EVALDINHO:

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EVALDINHO:
Beatbrasilis
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NESTA EDIÇÃO:
UMA OFÉLIA REBORDOSÍSTICA
OS 40 ANOS DA MORTE DE JIM MORRISON
GEORGES BATAILLE E O LADO PERVERSO DA VIDA
A RELIGIÃO DOS BEATS
UM ROLÊ PELAS RUAS DE ROMA
REFLEXÕES TECNOLÓGICAS INVADEM O SERTÃO
O PÉ-DE-ATLETA DA SUZANO
E-LUMINADOS, OS SOLDADOS DIGITAIS
FRATERNIDADE AS MARGENS DO RIO CUIABÁ
A ARTE DE FUMAR UM CACHIMBO
EVALDINHO:
A INCRÍVEL HISTÓRIA DO GALINHO DE BRIGA
QUE DESAFIOU A CÔRTE DO SEU ARTUR
REVISTA 1 BEATBRASILIS
REVISTA 2 BEATBRASILIS
EDITORIAL
Até se me contares que em nada te agrada essa estação fria e cinza,
ainda assim te lembrarei do abraço que tu entregas a ti mesmo na
busca de um calor melhor, quando enroscas os teus braços em torno
do teu próprio corpo e chacoalhas o teu queixo sem perceber na falta
que te fizeste durante todos os dias do ano onde te cegaste nas outras
estações que pertencem ao Sol.
E quero muito que te lembres, meu caro: quando finda alguma estrela
quente por aí, quando a vida cessa, quando retorna ao todo o nada ou
alguma coisa, vai-se embora a luz, vai-se embora o calor, a umidade, a
lágrima e o sorriso. Mas o frio sempre permanece como prova da
textura incorruptível do Infinito!
Toca aqui!
Aqui, amigo, não usaremos artifícios pra fugir dessa verdade de baixo
grau do Inverno austral. Aqui não tem lareira. Aqui não tem grosso
edredom. Aqui só a vida quente que habita temporária na tua carne
pode te prover do conforto que anseias. Busca isso e joga num papel
pra não queimar!
REVISTA 3 BEATBRASILIS
FABRÍCIO BUSNELLO
Beatbrasilis
# Número 7
(Agosto de 2011 [INVERNO])
Colaboraram nesta Edição:
Aless B.; Altair de Oliveira; Elena Caracoles; Fabrício Busnello; Fernando Ursáries; Gary Snider; Gerald Iensen;
Guilherme Rocha; Janaina Marques; Jim Duran; Jotapê Antunes; Mauro Cass;
Orlando G. da Silva; Padre Ezequiel; peixoto
Conselho Editorial:
Fabrício Busnello; Gerald Iensen; Guilherme Rocha; Jim Duran; Leandro Durazzo;
Mauro Cass; Vitor Souza
Diagramação:
Vitor Souza
Sobre:
Beatbrasilis é um coletivo cultural.
Revista Beatbrasilis é uma publicação on-line e sazonal.
Contato:
[email protected]
http://beatbrasilis.wordpress.com
Reprodução:
Ainda não decidimos sobre que licença usar. Portanto, caso queira reproduzir
qualquer texto ou parte desta edição, favor contatar o Coletivo pelo e-mail acima.
REVISTA 4 BEATBRASILIS
ENTREVISTA
DARK OFÉLIA
POR JIM DURAN
Imaginem a cena: Uma menina caminha perdida em um espaço escuro, está
descalça e vestida com uma dessas saias de bailarina clássica. Carrega na
mão uma taça de champagne e fala sobre o namorado que anda enfrentando
alguns problemas e, de repente, ela derruba todo o conteúdo da taça na
própria cabeça com uma expressão que beira a apoplexia. Assim é o
monólogo “Ofélia”, escrito e dirigido por Ronaldo Ventura.
É início do mês de junho e chega ao final o 10º FESTAETT (Festival de
Teatro da Estância Turística de Tupã). Faço parte da organização do
festival e me preparo para assistir a um dos espetáculos mais aguardados por
mim desde que vi a gravação do espetáculo que foi enviado para a inscrição
no FESTAETT. O Grupo de Teatro Curupira é de São Bernardo do
Campo/SP e vem composto por Ronaldo Ventura (diretor e iluminador),
Ana Cecília Reis (atriz), Huelita Rabelo (contra regra) e Érica Rabelo
(sonoplastia). Conheci o elenco na manhã do mesmo dia. Pessoal animado,
ferinos e aglutinadores, então nós conversamos e rimos muito durante todo
o período, mas o que eu queria era me encontrar com essa nova Ofélia
proposta por eles. O monólogo é baseado na personagem da peça Hamlet,
de William Shakespeare e sempre tive um carinho especial por essa
personagem. Sempre sendo retratada como uma coitada, uma adolescente
que se envolve com um homem mais velho e que termina vivendo um
drama sem tamanho que a leva ao suicídio. Mas ela não é só isso: Ofélia é
mulher que ama desesperadamente e que liga o “foda-se” em determinado
momento. A história acontece nos dias de hoje, mas não perde e nem
distancia um milímetro da gênese shakespeariana.
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O texto e a direção de Ronaldo Ventura
são rock, mas poderiam ser um jazz do
Chet Baker com drogas e um corpo
bailando no ar em direção ao fim; a trilha
é atual, é forte e encaixa no que é
proposto dentro do palco italiano. A
atriz Ana Cecília Reis faz uma Ofélia
rebordosística e encanta com sua força
permeada pela fragilidade da confusão mental que se instala na pobre moça.
Leiam a entrevista feita com esses dois artistas que não têm medo de tentar
melhorar o que é ótimo, conseguindo atingir o que desejaram.
BEATBRASILIS: Como foi que surgiu a idéia de trazer a personagem
Ofélia para a atualidade? Foi difícil colocar no papel?
RONALDO VENTURA: A idéia surgiu quando percebi que as heroínas que
eu assistia no teatro não diziam nada para minhas alunas, nem para minhas
colegas de faculdade, ou seja, as garotas não se reconheciam em nenhum
discurso que lhe era apresentado. Senti a necessidade então, de escrever esse
discurso. E a personagem Ofélia original tem um apelo muito forte,
TODOS gostam dela, e isso me levou a pensar: ‘por quê?’, o que atrai tanto
numa figura tão frágil?’, ‘e se ela não fosse frágil?’, ‘e se ser vítima for uma
opção?’, ‘e se ela não for vítima, mas sim mal compreendida?’, e por aí foi...
Essas dúvidas me levaram a escrever Ofélia como está escrita hoje. Foi
difícil. Porque eu queria uma coerência que dialogasse com a obra original
Hamlet. Queria que mostrasse exatamente o dia-a-dia da personagem,
seguindo a lógica proposta por Shakespeare. Não foi fácil, mas não foi uma
tortura, porém um prazer.
BEATBRASILIS: Porque Ofélia?
RONALDO VENTURA: Ops. Acho que já respondi.
BEATBRASILIS: Assim como ela, você acha que existam outras
personagens, tidas como menores dentro de uma trama, esperando ser
resgatadas?
RONALDO VENTURA: Ah, sim!! Ainda mais em Shakespeare. Ainda mais
em Hamlet! Eu tenho uma idéia para uma trilogia, que inicia com Ofélia,
outra peça só com os coveiros, e outra ainda com um dos atores que se
apresentam no castelo.
BEATBRASILIS: Dar a Ofélia uma problemática atual, um universo junkie
e mesmo assim manter sua
originalidade shakesperiana é
sinal da contemporaneidade do
bardo inglês?
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RONALDO VENTURA: Porque Shakespeare ainda é montado? Porque ele
diz algo ainda necessário! Não é só uma questão ‘arqueológica’, não é?
Enquanto autor, ele conseguiu criar personagens extremamente humanos,
com medos e raivas tão plausíveis, que os fazem serem reconhecidos no
mundo todo. Eu duvido que haja alguém no mundo que nunca tenha
ouvido – ou dito - algo como ‘há algo de podre no reino da Dinamarca’ ou
‘Ser ou não ser, eis a questão’.
BEATBRASILIS: Como foi que você chegou à atriz? Ela foi a primeira
escolha?
RONALDO VENTURA: Nós estávamos destinados um ao outro. Nunca
conheci ninguém que eu tenha tanta afinidade. Eu agradeço sempre por
existirmos um na vida do outro. Ela sempre será minha primeira escolha!
BEATBRASILIS: A trilha sonora foi criada como? Como chegou a esse
formato?
RONALDO VENTURA: Como não tínhamos cenário, e a função que
escolhemos para a iluminação é a de representar o interior da personagem, e
não de situá-la em algum espaço cênico, tratamos a trilha sonora como se
fosse o cenário: algo responsável para ambientar a personagem. Por isso que
quando a atroz ‘quebra a quarta parede’, não tem som, por exemplo. O que
tem, nesse momento, é o que chamamos de ‘sonoplastia real’, que são os
sons da platéia: tosses, barulho de bala, essas coisas, e sempre após essa
parte a trilha sonora explode, como se mudasse de cenário diante da platéia.
Foi mais ou menos por aí.
BEATBRASILIS: Para você a figura de Ofélia é crível?
ANA CECÍLIA REIS: Pra mim é! Pra você não? (risos).
BEATBRASILIS: Como foi a sua leitura da personagem?
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chocante. A força da Ofélia então é essa... Estava ali, escondida no meio das
drogas, do sexo, do consumo. Quando eu li o texto eu falei pro Ronaldo:
‘eu enxergo a personagem como uma fruta, assim ó: até determinado ponto,
ela é só casca, até o final do espetáculo ela é o miolo’ (risos). Pode parecer
uma metáfora estranha, mas funcionou para o nosso processo, até os
próprios exercícios partiram disso: Inicialmente as ações eram feitas de fora
pra dentro: gestos, coreografia, vozes pré-estabelecidas geravam uma cena.
Depois o processo foi de dentro pra fora, determinados sentimentos como
medo, insegurança, solidão geravam um corpo, uma voz, uma cena.
BEATBRASILIS: Como foi a descoberta da Ofélia em você?
ANA CECÍLIA REIS: Bom, quando eu li a primeira vez o texto, a leitura do
Ronaldo, eu fiquei chocada, hipnotizada, pensando aonde é que aquilo ia
dar, como no meio de toda aquela baboseira superficial ia sucumbir a
personagem de Shakespeare... a relação incestuosa que ele coloca com o
Laertes, as piadas com a Gertrudes, com o Horácio, a relação com o
Hamlet... De repente, quando os acontecimentos originais se desenrolam,
quando Hamlet a abandona, o irmão a abandona, o pai morre, aquela
menina se mostra de tal maneira que é muito belo, muito triste, muito
ANA CECÍLIA REIS: Quando eu escolhi fazer a Ofélia, foi porque eu
considerava uma personagem muito diferente de mim e de tudo que eu
havia feito no teatro. Foi meio assustador perceber o contrário (risos). É
estranho descobrir que a gente também é egoísta, que também, no fundo,
no fundo, só quer amor. E se a gente está feliz, dane-se o resto... Essas
coisas... Acho que talvez o texto flua de uma maneira bacana por isso, não
estou travada, não há nada que eu estranhe na Ofélia. No fundo, os
questionamentos, pensamentos e dores dela são universais.
BEATBRASILIS: Como foi a construção da personagem? Houve uma
pesquisa?
ANA CECÍLIA REIS: O texto da Ofélia era a idéia principal, então a partir
daí nós tínhamos uma personagem, sentimentos e situações que deveriam
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ser explorados. Como eu estava em busca de técnicas de atuação, cada
quadro da Ofélia partiu de determinados exercícios que geraram um corpo,
um sentimento, uma voz. A parte física da personagem foi a partir das
pesquisas que o diretor faz há mais de dez anos sobre a Antropologia
Teatral. Cansativa, trabalhosa e recompensatória. Para a parte psíquica, li
Freud e algumas versões sobre a personagem, entre eles um trabalho
acadêmico que pegava o texto clássico e analisava a personagem não como
uma mulher frágil, pura e apagada, mas muito pelo contrário, a autora
afirmava que Ofélia tinha muita personalidade ao manter uma relação com
Hamlet mesmo sem a autorização de seu pai, ao testar o Hamlet e fazê-lo
assumir que a enviava cartas, e questioná-lo quando ele recusa tal ato. ‘Sabes
muito bem que o fez’. Essas características não são típicas de uma mulher
sem personalidade. Esse trabalho foi interessante porque nos mostrou que
estávamos no caminho certo.
BEATBRASILIS: Ofélia é confusa, baila entre a ferocidade da mulher e a
sofreguidão da adolescente que sofre com um amor instável. O que é mais
próximo da realidade?
