ENAP

Transcrição

ENAP
John Cowart Dawsey e Regina Polo Müller
(Coordenação Geral)
Anais do Encontro Nacional de Antropologia da Performance (ENAP)
(Napedra – Núcleo de Antropologia, Performance e Drama)
São Paulo
FFLCH
2012
Núcleo de Antropologia, Performance
e Drama [Napedra]
Anais do Encontro Nacional
de Antropologia e Performance
[ENAP 2010]
São Paulo
Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social
Universidade Estadual de Campinas
Instituto de Artes
Programa de Pós-graduação em Artes
Núcleo de Antropologia, Performance e Drama [Napedra]
coordenação geral
Prof. Dr. John Cowart Dawsey [PPGAS | FFLCH | USP]
Profª Drª Regina Polo Muller [PPGA | IA | UNICAMP]
comissão organizadora
Adriana de Oliveira Silva [PPGAS | FFLCH | USP], Ana Goldenstein Carvalhaes
[PPGIEHA | USP] Ana Letícia Fiori [PPGAS | FFLCH | USP], André-Kees de Moraes
Schouten [PPGAS | FFLCH | USP], Ana Lúcia Marques Camargo Ferraz [PPGAS |
FFLCH | USP], Carolina de Camargo Abreu [PPGAS | FFLCH | USP], Danilo Paiva
Ramos [PPGAS | FFLCH | USP], Giovanni Cirino [PPGAS | FFLCH | USP], João Luis
Uchoa de F. Passos [PPGA | IA | UNICAMP], Luciana de Fátima Rocha de Lyra
[PPGA | IA | UNICAMP], Marianna Francisca Martins Monteiro [PPGA | IA | UNESP],
Marcos Vinicius Malheiros Moraes [PPGAS | FFLCH | USP]
apoio
Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo [FAPESP], Fundação de
Amparo a Pesquisa do Estado de Goiás, Rede Goiana de Pesquisa Performances
Culturais [UFG | PUC-GO | IHGG], Museu de Arte Contemporânea [MAC-USP],
Programa de Pós-Graduação Interunidades de Estética e História da Arte [USP],
Programa de Pós-Graduação em Artes [IA-UNICAMP], Pró-Reitoria de Pós-Graduação
[PRPG-USP], Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária [PRCEU-USP],
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas [FFLCH-USP], Programa de PósGraduação em Antropologia Social [PPGAS-USP], Departamento de Antropologia
[DA-USP]
realização
Núcleo de Antropologia, Performance e Drama [Napedra]
Todos os direitos reservados
© by Autores
_________________________________________________________________
Catalogação na Publicação Divisão de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
E56
Encontro Nacional de Antropologia e Performance (2010: São Paulo, SP)
Anais do Encontro Nacional de Antropologia e Performance ENAP, 16 a 19 de março de
2010 / Coordenação geral: John Cowart Dawsey, Regina Polo Müller.
São Paulo:Napedra:FFLCH-DA/USP:IA/UNICAMP, 2012.
ISBN 978-85-7506-212-8
1. Antropologia. 2. Artes. 3. Performance. I. Dawsey, John Cowart, coord. II.
Müller, Regina Polo, coord. III. Núcleo de Antropologia, Performance e Drama – Napedra. IV.
ENAP 2010. V. Título.
CDD 301.2
O ENAP | Encontro Nacional de Antropologia e Performance, sediado no
Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo [MAC - USP],
reuniu pesquisadores do campo das artes interessados em aprofundar seu
diálogo com a antropologia e antropólogos que buscam conhecimentos em
estudos de performance, num processo interdisciplinar que evoca um momento
originário na história da antropologia da performance, nos anos de 1960 e 1970,
quando Richard Schechner, um diretor de teatro virando antropólogo, faz a sua
aprendizagem antropológica com Victor Turner, um antropólogo que, na sua
relação com Schechner, torna-se aprendiz do teatro.
As atividades do Encontro, abertas ao público, foram divididas em
sessões de mesas redondas, conferências, ações performáticas [com a
participação de convidados nacionais e internacionais] e apresentações de
trabalhos [comunicações orais], organizadas em torno de 3 eixos temáticos:
festa e manifestações populares | artes do espetáculo | música e oralidade.
O Encontro foi uma realização do Napedra | Núcleo de Antropologia,
Performance e Drama – grupo de estudo e pesquisa que reúne alunos e
professores do Programa de Pós-gradução em Antropologia Social [FFLCH-USP]
e do Programa de Pós-graduação em Artes [IA-UNICAMP] e de outras
instituições, e fez parte das ações propostas pelo projeto temático
Antropologia da Performance: Drama, Estética e Ritual, financiado desde 2008
pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo [Fapesp].
1
O ENAP contou com o apoio da Rede Goiana
de Pesquisa Performances Culturais [UFG | PUC-GO
| IHGG], Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
de Goiás [FAPEG], Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo [FAPESP], Museu de Arte
Contemporânea [MAC-USP], Programa de PósGraduação Interunidades de Estética e História da
Arte [USP], Programa de Pós-Graduação em Artes
[IA-UNICAMP],
Pró-Reitoria
de
Pós-Graduação
[PRPG-USP], Pró-Reitoria de Cultura e Extensão
Universitária [PRCEU-USP], Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas [FFLCH-USP], Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social [PPGASUSP], Departamento de Antropologia [DA-USP].
2
CONFERÊNCIAS .............................................................................................. 8
Poética e Performance: Representação de identidade através da Festa de Artesanato dos
Laklãnõ (Xokleng) de Santa Catarina, Esther Jean Langdon (UFSC) e Flávio Braune Wiik (UEL) ......... 9
Recriações históricas em Portugal: um modelo performativo mainstream, Paulo Raposo
(CRIA – ISCTE/IUL) ............................................................................................................................. 35
Victor Turner e Richard Schechner, antropologia e performance: uma inspiração, Regina
Polo Müller (IA-Unicamp) ................................................................................................................. 64
PERFORMANCES ...................................................................................... 72
Carmen Miranda e as Bacantes .......................................................................................... 72
Levantamento do Mastro: Terra, Céu, Tupanaroca e Aruanda no Festejo do Sem Fim ..... 72
Performances, diálogos ...................................................................................................... 73
O Repouso do Inocente ...................................................................................................... 73
Lua Vermelha ...................................................................................................................... 73
TELEKAIA espaço intersecional ........................................................................................... 74
Leituras do Guru ................................................................................................................. 74
Cruzes.................................................................................................................................. 75
MESAS REDONDAS................................................................................... 76
ARTES E ESPETÁCULOS ............................................................................. 77
O teatro experimental e a construção de uma dramaturgia musical, Selma Baptista (UFPR)
.......................................................................................................................................................... 77
A crítica e a crítica genética: diálogos sobre o entendimento do espetáculo teatral,
Robson Corrêa de Camargo (UFG) .................................................................................................... 83
FESTA E MANIFESTAÇÕES POPULARES ..................................................... 93
Santo Antônio de Lisboa (Portugal) e de Borba (Amazonas): entre o rito e o teatro em
espaços públicos, Sérgio Ivan Gil Braga (UFAM) ............................................................................... 93
A sociologia dança: um experimento em samba de gafieira,
João
Gabriel L. C. Teixeira (UnB) ............................................................................................................. 107
Rivalidade e afeição: performances rituais no Bumbá de Parintins, Maria Laura Viveiros de
Castro Cavalcanti (UFRJ) ................................................................................................................. 115
MÚSICA E ORALIDADE ........................................................................... 128
Contar o passado, confabular o presente: a construção da história nas narrativas de
pretos velhos, Vânia Z. Cardoso (UFSC) .......................................................................................... 128
3
COMUNICAÇÕES ORAIS ......................................................................... 144
ARTES DO ESPETÁCULO.......................................................................... 145
SESSÃO 1: PERFORMANCE, LINGUAGEM E EXPERIÊNCIA ......................... 145
Lev S. Vygotsky (1896-1934) e o teatro: revelações,
Edlúcia Robélia Oliveira de Barros (UFG) ........................................................................................ 145
O ato-ação da performação, Larissa Ferreira (UnB/UFBA) ............................................... 156
Rituais cotidianos no treinamento do ator: diálogos possíveis entre a metodologia de
improvisação de Jean-Pierre Ryngaert e os estudos enunciativos do círculo de Bakhtin, Jean Carlos
Gonçalves (UFPR) ............................................................................................................................ 161
SESSÃO 2: CORPO, TÉCNICA E SOCIEDADE .............................................. 166
A “África” e seus corpos: a performance como elaboradora do território negro, Ana
Beatriz Almeida (USP) ..................................................................................................................... 166
O jogo dramático e o espaço marginal como forma de resistência. CITAC: estudo-caso de
um grupo de teatro universitário em Portugal, Ricardo Seiça Salgado (IUL) .................................. 172
SESSÃO 3: DANÇA E PERFORMANCE ....................................................... 180
Dança de Salão: uma estética transcrita para a cena, Suanne Souza Baena (UFPA) ........ 180
“Ó Abre Alas”: Construindo dramaturgias carnavalescas/O bom malandro: reinventando a
tradição (Carnaval 2009), Yaskara Manzini (IA-Unicamp) .............................................................. 187
Rastros, Ary Coelho; Luisa Günther (UnB) ........................................................................ 203
SESSÃO 4: TEATRO E RITUAL .................................................................. 209
O teatro das orgias e dos mistérios de Hermann Nitsch, André Silveira Lage (Paris 8, USP)
........................................................................................................................................................ 209
Ritual e crueldade nas artes do espetáculo: potencialidades de percepção-ação do corpo,
Ricardo da Mata Barbosa (Unesp); Rodrigo dos Santos Monteiro (PUC-SP) .................................. 215
As Bacantes e Teatro Oficina: a paródia e o grotesco bakhitiniano, Maria Angélica
Rodrigues de Sousa (Unicamp) ....................................................................................................... 221
Mais um ir e vir entre o teatro e a antropologia, Isabel Penoni (MN/UFRJ)..................... 228
SESSÃO 5: PERFORMANCE E(M) ESPAÇO URBANO.................................. 234
Estado Pirata: cotidiano e suspensão na prática de performances na rua, Maicyra Leão
(UFBA/UFS) ..................................................................................................................................... 234
Pode o tempo ter lugar no corpo do performer?, Gilberto Icle (UFRGS) ......................... 244
SESSÃO 6: IMAGEM, PERFORMANCE E EXPERIÊNCIA .............................. 249
4
O Espelho do Outro: o cinema, o espectador e as relações de alteridade na Trilogia das
Cores de Krzysztof Kieślowski, Bruna Nunes da Costa Triana (UEL)................................................ 249
Experimente em si (mesmo) ou descartável você?, Cláudia Schulz; Luciana Hartmann
(UFSM) ............................................................................................................................................ 259
O palco nas lentes fotográficas: reflexões sobre a construção de narrativas por meio de
fotografias de espetáculos teatrais, Francieli Rebelatto (UFSM) .................................................... 264
A performance na antropologia de Jean Rouch, Pedro Lopes (USP) ................................ 271
Cici Pinheiro: vida, história e arte uma grande atriz do teatro goiano, Belisa Monteiro Dias
Ferreira (UFG) ................................................................................................................................. 277
FESTA E MANIFESTAÇÕES POPULARES ................................................... 283
SESSÃO 1:PÁSSAROS JUNINOS, CARNAVAIS E LIMINARIDADE ................ 283
Os liminares dentro da liminaridade: matutos e feiticeiras nas performances dos Pássaros
Juninos de Belém (PA), Eliane Suelen Oliveira da Silva (UFPA) ....................................................... 283
A estética dos contrastes no carnaval das escolas de samba: a continuidade no espetáculo
da mudança, Renata de Sá Gonçalves (UFRJ) ................................................................................. 293
O modo de produção familiar do carnaval de curitibano: qualidade e performance na
avenida, Vanessa Maria Rodrigues Viacava (UFPR) ........................................................................ 301
Carnaval curitibano: o “lugar” do popular na metrópole, Caroline Glodes Blum (UFPR) . 307
SESSÃO 2: FOLIÕES DIVINOS E REAIS ...................................................... 312
Identidade e Herança Cultural Açoreana através das Festas do Espírito Santo, Gyorgy
Henyei Neto (UFSCar) ..................................................................................................................... 312
Folia e fé: performance e identidade nas festas de Santos Reis em João Pinheiro-MG,
Maria Célia da Silva Gonçalves (TRANSE/UnB) ............................................................................... 326
Perigo e criatividade nas performances cômicas de palhaços de folias de reis, Daniel
Bitter (UFF) ...................................................................................................................................... 334
SESSÃO 4: DANÇANDO A TRADIÇÃO ....................................................... 347
A produção de subjetividade a partir de uma dança tradicional: o Mineiro-Pau de Salinas,
Luciana de Araujo Aguiar (UFRJ) ..................................................................................................... 347
Cacuriá: A tradição maranhense em terras candangas, Rita de Cássia Souza Cruz; Camila
Paula Lopes Soares; Luciana Hartmann (UnB) ................................................................................ 354
SESSÃO 5: CORPOS ESCRITOS, FOLIÕES E DANÇANTES ............................ 359
Os corpos da escrita: corpo e caligrafia japonesa, Rafael Tadashi Miyashiro (Unicamp);
Arthur Lara (USP); Anna Paula Gouveia (USP) ................................................................................ 359
5
Pé de valsa: danças antigas de salão que contam histórias, Valéria Maria Chaves de
Figueiredo (UFG) ............................................................................................................................. 367
SESSÃO 6: CONGADA, MARACATU E SÃO JOÃO ...................................... 377
Congada: o signicado cultural e performance dos dançantes em João Pinheiro-MG,
Giselda Shirley da Silva (TRANSE/UNB) ........................................................................................... 377
Os maracatus adentram a avenida: performances e rearranjos identitários na cidade de
Fortaleza, Ceará, Danielle Maia Cruz (UFC) .................................................................................... 382
Nação do Maracatu Porto Rico: um estudo do carnaval como drama social, Anna Beatriz
Zanine Koslinski (UFPE) ................................................................................................................... 391
Festa de São João: a performance como construtora da identidade étnica dos
remanescentes quilombolas em São Domingos, Paracatu-MG, Vandeir José da Silva (TRANSE/UnB)
........................................................................................................................................................ 396
Da ênfase do conteúdo para o modo de expressar os eventos etnográficos: as
contribuições da antropologia da performance para pensar o retorno dos emigrantes nordestinos
às festividades juninas, Greilson José de Lima (UFPE) .................................................................... 401
MÚSICA E ORALIDADE ........................................................................... 410
SESSÃO 1: MÚSICA, PERFORMANCE, ORALIDADE ................................... 410
Escutar, escutar, escutar... um caminho para a construção poética, Meran Vargens (UFBA)
........................................................................................................................................................ 410
Códigos e significações da performance oral: em torno da experiência estética, Marcelo
de Andrade Pereira (UFSM) ............................................................................................................ 415
SESSÃO 2: ATOR, ORALIDADE ................................................................. 421
Rezando em busca da visão: narrativas e performances rituais no Fogo Sagrado, Aline
Ferreira Oliveira (UFSC)................................................................................................................... 421
Peregrinações do corpo, da voz e da memória, Rosana Baptistella (Unicamp) ............... 430
Carne da canção: corpo e performance da palavra cantada no âmbito da música popular,
Conrado Vito Rodrigues Falbo (UFPE) ............................................................................................. 436
O riso como (re)leitura: o processo de parodização da bossa nova pela Tropicália, Victor
Creti Bruzadelli (UFG)...................................................................................................................... 447
“A palavra dita que é canção e a frase cantada que é fala” Maria Knébel e Stanislavsky
sobre a performance oral, Adriana Fernandes (UFPB); Robson Corrêa de Camargo (UFG); Michel
Mauch Rosa (UFG) .......................................................................................................................... 463
SESSÃO 3: RITUAL, NARRATIVA .............................................................. 472
Peregrinação kalunga: a letra, a voz e o mastro do Divino Espírito .................................. 472
6
Santo, Augusto Rodrigues da Silva Junior (Transe-UnB) ................................................... 472
Sonoridades e performance no contexto ritual: o caso do candomblé queto, Jorge Luiz
Ribeiro de Vasconcelos (IA/UNICAMP) ........................................................................................... 477
Música e oralidade, estética e ética: as cantigas no ritual e performance da capoeira
angola, Rosa Maria Araújo Simões(UFSCar) ................................................................................... 483
SESSÃO 4: CANÇÃO POPULAR, VIOLA, CANTORIA ................................... 489
As performances de trova galponeira em situações distintas: a roda de trova e os
concursos, Gisela Reis Biancalana (UFSM) ...................................................................................... 489
Transir rústico. Transgressão Lírica. O movimento poético-musical da Nova Cantoria de
Elomar Figueira Mello, Dércio Marques e Xangai, Eduardo Cavalcanti Bastos (UFBA) .................. 495
A performance da música regional no triângulo mineiro, Márcio Bonesso (I.F.Triângulo)
........................................................................................................................................................ 508
A Viola do Diabo: notas sobre narrativas de pactos demoníacos no Norte e Noroeste
Mineiro, Luzimar Paulo Pereira (UFRJ) ........................................................................................... 514
SESSÃO 5: GÊNEROS MUSICAIS, IDENTIDADE ......................................... 520
White Metal, o Heavy Metal “do bem”: um estudo sobre as adaptações estéticas e
performáticas do metal cristão, Patrícia Barbosa Villar (UFPR) ...................................................... 520
Corpos em linhas de fuga: êxtase juvenil nas Verduradas em São Paulo, João Batista de
Menezes Bittencourt (IFCH/Unicamp) ............................................................................................ 526
Samba e choro em brasília: os músicos, as notas e a cena musical na Capital federal, João
Carlos de Souza Peçanha (UnB) ...................................................................................................... 534
Bossa Nova entre as primeiras apresentações no Brasil e o espetáculo do Carnegie Hall
(1958-1962): performance e redimensionamento cultural, Vicente Saul Moreira dos Santos
(CPDOC/FGV) .................................................................................................................................. 540
7
CONFERÊNCIAS
8
Poética e Performance: Representação de identidade através da
Festa de Artesanato dos Laklã nõ (Xokleng) de Santa Catarina , Esther
Jean Langdon (UFSC) e Flávio Braune Wiik (UE L) 1
Resumo: O presente artigo analisa a Festa de Inauguração do Centro de Turismo
e Lazer dos Laklãnõ, realizada em 2003 na Terra Indígena Ibirama, Santa Catarina. A
Festa tinha como objetivos lançar publicamente a cooperativa de artesanato indígena,
ampliar o mercado dos artesanatos, assim como promover a identidade do grupo, tanto
para os jovens indígenas, quanto para o público não-indígena. A estes, soma-se o de
apresentar a “cultura” através de discursos sobre o passado “no mato”, cânticos no
idioma, ritos antigos, arquitetura e comida tradicionais e de jogos indígenas. A partir
das discussões antropológicas contemporâneas sobre cultura, estética e autenticidade
das performances indígenas, a Festa será analisada à luz dos processos de construção de
identidade indígena em dialogo com os discursos locais, nacionais e internacionais, nos
quais o índio autêntico figura positivamente. A Festa trata da revitalização identitária do
grupo e de sua história diante do discurso nacional e global de multiculturalidade, onde
os Laklãnõ apresentam-se concomitantemente como índios crentes e índios puros.
Como reflexão final, discutimos a recepção da comunidade Laklãnõ do filme feito sobre
sua Festa, em que eles percebem que o filme divulga uma imagem positiva de sua
identidade, contrário a imagem negativa que circula na região.
Introdução
Recentemente, Oakdale chamou atenção para o fato de que a performance da
cultura de forma consciente é um fenômeno recorrente em todo o mundo e se faz
presente através de eventos interétnicos e interculturais tais como: festivais nacionais,
encontros indígenas regionais, protestos transnacionais, fóruns globais e exibições
(2004: 60). De fato, o número de publicações antropológicas sobre este tema tem
aumentado consideravelmente, inclusive no Brasil. Temos constatado a existência de
muitos trabalhos dedicados a questão da performance cultural entre grupos indígenas na
Amazônia e nordeste (e.g.: Conklin 1997; Conklin and Graham 1995: Graham 2005;
Turner 1991; Grunewald 2005). Entretanto, como bem aponta Oakdale (2004), poucos
1
Uma versão mais completa foi recentemente publicada, entitulada “Festa de Inauguração do Centro de
Turismo e Lazer: uma Análise da Performance Identitária dos Laklãnõ (Xokleng) de Santa Catarina”.
Revista Ilha. No. 10(1):171-199.
9
estudos têm analisado eventos locais voltados, preferencialmente, para os públicos
locais. Mais ainda, pouca atenção tem sido dada às performances culturais dos grupos
indígenas no sul do Brasil. Este fato, em parte, deve-se às características não exóticas e
pouco atraentes destes índios que vivem as margens da sociedade envolvente. Em
comparação com a região amazônica, estes grupos têm sido ignorados pelas
organizações não-governamentais nacionais e internacionais dedicadas às questões
ambientais e de etno-desenvolvimento (Conklin e Graham 1995). Do mesmo modo,
apenas recentemente estes grupos começaram a formar as suas próprias organizações,
criadas com o objetivo entrar em diálogo com as instâncias governamentais e com
programas e projetos a eles dirigidos pela sociedade civil.
A partir deste contexto, o presente artigo tem como objetivo contribuir com os
estudos sobre performances culturais ao descrever e analisar um evento local entre os
Índios Laklãnõ (Xokleng) de Santa Catarina: “Festa de Inauguração do Centro de
Turismo e Lazer”, organizada pela Cooperativa Indígena Aldeia Figueira (COOIAF). À
luz de recentes pesquisas sobre representação de identidades em performances culturais,
analisaremos como esta festa torna evidente a relação existente entre a revitalização da
identidade Laklãnõ e as políticas culturais brasileiras avançadas pelas agências
nacionais indigenistas, o contexto histórico regional e a conversão dos Xokleng ao
pentecostalismo.
Ambos os autores têm realizado pesquisas-de-campo entre os Xokleng (Langdon
e Rojas 1991; Wiik 2004; Langdon et. alli. 2006). A primeira conhece o grupo desde
1985, e o segundo realiza pesquisas intensivas entre este desde 1996. Estas experiências
de longa data respaldam a análise da Festa que foi observada pela primeira autora para
fins didáticos atrelados à disciplina “Simbolismo: do rito para performance” oferecida
na Universidade Federal de Santa Catarina em 2003. Além das pesquisas dos autores, o
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da UFSC tem uma longa trajetória
de pesquisas e colaboração com o grupo, lideradas, principalmente, pelo Professor
Silvio Coelho dos Santos. Santos iniciou seu trabalho entre os Xokleng na década de
1960 e, ao longo de sua carreira como professor da UFSC, inspirou, orientou e treinou
inúmeros alunos e pesquisadores.
Os Xokleng
10
Os Índios Xokleng, cuja maioria passou a autodenominar-se Laklãnõ há poucos
anos atrás, são os remanescentes de grupos semi-nômades do tronco lingüístico jê que
ocupavam as encostas das montanhas, os vales litorâneos e das bordas do Planalto Sul
do Brasil. Segundo Santos (1997; 16) e Urban (1996: 43), o nome Xokleng é apenas
uma identificação dos brancos, principalmente dos antropólogos, e que os Índios em si
não possuíam termo de autodenominação específico, apesar de que se diferenciavam
dos Kaingang e Guarani – grupos vizinhos com os quais disputavam território desde o
processo expansionista da sociedade nacional. Regionalmente, ficaram conhecidos
como Botocudos e, mais pejorativamente, como os Bugres.2
Somam hoje cerca de hum mil e quinhentos indivíduos agrupados na Terra
Indígena Ibirama (TII), que também tem sido nos últimos anos designada pelos Índios
como Terra Indígena Laklãnõ, local em que foram reunidos pelo Serviço de Proteção ao
Índio (SPI) a partir de 1914. A TII está situada na região do alto vale do rio Itajaí, a
cerca de 260 km ao noroeste de Florianópolis, capital de Santa Catarina. Ela ocupa uma
área de 14.156 hectares, situada predominantemente entre os municípios de José
Boiteux e Vitor Meireles. A menor unidade social de cooperação e de produção
predominante é a de família extensa, ou dos grupos domésticos. Outrora coletores e
caçadores, os Xokleng hoje sobrevivem da agricultura de subsistência e do extrativismo,
de atividades produtivas como diaristas sazonais na região, prestadores de serviços aos
colonos locais, aos comerciantes de madeira, como funcionários dos órgãos públicos,
tais como FUNAI e FUNASA, , além das pensões dos idosos, projetos assistenciais do
Estado e da filantropia. O artesanato ainda representa um aporte mínimo de renda para
as famílias.3
A história de contato dos Xokleng com a sociedade envolvente tem sido
predominantemente marcada por longos e profundos conflitos das mais diversas ordens.
Alem da fase incial de contato, marcadas por relações belicosas travadas entre os
Xokleng, colonos e demais atores locais, a depopulação dos Xokleng aglutinados na TII
ficou a cargo das epidemias que os levaram ao quase total extermínio. Entre 1914 e
1932, epidemias de gripe, sarampo e tifo reduziram a população em dois terços, ou seja,
de 400 para 150 indivíduos (Henry 1941; Urban, 1985). O impacto provocado pelas
2
Henry (1941) e Mussolini (1980) erroneamente os haviam identificado como Kaingang em suas
publicações.
3
Para informações etnográficas mais detalhadas acerca do grupo ver Henry 1941; Santos 1997; Urban
1978, 1996; Wiik 2004.
11
epidemias também trouxe rupturas sócio-culturais (Ribeiro, 1982, 1991; Santos, 1973;
Urban, 1985). À exemplo, as mortes em massa fizeram com que os sobreviventes se
dispersassem pela floresta, interrompendo a execução do ritual anual de iniciação dos
jovens e o de cremação dos mortos, ambos centrais para a reprodução de sua sociedade.
Parece que a maior parte dos Xokleng resistiu a todos os esforços de dominarlos, deixando-os trabalhar para eles, enquanto mantinham atividades comuns ao seu
histórico semi-nomadismo. Sua resistência era, e de certa forma ainda é, vista pelos nãoindígenas como sinônimo de “preguiça”, “insolência” e “insubordinação”.
A história de contato dos Xokleng com a sociedade nacional é caraterizado por
açoes predatórias que se dão em razão da expansão das fronteiras nacionais, do
incremento da exploração de recursos naturais locais, das políticas integracionistas e
desenvolvimentistas iniciados em meados do Século XIX. Ao final, observa-se o
confronto de modelos societários adversos, providos de poderes assimétricos.
Os Xokleng têm respondido de forma enérgica a estas ações. Desde os anos 50
do século passado, têm se organizado de forma a impor e compor a sua agenda frente às
mesmas. Mobilizaram-se junto ao poder político local para destituir o chefe de SPI nos
anos 50; têm participado, mesmo que minimamente, das vantagens econômicas dos
ciclos de exploração dos recursos naturais de sua Terra; contestado energicamente as
deliberações julgadas desvantajosas pela liderança política indígena encaminhamentos
feitos por parte da administração local da FUNAI, inclusive destituindo administradores
e Chefes do Posto (como acontecera às vésperas da Festa de Inauguração do Centro de
Turismo e Lazer, em julho de 2006 tomaram como reféns três funcionários do DSEI
Sul/Sudeste da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) em Santa Catarina em
manifestação de sua insatisfação com os serviços de saúde prestados (Assis 2006: 21).
Principalmente a partir dos anos 80, os Xokleng têm se mobilizado para receberem
integralmente as indenizações e benfeitorias acordadas como compensação pela
construção da Barragem, invadindo seu canteiro de obras, construções e maquinaria.
Ademais, a sua luta pela ampliação dos limites da TII vem ganhando corpo junto ao
governo federal nos últimos anos.
Em resumo, a postura dos Xokleng frente às instâncias e representantes dos
programas governamentais voltados para as sociedades indígenas se dá como nas
primeiras décadas do contato, isto é, marcada por uma constante tensão e intensas
negociações.
12
Importante mediador da resistência social e reestruturação política Xokleng
observada a partir dos anos 50, tem sido a apropriação do Cristianismo Pentecostal
pelos índios, e tornada forma de expressão e identidade cultural dominantes. Desde esta
década, componentes de sua cultura e das formas de organização social têm sido
justapostos e reformulados à luz do cristianismo – que foi introduzido entre eles por
missionários da Igreja Pentecostal Assembléia de Deus – e, mais recentemente, nas
mãos de uma liderança religiosa autóctone. A versão do pentecostalismo Xokleng tem
servido de base para a reorganização e reunificação da sociedade. A grande maioria dos
Xokleng se declara “crente”. Ser “crente” não se restringe a abstrações teológicas
individuais a respeito da fé; “crer” e ser “crente” revelam-se através do cumprimento de
princípios e dogmas “crentes” que dão diretrizes e valor às práticas coletivas cotidianas.
Converter-se em “crente” é fenômeno coletivo, é congregar em uma comunidade de
“irmãos”. Ser “crente” é também categoria identitária e diferenciadora que o grupo
estabelece em relação a outras sociedades, mas, paradoxal-e-concomitantemente
ampliadora de suas alianças com outros grupos indígenas e não-indígenas, também
considerados “irmãos”, responsável pela formação simbólica uma nação pan-indígena
de articulação sócia-política frente aos desafios impostos pela sociedade envolvente
(Wiik 2004). Desta forma, o pentecostalismo xokleng tem sido um importante
articulador e mediador da cultura, dinâmica social e política desta sociedade até o
presente.
A partir da nova Constituição Federal de 1988, tem-se observado uma mudança
importante a respeito da posição dos índios na sociedade brasileira. A política que
identificou a presença dos índios como um atraso para o progresso da nação e que
procurava integrá-los à sociedade e economia nacionais, foi substituída por o
reconhecimento do caráter pluriétnico e multicultural da nação. A Constituição dedicou
um capítulo aos indígenas, assegurando-os “direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam”, além de reconhecer sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições próprios. Como conseqüência, as políticas nas áreas de
educação, saúde e ambientais têm se preocupado com a preservação e recuperação de
aspectos tradicionais das culturas indígenas. Criou-se no Brasil um contexto favorável à
manifestação da identidade indígena, e, além do crescimento das políticas públicas
voltadas para fornecer formas de atenção culturalmente sensíveis, o movimento
indígena tem sido fortalecido através da formação acelerada de novas associações
13
indígenas, particularmente, pela criação de grupos locais organizados. Vários grupos
indígenas “emergentes” também surgiram nos últimos anos do anonimato, não porque
fossem isolados, “descobertos” ou contatados recentemente, mas porque o contexto
atual favorece à manifestação de sua identidade indígena.
Como já havíamos observado (Wiik 2004), os Laklãnõ, evangélicos pentecostais
desde meados dos anos 50, justapõem sua identidade religiosa de Índio crente à outra
categoria êmica, parte de sua identidade étnica, a de Índio puro. Ou seja, os Laklanõ, ao
interagirem com os missionários pentecostais, iniciaram um processo político e sóciocultural de identificação do outro. Porém, este outro, ao mesmo tempo em que começa a
fazer parte de sua percepção acerca da diferença, também tornou-se parte constitutiva
dos discursos identitários particularizadores dos integrantes desta sociedade. Trata-se de
um exemplo clássico de como a alteridade desencadeia processos dialéticos de rupturas
e continuidades; ou mesmo, como tem argumentado Sahlins, de como os modelos
nativos acabam por traduzir e filtrar elementos exógenos, transformando-os – ou pelo
menos fazendo-se passar por – endógenos e/ou autóctones. Este processo nos remete à
dialética da deliberada intenção de pasteurização protagonizada pela globalização e as
inesperadas e imprevisíveis respostas locais desencadeadoras de processos de
reetnização e etnogênesis de grupos ameríndios.4
Ao final, e em resposta ao novo contexto nacional valorizador da autenticidade e
da “pureza” indígena como argumentado acima, os Laklãnõ, de forma bem particular,
justapõem
a autenticidade étnica através do conceito de
“índio puro” a traços
pentecostais através do conceito “Xokleng crente”, igualmente “puro”, caso sigamos a
lógica nativa.
Na TII, evidências das novas políticas públicas visando ser culturalmente
sensíveis se manifestam através da presença de atividades promotoras da “cultura
tradicional” nas mais diversas áreas a cargo de ONGs, agências governamentais como a
FUNASA, FUNAI e Secretaria de Educação, via Agentes Indígenas de Saúde,
programa de Educação Bilíngüe, dentre outras. Os Xokleng, grupo que sempre tem
expressado a sua resistência à integração nacional, têm respondido positivamente a estas
novas políticas culturais. Sendo assim, processos de retradicionalização, de “mostrar a
cultura xokleng”, do “Índio puro” estão em franca ascensão, evidenciados através da
4
Para maiores detalhes deste processo de reetnização e etnogênese entre os povos indígenas no Brasil ver
Gersem Baniwa (2008) e Oliveira Filho (1998). Ver Bartolomé (2006) para uma revisão geral.
14
organização da própria Festa de Inauguração do Centro de Turismo e Lazer, da
inauguração da Casa da Cultura, do Galpão de Danças, da Educação Bilíngüe, dentre
outros. Como a análise a seguir evidenciará, as atividades e práticas que ressaltam a
identidade xokleng, são destaques dos resultados alcançados pelas das políticas públicas
e crescimento da importância do Índio na legislação e imaginário brasileiros sobre
direto a cultura e práticas tradicionais, assim como instrumento fundamental utilizado
pelos Índios ao reivindicarem a ampliação de seu território tradicional junto à FUNAI e
demais instâncias públicas e da sociedade civil.
A festa
Durante o segundo semestre de 2003, um pequeno cartaz em papel “A4”
fotocopiado, circulou pelos prédios da UFSC anunciando a Festa de Inauguração do
Centro de Turismo e Lazer, a ser realizada na Aldeia Figueira na Terra Indígena Ibirama
no dia 3 de dezembro. Sua organização estava a cargo da Cooperativa Indígena Aldeia
Figueira (COOIAF) e o cartaz listava como apoio a Fundação Universidade Regional
de Blumenau (FURB), a União e Solidariedade das Cooperativas Empreendimentos de
Economia Social (UNISOL), uma deputada, e o programa Arte na Sala da Aula. Dentre
as atividades previstas, destacavam-se: a inauguração do Centro de Turismo e Lazer e a
Trilha Ecológica até a cachoeira da Volta Fria; exposição de uma Oca Indígena típica
dos ancestrais do povo Xoklengue (sic); apresentação do coral “Lírios do Vale”; danças
e comidas indígenas; exposição e venda de artesanatos; jogos indígenas, entre estes, a
corrida do toro, o torneio de tiro ao alvo com “arco e flecha” e “sarabatana”, cabo-deguerra e a maratona de 100 metros para adultos e crianças.
Além do nosso desejo em prestigiá-la e reforçarmos nossos laços com os
Xokleng5, ponderamos que a nossa participação na Festa representaria uma boa
oportunidade para que os alunos da disciplina conhecessem uma performance indígena
e decidimos realizar uma viagem como atividade extra-classe. Entramos em contato
com o Professor Sílvio com o intuito de saber mais detalhes sobre a festa. Na ocasião,
expressou que esta tinha problemas de organização. Afirmou que a COOIAF tinha
pretensões de envolver a participação de todas as sete aldeias da Terra Indígena na
organização da festa, porém haviam surgido alguns conflitos entre seus organizadores e
5
Além das pesquisas que realizamos no passado, pretendíamos iniciar um novo projeto de pesquisa em
Janeiro de 2004.
15
as lideranças, associados a problemas de comunicação, todos comuns à própria
organização política dos Laklãnõ, formada por aldeias providas de autonomia política e
marcadas, muitas vezes, por faccionalismos internos6. Subseqüentemente descobrimos
que os problemas de comunicação também diziam respeito a data do evento no cartaz
que chegou até a UFSC. Com uma certa dificuldade descobrimos que a festa seria
realizada no dia 13 de dezembro, e não no dia 3 como anunciado. Tal alteração levou a
em somente um pequeno grupo de alunos poder realizar a viagem até a TII. Como o
semestre letivo já havia sido encerrado e a turma de alunos já dispersara, ao invés de
um ônibus da Universidade, seguimos viagem pela manhã no dia 13 em dois carros
levando oito pessoas interessadas em participar da festa, inclusive um cinegrafista
encarregado de filmá-la.
Era um dia chuvoso e a viagem atrasou. A aldeia Figueira situa-se a
aproximadamente dez quilômetros do limite norte da Terra Indígena Ibirama e a vinte
quilômetros da cidadezinha mais próxima, José Boiteux. A TII é cortada por estradas de
chão, dificilmente transitáveis por veículos automotores sem tração nas quatro rodas em
dias chuvosos. Ao descermos dos carros, ouvimos o Hino Nacional tocar, e, ao nos
direcionarmos ao local do evento, nos deparamos com o vice-presidente da COOIAF,
que se apresentou, nos saudou e em seguida afirmou ser o responsável pelo convite feito
à UFSC para participar da festa através do Professor Sílvio Coelho dos Santos no mês
anterior. Solicitamos e obtivemos a sua permissão para filmar, e subimos um pequeno
aclive rumo ao evento.
O espaço selecionado para a abertura da festa, era localizado em um lugar limpo
e plano, na base de um morro atrás da casa do cacique da aldeia onde ainda restava parte
da mata atlântica que, no inicio do século 20, ainda predominava no litoral e vales do
interior do Sul do Brasil, região ultima onde a maior parte da área da TII se localiza.
Nesta área, havia um plano um pouco mais elevado que servia de “palco” para as
primeiras apresentações e atividades. À direita estava uma enorme caixa de som, ao seu
lado esquerdo, ficava o coral “Lírios do Vale”, um grupo predominantemente composto
de mulheres Laklãnõ vestidas com blusas laranja e saias azul-escuro. Atrás do palco,
uma trilha subia o morro, onde também havia algumas barracas com artesanato expostos
para a venda.
6
Para mais detalhes sobre organização social e dinâmica política dos Xokleng ver Muller 1988; Santos
1973; Urban 1978; Wiik 2004.
16
Encerrada a execução do Hino Nacional, o presidente da COOIAF, através do
microfone, deu as boas vindas aos presentes, desejando que a festa se perpetuasse e
congregasse maior número de pessoas nas próximas edições. De lá, tornou pública
nossa presença, anunciando ao microfone a chegada do “pessoal de Florianópolis”,
talvez com o intuito de animar a platéia inferior a esperada. A platéia se espalhava em
frente ao palco, e somava aproximadamente 60 pessoas, entre Índios e não índios, estes
últimos sendo da região. Ficou obvio que o número de espectadores foi considerado
baixo pelos organizadores, fato que permeou todos os discursos de abertura da festa. E,
ao pensarmos que esta festa foi orientada para turistas e, subsequentemente, para a
venda de artesanato, a quantidade de objetos postos a venda, superou exageradamente o
potencial de compra dos visitantes presentes.
Iraci Paté, professora bilíngüe, iniciou a abertura da Festa expressando seu
orgulho em apresentar a festa que a gente faz. Em seguida apresentou o Prefeito de
Vitor Meireles, que tomou o microfone e agradeceu a oportunidade de falar. Afirmou
que a festa iria demonstrar a simplicidade e humildade dos nossos s que gostam de fazer
festa no meio do mato para demonstrar como viviam antigamente. Sua fala foi seguida
pela do Cacique Antônio Caxias Popó, da aldeia Figueira, e pela do Cacique da Aldeia
Coqueiros.
Antonio Caxias Popó, que além de cacique da aldeia que sediava a festa, é pastor
do templo da Igreja Assembléia de Deus instalado junto aos domicílios que compõem o
grupo doméstico por ele liderado. Popó saudou os participantes em nome de Jesus
Cristo. Anunciou que a festa iria demonstrar como viviam os Índios nos tempos
passados para os visitantes e para as crianças indígenas que não conheceram os Índios
“do mato”.
Passados estas breves falas introdutórias de boas vindas e agradecimentos, a
professora Paloma da FURB foi chamada à frente do palco, sendo apresentada como
uma mulher muito bem quista pela comunidade, tendo desempenhado importante papel
na organização da festa. Ao proferir suas primeiras palavras ao público se emocionou e
chorou, afirmando que não conseguir falar mais. Em seguida tomou a palavra um não
indígena associado à cooperativa, proclamando a COOIAF como sendo a primeira
cooperativa indígena no Brasil. Também relatou sobre as dificuldades enfrentadas
durante a organização da festa, afirmando que a sua realização representaria um futuro
melhor para os Índios. Em seguida descreveu a programação da festa, estimulando as
17
pessoas a comprarem os artesanatos que estariam à venda, sendo os recursos gerados
revertidos à comunidade indígena.
Sua fala foi seguida pela apresentação do coral “Lírios do Vale” conduzido pelo
pastor-cacique Popó, que entoou o hino evangélico intitulado “O Jordão não passarei
só” traduzido para o xokleng. Depois entoaram o mesmo hino em português. Antes de
cantarem, o pastor, emocionado, ressaltou a importância da língua nativa para a
construção da identidade indígena.
Em seguida vieram os discursos. O primeiro e mais longo, foi proferido por um
pastor não-indígena, convidado pelo pastor-cacique Popó. Sua fala ocorreu seguindo o
estilo de oratória própria à dos pastores evangélicos em suas pregações aos fiéis.
Falando em voz alta, plena de repetições, apelou para que a prefeitura (de Vitor
Meireles), órgãos oficiais e pessoas públicas prestassem maior ajuda para a comunidade
Xokleng. Exalta que a festa não estava acontecendo por acaso, mas por obra divina.
Também apresentou o grupo historicamente, invocando a imagem dos Índios nos
tempos antes do contato quando, segundo ele, viviam em um estado puro com a
natureza nas suas malocas. Eles, afirmou,
era um povo da natureza e desfrutaram dos recursos naturais ...
Lutavam incansavelmente para a sobrevivência. Hoje estão
com saudades da verdade, do tempo do mato, quando não
tinham conhecimento de dinheiro, do preço do feijão e das
outras coisas da civilização. Eles eram inocentes, tinham
liberdade, liberdade que foi perdida com o contato [com os
brancos] e a introdução dos pecados da civilização.
Enquanto proferia sua pregação exaltando, com nostalgia, o passado e
lamentando as mudanças advindas com o contato, vários Índios começaram a se
emocionar, sendo que algumas mulheres do coral choraram. Em seu discurso-pregação,
o pastor estimulou os participantes da festa a comprarem o artesanato, qualificando-os
como “fruto da natureza divina”. Ao final, concluiu com a idéia de que com a salvação
de Jesus Cristo, os Xokleng retornaram ao estado de pureza com liberdade.
Cabe ressaltar novamente, que sua fala foi ganhando gradativamente forma de
pregação, comum ao universo religioso pentecostal, tendo muitas frases terminadas com
“aleluias”, e estes respondidos coletivamente pelos Xokleng. Seu discurso-pregação foi
encerrado com um outro hino evangélico cantado pelo coral, em português.
18
Em seguida, um jovem professor Xokleng fez uma homenagem aos “primeiros
pacificadores” que, segundo ele, os ajudaram se tornar “índios civilizados”. “Graças a
Deus que eles fizerem isto, ou não teria esta festa hoje”, afirmou. Com uma lista nas
mãos, leu os seus nomes: Wayãkü, Womblê, Waipõ e Lino Nunc-Nunforo, sendo este
último citado como “o primeiro professor indígena”. Ao apresentá-los, se emocionou e
chorou ao afirmar que eles lutaram “para que hoje os índios tenham professores, tenham
líderes caciques”. “Foram homens guerreiros e lutadores”, prosseguiu. No final de sua
fala, afirmou que Josué Caxias Popó, antiga liderança, também lutou pelos direitos
indígenas.
Finda a homenagem póstuma, o jovem apresenta “o homem mais velho do
grupo”, um homem “do tempo do mato” que sabe cantar como os antigos”. Este senhor
apresentou-se vestindo um blazer e um chapéu de palha industrializado. Antes de cantar,
assegurou: “Sou índio de verdade e me lembro do tempo do mato”. Então inicia seu
cântico ritual, auxiliado pelo som de um chocalho que balança ao cantar. Sua
apresentação encerra a abertura da festa.
Foto 1: Apresentação do Coral “Lírios do Vale”
19
Foto 2: Homem do Tempo do Mato Descansando
Em seguida fomos convidados a subir a trilha pela mata até a “oca tradicional”,
local onde estavam programadas danças, venda de artesanato, comidas tradicionais e
jogos. No caminho, passávamos ao longo das barracas que expunham o artesanato,
objetos que consistiam em muitos colares e brincos de sementes e em algumas
machadinhas e bastões xokleng, maracás enfeitados com penas coloridas, miniaturas de
arco e flecha, assim como miniaturas de sarabatanas de bambu. Ao longo da trilha,
outras mulheres Xokleng circulavam entre os participantes da festa oferecendo colares
de sementes e crianças pediam esmolas aos não indígenas.
Ao final da trilha, nos deparamos com um espaço limpo, como uma clareira,
mais ou menos plana no meio da mata. Várias pedras haviam sido pintadas com motivos
indígenas, tais como arco e flecha e a lança típica Xokleng. As pinturas nas pedras
também indicavam os caminhos para a oca indígena, para os banheiros e para a trilha da
cachoeira, que, ao final, não foi terminada. A oca consistia em uma construção
20
arredondada feita de pau-a-pique com aberturas de janelas e uma porta. O telhado, de
folhas de palmeiras, não havia sido terminado. A clareira também contava com barracas
para a venda de artesanatos e alguns locais destinados aos fogos de chão para assar
peixe do rio e carne. O peixe assado, representando a comida indígena, vinha
acompanhado por “totolo”, milho moído e cozido dentro de talos de bambu.
Ao chegarmos à clareira iniciaram a dança. Um grupo de Índios entrou na
clareira dançando em círculos, cantando e balançando maracás. O grupo era formado
por dois homens mais velhos, cinco mulheres e um menino de mais ou menos oito anos
de idade. Este menino era o único entre os jovens e adultos masculinos a trajar estojo
peniano conforme fotografias pós-contato datadas do início do Século XX (ver Santos
1997). Os corpos das mulheres estavam cobertos por fibras de palmeira. Os homens
adultos vestiam calções e estavam sem camisa. Seus rostos estavam pintados com
círculos (cheios e vazios) ou linhas retas, lembrando as representações gráfico-corporais
das metades Kaingang observadas na realização da Festa de Kiki entre os Kaingang de
Xapecó nos anos 90 (Tomasino e Rezende 2000).
21
Foto 3: Venda de Artesanato
Finda a dança, o jovem professor anunciou que o grupo iria apresentar o rito de
batismo tal qual era realizado “no tempo do mato”. Uma mulher com uma criança no
colo sentou-se junto ao chão, no centro de um grupo disposto em círculo. Estes
dançaram e cantaram ao seu redor. O rito foi seguido pela “dança da viúva” com uma
mulher idosa sentada ao centro.7 Enquanto o grupo dançava, um homem idoso se
aproximou dançando ao lado da mulher sentada no chão para dar conselhos. Em
seguida, mais uma mulher adentrou o círculo dançando até parar e findar o movimento.
Fomos convidados para entrar na “oca tradicional” e cumprimentar a mulher
mais idosa do grupo, identificada como uma “Índia pura do mato”, Ayu Paté 8, com 123
7
Este rito deve representar a reintegração da viúva após ausentarem-se fisicamente de seus respectivos
grupos domésticos com a morte dos maridos. Urban (1996: 15) descreve duas cerimônias, segundo o
autor, ainda praticadas no período de sua pesquisa nos anos 70, a reclusão da viúva e a festa de
reintegração.
8
Uma foto dela está publicada em Santos (1997: 142).
22
anos de idade. O apresentador afirmou que “ela nasceu no tempo do mato e por ser índia
pura, ainda está forte, boa da vista e do ouvido”. Ela não falava português, e estava
acompanhada por um intérprete. Cada um de nós foi convidado a cumprimentá-la e
oferecer uma “colaboração”. Algumas pessoas entraram na oca, cumprimentaram-na e
deixaram notas de cinco ou dez reais, enquanto outros tiravam fotos.
Foto 4: Venda de artesanato
Depois de uma pausa destinada para pessoas comprarem artesanatos e
almoçarem, os jogos iniciaram. A primeira competição foi a de arco e flecha. Os
organizadores estimulavam, em especial, aos não-indígenas a participarem, cada um
pagando uma taxa para competir. O grande arco tradicional dos Xokleng, usado para
atirar flechas ao alvo, provou ser bastante difícil para quem não estava acostumado a
manuseá-lo, o que causava muitos risos por parte dos Índios para com os não-índios,
23
quando estes não conseguiam fazer a flecha atingir o alvo, ou cair ao chão antes de ser
lançada. Em seguida houve a competição de zarabatanas, miniaturas feitas de bambu.
Entre os comentários, um participante anunciou, “sou alemão, tenho que soprar forte”.
Durante os jogos, observava-se uma constante jocosidade em torno das relações entre
Índios e colonos locais. Os ganhadores receberem medalhas penduradas em fitas azuis.
Foto 5: Vestido do Tempo do Mato
Todas as outras atividades anunciadas no cartaz da festa, exceto a maratona, não
aconteceram. A trilha para a cachoeira não foi terminada e as outras competições, tais
como a “corrida do toro”, não foram sequer mencionadas. Terminada a competição com
zarabatanas, as pessoas foram convidadas para participar da maratona, que seria
realizada na estrada. Competir neste evento também exigia o pagamento de uma
pequena taxa, mas poucos demonstraram interesse em participar. Muitos já se
preparavam para retornar para as suas casas.
Ao descermos a trilha em direção à estrada para assistirmos à maratona,
começou uma leve chuva e a festa encerrou rapidamente. Enquanto os poucos homens
ainda corriam a maratona, os Índios empacotavam e organizavam rapidamente seus
24
pertences e partiam. O mesmo se deu com os não-indígenas que vieram participar da
festa. Vários Índios subiram na boléia de uma caminhonete da FUNASA, que partiu
entre os últimos dois homens que chegavam ao término da maratona. As medalhas
foram entregues aos finalistas, mas não havia platéia para conferir o êxito alcançado.
Todos estavam com pressa de sair. E assim, a festa terminou abruptamente.
Foto 6: Dança no Tempo do Mato
Análise
Esta Festa, enquanto expressão da identidade étnica frente aos próprios Xokleng
e população regional demonstra características diferentes dos eventos observados no
passado (e até mesmo no presente: tipo ocupação da barragem!!!) que tratavam de
situações de colaboração ou confronto com a sociedade envolvente. Por exemplo, o
Prof. Sílvio observa que os Índios Xokleng visivelmente demonstravam vergonha
quando convocados a desfilar “vestidos e enfeitados como índio” em frente dos colonos
em Ibirama em 1962 (1978:33;1997: 108). Urban observa que na década de 1970, os
Xokleng tinha abandonado a sua vestimenta e arquitetura tradicionais. Os homens não
usavam mais o botoque, característica do grupo que deu origem a sua identificação
25
como “Botocudos”. Exteriormente (e aos olhos dos “ocidentais”), não apresentavam
características de uma cultura indígena. Ainda, o autor observa que na época, eles
pareciam aos olhos ocidentais, quase anti-exóticos na suas tentativas de evitar chamar
atenção como um grupo culturalmente distinto da sociedade envolvente (Urban
1996:15). Em 1970, a exibição performática da identidade indígena ainda não era usual
nem tampouco apreciada era a força imagética do índio tradicional como recurso de
resistência política. Não obstante, as expressões de resistência dos Xokleng ao longo de
sua história demonstraram que as tentativas de assemelhar materialmente aos colonos
não representam um concomitante declínio da identidade indígena, nem consistia em
intuito de apagar a sua identidade grupal.
Também já havíamos observado celebrações que demonstravam pouco interesse
para com as tradições do passado. Por exemplo, a celebração do Dia do Índio em 1996,
na aldeia Bugio, limitou-se a entoar o Hino Nacional, o hasteamento da bandeira e
discursos dos políticos locais e lideranças indígenas. Recordamos neste dia, de um
ancião, que nascera antes da “pacificação” e que ainda tinha a cicatriz no lábio inferior
perfurado para inserção do botoque, estar sozinho em um canto de uma casa vizinha ao
evento, tocando maracá e cantando canções rituais sem despertar qualquer interesse por
parte dos indígenas ou visitantes. Este comportamento vai ao encontro do que os
Xokleng nos relatavam nos anos 90, que sentiam vergonha de se apresentar nas cidades,
que tinham vergonha de sua “cultura”
Já em 2003, a Festa sugere que os Xokleng são conscientes do discurso
internacional em que as imagens corporais do índio nu representam o “selvagem nobre
ecológico” (Conklin 1997: 713). Ambos Conklin e Turner (1991) chamam atenção do
fato da representação da cultura autêntica através do corpo tem sido uma estratégia
importante, e que a roupa se tornou uma marca da identidade e de resistência. Conklin e
Graham (1995) apontam para a relação entre o movimento ecológico e o movimento
indígena na Amazônia. Apesar de que os Xokleng estarem fora desta região e não
participarem no diálogo com as ONGs dedicadas à preservação ecológica, a
representação de sua cultura demonstra que estão conscientes deste discurso e do poder
político do índio autêntico e ecológico. Assim, eles falam sobre seu passado com
orgulho e nostalgia, ressaltando a importância de mostrar a sua cultura, tanto para as
visitas quanto para os jovens indígenas, que não a conheciam. Seu idioma, sua
vestimenta antiga, seus rituais e outras características de sua vida tradicional são postos
26
em exibição como traços diacríticos de sua identidade, e, diferente de 1996, os idosos
são honrados como exemplos do tempo do mato, época antes do contato. Ainda mais, a
criação do “espaço do mato” como palco da sua vivência tradicional, com sua
arquitetura, comida, ritos, jogos e outras atividades, também os estabelece como
autênticos e legítimos para expressar suas demandas frente a sociedade envolvente, o
movimento ecológico e as políticas públicas.
