Luis II de Baviera

Transcrição

Luis II de Baviera
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Luis II de Baviera: Reflexões sobre um Relatório
Psiquiátrico-Forense Controverso
Ludwig II of Bavaria: Reflections on a Controversial Forensic Psychiatric Report
«É necessário continuar a criar estes paraísos, estes refúgios poéticos
onde possamos ocultarmo-nos e esquecer durante algum tempo a época horrível que nos tocou viver.»
Carta de Luís II de Baviera
à sua antiga preceptora Sibylle von Leonrod
1. Uma cruz no lago Starnberg
Adrian Gramary
Médico Psiquiatra
Uma cruz, sobressaindo das águas próximas da margem do
lago Starnberg, recorda, hoje em dia, ao visitante, o lugar onde
faleceu afogado, numa noite de Pentecostes de 1886, o Rei
Correspondência relacionada com o artigo:
Centro Hospitalar Conde de Ferreira
Rua Costa Cabral, 1211, 4200-227 Porto
e-mail: [email protected]
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Luís II de Baviera. A sua morte, acontecida durante um passeio
à beira do lago, em companhia do eminente psiquiatra Bernard
von Gudden, continua envolvida em mistério.
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dos serviços de talheres, e só foram permitidas as saídas do
monarca aos jardins do palácio em companhia de guardas.
Nessa noite, excepcionalmente recriada no extenso monólogo
interior escrito por Klaus Mann (A janela gradeada. A morte
de Luís II de Baviera), não sabemos bem como, mas o Rei
conseguiu convencer o seu psiquiatra a dar um passeio pela
margem do lago sem acompanhamento. Às 9 horas da noite,
o ajudante de Von Gudden, o Dr. Muller, preocupado com a
demora, deu o alarme no interior do castelo, organizando-se
uma batida pelo lago, que termina com a descoberta na água
dos dois corpos sem vida.
Até onde nós sabemos, existem vários casos de psiquiatras
As autópsias aos dois cadáveres permitiram concluir que
mortos pelas mãos dos seus doentes, mas este é o único caso
enquanto o Dr. Von Gudden morreu por afogamento, o Rei
de um psiquiatra falecido não só pelas mãos do seu doente
Luís II de Baviera parece ter morrido por congestão cardíaca.
mas também juntamente com ele.
Também é necessário destacar que Von Gudden tinha sinais
O psiquiatra Bernard von Gudden foi um dos responsáveis
evidentes de ter participado numa luta corporal: a unha de um
pela introdução dos princípios da psiquiatria non-restraint nos
dedo da mão partida e múltiplas lesões cutâneas (equimoses),
hospitais alemães, mas é fundamentalmente conhecido por
algumas à volta do pescoço, sinais que, curiosamente, não
ter sido o mestre de Kraepelin. Nessa altura, era director do
apareceram no corpo do Rei.
Hospital Psiquiátrico de Munique e conselheiro médico real, e
A explicação mais plausível para isto é que o Rei, conhecido
tinha assinado dias antes um relatório psiquiátrico-forense que
por ser um bom nadador, fugiu em direcção ao interior do
concluía que o Rei Luís II tinha uma paranóia e que, portanto,
lago, e o psiquiatra tentou evitar a sua fuga, entrando numa
o seu estado mental não era compatível com a continuidade
luta corpo a corpo, na qual o Rei terá tentado estrangular o
das suas funções à frente do Estado, indicando a necessidade
psiquiatra, e que terminou com a vitória do Rei, que, uma vez
da inabilitação do monarca. Na sequência desta acção de
liberto, começou a nadar tentando atingir a margem oposta
inabilitação, uma comissão tinha-se deslocado, alguns dias
do lago, morrendo, no entanto, uns metros mais longe, em
depois, ao castelo de Neuschwanstein para comunicar a
consequência da congestão cardíaca.