ANA CECÍLIA REIS: Não vejo separação. Nós mulheres somos malucas,
somos assim mesmo, transitamos entre essas personas o tempo inteiro, e
muitas outras mais (risos).
sórdidos, porque eles são baseados em sentimentos humanos que todos
temos ou tivemos em algum momento, em alguma circunstância... Mas
especificamente na Ofélia, acho que eu possuo um pouco do humor trash
dela, do sarcasmo, do medo de se mostrar frágil, de se apaixonar, também
perdi meu pai quando eu era nova, também acho que ‘a vida é uma piada
sem graça contada por um sujeito com senso de humor suspeito’. Talvez a
diferença seja que a solidão não me faça tão mal quanto a ela, acho que
quanto mais você mente pra si mesma pior é quando você descobre a
verdade, então eu tento não mentir pra mim, pois senão certas descobertas
se tornam piores.
BEATBRASILIS: Como é fazer teatro hoje em dia?
ANA CECÍLIA REIS: É lutar contra o frio, contra a preguiça, contra a
lógica, contra a racionalidade, contra ‘os sentidos vagos da razão’ como
disse Cazuza. É matar um leão no café-da-manhã, de olho na gazela do
almoço, sabendo que ainda deve ter um ou dois jacarés antes de dormir. E
isso todo dia.
BEATBRASILIS: Quais os planos da Ofélia?
ANA CECÍLIA REIS: Tentar conquistar o mundo!
BEATBRASILIS: O que te aproxima da Ofélia que você interpreta?
ANA CECÍLIA REIS: Ah, muitas coisas. Acho que você sempre vai
descobrir identificações com qualquer personagem, mesmo os mais
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MÚSICA
UM GINETE
NA TORMENTA
Por Fabrício Busnello
Eu me lembro perfeitamente bem de quando meu amigo Sig me apresentou
a canção Soft Parade, que foi a primeira coisa que ouvi do The Doors.
Marcaram-me tanto a canção quanto o comentário do meu jocoso
camarada: “se eu tivesse essa voz, cara, ia comer todas as gurias que eu
quisesse”. E eu entendi que seria verdade se assim fosse e desejei o mesmo.
Quanta exuberância naquela voz do Jim, e que capacidade absurda de
cambiar de uma ternura comovente para uma animalidade psicótica: ele
fazia o que bem entendia com o ar que saia de sua garganta! Influenciado
por escritores como Jack Kerouac e Allen Ginsberg e amigo pessoal do
poeta Michael McClure, Morrison tinha uma dilatada veia poética,
expressada aos berros ordenados mas que pregavam o caos absoluto, o
dionisíaco em oposto a ordenada sociedade apolínea em que vivia.
Pois agora, enquanto escrevo esse pequeno texto numa noite cheia de chuva
aqui em Porto Alegre, me comovo de verdade ao perceber que já fazem
alguns dias em que se completaram os 40 anos da prematura morte do poeta
roqueiro bonitão, do Rei Lagarto, do garoto assombrado por tribos inteiras
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de xamãs do deserto americano que lhe ensinaram passos mágicos de dança
e lhe aterrorizaram a vida em sonhos com visões de morte. 40 anos desde
aquele 03 de julho de 1971. Fico a imaginar um Jim Morrison calvo e gordo
e velho cantando o Blues como nenhum outro carinha de tez branca seria
capaz de cantar, que é o que penso que a vida desenharia pra ele. Penso em
dezenas de discos melhores que L.A. Woman que jamais serão gravados por
aquele maluco que dizem que era tímido como um lobo. Mas o que gosto
mesmo de imaginar é que tudo não passa de uma peça do sacana do James
Douglas, que ele não morreu porra nenhuma de overdose de heroína ou
assassinado por agentes carrancudos da CIA, mas que vive hoje tranquilo e
bronzeado nas Ilhas Seychelles, tirando um sarro danado com o patamar de
deidade que sua figura alcançou.
E é isso mesmo: pra mim Jim Morrison sempre queimará seus demônios
sob o sol escaldante de alguma praia do Oceano Índico, e não na escuridão
lacrada e fria de uma tumba de um cemitério francês. E tudo isso há 40
fudidos anos, caras!
Fabrício não voa alto porque não precisa, pois as coisas que mais ama estão aqui embaixo. Vivo desde 1976, foi
aprendendo desde cedo a amar a estradas, passando com a família pouco tempo em muitas cidades. Colorado, Gaúcho e
Brasileiro, acabou por formar-se em Turismo por pura conveniência. Nasceu mestre em Vagabundagem, e tenta
aprimorar esta vocação enquanto ronca em ônibus que rodem pelo sítio que mais ama nesse mundo: a América Latina!
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da merda, da morte, da violência, da decadência, da devassidão e de todas as
outras bizarrices da condição humana. Alguém havia de fazê-lo, afinal. Não
tentarei condensar toda sua filosofia em um pequeno texto, mas gostaria de
apresentar pelo menos uma de suas mais recorrentes e interessantes
provocações. Bataille argumenta que nossa sociedade traveste a condição
humana ao filtrá-la com moralismos e ideais de “decência”. Ou seja, por trás
dos ideais de decência que fundamentam os “bons costumes”, está nossa
verdadeira natureza, nua e crua, perfeita do jeito que é, com sêmen, merda,
putrefação e decadência.
Para desenvolver essa ideia, considerem uma noiva em sua cerimônia de
casamento. Imaginem ela coberta em maquiagem e com o cabelo
delicadamente arrumado. Impecável, linda de morrer em um vestido de seda
coberto por diamantes. Alva, pura, bela. Pois bem, agora imaginem uma
mosca na ponta de seu nariz. O que explica o fato de um inseto associado à
putrefação lá estar? Ora, para a mosca, as máscaras que criamos em nome
da “decência” são insignificantes. As camadas de decoro e respeitabilidade
que acobertam a noiva não iludem a mosca, pois a condição inerente do
corpo da noiva é o da morte, da decadência. A mosca sabe o que se
encontra no altar, um corpo coberto em ficções, fadado a morrer.
Filosofia
Por Guilherme Rocha
Para os que desconhecem Georges Bataille, um aviso: falarei de merda,
evitando falar merda.
Começo apresentando o básico — Bataille que articulou, em sua filosofia,
uma reflexão de tudo que é repudiado pela sociedade “cível”. Sua filosofia
reconhece, sem maiores pudores, o lado perverso da vida. Ele honra o lugar
Agora peço para que encarem o sol. De preferência, o sol do meio-dia num
dia sem nuvens. Arrisco dizer que você aguentou poucos segundos e logo
virou os olhos. Qual a razão de você desviar os olhos daquilo que mais se
assemelha a deus? O sol que dá vida às águas, às flores, aos bichos, a nós. O
sol que permite nossa existência, enfim. Como explicar essa resistência? De
acordo com Bataille, essa resistência pode ser comparada à resistência de
REVISTA 12
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nossa sociedade cível a conceitos “sujos”, conceitos que incomodam nossa
versão perfumada da vida. Não conseguimos encarar o sol na cara, logo não
conseguimos olhar deus nos olhos. Conformamo-nos com um deus
cômodo, perfumado, adaptado aos nossos “bons” costumes. Mas se deus
for Deus e se Deus for Tudo, então Deus também é o lado asco da vida.
Em nome da Vida, se venera o sol, então porque não o ciclo escatológico, já
que esse cumpre um papel tão crucial para a vida? Com base nessa lógica,
Bataille vai além e afirma, sem conotação religiosa, que é em nome de Deus
que se venera o cu. Afinal, se Deus é Tudo, então tudo é sagrado. E não há
bons modos nem ilusões de decência que podem mascarar a condição sacra
do cu.
A filosofia de Bataille não deve ser entendida com uma homenagem gratuita
à escatologia e à morte, mas sim como uma proposta honesta para o estudo
e aceitação de nossa natureza “asca” — nosso sangue, nossa merda, nosso
corpo em putrefação, nosso caos. Algo como “ode a um tolete em uma flor
morta, ou: a vida é bela, mesmo com seus detalhes sórdidos”. Amém.
Guilherme Rocha demorou três dias para caminhar todo
o litoral sul da Paraíba. Para muitos, bastaria dois.
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RELIGIÃO
kers, o Budismo Shinshu, o Surfismo, etc. Todas elas são frutos de um coração generoso
e amante. Em suas manifestações mais dignas, essas tendências levaram algumas pessoas
a condenarem ativamente as guerras, fundar comunidades e amarem-se uma às outras.
Em parte, elas são responsáveis também pela mística dos "anjos", a glorificação das
viagens a pé e das caronas, bem como por uma forma de entusiasmo inconsciente. Se
respeitam a vida, não respeitam a sabedoria da impassibilidade e da morte. E isso é uma
falha delas.
RELIGIOSIDADE BEAT
POR GARY SNyDER
A religiosidade a que nos referimos é mais resultado da prática e da experiência pessoal
do que de uma teoria aprendida. A afirmação que se ouve geralmente em certos círculos
segundo a qual "todas as religiões levam ao mesmo fim" é conseqüência de um
pensamento totalmente falso que não é justificado por nenhuma prática. É bom lembrar
que todas as religiões contêm noventa por cento de fraude e são responsáveis
por numerosos males sociais. Dentro da geração beat verifica-se a existência de três
tendências:
1. Procura de visão e da iluminação. Esse resultado é obtido geralmente pelo uso
sistemático de narcóticos. A marijuana é um recurso de consumo diário e o peiote é o
verdadeiro estimulante de percepção. Tanto um como o outro são complementados às
vezes por práticas iogas, álcool e similares. Embora uma boa parte de auto-consciência
possa ser obtida pelo uso inteligente de drogas, o hábito de estar "dopado" não conduz a
nada porque falta exatamente inteligência, vontade e compreensão. Uma sensação
puramente pessoal, obtida às custas de um narcótico, não beneficia ninguém.
3. Disciplina, estética e tradição. Essas tendências são bem anteriores ao aparecimento
oficial da geração beat. Diferenciam-se da doutrina "Tudo é um" na medida em que seus
praticantes estabeleceram uma religião tradicional, tentaram incorporar o sentimento de
sua arte e de sua história, e praticam qualquer ascese que for necessária. Uma pessoa
pode tornar-se um dançarino aimu ou um xamã yurok, ou até mesmo um monge
trapista, se ela realmente o deseja. O que falta nesse tópico, é o que os dois primeiros
possuem, ou seja, uma existência perfeitamente adaptada à realidade do mundo e
percepções realmente verdadeiras do inconsciente.
A conclusão prosaica é a seguinte: se uma pessoa não for capaz de compreender todos
estes aspectos – contemplação (que não seja pelo uso de drogas), moralidade (que
significa para mim protesto social) e sabedoria – ela não estará à altura de levar uma
autêntica vida beat. Mesmo assim, ela poderá ir bastante longe nessa direção, o que
é preferível a ficar rodando pelas salas de aula ou escrever tratados sobre o budismo e a
felicidade das massas, como fazem os quadrados com tanto sucesso.
2. Amor, respeito pela vida, abandono, Whitman, pacifismo, anarquismo, etc. Todas
essas tendências são provenientes de inúmeras tradições, entre as quais a religião Qua-
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(Retirado de "Geração Beat (antologia): apresentação e compilação de
Seymour Krim, tradução de Marcello Corção, editora Brasiliense, 1968").
religião
SERMÃO POR padre ezequiel
Orai sem cessar, dizem os evangelhos. Orai sem cessar também dizem os velhos
praticantes do caminho hesicasta. Os padres do deserto, os monges do deserto, os
sinaítas e os velhos vagabundos ortodoxos do cristianismo russo dizem mais: dizem
“orai sem cessar a prece do coração”.
Que quer dizer a prece do coração? Que é orar sem cessar? Os relatos do peregrino
russo, textos anônimos do século XIX, contam a jornada de um pobre de Cristo,
andarilho sem parada que carrega às costas pouco mais que um naco de pão e, na camisa,
a Bíblia. Eis tudo que é preciso para que se aprenda a orar com o coração, na humildade
da busca tranquila.
Pelo caminho dos hesicastas descobrimos o misticismo cristão, o repetir incessantemente
o nome de Jesus Cristo nosso Senhor, e, por meio disso, e junto a isso, fazer acalmar
nossa mente e coração das turbulências desse mundo.
Que quer dizer a prece do coração? Quer dizer que unindo a mente e a fala a Deus no
momento da oração, em todos os momentos, o homem é capaz de tranquilizar o tempo
que ronda sua angústia e seus problemas. Pelo coração unido a Deus o homem encontra
a paz e a calma no mundo, e segue despreocupado pelo caminho, confiando na fé e na
salvação.
Deus é suprema totalidade da existência, da Criação, de tudo que há no mundo e além
dele. Não é só YHWH do Velho Testamento, nem mesmo só Pai de Jesus Cristo
crucificado. Deus é o inacessível, inconcebível e altivo Senhor que não se pode atingir,
não se pode enxergar nem sequer cogitar. É a fonte e o fim, o caminho do meio da
experiência.