A análise da estética da festa demonstra a construção de uma narrativa histórica
contada pelos Xokleng que comunica uma imagem positiva não só da época pré-contato
como também dos processos históricos que trouxeram a escola e o pentecostalismo,
aspectos estes que lhes permite hoje identificarem-se como Xokleng crentes. A estética
do passado se expressa na língua, na semi-nudez e pintura corporal, no canto do homem
ancião e nas danças dos ritos. Esta amalgama-se à estética evangélica, nos hinos do
coral e na oratória do pastor, evocando coros e “aleluias” dos Xokleng crentes.
Entrelaçado com a estética, a história contada nos discursos da festa afirma uma
identidade positiva e contrastante com os preconceitos que os Índios freqüentemente
enfrentam na região, acusados de não serem mais Índios, de não terem mais cultura e de
serem preguiçosos, sujos e bêbados. Temos escutado freqüentemente dos colonos
vizinhos, queixas que os Xokleng não são como os índios puros da selva amazônica,
que, todavia mantém sua cultura. Os discursos da festa dialogam com esta imagem
negativa do índio "civilizado", e apresentam uma outra perspectiva. À exemplo, o pastor
não-indígena, em sua longa pregação, a resume. O “tempo do mato” e a inocência
natural foram destruídos. O contato trouxe a decadência com a civilização. A
subsistência tradicional com base nos frutos da natureza divina foi substituída pela
pobreza e a dependência do dinheiro. Porém, com a conversão, foi reinstaurado o
estado divino. O jovem professor, em sua homenagem aos Índios pacificadores, aos que
lutaram por seus direitos e para sua educação, orgulha-se da festa, afirmando que seus
antepassados, através de seus esforços possibilitaram os Xokleng tornarem-se
civilizados.
O passado, durante a festa, é reinventado através de uma imitação relativa aos
registros fotográficos que captaram a imagens dos Xokleng no início do século XX
(Santos 1997). A oca “típica” inacabada feita de pau-a-pique, de fato representa as que
foram introduzidas com a confinação dos Xokleng na TII e o fim da vida semi-nômade,
e não seus abrigos temporários no mato. As vestimentas e a semi-nudez dos Índios que
27
realizam os ritos, demonstram elementos que sugerem o estilo de se vestir e ornamentar
no passado, mas o uso da palha para cobrir partes do corpo, é uma inovação cuja
finalidade é produzir um estado de semi-nudez relativo a nudez evidenciada nas fotos. A
ação ritual também não representa os ritos completos do passado, mas sim reproduzem
fragmentos de processos rituais mais complexos, como observados durante a encenação
do ritual de alijamento e reagregação das viúvas. Também, o canto do ancião é realizado
por ele sozinho, sem o contexto do evento tradicional que trata de um “canto dialógico”
com seus ouvintes, geralmente composto por membros mais jovens de seu grupo
doméstico.
Os jogos também representavam habilidades do passado, mas não os
reproduzirem, salvo talvez o uso do arco grande na competição dos homens adultos. As
sarabatanas utilizadas são brinquedos, tanto quanto os arcos e flechas usados na
competição dos meninos. Os dois jogos que não aconteceram, porém anunciados no
cartaz, o cabo-de-guerra e a corrida de toro, não têm registros na literatura etnográfica
acerca do grupo. Porém, se tornaram símbolos famosos de jogos indígenas via a
divulgação dos mesmos no Xingu. Eles fazem parte, também, da recém criada
“olimpíadas indígenas”, evento de destaque nacional com a participação dos vários
povos indígenas do Brasil
Entre os eventos anunciados no cartaz, porém não realizados durante a festa,
encontra-se a trilha ecológica até a cachoeira da Volta Fria. Apesar da trilha
evidentemente não ter sido finalizada a tempo da festa, a intenção de ter tal trilha junto
ao Centro de Turismo e Lazer demonstra a consciência dos Xokleng para com a imagem
nacional e internacional do índio ecológico e a promoção de turismo sustentável e a
comercialização de objetos fabricados a partir da natureza (Conklin 1997; Conklin e
Graham 1995). Assim, a representação do mato como o lugar da autenticidade do índio
verdadeiro, a ligação da clareira no mato com as atividades de turismo e jogos e a
presença constante da venda dos colares, brincos e outros objetos artesanais fabricados a
partir dos produtos da natureza, (“da natureza divina” como disse o pastor) compõe,
parte integral dos objetivos comerciais da festa.
Se no passado, os Xokleng tentaram afirmar seus direitos sem chamar a atenção
das suas particularidades culturais, torna-se claro que durante a festa, que estão em
sintonia dialogal com os discursos da política que circula desde a década de 1980 nos
28
cenários tanto nacional quanto internacional, e que percebem as vantagens da identidade
indígena.
Comentários finais
Nas últimas décadas, o tema da performance da cultura tem se tornado um
importante tópico da etnologia (Ramos, 1987, 1995; Jackson 1991, 1995; Conklin 1997;
Conklin e Graham 1995; Turner 1991). Mais recente, Graham (2005) argumenta que
estas performances fazem parte da política identitária ou mesmo das políticas de
identidade.
Turner (1991) chama a atenção para o fato do crescimento da consciência do
poder da identidade indígena no Brasil já na última década do século vinte. Ramos
(1998) também tem discutido os vários aspectos atrelados à identidade indígena no
âmbito das políticas públicas, apesar deste segmento representar somente 2% da
população nacional. Conklin, e Graham (1995), dentre outros, têm argumentado que a
performance do índio autêntico na atualidade deve ser analisada como resultado da
colaboração de organizações não-governamentais (ONGs), em especial as estrangeiras,
para com as sociedades indígenas da Amazônia e do Brasil Central. Preocupações
ecológicas e a imagem de que “índios exóticos” são protetores naturais do meioambiente foram sobrepostos no imaginário ocidental, expressos em forma de um
esforço global para responder aos problemas ambientais atuais, assim como para
estimular a auto-sustentabilidade das populações nativas expostas à economia de
mercado capitalista.
Quanto à percepção positiva que a sociedade brasileira, em geral, tem sobre a
identidade indígena na atualidade, esta se deve ao crescimento e fortalecimento do
movimento indígena nos últimos trinta anos no Brasil, que por sua vez, consolidou-se
através de um conjunto de leis próprias a estas sociedades a partir da Constituição de
1988; que lhes garantiu o direito de expressarem livremente costumes e tradições
próprios, assim como organizarem-se sócio-politicamente de forma autônoma e escolher
livremente modelos econômicos que lhes garantam a sobrevivência física em suas
Terras.9
9
Para maiores detalhes vide Gersem Baniwa 2008.
29
Fora da região amazônica, comunidades indígenas do nordeste brasileiro
despontaram-se no cenário nacional nas últimas duas décadas. Comunidades
previamente consideradas parte indiferenciada da população denominada “cabocla” ou
“Tapuia” do nordeste, têm sido reconhecidas como providas de identidades indígenas
distintas e próprias, em um movimento denominado “etnogênesis” (cuja contrapartida
das próprias sociedades indígenas tornaram-se mister). Diante da falta de um idioma ou
outras práticas que os distingam de vizinhos não-indígenas, o ritual denominado “toré”
e sua performance tornaram-se características diacríticas de autoridade e representação
de identidade tribal no nordeste (Grunewald 2005; Oliveira 1999; Viegas 2001).
As sociedades indígenas do sul do país também têm se beneficiado e ativamente
respondido a crescente importância da identidade indígena, assim como das políticas
públicas de inclusão cultural. Programas de saúde e educação voltados para as
populações autóctones da região sul têm recebido financiamentos públicos crescentes na
última década. Programas promotores das ideologias de identidade étnica e participação
indígena na execução dos mesmos tem crescido circunstancialmente. Ademais, observase a colaboração de ONGs em programas de promoção de saúde, educação e
desenvolvimento econômico nas TIs, apesar destas parcerias darem-se mais em nível
nacional com recursos públicos ou através de atividades de pesquisa e extensão de
universidades da região.
Algumas razões podem explicar esta característica. São estas: o fato dos índios
do sul não estarem incluídos no imaginário ocidental de exotismo como alguns grupos
indígenas da Amazônia e do Xingu o são, assim como localizarem-se em áreas urbanas,
em áreas com o meio ambiente muito degradado, e/ou por estarem em regiões cujas
riquezas naturais já se encontrarem profundamente dilapidadas, e finalmente, por terem
sido ofuscadas pelo conceito da aculturação, amplamente difundido entre as sociedades
brasileira e internacionais como um todo.10
É neste contexto que realizamos o filme da Festa dos Xokleng e analisamos a
expressão de identidade através dos aspectos discursivos e estéticas das performances
manifestado ao longo do evento. Longe da região amazônica e seu imaginário, os índios
do sul estão manifestando a consciência do valor da imagem do índio autêntico nas
10
Recentemente os Kaingang da Terra Indígena Xapecó fundaram um Organização não Governamental
para gerir os recursos provenientes do Governo Federal destinados à Saúde Indígena, fato que pode ser o
prenuncio de mais organizações administradas pelos indígenas no sul do Brasil
30
políticas de identidade e expressando uma redefinição do poder e visibilidade destas
sociedades à luz das ideologias dominantes no cenário indigenista atual, talvez novas
reetinizações (Baniwa 2008) estejam a caminho dos índios do sul.
Tentamos interpretar e projetar, através do filme que produzimos em 2004 e a
análise apresentada aqui, a visão de identidade Lakãnõ que emergiu das performances
da festa, ou seja, uma visão favorável ao índio puro, que vivia junto à natureza, tido
como seu principal guardião, mesmo que esta tenha traços de recriação e incorporação
de elementos e materiais exógenos ao seu passado material e imaterial (como a “oca”
dentre outros), ou que elas se dêem em um ambiente físico degradado – como é o caso
da TII inundada por um lago de contenção provocado pela construção da barragem, sem
florestas nativas e devastadas a partir dos anos 80. Ademais, a “autenticidade indígena”,
aos olhos dos Laklãnõ, perpassa o campo cultural-religioso, onde os índios puros são os
pentecostais, evidenciando desta forma, que os projetos globais de autenticidade são, em
ultima instância, subjacentes ao crivo da autenticidade e legitimidade locais.
Apos da conclusão do filme em 2004, fornecemos cópias em vídeo para todos as
escolas na TI e para alguns lideranças da aldeia que organizou a festa. O filme teve
pouca divulgação por nos em festivais etnográficas, mas em 2009 resolvemos incluir-lo
como parte de uma mostra de arte indígena apoiada pelo Instituto Nacional de Pesquisa:
Brasil Plural da UFSC e a Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC) em
Florianopolis. A divulgação do evento chegou até os Xokleng, e na noite da mostra, um
grupo de 10 índios, incluindo adultos e crianças, chegaram da Aldeia Figueira. Apos da
apresentação do filme, o grupo se junto na frente do auditório para falar sobre sua
situação atual e seus desejos de retomar o projeto de artesanato frente os atuais
problemas financeiras que enfrentam. Foi através desta apresentação que descobrimos
que o filme continua sendo, dentro da Aldeia, uma expressão positiva de como eles
querem ser vistas por pessoas fora da comunidade. Para nós, foi gratificante que
conseguimos captar a auto-imagem que os índios queriam expressar através das
performances de identidade na sua festa em 2003.
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Recriações históricas em Portugal: um modelo performativo
mainstream, Paulo Raposo (CRIA – ISCTE/IUL)
Aqueles que controlam o presente controlam o passado,
e aqueles que controlam o passado controlam o futuro
George Orwell in 1984
Os encontros e desencontros entre arte e ciência fazem parte da história e não
são um mero fenómeno contemporâneo. A noção positivista de que a ciência é
absolutamente objectiva sugerida pela obsessiva procura de provas e pelo
estabelecimento de leis gerais para explicar a realidade, enquanto a arte seria decorrente
da experiência inter-subjectiva dos seus criadores numa relação sensorial com o real,
tem sido amplamente questionada, nomeadamente desde meados do século XX. Ao
compreender o artista como construtor de conhecimento e o cientista como um criador,
muitos paradigmas e, sobretudo, muitos preconceitos, têm sido derrubados. Porventura
o que há de comum entre o artista e o cientista são as, ainda que distintas, modalidades
de criatividade, as motivações intrinsecas e a intencionalidade de produzir um tipo de
conhecimento sobre a realidade, explorada e experimentada através dos seus talentos e
capacidades particulares. E não estamos aqui a evocar listagens de cientistas que se
dedicaram de um modo ou outro a actividades artísticas ou a fruições estéticas, ou a
sumarizar as aproximações que artistas fizeram ao mundo da ciência, mas a confrontar
processos de criatividade similar que nos permitem dizer que o modo como um cientista
desenvolve uma teoria ou desenha uma experiência não se distancia definitivamente do
modo como um artista produz uma pintura ou concebe uma escultura.
Alguns epistemólogos, como Eugene Garfield, sugeriram mesmo que artistas e
cientistas partilham de algum modo um sensibilidade estética nas suas actividades ainda
que os parâmetros de definição de “belo” possam ser francamente distintos. Acresce
ainda que, de um modo geral, artistas e centistas parecem partilhar uma espécie de
desejo súbtil de procura de prazer e bem-estar para a Humanidade, mas poderíamos
acrescentar que outra das encruzilhadas onde artistas e cientistas se têm cruzado é a da
crítica social, da reflexividade implicada sobre o mundo e as mundivisões. A
antropologia da performance, nas suas múltiplas variações e abordagens, é seguramente
uma dessas encruzilhadas.
35
A relação da antropologia com as chamadas artes performativas é algo que me
fascina desde há muito tempo. Quer pelo meu já antigo gosto e entrega a essa forma
artistica, quer pelo interesse que me levou a estudar vários tipos de performances
culturais onde a teatralidade era uma constante muito evidente. Essa interconexão entre
teatro e antropologia é todavia uma relação que tem já uma substancial história na teoria
social.
A arte permite muitas vezes a exposição da realidade no limite do possível, do
dizível e do representável. A arte possibilita, entre outras coisas, a ilusão, o abismo, a
desconstrução social e moral dos sujeitos retratados, intromete-se na cenografia e na
maquilhagem do real. A ciência, talvez mais arrumada e eventualmente menos ousada,
imagina-se como eticamente responsável nessa intromissão com o real. A ciência
contemporânea reclama por princípios éticos elásticos para interpretar o real, mesmo
que afinal apenas o recrie numa expressão possível e tanto quanto possível plausível.
Etnografar – aquilo que fazem os antropólogos e sobretudo depois da crítica
reflexiva da disciplina após Writing Culture de Marcus e Clifford – etnografar, dizia,
para além de ser uma experiência vivida pelo antropólogo, é também uma expressão,
uma revelação de experiências vividas, ou seja em certo sentido, uma lupa, um
altifalante, um pedestal. Muitos etnógrafos sentem-se por isso mesmo compelidos a
discutir os efeitos do uso do seu conhecimento, os movimentos de vai-e-vem entre a
produção de saber e o consumo reapropriado desses saberes, e fazem fervilhar debates
acerca de uma certa ética possível, uma ética do compromisso entre agentes
interactuantes (antropólogo e os seus “nativos”).
Curiosamente também, algumas experiências artísticas contemporâneas têm
incorporado a etnografia como forma de equacionar e de explorar a criação da obra de
arte e as suas implicações com contextos da realidade social em que se desenvolvem,
como se reporta George Marcus (2004) num texto sobre intercâmbios entre arte e
antropologia. Nestor Garcia Canclini (2007) refere-se aos trabalhos de vários artistas
mexicanos no famoso programa de arte urbana InSite em Tijuana (México), realizado
em 1997, para falar de movimentos expressivos marcados por uma permeabilidade
transnacional onde se faz recurso a presenças demoradas dos artistas na cidade com
vista a uma espécie de preparação “etnográfica” da criação artística. Este é apenas um
dos exemplos onde arte e antropologia se têm vindo a entreolhar.
36
Na verdade, as fronteiras destas linguagens não são intocáveis ou intangíveis. As
ciências sociais, e a antropologia em particular têm produzido ligações instáveis mas
fervilhantes com os discursos artísticos. George Gurvitch ou Erving Goffman já haviam
nos anos 1950-60 enunciado os princípios do chamado modelo dramaturgico da vida
social. Sublinhavam, que aparentemente tudo o que fazemos nas nossas vidas seria
legível pela linguagem teatral; e que a vida social seria aliás a expressão de uma
linguagem teatral particular.
Por outro lado, o poder das palavras e das narrativas enquanto experiência
performativa foi também explicitado sobretudo depois do trabalho de John Austin.
Contar estórias ou narrar, bem como certos actos de fala, são não apenas actos de
mnésis, de evocação e actualização de significados, mas também de performance.
Um dos aspectos que queria aqui sublinhar prende-se com uma falsa distinção
que Austin abandona desde sempre – a separação absoluta entre real e ilusão ou ficção,
entre vida e representação – a que eu acrescentaria entre performance e teatralidade,
entre personae e actor. Em certa medida, Austin tinha já consciência que há
simultâneamente actos de fala que não fazem coisas, da mesma forma que há actos
performativos que não são meras ilusões de realidade para os seus actores, ou seja, onde
o modelo de actuação “as if” por vezes torna esses “não-actos reais” (actos teatrais), de
facto numa coisa realmente executada em palco. De alguma maneira, foi isso que
impulsionou o movimento artístico da Performance art na década de 1970 a tentar um
radicalismo expressivo que aproximasse o actor/performer do sujeito/personae.
James Loxley (2007), a partir deste posicionamento evoca alguns exemplos onde
ilusão e realidade se fundem: os actores em cena choram de facto lágrimas reais; em
filmes como Nine Songs de Michael Winterbottom existe o que se pode chamar cenas
de sexo explicitas; no contexto já da performance art tudo se torna mais explicito como
nos exemplos de Franko B que sangra realmente como parte fundamental das
performances ou de Ron Atchey que se corta e se pendura por piercings num sistema
complexo de alavancas; ou na famosa performance de Annie Sprinkle “Post Porn
Modernist” que teve como núcleo central a masturbação da performer até ao orgasmo.
Assim, comportamentos de bastidores e fachada – para usar expressões goffmanianas –
não podem ser diferenciados apenas por critérios de “realidade” ou de “ilusão”. Mas
também, performance e teatralidade, não podem ser assim reduzidas na fronteira entre
“reallly doing or being and not really doing or being” (Loxley 2007: 145).
37
No campo artístico ocidental, de novo, assistimos a todo um movimento de
deslocamento do que poderíamos chamar o foco na teatralidade para o foco na
performatividade se deu ao longo dos séculos XIX e XX até ao presente. No teatro
naturalista do final do século XIX, os actores esforçavam-se por fazer o melhor na cena
em ordem a criar a vida (no palco) de pessoas e ambientes reais ou de caracteristicas
psicológicas reconheciveis. O teatro realista e em particular o teatro épico de Brecht,
descontente com esta abordagem, forçava justamente a audiência a não se acomodar a
este modelo lifelike (igual à vida), tornando desconfortável o poder da ilusão teatral e
convidando os espectadores (e os próprios actores) a reflectirem criticamente sobre o
que viam. Samuel Beckett levou este desconforto aos seus limites, fragmentado em
puzzles de personagens, espaços e situações que rompiam com aquele modelo
naturalista e realista. Antonin Artaud procurou o mesmo efeito através do seu teatro da
crueldade, onde a violência e o caracter sacrificial dos actores colocavam a vida humana
posta em palco num tempo/espaço sagrado e ritualistico. A ideia de representação
(ilusão teatral) estaria aqui convocada a ser abolida e a vida de facto nascia e fluia
justamente através da performance. E creio que foi esta rejeição da ideia de trânsito
entre teatralidade e performatividade, que consagrou a performance art na deriva da
ilusão ou da imitação da vida e lhe deu origem a uma outra postura: a do carácter
eminentemente de vivência (liveness) e de realidade (realness) da performance ela
própria.
Neste sentido, por exemplo o teatro contemporâneo do suiço Stefan Kaegi11
membro do grupo Rimini Protokoll, com base na exploração estética de narrativas de
vidas pessoais e no uso de não-actores ou do que chama especialistas da vida
quotidiana, exorbita esta concepção até ao seu limite máximo. Este teatro quasidocumental é ele mesmo uma experiência vivida absolutamente performativa, uma vez
que completa, realiza, exprime experiências vividas pelos performers/sujeitos
historicamente situados num palco e em telas. Mas talvez seja algo mais ainda, uma vez
que as duplica no acto performativo para os sujeitos que a performam/exprimem, e em
certo sentido, para a audiência que se sente a participar também de uma experiência
vivida tornada performance.
11
Os melhores exemplos deste modelo teatral talvez sejam os espectáculos “Mnemopark, “Chácara
Paraíso” ou “Cargo Sofia”.
38
Um outro exemplo é o das experiências performativas do LaPocha Nostra de
Guillermo Gómez-Peña onde se acentua a diluição das fronteiras entre realidade e
ilusão, entre vida e performance. Todo o seu trabalho se articula em função da
decomposição e reorganização da ideia de fronteira identitária e artística, resultando
numa linguagem estética caracterizada por jogos irónicos, contextos ritualistas
produtores de hibridismos a vários níveis: misturando elementos iconográficos da
cultura mexicana com a americana (personas etno-cyborgs), de religiões e folklore, de
géneros e sexos, criando um dialecto ou uma síntese intercultural improvável, ao fundir
palavras espanholas com inglesas (o spanglish). Nestas performances do La Pocha
Nostra, finalmente, é crucial a relação entre cena e público: também aí a tradicional
fronteira entre ambos se dilui em formas de participação e colocação no espaço,
reunindo espectadores e artistas numa comunidade efémera. A noção de fronteira porosa
é pois também a base para a diluição em cena – onde quer que isso ocorra (museu, rua,
espaço fechado) – da relação entre real e ilusório, o que reforça um fluxo instável e
permanente entre sujeito/performer/personagem – ou na expressão de Richard
Schechner not not me.
Foi, curiosamente, a partir de um conceito do filósofo alemão, Wilhelm Dilthey
(1833-1911) – erlebniss (experiência vivida) – que foram desenvolvidas nas ciências
sociais por autores como Victor Turner e Edward Bruner articulações semelhantes entre
realidade experimentada e expressão dessa realidade. Performance refere-se,
justamente, ao momento da expressão. A performance completaria inteiramente assim
uma experiência vivida (cf. Turner 1982:13-14).
Surge ainda a ideia de que a antropologia da performance poderia justamente
estudar uma espécie de “contrateatro” ou “metateatro” (como prefere John Dawsey para
o exemplo dos Bóias-frias) da vida quotidiana, ou seja compreender a vida social a
partir de momentos extraordinários de suspensão liminar dos papeis sociais – nos
rituais, nas performances, nos eventos. E foi sobretudo com a pesquisa de Richard
Schechner, combinando o seu trabalho de director do The Performance Group, a partir
dos anos 1960 com a sua reflexão antropológica na Tisch School de Nova Iorque, que
se ampliou definitvamente a noção de performance a um espectro maior de actividades
humanas – broad spectrum approach como sugere Barbara Kirshenblatt-Gimblett
(2002).
39
Mas mesmo quando Richard Schechner se dedicava ao estudo ou a produção de
performances artísticas, performance entendida assim incluia não apenas o que se
passava entre cortinas de um palco, ou entre blackouts, mas também todas as
interacções e o trabalho preparatório entre o espaço dos espectadores e o da
performance; bem como, tudo o que acontece ali até que o último espectador saia do
espaço da performance – nalguns casos, Schechner explorou esta relação deixando
performers no espaço mantendo contacto com a audiência após a performance
propriamente dita ou num intervalo. Neste sentido, o espaço de palco parece não conter
toda a performance e por conseguinte não existe uma segura distinção entre o que
poderemos designar teatro e vida, entre performance em palco e realidade que subjaz
para lá dele.
Também assim, o corpo do performer não fica mais confinado, na performance
art, a espaços convencionais nem a tipos de representação especificos e distantes
daqueles que são os espaços e os corpos do quotidiano. Como diz a performer Orlan na
sua concepção de “carnal art” – sustentada no principio de aproximação do corpo
interior ao corpo exterior através do recurso à cirurgia plástica – o corpo da performer
torna-se o local de incarnação das ideias e um lugar de debate público. A performance,
neste percurso, acaba por se definir como uma espécie de anti-teatralidade, por uma
exibição da vida em acção ou pela expressão de acções ou tarefas executadas num aqui
e agora, efémero, irrepetível e excessivamente significante e reflexivo. No caso de
Orlan esse percurso é sustentado num limite de aproximações conceptuais: a
performance e a vida subrepõem-se, o acto privado torna-se transparente e desenvolvese como um evento público – de que o caso da performance Images, New Images and
The Reincarnation of Saint-ORLAN baseada no visionamento e filmagem de 9 cirurgias
plásticas a que se submeteu, é o apíce dessa concepção.
A esta altura do argumento seria todavia razoável pontuar que, tal como a
performer e curadora Coco Fusco (2005) sugere, existe uma qualquer diferença de
forma e de propósito entre artistas fazendo performances e performatividade nãoartística. Todavia, o modelo performático artístico desenvolve-se num medium que tem
muito de qualidade emocional porque acontece no presente enquanto uma experiência
directa de realidade, de vivência. Coco Fusco e outros performers muito frequentemente
partem do que se poderia chamar modos vernaculares de performatividade exteriores ao
contexto artístico e por isso muitas performances “soam a realidade” e “revelam vida” e
40
também talvez por isso o imenso e intenso enfoque da performance art na corporalidade
ou no histrionismo autobiográfico.
Todavia, como referi, o reclamado enfoque da performance art na contingência
da sua temporalidade, da sua perecibilidade, enquanto efémera experiência num “aqui e
agora” como produto de presença e acção humana, não esgota em meu entender a sua
dimensão de acção restaurada – para usar um vocabulário a todos reconhecivel – ou de
recriação (reenactment) – para sublinhar um conceito e uma modalidade que pretendo
explorar adiante.
É portanto a partir desta arqueologia da performance e da teatralidade – tomadas
aqui como um continuum intercomutável - que queria explorar uma vertente conceptual
a partir de um contexto performativo por mim estudado: as modalidades performáticas
que se encontram contemporaneamente nas chamadas recriações históricas em Portugal.
A ideia de partida que queria explicitar de novo é a de que as performances
culturais (mas claramente também as artísticas) são processos históricos situados e não
meros eventos efémeros in actu e in situ que se esgotam na performance propriamente
dita. E ainda que esse efeito de situacionalidade histórica processual tem implicações
nos modos performáticos (performance e também teatralidade) que assim se
transformam e se reconfiguram mas também se interconectam ao longo desse percurso.
Philip Auslender (2006) a propósito da relação entre performance art e os
registos documentais que se produziram sobre as suas experiências clarifica alguns
aspectos desta questão. Nesse sentido, propõe uma conceptualização de documento
performativo em duas categorias distintas: o documental (documentary) e o teatral
(theatrical). A primeira consiste no modo tradicional de documentação e registo que
sobre as performances se foram realizando concebidos como provas de que o aqui e
agora desses eventos realmente aconteceram – frequentemente através registros
fotográficos, audio e vídeográficos.
Trata-se de um efeito de realidade, uma
representação que pretende apresentar as performances como peças do mundo real,
inclusivamente como seus substitutos. Auslender acrescenta que uma parte substancial
dos eventos performativos dos anos 1960-70 foram efectivamente documentados e
algumas dessas documentações têm servido para recriar – e quero pontuar esta
dimensão – novas performances. Marina Abramovic em Seven Single Pieces (exibido
na Performa 2005 em Nova Iorque com curadoria de RoseLee) utilizou justamente
relatos de espectadores e imagens fotográficas de várias performances que ocorreram
41
nos anos 60 e 70 e que ela nunca havia preenciado, para as recriar. Na verdade, desde
os anos 80 que Abramovic reperforma ou recria as suas próprias performances, sendo
Bioghrapic Remix (2005) uma performance multimídia que reorganiza e reconstrói a
sua obra. Auslender define esta relação definitivamente presente nas performances
contemporâneas como uma relação mutuamente dependente entre vivência (liveness) e
mediatização.
A segunda categoria de documento performativo na acepção de Auslender é a de
documento teatral que inclui a chamada fotografia performada ou a performance
filmada. Ou seja, performances que foram feitas apenas para serem fotografas ou
filmadas. O caso mais notório é o célebre Salto no Vazio de Yves Klein (1962) – uma
imagem que nos recorda e recria um evento que na verdade nunca teve lugar daquela
forma senão na fotografia (Yves Klein saltou repetidas vezes até obter a expressão
facial e corporal que desejava e tinha uma rede que o protegia de cair literalmente no
chão). Trata-se aqui de uma encenação e de uma montagem realizada através do suporte
documental, daí a designação sugerida de teatral – ilusória, encenada.
O que pretendo sublinhar aqui é precisamente a ideia da interferência histórica,
processual, documental e de recriação que afinal também se encontra presente nas
acções da performance art, ainda que produzidas num aqui e agora contingente. Se
transpusermos esta leitura para o caso das expressões culturais de carácter performativo
como penso ser o caso das recriações históricas, acredito podermos ampliar o diálogo
entre antropologia e arte. Neste sentido, entendo as recriações históricas como eventos
performativos que todavia circulam num contiunuum entre performance e teatralidade,
como adiante explicitarei.
A recriação histórica emerge na Europa novecentista como fenómeno de
inspiração romântica e articulada a outro tipo de comemorações de intenções
celebrativas e pedagógicas. Nos EUA, encontramos este fenómeno associado a
experiências históricas especiais realizadas em museus, mas também ligado a outro tipo
de eventos comemorativos. Richard Handler e Eric Gable (1997), foram pioneiros na
abordagem desse fenómeno no Museu Colonial Williamsburg no Estado da Virginia ou
em recriações de eventos, nomeadamente batalhas que se seleccionaram como marco
histórico relevante para a identidade nacional ou regional. Mas tem sido na GB que o
movimento de reciração histórica mais dinamismo revela com várias modalidades se
apresentam desde as recriações da vida em castelos e casas de nobres, a batalhas e
42
eventos históricos, às animações de museus ou de lugares (cidades, bairros, etc…) de
que o projecto recente de Tony Jackson (Performance, Learning & Heritage) 12 procura
dar conta num acervo virtual impressionante. Na década de 1970 tinha já surgido um
enorme esforço de divulgação do conceito “living history” em Universidades e
organismos académicos13 o que deu origem a um grande movimento de uso de técnicas
teatrais de recriação e reconstituição histórica.
A recriação histórica surge claramente articulada com um tipo de ansiedade
comemorativa dos estados-nação modernos. Uma espécie de apetite memorialista e
patrimonializador que apela a um sentido de pertença colectiva, frequentemente
hegemónico. Seria interessante pensar porque no Brasil este tipo de eventos não têm
emergido, e talvez, a dimensão de sociedade pós-colonial possa aí explicar alguma
coisa. Como me dizia a minha colega e amiga Léa Perez da UFMG: talvez uma
memória histórica ou, se preferirmos, uma história de longue-durée no Brasil de nome
próprio ser muito recente ou estar associada ao passado colonial protuguês, explique
esta ausência de recriações históricas. O que é o passado para o Brasil? Qual Brasil? Até
onde ela pode recuar? Quem o definiu e define? E quem sabe sejam as festas
tradicionais – com o seu hibridismo cultural ou a presença retórica do mito lusotropicalista – o lugar previligiado para a celebração da tradição e para a sua invenção e
recriação na contemporaneidade. Porventura, assim se expliquem os fenómenos de
turistificação de festas tradicionais e de espectacularização de rituais e práticas
religiosas.
Jonathan Boyarin (1994) sublinha que uma, senão a principal, característica da
memória é a sua dimensão política, i.e., a memória enquanto retórica sobre um dado
passado é mobilizada por motivações políticas. Acrescenta ainda que mapear o tempo
da Nação implica pensar hegelianamente que a identificação histórica reclama uma
identificação nacional. Viver historicamente supõe a criação da consciência nacional e,
inversamente, a elaboração da “Nação” é necessariamente histórica.
Na verdade, Boyarin, procura reajustar esta dimensão temporal a uma dinâmica
interacção espacio-temporal, e por isso refere que a criação de identidades nacionais
tem claramente que ver com a articulação entre origens temporais e fronteiras espaciais
12
Veja-se o site do projecto em http://www.plh.manchester.ac.uk/
Redsell, Patrick e Fairclough, Jonh, (1985), LivingHistory – A Guide to Reconstruting the Past with
Children, Published by Historic Buildings and Monuments Comission for England.
13
43
com vista à legitimação por parte do
Estado do monopólio do seu controlo
administrativo. Pierre Nora (1989) procurou documentar a ideia patrimonial da
“Francisidade” não apenas em monumentos históricos mas em lugares materiais que
dão forma a essa ideia, na mesma linha que havia já sido percorrida por David
Lowentall (1984) para falar do passado através de metáforas territoriais e nacionais – o
sentido de pertença é alimentado na medida em que floresce no fértil solo do passado.
Todavia, esta concentração em modelos de consenso e partilha da memória
histórica hegemónica, de algum modo inviabiliza a criação de lugares de memória,
monumentos até, que contestam o poder da Nação ou do Estado – Michael Taussig
(1990 apud Boyarin 1994) por exemplo sugere isso mesmo para o caso da Plaza de
Mayo e da manifestação das Madres de Argentina concebendo essas mulheres como
memoriais vivos dos seus filhos “desaparecidos” postos em acção numa contestação
efémera (uma manifestação). Deste modo podemos também pensar em memórias
incorporadas (embodied memory) ou corporalizadas. De novo, Boyarin (1994) sugere
que nos movemos enquanto corpos “através do tempo” mas também “através do
espaço” e que este movimento não é separado em sequências temporais por um lado e
espaciais por outro. Assim, a memória não pode ser literalmente colectiva, uma vez que
não é supra-orgânica mas incorporada, nem todavia literalmente individual uma vez que
a sua intersubjectividade simbólica se articula com “colectivos”. Ela constitui-se nessa
dinâmica escolha e selecção de memórias que visa articuladamente constituir a
“pertença” (membership) a grupos e a “identidade” individual (self).
Por outro lado, lugares com história que envolvem narrativas (temporais) reais,
ficcionais ou míticas, os storyscapes na definição de Athinodoros Chronis (2005),
emergem frequentemente como lugares onde significados relevantes são gerados por
dinâmicas narrativas e performances, num coerente sistema de interpretações.
Storyscapes são ambientes comerciais onde narratives são negociadas, formatadas e
transformadas através da interação entre produtores e consumidores, como sublinha
Chronis (2005).
Esse processo está claramente plasmado nas diversas modalidades de recriação
histórica. A dimensão narrativa destas manifestações, naquilo a que diz respeito aos
modos de pensar o passado, não é todavia fixa e imutável. Ela beneficia dos contributos
diversificados, e até paradoxais, de produtores e de consumidores deste tipo de eventos.
Digamos que durante a experiência vivencial que os visitantes (e até mesmo os
44
participantes directos, os re-enactors) constantemente preenchem vazios narrativos ou
recontextualizam eventos em termos da sua própria experiência e da propulsão
imaginativa.
Assim, recriações históricas do passado não são um produto cultural
unilateralmente produzido num dado momento e depois dado a fruir por visitantes
passivos ou performers agrilhoados a um guião cénico. Estes eventos são pelo contrário
muito porosos a ruídos, a transformações e a releituras introduzidas pela fluidez da
experiência performativa. Criatividade articula-se nestes eventos com fixação de uma
forma muito especial. Mas em termos que importa aqui explicitar.
Se por um lado, as recriações históricas enquanto modalidades de fixação de
narrativas sobre o passado (ou melhor, sobre modos de recriar o passado) são altamente
permeáveis à modelização, higienização e ideologização por parte da acção dos seus
produtores culturais (que podem ser intelectuais orgânicos, grupos e associações
culturais e artísticas, agentes turísticos, média ou os poderes municipal, regional ou
nacional, entre outros), por outro são altamente susceptíveis de serem interrompidos
pela fruição quase caótica, efémera, performativa e vivencial do evento. E nesse sentido
recriação é claramente performativa. Reminiscência é uma performance da lembrança
como sugere Laurajane Smith (2006) que é sustentada por uma fruição emocional e de
memória numa experiência física concreta. A recriação histórica constróie-se então por
uma mecânica comunictaiva onde a performance do património (heritage) se constitui
em mensagens e sentidos do passado transmitidos e criados para e pelos seus
participantes – re-enactors, visitantes e produtores. Usando uma tipologia de
Abercrombie e Longhurst (1998), Laurajane Smith sugere que os visitantes das
rcriações históricas e dos lugares de património podem ser vistos como uma “audiência
difusa” (diffused audience), ou seja, uma audiência não passiva nem neutral, tomada
apenas numa relação produtor/consumidor, mas pelo contrário, uma audiência que
também cria declarações incorporadas e activas de identidade e de construção da
memória, fazendo coincidir em certos momentos performers e audiência.
A Recriação Histórica tem a sua história com algumas variações de país para
país. Em Portugal, nasceu sobretudo com o Romantismo do século XIX e como um
enfoque de “lugar de memória da Nação”. São exemplos as comemorações como o
Centenário da Morte de Luís de Camões, tendo continuado com esse cunho
comemorativista de uma certa “Portugalidade”, nas efemérides do Duplo Centenário de
45
1940 (1140 – fundação e 1640 – restauração) em pleno Estado Novo, e, finalmente, em
pleno período democrático a Exposição Mundial de Lisboa 1998 com claras referências
às viagens dos navegadores portugueses. Assim, em três etapas modernas da retórica
nacionalista, encontramos a presença de recriações históricas construídas enquanto
cerimónias comemorativas, para usar uma expressão de Paul Connerton (1989), seja no
período de re-fundação romântica e republicano, seja no quadro da ditadura salazarista
ou finalmente no contexto do Portugal europeu e democrático. Todavia, a sua presença
é circunstancial e pontual, afirmando-se na contemporaneidade toda uma gama de
eventos de recriação histórica que combinam memorialismo a entertenimento.
Com o impulso que o último surto comemorativista lançou em Portugal, em
particular entre professores de História do Ensino Secundário, consolidou-se um
fenómeno de natureza particular, dada a sua suposta valência pedagógica, mas que
facilmente ultrapassou e escapou aos muros da Escola, abrangendo audiências muito
mais amplas: comunitárias, turísticas, mediáticas.
De acordo com um dos grupos que produzem Recriações Históricas há mais
tempo em Portugal (A Companhia Vivarte), calcula-se que só em 2003, por exemplo, se
tenham realizado em Portugal mais de 30 Feiras Medievais e Quinhentistas de média ou
grande dimensão, e pelo menos outras tantas recriações de outras épocas históricas. A
sua natureza é diversificada. Umas têm origens em escolas, outras são iniciativas
autárquicas, umas contam com o empenho e participação das mais diversas
colectividades locais, outras são contratualizadas com empresas ou associações culturais
e artísticas. Alguns desses eventos estão firmemente implantadas, e assumem hoje, do
ponto vista local, níveis de emblematização muito evidentes: a Feira Medieval de
Coimbra, a Viagem Medieval de Santa Maria da Feira (enraizada nas colectividades
locais e no poder municipal), os Dias Medievais de Castro Marim ou o Mercado
Medieval de Óbidos, procuram ser das principais referências do turismo histórico
português.
Em Portugal, a Feira Medieval tem sido a performance do passado por
excelência que desde meados da década de 90 emergiu, multiplicando-se
exponencialmente nesta última década. Uma das razões desta singularidade medieval e
renascentista parece estar intimamente ligada ao contexto fundacional português e ao
renascimento luso evocado pela Expansão Marítima. Trata-se assim claramente de uma
46
memória amplamente centrada num passado “colectivo” que evoca e convoca o espírito
da Nação.
Laurajane Smith (2006) afirma que o mais óbvio sentido da performance do
património tem sido efectivamente o da comemoração, variando desde os ritos nacionais
a modalidades mais singulares, mas em todas elas procurando engendrar fortes
sentimentos de identidade e memoriais que podems ser por um lado cultivados e
transmitidos para as novas gerações, ou por outro, contestados e refeitos. O caso das
recriações históricas parece ser o caso de uma performance na qual os participantes
assumem abertas negociações acerca do sentido do passado e do presente.
Num salto histórico absurdo, mas justificado por óbvias limitações expositivas,
centremo-nos agora na contemporaneidade. Em Portugal, foi preciso esperar pelo
impulso do projecto britânico do “Living History” e da Associação Portuguesa de
Museologia (APOM), que em 1986 decide convidar especialistas internacionais e
realizar na cidade de Faro um Colóquio sobre História ao Vivo articulando-o com o
ensino da História nas escolas e sugerindo o contributo das municipalidades para
promoveram e apoiarem este projecto. Outro colóquio se lhe seguiu em 1987 e uma
série de publicações sobre o tema em forma de catálogo de propostas de realização de
eventos – “Nós, os Romanos” reconstruindo uma Villa romana; “Faro 1573” baseado na
visita de D. Sebastião àquela cidade; “Um ataque de corsários ao Funchal”; “Um dia de
1640”, recriando o ambiente restauracionista na cidade de Setúbal transportando alunos
e visitantes para um dia na história do país; entre outras. Escolas, Jardins-de-infância,
Municípios e alguns museus, realizaram entre 1986 e aproximadamente 1997 várias
iniciativas deste tipo, sempre subordinadas a este propósito. Em 1990, um grupo de
trabalho ligado às comemorações dos Descobrimentos do Ministério da Educação,
coordenado por Paula Bárcia reunirá e publicará um pequeno manual de apoio ao
professor para este tipo de eventos - Bárcia, Paula (1990), Manual de História ao Vivo,
Lisboa: Ministério da Educação, Grupo de Trabalho do Ministério de Educação para a
comemoração dos Descobrimentos. Mais recentemente, em Março de 2000, no 1º
Encontro Internacional de Sociedades de Recriação Histórica Medieval, a Ordem da
Cavalaria do Sagrado Portugal – uma ordem de cavalaria fundada em 1992 - recriou a
vida quotidiana de um Castelo, o de Terena.
É justamente a partir deste período que podemos dizer que se desenvolve uma
segunda fase da recriação e da reconstituição histórica em Portugal, agora levada a cabo
47
por especialistas, profissionais ou amadores, ligados a associações culturais, grupos de
teatro ou até mesmo a uma Ordem de Cavalaria. Todavia, as articulações com os
municípios, as escolas e outras instituições mantiveram-se, nalguns casos dando lugar a
protocolos de colaboração noutros à comercialização de espectáculos.
Em termos da acção do Estado, verificamos que o Plano Estratégico Nacional
para o Turismo (2007), enquanto linha de orientação política para a área do turismo
patrimonial, sublinha diversos aspectos que reorientam a produção deste tipo de
eventos, alguns deles gostaria de destacar:
Melhorar o marketing da oferta museológica e monumental
O objectivo é transformar a visita numa experiência, tornando
o turista num elemento activo, devendo para isso integrar-se a
oferta – por exemplo, criar rotas temáticas – e apostar nos
museus que apresentem conteúdos distintivos – por exemplo,
museus do fado e do azulejo.
Promover elementos/manifestações da cultura portuguesa
como parte integrante de produtos turísticos.
Promover a vocação marítima de Portugal como elemento
cultural diferenciador.
Promover a criação de pacotes turísticos vocacionados para
eventos culturais específicos.
Realização de eventos ligados ao mar e à navegação.
Potenciais linhas de actuação
Adequar a oferta e actuação dos museus/monumentos a um
público internacional/turistas.
Transformar a visita numa experiência – turista como elemento
activo na visita.
Animação nos principais monumentos (ex.: representações
históricas nos castelos).
Criar rotas de monumentos relacionados (ex. rota da
arquitectura manuelina).
Apoiar a criação e desenvolvimento de conteúdos de museus
com potencial diferenciador.
Na verdade esta percepção mercantilizada da cultura e do património havia já
sido contemplada no web site da UNESCO onde encontramos uma curiosa leitura - 25
questions on culture, trade and globalization – do que poderá ser o equilíbrio instável
48
entre duas tendências de encarar o património – a mercadorização e patrimonialização
cultural:
Cultural industries add value to contents and generate values
for individuals and societies. They are knowledge and labourintensive, create employment and wealth, nurture creativity the "raw material" they are made from -, and foster innovation
in production and commercialisation processes. At the same
time, cultural industries are central in promoting and
maintaining cultural diversity and in ensuring democratic
access to culture. This twofold nature – both cultural and
economic – builds up a distinctive profile for cultural
industries.
No que concerne às recriações históricas, a questão agora coloca-se numa outra
vertente: empresas de eventos, grupos de teatro e até uma Ordem de Cavalaria entram
em cena para assumir a organização e concepção destas performances. A interpretação
das representações sociais que as comunidades fazem de si próprias, nomeadamente
através destas formas de revisitação patrimonialista ao passado que são as recriações
históricas torna-se absolutamente central.
A minha pesquisa tem vindo a ser realizada em duas instituições muito distintas,
com diferentes aproximações ao património e com concepções performativas
divergentes de (re)apresentar o passado. Por um lado, uma Ordem de Cavalaria, fundada
em 1992 com um propósito revivalista, heurístico e também ético, que promove
torneios de cavalaria, duelos, feiras medievais, desfiles e mostras de armas, recriações
de eventos, etc.; por outro lado, um grupo de teatro (Vivarte) que desenvolve estes
eventos performativos de recriação histórica com fins lúdicos, educativos e artísticos,
quase sempre em parcerias com outras entidades artístico-culturais (grupos de
acrobatas, músicos, domadores de animais, etc.). Obviamente, assistimos aqui também
ao desenvolvimento de diferentes modos de interactividade e impacto entre performers
e audiências e entre os performers entre si.
Pretendo entender os processos envolvidos na performance do património
cultural, concebidos que são como formas de (re)interpretação e recriação do passado, e
quais os limites e ambições heurísticos e educativos desses mesmos eventos
performativos, no que concerne às percepções da pertença, do passado e da identidade
cultural.
49
A discussão de Langellier (1983) acerca das alterações das percepções das
audiências teatrais tem sido evocada para falar das audiências de performances
culturais, nomeadamente as das recriações históricas:
O acto de ser audiência requer a combinação e recombinação
de tudo o que a audiência vê na sua viagem num esforço de
captar o texto. Perspectiva segue-se a perspectiva num
processo de continua modificação do texto, o qual transporta
memórias de lugares passados, assim como antecipa vistas,
visões… Em tempo algum estará o texto “todo” disponível
para os seus membros: a sua visão deslocada não esgota a
viagem total (Langellier 1983:38, trad. minha).
Poderíamos aplicar às audiências (turísticas) das recriações históricas a
abordagem de Langellier. No contexto do turismo de património tem havido muito
debate no que diz respeito à ideia de turistas enquanto performers, “em cena” em
espaços e “encenando” argumentos, através dos quais organizam e dão sentido ás suas
experiências e viagens. Turismo de Património neste sentido pode ser visto como algo
que onde o passado é posto em cena numa ampla negociação de sentidos e memórias,
como vimos atrás.
Contudo, existe uma outra forma de entender esta conexão entre turismo,
património e performance: e.g., entendo o turismo patrimonial ele próprio como uma
performance, uma reconstrução do passado, um trabalho que decorre de viagens
imaginárias e argumentos encenando uma identidade cultural construída frequentemente
por uma relação emocional e sensorial entre “hosts and guests” (anfitrião e convidado).
Edward Bruner afirma que “(…) o turismo internacional é um sistema de troca
em vastas proporções, caracterizado pela transferência de imagens, de signos,
símbolos, poder, dinheiro, bens, pessoas e serviços” (1996: 157) e acrescenta que a
sede dos turistas pelo exótico, o não poluído, o erótico ou os “bons e felizes selvagens”
é reconhecida pelas performances destes anfitriões que se apresentam assim, e ás suas
culturas, num enquadramento possível das imagens que os turistas deles fazem.
Finalmente, Bruner conclui que “o que a maioria dos nativos fazem neste situação é
colaborarem na co-produção turística” (Bruner 1996: 159).
Mas que dizer quando esta co-produção tem que ver com história ou passado e
com performances para recriar heranças patrimoniais e não tanto para apresentarem
50
autenticidades culturais vivas? E como podemos entender nesses eventos a linha de
fronteira entre passado e presente, anfitrião e convidado, nativo e turista, performer e
público? E finalmente, como podemos conceptualizar as recriações históricas, na sua
impressionante variedade de “produtos” (mercadorias turísticas quase sempre), como
um processo de imaginação cultural no que diz respeito à performance do património
cultural?
Emergem entretanto alguns projectos vanguardistas devotados à interface entre
experiências reais turísticas e as experiências cibernâuticas no campo das recriações
históricas. Imagined Places, por exemplo, é uma proposta desenvolvida por Greg
Roach
14
para criar recriações históricas interactivas e num ambiente de quiosque web
que permite uma participação histórica aos turistas que assim se tornam “turistas no
tempo” – navegando através de ambientes 3D que estão povoados por figuras históricas,
objectos e outros participantes modernos. Stonehenge, Luxor, Angkor Wat, Os Jardins
Suspensos da Babilónia, Petra, Delphi, entre outros, são alguns dos locais em
consideração para estes ambientes de ciber-turismo e recriação.
Todavia, procura-se aqui discutir como processos recriação histórica, concebidos
como formas de (re)interpretação e (re)criação do passado, são também assuntos de
natureza heurística e ética no que diz respeito à reinvenção do património cultural e
enquanto percepções de pertença e identidade cultural.
Especialistas recentes usam o termo – recriação histórica (em inglês, historical
15
re-enactment) – para incluir um largo espectro de coisas que vão da história viva em
museus (living history museums), reconstruções técnicas e brinquedos “nostálgicos”,
literatura, filmes e fotografias, jogos de vídeo, shows televisivos, paradas e cibernautas
devotados à recriação histórica.
O que estas formas partilham em comum é a
preocupação com a experiência pessoal, com as relações sociais e a vida quotidiana, e
com interpretações provisórias do passado. Podemos, por outras palavras, ver a
recriação como um dos indicadores do chamado desvio ou reposicionamento afectivo da
história (affective turn) (cf. Agnew 2007: 300).
14
Cf. "Imagined Places: Distributed Telepresence Installations for Immersive Historical Reconstructions"
was presented at UNESCO’s "World Heritage in the Digital Age" conference in Alexandria, Egypt, 21-23
October 2002, and is available online: <http://www.cultnat.org/download/PdfConf/gREGrOACH.pdf>.
15
Existe uma diferença entre recriação e reconstituição histórica que todos os agentes envolvidos e os especialistas
consensualmente distinguem. A recriação não tem propósitos de “mimetizar” ipsis verbis o passado; enquanto que a
reconstituição histórica assume claramente a ideia de”cópia” de situações historicamente passíveis de serem
repetidas.
51
Vanessa Agnew (2007) sublinha que é a combinação vitoriosa de jogo
imaginativo, auto-aperfeiçoamento e desafio, enriquecimento intelectual e sociabilidade
que facilita este booming de eventos de recriação histórica um pouco por todo o lado.
Entusiastas da História reúnem-se regularmente para viver acontecimentos do passado;
programas de televisão sobre história atingem altos níveis de audiências; museus
contratam performers para figurarem os mais diversos personagens históricos
(sobretudo no mundo anglo-saxónico), departamentos do Estado ou municipalidades
financiam performances locais sobre temas históricos, turistas culturais “seguem os
trilhos” de antigos viajantes, e até académicos arriscam na divulgação e popularização
da História.
De certa forma, o movimento de recriação histórica em Portugal concorre à
margem das organizações institucionais como sejam os museus ou os Departamentos do
Estado. Porém, até um certo nível, aquelas empresas, associações ou cooperativas
privadas concebem e realizam as actividades de recriação histórica através de contratos
e financiamentos com aquelas organizações.
Assim, estes grupos de recriação histórica investem na implementação e no uso
de práticas performativas, seja enquanto ferramenta interpretativa, seja enquanto
expressão lúdica e de entretenimento, com finalidades heurísticas para os visitantes dos
sítios históricos. Todavia, não estão dependentes (ou fazem por se afastar dessa ligação)
do controle efectivo pela administração e poder público, ou pelas delegações de turismo
e
municipalidades,
para
além
da
mencionada
comparticipação
financeira
(nomeadamente, no que diz respeito aos suportes promocionais e à prestação de
serviços de animação e recreio).
