Deslocamentos do sentido em Deleuze: implicações para a leitura

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Deslocamentos do sentido em Deleuze: implicações para a leitura
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Deslocamentos do sentido em Deleuze: implicações para a leitura
Annita Costa Malufe1
Resumo: O conceito de sentido elaborado por Gilles Deleuze em sua filosofia, especialmente em
sua obra Logique du sens (Lógica do sentido), permite importantes desdobramentos para a leitura e
análise de textos, sejam eles literários ou não. O presente artigo propõe-se a abordar este conceito,
contextualizando-o em seu cenário histórico mais amplo e, ao mesmo tempo, buscando explicitar
sua singularidade. Para tanto, parte-se da exposição de alguns deslocamentos operados por Deleuze
no conceito em questão, como, por exemplo: conceber um sentido fora da ordem da representação,
libertando-o das dimensões estritamente linguísticas, concebê-lo como um efeito produzido nos
encontros e pensá-lo enquanto uma instância múltipla por definição, resultando em um mapa de
forças dificilmente quantificável. A observação desses deslocamentos é aqui desenvolvida tendo em
vista sua repercussão nos possíveis modos de se ler, interpretar ou analisar textos.
Abstract: The concept of sense elaborated by Gilles Deleuze in his philosophy, especially in
Logique du sens (Logic of sense), allows an important unfolding for the text readings and analysis.
This article proposes to develop this concept, contextualizing it historically and, at the same time,
trying to demonstrate its singularity. For that, we start from the exhibition of some shifts operated
by Deleuze in the concept, for example: to conceive a sense out of the representation order, freeing
it from the strictly linguistics dimensions, to conceive it as an effect produced in meetings and
understand it as a multiple instance, resulting in a map of forces hardly quantifiable. Here, the
observation of these shifts is developed towards the repercussion of this conception of sense in
ways of reading, interpreting and analyzing texts.
O que é o sentido de um poema, de um artigo, de uma fala, de um enunciado qualquer? Ele é
algo que o enunciado contém, guarda em si, ou dentro de si, como um arquivo de intenções ao qual
o interlocutor – ouvinte ou leitor – deve aceder? O sentido é aquilo que o enunciado carrega de
antemão e que cabe a ele despejar àquele que o recebe? O poema é um reservatório de sentidos a
que cabe o leitor desvendar? Um artigo contém sentidos aos quais apenas o bom leitor será capaz de
alcançar? Uma fala traz um sentido e, quando ele não é compreendido pelo receptor, o que ocorre é
um malentendido comunicativo?
O que é o sentido, quando nos reportamos a partir dessas ideias? Imaginemos que se responda
afirmativamente a essas interrogações. Em todas elas o sentido é tido como algo preexistente à
situação de enunciação. Em todas, o sentido mora no enunciado, pertence a ele e é alguma coisa da
ordem do que o enunciado “quer dizer”. O que quer dizer este poema? O que fulano quis dizer com
aquilo? O que o autor quer dizer com isso? E assim por diante. De todo modo, é como se o sentido
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Annita Costa Malufe é pós-doutoranda na PUC-SP. Doutora em teoria literária pela Unicamp, é autora de Poéticas da
imanência: Ana Cristina Cesar e Marcos Siscar (7Letras/ Fapesp, 2011), Territórios dispersos: a poética de Ana Cristina
Cesar (Annablume/ Fapesp, 2006) e dos livros de poemas Como se caísse devagar (Ed.34/ Sec. da Cultura SP, 2008),
Nesta cidade e abaixo de teus olhos (7Letras, 2007) e Fundos para dias de chuva (7Letras, 2004).
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fosse algo que pode estar mais ou menos escondido, mais ou menos bem desenvolvido ou
explicitado, mas de todo modo, é algo que estaria pronto no enunciado e totalmente abarcado por
ele. O sentido é alguma coisa carregada pelo enunciado. Como se uma frase, um poema, um texto
fossem uma espécie de mala, de container em que o falante, o autor, deposita seus sentidos. E em
seguida, cabe ao interlocutor a competência de abrir o reservatório e resgatar esses sentidos, aceder
a eles.