Orar sem cessar faz cessar a atenção ao si-mesmo. O místico, ao orar com o coração,
esquece de si e de sua pretensão, a saber, qualquer coisa, esquece sua intenção de fazer
qualquer coisa, e só ora. Orando com o coração e não com a mente, esquece de buscar
entender claramente o que é Deus ou o mundo, esquece de tudo e se coloca a meio
caminho de todas as certezas.
A suprema integração e entrega é causa e o efeito desse modo de ser. A prática da
repetição, a constante permanência frente à face de Deus, o ininterrupto clamar por seu
nome, tudo faz o homem caminhar para as brumas luminosas do desconhecido, em que
se dissolve e se eleva.
A prece permanente, a atenção permanente ao nome, ao todo que constitui a vida, tira o
centro de si mesmo e o abre ao outro, ao próximo e ao distante. Aberto, em oração, cada
um de nós pode se tornar o caminho para a ação compassiva e doadora, para a plena
atenção à vida e para a reação imediata às condições e circunstâncias que a vida
apresenta.
Vigiai e orai, para que os pensamentos não atrapalhem vossas ações.
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TRIP
DIAS DE ANDARILHO EM ROMA
POR Mauro
Cass
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A princípio a idéia era um périplo pela Itália unicamente para buscar minhas
raízes. Sou neto de italianos. Todos os meus quatro avós vieram dos mais
diferentes lugares da Itália. Estão todos mortos e foram sepultados bem
antes deste meu interesse em saber por onde andaram meus antepassados.
Sei que minha avó paterna nasceu na região de Vêneto. Mas por falta de
documento há dúvidas entre os familiares em que cidade ela nasceu.
Tampouco ela sabia quando viva, pois veio no colo da mãe, minha bisavó.
Há primos que afirmam que ela nascera em Treviso, outros dizem ser em
Verona. Eu não faço a menor idéia, gostaria de achar algum documento
dela. Nunca encontrei nada. Há os outros avôs. E a gente, uma típica família
de descendentes de italianos que vieram ao Brasil fugindo da miséria
européia do início do Século 20, não tem documento algum. Nada. Ou
jogaram fora, ou foram destruídos ou se perderam na caótica chegada ao
Porto de Santos. Portanto, de meus antepassados, salvo a certeza de que
vieram todos da Itália e eram demasiadamente pobres, não sei mais nada.
Mas mesmo assim havia uma excelente desculpa para visitar o país de meus
ancestrais. O vôo mais barato que encontrei foi de São Paulo direto para
Lisboa. Era para ficar um dia e uma noite na capital portuguesa. Fiquei uma
semana simplesmente porque achei Lisboa uma cidade deslumbrante em
todos os sentidos. Bebi muito vinho do Porto e as noitadas pelo bairro de
Alfama foram inesquecíveis. Suas vielas estreitas por onde não é possível
trafegar com um carro, por menor que ele seja, tem um aspecto romântico
de uma favela medieval. Fica num morro, há pouca luz, e muitas putas,
malandros e cabarés especializados no mais vadio dos fados. Me enfiei por
aquelas vielas por quatro longas noites investigando seus cantos, seu
submundo e toda sua gente. Conversei com muita gente e, estranhamente,
me senti em casa. Por alguns dias, deixei de lado meu plano de percorrer a
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Itália. Em viagens, normalmente, por muito pouco, abandono meus planos
originais.
Mas, bem, paremos por aqui de descrever Lisboa. Ao menos nos textos
devo manter meu plano original. Escrever sobre Roma. Em uma sexta-feira
pela manhã fui ao aeroporto de Lisboa, que é grande, e agora não me
recordo o nome, tampouco importa o nome, e peguei um vôo da
companhia aérea Voeling que é uma destas empresas européias que fazem
os chamados vôos “low cost”. Paguei 45 euros pela passagem. Uma
pechincha quando comparamos com os desagradáveis e proibitivos valores
praticados pelas companhias aéreas no Brasil. Era uma aeronave asseada,
bem limpa mesmo. Cheira bem e as comissárias, espanholas, sorridentes,
solícitas e sem qualquer apelo sexual. A gente pensa em espanhola e logo
vem em mente a gostosa da Penélope Cruz, a musa do Almodóvar. Mas
neste avião, além de um comissário gay, havia estas duas comissárias
sorridentes mas sem graça. Me alojei no meu banco. Um lugar terrivelmente
apertado. É a mágica para ser mais barato. Apertam-se os espaços, cabe
mais gente. Uma hora e meia de vôo. Tudo bem, pensei comigo. É
tolerável. Na minha frente, respeitando sempre a sagrada Lei de Murphy,
sentou-se um italiano visivelmente alterado por excesso de álcool. Não
estava bêbado, como os beberrões que conheço, a ponto de não entender
das coisas, mas encontrava-se naquele ponto intermediário alcoólico em que
o cidadão perde o bom senso e, se não tiver um caráter razoavelmente bom,
fica excessivamente chato. O desgraçado checou por duas ou três vezes seu
bilhete e certificou-se de que seu lugar era exatamente o banco que ficava na
minha frente. Sentou-se e imediatamente inclinou ligeiramente seu banco. O
que não é permitido antes do avião decolar e ficar estável lá nas alturas. Mas
o fez mesmo assim e, com isso, transformou meu exíguo espaço num
claustrofóbico invólucro de astronauta. Tenha paciência, pensei comigo.
Logo as moças espanholas ou o viado comissário vai dar um toque para ele
voltar com a poltrona na posição normal. Acontece que assim que o bicho
se mexeu e se ajeitou na poltrona a poucos centímetros de distância de mim,
dele se desprendeu um fedor de carniça humana que há anos eu não sentia.
Era um cheiro horrendo que eu poderia descrever como uma mistura de
merda, mijo, álcool e suor. O sujeito parecia estar podre. Era jovem, tinha
no máximo 30 anos. O cabelo desgrenhado, uma jaqueta fedorenta de nylon
grossa. Aquilo, definitivamente, me incomodou. Esperei o avião taxiar e
alçar vôo já decidido a mudar de lugar. O italiano se levantou na hora
errada, com o avião decolando. Aquele pulha foi cair em cima de mim com
todo seu fedor. Eu o esmurrei e com minha perna o arremessei para frente.
Ele caiu no corredor e não conseguia levantar por conta da inércia da
decolagem. As comissárias davam ordens pelo sistema de som para ele
voltar ao seu lugar. Sabiam que não havia mais o que fazer. Mas falavam
mesmo assim para ele voltar ao assento. Quando o avião estabilizou a 10 mil
pés, ele se ergueu, não me olhou e se sentou. Para evitar mais problemas,
pois pressentia que eles viriam, sai do lugar e me arrumei num lugar vago
nos fundos. O sujeito puxou uma garrafa de uísque de um saco e entornou
de maneira soberba como querendo dizer a todos: “eu faço o que bem
entendo por aqui”.
O cara se levantou, sentou de novo. Voltou a se levantar. Eu o mirava. Ele
ia aprontar mais alguma, tinha certeza. Estava agitado. As pessoas por perto
se incomodaram, acho que algumas se amedrontaram também. Ele tirava
aquela pesada blusa e a colocava no banco. Depois a punha no
compartimento de bagagens de mão logo acima. Depois a pegava de novo e
a vestia e em seguida voltava a tirá-la e botar no lugar onde estava. Aquilo
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estava irritando todo mundo, sem dúvida. Eu, não sei a razão, não tirava os
olhos dele. E, numa destas vezes em que pegou novamente a jaqueta, ele
botou a blusa toda enrolada sob os braços e rumou para o fundo do avião
em minha direção. Era uma atitude bem estranha, sem dúvida. Fiquei alerta.
Achei que ele me atacaria. A blusa era grande, e estava maior ainda, bem
avolumada. Suspeitei que ele tivesse pego algo do compartimento de
bagagem e enrolado na blusa. Por certo uma bolsa. O cara passou por mim
e foi ao banheiro dos fundos da aeronave. Eu fui falar com o comissário
gay. Disse que o cara era suspeito. Que certamente tinha roubado alguma
coisa de alguém e colocado na blusa. O viado, um tanto assombrado, e meio
arrogante, pediu para que eu me acalmasse. Insisti que o cara tinha roubado
alguma coisa, que eu tinha visto. Foi então que a aeromoça, a sem graça mas
gentil, resolveu tomar uma atitude e destravou, por fora, a porta do
banheiro onde estava o sujeito. E o flagramos com uma bolsa de mulher no
colo fuçando o que tinha dentro. O filho da puta pegou a bolsa. Eu não me
contive e desferi um chute no meio do peito do ladrãozinho. Ele ficou
desnorteado. A dona da bolsa apareceu. E caos reinou. O italiano de merda
esboçou reação e foi pra cima de mim. Eu o esmurrei. Ele recuou. O viado
me segurou em pânico. O avião pousou em Roma. Os passageiros desceram
e os Carabineri estavam nos aguardando. O primeiro lugar que visitei em
Roma foi uma delegacia no próprio aeroporto. Eu, o ladrão e a vítima. Me
entendi com o delegado. Mas perdi quase três horas por ali, assinando
papéis e documentos e acusações. O ladrãozinho bêbado queria me
processar por agressão. Gesticulava e me acusava. O delegado foi com
minha cara. Me deu razão. Botou o cara para tomar um chá de xadrez.
Passaria a noite numa cela. Achei bem bacana da parte do delegado o apoio
que me deu. Eu sendo um brasileiro acusado por um italiano. Ele me disse
algo assim: “fato bene”. Fui liberado, peguei minha mochila, e tomei um
ônibus lá fora direto para o centrão romano. Trânsito infernal. Bem pior
que São Paulo. Para cobrir uma distância de não mais que 15 quilômetros
levamos quase três horas. Desci no centro com fome e no final da tarde.
Não tinha reservado hotel algum. Desci depois de me enjoar de ficar dentro
daquele ônibus. Era o centro. Me bastava. Entrei numa espécie de padaria
romana. Vendiam pedaços de pizzas com uma massa muito grossa por dois
euros. Comi uma, tomei uma jarra de vinho. Pronto. Romanamente
satisfeito. Perguntei por um pouso. Me indicaram alguns. Sem mapa, segui
na busca das opções indicadas pelo sujeito da padaria anotadas no
guardanapo. Tudo muito perto, nos arredores, muitas hospedarias. Todas
bem simples e, ao mesmo tempo, abusivamente caras. Roma é destino de
uma horda de turistas durante todo o ano. Me alojei num lugar mais barato
e simpático. A dona da hospedaria era uma italiana bem gostosa. Longos
cabelos castanhos, peitos fartos exibidos generosamente por um decote
italianíssimo. Gostei do lugar. Um terceiro andar sem elevador. Um quarto
decente e limpo. E a dona, ma que bella dona aquela. Uma mulher
esbanjando volúpia. Tomei um bom banho quente, sai para caminhar pelas
ruas romanas e andei até a Via Veneto. É uma grande avenida, tipo Champs
Elysee, repleta de caras cantinas e lojas elegantes. Gente bem alinhada
bebericando vinhos em taças de cristal. Pareceram-me todos turistas
esnobes, isso sim. Gente se exibindo, tentando pagar uma de italiano dos
tempos de Fellini. Mas, enfim, me bastou dar uma olhada nos cardápios
exibidos nos vitrais para ver que os preços indicavam que, por ali, só tinha
gente bacana, endinheirada. Só caminhei em minha primeira noite em
Roma. E fui dormir cedo. Estava exausto.
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Nos demais dez dias andei por tudo em Roma. O metrô não oferece muitas
opções. Não foi possível aos romanos modernos expandirem muito o metrô
por conta dos infindáveis sítios arqueológicos. Metrô não combina com
uma cidade milenar como Roma. É curto e tem poucas estações. Mas dá
para visitar as principais atrações a bordo dos trens. O primeiro lugar que
visitei foi o Coliseu. É um lugar impressionante quando se visita como
turista. Mas é assustador quando se entra ali para sentir, para passar as mãos
pelas paredes seculares, cravadas por camadas e mais camadas de sujeiras de
gerações e gerações ao longo de quase mil anos. Aquilo pesa no espírito da
gente. Arrepia até o rabo. Bandos de japoneses passam de um lado a outro
fotografando tudo. Mas eu busquei os odores dos cantos do Coliseu, e
passei lentamente minhas mãos por aquelas encardidas paredes grossas e
geladas. Não que eu seja espírita, mas pude desfrutar de sensações estranhas.