No contexto português, os projectos culturais do grupo teatral Vivarte
Ordem de Cavalaria do Sagrado Portugal
17
16
e da
adoptam o uso da performance com
16
Vivarte define-se no seu website – http://www.teatro-vivarte.org/ – como um grupo de teatro que se
criou a partir de um projecto de um grupo de teatro de uma escola secundária - Grupo de Teatro da Escola
Secundária de Oliveira do Bairro – fundado 1988 pelo seu actual director Mário da Costa. Desde 2000
adquiriu o estatuto de instituição de utilidade pública sem fins lucrativos. Vivarte & Companhias são
agora a rede formal de grupos de teatro, actores, músicos, bailarinos, artesãos, actors circenses,
cavaleiros, acrobatas e outros artistas com interesse comum na recriação histórica sob o enquadramento
dos conceitos de Teatro Vivo e História Viva.
17
Fundada em 1991, podemos ler no website – http://www.ocsp.pt/ – da Ordem da Cavalaria do Sagrado
Portugal que esta procura ser descendente directa das Ordens Medievais, quer no que se refere aos
princípios éticos, quer na prática das armas. A Ordem afirma a sacralidade de Portugal no seu profundo
legado o qual representa o primeiro e desejável dever de qualquer membro. A pertença é objecto de
aprovação e contém um processo de iniciação particular para os Cavaleiros que todavia não é pensado
52
finalidades de aprendizagem e entretenimento, mas talvez tenhamos de explorar mais
em detalhe as suas agendas ideológicas, éticas e heurísticas. Por outro lado, a
capacidade ficcional da performance permite sublinhar muitas narrativas que são
esquecidas, silenciadas ou omitidas, demonstrando assim o seu poder hegemónico na
fixação de um passado particular. De qualquer modo, estão ambas bem imbuídas do
espírito da definição da UNESCO a propósito das indústrias culturais. Mas existem
diferenças significativas entre ambas, e essas diferenças reflectem distintas
aproximações ao passado e discrepância nas concepções dos dispositivos performativos.
A memória (e a recriação histórica é uma experiência da memória) é também um
lugar de articulações de interesses públicos e privados, assim como de contraditórias
identidades. Sandra Bussata (2007) sublinha precisamente este carácter contraditório no
seu artigo sobre recriação histórica da batalha de Little Big Horn junto ao Monumento
Nacional que a celebra, levada a cabo em diferentes recriações históricas por
descendentes de índios americanos Crow e por re-criadores brancos.
As recriações históricas assumem papéis importantes ao nível da relação
património/território, e por isso mesmo a emergência e a efervescência de eventos desta
natureza tem vindo a ser promovida pelas municipalidades e pelo poder local e regional
(ou por “comunidades étnicas”, sobretudo nos EUA) numa evidente manifestação de
afirmação de narrativas identitárias e de singularidades culturais.
De qualquer forma, as suas agendas, embora não se conformem em absoluto ao
discurso oficial em matéria de Património porque contém elementos de entretenimento
manifestamente ficcionais, tendem todavia a expandir os sentidos decorrentes de um
ponto de vista hegemónico e de uma visão a-crítica do Património. Neste domínio são
evidentes os reforços narrativos de uma certa Portugalidade e de uma visão da história e
dos feitos locais de certos personagens, mas também uma leitura particular dos Outros
culturalmente adscritos (mouros, árabes, orientais, africanos) ou dos Outros
socialmente adscritos (prostitutas, marginais, mendigos, saltimbancos). Na verdade,
como rito exotérico ou religioso. Os cavaleiros da OCSP e alguns voluntários que a ela se juntam podem
levar a cabo algumas sequências performativas – batalhas, torneios, parada histórica animação histórica,
etc. Também são convidados outros performers para executarem sequências performativas específicas. É
uma instituição sem fins lucrativos, organizada em cooperativa, e é membro fundador da rede
internacional Inter-Medieval dedicada à recriação histórica e que anualmente promove uma conferencia
internacional em Portugal. Finalmente, a OSCP está internamente organizada em secções: militar, civil e
pesquisa.
53
estes outros surgem sempre recriados em lugares de limanaridade intensa entre o
“exotismo” do bom selvagem e o “barbarismo incivilizacional” condenado à derrota.
De algum modo, existem já eventos emblemáticos quer pela sua continuidade
temporal quer pela sua magnificência em termos de público que remetem para essa
construção de um passado diluído em cenografias, máquinas e efeitos de cena e
performances teatrais que tornam o passado um país estrangeiro e labiríntico. São os
casos da feira medieval de Óbidos, organizada sob responsabilidade da Vivarte e que
reúne milhares de pessoas num ambiente festivo durante mais de 1 semana numa
pequena vila próxima de Lisboa; ou a pioneira feira medieval de Santa Maria da Feira,
que hoje é organizada pela municipalidade e pelas sociedades recreativas e culturais do
concelho, envolvendo mais de 30.000 pessoas, ao longo de 10 dias em pleno Verão, e
dispondo já de um enorme parque comercial e de vários produtos oficiais de
merchandising.
A interacção com uma visão dominante e oficial do passado é de algum modo
inteligível quando a Vivarte – a companhia teatral – construiu uma imponente recriação
histórica, à escala portuguesa evidentemente, com cerca de 5000 visitantes na audiência
e mais de uma centena de recriadores (actores e animadores) numa pequena vila,
Alvalade do Sado, no Alentejo, para a comemoração dos seu foral – num modelo muito
semelhante ao da recriação “Dias Medievais de Castro Marim” no sul de Portugal.
Em Alvalade do Sado, fomos primeiro convidados a desfrutar de uma parada
(inventada) de “figuras medievais” (cujo espectro definicional oscilava entre adereços e
figurinos de uma medievalidade muito alargada e personagens próximos de um estilo
“gótico” e “neo-pagão”) e a observar a diversidade de status, desde o rei e a rainha até
aos pedintes e ás atracções circenses. Esta versão de parada reflecte uma ausência
completa da expressão da diferencialidade e do conflito. Todos os desfilantes surgem
aglomerados num imenso cortejo de consenso e placitude social e cultural.
Depois, teve lugar uma performance teatral reproduzindo o (inventado)
momento em que o rei de Portugal – D. Manuel – doou o foral ao nobre poder em
Alvalade, a Ordem de Cavalaria de Santiago da Espada, a 20 Setembro de 1510. E de
novo, a indiferenciação social e cultural reinou num cenário de aclamação memorialista
e manifestamente teatral.
Em todos os sentidos, esta feira medieval reafirma os indicadores de leitura de
Richard Handler & William Saxton (1988) para quem a «"Living history"tem sido
54
definida com a "simulação de vida em outro tempo"» (1988: 242). A autenticidade
requerida numa recriação histórica é quase dada como adquirida e pressupõe que exista
um isomorfismo entre o momento da performance e o período recriado. Por outras
palavras, um efeito presente na simulação; de facto, não apenas um tipo de
autenticidade é requerido quando se encenam ou põem em cena performances
históricas, mas tal como Handler & Saxton (1988) sublinham, uma outra autenticidade é
requerida para que se ponham indivíduos em contacto com mundos históricos “reais” e
com a sua identidade pessoal (self) “real”.
Quando cheguei a Alvalade do Sado, fui surpreendido pelo processo de
teatralização e transformação que estava a decorrer na paisagem urbana local. Existiam
como que dois territórios separados: o espaço performativo e o restante espaço urbano.
E estavam separados fisicamente por barreiras físicas (portas e muros de madeira,
correntes, bilheteiras), por pessoas (staff e porteiros), e por diversos dispositivos de cena
(velhas tecnologias como carroças e ferramentas, tendas, palha espalhada nas ruas,
bandeiras e outros sinais de rua, pequenos palcos, tendas e barracas de vendas, e outros
locais comerciais improvisados). Todo o lugar estava em processo de re-significação
dentro de um possível argumento e aguardando a chegada da multidão de performers e
de público para começar o espectáculo.
Num sentido completamente diferente, fiquei surpreendido pelo quase rude e,
até certo ponto, não-teatral sentido expressivo das recriações históricas postas em cena
pela Ordem de Cavalaria do Sagrado Portugal. Desde logo, uma ausência quase total
das grandes audiências e uma simplificação dos elementos espúrios em cena,
paralelamente com um clamor de autenticidade e de heurísticos propósitos. Os
objectivos de tais performances eram fundamentalmente os de produzir uma mais
precisa compreensão dos eventos históricos e das formas de apresentação militar e civil.
Depois, existia apenas uma frágil e dissoluta presença de prazer e de entretenimento no
decurso das recriações. A paisagem e os espaços urbanos ficavam quase intactos e
despojados de grandes adereços ou cenários, uma vez que não existia qualquer
necessidade de sublinhar cenografias do passado enquanto um pastiche para os olhos
dos turistas e para fruição das audiências. Finalmente, ocorria sempre uma espécie de
palestra final, levada a cabo por algum ou vários membros do grupo, para apresentar e
justificar o “trabalho” apresentado.
55
Em Inglaterra, quase 20.000 pessoas pertencem a sociedades de recriação
histórica. Decorrente de crescentes financiamentos e dividendos (com forte apoio
governamental sobretudo) muitos grupos de recriação histórica encorajaram a
emergência de toda uma mini-indústria de artesãos, que abastece os eventos de roupas
da época, armas, armaduras, cestarias, olarias, e outros adereços. Recorrentemente,
actores reputados de recriação histórica são frequentemente convidados para
participarem em filmes e programas televisivos. Inversamente, em Portugal existe uma
frágil presença do que poderíamos chamar uma organização central ou uma rede de
sociedades, empresas e associações que trabalhem sobre recriação histórica. E, no
entanto, largas centenas de eventos deste tipo emergem nos últimos anos com enorme
frequência – aqui importava iniciar uma avaliação estatística do fenómeno e detectar os
agentes e instituições envolvidos.
Espadas, machados e facas, arcos, flechas, escudos, armaduras, bandeiras e
pendões, roupas de época, calçado, tendas e outros adereços jogam um papel crucial nas
actividades destas organizações. Porém, para além das considerações de implícita
autenticidade nos propósitos da recriação histórica produzidos por Handler & Saxton
(1988), existe sempre uma espécie de amnésia parcial no que concerne a recriação do
passado. Sandra Bussata (2007) sublinha a subtil necessidade de remover do passado
toda a espécie de sujidade, porcaria, poluição e elementos perturbadores em paralelo
com um investimento num passado higiénico e asséptico. A figura do leproso, um
velho actor que assume este papel em múltiplas recriações, não é anunciada com sinais
sonoros e afastamento marginal, mas sim como uma figura vagamente lunáctica e
portador de prédicas apocalípticas que acabam por ser mais ridiculas do que
ameaçadoras.
Mais ainda, pequenas ou de grande escala, as recriações históricas, não apenas
simulam o passado, mas produzem um ponto de vista sobre ele: de facto, estamos a lidar
com fenómenos de objectificação do passado – nos termos definidos por Richard
Handler.
Obviamente, diferentes interactividades e impactes entre performers e
audiências (locais, escolares e turísticas) e entre performers é esperada. Recriação e
história viva oferecem aos participantes uma única chance de desfrutar a recriação de
eventos históricos no enquadramento de uma grande cena social, por vezes para
milhares de pessoas que assistem e participam nessas representações. Estas tornam-se
56
uma fascinante janela para o passado sob a forma de um grande entretenimento, mas
sobretudo como uma forma de esquecimento.
Em síntese, elas produzem o meio para um activo interface entre lúdico e
heurístico ou doutrinal. Lazer, turismo, e aprendizagem tornam-se palavras-chave
fundamentais na performance do património. E nesse sentido, as recriações históricas
são de algum modo performances que reverberam o ethos e as narrativas hegemónicas.
Um último elemento relativamente aos processos de reinvenção do património,
nomeadamente no que diz respeito ás percepções de pertença nacional e de identidade
cultural, deve ser sublinhado.
Deixem-me citar uma extraordinária reflexão feita por um membro de um grupo
de trabalho do Ministério da Educação em Portugal para as Celebrações das
Descobertas Portuguesas:
Entendemos que um projecto de "História ao Vivo" é uma
técnica eminentemente pedagógica, que ensina e responsabiliza
as crianças, os professores e a comunidade, criando-lhes o
gosto pelo passado, pela investigação e preservação desse
mesmo passado, que é da responsabilidade de todos.18
Complementarmente a este ponto de vista, permitam-me que cite um dos
membros da Ordem do Sagrado Portugal recolhida a partir do fórum online da
organização:
19
Eu penso que os grupos de recriação histórica são elementos
centrais na demanda do património. (…) e são suporte
estrutural para futuras políticas da cultura. (…) Devemos fazer
mais eventos de recriação no sentido de oferecer ao público a
relevância da revisitação do Património enquanto salvaguarda
das nossas Tradições, Raízes e Identidade, e como um lúdico e
sério olhar para a nossa História! (…) por favor, olhem para os
nossos vizinhos, a Espanha, na sua glorificante hispanidad no
interior de um país artificial criado pelos Reis Católicos entre
vários distintas nações. (…) Nós não estamos a educar
cidadãos, mas futuros Portugueses demitidos de si, perdoemme a frontalidade.
18
Citado de um documento online cuja autoria é de Paula Bárcia:
http://trajes.no.sapo.pt/Oque.eaHistoriaVivo.htm
19
Cf. website forum: http://z4.invisionfree.com/Forum_OCSP/index.php?act=idx
57
Ou ainda, por exemplo, citando o Mestre de Armas da OSCP no mesmo fórum
argumentando acerca da actividade de recriação patrimonial como um “exercício de
sacerdócio”:
Recriação Histórica, para a Ordem, é a conjugação de vários
vectores: projecção mística do Passado, paixão acerba pela
História, estudo rigoroso, aplicação prática de segmentos de
conhecimento, sério passatempo. Recriar a História, para mim,
é o exercício de um sacerdócio. Na impossibilidade, indivíduos
irremediavelmente hodiernos, de vogarmos presencialmente ao
Passado, temos de nos contentar, jubilosamente, com os
pedaços que nos chegaram e tentar reconstituir imagéticas
possíveis, ousar a fábrica do Tempo, idear no discurso
fragmentado uma narrativa aceitavelmente coerente e sincera.
E quando confrontado com uma discussão acerca da presença das mulheres nas
batalhas e nos cenários de Guerra em situação de recriação, argumenta com um forte
posicionamento hierárquico e ético, para dizer o menos:
[…] a Ordem não é um espelho da sociedade lá fora. A Ordem
é um organismo com regras estabelecidas. Quem as aceita,
entra na Ordem; quem não as aceita, fica de fora. Tão simples
quanto isto. Na Ordem não há espaço para discussões
modernistas de libertação da mulher, por exemplo, na medida
em que tal ideia não fazia parte da psicologia social da época.
(…) tem de entender o seguinte: existe um espírito na Ordem
que se segue com reverência. A sua atitude, ou a de qualquer
outro(a) novato(a) é de aprender a manter o silêncio, falar
quando lhe é permitido e, acima de tudo, não dar demasiado
nas vistas. Limite-se a seguir as práticas da Ordem e a obedecer
às indicações hierárquicas. Modere a sua intervenção. A Ordem
da Cavalaria do Sagrado Portugal é uma instituição militar e
não um clube onde se discutem as correntes filosóficas do
século XXI. Associações de livres-pensadores há muitas Ordens, quantas? Eu próprio sou um livre-pensador, mas deixo
isso para mim, fora da Ordem. Na Ordem limito-me a obedecer
ao que o dever me ordena. Entendeu a minha mensagem?
Finalmente, num post no fórum, encontramos uma declaração memorial em
honra de um soldado português abatido no recente conflito na Bósnia:
[…] Hoje um soldado português morreu, honrando no seu
sacrifício a utopia da Paz e a sagrada bandeira de Portugal.
58
Curvemo-nos ante o seu exemplo e dignifiquemos a sua
memória de modo a que não seja esquecido. Saudemos este e
todos os soldados portugueses que morreram e verteram o seu
sangue pela honra de Portugal! Agora e sempre, com
determinação, viva Portugal!
O que quero sublinhar então, paralelamente à diluição da fronteira entre
memória e imaginação, entre história e ficção, é o modo como no interior desta indústria
cultural contemporânea monumentos memoriais substituem os lugares reais da
memória, recriações substituem, simulam e/ou higienizam passados contestados, e
certos sentimentos de pertença e identidade são inventados. Nacionalidade, herança
cultural ou identidade local tornam-se tropos dos eventos de recriação e elementos
retóricos das regras e dos comportamentos que permeiam a consciência pessoal dos recriadores e dos públicos envolvidos.
Nestas notas finais gostaria de trazer para a discussão aquilo que percepcionei
como um campo de dissensão entre performers das diferentes organizações – “actores”
e “cavaleiros” – e.g, entre Vivarte e a Ordem de Cavalaria do Sagrado Portugal. Esta
tensão é perceptível numa grande discussão mantida no fórum online no website da
Ordem em 2004 e 2005. Membros das diferentes organizações confrontaram-se e
frequentemente insultaram-se entre si pela reivindicação de autenticidade e legitimação
dos processos e propósitos da recriação histórica. A linha de fronteira que separou
diferentes pontos de vista é notavelmente perceptível na distinção entre teatro e
recriação (re-enact); ou entre puro entretenimento com inspiração histórica e
metodologias de transmissão heurística e ética.
O primeiro grupo – os actores da Vivarte – advogam a distinção entre recriação
e reconstituição, e consideram-se re-criadores e divulgadores e não puros copistas ou
simuladores do passado – são artistas com consultadoria e preocupações históricas mas
apresentam uma (re)criação. O segundo grupo – a Ordem – os seus membros não
aceitam esta posicionamento e repudiam o comportamento artístico, não no que se
refere ao sentido do entretenimento com inspiração histórica (rábulas teatrais), mas
enquanto forma de recriação histórica. Um desses argumentos pode ser lido nesta
declaração “postada” por um dos “cavaleiros”:
59
A recriação histórica não deve ser uma ferramenta
mercantilista, de auto-promoção económica e institucional. É
uma metodologia didáctica, sobretudo. É uma tremenda
responsabilidade, porque serve para transmitir conhecimentos.
As crianças que nos ouvem, interessadas numa espada, num
cálice ou num pedaço de fazenda, esperam aprender. É por isso
que quem faz recriação histórica tem a *obrigação* de
aprender também, como nós na Ordem, constantemente.
Faça-se teatro, ou faça-se espectáculos de inspiração histórica.
Tudo bem, são necessários e têm o seu mérito. Mas, por favor,
haja um mínimo de integridade para identificá-los como tal.
Vemos finalmente nesta disputa como a mercadorização assume sentido simétrico à
autenticidade no discurso dos membros da Ordem, para os quais e por razões éticas,
pedagógicas e doutrinais, a recriação do passado deve ser limada nas suas arestas
espectaculares e teatralizantes. E, opositivamente, para os membros da Vivarte
entretenimento, prazer e fruição são as armas ideais para a iniciação de audiências
regulares através dos efeitos da ilusão teatral nos segredos do passado histórico e do
património cultural – ou nos termos de Vanessa Agnew (2007) no “historical affective
turn”. Todavia, ambas as instituições incorporaram claramente aquilo que definimos – à
luz da UNESCO – como a actividade das indústrias culturais. E aqui, uma vez mais
como já havia salientado Nestor Canclini (2003) para o contexto sul-americano e para
os destinos das artes populares, nem sempre o isomorfismo entre evento passado e
evento recriado é o modelo, assim como não existe um caminho único para a
autenticidade permanentemente trilhado sob o modelo da intocabilidade das expressões
culturais (conceitos, performances e objectos).
Entretanto, um mercado patrimonial cresce e novos consumidores destas
indústrias culturais actualizam a variedade da oferta comercial de produtos. Emergentes
operadores comerciais (turísticos) especializam-se em procuras particulares: falcoaria
medieval, roupas e adereços, armas e armaduras, cavalaria, e outras extravagâncias da
alteridade ociedental como domadores de serpentes, dançarinas orientais ou músicos
celtas e árabes, mas também performers circencenses, artesãos e lojistas, pirotecnia e
efeitos especiais, entre outras. Tudo isto em paralelo com um negócio florescente e
especializado de promoção de actividades turísticas concatenado com este movimento
de reinvenções das tradições locais e de recriações do passado.
Tal como os performers de Khatakali ou de Nô que dedicam todas as suas
vidas a aperfeiçoar as suas performances, para os performers de recriação histórica,
60
também continuamente dedicados a um aperfeiçoamento técnico e teatral, parece não
existir uma clara distinção entre vida quotidiana e espectáculo como momento
extraordinário; o seu percurso performativo durante o tempo da recriação (de vários
dias) é constantemente interrompido, suspenso, reactivado constantemente, tornando
afinal a sua performance um constante complexo performático que oscila entre a
teatralidade – quando num pequeno palco representa cenas com base num texto
dramático ou num script improvisado – e a performance – quando num modelo de
teatro de rua se confunde com o público, provoca-o, reage, interage, ou pura e
simplesmente vive o dia-a-dia das feiras medievais como na verdade o seu próprio diaa-dia. Para o participante ou figurante, esta oscilação faz-se de um outro modo entre o
modelo de audiência teatral – mantendo-se ou eliminando-se por vezes a linha
separadora entre público e cenas, com ou sem uso de figurino e mais ou menos
integrado no cenário recriado quando interage com os performers – e o modelo de
liveness e de personae da performance – no sentido em que também o visitante se
materializa num espaço fisico onde procura criar um tempo particular, comendo,
bebendo e vivendo um tempo extraordinário, respirando a viagem num passado que
também ele afinal constrói pela sua presença. Não se trata de uma ilusão de eventos,
mas antes de apresentar eventos de facto como se fossem arte – neste caso, eventos de
um passado construído sob narrativas e performances hegemónicas.
Em forma de interrogação final, diria que se o movimento da performance art se
constitui claramente como um movimento de ruptura contra o espírito da arte tornada
objecto comercializável ou de culto e de crítica social e estética que marcou e
influenciou a história da arte e teve um impacte assinalável nas ciências sociais; agora,
performances culturais interpretadas em termos antropológicos, como as recriações
históricas poderão ser pensadas como um modelo de performance mainstream que ao
invés de romper e despoletar crítica reflexiva, suporta-se numa estética e numa ética
mainstream e hegemónica e claramente inserida na sociedade do espectáculo de que
falava Guy Debrod, sobretudo no que se refere ao modo de construção do passado e na
sua mercadorização. Curiosamente este movimento de recriação no quadro das
performances culturais parece acompanhar um movimento de re-preformance e de
revivalismo da performance no campo artístico. Digamos que na contemporaneidade,
dois fluxos se encontram num modelo de eventos performativos pós-dramaturgicos,
para usar a linguagem de Hans-Thies Lehmann (2007), um que recria rupturas outro
61
que recria continuidades, um que se sustenta numa concepção da contingência do
presente, outro numa construção da contiguidade do passado.
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63
Victor Turner e Richard Schechner, antropologia e performance:
uma inspiração, Regina Polo Müller (IA-Unicamp)
Resumo: Retrospectiva da pesquisa da autora desde que passou a se inspirar no
diálogo entre Turner e Schechner, para o estudo de dança, performance e ritual, nos
anos 80. A partir dessa retrospectiva, propõe uma reflexão sobre a performance
“Carmen Miranda e as Bacantes” realizada na abertura do ENAP, parte da pesquisa em
desenvolvimento, dentro projeto temático “Antropologia da Performance: Drama,
Estética e Ritual”/Napedra/FAPESP.
Falar do encontro de Victor Turner com Richard Schechner é relembrar um
momento crucial e de inflexão em minha produção acadêmica, com o ingresso na
UNICAMP como docente do Departamento de Artes Corporais e professora do curso de
graduação em Dança, nos idos dos anos 80. As pesquisas nos cursos de pós-graduação,
mestrado e doutorado em Etnologia Indígena, que abordaram a ornamentação corporal
dos Xavante e o ritual e a arte dos desenhos geométricos nos objetos e nos corpos entre
os Asuriní do Xingu, já prenunciavam o caminho que desembocou neste encontro, com
a performance “Carmen e as Bacantes”.
Pretendo nesta conferência, propor uma reflexão sobre a experiência dessa
performance, com as pesquisadoras e público participantes.
Na verdade, trata-se de uma reflexão que começou silenciosa e individualmente,
eu comigo mesma e, em seguida, com as demais pesquisadoras do Napedra que se
agregaram a essa aventura, estimulada por sua vez, pelo coordenador do núcleo, John
Dawsey. Para este momento, revolvi meu memorial do concurso de livre-docência,
artigos publicados e o projeto de pesquisa deste Temático para recuperar e atualizar o
momento de meu encontro com o encontro de Turner e Schechner.
Cheguei a Schechner, através de Victor Turner, quer dizer, das leituras de suas
últimas obras que construíram a Antropologia da Performance, parte da Antropologia
da Experiência, segundo ele próprio. Neste percurso em que elaborou essa proposição
teórico-metodologica, alicerçada no drama como analogia da vida social e na ponte
entre o ritual e o teatro, Turner contou com a companhia de Schechner, no final dos
anos 70, inicio dos anos 80. Escreve Turner em seu livro “From Ritual to Theatre: The
Human Seriouness of Play”(1982:7):
64
The essays in this book chart my personal voyage of discovery
from traditional anthropological studies of ritual performance
to a lively interest in modern theatre, particularly experimental
theatre.
(Minha tradução: Os ensaios neste livro documentam a viagem
de descoberta que fiz dos estudos antropológicos tradicionais
sobre performance ritual a um forte interesse pelo teatro
moderno, em particular, o teatro experimental.)
Turner escreveu “From Ritual to Theatre” e Schechner escreveu “From Ritual to
Theatre and back” (1988).
Eu afirmo que, em meu percurso acadêmico e profissional, também fiz e tento
ainda fazer a ponte entre arte e antropologia. Formada na USP/UNICAMP e atriz de um
grupo de teatro surgido no movimento da contra-cultura em São Paulo nos anos 70, o
“Dzi-Croquettes”, estudei as sociedades indígenas e desenvolvi meu corpo decorado
em
performance
como
meio
de
expressão.
Produzi
teses
antropológicas
profissionalmente e apresentei performances como lazer, após uma tentativa frustrada
de viver de teatro, e posteriormente, como experiência de pesquisa acadêmica. O que
consegui fazer, então, foi uma antropologia para atores e dançarinos, que vem sendo
ainda construída, desde meu ingresso na carreira docente universitária. Por conta da
migração da Etnologia Indígena para o ensino e pesquisa em Dança, encontrei um
caminho para fazer a ponte em Turner, aquele mesmo de A Floresta de Símbolos e O
Processo Ritual, de minha formação antropológica. Conheci este outro Turner, por sua
vez, através de Geertz que representava, neste momento, minha motivação para a
reconciliação com a teoria antropológica. Estivera até então, em meus trabalhos de
interpretação da dança nos rituais Asuriní e de danças de religiosidade popular no
interior de São Paulo, apoiada na análise do discurso da escola francesa20. Através de
um enfoque interdisciplinar, passei a cotejar as formulações deste autor às da análise do
discurso, no caso, a fixação de sentido e a tensão constitutiva entre o novo e o
tradicional, entre a variação (polissemia) e o sedimentado (paráfrase), na produção do
discurso. Na Antropologia Interpretativa de Geertz e na Antropologia da Experiência de
20
Estou me referindo particularmente a teóricos da Análise do Discurso como Michel Pêcheux,
Dominique Maingueneau, Eni Orlandi.
65
Turner encontrava uma perspectiva de interdisciplinaridade entre Ciências Humanas e
Ciências Sociais, que pudesse considerar a dimensão estética e sensível da experiência
social e permitisse a contextualização cultural do significado. Suas obras examinam
justamente a performance teatral e performance ritual. Do diálogo entre os dois, sobre
dilemas da analogia do drama para a vida social como referência teórica para as
questões metodológicas da pesquisa em Artes Cênicas, fui me direcionando, conduzida
por Turner, a aprofundar a teoria da performance e a metodologia de criação artística de
Richard Schechner como diretor. Assim, em 2001, eu escrevia a ele sobre meus
interesses e uma vez recebida como visitante no departamento onde leciona e aceita
como pesquisadora de sua obra, logo tive a oportunidade de pedir para conhecer sua
atuação artística. Eu desejava conhecer o diretor de teatro, o “guru” do teatro
experimental americano que havia iniciado Victor Turner (1982:9,10). Diziam no
departamento de Performance Studies que de modo diferente do que ocorrera comigo,
em geral ali se chegava a Turner através de Schechner.
Em Turner, eu havia lido avidamente que o processo ritual é entendido como
experiência psicossomática que produz (atribui) sentidos, da mesma maneira como a
terceira fase do drama social (processo de reparação) atribui sentido aos eventos
dramáticos sociais. Para Turner, a Antropologia da Experiência encontra em certas
formas recorrentes da experiência social (notadamente dramas sociais) fontes da forma
estética da dança e teatro. Sua teoria é a de que tanto o ritual como as demais artes da
performance derivam da fase liminar do drama social. Nesta fase, “os conteúdos das
experiências do grupo são reproduzidas, desmembradas, relembradas, remodeladas,
amoldadas e silenciosamente ou vocalmente, dotadas de significação” (1990:13).
De maneira semelhante, Geertz (1978) atribui aos rituais religiosos, a
plasticidade dramática através da qual a fé é retratada, constituindo-se, assim, modelos
para a crença. A objetividade da visão de mundo e dos valores sociais de uma
determinada cultura é concedida pela religião, através de rituais, símbolos sagrados que
constituem a experiência sensível e fundamentada na ética e na estética de uma
sociedade. A origem desta natureza estética do ritual e da performance em geral está,
segundo Turner, na fase liminar do drama social. O teatro para Turner (1982) é uma
hipertrofia, um exagero do processo ritual e jurídico (jural), não apenas uma réplica do
padrão processual total “natural” do drama social.
66
A universalidade da performance assim proposta por Turner é criticada por
Geertz que advoga a particularidade da experiência estética, isto é, a necessidade de se
considerar os conteúdos simbólicos que incorporam etos e eidos, os sentimentos e
valores de culturas específicas (Geertz apud Turner, 1990:15).
Este diálogo me instigava e inspirava a investigação sobre a dança e o ritual, de
uma perspectiva interdisciplinar e mais, entre as artes e as ciências humanas, para uma
antropologia da dança e da performance, contemporânea, ocidental e ritual, indígena.
Buscar conteúdos simbólicos e significação ou a natureza discursiva de
experiências / formas estéticas nos processos da vida social, seria, por sua vez, criticado
por Alfred Gell, nosso mais recente inspirador da reflexão antropológica. Mas
retomaremos sua crítica, mais adiante, para instigar nossa conversa de hoje.
Antes, apresentarei a última e atual fase de meu percurso acadêmico, que
consiste no projeto Chica Chic, Carmen em perfomance, cujo referencial, passou a
enfatizar Schechner como fonte, particularmente em seu diálogo com Turner e menos,
como nas fases anteriores, um Turner experimentando o teatro para fazer antropologia.
Este projeto se inscreve em uma pesquisa mais ampla “Performance e corpo em
movimento no ritual indígena e na cena contemporânea” cujo objetivo inicial foi
aprofundar a utilização de um conceito da teoria da performance de Richard Schechner,
o de “comportamento restaurado” e, ao mesmo tempo, comparar metodologias,
enfocando-se a performance ritual na sociedade Asurini, a performance artística apoiada
na metodologia do BPI de Graziela Rodrigues e a arte da performance como linguagem
nas artes cênicas contemporâneas. Projeto pertencente à linha de pesquisa do Napedra,
“Performances Rituais”, articula-se em trança com a linha de pesquisa “Performances
Estéticas” ao se debruçar sobre os temas da Dança, Teatro, Arte da Performance e
Ritual, com foco na discussão sobre as noções de “incorporação da personagem” e
“estado subjuntivo” .
Uma das conclusões da pesquisa é a de que, no caso da metodologia de Graziela
Rodrigues, na experiência intercultural, não há incorporação de sistemas codificados
tradicionais tomados de culturas diferentes do intérprete criador, como uma “gramática
generativa” que produz o gesto repetido do “comportamento restaurado”, mas
desconstrução do corpo com a própria experiência do corpo-sentido trabalhado para
atingir no nível profundo dos ossos e músculos as associações a imagens internas (de
conflito) que irão provocar sensações distintas em cada performer.
67
O estudo do conceito de “comportamento restaurado” serviu de base, ao mesmo
tempo para a elaboração de um subprojeto, “Chica Chic, Carmen em performance”,
através do qual decidi desenvolver um processo de criação no campo da arte da
performance a partir de um ícone de brasilidade, portanto, de uma experiência estética
em minha própria cultura, as incorporações/encarnações
de Carmen Miranda
vivenciadas em alguns momentos de minha história profissional e de vida.
“Chica Chic, Carmen em performance”, propôs a realização de performances,
durante o ano de 2009, em comemoração ao centenário de Maria do Carmo Miranda da
Cunha, tendo como roteiro para os laboratórios de criação e de apresentação pública, a
essência “queer” e “clownesca” da personagem Carmen Miranda, com uma abordagem
autobiográfica, integrando minhas memórias e emoções, emanadas de um certo culto
que venho dedicando à atriz performática.
Acredito que a arte da performance, autobiográfica e autorreferencial, permite o
processo de incorporação, decorrente de laboratórios de preparação e de rituais de
apresentação do corpo decorado e em movimento, para diversos públicos.
A escolha da linguagem da performance parte de experiências de pesquisa
teórico-práticas. Venho propondo desde 2003, em estágio na NYU, na Tisch School of
the Arts, aliar metodologia de criação baseada na teoria da performance aos processos
de treinamentos e preparação do performer desenvolvidos a partir da ação corporal que
promove o estado subjuntivo. Nestes processos, a ação corporal toma a cena, o “meio
torna-se a mensagem”, mas é, ao mesmo tempo, o agente transformador. Assim ocorre
com o estado de transe do xamã, resultado da dança e canto (respiração e movimento) e
cuja forma estética presentifica o ser metamorfoseado. Ao lado da fisicalidade
constitutiva da performance, esta mesma forma é o simulacro do eu, a experiência de
que elementos que são “not me” se tornam “me” sem perder sua “not me-ness”. “A
maneira pela qual “eu” e “não-eu”, o performer e a coisa a ser performada, são
transformados em “não-eu...não-não-eu” é através do laboratório-ensaio/processo ritual.
Este processo ocorre num tempo/espaço liminar e no modo subjuntivo” (Schechner,
1985:112). Este autor se refere a este processo de transformação/transportação e à
conjunção entre preparação técnica, laboratório e ensaio, ao cotejar dois gêneros de
“performance cultural”, o ritual e a arte da performance, através da convergência entre o
vivido pelo artista performático e pelo iniciando no ritual . Para ele, como as iniciações,
as performances fazem de uma pessoa, outra. Mas diferentemente das iniciações,
68
completa, “performances geralmente tratam daquilo que o performer recobra de seu
próprio eu” (1985:20). No processo de desenvolvimento do personagem na arte da
performance, o primeiro sujeito a ser pesquisado pelo performer é ele mesmo.
O processo realizado nesta pesquisa considera também o aspecto lúdico da
condição de playing, isto é, nos laboratórios, os jogos (improvisação) e a brincadeira no
sentido do “fazer de conta” (“as if”) são dois princípios constitutivos, de acordo com
Schechner.
O jogo de improvisação nos laboratórios é desenvolvido a partir de
imagem/memória de minha experiência de vida como atriz, incorporando a personagem
Chica Chic a qual deflagra a incorporação da personagem Carmen Miranda, da atriz
Maria do Carmo Miranda da Cunha. Amálgamas e sínteses de biografias em expressões
visuais, sonoras e de movimento corporal constituem a materialidade desta incorporação
ou encarnação.
Deste modo, o deslocamento, a fragmentação e a multiplicidade constituem as
principais operações de criação dramatúrgica e interpretação propostas.
A performance na abertura deste encontro, contou com a participação de outras
performers por iniciativa delas próprias, quando se propôs que a performance faria parte
da recepção aos participantes do encontro, com Carmen Miranda, acompanhada de
“bacantes”, servindo uvas e vinho. Com a idéia de incorporar uma Carmen “queer”
(referente a sexualidades dissidentes) e “clownesca”, inspirada na estética dos Dzi
Croquettes
21
, essencialmente “queer” e “clownesca”, apresentei a proposta de
reconstrução de um quadro do espetáculo encenado pelo grupo em 1976, “Carmen
Miranda e o Bando da Lua”, chamando minhas companheiras de “Bacantes
Andróginas”.
Estas pistas de reflexão sobre a experiência performática seguem a linha dos
estudos da performance, leia-se Schechner, na intersecção de disciplinas das Ciências
Humanas, como a psicologia, a filosofia e a estética , vide as noções de
“comportamento restaurado”, “estado subjuntivo” e “incorporação da personagem”.
21
Os Dzi Croquettes dramatizaram uma sátira dos papéis convencionais de gênero, usando roupas e
maquiagem femininas sobre corpos masculinos musculares e peludos. As Bacantes, corpos femininos,
usam o figurino dos Dzi que mistura elementos femininos ( tapa-sexo, maquiagem), masculinos (paletó e
chapéu) e unisex ( botas), fazendo inversões tais como mulheres usando figurino de homens andróginos
que por sua vez são corpos masculinos com figurino que mistura feminino e masculino.
69
Diríamos, então, que não estamos no campo da Antropologia? E naquilo em que nos
aproximamos da Antropologia, a saber, a interpretação de conteúdos simbólicos e a
busca da significação de suas formas estéticas, entendidas como discurso, a que nos
levaria?
Gell diria que isso não é fazer antropologia. O que fazemos nós pesquisadoras,
então, com essa reflexão sobre a nossa performance nesse encontro?
Gell nos diz que o interesse sobre a significação das formas estéticas pertence a
semiótica.Citando-o: “...(a) recusa a se discutir arte em termos de símbolos
e
significados pode causar surpresa uma vez que o domínio da arte e do simbólico são
entendidos por muitos como mais ou menos coextensivos. Em lugar da comunicação
simbólica, coloco toda ênfase em agência, intenção, causação, resultado, e
transformação. Vejo a arte como um sistema de ação, com o objetivo de mudar o mundo
mais do que codificar proposições simbólicas sobre ele”. E ainda: “... a abordagem da
arte centrada na ação é inerentemente mais antropológica do que a alternativa
abordagem semiótica porque se preocupa com o papel prático mediador dos objetos de
arte no processo social, mais do que com a interpretação dos objetos como se fossem
textos.” (1998:6) (minha tradução).
Como não se encantar com este pensamento em se tratando, particularmente da
arte da performance que preenche exatamente todos os atributos da arte como sistema
de ação acima enfatizados por Gell? O que ele deseja é formular uma teoria da arte que
se adéqüe ao contexto da antropologia, com a premissa de que teorias antropológicas
são reconhecidas, antes de tudo, como teorias sobre relações sociais, e não sobre
qualquer outra coisa. E, resumindo a base de sua teoria, parte do princípio de que pode
haver uma espécie de teoria antropológica na qual pessoas ou agentes sociais são em
certos contextos, substituídos por objetos de arte. (idem:5) Pensar as personagens da
performance que realizamos, nesta chave de análise, cairia perfeitamente bem para uma
tentativa de se fazer aqui uma reflexão antropológica. Poderíamos pensar, de acordo
com sua abordagem teórico-metodológica, o estilo estético da performance – queer e
clownesco- como relações entre relações de formas – figurino, mimese, interação com o
público etc. para se chegar ao axis de coerência, como denomina o princípio da mínima
diferença, detectada na relação com o conjunto (1998:219), do qual seriam parte as
relações de gênero e os papéis institucionais do mundo acadêmico. O axis de coerência,
de acordo com Gell, é o principio abstrato que governaria as relações entre relações.
70
Obviamente não caberia aqui este exercício analítico, mas fica ao menos como exemplo
de uma possibilidade, numa provocação para abordarmos criticamente a natureza e os
objetivos de nosso fazer investigativo, a partir da experiência estética promovida por
“Carmen Miranda e as bacantes”.
Quero dizer, finalmente, que teorias antropológicas ou outras podem inspirar
processos de criação artística. Turner e Schechner têm sido, antes de qualquer coisa,
minha grande inspiração para continuar incorporando Carmen Miranda, que me dá tanta
alegria e plenitude.
Bibliografia
GELL, Alfred. Art and Agengy: an anthropological theory. New York: Oxford
University Press, 1998.
SCHECHNER, Richard. Between Theater and Anthropology. Philadelphia: University
of Pennsylvania Press, 1985.
______. Performance Theory. London: Routledge, 1988.
TURNER,Victor. From Ritual to Theatre: The human seriousness of play. New York:
PAJ Publications, 1982.
______. “Are there universals of performance?”. In: By means of performance,
Schechner R. & Appel, W. (Org.). Cambridge: Cambridge University Press,
1990.
71
PERFORMANCES
Carmen Miranda e as Bacantes
Performance inspirada em ícone midiático de brasilidade e transgressão social,
parte do projeto "Chica Chic, Carmen em performance" de Regina Müller. Carmen
Miranda, acompanhada de bacantes andróginas irrompe a cena acadêmica, convidando
todos a farrear.
Com: Regina Müller e as Bacantes Ana Goldenstein e Luciana Lyra
Local: MAC/USP
Levantamento do Mastro: Terra, Céu, Tupanaroca e Aruanda no
Festejo do Sem Fim
Performance coletiva, integrando visões e manifestações dos viajantes (teóricos
e peregrinos) de todos os lugares à roda de um símbolo de alegria, devoção e
comunhão. Promovendo a interação e cumplicidade entre memórias a proposta desta
performance é deixar que todos ao pé de mastro se manifestem. Não há hierarquia nem
centralização. Tudo ligado e cada um presentando a vontade e o poder. Este mastro é
uma proposta de pacto e ritual. Todos são expectadores e todos são performes ao
mesmo tempo. Tudo isso, ligado pela alegria e pela voz dos nossos antepassados, sejam
eles consanguíneos, povos que convivemos, ou aqueles que dialogamos teoricamente. E
os mais doces dos bárbaros deverão invadir a roda. Do cóccix ao pescoço, ninguém
ficará imóvel. O objetivo é roubar versos, inventar outros, dançar velhas danças e criar,
coletivamente, outros passos. Compartilhar o espírito de nossos avós, a voz de nossos
pais, os sentidos de nosso presente. Os estrangeiros e os anfitriões não abolirão o acaso
e cantarão um tempo sem fim, um tempo aberto marcado pela alegria e pela vontade de
continuar o festejo até a aurora. O mastro é um convite à invasão, todos devem entrar na
cidade amada, no terreiro admirado e deixar que um alto-astral seja mapeado. Que
transes sejam invocados e altas transas se deixem evocar. Que as espadas, os pandeiros,
os pratos de esmalte, os tambores, as bandeiras, as saias, as máscaras e tudo aquilo que
performa seja trazido para o centro e se renove nesta festa do sem fim.
Proposta: Augusto Rodrigues Ana Goldenstein Carvalhaes
Local: Jardim do MAC/USP
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Performances, diálogos
O Grupo Máskara (UFG/Goiânia) – Núcleo de Pesquisa do Espetáculo apresenta
duas cenas concomitantes, a serem construídas em diálogo com o público e
os fantasmas que circundam nossa criação: O Repouso do Inocente e Lua Vermelha.
O Repouso do Inocente
Inspirado nas proposituras do teatrólogo Antonin Artaud, constrói-se uma cena
focando no estranhamento, termo que não é intitulado exatamente desta forma por
Artaud, mas que é uma de suas propostas para a encenação. O estranhamento, a partir de
um ritual, como Artaud propõe em seus textos: "Uma verdadeira peça de teatro perturba
o repouso dos sentidos, libera o inconsciente comprimido, leva a uma espécia de revolta
virtual" (1993). Deste modo tenta-se buscar um ritual comum à nossa cultura, visando
pertubar o repouso da platéia. No seu processo de criação a atriz lembra de algo que
esquecemos no nosso cotidiando e evitamos: "todo adulto foi uma criança...antes de ser
adulto. (notas de ensaio)".
Em cena: Janaína Deuselice
Direção e sonoplastia: Letícia Lemes
Figurino e maquiagem: Janaína Deuselice
Supervisão geral: Robson Corrêa de Camargo
Local: Hall do MAC/USP
Lua Vermelha
Delineada com fragmentos de Woyzeck de Georg Büchner. Construída com
alguns caminhos propostos por Grotowski, a cena procura um novo olhar a ser
construído pelo espectador. Transportando-o para junto das personagens.
Em cena: Bruna Smiljanic, Letícia Lemes e Paulo Canga
Direção: Janaína Deuselice
Equipe: Técnica Michel Mauch
Supervisão geral: Robson Corrêa de Camargo
Local: Hall do MAC/USP
Duração: 15 minutos
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TELEKAIA espaço intersecional
Composição audiovisual realizada em tempo real sobre o ritual xamanístico
maraká do povo indígena Asuriní do Xingu. A composição assinala a preparação do
espaço de realização do ritual maraká: a tukaia. Neste espaço, Pajé, Wanapy e
Uirasimbé, papéis rituais do maraká, realizam danças e cantos, obtendo dos espíritos
ynga, substância relacionada com a vitalidade dos corpos. A máquina ritual do maraká
produz interseção com outras máquinas cósmicas, processando substâncias e
componentes. Sua propriedade é agir como um componente sensorial para os corpos,
alterando as subjetividades, modificando os modos de percepção e o “estar no mundo”.
Ela pode ser acionada para agir como um instrumento de produção e propagação de
perspectivas.
Composição, programação digital e performance: Eduardo Nespoli
Imagens: Eduardo Nespoli, Alice Villela, Acervo Regina Müller (Projeto
Documentação e transmissão dos saberes tradicionais dos Asuriní do Xingu,
IPHAN/MinC)
Áudio: Eduardo Nespoli, Acervo Regina Müller (Projeto Documentação e
transmissão dos saberes tradicionais dos Asuriní do Xingu, IPHAN/MinC)
Acervo Regina Müller - Projeto Documentação e Transmissão dos saberes Tradicionais
dos Asuriní do Xingu (IPHAN/MINC)
Duração: 15 minutos
Local: Auditório do MAC/USP
Leituras do Guru
A proposta é uma performance que se constitui em uma estranha espécie de
palestra que tenta realizar a utopia de uma comunicabilidade total através de todas as
línguas e linguagens possíveis. Só será possível saber se haverá êxito quando se estiver
em presença do palestrante/performer.
De: Lucio Agra
Local: Auditório do MAC/USP
74
Cruzes
A ação performática é resultado da intersecção de quatro performers no trabalho
acerca de suas respectivas mitologias pessoais. A performance tem origem em pontos
cardeais, de onde partem quatro figuras: Judas, Frida, Joana e Calunga, na jornada
ritual em busca do cruzamento e conseqüente construção de uma instalação corpo-mitocoletivo.
Com: Carlos Ataíde, Lilih Curi, Luciana Lyra e Viviane Madureira.
75
MESAS REDONDAS
76
ARTES E ESPETÁCULOS
O teatro exp erimental e a constr ução de uma dramaturgia
musical, Selma Baptista (UFPR)
Resumo: Este trabalho apresenta uma discussão introdutória sobre as
possibilidades etnográficas que envolvem o “diálogo” entre linguagens artísticas numa
experiência do teatro experimental. A partir da participação em uma montagem
realizada junto a um grupo de teatro experimental, impôs-se a necessidade da
construção de uma etnografia a partir de múltiplos planos de observação (participação
na preparação física, captação de imagens, captação de áudio, percepção dos
deslocamentos, da circulação, do movimento).
De início discute-se a relação criada entre as metáforas sugeridas por imagens
(pinturas, fotografias) e as “imagens” criadas a partir delas nas experiências corporais
dos participantes, atores e músico. Em seguida, discute-se como o texto etnográfico
poderia dar conta desta experiência de maneira mais integrada, usando alguns recursos
audiovisuais: além das séries fotográficas feitas em campo, colocadas em arranjos
dinâmicos, mostrando séries de exercícios de forma seqüencial, foram inseridos trechos
da captação sonora nos ensaios, forma de criação musical que acabou sendo
compreendida posteriormente como a construção de uma “dramaturgia sonora”.
Finalmente, apresentamos algumas considerações acerca desta possibilidade
etnográfica: usando a noção de “ekphrasis”, repensamos a etnografia desta montagem a
partir do “diálogo” entre a dramaturgia do corpo (incorporando as sugestões
imagéticas) e a dramaturgia do som, procurando refletir metodologicamente sobre isso.
Enfim, a questão que subjaz aqui é a possibilidade, ou não, de etnografar situações
como esta, de grande dinamicidade e múltiplas semioses simultâneas.
Palavras-chave: performance, teatro, etnografia.
77
A peça teatral “O quarto” foi uma experiência artística que procurou construir
um “lugar” cenográfico e dramatúrgico a partir das experiências e relações concretas
entre os participantes da montagem.22 Uma dramaturgia cujo “texto” se construiu como
experiência coletiva, in-corporada, a partir de experimentações conduzidas pelo olhar
exterior do diretor, ou, do coletivo todo nas discussões pós-ensaios, em sessões que
falavam de maneira geral sobre o processo corporal, psicológico e artístico como um
todo.
A questão central para a observação antropológica colocou-se, desde o início,
como uma indagação sobre a(s) maneira(s) com que a cultura se “inscreveria” no corpo
humano enquanto objeto de arte, dentro das especificidades culturais. Tratar-se-ia da
questão do “embodiment”, ou, nas palavras de T. Csordas, “the existencial condition of
cultural life” (Csordas, T., 1994). Por outro lado, a situação sugeria um interessante
“diálogo” entre linguagens artísticas, que, como coloca Carlo Ginzburg, pode ser
pensado como uma manifestação atual da tradição da ekphrasis (Ginzburg, Carlo,
2001).
Os ensaios começaram utilizando várias imagens de pinturas famosas que
compuseram séries inspiradoras para o começo dos exercícios de improvisação teatral,
como, por exemplo, Van Gogh, Edward Hopper e Gustav Klimt e Jaroslav Pelikan.
22
Este trabalho teve origem na montagem teatral “O quarto. Um ensaio sobre a intimidade dos corpos”,
realizada pelo Grupo Obragem de Teatro, Curitiba, 2006.
78
Desta maneira, estas passagens das imagens às in-corporações podem ser
pensadas como “unidades estruturadas de experiências”, as quais, segundo Bruner,
permitem o acesso às unidades de significados socialmente construídas, que realizamos
na maioria das vezes sem termos consciência delas (Bruner, E. & Turner, V. 1986).
Já desde o início dos ensaios os atores começaram a construir experiências
corporais, interpretativas, improvisadoras, individuais e em grupos, a partir de imagens
escolhidas pela diretora, além das pesquisas que cada ator/atriz fez por conta própria ao
longo do desenvolvimento dos exercícios interpretativos.
Mas os possíveis significados sugeridos e/ou imaginados não eram discutidos
enquanto tal: eram justificados e estimulados em função da mecânica dos movimentos,
retirando dos gestos, das posições e dos movimentos qualquer intenção de “contar uma
história”, ou, “dramatizar” a situação. Seriam movimentos supostamente “vazios” de
significados, apenas impulsos físicos e emocionais. Enfim, psíquicos.
Na medida em que a técnica de construção dos exercícios/cenas mostrava-se
basicamente “celular”, crescendo de dentro para fora, a estrutura toda do espetáculo se
“expandia”, ao mesmo tempo em que as relações entre os fragmentos iam sendo
estabelecidas, de forma circular, isto é, todos iam passando pelas mesmas experiências.
Mas não eram relações de “sentido”. As propostas destes exercícios de improvisação
eram, portanto, repetidas por todos, trocando de lugares, parceiros, tempos e espaços.
Desta maneira, como uma cebola, o trabalho foi crescendo “por dentro”, e em
camadas inclusivas, ao mesmo tempo em que relações iam sendo estabelecidas entre as
pessoas, as idéias, as sensações, os sentimentos e ações, através dos movimentos dos
atores e de uma cama com rodas, o único objeto em cena, desde o primeiro momento
dos ensaios.
A rápida circulação da cama por todo o espaço cênico ia “construindo” o que se
poderia chamar de “clusters”, conjuntos, condensados, formados pelos atores que ao
movimentarem a cama formavam várias configurações que iam sendo postas,
superpostas, substituídas, reagrupadas, aparentemente de forma aleatória.