Com esta caricatura quero apenas escancarar certa concepção, predominante no senso comum,
de que o sentido seria alguma coisa que preexiste à situação de enunciação. No caso de um texto, de
um poema, esta situação seria a leitura. Haveria um sentido que preexiste às leituras, que é algo
contido no enunciado – e além de contido, contido de modo pronto e acabado, fixo. Nesta mesma
concepção, portanto, um poema é portador de um ou de muitos sentidos, que são mais ou menos
ocultos, sentidos escondidos, a que cabe ao bom leitor desvendar.
Assim, aquilo que nos faz dizer “ah, entendi o sentido deste texto” é algo que estaria nas
linhas do texto, como uma espécie de reservatório que ele carrega. E assim, o leitor deve desvendar
o sentido, como se ele fosse uma informação, um fato, um evento preexistente que deu origem ao
texto. É corriqueiro na crítica literária leituras que vão nesta direção, que atribuem o sentido do
texto, seja ele um romance ou um poema, a algum fato da vida do autor, a alguma anedota de ordem
pessoal, ou a referências a outras obras literárias e autores que apareçam no poema (por exemplo o
poeta cita o verso de outro autor, faz uma alusão a outras obras...), ou ainda atribuem o sentido a
fatos de contexto histórico que encontram
espelhamento na obra literária – o texto como
representação de uma época, de costumes, de fatos históricos, por exemplo. Para essas leituras, você
só teria acesso ao sentido integral, “verdadeiro” do texto se você conseguisse identificar esses
traços, achar essas origens que estão ali em algum verso, em alguma expressão, em alguma palavra
que o escritor usou. Você precisa achar essas referências para ter acesso ao sentido “original”: só aí
você tem o direito de dizer, “ah, entendi o sentido deste texto”.
Acredita-se, em qualquer uma dessas alternativas, em um sentido originário. Um sentido
verdadeiro, aguardando para ser descoberto, ou reencontrado. Mesmo nesta expressão “ah entendi o
sentido deste texto”, está implícito um sentido que me preexiste, que é independente de mim,
aguardando para ser captado. O sentido é aí um início (ponto de partida do autor), mas é também
um fim (ponto de chegada do leitor). E, de todo modo, é alguma coisa pressuposta, preexistente,
que precisa ser reabilitada. É uma origem a ser reencontrada.
Se eu penso que há um sentido pressuposto pelo autor, que ele pretenderia que eu, leitor,
atingisse, já é suficiente: já estou pressupondo um sentido originário. Uma fonte que eu, como
leitor, deverei reencontrar em minha leitura. Neste caso, a leitura é uma espécie de reencontro de
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um sentido que já existe; neste caso, o sentido é compreendido como alguma coisa preexistente,
fixa, inabalada. E essa leitura implica necessariamente em uma perda. Ela é insuficiente, porque ela
nunca vai conseguir restituir a integralidade do sentido originário. Eu nunca vou saber exatamente
as intenções do autor, nunca terei acesso integral a todas as referências dele, tampouco a todo o
contexto histórico em que ele estava imerso. Eu, leitor, fico na contemplação de algo muito grande,
inalcançável, distante, que me ultrapassa. Sou sempre, em maior ou menor medida, um fracassado,
fico sempre devendo ao sentido, estou sempre em falta com ele.
O que está por trás dessa leitura, então, é certa concepção de sentido que o coloca como
resultado de um reencontro com uma origem. Mesmo que eu diga que ele acontece na leitura, que
ele depende das referências do leitor ou de seu repertório, de sua competência para ligar as peças do
texto, podendo se dar de diferentes formas ou medidas, mesmo assim, eu espero que haja um
reencontro, uma re-apresentação de algo que estou entendendo como o sentido correto. E esta reapresentação sempre deixa a desejar, ela nunca é a “coisa em si”. Como dizemos de um reflexo, que
nunca é o objeto refletido. Ou de uma foto, que não capta a integralidade do objeto fotografado.
A leitura crítica pensada neste paradigma do sentido fica, portanto, sempre aquém do poema.