Vândalos escreveram seus nomes e colocaram datas em tempos remotos
quando o Coliseu era apenas uma ruína abandonada do antigo império
romano. Nomes como Vince com a data 12/9/1914. Quem era este Vince
que fora lá em setembro de 1914? Seria um de meus ancestrais? Havia mais
nomes e datas antigas por ali. 1887. 1931. Algumas mais apagadas. Na idade
média aquilo virou um cortiço. Depois estrebaria. Faziam lingüiça por ali. O
sangue sempre esteve presente no Coliseu. Passei algumas horas andando ali
dentro. Depois cruzei a praça, passei pelo Arco de Constantino que os
parisienses roubaram o estilo arquitetônico para criar o Arco do Triunfo. E
então segui para uma das colinas de Roma. São cinco ou seis. Não sei ao
certo. É preciso pesquisar e eu não tenho saco para pesquisas. Seja como
for, Roma nasceu sobre estas colinas. Entrei na cidade antiga. Mais uma
viagem ao passado. Passei pelo Fórum e o mercado de Trajano, considerado
o primeiro Shopping Center da humanidade. O Imperador Trajano era um
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consumista. Peguei pedras, sentei em restos de pilares. Senti Roma antiga
até que eles, os guardas, nos enxotassem de lá. Quando o sol se põe é hora
dos turistas darem o fora para que Roma antiga fique entregue
silenciosamente apenas aos seus fantasmas.
Por preguiça não pesquisei nada sobre meus antepassados na Itália. Na
verdade, nem sai de Roma. Fiquei dez dias perambulando pelas ruas.
Conheci uma porção de coisas antigas e históricas. Andei pelo Circo
Máximo onde os romanos se matavam com suas bigas para alegria dos
nobres e da plebe. É como uma pista de pouso feita em terra batida. Diz nas
placas que milhares de romanos ficavam em volta daquela pista, com os
obeliscos em suas pontas. E assistiam, como hoje em dia a gente vê jogo em
estádio de futebol, à carnificina. Não bastava, para eles, o Coliseu e seus
gladiadores, nem tampouco as infindáveis batalhas campais para conquistar
mais territórios, era preciso mais sangue, por pura diversão. É a base da
humanidade, do mundo moderno. A gente, feito vampiros, precisa de
sangue alheio para preservar o nosso. É possível andar por tudo quanto é
canto. E foi o que fiz. Um andarilho em Roma. Não conheci nenhuma
romana. Até gostaria. Mas elas não se interessaram por mim. Nem mesmo a
gostosa dona da hospedaria onde fiquei. Joguei uma moeda de meio Euro
na Fontana di Trevi em meio a uma multidão de gente e botei minha mão
dentro da Boca Della Verità e disse algumas mentiras mas minha mão não
foi decepada como reza a lenda. Deixei para o último dia uma visita ao
Vaticano. E vi o Papa. Sim, fui a Roma e vi o Papa. Depois me enfiei numa
fila gigantesca para visitar a Capela Sistina. Uma puta fria. É gente demais.
Duas horas na fila. Três horas no aperto dentro desta capela que mais
parece um inferno dantesco onde você vai sendo empurrado até ser
encurralado no ponto mais aguardado que são os afrescos no teto feitos por
Michelangelo. Programa de trouxa, com certeza. Vale mais a pena comprar
um postal. Queria saber de meus antepassados. Mas o tempo foi curto e me
entretive com outras coisas. Tomei vinho todos os dias e comi todo tipo de
pasta e sanduíches com salame e queijos nos lugares onde os turistas não
iriam de jeito algum. Tomei o tradicional sorvete italiano, que é bárbaro. E
me perdi pela periferia, para conhecer a atual e verdadeira Roma. Ali há
puteiros com brasileiras. Não me detive em puteiros. Mas conversei com
algumas brasileiras que fazem a vida pela cidade milenar. Na noite, a gente
pode conversar com os travestis de nossa terra que fazem um esforço
hercúleo para não serem identificados por nós, os brasileiros. Mas se
puxamos papo numa boa, alguns baixam a guarda. E então ouvimos boas
histórias. Mas estas, conto depois.
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Mauro Cass é jornalista, sonha ser escritor,
e há anos viaja o quanto pode, mesmo
quando não pode, especialmente com sua
velha Harley. Já fez poesias para conquistar
garotas pelas quais se apaixonou
perdidamente e depois escreveu contos
infames sobre suas relações escandalosas e
viagens solitárias. Tem em seus cachorros
seus mais íntimos amigos e faz a eles, só a
eles, todas as suas confidências.
TRIP
UMA REFLEXÃO COM O SERTÃO: TECNOLOGIAS,
ÁGUA E INVERNOS
Por ORLANDO G. DA SILVA #Dasilvaorg
Agora no finalzinho de agosto saí de Cabedelo [1] com destino a Sousa [2]
para uma tarefa um tanto quanto estressante, porém extremamente
necessária. Prefiro não falar sobre ela mas sim sobre o objetivo paralelo, que
foi produzir este texto para o #mutsaz inverno [3].
Eu sabia que uma vez estando em Sousa, na pior das hipóteses, teria uma
tarde livre para dar uma volta pela cidade, ver coisas, conversar com as
pessoas e assimilar um pouco desse sertão que não conheço em nada além
da literatura e de um imaginário popular. A idéia era aproveitar esse tempo
para refletir um pouco sobre “local” e tecnologia. Consciente porém de que
“local” é sempre construção.
Não li nada sobre Sousa antes da viagem. Sabia da existência do Vale dos
Dinossauros [4], mas não era meu foco. Passei por lá rapidamente apenas
para atender a um desejo do meu filho e fiquei um pouco triste com o
descaso que vi. Sabia também que havia uma descoberta recente de petróleo
na região, mas não tive tempo de investigar o assunto.
São sete horas de viagem de ônibus para Sousa. Levei coisas para ler e para
ouvir, mas sempre acabo curtindo muito a paisagem. O dia estava da cor
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que eu mais gosto, cinza, nublado, bonito demais pra começar viagem
rodoviária. Mas ao tentar fotografar este momento o que me veio
imediatamente à cabeça foi o imenso poder daquele mar verde ao meu lado.
Essencialmente cana-de-açúcar [5], até onde a vista alcança.
Muitas horas depois, já na região do Sertão, duas coisas me chamaram a
atenção. Primeiro a paisagem, deslumbrante, bela, de uma beleza distinta da
que estou acostumado no litoral. Fiquei imaginando como interagir com
aquelas paisagens, que tipo de descobertas e aprendizados estariam por ali
para com tempo, não apenas uma tarde, mas alguns anos, serem vivenciados
lenta e proveitosamente? A paisagem parecia me dizer: “aqui há
possibilidades e aprendizados que você jamais imaginou. Conhecimentos e
práticas cujos significados não lhe são minimamente apreensíveis no
momento”.
Cheguei em Sousa já era noite e apenas dormi para comparecer ao meu
compromisso na manhã do dia seguinte. À tarde, logo depois do almoço,
comecei minha caminhada, acompanhado por um bom camarada que
conheci pela manhã, o Léo. Alguns minutos à pé pelas ruas da cidade e
chegamos no local que atiçou de imediato meu imaginário tecnológico, a
estação ferroviária de Sousa. Pensei logo: “Será que ainda há movimento de
trens por aqui? De que tipo? De onde para onde?”.
Fomos recebidos na estação pelo Sr. Valdemar, que conversou bastante
conosco sobre a situação atual do transporte ferroviário na região, e o Sr.
Manoel Nóbrega, funcionário antigo que ainda pegou na década de 80 do
século passado o terminal funcionando para o embarque e desembarque de
passageiros. Coisa que não ocorre mais atualmente. Por que será que o
transporte ferroviário de passageiros foi desativado na região? Fiquei muito
curioso para entender os
motivos que levaram a
isto,
mesmo
antecipadamente
imaginando que tudo não
passa
de
articulação
política dos interesses
corporativos. Não é difícil
ver o cenário. Ainda
assim, nada posso afirmar.
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Pesquisando sobre a história e as perspectivas da ferrovia no sertão
encontrei o blog Estações Ferroviárias da Paraíba [6] com muito material
para começar uma investigação sobre o assunto. Fiquei só pensando em
fazer a viagem, João Pessoa – Sousa, de trem. Será que há justificativa
plausível para a desativação desse tipo de transporte neste caso específico?
Porque a tecnologia não serve mais? Segundo o Sr. Manoel os trens de
passageiros que passavam por ali eram os que faziam o percurso Fortaleza –
Recife e também Mossoró / RN. O Blog Estações Ferroviárias da Paraíba
apresenta mais alguns detalhes [7].
Minha reflexão tecnológica não parou na questão do transporte ferroviário.
Aliás, nem começou aí. Ainda na estrada uma imagem havia me chamado a
atenção. Vi pela primeira vez uma cisterna de aproveitamento de água da
chuva. E aí o pensamento foi a mil. Essas cisternas foram o primeiro
exemplo que eu ouvi de “tecnologia social”. Rapidamente lembrei que eu já
vinha pensando em me dedicar um pouco mais em vislumbrar
possibilidades em torno dos WaterLabs [9]. E então essa imagem e
possibilidades não me saíram mais da cabeça durante estes dias que estive
em Sousa.
Falar de água no sertão pode parecer meio cliché, mas, será? Antes de dizer
qualquer coisa sobre água e tecnologia preciso de algumas investigações,
mas, de qualquer forma, só o vislumbrar de uma possibilidade já me anima
bastante. É que nessa estória de doutorado e as conversas em rede, talvez,
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por questão das restrições e limitações do trabalho acadêmico, eu esteja
próximo a ter que escolher algum tipo de projeto para o centro das
atenções. Estabelecer um projeto para poder seguir os atores e vê-los e
descrever suas manifestações. Etnografia, essencialmente com as premissas
da Actor-Network Theory.
Além das ferrovias e da água outras questões tecnológicas surgiram na
minha rápida interação com Sousa. Encontrei com um armazém que não é
tão diferente das coisas que ainda posso encontrar na feira de Cabedelo.
Mas, alguns dos itens me chamaram a atenção. As celas, os artefatos de sola,
as esporas, coisas de montaria, todos ali me transportando para uma viagem
no tempo. Eu não imaginava que ainda se usavam esporas atualmente.
Fiquei surpreso. Tão surpreso quanto encantando com as cores e utensílios
do local, uma mistura das tradições com a contemporaneidade. Reflexão
tecnológica pura! Celeiro de #MetaReciclagem. Agora fico no aguardo do
retorno ao sertão em alguns meses. As expectativas prometem, e o tempo
parece que vai ser bem maior.
Quanto ao inverno, aqui no litoral era comum eu ver minha vó e alguns
mais velhos se referindo a inverno como “período de chuvas”, sem que isto
tivesse qualquer relação com período que é denominado de inverno aqui no
Brasil. Parece que no sertão não é diferente [10]. Foi a primeira coisa que
pensei quando em Sousa me falaram que as chuvas importantes são as do
final do ano e comecinho do outro, quando elas acontecem (o que não é
sempre) temos uma outra paisagem, um outro sertão, por conta de um
inverno em pleno verão.
[1] http://pt.wikipedia.org/wiki/Cabedelo
[2] http://pt.wikipedia.org/wiki/Sousa_(Paraíba)
[3] http://mutgamb.org/mutsaz/Chamada-MutSaz-Inverno-2010
[4] http://www.valedosdinossauros.com.br
[5] http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=1482
[6] http://estacoesferroviariaspb.blogspot.com
[7] http://estacoesferroviariaspb.blogspot.com/2009/09/estacao-de-sousa.html
[8] http://www.rts.org.br/noticias/destaque-1/cisternas-podem-ajudar-a-atingir-sete-odm
[9] http://wiki.bricolabs.net/index.php/WaterLabs
[10] http://serravermelha.blog.terra.com.br/2010/04/30/o-sertanejo-e-a-caatinga
Orlando G. da Silva está aprendiz de pesquisador e se interessa por colaboração, actor-network e Internet. Sua grande escola nos
últimos anos tem sido a MetaReciclagem e por extensão o coletivo MutGamb. Vislumbra, enquanto um conceito em ação, o reacesso e
repensa-pratica-discute a ressignificação da Administração como professor no Campus da UFCG em Sousa, sertão da Paraíba.
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SOCIEDADE
COMUNIDADE COCEIRA,
O PÉ-DE-ATLETA DA SUZANO
POR Gerald Iensen
Diz o ditado que “a polícia é boa até que se precise dela”. E assim
percebemos o funcionamento de tantas instituições por aí. Está na voz das
comunidades, pelo menos na daqueles que apesar dos Golias, ainda lutam
pelos seus direitos. Em visita ao Polo Coceira, é observação comum em
qualquer uma das comunidades que o compõem, ouvir que o ITERMA
chega pra medir uma área em três dias, se for chamado pela Suzano, ou por
algum “gaúcho”. Mas se for pra praticar algum ato em prol da comunidade
a demora é longa.
Com o baixão diminuindo, diminuem os peixes...