As possibilidades de “leituras” eram sempre discutidas ao final de cada ensaio,
sempre depois que os atores expunham seus sentimentos, impressões e interpretações do
que haviam construído. Ao longo do processo minha leitura foi se construindo no
sentido de perceber como a ação criativa ia revelando um paradoxo: ao invés de um
lugar de construção de relações diversas, propiciado pelo tema central da proposta, ou
79
seja, o da intimidade/quarto, este lugar de enunciação parecia estar surgindo como
resultado de enunciados heteróclitos, atópicos, expressando isolamento e/ou solidão,
permeado por relações ligadas a temas como o erotismo, a violência e a
incomunicabilidade, mas sugerindo uma visão em paralaxe (Zizek, Slavoj, 2008). Uma
observação da dialética entre isolamento e solidão. Apreensão oriunda dos meus
movimentos em cena. Enquanto o isolamento se define em relação ao “outro”, ao não
estar junto, à exclusão, à negação da presença, a solidão pode ser uma experiência de
encontro que já não se mede pelo(s) outro(s), e que não se define pela negatividade
porque é uma forma de construir um espaço próprio, é uma ação afirmativa, é um estar
consigo mesmo, mesmo que com algum “outro”. Observações capturadas pela/na
ausência da linguagem articulada, nos vãos dos corpos, dos olhares.
Assim, é possível dizer que o argumento de “O Quarto” definiu-se como uma
relação agônica e assindética entre isolamento e solidão, mediada apenas pelo
movimento. Um movimento que não criava sintaxe alguma, feita apenas de fragmentos.
Um pêndulo entre a recusa e o desejo. E, nesta experiência, ao mesmo tempo em que o
corpo construía/expressava fragmentações enquanto corporalidade, o texto/fala
enunciava frases aparentemente desconexas. Assim, a dramaturgia como um todo, e
nela, a sonora, também produzia refrações como em um caleidoscópio movimentado
por uma força configurada em movimento.
Portanto, “O Quarto” se constituiu num exercício desta possibilidade: de
transformar o isolamento (a recusa do “outro”, logo, a recusa de si mesmo) em solidão
(a busca do “outro” em si mesmo, a incorporação do desejo do “outro”), pelo
movimento, e isso ficava muito claro no trabalho, pelos deslocamentos que a cama fazia,
movida pelos atores. Esta movimentação foi interpretada antropologicamente como uma
busca, uma incessante tentativa de colocar as “diferenças” “em relação”, ou “em jogo”.
Mas nada disso parecia resolver-se numa “abertura” para o “outro”, ou, uma
aceitação que, finalmente, pudesse por fim ao movimento. Criou-se, neste sentido, um
ambiente de experiências com significados deslizantes, ambíguos, paradoxais.
Na realidade, “O Quarto” acabou por expor um paradoxo, e aí residiria, na
leitura realizada, sua qualidade performática e expressiva: este “lugar” da intimidade,
do encontro, da solidão, parece mostrar-se muito mais como um lugar de exclusões e
desencontros.
80
A interpretação produzida e narrada até aqui não foge aos padrões
antropológicos.
Narra-se a interpretação de uma vivência em campo, mediada por conceitos que
possibilitam certa fluência de e na linguagem profissional. No entanto, esta narração
em particular é fruto de um intenso trabalho de captura, de uma intensa tarefa de
circulação entre diferentes linguagens, de um ver-sem-ter visto, de um ouvir-sem-ter (de
fato)- ouvido. De onde viria esta “costura-ação” tão intensa e heterogênea? Ou melhor,
como é possível realizá-la sem perder-se no próprio “texto” da experimentação?
A tese sustentada aqui é de que não é possível realizar esta etnografia sem
perder-se no “texto” da experimentação. Ou seja, esta narração não pode ser outra coisa
senão, da mesma maneira, uma “experimentação”.
Por isso tudo é que narro aqui o que foi apresentado sob a forma de fragmentos,
quase como um hipertexto que alguém pudesse manusear ao seu gosto: imagens
heterogêneas de pinturas e fotografias olhadas apenas para serem incorporadas, fora dos
seus contextos originários, corpos em exercícios sem qualquer intenção prévia de
“contar” qualquer história, movimentos excêntricos incontidos por cenário inexistente,
um objeto (cama) sem sistema “moral” (Baudrillard, J. 1973), sons que buscam apenas
sua existência no momento e na ação presente. Da mesma maneira, um olhar
etnográfico que percorre estas paisagens do olhar e do ouvido sem nada escrever.
Isso não seria possível para os objetivos desta publicação. Portanto, sugiro aqui
que tudo pode ser escrito, manipulado, interpretado, disseminado, dissecado, a
posteriori. Uma escrita que se desejou, talvez, ter podido ser “ao revés”, como Proust
provavelmente o teria feito, segundo Ginzburg:
O objetivo de Proust parece, em certo sentido, o oposto (ao de
alcançar a
compreensão mais profunda da realidade):
proteger o frescor das aparências contra a intrusão das idéias,
apresentando as coisas “na ordem de sua percepção”, ainda não
contaminadas pelas explicações causais.
Mas isso não seria possível, ao menos que este texto pudesse ter sido escrito em
fragmentos. Mas e as imagens? E os sons?
Em termos de uma dramaturgia sonora, como foi apresentada no seminário, a
idéia foi mostrar o trabalho etnográfico de captação dos sons nos ensaios através da
81
participação/presença do músico e seu contrabaixo acústico em cena (grupo de sons
brutos), ou seja, ao longo dos ensaios suas in-corporações não se constituíam enquanto
“ilustração ou trilha sonora” dos “clusters” cenográficos, mas como improvisos,
fragmentos. Estes sons foram aos poucos “dialogando” com as in-corporações das
imagens pelos atores. Mostramos no seminário o processo de bricolagem sendo
realizado em conversas com a diretora do espetáculo.
Em seguida, foram apresentados os mesmo sons, em formato digital, para,
finalmente, comporem seqüências, já “coladas” às séries cenográficas dos corpos, falas,
cama, ação, luzes. Uma experiência em ekphrasis, ou seja, da possibilidade da
tradutibilidade entre linguagens artísticas. E, por fim, um trabalho “ao revés”.
Bibliografia
BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos. São Paulo: Perspectiva, 1973.
BRUNER, E.; TURNER, V. (Eds.). The Anthropology of Experience. University of
Illinois Press, 1986.
CARLSON, M. Performance: A Critical Introduction. London; New York: Routledge,
1996.
NÉRET, Gilles. Klimt. Germany: Taschen, 2000.
RENNER, Rolf G. Hopper. Germany: Taschen, 2003.
GINZBURG, Carlo. Olhos de Madeira. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.
ZIZEK, S. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008.
82
A crítica e a crítica genética: d iálogos sobre o entendimento do
espetáculo teatral , Robson Corrêa de Camargo (UFG)
Resumo: Este trabalho apresenta uma reflexão sobre as características do
espetáculo teatral e de sua análise, utilizando ferramentas da crítica genética e da teoria
da recepção. Texto publicado inicialmente como “A Crítica Genética e o Espetáculo
Teatral”, Gestos 43 (Abril, 2007, p. 13-32). Versão revista e ampliada em dezembro de
2010.
Palavras-chave: Crítica Genética, Melodrama, Performance.
Observe-se primeiramente a montagem de Otomar Krejca (1970, foto abaixo),
do
espetáculo
Esperando
Godot,
(http://www.lib.washington.edu/Subject/drama/godotconcepts.html),
de
Beckett
cenários
de
Svoboda. Nesta apresenta-se um teatro italiano de estilo barroco, com grande espelho
oculto ao fundo do palco, onde, a partir de determinados efeitos de luz, mostra-se e
reflete-se a própria platéia presente, assim como o cenário visto do fundo do palco.
83
A partir deste evento, podemos refletir sobre o espetáculo teatral.
Sempre que a crítica se coloca frente ao espetáculo teatral, a questão que emerge
imediatamente é a da limitação dos instrumentos desta crítica ao aproximar-se de seu
objeto. Esta limitação tem dois aspectos. A primeira de ordem estrutural. Faz parte da
natureza de qualquer objeto, e, sobretudo do artístico, impedir que seja desvelado,
descoberto e desvendado em todas as suas instâncias. Por mais minuciosa ou inovadora
que seja uma abordagem, ficarão sempre pontos de vista a serem atingidos, sendo esta
limitação não uma incapacidade, mas uma qualidade da profissão crítica. Esta requer
uma constante e necessária evolução e um retorno constante à peça de análise e seu
estudo deve ser resultado de um esforço coletivo e contínuo, promovido por
aproximações sucessivas e diálogos recorrentes. O objeto artístico tem um caráter
protéico, multiforme, mutante, impelido pelo nível de percepção do público vário e por
sua constante inscrição nos novos tempos, assim também deve estabelecer a crítica a sua
metodologia.
O teatro, objeto da crítica teatral, é o lugar do acontecer das ambigüidades, onde
as coisas retêm mais de um sentido, seu nome já define esse processo. O vocábulo grego
théatron estabelece o local físico do espectador, “lugar aonde se vai para ver” e onde,
simultaneamente, acontece o drama como complemento visto, real e imaginário. O
representado no palco é imaginado de outra(s) forma(s) pela platéia. A audiência vê o
que não quer ver e finge não ver o que se vê. Os atores e sua equipe trabalham para
produzir a ilusão do que não é mostrado. Algumas vezes, com certa culpa, tenta-se dizer
que a ilusão é uma ilusão, uma cegueira cultural consentida.
Toda reflexão que tem o drama como objeto tem que se apoiar nesta tríade:
quem vê, o que se vê e o imaginado (o não visto). O teatro é um fenômeno que existe
realmente nos espaços, do presente e do imaginário, e nos tempos coletivos, individuais
e históricos que se formam a partir desses espaços. Este comportamento instável e
múltiplo da experiência teatral, vivido nos palcos e pelas platéias, requer um requestionamento constante de seu edifício crítico.
Se o teatro perambula pelos caminhos do ser e o do não ser, pois muito dele se
forma como não ser, como definir os gêneros, estilos, formas, períodos e movimentos
que freqüentam seus espaços? Certamente não é na segurança de conceitos imutáveis.
Não é essa uma lida fácil, nem uma fácil lida como vocês poderão ler.
84
Frente à natureza ambígua e paradoxal do drama, neste ato complexo, polifônico
e politônico, e sempre público, pois não há drama sem platéia (o que já por si só é um
drama), há que se perceber que a crítica só pode se exercer em um processo continuum.
Assim a crítica está continuamente no encalço de seu objeto e, tão logo aquela
compreenda alguns dos pressupostos de sua matéria, outros de outra ordem se
apresentam. As teorias vão sendo refeitas, negadas, retomadas, aprofundadas, enquanto
o objeto continua, em forma de Esfinge, constantemente requerendo decifração,
devorando e sendo devorado pelos incautos passageiros de seu saber.
O mundo real e objetivo, por outro lado, seja ele artístico ou não, inexistiria em
sua forma humana sem esta mesma e incompleta compreensão. O conhecimento
necessita de seu complemento, pois sem ele não aconteceria: o desconhecido.
Outro aspecto a ser considerado, e o mais importante para o entendimento do
complexo teatral, é a limitação metodológica. Há, por exemplo, uma profusão de
análises dirigidas ao fenômeno do texto teatral escrito e apenas uma pequena quantidade
tem como objeto o texto em representação. Esta insuficiência é compreensível, pois é
mais fácil compreender o texto dramático na individualidade de uma leitura, dentro de
uma relação de recepção leitor-texto, do que na complexa tarefa de acompanhamento
dos elementos textos-espetaculares que se apresentam múltiplos ante os nossos olhos,
peles e ouvidos. A palavra-tinta, no texto impresso, está grafada estaticamente em seu
suporte papel, como que adormecida, modorrenta, remanente. Cabe ao crítico-leitor,
neste processo apalavrado, despertá-la e despertando-se examiná-la como um “voyeur,”
dantes e depois de sua invasão nos domínios da mente ou da paixão. Este processo do
crítico-leitor tem suas vantagens, pois traz à tona elementos preciosos que auxiliam a
consecução futura da representação teatral, entretanto se mostra escasso frente às
necessidades concretas de realização e do entender da superioridade espetacular.
Superioridade esta reconhecida pelos gregos. Dizia Aristóteles, finalizando os
escritos de sua Poética (1462ª, 12):
(...) Mas a Tragédia é superior porque contém todos os
elementos da Epopéia (...) e demais, o que não é pouco, a
Melopéia e o espetáculo cênico que lhe acrescem a intensidade
dos prazeres que lhe são próprios. Possui, ainda, grande
evidência representativa, quer na leitura, quer na cena (Souza,
Eudoro, 1992, p. 147).
85
Se a tradução de Eudoro destaca o valor dado ao espetáculo ante o texto escrito,
por nosso antepassado, sublinha também, o que não é pouco, o prazer intenso frente ao
espetáculo, que a solitária leitura impressa esvaece.
Outra tradução deste mesmo
trecho, agora do espanhol, na edição trilíngue de Valentín Garcia Yebra (editorial
Gredos), amplia de outra forma nossa percepção sobre o dito grego, diz Yebra:
Además, la tragedia también sin movimiento produce su
próprio efecto, igual que la epopéia, pues solo con leerla se
puede ver su calidad. Por tanto, si en lo demás es superior, esto
no es necesario que se dé en ella. Después, porque tiene todo lo
que tiene la epopeya (pues también puede usar su verso), y
todavia, lo qual no es poco, la música y el espectáculo, medios
eficacíssimos para deleitar. Además, tiene la vantaja de ser
visible en la lectura y en la representación. (p. 237)
Yebra, em sua leitura, destaca a dupla visibilidade, na leitura e na representação,
que, se não é uma das marcas da superioridade teatral, serve, para verificar sua riqueza
extrema ao se defrontar com outros gêneros da poesia, para colocar o drama escrito
frente ao deleite proporcionado pelo drama representado. Uma superioridade do
espetáculo que possibilita mais uma duplicidade ao drama, uma qualidade polissêmica
imanente que a crítica não deve se furtar.
O espetáculo teatral é assim de uma natureza particular, não apenas é único a
cada apresentação, como coletivo e volátil, sucedendo-se num encadeamento múltiplo e
infinito de “aqui(s) e agora(s)” de cada cena que se completa(m) publicamente até o cair
do pano desta atividade social. Após o término de uma determinada função continuará
parcialmente manifesto na memória-imagem de cada um, precisando ser recuperado e
reagrupado a cada momento para que se possa abraçá-lo. Cria-se a ilusão de que o que
vimos foi definitivo, enquanto, no dia seguinte, frente a outro público, a representação
(semelhante talvez, mas não completamente igual) será levada a cabo. Enquanto
espectador individual olha-se uma cena, uma bela atriz, um gesto, rimos de uma piada,
enquanto isso trocam-se marcações, gestos, olhares e luzes em pontos que escapam a
nossa recepção individual. Nesta complexa realidade semiótica, frente ao espetáculo em
apresentação ou ao finalizado, o texto será assim sempre uma via segura que auxiliará a
que se chegue aos portos estrangeiros da análise.
Se há insuficiência na interpretação do teatro a partir do texto, pois o texto é
parte e não é todo, as análises do espetáculo também enfrentam suas limitações. A
86
crítica teatral muitas vezes prefere um caminho de tradição impressionista. Não o
impressionismo dos pintores, com sua diversidade em cores, tonalidades, matizes e
formas, mas sim a limitada declaração das impressões de um indivíduo que assiste a um
determinado espetáculo presenciado. O crítico, nesta situação, apresenta-se como um
conhecedor das artimanhas dos efeitos teatrais sentado na platéia, e, após fruir uma
determinada representação, escreve suas impressões sobre a atuação da fulana ou fulano
de tal; aborda a perspectiva de leitura do espetáculo feita pelo diretor daquele texto,
dizendo-se conforme ou não com a possível proposta do autor; informa também alguns
dados da montagem, do trabalho anterior do autor, do diretor ou da companhia. Em
geral o crítico termina ou começa seu artigo com uma recomendação ou negação da
representação. O papel do crítico, nesta perspectiva, é o de um perfeito especialista na
produção teatral que, a partir dos seus sentimentos sobre a montagem que viu, clama a
ovação ou a derrocada. Ao colocar-se como espectador pacato “especializado,” o crítico
deixa de focar os elementos do processo produtivo do teatro.
O século XX trouxe, com a tecnologia, meios que podem auxiliar nesta
perspectiva de observação, captação e análise da inatingível totalidade do espetáculo
teatral em representação: a fotografia e a gravação em som e vídeo (quando permitidos
pela produção do espetáculo). Estas podem registrar, acrescentar e ampliar o
conhecimento do espetáculo, permitindo o folhear das cenas e o focalizar em detalhes
que seriam perdidos ao registro e a observação, não fosse o novo meio de fixação.
Permite assim ao analista reunir uma maior quantidade de informações sobre os
elementos visuais e sonoros da peça apresentada, o que auxilia numa análise acurada.
Porém, se estes meios contribuem no processo de observação e análise, por outro lado
exigem não apenas uma dedicação maior ao objeto, mas um arsenal crítico de maior
complexidade para compreensão do fenômeno em pauta.
Outra prática necessária seria a de acompanhamento de várias representações da
mesma peça, atitude que não é totalmente desconhecida da crítica. Os críticos que
acompanharam o início do melodrama francês, no começo do século XIX, assistiam a
mais de uma representação, apontando inclusive algumas das diferenças sobre o que
acontecia na ribalta entre os espetáculos vistos; e isto apesar de compartirem a
metodologia impressionista mencionada.
Babié, por exemplo, reportava sobre a quinta apresentação que assistira de uma
peça: “havia uma fila imensa de curiosos e a sala estava repleta de gente procurando por
87
ingressos.” Acrescentava o crítico, ao comentar a encenação, que o dramaturgo havia
feito alguns reparos no espetáculo desde a estréia, escrevendo que o autor havia sido
dócil ao conselho de amigos e da crítica “imparcial”, provavelmente ele mesmo,
fazendo mudanças importantes nas últimas cenas do primeiro ato e ao final da peça
(Gerould and Przybos 88).
É neste ponto que a crítica genética contribui ao método de análise do fenômeno
teatral, abrangendo outros componentes no exame do processo criativo de um
espetáculo. Primeiro a possibilidade de considerar para estudo o processo de criação do
espetáculo na sua gênese formativa, a partir dos primeiros ensaios até a estréia. Outra
possibilidade é a análise da gênese teatral na sua exposição frente ao público,
focalizando as diferentes edições do mesmo espetáculo, até a última representação
teatral. Assim, este estudo voltaria a sua atenção ao processo público da representação,
que deveria envolver a recepção da platéia como participante do espetáculo.
A crítica genética, nascida nos campos seguros da literatura, é conhecida por
problematizar o papel do texto literário, por “demolir” o estatuto soberano do texto
publicado e abrir a possibilidade de observação do texto, utilizando-se de todas as
versões e notas feitas anteriormente à sua publicação: o prototexto ou avant-text. Esta
crítica dessacraliza o texto “final” ao colocar em discussão toda a pré-escritura realizada
na publicação de um determinado material, a gênese do texto, seu passado formador e
suas variantes, e os caminhos e descaminhos percorridos pelo autor,
Neste processo o texto pré-publicado questiona objetivamente o texto publicado,
ao revelar as artimanhas, artifícios, escolhas, ensaios e esquecimentos do autor na busca
do termo pretensamente final. E, reciprocamente, coloca em cheque o estatuto da versão
publicada de um trabalho, ao evidenciar as diferenças, expõe o definitivo de um
determinado texto: sua indeterminação. O que permanece é o movimento, prenuncia um
adágio zen.
O prototexto, como é chamado todo manuscrito anterior à publicação do texto
escrito, pode ser não apenas um manuscrito (do latim, manu scripto), que pertence à
fase dos rudimentos do autor em direção ao produto final (frases, desenhos,
poemasetc.), mas também manu colagem, manu recorte, ou seja, coletas, ruínas, cacos
de elementos da cultura que favorecem a construção da cena escrita ou da personagem.
Assim, todo e qualquer elemento figurativo ou sonoro introduzido na elaboração da
obra final pode fazer parte desta composição.
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Ora, este processo de coleta para a composição do texto escrito, seja um
romance, um conto ou mesmo uma peça de teatro, é idêntico ao caminho que atores e
diretores percorrem ao construir sua personagem ou cena, juntando agora elementos
visuais, cacos de imagens, lembranças, poesias, vivências pessoais significativas ou
construídas (imaginadas). Estes recortes de vivência pessoal ou emocional estão direta e
indiretamente ligados à construção da personagem, do cenário ou da cena que se está
elaborando. Estes elementos antecedem a obra teatral em sua apresentação pública,
fazendo parte da composição da personagem ou, para usar um vocábulo específico do
meio teatral, compõem a elaboração da partitura da personagem: notas, esboços,
rascunhos, desenhos, recortes, figuras, mapas, gestos, pausas, olhares que, juntamente
com o texto “original”, constroem a representação do ator e da cena.
Concomitantemente forma-se, nesta relação de construção da obra com seus
precedentes, o texto publicado ou o espetáculo representado e seus originais préexistentes (pré-textos e pretextos), um arquitexto, um texto maior formado pela interrelação destes conjuntos. Este arquitexto, formado pela interrelação e/ou somatória dos
textos relacionados que se adicionam, texto publicado e seus antecessores, formam
camadas que se compõem, dialogam e se contradizem.
Se a crítica genética, por um lado, inicialmente limitava a importância do texto
publicado, por outro, amplia o valor dos textos que o originaram. Esta revalorização do
texto publicado ou final – considerado agora como produto e processo de um trabalho
de seleção e negação de palavras, idéias, imagens..., que podem ser desveladas – faz
surgir assim um texto maior e mais complexo, onde se reconhecem as sendas e os textos
preliminares que foram produzidos, revelando a infraestrutura do texto finalizado.
Não é apenas o texto publicado ou seus predecessores que estão em jogo, mas
este processo de relação, de afirmação e denegação entre eles, o que resulta no texto
dado a público. Este arquitexto, colocado como pano de fundo frente à execução da
obra, age como reagente, expondo os componentes que originaram a obra revelando
elementos de seu processo criativo. Este processo, nas particularidades da análise
teatral, coloca a mostra os processos urdidos que fizeram emergir a montagem. Estes
elementos colecionados pelos atores e artistas durante a constituição de um espetáculo,
a muito custo garimpados no processo de ensaio, vão aparecendo pouco a pouco como
muletas e amuletos do edifício espetacular.
89
Este processo de desconstrução e construção do texto escrito final, denunciado
pelos críticos geneticistas, é de grande valia para a análise do texto-espetacular. Este
fato é fácil de ser compreendido por aqueles que produzem cinema ou teatro, pois o
conceito de obra final neste campo sempre teve algo de instável e remodelar. Vamos a
alguns exemplos: nos tempos iniciais do cinema norte-americano era comum filmaremse com duas câmeras, uma para uma versão européia e outro para a norte-americana,
muitas vezes com finais distintos. Muitos clássicos do cinema, que supomos serem
únicos, têm diferentes versões para diferentes culturas; antes do projetor de películas se
motorizar, cada projecionista rodava o filme manualmente numa velocidade distinta,
assim como os donos das casas de projeção colavam, cortavam e montavam os filmes
entre si, face ao sucesso ou a qualidade do material que se desfazia, fazendo de cada
filme exibido uma experiência única. Era um tempo que o cinema assemelhava-se muito
ao teatro na singularidade da apresentação.
Os geneticistas, na sua preocupação de exame desta relação texto e prototexto,
vêm aportando também novas formas de apreensão desta dicotomia e buscando meios
apropriados de estudo destes documentos. Willemart analisa o papel da instabilidade e
da estabilidade dos elementos diversificados encontrados no prototexto, com seus
rabiscos, sobreescrituras, desenhos e múltiplas versões:
O geneticista deve considerar essas divisões e as incoerências
de uma mesma página como formas que foram estáveis por um
momento, mas que, percebidas e retrabalhadas pelo escritor,
tornam-se instáveis, fruto de um pensamento sempre em
movimento num campo também instável. Destacar as relações
de vizinhança, sublinhar as relações do percebido com o texto e
sua conseqüência, não o acaso, mas a instabilidade, notar as
relações transversais ignoradas com freqüência, diferenciar as
camadas que se chamam umas às outras.... (Willemart, “Da
Forma ao Processo” 35)
Esta relação de instabilidade/estabilidade na análise dos detritos da criação e dos
procedimentos de negação e escolha, se aplicado às anotações, esboços e tentativas do
ator ou diretor, trazem à superfície novas significações do produto final. A metodologia
da análise genética também problematiza a questão da recepção da obra de arte. O
espetáculo teatral, como obra “acabada” é instável por natureza, não existe como “obra
definitiva,” e a comparação entre as versões diferentes do mesmo espetáculo, seja em
90
seu processo de ensaio ou em suas apresentações públicas, pode trazer novas questões
ao entendimento da performance teatral.
O texto teatral escrito, publicado ou não, na perspectiva da sua encenação, é,
para a equipe técnico-artística encarregada de sua concretização, um prototexto.
Prototexto, do grego prôton, primeiro, primitivo, anterior, original... Este texto teatral
escrito, que pode ser um texto de Shakespeare em face do palco futuro, passará por um
processo amplo de transcrição e transcriação (Plaza). E, como texto em mutação, irá ser
submetido a um processo constante de prototextualização – se podemos utilizar o
termo, desconhecido do Aurélio – ou seja, a completa instabilização do texto escrito que
transforma o elemento acabado (escrito) num esboço para o espetáculo. O processo de
arquitetar uma montagem é o de reescrever continuamente aquele texto original, inscrito
assim num novo sistema. O texto teatral está sempre num contínuo movimento. Como
texto dramático segue as “normas” de configuração do texto escrito que caminha do
prototexto ao texto, mas ao ser transferido a outro sistema semiótico transforma-se em
seguida em novo prototexto frente a esta nova fase.
Bibliografia
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Tradução: Valentín Yebra. Madrid: Gredos, 1992.
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mesmo: O espetáculo como texto no teatro de Samuel Beckett. Tradução com
comentários do autor ao português de Robson Corrêa de Camargo e Adriana
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GRÉSILLON, A. “Nos limites da gênese: da escritura do texto de teatro à encenação.”
Estudos Avançados 23, 1995, p. 269-285.
91
PLAZA, Julio. A tradução intersemiótica como criação. São Paulo: Perspectiva, 1987.
WILLEMART, Philippe. “Da Forma ao Processo de Criação.” Manuscrítica 8. São
Paulo: AnnaBlume, 1995, p. 11-35.
______. “Instabilidade e Estabilidade dos Processos de Criação no Manuscrito
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UBERSFELD, A. “Didascalies.” Dictionaire Enciclopédique du Théâtre. M. Corvin.
Paris: Bordas, 1995, p. 277-278.
92
FESTA E MANIFESTAÇÕES POPULARES
Santo Antônio de Lisboa (Portugal) e de Borba (Amaz onas): entre
o rito e o teatro em espaços públicos , Sérgio Ivan Gil Braga (UFAM)
Devoção e festa
Esta comunicação de pesquisa tem como tema a comparação entre as formas de
devoção e festa associadas a Santo Antônio na cidade de Borba, município do Estado do
Amazonas, Brasil, e em Lisboa, Portugal, cidade natal de Fernando Martim de Bulhões
y Taveira Azevedo (Santo Antônio).
Priorizamos para estudo diferentes aspectos culturais relacionados às festas e
devoções a Santo Antônio, que tem como ponto culminante o dia 13 de junho, data
alusiva à morte do santo falecido em Pádua, na Itália, com 36 anos de idade, em 1231.
Um santo de duas pátrias, pois nasceu em Lisboa no ano de 1195, filho de uma família
rica desta cidade. Dedicou-se aos estudos bíblicos e desempenhou durante dez anos as
funções de cônego regular em Portugal. Pertenceu a ordem dos franciscanos
desenvolvendo amizade pessoal com São Francisco de Assis, este com forte
sensibilidade para os problemas e realidades dos cristãos pobres.
Com 25 anos de idade partiu para o Marrocos movido pelo intento de
cristianização dos muçulmanos, o que lhe conferiu uma vida relativamente curta, porém
devotada ao catolicismo. Retornou à Itália muito doente, após ter contraído malária em
sua cruzada espiritual, padecendo muitos anos enfermo e tendo os seus últimos dias de
vida no convento de Arcella em Pádua. Foi declarado santo menos de um ano decorrido
sobre a sua morte, em 30 de maio de 1232 (11 meses e 17 dias após a sua morte). Uma
das poucas situações de canonização rapidamente reconhecida pela Igreja católica
(Milton, 2002: 127-129).
Conhecido no imaginário popular como “santo casamenteiro”, pela habilidade
exercida na conciliação de casais, “santo de todas as necessidades”, pela atenção
dispensada aos mais necessitados, apresenta-se vestido com hábito franciscano levando
no braço a imagem do Menino Jesus e no outro um lírio como sinal de pureza espiritual.
Um dos costumes associados ao santo é a distribuição de pães aos pobres, que
teve a sua origem em uma senhora francesa, Luisa Bouffier, de Toulon na França, cuja
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promessa estaria relacionada à abertura de estabelecimento comercial, ficando a dádiva
como ex-voto dedicado ao Santo (Marino, 1996: 127-129).
Mas esta não é a única versão sobre a origem da distribuição dos pães como
agradecimento a Santo Antônio. Bertelli (2007: 60) faz referência a outra situação,
conta que “sua origem remonta ao fato de ter distribuído aos pobres todo o pão do
convento em que vivia, deixando em apuros o encarregado de distribuí-lo aos frades, na
hora da refeição. O padeiro julgou ter sido vítima de roubo e contou a frei Antônio o
ocorrido. Este o mandou verificar melhor o lugar onde havia colocado os pães. Para
surpresa de todos, os cestos estavam tão abarrotados que foi possível alimentar os frades
e os pobres da região”.
Devoção a Santo Antônio no Brasil
Ronaldo Vainfas (2000) observa que as devoções aos santos católicos no Brasil
foram introduzidas pelas missões religiosas, que desde os primeiros séculos de
colonização associaram catolicismo com práticas populares. Dentre os muitos santos
católicos que foram incorporados à religiosidade popular brasileira, podem-se destacar
Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora Aparecida, São Benedito, São João, Santo
Antônio e outros mais.
No Brasil, o sincretismo das religiões de matriz africana com os santos católicos,
como no candomblé baiano, tem associado Santo Antônio ao orixá Ogum, senhor da
guerra e da metalurgia, provavelmente pela cruzada espiritual empreendida por este
Santo no norte da África (Marrocos).
Luiz Mott (2005) ressalta na fé popular devotada a Santo Antônio, desde o
Brasil Colônia, dois atributos, o de restituir as coisas perdidas, chamado pelo jesuíta e
orador Antônio Vieira de “deparador”, “que encontra o perdido” e o espírito de
guerreiro e soldado associado à defesa do Estado Português e Brasileiro.
São muitos os relatos históricos em que Santo Antônio combatera ao lado de
soldados, inclusive alcançando posto militar. Conforme Mott (2005: 120), “sua mais
venerada estátua no Rio de Janeiro, a do convento franciscano do largo da Carioca,
recebeu em 1705 o bastão de comando do governador da Colônia do Sacramento,
Sebastião Veiga Cabral, em gratidão por ter protegido os seiscentos homens de sua
guarnição quando sitiados durante seis meses por seis mil soldados espanhóis apoiados
por navios de guerra”.
94
Outra situação mencionada por Mott (2005: 124), refere-se à instituição de
Capitão-do-mato, na qual ao Santo se conferia a tarefa de captura e restituição ao senhor
de escravos fugidos. Mencione-se, neste caso, quando “poderosa força armada partiu do
Recife para desbaratar o quilombo de Palmares, o governador João da Cunha Souto
Maior, por portaria de 13 de setembro de 1685, mandou alistar o glorioso Santo Antônio
como praça do exército, pagando ao síndico do convento de Olinda o soldo a que tinha
direito”. Nas palavras de Pereira da Costa (apud Mott, 2005: 124), “efetivamente partiu
Santo Antônio para a guerra dos Palmares, acaso confiada a sua imagem a frei André da
Anunciação, religioso franciscano, que marchou como capelão, e somente regressou
quando terminou a campanha, com a completa destruição da famosa república
palmarina, a Tróia negra”.
Charles Wagley (1988: 204), em estudo realizado na comunidade de Itá (ou
Gurupá), no baixo Amazonas, em fins da década de quarenta do século passado, deu
atenção especial à festa de Santo Antônio realizada anualmente no lugar. Naquela
época, identificara a festa como um elemento de agregação das pessoas da comunidade
e de comunidades vizinhas, com práticas tradicionais de levantamento do mastro, de
orações ao cair da tarde durante a novena (ou trezena, no caso de Santo Antônio), de
danças, da procissão náutica da “meia-lua”, das representações do grupo da folia
defronte de cada casa e do corte do mastro votivo e da limpeza das casas. Chama à
atenção, entretanto, para o controle exercido pela Igreja católica sobre a festa,
contribuindo para abreviar e não raro suprimir muitas dessas manifestações tradicionais
devotadas ao santo.
De fato, não há como dissociar a consolidação histórica do catolicismo no Brasil
e na Amazônia, sem fazer referência às formas populares como se viveu a crença cristã
e a fé devotada aos santos populares católicos, cuja tradição remonta, sobretudo, à
península ibérica.
Santo Antônio padroeiro de Lisboa
Em Lisboa, as homenagens a Santo Antônio envolvem várias festividades, entre
as quais, o desfile das Marchas de diferentes bairros da cidade, na noite do dia 12 de
junho na avenida da Liberdade e arraial e procissão no bairro da Alfama, esta última no
dia 13 de junho, data de morte do Santo.
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Nestes dias, os arraiais localizados na Alfama e em outros bairros lisboetas,
como o Castelo, da Bica e Mouraria atingem o ápice das comemorações, com muito
vinho, cerveja, sardinha assada com pão e “manjericos”, estes constituídos de réplicas
de cravos (flôr) de diferentes cores, confeccionados em papel de seda, cuja haste na
parte superior recebe colado um bilhete em forma de verso e em tom jocoso, como o
seguinte exemplo: “Manjerico com um cravo/E um verso acompanhar.../Acho que nada
mais falta/Prá nosso amor começar”.
As Marchas dos bairros de Lisboa existem desde 1937, uma tradição herdada do
Estado Novo que se modificou ao longo do tempo, incorporando elementos artísticos e
satíricos. Cada bairro se encarrega de construir um enredo envolvendo letra e música,
alegorias e coreografias com vistas a dar visibilidade a elementos característicos do
próprio bairro. António Firmino da Costa (1999) em estudo feito sobre os desfiles das
marchas no período de 1932 a 1997, num total de trinta e duas edições, ressalta que o
bairro da Alfama sagrou-se sete vezes campeão, e nas demais edições freqüentemente
ocupou posições próximas às primeiras colocações. Segundo o mesmo autor, nem todos
os bairros se apresentam nas Marchas de Lisboa, há em média um número de dezoito a
dezenove bairros que se apresentam anualmente, incluindo a Marcha do Mercado da
Ribeira que não constitui propriamente um bairro.
No bairro da Alfama, o patrimônio histórico edificado e as paisagens festivas e
religiosas de uma época que se atualizam no presente, a cidade como palco
materializada nesta “sociedade de bairro” (Firmino da Costa, 1999), constituem
referência para o imaginário dos sujeitos que nela vivem e visitam o bairro. Ao mesmo
tempo, que essas mesmas imagens justificam os eventos (arraiais e procissão) com o
próprio peso que emprestam do passado (Connerton, 1999).
Quanto à procissão, desde as primeiras horas da manhã se observa uma multidão
de fiéis que visitam a igreja de Santo Antônio, bem como a Catedral da Sé que fica
muito próxima. Orações, pagamentos de promessas, acendimentos de velas, depósito de
flores junto a imagem de Santo Antônio que fica na parte externa da igreja constituem
atividades constantes até o momento de saída da procissão, cujo início é à meia tarde.
Impressiona muito o comércio de artigos religiosos que se encontra entre a igreja
de Santo Antônio e a Catedral da Sé. Muitos vendedores ambulantes são migrantes,
entre os quais brasileiros, angolanos, mas também portugueses que não vendem
somente artigos religiosos relacionados a Santo Antônio, mas também artigos mágicos
96
como sabonetes de glicerina fragrância “canela” para “atrair dinheiro, bons fluídos e
paz”, de “alecrim” para atrair “bons estímulos, proteção e limpeza”, defumadores,
amuletos como “olho turco” para “afastar mau olhado”, sementes de “tento” (Ormosia
sp.) vermelho e preto, planta nativa da Amazônia, com suposto poder ou força espiritual
para também afastar malefícios etc.
A procissão parte da igreja de Santo Antônio em direção a Catedral da Sé,
quando então passa a percorrer as muitas ruas do bairro da Alfama, recebendo cada vez
mais gente. Muitos moradores ou transeuntes preferem ver passar a procissão,
colocando inclusive toalhas nas soleiras das janelas que se abrem para a rua. A
procissão dura em média três horas, quando então retorna a igreja de Santo Antônio.
Há espaço também para se aproveitar da procissão com a finalidade de promover
denúncias contra a administração municipal, como é o caso do “Agrupamento 262 de
escoteiros da Sé - Lisboa”, que afixara na própria catedral em local visível, para aqueles
que integravam a procissão, denúncia pública contra a Câmara de Lisboa, tendo em
vista a cobrança de 898,22 euros como taxa para instalação de barraca no arraial da Sé.
Fato este que impossibilitara a instalação da referida barraca. Outro caso observado no
percurso da procissão, no chamado “Beco do vigário”, foi uma manifestação de
moradores da Alfama, empunhando faixas e cartazes para denunciar as altas taxas
cobradas sobre “licenças” concedidas pela Câmara de Lisboa. Uma destas faixas dizia o
seguinte: “Se a câmara não empatar, isto é capaz de andar”. É importante ressaltar, que
o bairro da Alfama, além de constituir morada de muitos lisboetas é também um local
que recebe muitos turistas, que por ele passam diariamente subindo suas ladeiras e
escadarias cuja parte alta se pode avistar o rio Tejo e parte da cidade.
Santo Antônio na cidade santuário de Borba
As primeiras notícias que se tem de Borba, referem-se à missão jesuítica fundada
em março de 1728, pelo padre jesuíta João de Sampaio. De acordo com Arthur Cezar
Ferreira Reis (1997: 9), o Regimento das Missões editado em 1686 disciplinou a ação
missionária na Colônia e no caso, na Amazônia, definindo entre outras situações, “a
extensão das liberdades da colônia, definindo a extensão das liberdades do nativo”. Os
missionários jesuítas tiveram papel fundamental nesse processo, reunindo populações
97
indígenas em um mesmo local, algumas delas inclusive trazidas ou “descidas” de outras
localidades situadas às margens de rios da várzea amazônica.
Reis (1997: 73) dá grande destaque a ação missionária de Frei João de Sampaio
no rio Madeira. Segundo o autor, o religioso “aparece como dos mais famosos
cristianizadores do Madeira. Para alguns autores foi o fundador da aldeia de Maturá. Só
há certeza, porém, de que nas proximidades da cachoeira de Santo Antônio aldeiou os
índios com os quais entrou em relações, em março de 1728”.
Serafim Leite (apud Ferrarini, 1981: 28-29) relata que “a Aldeia de Santo
Antônio das Cachoeiras, era considerada a mais remota e trabalhosa em todo o gênero
de trabalhos, de moléstias, que ali indefectivelmente padeciam os missionários. A aldeia
de Santo Antônio das Cachoeiras permaneceu no catálogo até 1740. O seguinte, que é
de 1744, traz já, e pela primeira vez a aldeia de Trocano, que a substituiu”. De acordo
com este mesmo autor, “Silva Araújo dá-lhe genealogia mais complicada. José
Gonçalves da Fonseca, que esteve nela em 1749, diz que a mudança se fez para buscar
melhor clima e para se livrarem das vexações dos bárbaros vizinhos. Com a mudança
não se viram porém livres dos Muras, que tiveram algumas vezes o atrevimento de
investir contra a Aldeia do Trocano, e para cautela de semelhantes insultos, vive o
missionário em uma casa entrincheirada destacada, para dela se defender melhor de
alguma invasão, socorrida de dois seculares, que lhe assistem”.
Conta-se que a imagem de Santo Antônio foi trazida por portugueses para a
localidade de Santo Antônio das Cachoeiras, localizada no Alto rio Madeira, entre o rio
Jamarí e a primeira cachoeira do Madeira, aldeia fundada em 1724 por missionários
jesuítas. Segundo a crença, a imagem do Santo descia o rio Madeira em uma jangada e
era encontrada em Borba, na beira do rio em meio à lama. Os donos do Santo várias
vêzes resgataram a imagem até que em uma vez a imagem “não quis mais sair ficando
presa à raiz de uma árvore”, conhecida na região por Samaumeira.
Diz-se que Santo Antônio auxiliou as tropas legalistas na defesa da cidade de
Borba frente aos Cabanos, na guerra da Cabanagem, contando para isso com o apoio de
indígenas e mestiços, bem como negros residentes na cidade que deram origem as
primeiras genealogias de famílias borbenses. Fato lembrado com muito orgulho pela
população local, que atribui inclusive como graça do Santo o fato de Borba ter resistido
às muitas investidas dos Cabanos e nunca ter sido conquistada pelos mesmos.
98
A influência negra pode ser visualizada na festa principalmente no que diz
respeito às danças e à música, em especial em uma “dança dramática” que se
convencionou chamar de “dança do gambá”. De fato, encontramos a dança do gambá
em vários municípios do médio e baixo Amazonas. Dança essa que possui vários
elementos comuns com outras manifestações de herança negra, como o Carimbó do
Pará e o Marabaixo de Macapá, entre os quais, os tambores de tronco escavado com
pele em uma das extremidades, os cantos enunciados no sistema canto e resposta, a
dança circular, a presença da sensualidade nos movimentos corporais dos dançarinos
etc.
Pode-se dizer, que tais traços culturais e outros mais estão presentes em festas
como a de Santo Antônio de Borba, que mantém certas práticas tradicionais, como a
procissão fluvial, levantamento do mastro, as trezenas, entre outras manifestações de
longa permanência na história regional. Mas, por outro lado, observa-se que a festa
assume novos elementos da contemporaneidade, como o sentido comercial, a dimensão
turística de visibilidade e promoção do município, a perspectiva de possível
reconhecimento e quiçá tombamento enquanto bem cultural imaterial de expressão
amazônica e brasileira junto ao IPHAN, além de conferir visibilidade às heranças
negras, indígenas e de colonização ibérica.
A basílica de Borba hoje é ligada diretamente ao Vaticano e a igreja de Santo
Antônio recebeu da igreja de Pádua, onde faleceu o Santo, uma relíquia constituída de
um pedaço de pele de Santo Antônio. A única igreja na América Latina que tem uma
relíquia. Borba também foi elevada à cidade santuário do Estado do Amazonas através
da Lei estadual n° 856, de 28 de dezembro de 1950.
Um costume em Borba é o de cobrir a imagem de Santo Antônio com um
“manto de cédulas” para sair na procissão do dia 13 de junho. Conta-se que esta tradição
remonta a um trabalhador vindo do nordeste do Brasil, Zé Pedro, que almejava
enriquecer e ofertar como promessa um décimo de sua riqueza à igreja de Santo
Antônio em Borba. Ocorreu, entretanto, que Zé Pedro teve a sua fortuna roubada por
ladrões, muito embora estes não tenham tirado proveito do roubo por intercessão de
Santo Antônio, que apareceu a todos na figura de um padre. A fortuna retornou a Zé
Pedro e a forma como ele pagou a promessa foi confeccionando um “manto de
cédulas”, para que o Santo fosse ornado com esta dádiva durante a procissão.
99
Quanto às trezenas e procissões, chama-se trezena porque a data de falecimento
do Santo foi no dia treze de junho, ao contrário de novena com nove dias de rezas dos
fiéis, para Santo Antônio são treze dias. Cumpre salientar, que em todos os meses do
ano, no dia 13 de cada mês é realizada a “trezena” na igreja. Na verdade, reza-se apenas
no dia treze, mas no mês de junho é realizada a trezena propriamente dita, começando
no dia primeiro com “Alvorada” festiva e encerrando no dia 13 com procissão. No final
das trezenas são sempre realizadas procissões.
Durante o ano a procissão percorre as ruas próximas à igreja de Santo Antônio,
ficando circunscrita ao centro da cidade. Na época da festa o número de pessoas
aumenta muito, trata-se de uma multidão que percorre o centro e alguns bairros da
cidade, como o Ipiranga e o Cristo Rei. Ao longo da procissão são entoados cantos
religiosos e quando se aproxima da igreja, no momento de sua chegada, são executadas
músicas mais alegres por instrumentistas residentes na própria cidade e que há muitos
anos vêem nesta atividade não somente divertimento, mas também uma forma de
devoção a Santo Antônio.
Em nosso entender, a procissão representa também uma forma de peregrinação e
penitência dos fiéis, já que muitos deles, sobretudo à época da festa levam consigo ou
empunham ex-votos que atestam graças alcançadas, sendo muitos os exemplos:
miniaturas de casas, crianças vestidas de anjo ou túnicas a semelhança da ordem
franciscana, fotografias etc. Outros preferem depositar os ex-votos na igreja, que
posteriormente são transferidos para uma sala que se convencionou chamar de “sala dos
milagres”, um verdadeiro museu da fé popular, reunindo réplicas de órgãos humanos,
fotografias, cartas escritas a próprio punho etc. O mais correto seria chamar esta sala de
“Museu dos milagres”, tendo em vista os testemunhos e a memória de fé popular que
este espaço abriga.
De tudo que buscamos registrar sobre Borba, sem dúvida nenhuma as formas de
devoção e festa que se encontram na cidade constituem expressões populares que
remontam suas raízes, no mínimo, há meados do século XVIII na Amazônia, mas
também à época em que viveu Santo Antônio na Europa e no Norte da África, por tudo
o que ele representou em seu tempo. Fé popular cuja chama não se apaga, posto que faz
ainda sentido para aqueles que procuram as bênções de Santo Antônio em uma cidade
sagrada que ao longo do tempo se tornou Borba, a antiga Trocano do rio Madeira.
100
Brincadeira ou brinquedo: jogo e segredo
Em termos estruturais, a figura de Santo Antônio representa para os seus fiéis e
adeptos um modelo moral de vida, auxílio nas questões que envolvem processos de
territorialização, mediação de conflitos e assistência aos pobres e necessitados.
Por outro lado, a festa que se realiza em homenagem a Santo Antônio, no espaço
público, na praça ou na rua, assume a dimensão de espetáculo e entretenimento
agregando inclusive novos públicos e diferentes formas de consumos culturais.
Nesta medida, assumimos a cidade, a praça, a rua onde são realizados os eventos
religiosos e populares, para além de seus aspectos físicos e funcionais, como espaços de
encontros sociais. Entendemos que as manifestações de cultura popular representam
apropriações do espaço público e discursos sobre o urbano, onde se encontram os
próprios sujeitos-atores dos processos sociais que lhes dizem importância, em constante
mudança e buscando formas de inclusão social perante um Estado, que não raro
desconhece tais expressões culturais.
Do ponto de vista religioso, Victor W. Turner (1980, 1988) identifica no ritual
uma conduta formal prescrita em ocasiões não dominadas pela rotina tecnológica e
relacionadas com a crença em seres ou forças místicas. Para o autor, a metodologia
utilizada para a abordagem do discurso ritual deveria considerar três classes de dados:
1) forma externa e características observáveis; 2) interpretações oferecidas por
especialistas religiosos e simples fiéis; 3) contextos significativos em grande parte
elaborados pelo antropólogo.
Por outro lado, Richard Schechner (2000: 89) verifica no teatro três níveis
diferentes que operam transformações nos indivíduos: 1) no “drama” ou no
“argumento”; 2) nos “atores”, “cuja tarefa especial é experimentar um rearranjo
temporário de seus corpos/mentes”, o que o autor convencionou chamar de “transporte”;
3) e no “público, onde a mudança ou “transporte” vivenciados no drama “podem ser
passageiros” ou temporários, enquanto “entretenimento”; ou “permanentes”, tratando-se
de “ritual”. Para Schechner (2000: 37; 63), o teatro é uma “mistura, uma trama de
entretenimento e ritual”. Além disso, para este autor, a “reflexividade do teatro tem se
dado junto com a participação do público”.
A nossa hipótese é de que, quanto mais os eventos se apropriam do espaço
público, das praças e das ruas, a festa aumenta em escala e freqüência de pessoas.
Podendo assumir a dimensão de espetáculo, em “reflexividade” de um público que
101
acompanha a apresentação dos produtores culturais, a quem cabe “julgar” o sucesso do
que se põe em cena. Sem necessariamente descartar a dimensão de processo ritual que
marcaria permanência de elementos religiosos característicos em tais eventos.
Penso que a melhor forma de conjugar rito e teatro nas festas que temos
estudado, consistiria em reconhecer nelas a expressão popular de “brincadeira” ou
“brinquedo”. Tal como nos ensina Radcliffe-Brown (1973: 116), quando nos diz que: “o
parentesco por brincadeira é uma combinação peculiar de amistosidade e antagonismo.
O comportamento é tal, que em qualquer outro contexto social exprimiria e suscitaria
hostilidade; mas não é entendido seriamente e não deve ser tomado de modo sério. Há
uma pretensão de hostilidade e real amistosidade”.
Em termos de cultura popular no Brasil e na Amazônia, a brincadeira ou
brinquedo corresponderia a um jogo, cuja estratégia implicaria necessariamente em
manter um segredo por parte de quem joga, condição fundante para surpreender e lograr
êxito sobre um contendor ou com quem se joga.
Em Portugal e nos Açores, uma forma de “brinquedo” característica da cultura
popular são as “vindictas”. Segundo Oliveira (1995: 125; 351) “uma instituição popular
em Portugal”, que se expressaria nos chistes, nas zombarias, desafios e outras formas de
suspensão da ordem formal baseando-se na ironia e no riso. A título de exemplo,
destaquem-se os martelinhos de plástico que se permitem bater em alguém que se
encontra nas ruas por ocasião do São João do Porto, ou o toque de alho porro nas
mulheres por parte de outro alguém, como assinala aquele mesmo autor, ou seja, formas
de sociabilidade efêmera que quebram a individualidade própria da vida urbana. Outros
“arroubos” são permitidos à época do Divino nos Açores, quando se promove o “bodo”
no espaço público, durante a procissão que sai às ruas ou no adro dos Impérios,
ofertando comida, alcatra e pães, aos dignatários e convidados anônimos. Aqui também
é a individualidade da vida urbana que é afrontada, em dádivas e contra-dádivas que
aproximam as pessoas ao mesmo tempo que se permitem conversar e exercitar a própria
condição pessoal, como num jogo de espelhos.
Quanto ao “segredo”, Roger Bastide (1983) reconhece uma informação, um
saber, sobre o qual se tem o poder de revelar ou não. Goffman (1982) visualiza esta
mesma situação no controle expressivo dos sujeitos perante os outros, onde o
comportamento não verbal constitui meio para o estabelecimento de relações
interpessoais.
102
Segundo George Simmel (2004), “segredo” enquanto “possibilidade de um
segundo mundo em paralelo com o mundo manifesto”. Mundos sacralizados e
secularizados, interpretados enquanto modelos intelectualmente construídos a partir da
observação das relações sociais culturalmente tecidas em uma dada sociedade. De um
lado, a idéia de transparência democrática, de sociedade esclarecida, erudita; de outro,
um mundo paralelo, de representações e vivências diversas, não raro contraposto ao
primeiro. Antípodas que segregam e mascaram domínios sociais como na sociedade
brasileira e portuguesa.
Entre o rito e o teatro em espaços públicos
É nessa perspectiva que sugerimos ler, entre o rito e o teatro, as brincadeiras nas
praças públicas aonde se encontram os arraiais e nas ruas que se transformam em palco
para as procissões e desfiles das Marchas de Lisboa em homenagem a Santo Antônio.
Ao mesmo tempo, que reconhecemos certos aspectos religiosos e dimensões de
entretenimento característicos e inerentes a pessoa e carisma do Santo, face aos seus
respectivos fiéis ou mesmo admiradores. Voltamos, portanto, aos atributos inerentes ao
próprio Santo, ou seja: um modelo moral de vida, auxílio nas questões que envolvem
processos de territorialização, mediação de conflitos e assistência aos pobres e
necessitados.
Enquanto um modelo moral de vida, parece-me que se trata de reconhecer um
discurso e ethos religioso apregoados nos ritos católicos, que em última instância
confirmariam uma comunidade moral chamada igreja. Tal como se observa nas novenas
em todo o dia 13 do mês, na cidade de Borba, nas procissões que saem a rua e cumprem
trajetos determinados tanto em Borba como na Alfama em Lisboa, nos casamentos
realizados no dia 13 de junho na igreja da Sé confirmando a importância deste
sacramento tão caro a Santo Antônio, a liturgia da missa, entre outras formas
ritualísticas.