Ela o contempla como um objeto inalcançável, portador de um sentido que estaria longe demais, em
excesso demais para ela. Ela se torna uma escavação, muitas vezes, e fica refém de uma concepção
do sentido como preexistente, fixo, escondido. E isto acontece ainda que ela afirme que o sentido é
algo múltiplo, multiplicável etc. O problema não está numa suposta pluralidade ou não do sentido,
mas sim em uma pluralidade que é sempre desdobramento de “um” sentido certo, exato, verdadeiro,
escondido atrás da porta, pronto para nos dar o bote. Uma pluralidade portanto presa àquilo que já
existiria, de antemão, no poema.
Este cenário, um pouco carregado nas tintas, nos ajuda a tornar sensível uma reversão disto
tudo a partir dos deslocamentos que Gilles Deleuze opera no conceito de sentido e vislumbrar suas
implicações para a leitura, e mesmo para a análise de textos. Deleuze não está sozinho nesta
reversão, é certo, mas veremos adiante algumas singularidades que o conceito assume em seu
pensamento. Entretanto, de um modo mais geral, esta reversão diz respeito a toda uma família de
pensadores. Se acompanharmos a visão de Michel Foucault, em “Nietzsche, Freud, Marx” (incluído
na tradução em Ditos e escritos vol.II),2 diríamos que aquilo que se pode chamar de hermenêutica
moderna, as mais variadas técnicas de interpretação desenvolvidas a partir da modernidade, tem
como ponto de convergência uma vontade de libertar o sentido justamente da ideia de origem.
2
Foucault, Michel. “Nietzsche, Freud, Marx”. In: Ditos e escritos II – Arqueologia das ciências e história dos sistemas
de pensamento. Trad. Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária (original em francês Dits et écrits, 1994).
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O sentido não é mais, como na hermenêutica clássica, um fundamento, um ponto original a
ser restituído. Podemos lembrar que a hermenêutica nasce nas leituras da Bíblia, sendo uma técnica
de interpretação que tinha em vista desvendar a palavra de Deus. A exegese é, então, a busca por
um sentido originário, verdadeiro, do qual a Sagrada Escritura seria o portador. A presença deste
sentido verdadeiro, no entanto, acaba sendo transferida para outros campos, como a figura do autor,
por exemplo, no Romantismo. E mesmo quando a hermenêutica, que nasceu da leitura dos textos
bíblicos, passa a ser aplicada a textos literários, ela guarda a concepção de um sentido absoluto,
verdadeiro, a ser descoberto, interpretado, trazido à luz pelo bom intérprete.
Para Foucault, o deslocamento do sentido na hermenêutica moderna é resultado de uma
ruptura importantíssima na cultura ocidental da qual Nietzsche, Freud e Marx seriam os
responsáveis. Esses seriam para ele os pensadores que nos mostraram a ausência de fundamento, de
origem, de um ponto original ao qual o pensamento deveria se voltar. Assim, a partir deles não se
pode mais falar em termos de verdades absolutas. Hoje, quando me ponho a ler e interpretar um
texto, a partir de certo pensamento moderno, diz Foucault, já não acredito que haja uma verdade
única e original. Sei que estou aberto a um campo de possibilidades ilimitadas. Ler e interpretar se
tornam tarefas desdobráveis ao infinito. Ler e interpretar se tornam, ainda, tarefas em que o
intérprete está implicado. Se não há “uma” verdade, se não absolutismo da verdade, temos o tempo
todo apenas versões, variações, modulações, leituras, interpretações. Temos, portanto, somente
pontos de vista, perspectivas. E essas perspectivas não poderiam ser independentes do intérprete.
Ele está implicado nelas. O próprio sujeito é uma determinada perspectiva sobre a vida.
Dois deslocamentos importantes a partir desta ideia de que não há um sentido original a ser
reencontrado – de que não há sentido absoluto: 1) tudo é interpretação – não porque eu não acesse o
sentido verdadeiro, mas simplesmente porque ele não existe; 2) se tudo é interpretação, o intérprete,
aquele que se põe a ler ou a ouvir, não tem como estar excluído desta construção. Se não há uma
pureza ideal do sentido, não temos como separá-lo de quem recebe o enunciado. O sentido não está
apenas no enunciado, no texto, mas ele é algo que depende do interlocutor, do leitor, do intérprete.
Quando se interpretava a palavra de Deus, esta possibilidade não se colocava, pois se estava à cata
de algo absoluto, puro, que não seria passível de modificação de acordo com o intérprete.