Assim se arrasta o processo de titularização das terras das comunidades
Coceira, Baixão da Coceira I, São José e Lagoa das Caraíbas, na região de
Santa Quitéria, onde dezenas de famílias lutam pra manter seu sustento na
tradição de três, quatro gerações de moradores do Baixo Parnaíba. O
Processo de Regularização está no seu quarto ano; enquanto isso muita terra
já foi anexada às propriedades da Suzano, do “senhor Gilmar”, e de mais
alguns espertos, incluindo autoridades municipais que sempre cobram o seu
quinhão.
As comunidades estão rodeadas por reflorestamentos de eucaliptos, de um
lado, e monoculturas de soja de outro. Enquanto isso, segundo observação
REVISTA 27 BEATBRASILIS
...diminui a alegria
de moradores, o imenso lago que nomeia o Baixão, diminui a cada dia. Na
Coceira, quarenta famílias que compõem a Associação seguem lutando e
acreditando no resultado positivo, a despeito de vizinhos que se entregaram
para as grandes empresas, vendendo a preço de banana suas posses,
aliciados e seduzidos por empregos de salário mínimo que não denotam
nenhuma estabilidade, uma vez que o bem estar da comunidade não está no
rol dos objetivos desses empreendimentos; antes disso, os moradores são
apenas empecilhos, uma vez que nem de sua mão-de-obra barata as
empresas precisam.
A beleza, a nobreza do tronco do bacurizeiro perseguido pela monotonia do eucalipto.
A monocultura avança, a comunidade resiste. Paulo é um dos que lutam pela preservação e uso
sustentável da terra.
Percorrendo os limites das terras da Coceira, com Paulo, filho do senhor
Veríssimo (um dos moradores mais velhos, com mais de setenta anos) o que
constatamos é que a resistência dos moradores tradicionais é o último
recurso de preservação dessa parte do cerrado do Baixo Parnaíba. São
imensas as áreas cobertas de eucalipto, com seu aspecto de parasita
peçonhento. Nada nasce sob essas plantações, não se vê uma só ave, um
inseto sequer. Sob eles apenas uma terra envenenada, que se dirige a cada
dia para os lençóis freáticos, para as nascentes, para as lagoas, para os
riachos, para os poços d’água da população. Entre imensas quadras da
árvore exótica, agoniza um restinho da vegetação típica, atrás de uma
escarnecedora placa nomeando a enclausurada porção de cerrado de
“reserva legal”.
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A luta é árdua, o inimigo tem dinheiro e muitas armas, como o time de
assessores que se enfileiram para tentar seduzir os moradores a cada semana
com uma proposta mais insidiosa. Pra comunidade o processo é demorado,
cada etapa leva muitas madrugadas de paciência. Muitos pereceram na
esperança, na fé, na força. Um exemplo triste é ver que a maioria dos
moradores da comunidade Baixão II, que venderam suas terras e
conseguiram um emprego, já foram dispensados. Com suas terras cobertas
de eucalipto, o que farão agora? Impossibilitados de plantar, sobra-lhes
coletar nas terras dos vizinhos. Mais um problema que terá que ser resolvido
pela comunidade, uma vez que não têm viaturas com vigilantes para
proteger-lhes as propriedades.
Gerald Iensen, 45, nasceu no Paraná, mora no
Maranhão. Com quatro livros publicados, é
jornalista, fotógrafo ator e escritor. Atualmente
prepara ensaio fotográfico e roteiro de filme
sobre comunidades tradicionais do cerrado do
baixo-Parnaíba maranhense.
A luta entre preservação e devastação.
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ções propícias para que o fogo vire chama ardente e imparável. Dentro de
algumas alminhas arde o volume de um microfone plugado, que quer
espalhar fogo e palavras de rechaço aos vermes do mundo. Quanto mais
tratarem de jogar água em seu fogo, mais estarão dispostos a denunciar o
lixo do mundo. Burgueses, parem com isso de burguesear, e marionetes,
parem com isso de marionetar, deixem de perceber apenas seus umbigos e
passem a perceber tudo. Esse circo já perdeu a graça há muito, porque os
palhaços já não carregam a tristeza pura que faz do palhaço um ser querível,
eles passaram a sorrir para tudo e todos, já foram rebaixados a bobos da
corte. E os burgueses, os adestrados adestradores, submersos em tanta
destreza e deficientes em carisma, repetem demais os mesmos números. Já
entendemos que a meta é fazer o cão alegre e faminto passar pela roda de
fogo sem se queimar, saindo ileso com no máximo umas chamuscadas, e
depois que rumem a suas casas pensando que viveram uma linda experiência
de domingo. O cachorrinho vai cansar de tanto pular, mas haverá de
sobreviver e será devidamente recompensado. O adestrador estará contente,
certo de sua superioridade e de que não, suas técnicas não lhe haverão de
falhar jamais. A pipoca anda sem sal, porque o público tem pressa em
instalar-se nos melhores lugares, então jogar sal na pipoca é perda de tempo,
e todos sabemos qual é o sinônimo de tempo para os donos do circo. O
algodão doce já nem lembra mais as nuvens, porque com tanto edifício,
cadê elas?
Sociedade
E-LUMINADOS
Por Elena Caracoles
A tal chuva forte por fim cai. Está caindo agora, bem aqui na minha cabeça,
bem agora no dedão do meu pé. Está regando a minha ânsia por fogo,
aquele que eu sonhei que botava no mundo. Mas a água rega o fogo ou
apaga? Aí depende: da intensidade do fogo, do clima favorável, das condi-as
O que temos então sob esta lona? Cachorros famintos, competentes e
inacreditavelmente alegres, adestradores gordos, competentes e muito mais
alegres, uma pipoca da semana passada e sem sal, e um público satisfeito,
porque é pra isso que se paga ingresso: pra ver o cachorrinho pular, o palha-
REVISTA 30 BEATBRASILIS
REVISTA 30 BEATBRASILIS
ço fazer graça, o adestrador bater palmas. Encerrado o espetáculo, o
cachorrinho faminto e competente regressará à sua jaula, ali estará
tediosamente protegido e o adestrador terá garantida a estrela do show para
o próximo espetáculo.
Todos vemos o mesmo espetáculo, alguns parecem ainda gostar, são
pessoas com a síndrome do pensamento estacionado, que as leva a
retrocederem, já que o mundo gira, e se ficamos parados, andamos para trás
meio que sem querer. Mas (como é bom sentir-se bem acompanhada)
outros já não aguentam mais tanta piada sem graça, tanto adestrador
mercenário nem tanto cachorro imbecilizado. Não queremos mais cegos
guiando cegos, queremos luzes refletindo.
O grupo Anonymous assim se faz chamar já que seus membros não revelam
sua identidade. Afinal, por que o fariam? Não estão preocupados com que
saibam quem o diz, estão é ocupados em dizer, denunciar e convidar (e,
obviamente, precisam esquivar-se dos porcos malditos). Um grupo de eus e
vocês que não aceitam mais a farsa toda, que não aceitam mais a tensão que
paira sob este silêncio inquietante.
O lema do Anonymous:
O conhecimento é livre.
Somos anônimos.
Somos legião.
Não perdoamos.
Não esquecemos.
Esperem-nos!
Capa da HQ “V for Vendetta”, uma das influências para a escolha
das máscaras
dos Anonymous
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imagens que se repetem, perguntas sugestivas, questionamentos pra lá de
pertinentes e filosóficos. A diferença entre um vídeo de uma multinacional
e um vídeo do Anonymous é basicamente esta: uns estão do lado de lá e
outros estão do lado de cá. Os Anonymous usam muito o quase
adormecido ponto de interrogação, enquanto as multinacionais gostam mais
é do de exclamação, para, digamos assim, entusiasmar. Enquanto as grandes
empresas e a televisão se empenham forte em gerar robôs humanos,
lavando suas cabeças com lixo, os Anonymous se empenham em gerar
rebeldes,
revoltados,
indignados,
inconformados,
insatisfeitos,
incomodados, inquietos, impossíveis.
Vi um vídeo do grupo Anonymous que falava em soldados digitais.
Imaginei logo bandos de jovens que combatem teclando, que acreditam que
a união faz a força e que palavras inflamadas de coragem explodem melhor
do que bombas.
Vai o link da Wikipédia, em espanhol que é mais completo:
http://es.wikipedia.org/wiki/Anonymous
Os vídeos dos caras muito me lembram o estilo de vídeos que as
multinacionais apresentam goela abaixo aos seus escravalhadores, com o
único fim de lavar seus cérebros e convencê-los de que são colaboradores,
como se o ato de trabalhar ali fosse espontâneo e voluntário. Nos vídeos do
Anonymous predomina uma voz cibernética e suavemente incógnita,
Este grupo merece respeito, atenção e, é claro, adesão. Merece porque
sabota. Fareja vazamentos nos esgotos políticos, convida o mundo (ou pelo
menos o mundo internético) a pensar, e principalmente, merecem respeito
porque é um grupo do qual, no fundo, todos fazemos parte. Não levantam
bandeira de partido nenhum, já que partido algum jamais nos representou
ou representará. Somos todos anônimos, incógnitos, tijolinhos no muro
mesmo, e temos que nos jogar, um a um, pra demolir o muro, implodir o
circo, tirar a máscara de quem a usa com fins macabros. Não é todo dia que
vemos ataques a empresas como Visa e Mastercard, nem todos os dias mais
de 70 mil pessoas de 93 países se juntam, de longe, em prol de uma causa
anti-sistema. Não é todo dia que se vê gente denunciando roubalheiras
homéricas, jogando a merda no ventilador, defendendo a pirataria e outras
liberdades que tratam de nos arrancar. Nem é todo dia que se vê gente
agitando bandeiras de lucidez e difundindo movimentos ao melhor estilo
“eu me organizando posso desorganizar” (obrigada, Chico Science).
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A internet te possibilita visitar infinitas fontes de informação, se lê de tudo,
se escreve de tudo. O hábito de ler notícias todos os dias pode fazer duas
coisas com a vida do sujeito: enriquecê-lo financeiramente, já que, se assim
quiser canalizar o seu penso, o leitor vai manjar cada vez mais de finanças e
aprender táticas de pilantragem, ou enriquecer o senso crítico, jogando
fermento no repúdio a tudo isso. Uns me contam de uns gases
lacrimogêneos durante a marcha da maconha em São Paulo, outros me
dizem que o Ministério da Fazenda julga necessário controlar a entrada
excessiva de capital estrangeiro no país, de uns tantos eu li a história do
extrativista assassinado e do novo código florestal, depois leio sobre uma
minissérie de Alice no País das Maravilhas, 150 anos depois, onde a Alice é
faixa preta em karatê e o País das Maravilhas é um reino onde o castelo da
rainha é substituído por um cassino de onde comanda um esquema de rapto
de seres humanos para que suas emoções sejam drenadas e transformadas
em matéria-prima para a produção de drogas, outra notícia comunica a
prisão de um traficante de 72 anos por ter 13 papelotes de maconha em
casa, que ele distribuía pelos bairros vizinhos, leio também sobre o
fechamento de um teatro de dança em São Paulo, que já tinha sua
programação pronta para o ano todo, e leio associações dos 140 anos da
Comuna de Paris com as manifestações na Espanha e mundo afora. E hoje
também fiquei sabendo de um ex-mariner de 26 anos que foi morto diante
dos olhos da família toda, em casa, por um agente da SWAT. Mais abaixo,
está uma que eu tive que reler pra ver se era aquilo mesmo:
www.mynetgov.com. Sim, my é meu, net é rede, e gov é governo, fazer o
quê. Querem eleger um presidente mundial da internet. E em Porto Alegre,
famílias do MNLM (Movimento Nacional da Luta pela Moradia)
protestaram nesta quinta-feira em frente à prefeitura, porque vivem sem
água há mais de 6 anos. Registros civis dizem que casamento gay já (já?) é
água há mais
de 6o anos.
dizem homo-afetiva
que casamentocomo
gay já família.
(já?) é
possível
porque
STF Registros
reconhececivis
a união
possível porque
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autorizando a construção da usina em Belo Monte. Uma professora no
REVISTA 33 BEATBRASILIS
México canta ao som das balas para
sossegar as almas aflitas dos alunos
durante tiros trocados na escola.
Fazem uma Marcha da Família contra
a criminalização da homofobia. Uma
fábrica de bebês na Argélia. E, pra
fechar com chave de ouro, cravejada
de diamantes, me jogam na cara
alguns depoimentos nazistas do
Berlusconi.