decisão ao Rei, correspondendo a Von Gudden transmitir a
notícia ao monarca:
2. Um Rei Mecenas e Anacrónico
«Senhor, assumo hoje o mais triste dever da minha
Luís II de Baviera subiu ao trono do Reino de Baviera em 1885,
vida. Vossa Majestade, segundo a opinião de quatro
num momento histórico de grande transcendência para o
médicos, foi declarado inabilitado. O Príncipe Liotpold
futuro da Alemanha. Durante o seu reinado, este país iniciou
assumiu a Regência. Recebi ordens de acompanhar a
o caminho em prol da formação de um Estado unitário, que
Vossa Majestade ao castelo de Berg esta mesma noite.
integrasse, sob a égide da Prússia —representada pelo chan-
Se Vossa Majestade não ordenar nada em contrário,
celer Otto von Bismarck e pela figura emblemática do Kaiser
senhor, o coche sairá às quatro horas.»
Guilherme, futuro Imperador de todos os alemães— a floresta
variada de reinos, ducados, principados e cidades livres, que
Luís II ficou finalmente recluso no castelo de Berg, sob a es-
constituíam o actual território alemão. Nesse sentido, o Rei
treita vigilância de elementos da guarda pessoal, do psiquiatra
bávaro tinha todos os atributos para se tornar uma figura ana-
e de vários funcionários do Hospital Psiquiátrico de Munique.
crónica e esquisita: amante dos monarcas autocratas segundo
Foram extremadas as medidas de segurança por temor à fuga
o modelo do Ancient Regime, em particular Luís XIV, Luís XV
ou ao suicídio do Rei, entre outras foram colocadas grades
e Luís XVI, apaixonado pelas artes, excêntrico, noctívago,
nas janelas, eliminados os puxadores das portas e as facas
sonhador, homossexual, misantropo, pouco apaixonado pela
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ideia da monarquia constitucional, com tendências absolutistas
te, Mary Vetsera, no Palácio de Mayerling, a que se seguiu
e requintes medievais, e que para aumentar o seu carácter
o Arquiduque Francisco Fernando, que foi assassinado em
singular, representava a cabeça visível de um reino católico no
1914 por um terrorista sérvio em Sarajevo, o que despoletou
meio de uma maioria de povos protestantes.
a Primeira Guerra Mundial.
Obrigado a partir em 1871 e a reconhecer a existência do
O Arquiduque Maximiliano, que cruzou o Atlântico, em 1864,
Império Alemão e a tutela do Kaiser Guilherme, o seu papel
para ocupar o trono fantasma do Império Mexicano, acabou
ficou assim limitado a ser um elemento quase decorativo,
por morrer fuzilado em 1867, pelas tropas republicanas de
situação que facilitaria ainda mais o seu isolamento e reclusão
Juárez. A própria Imperatriz Elizabeth não conseguiu evitar o
nos inúmeros castelos que construiu pelo território da Baviera
trágico destino da família, morrendo em 1898, em consequên-
(Linderhof, Neuschwanstein e Herrenchiemsee, entre outros).
cia do ataque com arma branca de um anarquista, na cidade
Luís II foi amante das artes, em particular da arquitectura e
suíça de Genebra.
da ópera, e tornou-se famoso pelo seu mecenato de Wagner, a quem convidou para viver na Baviera, pondo ao seu
alcance todos os meios necessários para compor a ópera
“Tristão e Isolda” e para representar partes de Tetralogia “O
Anel dos Nibelungos”. Saldou as inúmeras dívidas do músico,
assegurou-lhe uma pensão anual e alugou para ele, para o ter
mais perto, uma vila à beira do lago Starnberg, a um quarto
de hora de distância do seu castelo de Berg. No entanto, esta
amizade peculiar entre o Rei e o músico começou a ser alvo de
comentários jocosos por parte de alguns jornais satíricos, como
demonstra a alcunha “Lolus” criada por alguns jornalistas para
Wagner, em recordação do nome da famosa favorita do avô
do Rei, Luís I, a bailarina Lola Montes. O patrocínio de Wagner
acabou por provocar um escândalo sem precedentes no reino
4. O Rei Virgem
e o Rei, obrigado pelos Ministros e pela Rainha-mãe, expulsou
Wagner do país, para evitar conflitos maiores.
