costa e Silva continuar à frente do governo, a
Junta Militar formada pelos Ministros do Exército, da Aeronáutica e da Marinha
assume o controle do País. A partir desse instante, ocorrem significativas alterações nos dispositivos legais relacionados ao combate à dissidência política. Desse
modo, através do decreto-lei nº 898 de 29 de setembro de 1969, surge a nova
Lei de Segurança Nacional, a qual seria aplicada,conforme seu artigo 4º: “sem
prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, aos crimes
cometidos, no todo ou em parte, em território nacional, ou que nele, embora
parcialmente, produziram ou deviam produzir seu resultado”.
Em 14 de outubro de 1969, o Ato Institucional nº 14 introduziu a pena
de morte, a prisão perpétua e o banimento para os crimes de guerra externa, psicológica adversa, revolucionária ou subversiva, através da alteração do artigo 150
da Constituição. Ademais, através desta disposição legal foram declarados vagos
os cargos de Presidente e Vice, tendo em vista que Costa e Silva não tinha mais
condições de saúde para reassumir o governo, morrendo dois meses depois, e
Pedro Aleixo foi impedido de ocupar a Presidência do Brasil.
A Emenda Constitucional nº 1, promulgada em 17 de outubro de 1969,
o último documento legal da Junta Militar, é considerada na prática uma nova
Constituição, levando-se em consideração o número de alterações que efetuou
na Constituição de 1967. A Emenda resolveu alterar a denominação oficial do
país, deixando de ser Brasil, de acordo com a Constituição de 1967, e passando
a ser República Federativa do Brasil. Conforme ressalta Marco Villa, “paradoxalmente, era um momento de enorme centralização política e o que menos havia
era ‘federalismo’, que pressupõe relativa autonomia dos entes federados”.64 No
dia 30 de outubro de 1969, Emílio Garrastazu Médici assumiu a presidência da
República, contando com a “herança legal” de Castelo Branco, a Constituição
de 1967, bem assim com a Emenda Constitucional nº 1, fruto do período de
governo da Junta Militar.
Palavras Finais
Acreditamos que o pensamento militar brasileiro possui especificidades e características distintas capazes de possibilitar a existência da constituição
de uma Doutrina de Segurança Nacional singular, no panorama político latino-americano. Embora, essa singularidade apontada na constituição do pensamento militar brasileiro, do final da década de 1960, não possa ser analisada sem as
devidas observações da influência do pensamento militar norte-americano e do
VILLA, Marco Antônio. A História das Constituições Brasileiras. São Paulo: Leya, 2011,
p.104.
64
336
pensamento militar francês. As características do Estado brasileiro permitiram
o desenvolvimento de um conjunto de ideias voltadas para a constituição de
estratégias para atuação civil-militar num país subdesenvolvido, marcado pelos
interesses do capital externo norte-americano.
Ao trabalharmos com documentos relacionados aos estudos de elaboração do Conceito Estratégio Nacional (CEN), observarmos a influência da Escola
Superior de Guerra (ESG) sobre a formação do pensamento militar brasileiro.
Com isso, percebemos que surge nova possibilidade de se realizar investigações
sobre a ESG e sua relação com o Poder Executivo. Futura pesquisa poderá ser
realizada, a partir da análise da influência política do Poder Executivo sobre a
condução dos trabalhos da Escola Superior de Guerra (ESG), ou mais especificamente sobre a Escola de formação da Direção e do Planejamento da Segurança Nacional. Embora, em seu surgimento a Escola Superior de Guerra (ESG)
tenha sido submetida ao controle do Estado-Maior das Forças Armadas, com o
final da Ditadura Civil-Militar, o referido Instituto de Altos Estudos de Política,
Defesa e Estratégia passou a ser vinculado ao Ministério da Defesa e de certo
modo, o controle do Poder Executivo civil trouxe alterações na condução do
processo da Escola.
Em síntese, ao final dos anos de 1960, concluímos que a tentativa de
tentar determinar qual doutrina militar possuiu maior influência sobre o pensamento militar político brasileiro, é válida, tendo em vista tratar-se de busca
pela reconstituição da memória coletiva deste período. Porém, tanto a doutrina
militar francesa quanto a doutrina militar norte-americana demonstraram afetar
em grande medida o pensamento militar estratégico das Forças Armadas brasileiras, nos anos de 1968-1969. Eventos como a utilização do conceito de guerra
revolucionária ou guerra política, termo oriundo da doutrina francesa de contra-insurgência, revelam a crença na descoberta de uma nova forma de luta de conquista pelo poder, supostamente praticada pela ação do Movimento Comunista
Internacional.
Por fim, em relação à contribuição da doutrina militar norte-americana,
a realização da VIII Conferência dos Exércitos Americanos, ocorrida no ano de
1968, na cidade do Rio de Janeiro, sob a coordenação do Exército dos Estados
Unidos da América, demonstra a influência norte-americana sobre o pensamento militar brasileiro, considerando-se a troca de experiências norte-americanas,
fornecidas a partir da intervenção estadunidense no Vietnã. A influência do período de combate norte-americano, na luta pela descolonização asiática, traz aos
militares brasileiros a ideia de que o inimigo é interno, revelando nova tática de
guerra, afastando com isso a possibilidade da realização da III Guerra Mundial,
bem como afirmando a desnecessidade de comprar armas nucleares para realizar a defesa da nação brasileira.
337
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Fontes Pesquisadas
Revista Veja, Edição 01, 11/09/1968. São Paulo: Editora Abril.
Revista Veja, Edição 02, 18/09/1968. São Paulo: Editora Abril.
Revista Veja, Edição 03, 25/09/1968. São Paulo: Editora Abril.
Revista Veja, Edição 04, 02/10/1968. São Paulo: Editora Abril.
Revista Veja, Edição 05, 09/10/1968. São Paulo: Editora Abril.
Revista Veja, Edição 06, 16/10/1968. São Paulo: Editora Abril.
Revista Veja, Edição 08, 30/10/1968. São Paulo: Editora Abril.
Revista Veja, Edição 11, 20/11/1968. São Paulo: Editora Abril.
Revista Veja, Edição 549, 14/03/1979. São Paulo: Editora Abril.
BRASIL. Ministério da Justiça. Requerimento de Anistia n.º 2010.01.67333 – Requerente: JOSEPH JULES COMBLIN - Relatora Maria Emilia Guerra Ferreira.
Disponível em: http://www.cehila.org/uploads/Requerimento_de_Anistia_Jose_
Comblin.pdf, acesso em 11/01/2012.
Arquivo Nacional
Ata da 41ª Sessão do Conselho de Segurança Nacional.(continuação da sessão interrompida no dia 11 de julho de 1968). 16 de julho de 1968. Documento Confidencial. 76 p. Código de Referência: BR AN,BSB N8.0.ATA.4/1, f.1-38. Arquivo
Nacional
Ata da 42ª Sessão do Conselho de Segurança Nacional. 26 de agosto de 1968. Documento Confidencial. 63 p. Código de Referência:BR AN,BSB N8.0.ATA.4/2,
f.39-70. Arquivo Nacional
Ata da 43ª Sessão do Conselho de Segurança Nacional. 13 de dezembro de
1968. Documento Confidencial. 30 p. Código de Referência:BR AN,BSB
N8.0.ATA.4/3, f.71-85. Arquivo Nacional
Exposição de Motivos nº 14-2S/68. Brasília-DF, 22/06/1968. Documento Confidencial. 33 p. Disponível em: http://www.an.gov.br/sian/Multinivel/Imagem_
Mapa.asp?visualiza=1&v_CodReferencia_id=1074386, acesso 23/12/2011.
Conceito Estratégico Nacional (Estudos). Volume II. Brasília-DF, 1967/1968.
Documento Confidencial. 254p. Disponível em: http://www.an.gov.br/sian/
Multinivel/Imagem_Mapa.asp?visualiza=1&v_CodReferencia_id=1074389,
acesso 11/01/2012.
Conceito Estratégico Nacional (Estudos). Volume III. Brasília-DF, 1969. Documento Confidencial. 184 p. Disponível em: http://www.an.gov.br/sian/Multinivel/Imagem_Mapa.asp?visualiza=1&v_CodReferencia_id=1074394, acesso
11/01/2012.
338
Conceito Estratégico Nacional (Exemplar 5).Brasília-DF, 1969. Documento Confidencial. 42 p. Disponível em: http://www.an.gov.br/sian/Multinivel/Imagem_Mapa.
asp?visualiza=1&v_CodReferencia_id=1074216, acesso 23/12/2011.
Conceito Estratégico Nacional (Exemplar 21).Brasília-DF, 1969. Documento Confidencial. 40 p. Disponível em: http://www.an.gov.br/sian/Multinivel/Imagem_Mapa.
asp?visualiza=1&v_CodReferencia_id=1074216, acesso 23/12/2011.
Conceito Estratégico Nacional (Exemplar 23).Brasília-DF, 1969. Documento Confidencial. 42 p. Disponível em: http://www.an.gov.br/sian/Multinivel/Imagem_Mapa.
asp?visualiza=1&v_CodReferencia_id=1074311, acesso em 23/12/2011.
Legislação sobre a Escola Superior de Guerra
BRASIL. Lei nº 785, de 20 de agosto de 1949. Criação da Escola Superior de Guerra.
Diário Oficial da União, Brasília, 30 ago. 1949.
BRASIL. Decreto nº 5.874, de 15 de Agosto de 2006. Aprova o Regulamento da Escola
Superior de Guerra. Diário Oficial da União, Brasília, 16 agos. 2006.
BRASIL. Portaria nº04/ESG, de 20 de Fevereiro de 2008. Aprova o Regimento
Interno da Escola Superior de Guerra. Disponível em: http://www.esg.br/uploads/2009/01/regimento-interno.pdf, acesso em 13 de janeiro de 2011.
Legislação sobre o Conselho de Segurança Nacional
BRASIL. Decreto lei Nº 200, de 25 de fevereiro de 1967. Dispõe sôbre a organização da Administração Federal, estabelece diretrizes para a Reforma Administrativa e dá outras providências. Diario Oficial da União, 27 de Fev. De 1967.
BRASIL. Decreto lei Nº 348, de 04 de janeiro de 1968. Dispõe Sobre a Organização, a Competência e o Funcionamento do Conselho de Segurança Nacional
e da Outras Providências. Diario Oficial da União núm. 348, 08 de Jan. de 1968.
BRASIL. Decreto lei Nº 900, de 29 de setembro de 1969. Altera disposições do
Decreto-lei número 200, de 25 de fevereiro de 1967, e dá outras providências.
Diario Oficial da União núm. 348, 30 de Set. de 1969.
BRASIL. Portal da Escola Superior de Guerra – ESG. Diplomados da ESG.
Disponível em: http://www.esg.br/uploads/2009/01/regimento-interno.pdf,
acesso em 13 de janeiro de 2011.
Referências Bibliográficas
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (19641984). Bauru: EDUSC, 2005.
339
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
ATKINSON, James D. A política de luta: As frentes e a guerra pelo poder. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1968.
ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução. São Paulo: Cia das Letras, 2011.
CLAUSEWITZ, Carl Von. Clausewitz: trechos de sua obra. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1988.
COMBLIN, Joseph. A ideologia da segurança nacional. O Poder Militar na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
COOK, Fred J. O estado militarista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.
FICO,Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar.. In. Revista Brasileira de História. Dossiê Brasil: do ensaio ao golpe (1954-1964), v.
24, n. 47.
GASPARI, Elio. A Ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras,
2002.
_________. A Ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
GURGEL, José Alfredo Amaral. Segurança e democracia: Uma reflexão política sobre a doutrina da Escola Superior de Guerra. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, J.Olympio, 1975.
HALBWACHS, Maurice. A Memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
LABIN, Suzanne. Em cima da hora. Rio de Janeiro: Record, 1963.
LATEY, Maurice. Ditadura: ontem e hoje. Rio de Janeiro: Edições Novo
Tempo, 1970.
LIDER, Julian. Da natureza da guerra. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1987.
MARTINS FILHO, João Roberto. A influência doutrinária francesa sobre os
militares brasileiros nos anos de 1960. IN: Revista Brasileira de Ciências
Sociais. Vol. 23 nº 67. Junho de 2008.
CHIRIO, Maud. A política nos quartéis: revoltas e protestos de oficiais na
ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
MÉDICI, Emílio Garrastazu. O jogo da verdade. Brasília: Departamento de
Imprensa Nacional, 1970.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O anticomunismo militar. In: MARTINS FILHO, João Roberto (Org.). O Golpe de 1964 e o Regime Militar: novas
perspectivas. São Carlos: Eduscar, 2006.
MULLER, Angélica. O Congresso de Ibiúna: uma narrativa a partir da memória dos atores. IN. FICO, Carlos; ARAUJO, Maria Paula (orgs.). 1968: 40
anos depois. História e Memória. Rio de Janeiro: 7 letras, 2009.
340
REIS, Daniel Aarão. 1968: O curto ano de todos os desejos. In. Revista
Acervo, Rio de Janeiro, v.11, nº 1-2, Jan/Dez 1998.
REIS, José Carlos. As identidades do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2000.
ROLLEMBERG, Denise. Esquecimento das Memórias. In: MARTINS FILHO,
João Roberto (Org.). O Golpe de 1964 e o Regime Militar: novas perspectivas. São
Carlos: Eduscar, 2006.
ROUQUIÉ, Alain. O estado militar na América Latina. São Paulo: Alfa-Omega, 1984.
_________. O Extremo Ocidente: Uma Introdução à América Latina. São
Paulo: EDUSP, 1991.
SCHNEIDER, Fernand. História das doutrinas militares. Lisboa: Bertrand, 1975 .
SODRÉ, Nelson Werneck. História militar do Brasil. São Paulo: Expressão
Popular, 2 ED, 2010.
STEPAN, Alfred. Os militares na política: As mudanças de padrões na vida
brasileira. Rio de Janeiro: Artenova, 1975.
TAVARES, Aurélio de Lyra. Brasil-França: ao longo de 5 Séculos. Rio de
Janeiro: Biblioteca do Exército, 1979.
TREVISAN, Leonardo. O pensamento militar brasileiro. São Paulo: Global, 2ED, 1987.
USTRA, Carlos Alberto Brilhante. Rompendo o silêncio: OBAN, DOI/
CODI.29set.70-24jan.74.Brasília: Editerra, 1987.
VILLA, Marco Antônio. A História das constituições brasileiras. São
Paulo: Leya, 2011.
341
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
7. Diferentes olhares sobre a primeira
metade do século XX
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Os primeiros anos da Previdência Pública no estado do Rio GranSul (1929-1937): a estruturação do Instituto de Previdência
do Estado do Rio Grande do Sul (IPERGS)
de do
Carlos César Bento Filho1*
Lucas Iorio Guinteiro2**
Resumo: O trabalho discorre sobre os primeiros anos do Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul (IPERGS). Enfoca o período de 1929 até 1931 , quando ocorreu a
passagem da primeira instituição de proteção social para funcionários públicos do estado do
Rio Grande do Sul, a Sociedade de Amparo Mútuo (SAM), fundada em 1914, para o IPERGS,
criado em 1931, através do Decreto 4.842/31, do Interventor Federal General José Antônio
Flores da Cunha. A criação do IPERGS é compreendida como parte de um processo geral
de estruturação do sistema de previdência brasileiro. São relatadas as atividades desenvolvidas
nos primeiros anos do Instituto, sob a presidência do engenheiro Egydio Hervê, liderança do
Partido Republicano Riograndense, cuja gestão encerra-se em 1937, quando o golpe do Estado
Novo destituiu o Interventor e, em consequência, as pessoas de sua confiança.
Palavras chave: História -Previdência Pública - História Rio Grande do Sul.
A criação do IPERGS e seus antecedentes
S
ábado, oito de agosto de 1931. Nesse dia, o Jornal “Diário de
Notícias” publicava a criação do Instituto de Previdência do
Estado do Rio Grande do Sul (IPERGS)3. O Interventor Federal José Antônio Flores da Cunha, através do Decreto 4.842/31, dava forma
a uma antiga demanda social. Esse ato não foi uma iniciativa isolada; fez
parte de um conjunto de ações ligadas à proteção social dos trabalhadores.
O final dos anos 20, início dos anos 30 do século XX, foi um período
de significativas transformações sociais econômicas e políticas em todo o mundo.
Após o fim da I Guerra Mundial, a ilusão de um futuro de paz se desfazia diante de
uma crise sem precedentes do capitalismo liberal e na ascensão das ideias autoritárias. A quebra da Bolsa de Nova Iorque, a chamada “Quinta-feira Negra”, em 28
de outubro de 1929, foi a expressão sintética da crise econômica que afetou todo
* Professor de História, Assessor de Planejamento do IPERGS.
** Acadêmico de História/Ulbra, Estagiário IPERGS
3
O Instituto de Previdência do Rio Grande do Sul. Diário de Notícias, 9 de agosto de 1931.
p.8
1
2
345
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
o globo em diferentes intensidades. No Brasil, a queda do preço do café, responsável por mais de 70% das exportações brasileiras4, abalou a economia nacional e
corroeu a aliança entre as elites paulista e mineira iniciando uma nova configuração
do quadro político brasileiro e provocando a adoção de um modelo econômico
centrado na substituição de importações e na intervenção estatal.
Pouco tempo antes, no Rio Grande do Sul, a chamada “Revolução de
1923”, que culminou no “Acordo de Pedras Altas”, promoveu um novo pacto de
poder entre a elite riograndense (chimangos e maragatos), encerrando o período
de sucessivas reeleições de Borges de Medeiros e marcando o enfraquecimento
do Partido Republicano Riograndense (PRR). Esse movimento de pacificação desembocou na constituição, em 1928, da Frente Única Gaúcha (FUG), que elegeu
Getúlio Vargas para a Presidência do Estado do Rio Grande do Sul, unificando
antigos adversários.
Na Presidência do Estado, Getúlio orienta-se por um objetivo presente no
programa PRR e próprio do positivismo: a “integração do proletariado à sociedade”, em uma perspectiva paternalista e conservadora. Em nível nacional, vivia-se
a criação de mecanismos de proteção social, em um momento em que a luta dos
trabalhadores pressionava por melhores condições de trabalho e maior proteção
social ao jovem e empobrecido proletariado brasileiro.
A criação de Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAP’s) era parte do
processo de implantação do sistema de previdência nos moldes semelhantes ao
que conhecemos hoje e que tem como marco o ano de 1923. Nesse ano, através da
“Lei Eloy Chaves”, como passou a ser conhecido o Decreto Federal nº 4.682/23,
a previdência social “despontou como política pública de caráter permanente e
geral consubstanciada em um sistema de filiação obrigatória, voltado ao resguardo
de situações de risco social decorrentes de enfermidade, velhice ou morte dos seus
beneficiários”.5 Inicialmente destinada à proteção dos ferroviários, os efeitos da
lei foram sendo estendidos paulatinamente a outras categorias de trabalhadores,
sempre por empresa.
No Rio Grande do Sul, a Sociedade de Amparo Mútuo dos Empregados
Públicos Estaduais e Municipais (SAM), havia sido fundada em 1914, para “garantir pensão mensal vitalícia aos familiares dos segurados – funcionários públicos
estaduais e municipais do Rio Grande do Sul – entre outros benefícios, como empréstimos em dinheiro, auxílio funeral e afiançar aluguel de imóveis pelos sócios.”6
FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. Editora da Universidade de São Paulo, Imprensa
Oficial do Estado, 2001.p.155
5 BRASIL. Ministério da Previdência Social. Previdência Social: Reflexões e Desafios. Brasília:
MPS, 2009 p. 17.
6
SOCIEDADE AMPARO MÚTUO DOS FUNCIONÁRIOS e EMPREGADOS PÚBLICOS ESTADUAIS e MUNICIPAIS do RIO GRANDE DO SUL, Estatutos. Porto Alegre:
4
346
Era uma associação privada, em que pese servir ao sustento das pensões dos servidores públicos. Eleito Presidente do Estado, Getúlio Vargas, nomeou uma comissão formada por Erico Ribeiro da Luz, Teophilo Borges de Barros, Hercílio
Domingues e Nelson Leivas Cárdia, indicados pela Sociedade de Amparo Mútuo.7
Essa comissão entregou ao presidente, em 1929, um memorial fundamentando a
constituição de uma Caixa de Aposentadorias e Pensões para os Servidores Públicos do Estado. A proteção social dos funcionários públicos deixava de ser uma
ação de solidariedade mutualista, de caráter privado, ainda que de interesse público,
para ser uma função estatal. Com base no memorial já referido, o Governo encaminhou projeto de lei ao Legislativo que o autorizou, através da Lei 511/29 a “dotar
dos recursos financeiros necessários a Caixa, em conta aberta no Banco do Estado
do Rio Grande do Sul.” Foi estabelecida a dotação de até 3% da “Receita Geral”
do estado para fazer frente às novas despesas 8.
Em sua mensagem à Assembleia Estadual, no ano de 1930, o Presidente
do Estado ressalta que “Muito breve, instituir-se-á, também, a Caixa de Aposentadoria e Pensões dos Funcionários Estaduais, cujo regulamento está recebendo
os últimos retoques.”9 Os “retoques” citados por Getúlio estavam sendo feitos
por uma comissão composta pelo desembargador André da Rocha, pelo Coronel
Claudino Nunes Pereira e Drs. Carlos Heitor Azevedo e Hercílio Domingues. Para
realizar os cálculos necessários e o plano de benefícios para o futuro instituto de
previdência do estado foi designado o senhor Aristides Casado.10 Posteriormente,
Aristides Casado foi nomeado presidente do Instituto de Previdência dos Funcionários Públicos da União. Sua gestão foi denunciada por apropriação de recursos
adiantados ao Instituto em virtude da construção da Vila Operária Previdência, no
Rio de Janeiro.11
A mesma Caixa de Aposentadorias e Pensões dos Funcionários Estaduais foi o embrião do que viria a ser o Instituto de Previdência do Estado do Rio
Grande do Sul (IPERGS). Com a eclosão do Movimento de 30, os trabalhos da
Comissão foram interrompidos.
Officinas Gráficas da Livraria do Globo.
7
Instituto de Previdência do Estado. Correio do Povo, 9 de agosto de 1931. p.5
8 RIO GRANDE DO SUL. Lei 511/29, de 23 de dezembro de 1929. Coletânea da Legislação Específica do Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul 1929 – 1965, Rio
Grande do Sul, 1967. p.25
9
VARGAS, Getúlio. Mensagem do Presidente do Estado à Assembleia Legislativa.1930.
p.73 http://www.seplag.rs.gov.br/upload/1930_Getulio_Vargas.pdf 16:05:20.
10
HERVÊ, Egydio. Entrevista ao jornal Correio do Povo. Edição de 9 de agosto de 1931.
11
BRASIL. Diário Oficial da União, 13/08/1938. Seção 1 p.53. Disponível em http://www.
jusbrasil.com.br/diarios/2377380/dou-secao-1-13-08-1938-pg-53/pdfView. Acesso em 22
mar.2012.
347
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
O Movimento de 30 e a nova estrutura da previdência brasileira
A desagregação da “Política do Café com Leite”, como ficou conhecido o
pacto entre as elites brasileiras, permitiu que a dissidência oligárquica apresentasse
a chapa Getúlio Vargas – João Pessoa, respectivamente presidentes do Rio Grande
do Sul e da Paraíba, para enfrentar o paulista Júlio Prestes, candidato da situação.
Apesar de, no Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas ter obtido a vitória com
298.627 votos contra 982 de Júlio Prestes12, o candidato paulista venceu a eleição
(como sempre ocorria com os candidatos governistas) com 1.091.709 votos contra
742.794 votos do candidato da oposição. Minervino de Oliveira, operário lançado
candidato pelo Partido Comunista do Brasil fez 131 votos.
Inconformada com o resultado eleitoral, a oposição tratou de impedir a
posse de Julio Prestes. A ação, liderada pelas elites políticas do Rio Grande do Sul e
Minas Gerais, foi deflagrada em 3 de outubro e redundou na renúncia do Presidente Washington Luiz e na instalação do Governo Provisório chefiado por Getúlio
Vargas, em 3 de Novembro de 1930.
A partir da instalação do Governo Provisório, a relação entre Estado e
classe operária foi organizada, mediante a interligação de três sistemas: sindicato,
Justiça do Trabalho e política previdenciária. Com a vitória do movimento de 1930,
o recém criado Ministério do Trabalho estendeu garantias sociais a um número
maior de trabalhadores. “É a partir desse momento, demarcado pela Revolução de
30, que podemos identificar de forma incisiva toda uma política de ordenação do
mercado de trabalho, materializada na legislação trabalhista, previdenciária, sindical
e também na instituição da Justiça do Trabalho.”13
Em 1932 é deflagrada a reação ao Movimento de 30, dirigido pela elite
paulista, denominado de “Revolução Constitucionalista” por seus idealizadores.
Essa reação contrapôs-se ao processo político em curso no Brasil e estabeleceu
a reconstitucionalização do Brasil como um de seus objetivos. Os arquivos do
IPERGS registram a passagem desse momento na análise do pedido de pensão
das viúvas do Tenente Coronel Aparício Borges e do , promovido a Coronel após
morrer “nas operações de guerra contra os rebeldes de São Paulo”, na escrita do,
então, Consultor Jurídico Instituto Darcy Azambuja.14 No Rio Grande do Sul, a
revolução dos paulistas, ficou sendo um movimento rebelde. Apesar de derrotado,
o movimento dirigido pelos paulistas, que de acordo com Getúlio Vargas tratou-
FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. Editora da Universidade de São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 2001.p 179
13
PANDOLFI, Dulce (Org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Ed.Fundação
Getulio Vargas, 1999. p.345
14
IPERGS. Parecer do Consultor Jurídico Darcy Azambuja nº 8 de 18 de agosto de 1932.
12
348
-se de “um movimento sedicioso, de caráter nitidamente reacionário”, 15 logrou a
convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, que produziu uma nova
constituição para o Brasil, em 1934.
A Constitucionalização da Proteção Social
A Constituição de 1934 demarcou o fim do Governo Provisório e restabelecimento do regime constitucional. Getúlio foi escolhido presidente pela própria
Assembleia Constituinte e as eleições para Presidente e governadores definidas
para o ano de 1938. A Constituição de 1934 incluiu a questão social como uma
responsabilidade do Estado. Em seu artigo 121, estabelecia que:
A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições de trabalho na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do País.§ 1º
– A legislação do trabalho observará os seguintes preceitos,além
de outros que colimem melhorar as condições do trabalhador:
[...]
h) assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante,
assegurado o descanso antes e depois do parto, sem prejuízo
do salário e do emprego, e instituição de previdência, mediante
contribuição igual da União, do empregador e do empregado,
a favor da velhice, da invalidez, da maternidade e nos casos de
acidentes do trabalho ou de morte.16
Mesmo antes da Constituição de 1934, observava-se a criação de diversos institutos de aposentadoria e previdência (IAP’s), em substituição às caixas
de aposentadorias e pensões (CAP’s). O Instituto de Aposentadoria e Pensões
dos Marítimos (IAPM), foi criado em junho de 1933, na sequência, foram criados
os institutos de aposentadorias e pensões dos Comerciários (IAPC) em maio de
1934, o dos Bancários (IAPB) em julho de 1934, o dos Industriários (IAPI) em
dezembro de 1936, e os de outras categorias profissionais nos anos seguintes. Em
fevereiro de 1938, foi criado o Instituto de Previdência e Assistência aos Servidores do Estado (IPASE). A presidência desses institutos era exercida por pessoas
livremente nomeadas pelo presidente da República. A política adotada contribuiu
para que a cobertura previdenciária aumentasse enormemente. Ao final da década
de 40, o Brasil possuía dez vezes mais segurados do que em 1934.17
VARGAS, Getúlio. A Nova Política do Brasil II, O ano de 1932 ... A Revolução e o
Norte. Olympio. p.73
16 BRASIL.
Constituição
de
1934.
Disponível
em:
http://pt.scribd.com/
doc/50754349/24/%E2%80%93-Na-Constituicao-de-1934 Acesso em: 13/04/2012 –
12:20:50.
15
17
BRASIL. Ministério da Previdência Social. Panorama da Previdência Social Brasileira.
349
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
A concepção inicial do IPERGS
Durante o Governo Provisório os presidentes ou governadores de estado
foram substituídos por interventores nomeados diretamente pelo Governo Central. Para o Rio Grande do Sul foi designado interventor o General José Antônio
Flores da Cunha. No Governo, Flores da Cunha encarregou o professor da então
Universidade de Porto Alegre (futura Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
e liderança do PRR, o engenheiro Egydio Hervê, de retomar os estudos visando
a criação do Instituto, do qual viria a ser o primeiro diretor-presidente. Hervê foi
Grão-Mestre da Grande Loja Maçônica do Rio Grande do Sul e conhecido líder
espírita, sendo exceção diante do predomínio dos católicos na vida política do
estado e no PRR. Em 1928, Hervê havia sido escolhido intendente em Montenegro.18 Egydio Hervê viaja ao Rio de Janeiro para consultar o economista e atuário
belga Eduardo Olifiers. Profissional reconhecido em sua área, Olifiers já havia sido
procurado anteriormente por Aristides Casado, para desenvolver os estudos necessários à implantação do sistema de aposentadorias e pensões para os servidores
públicos do Rio Grande do Sul.
Embasado nos estudos que vinham se realizando desde 1929, Flores da
Cunha deu formato legal à aspiração dos servidores e criou o Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul. O Decreto 4.842/31 teve redação proposta por Oswaldo Vergara, então consultor jurídico da Secretaria do Interior.19
Na condição de interventor, Flores da Cunha tomou diversas medidas relativas à
organização do serviço público e o funcionalismo. Criou o Tribunal de Contas do
Estado (1935), reduziu o tempo de aposentadoria com vencimentos integrais de 35
para 30 anos de serviço, através do Decreto 5.452/33; restabeleceu os concursos
públicos, abolidos desde 1925. Paralelamente, o Interventor encaminhou a efetivação de servidores já em atividade.20
Em seu relatório, o interventor ressalta: “De todas as medidas, entretanto,
levadas a efeito pelo governo, a de maior relevância é a da criação do Instituto de
Previdência do Estado...”21, indicando a importância que Flores da Cunha dava ao
Instituto. A criação do IPERGS rendeu duas semanas de cumprimentos de grupos
de servidores ao interventor, atestando a ampla repercussão do ato. Em 1930, a
3 ed. Brasília: 2009. p.8
18
Revista Brasileira de História das Religiões – Ano I, no. 2 – ISSN 1983-2850 OS CATÓLICOS GAÚCHOS E A CONSTRUÇÃO DA ORDEM POLÍTICA: A LIGA ELEITORAL
CATÓLICA Lorena Madruga Monteiro
19
HERVÊ, Egydio. Correio do Povo, Porto Alegre, 9 de agosto de 1931. Entrevista.
20
FLORES DA CUNHA, José Antônio. Relatório apresentado pelo Interventor ao Presidente Getúlio Vargas, em 1935.
21
Idem.
350
estrutura das Secretarias de Estado era bem mais simples que atualmente. O estado
possuía seis secretarias: Secretaria da Agricultura, Indústria e Comércio; Secretaria
de Educação e Saúde Pública; Secretaria das Obras Públicas; Secretaria da Fazenda
e Secretaria do Interior.22 O IPERGS, constituído como departamento autônomo
da administração do estado, destacava-se em uma estrutura tão simples.
A estruturação do IPERGS
A idéia de criar um instituto estadual como autarquia encarregada de administrar benefícios previdenciários aos servidores públicos estaduais e municipais do Rio Grande do Sul representou um passo adiante em relação às caixas de
aposentadorias e pensões que beneficiavam categorias isoladamente e precede a
criação do Instituto de Previdência dos Funcionários Públicos da União, daí seu
caráter pioneiro.