Qual é o valor de uma notícia? O que
se sente depois de ler, matéria após
matéria, sempre a mesma guerra de
mentira mas que mata de verdade? Levantamos a sobrancelha a cada
bombardeio de informações? Avaliamos a intenção de cada aparentemente
inofensiva notícia? Ultimamente, “indignação” anda em voga e entre aspas,
e me incomodam tanto a palavra voga quanto as aspas, porque elas sempre
me deram a impressão de “mais ou menos”. Enfim, mais ou menos
indignados, o fato é que os há. Conheço, a cada dia desta Bahia, mais e mais
indignados sem aspas, gente injuriada e passadíssima com tanta conversa pra
boi dormir, com tanta cegueira e manias de dominação, manias de seguir
rebanhos, manias de anular a vida.
As pessoas não querem prestar atenção na possibilidade de outro mundo,
então voltam seus olhares e vidas para este mundo que conhecem desde que
nasceram, então fazem uma das coisas que o ser humano mais gosta de
fazer, que é virar pro lado e dormir mais um pouquinho. E assim, as
dormentes mentes vão colaborando para submergir as coisas nesta
insuportável sonolência, vão se refugiando de si mesmos.
Isso de alfabetizar adultos é como toda metamorfose, que machuca para
poder mudar as formas das coisas. Ensino adultos que vivem num nãoendereço, nos cafundós de uma vila devidamente escondida dos turistas.
Machuca-me pensar que paralelamente a uma revolução de soldados digitais
ainda existam tantos soldados que não entram na batalha por estarem
desprovidos da arma principal, que é a palavra. Uma das minhas alunas tem
42 anos e há mais de uma semana travou uma batalha com a letra S, que ela
não consegue desenhar, é tão rechonchuda e cheia de curvas que a bichinha
se apoquenta. A letra S é uma batalha inteira e das árduas, pra quem nunca
tinha segurado num lápis antes. Imagine então o desafio que seria para essa
pessoa escrever textos, articular pensamentos num foro de discussões
políticas na internet ou fazer comentários pertinentes sobre as mais diversas
notícias e acontecimentos mundo
afora. Meus alunos são tão anônimos
quanto o grupo Anonymous, mas com
uma diferença: meus alunos estão
pelados. E com uma mão na frente e
outra atrás. Pelados de ferramentas,
tentando achar uma moeda, pelo
menos, mas nem isso encontram.
Vestidos de roupas arrancadas, sem
saber pra onde ir, e, muito pior do que
isso, sem saber que alguém os está
REVISTA 34 BEATBRASILIS
REVISTA 34 BEATBRASILIS
levando, - levando é leve demais, estão na verdade é empurrando - dois
passos ali mais à frente, todos com o andar apertadinho, rumo ao precipício.
nem morde, nem porra nenhuma. E não venha me dizer que você não tem
nada a dizer, porque latir é mais que morder.
É preciso se desfazer das frivolidades e também de si mesmo. É preciso
espiar o mundo e seus movimentos, é preciso decidir não ser um cordeiro
atado (obrigada, Índio). Ao nos desatarmos, estaremos livres para abrir as
jaulas dos irmãos presos e libertá-los das correntes desta roda morta.
E Paulo freire não pensa idéias, pensa a existência (prefácio da Pedagogia do
Oprimido).
Se o interesse é de todos, então todos somos iguais. Se estão todos
insatisfeitos, então não interessa como nos chamamos, apenas interessa o
que dizemos e o que demandamos. A liberdade está justamente em não ter
que assinar um nome, em poder dizer, em poder pensar e convidar outros a
fazerem o mesmo. Se as armas que temos são as teclas, o gatilho é o penso,
a massa que mora em nossas cabeças e o uso da mesma no exercício de
criticar tudo, de questionar cada vendaval. Transpor da mente para as letras
um pensamento é, mais do que um descarrego, um ato de amor.
Os e-luminados não falam só por outros, falam por si e pelo mundo, falam
porque quando existe luz, ela deve cumprir seu papel, que é o de e-luminar.
(e se a revolução se fizesse ao chorar?)
A não-violência, a consciência, a resistência a provocações e outras
perversões. Detectar mentiras de longe e mostrar os dentes, feito um lobo.
Há que se abrir a boca para mostrar os dentes. Quem fecha a boca e nem
sequer consegue rosnar, não deixa o mundo saber de seus dentes, não late
REVISTA 35 BEATBRASILIS
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Elena Fernandes é uma trotamundos que não sossega nem geográfica
nem socialmente: se mandou de Porto Alegre para Londres, de Londres
voltou ao sul brasileiro após 2 anos de chuva fina e festas malucas, do sul
brasileiro rumou a para Buenos Aires, onde viveu feliz e porteñamente
por 3 anos, e atualmente é educadora no interior da Bahia. Sonha em ver
um mundo anarquista, portanto harmônico, e em ter quatro filhos mais
brilhantes do que as estrelas do logotipo desta revista. É seguidora de St.
John Lennon e Godard, de Eduardo Galeano, Bakunin e Allen Ginsberg.
Ultimamente, se refestela no mar quase que diariamente e está sofrendo
lindas metamorfoses por essa coisa de professorar.
capa
EVALDINHO, O
VINGADOR PENADO
peixoto
Seu Artur havia combinado comigo um bom pagamento pela pintura de sua
casa, na Vila Beatriz. Ele era um sujeito antipático e muquirana, mas teve
boas recomendações de sua irmã sobre o meu trabalho e se dispôs a pagar
um preço justo. Ele tinha uma filha, Eliana, com quem era muito severo.
Eliana era quem cuidava da casa, pois sua mãe estava há anos acamada por
uma doença que tirou-lhe os movimentos. Eu ia à casa do seu Artur todos
os dias a pé. Estava sem bicicleta devido a um chofer bêbado de táxi mirim
que havia me atropelado.
O velho era de poucas palavras. Apenas um assunto o motivava: os seus
galos de briga. Porém o assunto não ia muito longe. Já Eliana gostava de
conversar. Mas tinha muito medo do pai e só conversava quando ele estava
ausente.
Eu já estava praticamente terminando a pintura. Faltava apenas o quintal e a
parede onde ficavam as gaiolas individuais dos galos. No quintal eu vi,
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encostada num canto, uma bicicleta
raleigh inglesa azul que necessitava
de poucos reparos. Enquanto eu
olhava a bicicleta, Eliana apareceu:
Duas semanas depois eu estava duro. Sem um puto até pra comer. Não teve
outro jeito, fui cobrar o seu Artur pelo serviço:
- Catranckels, eu queria que você me
fizesse uma coisa.
- O senhor me deve, seu Artur.
O que você quer aqui, Catranckels?
- Ah.. devo? Já vou lhe pagar. Espere um pouco.
- Pois não, Eliana.
Não tive outra alternativa. Esperei, apesar de temer pelo pagamento
prometido em tom ameaçador. Quando seu Artur saiu, veio com um
franguinho feio, magrelo e com as pernas tortas.
- Acaricie meus seios?
- Você está louca? Seu pai me esfola vivo se nos pegar.
- Toma. Esse é o seu pagamento. Ou você prefere esse? Perguntou
abanando um facão na outra mão.
- Ele saiu...
Passei a mão nos seios de Eliana bem devagar. Mas logo nos deitamos junto
à raleigh, tiramos a roupa e começamos a transar. Eu olhava o rosto de
Eliana, mas observava também a raleigh. Parecia que trepava com as duas.
Mas fomos surpreendidos por seu Artur:
- Filho de uma puta! Vou matá-lo, Catranckels!
Enquanto seu Artur entrou na casa para pegar sei lá o quê, aproveitei e saí
correndo com as minhas roupas na mão. Da esquina eu ouvia os gritos da
pobre Eliana. E fiquei sem o pagamento pelo serviço.
Peguei o maldito frango e levei-o para casa. Pobre criatura... mal dava para
rechear uma coxinha. Minha única
esperança era que o humor de seu Artur
melhorasse e fizesse com que ele
resolvesse me pagar. Mas sabia que isso
demoraria.
Quando cheguei em casa, para piorar o
dia, ouvi a péssima notícia no rádio:
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BEATBRASILIS
“EVALDO BRAGA, O ÍDOLO
NEGRO, FALECEU HOJE
VITIMA DE ACIDENTE
AUTOMOBILÍSTICO”.
Era muita desgraça para um único
dia. Deixei o franguinho no quintal e
fui pra sala. Lá coloquei um lp do
Evaldo Braga na vitrola e deixei
tocando. Horas depois lembrei do
frango. Só tinha um punhado de
milho de pipoca para ele comer. Fui
levar o milho numa tigela quando vi o galinho com as penas do pescoço
todas eriçadas procurando algo para brigar. Deixei o milho e voltei pra sala.
No dia seguinte, o galinho estava mais calmo. Comprei ração e dei a ele.
Entrei na sala e comecei a ouvir Evaldo Braga novamente quando ouvi um
barulho no quintal: era o maldito frango brigando com o vento novamente.
Desconfiei e fiz vários testes tirando e colocando o disco para tocar e
percebi que, quando ouvia alguma música do Evaldo Braga, o franguinho se
enfurecia. Comecei a pegar amor pelo bichinho. Dei-lhe o nome de
Evaldinho.
Construí então uma rinha no quintal. Alguns meses depois, quando
Evaldinho já havia crescido, fui ao bar que o Seu Artur costumava
frequentar e contar as glórias dos seus temidos galos de briga e o desafiei.
Ele riu.
Uma semana de apostas. Empenhei o Evaldinho que, até então, tinha valor
menor que um colega seu numa bandeja de supermercado. Até tentei subir
o seu valor ao fazer provocações ofensivas a seu Artur. Mas soavam como
blefes. E chegou o dia da luta. Seu Artur trouxe 3 galos e um deles era um
garnizé. Um mediano e o mais fodão de todos, que ele disse só ter trazido
para "assistir o primeiro combate". Velho escroto! Vieram também os seus
bajuladores da máfia da rinha, onde o próprio era o capo. Eu trouxe o
Evaldinho para a rinha com uma capa preta escrito "O VINGADOR" nas
costas.
Primeiro combate: Evaldinho vs. O Garnizé.
O galinho até que tentou. Mas como era conhecido como piada até pelo
dono, fez jus a tal. Correu do ringue aos primeiros acordes de 'Meu Deus'
do Evaldo Braga. Seu Artur pegou o garnizé, torceu-lhe o pescoço, deu-me
o galinho morto e me falou:
- Faça uma canja com ele, Catranckels.
Arrumei outro trabalho e, com parte do pagamento, saí do sufoco. Sobrou
algum até para comprar biotônico para o Evaldinho. Treinava ele todos os
dias, ao som de Evaldo Braga. Usava até um espelho para treiná-lo, espelho
este que ele chegou a trincá-lo com uma bicada.
- Traga o próximo, Artur.
Segundo Combate: Evaldinho vs. O Galo Mediano.
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Foi o tempo entre jogar o Evaldinho na
rinha e correr pra vitrola que Evaldinho
tomou uma esporada na parte de trás
da cabeça. Ficou atordoado e sangrava
pelo ferimento. 'Não Atenda' foi a
música que trouxe Evaldinho ao
combate. 'Eu Não Sou Lixo' pôs fim ao
combate. E quase pôs fim ao galo do
seu Artur que dessa vez poupou a vida
do galo, mesmo que esse lhe pedisse o
contrário.
O valor de Evaldinho multiplicou-se.
Ele sozinho já cobria o valor das apostas. Mas aquele terceiro galo dava
medo.
Terceiro combate: Evaldinho vs. O Galo Mais Fodão do Seu Artur.
O galo mais fodão do Seu Artur assustava até o próprio dono. Seu Artur o
transportava cobrindo-lhe o rosto e usando luvas de couro de lixeiro.O galo
dava quatro Evaldinhos e meio. As suas esporas serviriam de poleiro para
uma ninhada toda. Apavorado, Evaldinho fugia do ringue. Foi uma briga
para que ele permanecesse lá. Tive que pedir ajuda a três amigos do Seu
Artur para contê-lo enquanto caminhava até a vitrola. Seria preciso uma
overdose de Evaldo Braga pra encarar aquela parada. Finalmente Evaldinho
entrou em combate ao som de 'Eu Amo Sua Filha, Meu Senhor'. Deu uma
esporada aqui, outra lá e o galo fodão do Seu Artur nem se mexia. Até que,
com uma esporada, o galo fodão deixou Evaldinho desacordado. 'Mentira'
do Evaldão deixou Evaldinho em condições de combate novamente. E o
galinho foi pra cima. Deu uma bicada violenta nas costas do adversário que
sentiu. Mas ficou mais medonho ainda e começou a detonar Evaldinho, que
apanhava quase sem reagir. Seu Artur começou a rir e perguntou se eu
queria continuar. Respondi que sim e ele deu um tempo para o Evaldinho se
recuperar. Coloquei Evaldinho todo arrebentado numa cadeira e comecei a
falar com ele tentando reanimá-lo.
- Cê tá louco, meu!? Evaldinho! Acorda, cazzo! Aquele galo transou com a
senhora sua mãe na casa do Seu Artur, seu mané! Vai deixar barato?