Embora o epíteto que mais fama atingiu foi o de Rei Louco,
a ausência de relações femininas conhecidas determinou
3. Uma dinastia maldita
que Luís II de Baviera também fosse conhecido como o Rei
Virgem.
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Há famílias, como aconteceu com os Kennedy mais recente-
A única mulher com quem manteve uma relação permanente,
mente, que parecem atrair a desgraça e o azar. Não falta algu-
de estreita cumplicidade ao longo dos anos, foi com a sua pri-
ma razão àqueles que consideram os Wittelsbach, a família a
ma Elizabeth, a Imperatriz Austro-Hungara. Estas almas géme-
que pertencia Luís II de Baviera, uma dessas dinastias malditas.
as tinham muitos pontos em comum: partilhavam uma atitude
O irmão de Luís II, Otto, que acreditava ser um cão, viveu, boa
pouco realista pela vida, a paixão pelo mundo das artes e uma
parte da sua vida, fechado num castelo sob a vigilância de um
acentuada misantropia. No caso de Elizabeth é conhecido o
psiquiatra e da guarda real, ladrando e comportando-se como
seu carácter fugidio e arisco - que a levou a evitar os contactos
se o fosse. Por outro lado, os Habsburgo, directamente enlaça-
com a aristocracia vienense e a preferir a fuga continua para
dos com os Wittelsbach, através da Arquiduquesa Sofia, mãe
paraísos longínquos como o arquipélago da Madeira ou a Gré-
do Imperador Francisco José, e da mulher deste, a Imperatriz
cia, e a sua preocupação com dietas rigorosas e com a prática
Elizabeth, mais conhecida por Sissi, mantiveram-se na mesma
diária de ginástica, que nessa época eram comportamentos
linha de desastres familiares.
estranhos para a realeza centro europeia.
O filho de Sissi, o Arquiduque Rodolfo, herdeiro da coroa
A preocupação dos ministros com a sucessão no trono de
imperial, suicidou-se em 1889, juntamente com a sua aman-
Baviera, obrigou o Rei Luís II a aceitar o compromisso com
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a sua prima Sofia, a irmã pequena de Elizabeth. Mas este foi
«…manifestamos, em primeiro lugar, que considera-
um relacionamento literário, esvaziado de qualquer conteúdo
mos inoportuno, além de desnecessário, reconhecer
erótico, sustentado numa relação epistolar em que o Rei se
em pessoa a Sua Majestade, dada a abundância de
auto-denominava Lohengrin, o protagonista da ópera de Wag-
documentação disponível…»
ner, e Sofia era obviamente Elsa, a sua companheira na ficção.
Há quem pense que o monarca escolheu Sofia como segunda
Outra irregularidade nos procedimentos do relatório diz respeito
alternativa por não ter podido escolher a irmã Elizabeth, com
à participação dos outros três peritos assinantes, pois uma
quem o unia uma amizade muito estreita e pela qual sentia uma
vez redigido, Von Gudden conseguiu, por meios turvos, as
paixão idealizada. Após múltiplos adiamentos, o Rei rompeu
assinaturas de mais três colegas: o seu genro, o Dr. Hubert
definitivamente o compromisso, e Sofia acabou por casar com
Grashey, professor de psiquiatria em Würzburg, e os clínicos
o Duque Fernando de Alençon. Em 1887, porém, abandonan-
Dr. Hagen – que era conselheiro da corte – e Dr. Hubrich, que,
do marido e filhos, fugiu para a Suíça com o seu médico.
por sua vez, também não tinham observado o periciado.