Importante é notar que aqui o sentido depende do interlocutor não na direção do que foi dito
anteriormente. Não se trata mais de dizermos que cada leitor interpreta um poema a seu modo, de
que o sentido pode se desdobrar mais ou menos de acordo com a competência quem lê. O
deslocamento aqui acontece porque o sentido passa a ser uma construção, ele não preexiste ao
leitor, ao interlocutor – este que Foucault chama de intérprete. Ele não é um fundo, um reservatório.
Ele é uma criação.
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A partir daí, conhecer o sentido de um discurso, seja ele um texto, um poema, a fala de
alguém, passa a ser um trabalho de produção do novo, e não mais da ordem de uma descoberta de
algo que já existiria. Estamos aqui em certo paradigma, que não é aquele em que necessariamente
toda a linguística se alçou. Muitas teorias da linguagem trabalham com a ideia de uma restituição do
sentido e concebem, ainda, a equivalência entre sentido e significado. Outro deslocamento
importante em Deleuze que veremos mais adiante. Dentro deste paradigma, digamos, do sentido
enquanto criação, vale resgatar uma frase de Deleuze em que vemos claramente o que parece lhe ser
caro em pensadores como Nietzsche e Freud, para os quais:
“(...) a noção de sentido é instrumento de uma contestação absoluta, de uma crítica
absoluta, e também de uma criação determinada: o sentido não é de modo algum
um reservatório, nem um princípio ou uma origem, nem mesmo um fim: é um
„efeito‟, um efeito produzido, do qual é preciso descobrir as leis de produção”.
(2002: 189)
Então não basta dizer que é Deleuze quem opera este grande deslocamento do sentido, pois
ele não está sozinho nesta empreitada e ele mesmo atribui a Nietzsche e Freud esta crítica, esta
contestação. Contestação que faz o sentido deixar de ser alguma coisa preexistente, aguardando
decifração, para se tornar um efeito produzido.
O conceito de sentido que Deleuze elabora é desenvolvido especialmente em uma obra sua de
1969, Lógica do sentido, mas também está presente um ano antes em uma de suas principais obras,
Diferença e repetição (“1969”). A tentativa de Deleuze é então pensar certo conceito de sentido
liberto das dimensões estritamente linguísticas. Um conceito de sentido liberto do plano da
representação.
O sentido é, para Deleuze, um efeito. De forma que, ao falarmos do sentido como criação em
Deleuze, referimo-nos a uma criação específica, esta criação de um efeito. Como se vê, essa criação
não tem um caráter voluntário, ativo. Se falo da criação de um efeito, estou mais próxima de algo
que se dá involuntariamente, de um efeito que é disparado, que se dá, que acontece, e isto
independentemente da vontade de um sujeito. Ou seja, há uma certa passividade aí. Ao dizer que o
sentido é da ordem da criação, não podemos ser levados a crer numa criação voluntária, feita por
um sujeito que decide criar tal ou tal sentido diante de um enunciado. Tampouco trata-se de algo
aleatório – eu leio o que quiser em um poema, independentemente do que estiver escrito, cada
leitura cria o sentido que quiser, etc... São compreensões equivocadas, que pressupõem um
voluntarismo da criação e, ao mesmo tempo, uma espécie de „vale tudo‟, de aleatoriedade, que está
longe de estar presente na filosofia de Deleuze.
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Ao dizer que o sentido é um efeito produzido, Deleuze marca simultaneamente o caráter de
criação e de passividade deste elemento que ele está tentando chamar de sentido. O sentido é algo
disparado. Ele é um efeito, que acontece nos encontros. O deslocamento de que falávamos então
está presente aqui: o sentido não é mais uma origem a ser reencontrada, logo, ele não preexiste no
enunciado. Não é uma instância imóvel, um reservatório aguardando, pronto e quieto, ser
descoberto no enunciado. Ou seja, ele não preexiste à situação de enunciação. Desse modo, ele não
existe independentemente do intérprete, ou do interlocutor. No caso de um texto, ele não existe
independentemente do leitor.
