A representação geométrica na relação entre matemática e arte: um

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A representação geométrica na relação entre matemática e arte: um
A representação geométrica na relação entre matemática e
arte: um estudo nas obras de pintores catarinenses
Hellen da Silva Zago 1
Orientadora: Profª. Drª. Claudia Regina Flores
RESUMO
O presente artigo trata da relação entre arte e matemática, discutindo as possibilidades de análise nas
obras de pintores modernos catarinenses. Particularmente toma-se como exemplo a pintura de Martinho
de Haro, propondo, através do olhar matemático sobre a obra do artista, fornecer subsídios para a prática
docente na relação entre matemática e arte.
Palavras-chave: Mate mática e Arte, Representação Geométrica, Ensino de Matemática.
A arte é uma das maneiras mais puras de representar as coisas do mundo.
Através dela os sonhos passam a se tornar verdades, os desejos são expostos e
atingíveis, a realidade se faz presente. O artista libera suas emoções, sua criatividade,
seu olhar sobre a natureza e as coisas que o cerca; transforma o vazio, o pálido e o
branco em misturas perfeitas de cores e de formas, tornando-se muitas veze s impossível
não se encantar ou até mesmo se encontrar na maioria de suas obras.
Grande parte destes trabalhos envolve-nos e transporta-nos, mesmo que na
imaginação, para a realidade proposta pelo autor. Os elementos se reúnem e como em
um complô transformam- nos em partes da mesma cena, vivenciando e participando da
mesma história. Para Foucault (2004, p.28), “o autor é aquele que dá à inquietante
linguagem da ficção suas unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real”.
De modo particular o foco deste trabalho será a arte plástica, em especial a
pintura moderna 2 , não deixando de mencionar as outras expressões artísticas e períodos
da arte, como sendo também possíveis de serem analisadas sobre os mesmos aspectos
propostos no decorrer do texto.
1
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica/CFM/UFSC.
A arte moderna no Brasil ganhou destaque após a Semana de Arte Moderna, em São Paulo no ano de
1922. Sua característica principal era romper com os padrões antigos, utilizando como recurso cores
vivas, figuras geométricas e uma tendência expressionista e com influência do cubismo.
Por meio da pintura o artista representa aquilo que enxerga como sendo a
realidade do mundo, com seus aspectos naturais, sociais, políticos, religiosos, enfim,
com suas particularidades. Flores (2007, p. 29) destaca que “(...) quando o artista opta
por uma possib ilidade de representação em detrimento de tantas outras está revelando
mais que seu estilo, sua relação particular com o mundo (...)”. Percebemos então, que o
artista é inspirado pela história que traz consigo e pelo meio onde está inserido, criando
uma representação do mundo que entende como verdade.
Ora, essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão, apóia-se
sobre um suporte institucional (...). Mas ela também é reconduzida, mais
profundamente sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma
sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo
atribuído. (FOUCAULT, 2004, p.17)
Neste sentido, segundo Chartier (1991, p. 185), “a relação de representação é,
desse modo, perturbada pela fraqueza da imaginação, que faz com que se tome o
engodo pela verdade, que considera os signos visíveis como índices seguros de uma
realidade que não o é”.
Pressupõe-se, então, que o olhar de quem se propõe a analisar uma obra,
também não está neutro. O espectador, assim como o artista, tem seu olhar
“contaminado” pelas coisas a sua volta, podendo deturpar a idéia inicial do autor ao
interpretar o que foi representado. Segundo Flores (2007, p. 86), “certamente, as
interpretações de um quadro são múltiplas e contraditórias”.
A matemática, assim como a arte, procura interpretar e explicar as coisas do
mundo. Através de suas formas, sua estrutura, sua quanticidade, ele pode ser traduzido e
representado. Louro (2008) nos diz que “no decorrer dos séculos os artistas (neste caso,
pintores) constataram que a geometria era de vital importância na obtenção da
perspectiva óptica, que lhe conferiam o efeito tridimensional (...).” Tanto isso ocorre,
que facilmente encontramos situações em que as pinturas foram produzidas tendo como
influência a matemática. Tomemos como exemplo a figura 1. Esta é uma obra de
Sandro Botticelle, pintada em 1483 e intitulada de “O nascimento de Vênus”. Nela,
além do uso da perspectiva, o artista representa Afrodite tendo suas medidas com base
na proporção áurea, objetivando assim, descrever a perfeição da beleza.
Figura 1
Fonte: http://www.abm-enterprises.net/artgall2/botticelli_birth_venus.jpg
Se formos buscar, os exemplos da matemática na arte são inúmeros, pois os
artistas acreditavam que ao utilizarem os conceitos matemáticos poderiam tornar suas
obras cada vez mais fiéis ao modelo original. Consoante a Flores (2007, p. 114), temos
que “isso levou os pintores ao estudo de técnicas que podiam servir de instrumento, ou
melhor, de base para realizar a representação realista do indivíduo, do homem”.