Foi separada do amante à força, declarada demente e inter-
Como já foi referido, a conclusão básica do relatório é que o Rei
nada numa clínica psiquiátrica. Mais uma vítima da maldição
apresentava um quadro delirante crónico ou paranóia, que o
dos Wittelsbach, Sofia morreu em Paris, em 1897, no incêndio
tornava incapaz de reger a coroa de Baviera, mas a argumen-
de um bazar de caridade.
tação do relatório falha no essencial, isto é, para um leitor que
se debruce no texto, surpreende a ausência de uma descrição
5. Um controverso relatório psiquiátrico-forense
psicopatológica veraz do referido quadro psicótico.
Talvez possa aportar alguma luz seguir a argumentação do au-
O processo de inabilitação realizado contra o Rei Luís II de
tor através da transcrição dos parágrafos mais importantes do
Baviera é, como tantos outros acontecidos durante o século
relatório: no início Von Gudden aborda o carácter misantropo
XIX e princípios do século XX, um bom exemplo da instrumen-
e fugidio do Rei, com o seu famoso evitamento dos contactos
talização de que pode ser objecto a psiquiatria por parte do
interpessoais:
poder político.
São múltiplas as irregularidades que envolvem a elaboração
«…esta aversão pelo trato humano foi-se acentuando
deste relatório. Teríamos que começar por um facto salien-
com o passar do tempo, até ao ponto de que o Rei fre-
tável e suspeito: Von Gudden redigiu o relatório sem nunca
quentava cada vez menos a igreja de Berg, e finalmente
ter observado o doente, neste caso o Rei, baseando as suas
fez construir no jardim privado do castelo de Berg uma
conclusões psiquiátricas nos depoimentos de pessoas que
pequena igreja em estilo românico, onde podia ser ce-
tinham feito parte do círculo de lacaios do monarca, a maioria
lebrada a missa só para ele, estando terminantemente
dos quais tinha sido expulso da corte, constituindo, portanto,
proibida a assistência de qualquer outra pessoa. Como
testemunhas comprometidas, que, obviamente, era muito
é conhecido, também eram representadas peças de
provável que emitissem pareceres enviesados sobre o estado
teatro só para Sua Majestade porque não suportava
mental do monarca.
a presença de público. A companhia de outras pes-
O relatório baseou a inabilitação nas excentricidades do Rei,
soas tornou-se cada vez mais intolerável para ele (…)
nas suas opiniões políticas – caracterizadas por um germa-
é público e notório que, desde há muito anos, a Sua
nismo dúbio e pela sua simpatia pró-francesa, devida a uma
Majestade não recebe pessoalmente os responsáveis
atracção manifesta pelo esplendor da corte de Versailles –, no
da Corte nem os ministros da Casa Real… ficando,
desprezo que manifestava pelo povo bávaro, na sua manía de
assim, o trato humano de Sua Majestade limitado
construir castelos e nas suas amizades “degradantes” com
praticamente aos lacaios…»
os lacaios.
Neste sentido, não foi por acaso que o autor do relatório se
Em relação aos lacaios, o relatório aborda o relacionamento
sentisse na obrigação, no seu início, de dar uma explicação
excessivamente próximo que o Rei mantinha com estes,
sobre o facto de não ter havido um exame presencial do Rei:
que era um dos aspectos do seu comportamento que mais
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escândalo tinha provocado na sociedade bávara, embora,
expedições nocturnas e também que tinha intenção de
talvez para evitar alimentar os boatos já existentes, o autor
construir um novo Versailles em Graswangtal…»
evite abordar os conhecidos envolvimentos homossexuais que
o Rei mantinha com alguns serviçais, nomeadamente com o
«…transcrição de uma carta dirigida a Hesselschwerdt,
seu favorito, Hornig:
escrita pelo próprio punho da Sua Majestade a lapiseira,
por motivos de urgência: (…) as construções são a
«…durante a estada da Sua Majestade em Schachen,
única alegria que me resta, desde que estão paradas
soube-se que os moços da estrebaria foram convida-
sinto-me muito infeliz e seria capaz de abdicar ou de
dos ao salão turco do castelo, onde, sentados sobre
acabar com tudo, isto deve acabar, que sejam reto-
carpetes de estilo oriental, beberam sorvetes em com-
madas as obras, se ele consegue isto, praticamente
panhia da Sua Majestade e fumaram cachimbos turcos.