No início de sua estruturação, o IPERGS recebeu os recursos destinados a Caixa de Aposentadorias e Pensões dos Funcionários Públicos. Em seguida,
incorporou a Sociedade Amparo Mútuo dos Funcionários Públicos Estaduais e
Municipais do Rio Grande do Sul. A incorporação foi formalizada através do Decreto 4.967, de 27 de abril de 1932 e o pagamento das pensões devidas pela SAM
era sustentado pelo Tesouro do Estado. Os beneficiários da SAM que desejassem
vincular-se ao IPERGS deveriam manifestar-se por escrito ao Diretor do Instituto.
Criado legalmente em agosto de 1931, o IPERGS necessitava de regulamentação para que funcionasse efetivamente como órgão de promoção e desenvolvimento da “previdência e assistência sociais, em favor dos funcionários do
Estado, dos municípios e das classes proletárias”.23 Proletários, para os fins do
regulamento eram: “todos os que tirarem os meios de subsistência, exclusivamente, de seu trabalho ou indústria própria”.24 A regulamentação veio através
do Decreto 4.895, de 28 de novembro de 1931. A partir dessa data, o Instituto já
poderia conceder pensões. Porém, os quatro meses entre a edição do Decreto de
criação e a regulamentação do Instituto provocaram um “vácuo” de atendimento,
gerando uma série de petições “de mães, viúvas, e órfãos (...) revelando casos de
RIO GRANDE DO SUL(Estado). Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos.
Departamento de Arquivos Públicos.Fontes para a História Administrativa do Rio Grande
do Sul: A Trajetória das Secretarias (1890-2005). Porto Alegre, CORAG, 2006. p.230
23
RIO GRANDE DO SUL. Decreto 4.895, de 28 de novembro de 1931. Coletânea da Legislação Específica do Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul 1929 – 1965,
Rio Grande do Sul, 1967. p. 28
24
Idem. 28
22
351
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
aflitiva pobreza”.25 Diante disso, foi editado o Decreto 5.161, de 23 de novembro
de 1932, que possibilitou que familiares de servidores falecidos após a Lei 511/29
(Caixa de Aposentadorias e Pensões) e antes do Decreto 4895/31 recebessem
suas pensões.
Já na condição de indicado à presidência do IPERGS, em entrevista ao
Jornal Correio do Povo, Egydio Hervê, abordava o sentido de continuidade entre
a política dirigida ao funcionalismo do governo Flores da Cunha e a dos governos
de Borges de Medeiros e de Getúlio Vargas, quando este ainda era presidente do
estado. Segundo ele:
No nosso Estado, a necessidade de amparar o funcionalismo e
as suas famílias tem sido sempre compreendido pelos governos,
tanto assim que há muito está instituída a aposentadoria, reforma e a quarta parte e é manifesto e sabido todo o apoio que o
eminente doutor Borges de Medeiros deu às instituições que se
propunham solucionar a questão de amparo quando da morte
do funcionário e se essas instituições falharam foi por falta da
pratica do sentimento de solidariedade entre as classes e também
devido defeitos ou erros de organização técnica.26
Hervê referia-se aos sucessivos subsídios concedidos pelo Estado a Sociedade de Amparo Mútuo sem que essa tivesse conseguido suportar os pagamentos de
benefícios aos servidores.
O IPERGS atendia servidores estaduais e também de municípios conveniados. Logo após a criação do Instituto, em 31 de maio de 1932, a prefeitura da capital
foi a primeira a firmar contrato convencionando sobre a inscrição e participação dos
funcionários municipais no Instituto. Em seguida municípios como Herval, São Luiz
Gonzaga, Guaíba, Torres e outros se conveniaram com o IPERGS. As diferentes origens das pensões a serem pagas pelo Instituto, produziram quatro tipos de registro:
Pensões do Estado - referentes às pensões pagas a partir da edição do
Decreto regulamentador do IPERGS;
• Pensões do Decreto 5161 - pensões pagas no hiato entre a criação da Caixa
de Aposentadorias e Pensões e a regulamentação do IPERGS;
• Pensões de Prefeituras – pensões pagas aos segurados através de convênios
com os municípios;
RIO GRANDE DO SUL. Decreto n° 5.161 de 23 de novembro de 1932. Coletânea da
Legislação Específica do Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul 1929 – 1965,
Rio Grande do Sul, 1967. p.49
26
Entrevista de Egydio Hervê ao Correio do Povo. Edição de 09/08/1931
25
352
• Pensões Amparo Mútuo – pensões pagas aos antigos segurados da Sociedade de Amparo Mútuo.
As primeiras pensionistas do IPERGS
O primeiro processo solicitando pensão pelo IPERGS foi encaminhada em
março de 1932 pela Senhora Cecília Coimbra Dorneles, trinta e três anos, viúva de
Anathalio Pereira Dorneles, administrador da Mesa de Rendas do Estado de Itaqui.
Anathalio, falecido aos cinqüenta e oito anos, era viúvo de um primeiro casamento,
no qual havia gerado um filho. Cecília, filha ilegítima de Maria Balbina Coimbra,
ficou responsável pela criação do enteado Kleber, filho do primeiro casamento de
Anathalio, com 14 anos e Anathalio C. Dorneles, com apenas três meses. Dois anos
depois, Kleber faleceria. A relação de Cecília com o IPERGS durou até sua morte,
em 1989. 27
Euthalia da Costa Ritta foi a titular do primeiro processo baseado no Decreto 5161. Euthalia era viúva do Capitão Álvaro de Aguiar Ritta, sem filhos. O Capitão
havia falecido em 7 de outubro de 1931. Em primeiro de dezembro de 1932, Dona
Euthalia, 42 ano, sem filhos, entrou com o pedido de habilitação de benefício. Dois
dias depois, o Conselho Fiscal Consultivo aprovou o pedido. Dona Euthalia faleceu
em 1976.
Em 1938, a distribuição dos beneficiários dessas diferentes categorias era
a seguinte:28
Tipo de
Pensão
Pensões
do Estado
Pensões do
Decreto
Pensões
de
Prefeituras
Pensões
Mútuo
Nº. de
Beneficiários
1210
103
96
194
Amparo
Pensões Total
1603
Quadro 1 - nº. de beneficiários por tipo de pensão
A primeira sede do IPERGS
A primeira sede do IPERGS foi instalada no dia 19 de janeiro de 1932.
Situava-se nos primeiro e segundo andares do Edifício Imperial, sobre o cinema.
IPERGS. Processo nº01. 1932
SANMARTIN, Afonso. Relatórios de 1938 e 1939 apresentados à S. Excia. O sr. cel.
Osvaldo Cordeiro de Farias Interventor Federal no Rio Grande do Sul. Imprensa Oficial,
1940. Anexo Nº11.
27
28
353
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
O Edifício Imperial mesclava áreas comerciais e residenciais, o que era comum à
época, foi um marco no processo de verticalização promovida no centro de Porto
Alegre a partir do final dos anos 20. O projeto, datado de 1929, é de autoria de
Egon Weindorter e Agnello Lucca e sua construção ocorreu entre 1931 e 1933,
a cargo da prestigiada empresa Azevedo, Moura & Gertum29. Todos os móveis,
máquinas e utensílios foram adquiridos do Banco Pelotense.30
Os fundos e rendas do Instituto provinham da contribuição de 3% da
receita total do Estado; uma contribuição de 7% sobre os vencimentos dos servidores que fossem nomeados a partir da criação do Instituto; das multas administrativas, impostas a funcionários e contratados temporários (espécie de cargo em
comissão da época); das contribuições dos proletários; dos empréstimos e fundos aplicados; de donativos e legados e rendas eventuais. Esses recursos seriam
aplicados no pagamento de pensões e pecúlios assim como em empréstimos aos
funcionários; na aquisição de títulos de renda; em hipotecas; na aquisição de bens
imóveis e nas despesas do Instituto. Aos servidores em atividade, antes da criação
do Instituto, foi oferecida a opção de associarem-se ou não ao IPERGS, contribuindo com percentuais mais baixos.31
Parecer nº 1105/2004 Assunto: imóvel tombado adquirido pelo Município mediante transferência de potencial construtivo Processo administrativo nº 1.051487.03.9 Interessado: Secretaria Municipal da Cultura
30
O Banco Pelotense foi fundado em 1906, diante da necessidade de uma instituição bancária
que garantisse seus recursos de pecuaristas e charqueadores. A partir de 1926, com a crise da
indústria do charque, o Banco entrou em decadência. Foi liquidado em 1931 e incorporado pelo
Banrisul, fundado em 1927.
31 RIO GRANDE DO SUL. Decreto 4.895, de 28 de novembro de 1931. Coletânea da Legislação Específica do Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul 1929 – 1965,
Rio Grande do Sul, 1967. p. 28
29
354
Foto 1.- Primeira equipe do IPERGS 32
A primeira equipe do IPERGS
Os primeiros servidores do IPERGS (Foto 1) foram: Contador – Normenio Mallater; Tesoureiro – Cândido Gentil do Prado; Chefes de Seção – Antônio
Fé Pinto e Dirceu Alves; guarda livros- Almiro Pohlmann; chefes de carteira:
Felizardo Leal D’Ávila, Pedro Julio Garcia e Antão Chagas; arquivista –Pedro
Alcântara rolim; ajudante de arquivista – Utalis Ribeiro Borba; 1º escriturário
– Manoel Odorico Flores Crub; segundos escriturários – José Alípio da Silva,
Archimedes Correia Nunes e Dona Odetta Petersen Machado; contínuo – Felipe Chemale e o carteiro Natalício Figueiró.33 Sobre Odetta Petersen Machado, a primeira funcionária do IPERGS, informa-nos o senhor Ivan Hervê, filho do primeiro
presidente que “foi uma viúva que estava realmente em uma situação muito ingrata
e foi pedir pra minha mãe. Mas ela merecia e foi uma funcionária esplêndida...”.34
Da esquerda para a direita: Sentados – José Alípio da Silva, Pedro Júlio Garcia, Antão Abade
das Chagas, Cândido Gentil do Prado, Egydio Hervê, Dormênio Malatér, Albino Hermilo Pohlmann, Felizardo Leal D’Ávila, Dirceu Alves, Manoel O. Flores Cruz. De pé: Utaliz Ribeiro de
Borba, Octaviano A. dos Santos, José Natalício Figueiró, Odeta P. Machado, Darcy F. Garcia,
Miguel A. Ciardulo, Ten. Nicomedes de Freitas Beccon, Felipe Chemale e Archimedes Corrêa
Nunes. (Acervo IPERGS)
32
O Instituto de Previdência do Rio Grande do Sul. A FEDERAÇÃO, 19 de janeiro de
1932, p. 4.
34
HERVÊ, Ivan. Entrevista concedida aos autores, em 10 de fevereiro de 2012.
33
355
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
As primeiras atividades do IPERGS
Àquela época, além do pagamento de pensões, empréstimos e hipotecas
também faziam parte dos benefícios oferecidos pelo Instituto.
Pensões
As pensões, pagas aos familiares dos servidores falecidos, eram o benefício
fundamental do Instituto. Expressão da moral da época, o Art. 32 do Decreto nº
48.895 impunha aos pensionistas, condição de “levarem vida honesta, pois o concubinato, a libidinagem, a prostituição, a condenação infamante, devidamente comprovados e apurados...” importariam a perda da pensão.35 Diante da denúncia do
comportamento inadequado de pensionista, este deveria dirigir-se ao Instituto para
fornecer prova satisfatória de sua conduta. O pagamento das pensões era feito em
dia e hora determinados, quem não viesse no horário determinado, corria o risco de
só poder receber no mês seguinte. 36
Empréstimos e financiamentos
A aquisição de imóveis próprios era elemento de destaque entre os benefícios concedidos pelos dos institutos de previdência em geral. Egydio Hervê concebia os empréstimos e financiamentos habitacionais como benefício fundamental
aos segurados, mais importantes até que o atendimento à saúde. Segundo o filho de
Egydio Hervê, Ivan:
Ele quis fazer financiamentos baratos, permitir que a classe operária pudesse ter sua residência, ele queria muito isso, ele achava que
dentro do dinheiro que ele tinha era muito melhor fazer isso do
que assistência médica, porque assistência médica ele não ia poder
pagar....37
Por isso, já no início da história do Instituto, eram concedidos empréstimos
para aquisição de imóveis, mesmo antes da constituição de uma carteira predial, que se
generalizou entre os IAPs a partir de 1934.38 De 1932 até fevereiro de 1938 foram firmados 102 contratos hipotecários ou prediais pelo IPERGS, em um universo de 14.547
RIO GRANDE DO SUL. Decreto 4.895, de 28 de novembro de 1931. Coletânea da Legislação Específica do Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul 1929 – 1965,
Rio Grande do Sul, 1967. p. 33
36
Idem p.34
37
Hervê, Ivan. Entrevista concedida aos autores, em 10 de fevereiro de 2012.
38
FEDERAL. Decreto N. 24.488, de 28 de junho de 1934. Diário Oficial. Seção 1 p. 2
http://www.jusbrasil.com.br/diarios/2185188/dou-secao-1-02-07-1934-pg-2 Acesso em:
15/04/2012, 10:21:00.
35
356
segurados.39 O financiamento de imóveis, além de enfrentar uma questão social, era um
meio considerado seguro para aplicar os ativos dos IAPs.
O IPERGS concedia empréstimos pessoais e fiança para servidores. Os empréstimos, porém, chegavam a ser com juros mais altos que a lei estabelecia.40 Os financiamentos eram concedidos mediante requerimentos que os associados encaminhavam
para o setor competente, e após serem instruídos os respectivos processos, eram os
mesmos autorizados pelo Conselho Fiscal Deliberativo do Instituto. Os prazos de financiamento eram bastantes altos, atingindo, em alguns casos – até 300 meses para resgate.41
O processo mais antigo para aquisição de imóvel constante nos arquivos do IPERGS
data de 1938 e foi concedido a Abio Hervê, filho de Egydio Hervê. O imóvel, situado à
rua Lopo Gonçalves, 560, existe ainda hoje.
Primeira forma de atendimento à saúde pelo IPERGS
Em 1936, a Portaria nº 79, instituiu a assistência médica aos funcionários
do IPERGS e seus familiares e aos pensionistas. O serviço era exercido por três
médicos, dois clínicos gerais e um pediatra. Quem desejasse contar com o atendimento faria uma carteira e as despesas médicas seriam descontadas em folha.42
Para ter acesso ao serviço básico de atendimento à saúde os funcionários deveriam
estar em dia com o Instituto.
Seguros de vida
Criado para conceder empréstimos, pensões e pecúlios, em 1932, o IPERGS passou a vender seguros de vida a particulares. Os seguros vendidos pelo
IPERGS dispensando, inclusive, a cobrança de impostos dos segurados e remunerando servidores do Instituto (incluindo seu Diretor Presidente) com percentuais
sobre os recursos obtidos com as vendas de apólices o que afrontava a legislação
em vigor. Os valores mais baixos que os praticados no mercado tornaram o negócio de venda de apólices pelo Instituto bastante lucrativo.43
À atividade de pagamento de pensões, pecúlios e empréstimos, o Instituto
agregou a venda de seguros de vida. Dispensando-se de pagar selos e não cobran SANMARTIN, Afonso. Relatórios de 1938 e 1939 apresentados à S. Excia. O sr. cel.
Osvaldo Cordeiro de Farias Interventor Federal no Rio Grande do Sul. Imprensa Oficial,
1940. p.13
40
Idem. p.13
41
MOLINA, Vecchio José. Política Habitacional do IPERGS. 1974 p.21
42
IPERGS. Portaria nº 79, de 4 de novembro de 1936.
43
SOARES, Dr. João; FILGUEIRAS Aldo e SANMARTIN, Dr. Affonso. Relatório Apresentado ao Exmº Sr. Dr. Interventor Federal. Datilografado, 1938. p.16
39
357
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
do imposto sobre o valor dos prêmios, o IPERGS saiu a campo vendendo apólices
para além do público que, inicialmente, seria o seu alvo, gerando contestações do
segundo presidente do IPERGS.
Empréstimos para prefeituras
Além de empréstimos a servidores, o IPERGS passou a emprestar dinheiro a prefeituras para obras e equipamentos. Foi o caso dos empréstimos às
Prefeitura de São Luiz Gonzaga e Herval. Para São Luiz Gonzaga o empréstimo
foi destinado à compra de máquinas para usina elétrica, para Herval, o destino do
dinheiro foi a reconstrução de Usina Elétrica.44 Os empréstimos serviam como
forma de capitalização dos recursos da previdência e colaboravam para o desenvolvimento do estado.
A estrutura do IPERGS
Inicialmente, o IPERGS contou com uma estrutura bastante limitada,
tanto em termos numéricos quanto em termos técnicos.
Em 1934, com a nomeação de Rubem Weyne, a contabilidade do Instituto passou a seguir um plano geral pré-estabelecido. Data dessa época, também, a mecanização dos serviços, através da utilização do processo “Hollerith”, precursor dos sistemas de processamentos de dados. As dificuldades para
encontrar registros anteriores a essa época podem ser consequência dessa
realidade.
A modernização relaciona-se com o processo geral de profissionalização da previdência social, expresso na constitucionalização do direito aos
benefícios previdenciários, protegidos pelo Estado. Problemas comuns nos
dias de hoje já existiam no ambiente de trabalho daquela época. Em portarias
de 1936, a direção do Instituto determinava que era vedado aos funcionários
“manterem palestra entre si e com estranhos, atenderem assuntos particulares
por telefone etc”. A mesma portaria mostrava preocupação com a presença
de agiotas, cobradores e vendedores na hora do expediente. Em outra advertia
o tesoureiro sobre seu comportamento irritadiço.45 As comunicações oficiais
eram transmitidas pelo porteiro aos servidores, que davam ciência das comunicações assinado na mesma
FLORES DA CUNHA, José Antônio. Relatório ao Exmo. Sr. Dr. Getúlio Dornelles
Vargas. Porto Alegre, Livraria do Globo, 1935. Tabela.
45
IPERGS. Portaria nº 79, de 4 de novembro de 1936.
44
358
Em 1938, o quadro de servidores do IPERGS foi devidamente formalizado, com 80 cargos assim definidos: 46
Diretoria
1- Diretor Presidente; 1- Diretor; 1- Oficial de Gabinete; 1- 2º Datilógrafo;
1- Contínuo.
Contabilidade
1 – Chefe de Contabilidade; 1- Sub-chefe de Contabilidade; 7- Chefes de Seção; 8- Aux. Classe A; 9- Aux. Classe B; 5- aux. Classe C; 9- Aux. Classe D; 9Aux. Classe E; 2- 1º Datilógrafos; 3- 2º Datilógrafos;1- Arquivista Almoxarife;
1- Aj. De Arquivista Almoxarife; 1 Porteiro; 3 Serventes; 1 Enc. do Elevador;
1 Estafeta
Tesouraria
1 – Tesoureiro; 2- Fiéis de Tesoureiro; 1- Servente.
Consultoria Jurídica
1 – Consultor Jurídico
Departamento
Atuarial
1 – Atuário
Departamento
de Engenharia
1 – Engenheiro
Assistência Médica
2 – Médicos
Quadro 1 - Quadro de servidores IPERGS – 1937 Em 1939, será realizado o primeiro
concurso para compor o quadro efetivo do IPERGS.
A nova sede do IPERGS
No ano de 1934 a sede do IPERGS é transferida para o edifício Bier e
Ullman na Rua Uruguai, 91(Foto 2). O prédio, cujo projeto é de autoria do arquiteto Theo Wiederspahn, foi construído em 1929 e existe ainda hoje, tendo sido
acrescido de mais andares, mas guardando seu aspecto original.
Em 1936, o IPERGS adquiriu, terreno situados na esquina das Ruas Andrade Neves e Borges de Medeiros, onde seria construída a nova sede.47 Em 1937,
foi realizada concorrência pública para a construção da nova sede do IPERGS. O
certame foi vencido pela firma Azevedo, Moura & Gertum, tradicional construtora
de obras públicas de Porto Alegre, com projeto de autoria de Fernando Corona.48
RIO GRANDE DO SUL. Decreto 7.217 de 11 de abril de 1938. Coletânea da Legislação
Específica do Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul 1929 – 1965, Rio Grande do Sul, 1967. p.70
47
SANMARTIN, Afonso. Relatórios de 1938 e 1939 apresentados à S. Excia. O sr. cel.
Osvaldo Cordeiro de Farias Interventor Federal no Rio Grande do Sul. Imprensa Oficial,
1940. p.15
48
Idem. p.16
46
359
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
A construção da nova sede do IPERGS é uma história à parte. Apesar de
a escolha inicial ter recaído sobre o projeto de Fernando Corona, posteriormente,
foi encomendado outro projeto a Oscar Niemeyer. Todavia, nenhum dos projetos
foi efetivado. Em 1949 o IPERGS adquiriu uma sede própria no número 922 da
Av. Borges de Medeiros. Na década de 60, o terreno de esquina, onde foi vendido
à Caixa Econômica Estadual. E os recursos utilizados para a construção da sede
atual (Borges de Medeiros, 1945).
Foto 2 - Inauguração da Sede do IPERGS, Edifício Bier e Ullman, 1934. Ao centro, o General
Flores da Cunha. (Acervo IPERGS)
O Estado Novo – início de um novo momento
Em 10 novembro de 1937, um golpe comandado por Getúlio Vargas instala o Estado Novo. Inaugura-se um regime autoritário que consolida as propostas
que vinham sendo desenvolvidas desde 1930. Os setores com inclinações liberais
que compunham o Governo Vargas foram derrotados, bem como os dois movimentos anti-liberais mais radicalizados: a Ação Integralista Brasileira (AIB) de extrema-direita e a Aliança Nacional Libertadora (ANL), composta por nacionalistas,
socialistas e comunistas. Nesse processo, ocorre o rompimento de Flores da Cunha
com o governo central e sua consequente destituição da condição de Interventor
Federal no Estado do Rio Grande do Sul. Em seu lugar é nomeado Manuel de Cerqueira Daltro Filho. Para a presidência do IPERGS, substituindo Egydio Hervê, é
indicado o contador Afonso Sanmartin, iniciando um período de aprofundamento
institucional do IPERGS, preparando o Instituto para um novo momento.
360
Referências
Monografias
BRASIL. Ministério da Previdência Social. Panorama da Previdência
Social Brasileira. 3 ed. Brasília:
2009.p..80
BRASIL,Ministério da Previdência Social.Previdência Social: Reflexões
e Desafios.Brasília:2009. 232p.
FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. Editora da Universidade de
São Paulo, Imprensa Oficial do
Estado, 2001. BRASIL. 328p.
MOLINA, Vecchio José. Política Habitacional do IPERGS. 1974. Trabalho Acadêmico.
MONTEIRO, Lorena Madruga. Os Católicos Gaúchos e a Construção
da Ordem Política: A Liga Eleitoral Católica. Revista Brasileira de
História das Religiões – Ano I, no. 2 – ISSN 1983-2850. Disponível
em: http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pdf1/05LorenaMadrugaMonteiro.pdf. Acesso em: 13 de fevereiro de 2012, 15:25:30.
PANDOLFI, Dulce (Org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Ed.Fundação Getulio Vargas, 1999. 345p.
RIO GRANDE DO SUL (Estado). Secretaria da Administração e dos
Recursos Humanos. Departamento de Arquivos Públicos. Fontes para
a História Administrativa do Rio Grande do Sul: A Trajetória das
Secretarias (1890-2005). Porto Alegre, CORAG, 2006. 230p.
SOCIEDADE AMPARO MÚTUO DOS FUNCIONÁRIOS E EMPREGADOS PÚBLICOS ESTADUAIS E MUNICIPAIS DO RIO GRANDE DO SUL. Estatutos. Porto Alegre: Officinas Gráficas da Livraria do
Globo.
Jornais
HERVÊ, Egydio. Correio do Povo, Porto Alegre, 9 de agosto de 1931.
Entrevista.
(Acervo IPERGS - cópia do jornal)
O Instituto de Previdência do Rio Grande do Sul. A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 19 de janeiro de 1932. (Acervo Museu Hipólito José da Costa)
O Instituto de Previdência do Rio Grande do Sul. Diário de Notícias,
Porto Alegre, 9 de agosto de 1931.(Acervo Museu Hipólito José da Costa)
361
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Decretos, Leis, Atos Normativos e Documentos Oficiais
FLORES DA CUNHA, José Antônio. Relatório ao Exmo. Sr. Dr. Getúlio Dornelles Vargas. Porto Alegre, Livraria do Globo, 1935.
IPERGS. Parecer do Consultor Jurídico Darcy Azambuja nº 8 de 18
de agosto de 1932.
IPERGS. Portaria nº 79, de 4 de novembro de 1936.
IPERGS. Processo nº01. 1932
PORTO ALEGRE. Procuradoria Geral do Município. Parecer nº
1105/2004. Porto Alegre. Disponívelem http://www.anpm.com.br/fotos/pareceres/P1105_04.pdf. Acessado em 14 de mar. De 2012.
RIO GRANDE DO SUL. Lei 511/29, de 23 de dezembro de 1929.
Coletânea da Legislação Específica
do Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul 1929 – 1965,
Rio Grande do Sul, 1967.
RIO GRANDE DO SUL. Decreto nº 4.895, de 28 de novembro de
1931. Coletânea da Legislação
Específica do Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul
1929 – 1965, Rio Grande do Sul, 1967.
RIO GRANDE DO SUL. Decreto n° 5.161 de 23 de novembro de
1932. Coletânea da Legislação Específica do Instituto de Previdência do
Estado do Rio Grande do Sul 1929 – 1965, Rio Grande do Sul, 1967.
RIO GRANDE DO SUL. Decreto nº 7.217 de 11 de abril de 1938. Coletânea da Legislação Específica do Instituto de Previdência do Estado do
Rio Grande do Sul 1929 – 1965, Rio Grande do Sul, 1967.
RIO GRANDE DO SUL. Decreto nº 24.488, de 28 de junho de 1934.
Coletânea da Legislação Específica do Instituto de Previdência do Estado
do Rio Grande do Sul 1929 – 1965, Rio Grande do Sul, 1967.
SANMARTIN, Afonso. Relatórios de 1938 e 1939 apresentados à S.
Exmo. O sr. cel. Osvaldo Cordeiro de Farias Interventor Federal no
Rio Grande do Sul. Imprensa Oficial, 1940.
SOARES, Dr. João; FILGUEIRAS Aldo e SANMARTIN, Dr. Affonso.
Relatório Apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Interventor Federal. Datilografado, 1938.
VARGAS, Getúlio. Mensagem do Presidente do Estado à Assembleia
Legislativa.1930.
Disponível em: http://www.seplag.rs.gov.br/upload/1930_Getulio_Vargas.
pdf 16:05:20.
362
Entrevista
HERVÊ, Ivan. Entrevista concedida aos autores, em 10 de fevereiro de
2012.
Fotos
Foto 1- Equipe IPERGS - Acervo IPERGS
Foto 2 - Inauguração da Sede do IPERGS, Edifício Bier e Ullman, 1934. Acervo
IPERGS
363
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
O Gênero na Justiça: o caso do Juízo dos Órfãos de Porto Alegre.
José Carlos da Silva Cardozo1*
Resumo: Pesquisar a família porto-alegrense, no início do século XX, tendo por meio a
Justiça é refletir sobre a relação entre os papeis sexuais socialmente construídos. O gênero
estava presente na Justiça e, conseqüentemente, utilizado pelos sujeitos que pleiteavam
a guarda de um menor de idade. Este texto, à luz da História Social, procura identificar
como que se apresentavam essas relações nos processos judiciais de tutela, abertos nos
anos de 1900 a 1927, na cidade de Porto Alegre. Dessa forma, evidenciando a situação
delicada que a mulher adulta tinha perante o homem adulto quando decidia pleitear a tutela de uma criança ou adolescente e a preocupação que Justiça e sociedade tinham para
com as meninas.
Palavras-Chave: Gênero - Juízo dos Órfãos - Porto Alegre.
E
m estudos anteriores já refletimos sobre a figura da menina e da
mulher em relação com a Justiça, mas não de forma sistemática
e com o foco exclusivo na relação entre os papéis sexuais socialmente construídos2. Assim, não é retórico o uso do termo gênero neste texto, pois
estamos justamente fugindo do determinismo biológico da figura da menina ou
mulher, uma diferença sexual em relação ao menino e homem, para reconhecer
que se trata de uma diferença socialmente construída, diferença que se refletia na
Justiça3.
Há mais de cinco anos, tenho a oportunidade de dedicar-me a investigação do Juízo dos Órfãos em Porto Alegre e neste período, tendo por foco mais
* Historiador (UNISINOS), Cientista Social (UFRGS), Mestre e Doutorando em História
Latino-Americana (UNISINOS). Editor da Revista Brasileira de História & Ciências Sociais e
da Revista Latino-Americana de História. Bolsista Capes/MEC.
2
CARDOZO, José Carlos da Silva. O melhor para quem? O Juizado de Órfãos e o discurso
de valorização e proteção aos menores de idade no início do século XX. Tempo e Argumento,
UDESC. v. 3, n. 2, p. 210-229, 2011. CARDOZO, José Carlos da Silva. O Juizado de Órfão de
Porto Alegre: um reflexo da sociedade. In: APERS. VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo
Público do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Corag, 2010. p. 39-52.
3
Para uma discussão mais aprofundada sobre o gênero na história ver: SOIHET, Rachel. História das mulheres. In: CARDOSO, Ciro Flamarion S.; VAINFAS, Ronaldo. (Org.). Domínios
da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 275-296. TILLY,
Louise. Gênero, história das mulheres e história social. Cadernos Pagu, UNICAMP, n. 3, p.
29-62, 1994.
1
365
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
de 80 anos da atuação dessa instituição na capital do Rio Grande do Sul (meados
do século XIX até meados do século XX), tomando como fonte principal de estudo os processos judiciais de tutela de menores de idade, verifico a desvalorização
que a mulher recebia da sociedade e, conseqüentemente, do Judiciário quando esta
comparecia perante a Justiça com finalidade de receber a tutoria de um menor e a
grande preocupação e valorização que as menores de idade recebiam por parte da
sociedade e do Judiciário.
Com o foco nesta relação, pretendemos apresentar como que o gênero
figura nos processos de tutela do Juízo dos Órfãos de Porto Alegre nos anos de
1900-1927.
Histórias parecidas ou decisões presumíveis?
No dia 21 de setembro de 1915, o sargento do exército, Adrubal Quintino
do Rego, entrou com um pedido para resgatar seu filho, Epaminondas4, de três
anos e três meses de idade, no 3º Cartório do Juízo de Órfãos de Porto Alegre,
contra sua esposa Laura da Silva Rego com quem se encontrava a criança.
O que estava acontecendo? Por que o marido entrou com um processo
contra sua própria esposa?
Adrubal já não morava com Laura havia mais de um mês e, em virtude da
separação, queria a guarda de seu filho. O pai da criança não desejava que o menino
fosse educado por sua mulher, que, conforme suas alegações, tinha “vida irregular”,
ou mesmo por sua sogra e suas duas cunhadas, que eram de “vida também duvidosa5”,
como faz questão de enfatizar em sua petição. Todas elas, Laura, sua mãe e irmãs,
viviam juntas na Rua João Alfredo6, número 141.
Nota-se que havia problemas na relação entre o suplicante e sua esposa,
mas os detalhes destes não ficaram registrados no processo, não sendo aprofundados nem por parte do marido, nem por parte de sua mulher. Acrescente-se que
ambos não estavam separados judicialmente, conforme depreendemos da fonte
consultada, mantendo, dessa maneira, os vínculos matrimoniais.
RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 3ª Vara.