Por outro lado, trata-se também do auxílio de Santo Antônio às questões que
envolvem processos de territorialização, como a defesa do próprio reino de Portugal
diante dos mouros, as cruzadas promovidas no Norte da África, a condição de capitão
do mato restituindo negros fugitivos aos senhores do Brasil colonial, bem como
sentando praça em prol da defesa das invasões estrangeiras no Brasil. Destaque-se
também a alteridade Mura à época da cabanagem, quando indígenas Mura combateram
103
a favor e contra os Cabanos, sendo que aqueles que habitavam a cidade de Borba com a
ajuda do Santo lograram êxito frente aos Cabanos não permitindo que os mesmos
conquistassem a cidade de Borba. Saliente-se o comércio e as práticas mágicas de
migrantes e portugueses no âmbito das praças, dos bairros de Lisboa que se expressam
nas Marchas e o sentido de uma “sociedade de bairro”, todos exemplos de formas de
apropriação de territorialidades, mesmo que de forma efêmera, sob o signo festivo e
religioso de Antoniano.
Quanto à função de mediação de conflitos, além da explicitação da própria
situação que implicaria oposição de interesses, espera-se com a intercessão do Santo
tolerância e possibilidades de mediação, quando se esgota o diálogo, tal como se
verifica nas reivindicações de moradores da Alfama e dos escoteiros da Sé contra as
altas taxas das “licenças” pagas à Câmara de Lisboa. Posto que a Alfama só “pode andar
se a Câmara não empatar”.
E, por fim, a assistência aos pobres e necessitados, que nos sugere em termos de
espaço público o exercício do direito de cidadania dos próprios fiéis, enquanto formas
populares de se viver o catolicismo que se expressa nas ruas e praças. Dando lugar à
música do Gambá e a pequena orquestra que “embala” as procissões em Borba. Os
pagamentos de promessas com ex-votos e busca de alguma graça com a intercessão de
Santo Antônio através de múltiplos simbolismos mágicos e religiosos. Consumos
culturais não somente de bens religiosos, mas também práticas seculares que de
diferentes formas ressignificam devoção e fé a partir de necessidades mundanas, como
as mechas do cabelo de um ribeirinho do interior da Amazônia que vem pagar
promessa, mas que também aproveita a oportunidade para fazer um corte estilo country
em uma tenda improvisada de cabeleireiro na cidade santuário de Borba, lugar santo, de
Santo Antônio.
É nessa perspectiva que nos situamos, tanto em Lisboa como em Borba, sob o
signo de Santo Antônio, entre o rito e o teatro, o religioso e o divertimento profano, o
jogo e o segredo, múltiplas faces dos eventos e variações sobre um mesmo tema que
tomamos para comparação. Viva Santo Antônio!
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106
A sociologia dança: u m experimento em samba de gafieira ,
João Gabriel L. C. Teixeira (UnB)
Resumo: Artificação em samba de gafieira, realizada com alunos de graduação
em ciências sociais na Universidade de Brasília. Uma brincadeira de salão evocando o
retorno de uma atuação malandra no campo da comicidade e na alegria de viver. Quem
canta, seus males espanta. Quem dança, a seus pares encanta. Um mexido no xumbrego,
um mergulho na fantasia do chamego. Estudantina, Elite e Democráticos sejamos todos
nós, transeuntes, transcendentes e transeiros. E Viva a Noite!...
Palavras-chave: gafieira, artificação, performance e dança.
I – Introdução
Esta comunicação visa dar continuidade aos relatos anteriores23 sobre projeto
experimental de pesquisa desenvolvido pelo Laboratório Transdisciplinar de Estudos
sobre a Performance – Transe do Departamento de Sociologia da Universidade de
Brasília. O referido projeto diz respeito à relevância dos estudos da performance para o
desenvolvimento de metodologias experimentais em sociologia da arte. A idéia é
realizar experimentos artísticos com a participação de alunos de graduação em ciências
sociais e nas artes da Universidade, em que os mesmos tenham a oportunidade de
refletir sobre a literatura pertinente e vivenciar a preparação e apresentação desses
experimentos, sob a forma de um produto artístico, para o público universitário.
Neste trabalho, enfoca-se a realização de dois desses experimentos em 2008 e
2009, respectivamente. O primeiro, intitulado “Corpos em Obras”, explorou as
possibilidades de desenvolvimento da consciência corporal dos alunos utilizando
técnicas de dança contemporânea, a partir de repertório musical brasileiro do final do
século XIX e início do século XX e da reflexão sobre textos acadêmicos e artísticos 24
sobre a importância do conhecimento sobre o corpo para as ciências sociais na
atualidade.
23
Teixeira, J.G.L.C. “Os Estudos da Performance e as metodologias experimentais em sociologia da
arte”, ARS, Revista do Programa de Pós Graduação em Artes Visuais, ECA/USP, junho de 2006 e
“Artificações, Inquietações e Experimentações em Sociologia da Arte” in VIS Revista do Programa de
Pós Graduação em Arte da UnB, Brasilia, v. 7, n.1, Janeiro/Junho, 2008.
24
Programa da disciplina em 2008. Para consulta ao mesmo, solicita-se contatar o autor, já que não cabe
nos limites desta comunicação.
107
O segundo, intitulado como “A Sociologia Dança”, aqui descrito com mais
detalhes, engendrou a realização da aprendizagem e experimentação de uma forma
particular de dança de salão, brasileira, conhecida como samba de gafieira, utilizando-se
de repertório musical deste gênero de dança popular e, novamente, contando com a
discussão de literatura pertinente ao seus objetivos e particularidades.25
Esses dois experimentos, por outro lado, deram continuidade à utilização do
conceito e abordagem sociológica denominada de ratificações,26 já empregada nos
trabalhos anteriores, através da qual se procura, basicamente, a transformação de objetos
acadêmicos em criação artística, seguindo conceito em voga na sociologia da arte
contemporânea, adaptado para as circunstâncias dos experimentos e ressaltado o
trabalho artístico corporal desenvolvido por estudantes universitários de graduação.
II – Corpos em Obras
Este trabalho, desenvolvido no primeiro semestre de 2008, contou com a
participação de dezenove alunos que foram chamados a desenvolver uma experiência
em expressão corporal livre ou espontânea, partindo de repertório musical tradicional
brasileiro, levantado para e executado em recital apresentado por outros alunos de
graduação, participantes de curso sobre musica e identidade nacional ministrado no
semestre anterior.
A idéia central era mesclar o moderno (dança contemporânea) e o tradicional
(música popular brasileira do final do século XIX e início do século XX) visando à
artificação de uma “jam session” (improvisação) musical e dançante, em que os alunos
tivessem a oportunidade de expressar-se musical e corporalmente, com o auxilio de
batuques e melodias tradicionais “contemporaneizadas”, por assim dizer.
Deixando os detalhes da experiência realizada para outra oportunidade, vale
ressaltar que o grupo de estudantes encontrou muitas dificuldades na realização dos
trabalhos corporais, tendo em vista que não se desenhou qualquer coreografia prévia e
evitou-se que os mesmos repetissem os movimentos corporais já incorporados em festas
populares ou, apenas, os clichês dançantes tradicionais. A idéia era de que fossem o
mais espontâneos, singulares e livres em suas formas expressivas de movimento. Assim,
25
Programa da disciplina em 2009. Idem.
Ou processos de transformação de objetos não artísticos em criação artística, em objetos de arte, em
resumo. Ver, a respeito Shapiro, Roberta “O que é artificação” in Sociedade e Estado, Volume 22 numero
1 jan./abr.2007. Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília.
26
108
como não havia um roteiro prévio a ser incutido, o improviso das formas e a
personalização requerida nos movimentos corporais muitas vezes pareceram, para
muitos, penosos e caóticos, criando resistências e desentendimentos.
No final desta comunicação, pretende-se acrescentar alguns comentários sobre
reflexões dos alunos envolvidos, coletados após a apresentação de “Corpos em Obras”
no projeto “Cometa Cenas” do Centro Acadêmico em Artes Cênicas da UnB. Os
resultados estéticos colhidos foram, mais uma vez, registrados sob o formato de DVD.
III – Samba de Gafieira
Este experimento, conduzido no primeiro semestre de 2009, ao contrário do
anterior, partiu de uma idéia pré-estabelecida: fazer com que os alunos envolvidos
participassem de uma artificação dançante em que tivessem a oportunidade de vivenciar
o caráter lúdico e socializante da dança de salão, priorizando uma forma brasileira da
mesma: o samba de gafieira.
Logo no primeiro momento, constatou-se uma grande escassez de literatura
sobre essa forma dançante. Na verdade, o único livro existente sobre a mesma, da
autoria de Marco Antonio Perna (2005),27 apesar de ser extremamente informativo sobre
sua sobrevivência e características, não traz qualquer análise dessa persistência, apesar
de sua vitalidade e continuidade nos salões de dança brasileiros.
Num segundo momento, buscou-se as nuances da sua origem, formação e
preservação nas danças populares de pares enlaçados do final do século XIX,
principalmente no gênero denominado de maxixe, dança transformada em estilo musical
com o passar dos anos e que escandalizou os salões de dança do final do império e
inicio da República no Brasil, sendo considerada indecente.
A despeito da referida escassez, Perna (op. cit.) e Efegê (1974) 28 trazem
informações valiosas para entender-se o surgimento e perseverança do maxixe e de sua
sucedânea, o samba de gafieira no Brasil. De forma que as informações aqui coligidas
se baseiam quase que exclusivamente nessas duas obras e na tese de doutorado de
Denise Zenicola, defendida no Centro de Letras e Artes da Unirio em 2005. Além
27
Perna, Marco Antonio. Samba de Gafieira, a história da dança de salão brasileira, Rio de Janeiro, o
Autor, 2005 (segunda tiragem).
28
Efegê, Jota. Maxixe, a Dança Excomungada, Rio de Janeiro, Conquista, 1974.
109
desses, muito poucos textos acrescentaram algo de relevante sobre o samba de
gafieira.29
Embora o rastreamento do maxixe e do samba de gafieira não seja objetivo deste
trabalho, é preciso lembrar que o primeiro, segundo Perna (op. cit.), “foi a primeira
dança urbana, de salão, a dois (e agarrada) a ter origem no Brasil, por volta de 1870” (p.
26) e perdurou até a década de 1920, segundo Zenicola (2005). Ainda segundo os
mesmos autores, suas principais marcas eram a sensualidade e a forma abusada de
dançar os diversos gêneros musicais existentes. Na verdade, a dança maxixe (de salão)
surgiu antes do gênero musical do mesmo nome. Seu antecedente era o lundu e o seu
jeito abusado já se inspirava na “umbigada’ presente em quase todas as danças
circulares brasileiras de origem africana. Perna (op. cit: 26) esclarece: “A dança mais
popular da época era a polca. Os dançarinos das camadas mais populares tendiam a
colocar sensualidade, passos, volteios, quebradas, requebros e negaças do lundum, dos
batuques, nas danças de roda enquanto a dançavam, incorporando-os...”. Daí sobreveio
a “maxixada”.
Acentuando o caráter sexualizado do maxixe, o mesmo autor acrescenta o seu
caráter lúbrico e lascivo que ainda permaneceu em alguns dos meneios da sua
sucessora: o samba de gafieira. Este parece ter sido deserotizado, a partir do maxixe,
pelo famoso Duque, dançarino aristocrático e “sujeito muito delicado”, ao transformar o
maxixe (a dança) em samba de gafieira (o maxixe de salão), tornando-a mais
glamourosa e esteticizada.30 Dessa forma, Duque foi responsabilizado pela assepsia
parisiense do maxixe.
Tinhorão (1991), por outro lado, informa que o maxixe entrou em decadência
devido à complexidade dos seus “passos, quedas e parafusos”. De forma que, pode-se
concluir também, o samba de gafieira surgiu para simplificá-lo e (por que não?)
democratizá-lo, tornando a dança de salão de então (início do século XX) mais acessível
aos menos inclinados a investidas tão dionisíacas, já que o contato físico requerido para
dançar o maxixe não era bem visto por todos na época. Ele pode ser considerado, então,
como a forma polida do maxixe, considerada a dança “excomungada” pela sua
obscenidade (Efegê, op. cit.).
29
Zenicola, Denise Mancebo. Samba de Gafieira: Performance da Ginga, Centro de Letras e Artes,
Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Rio de Janeiro, 2005.
30
Embora isso seja esteticamente contestável, Perna (op.cit.:11) aduz que o ideal, hoje, seria saber dançar
das duas formas e possuir o “timing” para escolher uma no momento adequado.
110
Para a constituição do samba de gafieira também foi importante o surgimento
das “jazz bands” de influência norte-americana, incorporando o timbre dos metais. É
sabido que o principal instrumento, marcante do samba de gafieira é o trombone. Daí
talvez porque a expressão “botar a boca no trombone” tenha se tornado tão popular e
persistido até os nossos tempos. É importante notar que até então as únicas orquestras
de samba que existiam eram as baterias das escolas de samba (Perna, op. cit.: 58).
Mas por que o nome “samba de gafieira”? De onde veio? Parece que sua origem
remonta aos “bailes fuleiros” das camadas populares, ainda no século XIX, onde se
podia cometer muitas “gaffes”, palavra francesa pejorativa para indiscrição involuntária
ou transgressão de regras de etiqueta. Gafieira resultaria então da fusão do termo gafe
com cabroeira (baile de cabras ou gente humilde).
Sabe-se que vários sambas executados nas gafieiras, falam dela própria. Assim,
realizou-se um inventário dessas músicas que passaram a constituir o repertório básico a
ser dançado, adicionando elementos mais românticos e evocativos que sensuais à
coreografia desenhada. Não obstante, é bom que se reconheça que as tentações foram
grandes e traiçoeiras. Por exemplo, houve quem sugerisse, do repertório de sambas
sobre gafieira, se incluísse também um samba bem gingado, sugestivamente
denominado de “Ereção”, no qual o autor lembra o cuidado que se deve ter com o
caráter inusitado dessa função, durante uma performance dançante que prima pelo
contacto físico dito inocente, sem “corta-jacas”, “bate-coxas”, “cutuca virilha” ou ‘mela
cuecas’, passos muitas vezes ainda prevalecentes nos remanescentes bailes maxixeiros e
funkeiros da vida, gerando situações desconfortáveis e dispensáveis.
Acontece que a experiência foi escolhida para fazer a abertura do “Tubo de
Ensaios” daquele semestre que explorou as possibilidades da comicidade e do riso na
performance, sendo por isso intitulado de “Só Risos”. “A Sociologia Dança” (depois de
oferecer duas aulas públicas de samba de gafieira) funcionou como uma espécie de abre
alas nas duas apresentações do “Tubo de Ensaios”, evento este composto por dezenove
outras performances individuais e coletivas. Não obstante tenha havido uma recepção
altamente positiva (avaliada através de pequeno questionário) de seu público naquelas
frias noites de julho em Brasília, aos dezesseis alunos envolvidos no abre alas não foi
solicitada qualquer avaliação da experiência vivida por razões diversas, a serem
esclarecidas adiante.
111
III – O corpo, a dança e as ciências sociais
Nota-se que os dois produtos examinados tiveram como estratégia o trabalho
expressivo com o corpo, realizados com futuros cientistas sociais e futuros profissionais
da área de humanidades. Ambos foram realizados num ethos acadêmico em que existe
um interesse crescente, sobretudo pela sociologia atual, em re-inserir e desenvolver essa
perspectiva do humano nas ciências sociais. Ou seja, o corpo está na moda e os estudos
da performance têm oferecido e podem oferecer uma imensa variedade de formas e
métodos para realizar essa redescoberta. No trabalho corporal desenvolvido em “A
Sociologia Dança”, por exemplo, o caráter investigativo e heurístico da experiência
ficou transparente. Por sua vez, a comicidade foi tentada através de uma inversão de
gênero: as mulheres “tiravam” os homens da platéia para dançar...
Em suma, se lidava com uma forma de dança popular, já enraizada em festinhas
familiares e bailes de salão, em que o principio do “cheek to cheek” (rostinho colado) e
o devido respeito e correção que sua performance requer e exige são indispensáveis.
Durante o processo, foi encontrado o relato de outro laboratório similar, realizado com
crianças (Zaniboni e Carvalho, 2007)31
em que os autores identificaram alguns
elementos que valem a penar ser destacados aqui.
Entre esses se destacaram: a
subvalorização do corpo em relação à mente; a interlocução não verbal estabelecida; os
papeis e os lugares de dança definidos à priori e a sobrevalorização do corpo como vetor
de uma linguagem e de sua discursividade. Em outras palavras, lidou-se com um corpo
construído socialmente, portador de um imaginário e de um discurso social préexistente, conforme se procurou demonstrar no capitulo anterior.
Assim, recomenda-se que futuras experiências semelhantes possam explorar
com maior acuidade o surgimento de pelo menos dois “eus” diferenciados durante a
performance do samba de gafieira, esclarecendo melhor o processo de constituição de
novas alteridades e especularidades. É preciso que se ressalte também que o âmago
desse tipo de experiência reside na convivência que se estabelece entre seus
realizadores, o que contribui insofismavelmente para o preenchimento de uma
necessidade primitiva do homem: a de rebanho ou a de conviver em grupo. Argüiria que
essa possibilidade não é irrelevante, sobretudo para uma juventude que sobrevive a
partir do estabelecimento de meras relações “virtuais” e “internéticas”.
31
Zaniboni, Lilian e Carvalho, Armando Gonçalves de. Dança de salão: um possibilidade de linguagem,
In: Revista Conexões, v. 5, n. 1, 2007, São José do Rio Preto: São Paulo.
112
Contudo, é ainda mais necessário que se desenvolvam formas de observação
dessa contribuição, compreensiva das mudanças alcançáveis pelos dançantes, em termos
de seu auto-reconhecimento, auto-estima e sociabilidade. Como queria Dolto (1999
apud Zamboni e Cravalho, op. cit.:97)32 a “dança é uma coisa muito criativa, o belo
para os outros; e trabalhar para conseguir isso é o próprio do ser humano, é a criação
para a socialização, para o prazer, tanto próprio quanto dos outros, é a procura da
linguagem da dança”. Enfim, é preciso não subestimar a capacidade do lúdico nem do
seu efeito estimulante sobre a libido. A linguagem da dança é também uma via de
acesso à vida psíquica inconsciente, atiçadora da pulsão de vida, de Eros. Ou seja, tudo
de bom...
Defende-se também que a dança de gafieira pode colaborar no sentido de
incentivar o respeito ao corpo, refletindo nele um universo simbólico, garantido pela
alteridade e especularidade desenvolvidas entre sujeitos que usam uma linguagem em
que se afetam mutuamente. É através da dança, do movimento que a vida penetra no
corpo, transformando o sujeito em artista e posteriormente, ele mesmo, em obra de arte.
Em “A Sociologia Dança”, optou-se pelo estímulo ao desenvolvimento da estética da
elegância, da picardia e da ginga,33 em detrimento dos remelexos e investidas
maxixadas que descorassem ou tornassem toscos os esforços dos dançantes, como exige
e convêm ao samba de gafieira, dificultando trocas e gerando troças.
Avaliação
No caso da performance dançante “Corpos em Obras”, foi aplicado um
questionário aos dezenove participantes que primaram pelos elogios, às vezes
excessivos, sobre os resultados estéticos alcançados, e pelo reconhecimento de que
haviam participado de uma experiência extremamente relevante para os seus respectivos
desenvolvimentos cognitivos, a despeito das resistências apontadas anteriormente. Essa
mesma experiência, segundo os mesmos, facilitou sobremaneira a percepção de que
seus corpos são constituídos de elementos que transcendem à pura mente (a cabeça), o
que para futuros sociólogos não parece ser pouco. Afinal, afiançaram, a partir da
experiência vivida, que de fato os seres humanos não têm apenas um corpo, mas, sim
que são um corpo, o qual as ciências sociais devem estudar, desvendar e refletir,
32
33
Dolto. F. Tudo é linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Ver em Zenicola, Denise Mancebo, op. cit. , 2005.
113
cumprindo a sua missão esclarecedora. Preferencialmente com a paciência e disciplina
que muitas vezes lhes faltaram...
No caso de “A Sociologia Dança”, o que ficou mais patente foi o
reconhecimento do lúdico enquanto prática educativa e dos riscos que ele encerra ao
permitir e estimular a mera diversão, pois quem dança samba de gafieira não está
apenas se divertindo mas também realizando uma performance estética para si, para seu
par e para seu público. Como performance, ela tem e precisa seguir um roteiro
coreográfico prévio, construído com garbo, glamour, gingado e reverência, onde reside
a sua especificidade. As resistências surgidas, neste caso, disseram respeito à obediência
aos estatutos da gafieira e a seus passos ensaiados. Em virtude deste gênero de samba
esta ser bastante familiar a quase todos os dançantes, parecia que para alguns não havia
nada mais a aprender a não ser fazer charme e gingar. Fora isso, espera-se que as
imagens de “A Sociologia Dança” colhidas durante o “Só Risos” do Tubo de Ensaios,
possam acrescentar mais alguns “insights” a esta reflexão.
114
Rivalidade e afeição: performances rituais no Bumbá
Parintins, Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (UFRJ)
de
Poderíamos dizer com Mauss e Durkheim, no célebre ensaio sobre as formas
primitivas de classificação: “A identificação é tamanha que o homem toma as
características da coisa ou do animal do qual ele assim se aproximou” (p. 16); e talvez
nesse plano classificatório tão básico – a noção do eu – possa ser situado o extremo
desconforto experimentado por pesquisadores, digamos, forasteiros como eu. Não se
trata apenas da observância de inúmeros tabus e evitações rituais que regulam a relação
entre, e a circulação por entre, os dois Bois de Parintins. É fortíssima a pressão sofrida
por qualquer forasteiro que lá chega para a adesão a um ou ao outro Boi, e devo admitir,
com razão. Parece difícil compreender o universo da brincadeira dos bois sem se deixar
afetar pela pressão de adesão – ainda que inconfessa – a esse ou àquele boi. Os
brincantes de Parintins e suas extensões como Santarém e Manaus, são verdadeiros
especialistas em desvendar a qualquer ínfimo sinal – por exemplo, falar primeiro de um
boi do que do outro, mudanças na entonação da voz e na expressão facial do locutor. O
mundo do “brincar de boi” é feito de afeições intensas.
"En effet – como queriam Durkheim e Mauss – pour ceux qu'on apelle les
primitifs, une espèce de choses n'est pas un simple objet de connaissance, mais
correspond avant tout à une certaine attitude sentimentale. Toute sorte d'élements
afféctifs concourent à la représentation qu'on s'en fait ". O ensaio sobre as formas
primitivas de classificação é exemplar como ponto de partida a assinalar a relevância do
tema da afetividade no esforço antropológico de compreensão do humano que não cessa
de despertar interesse e novas elaborações. A esse amplo tema associo aqui outro – o da
troca agonística ou da ambivalência do dom (Mauss, 2003) que emergiu de modo tão
significativo já em meu trabalho sobre o carnaval carioca (2006) e cuja relevância se
impõe em inúmeros circuitos da cultura popular contemporânea. Nos folguedos do boi
maranhense (Carvalho, 2005); nas performances dos personagens do Cazumba que
integram as apresentações grupos de bois da baixada maranhense (Van de Beuque,
2010); na dança nobre de mestres-salas e porta-bandeiras (Gonçalves, 2010); ou na
experiência dos passistas das escolas de samba (Toji, 2009); na arte dos mestres do
teatro de mamulengos na Zona da Mata nordestina (Alcurre, 2007); nas performances
dos maracatus no carnaval do Recife (Omin, 2008), nos giros sagrados das folias em
115
Urucuia (Pereira, 2008), nas folias de reis no morro da Mangueira no Rio de Janeiro
(Bitter, 2010), em todo um amplo universo de brincadeiras e folguedos da cultura
popular contemporânea rivalizar, de modo explícito, assumido, mesmo em muitos casos
institucionalizado na forma dos desfiles e concursos, ou em suas formas mais sutis e
caladas como as coisas do demônio nos giros sagrados das folias é uma parte
fundamental da graça, e mesmo do perigo, daquilo que se faz. Brincadeiras de gente
grande que, com elaboradas formas artísticas e expressivas, insistem em retornar no
tempo e promovem a experiência de continuidade da própria experiência de ser, de um
modo muito peculiar: se sou Caprichoso, Garantido é meu contrário, meu não-ser, do
qual, entretanto, dependo profundamente para poder “brincar de boi”. Essa proximidade
da intimidade com a hostilidade, essa modulação da rivalidade pela necessidade da
colaboração, essa repulsa que, no entanto, interpela sempre seu contrário a sua presença
que ganha assim inevitavelmente a feição de um confronto me parece o que há de mais
característico do ambiente festivo (e obsessivo) de Parintins e de mais intrigante nos
seus Bumbás.
Este texto busca apreender essa dimensão das performances rituais do Bumbá de
Parintins examinando material etnográfico relativo pertinente à luz do problema da
ambivalência da dádiva. Em Mauss, que buscou o essencial no primitivo, como bem
assinalou Beidelman (1989), essa ambivalência emerge tanto no fato de que a
reciprocidade é, a um só tempo,
relação e confronto (trocar é incorporar-se a
hierarquias sociais), como na sua natureza aparentemente espontânea e, entretanto,
obrigatória (nos damos porque nos devemos). Em Simmel, que buscou o universal no
singular, ou a totalidade em fragmentos da interação social, como indicou o mesmo
Beidelman (op. cit.), a sociação (o vínculo eu-outro) é inerentemente problemática é o
véu que nos constitui e esconde. (Há sempre um aquém e, por isso, “confiamos”.)
Ora, esse tema está no centro das formas populares que elegeram a competição
festiva como forma ritual por excelência. O Bumbá de Parintins – competição de apenas
dois contendores – leva certos aspectos do problema mais amplo das competições
festivas ao paroxismo e é um caso especialmente instigante que se oferece à análise,
pois, como já indicou de modo feliz Valentim (2005), celebra-se em Parintins a própria
rivalidade. Brincar de Rivalizar.
Brincadeira como categoria nativa que acentua o caráter lúdico dessas
expressões populares envoltas num ambiente de lazer, jogo, diversão, teatro e festa,
116
abundância de comida e bebida, prazeres e excessos corporais (todos esses sentidos, por
sinal, me parecem também bem captados pela categoria analítica com a qual os
estudiosos do folclore as denominaram: folguedos, termo bem português associado ao
folgar e às folganças). Brincadeira também no sentido proposto por Bateson – “Isso é
brincadeira”, uma moldura metacomunicativa muito peculiar que envolve as ações
comunicativas a partir do paradoxo fundamental de que, nesse contexto especial, aquilo
que é denotado por um gesto ou ato – no exemplo de Bateson, uma mordida (1999, p.
182) não só não denota aquilo que denota como nos projeta num ambiente
eminentemente criativo (e de certo modo arriscado), pois a “mordida-que-não-émordida”, ao substituir a mordida ausente à qual alude, torna-a aqui uma criação
puramente ficcional. Brincadeira também no sentido de Winnicott (1975), experiência
ligada aos fenômenos transicionais situados no “entre”, um lugar que não é nem o
psiquismo individual nem a experiência objetiva do mundo, lugar daquilo que, embora
estando fora de mim, não é exatamente o mundo externo. Um lugar de
compartilhamento e superposições de atenções, lugar também da experiência cultural
criativa. Lugar privilegiado, diria-nos Victor Turner (2005), para a proliferação e a
experiência de símbolos culturais.
I. Simbolizando
Um brincante de boi não se identifica ao animal boi, nem ao bicho mítico que
morre e ressuscita, cuja noção, elaborada em múltiplas narrativas, acompanha de modo
muito variado as diversas formas da brincadeira.34 O Boi emblema de um grupo
humano é sempre um Boi específico que tem um nome e se desdobre em um artefato
bailante. Esse boi-artefato é o objeto de intensa transposição afetiva. Em Parintins, na
exegese nativa, diz-se que uma pessoa sabe realmente qual é o seu Boi quando se
comove intimamente com a dança de um dos bois/artefatos. Lá, de modo diverso do que
ocorre no Maranhão, o nome do grupo humano coincide com o nome do boi-artefato. O
boizinho que dança animado pelo tripa é ou o Boi Caprichoso ou o Boi Garantido, nome
idêntico ao das duas agremiações rivais.
A existência de um boi chama inexoravelmente a de outro, pois sua natureza é
essencialmente relacional, [+]. Para a brincadeira existir, são necessários no mínimo
34
Ver meu texto anterior sobre o mito da morte e ressurreição do boi.
117
dois grupos ligados entre si pela rivalidade. Em Parintins, essa situação essencial é
elaborada ao paroxismo.
No festival de Parintins (nos três dias do último fim de semana do mês de junho)
rivalizam:
 O Boi Caprichoso, associado às cores azul e preto, num binarismo em que azul
é o marcado e preto o não marcado (azul + e preto), e simbolizado em imagens e
artefatos como um animal/boi, cujo corpo preto traz na testa uma estrela azul.
 O Boi Garantido, associado às cores vermelha e branca, num binarismo em que
vermelho é o termo marcado e branco, o não marcado, (vermelho + e branco -),
simbolizado em imagens e artefatos como um animal/boi de corpo branco que traz na
testa um coração vermelho.
A exegese nativa produz muitas vezes a seguinte cadeia de associações:
Caprichoso = azul + preto + estrela na testa = intelecto = frio = pessoas frias (sensatas,
compreensivas), ou ainda Garantido = vermelho + branco + coração na testa =
passionalidade = quente = pessoas quentes (passionais e expansivas).
Uma grande parte da apaixonada adesão a um ou outro dos bois não se constrói
da dedicação, talento, empenho e envolvimento com as performances – obviamente isso
tudo é fundamental – isso abarcaria o que Durkheim designou no seu magnífico clássico
como um “culto positivo”. Quero aqui chamar atenção para o que ele chamou de “culto
negativo” (p. 318), observando que o resultado ou o efeito almejado das interdições era,
fundamentalmente, a mudança no estado mental do indivíduo (p. 329) e que (falando de
sagrado e profano) elas se destinavam a impedir que um dos domínios avançasse sobre
o outro (p. 328). Essas interdições às quais nos voltaremos agora – que obrigam à
observância exterior de inúmeros tabus, i.e. evitações rituais – produzem o notável
efeito de instituir um espaço público e verificável da adesão que resulta na fortíssima a
pressão para a adesão a um ou ao outro Boi, sofrida por qualquer novato que chega em
Parintins e torna a posição de neutralidade bastante difícil de ser sustentada. Muito
significativo a esse respeito é o lugar particularmente problemático ocupado pela
posição ritual dos jurados. Mas para compreender as interdições são necessárias
algumas informações sobre o espaço.
I. A organização do espaço urbano
118
Os dois Bois surgiram na cidade na segunda década do século XX. O Boi
Garantido teria sido criado em 1913, por Lindolfo Monteverde, filho de açorianos,
agregando uma rede de relações de moradores da parte oeste da cidade, conhecida como
a “baixa do São José” porque o terreno nesse lado da ilha se afunda e se aproxima do
rio. O Boi Caprichoso logo o seguiu, há quem diga no mesmo ano, há quem diga um
ano depois, criado pelos irmãos Roque e Antônio Cid (naturais do Crato/Ceará) e por
Furtado Belém, parintinense ilustre, agregando moradores da parte leste da cidade, mais
especificamente do bairro de Palmares onde o terreno se eleva sempre suavemente com
relação ao rio. A memória oral lembra episódios passados quando os Bois, depois de
brincarem em terreiros, saiam nas ruas para o confronto ritual – os amos entoavam
“toadas de guerra” improvisadas como desafio e provocação,35 em seguida ao que os
bois/artefatos se enfrentavam batendo uma cabeça contra a outra, até que um deles
caísse no chão ou tivesse a armação danificada.36 Tudo descambava muito facilmente
em pancadaria e violência, com histórias tristes de mortes, ferimentos e prisões. A fama
do Garantido ecoa até hoje. Lindolfo Monteverde teria uma voz muito boa, e seu boi era
“seguro”, “garantido”, saindo sempre inteiro do combate com outros bois, “sua cabeça
nunca quebrava”. Diante disso, o boi rival “caprichava”. Outros bois existiram, porém,
apenas o Garantido e o Caprichoso permaneceram.37
O fato mesmo da permanência desses dois, costurada através da acentuada
rivalidade mútua, deu forma a uma oposição importante na morfologia e na organização
social da cidade: aquela existente entre o leste, topograficamente “alto” da cidade e o
oeste, o “baixo” topográfico. Entretanto, quando a referência classificatória não é a
topografia mas o curso do rio, e trata-se de caminhar de um lado para o outro na
cidade,38 quem caminha para o leste/jusante vai “para baixo”, e quem vai para o
oeste/montante, vai “para cima”. Noto que o alto e o baixo topográficos associam-se
também ao alto e baixo sociológicos. As representações nativas correntes assinalam a
assimetria na origem sociológica dos dois grupos. Atribui-se aos brincantes originários
35
Um dos mais antigos brincantes do Caprichoso, Seu Moisés Dray, parintinense, funcionário aposentado
do Banco do Brasil, com 75 anos de idade em 1999, cantou para mim uma antiga “toada de guerra”, rindo
de seu conteúdo: “O contrário falou do meu boi Caprichoso/ que tinha o couro preto, e logo botou defeito/
olha povo contrário você tem que manter respeito/ você mora no mato, num lugar pantanoso, eu moro na
cidade, caboclo imundo, invejoso…”
36 Silva, op. cit., p.18.
37 Os parintinenses mencionam os Bois Fita Verde e Galante.
38 O que se faz com muita frequência, pois Parintins possui muitos poucos carros.
119
do Garantido, os moradores da Baixa do São José, uma composição de extração social
mais baixa – pescadores, agricultores, vaqueiros, peixeiros, estivadores, entre outros; e
ao Caprichoso uma formação a partir de extratos sociais mais abastados, comerciantes,
professores e fazendeiros. Essas informações devem obviamente ser relativizadas pelo
fato de que o processo de expansão global de ambos ao longo de décadas incluiu todos
os extratos sociais urbanos de seus bairros, centro e arredores.
Vale, entretanto, reter para a análise o fato de que essa dualidade é feita de
simetrias – no eixo espacial cósmico, digamos assim: leste x oeste; assimetrias – o alto
e o baixo dos eixos classificatórios topográficos e origem sociológica; compensações –
no eixo geográfico “curso do rio” em que o baixo se torna para cima e o alto para baixo,
o que curiosamente corresponde ao eixo do processo de estabilização e expansão dos
dois grupos em que o de origem baixa caminha para cima e o de origem elevada
caminha para baixo.39
Há também equivalências e neutralizações, em especial no eixo cosmológico,
em que diante do celestial ambos são terrenos: além de serem os Bois devotos de São
João e dos santos juninos, ambos são devotos da padroeira da cidade Nossa Senhora do
Carmo. O campanário da catedral em seu louvor, situada na praça central da cidade, é o
ponto mais alto da cidade.40
A criação do festival folclórico, em 1965, propiciou uma curiosa evolução,41
canalizando a tradicional rivalidade dos Bois numa perspectiva inédita. O festival foi
criado para agregar e valorizar as quadrilhas juninas, os Bois eram atração secundária,
apresentando-se em intervalos temporais afastados, de modo a evitar o perigo de seus
encontros. Logo, entretanto, os Bois encontraram no festival um novo canal de
expressão: sua apresentação livre no primeiro evento tornou-se logo disputa, e a adesão
Relativizar o dualismo. O reconhecimento da “extraordinária dispersão da organização geralmente
conhecida sob o nome de sistema dualista, p. 156. E alertava, p. 158, “mesmo num tipo de estrutura social
simétrica (ao menos na aparência) como a organização dualista, a relação entre as metades nunca é
estática, nem tão recíproca quanto tenderíamos a representá-la”. Elencar o que não é simétrico na
oposição dos dois bois.
39
40
A devoção à Santa e suas conexões com a devoção aos bois estão a merecer estudo etnográfico próprio.
A festa da santa padroeira inicia-se no dia 7 de julho, portanto uma semana depois do festival, durante o
qual há sempre uma missa pré-festiva na catedral. Na arena, os dois Bois homenageiam a santa padroeira
com toadas e quadros cênicos, pedindo sua bênção e proteção. Na romaria festiva, após o festival, os Bois
ornamentarão o andor da Santa. E, apenas no dia 17 de julho, após o término da festa do Carmo, os Bois
realizarão seus churrascos festivos e a “fuga” do boi encerrando seu ciclo de atividades.
41 Para discussão da criação do festival, ver Cavalcanti 1999.
120
das duas torcidas trouxe consigo a identificação da cidade como um todo com o seu
festival. O confronto dos bois associou-se, assim, fortemente, à representação de
unidade da própria cidade.
Assim é que a própria localização do atual “Bumbódromo”,42 situado no terreno
de um antigo aeroporto, veio obedecer a uma lógica espacial pré-estabelecida: uma
espécie de geopolítica nativa organizadora das duas metades em torno de um centro.
Indo de dentro da cidade para as margens do rio Amazonas, o estádio traça, juntamente
com o cemitério local, a catedral de Nossa Senhora do Carmo, a prefeitura e o porto
uma linha central imaginária, que divide Parintins em uma metade leste e outra metade
oeste. Poder-se-ia dizer de Parintins, como de uma aldeia bororo (Lévi-Strauss, p. 165)
esse conjunto central da cidade, é o palco da vida cerimonial local. Para usarmos os
termos de Lévi-Strauss (“As organizações dualistas existem?”), superpõem-se em
Parintins duas estruturas relacionais. Uma concêntrica e hierárquica, que organiza os
moradores como um todo e os iguala diante de certas instâncias superiores – a santa
padroeira, o poder público, a morte, o comércio e o contato dos ilhéus com as demais
cidades ribeirinhas e com a capital, o festival folclórico. Outra, diametral pois, quando
o assunto é Boi, tudo nessa cidade divide-se em metades.
A arena do estádio festivo é cercada por arquibancadas que comportam cerca de
quarenta mil lugares. Pintadas em azul ou vermelho, dividem-se elas mesmas na metade
oeste, pertencente à “galera” vermelha, os torcedores do “Garantido”, e, na metade
leste, pertencente à “galera” azul, os torcedores do Boi “Caprichoso”.43 Apenas quatro
áreas neutras localizam-se ao norte e ao sul do estádio. Ao sul, situada entre os dois
42
O bumbódromo foi construído em 1988, no terreno do antigo aeroporto da cidade, pelo então
Governador do Estado, Amazonino Mendes, com cujo nome foi oficialmente batizado. Trata-se de uma
clara alusão ao “Sambódromo”, a Passarela do Samba, construída 1984 pelo governo do Estado do Rio de
Janeiro para abrigar o desfile das escolas de samba. No cotidiano, o bumbódromo é um ginásio esportivo
e abriga também uma escola. Dentro da estrutura das arquibancadas, há salas de aula, que, nos dias de
festa, tornam-se camarins dos artistas dos Bois. Braga (op. cit. p. 20/1) informa que, de 1966 a 1974, o
festival realizava-se na quadra da catedral de Nossa Senhora do Carmo; em 1975 e 1976, em terreno do
IPASEA (Instituto de Previdência e Assistência do Amazonas); em 1977 na quadra da paróquia do
Sagrado Coração de Jesus; em 1978 e 1979 em terreno que hoje é o Clube da Ilha Verde; em 1983, já no
terreno atual com arquibancadas e tablado de madeira.
43 O termo “galera” designa um tipo de organização informal da juventude nas grandes cidades
brasileiras, indicando fortes sentimentos de pertencimento e de rivalidade entre galeras de um mesmo tipo
(como no futebol e nos grupos funks). No Bumbá de Parintins, a juventude local e das cidades vizinhas
ou está nas “tribos”, dançando na arena, ou está nas “galeras”, torcendo na arquibancada. Silva (p.53/54):
a galera do Boi Caprichoso se denomina Força azul e branca (FAB) (antigamente era FBI, força, bravura
e inteligência) e a do Garantido é Comando Vermelho e Branco (antigamente era comando vermelho e
inflamável). Em Manaus, originaram-se dois grupos de apoio aos Bois é o Movimento Marujada e o
Movimento Amigos do Garantido.
121
grandes portais da arena, está a “Tribuna de Honra”, conjunto de assentos destinado ao
governo municipal e a membros ilustres da comunidade. As outras três áreas localizamse ao norte: um pequeno conjunto de cabines para o júri; acima dele, um conjunto de
assentos para os jornalistas; e, no topo do estádio, um extenso conjunto de cabines,
especialmente construído pela Coca-Cola para seus convidados (socialites, artistas,
empresários, jornalistas e autoridades brasileiras).44
Fora do Bumbódromo, a oeste do Bumbódromo, ou para “cima” (no baixo) fica
o Boi Garantido, seu “Curral” (a quadra de ensaios) e seus “QGs” (Quartéis-Generais,
as oficinas de confecção das alegorias e das fantasias dos grupos). No lado leste, ou para
“baixo” (no alto), fica o Boi Caprichoso, seu “Curral” e “QGs”. De tal modo que,
caminhar para “cima” (oeste/montante) ou para “baixo” (leste/jusante) nas ruas de
Parintins, é adentrar a rede de relações de um dos Bois Bumbás. Os termos nativos
escolhidos para designar esses locais rituais são significativos: de um lado currais – a
sede e quadra de ensaios de nossos Bois humanos; de outro QGs – uma logística de
guerra e combate a organizar a confecção das fantasias e alegorias da festa.
Essa circulação não é totalmente livre. Ainda hoje, circular com a camisa do boi
“contrário” no território urbano do outro boi é tido como provocação ou, no mínimo,
falta de respeito ou de senso. Quando, entre 1999 e 2004, a secretaria de cultura do
Estado desenvolveu em Parintins um projeto de embelezamento que pintava as fachadas
das casas de torcedores do Garantido de vermelho, e de torcedores do Caprichoso de
azul, embora houvesse uma ou outra casa azul entre as vermelhas, ou uma ou outra casa
vermelha entre as azuis, o espaço urbano dividia-se claramente em leste/jusante/para
baixo/no alto/azul = Caprichoso, e em oeste/montante/para cima/no baixo/vermelho =
Garantido.
II. As interdições
Dois conjuntos de interdições instauram o ambiente festivo e seu agravamento
anuncia a chegada de seu ápice – o confronto ritual dos Bumbás na arena: a interdição
das cores e as interdições semânticas.
44
Desde 1995, a Coca-Cola é um dos mecenas do festival, patrocinado também pelo governo estadual,
ministério da Cultura e pelos próprios Bois, hoje gerentes de seus próprios negócios.
122
A interdição das cores
A interdição de uso das cores do boi contrário associa-se à lógica de uso e
definição do espaço. O impulso cognitivo/afetivo que preside a interdição é a
qualificação de um espaço teoricamente neutro como território de pertencimento – i.e.
espaço ritual. Certos espaços tornar-se-ão territórios azuis ou vermelhos, não
simplesmente pelo uso das cores definidoras do grupo, mas de modo talvez até mais
marcante pela proibição de uso da cor do “contrário’. A interdição é genérica: atinge a
qualquer um que entre nesses locais, não simplesmente brincantes ou artistas do boi. Eu
poderia trajar-me com algum item de vestuário verde em um ensaio do Garantido, mas
jamais azul.
Essa logística guerreira torna certos locais e suas proximidades espaços
“quentes” e neles tabus e evitações devem ser observados. [talvez então falar aqui dos
espaços]. A interdição vigora, por definição, em todos os locais e espaços rituais, dos
ensaios nos currais e trabalho nos QGs às apresentações na arena, onde o regulamento
não só proíbe como penaliza com perda de pontos o uso das cores de um boi pelo outro.
Cada metade das arquibancadas está pintada com a respectiva cor forte de seu Boi, fato
que obrigou a multinacional Coca-cola a curvar-se aos valores pátrios locais, tornando
azul o seu anúncio nesse setor do estádio. Em 1999, a empresa Telemar, cujas cores
emblemáticas são o azul e o branco, foi obrigada a trocar de cor os telefones instalados
no território urbano sob ameaça de depredação.
Entrar em qualquer domínio do Boi vermelho requer a abstenção de uso da cor
azul e vice-versa. Note-se que a proibição não recai sobre o branco e o preto, em
compensação toda a gama de tonalidades e cores associadas ao azul (como o lilás, e as
diversas tonalidades do azul) e toda a gama de cores associadas ao vermelho como o
abóbora, o laranja, o rosa, são também contra-indicados e podem gerar constrangimento
nos anfitriões, e no meu caso, o sentimento de lidar com quem faltou a uma regra de
etiqueta elementar.45
45
Certa feita, uma brincante e pesquisadora do Caprichoso me levou na garupa de sua motocicleta para
passear pelos arredores da ilha para os lados do boi contrário. Era 23 de junho, dia de São João e o Boi
Garantido cumpre nesse dia promessa ao santo, com ladainhas e canjica no antigo curral, de onde sai em
seguida a batucada e o boi percorrendo as ruas até o bumbódromo. Quando passamos pelo curral,
mencionei o desejo de ficar ali, pois ainda não tinha ainda podido assistir à devoção. O mal-estar foi sutil
mas suficiente para que eu desistisse imediatamente da idéia. Sair direta e abertamente de um contato
pessoal para entrar num ambiente contrário era promover um contágio repulsivo e reprovável, uma
transgressão constrangedora – era preciso trocar de roupa, estabelecer um intervalo de tempo purificador
entre um contato e outro.
123
Com a chegada da festa, os moradores e, em especial, as “galeras” demarcam
seus territórios, decorando as ruas com bandeirolas e pinturas na cor de seu Boi. Os
parintinenses mais fanáticos abolem a cor do adversário da vida doméstica cotidiana.
Não só as fachadas, mas o interior de casas – com as paredes, cortinas, sofás, toalhas,
detalhes de decoração – transforma-as em alguns casos em verdadeiros santuários de
culto a seu boi, a exigirem de hóspedes e convivas a observância do mesmo padrão
ritualizado de comportamento. O corpo feminino em especial – batons, esmaltes e
tinturas – pode ser também assim “santificado”, o que é especialmente notável em
algumas mulheres caprichosas que, no auge da festa, usam apenas batons e esmaltes
azuis. O povo da cidade brinca comentando que, nessa época, casais torcedores de bois
diferentes se separam.
As interdições semânticas
A língua e a fala são também territórios vocabulares a serem demarcados por
interdições simbólicas. A principal é a de jamais nominar o boi adversário que, na fala
nativa, é sempre o “contrário”. A ela relaciona-se o banimento do vocabulário de cada
grupo de todas as palavras compostas pelas unidades morfológicas – caprich e garant.
Os substantivos, adjetivos, advérbios e verbos derivados desses radicais estão
respectivamente banidos da fala nativa do contrário. A enunciação de um vocábulo
assim composto operaria metonimicamente, por contato e continuidade, introduzindo no
contexto da fala a presença imediata afastada pela interdição. A enunciação do nome
alheio seria desse modo uma verdadeira e indesejável invasão.
[Se o nome é existência plena da personalidade social, não denominar o grupo
oposto é colocá-lo numa situação ontológica especial. Trazer o nome próprio do
contrário para a presença discursiva é atualizar sua existência. O tabu valora a simples
menção regrando esse contato mental, impossível de ser totalmente evitado, pois que
fundante da identidade mútua. O outro aparece como diferença pura, existe
primordialmente como meu opositor. Existência velada e razão de meu ser cujo destino
é o confronto com ele. O efeito é criar a um só tempo o antagonismo e a dependência. O
tabu do nome ilumina, dentre tantas qualidades e características do grupo contrário,
apenas a forma vazia da sua “contrariedade”. Estabelece
a diferença como uma
descontinuidade a ser preservada entre dois grupos na verdade em estreito contato – a
cidade tem na área urbana cerca de 50 mil habitantes e os dois grupos organizam juntos
124
o seu festival. Prepara e viabiliza o confronto ritual na arena, quando eu, no mais
profundo silêncio, terei meu contrário – agora finalmente ativo, e também como eu
cheio de características e qualidades – diante de mim.]
Trata-se de tornar os dois bois o mais divergentes possível, preparando um
confronto que é sempre indireto e altamente ritualizado, de reforçar a hostilidade
favorecendo sua necessária unidade, e a incessante e anualmente repetida busca de
equilíbrio na performance ritual.
O tabu do nome, rito eficaz, torna a diferença entre os dois grupos uma oposição
que tende para o simétrico em sua busca infindável de equilíbrio. A categoria nativa
“contrário” é, assim, altamente instrutiva, pois além de significar em nossa língua o
estorvo e o obstáculo, significa também o diverso, e mais precisamente o inverso: em
matemática, aquele elemento que operado a outro dá como resultado o elemento
identidade para a oposição. Como um grupo é o “contrário” do outro, estabelece-se
mutuamente o reconhecimento de uma equivalência e o princípio relacional de sua
unidade.
O sentido expressivo pleno desses tabus traz para nossa reflexão o contexto
ritual propriamente dito: a performance dos bois na arena.46
III. As performances rituais [a transformação da evitação em apresentação
para o outro e diante do outro – transformar o que foi guardado como segredo, em
surpresa]
Atualmente, nas noites de 28, 29 e 30 de junho, Caprichoso e Garantido, cada
qual com cerca de 3.500 brincantes, revezam-se na arena do Bumbódromo em
espetáculos de cerca de três horas de duração. A limitação da competição a dois
contendores é contrabalançada pela elaboração interna da performance. A cada noite,
mantendo um mesmo modelo de apresentação, os grupos renovam suas fantasias, carros
alegóricos e lendas.
46
Afinal já diziam os mestre confuncionistas de RB ( p.198) "As cerimônias são os vínculos que unem as
multidões, se o vínculo for removido, as multidões entram em confusão". Radcliffe-Brown, por sinal,
parece ter apreendido a importante noção teórica de sistema de significação na forma indutiva do método
etnográfico. Ele diz com sua simplicidade e clareza habituais (id. p. 183): "Acho que podemos começar
com a hipótese geral de trabalho de que, quando, numa única sociedade, o mesmo símbolo é usado em
diferentes contextos ou em diferentes ocasiões haverá um elemento comum de significado, e que, ao
comparar os diversos empregos do símbolo estaremos em condições de descobrir o que vem a ser o
elemento comum” ver como o trecho segue [como a linguagem a cultura é sistema].
125
Em Parintins, o núcleo semântico associado à brincadeira do boi ampliou-se e
deslocou-se, trazendo para si o ambiente amazônico e a cultura cabocla com suas lendas
e criaturas sobrenaturais, as diferentes culturas indígenas regionais, muitas histórias de
destruição de grupos antigos e a defesa ecológica da mata. De tal modo que as
apresentações anuais acrescentaram um slogan ao tema da morte e da ressurreição do
boi, que permaneceu como pano de fundo.47 O slogan é um tema-título, derivado desse
universo simbólico regional mais amplo. O resultado é uma performance fragmentada,
organizada em torno de pequenas sequências dramáticas dançadas, em que se sucedem
eventos que conduzem a um clímax final.
Enquanto os Bois se alternarão na arena, uma parte importante de cada um estará
presente todo o tempo do espetáculo: as “galeras”, instaladas em suas respectivas
metades das arquibancadas e cuja participação é notável. Os assentos destinados a elas
são gratuitos e correspondem a 80% do espaço disponível. Lá, a galera – um quesito de
julgamento – saúda o seu boi, cantando, dançando e produzindo muitos efeitos
especiais. Na hora do espetáculo do oponente, a galera permanece sentada, em silêncio
profundo (ela perderia pontos importantes se prejudicasse o rival). Do ponto de vista de
cada galera, alterna-se a forma de sua participação, que experimenta a cada noite uma
espécie de ser e não ser, de pertencimento e afirmação plena e existência secundária
como opositor silencioso: ou você canta, dança e produz efeitos visuais, ou você escuta
e aprecia quieta, cuidadosa e muito criticamente enquanto o oponente preenche, de
modo gradual, a totalidade da arena. Por isso, numa formulação benévola, as pessoas
dizem que, em Paritins, “ama-se um boi e admira-se o outro”.
Essa afirmação e pertencimento plenos ocorrem na performance de cada Boi
numa dinâmica simbólica em que a arena é, ao longo de um tempo que chegará à
exaustão, vivenciada como um território a ser ocupado integralmente por um só Boi –
preenchimento apoteótico e esvaziamento subsequente.
[Um grupo de boi preenche gradualmente a arena – com suas tribos, principais
personagens, entrada dos carros alegóricos para a definição das sucessivas cenas
acompanhadas pelas toadas e pela dança coletiva, denominada localmente de “bailado”.
47
Um boi precioso, dado por um rico fazendeiro a sua filha querida, é morto por um vaqueiro de
confiança para satisfazer um desejo de sua mulher grávida. O fazendeiro descobre o crime e suspenderá a
punição ao vaqueiro se este ressuscitar o boi. Um médico/um padre tentam e fracassam. Finalmente, um
pajé realiza o feito seguido do perdão e da reconciliação festiva. Para a análise das variantes do mito da
morte e ressurreição do boi, ver Cavalcanti, 2006.
126
Esse preenchimento gradual e sucessivo traz um sentido de acúmulo cuja tensão é
sempre provisoriamente liberada em um clímax, um “acontecimento” – uma sequência
especial de ação, acompanhada de toadas especiais, fogos de artifício e efeitos visuais.