me terá salvado a vida (…) A felicidade da minha vida
E também, na conhecida como sala germânica, insta-
está em causa…»
lada em Linderhorf, deitados sobre peles, os lacaios
beberam hidromel em grandes cornos…»
«…A Sua Majestade só quer construir, e as estratégias
que usa para procurar o dinheiro necessário para isto
Von Gudden descreve, a seguir, aquelas extravagâncias artís-
reflectem mais uma vez, se fossem necessárias mais
ticas que iriam conformar, com o passar do tempo, o núcleo
provas, ao ponto que chegou a decadência das suas
essencial da lenda maldita do Rei Louco, como a construção
faculdades mentais…»
da maior gruta artificial do mundo, os passeios nocturnos a
cavalo, pelas montanhas próximas do recinto do palácio de
Mas a nossa opinião é que todo este catálogo fabuloso, em-
Hohenschwangau, portando o ceptro e a coroa e acompa-
bora real, de extravagâncias, que faz parte da lenda maldita
nhado por lacaios com tochas, ou a sua paixão desmedida
do Rei Luís II, é no essencial semelhante ao de tantos outros
pela corte de Versailles que o levou a construir castelos que
monarcas da história, que no entanto, na maioria dos casos,
recriassem o esplendor da época de Luís XIV e Luís XV e a
foram poupados de ser objecto de uma acção de inabilitação
organizar festas em homenagem a Luís XVI e Maria Antonieta,
fundamentada em semelhantes excentricidades.
actividades estas que teriam conduzido ao esvaziamento das
É por este motivo que ficamos ansiosos a espera dos argu-
arcas do Estado:
mentos clínicos e psicopatológicos necessários para sustentar
a pretensa paranóia defendida por Von Gudden, mas quando
«…neste domínio das fantasias incontroladas, não
os elementos são finalmente apresentados, eles são difusos
submetidas às limitações impostas pelo real e pelo
e pouco consistentes. Começa por invocar, o relator, determi-
possível, poderíamos incluir outros factos comentados
nadas semelhanças entre a doença psiquiátrica do monarca
noutras partes do relatório, como o desejo tantas vezes
e a do seu irmão Otto, encerrado num castelo desde o início
exprimido pela Sua Majestade de voar pelos ares numa
da idade adulta por um quadro psicótico, provavelmente
carruagem puxada por pavões, tendo encomendado ao
esquizofrenia:
mestre mecânico Brand uma máquina para sobrevoar
os Alpes desde Hohenschawangau; ou a pretensão de
«…a Sua Alteza Real o Príncipe Otto de Baviera está
copiar a gruta azul de Capri, para a qual o lacaio Hornig
afectado por uma doença mental incurável, cujas ori-
teve que se deslocar duas vezes a Capri para estudar
gens remontam-se aos anos da juventude, algumas
a referida cor azul…»
de cujas características têm uma semelhança óbvia
e significativa com certos sintomas da doença que se
«…o moço de estrebaria Hornig referiu que a Sua Ma-
manifesta na Sua Majestade…»
jestade costuma vestir-se em segredo a moda dos reis
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absolutos de França e que fez tirar do tesouro real o
A seguir, passa a descrever as insónias e as cefaleias crónicas
ceptro e a coroa para passear com eles durante as suas
de que sofre o monarca e o seu abuso dos soníferos:
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«…para terminar, faremos uma breve referência às
«…só a presença de elaborações ilusórias permite ex-
condições físicas do Rei. Desde há algum tempo, a
plicar o incidente que comunica o ministro Von Ziegler:
Sua Majestade diz sofrer de enxaquecas com sensação
“o Rei comunicou-me mais de que uma vez o seu mal-