Entrega de Menor. Proc. n° 1051 de 1915. [manuscrito]. Porto Alegre, 1915. Localização:
APERS.
5
RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 3ª Vara.
Entrega de Menor. Proc. n° 1051 de 1915. [manuscrito]. Porto Alegre, 1915. Localização:
APERS. f. 2.
6
Foi uma rua em que moravam populares; suas casas eram construídas à margem do Riacho,
quase sem quintal. Ver: FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. 4. ed. Porto
Alegre: Editora da UFRGS, 2006.
4 366
No entanto, nesse momento, o que nos interessa – e que é o cerne desse
processo – não são os motivos que levaram Adrubal ao Judiciário, nem mesmo a
situação civil de nossos atores sociais, mas, sim, analisar a atuação dos juristas que
trabalharam no caso.
No mesmo dia da abertura do processo, o Juiz determinado para acompanhar os trâmites foi Hugo Teixeira. O Juiz designado pede, então, vistas ao Curador Geral de Órfãos7, Doutor Ariosto Pinto, que, no dia seguinte, dá o parecer
sobre o caso em tela.
No referido parecer, e dado que Adrubal e Laura ainda se encontravam
legalmente casados, o Curador argumenta que, somente após a separação oficial
dos cônjuges será possível determinar com quem ficará a guarda do filho menor.
Sua decisão teve por base o Decreto 181, de 1890, artigo número 90 que, com relação ao divórcio, estabelecia que, com “a sentença do divórcio litigioso, mandará
entregar os filhos comuns e menores ao cônjuge inocente e fixará a quota com que
o culpado deverá concorrer com a educação deles”.
Afirmava ainda que a aplicação do dispositivo acima somente poderia ser
utilizada na sentença proferida em divórcio amigável ou litigioso. Dessa forma,
tendo em vista que não havia sido procedida a separação legal ou a comprovação
desse fato, o Curador opinava pelo indeferimento do pedido do solicitante Adrubal
Quintino do Rego.
Entretanto, o Juiz Hugo Teixeira não compartilhou da mesma opinião do
Curador Geral. No dia vinte e quatro do mesmo mês, emite sua decisão reportando
ao fato que, se o pai ainda continuava casado legalmente com a mãe da criança, na
“vigência do casamento, o pátrio poder e, consequentemente, a posse e a administração dos filhos
maiores de 3 anos8” caberia ao pai. Com essa decisão, que contrariava a interpretação
do Curador, pela qual o menor deveria continuar com sua mãe, o Juiz mandou que o
Oficial de Justiça executasse a decisão de busca e apreensão do menor Epaminondas e o
entregasse ao seu pai, o sargento do exército Adrubal Quintino do Rego. Nesse mesmo
dia, o oficial Arthur Paulino da Rosa fez a apreensão do menor Epaminondas na casa de
Laura Rego e o entregou ao pai da criança.
O processo do menor Epaminondas é exemplar para refletirmos sobre um
tema fundamental, que é o da interpretação dada pelos juristas sobre os casos que
eram encaminhados ao Juízo dos Órfãos, tendo o seu desfecho definido a partir
da decisão de seus membros. No exemplo do caso arrolado, o Juiz não fez ou requisitou qualquer investigação sobre a pessoa do pai do menor ou a respeito da
Promotor Público do Juízo dos Órfãos.
RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 3ª Vara.
Entrega de Menor. Proc. n° 1051 de 1915. [manuscrito]. Porto Alegre, 1915. Localização:
APERS. f. 6.
7
8
367
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
veracidade das afirmações deste, ou mesmo do tratamento dado ao menor por sua
mãe, avó ou tias. Usando de suas atribuições, que lhe davam autonomia e independência, o Juiz interpretou, arbitrou e aplicou, de acordo com suas convicções, o
que a lei regulamentava sobre a posse da criança, de forma direta.
Em outro caso, o empregado da Companhia de Energia Força e Luz, Manoel Joaquim Corrêa entrou, em quinze de março de 1916, com um processo semelhante ao de Adrubal Rego, requerendo a entrega de sua filha, Juracy9 de “quase
dois anos” de idade, que se achava em posse de sua esposa Leonilla Marcolina da
Trindade.
Casados legalmente desde 23 de março de 1913, dizia Manoel Corrêa que
havia “um mês mais ou menos” estava afastado de sua mulher. A separação havia decorrido do fato de Manoel ter ido morar com sua mãe, Maria Florisberta da Conceição, na Rua Miguel Teixeira10, número 6. De acordo com o que se depreende
do processo, em princípio, parece que sogra e nora não se davam muito bem. Pelo
menos essa era a alegação de Manoel e, devido a esse “pretexto”, marido e mulher
se separaram.
A fonte compulsada ainda nos informa que Leonilla Trindade continuou
morando no antigo endereço do casal que, pasme, situava-se a algumas dezenas
de metros adiante, no número 9, da mesma rua em que a sogra residia. Em outras
palavras, a documentação nos revela que, de fato, ambas viviam na mesma vizinhança, em locais muito próximos.
Esse processo, apresentado ao Juízo dos Órfãos, ainda introduz uma quarta figura, Benjamin de Oliveira Costa, “homem solteiro”, que, segundo consta, já morava com o casal antes da separação. A inclusão desse nome, que só vem à tona na
alegação do pai da menor, não foi dada ao acaso. De acordo com os padrões sociais
e morais vigentes nos anos iniciais do século XX, era embaraçoso e, no mínimo,
suspeito e constrangedor para uma mulher separada viver, sob o mesmo teto, com
um “homem solteiro”. Assim, com essa declaração, Manuel Corrêa atingia diretamente a honra de sua esposa.
RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 3ª Vara.
Apreensão de Menor. Proc. n° 1053 de 1916. [manuscrito]. Porto Alegre, 1916. Localização:
APERS.
10
A rua, como o longo perímetro da antiga Chácara da Baronesa de Gravataí, foi, por muitos
anos, a moradia de famílias populares; essa rua seguiu o caminho humilde do Areal da Baronesa
até que os trabalhos de modernização (urbanização, calçamento e canalização do Riacho) a melhorassem, por volta de 1950. Ver: FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. 4.
ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006.
9
368
Com base nesse(s) “irregular[es] procedimento[s]11” de Leonilla, que não quis
acompanhar seu marido e insistiu em continuar vivendo sob o mesmo teto com
um homem solteiro, esta incorria em um comportamento pouco adequado, pois,
segundo as alegações de seu marido, além de estar “atirada completamente na prostituição”, acrescentava que sua filha, de quase dois anos de idade, estaria “sofrendo as
consequências da péssima existência que leva a mãe pelo nocivo caminho em que [se] enredou”.
Sem dúvida, essas alegações tinham a intenção de sensibilizar, definitivamente, o
Juiz encarregado de tratar do caso.
Nas páginas que compõem o processo, Manoel Corrêa afirmava que
queria cuidar da menina Juracy, educar a pequena e “assegurar-lhe o futuro”. Para
mais, adiantava que, quando recebesse sua filha, esta seria “confiada aos cuidados de
sua mãe12”, com quem dividia o mesmo teto. Com o intuito de confirmar o fato
de ser casado com a ré e de ser pai da menor, o suplicante anexou ao processo as
respectivas certidões de casamento e de nascimento.
No mesmo dia da abertura do processo, o Juiz Doutor João Soares pede
vistas ao Curador Geral dos Órfãos Doutor Ariosto Pinto. Ao receber o processo, no mesmo dia, o Curador Geral emitiu seu parecer, que transcrevemos
abaixo, em sua íntegra:
Em vista da certidão de folhas cinco [Certidão de Nascimento], constitutiva da prova de que Juracy é menor de dois anos, atendendo o estabelecido
no art. 96 do Dec. 181 de 24 de janeiro de 1890, outorgando à mãe, em
qualquer caso, a faculdade de conservar consigo os filhos até a idade de 3
anos, sem distinção de sexo, opino pelo indeferimento da petição retro13.
Dessa forma, o Curador deixa claro que a mãe da menor deverá continuar com a guarda de sua filha.
Será que as alegações do pai não foram suficientes para que o Juízo dos
Órfãos avaliasse a situação e julgasse as acusações em favor dele? Será que esse
processo é um caso “especial” em que o pai, por mais que agredisse a integridade
da mãe, não ficaria com a guarda da criança, com base na argumentação de que a
mãe teria “em qualquer caso” a guarda de seus filhos menores de 3 anos, independente de seu comportamento frente à sociedade?
RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 3ª Vara.
Apreensão de Menor. Proc. n° 1053 de 1916. [manuscrito]. Porto Alegre, 1916. Localização:
APERS. f. 2.
12
RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 3ª Vara.
Apreensão de Menor. Proc. n° 1053 de 1916. [manuscrito]. Porto Alegre, 1916. Localização:
APERS. f. 2v.
13
RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 3ª Vara.
Apreensão de Menor. Proc. n° 1053 de 1916. [manuscrito]. Porto Alegre, 1916. Localização:
APERS. f. 6.
11
369
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Não. Pelo que podemos constatar, a posição do Doutor João Soares, Juiz
do caso, foi diferente. No dia 21 de março do mesmo ano de 1916, este emitiu a
seguinte decisão:
Entre as normas reguladoras da sociedade conjugal, compiladas no art. 56
do Dec. n. 181 de 24 de janeiro de 1890, compreende se ao que dá ao chefe
da família o encargo de zelar a educação dos filhos e só por sua morte por ter
incidido em sua incapacidade é que passa à mulher o exercício daquele poder.
Assim sendo, todo e qualquer ato que importe em extinção ao exercício do
pátrio poder deve ser cumpridamente provado, não se podendo impedir que
o marido, como chefe da família, reclame a posse dos filhos, desde que a ele
compete o patrio poder durante a vigência do casamento.
O Juiz Dr. João Soares ainda acrescenta que o parecer do Curador Geral é
adequado somente nos casos em que “por efeito de sentença em ação de divórcio ou de nulidade
de casamento14 [...] Fora destes casos, subsistindo a sociedade conjugal, não se pode negar ao marido a
posse dos filhos uma vez que o assiste o exercício do pátrio poder15”. Com essa posição, o Juiz de
Órfãos defere o pedido de entrega da menor Juracy ao seu pai Manoel Corrêa, o que foi
realizado no dia seguinte, pelo Oficial de Justiça.
Dessa forma, por mais que a intenção do Curador Geral de Órfãos, nos
dois casos, fosse de manter as crianças com suas progenitoras, ficou evidente que
os Juízes de Órfãos, baseados no mesmo corpo de leis, encontravam o necessário
respaldo para poder manter as crianças com o pai, privilegiando a figura masculina
que integrava a antiga relação.
Ao trazer à luz esses casos, em que pese o fato de que não constituem processos de tutelas (nossa fonte principal), procuramos chamar a atenção para o fato
de que nos defrontamos com posições judiciais conflitantes, as quais dificilmente
aparecem nos 823 processos de tutela abertos entre os anos de 1900 a 1927, por
serem estes, na grande maioria dos casos, resolvidos sumariamente, sendo 81%
desses deliberados em menos de 7 dias16, fato que reflete as poucas chances que
as mulheres, mesmo sendo mães, tinham para disputar e receber a tutela de um
menor, pois essas deveriam comprovar seu estado de “honestidade” social, o que
alongaria os processos por período maior.
O futuro desses menores e sua formação estavam nas mãos do Juizado de
Órfãos, esses pequenos eram submetidos a decisões que, muitas vezes, não levavam um dia para serem tomadas.
Sublinhado como no original.
RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 3ª Vara.
Apreensão de Menor. Proc. n° 1053 de 1916. [manuscrito]. Porto Alegre, 1916. Localização:
APERS. f. 7.
16
CARDOZO, José Carlos da Silva. O Juízo dos Órfãos e a organização da família por meio
da tutela. História Social, UNICAMP, n. 20, 2011, p. 201-220.
14 15
370
As crianças eram lançadas no meio de disputas que confrontam
não só marido e mulher, como também envolviam avós e outros indivíduos não aparentados. Impotentes, as crianças ficavam
submetidas à vontade e aos desígnios dos curadores e juízes, que
decidiriam os seus destinos17.
As crianças eram, no início do processo, o motivo principal das ações, mas,
no decorrer deste, acabavam como figuras secundárias, sem voz, sem vontade, em
que os adultos, juristas ou não, determinavam a vida presente ou futura do menor.
É notável o poder de decisão desse órgão jurídico sobre a vida de tantos
menores e de suas famílias. O campo jurídico possuía em seus domínios a compreensão do que era melhor para as crianças; ficar com parentes consanguíneos ou
com desconhecidos. Para tornar os processos mais rápidos, os juristas não realizavam investigações mais detalhadas; a maioria dessas decisões (81% dos processos) eram
tomadas em menos de 1 semana. Somente nos casos em que houvesse a contestação
da decisão do Juizado dos Órfãos é que os autos se alongavam por períodos maiores,
mas, mesmo estes tinham, na maioria das vezes, seu desfecho em até um mês. Frente a
este procedimento de brevidade que agilizava a responsabilidade sobre a guarda de um
menor, temos um padrão de atuação favorável aos homens.
Dessa forma, nota-se que havia uma práxis pelos tutores do sexo masculino,
evidenciado no gráfico 1, demonstrando que a maioria dos tutores eram homens: dentre
os 857 indivíduos, de 1900 a 1927, que receberam a tutela de um menor, 709 (83%) eram
do sexo masculino e apenas 113 (13%) eram do sexo feminino.
SCOTT, Ana Silvia Volpi; BASSANEZI, Maria Silvia C. No fundo do baú: procurando as
crianças imigrantes nas fontes documentais paulistas. In: RADIN, José Carlos (Org.). Cultura e
identidade italiana no Brasil. Joaçaba/SC: UNOESC, 2005, p. 175.
17
371
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Gráfico 1: Sexo do Tutor, baseado nos processos de tutela de 1900 a 1927 depositados no APERS.
Quais as razões para isso? Essa era um sociedade do tipo patriarcal: as mulheres
não tinham muitas possibilidades de questionar o modelo que, de certa forma, continua
vigente, de a família ser nuclear, conjugal, monogâmica, buscando a disciplinaridade sexual18. Assim, as mulheres, de forma geral, receberam atenção especial, pois elas eram
consideradas pela sociedade do século XX como sendo
[...] basicamente, perigosas. Elas são uma alteridade inquietante,
a marcar, pela sua natureza mutável um risco permanente para a
sociedade da qual deveriam ser o esteio. A ameaça reside, basicamente, no seu poder de ação, sedução, autodeterminação, o que
mostrava que, não sendo postas sob controle, as mulheres ameaçavam toda a ordem social19.
As mulheres porto-alegrenses, no período em estudo, sempre estiveram em
linha tênue perante a Justiça, seja pelas Ordenações Filipinas, em que as mães deveriam comprovar sua condição de “honestidade” e as mães e avós, viúvas ou sepa-
COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. 5. ed. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 2004.
19
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os sete pecados da capital. São Paulo: Editora Hucitec,
2008, p. 12.
18 372
radas, que pleiteassem a tutoria de um filho ou neto não poderiam recasar-se20, seja
com o Código Civil Brasileiro21. Esse Código, que começa a vigorar em 1917, substituindo as Ordenações como código jurídico, e, em seu artigo 395, inciso 3, aponta
que perde o pátrio poder aquele progenitor “que praticar atos contrários a moral e
aos bons costumes”. Mesmo que o artigo 395 ampliasse a antiga condição de vigilância para o homem, quando este era ausente nas Ordenações, continuava a valer, de
forma indireta, o antigo preceito. O caso do menor Damião Alves22 é um exemplo
que demonstra isso: sua mãe, por haver contraído segundas núpcias, informa o Juiz
João Pompilio de Almeida Filho do fato e solicita um tutor para seu filho; após sete
dias da realização do pedido, é investido o Sr. Farqueiro Saraiva como tutor do menor
Damião. Cabe acrescentar que as viúvas (mãe ou avó) que desejassem obter a tutela
de um menor, deveriam ainda renunciar ao Velleano23, ou seja, mais uma complicação
para as mulheres obterem a guarda.
Dos 1.290 menores que tiveram seus nomes arrolados nos processos de
tutela, entre os anos de 1900 a 1927, encontramos uma preferência por menores
do sexo feminino, como aponta o gráfico 3, na proporção de 55% (711 meninas).
ALMEIDA, Cândido Mendes de. Código Filipino ou Ordenações e leis do Reino de
Portugal, recompiladas por mandado do rei D. Philippe I. 14. ed. Rio de Janeiro: Tipografia do Instituto Philomathico, 1870, liv. 4º, tit. 102 §4.
21
ALVES, João Luiz. Código Civil: da República dos Estados Unidos do Brasil: promulgado
pela Lei n. 3071, de 1 de janeiro de 1916. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1917.
22
RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 1ª Vara.
Tutela. Proc. n° 390 de 1923. [manuscrito]. Porto Alegre, 1923. Localização: APERS.
23 A Lei do Velleano era um benefício dado às mulheres em que elas não poderiam ser fiadoras
e nem obrigadas por outros a serem. A renúncia era fundamental, pois, se o menor possuísse
bens, a avó deveria, como todo o tutor de menor, realizar depósito no Cofre dos Órfãos como
forma de garantia; caso utilizasse de forma imprópria os bens ou rendimentos do menor, este
estaria com uma reserva no Cofre dos Órfãos quando atingisse a maioridade; ou, mesmo que
o menor não possuísse bens, ela deveria estar apta a ser em razão de alguma necessidade do
menor.
20
373
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Gráfico 2: Sexo dos Menores, baseado nos processos de tutela de 1900 a 1927 depositados no
APERS.
Acreditamos que esse número ligeiramente superior não se deu de forma
fortuita. Se as mulheres adultas eram, como vimos, muito depreciadas para o cargo
de tutor de uma criança ou adolescente no início do século XX, as menores de idade
chegam a se sobrepor aos meninos por conta, talvez, da concepção de que deveriam
ficar “... resguardadas em casa, se ocupando dos afazeres domésticos, enquanto os
homens asseguravam o sustento da família trabalhando no espaço da rua”24; assim,
não se desvirtuariam ou se mostrariam ao espaço público correndo o risco de serem
influenciadas por ele e, assim, corrompidas25. Embora essa não fosse a prática fiel,
tendo em vista que muitas mulheres trabalhavam fora do espaço privado – a casa –,
os suplicantes a tutor valorizavam esse tipo de moralidade em suas petições, bem
como os juristas que avaliavam os casos.
Mesmo com essas restrições algumas mães conseguiram encontrar uma
“brecha na lei” para continuar com sua prole. Como foi o caso da menor Ernestina
de Azambuja Moré26.
FONSECA, Cláudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: DEL PRIORE, Mary (Org.); BASSANEZI, Carla (Coord. de Textos). História das mulheres no Brasil. 9. ed. São Paulo: Contexto,
2008. p. 517.
25
ESTEVES, Martha Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio
de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
26
RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 2ª Vara.
24
374
Esse caso exemplifica a exceção entre muitos outros desse período. Nessa
ação, sua mãe Arabella Bittencourt de Azambuja, viúva do Alferes Ernesto Emmanuel Moré, pede ao Juiz Hugo Teixeira que dê um tutor para sua filha, pois ela,
Arabella, havia contraído segundas núpcias. Essa era a determinação da lei e, segundo a legislação, perderiam o direito da Tutela as mães e avós que, como vimos,
se casassem novamente ou que deixassem de viver “honestamente”. Nesses casos,
essas mulheres não poderiam reaver a tutela ainda que enviuvassem novamente27.
Ao se casar em segundas núpcias, portanto, Arabella, perdia o pátrio poder
sobre a filha. Nessa contingência, ela, como mãe da menor, indicou um familiar
para desempenhar o papel de tutor e, quem sabe, dessa forma, ela não perderia
contato com a menor e nem esta perderia a referência familiar. Assim, indicou seu
irmão, casado, Octavio Bittencourt de Azambuja. Uma estratégia legal encontrada
por ela para não perder sua filha para outra pessoa alheia a família.
Mesmo havendo essa possibilidade, muitas mulheres tiveram dificuldades
de manter sua prole consigo.
A situação de crise da estrutura familiar é notória em 185 situações que estão relacionadas exclusivamente à figura feminina, seja pelo motivo de que a “mãe
tem que se retirar da cidade ou se retirou”, seja pela “doença da mãe”, fica presente
a possibilidade de essas mulheres estarem sozinhas a cuidar de seus filhos, sem a
presença do marido ou mesmo de outro familiar que pudesse acautelar a criança,
mesmo que informalmente.
A mulher pobre, cercada por uma moralidade oficial completamente desligada de sua realidade, vivia entre a cruz e a espada.
O salário minguado e regular de seu marido chegaria a suprir as
necessidades domésticas só por um milagre. Mas a dona de casa,
que tentava escapar à miséria por seu próprio trabalho, arriscava
o pejo da ‘mulher pública’28.
A mulher, como afirma Cláudia Fonseca, estava entre a “cruz e a espada”,
teria que se ajustar às condições impostas pela sociedade, mesmo que isso significasse passar por adversidades econômicas. Contudo, se as necessidades fossem
maiores que as possibilidades de suportar as adversidades, ela tinha que procurar
novas formas para sobreviver, mesmo que isso significasse ser qualificada como
“mulher da vida” ou “mulher pública”, rótulos atribuídos pela sociedade por ela
Tutela. Proc. n° 611 de 1915. [manuscrito]. Porto Alegre, 1915. Localização: APERS.
27
ALMEIDA, Cândido Mendes de. Código Filipino ou Ordenações e leis do Reino de
Portugal, recompiladas por mandado do rei D. Philippe I. 14. ed. Rio de Janeiro: Tipografia do Instituto Philomathico, 1870, liv. 4º, tit. 102 §4.
28
FONSECA, Cláudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: DEL PRIORE, Mary (Org.); BASSANEZI, Carla (Coord. de Textos). História das mulheres no Brasil. 9. ed. São Paulo: Contexto,
2008. p. 516.
375
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
ter que ir trabalhar fora do espaço doméstico e, assim, estar mais sujeita ao assédio
sexual e também de receber a alcunha de ser mãe descuidada para com os filhos.
Magareth Rago, estudando os códigos de sexualidade feminina em São Paulo, em
especial o da prostituição, na República Velha, verificou que a figura da prostituta,
antítese da mulher idealizada, permeava o imaginário social da época como a figura
perturbadora da ordem social e da família. A mulher era, constantemente, vigiada
pelo olhar da sociedade; ela deveria, permanentemente, manter-se policiada em
relação a suas ações para que estas não fossem vistas como comportamentos desviantes da moralidade, pois
o homem no espaço público foi sempre percebido positivamente, através da imagem do homem trabalhador e do político, segundo o ideário liberal. A mulher fora do lar, sobretudo se desacompanhada, precisou prestar muita atenção aos seus gestos,
aparência, roupas, para não ser confundida com a figura dissoluta, excêntrica da prostituta, ‘mulher pública’29.
A figura masculina possuía grande respaldo social para viver, mesmo que
sozinho, com os filhos, pois, em 73 situações, o motivo elencado nos processos
de tutela referia-se diretamente a uma dificuldade relacionada à figura masculina,
fosse ela “incapacidade moral do pai” ou o “descaso do pai”, número inferior aos
diretamente relacionados a questões afetas à figura feminina. A mulher, na maioria
das vezes desamparada pela figura masculina, talvez escolhesse dar seu filho para
outra pessoa cuidar, diante da possibilidade de o pequeno vir a ter que enfrentar
toda a censura que a mãe possivelmente receberia por ter que ir trabalhar fora do lar.
Mesmo nas situações em que ela estabelecia uma nova união matrimonial, escolhia,
muitas vezes, apartar-se do pátrio poder sobre os filhos para evitar que o julgamento
social se impusesse também sobre a pequena criança.
Contudo, não se pode imaginar que somente as mulheres sofriam com as
vicissitudes da vida – ainda que houvesse discriminação quanto à mulher que trabalhasse fora e que o peso maior recaísse sobre seus ombros –, pois os homens
também estavam a enfrentar dificuldades, nos anos iniciais do século XX, como se
pode constatar no processo da menor Paulina da Silva Mello30, de 15 anos de idade,
em que seu pai Luiz da Silva Mello pede que sua tutela fosse dada à sua sogra. Luiz
Mello afirma que a filha fora criada
desde sua tenra infância por sua avó Balbina Amália Ramos, sogra d’ele
suplicante, em cuja companhia vive até hoje. E como não possa o supl.[Supli RAGO, Maragareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina
em São Paulo (1890-1930). 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 44.
30
RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 2ª Vara.
Tutela. Proc. nº 354 de 1910. [manuscrito]. Porto Alegre, 1910. Localização: APERS.
29
376
cante] pelos seus minguados recursos, atender à manutenção d’aquela
sua filha e à administração de sua pessoa e bens, vem declarar a V.S. que
renuncia ao pátrio poder que lhe assiste e indica a V.S. para exercer a tutela
de sua filha a referida sua sogra31.
O próprio pai pedia a renúncia do pátrio poder sobre sua filha, por não
conseguir subsídios suficientes para prover o alimento, a saúde, educação e o vestuário dele e de sua filha, que já morava com a avó. O pai não podia ser considerado um
“vagabundo”, pois o processo informa que ele trabalhava, talvez como jornaleiro,
mas não tinha uma atividade que lhe possibilitasse arcar com o sustento de ambos.
Os apelos à moralidade e à honra da família eram constantes nos processos
de tutela, mas esses eram acionados com maior freqüência para questões envolvendo as mulheres, adolescentes e meninas, como no auto da menor, púbere, Georgina
Caetano da Silva32 que foi movido tendo por motivo a honra sexual da menor. A
própria menor foi ao Juizado de Órfãos dizendo ser órfã de pai e mãe e “tendo sido
deflorada33, a fim de poder casar-se pede a V [Vossa] S [Senhoria] para nomear tutor34”. Seu
pedido fora-lhe deferido, no dia seguinte, e nomeado o senhor Bernardino Caetano
da Silva como tutor. Dessa forma, surgia um novo arranjo familiar com a chancela
da Justiça.
Processos, em que a alegação principal para se conseguir um tutor era a de a
menor ter sido deflorada, eram recorrentes no Juízo dos Órfãos. Geralmente, a solicitação vinha acompanhada do pedido para casar-se com o deflorador. O casamento era um valor cultivado pelos grupos dirigentes, mas, entre os populares, como
Silvia Arend35 já apontou, ele não era uma obrigação: os populares reivindicavam e
recorriam a essa união legal em situações pontuais. Esse pedido de tutela, que dava
licença para casar-se, podia ter algumas razões por parte da menor como
[...] responsabilizar o amante por uma gravidez que, assumida
sozinha, traria maiores dificuldades na luta pela sobrevivência;
RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 2ª Vara.
Tutela. Proc. nº 354 de 1910. [manuscrito]. Porto Alegre, 1910. Localização: APERS. f. 2 (Grifo
nosso).
32
RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 1ª Vara.
Tutela. Proc. nº 70 de 1915. [manuscrito]. Porto Alegre, 1915. Localização: APERS.
33
O defloramento era a cópula com mulher virgem ocasionando o rompimento do hímen da
menor. Se não houvesse a cópula, o crime seria de atentado contra o pudor. A diferença entre
defloramento e estupro é que no primeiro haveria o consentimento da menor, por sedução ou
mentira da parte do homem; no segundo, não haveria o consentimento e, sim, imposição por
violência.
34
RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 1ª Vara.
Tutela. Proc. nº 70 de 1915. [manuscrito]. Porto Alegre, 1915. Localização: APERS. f. 2.
35
AREND, Silvia Maria Fávero. Amasiar ou Casar? A Família Popular no Final do Século
XIX. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2001.
31
377
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
desejando realizar um casamento proibido pelas famílias; sendo
pressionadas pelos patrões ou pela polícia; tentando não perder
um ‘bom’ partido ou mesmo uma paixão36.
Diferentemente dos processos crimes investigados por Carlos Eduardo Grosso37, também para a cidade de Porto Alegre em período semelhante,
em que o autor evidenciou que os casos de defloramento eram levados à Justiça Criminal não com a finalidade do casamento legal ou reparação, os autos
judiciais de tutela, revelam justamente o oposto, que havia o desejo de uma
solução legal para o fato: o casamento. Dessa forma, podemos aventar que
a expectativa pelo casamento nos casos de defloramento na cidade de Porto
Alegre, nos anos iniciais do século XX, era uma realidade e um objetivo que
permeava a cabeça não só dos juristas como também das mulheres e da sociedade de forma geral.
Pois, levar a queixa de defloramento de uma menor às autoridades
tinha por fim responsabilizar o deflorador pelos seus atos, para que, com
base na moralidade da época, houvesse um casamento legal e, assim, a menor
“livrar-se” da alcunha de “mulher pública”, ou mesmo, de mãe solteira. Além
disso, também era uma forma legal de isentar o deflorador de responder criminalmente pelos seus atos, por meio do casamento, pois o defloramento era considerado
crime pelo Código Penal Brasileiro38, Artigo 267.
Esse foi o caso da menor Luiza Fortelli39, filha legítima, com 17 anos de idade,
que, assim como no caso anterior, entrou pessoalmente com um processo, no Juízo dos
Órfãos, requerendo um tutor que lhe desse a autorização para casar-se com seu deflorador. A menor informou que seu pai, Luiz Fortelli, estava “atualmente em lugar incerto e
não sabido” e sua mãe, Maria Fortelli, morrera havia 4 anos. Assim, Luiza Fortelli pediu
à Justiça um tutor que lhe desse “licença para casar-se com o Sr. Álvaro Seelling que a deflorou e
quer reparar o mal pelo casamento. Sendo verdade o que se alega40”. A tutela da menor foi
deferida ao Sr. Reynaldo Fellig no dia seguinte ao de sua abertura. Podemos perceber, de
forma explícita, que o Sr. Álvaro Seelling tinha “consciência”, e até mesmo Luiza For ESTEVES, Martha Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio
de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p. 203.
37
GROSSO, Carlos Eduardo Millen. Do crime de defloramento: populares e práticas amorosas (Porto Alegre – 1898/1923). In. APERS. IX Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do
Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Corag, 2011. p. 197-211.
38
GAMA, Affonso Dionysio. Código penal brasileiro: (Dec. n. 847, de 11 de outubro de
1890). São Paulo: Saraiva, 1923.
39
RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 3ª Vara.
Tutela. Proc. nº 596 de 1913. [manuscrito]. Porto Alegre, 1913. Localização: APERS.
40
RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 3ª Vara.
Tutela. Proc. nº 596 de 1913. [manuscrito]. Porto Alegre, 1913. Localização: APERS. f. 2 (Grifo
nosso).
36
378
telli, de que a relação sexual que os dois haviam tido se configurava socialmente como
“má”, e somente o casamento poderia “reparar” isso. O que estava por trás da decisão,
de realizarem o casamento entre ambos, não está no processo. Pode-se conjecturar que
o motivo poderia estar vinculado a ir contra a vontade dos pais dele ou das pessoas
que cuidavam dela, escapar de um processo criminal ou mesmo pode-se deduzir que a
menor o tenha seduzido para “arranjar um casamento”, enfim não há certezas; apenas
sabe-se que eles haviam reivindicado uma definição de honra que a sociedade da época
valorizava: a união por meio do casamento.
Com essa decisão rápida, por parte do Juiz, podemos perceber como Elisabete
Leal, estudando os discursos do jornal “A Federação41” na virada do século, constatou que
a família era o centro das atenções do Partido Republicano Rio-grandense (PRR) nessa
sociedade desejosa da modernidade, pois,
é nela que se desenvolvem os sentimentos de sociabilidade, resultando no aperfeiçoamento humano para o viver coletivo. [...] Assim,
somente em uma família legalmente construída através do casamento, haverá ambiente próprio para o desenvolvimento moral do indivíduo. A união matrimonial é o princípio gerador da família42.