Tudo rumo ao clímax final que corresponde ao preenchimento apoteótico da arena e a
seu esvaziamento subsequente. A boa apresentação, pontuada por apogeus, digamos, de
intensidade média, desenvolve-se em direção a uma apoteose dramática alcançada no
momento da ocupação plena da arena, transformada em território exclusivo de um dos
dois grupos. Tudo então se esvai, para recomeçar nas noites seguintes].
Durante o rito, na temporalidade excepcional das três horas de duração da
apresentação de um dos Bois, a arena – círculo no coração da cidade – é uma totalidade
de espaço que pertencerá exclusivamente a apenas um dos grupos. A galera silenciosa
do Boi contrário presencia a ocupação integral de um espaço que, naquela duração
excepcional, é indivisível. Porém, sua presença muda e quieta durante todo o espetáculo
do contrário tem o extraordinário efeito de manter aceso, alerta ainda que no canto da
cena, o sentido do desequilíbrio resultante desse uso do espaço. Como esse espaço,
tornado território por sua ocupação, não pode ser definitivamente nem de um nem de
outro, pois a realização desse desejo traria consigo o risco de destruição da própria
identidade, e tampouco interessa a sua divisão, a solução é alternar sua ocupação. A
totalidade da arena é, a cada turno, inteiramente minha ou tua. Tua necessária presença,
condição da minha existência, é sempre vitória ou derrota num combate que se renova
em sua busca de equilíbrio. Vitória e derrota dessa forma se anulam, e os contendores –
ambos ao longo dos anos sempre vitoriosos e sempre derrotados – se igualam numa
busca sem fim.
Finalmente, a celebração da vitória é humilhação do outro.
127
MÚSICA E ORALIDADE
Contar o passado, confabular o presente: a construção da
história nas narrativas de pretos velhos , Vânia Z. Cardoso (UFSC)
Resumo: Em festas em torno do dia 13 de maio e em giras que acontecem
durante todo o ano nos terreiros e centros ao redor da cidade do Rio de Janeiro, o som
dos atabaques e dos pontos cantados clamam pela chegada dos espíritos dos pretos
velhos. Oferecendo conselhos e ouvindo confidências, compartilhando a feijoada das
festas, dançando e trabalhando para curar seus filhos, os pretos velhos envolvem aqueles
que lhes procuram na própria sociabilidade onde seus poderes de conceder proteção aos
que dela necessitam ganham sentido e se tornam eficazes. Ser implicado nesta
sociabilidade é também adentrar o emaranhado de uma constelação de memórias, de
atos e de estórias. Estórias sobre o passado, sobre marcas efêmeras da presença dos
preto-velhos e inscrições de suas ausências, estas narrativas entremeiam os rituais e o
cotidiano, e são elas mesmas entremeadas por outras estórias. Tais estórias não estão
enquadradas como eventos de performance de um narrador, e a poética local resiste à
sua textualização enquanto estórias dissociadas da socialidade da performance narrativa.
Aqui me volto para estas estórias como traços do passado que se insinuam no presente
através das performances do narrar. O contar de estórias sobre os preto-velhos não se
deixa apreender em um sistema de narrativa histórica, mas se insinua por entre as frestas
daquele sistema. Como a iluminação profana de que nos fala Benjamin, tais estórias
interrompem o fluxo da história e produzem um espaço de tenso confabular. Neste
narrar não é uma (outra) verdade histórica que se constrói, mas fragmentos do passado e
traços do presente, saturados por múltiplos imaginários de raça e de nação, que são
conjurados pelas performances do contar e encorporados pela presença dos espíritos.
Palavras-chave: performance; narrativa; poética; história; macumba.
~~~***~~~
A chamada “virada para a performance” na Antropologia do final dos anos 70 e
início dos anos 80, desviou o olhar antropológico dos estudos da narrativa enquanto
“textos” para considerações das narrativas como emergentes em eventos narrativos.
128
Análises centradas na performance se voltam para o uso da linguagem como ação social
e para seu papel na construção social da realidade. Nesta perspectiva, narrativas deixam
de ser tomadas como um instrumento de descrição do mundo, para ser compreendidas
como tendo um papel constituinte do próprio mundo narrado (Cardoso, 2009, p. 199).
Em diálogo com esta perspectiva teórica, eu aqui transito por vários caminhos
que de uma forma ou de outra buscam fazer uma reflexão sobre narrativas,
performance, cotidiano e história, ficção e etnografia. Sei que é um “prato cheio”, mas
é na relação ou em conexões parciais que tento estabelecer entre estas coisas, através da
macumba carioca, que pretendo tecer minha própria narrativa etnográfica acerca da
confabulação de estórias sobre os espíritos de pretos velhos.
Análises de narrativas frequentemente focam na performance enquanto um
momento demarcado, destacado. Falamos então de um orador conhecido, uma grande
ou reconhecida contadora de estórias, um virtuoso cantador de estórias, de causos ou de
cordéis, quando pensamos desde esta perspectiva que temos chamado de antropologia
da performance. Performance é, neste sentido, um momento destacado, diferenciado,
extraordinário, e podemos listar os vários elementos que analiticamente compõem as
performances narrativas.
Já há algum tempo venho tentando pensar sobre um narrar um tanto distinto, um
contar de estórias disperso no cotidiano e um cotidiano composto e recomposto em
grande parte pela sociabilidade deste contar. A reflexão que proponho aqui não é uma
abstração teórica.
Muito pelo contrário, ela “responde” ao meu próprio campo
etnográfico: é a macumba carioca que contamina minha análise e a propele por certos
caminhos de confabulação etnográfica.
~~~***~~~
Eu gostaria, então, de começar esta reflexão com uma estória etnográfica em três
atos.
129
Primeiro ato
Centro do Rio de Janeiro, Igreja Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito
dos Homens Pretos, algum momento no final dos anos 90
Do lado de fora da Igreja, no beco onde fica uma de suas entradas laterais, um
número de mesas estão dispostas com búzios, flores e velas. Mulheres vestidas em
roupas brancas lêem os búzios para clientes que lhes procuram. As conversas são em
voz baixa, nada se escuta dessas conversas íntimas que acontecem no meio do
burburinho da Rua Uruguaiana. Mais à frente, crianças vendem velas e flores próximo
à porta que dá acesso ao Museu do Negro, numa ala lateral da Igreja.
Subindo as escadas de madeira, o chamado dos ambulantes, a cacofonia da
cidade, dão lugar ao frescor silencioso das salas do pequeno Museu. Na primeira sala,
instrumentos de aprisionamento dos escravos são macabros emblemas de um tempo
passado. Ao fundo da outra sala, as efígies da princesa Isabel e de seu marido marcam a
passagem para ainda um outro tempo. Mas é a grande estátua de um rosto negro que
chama atenção quando se entra no Museu. Marcado por uma inscrição que o nomeia
como “Escravo Desconhecido”, ao seu redor se encontram vasos repletos de flores
vendidas na rua lá fora. Em placas presas na parede – traços de outros visitantes – se
agradece ao Escravo Desconhecido por graças recebidas. Alguém chamado Paulo
reconhece publicamente sua devoção ao Escravo de Angola.
Imagens da Escrava Anastácia e outras imagens de negros são também
adornadas por flores e palavras, e no fundo da sala uma estante de vidro está cheia de
fotos, mementos e folhas de papel inscritas com mensagens de súplica e agradecimentos
deixadas por outros tantos visitantes. Os espaços da pequena sala estão saturados pelos
traços deixados por estas passagens, as faces de crianças, jovens em uniforme militar,
homens e mulheres mais velhas, amarelando todos nas fotos antigas, marcas de tantos
atos de devoção.
Segundo ato
Novamente a Igreja Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito dos Homens
Pretos, Dia 13 de maio de 2004
130
Que as almas de nossos ancestrais escravizados, protegidos por Nossa Senhora
do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, descansem ao lado de Deus,
recompensados por seu sofrimento.
Rezemos ao Senhor!
Senhor, ouvi as nossas preces!
Com essas palavras, o padre encerrava sua homilia naquela quinta-feira,
fechando a Missa em Celebração ao dia 13 de maio. Os bancos da frente da Igreja
totalmente lotada estavam tomados pelos membros da Irmandade Imperial, negros
idosos e jovens vestidos em roupas escuras e mantos marcados pelo emblema da
Irmandade da Nossa Senhora do Rosário. Essa era sua casa sagrada, construída e
reconstruída com suas contribuições ao longo de muitos anos.
Sentada ao meu lado, num dos bancos no fundo da Igreja, uma senhora negra,
contrita em sua reza silenciosa, seus olhos fechados, a cabeça rebaixada, oferece sua
prece. Após o fim da missa, a senhora ao meu lado sai pela porta da Igreja, junto com a
multidão que há pouco tomava todos seus espaços.
Onde há pouco estava o padre, agora se agrupam novas pessoas. Começa um
outro ritual, agora uma homenagem póstuma, prestada pela Comissão Contra a
Discriminação da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, aos Abolicionistas e à
princesa Isabel, representada ali por membros de sua Família Real.
As longas falas por vários políticos e representantes dos homenageados ecoam
pelas paredes da Igreja quase vazia.
Também vou me embora, saindo no calçadão do lado de fora sou logo tomada
pela corrente de pessoas que flui pela rua.
Vou me embora, mas volto não muito tempo depois. Volto à Igreja vazia, volto
ao Museu. Não acho mais os vendedores de flores no Beco ao lado da Igreja, encontro
a antiga entrada do Museu agora fechada. Alguém me diz que a nova entrada é do outro
lado da Igreja. Por esta nova entrada o caminho me leva pelos corredores dos fundos da
Igreja, passo pelos escritórios da Irmandade, até chegar de volta ao pequeno Museu.
Encontro um novo Museu. A estante com seus ex-votos não está mais ali,
tampouco estão as flores, as imagens da Escrava Anastácia ou dos pretos velhos. Novos
móveis adornam a sala maior e neles estão expostos livros e pôsteres que nos falam
131
sobre a Diáspora, sobre a presença de negros na sociedade brasileira. Próximo à janela
agora se vê o rum, rumpi e lê, os atabaques do candomblé.
A princesa Isabel e seu esposo continuam o seu sono eterno no fundo da sala e,
ao sair, vejo o busto do Escravo Desconhecido, agora renomeado Homem Negro,
adornando o vão da antiga escada. No lugar dos agradecimentos às suas graças, uma
nova placa indica sua doação pelo artista. Não faço idéia de onde estão os velhos
retratos nem as páginas amareladas inscritas com súplicas, tampouco sei para onde
foram as placas que testemunhavam as graças concedidas. Alguém me disse depois que
estão guardados.
Terceiro ato
Tenda da Cabocla Jupiára, Bangu, subúrbio do Rio de Janeiro, Festa de Preto
Velho, maio de 2004.
Já estamos chegando ao final da feijoada de preto velho. Vovó Cambina dança
ao som dos pontos cantados, o som de seus tamancos de madeira batendo no piso de
cimento ao ritmo dos atabaques. Um dos filhos de santo comenta admirado a energia da
preta velha. Vovó Cambina imediatamente corrige seu erro, dizendo que velho é ele,
ela é nova. “Eu sou nova. Sou uma mulhé nova. Minha idade eu num sei, mas eu tinha
39 quando desencarnei. Isso foi... tem tanto tempo entre agora e aquela lei que fez os
preto livre... tem duas veiz o tempo. Cês contam aí. Eu num sei.”
Mesmo sendo nova, Vovó também se cansa da longa noite e está na hora de ir
embora. Ela começa a se despedir, mas uma filha de santo reclama que ela vai embora
sem deixar nenhuma estória. Vovó se anima com o pedido, mas reclama que antes já
havia começado a contar e ninguém a tinha ouvido, distraídos pela feijoada servida para
os filhos de santo, espíritos e seus convidados. “Tua fome era maior pela comida!”,
reclama Vovó sorrindo.
Com a boca adoçada pelo melaço, a mistura de mel e cachaça que ela
generosamente compartilhava com seus filhos, Vovó voltou à estória que tinha
começado mais cedo quando um ogãn havia puxado um ponto que clamava pela
proteção de Ganga Zumba:
Eu tava falando do velho Ganga Zumba
O velho Zumba era um escravo
132
Mas ele era...
Cumé que se diz...
Aquele que era chefe dos escravo
Das senzalas
Das plantação
Ele era um preto velho
Era ele quem rezava parto difírcil
Que fazia os parto
Era paridor
Mas ele foi traído
Uma mulhé entregou ele pro senhô
Ela queria coisas pra ela
Então ela entregou ele pro senhô
O senhô botou ele no mastro por 7 dias
“Você fica aí. Aí teus escravos te curam”, o senhor disse pra
ele.
No mastro, o velho Zumba começou a rezar pra Zambi
A implorar
Que ele sabia que ia morrer
Ele pediu a Zambi pra dar força pros outro escravo pra fugir
pros quilombo
Que era o velho Zumba que sabia dos caminho pros quilombo.
Era ele que levava os escravo na metade do caminho pros
quilombo.
Era lá que tinha liberdade de verdade, onde eles era livre
Ele rezou e começou a ver coisas
Ele via coisas pruque ele tava amarrado
Mas ele viu o povo em liberdade
Ele viu os campo plantado
Era cana
Era milho
Tudo plantado...
E foi assim que o velho Zumba morreu...
~~~***~~~
Minha narrativa etnográfica aqui transita por diversos momentos daquilo que
chamamos de trabalho de campo. São momentos não só temporalmente distintos, mas
também localizados em lugares distantes na cidade do Rio de Janeiro. Meu narrar
133
etnográfico produz certas relações entre estes vários momentos e lugares. E aqui
“relação” deve ser entendida no sentido literal que Tim Ingold lhe dá, não como “uma
conexão entre entidades pré-localizadas, mas como um caminho traçado ao longo do
terreno da experiência vivida” (2007, p. 90). Ao invés de conectar pontos numa rede,
toda relação, para Ingold, é uma linha num emaranhado de caminhos entrelaçados
(ibid.), produzindo os sentidos dos vários pontos pelo próprio movimento entre eles.
A relação engendrada pela narrativa etnográfica não meramente coloca a estória
de Vovó contra um contexto que lhe precede e lhe determina o sentido, oferecendo um
enquadre que lhe assegure o significado, mas antes busca justapor elementos estranhos
que possam desestabilizar qualquer fácil compreensão que exaure sua potência de
significação.
A estória de Vovó, meu terceiro ato narrativo, quebra o enquadre do momento
ritual para trazer para dentro do Centro de macumba a história da escravidão. A homilia
do padre na missa católica também traz à tona, no santuário da Igreja, a história da
escravidão, mas sua fala retém a escravidão em um passado distante. Somos chamados a
rezar PELAS almas no céu, por sua salvação tornada merecida pelos tormentos em um
passado que ser quer distante.
Já a estória contada por Vovó sobre o destino cruel de um escravo no tempo
remoto – e o próprio contar desta estória por Vovó, ela mesma uma escrava – tem
efeitos bastante diferentes. Em sua forma peculiar de marcar o tempo de sua vida e de
sua morte, Vovó nos diz ter morrido no final do século XVIII, uma jovem mulher de 39
anos – apesar de sua idade de fato ser uma questão que só à nós parece importar. Nesta
sobreposição de contar de estórias e contar do tempo, o passado ser torna novamente
presente no meio de um ritual de macumba.
Se Vovó e o padre falam da mesma escravidão, será que falam através da mesma
história? E se o padre nos compele a rezar, será que a senhora ao meu lado na Igreja
reza de fato PELAS almas de nossos antepassados? Ou será que ela reza PARA as
almas? Serão suas almas as mesmas de que nos fala o padre? Ou é a reza da anônima
senhora um clamar que caminha de volta tanto ao espaço quase-oculto do Museu,
assombrado pelos traços de presenças recentes e por um passado que insiste em se fazer
presente, quanto ao espaço distante do subúrbio, para um lugar saturado com a presença
de espíritos?
134
Se minha narrativa etnográfica estabelece relações que se abrem nestas possíveis
direções (interpretativas), é porque ela é, de certa forma, contaminada pelos próprios
efeitos que o contar de estórias pelos e sobre os pretos velhos entre os macumbeiros
provoca.
Os pretos velhos são personagens muito presentes no imaginário brasileiro. Sua
imagem popular é atravessada por personagens ficcionais como Tia Anastácia,
benevolente e maternal protetora das crianças do Sítio do Picapau Amarelo, e por
imagens de gesso de velhos negros de cabelos brancos, corpos curvados pelo tempo e os
semblantes marcados pelo peso da sabedoria, que podemos comprar em qualquer loja de
“artigos religiosos”. O conforto de suas palavras, a ajuda de seus banhos e rezas
curativas, o baforar de seus cachimbos sempre presentes, são certamente poderosos
chamativos para o grande número de pessoas que procuram por sua ajuda nas sessões de
consulta e nas giras de pretos velhos.
É através deste mesmo abraçar dos necessitados que lhes buscam, que os
espíritos de pretos velhos envolvem seus filhos e clientes nas dobras de um emaranhado
de memórias, de atos e de lugares, implicando-os numa constelação de estórias que
continuamente assombram o presente.
Ouvidas entre práticas rituais e inseridas nos fluxos de outras conversas, tais
narrativas são fragmentadas e dispersas, e marcadamente distintas daquilo que
comumente consideraríamos como um corpus mitopoético ou tradição narrativa. Não
demarcadas enquanto usos explicitamente estéticos de formas linguísticas, que
distinguiriam seus narradores por um virtuosismo linguístico, tais estórias são contadas
não só pelos próprios espíritos, mas também por clientes e filhos-de-santo (Cardoso,
2009).
Tais estórias surgem como em meu terceiro ato narrativo, onde um fragmento da
estória da preta velha Vovó Cambina se entremeia com a própria estória que ela conta
sobre Ganga Zumba. Ou irrompem no meio de um ritual, como quando Vovó,
extremamente irritada com o comportamento impertinente de uma criança que insistia
em atrapalhar sua sessão de consultas, gritou que as crianças dela ela tinha comido com
farinha. Eu um dia havia perguntado por que ela não quisera ter filhos – um fato que ela
frequentemente mencionava, com aparente desdém, para mães que lhe traziam seus
problemas com os filhos. Vovó havia disparado sua resposta de supetão, como se para
135
me acordar da assustadora ignorância que motivava a pergunta: “E eu ia parir escravo,
menina?”.
Esses fragmentos narrativos não são oferecidos como lembranças do passado,
mas emergem como ecos do desenrolar dos eventos no presente. É no meio destes
afazeres que estas estórias são oferecidas e é nesta confabulação que reside sua força
poética. É na intimidade das relações com os espíritos que se tece o conhecimento sobre
os espíritos, seus filhos de santo e seus clientes.
Os pretos velhos são reticentes em contar algo que pudéssemos chamar de “suas
histórias” – ou de “história de vida”, este gênero narrativo tão presente na Antropologia
–, refugiando-se numa linguagem de curas e prescrições como seu meio de
comunicação.
Eu costumava ir às sessões de pretos velhos num Centro em Campo Grande,
outro subúrbio nas distantes margens da cidade do Rio de Janeiro – ou talvez não tão
distante, já que o Centro fica na mesma rua da escola Municipal onde um dia estudei.
Neste Centro, enquanto os pretos velhos, espíritos de cura por excelência, me davam os
esperados passes, eu, a antropóloga, tentava conversar sobre suas vidas. Nossas
conversas eram no mínimo estranhas. Eles tentavam descobrir quais eram minhas
necessidades espirituais e eu tentava traduzir minhas perguntas para a linguagem de
consultas e curas.
Estes eram de certo desencontros. Tornar a estória deles o centro de nossa
relação era algo estranho. Não que eles se negassem a me ajudar – afinal eles são pretos
velhos. Um preto velho me receitou banhos para me ajudar a abrir os caminhos da
minha pesquisa. Ele havia me dito que era Pai Jacinto de Angola. “Eu sou um preto
velho, daquelas bandas”, disse ele. “Tem outros aqui de lá daquelas terras”, ele havia
me informado durante uma consulta, olhando vagamente ao redor para os vários outros
pretos velhos ocupados com seus clientes.
Eu lhe disse que queria conhecer sua estória, as estórias dos pretos velhos. Ele
baforou meu rosto com mais um pouco de fumaça, me dizendo que “Tem muita estória.
Tem muito escrevedor [muitos livros] co’as estórias. Cê já leu?”. Eu respondi que
aquelas eu já tinha lido, mas que eu queria conhecer a estória dele e dos outros ali ao
seu lado. Depois de mais uma medida de fumaça, ele me receitou banhos de ervas por
sete dias: “Vão abrir teus caminhos. Você vai ficar bem [...] Tome os banho e volta na
outra lua”. Pai Jacinto, em toda sua sabedoria, transformou nosso desencontro de formas
136
e desejos – a minha busca de conhecimento sobre os espíritos e o seu papel de me
oferecer a esperada ajuda – dando-lhe um novo enquadre através da linguagem de
abertura de caminhos, e ainda acrescentando o importante convite para eu voltar.
O que aqui estou chamando de desencontro é ignorar justamente o que está
implícito no convite de Pai Jacinto. Conhecer as estórias dos pretos velhos demanda
retornos, implica participar na socialidade onde a performance do contar se desdobra, e
onde os papéis de ouvinte e contador se permutam com o tempo. É claro que, seguindo
convenções textuais de uma certa Antropologia, podemos compor uma narrativa mais
ou menos completa que represente a história de Pai Jacinto ou Vovó Cambina, ou de
qualquer outro preto velho (Cardoso, 2009; 2007).
Aquela história seria o resultado de uma forma de conhecimento que é
construído através do acúmulo de partes, de observações feitas desde certos pontos e
que se encaixam em direção a um produto final mais inclusivo. Mas a maneira como
Pai Jacinto re-situa nossa relação aponta para uma outra forma epistemológica local,
onde a construção do conhecimento é também performativa. Isso ecoa com algo que
Tim Ingold vem chamando de “conhecimento habitado” (2007, p. 100), em suas
discussões sobre narrativas e movimentos de inscrição que não mapeiam ou demarcam
espaços, mas que habitam o espaço, produzindo “lugares”.
Para Ingold, este
conhecimento é um caminho de movimentos pelo mundo (idem, p. 89), e é no
movimento – entre lugares, entre temas, entre estórias – que o conhecimento é integrado
ou posto em relação. Conhecimento é uma trama em movimento.
Na macumba esta trama toma forma justamente na socialidade do contar
estórias, onde as performances narrativas acontecem de forma dispersa e fragmentada.
A potência de significação das estórias não é algo que se capture por uma contemplação
analítica ou um ouvir distanciado, mas está embebida em suas enunciações,
demandando um outro engajamento com sua forma poética – algo semelhante ao que
Michael Taussig, tomando a discussão de Benjamin sobre as formas de percepção do
surrealismo (1968a), chama de uma apropriação “distraída” (1992, p. 143-144), em que
somos, ‘desavisadamente’, por assim dizer, atingidos por algo que acontece, implicados
em seu desenrolar. Se, como nos diz Benjamin em seu clássico texto sobre o narrador
(1968b, p. 92), “traços do narrador se prendem à estória do mesmo modo que as
impressões do oleiro se prendem ao vaso”, aqui as estórias são marcadas pela forma do
contar, pela performance do narrar.
137
É através da performance narrativa que se configuram conexões contingentes,
que se produzem arranjos momentâneos entre estas estórias – é em performance que se
produz um “espaço de tensa confabulação” (Stewart, 1996, p. 26). Este confabular está
inscrito por sua socialidade, de forma similar à relação dialógica que, para Bakhtin, está
impregnada na “enunciação viva”, que mesmo tomando forma e significação num
momento em particular, não pode deixar de resvalar em milhares de outros fios
dialógicos (1981, p. 276). É nesta ressonância em performance que os sentidos das
estórias dos pretos velhos são feitos e desfeitos.
É esta ressonância um tanto discordante que se ouve quando a estória de Vovó
irrompe de forma quase que fantasmagórica em seu grito exasperado contra uma criança
que perturba seu ritual de consulta, pondo sua rejeição da maternidade em choque com a
própria maternidade que leva tantos de seus clientes a buscar sua ajuda.
É essa
ressonância que também ouvimos quando, em outra feijoada de preto velho, Vovó, no
meio de sua prece em agradecimento pela comida compartilhada por todos ali presentes,
nos diz ter sido ela uma bela escrava que se casara com seu Senhor. Se esse quasecontos-de-fadas a salva da tragédia da escravidão, seu futuro lhe destina um irônico fim,
pois ela nos diz ter morrido nas mãos daqueles que vieram a se tornar seus escravos: ela
fora morta com seu marido pelo fogo de uma escrava em revolta.
Em uma prece em que Vovó nos exorta a sermos justos e caridosos para com os
outros, a estória de sua própria morte ilumina a moral que move sua narrativa. Este é
um complexo ato narrativo, em que as distinções entre os papéis de narrador, audiência
e personagem narrativo se esfacelam e se recompõem ao longo da prece. Vovó conta
uma estória, ao mesmo tempo em que suplica a Nosso Senhor do Bonfim em nome de
sua audiência, os filhos de santo. Mas ela também lhes diz que foi seu suor escravo que
temperou a feijoada que os alimenta física e espiritualmente naquela festa de preto
velho. Dizendo-se escrava de seus filhos de santo, ela re-situa sua audiência dentro de
sua estória, tornando-os personagens de uma narrativa que transita por vários momentos
do tempo.
Sua performance narrativa cria uma “encruzilhada” onde estórias, sujeitos,
lugares e a história se entrecruzam, criando conexões temporárias e provocando algo
similar ao que Benjamin chamou de “iluminações profanas” (1978, p. 183). Em seu
contar, a estória de Vovó, o quase-contos-de-fada de seu casamento com um homem
branco, evoca uma outra quase-estória-da-carochinha, a história da formação de uma
138
nação e um povo miscigenados pelo encontro passional da mulher negra com o homem
branco – aliás, esta é uma estória-da-carochinha que se renova e se atualiza em diversas
vozes, como a do senador Demóstenes Torres, do DEM, em sua recente manifestação
contra a política de ação afirmativa no Brasil, quando reafirmava uma suposta natureza
consensual das relações sexuais entre escravas negras e senhores brancos. Mas, se
podemos de fato passar de um conto para outro a partir da narrativa da preta velha, tal
passagem se estremece com a morte de Vovó, e com sua recusa a parir escravos. Aqui
uma enunciação se resvala com outros fios narrativos, produzindo o risco de um
estranhamento de nossos esquemas de interpretação.
As estórias contadas pelos e sobre os espíritos na macumba não produzem uma
contra-história, uma história que possa preencher as lacunas da história ou desvendar
uma outra verdade histórica. Este contar não se presta facilmente a uma estratégia que
busca reverter centros e margens da história. Em sua forma poética – de performances
narrativas dispersas e fragmentadas –, talvez possamos pensá-las como o que John
Dawsey, em sua “antropologia benjaminiana” (2009), chama de “curto-circuito”:
“imagens carregadas de tensões [que] interrompem [...] processos de recriação de
significados” (p. 164), que insistem no “aspecto não-resolvido e inacabado das coisas”
(ibid.). Aqui estou pensando nestas “imagens” como estórias que permanecem nos
interstícios, estórias, que “incessantemente introduzem diferença” (Trinh Minh-ha,
1991, p. 20), impedindo fechamentos finais e a certeza de uma história homogênea.
Aqui certamente ecoa algo da perturbação que Michel de Certeau identifica no discurso
das mulheres possuídas, cujo “ato enunciador” é uma “estranheza fugidia” (2006, p.
254).
Nas estórias contadas pelos e sobre os pretos velhos, tal “estranheza fugidia”
afeta o próprio tempo. O tempo biográfico do sujeito em performance é radicalmente
perturbado por uma narradora que nos conta sobre sua própria morte, como quando
Vovó lamenta a perda de seu amado no fogo que deu fim às suas vidas. Ou quando nos
diz, em sua forma oblíqua de marcar a passagem do tempo, ter morrido no século
XVIII, mas ser ainda uma mulher nova que pode dançar a noite toda ao som dos
atabaques. Aqui a relação entre o tempo existencial do sujeito e um tempo
pretensamente universal certamente complica a própria noção do “real”.
Se ouvir estórias contadas por um sujeito que é simultaneamente deste e de outro
tempo, afeta a maneira como percebemos a realidade distinta daquele sujeito em
139
particular, as estórias que Vovó nos conta afetam também o tempo para além de sua
biografia.
Na prece de Vovó Cambina sobre a feijoada que seus filhos de santo
compartilham, o passado também se reatualiza no presente, ele se materializa no suor de
escravo que ela diz impregnar a comida que é consumida e que transforma
espiritualmente os filhos de santo. Se as imagens dos pretos velhos podem, ou pelos
menos podiam, ser peças de Museu – o lugar por excelência do passado – suas vozes se
materializam nos corpos a girar com os pontos cantados por seus filhos de santo.
Nós poderíamos pensar esta heterogeneidade do tempo em termos da liberdade
temporal que está presente na narrativa ficcional. Como nos diz Ricoeur (1985, p. 127),
na narrativa de ficção cada existência temporal é única, acentuando a discordância entre
o tempo vivido e o tempo universal, possibilitando assim a exploração das dimensões
não lineares do tempo vivido que o tempo histórico oculta em sua conexão com a
cronologia do Universo (ibid, p. 132). A narrativa de ficção é, ainda segundo Ricoeur,
“um baú de tesouro de variações imaginativas aplicadas ao tema do tempo” (ibid,
p.128).
Associar as narrativas dos pretos velhos e seus efeitos à ficção, seria, no entanto,
recriar uma diferença entre algo que chamaríamos de “crença” e algo exterior a elas,
que seria uma realidade natural, um mundo de temporalidades objetivas. Seria tomar
estas estórias desde uma perspectiva que, como argumenta Joanna Overing, aprisiona o
“oral, o específico, o local e o temporal” (1995, p. 119) como “postulados de realidades
imaginários” (ibid, p. 122). Em vez disso, talvez devêssemos tomar as performances
narrativas desde uma perspectiva que perceba a existência de diversas linguagens “por
meio das quais vivenciamos o mundo”48 (ibid, p. 121).
Se as estórias contadas sobre e pelos pretos velhos expressam múltiplas
temporalidades, elas dão forma a um mundo que é vivenciado através desta
multiplicidade. Elas constituem em performance “uma forma de conhecimento do
mundo” (Overing, 1995, p. 115), que em muito relembra outras formas orais de contar
“causos”, onde, como diz Walnice Galvão, “o acontecido de ontem e aqui ombreia com
o acontecido de eras remotas e bem longe” (1972, p. 56, apud Rondelli, 1993, p. 106).
48
Overing está aqui tomando as reflexões de Wittgesntein e de N. Goodman sobre a não existência de
uma metafísica única, mesmo na tradição ocidental. Seu argumento sobre “mito como história” é em
grande parte uma resposta crítica à afirmação de Alfred Gell que as diversas temporalidades “nativas”
devem ser tomadas como “sistemas de crenças contingentes”, ou manipulações de “premissas culturais”,
e não como postulados metafísicos.
140
Nesta encruzilhada de tempos que as narrativas entretecem, personagens reconhecidos
como “históricos” convivem em novas significações com as estórias dos próprios
espíritos e de seus filhos de santo.
Compreender o modo como este contar de estórias não apenas descreve o
mundo, mas produz novas formas de conhecimento acerca do mundo é o que me leva a
pensar nestas performances narrativas como confabulações. Isso significa pensá-las
como práticas narrativas que configuram um mundo vivenciado pelos sujeitos e que dão
forma a um imaginário que afeta o cotidiano, produzindo práticas e sentimentos acerca
do mundo. Isso também significa percebe-las em seus efeitos de produção daquilo que
Michael Taussig chama de a “realidade do realmente construído através do qual todos
nós somos obrigados a viver nossas vidas” (Taussig, 1993, p. ix, apud Overing, 1995, p.
115).
É claro que se estas estórias constituem experiências no mundo é preciso saber
ouvir o seu contar, reconhecer sua força poética.49
É preciso reconhecer uma
socialidade que põe em relação espíritos e filhos de santo, e onde estes se deslocam
como narradores e audiência das estórias de pretos velhos. Isso não significa dizer que
as estórias simplesmente refletem seu contexto sociológico, mas que sua compreensão
está implicada na participação em uma comunidade narrativa que compartilha um
imaginário construído através deste mesmo narrar.
Talvez possamos pegar emprestado o que Marco Antônio Gonçalves fala acerca
do cordel, para sugerir que as estórias dos pretos velhos falam através de uma “poética
de ser no mundo” (2009, p. 17). É nas múltiplas relações que o contar estabelece entre
sujeitos, tempos e lugares que seu contexto cotidiano é construído, imaginado,
compartilhado. É neste contar que o “real” é confabulado.
É na socialidade do contar as estórias dos pretos velhos que as fronteiras entre
um “mundo contado” e um “mundo social” se tornam tensas e se transformam,
49
Aqui uso o conceito de “poética” não no sentido restrito da forma da poesia, mas para falar de uma
expressividade ligada a uma forma, uma dimensão do falar que produz sentimentos e imagens acerca do
cotidiano. A poética é tomada como um investimento produtivo sobre as palavras. Overing fala em uma
“estética do cotidiano”, e poderíamos certamente estender isso para pensar na dimensão poética da “fala
comum”. Ou, como diz Karen Berber (2007), não existe um discurso ordinário cotidiano que seja neutro,
que flui uniformemente e do qual se destacaria o realmente ou extraordinariamente poético. Quebra-se
assim com a antiga discussão de que poesia erudita ou literatura erudita, por exemplo, exercem suas
forças poéticas independente de contextos, enquanto formas populares estão aprisionadas ao contexto, e
se oferece uma outra forma de pensar a relação contexto e expressividade para além de uma relação
determinante.
141
impregnando o “real” com novos sentidos. É neste contar que as almas que o Padre
evoca em sua prece na Missa de 13 de maio na Igreja de Nossa Senhora do Rosário
deixam seu merecido, mas distante, lugar de descanso ao lado do Nosso Senhor, para se
tornarem mais uma vez escravos em feijoadas nos subúrbios cariocas. É nesse contar
que as faces amareladas nos ex-votos no Museu do Negro ganham vida ouvindo estórias
ao som dos atabaques. É nesse contar que a prece silenciosa da negra senhora ao meu
lado na Igreja de Nossa Senhora do Rosário ecoa na prece de uma preta velha.
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142
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143
COMUNICAÇÕES ORAIS
144
ARTES DO ESPETÁCULO
SESSÃO 1: PERFORMANCE, LINGUAGEM E EXPERIÊNCIA
Lev S. Vygotsky (1896 -1934)
Edlúcia Robélia Oliveira de Barros (UFG)
e
o
teatro:
revelações ,
Pedagoga e Graduanda em Artes Cênicas
Universidade Federal de Goiás
Rede Goiana de Pesquisa em Performances Culturais
[email protected]
Resumo: Este artigo apresenta os primeiros resultados do projeto de pesquisa
em andamento, que tem como objeto analisar os estudos do teatrólogo e psicólogo Lev
S. Vygotsky (1896-1934), sobre a articulação do pensamento humano e da linguagem,
que aborda, dentre outras, a questão relativa ao pensamento que se elabora por trás das
palavras faladas ou “subtexto”, presente nas atividades humanas, algo que, segundo o
autor, havia sido sistematizado anteriormente pelo teatrólogo Constantin Stanislavski
(1865-1938), no seu trabalho com atores.
Palavras-chave: subtexto, oralidade, pensamento e linguagem.
O presente trabalho, Lev S. Vygotsky e o teatro: revelações, visa investigar e
apresentar as possíveis contribuições do psicólogo russo Lev Semenovich Vygotsky
(1896-1934) para a área teatral através da análise da sua obra Pensamento e Linguagem,
que foi produzida perto do seu falecimento e publicada na União Soviética, em 1934.50
Mas, proibida em 1936, devido à censura do totalitário regime stalinista, só voltando a
ser reeditada neste país, em 1956 (REGO, 1995:34). Nos Estados Unidos a primeira
versão publicada é de 196251 e apresenta-se de forma simplificada em relação à original.
Já no Brasil, este texto chega mais tarde, com os títulos: Pensamento e Linguagem
50
51
VYGOTSKY, L. S. Pensamento e Linguagem. Moscou-Leningrado, Sozekgiz, 1934.
VYGOTSKY, L. S. Thought and Language. Cambridge: MIT Press and Wiley, 1962.
145
(1987),52 traduzido da edição norte-americana; e A Construção do Pensamento e da
Linguagem (2001),53 publicação integral do texto, traduzido diretamente do russo.
Na publicação percebe-se que Vygotsky sempre foi fascinado pela produção
teatral, pois para sustentar suas idéias referentes à relação entre Pensamento e
Linguagem, ele faz menção a obras e autores teatrais como Gogol (1809-1852), Goethe
(1749-1832), Stanislavski (1865-1938), dentre outros. Algo corroborado por Van Der
Veer e Valsiner (2006:389), que também informam que sua produção “contém muitas
referências aos poetas que ele admirava, em resumo, ao mundo das palavras e do teatro
que ele amou desde sua juventude”.
A área do teatro, a qual Vygotsky esteve diretamente envolvido, pode ser
enriquecida por algumas discussões feitas por ele neste trabalho sobre o Pensamento e a
Linguagem, como os seus comentários sobre as falas: egocêntrica, interior e exterior. A
primeira foi pioneiramente abordada pelo epistemólogo suíço Jean Piaget (1896-1980),
cujas obras A Linguagem e o Pensamento da Criança (1923) e O Raciocínio na
Criança (1924) foram lidas pelo Vygotsky com bastante interesse. Ele reconheceu a
importância do estudo de Piaget sobre a linguagem e o pensamento das crianças, bem
como do método adotado. Porém, apresentou críticas e divergências acerca da fala
egocêntrica.
Segundo Vygotsky (2008), referindo-se às idéias de Piaget, sobre a fala
socializada, informa que:
Na fala egocêntrica, a criança fala apenas de si própria, sem
interesse pelo interlocutor; não tenta comunicar-se, não espera
resposta e, freqüentemente, nem sequer se preocupa em saber
se alguém a ouve. É uma fala semelhante a um monólogo em
uma peça de teatro: a criança está pensando em voz alta,
fazendo um comentário simultâneo ao que quer que esteja
fazendo. Na fala socializada, ela tenta estabelecer uma espécie
de comunicação com os outros – pede, ordena, ameaça,
transmite informações, faz perguntas (VYGOTSKY, 2008:18).
Em oposição a esta concepção de Piaget, Vygotsky (2008:23) prefere “utilizar o
termo comunicativa para o tipo de fala que Piaget chama de socializada”, porque para
ele a função principal da fala é a comunicação e, portanto, a fala mais primitiva da
52
VYGOTSKY, L. S. Pensamento e Linguagem. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins
Fontes, 1987.
53
VYGOTSKY, L. S. A Construção do Pensamento e da Linguagem. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
146
criança, mesmo a egocêntrica como a comunicativa são falas sociais. A própria fala
egocêntrica, segundo Vigostsky, “emerge quando a criança transfere formas sociais e
cooperativas de comportamento para a esfera das funções psíquicas interiores e
pessoais.” O que ocorre quando se conversa consigo mesmo da mesma forma que se
conversa com os outros, por exemplo. Essas idéias de Vygotsky são interessantes para
os estudos acerca do espetáculo cênico, como o monólogo (no qual um ator verbaliza
consigo mesmo), pois este tem também por finalidade principal o intercâmbio entre
artistas e um público bem como no mesmo, ocorre a transferência de formas sociais
para a esfera interior.
Uma segunda divergência entre os dois autores, é que para Piaget, a fala
egocêntrica não desempenha um papel útil para as crianças e desaparece na idade
escolar, já para Vygotsky a considera importante na atividade da mesma. Demonstrou
isso, através de suas experiências, nas quais as crianças se deparavam com algumas
dificuldades e começavam a falar consigo mesma, tentando resolver um problema. Ele
esclarece que a fala egocêntrica, não é “um mero acompanhamento da atividade da
criança. Além de ser um meio de expressão e de liberação da tensão, torna-se logo um
instrumento do pensamento, [...] – a busca e o planejamento da solução de um
problema” (VYGOTSKY, 2008:20). Pode-se observar fenômeno parecido no seguinte
trecho de Hamlet, de William Shakespeare:
Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre
Em
nosso
espírito
sofrer
pedras
e
setas
Com
que
a
Fortuna,
enfurecida,
nos
alveja,
Ou
insurgir-nos
contra
um
mar
de
provações
E em luta pôr-lhes fim? Morrer...dormir: não mais.
Dizer que rematamos com um sono a angústia
E
as
mil
pelejas
naturais-herança
do
homem:
Morrer
para
dormir...
é
uma
consumação
Que
bem
merece
e
desejamos
com
fervor.
Dormir... Talvez sonhar: eis onde surge o obstáculo:
Pois
quando
livres
do
tumulto
da
existência,
No repouso da morte o sonho que tenhamos
Devem
fazer-nos
hesitar:
eis
a
suspeita
Que impõe tão longa vida aos nossos infortúnios.
Quem sofreria os relhos e a irrisão do mundo,
O agravo do opressor, a afronta do orgulhoso,
Toda
a
lancinação
do
mal-prezado
amor,
A
insolência
oficial,
as
dilações
da
lei,
Os
doestos
que
dos
nulos
têm
de
suportar
O
mérito
paciente,
quem
o
sofreria,
Quando
alcançasse
a
mais
perfeita
quitação
Com a ponta de um punhal? Quem levaria fardos,
147
Gemendo
e
suando
sob
a
vida
fatigante,
Se o receio de alguma coisa após a morte,
–Essa
região
desconhecida
cujas
raias
Jamais
viajante
algum
atravessou
de
volta
–
Não nos pusesse a voar para outros, não sabidos?
O
pensamento
assim
nos
acovarda,
e
assim
É
que
se
cobre
a
tez
normal
da
decisão
Com o tom pálido e enfermo da melancolia;
E
desde
que
nos
prendam
tais
cogitações,
Empresas de alto escopo e que bem alto planam
Desviam-se
de
rumo
e
cessam
até
mesmo
De se chamar ação. [...] 54
No fragmento acima, Hamlet a fala para si próprio e, igualmente a fala
egocêntrica, é um instrumento de expressão, liberação de tensão, de pensamento e
solução de problema. As contribuições de Vygotsky sobre a fala egocêntrica podem ser
detalhadas na presença do faz-de-conta projetado, em que a criança atua mais
solitariamente, este geralmente “é acompanhado por vocalizações e verbalizações”.55
Além do proferido, ao contrário de Piaget, Vygotsky (2008:22) defende que a
fala egocêntrica não se atrofia na fase escolar e sim, transforma-se em fala interior. Esta
foi estudada por vários autores, que a concebia de maneira diferente, como: apenas
memória verbal pelos investigadores franceses; fala sem som, por Müller e fala
subvocal, por Watson; reflexo da fala inibida em sua parte motora, por Bekhterev; tudo
que antecede o ato motor de falar, por Goldstein (VYGOTSKY, 2008:162-164).
Enquanto o autor em estudo, a apresenta num processo similar a da fala exterior, como
se observa abaixo:
A fala interior é a fala para si mesmo; a fala exterior é para os
outros. Seria na verdade surpreendente se uma diferença
funcional tão básica não afetasse a estrutura dos dois tipos de
fala. A ausência de vocalização, por si só, é apenas uma
conseqüência da natureza específica da fala interior, que não é
nem um antecedente da fala exterior, nem a sua reprodução na
memória, mas, em certo sentido, o contrário da fala exterior.
Esta última consiste na tradução do pensamento em palavras,
na sua materialização e objetificação. Com a fala interior,
inverte-se o processo: a fala interioriza-se em pensamento.
Conseqüentemente, as suas estruturas têm que divergir
(VYGOTSKY, 2008:164).
54
55
SHAKESPEARE, William. Hamlet.
JAPIASSU, Ricardo Ottoni Vaz. O Faz-de-Conta e a Criança Pré-Escolar.
148
Nota-se que os dois tipos de fala se diferenciam pelo fato de uma exteriorizar o
pensamento fazendo uso das palavras e a outra, a fala se interioriza lançando mão do
pensamento. Ambas, ocorrem no diálogo teatral, por exemplo, enquanto uma atriz está
proferindo a fala da sua personagem, fazendo uso da fala exterior, a outra, pode estar
falando consigo mesma sobre as intenções de sua personagem.
Conforme Vygotsky (2008: 172-173), uma característica essencial da fala
interior é a tendência para abreviação, em que se “omite o sujeito de uma frase e todas
as palavras com ele relacionadas, enquanto mantém o predicado”. Este acontecimento
apresenta-se também na fala exterior, como no diálogo, algo observável abaixo:
O diálogo sempre pressupõe que os interlocutores tenham um
conhecimento suficiente do assunto, para tornar possíveis a fala
abreviada e, em certas condições, as frases exclusivamente
predicativas. Também pressupõe que cada pessoa possa ver
seus interlocutores, suas expressões faciais e seus gestos, e
ouvir o tom de suas vozes (VYGOTSKY, 2008:177).
Estas condições permitem a compreensão das falas abreviadas que tendem a
predicação. Que, conforme Vygotsky (2008:173), ocorrem em dois momentos na fala
exterior: “quando se trata de uma resposta e quando o sujeito da frase é conhecido de
antemão por todos os participantes da conversa. A resposta à pergunta ‘Quer uma xícara
de chá?’ nunca é ‘Não, não quero uma xícara de chá’, mas simplesmente ‘Não’.”
Construções desse tipo são constantes também no texto teatral, uma mostra pode ser
vista num fragmento da peça teatral O Santo Inquérito (1966), de Dias Gomes:
VISITADOR
Come toicinho, lebre, coelho, polvo, arraia, aves afogadas?
BRANCA
Como...
VISITADOR
Toma banho às sextas-feiras?
BRANCA
149
Todos os dias...56
O entendimento da abreviação num processo de diálogo, como assegura
Vygotsky, está relacionado não apenas ao conhecimento suficiente do assunto tratado,
como também ao fato dos interlocutores enxergarem-se um ao outro, o que possibilita a
percepção das expressões faciais e dos gestos que acompanham e complementam as
falas. No teatro, a visão é igualmente importante, pois “o vocábulo grego Théatron
(θέατρον) estabelece o lugar físico do espectador, ‘lugar onde se vai para ver’ e onde,
simultaneamente, acontece o drama” (CAMARGO, 2005:01). Assim, quando a platéia,
por exemplo, senta-se em local pouco privilegiado e não vê direito os intérpretes e suas
expressões corporais que ocorrem concomitantes a emissão vocal, pode comprometer o
entendimento das falas abreviadas e a comunicação entre atores e público.
A multiplicidade do tom da voz do interlocutor é do mesmo modo relevante e
Vygotsky (2008:177-179) deu ênfase em Pensamento e Linguagem, pois afirmou que “a
entoação auxilia na compreensão sutilmente diferenciada do significado de uma
palavra.” Exemplificou essa afirmação, utilizando um trecho do Diário de um escritor
(1873), de Dostoievski (1821-1881), que descreve uma conversa entre bêbados, na qual
os mesmos faziam uso apenas de uma única palavra, minúscula e proferida de várias
maneiras. A partir dessa história, ele afirma que:
A inflexão revela o contexto psicológico dentro do qual uma
palavra deve ser compreendida. Na história de Dostoievski,
tratava-se de negação desdenhosa num dos casos, dúvida em
outro, e irritação no terceiro. Quando o contexto é tão claro
como nesse exemplo, fica realmente possível transmitir todos
os pensamentos, sentimentos e até mesmo toda uma seqüência
de raciocínios em uma só palavra (VYGOTSKY, 2008:178179).
Percebe-se que a entonação é um dos fatores contribuintes para que aconteça a
abreviação na fala oral, pois evidencia o contexto psicológico, o que vem facilitar a
compreensão de pensamentos, sentimentos e seqüência de raciocínios transmitidos
através de uma só palavra. Esses conhecimentos são de grande valia na encenação
56
GOMES, Dias. O Santo Inquérito. Disponível em: <http://www.algosobre.com.br/resumos-literarios/osanto-inquerito.html>. Acesso em: 20 jan. 2010.
150
teatral, uma vez que o ator deve ter saberes e práticas acerca de questões referentes à
utilização da palavra e da voz da personagem, o que inclui o trabalho com a entonação.
Sobre esse assunto, Ingarden et al. (1977:66) faz saber que “um ator da Companhia de
Stanislavsky chegou à fama pelas quarenta formas de dizer as palavras ‘esta tarde’, e
seus ouvintes na maioria dos casos podiam adivinhar o contexto semântico”. O que vem
fazer correspondência com os comentários de Vygotsky, pois se encontram poucas
palavras, pronunciadas de várias formas, transmitindo significados diversos,
perfeitamente entendidos pela platéia.
Outra discussão proeminente é acerca do pensamento por trás das palavras, que
Vygotsky (2008:185) apresenta dialogando com conhecimentos do teatro, cuja área saiu
na frente em relação à abordagem da referida questão, como assevera o autor:
O pensamento tem a sua própria estrutura, e a transição dele
para a fala não é uma coisa fácil. O teatro deparou com o
problema do pensamento por trás das palavras antes que a
psicologia o fizesse. Ao ensinar o seu sistema de representação,
Stanislavsky exigia que os atores descobrissem o “subtexto”
das suas falas em uma peça. Na comédia de Griboedov “A
infelicidade de ser inteligente”, o herói, Chatsky, diz à heroína
que afirma nunca o ter esquecido: “Três vezes louvado aquele
que acreditar. A fé nos aquece o coração.” Stanislavsky
interpretou essas frases como “Vamos acabar com esta
conversa”, mas também poderiam ser interpretadas como “Eu
não acredito em você. Você só diz isso para me consolar”, ou
“Você não vê que está me atormentando? Gostaria de acreditar
em você; seria a felicidade.” Todas as frases que dizemos na
vida real possuem algum tipo de subtexto, um pensamento
oculto por trás delas (VYGOTSKY, 2008:185).
Sobre o problema abordado no trecho acima, Vygotsky (2008:185) explica que o
andamento do pensamento não é simultâneo ao da fala, porque são dois processos
diferentes e não existe “correspondência rígida entre as unidades do pensamento e da
fala.” Por isso, muitas vezes, pensa-se em algo, mas não se consegue transpor
igualmente em palavras. Como conseqüência, muita coisa fica oculta. Além disso,
conforme Vygotsky (2008:186), o fato de não acontecer uma transposição equivalente,
na transição, o pensamento passa primeiro pelo significado e em seguida, pelas
palavras.
Para exemplificar a busca do pensamento por trás das palavras, Vygotsky
(2008:185) utiliza-se da noção de subtexto, anotada pelo teatrólogo Stanislavski (1865151
1938), que pode ser entendido como “tudo aquilo que o ator estabelece como
pensamento do personagem antes, depois e durante as falas do texto” (RIZZO,
2001:132). Para tanto, no treinamento dos atores, Stanislavski solicitava que os mesmos
percebessem o subtexto das falas dos personagens, porque concebia que o “essencial
não são as palavras. A linha de um papel se tira do subtexto, e não do próprio texto”
(STANISLAVSKI, 2007:172).
A interpretação de Stanislavski para algumas frases de A infelicidade de ser
inteligente57, de Alexander S. Griboedov (1795-1829), mencionada por Vygotsky,
confirma que existem vários pensamentos encobertos nas falas, e como os diálogos
teatrais são parecidos ao da conversação cotidiana, percebe-se que tanto na vida real
como no teatro, para se compreender a fala de outro é necessário, identificar o que está
por trás das palavras, ou seja, o pensamento oculto ou subtexto.
Segundo Vygotsky (2008:188), entretanto, a compreensão plena requer não
apenas o entendimento das palavras e do pensamento, mas da motivação. Porque para o
autor, o pensamento é originado das emoções, interesses, desejos e necessidades das
pessoas. Esses argumentos também foram referendados com um trecho do estudo do
texto de A infelicidade de ser inteligente de Alexander S. Griboedov, feita por
Stanislavski, como se observa abaixo:
Texto da peça
Motivos paralelos
SOFIA:
Ah, Chatsky, mas que
Tenta
ocultar
bom que você veio!
confusão.
sua
CHATSKY:
Também é muito bom
Tenta fazê-la sentir-se
vê-la assim contente.
culpada, provocando-
Poucas vezes vi alguém
a. Você não está en-
demonstrar
vergonhada?
tanta
Tenta
57
Na primeira parte do livro A criação de um papel (1972), Stanislavski faz considerações sobre esta
peça de Griboyedov, que se apresenta com o título: A desgraça de ter espírito (STANISLAVSKI,
2007:17). Encontra-se também, a grafia A tristeza da inteligência (VAN DER VEER e VALSINER,
2006:398).
152
alegria.
forçá-la a ser franca.
Mas, pensando bem,
tenho a impressão de
que
a
chuva
que
com
meu
enfrentei
cavalo só a mim
fez
contente, e a mais
ninguém.