Vejamos o cubismo, cuja inspiração se deu através da obra de Cézanne 3 . Neste
período as pinturas se caracterizavam por apresentar as três dimensões no mesmo plano,
sem perspectiva, convertendo os elementos naturais em formas geométricas,
predominando a linha reta. Proença (2005, p. 174) destaca que Cézanne procurou as
linhas e as formas com que podia representar a natureza, buscando assim, representar o
que não muda, o que permanece. Na figura 2 podemos ver uma pintura de 1924, no
estilo cubista da artista brasileira, Tarsila do Amaral.
Figura 2: EFCB – (Estação Central do Brasil)
Fonte: http://www.livre.escolabr.com/ferramentas/wq/user_image/rckvbj959199.jpg
3
Paul Cézanne (1839-1906) – iniciou sua carreira ligado ao impressionismo, mas logo buscou tratar as
formas da natureza como se fossem cones, esferas e cilindros.
Assim, a matemática tem estado presente na pintura, em diferentes contextos,
no decorrer do tempo. Segundo Serinato (2007, p. 1), “basta um olhar pela História da
Arte para percebemos que a matemática está presente desde a pré-história até os dias de
hoje, sendo utilizada por muitos artistas e como característica de vários movimentos
artísticos”.
Barth (2006) rela ta que os artistas e os matemáticos são privilegiados leitores
da natureza e por meio de suas linguagens visuais e formais, completam essa leitura. Na
mesma idéia, Louro (2008) nos diz que “cada vez mais o público em geral fica a par de
situações em que a matemática e a arte caminham de mãos dadas, objetivando interrelações que tornam a matemática mais atraente”.
Portanto, se torna evidente que mesmo parecendo inexplicável ou inviável, há
uma grande relação entre estas áreas e que, por mais que não esteja clara a intenção do
artista, este utiliza elementos e conceitos matemáticos no desenvolvimento de suas
obras. Assim, concordamos com Seguí (2007, p. 7) quando ele diz que a influência da
matemática na arte, pode ser consciente ou inconsciente por parte de quem a criou.
O intuito deste trabalho é o de identificar a matemática, mais especificamente,
a geometria que aparece, mesmo de forma indireta, nas obras de artistas catarinenses do
período moderno e, através desta análise, encontrar aspectos que podem ser explorados
por professores de matemática em sala de aula. Para isto, busca-se conhecer a história
da pintura em Santa Catarina, para encontrar os artistas que compõem esta história.
Algumas questões vêm à tona neste momento: onde iniciar a busca por esta história?
Será possível realmente encontrar matemática na obra destes artistas? De que maneira
estas obras, ao serem identificadas, poderão contribuir para o ensino de matemática?
Antes de procurar a respostas para estas questões, cabe salientar que não se
pretende, de forma alguma, produzir um “livro de receitas” para o professor,
apresentando roteiros de atividades que ele possa utilizar em suas aulas. Tampouco,
propõe-se a criação de categorias de análise que, de certa forma, estaria subtendida
como uma receita que indica os passos de como observar as obras.
Por outro lado, o trabalho objetiva investigar com um olhar matemático as
pinturas catarinenses, a partir de duas razões. A primeira diz respeito ao incentivo à arte.
Acredita-se que ao ter contato com as pinturas, incentivados a observá-las com um novo
olhar (buscando entender os elementos existentes nas obras, a idéia do artista...), os
alunos podem apresentar um maior interesse por conhecê-las melhor. A escolha por
obras catarinenses (mesmo ciente de que para o desenvolvimento desta pesquisa, a
busca por estes artistas não seja fácil), neste sentido, ocorre devido ao fato de que a
partir delas há um estreitamento entre a arte e os alunos. Espera-se dos alunos a
percepção de que a pintura não existe apenas para uma minoria de pintores de renome e
que é possível se produzir grandes obras, desde que haja interesse nisso.
A segunda razão, porém não menos importante, é a oportunidade de poder
utilizar este recurso (as pinturas) no ensino de matemática. Poder mostrar que a
matemática não é um mundo separado, de acesso a poucos e de difícil compreensão. É
instigante a vontade de poder apresentar a matemática como ela é, imersa na natureza a
tal ponto que possa ser confundida com ela; uma maneira de podermos visualizar isso e
apresentar aos alunos é através da análise de algumas obras de arte.
Voltamos à idéia anterior tendo como exemplo a obra é de Martinho de Haro
(1907-1985), pintor catarinense da cidade de São Joaquim. De Haro, durante sua
trajetória como pintor, desenvolveu suas obras no estilo moderno, em diferentes
gêneros, tendo grande destaque a natureza morta, em especial a pintura de flores. Nas
paisagens e nas vistas urbanas, como o exemplo da figura 3, teve influência de seu
professor Othon Friesz, do período que estudou na França.