O propósito da Justiça em realizar, de forma rápida, a concessão de tutor
com a finalidade de este dar permissão para uma menor se casar, era o de civilizar a
sociedade, evitando relações de amasiamento, o aparecimento de mães solteiras ou
mesmo a possibilidade de essas menores entrarem no meretrício. Assim, civilizar
os hábitos da população “... seria o sentido último da possibilidade de a Justiça intervir diretamente nos crimes de defloramento e estupro, com o intuito de estabelecer a ordem moral”43. Contudo, podemos supor que recorrer ao Juízo dos Órfãos
ao invés da Justiça Criminal, para resolver contendas relativas ao defloramento de
uma menor de idade, poderia significar justamente a enfática vontade de se realizar
um casamento, já que os Juízes e Curadores Gerais de Órfãos não indeferiam o pedido de tutoria ou mesmo de licença para casamento a um menor. Acrescentemos
ainda a possibilidade de o casamento estar praticamente acertado, fato que levava
as menores a recorrerem ao Juízo dos Órfãos ao invés da Justiça Criminal, com o
afinco de encurtar o caminho ao altar. No entanto, não tivemos condições de investigar as certidões de casamento do período, documentos que poderiam revelar
se houve ou não o casamento, mesmo assim, o fato da menor desejar receber um
Jornal do PRR e, por conseguinte, do governo que apresentava as ideias e ideologias desse.
LEAL, Elisabete. Mulher e família na virada do século: o discurso d’ A Federação. In: HAGEN, Acásia Maria M.; MOREIRA, Paulo Roberto S. (Org.). Sobre a rua e outros lugares:
reinventando Porto Alegre. Porto Alegre: Caixa Econômica Federal, 1995, p. 29-30.
43
ESTEVES, Martha Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio
de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p. 83.
41
42
379
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
tutor que permitisse o enlace matrimonial, já é um relevante indício de que o casamento poderia ser um objetivo e uma realidade para as menores de idade.
Conclusão
Nestas breves palavras, fica explicita a linha tênue em que a mulher estava
perante a Justiça quando procurava pleitear a tutela de um menor de idade, mesmo
este sendo seu filho. As avós, quando viúvas, tinham certa facilidade para conseguir
a guarda de um menor, pois a sua idade e a maior possibilidade destas não se exporem as “perigos” morais (como terem novos relacionamentos amorosos) respaldaria a tutoria para elas. Quanto às menores de idade, que foram relativamente mais
tuteladas que os meninos, os processos de tutela revelam a grande atenção que
os adultos tinham para com as meninas e adolescentes. Tendo um olhar vigilante
sobre elas, a “sociedade” enfrentaria menos risco dessas se desvirtuarem-se da moralidade burguesa corrente, dessa forma, atribuir um tutor de forma rápida poderia
livrar as menores desse risco. Dessa forma, verificamos que o Juízo dos Órfãos de
Porto Alegre realizou sua ação de zelar pelas meninas e adolescentes, depreciando,
por outro lado, as mulheres adultas como possíveis tutoras de menores de idade.
Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Cândido Mendes de. Código Filipino ou Ordenações e leis do
Reino de Portugal, recompiladas por mandado do rei D. Philippe I. 14. ed.
Rio de Janeiro: Tipografia do Instituto Philomathico, 1870.
ALVES, João Luiz. Código Civil: da República dos Estados Unidos do Brasil:
promulgado pela Lei n. 3071, de 1 de janeiro de 1916. Rio de Janeiro: F. Briguiet,
1917.
AREND, Silvia Maria Fávero. Amasiar ou Casar? A Família Popular no Final
do Século XIX. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2001.
CARDOZO, José Carlos da Silva. O melhor para quem? O Juizado de Órfãos e o
discurso de valorização e proteção aos menores de idade no início do século XX.
Tempo e Argumento, UDESC. v. 3, n. 2, p. 210-229, 2011.
CARDOZO, José Carlos da Silva. O Juizado de Órfão de Porto Alegre: um reflexo
da sociedade. In: APERS. VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do
Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Corag, 2010, p. 39-52.
CARDOZO, José Carlos da Silva. O Juízo dos Órfãos e a organização da família
por meio da tutela. História Social, UNICAMP, n. 20, 2011, p. 201-220.
COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. 5 ed. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 2004.
ESTEVES, Martha Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do
380
amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
FONSECA, Cláudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: DEL PRIORE, Mary (Org.);
BASSANEZI, Carla (Coord. de Textos). História das mulheres no Brasil. 9. ed.
São Paulo: Contexto, 2008, p. 510-553.
FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. 4. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006.
GAMA, Affonso Dionysio. Código penal brasileiro: (Dec. n. 847, de 11 de outubro de 1890). São Paulo: Saraiva, 1923.
GROSSO, Carlos Eduardo Millen. Do crime de defloramento: populares e práticas
amorosas (Porto Alegre – 1898/1923). In. APERS. IX Mostra de Pesquisa do
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Corag, 2011.
p. 197-211.
LEAL, Elisabete. Mulher e família na virada do século: o discurso d’ A Federação.
In: HAGEN, Acásia Maria M.; MOREIRA, Paulo Roberto S. (Org.). Sobre a rua
e outros lugares: reinventando Porto Alegre. Porto Alegre: Caixa Econômica Federal, 1995, p. 19-49.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os sete pecados da capital. São Paulo: Editora
Hucitec, 2008.
RAGO, Maragareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade
feminina em São Paulo (1890-1930). 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Paz e Terra,
2008.
SCOTT, Ana Silvia Volpi; BASSANEZI, Maria Silvia C. No fundo do baú: procurando as crianças imigrantes nas fontes documentais paulistas. In: RADIN, José
Carlos (Org.). Cultura e identidade italiana no Brasil. Joaçaba/SC: UNOESC,
2005. p. 163-176.
SOIHET, Rachel. História das mulheres. In: CARDOSO, Ciro Flamarion S.;
VAINFAS, Ronaldo. (Org.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 275-296.
TILLY, Louise. Gênero, história das mulheres e história social. Cadernos Pagu,
UNICAMP, n. 3, p. 29-62, 1994.
381
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Processos criminais, violência e relações de poder na região de
abrangência da Comarca de Passo Fundo (1920-1940).
Felipe Berté Freitas1
Resumo: Este artigo tem por finalidade discutir as potencialidades dos processos criminais nos
estudos da violência no campo político e no âmbito das relações de poder. O ponto de partida
deste trabalho é a pesquisa, em nível de mestrado no curso de Pós-graduação em História Regional da Universidade de Passo Fundo, de processos-crime da 1ª Vara criminal do Juízo Distrital de Soledade, Comarca de Passo Fundo. Nele busca-se trazer para o debate as potencialidades
empíricas e interpretativas das fontes, bem como refletir sobre alguns critérios para sua análise.
Palavras-chaves: História – violência - processos judiciais.
A
s temáticas vinculadas à justiça e a utilização de fontes judiciais,
apenas recentemente, vêm sofrendo tratamento heurístico e investigativo pela historiografia brasileira. Conforme aponta Félix,
“na última década há uma nova ênfase tanto na localização e incorporação destas
fontes, quanto na produção das mesmas, sendo este um campo de estudo praticamente inexplorado” 2.
O processo de esgotamento dos paradigmas historiográficos possibilitou
a emergência de novos métodos de estudo para a história. A revisão teórica, empírica e metodológica promovida pelo movimento dos Annales, possibilitou a busca
de novos temas, bem como redefiniu significativamente o conceito de fontes. Os
historiadores deixaram de privilegiar apenas documentos oficiais e registros preservados, passando a buscar outras evidências, como a oralidade, as fotografias, as
artes, a literatura, entre outros.
Diante deste contexto de transformações, emergiu a possibilidade do uso
de processos judiciais como fonte histórica. Esta documentação permaneceu pouco explorada até a década de 1970, quando os impactos da história social inglesa e
das teorias de Foucault impulsionaram sua utilização em pesquisas Os primeiros
trabalhos publicados foram no campo da história social, merecendo destaque as obras
Graduado em História pela Universidade de Passo Fundo. Mestrando em História Regional
pelo Programa de Pós-Graduação em História/UPF. Bolsista Capes. E-mail: felipebrte@yahoo.
com.br
2
FÉLIX, Loiva Otero. Historiografia do Poder Judiciário e metodologia do banco de dados.
In: FÉLIX, Loiva Otero e GRIJÓ, Luiz Alberto. Histórias de vida. Entrevistas e depoimentos de
magistrados gaúchos. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, 1999, v.1,
p. 17-26. (Projeto Memória do Judiciário Gaúcho), p.17.
1
383
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
de Carlo Ginzburg, Michelle Perrot e Edward Palmer Thompson3. Entre suas contribuições teóricas podemos destacar que os autores privilegiaram “a experiência humana, os
processos de diferenciação e individualização dos comportamentos e identidades coletivas na explicação histórica4” e o cotidiano das classes trabalhadoras, principalmente, no
que concerne, aos seus valores e formas de conduta.
No Brasil, se for possível delimitar no tempo a utilização destas fontes em
análises históricas, o marco provavelmente recaíra na década de 1980. Nesse período,
seu uso se generalizou em abordagens da História Colonial à Republicana conforme
nos assinala Grinberg:
[...] no âmbito dos debates teóricos e metodológicos da História
Social e das discussões políticas brasileiras havidas na década de
1980, em pleno processo de redemocratização, o interesse em
ler e analisar processos criminais veio justamente da expectativa de flagrar homens e mulheres, principalmente trabalhadores,
agindo e descrevendo relações fora do espaço do movimento
operário, do lugar da fala política articulada5.
Alguns dos trabalhos, que utilizaram processos judiciais em suas análises, merecem destaque na historiografia brasileira. Em 1984, Boris Fausto publica “Crime e cotidiano” 6, trabalho que trata da criminalidade na cidade de São Paulo entre os anos de 18801924. O autor em uma perspectiva histórica demonstra algumas das relações sociais que
se constituíram na cidade de São Paulo, destacando-se principalmente pelas reflexões
em torno das representações pacíficas que o senso comum tende a construir sobre o
passado no que concerne à questão da criminalidade.
Em “Trabalho, lar e botequim” 7, publicado em 1987, Sidney Chalhoub retrata
o cotidiano dos trabalhadores do Rio de Janeiro, durante a belle époque. Tendo como
base processos-criminais de homicídios e de tentativa de homicídio, o autor traz à luz
interpretações mais significativas, sobre o trabalho, lazer, conflitos sociais e a repressão
Estatal sobre a classe operária.
Carlo Ginzburg, O queijo e os vermes, São Paulo, Companhia das letras, 1986; Michelle Perrot,
Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros, São Paulo, Paz e Terra, 1988. E. P. Thompson, Senhores e caçadores: a origem da Lei Negra, São Paulo, Paz e Terra, 1987.
4
MACHADO, Ironita Policarpo; FREITAS, Felipe Berté. História e direito: um diálogo metodológico. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DOS ESTADOS AMERICANOS. Anais
eletrônicos. UPF: Passo Fundo. Disponível em www.upf.br/ppgh/images/stories/downloads/
anais-iv-shr.pdf, p. 325.
5
GRINBERG, Keila. A história nos porões dos arquivos judiciários. In: LUCA, Tânia Regina
de; PINSKY, Carla Bassanezi (orgs). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009, p.126.
6
FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924. São Paulo, Edusp,
2001. 2a edição.
7 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle
époque. 2ª ed. Campinas: Unicamp, 2001
3
384
Destacamos ainda a obra “Crime e escravidão 8” de Maria Helena de Machado.
O livro tem como fontes os processos criminais de escravos das regiões de Campinas
e Taubaté, de 1830 até a Abolição em 1888. A autora registra a criminalidade escrava,
os homicídios de feitores e senhores e revela a frequência dos homicídios e das lesões
corporais entre escravos e homens livres pobres. Sua principal contribuição está em
demonstrar que a resistência dos escravos frente às classes dominantes, muitas vezes se
manifestava pelo viés da violência.
Este rápido panorama historiográfico nos permite sintetizar as contribuições
destas obras em três aspectos principais:
a) Neutralizar o caráter oficial da fonte, possibilitando a visibilidade de práticas cotidianas
de diversos grupos da sociedade;
b) Expor inúmeros aspectos que fogem da narrativa criminal jurídica, contextualizando
práticas cotidianas, sem perder de vista o crime em si;
c) Visualizar as estratégias das classes subalternas na formulação de conceitos como ordem, moral, família – conforme as suas representações de mundo, e não como reprodução da ideologia dominante.
Apesar das contribuições teórica e metodológica destas obras, é importante
ressaltar, que as abordagens da história social não são a única alternativa possível. Se
interpretarmos estas fontes de formas diferentes e, sobretudo buscarmos relação com
outras áreas do conhecimento como o direito, a história econômica e a história agrária,
poderemos produzir análises variadas sobre outros aspectos da sociedade. Exemplo disso são os trabalhos de Gunter Axt 9e Ironita Policarpo Machado10.
O primeiro avalia o processo de construção e rearranjo da hegemonia
política e econômica da aliança de frações de classe dominante arregimentada
em torno dos governos castilhista-borgista no Rio Grande do Sul, entre 1889 e
1929. O autor busca compreender o jogo de interesses econômicos e a relação
do poder central estadual com os poderes locais, no âmbito da rede de compromissos coronelísticos. Da confluência destes fatores, desdobra-se o processo de
formação do aparelho estatal burguês, cuja caracterização transita pela tentativa
de apreensão do esforço de institucionalização da elite dirigente, das representações do poder e do processo de intervenção na economia. Com relação a este
último elemento, o foco está nas políticas públicas voltadas para o setor ferrovi MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e Escravidão: Trabalho, luta e resistência nas
lavouras paulistas (1830-1888). São Paulo: Brasiliense, 1987.
9
AXT, Gunter. Gênese do estado burocrático-burguês no Rio Grande do Sul (1889-1929). São Paulo,
USP, 2001 (tese de doutorado).
10 MACHADO, Ironita Policarpo. Judiciário, terra e racionalidade capitalista no Rio Grande do
Sul (1889-1930). Porto Alegre, PUC, 2009 (tese de doutorado), p. 7. Disponível em http://tede.
purs.br/tde_arquivos/15/TDE-2009-06-08T175152Z-1991/Publico/41298.pdf
8
385
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
ário, sistema portuário e de navegação fluvial e, também, para o campo tributário
e orçamentário.
Entre as fontes utilizadas, destacam-se as cartas entre Júlio de Castilhos,
Borges de Medeiros e seus correligionários, estas, selecionadas a partir de nomes
que ocupavam postos estratégicos na estrutura burocrática estatal. Tais fontes trouxeram conteúdo elucidativo, principalmente no que se refere ao controle do poder
coronelístico pelo governo castilhista-borgista, através dos juízes de Comarca, e as
estratégias políticas e econômicas adotadas pelo bloco dirigente na consecução de
seus objetivos.
O segundo trabalho, estuda o Rio Grande do Sul nos governos castilhista-borgista através dos processos civis de compra e venda de terras. A autora analisa
as relações entre as ações político-econômicas do Estado, a posse da terra, os poderes locais e o Judiciário na formatação de uma racionalidade capitalista moderna.
Para tal propósito o Judiciário é tomado como “elemento de força” e “estratégia”
de frações de classe – grupos com poder político no governo, para a dinamização
de seus projetos político-econômicos através da apropriação privada da terra. Em
outras palavras, o objeto central de análise é a questão da terra e sua relação com
um governo dirigido e organizado por magistrados (Júlio de Castilhos e Borges de
Medeiros), onde o domínio de conhecimento normativo e do aparato jurídico se
constitui num meio à racionalização capitalista e a manutenção do bloco dirigente
no poder político.
Visto dessa forma, se credita que os trabalhos citados acima trazem outras
possibilidades de estudo da história através das fontes judiciais. Suas contribuições
residem principalmente no campo da história política permitindo um alargamento
da visão sobre as relações entre poder, política e violência, uma compreensão deste
fenômeno no espaço regional e um maior entendimento das relações entre Estado, Poder Judiciário, poderes locais e sistema capitalista no contexto da República
velha. Neste sentido, este artigo tem como proposta analisar as potencialidades
dos processos criminais nos estudos da violência no campo político e no âmbito
das relações de poder. Utilizamos como fontes primárias, os processos-crime da
1ª Vara criminal do Juízo Distrital de Soledade, Comarca de Passo Fundo, entre os
anos de 1920 e 194011.
Este artigo é produto de algumas reflexões em torno da problemática da violência e das
relações de poder na região de abrangência da Comarca de Passo Fundo/Soledade, entre os
anos de 1889 e 1940. Optamos pelo recorte (1920-1940), devido a dois fatores principais: o
expressivo número de processos criminais que localizamos no período e a incidência de casos
envolvendo situações de violência. A pesquisa situa-se em nível de mestrado do curso de Pós-graduação em História Regional da Universidade de Passo Fundo, sendo orientada pela Prof.
Dr. Ironita Policarpo Machado.
11
386
Compreendermos que nas três últimas décadas, tem se afirmado entre as
ciências humanas, um movimento de revisão da História Política. Esta dimensão
da pesquisa histórica tem buscado rediscutir o Poder, a Política e a própria História
Política, no âmbito de seus paradigmas, questões conceituais e pressupostos metodológicos, transformando significativamente seus “caminhos” na historiografia
contemporânea12. A principal mudança tem sido o abandono da “história política
tradicional em prol de uma nova história política”. Assim, passou-se a tratar o
político como o lugar onde se articulam o social e suas representações, possuindo
características próprias e constituindo relações com todos os aspectos da vida coletiva, sendo, portanto, vista como uma modalidade da prática social. Essa acepção
ancora-se nas palavras de René Rémond que afirma:
A nova história do político satisfaz presentemente aspirações
que tinham suscitado a revolta justificada contra a história política tradicional [...]. Abraçando, apreendendo os fenômenos mais
globais, buscando nas profundezas da memória coletiva ou do
inconsciente as raízes das convicções e as origens dos comportamentos, ela descreveu uma revolução completa13.
Dentro destes novos pressupostos é que o estudo da política pelo viés da
violência encontra espaço privilegiado. A violência como um elemento cultural,
social e político é intrínseca a todas as sociedades, aparecendo de formas diferentes
e em níveis diferentes, podendo ganhar maior ou menor ênfase de acordo com as
circunstâncias nas quais se manifesta. Uma proposta para estudos desta natureza,
tendo como fonte histórica os processos criminais, pode ser apresentada pela pesquisa que estamos desenvolvendo.
Ao analisarmos o norte do Rio Grande do Sul, na região de abrangência da
Comarca de Passo Fundo/Soledade14, entre os anos de 1920 e 1940, percebemos
BARROS, José D’Assunção. História Política: o estudo historiográfico do poder, dos micropoderes, do discurso e do imaginário político. Revista de educação. Cascavel, v.4, n.7, jan/
jun, p.2, 2009.
13
RÉMOND, René. Uma história presente. In: RÉMOND, René (org.). Por uma história política.
Rio de janeiro: Editora da UFRJ/FGV, 1996 p.17.
14
A distribuição das Comarcas no Rio Grande do Sul, em especial na região norte, está estreitamente vinculada às relações de poder político entre o Estado, o Poder Judiciário e os poderes
locais. Definimos a região em análise como Comarca de Passo Fundo/Soledade, devido às
constantes mudanças impostas pelo governo da época, que ora eleva uma região à condição de
Comarca, ora retirava-lhe o posto. No caso de Soledade, por exemplo, em 1880 através da lei
no 1.251, o município é elevado à categoria de Comarca em 1ª entrância. Porém, o decreto no
17, de 27 de fevereiro de 1892, extinguiu o posto, voltando esta a ser termo de Passo Fundo.
Somente em 1926, com o decreto no 3.572 é que o município novamente recebe a condição
de Comarca. Para saber mais sobre a história das distribuições das Comarcas ver: TESTON,
Helena. MACHADO, Ironita Policarpo (UPF). História das comarcas judiciais e relações de
12 387
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
que houve um acirramento das disputas pelo poder político local e regional, pois o
período fora marcado por intruncadas relações políticas, onde o “poder do mando,
a rede de compromissos coronelísticos, a conciliação de frações de classes, a troca
de favores, a formação autoritária das líderes político-partidários e os confrontos de
forças partidárias faziam parte da realidade vigente” 15. Estas disputas evoluíram para
episódios de violência, tais como agressões, ameaças, espancamento e assassinatos,
transformando-se em muitos casos, em processos criminais como nos mostra a
tabela abaixo16:
Conforme dito, a região norte do Rio Grande do Sul transformou-se em
palco de disputas político-partidárias, especialmente durante o levante de 1923,
onde a oposição se organizou para lutar contra a hegemonia política do PRR17. Sopoder no norte rio-grandense no final do século XIX e século XX. Anais eletrônicos. UPF:
Passo Fundo. Disponível em http://www.upf.br/historiaregional/images/stories/anais-do-cihr-volume-1-2011.pdf.
15 MACHADO, 2009, p.7.
16
Gráfico elaborado pelo autor a partir da classificação, quantificação e caracterização dos processos criminais da 1ª Vara Criminal do Juízo Distrital de Soledade, comarca de Passo Fundo.
17
O Partido Republicano Rio-grandense (PRR) foi um partido político de motivação republicana, fundado em 23 de fevereiro de 1882 por eminentes republicanos, entre eles Venâncio
Aires, Júlio de Castilhos, Pinheiro Machado, Demétrio Ribeiro, Alcides Lima, Apolinário Porto
Alegre, Ramiro Barcelos, Assis Brasil, José Pedro Alves e João Cezimbra Jacques. Ver: FÉLIX,
Loiva Otero. Coronelismo, borgismo e cooptação política. Porto Alegre: Mercado aberto, 1987.
388
ledade, Passo Fundo, Palmeira e Erechim18 participaram ativamente dos combates,
o que em uma análise externa, nos explica o aumento considerável da incidência de
processos-criminais durante a década de 1920.
Sobre a década de 1930, Caroline Weber Guerreiro, em trabalho intitulado
Vulcão da Serra, nos fornece um parâmetro de compreensão para a problemática
em questão, vindo a reforçar a nosso viés de análise. Utilizando processos criminais da região de abrangência da Comarca de Soledade, a autora demonstra que o
movimento de 1930, no qual derrubou o presidente Washington Luís do poder, e
conduziu Getúlio Vargas à presidência, proporcionou disputas politicas que ganharam contornos violentos.
Apesar da aparente aliança entre as elites em torno da FUG (Frente Única
Gaúcha), a Revolução Constitucionalista de 1932 levou setores políticos regionais
a se posicionarem a favor da causa constitucional. Em Soledade, por exemplo, o
principal opositor ao governo Vargas, foi Candido Carneiro Júnior, tenente-coronel do 33o Corpo auxiliar da Brigada Militar. Principal liderança deste destacamento organizou as forças revolucionárias, que lançaram o “Manifesto ao Povo do Rio
Grande do Sul” em 1o de setembro de 1932. O Manifesto tinha clara oposição ao
autoritarismo de Getúlio Vargas e convocava o povo para a luta. “O Combate final
entre as tropas legalistas e os rebeldes, ocorreu em 13 de setembro de 1932, às
margens do rio Fão. O resultado foi à derrota dos rebeldes, pois as forças federais
se encontravam mais numerosas e mais bem equipadas” 19.
Apesar da pacificação, o município, prosseguiu sendo alvo de disputas políticas, as quais culminaram em atos de violência, muitas vezes patrocinados pelas
próprias autoridades. Neste sentido, segue-se um período de intranquilidade para
os soledadenses que haviam participado do levante. Os confrontos culminaram
no assassinato de Kurt Spalding 20em frente à Farmácia Serrana em 15 de dezembro de 1934. A autoria do crime foi atribuída ao ex-prefeito de Soledade Francisco Muller Fortes, conhecido como Chico Touro. Segundo as várias narrativas do
processo-crime da época, o prefeito utilizava dinheiro público, para financiar um
grupo de capangas chamados de bombachudos, no qual foram responsáveis por
vários crimes, principalmente contra seus opositores.
GUERREIRO, Caroline Weber. Vulcão da Serra: violência política em Soledade (RS). Passo Fundo: UPF, 2005. p. 64.
19
GUERREIRO, 2005, p. 74.
20
Kurt Frederico Spalding nasceu em 12 de abril de 1884 no município de Triunfo. Chegou a
Soledade em 1907, e, em 1910, comprou parte da farmácia Gomide, de seu sócio Olímpio Gomide. Rapidamente se integrou a elite local, filiando-se ao Partido Libertador, do qual se tornou
um dos lideres. Durante o Combate do Fão, foi médico da coluna revolucionária chefiada por
Cândido Carneiro Junior e Jorge Augusto de Paula. GUERREIRO, op. cit., p. 103.
18
389
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Apesar das disputas pelo poder entre as diferentes facções políticas da
região, ao longo de nossa pesquisa visualizamos nos processos criminais outro
viés de análise: a violência como uma forma de manifestação das relações de poder entre os sujeitos que faziam parte daquela sociedade. Esta potencialidade de
interpretação da violência como um recurso de poder, encontra respaldo teórico,
principalmente nas interpretações de Bobbio e de Foucault. O primeiro concebe
o poder em seu sentido social, ou seja, na sua relação com a vida do homem em
sociedade. Para Bobbio o poder
[...] torna-se mais preciso, e seu espaço conceptual pode ir desde
a capacidade geral de agir, até à capacidade do homem em determinar o comportamento do homem: Poder do homem sobre o
homem. O homem é não só o sujeito mas também o objeto do
Poder social. E Poder social a capacidade que um pai tem para
dar ordens a seus filhos ou a capacidade de um Governo de dar
ordens aos cidadãos21.
Com relação a Foucault, o conceito de poder é interpretado como micropráticas que se manifestam às margens do aparelho estatal, portanto, existindo na
sociedade uma multiplicidade de atos permeados de relações de poder.
“A razão é que o aparelho de Estado é um instrumento específico de um sistema de poderes que não se encontra unicamente
nele localizado, mas o ultrapassa... nem o controle, nem a destruição do aparelho de Estado, como muitas vezes se pensa... é
suficiente para fazer desaparecer ou para transformar... a rede de
poderes que impera em uma sociedade” 22.
Para esclarecer a proposta, tomemos como exemplo, alguns dos casos analisados durante a pesquisa que vem se desenvolvendo, com as fontes
primárias23 do Arquivo Histórico Regional da Universidade de Passo Fundo.
Ao efetuarmos a quantificação, dos processos criminais da década de 1920,
as incidências de crimes e a caracterização de suas tipologias de violência,
percebemos que em muitos casos os conflitos não se davam por motivações
políticas-partidárias, o que nos provocou a refletir a partir da ótica da manifestação das relações de poder entre os indivíduos daquela realidade.
BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Brasilia: UnB, 1986. p. 933.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis, Editora Vozes, 2004, p. 13.
23
As fontes que utilizamos para a pesquisa estão localizadas no Arquivo Histórico Regional
da Universidade de Passo Fundo. O acervo conta com processos judiciais de tipologia civil,
criminal e trabalhista, provenientes estes, das Comarcas de Passo Fundo e de Soledade. Tomamos como recorte apenas os processos de natureza criminal, provenientes da 1ª Vara do Juízo
Distrital de Soledade, julgados estes, pela Comarca de Passo Fundo até o ano de 1926.
21
22
390
Em um processo do ano de 192124, vários homens travam um confronto armado em uma corrida de cavalos no município de Soledade. O conflito teve inicio depois que um vendedor ambulante deu o troco errado a um
dos homens que assistia a corrida. Após uma breve discussão, vários tiros
foram disparados deixando alguns dos envolvidos gravemente feridos, conforme os exames de corpo de delito presentes nos autos processo. 25
Um segundo caso de violência em espaços de sociabilidade, ocorrera no
1º distrito de Soledade, no ano de 1920.26 Segundo o que consta na autuação, um
grupo de amigos resolveu organizar um baile e cobrar trezentos mil réis de entrada.
Entretanto, um homem não quis pagar o valor combinado, tentando participar do
referido evento sem pagar. Depois de uma discussão, o réu munido de uma faca
assassinou um dos organizadores da festa.
Ainda neste campo de análise, mais dois processos de natureza semelhante
merecem destaque: O primeiro, ocorrido no ano de 192327, envolveu uma tentativa
de homicídio, após um briga em uma casa de jogos no 1º distrito do município. O
segundo, datado do mesmo ano28, foi uma agressão de um homem contra a esposa
e seu próprio filho. Segundo os autos dos processos o homem entrou em casa jogou o filho no chão e com um relho espancou a sua esposa.
Nos casos expostos acima, podemos compreender que as motivações para
tais práticas de violência estavam muito mais ligadas a aspectos da vida cotidiana
dos sujeitos envolvidos, do que a disputas pelo poder político. Tais ações consistiam em tentativas de exercício de poder, onde a violência se tornou um recurso
para subjugar a vontade do outro. Ao deslocarmos o tema, do campo político
para o cotidiano, não deixamos de reconhecer que os interesses hegemônicos de
diferentes grupos sociais se encontram por trás de tais práticas, porém, passamos
a considerar que esta não é a única forma de manifestação do poder propriamente
dito.
Para Chalhoub é importante “fundamentar historicamente a ideia de que
havia uma pluralidade de sujeitos políticos na sociedade, lutando a seu modo para
atingir objetivos que lhe eram caros e assim governar a própria vida” 29. Sendo
Optamos por não revelar os nomes que constam nos autos dos processos a fim de preservar
a identidade dos envolvidos.
25
SOLEDADE, Comarca de Passo Fundo. Processo crime. Caixa 1. AHR/UPF.
26
SOLEDADE, Comarca de Passo Fundo. Processo crime no 2809. Caixa 1. AHR/UPF.
27
SOLEDADE, Comarca de Passo Fundo. Traslado de processo crime no 185. Caixa 4. AHR/
UPF.
28
SOLEDADE, Comarca de Passo Fundo. Processo crime no 161. Caixa 4. AHR/UPF.
29
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de
Janeiro da belle époque. 2ª ed. Campinas: Unicamp, 2001, p.7.
24
391
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
assim, nas análises envolvendo a violência no âmbito das relações de poder, é necessário articular os discursos conflitantes dos processos criminais dentro de uma
lógica mais ampla, que permita avaliar os exercícios de poder, evitando a simplificação a partir da concentração do poder apenas na esfera do Estado. Neste sentido
Revel diz que:
Colocar o problema nesses termos significa recusar pensá-lo
em termos simples, de força/fraqueza, autoridade/resistência,
centro/periferia, e deslocar a análise para os fenômenos de circulação, de negociação, de apropriação [...] [que] deformaram os
efeitos desses poderes, inscrevendo-os em contextos diferentes
daqueles que originalmente eram os seus e submetendo-os a lógicas sociais particulares 30.
Apesar das potencialidades que os processos criminais oferecem, é importante trazermos para o debate alguns critérios para a análise deste tipo de fonte.
Deste modo, por serem fontes históricas e oficiais, o trabalho com esses documentos traz, ao menos, duas implicações metodológicas: a necessidade de compreender a linguagem técnica das fontes judiciais e a importância de compreender
o direito como um lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o
direito31, onde a retórica da impessoalidade e da autonomia em relação ao mundo
social não se faz presente.
Com relação à linguagem técnica do direito, é importante o historiador
compreender o crime e os processos criminais a partir de seus conceitos jurídicos.
Neste sentido, também é imprescindível conhecer as atribuições do Código Penal
e do Código Processual Penal, pois ambos vão delimitar a lógica de constituição
do documento.