de pressão e dor, sobretudo na região occipital, que
estar por ter sido objecto de olhares meus depreciativos
combate com sacos de gelo, às vezes até durante as
e desrespeitosos durante a audiência real, convidando-
refeições. Também são frequentes as insónias; há cerca
me a justificar, posteriormente, o meu comportamento,
de seis anos que o Rei toma cloral duas ou três vezes
com o que tive que perder muito tempo elaborando
por semana, mas desde há cerca de quatro anos tem
escusas e explicações para a pretensa falta de respei-
tomado outros soníferos, de cuja composição nada
to”. Acredita Von Ziegler que a razão desta suspeição
sabemos os abaixo assinantes…»
é a convicção do rei de que a sua presença causa um
efeito desagradável nas pessoas, como se ficasse
Mas, chegado o momento de demonstrar a existência de
envergonhado de alguma anomalia ou deformidade
alucinações, os argumentos e as descrições de Von Gudden
muito óbvia; sentimento este que é bastante provável
parecem forçadas e inconsistentes:
que corresponda a um mecanismo ilusório presente na
Sua Majestade…»
«…sobre se a Sua Majestade apresenta realmente alucinações, isto não pode ser assegurado com certeza
Mas existe também uma explicação mais simples para estes
absoluta, embora possam indicar a sua presença as
comportamentos: é lícito pensar que a imagem do Rei Luís II
observações de Hesselschwert ao referir que o Rei se
nos últimos anos, com quase todos os dentes podres – o que
sobressalta com o mais leve ruído, e que, durante os
motivou modificações na ementa real, passando a comida a ser
seus passeios, diurnos e nocturnos, costuma interrom-
servida triturada, e tornou o seu discurso difícil de perceber–
per o seu discurso com frequência, dizendo ter ouvido
não contribuísse propriamente para aumentar a segurança do
qualquer coisa, palavras ou passos; e, ao assegurar o
monarca perante a sua exposição em público. A isto soma-se
interlocutor não ter ouvido nada, retorquiu “o que se
o facto conhecido do sofrimento e culpabilidade com que o
passa é que tu és duro de ouvido, Hesselschwerdt”.
monarca, católico praticante, vivia a sua homossexualidade,
Tudo isto sem que a Sua Majestade conseguisse expli-
como deixou explicitamente escrito nos seus diários:
car nunca quais são esses ruídos ou essas palavras que
crê ouvir. Também estando o Rei no interior dos seus
«Ódio mortal aos sentidos, ódio mortal. Chega de bei-
quartos (como declarou o mordomo Welker) costuma
jos. Lembrai-vos, Senhor, lembrai-vos. Desde agora,
queixar-se de que ouve ruído de passos no andar de
nunca mais! Desde agora, nunca mais. Desde agora,
cima, ordenando que este seja revistado, embora nunca
nunca mais!»
tenham encontrado lá ninguém. Ainda, encontrando-se
a sós nos seus aposentos (observações do 3 de Junho
Os assinantes, no entanto, sem mais explicações psicopato-
de 1886, segundo depoimentos de Hesselschwerdt)
lógicas do que as acima referidas, concluem, surpreendente-
o Rei foi ouvido frequentemente a falar e rir em voz
mente, no fim do relatório:
alta, como se estivesse com companhia numerosa e
entretida…»
«1. A Sua Majestade padece uma perturbação das
suas faculdades mentais já muito avançada; trata-se
Descreve ainda a suspeição do monarca e descreve o que
concretamente de uma doença conhecida entre os
parecem prováveis interpretações deliróides de conteúdo
alienistas com o nome de paranóia (psicose de evolu-
paranóide ou autoreferencial, mas sem conseguir demonstrar
ção progressiva).