O sentido é um efeito disparado nos encontros. No caso de um poema, por exemplo, o que
seria isto? A primeira coisa que podemos dizer é que há um encontro importante aí que é aquele que
se dá entre ele e o leitor, ou entre o leitor e ele. Há um encontro importante que é este da leitura do
poema. No caso de uma leitura crítica também, o encontro seria este, o de um leitor que assume o
lugar do crítico, do analista, com o poema que ele quer analisar. No momento deste encontro então
é que um efeito se dá, antes mesmo do sujeito-leitor poder se dar conta conscientemente disto. Eu
abro um livro, leio um poema e alguma coisa é disparada por ele em mim. Ele me causa um efeito
qualquer. Este efeito passa pela linguagem, depende dela para se dar – se eu estiver lendo numa
língua que não conheço, ele não acontece – então o efeito depende da linguagem, mas a extrapola,
se dá para além dela. Ele passa pela linguagem, mas ele afeta o corpo de quem lê. Ele faz uma
espécie de link entre as palavras e os corpos. Ele liga as palavras aos corpos, ele faz com que a
palavra seja algo que afeta o corpo. Que o move de alguma forma. Que “sentido” teria um poema
sem este efeito?
Estou brincando com a ideia, porque claro, o sentido pode ser também da ordem do: este
poema é sem graça, ele não me diz nada, ele não me afeta, que poema chato etc., e mesmo assim
são sentidos, são efeitos que se deram ali, num determinado encontro, de certo poema com certo
leitor específico, numa dada época de uma determinada cultura e assim por diante. Pensemos num
poema como “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade (2006), por exemplo, conhecido talvez
pela maioria dos leitores de nosso país:
“João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.”
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Para cada um certamente este poema provoca diferentes reações, dispara diferentes efeitos:
este poema me remete aos tempos de escola, me lembra uma propaganda da TV, me lembra o tom
de voz de minha professora, eu nunca entendi muito bem este poema, acho este poema meio bobo,
ouvindo agora ele me soou diferente, quanto tempo não lia isto, já ouvi isto e não sei bem onde...
etc. Dependendo da trajetória de cada um o efeito será diferente. Se, ao invés de lermos o poema em
um livro, ouvirmos uma gravação do poema na voz de Drummond, o efeito seria outro, ainda para
cada um dos ouvintes. Ou, ainda, podemos imaginar como é para um estrangeiro ouvir este poema,
que para nós brasileiros soa familiar, em maior ou menor grau. Estou imaginando um estrangeiro
que entenda o português, ou que leia uma tradução para seu idioma. Para ele o efeito vai ser outro.
O poema não faz parte do repertório cultural dele. Ele será responsável por outros efeitos.
Mas imaginemos ainda outra coisa. O que teria causado este poema em 1930 quando ele
surgiu, nesse primeiro livro do Drummond, Alguma poesia, talvez seu livro mais estritamente
modernista, em que ele se engajou de fato na construção de uma poesia moderna, rompendo com
padrões tradicionais da poesia. Era ainda muito estranho naquela época um poema de versos
brancos e livres, sem rima e sem métrica, e ainda com este tom de prosa, como se contasse uma
história. E uma história sem grandeza nenhuma, contada de modo bem prosaico. Era estranho para
um leitor daquela época um poema que tratasse de temas banais, cotidianos, e ainda com uma tirada
de humor ao final. Enfim, coisas que hoje nos soam bem mais familiares e que, naquele momento,
há 80 anos, causavam desconforto, incômodos, moviam outras coisas que hoje já não movem,
deslocavam modelos do que era ou não poesia.
O efeito que o poema causa é disparado por uma malha de coisas, um cruzamento de
inúmeras e mais variadas espécies de coisas, histórias de vida, memórias, modos de perceber,
maneiras de ler, preocupações de cada um, ritmos, culturas, épocas, lugares, formação, repertório, o
momento em que ele é lido, se foi lido ou escutado, em que contexto, com que propósitos etc. É um
cruzamento de tantas coisas que seria impossível mapearmos todas elas. Mais difícil ainda seria
medir qual delas estaria atuando mais fortemente, no efeito que o poema causou em cada um de
vocês. E se eu o ler novamente aqui, ou se outra pessoa ler para nós, o efeito já será outro. Antes de
tudo, porque já lemos uma primeira vez e esta será a segunda. Depois porque entre a primeira vez e
esta de agora eu já disse algumas coisas que vão contaminar, de diferentes modos, a escuta de
vocês. E assim por diante.