Para ilustrar a ideia, tomamos com exemplo os conceitos de crime, processo-crime e as atribuições do Código Penal e do Código de Processo Penal. De
acordo com Santos, crime “é o comportamento humano positivo ou negativo,
provocando um resultado e que segundo o seu conceito formal, é violação culpável
da lei penal, constituindo, assim, em delito” 32. Em outras palavras, a definição de
crime consiste em uma ação, conduta ou comportamento que é ilícito segundo a
lei prevista.
Por sua vez, o Código Penal define os atos que são considerados crimes,
atribuindo-lhes penas e castigos e o Código Processual Penal, “regulamenta o modo
REVEL, Jacques (org) Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio de janeiro: FGV,
1998, p. 30.
31
BOURDIEU, Pierre. “A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico”
In: O poder simbólico. Lisboa: DIFEL, 1989, p. 212.
32 SANTOS, Washington dos. Dicionário jurídico brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 201. p. 62.
30
392
como o crime é investigado, as formas de comprovação da verdade (provas materiais e
testemunhos) e os critérios para a tomada de decisões pelos juízes” 33.
Em contrapartida, os processos-crime são definidos como o ajuntamento
encadeado de atos ou procedimentos praticados pelas partes, juiz e seus assistentes, tendentes à solução do pleito judicial. “Segundo Cândido de Oliveira Filho, é
a forma estabelecida pela lei para se tratarem as causas em juízo. Na opinião de
Eliezer Rosa, é via de direito para pôr fim a conflitos de interesses por meio da
autoridade” 34.
Nesta perspectiva, entendemos serem estas as principais contribuições do
campo do direito para as análises historiográficas envolvendo processos criminais.
Compreender a linguagem jurídica é fundamental para que possamos compreender a fonte a partir do contexto em que é produzida, bem como contextualizar o
documento com a legislação em vigor no período histórico analisado. Entretanto, a
luz das referências expostas acima, é importante que o historiador no momento da
interpretação não fique restrito apenas ao universo jurídico. É necessário, compreender as contradições que estão embutidas na justiça, sendo que estas não passam
imunes ao crime, aos processos e aos códigos penais.
Sobre a importância de analisar o direito como um fenômeno inserido
dentro de um contexto social, Bordieu aponta para a necessidade de tomarmos a
ciência jurídica como objeto de estudo da história. Ao analisarmos os “fenômenos
jurídicos pela sua historicidade, evita-se o formalismo, que afirma a autonomia
absoluta do campo jurídico em relação ao mundo social, ou então do instrumentalismo, que concebe o direito como um reflexo ou utensílio ao serviço dos dominantes” 35. Neste sentido, Villar esclarece e amplia a ideia:
O direito é um fator da história. Nomeia relações entre os homens
diante dos bens e as infraestrurações às regras dessas relações. Ele
sanciona e assim põe em marcha o aparelho repressivo, cujas modalidades ele também estabelece. [...] A história, certamente deve ser
estudada para compreender o direito, pois o direito é parte integrante
da história. Suas relações permitem discernir o peso histórico dos
interesses, como o papel das ideologias. Mas compreender não é
nem condenar nem justificar: é criticar36.
Conforme mencionado, o direito possui uma retórica da autonomia, da
impessoalidade, da neutralidade e da universalidade de suas ações. Porém, é um
fenômeno sócio-cultural inserido em um contexto fático, e sua pretensa impar BAJER, Paula. Processo penal e cidadania. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2002. p. 8.
SANTOS, op. cit., p.195.
35
BORDIEU, 1989, p. 209.
36
VILAR, P. História do Direito, História Total. Projeto História – História e Direitos, n. 33.
Trad. Ilka Stern Cohen. São Paulo: Educ, 2006, p. 38-40.
33
34 393
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
cialidade e objetividade, nunca passou de uma utopia, originária a ilusão
de autonomia deste poder em relação às pressões externas. Dito de outra
forma, os agentes da justiça não são atores neutros, ou meros porta-vozes
do discurso oficial do Estado. Seus valores, crenças, representações de
mundo e o grupo social ao qual pertencem influenciam de forma objetiva
e subjetiva nas suas decisões.
Para uma análise mais plausível das fontes judiciais, podemos ainda destacar duas implicações importantes: a questão do poder e a da interpretação. As fontes judiciais são permeadas por relações de poder. Os
produtores da documentação têm como principal função procurar pistas,
indagar e registrar os relatos das vítimas, réus e testemunhas, para que o
objetivo final seja a produção de uma verdade jurídica enquadrada ao Código Penal da época a qual pertencia. Assim, os filtros pelos quais passam
os depoimentos são diretamente influenciados pelo objetivo repressivo
dessas fontes e também pela distância cultural entre os agentes sociais
envolvidos - por exemplo: o escravo réu e o Juiz ou Escrivão.
Diante disso, é fundamental tomarmos as fontes como “mecanismos de controle social” , assim como refletirmos sobre as atividades e
as crenças dos “profissionais do sistema jurídico-policial” ou, no dizer
de Correa, “manipuladores técnicos”, que decidiam o que devia constar
nos autos, de acordo com as regras legais preestabelecidas nos códigos
penais 37.
Cientes do caráter oficial da fonte, o pesquisador deve levar em
conta alguns critérios importantes, no que concerne a sua interpretação.
Em primeiro lugar, para que a narrativa não fique restrita apenas à descrição de ações violentas é necessário o diálogo com outras disciplinas,
especialmente o direito. Conforme discutido, a recorrência a este campo
de conhecimento se deve à necessidade de compreensão da linguagem jurídica seja no seu conteúdo teórico ou por meio das narrativas que constituem os autos dos processos e a contextualização do documento com a
legislação em vigor de seu período histórico.
Outro fator importante é com relação à manifestação da opinião
pública sobre um determinado caso. Isto pode levar o pesquisador a se
envolver pelas fontes, de forma que passa da análise acadêmica para o
julgamento do caso, seja no sentido de se juntar ao clamor popular por
“justiça”, seja na discussão da culpabilidade 38. Assim, ressalta-se que o
GRINBERG, 2009, p. 126-127.
ROCHA, Humberto José da. Apontamentos sobre a abordagem historiográfica de casos
criminais. In: HEINSFGELD, Adelar; BATISTELLA, Alessandro; RECKZEIGEL, Ana Luiza
37
38
394
fundamental não é julgar o caso pesquisado, mas sim, concentrar-se em
seu teor historiográfico, percebendo para além da simples manifestação
da violência, ou seja, tratando a fonte no sentido da sua historicidade e
possibilidades de análise científica.
Para finalizar a discussão, consideramos que ainda existem mais duas questões importantes para um tratamento teórico-metodológico adequado a este tipo de
fonte. A primeira é com relação à quantidade de fontes, que exigem uma metodologia diferenciada. Em Judiciário, terra e racionalidade capitalista no Rio Grande do Sul (18891930), Ironita Policarpo Machado aponta para a necessidade de uma sistematização
das fontes em uma perspectiva quantitativa e qualitativa. A metodologia empregada
pela autora resultou na elaboração de quadros por década até a síntese final do período, onde a indicação da predominância das questões em torno da terra delimitou
o problema de pesquisa. Dessa forma, o caminho metodológico para o trabalho
com processos criminais, passa necessariamente por este trabalho de sistematização,
comparação e análise das incidências de tipologias.
A segunda é que ao cotejar os depoimentos dos envolvidos nos processos
com o contexto social ao qual pertencem à leitura da fonte não fica restrita apenas
ao seu próprio universo. Neste sentido, há a necessidade do cruzamento dos processos criminais com outros documentos, por exemplo, jornais, e entrevistas orais.
Estas fontes podem tornar a interpretação mais consistente uma vez que o problema de pesquisa pode ser visualizado sob diferentes aspectos de uma determinada
época.
Pretendeu-se com este trabalho, discutir de forma sintética, as potencialidades dos processos criminais nos estudos da violência no campo político e no âmbito
das relações de poder, tendo por referência a pesquisa sobre a violência na região
de abrangência da Comarca de Passo Fundo/Soledade entre os anos 1920 – 1940.
Neste sentido, podemos apontar que as fontes analisadas constituem um
feixe profícuo de informações para estudos desta dimensão. Os inúmeros processos
presentes no Arquivo Histórico Regional da Universidade de Passo Fundo tem nos
proporcionado um universo a ser desvendado, o que faz deste trabalho apenas a
tentativa de algumas reflexões em torno da nossa pesquisa. Sem pretender esgotar
o tema, cremos que ainda existam diferentes possibilidades de trabalho, como o uso
de outras fontes judiciais ou então abordagens com problemáticas diferentes.
Com relação aos critérios metodológicos, consideramos que a contribuição
está em trazer a tona o debate em torno destas questões. Conforme discutido ao
longo do trabalho, apenas recentemente os historiadores passaram a utilizar as fontes judiciais em suas análises, o que torna a reflexão uma necessidade. Se o objetivo
Setii; MENDES, Jeferson. Fazendo história regional: Economia, espaço e sociedade. Passo Fundo: Méritos, 2010, p.265.
395
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
é a produção de um conhecimento mais plausível, devemos saber que caminho
metodológico será seguido, bem como a partir de que base teórica vai se analisar
as fontes.
Referências bibliográficas
AXT; Gunter. Gênese do estado burocrático-burguês no Rio Grande do
Sul (1889-1929). 2001. (tese de doutorado). Universidade de São Paulo, 2001.
BAJER; Paula. Processo penal e cidadania. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2002.
BARROS, José D’Assunção. História Política: o estudo historiográfico do poder, dos micropoderes, do discurso e do imaginário político. Revista de educação. Cascavel, v.4, n.7, jan/jun, 2009.
BOBBIO; Norberto. Dicionário de política. Brasilia: UnB, 1986.
BOURDIEU; Pierre. “A força do direito: elementos para uma sociologia do
campo jurídico” In: O poder simbólico. Lisboa: DIFEL, 1989.
CHALHOUB; Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 2ª ed. Campinas: Unicamp, 2001.
THOMPSON; E. P. Senhores e caçadores: a origem da Lei Negra. São
Paulo: Paz e Terra, 1987.
FAUSTO; Boris. Crime e Cotidiano: a criminalidade em São Paulo (18801924). São Paulo: Edusp, 2001.
FÉLIX, Loiva Otero. Historiografia do Poder Judiciário e metodologia
do banco de dados. In: FÉLIX, Loiva Otero e GRIJÓ, Luiz Alberto.
Histórias de vida. Entrevistas e depoimentos de magistrados gaúchos. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul,
1999, v.1, p. 17-26. (Projeto Memória do Judiciário Gaúcho).
­­­­­­­­­­________________. Coronelismo, borgismo e cooptação política. Porto
Alegre: Mercado aberto, 1987.
FOUCAULT; Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Trad. Raquel
Ramalhete. Petrópolis: Editora Vozes, 2004.
GINZBURG; Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das letras,
1986.
GRINBERG; Keila. A história nos porões dos arquivos judiciários. In: LUCA, Tânia
Regina de; PINSKY, Carla Bassanezi (orgs). O historiador e suas fontes. São Paulo:
Contexto, 2009.
GUERREIRO; Caroline Weber. Vulcão da Serra: violência política em Soledade
(RS). Passo Fundo: UPF, 2005.
396
MACHADO; Maria Helena Pereira Toledo. Crime e Escravidão: Trabalho, luta e
resistência nas lavouras paulistas (1830-1888). São Paulo: Brasiliense, 1987.
MACHADO, Ironita Policarpo; FREITAS, Felipe Berté. História e direito: um diálogo metodológico. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DOS ESTADOS AMERICANOS. Anais eletrônicos. UPF: Passo Fundo. Disponível em www.upf.br/ppgh/
images/stories/downloads/anais-iv-shr.pdf.
­­­­­­­­­_________________. Judiciário, terra e racionalidade capitalista no Rio Grande
do Sul (1889-1930). 2009. (tese de doutoramento). Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, 2009.
PERROT; Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros.
São Paulo: Paz e Terra, 1988.
RÉMOND; René. Uma história presente. In: RÉMOND, René (org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/FGV, 1996.
REVEL; Jacques (org) Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio de janeiro: FGV, 1998.
ROCHA; Humberto José. Apontamentos sobre a abordagem historiográfica de casos
criminais. In: HEINSFGELD; Adelar; BATISTELLA; Alessandro; RECKZEIGEL;
Ana Luiza Setii; MENDES; Jeferson. Fazendo história regional: Economia, espaço
e sociedade. Passo Fundo: Méritos, 2010.
SANTOS; Washington. Dicionário jurídico brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
VILAR; P. História do Direito, História Total. Trad. Ilka Stern Cohen. São Paulo:
Educ, 2006.
Locais de pesquisa
Arquivo Histórico Regional da Universidade de Passo Fundo
Fontes documentais
Processo crime no 161. Caixa 4. AHR/UPF. Passo Fundo-Rs.
Traslado de processo crime no 185. Caixa 4. AHR/UPF. Passo Fundo-Rs.
Processo crime no 2809. Caixa 1. AHR/UPF. Passo Fundo-Rs.
397
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
398
Boêmios do Sul: a noite pelotense a partir de processos criminais
(1930-1945)
Thaís de Freitas Carvalho
Resumo: O presente artigo versa sobre o tema da noite e dos hábitos culturais que perpassam
o cotidiano dos populares das décadas de 30 e 40 do século XX, na cidade de Pelotas, região sul
do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Tomando por base da análise o período compreendido
entre 1930 e 1945, parte-se do pressuposto de que as transformações políticas em curso afetavam as expressões culturais da população, uma vez que as medidas getulistas dialogavam com
a cultura popular, por meio do rádio e da propagação de circuitos boêmios ligados à identidade
nacional. Adotando os processos criminais ocorridos no âmbito noturno como nosso campo
privilegiado de observação, pretende-se percorrer os hábitos dos populares pelotenses no espaço urbano da época, a fim de mapear a tênue sociabilidade boêmia dos bares e os códigos de
conduta que permeavam estas noites, estes homens e seus conflitos.
Palavras-chave: Noite – Cultura Popular – Boemia – Sociabilidade – Masculinidade.
A Cidade
A
cidade de Pelotas situa-se na região sul do Estado do Rio Grande
do Sul, distando cerca de 260 km da capital do Estado, Porto
Alegre. Constitui, juntamente com a cidade de Rio Grande, um
dos polos da região, aglutinando pessoas em busca de saúde, educação e serviços.
Atualmente, Pelotas tem cerca de 300 mil habitantes, e ainda é vista como centro
cultural pelos habitantes da região, oferecendo opções de eventos teatrais, shows, bares e circuitos noturnos de diversão. Percorrendo a história desta cidade,
marcada pela aristocracia de origem burguesa espelhada em modelos europeus
de comportamento, bem como pela presença africana no desenvolvimento das
charqueadas, de matriz escravagista, identificamos múltiplas influências artísticas,
musicais, religiosas, que compõem o imaginário popular e o cotidiano dos cidadãos
através das décadas.
A noite pelotense é responsável por grande parte destas construções na
memória coletiva, uma vez que podemos identificá-la como espaço de afirmação
cultural de diferentes gerações, desde as expressões de negros e elite charqueadora
do século XIX até as opções das mais diversas ‘tribos’ na atualidade. Mario Osorio
Magalhães (1993) destaca as distinções entre os hábitos da elite, mais ligados ao
âmbito privado e o cotidiano dos trabalhadores, cujo ritmo de trabalho extenuante
399
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
na segunda metade do século XIX é ressaltado como um dos fatores pelos
quais a noite se constituiu enquanto a concentração das horas de lazer do
povo, que não dispunha de mais horários na semana para desfrutar de alguma diversão. Dentre as atividades identificadas pelo autor neste contexto
popular, estão os passeios na Rua da Praia (Porto) para assistir as retretas da
banda Lira Pelotense, corridas de touro, bailes, circos e os passeios na praça à
noite. Consolidavam-se, já nesta época, hábitos tradicionais, como o “sentar
na frente das casas ou, como ironizava um jornal, ‘de olhar as colunas do gás’,
quando ainda estava a iluminação a gás em fase de instalação”.1
O carnaval deve ser destacado como um dos maiores propulsores
da cultura pelotense na primeira metade do século XX, ainda que tivesse já
grande importância desde o século XIX. Devido à crise econômica que Pelotas viveu na década de 1920, os tradicionais clubes sociais, que marcavam os
carnavais pela suntuosidade das fantasias e carros alegóricos, as exibições das
Rainhas e os desfiles em público, sofreram o baque da dificuldade financeira.
Com isso, passaram a recuar cada vez mais para um âmbito privativo, restringindo suas comemorações a portas fechadas e mantendo os bailes apenas para
seus sócios. É desta época que percebe-se uma ênfase ao carnaval popular,
de rua, dos blocos e cordões, destacado pelo autor de Dias de Folia: o carnaval
pelotense de 1890 a 1937 (2003), o pesquisador Álvaro Barreto. O autor salienta
que, nas décadas de 1920 e 1930, a preferência musical destes carnavais populares pelotenses é por sambas e marchas, frequentemente com letras satíricas e bem-humoradas. Celebração com diversas fases, o carnaval no Brasil
é sintomático das múltiplas influências culturais que perpassam sua história.
Sabe-se que, mesmo antes de o “elemento negro” se popularizar, os negros já
davam vazão às suas manifestações culturais nas épocas de carnaval, mas de
maneira mais vigiada pelo poder público e pela elite branca. Na verdade, esta
via de mão dupla que foi a trajetória carnavalesca revela o quanto este período
do ano era aproveitado por todos os setores sociais para se libertar das conveniências humanas e, no caso dos escravos, criar estratégias de expressão e
preservação de sua cultura original.
A eletrificação na cidade, embora tenha começado já em 1914, estende-se até o período estudado, e trouxe inovações para o cotidiano dos
citadinos. Atividades como o cinema tiveram ampla adesão, sendo as sessões
noturnas muito disputadas.
No início dos anos 30, a cidade dispunha de mais de uma
dezena de salas exibidoras. Com o advento do cinema so MAGALHÃES, Mario Osorio. Opulência e Cultura na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul:
um estudo sobre a história de Pelotas (1860-1890). Pelotas: EdUFPel; Livraria Mundial, 1993, p. 155.
1
400
noro […] proliferaram as empresas exibidoras e as salas se
espalharam do centro para a periferia urbana, instituindo os
cinemas de bairro.2
Geruza Borges (2008) destaca alguns impactos residenciais importantes, como a utilização de aparelhos domésticos, por exemplo a geladeira e o
gramofone, os quais hoje sabemos serem instrumentos de novas condições de vida
e acesso à cultura. O próprio funcionamento da Rádio Pelotense (desde 1928) teve
suas primeiras transmissões oficiais “das 21 às 23 horas, nas noites de quinta-feira
e domingo”3, o que reforça a ideia de uma noite que se adensava. A vinculação
do aparecimento da energia elétrica com uma atmosfera de apropriação de novos
hábitos que estendiam o tempo da cultura popular não deixam de fazer parte de
uma aspiração de modernidade, verificada em todo o país e ligada a novos valores
culturais expressivos de uma urbanidade civilizada. O período político inaugurado
com a Revolução de 30 é destacado como de maior atenção para o fornecimento
de energia e a regulação dos órgãos que administravam os recursos hídricos.
Atenção semelhante à região de Pelotas no período é também percebida
com relação ao Porto e as reformas e melhoramentos de que este vinha carecendo.
Enquanto os outros portos importantes do Estado (Rio Grande e Porto Alegre)
já tinham seus canais dragados e instalações reformadas, em Pelotas as melhorias
só tiveram início após 1930. “As obras, construção de 464 metros de cais e alguns
armazéns, tiveram início em 20/11/1933 e o novo porto passou a funcionar em
12 de janeiro de 1940”.4 Talvez isso se deva em parte a uma tentativa do governo
Vargas de aplacar a crise que assolava a indústria do charque e as estâncias de criação de gado na metade Sul do Estado. Como se sabe, antes da Revolução de 30,
o caudilho foi presidente do Rio Grande do Sul e buscou atender igualmente as
regiões da Serra quanto da Campanha, levando-se em consideração que o Partido
Republicano Riograndense (PRR) marcou sua administração por dar maior atenção a investimentos e reivindicações da região serrana, revelando certo descaso
com a outrora mais rica região do Estado, a Campanha ou, de maneira mais geral,
a metade Sul como um todo.
Estas elites estancieiras e charqueadoras, fragilizadas pela crise econômica
do pós-guerra, viram o mercado se restringir, primeiro, com a abolição da escravatura – sistema que propiciava grande parte de seu mercado consumidor – e, em
seguida, com a concorrência platina e o surgimento dos frigoríficos. As reivindicações e revoltas destes empresários descontentes marcaram a história do Estado em
LONER, Beatriz Ana, GILL, Lorena de Almeida e MAGALHÃES, Mario Osorio (organizadores). Dicionário de História de Pelotas. Pelotas: EdUFPel, 2010, p. 63.
3
LONER, GILL e MAGALHÃES (organizadores). Op. cit., p. 214.
4
LONER, GILL e MAGALHÃES (organizadores). Op. cit., p. 199.
2
401
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
diversos momentos (Revolução Federalista, 1893 e Revolução de 1923), refletindo
o declínio econômico das atividades responsáveis pelo apogeu sociocultural da
região de Pelotas, como bem defende Mario Osorio Magalhães (1993). Os antagonismos decorrentes destes embates só se arrefeceram quando Vargas, ao final da
década de 1920, iniciou uma série de incentivos para diversificar e fortalecer a economia da região sul do Estado - alguns dos quais, mencionados acima -, medidas
que já exprimiam seu caráter político unificador.
Vale ressaltar que as relações do governo varguista com a cultura popular
são motivo de inúmeras pesquisas, algumas voltadas para a propaganda por meio
do rádio, outras no que diz respeito à apropriação da música popular pelo governo
e, apesar da diversidade de enfoques e abordagens, um aspecto em destaque sobre
a relação do rádio e da música popular com a almejada ‘unidade nacional’, é que
este processo não é considerado uma via de mão única, e sim, uma relação de troca.
Isto é: o público ouvinte não estaria tão propenso a acatar a música que chegava
pelo rádio, ou as propagandas dos produtos anunciados se não houvesse o desejo
para tal. Ademais, há que considerar um mercado fonográfico já em desenvolvimento, com a disseminação dos gramofones e discos.
Assim, “é preciso romper com uma visão excessivamente estigmatizada
sobre a cultura brasileira durante a chamada Era Vargas, como se tudo fosse resultado de uma conspiração do Estado sobre a sociedade.”5 Afinal, partimos da
premissa de de que a mídia não impõe, pois não é inteiramente responsável pelo
espaço da recepção e da interpretação.6
A necessidade de um canal de comunicação e troca quase que simultânea
de informações e cultura era inerente a um âmbito popular com acesso restrito
à imprensa escrita. Talvez este seja o primeiro indício das razões de uma ampla
adesão à “imprensa falada” do rádio, para usar um termo encontrado nas crônicas
pesquisadas por Newton Dângelo.7 Outra consideração importante para o período
contemplado nesta pesquisa (década de 30), é a de que “o crescimento do rádio
brasileiro se deu lentamente na década de 1920, foi acelerado na década de 1930,
ANJOS, Carlos Versiani dos. Um novo olhar sobre o DIP: uma revolução na arte da propaganda e do marketing cultural. 7º Encontro Nacional da Rede Alfredo de Carvalho - ALCAR,
agosto de 2009, Unifor, Fortaleza/CE, p. 13. Disponível em: <http://paginas.ufrgs.br/alcar/
encontros-nacionais-1/7o-encontro-2009-1/UM%20NOVO%20OLHAR%20SOBRE%20
O%20DIP.pdf> Acesso em: 24/02/2012.
6
CHARTIER, Roger. Cultura Popular: revisitando um conceito historiográfico. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, nº 16, 1995, p. 179-192. Disponível em: <http://ftp.ciego.cult.cu/
Libreria%20en%20red/c/CulturaPopularChartier.pdf> Acesso em: 29/11/2010.
7
DÂNGELO, Newton. O popular e o massivo na linguagem radiofônica (Uberlândia, 19391970). IN: Anais Eletrônicos do XXII Simpósio Nacional de História – História, acontecimento e narrativa
/ Associação Nacional de História, João Pessoa (PB), ANPUH, 2003, p. 1.
5
402
mas, somente após o término da Segunda Guerra Mundial, o veículo se tornou
acessível para as classes populares.”8 De fato, podemos perceber, no período aqui
estudado, que a família detentora de um aparelho receptor de rádio aglutinava amigos e vizinhos para ouvir as transmissões. Isso quando não acontecia de proprietários de estabelecimentos comerciais colocarem seus aparelhos virados para a rua,
reunindo, assim, dezenas de pessoas ao redor do rádio para escutar a programação.
Tanto no interior quanto nas cidades, o “rádio oficial” deveria
ser ouvido por todos. O Decreto-Lei nº 1.949, de 30 de dezembro de 1939, obrigava todos os comerciantes a possuir aparelhos
receptores de rádio em seus estabelecimentos e os serviços de
alto-falantes a transmitir o programa oficial do DIP.9
É evidente que o rádio teve papel essencial nesta difusão cultural, mas é
importante perceber que transformações estavam já em curso, atentando para a
importância da cultura popular na vida dos brasileiros, populares e intelectuais.
Afinal, inúmeros registros e movimentos artísticos já carregavam, desde a década
anterior (anos 20), uma série de transformações latentes em nossa cultura, como
foi o caso da Semana de Arte Moderna de 1922.10 E as trocas culturais, concomitantes ou mesmo anteriores ao surgimento do rádio no universo dos populares,
sedimentavam, pouco a pouco, as relações culturais entre diferentes regiões brasileiras. Sobre o contexto pelotense, é válido ressaltar que “o porto era um dos
principais fatores do desenvolvimento sócio-econômico e cultural de Pelotas, pela
dinamização do comércio e dos contatos com o restante do mundo. […] registrando em 1926, o movimento de 682 navios”.11
O contexto portuário da cidade de Rio Grande e do próprio porto pelotense traziam uma gama de possibilidades de troca entre a cultura popular de
cada recanto brasileiro, uma vez que os marinheiros, atracados nestas cidades e
em busca de diversão ou companhia, aproveitavam o tempo noturno das folgas e
dispensas para frequentarem bares, armazéns e bailes, interagindo com a cultura
local. Entre as atividades musicais verificadas na cidade desde o século XIX até
a segunda metade do século XX, é a serenata, destacando-se como um segmento
importante das noites pelotenses. A historiografia recente tem apontado alguns
caminhos na investigação destes rituais seresteiros, como bem mostrou o trabalho de Helena Teramoto, em que a partir de uma ótica etnomusicológica a autora
CALABRE, Lia. Políticas públicas culturais de 1924 a 1945: o rádio em destaque. Revista Estudos Históricos, América do Norte, 1, ago. 2003, p. 162. Disponível em: <http://bibliotecadigital.
fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2190/1329>. Acesso em: 24/02/2012.
9
Ibid., p. 171.
10
Cf. ANJOS, Carlos Versiani dos. Op. cit.
11
Cf. LONER, GILL e MAGALHÃES (organizadores.). Op. cit., p. 198.
8
403
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
pesquisou as trajetórias de duas cantoras pelotenses que participaram de circuitos seresteiros nas últimas décadas do século XX.12 A pesquisa da autora trouxe
à tona uma complexa rede de músicos, cantores e admiradores da seresta em
Pelotas, que persiste na tarefa de preservar a memória destes rituais boêmios e da
importância destes para a vida dos participantes, bem como para a reafirmação
de uma sociabilidade boêmia simbólica para as noites da cidade.
Em trabalho anterior, desenvolvi pesquisa por meio da História Oral
que permitiu reconstituir alguns cenários destas noites boêmias ao entrevistar
músicos populares de um bar característico das noites pelotenses: o Bar e Restaurante Liberdade.13 A pesquisa ouviu relatos das trajetórias musicais que levaram
estes músicos a tornarem-se referências para o contexto do choro não somente
em âmbito local, como nacional. Os relatos corroboram a presença irrefutável
da seresta nas noites pelotenses, sendo parte tanto das vivências destes músicos
(décadas de 60 e 70) como também da geração dos pais destes (décadas de 30 e
40).
E precisamente este universo popular, de relações orgânicas, conversas informais e encontros casuais nas ruas e botequins, é o que interessa a esta
pesquisa. Trabalhar com a noite popular pelotense significa dar passagem aos
desfiles cotidianos de trabalhadores, seresteiros, apaixonados, boêmios e ébrios
que compunham o ritual noturno do lazer e do domínio sobre o próprio tempo.
O Boêmio
É preciso definir as interpretações que adotamos ao estudar a boemia.
Por tratar-se de um objeto delicado, envolvendo inúmeras estigmatizações ao
longo das décadas, precisamos deixar clara nossa posição de tentar perceber estes boêmios por meio das fontes criminais. Longe de reforçar o estigma ligado
à marginalização, recorremos aos processos criminais para tentar visualizar com
mais clareza as escolhas e expressões noturnas destes atores, por ser este um
tipo de fonte dotada de pormenores, descrições e eventos que podem detalhar o
cotidiano noturno que buscamos.
Entre este aporte teórico, está Maria Izilda Matos, que salienta para as
construções idealizadas do boêmio, enfatizando que a maior parte das produções
TERAMOTO, Helena Harumi. Cantoras seresteiras no extremo sul do Brasil: dois retratos etnomusicológicos. 2011. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Música), Universidade Federal
de Pelotas, Pelotas.
13 CARVALHO, Thaís de Freitas. Um lugar chamado Liberdade: música popular, tradição e boemia em
Pelotas. 2010. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em História), Universidade Federal
de Pelotas, Pelotas.
12
404
sobre este modo de vida acabam por identificá-lo com o mundo do não-trabalho,
da rejeição à disciplina e à organização familiar.14 De fato, parece haver uma clara
distinção entre o ‘boêmio’ e o ‘malandro’ na historiografia. Roberto Da Matta15 e
José Novaes 16 ligam o malandro à rejeição ao mundo do trabalho, às regras e imposições de horários que condicionam a vida do trabalhador. Já o ‘boêmio’ é mais
facilmente identificado com concepções menos radicais, que permitem um trânsito
maior do indivíduo pelos mundos do trabalho e da ‘malandragem’. Contudo, é
necessário aludir às ambiguidades inerentes a estes atores, e aos conflitos internos
que não raro o acompanham. Nas palavras de Maria Izilda Matos:
O ser boêmio é múltiplo, mas na presente investigação significa viver diferentemente, estabelecer regras de modo distinto,
ter uma vida que escape à monotonia e ao previsível, respeitando, contudo, certos códigos estabelecidos nesse universo. Não
se entende aqui boemia como um todo fechado, autônomo e
homogêneo. A experiência boemia deve ser focalizada de forma
relacional, complementar e interdependente à vivência do dia e à
do trabalho, e não em confronto a elas.17
É interessante traçar um paralelo entre a concepção de boêmio múltiplo
por Maria Izilda Matos e a desenvolvida por Antonio Paulo Benatti em sua pesquisa sobre boemia e prostituição em Londrina (PR) de 1930 a 1970.18 Benatti
identifica seu tipo boêmio enquanto um “anfíbio” capaz de transitar tranquila e
“higienicamente” – para usar um dos termos da época – entre o mundo normatizado e o mundo do prazer, pois tem o discernimento para saber a hora de um e
de outro. O autor encontrou, em suas consultas aos jornais, um artigo intitulado
“Nossos tipos: o boêmio”, em que a distinção entre o verdadeiro boêmio, higienizado, e o falso boêmio, marginal, aparece clara e francamente explicitada, com
MATOS, Maria Izilda S. de. Nas fronteiras da história: a cidade iluminada. IN: NODARI,
Eunice et al (orgs). Simpósio Nacional da Associação Nacional de História (20: 1999: Florianópolis)
História: fronteiras / Associação Nacional de História. São Paulo: Humanitas / FFLCH / USP:
ANPUH, 1999.