a existência dos delírios sistematizados característicos da
2. Tendo em conta o carácter progressivo da doença
paranóia:
e o facto da sua longa duração no caso da Sua Majestade, destacamos o seu carácter incurável e a mais
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que provável continuidade e aceleração do processo
“excepcional como personagem de tragédia”, embora não
de deterioração das suas faculdades mentais.
duvide em fazer um implacável balanço final da personagem
3. A doença exclui a livre determinação da sua vontade, e portanto, devemos considerar a Sua Majestade
incapacitado para governar, e incapacitado não por
um lapso de tempo superior a um ano, mas sim para
a vida toda.»
6. Novas reflexões sobre o caso do Rei Ludwig
Num estudo recente, o Professor da Universidade de Heidelberg, Heinz Häfner, soma-se àqueles que questionam se o Rei
mais do que um psicótico, não terá sido um homem nascido
na época errada. Sem dar resposta a esta pergunta, este autor, no entanto, é de opinião que o diagnóstico de paranóia é
histórica: “não amou absolutamente o seu povo, defendeu mal
insustentável a partir da perspectiva actual. Recorda ainda que,
a coroa e não defendeu os seus amigos”.
após a morte do Rei, um dos três psiquiatras que assinaram
No entanto, por contradições da história, ao apaixonado
o relatório exprimiu dúvidas sobre o diagnóstico de paranóia.
Rei Luís II devem os bávaros os múltiplos castelos por ele
Segundo este autor, o Rei Luís II, com o intuito de fugir dos
construídos e disseminados pelo território bávaro, que
seus conflitos internos, desenvolveu uma forma infrequente de
constituem, actualmente, o seu principal atractivo turístico.
adição: a adição pela construção; adição esta que poderia ser
E todos nós temos, ainda, uma dívida contraída com o
incluída, junto com, por exemplo o jogo patológico, no grupo
monarca, pois ele foi o principal mecenas de Wagner, cuja
de dependências não relacionadas com substâncias.
obra é um pilar fundamental para compreender a música
O monarca também terá desenvolvido, sempre desde a pers-
do século XX.
pectiva de Häfner uma fobia social, que se foi exacerbando
com o passar do tempo, devido, em grande medida, aos
sentimentos de vergonha com o que o monarca vivia as suas
Bibliografia
inclinações homoeróticas. Este quadro fóbico também permitiria explicar a sua retirada social e da vida política.
Qual era o diagnóstico psiquiátrico de Luís II de Baviera? Muitas vozes qualificadas parecem coincidir de que a paranóia
é uma hipótese actualmente insustentável. Além do estudo
mais recente de Häfner, estudos realizados por outros autores apontaram, no passado, outros possíveis diagnósticos
psiquiátricos: perturbação esquizóide de personalidade, parafrenia ou demência fronto-temporal. Nós concordamos com
aqueles que pensam que é provável que o Rei tivesse uma
perturbação de personalidade, e que desenvolveu, a partir
de uma determinada altura da sua vida, um quadro de fobia
social e, usando o conceito de monomania de Esquirol, uma
incoercível monomania edificadora.
Para acabar, gostávamos de relembrar a sentença do historiador Guy de Pourtalés, que na sua biografia caracteriza o Rei,
enquanto homem, como “o último grande artista coroado”,
54
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la Emperatriz. Planeta. Barcelona.
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Barcelona.
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- Vandenberg P (1992): El poder en la sombra. Médicos que cambiaron la historia. Ed. Martínez Roca. Barcelona.
Filmes:
- “Ludwig” de Luchino Visconti
Na Net:
- Was Mad King Ludwig II Really Mad? (http://www.uni-heidelberg.
de/press/news/press341_e.html)