O que estou querendo é multiplicar as variáveis que atuam nisto que seria o encontro da
leitura. Podemos pensar em “situação de enunciação” também. Há toda uma situação que envolve
cada enunciado, um contexto amplo em que ele se dá. Podemos pensar assim contanto que
consideremos tudo o que esta situação envolve – não apenas o cenário atual, empírico, aquele que
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está diante de nossos olhos, mas tudo o que está ali, presente, real, embora não plenamente visível,
não plenamente sensível ou formalizável. A história de cada um, o modo como vivemos
determinadas palavras, fatos que nos fazem optar por um determinado campo semântico e não
outro, por certas sonoridades e não outras, todas as nossas relações cotidianas, nosso campo
cultural, nossos lugares e paisagens de convívio, nossos campos de atuação, nossos hábitos... tudo
isto está presente conosco, embora não atualmente visível e explícito. Tudo isto atua nos sentidos
que se criam em nossas leituras. Do mesmo modo no que se refere ao poema. Há muitas linhas de
força que cruzam um poema de Drummond, e que embora não explícitas, visíveis, estão passando
por ele: o modernismo, as relações com outros poemas e poetas, as outras obras de Drummond, as
leituras que já foram feitas de suas obras entre nós, os sentidos que envolvem o nome próprio
Carlos Drummond de Andrade, o tipo de sonoridade que ele escolhe, as imagens privilegiadas por
ele, entre tantas outras coisas.
O que chamo de encontro da leitura é, então, um cruzamento específico de elementos que são
trazidos por cada um dos participantes do encontro. Nesse caso, de um lado o poema, de outro o
leitor. Cada um deles em si é um cruzamento de muitas linhas. Seria improvável mapear todas as
interferências que participam deste encontro, mas é fácil pressupor que cada leitura irá juntar
diferentes coisas. E o efeito desse encontro, o sentido, é completamente dependente deste
cruzamento específico, em que elementos os mais diversos são colocados num mesmo caldeirão. O
efeito é imponderável, inesperado, portanto. É resultante de um pacote de coisas se intermodulando,
se conectando. Um escritor não tem como prever os diferentes sentidos que vão se dar para os
diferentes leitores que encontrarão seu livro, em diferentes épocas e culturas.
Estamos aqui entrando na concepção de sentido para Deleuze, tocando num ponto que talvez
seja um dos mais notáveis no deslocamento operado por ele: emancipar o sentido das dimensões
estritamente linguísticas do enunciado. O sentido aparece como uma dimensão do enunciado que
não está restrita à linguagem. Ele é uma dimensão que fica entre as palavras e as coisas, entre as
palavras e os corpos. Deleuze define o sentido como uma “tênue película no limite das coisas e das
palavras” (1969: 34). É um efeito que se produz na fronteira dos estados de coisas e das
proposições, na fronteira dos corpos e das palavras. Este efeito é expresso pela linguagem, no
enunciado, e se atribui aos corpos, mas não se confunde nem com o enunciado e nem com os
estados de coisas. O sentido insiste nas palavras, mas refere-se às coisas – é a ponte que liga a
linguagem e os corpos.
Ele é então uma ponte, uma fronteira, pois ele não seria explicável apenas nesta dinâmica de
representação da linguagem. Entre linguagem e estados de coisas é preciso haver alguma coisa que
faça esta relação “acontecer”, se efetuar. Ou seja, se o sentido é a fronteira é porque é preciso que
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algo se passe entre as coisas e as palavras, para que elas colem umas às outras e façam uma
determinada palavra fazer sentido no corpo de quem a diz, a escreve, a ouve ou a lê. É preciso,
portanto, que haja algo para além desta relação representativa, em que reconhecemos que tal palavra
refere-se a tal objeto. Por debaixo desta relação há algo atuando até mesmo para que a
representação possa funcionar. E este elemento não é de natureza linguística. Como uma palavra
afeta um corpo? Como uma frase pode nos fazer chorar, pode nos fazer sorrir, pode nos deixar
contentes ou desesperados? Como a palavra tem este poder de transformar o estado de um corpo,
fazê-lo mudar de natureza? O sentido é a inevitável intromissão da linguagem na sensação.