LIZA:
É verdade! Se o senhor
Tenta
tivesse
Tenta
estado
aqui,
junto a nós, há uns
acalmá-lo.
ajudar
Sofia
numa situação difícil.
cinco minutos, ou nem
tanto,
teria
ouvido
quantas vezes o seu
nome foi repetido.
Diga-lhe,
senhorita,
diga-lhe
que
não
minto!
SOFIA:
Foi assim mesmo, nem
Tenta
tranqüilizar
mais nem menos.
Chatsky. Não tenho
Não, e quanto a isso,
culpa de nada!
tenho certeza: não há
por
que
me
repreender.
CHATSKY:
Bem...
suponhamos
Vamos acabar com
153
que assim seja. Três
esta conversa etc.
vezes louvado aquele
que acreditar.
A fé nos aquece o
coração.
[A Griboedov, A infelicidade de ser inteligente, Ato I]
É perceptível que na análise do texto teatral em questão o seu autor demonstra
que “dentro de todas as palavras, em cada uma delas, há uma emoção, um pensamento
que produziu essa palavra e justifica sua presença” (STANISLAVSKI, 2007:118). O
que justamente Vygotsky advoga em Pensamento e Linguagem, uma relação entre o
afetivo e o intelectual, pois “busca uma abordagem abrangente, que seja capaz de
entender o sujeito como uma totalidade” (REGO, 1995:121) e superar a prática da
psicologia tradicional, questionada por Vygotsky (2008:09), que estudava estes dois
aspectos humanos de modo dissociado. Essas idéias do autor são relevantes para a
compreensão da prática teatral, que não pode ver o indivíduo de maneira fragmentada,
bem como contribui para desmistificar a noção equivocada que, a teoria de Stanislavski
baseia-se na emoção ou que a prática de Bertolt Brecht (1898-1956) se fundamenta
apenas na razão.
Bibliografia
CAMARGO, Robson Corrêa. O Espetáculo do Melodrama. Tese de Doutorado em
Artes Cênicas. Orientação: Ingrid Dormien Koudela. Escola de Comunicação e
Artes/Universidade de São Paulo: São Paulo, 2005.
GOMES,
Dias.
O
Santo
Inquérito.
Disponível
<http://www.algosobre.com.br/resumos-literarios/o-santo-inquerito.html>.
Acesso em: 20 jan. 2010.
em:
INGARDEN, R.; BOGATYREV, P; HONZL, J.; KOWZAN, T. O signo teatral: a
semiologia aplicada à arte dramática. Luiz Arthur Nunes (Trad.). Porto Alegre:
Globo, 1977.
JAPIASSU, Ricardo Ottoni Vaz. O Faz-de-Conta e a Criança Pré-Escolar. Disponível em:
<http://br.monografias.com/trabalhos913/crianca-pre-escolar/crianca-preescolar.shtml>. Acesso em: 20 jan.2010.
154
REGO, Teresa Cristina. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação.
Petrópolis: Vozes, 1995.
RIZZO, Eraldo Pera. Ator e estranhamento: Brecht e Stanislavski, segundo Kusnet. São
Paulo: Senac, 2001.
SHAKESPEARE,
William.
Hamlet.
Disponível
em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Ser_ou_n%C3%A3o_ser>. Acesso em: 10 fev.
2010.
STANISLAVSKI, Constantin. A criação de um papel. Pontes de Paula Lima (Trad.).
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
VAN DER VEER, R.; VALSINER, J. Vygotsky: uma síntese. Cecília C. Bartalotti
(Trad.). 5ª. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
VYGOTSKY, Lev S. Pensamento e Linguagem. Jefferson Luiz Camargo (Trad.). 4ª. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2008.
155
O ato-ação da performaç ão, Larissa Ferreira (UnB/UFBA )
Colocar em discussão os conceitos que definem a arte da performance é colocarse em espaço de risco. Risco que presentifica-se no corpo daquele que a faz, mas
também em sua prática de pensamento. Refletir sobre a performance-pensamento é
colocar-se em espaço performático, arriscar-se em espaços que a primeira vista parecem
improváveis, mas logo tornam-se possíveis pela potência carregada nos gestos. É
partindo do universo do possível, e, portanto, virtual, por ser múltiplo em sua
possibilidade de atualizar-se, que reclamamos por uma atualização do termo
“performance”, a partir de uma re-apropriação brasileira. Debruçamo-nos sobre o corpo
desta arte, a fim de formular termos-invenções que a enfatizem enquanto potência em
devir. Este trabalho constitui-se como documento inventivo, ao evocar os conceitos:
performação, ato-ação e corpo em obra.
Palavras chaves: afecção, ato-ação, corpo, performação.
O devir constitui a performance art enquanto linguagem que vagueia entre
outras tantas linguagens. Esta que é constante vir a ser; composições de cacos de artes
plásticas, cênicas, sonoras. “O devir é sempre de uma ordem outra que a da filiação. Ele
é da ordem da aliança. (DELEUZE e GUATTARI, 2005, p.19)”. Afirmar o devir como
traço da performance art é estender o território na desterritorialização de outros
domínios (música, pintura, dança, vídeo, poesia, teatro), que logo são reterritorializados
na performação. De outro modo, desatualiza as diversas linguagens artísticas e
constitui-se como arte que se quer virtual, por não atualizar-se em formas fixas. É por
negar o fixo que propomos este documento inventivo sobre a performance art.
Não buscamos um consenso, sobre uma possível re-apropriação do termo
performance para uma nominação em língua portuguesa, e sim o dissenso, nas fendas
que se criam como outros modos de se relacionar com a linguagem em questão.
Dissenso criado por diversos artistas que buscaram conceitos variados para suas ações
performáticas: Joseph Beuys as chama de aktion; Wolf Vostell, de dé-collage; Brecht,
de event; Kaprow, de happening; Claes Oldemburg usa pela primeira vez o termo
performance (in GLUSBERG, 1994, p.34). François Pluchart faz a seguinte crítica: “Se
a expressão arte corporal tem o mérito de manter a questão do corpo no interior do
domínio da arte, a palavra performance gerou os piores mal entendidos” (PLUCHART,
156
1983, p. 43). Cada um destes artistas e teóricos buscaram um modo de se relacionar
com a performance art. Evocamos então os seguintes termos-invenções: performação,
ato-ação e corpo em obra. Propor outros modos de virtualização para o termo é
persegui-lo com invenção, mas antes de falar sobre o termo-invenção, faz-se necessário
falar do termo-vigente.
Preâmbulos para a invenção: performance x performação
Performance em inglês é um termo amplo que pode significar qualquer ação
com ou sem intenção artística, perante uma audiência ou não, seja em musicais, danças,
recitais poéticos ou teatros. Assim, a palavra performance denota o desempenho em
qualquer ação realizada, como na performance de um motorista, ou the performance
machine. No Brasil, a performance art é referida majoritariamente por performance,
ainda que sua tradução seja “arte da performance”. Performance: 1. execução, desempenho. 2.
atuação (de artista, atleta etc.) (MICHAELIS, 2009, p.93).
A língua inglesa admite o verbo to perform, o mesmo não ocorre em língua
portuguesa. Razão pela qual referimo-nos ao ato da performance como atuação ou como
“performar”. O performar é termo-invenção que anteriormente não existia na língua
portuguesa. Contudo, a palavra “atuação” deve ser a primeira que se atribui à
performance art? A palavra “performance” é a mais indicada para definir uma arte que
não se quer aprisionar em significações? Evocamos os termos performação e ato-ação, a
fim de enfatizar os seguintes aspectos: o performer como presença de si mesmo, o
corpolítico, o afecto-encontro.
O ato-ação: performação e Spinoza
A palavra performação deseja aproximar-se da imagem da ação performática, do
não desempenho. “Às vezes o nome de um objeto substitui uma imagem. Uma palavra
pode tomar o lugar de um objeto na realidade. Uma imagem pode tomar o lugar de uma
palavra numa proposição” (FOUCAULT, 2003, p.47). O nome confunde-se com a
imagem; o ato-ação implica na potência do gesto em si mesmo, livre de qualquer logos
que o predetermine, sem personagens que imponham sensações. O que está em jogo é a
poética da ação, o corpo como acontecimento.
157
Glusberg defende uma retórica da ação e do movimento: “O desenvolvimento de
uma ação com o corpo, na arte, demanda, por um lado, uma perspectiva multidisciplinar
e uma concepção de retórica que é totalmente diferente da tradicional: uma retórica da
ação e do movimento” (GLUSBERG, 1994, p.64). Para Medeiros; “Assim, entende-se
performance como arte-ação, o ato tornado arte, a arte tornada ação” (MEDEIROS,
2007, p.112). Para o performero mexicano Guillerme Gomes Peña “Lidamos com la
‘presencia’ y la actitud desafiante en oposición a la ‘representácion’ o la profundidad
psicológica; com el ‘estar aqui’ en el espacio en oposición al ‘actuar’ o fingir que somos
o estamos siendo” (PEÑA, 2005). Evocar o ato-ação é também aproximar-se do
pensamento de Beuys acerca da aktion, da escultura social que reivindica uma estética
investida de ética e política. Preferimos então, referirmos ao “ato-ação” e não à atuação
do performer.
Enfatizamos a ação a partir dos escritos de Spinoza sobre o conatus. O conatus é
alma e corpo, é o nexo entre o espírito (idéias) e a extensão (corpo). É o ser integrado,
não dicotomizado entre corpo e espírito, nas palavras do filósofo é o “Esforço para
perseverar na existência”. Assim, o conatus relaciona-se à potência em existência, razão
pela qual a “ação” é de fundamental importância para a filosofia spinoziana, já que a
ação em Spinoza consiste em apropriar-se de todas as causas exteriores que aumentem o
poder do conatus. Esta ação liga-se ao desejo, pois o desejo é a tendência do conatus a
fazer algo que aumente sua força. Assim, o desejo de ação almeja a potencialização do
conatus. Sobre o ato, Spinoza afirma na proposição XIII do livro II da Ética: “O objeto
da idéia que constitui a alma humana é o corpo, ou seja, um modo determinado da
extensão, existente em ato e não em outra coisa” (1661-1675). O ato que faz existir o
corpo em seu estado mais elementar, e, portanto, afasta a parte extensa (corpo) da noção
de representação do corpo e vai em direção à noção de afecção com o corpo. A afecção
é em relação com o outro; performação e participação. O poder de ser afectado
apresenta-se então como potência de agir que aumenta o poder do conatus. A
performação abarca a participação do outro a partir do conceito de afecção
O sujeito de ação, em Spinoza, é um sujeito político que age para substituir um
afecto passivo por um afecto potente. Os sujeitos afirmam-se em sua não passividade,
pois tem a capacidade de aumentar ou diminuir o seu conatus, a sua força inventiva, a
sua resistência à despotencialização. Assim, relacionamos a política do affectum viribus
(força dos afectos) à performação. Pois esta não excluir os aspectos de um corpo que
158
não se sujeita à ordem de um discurso reprodutor; a performação quebra os espelhos que
refletem e multiplicam os corpos passivos e condicionados.
Corpo em obra
Tendo em vista que a performação constitui-se na ação, no instante da
realização, e dado a devida importância ao corpo nestas ações, sobre o corpo do
performer podemos dizer que instaura-se o “corpo em obra”. Este conceito enfatiza a
performação enquanto obra-fluxo, enquanto acontecimento. Manifesta-se no corpo que
não nega o estado transitório de sua obra inacabada.
A afirmação “o corpo é sujeito e objeto da arte”, tornou-se uma frase recorrente
para “definir” a performação, sobretudo no âmbito das artes visuais. Esta afirmação tem
relevância para enfatizar o artista enquanto ato, a obra enquanto ato. Sobretudo a partir
das pinturas de ação de Pollock, onde se ressalta o ato de pintar; action painting que
ampliou a importância do gesto e representou um importante acontecimento para o
advento da performação. Na action painting há esclarecidamente o objeto; a tela. Em
Tensão Paralela, de Dennis Oppenhein (1970), o corpo compõe como escultura junto a
um monte de terra: podemos afirmá-lo enquanto sujeito e objeto da obra? Apropriar-se
desta definição para toda performação não parece ser o modo mais coerente de refletirla, sobretudo, quando nos deparamos com a performação enquanto geradora de
acontecimento. Ao invés de constituir objeto, traçam-se relações. A performação não se
encerra na presença de um corpo (perfomer), mas na afecção gerada.
A performação é arte em processo, obra constituindo em ato, fluxo de um corpo
em ação. O que queremos é subjetivá-la, e não objetivá-la. Se a performação não tem a
pretensão de constituir objetos, por que insistimos em ligá-la ao objeto? Seguimos em
direção ao subjetivo, numa materialidade corporal que desmaterializa o objeto. Portanto,
o corpo é sujeito que possibilita o acontecimento, e compõe-se no entorno, com seu
corpo, com outros corpos, com o espaço. E mesmo que a performação dure
materialmente em objetos que ficam como rastros do ato-ação, tais como os 72 objetos
utilizados pelos partícipes na performance Ritmo O (1974), de Marina Abramovic. Estes
permanecem como resquícios, e, portanto, distanciam-se da performação em si. No
entanto, a performação dura, independente dos materiais/objetos utilizados e dos rastros
deixados.
159
Tendências em movimento
A performação é ato-ação que compõem-se como encontro entre espaços
performático- políticos. No toque dos afectos, entre corpos investidos de ética e estética.
Performers que expõem seus corpos como ambiências de resistência, como obra em
acontecimento, como “corpo em obra”. Em constante vir a ser o corpo disponibiliza-se
para o acaso. A performação põe o público em constante vir a ser; na abertura para a
participação o fruidor torna-se párticipador, o devir-performer. A performação como
linguagem-devir afirma-se pela ordem da aliança entre as distintas linguagens, os cacos
em simbiose, o contágio, entre os corpos. Negamos a filiação, afirmamos a
transversalidade e a força inventiva como modo de se relacionar com a performação.
Bibliografia
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs vol. 1. Rio de Janeiro: Editora 34,
1995.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2003.
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Debates, 2005.
MICHAELIS. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Melhoramentos, 2009.
PEÑA, Guilhermo Gómez. En defensa del Arte Del Performance. In: Horizontes
Antropológicos, n.24. Porto Alegre: UFRGS, 2005.
SPINOSA, Benedictus de. Ética. São Paulo: Brasiliense, 2008.
PLUCHART , François. L’art corporel. Paris, Images 2, col. Mise au point sur l’art
actuel, 1983.
MEDEIROS, Maria Beatriz de. Aisthesis. Brasília: PPG Arte-UNB, 2005.
160
Rituais cotidianos no treinamento do ator: diálogos possíveis
entre a metodologia de improvisação de Jean -Pierre Ryngaert e os
estudos enunciativos do círculo de Bakhtin , Jean Carlos Gonçalves
(UFPR)
Ator, doutorando em Educação (PPGE/UFPR)
Professor da Graduação em Produção Cênica (UFPR)
[email protected]
Resumo: Esse estudo analisa o discurso do teatrólogo Jean-Pierre Ryngaert
sobre o ensino da improvisação, a partir do texto A Pequena Música dos Rituais, no
qual o autor relata algumas vivências em que utiliza os rituais cotidianos no treinamento
do ator. A análise visa possibilitar um diálogo com os estudos do Círculo de Bakhtin,
contribuindo para o campo das artes do espetáculo por meio de uma reflexão teórica
advinda de discursos sobre a prática. Os primeiros olhares apontam para a improvisação
teatral como um processo dialógico, que proporciona ao ator a liberdade criativa da
autoria, pois no ato improvisado ele é o autor de seu próprio texto, de sua corporeidade
e da cena. Quanto aos rituais cotidianos, Ryngaert defende a observação como ponto de
partida para a criação, da mesma maneira que Bakhtin fala da identidade do ser
constituída na relação com o outro. Por meio dos tantos diálogos possíveis entre os
estudos teóricos e práticos, ainda urge refletir sobre o uso dos rituais como um jogo
múltiplo de sentidos, que traz o detalhe e a minúcia para o foco da cena, como sinaliza
Ryngaert, do mesmo modo que o Círculo de Bakhtin se refere às alterações minúsculas
do ser como responsáveis pelo curso das situações comunicativas e das relações entre os
sujeitos participantes de uma interação, que no caso analisado nesse estudo, é o
ambiente de treinamento do ator.
Palavras-chave: rituais cotidianos; treinamento do ator; improvisação.
1. A Pequena Música dos Rituais
Jean-Pierre Ryngaert é um dos principais nomes da pesquisa cênica atual. Sua
contribuição teórica para o campo das artes do espetáculo vai além de um escopo ou
temática, tendo seus estudos importância fundamental para a compreensão dos
procedimentos de formação do ator contemporâneo. Professor e encenador do Institut
161
d’Etudes Théâtrales, da Université de Paris III, seus estudos estão sob influência de
grandes homens de teatro como Jacques Coupeau e Charles Dullin.
O livro Jogar, representar, escrito na década de 80, no qual se encontra o objeto
discursivo de minha pesquisa, é uma obra de vasta importância para as relações entre
teatro e educação, por conter metodologias, procedimentos e vivências práticas relatadas
por Ryngaert. O autor dialoga com os leitores de maneira a retomar e levantar novas
questões a respeito do jogo e da dinâmica teatral, sob o ponto de vista da formação de
atores. Trata-se, portanto, de uma obra que traz formulações sobre as relações entre o
indivíduo e o jogo.
As práticas relatadas são designadas como modalidades de improvisação teatral,
a serem trabalhadas em formato lúdico, tanto nas suas aplicações possíveis com atores
quanto com não-atores. Aliás, esses termos não encontram lugar no discurso de
Ryngaert, para quem o desenvolvimento da capacidade de jogo está disponível para
todo aquele que se pretende aventurar nas descobertas do caminho teatral. O foco do
trabalho é centrado no grupo, cabendo a este as decisões, temas, espaços e vertentes
estéticas a serem trabalhadas.
Ao iniciar os trabalhos para a disciplina Improvisação e Jogo teatral II,
ministrada por mim na Graduação em Produção Cênica da Universidade Federal do
Paraná no segundo semestre de 2009, meus diálogos com os acadêmicos eram
constituídos por minhas leituras de Ryngaert. Em meados do semestre decidimos
vivenciar o jogo a partir do texto A Pequena Música dos Rituais, integrante do capítulo
Indutores de Jogo, encontrado na obra acima mencionada.
Nesse texto o autor defende que é necessário ir além da observação da vida
cotidiana para que o jogo teatral seja uma experiência do próprio jogador. Segundo
Ryngaert, o uso da imitação como elemento da improvisação, pode não garantir a
qualidade de uma transposição cênica e, além disso, deslocar o jogador para fora da
situação teatral. Ele sugere, então, a utilização de um processo de trabalho a partir dos
rituais cotidianos:
Um rito é, no sentido figurado, uma prática regrada, invariável,
uma maneira habitual de fazer. Que ações cotidianas repetimos
regularmente de acordo com uma ordem e um princípio que
nos são próprios? Além dos gestos habituais, comuns à maioria
dos indivíduos de mesma cultura (para se lavar, se alimentar, se
vestir...), temos ainda outros mais pessoais ou que executamos
162
de alguma maneira particular? Como o conjunto desses gestos
faz parte da nossa vida cotidiana? Essas questões preliminares
alimentam a indicação e enquadram a definição do ritual
pessoal (RYNGAERT, 2009, p. 140).
O trabalho com o grupo se deu de forma a apontar caminhos e novas
formulações a respeito da improvisação teatral, tanto para mim quanto para os
acadêmicos. A partir da representação precisa de detalhes do cotidiano, como escovar os
dentes, pôr as lentes de contato, ler um livro, falar com outra pessoa pela internet
ficamos surpresos ao perceber que os rituais, transpostos para a cena e no diálogo com o
outro, ganham novas dimensões e sugerem possibilidades cênicas que, acrescidas ou
não de textos, cenários e músicas como recursos teatrais constituem material criativo
para a criação de esquetes, espetáculos e performances.
2. Diálogos possíveis entre Ryngaert e Bakhtin
O processo de trabalho com o grupo, o jogo, as trocas e os diálogos
estabelecidos entre os atores e as personagens nos instigaram a refletir sobre o discurso
de Jean-Pierre Ryngaert sob a ótica dos estudos enunciativos do Círculo de Bakhtin.
Essa aproximação deve-se ao fato de a metodologia proposta pelo autor francês possuir
um caráter inteiramente dialógico, trazendo para a sala de aula, uma prática teatral que
privilegia o outro, que coloca em foco a externalidade que constitui o ser.
Os estudos do dialogismo propostos pelo Círculo de Bakhtin, referenciados
historicamente a partir de 1920, reúnem teorias de um grupo de intelectuais de diversas
formações, multidisciplinar, que se dedicava ao estudo de temas referentes a diversos
campos do conhecimento, com atenção especial aos estudos da linguagem. Entre os
principais autores, Bakhtin, Medvedev e Voloshinov, produziram um arsenal de textos
reflexivos que concebem a constituição do sujeito a partir da interação com o outro.
Numa situação enunciativa o sujeito provoca no seu interlocutor uma atitude
responsiva, que está permeada pelo ambiente no qual a comunicação acontece. Nessa
prática discursiva os sujeitos mostram-se, percebem suas diferenças, atribuem sentidos
ao discurso alheio e permitem que o outro também atribua sentidos ao seu discurso.
Para Bakhtin (2004), a palavra é dirigida sempre a alguém, a um interlocutor, e
não pertence totalmente ao seu locutor, pois no ato de sua materialização, o próprio
locutor leva em consideração palavras, fatos e acontecimentos que precederam sua
enunciação. Os sujeitos da enunciação sempre estão inseridos em um ambiente de inter163
relação social, dentro de um determinado contexto, e é esse contexto que vai definir a
situação enunciativa e, portanto, as palavras que constituirão o jogo das relações. A esse
processo Bakhtin chama de jogo de vozes sociais. Para ele, todo discurso é permeado
por essas vozes, que estão no contexto de uma enunciação, que fazem com que um
sujeito enuncie de uma ou outra forma. A produção do enunciado, na perspectiva do
Círculo, é um fator complexo e conflituoso, que não pode ser analisado por meio das
formalidades de um estudo gramático, mas, pelo contrário, precisa considerar a esfera
social na qual os enunciados estão sendo proferidos, e a multiplicidade de sentidos que
constitui esse processo.
Reconhecer a enunciação como o lugar de relações, conhecimento,
reconhecimento, criação e recriação, é identificar uma primeira aproximação entre o
discurso de Ryngaert e o de Bakhtin. Para ambos, a troca, o jogo, o relacionamento é
necessário e intrínseco à interação humana:
Num primeiro momento, formam-se pequenos grupos e
estabelecem-se trocas a partir de pequenos rituais evocados por
cada um. [...] As trocas dentro do pequeno grupo de fala
ajudam a delimitar o campo dos rituais e a criar condições
favoráveis ao jogo, dando vontade de partilhar sua experience
(RYNGAERT, 2009, p. 140-141).
Um enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicação verbal de uma dada
esfera. As fronteiras desse enunciado determinam-se pela alternância dos sujeitos
falantes. Os enunciados não são indiferentes uns aos outros nem autossuficientes;
conhecem-se uns aos outros, refletem-se mutuamente (BAKHTIN, 1998, p. 316).
Além dessa aproximação teórica, ainda é possível travar um diálogo entre os
autores, quando as duas teorias concordam que a cena (para Ryngaert) ou a enunciação
(para Bakhtin), é constituída de detalhes, de alterações minúsculas, às vezes
imperceptíveis a olhos menos atentos, mas que são essenciais ao rumo das situações de
interação.
Ryngaert aponta para o fato de que o trabalho com os rituais cotidianos deve
conter precisão e abundância de detalhes. Ele exemplifica a representação de um sujeito
em seu café da manhã: sua atenção estará voltada para a minúcia, um olhar pela janela,
um jeito especial de segurar a xícara, uma pausa ao mastigar o pão... Nas palavras do
164
autor: “Os acontecimentos anódinos quando pintados com grossas pinceladas, ganham
relevo quando os vemos como no microscópio” (RYNGAERT, 1985).
Bakhtin também discursa sobre a importância de considerar a trivialidade do
cotidiano, o minúsculo gesto e a pequena palavra:
Com muita sensibilidade captamos a menor mudança na
entonação, a mais ligeira interrupção das vozes em alguma
coisa de importância para nós no discurso cotidiano prático de
outra pessoa. Todos esses oblíquos lampejos, reservas,
evasivas, insinuações e impulsões não passam despercebidos
aos nossos ouvidos, não são estranhos aos nossos lábios. É de
admirar, portanto, que até agora tudo isso não tenha recebido
nenhum tratamento teórico preciso, nem a avaliação que tanto
faz por merecer! (BAKHTIN, 1984 apud MORSON &
EMERSON, 2008, p. 53).
Considerando o discurso de ambos os autores sobre a relevância das ações
cotidianas, cabe ressaltar que eles estão falando de situações enunciativas que se
alteram, que se mesclam e que encontram nas suas particularidades possibilidades
dialógicas. Assim, um ritual sempre está aberto a mudanças, ao novo, a ser refeito de
acordo com as trocas enunciativas que possam acontecer no decorrer dos procedimentos
de trabalho.
O uso dos rituais cotidianos no treinamento do ator sob a égide dos estudos de
Ryngaert e do Círculo de Bakhtin surge como importante elemento integrante do
arcabouço prático-teórico de profissionais do teatro que vêem na improvisação
possibilidades múltiplas: técnica artística, apresentação/jogo diante do público, ponto de
partida para espetáculos etc.
Referências Bibliográficas
BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo:
Hucitec, 1998.
BAKHTIN, M. (VOLOSHINOV,V.N.). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 11. ed. São
Paulo: Hucitec, 2004.
MORSON, G; EMERSON, C. Mikhail Bakhtin: Criação de uma prosaística. São
Paulo: Edusp, 2008.
RYNGAERT, J. Jogar, representar. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
165
SESSÃO 2: CORPO, TÉCNICA E SOCIEDADE
A “África” e seus corpos: a performance como elaboradora do
território negro, Ana Beatriz Almeida (USP)
Graduanda-USP/ EACH
Resumo: Esta pesquisa nasce da necessidade de entender de forma mais
abrangente como se articulam as relações contemporâneas entre arte e sociedade a partir
do ponto de vista de mulheres e homens negros/negras, grupo onde tais dinâmicas
sempre estabeleceram laços íntimos. Não se trata de dirigir as atenções para o etiopismo
ou para a cultura rastafari, tampouco recorrer à exploração de ritos de matriz africana,
ou mesmo do entendimento político da situação atual do continente africano. Mas sim
de mapear correlações estabelecidas (a despeito de suas vontades individuais) entre as
produções expressivas desses indivíduos – que constituem um grupo hereditariamente
definido dado sua carga histórica.
Palavras-chave: performance; ritual; diáspora; território; África.
A questão da África como origem merece uma maior atenção, tanto em sua
validade como referência geográfica quanto em sua carga enquanto valor cultural.
Especialmente no que tange território e pertencimento, a diáspora mostra-se como
variável norteadora de questões identitárias, dotando-as de um caráter fluido. Para
melhor compreender essa dinâmica instável, o conceito deleuziano de territorialização e
desterritorialização oferece grandes contribuições no sentido de compreender mais
amplamente o movimento de fuga e recaptura de códigos dentro de um mesmo sistema.
Trata-se de uma dinâmica de tensores que vez por outra define o sujeito dentro de um
código, mas que em seguida pode associá-lo a outro, e neste sentido é possível uma
aproximação ao modelo proposto Perlongher (1987), de um mecanismo fluido de
interpretação de seus integrantes.
Logo,
pressupõe-se
que
uma
mesma
identidade
conjuga
diferentes
classificações, entretanto, a questão racial parece despontar como um traço que incide
sobre todos os outros indicadores sociais. Essa característica já era visível no livro O
166
negócio do michê, dentro do modelo proposto, o autor reconhece tal fator como traço de
distinção dentre todas as outras possibilidades qualificativas possíveis:
A discriminação por cor perpassa todas as outras classificações
e divisões, e funciona tanto entre michês como entre cliente e
“entendidos” em geral (p. 144).
Há algo que marca as pessoas como grupo – dentre todos os outros possíveisfundando uma dimensão de pertencimento que não geográfica, mas ainda sim territorial.
Nota-se que há uma idéia de ressignificação a partir da percepção e reconhecimento da
diferença – o que designa um novo trato com a realidade proveniente de uma leitura
pré-concebida do sujeito – “ela frisa uma reconceitualização da cultura a partir do
sentimento de sua desterritorialização” (Gilroy, 2001).
Esse lugar localiza-se mais como um código-território constantemente recriado
por seus participantes, é o que o autor citado acima se refere como África pulverizada
em seu livro Atlântico Negro. Um lugar que sofre processo de reengendramento
territorial de mão dupla que agrega também a sociedade fora desse lugar, e as
decodificações possíveis nessa área limítrofe. Contudo, é principalmente de mediante à
alteridade, pode-se verificar a produção corporal dessa população e seus
desdobramentos interpretativos.
O movimento de choque identitário e reinvenção pode ser intencionalmente
direcionado ou não, uma vez que o território é definido por um sistema maior de
“sobrecodificação“ e um” axiomático” que se refere a uma interpretação e tradução
mais minuciosa através das redes de códigos (Guattari, 1973), na interação desses dois
elementos há uma captura dos corpos e sua inscrição dentro de um retórica mais
abrangente.
A reação do público para com a performance Subterrânea 68 em 2008, no
Festival de Arte em Colônia ilustra possibilidades interessantes nesse campo. O trabalho
apresentado58 era sobre tortura na ditadura militar, no entanto a leitura de grande parte
do público era de uma obra sobre migração africana ou mesmo sobre rituais animalistas
– a despeito de todo material instrutivo sobre as obras disponível na ocasião. O mal
58
Consistia um vídeo - onde eu performava com referências no butoh, dentre carcaças de carne -colocado no centro de um monte formado por 1.300 quilos do mesmo material do qual saiam fios, onde
nas extremidades havia nomes de desaparecidos.
167
entendido pode ser lido dentro de uma lógica código-territorial, afinal se um território é
feito também por seus limites, é principalmente a carga social atribuída ao objeto de arte
que promove sua ressignificação. Quando se fala sobre um continente negro alargado, a
produção expressiva corporal negra é a reinvenção desse lugar fragmentado. A situação
especial em que se encontra o corpo em performance, o confere certa condição mítica
que o distingue dos códigos sociais cotidianos, e por isso capaz de ressignificá-los.
Há nessa situação, semelhanças com o processo ritual – nele os integrantes são
separados da ordem social vigente e são colocados em suspenso, num estado de
liminaridade (Turner, 1974), então a partir desse momento é possível uma
reorganização simbólica que viabiliza novamente uma estabilidade, que pressupõe uma
vivência diferenciada do cotidiano. A proposta da galeria de arte seria um rito paralelo à
estrutura liminar, porém num viés benjaminiano – que permearia o ambiente e seus
integrantes, modificando assim o público e o que é exposto, a soma resultante é tal qual
em Turner, uma nova visão da realidade.
Em gêneros “liminóides” de ação simbólica Turner descobre
fontes de poder liminar. Nas novas formas narrativas Benjamin
encontra indícios da grande tradição narrativa: o seu não
acabamento essencial e abertura às múltiplas possibilidades
(Dawsey, 2009).
Esse ponto de intercruzamento de modelos não seria simplesmente uma feliz
coincidência entre autores, mas o tópico crucial para o início de uma discussão sobre
como ocorre os fluxos territoriais de lugares não materiais, tal como a África diaspórica
é proposta. Uma vez que oferece uma reflexão sobre a relação entre forças centrais que
influenciariam outras
periféricas,
possibilita pensar um
centro
que Turner
compreenderia como liminar, e uma periferia liminóide. Por ser a performance uma
mimese de ritual, promovido pela indústria cultural , poderíamos dizer que esse corpo
expressivo, ocuparia lugar liminóide (ou periférico) em relação ao ritual corporalmente
manifestado (que seria central).
Percebe-se na raiz do culto de matriz africana uma preocupação, não com a
manutenção de uma instituição ou de uma ideologia moral, mas essencialmente um
movimento que trata em correlacionar as personalidades individuais às forças da
natureza, talvez no sentido de compreender melhor ambas. Logo, a porção ritual da
168
diáspora negra é fundamentalmente múltipla, e por esse motivo não encontra na
migração um problema para sua existência, uma vez que a fragmentação está na base de
sua estrutura. Haja vista os exemplos citados por Verger (2001) em Notas sobre Voduns
e culto a Orixás, grande parte dos pontos de convergência estão principalmente nos
arquétipos e como esses mediam o sujeito e as condições naturais do ambiente – noção
que por vezes se estende à vida em sociedade. Por ser a alteridade fator predominante na
questão migratória e seu desdobramento em diferenças étnicas e sociais, o caráter
estrutural dessas manifestações responderia às mais diversas demandas dentro do
movimento diaspórico. Inaugurando uma dimensão ritual comum, não como
homogenizadora, mas como facilitadora de diálogo.
Verifiquei tal relevância no verão de 2009, quando desenvolvi um projeto num
squat holandês em área irregular, ocupado por imigrantes africanos que haviam chegado
aí por acaso, atraídos pelo único traço em comum de serem todos negros oriundos da
África. Já é possível perceber, nesse ponto, que a idéia de pertencimento alargado
engendrado por um êxodo anterior torna-se tão forte que repercute também em
pequenos deslocamentos individuais posteriores, sendo capaz de fornecer a esses novos
desterritorializados, sentimento de acolhimento.
No entanto, por ser ao mesmo tempo includente e diverso, o conceito de
fraternidade por origem não anula as diferenças. Havia grandes divergências no grupo
dado o histórico de vida de cada um, e uma necessidade da prefeitura de Amsterdã em
desalojá-los do local, porém não uma vontade de separá-los.
Por esse motivo fui convidada a trabalhar noções de grupo e individualidade
através de processo lúdico baseado em expressão corporal. Minha solução para tal foi
aplicar exercícios de interação corporal baseados na confiança mútua e dramatização
das histórias pessoais, o que não surtiu muito efeito. Havia um sentimento de
indiferença quanto aos outros elementos do grupo, isso gerava conflitos e era
alimentado pelo desconhecimento das outras individualidades em jogo e sua
importância dentro das demais trajetórias.
A solução encontrada apontava para um caminho onde os significantes sociais
estivessem em suspenso, possibilitando uma aproximação maior com a subjetividade ,
sem as barreiras do ego. Todas as questões residiam em como recriar esse espaço
liminar para a experiência do que seria uma versão arquetipica de si, ou um eu ritual.
Para tal optei por experimentar exercícios da Taanteatro Companhia, tal como
169
exercícios surgidos nas aulas de Antropologia da Performance. Esses exercícios
acabaram por galgar dimensões inesperadas, uma vez que no planejamento dos rituais
foram descobertas mais pontos em comum do que diferenças, e a construção do ritual de
cada um passou a ser também o repensar de sua própria dimensão ritual.
Por vezes, o que era entendido como arrogância transformava-se na expressão
de uma divindade, que teria nome X numa cultura, e Y em outra, segui o mesmo
arquétipo base. Da mesma forma as mulheres de Moçambique vistas uma hora como
covardes convertiam-se em imperatrizes, com outra qualidade energética e função
espiritual que não as permitia reagir de outra forma. A partir daí, a visualização do que
Turner (1974) chama de etapas do ritual torna-se clara e inequívoca em sua função e
detalhamento a separação do presente e entrada num estado mítico, a harmonização do
passado com o futuro e por fim a reagregação ao presente, na qual o este é encarado de
outra forma, uma vez que houve uma mudança nos sujeitos expostos ao processo.
Não afirmo aqui que as desavenças de grupo desapareceram, mas certamente foi
construído uma base em comum para futuras negociações. Esse ponto não estava no
plano da sociedade, mas sim num nível mítico, e talvez seja exatamente essa localização
que possibilitou uma outra compreensão da realidade social dada.
Posto isso, aponto esse lugar ritual como possível centro da África diaspórica,
uma vez que ela é capaz de convergir para si símbolos dissonantes a despeito das
diferenças individuais. Uma vez que a hipótese de um continente negro pulverizado
reside no indício de semelhanças na reinterpretação da cultura vigente, o centro deste
território só pode estar num lugar capaz não só de congregar diferenças, mas também de
influenciar outros ramos do que esse coletivo é capaz de produzir culturalmente.
Com isso para entender melhor o desdobramento desse território expressivo,
sugiro aqui o modelo de Sahlins sobre culturas translocais, vislumbrando a
possibilidade de um local e de um global que dialogam com o conceito de liminar e
liminóide de Turner. Logo, sendo esse lugar impossível de delimitar num mapa, mas
extremamente vivo e mutante por ser fruto da interação direta de seus integrantes com o
meio social, pode-se entender as obras performáticas como periferias liminares do que
seria o ritual liminar como centro receptor e emanador de estímulos. Não há nessa
hipótese a tentativa de fazer juízo de valor, nem mesmo de entender a importância de
um em detrimento do outro, mas a compreensão que ambos formam um mesmo sistema
interdependente, que se retroalimenta.
170
As elaborações secundárias conscientes permanecem sendo
autênticas expressões culturais; elas articulam os meios
organizacionais e os fins da sociedade (Sahlins, 1997).
Bibliografia
BAIOCCHI, Maura; PANNEK, Wolfgang. Taanteatro: teatro coreográfico de tensões.
Rio de Janeiro: Azougue, 2007
DAWSEY, John C. Por uma antropologia benjaminiana: repensando paradigmas do
teatro dramático. Mana [online], vol.15, n.2, 2009.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. L’Anti-Oedipe. Capitalisme et schizophrénie-1.
Paris: Les Éditions de Minuit, 1972/1973.
GILROY, Paul. O Atlântico negro. Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes.
2001.
VERGER, Pierre. Nota sobre voduns e culto aos orixás. São Paulo: Edusp, 2000.
TURNER, Victor. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Editora
Vozes, 1974.
PERLONGHER, Nestor. O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo. São
Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
SAHLINS, Marshall. O "pessimismo sentimental" e a experiência etnográfica: por que
a cultura não é um "objeto" em via de extinção (parte II). Mana, Rio de Janeiro,
v. 3, n. 2, out., 1997.
171
O jogo dramático e o espaço marginal como forma de resis tência.
CITAC: estudo-caso de um grupo de teatro universitário em Portugal ,
Ricardo Seiça Salgado (IUL)
Resumo: O jogo dramático como território de técnicas da aprendizagem teatral
pode constituir-se como oportunidade para a construção de um espaço potencial, em
grupo, onde opera a criação teatral e com repercussões no modo de estar e ser no mundo
social. Aqui, a retórica do jogo como construção do self na sua dimensão política, serve
para dar conta desse espaço-potência, possível pela capacidade do jogo dramático
permitir a construção de um espaço imaginário livre das forças coercivas, ou à margem
delas, onde os significados podem emergir, fora das expectativas do poder opressivo
que, por exemplo, um governo ditatorial impõe. Como nos sugere Deleuze, a partir de
Artaud, a construção de um corpo sem órgãos necessita da destruição de um organismo,
não dos órgãos, mas do organismo enquanto organização estruturada em vista de um
qualquer fim empírico, como nos diz José Gil. Através do teatro, e por via das várias
dimensões teatrais, o CITAC, grupo de teatro universitário existente desde 1956, em
Coimbra, é um exemplo que dá conta do tipo de espaço que o jogo dramático pode
produzir perante condições sociais hostis, transferindo esse saber-fazer da sala de ensaio
para a vida real, expressando a cidadania com e através da arte. Antes e depois da
revolução de 1974 em Portugal, através do teatro, foram capazes de produzir um espaço
marginal (experimentando novas formas teatrais) que radicaliza o processo de
emancipação, ao criar uma lógica própria, um mundo possível, capaz de escapar à
censura (na ditadura vigente durante o Estado Novo), ou à estratégia disciplinadora
emergente na nova democracia destruindo, de certa forma, “o organismo”. Assim,
argumenta-se que é por via de uma marginalidade sem centro que a emancipação,
enquanto prática de resistência, pode acontecer.
Palavras-chave: jogo dramático; teatro universitário; marginalidade;
resistência; Portugal.
Os dados etnográficos decorrem de um estudo etno-histórico de um grupo de
teatro universitário português, em Coimbra, o CITAC (Círculo de Iniciação Teatral da
Academia de Coimbra), um organismo autónomo da centenária Associação Académica
172
de Coimbra, numa das mais antigas universidades da Europa, a Universidade de
Coimbra. O CITAC, nascido em 1956, aparece como uma alternativa ao panorama geral
do teatro da cidade e até mesmo nacional, caracterizado por uma dinâmica muito pobre.
Dado o carácter de passagem do estudante universitário, os seus membros são
renovados sazonalmente (uma média de três em três anos), por outros estudantes que
embarcam no processo de aprendizagem teatral, um trabalho em grupo que se consuma
num curso de iniciação ao teatro, na produção de espectáculos, ingresso na direcção
administrativa do grupo, e na preparação do próximo curso de iniciação ao teatro,
perpetuando-se, assim, o grupo, de geração em geração.
Na sua história, podemos configurar o reportório do grupo no seio do
experimentalismo teatral, explorando através do jogo dramático novas formas de fazer o
teatro. Aqui, em cada geração e decorrente do estilo de cada encenador, o trabalho
teatral do CITAC enquadra-se no modus operandis das vanguardas artísticas. Ao longo
dos tempos, produzem espectáculos que quebram os formalismos artísticos vigentes.
Testam-se os limites da representação para, nos espectáculos se confrontarem as
expectativas do público em relação à forma de fazer teatro. Como o grupo se caracteriza
pela rotatividade dos seus elementos, ao contrário dos movimentos de vanguarda
históricos, o CITAC parece nunca perecer, nunca se esgotar enquanto vanguarda,
porque sempre em formação. É mutante. Uma nova geração do CITAC pode mesmo
surpreender a geração antiga e chegou mesmo a gerar contestação dos “antigos” face ao
trabalho teatral dos “novos”.
Desde 1956 em que o CITAC nasceu até 1974, data da revolução democrática
em Portugal, viveu-se debaixo de um governo ditatorial, ou governo de partido único,
conservador e crescentemente policial, o “Estado Novo”. Era um “estado de excepção”
(Agamben, 1998). No seu sentido jurídico, designa a capacidade de se poderem
suspender os direitos constitucionais mais elementares aos cidadãos (as medidas
excepcionais), se disso o sistema político (a democracia) depender em ordem a perdurar.
Suspendendo-se a norma, dá-se lugar à força da lei que se dissemina, de seguida, em
múltiplas micro-leis que reproduzem essa relação de exceção, determinando uma
exclusão tendencialmente normalizada.
No teatro, a vigilância era feita em dois momentos: primeiro, para apresentar um
espectáculo, ter-se-ia de mostrar o texto dramático escrito e, segundo, no fim do
processo de criação teatral, o ensaio geral era assistido por censores. Sem este
173
procedimento não se poderia estrear. Em qualquer um destes momentos, os censores
poderiam cortar fragmentos, cenas inteiras ou, mesmo, todo o espectáculo. Fazer peças
teatrais com tamanha vigilância ou possíveis repercussões individuais poder-se-ia tornar
perigoso, pois havia uma autêntica “tropa civil” de informadores que denunciavam
sempre que testemunhavam afrontas ao regime. A relação da excepção virar norma
chegou à universidade no ano de formação do CITAC, em 1956. Como me disse um
informante, a primeira peça que o grupo planeou fazer foi desde logo censurada na fase
de inspecção do texto e proibida (O Dia Seguinte, de Luiz Francisco Rebello). Nasceu,
assim, uma certa consciência política, a partir do espaço da criação teatral, e partindo
dos constrangimentos que o regime impunha.
A questão é que, na sua história, o grupo, na experimentação de novas formas
teatrais, foi capaz de produzir um espaço marginal que radicaliza o processo de
emancipação. Ao criar, em grupo e dentro do teatro, uma lógica própria, um mundo
possível pela interacção das diferentes dimensões de expressão teatral, reproduziram um
lugar de resistência ao regime, geração em geração. Essa lógica conseguiu escapar à
representação unívoca, linear, centralizada, e hierarquizada, a esse corpo autodirigido a
que D&G (Deleuze; Guattari, 1999) chamam de “organismo” ou, porque falamos de um
regime fascista, de “corpo sem órgãos canceroso”, onde existe demasiada codificação
sedimentada, territorializada, e que se apodera de tudo. Mas como? Pergunta-se. Como
é que esse espaço marginal radicaliza a resistência?
Apesar da ambiguidade que rodeia uma possível definição de jogo, dada a
multidimensionalidade que o conceito pode referir, e dada as várias retóricas que lhe
podem estar subjacentes, podemos dizer que tudo começa com a liberdade de jogar.59
Jogar é uma fusão entre a acção e a consciência de o estar a fazer (é reflexivo); contém
determinadas regras que enquadram o que é relevante e o que fica de fora e que
fornecem os motivos e riscos, capazes de focar a atenção; é uma actividade autotélica
(não necessita de fins, nem de recompensas externas, como se caracteriza a decisão de
ingressar no CITAC), um fluxo (Csikszentmihalyi, 2002); e suscita relações sociais, o
que no CITAC chega mesmo a constituir-se num ethos de resistência muito próprio que
passa de geração em geração endemicamente; é um estado de espírito, uma atitude, uma
59
Para a explicitação destas várias retóricas, ver (Sutton-Smith, 2001); para a definição de jogo, ver
igualmente (Bateson, 1987), (Callois, 1990), (Csikszentmihalyi, 2002), (Huizinga, 2003), (Schechner,
1993).
174
experiência, uma força que pode até estender-se à vida quotidiana (como os elementos
do CITAC o provaram). Como numa linguagem, é um sistema de comunicação e
expressão, até mesmo uma metacomunicação (Bateson, 1987), onde se joga com o
próprio jogo. Por ser dramático, o jogo que aqui nos interessa recorre ao drama. Ele
conecta os seus mecanismos intrínsecos à representação de uma história. Ao ser
dramático, paralelamente, o jogo dá a ordem do discurso. O jogo dramático torna-se,
também, o território que trabalha no feeling-thinking próprio de cada um, que
experimenta sentidos e horizontes de compreensão de estar/ser no mundo (a
dramaturgia do corpo político). É uma aprendizagem, um treino de capacidades, uma
experimentação entre o real e o virtual, por via de um “corpo pensante”. Contém, por
isso, as ideias de limite dentro de uma máquina que conjuga, combina, adapta e procura
operar em harmonia (mesmo que no caos), mas também as ideias de criatividade, de
liberdade e de invenção, de margem de movimentos, livre (dentro do campo de abertura
que as regras a ele impostas concedem). O carácter lúdico do jogo, ao confinar os
actores a um mundo próprio, fora de qualquer condicionante externa pode, portanto, ser
veículo emancipador, um espaço de possibilidade fora da opressão da vida.
O antídoto para escapar ao controlo que visa a homogeneidade de indivíduos é
justamente o corpo sem órgãos (CsO) (Deleuze; Guattari, 1999) que o jogo dramático
treina, mas aquele que se vê operar por via de uma marginalidade descentrada, isto é,
que recusa a lógica repressora do centro, que nasce por se confinar às regras que o jogo
impõe, e cresce enquanto realidade autónoma, resistindo fora da lógica da opressão
(externa), que mata o “organismo”, o desmantela. Tal operação acontece por via do
teatro e das suas dimensões, empenhando-se num regime de experimentação
inesgotável.
Vimos já que o texto dramático era vigiado pelos censores. Como um informante
me disse, durante a ditadura, era comum as pessoas falarem por via de metáforas, como
forma de resistência. Era comum na sociedade em geral usar-se este tipo de estratégia,
uma epistemologia marginal de se lerem outros significados das coisas (por via do CsO
em acção). Este hábito social ajudava a extrair significados de outros mundos possíveis,
a partir das performances. Mas os censores, apesar de não serem muito instruídos,
sabiam disso e, por isso mesmo, procuravam agir em conformidade. Um exemplo (dado
por uma informante) vem da Rabeca, de Helder Prista Monteiro, e dirigido por Luís de
Lima (em 1962). A dada altura, um actor dizia: “Eu vejo ali, no cais várias luzes. Uma
175
luz é verde, outra luz vermelha…”. E a censura mandou retirar a luz vermelha. Para
eles, a dramaturgia cenográfica-discursiva era uma insinuação perigosa do Partido
Comunista Português, o único partido organizado ilegal naquela época (e que alguns
elementos do CITAC secretamente pertenciam). Teve que se mudar a luz vermelha por
uma azul ou amarela. A luz vermelha, ali, ao pé do farol, era demasiado perigosa.
Para além da representação que um texto dramático produz, o teatro
experimental permite a produção de novos paradigmas de subjectividade, isto é, cria
condições para novas conexões e combinações passíveis de ser desenhadas (passíveis de
leituras sociopolíticas). Para usar a linguagem deleuziana, pode gerar objectos de
percepção, influir, e ser capaz de gerar “linhas de voo” que projectam o observador para
outras possibilidades de sentido, expandindo horizontes. É por isso que a arte era
vigiada e censurada. Mas, o que está em causa são essas “linhas de voo” conduzirem a
uma conjugação de imagens de percepção que estavam fora da lógica da opressão, fora
da homogeneidade do “organismo” (do sujeito, da significação) de que os censores
eram a sua materialização (e, por via do panóptico (Foucault, 1992), a maioria da
população).
Com o encenador Victor Garcia, o grupo viaja por Portugal à procura de
materiais etnográficos fortes, enquanto inspiração para o que se tornou O Grande
Teatro do Mundo, de Calderon de La Barca (em 1966). Partindo, referencialmente, do
mundo cultural existente, o espectáculo fazia um forte uso do cenário como uma
paisagem que construíram em ordem a criar um outro mundo (a casca de um barco da
xávega que vira pássaro e irrompe pela plateia; uma carroça de bois que se transforma
em calvário). Como um informante me revelou, o encenador Victor Garcia criava
apenas as condições para imaginar, para aprender (as regras de um jogo que se quer
livre). Por isso mesmo, os participantes do processo criativo (por via do jogo dramático,
nos exercícios realizados, nas improvisações) participavam na experiência de uma
viagem. Nessa experiência, em que ressoava a identidade de si próprio, emerge uma
linguagem que expressa novos sentidos do mundo, a qual o censor não tinha como
reprimir, justamente por estar fora da lógica interna da opressão, habitar a possibilidade
do CsO deleuziano, e por estar para além do texto dramático per se. O que é certo é que
na combinação das várias dimensões teatrais, passava mensagens potencialmente
subversivas ao regime. Ao nível do processo, o espaço criativo pode, então, constituir-
176
se como potência imanente, e tornar-se um modo de acção, a produção de um lugaroutro.
Os elementos do CITAC provaram isso mesmo ao estarem envolvidos na
resistência estudantil, enquanto activistas políticos. Transferiram o saber-fazer imanente
do potencial do jogo dramático de volta para a vida real, expressando a cidadania com e
através da arte. Durante a crise académica de 1969, realizaram manifestaçõeshappenings, como a entrega de flores à comunidade, ou uma peregrinação com balões
de hélio na mão. O interessante nestes eventos mais ou menos espontâneos que
aconteceram foi a produção de um efeito desconcertante nas autoridades. Numa
conversa com um informante soube que os estudantes interceptavam as comunicações
da polícia sabendo, por isso, tudo aquilo que eles interpretavam das acções dos
estudantes. E durante estas manifestações, a polícia não percebeu de todo o que se
estava a passar, por estar fora da lógica do “organismo”. A natureza do evento desafiou
a censura. Apesar de ter sido o modo criativo de disseminar os pontos de vista
estudantis pela comunidade da cidade (a própria imprensa estava sobre o controlo da
censura e poucas pessoas tinham conhecimento da luta estudantil), estes eventos
desafiaram (também eles) a lógica do centro, aniquilaram o centro matando o
“organismo”, emancipando os seus proponentes. E é aqui que está o punctum (Barthes,
1989), o poder transformativo desta forma de resistência. Foi “teatro político directo”
(Schechner, 1993), expandindo a sociedade radicalmente por via do jogo dramático.
Assim, a atitude transformativa criada na margem, no espaço do processo criativo
desvinculado da lógica dominante que recusa o centro, parece alimentar a capacidade de
resistência. O que é curioso é que depois da revolução de 1974, durante a democracia e
até hoje, este ethos de permanente devir permanece, na resistência a um “organismo” de
codificação mais complexo e difuso, e na perpétua experimentação de novas formas
teatrais.
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179
SESSÃO 3: DANÇA E PERFORMANCE
Dança de Salão: uma estética transcrita para a cena , Suanne
Souza Baena (UFPA)
Técnica em dança, intérprete -criadora
[email protected]
Resumo: Este artigo tem por objetivo contextualizar a idéia de uma estética que
diferencia a Dança de Salão para fins de entretenimento daquela levada para a cena com
o caráter mais artístico profissional. A busca pela diferenciação perpassa pela criação de
uma nova vertente para a “Dança a Dois”. Alguns profissionais de Dança de Salão, no
Brasil, já fazem esse trabalho, e acabam tendo como resultado o nascimento de novas
técnicas para a performance da dança. Um bom exemplo é o trabalho artístico do
professor Jomar Mesquita, cujo modelo “contemporâneo” de criação será abordado no
corpo do texto. Para melhor ilustrar a diferenciação que pretendo evidenciar aqui, entre
a forma “padrão” e o formato “artístico-espetacular”, parto de uma breve discussão
sobre a estética “padrão” da Dança de Salão, o que me leva a refletir sobe noções como
“técnica”, “estrutura” e “estilo”, na dança.