Imagina a cena naquele galinheiro escuro. Quer ser algo na vida? É a sua
oportunidade, meu chapa. Vai lá e detona aquele porco com penas. Jogo de
pernas, Evaldinho. Contra-golpeia, Evaldinho. Deixa de ser bunda mole.
Cobri o rosto do galinho com vaselina e estanquei o sangramento de duas
feridas profundas. O galo recuperado, pedi para que o colocassem na rinha
enquanto eu corri pra vitrola. Um golpe com o Evaldinho naquele estado
podia ser fatal.
"sinto que é grande a tristeza
e intenso o inverno...."
Não tive dúvidas: a situação exigia 'A Cruz Que Carrego'. E rápido.
Evaldinho deu sinais de ter ouvido a voz de Evaldo Braga e começou a
brigar. Foi uma luta digna de defesa de título dos pesos pesados.
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Evaldinho recuperou, aliás, não sei de
onde ele tirou um jogo de 'pernas' que
deixou Seu Artur e sua corte de bocas
abertas. E o galo mais fodão começou a
apanhar. Apanhar feio.
"o meu destino cruel me expõe ao
inferno..."
E o Evaldinho batia. A cruz, na verdade,
quem carregava era o galo foda do Seu
Artur. Mas o galo se recuperou com uma esporada que atravessou a coxa
direita de Evaldinho que caiu e começou a sofrer golpes seríssimos que o
nocautearam acordado. Corri e aumentei a música:
"em nada mais posso crer
para mim nada existe
somente eu sei dizer
por que vivo tão triste"
Evaldinho esboçou uma reação. Mas foi pouco. Aumentei mais ainda o
volume da vitrola.
"SINTO A CRUZ QUE CARREGO BASTANTE PESADA
JÁ NÃO EXISTE ESPERANÇA
NO AMOR QUE MORREU
A SOLIDÃO, AMARGURA
DESPREZO E MAIS NADA
VOU LAMENTANDO A SORTE
QUE A VIDA ME DEU"
Evaldinho virou EVALDINHO. O galo fodinha estava quase nocauteado.
Mas resistia. E aquele combate tinha que acabar logo. Aumentei a vitrola no
talo e comecei a cantar em voz alta junto com a música:
VOU CAMINHANDO TÃO TRISTE
NA NOITE ESCURA
MEU CORAÇÃO VAI SOFRENDO
MINHA ALMA MURMURA
QUEM DE AMOR ME CHAMAVA
NA HORA DA CEIA
QUEM DE MIM TANTO GOSTAVA
AGORA ME ODEIA"
A resistência do galinho fodinha do Seu Artur estava quase chegando ao
fim. Resolvi pôr fim ao combate e aumentei a rotação da vitrola: 78 rpm:
"SINTOACRUZQUECARREGOBASTANTEPESADAJÁNÃOEXISTE
ESPERANÇANOAMORQUEMORREUASOLIDÃOAMARGURADES
PREZOEMAISNADAVOULAMENTANDOASORTEQUEAVIDAME
DEU"
EVALDINHO se descontrolou por completo e acabou com o franguinho
fodinha. Mas não parou por aí. Saiu da rinha e distribuiu bicadas e
esporadas para todos os lados. Saímos correndo e fomos para a rua.
REVISTA 40 BEATBRASILIS
A vizinhança toda saiu para ver
aqueles brutamontes correndo do
galo enfurecido. Até eu tomei
bicadas do EVALDINHO, que
só parou depois do terceiro
dardo
com
tranquilizante
disparado pelos bombeiros que
haviam interditado a rua. Peguei
EVALDINHO desacordado no
colo e trouxe-o pra casa.
Pagaram-me as apostas. Fiquei
bem de grana e passei a treinar os
galos do Seu Artur, porém, nunca
mais usei Evaldo Braga com
nenhum galo. O máximo que cheguei foi num Nelson Ned. E olhe lá.
Fiquei sabendo que Eliana havia sido internada num colégio de freiras, de
onde nunca mais saiu. Ganhei de presente a raleigh azul do Seu Artur.
EVALDINHO, infelizmente, se meteu a besta com Cabrunco, o cão fila da
vizinha, Dona Alice, e veio a falecer. Fui pego no Cemitério do Caju, no
Rio, ao tentar enterrar EVALDINHO, acusado de estar fazendo um
despacho. Subornei os guardas e EVALDINHO está lá até hoje, ao lado do
ídolo negro, EVALDO BRAGA.
REVISTA 41 BEATBRASILIS
FUGA PARA A DESEXISTÊNCIA SANA
Altair de Oliveira
Andava solto na rua
desinventando os achados
sem nome... sem endereço...
sem camisa, sem família
sem salto alto e sem saia
sem tudo o que desprecisa.
Altair de Oliveira, poeta radicado em Curitiba desde 1988,
nasceu em Panorama-SP em 1961, morou em várias cidades do Brasil e
exterior e escreveu alguns contos esparsos e 4 livros de poemas.
O último "O Lento Alento" foi editado em 2008.
http://poetaaltairdeoliveira.blogspot.com
Pregava o uso do avesso
e o riso da alma nua.
Morreu à beira da praia
com a boca cheia de brisa
e a cara acesa de lua...
POEMA QUE VENTA À BERTA
Altair de Oliveira
Eu na lenta taberna agüento a menta
Tento o quatro, tonto de aguardente...
E na porta sebenta adentra a Berta
Que incerta se senta “PERNABERTA”
E pela benta saia “DESCOBERTA”
O meu olhar aperta, mira e entra.
REVISTA 42 BEATBRASILIS
A realidade se apresenta sempre inédita:
Inusitada e infinita combinação de organismos coloridos, sugere um elo
No momento invisível, mas ainda não esquecido
Por memórias seculares.
NA BALSA DO
DESERTO
Da luz brota um abraço.
Alguém cantou ainda hoje pela manhã
Descalça e ao orvalho...
Fernando Ursáries
Sentado no meio da noite ao sopro enfeitiçado de Máieuls peguei-me
navegando por chamas suaves;
Uma voz sussurrada da neblina dizia algo sem palavras;
Quedei-me anestesiado pela penumbra e à mercê do pensamento...
Das sombras nasce um som ensimesmado;
Camelos no deserto ao sol de um trompete...
Completa e permanente sensação de estranheza;
Aguardo uma resposta inexistente; cortejo o impossível.
Talvez seja tudo absurdamente simples demais e por isto incompreensível...
Perguntei-me: O que é o verdadeiro?
Palmas ecoaram por um vasto e denso espaço num som desritmado e
melodioso e tive a mística impressão de ter apreendido algo mesmo
sem o perceber.
Gaguejei ofegante como quem lê a descoberta do mistério
E fiquei a contemplar os ornamentos sobre o paraíso...
Nada, absolutamente nada poderia apagar o que agora se manifestava
Imaculadamente vivo e complexo demais para os sentidos.
Fechei os olhos
E lancei-me tranqüilamente
Sobre a balsa
Do amanhã.
Estranhas são as esperanças;
Um fruto cai...
O mundo dança...
Quem avisará a primavera?
...
... ... ... ... ...
REVISTA 43 BEATBRASILIS
Fernando Ursáries está na balsa, singrando o deserto, e a cada dia
acredita mais nas miragens, penetrando-as para ver aonde o levam.
O DESTINO SONOLENTO DOS ELEMENTOS
Aless.b
Um dia espia
Cai no amarfanhado desencontro das lides
Um dia a casa roda
No espelho pérfido do tempo
Nas crostas incrédulas das margens
Um dia os bêbados
Em carne e osso de melíferas horas
Encontrarão o estampido do gozo
Um dia os reis
Estropiados por farrapos exposto
Estarão vis como o barco de Barrabás
Um dia os cântaros
Pintados como unhas trigueiras
Indicarão o rumo do sol
Do pó ao gume
Do lume ao som
Do bom ao sal
Do mal ao mar
Do mar ao céu
Do céu ao léu...
Aless.b iniciou a vida como homem de cultura acadêmica, prof. doutor,
interessado em estruturalismos. Já achou que era muita coisa, agora sabe que
não se deve achar muita coisa, e sim, viver muita coisa. Vive numa comunidade
de pescadores no norte do Brasil. É casado e gosta de Old Parr.
REVISTA 44 BEATBRASILIS
SEM EIRA
NEM BEIRA
Fabrício Busnello
cruzaste todos esses campos com ela ao teu redor
então porque estranhas agora o seu abraço frio?
as maravilhas que carregavas nos teus olhos agora
caem e se prendem nas brancas teias do tempo
e o terror que habitava sob tua cama sobe no teu
peito e já caminham lado a lado - tu e ele mesmo que não tenham pernas seguem pela estrada do eterno
em direção da parte mais estranha deste agradável
sonho que te enche a cabeça com um som igual
ao de um milhão de abelhas e dentro dele mesmo o pingo de
tristeza que ainda carregas contigo torna-se doce como o mel
e descortina-se diante de ti-sem-forma todo o desenho
do Sagrado e ali tu já te encontras sentado
junto a um infinito com rosto de feições do oriente
e percebes que é laranja a cor da tua nova estrada
e percebes que despenca rápido a cordilheira de saudade
e dor que teus estranhos passos deixam cada vez
mais perdidos numa distância com novas medidas
e percebes que te ofende agora ver-se ali atrás
ignorando a verdade que repousa no teu ombro
(e ela canta e dança! canta e dança grávida de 9 meses!)
meu amigo, parece que agora despertas
parece que finda um perturbado descanso
parece que é uma música que já ouvistes
mas não tem porque lembrar
afasta a vida de teu peito como se fosse
um pesado manto num árido deserto
abre os olhos:
e se agora estas moedas de prata te ocultam a visão
é porque são a maior prova de que navegas no barco de Caronte!
REVISTA 45 BEATBRASILIS
SONHO
Gerald Iensen
Ela chegou à casa de noite, umas sete. Reclamou de tudo; da louça na pia, da TV ligada, dos meus pés na mesa, do litro quase vazio. Começou a arrumar um
pouco a casa, batendo em tudo que era possível. Repetia o tempo todo: "assim não dá mais, eu não agüento" e batia a vassoura; "assim não dá mais, eu não
agüento" e batia as louças; "assim não dá mais, eu não agüento" e batia a porta da geladeira; "assim não dá mais, eu não agüento"... então atirou... no meio do
peito. Ela caiu convulsionando, espirrou sangue no teto e na tela da TV, escorria bem na cara do apresentador; os olhos dela, arregalados, piscavam
impressionantemente rápido; um antebraço levantado começava a cair lentamente. Atirou mais duas vezes; dessa vez na cabeça. Saiu pra comprar cigarros e
uísque; com jeito de que iria pra casa da mãe.
Também sonhou que se masturbava. Acordou com as mãos entre as pernas, meio assustada, meio constrangida. Olhou para as mãos e o caldo que sentia
cristalino era agora vermelho, com cheiro de peixe fresco: menstruação... Rolou no chão esbarrando em garrafinhas de vodka wiborowa vazias; pensou no
inútil namorado, que, enfim, conseguira expulsar de casa. Talvez aquele sonho estranho, meio poético, meio sintético seja o resultado de um futuro que se
perdeu no passado. Aquele diabo seria seu futuro pouco brilhante ao lado do poeta, que apesar de gostoso, era pouco asseado. Passou, já era... Levantou-se
olhando o sangue nas mãos, feliz por se certificar que o maldito não lhe tinha legado um ventre recheado...
REVISTA 46 BEATBRASILIS
EFEMÉRIDES
ou ofuscamento maior?
procura-se uma escola de otimismo!
Gerald Iensen
Em alguns dias farei 45
todos os dias faço mais um dia
a despeito do ábaco
do braile
do libras
toda comunicação é mera tautologia
alguma coisa entortou
ou assim nasceu – e assim morrerá –
talvez ninguém nasça pra ler Joyce
talvez não seja mesmo pra ler
talvez os discursos sejam inúteis
talvez sejam inúteis
todas as atitudes
(viver é mera tautologia!)
nel mezzo del camim
Hoje não choveu
uma lua filtrada
embaçada
diáfana sob nuvens nervosas
testemunha – inócua –
o fim do meu dia
Já vira a meia noite
na varanda me certifico do cheiro de chifre
queimado – sugestivo –
ou chá exótico
que exala-se no condomínio
a vizinha tosca
transparece-se em penhoar negro na varanda
e expressão colérica
Acabou o dia 18 de abril de 2011
o mundo não se importa
com nenhum sofrimento
o mundo não se importa!
– simplesmente –
tenho sonhado
como há muito não sonhava
será a luz
do caminho?