Em uma leitura, dizíamos, há uma mistura entre elementos de ordem linguística e outros de
outras tantas naturezas: sensação, história, memória, hábito, ritmo, som, timbre de voz, velocidade
de leitura, relações cotidianas, paisagens, imagens, cultura, formação etc. E dizíamos o quanto o
efeito de uma leitura, o sentido que ela produzirá, depende do cruzamento dessas coisas todas, que
são de naturezas diversas. O sentido é um pacote de coisas, no qual as palavras não se desgrudam de
vários outros elementos não-linguísticos que, junto com elas, constituem uma enunciação. Ou seja,
o sentido passa pela linguagem, mas não está restrito a ela. Ele é o nó, o entrelaçamento das
palavras com aquilo que não é palavra.
Estamos falando de um sentido que é liberto da ordem do discurso. No entanto, ele não existe
sem a linguagem e a linguagem não existe sem ele. A questão toda é que ele não se restringe a ela.
O sentido passa pela linguagem. Ou ainda: ele a torna possível. Diz Deleuze: “instalamo-nos logo
„de saída‟ em pleno sentido. O sentido é como a esfera em que estou instalado para operar as
designações possíveis e mesmo para pensar suas condições” (Ibidem: 31). Portanto o sentido é
condição de toda linguagem, ainda que de uma natureza diferente da dela, de uma natureza
evanescente, quase inapreensível, incorporal, como ele afirma diversas vezes em Lógica do sentido.
Para Deleuze, sentido não equivale a significado; sentido é diferente de significação. Deleuze
não é o único a postular assim, mas é uma distinção importante de ser remarcada, uma vez que no
senso comum tendemos a igualar sentido e significado/significação. São conceitos que,
cotidianamente, nos soam como sinônimos. A significação é, sim, de ordem estritamente
linguística. Ela diz respeito ao código, a uma convenção sem a qual não consigo participar de um
idioma. Se alguém se dirigir a um brasileiro falando em chinês, para poucos dentre nós esta
sonoridade será apreendida enquanto discurso. Precisaríamos de algum tradutor, bom conhecedor
dos significados desses sons, para que essa sequência de sons encadeados passasse a significar algo.
Se leio um texto em chinês, como não conheço as significações do idioma, ele não passa de tinta
sobre papel, um desenho que não produz sentidos para mim.
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Um texto é apenas tinta sobre papel quando não funciona enquanto linguagem: passo os olhos
na página e estou diante de hieróglifos ou um texto escrito em uma língua que não conheço. “Não
faz sentido”, digo. Mas a partir do momento em que estou diante de um texto e consigo lê-lo, se
posso reconhecer os vocábulos da língua, os conceitos, a sintaxe, visualizar os objetos designados e
as palavras começam a se juntar e a acontecer, neste movimento, estou instalada já, de antemão, em
pleno sentido. O sentido então é uma espécie de “cola” que liga as palavras – seus significados e
designações – ao meu corpo. O sentido é isto que faz com que o texto deixe de ser apenas tinta
sobre papel e se transforme em discurso, e permita isto que entendemos por função representativa
da linguagem.
Parece que estamos aqui em um campo um pouco mais fluido, menos palpável do que aquele
das formas e funções definidas, dos objetos formados, das palavras constituídas, dos corpos, da
materialidade das coisas, dos significados. Estamos em um campo de forças. E a força é o quê? É
algo que atua, que sabemos que existe, mas que não podemos propriamente pegar com as mãos, ver
com os olhos; podemos apenas captar o efeito de uma força. A força da gravidade, por exemplo. Ela
está presente, mas como podemos pegá-la? Podemos apenas tentar demonstrá-la a partir de seus
efeitos. Quando ela não atua, sabemos que os corpos flutuam. A força é algo de certo modo
incorporal, incorpóreo, mas ela se atribui aos corpos. É nos corpos que você consegue notar o efeito
de uma força. A impulsão, a retração, o peso, a gravidade, a pressão. A força é o que confere
movimento aos corpos. Como poderíamos pegar o movimento?
Quando falamos em sentido, para Deleuze, estamos mais próximos deste campo de forças.