15
DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio
de Janeiro: Zahar Editores S.A., 1983.
16 NOVAES, José. Um episódio de produção de subjetividade no Brasil de 1930: malandragem
e Estado Novo. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 6, n. 1, p. 39-44, jan./jun. 2001. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/pe/v6n1/v6n1a05.pdf> Acesso em: 24/02/2012
17
Cf. MATOS, Maria Izilda. Op. cit., p. 960-961.
18
BENATTI, Antonio Paulo. O Centro e as Margens: Boemia e prostituição na “capital mundial
do café” (Londrina-PR, 1930-1970). 1996. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Paraná, Curitiba. Disponível em: <http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/
bitstream/1884/24598/1/D%20-%20BENATTI,%20ANTONIO%20PAULO.pdf> Acesso
em: 29/11/2010.
14
405
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
direito às referências que faz a música popular sobre esta questão.19 Nas palavras
do autor:
Boêmios e malandros não falariam a mesma língua, apesar do
boêmio saber a gíria da malandragem. O boêmio tem todas as
virtudes do cidadão ideal: bons princípios, moral familiar, é
trabalhador e respeitador; o falso boêmio, todos os defeitos e
vícios dos desclassificados de índole vagabunda. O verdadeiro
boêmio é o homem que brinca, o ser lúdico que ama os prazeres
da noite, que anda no lado escuro mas permanece tocado pelas
luzes do bem. O falso boêmio, ao contrário, é um ser das trevas,
“de índole perversa e má”.20
A ideologia higienista que perpassou estas primeiras décadas do século
XX, causou impactos na sensibilidade das diversões noturnas e na cultura do país.
Porém, é necessário reiterar que o recomendado não era eliminar, mas sim, regular
e orientar a população acerca do melhor modo de proceder nestes círculos boêmios, adotando padrões de comportamento e civilidade ligados à lógica burguesa
de modernidade que se espalhava pelos centros urbanos. Homens voltados para
o trabalho é o que a sociedade necessitava, e foi esta a lição propagada por governos, médicos e intelectuais do período, seja por meio das propagandas, jornais ou
da música popular.
De fato, aspecto em comum é a predominância de uma rede de sociabilidade masculina nas noites estudadas. Apesar de algumas mulheres serem vistas na
noite, são quase sempre ligadas a comportamentos e/ou atividades condenáveis,
sendo o simples ato de uma mulher andar na rua à noite desacompanhada, atestado de má conduta e moral duvidosa. Tal circunstância, no início do século, estava
inegavelmente relacionada ao fator socioeconômico, uma vez que a necessidade
de “preservar-se” e manter uma conduta recatada fazia com que as senhoras de
setores mais abastados contratassem criadas e domésticas para atuar em serviços auxiliares, que muitas vezes obrigavam as empregadas a saírem em busca de
artigos e mantimentos para a patroa. Mario Osorio Magalhães cita, sobre o caso
pelotense, o recato e a preservação da imagem da mulher como indicativos de
famílias respeitáveis e de conduta moral irrepreensível em fins do século XIX.
Estas moças aprendiam piano, francês, bordados e culinária, e muito raramente
saíam à rua, exceto pelas ocasiões dos saraus em casa de outras famílias, quando
Para conhecer a polêmica entre Noel Rosa e Wilson Batista, conhecida por ilustrar o embate
entre o malandro afinado com a higienização do período varguista e o malandro do morro, de
negócios ilícitos e violento, não é necessária uma procura muito demorada, mas recomendo o
artigo de Gilmar Rocha, “O sistema da fama: rádio, gênero e malandragem no Brasil dos anos
1940” (2006).
20 Cf. BENATTI, Antonio Paulo. Op. cit., p. 205.
19
406
iam ao teatro ou às igrejas. O autor faz referência a uma quadrinha que aborda este
isolamento, retirada do cancioneiro gaúcho:
Na cidade de Pelotas
as moças vivem fechadas
de dia, fazem biscoitos,
de noite, sonham caladas.21
Pensando nestas questões de gênero, Maria Izilda Matos escreve Meu Lar é o
Botequim: alcoolismo e masculinidade, em que a autora propõe uma viagem pelo imaginário
do século XX acerca do problema do alcoolismo vinculado à ideia de masculinidade,
analisando campanhas por uma saúde pública vinculada à hábitos sóbrios de diversão
e conduta. Para tanto, a autora contrapõe as versões médicas com a visão difundida
nas canções populares sobre o assunto, tornando extremamente interessante a reflexão
sobre o embate entre os esforços de conscientização e a força de um hábito intrínseco à
cultura popular.22 Tais embates eram emblemáticos de uma época em que o país passava
por uma readequação, tendo em vista o rompimento recente com o sistema escravista, o
êxodo rural e a necessidade subsequente de voltar estes contingentes populacionais que
inflavam os centros urbanos para uma noção burguesa de ordenação dos costumes e
estímulo ao crescimento através do trabalho. Em seu texto, ela revela:
Os discursos em questão reiteradamente associavam o alcoolismo ao
jogo, fumo, vagabundagem, boemia e mendicância, provocados por
uma ociosidade que era incompatível com uma “sociedade moderna
e civilizada” direcionada para “a ordem e o progresso”.23
A mesma constatação é ressaltada por Chalhoub em Trabalho, Lar e Botequim.24 Nas pesquisas com fontes judiciais, o autor encontrou a íntima relação,
explicitada no discurso coercitivo, entre a ociosidade e a degeneração social. “O
ocioso é um pervertido, um viciado que representa uma ameaça à moral e aos
bons costumes”25, e caberia ao aparato policial e judiciário reforçar os “valores
fundamentais da ética de trabalho capitalista”26. No livro de Chalhoub, fica claro
o impacto da competição desenfreada na vida nos trabalhadores, chegadas com a
perspectiva de crescimento e modernização do início do século XX. No entanto,
Cf. MAGALHÃES, Mario Osorio. Op. cit., p. 148.
MATOS, Maria Izilda Gonçalves de. Meu lar é o botequim: alcoolismo e masculinidade. 2ª ed. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001.
23
Ibid., p. 34.
24 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da
belle époque. 2ª Ed. Campinas, SP: UNICAMP, 2001.
25
Ibid., p. 74.
26
Ibid., p. 87.
21
22
407
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
o autor destaca que as consequências e o modo como essa nova lógica de funcionamento da sociedade se impunha, ganhava contornos distintos no cotidiano
popular. Redes de solidariedade e identificações étnicas são mapeadas pelo autor
neste contexto, relativizando e mostrando as múltiplas origens de conflitos nesse
dia a dia, por meio de um mergulho nestas vivências.
É interessante, ao pensar o ritual do botequim para o trabalhador do início
do século passado, refletir sobre alguns pensamentos de Da Matta acerca da rotina
dos brasileiros. O autor propõe o estudo das dinâmicas brasileiras por meio das
“relações entre seus momentos mais importantes: o mundo quotidiano e as festas;
a rotina e o ritual; a vida e o sonho; a personagem real e a paradigmática”.27 O momento em que os indivíduos, diante das pressões externas do ambiente humano,
desenvolvem respostas coletivas, que acabam permitindo condições para que se
crie uma identidade comum.
Neste trabalho, ficou clara a importância dos hábitos noturnos da boemia
e do botequim para a cultura popular brasileira. Tão claro está, que é possível, sem
dúvida, propor que este hábito cotidiano foi elevado, ao longo das décadas, ao
estatuto de ritual. Em alguns períodos mais condenado, em outros, vigiado, mas o
ritual notívago de diversão, camaradagem e prazer perpetua-se através do tempo,
e agrega pessoas de diversos setores sociais ao redor de um mesmo ideal de lazer,
descanso e domínio sobre as próprias escolhas. Portanto, não quero dizer aqui, que
o ritual boêmio é âmbito de inversão de status sociais ou de comunhão entre as classes, mas sim, que significa um momento do dia em que as aspirações de igualdade,
bem-estar e lazer, independente de quaisquer classificações, salientam-se.
A noite da boemia é o momento do dia em que os desejos de cumplicidade e solidariedade entre os indivíduos ficam mais evidentes, e é precisamente
ao quebrar essa sensível ideia de irmandade noturna que se fazem os conflitos. É
notável perceber o quão frágeis são essas bases, pois, muitas vezes, encontramos
conflitos no botequim provocados por simples menções que trazem à tona diferenciações sociais do “mundo real”. Nesse sentido, penso os hábitos noturnos populares, ou, a noite da boemia, como “o momento extraordinário que permite […]
colocar em foco um aspecto da realidade e, por meio disso, mudar seu significado
quotidiano ou mesmo dar-lhe um novo significado”.28 O simples ato de partilhar
relatos, contos, piadas, uma mesa de bar ou de jogo, tocar e cantar músicas, significa, neste universo, participar de um reduto de sociabilidade e solidariedade onde
deve prevalecer o sentimento de igualdade entre os homens. Porém, é necessário
atentar para as outras formas de distinções criadas a partir da convivência e do véu
de igualdade inicial. Como destaca Denise Jardim,
Cf. DAMATTA, Roberto. Op. cit., p. 30.
Cf. DAMATTA, Roberto. Op. cit.
27
28
408
do ponto de vista dos homens que frequentam os butecos, o reconhecimento de uma igualdade entre os frequentadores não elimina a possibilidade de diferenças e hierarquias nas relações; pelo
contrário, possibilita que essas hierarquias estejam em jogo durante as interações. É ali, mesmo através do reconhecimento entre
as distâncias e distinções, que se estabelecem cumplicidades entre
os homens. Do ponto de vista de um sistema baseado na honra,
e coerente com ele, os participantes destas conversas nos butecos
devem se reconhecer como iguais para participar dos eventos, o
que não significa que suas posições não estejam sendo demarcadas durante as conversas. É a honra e a posição conquistada frente
aos outros, o que está sendo disputado.29
Como se o ritual boêmio do bar ou botequim fosse um espaço privilegiado onde, apesar de reunir diferentes indivíduos, com diferentes opiniões, rotinas e
visões de mundo, o ritual noturno de ouvir, contar e compartilhar momentos, angústias e alegrias (além de alguns brindes) tivesse a capacidade de recriar posições,
qualificações e distinções entre seus participantes. Ao uni-los em torno das mesmas
imposições – a lógica moderna e industrial do trabalho, da regulação nos hábitos e
nos comportamentos, as pressões do provimento familiar e da relação marital, etc. -,
o ritual masculino da recompensa por mais um dia árduo de labuta ressignificava as
relações entre os homens. Segundo Matos, uma referência encontrada nas músicas
populares foi a de que
O homem devia priorizar a amizade de outros homens. Assim,
o masculino tinha espaços – o bar – e valores compartilhados. A
solidariedade masculina era uma sentimento explicitamente positivo, em detrimento das relações com as mulheres, marcadas pela
divergência, falsidade e dor, sendo o bar identificado como um
espaço de fuga às cobranças e pressões do lar, ou seja, da mulher.30
Assim, ao buscar os códigos de uma sociabilidade boêmia, estamos, ao mesmo tempo, propondo um mergulho no cerne de uma tradição brasileira de rituais
noturnos de camaradagem, mas que não excluem as configurações complexas envolvendo distinções sociais e relações de gênero. É preciso um olhar atento para os
códigos que permeiam o mundo da noite, para que estejamos prontos a dialogar
entre o âmbito local e o nacional, sem perder as sutilezas deste momento único do
cotidiano popular.
JARDIM, Denise. De bar em bar: identidade masculina e auto-segregação entre homens de classes populares. 1991. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, p. 92. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/
handle/10183/1404/000068297.pdf ?sequence=1> Acesso em: 29/11/2010.
30 MATOS, Maria Izilda S. de. Meu lar é o botequim: alcoolismo e masculinidade. 2ª ed. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 2001, p. 83.
29
409
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Partindo de um número seleto de casos que fazem parte de uma pesquisa
maior, pretendemos mostrar como pode-se observar, nos vestígios e memórias de
uma Pelotas da década de 30 do século XX, a incipiente sociabilidade boêmia com
características singulares, e que permaneceria no imaginário e no cotidiano de seus
habitantes por décadas a fio.
O Boêmio Na Cidade
Acertos de contas, injustiças, ofensas e altercações. Parte destes desentendimentos eram resolvidos nos bastidores, outros viraram documentos, papéis que hoje
contam um pouco da maneira como a noite se dava nas ruas, no calor dos acontecimentos, com gente de carne e osso de outros tempos.
Zéca Taco saíra naquela noite de dezembro com a cabeça quente. O ano
de 1931 findava e ele não tinha muito a perder, portanto não podia desperdiçar uma
oportunidade. Por volta das nove encontrara João e estava feito o estrago: com os
nervos à flor da pele gritou no boteco a tirar satisfações, queria de volta a petiça!31
Um ano depois, um gramofone tocava no “kiosque” à Avenida 20 de setembro, próximo ao cemitério, mas os acordes charmosos vindos da campânula
não foram suficientes para evitar o desastre. Após a briga, um dos contendores cai
mortalmente ferido.32
O motivo, um desentendimento no jogo de escova33, uma discussão sobre
“Foot-Ball”34, por vezes os próprios envolvidos na briga já não sabiam dizer, nos
depoimentos, qual teria sido a razão do desentendimento, ou preferiam não dizer
para evitar ao máximo complicações com a Justiça. Sidney Chalhoub (2001) encontra esta resistência analisando os processos envolvendo os trabalhadores do Rio de
Janeiro, no início do século XX.
Reflexo de códigos de conduta específicos de um universo popular que
nem sempre podia contar com a proteção ou o apoio das forças policiais, a difícil
colaboração dos populares revela um cotidiano que se resolvia por seus próprios
meandros e mantinha suas próprias regras de negociação. No entanto, os ideais
masculinos ligados à honra e a noções de virilidade que não raro exigiam a violência, agora eram invadidos por padrões de civilidade que se difundiam pelos circui Processo nº 1566, Caixa 79, Estante 128B, Subfundo 2º Cível e Crime, Fundo Comarca de
Pelotas, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS).
32
Processo nº 1568, Caixa 79, Estante 128B, Subfundo 2º Cível e Crime, Fundo Comarca de
Pelotas, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS).
33
Processo nº 1582, Caixa 80, Estante 128B, Subfundo 2º Cível e Crime, Fundo Comarca de
Pelotas, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS).
34
Processo nº 1562, Caixa 79, Estante 128B, Subfundo 2º Cível e Crime, Fundo Comarca de
Pelotas, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS).
31
410
tos urbanos. Nas pesquisas de Maria Izilda Matos (2001) é bastante evidente a ligação entre as normas de conduta divulgadas nos jornais e os hábitos saudáveis de
pais de família livres do consumo de álcool. O que era contraposto pelas canções
populares, que reforçavam a ideia de que só em uma mesa de bar, na companhia
de outros homens, seria possível afogar as amarguras e pressões da labuta diária.
Aspecto relevante na dinâmica deste contexto noturno são as estações do
ano, que influenciam diretamente a apropriação popular do espaço público, devido
ao intenso frio que marca os invernos da região. Nota-se, nos processos criminais
analisados, que não há uma diminuição das ocorrências nos meses de temperaturas mais baixas, mas é possível perceber que o consumo de cachaça - para ‘aquecer’ - nos bares e estabelecimentos do tipo, como quiosques, armazéns e cafés,
marcam boa parte das ocorrências, como podemos observar em um trecho de
um caso ocorrido em 1937: “encontrára Filinto Elysio das Neves a victima, nas
proximidades do mercado central e a convidára para tomar um trago de cachaça,
no Café Glória situado neste local”.35
As ocorrências não se concentram em áreas específicas da cidade, sendo
comuns também nas áreas consideradas periféricas e também nas zonas rurais. Com
o diferencial de que em âmbito rural os homens tendem a reunir-se para beber ou
jogar em casas e estabelecimentos privados e fechados, ao passo que na cidade os
processos mostram uma tendência de ocorrência de conflitos em locais abertos ao
público, como cafés, armazéns e casas comerciais.
Há casos em que determinadas diferenciações no interior do bar, de caráter
étnico ou socioeconômico, ainda que sutis, são capazes de desencadear revolta e
ações violentas. Em 16 de setembro de 1933, por volta da 1h da madrugada, Mario
bebia sozinho em uma mesa no Restaurant Guido, no centro, enquanto o dono do
restaurante, Guido Brughski, e mais 2 clientes, Carlos Hoffmann e Alberto Heilsmann, bebiam e conversavam animadamente, em alemão, em uma mesa próxima.
A circunstância de segregação e descortesia impetrada pelos alemães gera o ressentimento capaz de provocar o conflito entre Mario e um dos alemães e fazer com
que o dono do restaurante expulsasse Mario do restaurante. O orgulho ferido faz
com que Mario aguarde até o dia seguinte em frente ao estabelecimento, para então
vingar-se da humilhação e esfaquear Guido.36
De um modo geral, pode-se afirmar que a pesquisa com os processos permite notar a sensibilidade destas relações, permeadas por inúmeros componentes
do campo social, e definidora deste. Destacamos aqui produções que tiveram nas
Processo nº 1280, Caixa 57, Estante 128B, Subfundo 2º Cível e Crime, Fundo Comarca de
Pelotas, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS).
36 Processo nº 1646, Caixa 86, Estante 128B, Subfundo 2º Cível e Crime, Fundo Comarca de
Pelotas, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS).
35
411
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
fontes judiciais o campo de análise privilegiado das relações entre nacionalidade, comunidade e códigos de conduta populares. Embora não tratem do período a que se
propõe esta análise, ambos os autores conseguem proporcionar ao leitor uma visão
dinâmica das relações que articulam os contatos entre os autores, bem como dos códigos de conduta que regem estes grupos. Algumas “dicas” foram bem-vindas para
se pensar esta metodologia na pesquisa em questão, como esta de Karl Monsma:
Para estudar as versões dos réus, das vítimas e das testemunhas,
os inquéritos policiais geralmente servem melhor que os processos judiciais. Os inquéritos são mais próximos ao conflito no
tempo, muitas vezes começando no dia seguinte, e o que é mais
importante, não sofrem a influência do promotor nem do advogado da defesa. [...] Ás vezes, esqueciam do formalismo legal e recaíam na simples transcrição do depoimento na primeira pessoa.37
Por outro lado, os dois autores se deparam com a fragilidade das investigações na época, em que não raro as testemunhas oficiais do processo só sabiam do
ocorrido “por ouvir dizer”. Isso para não levar em conta a problemática dos moradores dos arredores da ocorrência que só conheciam o boato, o falatório que se
seguia ao ocorrido, mas mesmo assim eram “arrastados” à delegacia sob a ameaça
das forças policiais, para atuarem como depoentes.
Era comum tentar escapar de todas as formas ao inconveniente
de ter de ir prestar declarações sobre uma ocorrência na delegacia. [...] Fica-se com a impressão, na verdade, de que a polícia
tem muitas vezes de levar as testemunhas para a delegacia praticamente presas junto com o acusado.38
O interessante é que Monsma39 aponta esse fator justamente como o propulsor da pesquisa, à medida que o “ouvir dizer” relata o que se falou na comunidade local após o conflito, o que agrega aos fatos da ocorrência as concepções e
os códigos referentes ao microgrupo sociocultural estudado. O autor também
alerta para as disparidades nos depoimentos da fase de inquérito e da fase do
julgamento, o que pode revelar não só a atuação dos advogados e promotores,
como também construções de “versões oficiais” do crime no interior da comunidade étnica.
De modo geral, quem trabalha com processos criminais recorre a esse tipo
de fonte com grau de particularidade característico, buscando, paradoxalmente,
MONSMA, Karl. Histórias de violência: processos criminais e conflitos inter-étnicos. GT
“Migrações Internacionais”, XXIX Encontro Estadual da ANPOCS, Petrópolis, RJ, outubro
de 2000, pp. 2-3. Disponível em: <http://www.bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/anpocs00/gt09/00gt0912.doc> Acesso em: 29/11/2010.
38
Cf. CHALHOUB, Sidney. Op. cit., p. 281.
39 Cf. MONSMA, Karl. Op. cit.
37 412
uma ampliação da visão sobre o passado.40 Levando-se em conta os filtros que a
Justiça impõe, é possível encontrar as representações presentes no cotidiano destes
depoentes, principalmente se a pesquisa atentar para o uso que os populares fazem
da relação com o sistema judiciário e o que este representa perante o seu grupo.
Aqui salientamos o conceito utilizado por Oliveira e Silva, em que “representações
são aquelas responsáveis por justificar, aos próprios indivíduos que as forjam, suas
escolhas e condutas.”41
A construção da masculinidade dentro da sociabilidade boêmia da
época perpassava as atitudes tomadas pelo indivíduo diante de uma agressão.
A linha tênue entre um homem respeitado e um homem temido era frequentemente difusa entre os populares, que ainda carregavam o semblante desconfiado de homens abandonados à própria sorte. De fato, no período estudado
(1930-1945) é quando podemos perceber maiores esforços no sentido de uma
ordenação dos hábitos e comportamentos em sociedade. Na célebre polêmica
entre Wilson Batista e Noel Rosa, no Rio de Janeiro, encontramos, respectivamente, a ilustração do embate entre uma música popular crua, vinda do
cotidiano popular de “faca na bota”, contraposta pelo samba já amansado,
enquadrado nos ideais de ordem e trabalho propagados no período getulista.
Sob o mesmo impacto da preocupação de “higienização” dos hábitos populares, varrendo o estigma da criminalidade e do ócio, cantava Noel:
Deixa de arrastar o seu tamanco
Pois tamanco nunca foi sandália
E tira do pescoço o lenço branco
Compra sapato e gravata
Joga fora essa navalha que te atrapalha
Com chapéu do lado deste rata
Da polícia quero que escapes
Fazendo samba-canção
Já te dei papel e lápis
Arranja um amor e um violão
Malandro é palavra derrotista
Que só serve pra tirar
COLUSSI, Eliane Lucia. Fontes judiciais e suas possibilidades nos estudos de poder local: os
crimes de São Borja. IN: Anais IX Encontro Estadual de História – ANPUH-RS, 2008. Disponível
em: <http://www.eeh2008.anpuh-rs.org.br/resources/content/anais/1212424780_ARQUIVO_resumoanpuhfontesjudiciais1.pdf> Acesso em: 29/11/2010.
41
OLIVEIRA, Fabiana Luci de & SILVA, Virgínia Ferreira da. Processos judiciais como fonte
de dados: poder e interpretação. Sociologias, Porto Alegre, ano 7, nº 13, jan/jun 2005, pp. 252.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/soc/n13/23563.pdf> Acesso em: 29/11/2010.
40 413
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Todo o valor do sambista
Proponho ao povo civilizado
Não te chamar de malandro
E sim de rapaz folgado42
Portanto, ao pesquisar a cultura boêmia no sul através de processos
criminais e periódicos, está-se a falar de códigos de conduta, botequins, música e discursos, inserindo estes conceitos numa discussão complexa sobre as
fronteiras regionais que a cultura popular é capaz de dissipar ou de realçar.
O caso de Manoel Pedro Soares é exemplar. Estava na Casa Comercial
Schaun Irmãos e Companhia, situado no 4º distrito do município de Pelotas,
na madrugada de 28 de novembro de 1930, bebendo, cantando e tocando
modinhas ao violão. Como Guido Ventana lançasse dúvidas sobre a masculinidade dos presentes, fazendo piadas e competições sobre “quem era mais
homem”, a paciência de Manoel esgota-se e, a certa altura da contenda, parte
pra cima deste, agredindo-o com o próprio violão que antes servira de entretenimento aos presentes.43
E é nesse sentido que podemos distinguir a importância destes rituais boêmios de camaradagem e liberdade para a configuração de uma cultura
expressamente nacional. É fundamental atentarmos para a abrangência destas
noites populares de boemia e conflitos. Conforme Damatta:
O social não se reduz somente ao plano da consciência, ele é
também o plano da liberdade, das escolhas, do futuro e da esperança. Porque é nesse miolo entre a determinação natural – do
mundo e da biologia – e o interesse do grupo que o social se
realiza e pode, desse modo, promover e alimentar aquilo a que
chamamos de “cultura”, estilo ou forma social.44
Portanto, relacionar estes espaços da cidade com a liberdade de escolha sobre o domínio do próprio tempo é, na verdade, tentar perceber este
território de lazer e esperança que diz tanto sobre o imaginário popular. Pensar tal cotidiano nas décadas de 30 e 40 significa, antes de mais nada, refletir
sobre o lugar da noite e da cultura popular pelotense em um país imenso, que
se fazia cada vez mais ver, ouvir e se unir em torno da ideia de nação. Articulando influências, permeando questões étnicas, de gênero e tradições de uma
1933, apud. NAPOLITANO, Marcos. A síncope das ideias: a questão da tradição na música popular
brasileira. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007, p. 50.
43
Processo nº 1666, Caixa 87, Estante 128B, Subfundo 2º Cível e Crime, Fundo Comarca de
Pelotas, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS).
44
Cf. DAMATTA, Roberto. Op. cit., p. 29.
42 414
região cercada de influências culturais, sejam portuárias, platinas africanas e/
ou europeias, a noite de Pelotas revela-se portadora de múltiplos significados, tornando a investigação sobre a sociabilidade boêmia e seus códigos de
conduta um campo profícuo para as análises sobre a cultura popular e seus
caminhos.
Referências bibliográficas:
ANJOS, Carlos Versiani dos. Um novo olhar sobre o DIP: uma revolução
na arte da propaganda e do marketing cultural. 7º Encontro Nacional da
Rede Alfredo de Carvalho - ALCAR, agosto de 2009, Unifor, Fortaleza/
CE. Disponível em: <http://paginas.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/7o-encontro-2009-1/UM%20NOVO%20OLHAR%20SOBRE%20O%20
DIP.pdf> Acesso em: 24/02/2012.
BARRETO, Álvaro. Dias de folia: o Carnaval pelotense de 1890-1937. Pelotas: Educat, 2003.
BENATTI, Antonio Paulo. O Centro e as Margens: Boemia e prostituição
na “capital mundial do café” (Londrina-PR, 1930-1970). 1996. Dissertação
(Mestrado em História). Universidade Federal do Paraná, Curitiba. Disponível
em: <http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/1884/24598/1/D%20-%20BENATTI,%20ANTONIO%20PAULO.pdf> Acesso em: 29/11/2010.
CALABRE, Lia. Políticas públicas culturais de 1924 a 1945: o rádio em destaque. Revista Estudos Históricos, América do Norte, 1, ago. 2003, p. 162.
Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/
view/2190/1329>. Acesso em: 24/02/2012.
CARVALHO, Thaís de Freitas. Um lugar chamado Liberdade: música popular,
tradição e boemia em Pelotas. 2010. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em História), Universidade Federal de Pelotas, Pelotas.
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 2ª Ed. Campinas, SP: UNICAMP, 2001.
CHARTIER, Roger. Cultura Popular: revisitando um conceito historiográfico. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, nº 16, 1995, p. 179-192. Disponível em:
<http://ftp.ciego.cult.cu/Libreria%20en%20red/c/CulturaPopularChartier.pdf>
Acesso em: 29/11/2010.
COLUSSI, Eliane Lucia. Fontes judiciais e suas possibilidades nos estudos de poder local: os crimes de São Borja. IN: Anais IX Encontro Estadual de História – ANPUH-RS, 2008. Disponível em: <http://www.eeh2008.anpuh-rs.org.br/
resources/content/anais/1212424780_ARQUIVO_resumoanpuhfontesjudiciais1.
pdf> Acesso em: 29/11/2010.
DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do
415
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores S.A., 1983.
DÂNGELO, Newton. O popular e o massivo na linguagem radiofônica (Uberlândia, 1939-1970). IN: Anais Eletrônicos do XXII Simpósio Nacional de História
– História, acontecimento e narrativa / Associação Nacional de História, João
Pessoa (PB), ANPUH, 2003.
JARDIM, Denise. De bar em bar: identidade masculina e auto-segregação entre homens de classes populares. 1991. Dissertação (Mestrado em Antropologia
Social), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, p. 92. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/1404/000068297.
pdf?sequence=1> Acesso em: 29/11/2010.
LONER, Beatriz Ana, GILL, Lorena de Almeida e MAGALHÃES, Mario Osorio
(organizadores). Dicionário de História de Pelotas. Pelotas: EdUFPel, 2010.
MAGALHÃES, Mario Osorio. Opulência e Cultura na Província de São Pedro
do Rio Grande do Sul: um estudo sobre a história de Pelotas (1860-1890). Pelotas: EdUFPel; Livraria Mundial, 1993.
MATOS, Maria Izilda S. de. Nas fronteiras da história: a cidade iluminada. IN: NODARI, Eunice et al (orgs). Simpósio Nacional da Associação Nacional de História (20: 1999: Florianópolis) História: fronteiras / Associação Nacional de História. São Paulo: Humanitas / FFLCH / USP: ANPUH, 1999.
________. Meu lar é o botequim: alcoolismo e masculinidade. 2ª ed. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 2001.
MONSMA, Karl. Histórias de violência: processos criminais e conflitos inter-étnicos.
GT “Migrações Internacionais”, XXIX Encontro Estadual da ANPOCS, Petrópolis, RJ, outubro de 2000, pp. 2-3. Disponível em: <http://www.bibliotecavirtual.
clacso.org.ar/ar/libros/anpocs00/gt09/00gt0912.doc> Acesso em: 29/11/2010.
NAPOLITANO, Marcos. A síncope das ideias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007
NOVAES, José. Um episódio de produção de subjetividade no Brasil de 1930: malandragem e Estado Novo. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 6, n. 1, p. 39-44,
jan./jun. 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/pe/v6n1/v6n1a05.
pdf> Acesso em: 24/02/2012
OLIVEIRA, Fabiana Luci de & SILVA, Virgínia Ferreira da. Processos judiciais
como fonte de dados: poder e interpretação. Sociologias, Porto Alegre, ano 7,
nº 13, jan/jun 2005, pp. 252. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/soc/
n13/23563.pdf> Acesso em: 29/11/2010.
TERAMOTO, Helena Harumi. Cantoras seresteiras no extremo sul do Brasil:
dois retratos etnomusicológicos. 2011. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Música), Universidade Federal de Pelotas, Pelotas.
416
Fontes pesquisadas:
Processo nº 1566, Caixa 79, Estante 128B, Subfundo 2º Cível e Crime, Fundo
Comarca de Pelotas, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS).
Processo nº 1568, Caixa 79, Estante 128B, Subfundo 2º Cível e Crime, Fundo
Comarca de Pelotas, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS).
Processo nº 1582, Caixa 80, Estante 128B, Subfundo 2º Cível e Crime, Fundo
Comarca de Pelotas, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS).
Processo nº 1562, Caixa 79, Estante 128B, Subfundo 2º Cível e Crime, Fundo
Comarca de Pelotas, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS).
Processo nº 1280, Caixa 57, Estante 128B, Subfundo 2º Cível e Crime, Fundo
Comarca de Pelotas, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS).
Processo nº 1646, Caixa 86, Estante 128B, Subfundo 2º Cível e Crime, Fundo
Comarca de Pelotas, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS).
Processo nº 1666, Caixa 87, Estante 128B, Subfundo 2º Cível e Crime, Fundo
Comarca de Pelotas, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS).
417
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
418
Na semana santa de 1938, fanáticos monges barbudos tomam a
Igreja de Santa Catarina na Bela Vista. Prisões e mortes em
Soledade e Sobradinhos /RS.