Figura 3: Casario da Rua Fernando Machado
Fonte: www.clubedoze.com.br/imagens/galeria/imagens/gal_6_jpg.jpg
Ao observarmos a pintura de Martinho de Haro (figura 3), a primeira
impressão que ela nos remete é de uma rua vazia, com muitas casas, cada uma no seu
estilo, mas sem a presença dos moradores. Certamente nos perguntamos: o que haveria
acontecido com eles para estarem ausentes neste momento?
Porém, dois aspectos nos dão indícios de que de alguma forma há vida ali. O
primeiro aspecto são as roupas no varal (canto inferior direito) e juntamente com a porta
da residência aberta temos a impressão de que a dona-de-casa estendeu suas roupas e
voltou para suas atividades diárias em seu lar. O segundo, é que podemos ver três
janelas abertas, mas uma em especial nos chama atenção, onde é possível observarmos
algumas flores que reforçam a idéia de vida naquela casa. Flores (2007, p. 48), ao
examinar a obra São Lucas faz o retrato da virgem, diz que “a obra em si é uma janela.
Uma janela para ver o mundo através das janelas enquadradas na tela”. Ao contrário da
obra analisada pela autora, esta que estamos observando não nos fornece ver o que há lá
fora, mas nos faz buscar o que pode haver dentro da casa, a única até então constituída
de vivacidade. Mas seria esta a verdadeira intensão do artis ta ao retratar desta maneira
sua obra?
Ao olharmos o lado de fora - a rua em si - nossos olhos logo buscam sua
continuação. O que pode ter além deste recorte feito pelo artista? Vemos então, que o
ponto de fuga não está no centro da tela, mas em sua lateral esquerda, mais
especificamente na esquina da rua, nos dando vestígio de que há algo mais além do que
o artista representou.
Sob um olhar mais geométrico, observamos que a obra, de um modo geral, se
resume a traços que a princípio nos remete um ar de frieza. Contudo, esta idéia pode ser
contrariada se pensarmos no que foi dito anteriormente. O paralelismo da maioria destes
traços também pode ser observado facilmente, podendo ser bastante explorado em sala
de aula no aprendizado deste conceito com os alunos, a partir de exercícios que se
desenvolvam tendo como base a obra.
A técnica da perspectiva na pintura deixa-a mais condizente com nossa
realidade, sendo possível verificar as diferentes faces que existem em cada elemento ali
representado, podendo assim, ser analisada pela geometria descritiva 4 . Para Medeiro
(2006,p.8),
A perspectiva ajuda o aluno a compreender representações de figuras de três
dimensões sobre a superfície da folha de papel, que é bidimensional. Além de
ser útil para o entendimento da geometria espacial, o desenho em perspectiva é
motivador e agradável, e pode contribuir de maneira significativa para a
formação geral das pessoas, para a apreciação de desenhos e pinturas. Para
desenhar em perspectiva é necessário compreender certas relações
geométricas. (MEDEIRO, 2006, p. 8)
4
A Geometria Descritiva é um ramo da geometria que busca representar objetos em três dimensões em
planos bidimensionais.
Desse modo, o professor, ao inserir a pintura no contexto de sua aula, poderá
explorar estes ou outros conceitos que achar cabíveis, e realizar atividades que
envolvam o aluno, buscando aguçar sua criatividade e seu interesse no aprendizado.
Conseqüentemente, tais atividades possibilitam a desmistificação da complexidade e da
dificuldade de compreensão que a matemática carrega.
Considerações Finais
A partir da breve análise feita sobre a obra de Martinho de Haro, acredita-se ter
sido possível esclarecer e justificar o objetivo da pesquisa que se pretende desenvolver.
Cabe salientar que a recusa da produção de um “livro de receitas”, mencionado
anteriormente, segue a idéia de que cada obra tem suas particularidades, devendo ser
analisada individualmente conforme o que se almeja. Emerge, então, a necessidade de
que o professor tenha clareza de seus objetivos, para que possa utilizar as pinturas da
maneira que achar mais adequada para suas aulas.
Vale lembrar que o ensino de matemática não deve se deter apenas a
resoluções de problemas. É interessante que o aluno seja levado a refletir sobre a
presença constante da matemática em diversos contextos, inclusive na arte. Pois, a partir
do momento que se começa a dar um sentido para os conceitos matemáticos, fica muito
mais fácil desenvolver atividades em que os docentes se sintam envolvidos e possam
contribuir mais na relação entre o ensinar e o aprender.
Cabe salientar que a pesquisa apresentada é objeto de estudo de um projeto de
mestrado 5 , que pretende destacar a inserção da relação entre arte e matemática, a partir
de obras de artistas modernos catarinenses, como ferramenta para a formação do
docente que busca recursos facilitadores e eficazes no desenvolvimento de seu trabalho.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
5
O trabalho está sendo desenvolvido junto ao PPGECT/UFSC, sob a orientação da Profª. Drª. Claudia
Regina Flores.
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