Estamos mais próximos daquilo que move os corpos. Estamos falando de um plano que não é o da
representação, em que já temos formas e funções definidas, temos sujeitos, objetos, significados,
significantes. Em Lógica do sentido, o sentido aparece como um efeito incorporal. Algo mais
próximo da natureza das forças, portanto.
Esta é uma inspiração que Deleuze vai encontrar nos Estóicos; é de onde vem a ideia de um
efeito de ordem incorporal. Este efeito incorporal se dá nos corpos, se atribui a eles, mas não se
localiza nem neles nem na linguagem. Como vimos, o sentido é esta fronteira, esta ponte que liga
palavras e coisas, e esta ponte é uma “tênue película”, é um “vapor incorporal”, que se eleva das
palavras, diz Deleuze. O sentido como este incorpóreo extrapola o plano de representação da
linguagem. Ele insiste no enunciado mas não está apenas nele, ele se atribui às coisas mas também
não se localiza nelas. Pois ele é uma força. Ele é o que confere movimento ao enunciado, que move
as palavras em direção às coisas e as coisas em direção às palavras, criando uma dinâmica entre elas
que chamamos de linguagem.
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De todas essas ideias, acho que vale assinalar uma. Porque se relaciona bastante com certo
vício que temos. Uma espécie de vício da significação, que é um vício da nomeação também.
Fazemos parte de uma cultura que se acostumou com uma ideia de que podemos traduzir tudo por
palavras, de que tudo podemos nomear, explicar, enjaular na linguagem. Desse modo, estamos
acostumados a igualar sentido e significação, e mesmo achar que o sentido se restringe aos
significados do que dizemos. Mas talvez o sentido seja algo um pouco mais fluido e indomável.
Talvez ele seja de uma natureza um pouco mais impalpável, menos controlável, menos pura, do que
gostaríamos. É certo que este vício da significação vem de uma vontade de controlar, de segurar isto
que nos escapa a todo momento. Ele vem de uma insegurança nossa, mas também de uma vontade
de dominação dos homens. Talvez tenha cabido a alguns pensadores, como Nietzsche, Foucault,
Deleuze – para ficar naqueles que evocamos aqui –,voltar o olhar para este lado da linguagem, do
discurso, que nos escapa sempre. Um lado que sempre se furta às capturas, que se furta à
dominação, que sempre precisa de ar puro, de novos campos para se espraiar.
O poema pode nos ajudar a entender a natureza do sentido por ser uma linguagem que quer
fugir da função corriqueira da linguagem. De certa forma ele coloca em questão o modo de ser
cotidiano da palavra. Se eu quero comunicar, pedir ou exigir alguma coisa, é preferível que eu o
diga diretamente em uma frase, e não use um poema. Porque o poema pode ter os mais imprevistos
efeitos em quem lê. Nada me garante que meu leitor vai entender o que eu quero quando se trata de
um poema. E na leitura de poesia fica mais claro isto de que o que participa do sentido não é
somente a dimensão denotativa da linguagem, a significação e a denotação, mas são muitas outras
coisas que nos escapam, e criam uma espécie de ambiente, de lugar, em que as palavras nos fazem
circular e dançar junto com elas.
Isto que o poema explora e leva ao limite, no entanto, seria próprio do funcionamento da
linguagem, do sentido linguístico. Nosso título opta pelo plural nos “deslocamentos do sentido em
Deleuze” porque há muitos deslocamentos operados por sua filosofia neste conceito, mas também
porque o sentido, em Deleuze, é este elemento que se desloca sem parar, que sempre se furta,
silenciosamente. Como diz Deleuze, há um “perpétuo deslocamento invisível e silencioso do
sentido linguístico” (2006: 179). É esse deslocamento que precisamos, talvez, levar em conta em
nossas leituras e análises.
ALEGRAR nº08 - dez/2011 - ISSN 18085148
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Bibliografia:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006.
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. São Paulo: Graal
(do original em francês Différence et répétition, 1968), 2006.
_______________. L`Île déserte et autres textes. Paris : Minuit, 2002.
_______________. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva
(do original em francês Logique du sens, 1969).
FOUCAULT, Michel. ______________ (2000). “Nietzsche, Freud, Marx”. In: Ditos e escritos II –
Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Trad. Elisa Monteiro. Rio de
Janeiro: Forense Universitária (original em francês Dits et écrits, 1994).
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