Maria da Glória Lopes Kopp
Resumo: Em abril de 1938, dois conflitos entre forças policiais e agricultores, no interior dos
municípios de Soledade e Sobradinho, ganharam atenção das autoridades estaduais e nas manchetes dos jornais da Capital. As delegacias de Polícia dos municípios produziram informações
e relatórios para o Governo Estadual sob intervenção federal do Estado Novo de Vargas sobre
o movimento dos monges barbudos. Examinamos relatórios do delegado de Soledade, um, sobre
a prisão de 8 agricultores em março, o outro, sobre dois conflitos violentos com mortes na semana santa e na Páscoa. A partir das listas de presos, foram localizados documentos cartoriais e
judiciais a respeito das condições de vida de alguns das lideranças do movimento. Escrituras de
propriedade, processos crimes e atestados de nascimento e óbito revelam as complexas relações
de poder local e algumas das motivações dos agricultores. As testemunhas ouvidas nas delegacias sugerem um insólito vínculo entre os barbudinhos e o governador deposto general Flores da
Cunha, então no exílio no Uruguai.
Palavras chaves: movimento religioso - década de 1930 no Rio Grande do Sul - monges barbudinhos de Soledade e Sobradinho - violência local e institucional do Estado Novo.
Introdução: Movimento camponês, familiar e religioso, desafia as elites
locais e o Estado Novo de Vargas
O
presente trabalho tem por base dois relatórios policiais de 1938,
selecionados de um conjunto de documentos identificados pelo
APERS. Os documentos policiais juntados pelo APERS e aqui
analisados tratam de um vigoroso movimento social, de caráter político1 religioso,
que mobilizou em torno de dois mil agricultores2 na semana santa e na Páscoa de
1938. Além desses documentos, também foram localizados processos judiciais a
respeito da vida e da morte das principais lideranças do movimento dos monges
barbudos de Soledade e Sobradinho. Registros cartoriais, como escrituras de propriedade e atestados de nascimento e óbito ajudam a compor um quadro de in Embora com um componente religioso marcante, caracterizamos também como grupo político, não partidário, porque eles apresentavam uma visão geral de mundo e propostas de modo
de vida, além de questionar o poder local.
2
PEREIRA, André e WAGNER, Carlos. Os Monges Barbudos & o Massacre do Fundão, p. 10.
1
419
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
formações sobre algumas das famílias participantes e suas condições de vida.
Esse episódio da história do Rio Grande do Sul verificou-se no meio rural dos
então municípios de Soledade e Sobradinho. Teve como característica temores locais e repressão policial, devido à crescente aglutinação dos agricultores
para rezas e pregações. Os camponeses convertidos defendiam a necessidade
de purificação e construíram um discurso político religioso que os identificava
como grupo eleito para um novo destino, buscando um modo de vida mais
regrado e dedicado a vivências comunitárias. Eles tiveram contra si as elites
locais e a estrutura de Estado em transformação com o recrudescimento da
ditadura de Getúlio Vargas, especialmente a partir de novembro de 1937, com
o Estado Novo que formalizou o regime de exceção.
A reunião de centenas de fanáticos na semana santa atraiu o medo e as
forças policiais contra os monges barbudos. Dois conflitos policiais provocaram
mortes e prisões. O assassinato do líder Anastácio Fiúza, na igreja da Bela
Vista, no 6º distrito de Soledade, e seu velório, no Rincão dos Costa, mobilizou os vizinhos, as autoridades de Soledade e Sobradinho e os comandos da
Brigada Militar, da Chefia de Polícia e do governo estadual, sob intervenção
federal. Documentos públicos como interrogatórios e relatórios policiais contam as versões e tentam explicações. A lista de 98 presos fornece informações
sobre os participantes e os agrupamentos familiares possibilitando aproximar
os monges do universo camponês dos anos 1930.
As lideranças políticas e religiosas dos monges foram os agricultores
Anastácio Desidério Fiúza, conhecido como Tácio Fiúza, e André Ferreira
França, o Deca França. Ambos tiveram o momento de conversão marcado na
memória dos jovens barbudos3. Deca era o líder espiritual e curandeiro, aderiu
à religião dos monges, em 1935, após encontro com um personagem identificado como profeta são João Maria. Essas duas lideranças foram assassinadas em
situações polêmicas, um, no dia 15 de abril, e o outro, quatro meses depois,
em 16 de agosto de 1938.4 Os fanáticos foram identificados com o movimento
dos muckers, no Rio Grande do Sul, e com os rebeldes de Canudos, na Bahia. 5
Entrevistas Orlandino e Izaltina Gonçalves da Costa, Idalcinéia Alves da Costa, os irmãos
Ernestina e Thomas Desidério Fiúza, Gregório Costa e Andreza Gonçalves Reis realizadas nos
municípios de Tunas, Lagoão e Salto do Jacuí, nos dias 02 de novembro de 1988, 20 e 21 de
janeiro de 1990.
4
Sobre o assassinato de André Ferreira França, em 16 de agosto de 1938, na Coloninha, 6º
distrito de Soledade, ver KOPP, Maria da Glória. Caçada ao Célebre Deca França: No Julgamento dos
Algozes, as Fontes Judiciais de uma História. Soledade e Sobradinho/RS, 1938-1942, In: ARQUIVO
PÚBLICO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. IX Mostra de Pesquisa. Produzindo História a Partir de Fontes Primárias. Porto Alegre/RS, Corag, 2011, p.p. 117-143.
5
JUSTIÇA PÚBLICA. Processo Crime Sumário contra cabo Antonio Porto, praça Lucas
3 420
Não tiveram uma existência muito longa, mas atraíram as atenções das forças
publicas do Estado.
Versões foram sendo apresentadas no decorrer do movimento e depois dele. Os jornais de abril e maio de 1938 falavam de fanatismo, infiltrados,
manipulação da boa fé de pobres agricultores. Os registros policiais também
buscaram explicações e justificativas para as mortes verificadas naquela semana santa. Os documentos analisados versam sobre a repressão policial, o
envolvimento dos civis e o pânico dos não participantes com a multidão de
monges reunidos na igreja da Bela Vista e no velório de Anastácio Fiúza. Duas
dissertações de mestrado e uma tese de doutorado trataram do tema nos anos
2000, abordando o movimento dos agricultores e o personagem João Maria. 6
Dois documentos foram trabalhados nesse artigo, ambos do início
de 1938, apenas há alguns meses depois da instalação do Estado Novo no
Brasil. São de autoria de um mesmo agente público: o 1º tenente da Brigada
Militar, Januário Dutra, também delegado de Polícia de Soledade. O primeiro
documento, datado de 30 de março de 1938, é um Relatório do Comandante do
Destacamento de Soledade7, 1º tenente Januário Dutra, enviado pelo comandante
Geral da Brigada Militar, cel. Agenor Barcellos Feio, para o Interventor Federal, Cordeiro de Farias, em 18 de abril de 1938, que trata da “existência de
um grupo de fanáticos organizado naquele município e sobre o qual recaia
suspeita de professar ideias extremistas.” As informações sistematizadas pelo
tenente Dutra foram colhidas depois de 10 dias de diligências de um contingente de 20 praças que percorreram localidades distantes e pouco acessíveis
do então 6º distrito de Soledade e a partir dos depoimentos de 8 agricultores
detidos para averiguação.
O segundo documento, é igualmente um relatório8, desta vez sobre a
prisão de 98 monges barbudos após a morte e o sepultamento de Anastácio Fiúza, no
Campos Galvão, civis Pedro Simon, José Henrique Simon, Benedito Paulo do Nascimento,
Aparicio Miranda e João Elberto Oliveira. Volume I e II. Escrivania do Juri de Sobradinho.
1938-1942. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Vistos, etc. Aristide Dutra Boeira, Juiz de Direito. Candelária, 30 de março de 1942. Vol II, pp. 203, 203v, 204 e 204v. APERS
6
Dissertação de mestrado de Henrique Kujawa (2001), Universidade de Passo Fundo (UPF),
transformado em livro, e de Fabian Filatow (2002), Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS). Em 2007, surgiu a primeira tese de doutorado, de Cesar GOES, reconstruindo a
atualidade da crença no monge João Maria e o espaço de fé por ele mobilizado até os dias atuais.
7
BRIGADA MILITAR DO RIO GRANDE DO SUL. Destacamento do 3º Regimento de
Cavalaria. Relatório do 1º tenente Januário Dutra. Documento enviado pela Brigada Militar/RS,
Estado Maior, 3ª Seção, Q.G. em Porto Alegre, pelo Comandante Geral da Brigada Militar, ao
Exmo. Sr. Interventor Federal, em 18 de abril de 1938. Assunto: Remete um Relatório. APERS
8
DELEGACIA DE POLÍCIA DE SOLEDADE. Relatório da Delegacia de Polícia de Soledade. 1º
tenente Januário Dutra, delegado de polícia, 15 de maio de 1938. APERS
421
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Rincão dos Barnabé9, no Jacuizinho, 5º distrito de Soledade. O documento é proveniente da Delegacia de Polícia de Soledade, assinado pelo 1º tenente Januário Dutra, agora
como delegado de polícia. Optamos pela utilização destes dois documentos por serem
redigidos pela mesma pessoa, mas em momentos distintos: o primeiro, por se tratar de
averiguações; o segundo, por tentar esclarecer as circunstâncias da morte de dois agricultores identificados como “monges” de uma “seita exótica” no interior de Soledade.
Também consideramos relevante o fato de ser um registro promovido por um agente
público local, vinculado ao mesmo tempo à Brigada Militar e à Delegacia de Polícia.
A partir da listagem dos 98 presos, buscamos um diálogo com a bibliografia
disponível sobre esses acontecimentos e agregamos informações cartoriais, como escrituras de compra e venda e registros de nascimento e óbito, além de entrevistas com
então jovens membros do grupo, visando reconstituir a rede de parentesco e compadrio
existente entre as famílias de pequenos agricultores mobilizadas pelas pregações dos
barbudos. Estas informações permitem detalhar os vínculos e os laços de solidariedade existentes entre os agricultores e verificar o engajamento social e econômico dos
principais participantes, a liderança política religiosa que foi perseguida, presa, tortura e
eliminada em 1938.
Investigações determinadas pelo Comando da Brigada Militar
Em 30 de março de 1938, o 1º tenente Januário Dutra, comandante do destacamento do 3º Regimento de Cavalaria, no acantonamento em Soledade, concluía um
relatório obtido através de uma inspeção “rigorosa” determinada por telegrama pelo
Comandante Geral da Brigada. Segundo o registro, na madrugada de 19 de março, partiu um contingente de 20 praças, comandadas pelo 2º tenente Arlindo Rosa, para o 6º
distrito de Soledade, localidade conhecida como Lagoão. O objetivo era claro: “reconhecer e dispersar uma reunião de fanáticos que constava existir e que estavam empregando ideias subversivas.” Embora com a alcunha de fanáticos, o termo que orientava as
preocupações eram a possibilidade de ideias “subversivas”, isso porque, no processo ditatorial que se formalizou em novembro de 1937, nenhuma tolerância foi dada aos contrários, fossem eles elites políticas estaduais, antigos aliados, “fanáticos” ou cangaceiros.
Segundo o Censo10, de 1940 o território de Soledade possuía 6.408 km2 e densidade demográfica11 de 10,97 hab/km2. Enquanto que Sobradinho, em um território de 1.265 km2, tinha 22,63 hab/km2. A população no Rio Grande do Sul era
ou Bernabé.
Censo Demográfico: Rio Grande do Sul 1940. Rio de Janeiro, IBGE, 1950, pp. 261-9 Apud FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E
ESTATÍSTICA. De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul. Censos do RS: 1803-1950.
Porto Alegre, FEE, 1986, 2ª impressão, pp. 145-8.
11
A média do estado era 12,20 hab/km2. Nos municípios vizinhos de Candelária, eram 20,64
hab/km2, e em Santa Cruz, eram 23,14 hab/km2.
9
10
422
de 3.320.689 habitantes. Dos quais, 96,69% eram considerados brasileiros natos,
0,56% eram naturalizados e 2,73% eram estrangeiros. O estado era essencialmente
rural, a maior parte da população, 68,85%, estava em áreas não urbanizadas. Soledade e Sobradinho representavam esse Rio Grande rural. A população municipal
de Soledade chegava a 70.279 habitantes. Os urbanos eram 3.420, os suburbanos
995 e os rurais eram 65.865, representando 93,72% do total. O município de Sobradinho, com uma população de 28.622 habitantes, possuía 27.340 moradores na
área rural, 95,52%. Apenas 1.282 pessoas viviam no espaço urbano, 4,48%.
A estratégia montada pelo tenente Dutra para percorrer essa extensa área
rural em busca dos barbudinhos foi partir de Soledade12, de caminhão, até o Lagoão
e percorrer as localidades denominadas como Campina, Gramado, Palmital, Sítio, e
outras não nominadas, onde já constava a existência de “fanáticos reunidos”. Para
chegar a estes locais era preciso “arrumar cavalos” para os praças e “organizar uma
patrulha de vaqueanos”. Sempre com cautela: “marchar com todas as precauções
possíveis, a fim de evitar alguma cilada em que resultasse em sacrifício inútil ao
nosso pessoal”. No entanto, precavido, o tenente Dutra registrava a orientação
de “agir com toda a brandura”, mas cuidando com as hostilidades, neste caso,
deveriam estacionar a “força” e realizar “um estudo prévio de terreno” e se fosse
necessário, “reorganizasse novas forças”, provavelmente contando com os civis
locais, os vaqueanos, para “desfechar um ataque combinado e seguro”. Era preciso
ter atenção às pregações religiosas por isso recomendou: “que investigasse a forma
que os chefes usam para a catequese dos moradores daquela região”, além disso,
orientou para que os responsáveis fossem presos, assim, forneceu “uma relação
dos nomes em que constava haver muitos criminosos”, a ordem era “desarmar
todo aquele que fosse encontrado armado”.
Nessa meia página de introdução, o tenente Dutra estabelecia a metodologia de trabalho das forças policiais em atuação nessas áreas rurais. Apelava para que
os subordinados tivessem “precaução”, “brandura” e evitassem “ciladas”. Criava
a fronteira entre o “nosso pessoal” e os investigados. Entre os “nossos”, estariam
os que podem fornecer cavalos para o deslocamento, agregar informações e atuar
como guias nos locais mais inóspitos, criando condições para um “ataque combinado”. Ou seja, a ação policial contaria com apoio local. Os outros, também iam
sendo descritos: eram fanáticos, estava manipulando os moradores, eram criminosos, organizavam ciladas e estariam armados.
Assim, três dias depois da partida, já em 22 de março, o 2º tenente Rosa
enviou um grupo de oito “fanáticos” que teriam se apresentado, eram eles: Adão
O município de Soledade estava dividido em 7 distritos: Soledade – o da sede -, Barros Casal,
Camargo, Espumoso, Fontoura Xavier, Jacuizinho e Maurício Cardoso. Anteriormente, Lagoão
constava como o 6º Distrito. FEE, p. 141.
12
423
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Alves, Alfredo Antônio dos Santos, Estácio Gonçalves da Costa, Guilherme
Francisco da Silva, João Pereira Vaz, Leôncio Pereira Vaz, Sebastião Gonçalves
[França] e Thomas de [Oliveira] Fiúza. Provavelmente, existam aqui imprecisões no registro do nome dos presos. Possivelmente Sebastião seja Gonçalves
da Costa, irmão de Estácio, e Thomas seja Desidério Fiúza, irmão de Anastácio
Desidério Fiúza. Januário Dutra interrogou “demoradamente cada um deles”,
verificando “minuciosamente todos os documentos e demais papéis que possuíam”, contudo, foi taxativo: “não tendo encontrado, tanto nas declarações, como
nos papéis nada de importância, que indicasse a pregação de ideias exóticas.” No
entanto, não tomou a termo os depoimentos, se o fez, não anexou no relatório,
não lhes deu voz, já que o principal, as “ideias exóticas”, foram descartadas.
Ao regressar, depois de 10 dias de intensas diligências percorrendo o
“sertão íngreme do 6º distrito de Soledade”, o 2º tenente Arlindo Rosa prestou
esclarecimentos que foram sistematizados por Dutra: não foi possível encontrar
os “fanáticos, pois, que se achavam todos dispersos e escondidos nos matos, de
medo de serem presos”. Percebe-se, assim, que os temores já estavam presentes
entre os agricultores daquelas localidades. O policial procurou por “todos os
meios prender os apontados como cabeças, entretanto, não foi possível, em vista
da vasta e alcatilada13 região” Revela, assim, o território dos monges: as matas escarpadas do interior do município de Soledade, na divisa com Sobradinho.
“Caboclo indolente”, sem gosto pelo trabalho, a miséria a bater a porta
O tenente Dutra arriscou uma observação quanto à origem étnica dos
procurados e as condições de vida desse povo dos sertões, para ele, “são descendentes de nosso caboclo indolente, poucos gostam de trabalhar, de maneiras
que a miséria começou a bater-lhes a porta da casa”. Justificava: “então por meio
de uma seita religiosa, tendo como padroeira a Santa Catarina, procuraram a se
reunir e se auxiliarem mutuamente”, contudo, alguns “mais espertos” iniciaram
“a fazer a propaganda da religião”. Segundo a interpretação do tenente Dutra,
para os monges, quem não aderisse à religião, “muito em breve morreria e seus
bens seriam repartidos com o pessoal da seita”, no entanto, grafava o pacifismo:
aconselhavam para “andarem desarmados, respeitar as autoridades, apanharem e
não brigarem”. A religião também buscava o afastamento das bebidas alcoólicas,
aconselhavam a “não beberem”. Com relação ao trabalho, buscavam limites e
teriam falado em “trabalharem pouco, não trabalharem sábados e domingos”.
Possuíam a preocupação de purificar o sangue com chás de caroba, erva-mate e
Alcantilada: sucessão de alcantis, despenhadeiro longo. Alcantil: rocha escarpada, despenhadeiro escarpado.
13
424
outros fitoterápicos da região. Preocupou-se em registrar a robustez dos detidos
e os cabelos e as barbas compridas.
Com bastante sensibilidade aos acontecimentos, o tenente Dutra apontava o
receio e o temor dos “colonos de origem estrangeira” e dos demais habitantes que não
aderiram ao movimento religioso que viam “a união dos monges” crescendo a cada
dia. Disso, teriam surgido “os mais desencontrados comentários”. De tudo, conforme
as informações do tenente, restou o fato de que “os fanáticos se reúnem sábados e
domingos nas igrejas a rezarem”, mas sempre “completamente desarmados e depois
dispersam-se e cada um vai para as suas casas”. Por fim, o tenente ainda registrava o
pedido dos “fanáticos” para que ele atuasse no caso “pessoalmente”, assim poderiam
fazer com que todos os outros “se apresentarem”, o que não fariam ao tenente Arlindo
“porque o temiam”.
Por último, Januário Dutra, registrava outra estratégia de ação que poderia ter
resultados mais eficientes. Observou no grupo de presos um jovem de pouco mais de 20
anos, Adão Alves, com conhecimento “de quase toda a região serrana, muito esperto e
inteligente” que dizia não ser “fanático”, mas observou “que ele exerce grande ascensão
aos demais e até acho ser o único capaz de dirigir os tais fanáticos”, o tenente viu aí uma
possibilidade de recrutar Adão “para prestar seus serviços ao Governo”, acreditando
que “a polícia muito lucraria, se desse a Adão uma missão secreta naquela zona”.
Findou o relatório de forma pouco conclusiva: “apesar de não ter encontrado,
não posso negar ou afirmar a existência de algum núcleo disfarçado para inocular, aos
poucos, ideias exóticas aos moradores da referida região” e registrava os cuidados a
serem tomados: não participou da diligência porque recebeu um telegrama do chefe de
polícia para que não saísse da sede do município sem permissão expressa, como não
obteve resposta ao telegrama em que teria pedido autorização para afastar-se, resolveu
permanecer na sede. Estava assim, envolvido em duas estruturas de Estado com comandos diferenciados: a Polícia Civil, dirigida pelo Chefe de Polícia, e a Brigada Militar,
cujo Comandante Geral era o coronel Agenor Barcellos Feio. O coronel, ao remeter o
Relatório do tenente para o Interventor Federal, coronel Cordeiro de Farias, manteve
uma perspectiva política, dando ênfase para a organização dos camponeses e para a suspeita de subversão: afirmou referir-se “a existência de um grupo de fanáticos organizado
naquele município e sobre o qual recaia suspeita de professar ideias extremistas.”
Concentração de ‘Fanáticos’ Desencadeia Medos e Mortes
O tenente Januário Dutra, agora na condição de Delegado de Polícia de
Soledade, em 15 de maio de 1938, assinou um segundo relatório, agora sobre episódios sangrentos. O documento procurava fazer uma síntese dos acontecimentos
que antecederam a Páscoa de 1938, no interior dos municípios de Soledade e Sobradinho. O delegado colheu diversos depoimentos, todos eles de opositores dos
monges, embora tendo estado com quase cem barbudos na Delegacia de Polícia, não
425
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
fez o registro do contraditório, construiu uma versão praticamente unânime entre
os depoentes. Os depoimentos foram registrados um abaixo do outro, fazendo
crer que não houve sigilo na coleta das informações.
Embora o relatório mencione 104 detidos, a lista nominal corresponde a
98 pessoas, somente uma mulher. Essa lista de presos possibilita a reconstituição
dos vínculos entre as famílias de agricultores que aderiram ao movimento religioso, conforme demonstraremos adiante. A prisão ocorreu após o sepultamento de
Anastácio Fiúza, ocorrido no cemitério do Rincão dos Bernabé, também conhecido como Rincão dos Costa, no Jacuizinho, município de Soledade. Com este
material, vamos conduzindo essa nossa narrativa de acordo com as informações
constantes no relatório do delegado Dutra. Ele afirmava que, entre os dias 13 e 17
de abril, entre quarta-feira e domingo de Páscoa, nos 5º e 6º distritos de Soledade,
no Jacuizinho e no Lagoão, nas localidades de Bela Vista e no Rincão dos Bernabé
ocorreu “uma grande reunião de fanáticos que praticam uma religião exótica e não
conhecida”. Manifestação estranha para quem havia promovido diligência e relatório afirmando não existir razões para maiores preocupações, poucos dias antes, em
30 de março, conforme verificamos anteriormente.
O delegado segue na caracterização: as reuniões teriam “causado pânico
entre os moradores” daqueles locais. Desta forma, “diversas pessoas” teriam “pedindo às autoridades garantias e providências a respeito, pois os fanáticos haviam
invadido o lugar denominado ‘Bela Vista’ e se apoderaram da igreja a tomar chimarrão.” Nos detalhes grafados, vai ficando explícito o ataque moral promovido
contra aos agricultores e a valorização dos policiais, a ação do Estado. Como a
localidade de Bela Vista ficasse próxima a Sobradinho, o “primeiro apelo foi dirigido ao Delegado de Polícia de Sobradinho, cuja autoridade atendeu com presteza e
dirigindo-se com a patrulha”. A partir dessa manifestação, começam um conjunto
de justificativas, ancoradas nos depoimentos colhidos pelas testemunhas locais,
todas claramente em oposição ao movimento dos monges barbudos.
A linguagem adotada neste relatório vai contornando caracterizações pouco amistosas. Então vejamos: o delegado afirmava que as autoridades policiais de
Sobradinho teriam sido recebidas com hostilidades, “alguns dos componentes do
bando” teriam feito “disparos de uma arma contra o Delegado e sua patrulha”,
com o que eles “reenvidaram a agressão, resultando saírem diversos feridos, entre
eles o chefe do bando Anastácio Fiuza, que veio a falecer”, como resultado da operação, foram feitos “diversos prisioneiros e o restante do grupo foi dispersado.” Na
brevidade de algumas linhas, o delegado de Soledade caracterizava o grupo como
um “bando” cujo “chefe” teria sido morto devido a reação violenta dos barbudos à
chegada das autoridades de Sobradinho.
Em 17 de abril, domingo de Páscoa, às 22 horas, relatava o delegado,
tenente Januário Dutra, que “veio a minha presença o subdelegado do 5º distri-
426
to acompanhado de alguns moradores” do Jacuizinho, pediam providências policiais
a respeito de “grande aglomeração” existente no Rincão dos Bernabé, onde estariam,
há quatro dias, “acampados uma grande leva de fanáticos, calculados em mais de mil
e quinhentos”. Com isso, teria sido fornecido, ao subdelegado Octacílio Pinto, “uma
patrulha sob o comando do cabo Vergílio Felisberto Centenário, com o fim de dissolver
o referido bando”. Novamente, as forças policiais teriam sido repelidas resultando em
conflito e morte: a “patrulha ao se aproximar do reduto, onde se achavam os fanáticos,
foi também recebida a tiros de arma de fogo”. Com a suposta troca de tiros, mais uma
morte, o “fanático Benjamim Garcia de Moraes” e mais “diversos feridos inclusive o soldado Oswaldo dos Santos, conforme se verifica dos autos de corpo de delito”. O cabo
Centenário, com uma patrulha de 8 praças, teria conseguido prender “104 fanáticos que
haviam se refugiado em uma casa no local”. Além disso, foram apreendidas, “em poder
dos fanáticos” duas espingardas winchesters e um revólver calibre 44.
O delegado afirmava que: “Procurei como me competia proceder às investigações a respeito”, assim pediu ao Delegado de Polícia de Sobradinho, Antônio Pedro
Pontes, “suas declarações por escrito” dos fatos que presenciara e que resultara na morte
de Tácio Fiúza dias antes. O Auto de Resistência14 registrava que, em 14 de abril, as 8h, no
6º distrito de Soledade, na localidade de Bela Vista, na Igreja de Santa Catarina, estava
reunida “numerosa multidão composta de monges, suas mulheres e grande número de
crianças de todas as idades”, quando a força policial chegou ao local, teriam sido “alvejados” pelos monges que “procuravam embrenharem-se nos matos e de lá atiravam
contra os soldados”, desta forma, teriam ferido membros do próprio grupo. O Auto
não menciona a morte de Anastácio Fiúza. Assinam: o escrevente, João Rodrigues, o
delegado, Antônio Pedro Pontes, e como testemunhas, Amâncio Alves dos Santos, do
comércio, Cautolino Gonçalves da Fontoura, José Trevisan, José Dezorzi e Oscar da
Silva Telles.
No relatório de Januário Dutra, consta o depoimento de 9 pessoas, 6 moradores locais e 3 agentes do Estado na seguinte ordem: Júlio da Silva Telles, Jacinto Bridi,
Cautolino Gonçalves da Fontoura, Fidêncio Patrício de Britto, Manoel da Silva Telles,
João Kraemer, subdelegado do Jacuizinho, Otacílio Floriano Pinto, e os praças: cabo
Vergílio Felisberto Centenário e o soldado Oswaldo Santos. Essas testemunhas registram os dois eventos: o primeiro, o confronto na Igreja Santa Catarina, na Bela Vista,
onde foi ferido mortalmente Anastácio Fiúza, em 14 de abril; e o segundo, o confronto
no Rincão dos Bernabé, no distrito do Jacuizinho, após o sepultamento de Anastácio,
onde resultou morto Benjamin Amaral, em 17 de abril. Primeiramente vamos analisar
os eventos dos dias 13 e 14 de abril, quarta e quinta-feira da semana santa de 1938.
Auto de Resistência, 14 de abril de 1938. Escrivão de Polícia da Delegacia de Sobradinho.
APERS
14
427
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Entre os opositores dos monges, um jovem “delinquente”
O primeiro registro de testemunha é do comerciante Júlio da Silva Teles,
pai de Oscar Teles, moradores da Bela Vista. A manifestação de Júlio Telles é da
maior importância porque ele teve diversas interferências em questões policiais,
especialmente as que envolveram seu filho Oscar Telles. O jovem respondeu a
vários processos onde consta como arruaceiro, foi protagonista de várias brigas
e confusões no interior do município de Sobradinho, desde pelo menos 1932.
Chegava armado em festas para as quais não havia sido convidado, era detido e, no
meio do caminho, os condutores de Oscar eram “assaltados pelos parentes do dito
delinquente, os quais libertaram-no”15. O comerciante Júlio da Silva Telles intervinha inocentando seu filho, desde quando era menor de 18 anos.
Em um processo contra Oscar Telles, de 1934, quando ele tinha 23 anos, as
circunstâncias eram as mesmas apontadas nos processos localizados: com amigos,
atuava nas “linhas” rurais atormentando os moradores. Neste caso, “Iam as danças
correndo animadas, quando apareceram Oscar da Silva Telles, João Elias Telles e
João Cardoso e, em atitude agressiva, exigiram participar da festa. Dessa imposição
resultou sério conflito, tendo Oscar da Silva Telles e João Cardoso disparado seus
revólveres e João Elias Telles vibrado cacetadas”. Os denunciados fugiram, ficando
feridos 3 agricultores: Gaudêncio Alves da Silva, 18 anos, Antônio Cecílio dos Santos, 42 anos e Bento Alves da Silva, 55 anos. O então juiz municipal, Henrique de
Freitas Lima Filho, pediu a prisão preventiva dos “desordeiros reconhecidos” por
considerar “uma medida de segurança pública e de ordem social”. Em setembro de
1937, o promotor público ad hoc, João Francisco Magalhães, denunciava Júlio Telles
ao Ministério Público porque ele levou testemunhas “afim de desfazer tudo” o que
disseram “de verdade dentro dos autos”. Em dezembro de 1937, os réus foram
absolvidos por legítima defesa.16 Assim, Oscar Telles continuou a ser processado,
declarando-se lavrador, empregado no comércio e chofer. Além de invadir festas,
criava desavenças por “carreira” de cavalos e dívidas de jogo.17 Oscar Telles foi
apontado por moradores da região18, como o autor da morte de Anastácio Fiúza,
na igreja de Bela Vista, teria sido o primeiro a atirar.
Retornando ao Relatório de Januário Dutra sobre os fatos que vitimaram
fatalmente Anastácio Fiúza, Júlio Telles declarou que, no dia 13 do corrente, por
JUSTIÇA PÚBLICA. Processo Crime Oscar Telles, Terceiro distrito de Jacuí, janeiro de 1932, n. 105, autos n. 160. Refere-se a
conflito na linha Tamanduá. APERS
16
JUSTIÇA PÚBLICA Processo Crime Oscar da Silva Telles e outros. Sobradinho, janeiro de 1935, n. 83, autos n. 105, maço 8, estante 41.
Refere-se a conflito na Taboasinha. APERS
17
JUSTIÇA PÚBLICA Processo crime Aníbal Carvalho e Oscar da Silva Telles, Sobradinho, 31 de julho de 1939, n. 67, autos n. 523, maço 16.
Refere-se a conflito na venda de Teobaldo Verlang, no 3o distrito de Sobradinho. APERS
18
Entrevista Idalcinéia Alves da Costa, Tunas, janeiro de 1990.
15
428
volta de 23 horas, “achava-se em sua residência quando foi surpreendido por dois
indivíduos” desconhecidos que “bateram fortemente na porta de sua casa e pediram que
lhes fosse servido café”. Negou o pedido alegando que “não era hora para eles estarem
batendo”, frente à insistência, Júlio Teles abriu a janela da casa e “notou grande aglomeração de pessoas”, como os que pediam “faziam parte do bando que se achava postado
à frente de sua casa”, sem escolha, serviu o que pediam “e foi ver o que se passava em
casa de seu vizinho Jacinto Bridi”.
Para Jacinto Bridi foi feito outro pedido: queriam a chave da igreja de Santa
Catarina. Anastácio Fiúza insistia “para que lhe fosse entregue a chave da Igreja”, Bridi
negava a concessão. Com isso, Fiuza teria “retorquido que estava à frente de 800 homens
e não tinha tempo a perder”. Acreditando ser uma “atitude ameaçadora”, Telles teria
aconselhado Bridi a entregar a chave da Igreja. Com a chave, Fiuza ainda teria dito que
ficariam “até sábado de aleluia, dia em que queria ver se arrumava uns 4.000 homens”.