Inútil a obra de Luciano de Samosata
mas brilhante
a ideia de serrar as barbas
as barbas de molho
aparar as pestanas da empáfia
quem fará isso hoje,
meu caro Luciano de Samosata
hoje, essa madrugada de 19 de...
dominada pelo cheiro de chifre queimado ou
chá exótico
essa noite escassa de poesia
preenchida pela anti-poesia da TV
REVISTA 47 BEATBRASILIS
A semana passada
um cara que fez um filme considerado erótico
foi demitido de um emprego público
e um jogador de futebol
recebeu a Comenda Machado de Assis na ABL
(o Poeta Paulo Melo Sousa não recebeu uma
comenda da CBF)
eu estudei matemática hoje
num livro que pertenceu à falecida jornalista
Maria Inês Sabóia
no meio de tudo
– além da pedra nel mezzo del camim –
o Diálogo dos Mortos
quem tá vivo?
ou quem tá MAIS vivo...
saudade de mocinhas que choram
pelas Memórias de Adriano
talvez agora
eu entenda o homem
que sossegava somente
nas madrugadas
depois de dar duas voltas
na fechadura do quarto
quando, então, escrevia
pequenos poemas
talvez
em prosa
...
(18/19 de abril de 2011)
CONVITE
Jotapê Antunes
Lá fora já não chove mais.
Todos chegam. Sentam-se a mesa e puxam um papo manjado.
As moças com bochechas rosadas suam e se abanam com o guardanapo de papel, já os rapazes coçam o colarinho/punho/cabeça querendo um destilado.
Prato vazio, cheiro apimentado no ar e um calor do cão.
Perto da janela observo. Observo. Percebo um desconforto, corro, e coloco uma música. Não agrada todos. Infelizmente é minha música ciúme.
Os papos começam a faltar, vejo arrependimento correndo desde os pés inquietos às gotas de suor nas testas. Sirvo bebida errada e a desculpa vem risada.
Cansado de tudo mando que se sirvam, e vejo a falta de educação realizada.
Convite/sorriso/ suor
Suspiro.
Não há comida, a música já alimenta os poucos cômodos.
Que sensação de menino na casa da tia que não se senta a mesa.
São as maravilhas do meu mundo. Isso, um mundo. Parado.
Vejo. Continuo olhando. E continuo olhando.
E realmente há um lugar sobrando.
Estouro.
E não sei o que mais aconteceu.
Jotapê Antunes é ator, contador de histórias e arte-educador,
mas antes de tudo, um sonhador errante que vive novelas para
alcançar um dia a utópica glória.
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encontros
DO RIO À CAMA
Por Janaina Marques
Depois de uma noite de sábado conturbada, que por um momento pode ser
ruim, mas diz respeito ao grau de badalação de uma saída, pegou um ônibus
às dez da manhã e partiu pra capital do seu estado, era cativa do centrooeste, nascida tão longe dali, mas criada na cartilha mato-grossense, com
todos os nhos comidos das palavras, com todo coentro no pastel, com todo
o pequi na galinhada que não gostava, com toda a catira que viu todos esses
anos, mas nunca dançou. Viagem longa, quinhentos quilômetros eternos
devido à sossegada prática de arrebanhar os passageiros nas porteiras de
suas chacrinhas. Chegou na capital o sol já havia caído, mesmo com aquela
Lua Cheia engolindo a cabeça parecia que o Sol tinha ido dormir e tirou sua
roupa quente deixando-a sobre a cidade. Na rodoviária esperou, esperou o
moço com o qual havia combinado se encontrar, era amigo de uma amiga
sua, era o primeiro contato entre os dois, logo se reconheceram naquela
vasta rodoviária e entre malas e simpatia se abraçaram, as malas se
acomodaram no porta-malas e seguiram viagem para a residência do
simpático moço. No caminho conversavam como se conhecessem há
tempos, chegaram na casa do hospedeiro de uma família hospitaleira tanto
quanto o seu sorriso, assim ela tomou um banho rápido e o rapaz
rapidamente sugeriu uma saída pela capital. Foram para a casa de um casal
de amigos do moço, logo ela se enturmou, comunicativa que era não foi
difícil se socializar, dadas três da manhã decidiram retornar para casa,
chegando lá não se contentaram em simplesmente dizer boa noite e dormir,
ficaram conversando por horas a fio de assuntos variados, de corte e costura
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a sexo, para aí sim se despedirem e dormirem até às onze da manhã para
almoçarem numa peixaria, como o combinado. O fizeram, almoçaram o
peixe ali, as margens do Rio Cuiabá, uma vista bonita dando de capturar sua
real beleza apenas com a retina. Seguiram para o shopping em busca de um
filme para assistir, Avatar 3D, soava algo geek, mas ela topou e gostou, na
saída encontraram um amigo do rapaz se deliciando num rodízio de pizza
no shopping, quiseram o acompanhar. Depois de terem se empanturrado
foram para a casa, tomaram banho e saíram novamente para uma cerveja. O
silêncio reinou na mesa do bar, só se via a fumaça dos cigarros dizendo
adeus, a desculpa para tanta quietação era a heresia alimentar que haviam
cometido. Após a cerveja foram para a casa do amigo adorador de rodízio
de pizza, beberam mais um pouco, largaram o amigo por lá e voltaram para
a casa, a volta não foi muito direta, o contato tão próximo entre esses dois
jovens ao longo desses dias fez com que a libido de ambos explodisse e não
resistisse a parada em um lugar próprio para liberá-la, depois de explodirem
voltaram para a casa e dormiram com hora marcada para acordar, no outro
dia ela iria embora e tudo aquilo que acontecera ficaria guardado no campo
da memória ou em uma folha qualquer.
Janaina Ferreira Marques Silva, paulistana de nascimento e matogrossense de criação, aos 20 anos é graduanda
em Economia apaixonada pelo estudo do comportamento humano e por escrever sobre qualquer assunto,
sexo e economia sempre estão na ponta da língua.
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estilo
Por jim duran
Dedicado a todos os meus confrades e consórores.
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Quando tinha quinze anos entrei em uma pequena tabacaria da cidade em
que moro, era única que existia na época e que ainda existe, e comprei meu
primeiro cachimbo. Fã desde pequeno das aventuras de Sherlock Holmes,
sempre quis saber da sensação de fumar um e por isso dei esse primeiro
passo (nestes livros haviam ilustrações feitas por Sidney Paget - o detalhe é
que o cachimbo de Holmes era de piteira reta). A imagem dele fumando um
modelo Calabash foi criada pelo ator britânico William Gillette, ele afirmava
que o cachimbo com a piteira reta dificultava a dicção e por isso sua
preferência pelo modelo curvo. E concordo com ele. Fiquei com esse
primeiro “pipe”, como chamamos carinhosamente esse companheiro, por
alguns bons anos. Até que brincando de futebol com coco com Gutheba e
Diogo pelas ruas do Rio Vermelho, o mesmo foi quebrado. Para fumar
cachimbo é um ritual danado que eu cumpro cheio de prazer. A primeira
parte é a escolha de qual cachimbo será fumado, eu tenho uma coleção de
doze, depois o tabaco. Porque tudo tem um além que só quem partilha sabe.
Adoro caminhar fumando um Peterson Sherlock Holmes, ler me deliciando
com um Old Fashioned ou um Davidoff Scottish Mixture. Prefiro o
cachimbo curvo, ele não pesa e mantenho-o na boca enquanto leio ou
escrevo, enquanto penso, caminho pelas madrugadas ou seguro um copo na
mão.
É dito que um bom cachimbo é feito de uma madeira chamada de briar,
mas há também os feitos de espuma do mar, de milho (corn cob) e outros
materiais não tão nobres mas que podem causar a mesma sensação de bem
estar. Claro que esses detalhes são importantes, mas não são eles que
determinam o prazer. Outra coisa que o cachimbo me proporciona é o
contato e descobertas de amigos no meio pipester. Ando aprendendo muito
com o mineiro Rafael Sodré e o paulistano Alfredo Maia, além dos outros
que declaram seu amor constantemente sobre essa arte imbatível. Não é a
minha intenção escrever um tratado metódico e sim partilhar a paixão.
Então desculpe se você não encontrará aqui muitas referências práticas, mas
deixo no fim alguns links de brinde.
Pode parecer um tanto quanto difícil e confesso que no início não ligava
muito para isso, até porque você vai criando o seu próprio ritual, seu
momento preferido, seu tabaco e seu cachimbo preferido. Tudo é muito
pessoal. Faço parte de algumas listas de discussões na internet e vejo como
REVISTA 52 BEATBRASILIS
o assunto desperta paixões. É claro que como em todos os assuntos existem
os chatolas que não permite nada fora do que poderia ser tido como um
código de conduta que, a meu ver, é contrário ao ato de apreciar uma boa
cachimbada.
Encher o fornilho com tabaco é feito com atenção, com carinho. É uma
carícia que tem que ser feita com atenção, com o dedo preenchendo o
espaço lentamente. Depois vem a chama que toca de leve a superfície do
tabaco, tornando-se espetacularmente vermelho como um entardecer nos
desertos. O aroma se solta em espirais que bailam saindo do fornilho
deixando um pequeno lembrete que ali há alguém vivendo plenamente. As
mãos ficam aquecidas e o corpo relaxa. Capaz de ficar mais de uma hora
fumando, sem pressa, existe campeonatos de fumadas lentas que, um dia,
pretendo participar.
O cachimbo permite harmonizações como o charuto. Você pode desfrutar
um bom conhaque, um vinho, um café, um gin tônica. Mas eu prefiro
uísque e blues. Enquanto escrevo essas linhas tenho essas companhias na
longa madrugada que em breve irá terminar. Não há nada melhor do que
poder se entregar a um vício sem culpa alguma. Fumei cigarros dos 11 aos
31 anos e por fim fiquei só com os cachimbos. Foi uma troca ótima porque
o cigarro não me dava esse prazer e nem esse tempo que uma boa
cachimbada permite.
Me veio à mente agora uma cena típica de meus dias em Salvador. Era já
alta madrugada enquanto eu fazia o caminho Rio Vermelho-Amaralina.
Ventava um pouco enquanto eu segui calmo para minha casa e cantarolava
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baixinho alguma coisa que me animaria. Parei em frente ao Teatro Maria
Bethânia todo iluminado e tateei os bolsos. Apanhei uma bolsinha de fumo
e enchi o fornilho. Sentei-me na muretinha do teatro e fiquei encarando o
mar escuro, sonoro, presente, gigantesco. Aquela brisa fria em contraste
com o aquecimento (sobretudo o emocional) que o cachimbo em minhas
mãos proporcionava. Senti-me vivo e preparado para qualquer coisa.
Precisava daqueles minutos em completa solidão para que pusesse a minha
vida em minhas mãos e perceber que dali em diante tudo seria diferente.
Naquela noite não cheguei até o Edifício Berta, na Av. Amaralina, onde eu
morava. Fiquei ali, sentado naquela muretinha esperando o sol nascer. Foi
um dos mergulhos mais profundos que dei em mim mesmo. Depois de ter
conseguido tudo o que almejei, caminhei até meu prédio, não sem antes me
atirar no mar de Amaralina.
Paul Sartre, Carl Gustav Jung, Paul Cezanne, William Faulkner e outros.
Então fica a dica. Agora vou novamente encher meu fornilho e ouvir um
Chet Baker porque a noite só está começando...
Confraria Amigos do Cachimbo
http://www.amigosdocachimbo.com.br
Comunidade Clube do Cachimbo – Orkut
http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=112798
Comunidade A Ordem do Cachimbo – Facebook
http://www.facebook.com/groups/aordemdocachimbo?ap=1
Oficina de Cachimbos Briarte
http://briarte.wordpress.com
Há também o aspecto sexual da coisa, sempre tem, não sei se já repararam
como fica sexy uma mulher empunhando um cachimbo e te olhando fundo
nos olhos. A boca abrindo-se lentamente e a piteira chocando-se lentamente
com os dentes. Acomodada ao lábio que se fecha enquanto as maçãs do
rosto se contraem enquanto ela puxa a fumaça lentamente. Tudo me chega
à mente com um slow motion natural e que só existe em mim. O mundo
inteiro corre desesperado, mas para mim só existe essa mulher e a cena que
ela protagoniza que me acompanha mesmo depois de muitos anos de tudo
vivido.
E o ato de fumar cachimbo fez e faz a cabeça e preferência de muitas
pessoas que me influenciaram ou tornaram-se meus preferidos em suas
áreas, como Arthur Conan Doyle, Ernest Hemingway, Orson Welles, Jean
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Jim Duran é pseudônimo e surgiu em Salvador/BA em 2003 e marca uma guinada na
vida e carreira do escritor e ator paulista Eduardo Duran. Enquanto um é baiano o
outro é paulista. A escrita de Jim é sonora e feita para ser lida em voz alta com uma
dose de uísque e um cachimbo por perto. Jim Duran é formado em Letras.
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