Foi o bastante para que Júlio Teles mandasse “avisar as autoridades”, o delegado de
Sobradinho. Sentiu-se “sem garantias por não fazer parte do bando de fanáticos”. Com
presteza, o delegado de Sobradinho compareceu ao local, embora não fosse sua jurisdição: “ao se aproximar da referida Igreja foi recebido à bala”, com isso “os soldados então
fizeram uso das suas armas reenvidando a agressão”.
Desse fato teriam sido presos dez monges, conforme lista que apresentaremos
no final, e “o chefe do bando Anastácio Fiúza” teria sido gravemente ferido. Arremata
Júlio Teles afirmando que: “horas antes de chegar o Delegado na dita Igreja, Fiuza se
achava sentado sobre o Altar tomando chimarrão”, ele mesmo teria visto “quando Fiuza, de revolver em punho, atirou contra um soldado, tendo errado o alvo e acertado em
uma criança que se achava no colo de sua mãe; que o mesmo projetil feriu a ambos”. O
boato era que, o sábado de Aleluia, “era o dia escolhido para os monges se apropriarem
das propriedades dos que não faziam parte da religião deles.” Os policiais apreenderam
“só duas pistolas e várias facas”, embora tivessem muitos “armados de revólveres, porém embrenharam-se nos matos.”
Boatos ligavam o governador deposto aos barbudos
Jacinto Bridi19 apresentou questões presentes na declaração colhida na Delegacia de Polícia de Sobradinho, em 16 de abril, enquanto seu vizinho, Júlio Teles, foi
mais cauteloso. O que Bridi não contou em Soledade foi que, além dos fatos
já mencionados acima, Fiuza “não sabia quantos dias ia ficar com a chave em
seu poder, pois só entregaria essa depois que lhe chegasse um reforço de 4
Declaração de Jacinto Bridi, em 16 de abril de 1938, ao Delegado de Policia de Sobradinho.
Jacinto Bridi, 44 anos, casado, comerciante, morador da Bela Vista, 6º distrito de Soledade.
APERS
19
429
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
mil homens”. Os boatos eram de que Fiúza esperava apoio do general Flores
da Cunha, era o que teria dito um vizinho, Santo Trevizan. Assim, nessa declaração, Jacinto Bridi teria aguçado as suspeitas e dito que os monges possuíam
“ordens governamentais”, por isso aguardavam a chegada de 5 mil homens
de Flores da Cunha, mas, o mais revelador é que soube “por diversas pessoas
verdadeira que, seguidamente passa pelas imediações onde residem a maioria
dos monges um avião, o qual baixa e solta correspondência.” Além disso,
eles teriam “um chefe” que residiria em Cruz Alta. Com estas declarações,
criavam-se o vínculo, até aqui não estabelecido, do movimento dos monges
barbudos com a conjuntura política rio-grandense e brasileira dos anos 1930.
Os vínculos com as ideias extremistas ou exóticas, várias vezes mencionadas
e nunca comprovadas, eram trazidas para os documentos em uma pretensa
associação dos barbudos com o governador deposto. Mas porque vínculos com
Flores da Cunha, mensagens de avião em voos rasantes e um chefe oculto em
Cruz Alta?
O general José Antônio Flores da Cunha assumiu o poder com a Revolução de 1930. Mas, em 1932, a situação política de Flores da Cunha ficou bastante
delicada, ele penhorou apoio aos paulistas no levante de 1932. Embora tenha recuado do posicionado contrario à Vargas e permanecido como interventor federal,
as desconfianças mantiveram-se. Assim, para a estabilidade política, Flores criou
um novo partido situacionista, o Partido Republicano Liberal (PRL). Para Sandra
Pesavento20, em curto espaço de tempo, o partido tornou-se hegemônico no estado. Tinha uma base social predominante de fazendeiros, mas com a adesão de
comerciantes e industrialistas, “que se interessavam por estabilidade, paz e favores
do governo”, congregou também prefeitos municipais, comandantes de corpos de
milícias, e acabou recebendo apoio de Getúlio Vargas. Com a vanguarda política
gaúcha no comando nacional, as relações políticas locais adquiriram novas complexidades. Assim, Flores da Cunha, que comandou o Estado durante o período
de 1930 até 1937, foi o primeiro a ser deposto, mesmo antes do decreto do Estado
Novo.
Violência e bombachudos em Soledade
No período de 1930 a 1937, os conflitos locais estavam influenciados pela
política estadual e nacional. Segundo estudos de Loiva Otero21, que utilizaremos
para verificar a situação política de Soledade e as articulações de poder na Região, a
estrutura de Estado entrava, de forma crescente, nas decisões políticas municipais.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. RS: A Economia & O Poder nos Anos 30. Porto Alegre, Mercado
Aberto, 1980, pp. 51, 99, 100-1, 103 e 114.
21
FÉLIX, Loiva Otero. Coronelismo, Borgismo e Cooptação Política. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1987.
20
430
A autora destaca algumas características da região do Planalto Médio que apresentava “um grau bastante elevado de radicalismos políticos e de violências, respaldadas pelas demonstrações de força dos dois coronéis que, no período 1932-1933,
apresentavam um certo equilíbrio de forças”. Eram os subchefes de polícia: Vitor
Dumoncel e Vazulmiro Dutra, que dividiam poder e influência nos municípios
do Planalto. Soledade e Cruz Alta faziam parte dos domínios de Dumoncel. Eles
influenciavam as indicações aos cargos de prefeitos, delegados, juízes e promotores. Assim, o período de 1932 a 1937 teria sido um momento de “rearticulação
coronelista”. O novo partido de Flores da Cunha, o PRL, possibilitou “uma nova
articulação de forças com os coronéis municipais”.
Em 1934, já ficava visível as duas faces do poder de Dumoncel. De um
lado, um “crescente prestígio entre os situacionistas”, devido a sua “constância”,
desde 1923, e, de outro, a liderança que exercia sobre grupos armados violentos
que atuavam principalmente em Soledade. Ficaram conhecidos como bombachudos
por andarem montados em bons cavalos vestindo largas bombachas.22 Em Soledade, os bombachudos formavam um forte grupo paramilitar liderado pelo prefeito
Müller Fortes. Segundo Gomercindo dos Reis23, estes grupos teriam substituído os
corpos provisórios, eram “um perfeito exército de malfeitores”, “bandoleiros” que
“alarmavam os habitantes da região serrana”. Os provisórios de Vitor Dumoncel seriam “figuras apavorantes” a perseguir, matar, atentar contra os direitos e a
liberdade dos que discordavam ideologicamente de Flores da Cunha.24 Ainda segundo Loiva Otero25, por quase três anos, de 1934 a 1936, Soledade teria vivido “o
incremento da violência”, em especial, “da violência política”, onde o termo fazer
uma limpeza, no vocabulário local, equivalia ao “assassinato de indesejados ou desafetos”. A autora apresentou informações do jornal Correio do Povo, de 1935, onde,
diariamente, eram noticiadas violências e arbitrariedades políticas no município. O
caso de Soledade, conforme foi denominado, denunciava práticas políticas violentas,
que incluíam assassinatos cometidos pela situação e pela oposição, predominando
as ações ligadas ao prefeito Francisco Müller Fortes, apoiado por Vitor Dumoncel.
Essas disputas políticas locais e estaduais assumem novas dimensões depois de implantação do Estado Novo. Para Cancelli26, depois de 1937, com o regime ditatorial estabelecido, as “classes populares” passaram a ser monitoradas pela
Idem
Gomercindo dos Reis - Defendendo a verdade - o que foi a administração de Artur Ferreira
Filho em Passo Fundo na vigência do Estado Novo. Passo Fundo, Empresa Gráfica Editora,
1947, p. 50. Apud FELIX p. 167, nota 86.
24
Correio do Povo, 22-6-44. Apud FÉLIX p. 169-70
25
FELIX p. 167-9.
26
CANCELLI, Elizabeth. O Mundo da Violência. A Polícia da Era Vargas. Brasília, Editora da
Universidade de Brasília, 1993, p. 45.
22
23
431
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
polícia, o “medo havia se generalizado”, era a “caça aos ‘inimigos do governo e da
nacionalidade’ (...), o corpo policial e sua falta de princípios garantia um imenso
clima de ‘instabilidade’.” Portanto, em vinculação aos fatos de Soledade e Sobradinho, nada mais temerário do que um grupo de “fanáticos” associado a um governador deposto e que controlava a política estadual com um partido forte e com
um aparato estatal controlando as ações municipais. Quanto aos aviões, Flores da
Cunha foi agente direto na manutenção da Varig como Companhia Aérea Nacional e usufruiu dessa condição quando foi para o exílio, em outubro de 1937, após
renunciar, por Santana do Livramento, onde atravessou a fronteira para o Uruguai
por Riveira. Flores da Cunha permaneceu no Uruguai até 1942, quando voltou foi
preso por Vargas.27
A identificação dos monges barbudos com os “bandos”
Após esses apontamentos sobre a conjuntura política local, retomaremos
o Relatório do tenente Januário Dutra, Delegado de Polícia de Soledade. As outras
testemunhas ouvidas pouco acrescentaram as informações já expressas, mas ajudam a estabelecer nexos através de informações adicionais ou da terminologia utilizada para caracterizar os monges. Cautolino Gonçalves da Fontoura viu, na manhã
de 14 de abril, “uma grande multidão, digo, reunião de fanáticos”, calculados por
ele em mais de mil pessoas. Reafirmava a versão de que a patrulha do Delegado de Polícia de Sobradinho, “ao se aproximar da Igreja a referida autoridade
foi alvejada a tiros por diversos fanáticos, entre eles viu quando Anastácio Fiúza fez uso de seu revólver, travando-se aí um tiroteio, do qual resultou saírem
diversos feridos entre eles o chefe do bando Anastácio Fiúza.” Menciona as
prisões e acreditava que o acampamento estava previsto para durar entre três
e 15 dias, e que viria reforço de Cruz Alta. Associando, assim, os barbudos aos
grupos políticos que atuavam em Soledade e que tinham vínculos em Cruz
Alta.
Fidêncio Patrício de Britto depôs no mesmo sentido dos vizinhos: viu
chegar, na noite de 13 de abril, na Igreja Santa Catarina, “uma grande quantidade de fanáticos” para uma “reunião exótica”. Por ouvir dizer, soube que, na
manhã seguinte os monges haviam recebido o a escolta do delegado de polícia
de Sobradinho “à bala, tendo havido grande quantidade de tiros de armas de
fogo, resultando daí, conforme consta, diversos fanáticos feridos, entre eles
Anastácio Fiúza chefe do referido bando”. Ouviu falar no falecimento de
Anastácio em consequência dos ferimentos e de que ele estava sentado sobre
SCHIRMER, Lauro. Flores da Cunha de Corpo Inteiro. 2ª ed. Porto Alegre, RBS Publicações, 2007,
pp. 151, 157.
27
432
o altar da Igreja tomando chimarrão. Também ouviu na versão de que “os fanáticos
diziam, muito breve iriam se apossar das propriedades dos que não faziam parte
da religião deles, e fariam a divisão entre o pessoal deles, da seita.” Manoel da Silva
Telles estava em sua residência, na manhã do dia 14 de abril, quando ouviu “uns
tiros” para o lado da igreja da Santa Catarina, dirigiu-se ao local e “encontrou um
homem ferido o qual pertencia a uns tais ‘monges’; que na mesma Igreja estavam
algumas mulheres que procuravam crianças; que quando chegou não encontrou
mais as autoridades locais.”
Registrados os fatos do conflito da igreja de Santa Catarina onde foi baleado Anastácio, outras testemunhas registraram a concentração no Rincão dos
Costa, durante o velório de Tácio. A declaração de João Kraemer referia-se ao dia
17 de abril, quando ele foi procurar o subdelegado de Jacuizinho pedindo providências contra “um grande acampamento”, há quase 4 dias, que “subia a mais de
1.500” pessoas, ocupando uma área de terra equivalente a “umas duas quadras” de
campo. Ou seja, os acampados seriam em número maior do que os habitantes do
núcleo urbano de Sobradinho. Embora Kraemer não tenha presenciado, soube do
tiroteio que teria acontecido por iniciativa dos “monges”: “sabe que os monges, ao
se aproximar a patrulha da Brigada atiraram contra ela com armas de fogo, tendo
um soldado saído ferido na cabeça”. João Kraemer e outros civis, acompanhados
do subdelegado de Jacuizinho “foram em recurso da referida patrulha”, ao chegar
ao local, “os monges fizeram ainda alguma relutância para se entregarem, entretanto rederam-se depois de terem sido aconselhados pelo subdelegado”. Por fim,
apontava as “duas winchesters e um revólver grande querendo-lhe parecer que
estava com o cabo quebrado”, apreendidas em poder dos monges.
O subdelegado de Jacuizinho, Otacílio Floriano Pinto, apresentou a seguinte versão dos fatos: “diversas pessoas” teriam vindo até ele “pedir garantias em
virtude de se acharem ameaçadas por uma grande leva de fanáticos que se achavam
reunidos já há uns quatro dias no lugar denominado ‘Rincão dos Bernabé’ ”, calculados em mais de mil. Desta forma, “em virtude do clamor geral dos moradores
daquele lugar, procurou em continente o Delegado de Polícia de Soledade, a quem
narrou o ocorrido, tendo essa autoridade lhe confiado uma patrulha composta de
oito praças, com o fim de reconhecer os tais fanáticos e dispersá-los.” A patrulha,
sob o comando do cabo Centenário, dirigiu-se para o local onde estavam os fanáticos, pelo que soube, “ao se aproximar do bando de fanáticos foi recebida a bala,
tendo esta revidado a agressão fazendo uso de suas armas”, na “troca de tiros” foi
morto Benjamin Garcia de Moraes e ferido o soldado Oswaldo dos Santos. O cabo
Centenário seria o responsável pela prisão de 104 “fanáticos que se achavam em
um grande galpão os quais não tiveram tempo de fugir”.
Ao saber do tiroteio e de que os monges não queriam se entregar, Otacílio
Pinto foi em auxilio à patrulha com um grupo de mais 20 homens “que se pronti-
433
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
ficaram a lhe acompanhar”, mais uma vez, os civis participando das ações policiais.
Ao chegar, o subdelegado “encontrou a patrulha cercando uma grande casa com
galpão, onde estavam os referidos fanáticos os quais estavam em atitude hostil e
não queriam se entregar”. Para intermediar a rendição, “chamou um fanático que
é seu compadre e fez com que ele fanático fizesse ver aos demais que estavam
garantidos e que se entregassem com essa garantia, “os fanáticos se entregaram,
tendo sido recolhidos presos para a sede do distrito”. Reiterou a apreensão das
duas winchesters e um revolver nagan em poder dos fanáticos, os quais entregou
ao Delegado de Polícia. Por último, afirmou que mandou fazer o auto de corpo
de delito no morto e nos outros que haviam sido feridos, fazendo a “entrega dos
prisioneiros” ao capitão José Rodrigues da Silva.
O depoimento dos praças, cabo Vergílio Felisberto Centenário e soldado
Oswaldo dos Santos, são idênticos ao do subdelegado. O soldado ferido, Oswaldo
dos Santos, diz que a patrulha da qual ele fazia parte ao se aproximar do local,
foi recebida a bala, que então procuraram “reenvidar a agressão”, tendo “havido
grande troca de tiros resultando sair o depoente ferido na cabeça por um projétil
de arma de fogo, também saíram alguns dos fanáticos feridos e um morto.”
A conclusão do delegado de Soledade28 era que:
Como o fato acontecido, contraria dispositivo da Lei de Emergência, pois, os fanáticos além de cultivarem uma religião exótica, fizeram reuniões sem licença contrariando assim a Lei em
vigor e como tivesse o Exmo. Sr. Interventor Federal, mandado
um emissário, afim de investigar os acontecimentos sr. Capitão
José Rodrigues da Silva, para os devidos fins, outrossim, foram
entregues à referida autoridade os 104 presos e bem assim as armas acima mencionadas. Registre-se e entregue-se ao Emissário
do Governo.
Grupos familiares, a rede de organização dos monges
Para desvendarmos a rede de relações entre as famílias de agricultores que aderiram ao movimento dos monges, utilizamos a listagem dos presos, agrupando por famílias, conforme listamos no final. Buscamos identificar as origens familiares dos membros do grupo de barbudos, especialmente as lideranças que foram submetidas às prisões
e aos interrogatórios. Com certeza, essa relação de mais de cem pessoas, revela novas
possibilidades de pesquisas. Desde já, é possível verificar vários membros com sobrenomes comuns e combinações entre eles. São: Alves, Camargo, Costa, Gonçalves, Ferreira,
Fiúza, França, Mariano, Mattos, Oliveira, Pereira, Rodrigues, Rosa, Santos, Silva, Silveira,
Valentim, Valta, Vidal, Vieira, entre outros, compondo mais de 25 famílias.
DELEGACIA DE POLÍCIA DE SOLEDADE. Relatório da Delegacia de Polícia de Soledade. 1º
tenente Januário Dutra, delegado de polícia, 15 de maio de 1938. APERS
28
434
Detectamos a existência de pelo menos três núcleos familiares, com relações de
casamento e afinidades, que atuaram como núcleo articulador e irradiador da filosofia
religiosa dos monges. A partir de documentação cartorial, confirmamos as sólidas relações
entre eles, efetivadas por casamentos e compadrio29. Os Gonçalves da Costa possuíam
propriedade no Rincão do Caixão ou Rincão dos Barnabé, no Jacuizinho, 5o distrito de
Soledade; a família de André Ferreira França, no Campestre, no Lagoão, 6o distrito de
Soledade; e os Desidério Fiúza, em Campinas, também no 6o distrito. Não por acaso,
a lista de localidades percorridas pela diligência do tenente Dutra, em março de 1938,
tinha como foco o Lagoão, percorrendo também as Campinas.
A relação entre as famílias possibilitou casamentos e vínculos de solidariedade. Alguns casamentos que podemos comprovar foram:
1) Jovelina Ferreira França, filha de André Ferreira França e Delfina, casou-se
com Salvador Bernabé, filho de Pedro Ignacio Gonçalves e Maria Pacífica
da Costa;
2) Estácio Gonçalves da Costa, também filho de Pedrinho Barnabé e Maria
Pacífica, casou-se com Delfina Ferreira França, irmã de André França;
3) Anastácio Fiúza casou-se com Ana Gonçalves Vieira, filha de Frutuoso
Gonçalves da Costa e neta da Pedro Bernabé.
4) A irmã de Tácio Fiúza, Almerina, casou-se com Miguel Schneider. Ana Pacífica Schneider - casada com José Manoel Schneider - era filha de Pedro
Ignacio Gonçalves. Provavelmente Miguel e José Manoel fossem parentes.
O primeiro núcleo a chamar a atenção é a numerosa família do agricultor Pedro Ignacio Gonçalves, também conhecido como Pedrinho Bernabé, e Maria Pacífica da Costa. O casal teve 11 filhos30, 8 homens e 3 mulheres. Os homens
eram31: Salvador, Frutuoso, Alípio, Antônio, Crescêncio, David, Estácio e Ignacio. As
mulheres, conseguimos identificar também os cônjuges: Andreza Pacífica da Silva
casou-se com Manoel João da Silva, Ana Pacífica Schneider casada com José Manoel
Schneider e Idalcina Gonçalves da Costa com Ananias Alves da Costa. Maria Pacífica
faleceu em 1929, deixando terras como herança. Possivelmente seu nome de solteira
fosse Alves da Costa e os vizinhos do Rincão do Caixão, no Jacuizinho, Marcolino
Alves da Costa32 e Olegário Alves da Costa fossem seus parentes. Além disso, os
Dolina Ferreira França, filha de André Ferreira França e Delfina, era afilhada de batismo de
Anastácio Desidério Fiúza. WAGNER e PEREIRA p. 65
30
Escritura de doação inter-vivos, 18 de dezembro de 1929, Comarca de Soledade, Livro p. 7,
7v e 8. APERGS.
29
Mantivemos a ordem da Escritura por talvez ser etária, do mais velho ao mais novo.
Também falecido em 1929. O filho de Maria Pacífica, Alípio, batizou um filho de Marcolino
Gonçalves da Costa.
31
32 435
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Alves tiveram significativa participação no movimento: Adão Alves, Ananias Alves
da Costa e João Alves da Silva estiveram presos após o enterro de Anastácio Fiúza.
Outra questão que chama a atenção é que, os José da Silva, eram vizinhos no Rio
Caixão - Eufrásio José da Silva - e no Palmital, 6o distrito - Emiliano José da Silva.33
Na partilha realizada por Pedro Ignácio Gonçalves, os filhos Frutuoso e Inácio receberam as terras situadas no 6º distrito de Soledade, entre os lajeados Despraiado
e Palmital. O Palmital também estava entre as localidades vistoriadas pela patrulha
do tenente Rosa.
Pedrinho Bernabé nasceu no final da Guerra dos Farrapos, em 1845, e
viveu 92 anos. Faleceu em 29 de setembro de 1937, às 15 horas, em sua residência,
no Jacuizinho, sem assistência médica34. Não presenciou a prisão e a morte dos
barbudos. Antes de falecer, já havia doado as terras que recebera como herança de
sua esposa para os 11 filhos e a neta Maria [Jesuina] Henbner, casada com Adolpho
Henbner.35 Os filhos e as filhas, genros e noras de Pedro Ignacio Gonçalves e Maria
Pacífica da Costa foram importantes líderes do movimento religioso: os irmãos
Estácio e Salvador foram presos em março pela diligência do tenente Dutra; Alípio
e Crescêncio foram presos em abril de 1938. Esses dois irmãos voltaram da prisão
cegos devido ao veneno colocado em suas cabeças na prisão. O cunhado Ananias
Alves da Costa também foi participante destacado da religião, sendo preso junto
com o grupo levado após o enterro de Anastácio. Da família de Estácio Bernabé
e de Delfina Ferreira França temos informações sobre duas filhas: Andreza auxiliava o tio Deca França no atendimento dos fiéis em sua casa, ajudava com o chá
de caroba, e Maria Fermina dos Santos, doméstica, casada com Carmelino Corrêa,
faleceu jovem, com 28 anos, em 12 de maio de 1940, de “moléstia ignorada”36. Sobre Crescêncio Gonçalves da Costa também conseguimos outras informações. Ele
era agricultor e criador, casado com Juvita Helena da Costa, com quem teve seis
filhos: Pedro, Francisco, Sebastião, Izaltina, Alzira e Oscar Gonçalves da Costa.
Ficou viúvo e com os filhos menores em 1929 ou 1930. Em junho de 1930, vendeu ao vizinho, capitão Inácio Diehl, nove alqueires e três quartos, por 2:837$500,
das terras herdadas no Rincão do Caixão.37 O Rincão dos Costa, mesmo sendo de
difícil acesso, por estar localizado entre dois rios, foi um centro aglutinador dos
Escritura da partilha Pedro Ignacio Gonçalves da Costa. APERGS.
Talão de Óbitos no 2. Primeiro distrito de Sobradinho p. 41. APERGS.
35 Escritura de 18 de dezembro de 1929, Soledade. Faleceu em 29 de setembro de 1937 às 15
horas, aos 92 anos, sem assistência. (Talão de Óbitos no 2. Primeiro distrito de Sobradinho p. 41)
APERS.
36
Talão de Óbitos n. 2. Soledade, Jacuizinho, 2a zona - Tunas. p. 90. APERS.
37
Escritura de compra e venda. Cartório do Notário, Soledade 30 de junho de 1930, livro no
68, pp. 45-45v., APERS.
33
34
436
barbudos. Ali também vivia Alfredo dos Santos38, o Ceguinho, reconhecido benzedor e puxador de terço. Naquelas terras, no cemitério dos Bernabé, foi enterrado
Anastácio Fiúza e outras lideranças dos barbudos.
Anastácio Desidério Fiúza era filho do agricultor Bazileu39 Desidério
Fiúza - nascido em 23 de maio de 1873 e falecido em 23 de junho de 1940 - e
neto de Mercedes Fiúza. 40 Seus tios, por parte de pai, eram João, Joaquim, Luis
Manuel e Pedro. Sua mãe era Balbina Onorato Fiúza41, filha de Joaquim Onorato Fiúza e Cezaria [Tesses] Fiúza. Anastácio teve 5 irmãos: Almerina, Aristeu,
Ernestina, Reinoldo e Thomas. Almerina casou-se com Miguel Schneider42. Eles
eram descendentes dos Fiúza de origem castelhana. Anastácio casou-se com Ana
Gonçalves Vieira Fiúza, filha de Frutuoso Gonçalves da Costa e neta de Pedro
Ignacio Gonçalves e Maria Pacífica da Costa, com que teve dois filhos: Arator
e Eurélia. A filha Eurélia casou-se com um filho de Alípio e Tereza Gonçalves
da Costa. Tácio Fiúza plantava nas terras do pai até casar-se, quando foi para as
terras da família de Ana. A mãe e todos os irmãos teriam aderido à religião, exceção do pai que era afastado da família e possuía uma segunda esposa. Em 19 de
dezembro de 1929, o agricultor Anastácio Desidério Fiúza e seu irmão, Aristeu
Desidério Fiúza, ambos casados e maiores de idade, em sociedade, compraram
um lote de terras de cultura de 10 alqueires, em Campinas, no Lagoão, 6o distrito
de Soledade, por dois contos e quinhentos mil réis (2:500$000), pago em moeda
corrente com “plena e geral quitação”. A propriedade fazia divisas, ao norte, com
as terras de seu pai, Bazileu Desidério Fiúza, ao sul, com Nicanor Rodrigues de
Almeida e Doralice Borges Almeida, e ao poente, com o Rio Despraiado. As
terras foram adquiridas dos criadores Nicanor de Almeida e Doralice, sua esposa. Foram pagos impostos e taxas de transmissão de propriedade no valor de
147$500.43
Os nomes Alfredo Alves dos Santos e Alfredo Antônio dos Santos constam da lista de presos de março e abril de 1938. Possivelmente foi o Ceguinho.
39
Também grafado como Basiléu.
40
Entrevista Gervázio e Nilda e Orlandino e Izaltina; Talão de Óbitos n. 2. Soledade - Jacuizinho, 2a. zona de Tunas, p. 96. APERS
41
FIÚZA, Balbina Onorata. *19/março/1876 +02/dezembro/1952, Faleceu dia 3 de dezembro de 1952, às 2 horas, de “moléstia ignorada”, aos 78 anos. Está sepultada, junto com o
marido, no cemitério do rincão dos Costa, do lado direito da sepultura do filho Anastácio. (Talão
de Óbitos n. 4. Espumoso, vila Jacuizinho. p. 161) APERS
42
Possivelmente Miguel fosse irmão ou parente de José Manoel Schneider casado com Ana
Pacífica, filha de Pedro Ignacio Gonçalves e Maria Pacífica da Costa.
43
Escritura de compra e venda de Nicanor Rodrigues de Almeida e esposa a Aristeu e Anastácio Desidério Fiúza. Cartório do Notário, Soledade 19 de dezembro de 1929, livro n. 68, pp.
8, 8v. APERS. Cartório do Notário, Comarca de Soledade, Livro 68, 04 de dezembro de 1929 a
25 de março de 1931, pp. 8 e 8v. APERS.
38
437
X Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Nas Campinas do Rio Despraiado, Anastácio construiu uma casa e plantou cinamomos.44 Sustentava a família criando e comercializando porcos em Lajeado. Levava a vara a pé, tropeando mais de 100 animais de cada vez. Junto com as
suas criações, levava a manada de seus vizinhos. Para a atividade, podia contar com
o auxílio dos jovens da família de Ana Fiúza45. Durante a viagem, para descansar,
debulhava espigas de milho para os porcos ficarem em volta enquanto aproveitada
o frescor dos matos. Nessa mesma época, comercializava cristais de quartzo. Comprava na região e levava para polir também em Lajeado. Nas horas prazenteiras,
gostava de navegar, de briga de rinha e disputava carreira de cavalo.46 Anastácio foi
a liderança política do movimento, não possuía poderes nem conhecimentos curativos como o monge João Maria e Deca França, mas percorria as casas, organizava
os terços e enfrentou os vizinhos para reunir os barbudos na Igreja da Bela Vista.
Segundo Idalcina47, ele sabia que ia morrer, teria separado a roupa do enterro antes
de sair para a Bela Vista. A esposa Ana ficou aguardando em casa. Testemunhos
de entrevistas mencionam a presença do monge João Maria na região nessa ocasião,
ele que teria previsto que Anastácio voltaria morto. Para acompanhar seu sepultamento, centenas de agricultores enfrentaram o medo e o cerco policial e civil que
vitimou Tácio e, dias depois, Benjamim Amaral.
Pelos vínculos e relações apresentadas acima, acreditamos que a religião e
o movimento dos monges barbudos tenha tido como suporte ideológico e filosófico
as famílias identificadas: eram vizinhos, agricultores e criadores, e viviam as dificuldades de manter as famílias com pequenas extensões de terra que possuíam. Mas,
para além das lideranças do movimento, existia um conjunto de participantes que
não foram identificados, apontados como moradores dos matos ou os ervateiros e
carvoeiros como foi mencionado no jornal Kolonie48, de Santa Cruz do Sul, a base
social do movimento seria essa “nossa população pobre e esquecida de caboclos
no mato e no campo”, os ervateiros, carvoeiros e os “intrusos”, populações que
podiam manter-se com o extrativismo enquanto as matas eram áreas públicas em
constante tensão pela apropriação privada para a exploração comercial.
Os monges presos em março e abril de 1938
Entrevista Balbina Fiúza Naguel, Tunas, 21 de janeiro de 1990.
Entrevista Orlandino, 21 de janeiro de 1990. Cita Marcolino Gonçalves da Costa, filho de
Alípio Gonçalves da Costa e de Tereza Gonçalves da Costa, como um dos ajudantes de Anastácio.
46
Entrevista Orlandino, 21 de janeiro de 1990.
47
Entrevista Idalcinéia Alves da Costa
48
Jornal Kolonie, Santa Cruz, 27 de abril de 1938. Artigo localizado por Silva Krause e traduzido
do alemão por René Gertz.
44
45
438
Lista dos 8 presos em Soledade, em 22 de março de 1938, pelo 2º tenente
Rosa:
Adão Alves, Alfredo Antônio dos Santos, Estácio Gonçalves da Costa,
Guilherme Francisco da Silva, João Pereira Vaz, Leôncio Pereira Vaz, Sebastião
Gonçalves França [ou Sebastião Gonçalves da Costa], Thomas de Oliveira Fiúza
[ou Thomas Desidério Fiúza, irmão de Anastácio].
Lista dos 10 presos na Delegacia de Polícia de Sobradinho49, em 14
de abril, pelo delegado Antônio Pedro Pontes, após ter sido baleado Anastácio na
Bela Vista: Abrelino da Rocha Soares que, segundo registro do delegado, já estivera
preso apontado como “chefete” dos monges, quando teria se livrado da acusação de
“três assassinatos”, sendo libertado pelo ex-Chefe de Polícia - capitão Monteiro -;
Amâncio e Donato Vidal dos Santos, pai e filho, Crescêncio e Alípio Gonçalves
da Costa, irmãos, Leôncio Pereira Vaz, Apolônio Antônio Rodrigues, Henrique
Francisco da Silva, Manoel Damásio Costa e João Fernando Lima.
Lista dos 98 presos no Jacuizinho, após o velório e sepultamento de
Anastácio Fiúza, em 17 de abril, pelo subdelegado de Polícia do Jacuizinho, Otacílio Floriano Pinto, por grupos de famílias:
1) Família Alves (3): Nicolau Alves de Oliveira, Sebastião Alves de Oliveira e Sebastião Vieira Alves;
2) Família Camargo (2): José Domingos de Camargo e Maria Cândida Ferreira de
Camargo;
3) Família Costa (1): Agenor Lopes da Costa;
4) Família Alves da Costa (