Palavras-chave: dança de salão, estética, estrutura, estilo, diferenciação.
Os anos de experiência profissional com a Dança de Salão, somados à
observação e ao contato com outros gêneros de dança, despertaram meu interesse em
criar uma forma própria de fazer a Dança de Salão. Ao criar uma coreografia, sempre
buscava movimentos diferenciados daqueles que fazia habitualmente na sala de aula ou
em festas, mas acabava caindo na reprodução de movimentos que já havia visto alguém
fazendo, em algum lugar. A conscientização da necessidade de pesquisar e fazer
movimentos autorais surgiu no decorrer do Curso Técnico em Dança, formação em
Intérprete-Criador, na Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará
(ETDUFPA), onde estudos de teorias e métodos específicos de dança mostraram-me o
caminho para a criação pessoal. A participação em oficinas práticas, com profissionais
de diversas áreas da Dança, também contribuiu para a minha formação, mas foi a
descoberta do trabalho do professor Jomar Mesquita, que me mostrou, na prática, o que
eu estava buscando e que ainda busco, até hoje: uma Dança de Salão construída,
180
especialmente, para a cena; movimentos autorais e a forte presença do caráter artísticoespetacular.
A estética60 “padrão” da Dança de Salão
Há vários estilos de se dançar os ritmos (sub-gênero) da Dança de Salão, mas é
possível identificar uma estrutura geral para todos esses sub-gênero. Ainda é visível a
herança das danças de corte (como por exemplo, a valsa registrada em 1700) na
arquitetura da Dança de Salão. Ela se faz presente na estrutura dos abraços e na
colocação postural do tronco (figuras 1 e 2). Desde os bailes dos castelos, que os
cavalheiros envolvem o braço direito em volta do tronco da dama (geralmente um
pouco acima da linha da cintura, onde fica o centro de força, pois isso dá um domínio
melhor para a condução do cavalheiro). Os cavalheiros abduzem o braço esquerdo em
um ângulo menor que 90°, com os cotovelos levemente flexionados e virados para
baixo. A dama posiciona o braço esquerdo na direção da omoplata direita do cavalheiro
e faz, com seu (dela) braço direito, o mesmo trabalho que o cavalheiro faz com seu
(dele) braço esquerdo.
Figura1
Figura 2
A estética atual obedece a essa herança e soma a ela algumas variações, porém a
segue como “regra” básica. Na Dança de Salão, o abraço tem a distância reduzida em
relação às danças antecessoras, principalmente na região da cintura pélvica.
Primeiramente, os pés ficavam juntos e em paralelo, mas devido à aproximação dos
quadris, houve a necessidade de afastá-los, e a colocação ficou da seguinte maneira: pé
direito do cavalheiro fica entre os pés da dama; o mesmo ocorrendo com o pé direito da
dama. Essa colocação de pernas só segue essa “regra” para movimentos que são
executados com essa proximidade.
60
Estética: a ciência das formas (Bastides, 1971). Segundo a antropóloga Adrienne Kaeppler a estética
pode ser considerada um modo particular de se pensar as formas culturais provenientes dos processos
criativos de manifestações do movimento, do som das palavras e dos materiais. Ou seja, um modo
particular de se conceber a “arte”. (KAEPPLER, 1998 apud CARMARGO, 2008)
181
O papel da experiência vivida na performance da Dança de Salão
Em termos, pode-se dizer que a Dança de Salão que é ensinada em escolas e
praticada nos bailes é totalmente diferente da Dança de Salão que é feita para ser
apresentada em forma de show ou para ser mostrada em cena. Essa diferenciação é
importante porque distingue o dançarino profissional do dançarino amador, o dançarino
que pratica a dança como ofício daquele que a pratica como atividade lúdica ou para
fins de socialização. A diferenciação faz-se necessária para que as fronteiras entre a
dança de caráter artístico-espetacular e a dança de entretenimento fiquem mais
evidenciadas, seja para preservar seus territórios particulares, seja para fundi-los um no
outro, em alguma zona intersticial.
Para que a Dança de Salão seja transcrita para a cena, proponho a utilização de
uma técnica de criação de movimento, a qual se apropria de gestos do cotidiano para
compor uma coreografia. Entretanto, esses gestos são pesquisados para que sejam
dilatados “O corpo dilatado é acima de tudo um corpo incandescente, [...]: as partículas
que compõem o comportamento cotidiano foram excitadas e produzem mais energia
sofreram um incremento de movimento” (BARBA, 1995, p. 54) e assim adquiram um
caráter artístico. Essa dilatação, a meu ver, é um dos artifícios que podem ser usados
para que as diferenciações sejam evidenciadas. Na Dança de Salão existem
movimentos, ou, como são geralmente chamados, “passos”, pré-determinados. A minha
proposta é de que esses passos sejam pesquisados para que possam ser “dilatados”, sem
que, para isso, percam suas características essenciais singulares.
A característica que pretendo preservar é a da “condução”, técnica por meio da
qual o cavalheiro mostra à dama qual movimento será desenvolvido, em que cadência
rítmica e em qual direção espacial. Logo, essa característica não pode ser descartada ao
longo de qualquer prática para obtenção da requerida diferenciação.
Outra técnica de criação coreográfica que é adequada para essa pesquisa é a do
“contato improvisação”, que pode ser utilizada como “gatilho” para a “condução” na
execução de movimentos.
O entendimento e absorção dessas técnicas corporais são importantes para que
não limitemos a pesquisa e a criação à simples articulação de movimentos – uma
espécie de colagem de gestos. A proposta é dar artifícios ao corpo para adaptar
movimentos que são pré-existentes na Dança de Salão, ou para criar novos.
182
O texto Victor Turner e antropologia da experiência, de Dawsey (2000) versa
sobre a ligação entre a antropologia da performance e a antropologia da experiência.,
descrevendo e explicando os cinco “momentos”, descritos por Turner, que compõem a
estrutura do processo de cada experiência vivida. Esses cinco “momentos” são, a meu
ver, bons para se pensar a pesquisa teórico-prática, de diferenciação da Dança de Salão
cotidiana (aulas de dança, bailes, festas), da Dança de Salão extra-cotidiana (dança
cênica). Transcritos para o processo de construção artístico-espetacular da Dança
(cênica) de Salão, os cinco “momentos” poderiam ser descritos assim:
Primeiro momento: Percepção: Os movimentos pré-existentes na Dança de Salão
são percebidos como um comportamento rotineiro. Para que esses movimentos sejam
sentidos de forma mais intensa, é preciso que passem por um processo de
reestruturação, tornando-se, assim, “dilatados”. Daríamos, assim, ao movimento, o nível
de percepção desejado.
Segundo e Terceiro momentos: Experiências já vividas / Emoções revividas: O
processo da transcrição da Dança de Salão para a cena pode recorrer à memória de
experiências vividas (quer como expectador, quer como praticante) neste ou em outros
gêneros de dança. Essa solicitação à experiência já vivida provoca a recordação e o
desencadeamento de emoções, que podem gerar mais artifícios para a estruturação do
processo.
Quarto momento: Descoberta e construção de significado: O que já foi vivido, o
que já foi sentido, adquire, no presente, novos significados. O mesmo ocorre em relação
aos movimentos, que são criados e recriados no decorrer do processo de criação,
ganhando novos significados.
Quinto momento: Performance: Resultante da experiência, a performance é o
que se leva para cena: o resultado desejado do processo pesquisado. Resultado que se
transforma em experiência, gerando novas percepções.
Jomar Mesquita: um exemplo de pesquisa prática
O Professor, coreógrafo, bailarino e diretor mineiro Jomar Mesquita (Cia.
Mimulus), declarou, em conversa informal, que embora sua formação seja em Dança de
Salão, o fato de ter feito aulas de outras técnicas de dança, tais como balé clássico,
dança moderna, dança contemporânea, contato e improvisação, além de técnicas teatrais
e circenses, fez com que transportasse, indiretamente, para suas criações e para sua
pesquisa em Dança de Salão ou Dança a Dois, elementos desses outros gêneros
183
artísticos. Afirmou, entretanto, que gosta de observar seu próprio trabalho para reforçar
sua convicção de que a base de sua dança continua sendo a Dança de Salão, mas não vê
necessidade em nomear o ritmo.
Formado em Pedagogia do Movimento para o Ensino da Dança, pela Escola de
Belas Artes, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Jomar Mesquita ensina
Dança de Salão tanto para pessoas que buscam uma distração ou alguma atividade
física, quanto para pessoas que buscam aperfeiçoamento e profissionalização nesse
gênero de dança.
O trabalho que Jomar Mesquita realiza em conjunto, com a Mimulus Cia. de
Dança, tem sido muito bem aceito, tanto pelo público quanto pelos curadores de
festivais de dança em geral, no Brasil e no exterior. Mas diz que há poucos grupos
profissionais que trabalham com a Dança de Salão desse modo mais artístico e
contemporâneo. Declara, inclusive, que alguns profissionais da dança contemporânea
não aceitam o seu trabalho, pois, na visão deles, o que Jomar faz é Dança de Salão. Por
outro lado, os profissionais mais ortodoxos da Dança de Salão também não reconhecem
sua arte como tal, classificando-a como dança contemporânea.
Do meu ponto de vista, a dança que Jomar Mesquita desenvolve é uma dança
espetacular autoral. Penso que o mais importante para o pesquisador de Dança a Dois
seja descobrir e assumir a sua forma de dançar, aquela que se sente bem, a que gosta de
fazer, sem se preocupar com julgamentos. Afinal, toda e qualquer linguagem de dança
existente e reconhecida como tal, só existe e é reconhecida porque alguém teve coragem
de assumir e expressar sua forma, transformado-a em linguagem.
O Gênero e os Estilos: a contribuição da Antropologia da Dança
A Dança de Salão tem vários “ritmos” (subgêneros). A nomenclatura dos ritmos
é exatamente a mesma que se utiliza para identificar os subgêneros da Dança de Salão:
bolero, tango, salsa, forró, brega, zouk, samba de gafieira, merengue, etc. Esses
subgêneros, por sua vez, apresentam estilos ou variações. Tomemos a salsa como
exemplo. Há a salsa cubana, a salsa em linha, a roda de cassino e a salsa cabaré. Todas
essas formas são consideradas salsa, mas as nomenclaturas variam de acordo com os
diferentes estilos. Os estilos podem variar de pessoa para pessoa, de lugar para lugar e
até de época para época.
184
Para ilustrar melhor essa idéia, reporto-me ao texto Dança e o Conceito de
Estilo, da antropóloga Adrienne Kaeppler (2001, p. 49-63) que fala sobre os elementos
que compõem a dança, explicando a complexidade dos termos usados para definir esses
elementos. Kaeppler afirma que a “estrutura” comporta alguns elementos peculiares à
cultura de um determinado povo e que essa “estrutura”, somada ao “estilo”, corresponde
aos componentes da “forma”: “Esses elementos estruturais são os blocos – os elementos
essenciais que determinam como uma dança específica é construída e como as danças
diferem de acordo com o gênero.” Assim, para Kaeppler, “estilo” é a maneira de
performar, sem, no entanto, modificar a estrutura. Penso que quando executamos uma
determinada dança, mesmo desprezando alguns elementos que possam caracterizar certo
gênero, tais como música ou figurino, ainda assim, podemos identificar esse gênero
através dos elementos estruturais dessa dança, independentemente do “estilo” de quem
executa. Por exemplo, quando você assiste a um casal dançando tango, logo é possível
identificar esse gênero através de alguns signos. Mas quando você vê um casal
dançando tango, com uma roupa cotidiana, com uma música que não é classificada
como tango, e num estilo peculiar, ainda assim, você pode identificar essa dança como
tango, se os elementos estruturais da dança estiverem presentes.
O processo de pesquisa para a obtenção da transcrição da dança de salão para a
cena passa pelo entendimento e pela habituação dessa prática de dança e também pela
atribuição de outras técnicas corporais, essas experimentações contribuem com a
pesquisa trazendo significados e percepções pessoais que estimulam o seguimento de
criação e a renovam. O que pretendo esclarecer com isso é que a Dança de Salão pode
ter um caráter artístico-espetacular sem, no entanto, alterar suas características e
qualidades intrínsecas; e que a Dança a Dois pode se apropriar de outras técnicas
corporais, sem que isso venha modificar sua estrutura básica.
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186
“Ó Abre Alas”: Construindo dramaturgias carnavalescas /O bom
malandro: reinventando a tradição (Carnaval 2009) , Yaskara Manzini
(IA-Unicamp)
Doutoranda em Artes
[email protected]
Resumo: Inúmeros trabalhos foram escritos sobre o carnaval brasileiro,
entretanto, poucos pesquisadores dedicaram-se a estudar a dramaturgia nos desfiles das
escolas de samba e a preparação do corpo do folião para a performance carnavalesca.
Apesar de existirem aproximações entre as artes cênicas e o desfile
carnavalesco, conceitos e modos de operação pertinentes as artes do palco são reelaborados e re-conceituados nas escolas de samba.
O propósito desta comunicação é compartilhar um processo de construção da
dramaturgia e preparação corporal dos componentes da Comissão de Frente, da escola
de samba Camisa Verde e Branco, do qual a pesquisadora participou na qualidade de
coreógrafa.
A dramaturgia para a construção de performances da ala, nesta escola, dá-se a
partir de colagens, cujo suporte é o enredo da escola, seguido por outras camadas como
detalhamento do que a ala representa, o samba enredo escolhido e a maneira de cantar o
mesmo. Desta forma, a preparação corporal é criada, re-inventada de maneira que
dialogue com esta colagem, além de respeitar o perfil do contingente humano da ala.
Outrossim, há de se considerar que, no caso específico da Camisa Verde e Branco, o
componente da ala é gente comum, pertencente à comunidade, sem aproximação com as
artes cênicas, para os quais o desfile é festa, alegria, mas principalmente,
responsabilidade (pela nota) e amor ao Pavilhão.
Palavras-chave: dramaturgia, carnaval, corpo, estudos da performance.
Conheci o carnavalesco Hernane Siqueira, no dia da apresentação do enredo
para a comunidade, em meados do mês de junho de 2008. Muito simpático disse-me:
“A Comissão vai vir de malandro, vestida de maneira tradicional. Sonhei que vamos
187
ganhar o Estandarte de Ouro”.61 Não sabia o que responder, mas pensava que uma
comissão vestida de terno e chapéu na contemporaneidade iria parecer saudosismo da
Barra Funda. Fixei-me em assistir a apresentação do enredo e deixar para depois uma
conversa com ele, fora daquele contexto de festa.
A apresentação do enredo foi quase desastrosa: o telão que passaria o vídeo
criado pelo carnavalesco não funcionou, o microfone deu pane, mas estávamos todos
tão em clima de confraternização e de apoio ao novo carnavalesco que as falhas eram
meros detalhes. Importava o esforço dele, sua predisposição, simpatia e a comunidade
presente na quadra. Fez-se um silêncio quase sepulcral para ouvi-lo falar, isto era bom
sinal, a comunidade o respeitava. Afinal foram dele os carnavais que tiraram a Unidos
de São Lucas (2000), Império da Casa Verde (2002) e Unidos do Peruche (2008), do
Grupo de Acesso. Era necessário resgatar a dignidade do Trevo da Barra Funda no
mundo do samba paulistano.62
O enredo “Guerreiros! Camisa faz a festa e prega a Paz Universal” foi explanado
resumidamente para a comunidade, mas passado na integra para os chefes de ala.
Compartilho a introdução e parte da primeira parada do enredo:
Introdução:
Nossa viagem será contada pelo bom malandro, o sambista
nosso de cada dia, nosso personagem. Ele nos levará por uma
jornada pelos efeitos da falta de amor e felicidade no mundo,
tornando-o hostil, até o momento de seu encontro com Momo,
o rei da folia, que libertará os homens dos grilhões do
submundo e, junto com a Camisa Verde, brindará a uma nova
era.
Nesta era, prevalecerá o Amor, que criará um verdadeiro
universo de alegria.
Sinopse:
Descritivo
1ª Parada - O Caos da Humanidade
61
No Rio de Janeiro o prêmio não oficial dado por jornalistas para cada quesito da escola leva o nome de
Estandarte de Ouro. Em São Paulo existem dois prêmios que são chamados de Estandarte de Ouro pelos
sambistas, o Troféu Nota 10 do Jornal Diário Popular, para as escolas do Grupo Especial, e o Prêmio
Gilberto Farias, dado por uma equipe de personalidades do carnaval para as escolas do Grupo de Acesso.
62
A Camisa Verde compunha a elite das escolas de samba paulistanas até 2006, quando foi rebaixada
para o Grupo de acesso. Com o desfile de 2007 voltou ao Grupo Especial, mas o desfile de 2008 foi
desastroso e a escola foi rebaixada novamente ao Acesso. Desde então, tem tentado voltar ao Grupo
Especial.
188
O bom malandro observa os odores e as dores, efeitos das
ações patrocinadas pela ambição e o egoísmo dos homens,
representados no nosso carnaval pelos semeadores do mal: a
fome, a peste, a guerra e a morte anunciadas pelos anjos
malignos dos pecados capitais, fruto do individualismo e da
falta de amor à natureza. Do corte profundo no peito do homem
vazará as mazelas da cidade: o odor do ser humano em
profusão, junto com o chumbo da paisagem urbana, onde nada
mais será visto além do líquido espesso e rubro que correrá
vagarosamente para os buracos abertos no chão. Nada mais do
que o céu negro, pó de ossos misturados com poucos raios do
sol, a refletir nas retinas secas daqueles míseros viventes. Não
haverá mais alegria na cidade podre, sem governo, sem destino.
Não haverá música, nem cantos, não haverá nenhum Deus a
quem orarmos... Não haverá mais nada: tudo que houve um dia
desapareceu com o fogo, o ácido, o gás e o chumbo.
Hernane Siqueira, Carnavalesco
A proposta do carnavalesco para a ala enquanto enredo era bem contextualizada,
mas como descrever cenicamente a observação dos “odores e as dores, efeitos das ações
patrocinadas pela ambição e o egoísmo dos homens, representados no nosso carnaval
pelos semeadores do mal”? Além disso, como um malandro é bom? Para os sambistas a
máxima de Neguinho da Beija Flor, “Malandro é malandro e Mané é Mané”, prevalece.
Quando fui à reunião com o carnavalesco, em julho, tinha uma vaga esperança
de mudar o tema da ala, as imagens do apocalipse eram mais interessantes visual e
cenicamente, mas chegando percebi que não havia a mínima possibilidade. Ele já havia
tratado com a loja que confeccionaria os sapatos, o alfaiate e até escolhido o tecido da
camisa para os rapazes. Faltava apenas a definição, de minha parte, se usariam chapéu e
bengala. Desta maneira, não havia o que discutir em relação à fantasia, mas talvez
pudéssemos pensar em dar uma incrementada na apresentação da ala, para que não
parecesse uma comissão dos anos 70.
Se “Nossa viagem será contada pelo bom malandro”, o malandro é o narrador do
desfile, como ele apareceria apenas no início do enredo e depois sumiria? Propus
inovar, a comissão entraria na avenida faria sua apresentação, entretanto, não sairia.
Ficaria encostada nas laterais interagindo com as alas e seria a última ala a sair, talvez
soltando pombas ou balões brancos.
Hernane gostou da ousadia, mas trouxe algumas questões: o regulamento
permite isso? O Presidente de Harmonia toparia este tipo de apresentação? Caso ele
189
topasse, a avenida diminuiria em dois metros de largura para a evolução dos
componentes. Além disto, tem os carros...
Não descartamos a idéia a priore, mas sabíamos que teríamos de nos certificar
em relação ao regulamento dos desfiles, e fazer muito lobby na escola para que isto
acontecesse.
Ele mostrou-me o vídeo que havia preparado e não havia conseguido passar para
a comunidade. As imagens eram fortes, contrapunham extremos dos poderes
hegemônicos: crianças obesas x famintas, esportistas x doentes terminais, consumidores
no shopping x escombros de guerra, cirurgia plástica x gente mutilada por bombas e
minas... fiquei emocionada. Falou-me que gostaria que a Bateria abrisse um grande
cartaz com a montagem das fotos de Ives Yoshiaki Ota,63 Isabella Nardoni64 e Eloá
Pimentel.65
Imaginava a cena e a comoção geral na avenida, os últimos crimes ainda
estavam na memória do povo. O objeto jornal veio-me à cabeça. Sugeri que a Comissão
poderia entrar com jornais, pois é também através deles que tomamos contato com toda
a crueldade do mundo, a fotografia jornalística é um forte elemento visual. Poderiam ser
jornais gigantes com manchetes sobre guerras, mortes em massa, corrupção...
Surgia outro problema, como entrar com estes jornais gigantes na avenida?
Hernane sugeriu um Pede Passagem, que de frente representaria um Pede Passagem
tradicional e ao longo de nossa apresentação poderia ser girado e representar o
Botequim do Camisa,66 onde poderíamos esconder os jornais gigantes.
Possuíamos idéias interessantes, mas de concreto apenas o traje social. Teríamos
de ver com a direção da escola se havia possibilidades de fazer este Pede Passagem, e o
mais importante, ter condições e transporte para ensaiar com ele.
63
Foi assassinado aos oito anos de idade, em 1997, com dois tiros no rosto, após reconhecer seus
sequestradores. Seus pais, Masataka e Keiko, fundaram no mesmo ano o “Movimento da Paz e Justiça
Ives Ota”, uma ONG sem sectarismo religioso, aberta aos interessados numa sociedade pacífica. Fonte:
Jus Brasil. Extraído da Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina, 27/07/2009.
64
Assassinada aos cinco anos de idade, em 2008, ao ser jogada do sexto andar do edifício onde seu pai
morava. O Pai e a madrasta responderam ação penal e foram julgados culpados por homicídio doloso
triplamente qualificado (art.121, parágrafo 2º., incisos III, IV e V), em março de 2010.
65
Assassinada aos quinze anos com um tiro na cabeça, em 2008, pelo ex-namorado após ser mantida
refém por cem horas, dentro de sua própria casa. Fonte: Folha OnLine <
http://www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2008/carcereprivadonoabc/>.
66
Festa/Reunião/Show semanal que ocorria na quadra quando a Escola ainda tinha a razão social de
Grêmio, por isso costuma-se chamá-lo de Botequim do Camisa.
190
Duas semanas depois obtivemos respostas negativas. Apostaríamos apenas na
presença física dos componentes trajados a maneira tradicional67 para a apresentação na
avenida.
Da preparação do corpo malandro à dramaturgia da ala
Basicamente os ensaios para a construção do mise-en-scène da ala para avenida
iniciaram em meados de dezembro. Antes deste período comecei a levantar, filtrar e
compartilhar material para estudo de personagem.
Reli “O Malandro Divino”, de Zeca Ligiéro, a história da personagem mítica de
Zé Pelintra, que induzia-me a adentrar mais em algumas questões: religiosidade - “Seu
Zé” é um Exu da Umbanda; capoeira porque “Zé Pelintra tornou-se também patrono da
capoeiragem, pois muitos dos Exus de seu grupo teriam pertencido às rodas de
malandragem da antiga Lapa” (LIGIÉRO; 2004: 64).
Também, por sugestão de Ligiéro68, procurei filmes de Cab Calloway69,
performer que encarnava um galã malandro norte-americano que influenciou nosso
malandro nacional.
Além disto, garimpava mais textos que remetessem à questão da malandragem.
De muita valia foi o ensaio de Lilia Schwarcz (1994), intitulado “Complexo de Zé
Carioca: Notas sobre uma identidade mestiça e malandra”, que propõe discutir as idéias
de certa mestiçagem peculiar que “de racial e detratora, se faz moral e nacional”. Outro
texto interessante, “Eis o malandro na praça outra vez”, de Gilmar Rocha (2006), trazia
reflexões referentes à malandragem enquanto um problema sociológico estudado
principalmente nos anos 70, buscando entender a estrutura e a sociedade brasileira.
Apesar de interessantes, os textos não inspiravam a composição cênica para um “Bom
Malandro”.
67
Caracteriza-se uma Comissão de Frente como Tradicional quando sua indumentária é composta por
fraques, casacas, Summer, ternos, smoking, etc., estilizados ou não, se acordo com os critérios de
julgamento dos quesitos para os desfiles das escolas de samba de São Paulo. (LIGA; 2004)
68
Numa conversa informal durante um intervalo do V Congresso da Associação Brasileira de Pesquisa e
Pós Graduação em Artes Cênicas, realizado na Faculdade de Belas Artes da Universidade Federal de
Minas Gerais, entre 28 e 31 de outubro.
69
Cantor, ator e dançarino norte americano. Nascido em 1910 e falecido em 1994. Entre suas gravações
ilustres constam “Minnie the Moocher”.
191
Alguns documentários e filmes encontrados no youtube foram de grande valia:
cenas do musical e do filme Ópera de Malandro, incorporações de Seu Zé Pelintra em
terreiros de Umbanda, e, principalmente, lições de como dançar samba, pois num dos
primeiros encontros detectei que do grupo de dezessete componentes apenas a metade
sambava com esmero. Um dos rapazes se encarregou de passar uma cópia do material
de vídeo, em DVD, para os demais.
A preocupação mais urgente era fazer com que todo o grupo pudesse sambar.
Coreógrafa e bailarina, não sambava com as mesmas características do homem, cuja
dança tem mais movimentos de pernas: escorregadelas, cruzadas, gingas, vai-não-vai,
piruetas etc. Lembrava de “Tio Arnaldo”, Embaixador do Samba Paulistano, e chefe da
ala das baianas de nossa escola. Seu samba é gingado, mas ao mesmo tempo elegante,
vê-se elementos da capoeiragem angolana misturados aos salamaleques da dança de
corte, quando graciosamente brinca com seu lenço. Sambando, transformava-se num
sedutor malandro, apesar de sua senioridade. Pedi sua ajuda.
A experiência de Tio Arnaldo foi valiosa ao nos mostrar que o movimento dos
pés é um só, mas cada homem improvisa seu repertório gestual a partir do movimento
básico. Também, soubemos, durante um dos encontros, que ele levou a Comissão da
Rosas de Ouro, de maneira tradicional durante muitos anos, e explicou-nos como
funcionavam e se apresentavam estas comissões: andavam em ala, usavam movimentos
em cânone para girar, levantar chapéus, acenar etc..
Em nosso primeiro ensaio, centramo-nos em aprender o samba enredo, de
autoria de Mumu, Luciano, Xande e Dé. Grafá-lo-ei de acordo com a maneira de cantálo, segundo sua melodia:
Aa-vante meu Trevo, quee-rido
Vem fazer a festa, pregando a paz
Da Barra Funda eu sou, gue-rreiiroo
Camisa Verde e sambista verdadeiro
(refrão)
Óó quanta tristeza, e tanta dor
Jogada sob o limbo a natureza
O ódio sobrepuja o amor
Ca-va-leiros anunciam o fim dos tempos
192
Naa hu-ma-ni-daadeo caos
Tão caro o preçooô
Que o homem paga com a vida
Sangrentas guerras
Fruto de tanta ambição
Um mundo sem amor, sem coração
Com o poder da fééé, buuuss-caar
O caminho da luuuz, mu-daança
Ea-ssimm deii-xar
O respeito e a igualdade como herança
Vããã-mos nos unir pra me-lhorar
E po-der aanunciaar
Nova era de alegria
Dar um basta aa intole-rância
O Brasil é essperança
De um mundo em harmoniiia
Meu sããam-ba
Leva o re-ca-dodo rei da folia
Que a verdeebranco em poesia
Cãanta a paz uni-versal
(bis)
A questão central para a construção da encenação da ala era: como não
confundir a proposta do “Bom malandro” com uma comissão tradicional, pois ambos
vestem-se com trajes sociais? O primeiro impacto da ala na avenida é visual: a sua
fantasia. Fatalmente todos pensariam: “a Comissão vem de maneira tradicional
levantando chapéu para saudar, apenas caminhando”.
O impacto que a ala daria na avenida, seria exatamente este, fazer com que o
público pensasse que as evoluções seriam de maneira tradicional, usando certo tipo de
composição coreográfica da década de setenta e romper com este tipo de apresentação,
trazendo elementos bem teatrais, criando cenas para estes “bons malandros”.
193
Com muito material levantado, uma série de questionamentos e pré-conceitos
em relação a um “Bom” Malandro começamos o processo dos ensaios.
Os ensaios consistiam em três partes: a primeira mais ligada ao condicionamento
físico, a segunda priorizando postura e gestualidade do Malandro, ou seja propondo o
levantamento da “persona”, seguida de uma roda de samba, e a terceira, o processo de
construção da dramaturgia para o desfile.
A comissão de frente da Camisa Verde é composta por homens da comunidade,
que dificilmente frequentam o circuito teatral da cidade. São homens que não fazem
atividade física durante o ano, salvo o jogo de futebol dominical. A maioria trabalha
durante o dia e estuda à noite. As atividades sócio-artístico-culturais resumem-se ao
circuito do samba.
Num período que pode variar de 40 a 60 dias, o coreógrafo tem de trazer à tona a
expressividade destes homens que é camuflada durante o resto do ano, além de habilitar
fisicamente os corpos sedentários para o evento. A cada ano, é necessário criar
procedimentos ou usar práticas que foram funcionais, em outros anos, para o perfil desta
ala, preparando-os para a cena carnavalesca.
A escassez do tempo e a própria característica do grupo não permite um maior
aprofundamento em práticas de dança e /ou jogos teatrais. Tudo é muito rápido, o
trabalho tem prazo para a apresentação. Então é necessário pensar jogos e/ou exercícios
que proponham uma aproximação do universo cotidiano destes homens (com objetivo
de propiciar mobilidade corporal, entrosamento entre os diversos componentes,
reconhecimento de signos não verbais) para a construção da dramaturgia da ala. A
preparação do corpo dos componentes dialoga com as demandas propostas pelo enredo,
fantasia, samba enredo e concepção cênica da coreógrafa.
Por isso, o estudo postural que permeia o processo é entendido como um
procedimento para despertar personas, ou “levantar personas”. Para Cohen (2007: 107)
a “construção de personas” é um processo que ocorre de fora para dentro, da forma para
o conteúdo, a partir da postura, da energia, da roupagem. Destarte, o primeiro impulso
para despertar as “personas do malandro” é dado por mim, instigando-os a encontrar
194
uma postura, ou como falo nos ensaios, “um jeito de corpo”, que no decorrer dos
ensaios vai delineando movimentos, gestos, expressões, perfis de personalidade etc.70
Após a primeira parte do ensaio, permitia um intervalo curto para re-hidratar o
corpo e partia para a construção de “personas”. Pedia para que caminhassem
normalmente, depois que imaginassem seu Malandro e caminhassem trazendo-o para
seu corpo. Observando o deslocamento de um dos rapazes lembrei-me do livro de Pierre
Weill, O Corpo Fala, lido nos idos dos anos 80, e a proposição dos três tipos corpóreos:
águia, leão, touro/boi. Foi a partir destas três imagens corporais, e outras que foram
surgindo ao longo do processo, que o corpo do “bom malandro” tomou forma.
Estudava evoluções e desenhos espaciais buscando entrosá-los ao samba enredo
e ao ritmo do caminhar de nossos “bons malandros”.
O samba enredo, na opinião da ala, era muito arrastado. Sua letra muito triste.
Não oferecia imagens de gestos do uso cotidiano. Estávamos quase no mês de fevereiro
e nada do que havíamos criado e testado na avenida agradava. Intimamente pensávamos
que o enredo não era propício para o carnaval.
Foi uma experiência vivida pelo grupo que afetou-nos de maneira tal, que o
enredo fez sentido e começou a costurar uma linha dramatúrgica para a ala. Enquanto os
rapazes corriam no início do ensaio, um dos componentes, recém operado, estava
alongando-se perto de mim. Cabe esclarecer que ensaiávamos no Parque da Juventude,
ora utilizando uma pequena área coberta, em frente à lanchonete não inaugurada, ora os
espaços livres próximos à Avenida Cruzeiro do Sul. Avistei um grupo e alguém no chão
convulsionando, saímos correndo, o componente imediatamente segurou a cabeça do
transeunte, eu ligava para a emergência. Um dos seguranças do parque em pé, de frente
para o enfermo olhava parado, duas crianças assistiam a convulsão como se fosse num
filme. Apesar de bem próximos de um pronto socorro, a ambulância levou quarenta
minutos para chegar e prestar socorros mais específicos. O grupo então já reunido
assistia e participava daquele drama vivido por um morador de rua. Éramos os “bons
malandros” observando “os odores e as dores, efeitos das ações patrocinadas pela ambição e
o egoísmo dos homens”.A sensação de impotência vivida pelo grupo motivou a
construção de nossa apresentação, dividida em dez pequenas cenas ao longo de duas
passagens completas do samba enredo.
70
Este tipo de procedimento já permeava as criações de 2006 (Faunos e Ninfa) e 2008 (Louca Sedução)
para a ala.
195
Trazíamos para a cena os malandros galantes, alegres, apreciadores do carnaval
em nossa entrada71, evoluindo de maneira tradicional nas duas primeiras frases do
refrão, na terceira frase, começavamos a trazer elementos do samba dançado.
Na quinta frase rompíamos com o clima carnavalesco através de um cortejo
fúnebre, numa alusão a sensação de pesar, proporcionada pela experiência vivida no
parque, usado nas primeiras três frases da primeira estrofe do samba enredo72,
redundando a letra do samba.
O grupo contaminava-se pelo ódio e lutava entre si até a queda de um dos
componentes ao chão, quando os demais não importam-se com o corpo, ao cantar o fim
da primeira estrofe.73 De certa maneira, reproduzíamos a reação das pessoas em relação
ao homem estendido no chão que havíamos presenciado.
A cena seguinte, usada para o bis do samba,74 mostrava a compaixão pelas
mazelas alheias e uma mudança nas ações para com relação ao outro, levantando o
componente caído e recompondo-o. A fé era expressa por dois gestos religiosos ora o
sinal da cruz católico, ora com saudação ao Orixá.
Para a segunda estrofe75 e refrão, retomávamos o clima de carnaval, pois
necessitávamos de evoluir na avenida, ou seja, avançar no espaço cênico e também
exercer a função da ala: apresentar a escola e saudar o público. Cabe salientar que nosso
deslocamento no espaço até esta estrofe não ultrapassava nove metros por cena. Neste
momento evoluíamos ora num cortejo carnavalesco antigo, ora sambando.
Na cena seguinte, retomada da primeira estrofe, repetíamos o cortejo fúnebre
com a configuração espacial de duas filas, com passos pesados, cabeça baixa, chapéu no
peito.
A banalização da violência era mostrada através de jornais, cujos malandros
liam indignados e interagiam com o público através de gestos, anunciando o fim dos
tempos, conforme a primeira estrofe.
71
Avante meu Trevo, querido / Vem fazer a festa, pregando a Paz. / Da Barra Funda eu sou Guerreiro /
Camisa Verde e sambista verdadeiro.
72
Ó quanta tristeza, e tanta dor / Jogada sob o limbo a natureza / O ódio sobrepuja o amor
73
Cavaleiros anunciam o fim dos tempos / Na humanidade o caos / Tão caro o preço, que o homem paga
com a vida / Sangrentas guerras, fruto de tanta ambição / Um mundo sem amor, sem compaixão
74
Com o poder da fé, buscar / O caminho da luz, mudança / E assim deixar / O respeito e a igualdade
como herança
75
Vamos nos unir pra melhorar / E poder anunciar / Nova Era de alegria / Dar um basta à intolerância /
O Brasil é esperança / De um mundo em harmonia / Meu samba, leva um recado do rei da Folia / Que a
Verde e Branco em poesia / Canta a Paz Universal
196
Se o bis falava de fé e compaixão, era necessário retomar gestos conhecidos
como orar de mãos dadas. Os gestos alinhavavam o desenho de duas diagonais que
avançavam na avenida.
Para a união, proposta no início da segunda estrofe do samba, usamos a
configuração do círculo com o abraço como elemento gestual. Houve aproveitamento da
palavra “anunciar” para exercer a função da ala de convocar o público à comunhão
através do carnaval.
A finalização da sequência incluía elementos de giro corporal, provocando na
platéia a sensação de continuidade, preparando-a para a saudação final à Escola para
reiniciar a repetição cênica.
A dramaturgia da encenação “Bom Malandro”, teve como base a letra do samba
enredo, entretanto, sua construção deu-se a partir da re-elaboração de uma situação
vivida e assistida no âmbito social pelo grupo. Schechner (2003: 190) ao referir-se à
poética da performance afirma que “grandes ações reais são substituídas por grandes
semelhanças ficcionais”. No caso de nosso trabalho, esta “substituição” deu-se como
uma interpretação carnavalizada do real.
O gestual e as ações propostas para a cena usaram de símbolos bem conhecidos
do senso comum, buscando o reconhecimento dos mesmos, pelos espectadores, para
construir certa interatividade com a ala ao abrir o desfile da Camisa Verde.
O sonho do carnavalesco realizou-se, ganhamos o Estandarte de Ouro.
Bibliografia
COHEN, R. Performance como linguagem: criação de um tempo-espaço de
experimentação. São Paulo: Perspectiva, 1989.
LIGIÉRO, Z. Malandro Divino: a vida e a lenda de Zé Pelintra, personagem mítico da
Lapa carioca. Rio de Janeiro: Record: Nova Era, 2004.
ROCHA, G. Navalha não corta a seda: Estética e Performance no Vestuário do
Malandro. Tempo. Rio de Janeiro: UFF, v.10, n. 20, 2006, p. 121-142.
______. Eis o Malandro na Praça outra vez: a fundação da discursividade malandra no
Brasil dos anos 70. Belo Horizonte: Revista SCRIPTA, v. 10, n. 19, 2. sem.
2006, p. 108-121.
SCHECHNER, R. Performance Theory. 2. ed. New York and London: Routledge,
2003.
197
Entre pedaços de algodão e bailarinas de porcelana: a performance artística do balé
clássico como performance de gênero, Tatiana Mielczarski dos Santos (UFRGS)
[email protected]
Resumo: O objetivo da pesquisa é analisar de que modos a performance artística
do balé, que compreende uma série de práticas e significados que lhe conferem sentido,
converte-se em performance de gênero, ou seja, estiliza o corpo, repercute na aparência
e no comportamento de quem dança, produzindo e reproduzindo maneiras específicas
de se viver a masculinidade e a feminilidade. O material empírico foi constituído a
partir de entrevistas realizadas com dois grupos de crianças que participam de aulas
desse estilo de dança em Porto Alegre. Para a realização da análise, foram utilizados
como referenciais teóricos o conceito de performance de Richard Schechner, entre
outras contribuições dos Estudos da Performance, bem como alguns referenciais dos
Estudos de Gênero e de autores que tratam da história, cultura e pedagogia do balé
clássico. As análises foram organizadas em quatro eixos que dizem respeito: 1) à
performance do balé; 2) à infância performatizada; 3) às performances do feminino na
dança clássica; 4) às discussões deflagradas por meio da observação de imagens
relativas ao universo da dança e ao universo infantil estereotipado. A partir dos relatos
das crianças, verificou-se que dançar balé (pode) significa(r) dar-se a ver bela e
feminina, e que o aprendizado da dança se caracteriza como aprendizado de ser menina.
Dessa forma, a rigidez na delimitação de um modo de se viver a masculinidade e a
feminilidade pode tanto afastar os meninos da dança, quanto aproximar as meninas ao
balé.
Palavras-chaves: balé, performance, gênero, infância, educação.
Este texto apresenta algumas considerações contidas na dissertação de mestrado
em Educação intitulada Entre Pedaços de Algodão e Bailarinas de Porcelana: a
performance artística do balé clássico como performance de gênero. Compartilho com o
leitor algumas percepções e possíveis conclusões obtidas no desenvolvimento do
trabalho. O objetivo da pesquisa é analisar de que modos a performance artística do
balé, que compreende uma série de práticas e significados que lhe conferem sentido,
converte-se em performance de gênero, ou seja, estiliza o corpo, repercute na aparência
198
e no comportamento de quem dança, produzindo e reproduzindo maneiras específicas
de se viver a masculinidade e a feminilidade. O material empírico foi constituído a
partir de entrevistas realizadas com dois grupos de crianças que participam de aulas
desse estilo de dança em Porto Alegre, na perspectiva de compreender as relações entre
elas e o balé, suas motivações e opiniões sobre a dança. Para a realização da análise,
foram utilizados como referenciais teóricos o conceito de performance de Richard
Schechner, entre outras contribuições dos Estudos da Performance, bem como alguns
referenciais dos Estudos de Gênero e de autores que tratam da história, cultura e
pedagogia do balé clássico. Enfatiza-se, contudo, que, embora o termo performance
possua muitas conotações, o sentido no qual ele é empregado neste trabalho refere-se a
uma conduta comunicativa, aos modos de apresentação e representação de
comportamentos. Para Richard Schechner (2000, 2002), toda e qualquer coisa pode ser
estudada como performance. Isso “significa investigar o que o objeto faz, como ele
interage com outros objetos ou seres, e como se dá essa relação” (SCHECHNER, 2002,
p.24). O balé é uma performance porque nossa cultura, a convenção, o costume e a
tradição o dizem que é, assim como outras performances artísticas, como o teatro e a
música.
A técnica de dança, a utilização particular do corpo no balé, possui como fortes
características a referência de um olhar de fora e a importância do modo de dar-se a ver,
sendo que, historicamente, a técnica/estética do balé desenvolveu-se, em parte, pela
vaidade dos(as) bailarinos/as e dos coreógrafos. Segundo Pereira (2006), a história do
balé é “uma história que se faz ainda hoje, aliando técnica e estética num lugar bastante
determinado: o corpo”. Aqui, o termo estética tem um significado ambíguo, pois referese tanto à linguagem como à beleza. Com o tempo, o balé tornou-se uma experiência de
cultura erudita, assim como uma arte feminilizada centrada na graça, na pureza e na
cortesia. O que era cultura “passou a ser encarado como natureza, atribuindo-se ao que
era produto de um contexto cultural, histórico e ideológico um caráter natural (Barthes)
– o modo como o balé deve ser” (CANTON, 1994, p.99).
A partir dos relatos das crianças entrevistadas, verificou-se que dançar balé
(pode) significa(r) dar-se a ver bela e feminina, e que o aprendizado da dança se
caracteriza como aprendizado de ser menina. Dessa forma, a rigidez na delimitação de
um modo de se viver a masculinidade e a feminilidade pode tanto afastar os meninos da
dança, quanto aproximar as meninas ao balé.
199
Porém, como não há um modo único e universal de ser menina ou mulher e sim
maneiras plurais de se viver as feminilidades, pergunto-me: quem é essa (quase) heroína
preconizada pelo balé? A influência das raízes aristocráticas e dos contos de fadas
evidencia-se na figura da bailarina clássica que povoa o imaginário coletivo, os livros,
os filmes e os brinquedos: um corpo que se apresenta com uma “postura reta que [assim
como preconizavam os antigos manuais escolares, conforme Louro (1997, p.62)]
transcende a mera disposição física dos membros, cabeça ou tronco, pois seria um
indicativo de seu caráter e suas virtudes”; um físico “moldado ao ideal de feminilidade
que equipara a beleza e a graça à excessiva magreza” (GORDON apud HANNA, 1999,
p. 191) e uma personalidade pré-disposta à encarnação de “papéis como ninfas, sílfides,
donzelas espectrais e fadas” (CANTON, 1994, p. 66), além de ser possuidora dos
atributos necessários ao aprendizado de seu ofício, como disciplina, organização,
passividade e obediência. Contudo, acredito que essas características são marcas de uma
feminilidade idealizada que transcende o campo da dança e é compartilhada por esferas
como a família, a escola e a mídia. Percebi, nas meninas entrevistadas, a inscrição
dessas marcas, em seus corpos e opiniões, as mesmas que carrego em mim, já que
danço balé desde muito pequena. Assim, a prática do balé ou sua performance,
constituída por uma série de ações e símbolos que conferem sentido a sua realização,
pode se caracterizar, para além do aprendizado de uma técnica ou de um código de
dança, como o aprendizado dos modos de ser menina, ou seja, como performance de
gênero. Evidentemente, há outras razões e motivações que levam as meninas a procurar
o balé como atividade, como o desejo de profissionalização na área, por exemplo.
E os meninos? De que forma o balé performatiza o gênero masculino? Embora a
movimentação dos meninos e dos homens seja diferenciada das meninas e das
mulheres, principalmente na execução de um pas-de-deux, no qual o bailarino manobra
e sustenta a bailarina (o que, dentro de nossa cultura, poderia ser visto como um ato de
demonstração de força e virilidade), a prática do balé é associada a um modo feminino
de dar-se a ver. Muitas vezes, essa identidade de gênero é confundida com a identidade
sexual, ou seja, os meninos que dançam balé são estigmatizados como homossexuais,
em uma atribuição de um gênero defeituoso ou falho. “De fato, habitualmente punimos
os que não desempenham corretamente o seu gênero” (BUTLER, 2003, p. 200). Assim,
o desejo e a motivação para a dança precisam ultrapassar o terreno das ideias préconcebidas, o que consiste em uma tarefa nada fácil. A ausência de artefatos culturais
200
que identifiquem a figura masculina com o balé também colabora para o distanciamento
entre eles e a dança. Quando os garotos investem no balé, profissionalmente ou não,
quase sempre ganham destaque na mídia e são vistos como heróis de contos de fadas, ao
contrário do anonimato experimentado por muitas meninas que se dedicam à dança.
Afinal, no que consiste a performance artística do balé para os meninos? Os poucos
dados reunidos a partir dos pouquíssimos garotos envolvidos nesta pesquisa, não
apontam muitas direções. Sendo assim, talvez essa questão possa constituir-se como
ponto de partida para um próximo estudo.
Recordo ao leitor que as performances, segundo Erving Goffman (2003) marcam
identidades, dobram o tempo, remodelam e adornam o corpo, e contam histórias.
Performances – de arte, rituais ou da vida cotidiana – são feitas de “comportamentos
restaurados”, ações performativas que as pessoas treinam, fazem, praticam e ensaiam
(SCHECHNER, 2003, p. 23). Lembremos ainda que os atributos e atos de gênero
(BUTLER, 2003), as várias maneiras como o corpo mostra ou produz sua significação
cultural, são performativos, então não há identidade preexistente pela qual um ato ou
atributo possa ser medido.
No início desta pesquisa, minha intenção era compreender os significados
atribuídos pelas crianças à sua dança, pois me intrigava a percepção da sobrevivência de
uma arte tão tradicional como o balé em um “mundo onde a produção contemporânea
não reserva grandes espaços para príncipes ou cisnes encantados” (KATZ, 2002). Hoje,
após analisar as opiniões das crianças, com o auxílio das lentes da performance, vejo
que a prática do balé na infância se constitui como um aprendizado simultâneo da
técnica de dança e dos modos de ser menina, bela, educada e elegante. Isso é algo bom
ou ruim? Talvez não importe, porque mais importante do que fazer um juízo de valor
sobre essa prática é a tentativa de compreensão da relação estabelecida entre seus
diferentes elementos, sejam eles culturais, técnicos, pedagógicos, históricos ou
estéticos, com os modos de se viver a feminilidade e a masculinidade. Ao aceitarmos o
caráter performativo e performático dessas relações, principalmente em relação aos
gêneros, ou seja, a inexistência de uma base universal e biológica para os
comportamentos, talvez possamos minimizar alguns preconceitos, a fim de que meninas
e meninos possam usufruir do prazer proporcionado pela dança e pelas descobertas de
seus corpos e suas possibilidades, sem o medo de uma atitude considerada inadequada a
seu gênero.
201
Enfim, para o futuro, fica a paixão pela dança, o desejo de democratizá-la e as
dúvidas de hoje e de amanhã que, num movimento incessante, me levam a dançar a
coreografia do pensamento.
Bibliografia
BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CANTON, Kátia. E o príncipe dançou: o conto de fadas, da tradição oral à dança
contemporânea. São Paulo: Ática, 1994.
HANNA, Judith Lynne. Dança, sexo e gênero: signos de identidade, dominação,
desafio e desejo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
KATZ, Helena. Balé Clássico abriga pluralidade de estilos. Folha de S. Paulo, 2002.
Disponível em: http://www.helenakatz.pro.br. Acesso em: 10 ago. 2009.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pósestruturalista. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
PEREIRA, Roberto. Gruas vaidosas. In: PEREIRA, Roberto; SOTER, Silvia (Org.).
Lições de Dança 1. Rio de Janeiro: UniverCidade Ed., 2006, p. 173-190.
SCHECHNER, Richard. Performance studies: an introduction. London: Routledge,
2002.
SCHECHNER, Richard. Performance teoria e practicas interculturales. Buenos Aires:
Ed. Libro de los Libros, 2000.
202
Rastros, Ary Coelho; Luisa Günther (UnB)
Ary Coelho
Graduando em Artes Plásticas TRANSE/UnB
Luisa Günther
Doutoranda PPGSOL/UnB
IdA/TRANSE/UnB
Resumo: A intenção é promover um encontro entre a dança contemporânea e a
pintura. Nesta busca e pesquisa, duas linguagens aparentemente díspares levantam
dúvidas e questões, entrando numa atmosfera de performance e reflexão. Com
movimentos esquematizados, o registro de suas dúvidas e reflexões são constituídas no
espaço, a partir de movimentos em constante transformação: são ações cotidianas do
corpo transfiguradas para a linguagem poética da dança e da pintura simultaneamente
dando um ritmo coreográfico composto com liberdade de improvisação, mesmo tendo
uma estrutura pré-elaborada. O processo criativo é visibilizado ao público presente na
dança em seus movimentos e na pintura como ocupação do espaço. Os movimentos de
ambos performers se transmutam em campos de sensibilidade na qual os movimentos
articulados se misturam no desafio no desejo da criação, para ter sentido, fazer sentido.
203
Palavras-chave: dança contemporânea, pintura, performance.
Resumo: Rastros podem ser compreendidos enquanto marcas ou registros. São
possibilidades de permanência de algo que já não está mais aonde deveria. As coisas, as
pessoas e suas ações, se estendem, se confundem, se emancipam de si mesmas e seguem
seu próprio rumo. Seguem adiante ao mesmo tempo em que deixam em torno de si
algumas evidências de que estiveram por ali. Afinal, para onde vão os movimentos de
uma ação que se transforma em outra? As coreografias são rastros de movimentos que
deixaram de ser para se tornarem outros movimentos? Movimentos são marcações para
o corpo? Será que o corpo carrega consigo as marcas dos lugares por onde esteve ou dos
espaços que já ocupou? A escolha do movimento pode ser a busca de um limite entre a
ação e a mesmice, entre uma linguagem e outra. De qualquer forma, movimentos
marcam, demarcam e ocupam espaços. Neste contexto o corpo é apenas um desses
espaços que marca e é marcado. O corpo, aos poucos, deixa rastros. Deixa extensões de
si mesmo em outras materialidades: em suor, em gestos, em respiração.
Palavras-chave: corpo; linguagem; performance.
Nas linhas que aqui se seguem o interesse é o desenvolvimento de uma reflexão
sobre a possibilidade (ou não) de relacionar experiência, consciência e discurso. A
princípio claro que é possível. No entanto, também é possível que ao relacionar
experiência, consciência e discurso transpareçam disparidades, ambigüidades e
incongruências. Uma pergunta que nos provoca a estas reflexões condiz com a dúvida
sobre a comunicabilidade de conteúdos a despeito de diferenças entre linguagens
artísticas. Outras perguntas seguem sobre a qualidade de um discurso verbal sobre
gestos, sensações e impressões. Afinal, como comunicar uma performance? Como
expressar com palavras os mesmos significados apresentados em outra linguagem?
Ainda mais quando o objetivo seria o de comunicar os conteúdos subjetivos de duas
pessoas que se envolvem em ações ora coincidentes, ora complementares em um
mesmo espaço proposto com diferentes linguagens? Como promover um fluxo entre
sistemas de percepção, pensamento e ação de modo a deixar evidente o lugar de fala de
cada uma das subjetividades? Rastros é uma performance cuja intenção é promover um
encontro epistemológico entre as linguagens da dança contemporânea e da pintura com
interesse de sustentar um diálogo entre as respectivas semelhanças desiguais de cada
204
uma destas formas artísticas. Nesta busca e pesquisa a partir de movimentos
previamente esquematizados o espaço desta performance proposta questiona
ambientações convencionais de espetáculos. Apresentado ao longo do ano de 2009 em
teatros e galerias em Brasília, esta performance institui uma interrogação implícita sobre
que corpo é este? que ao entrar nestes espaços deixa de ser natural e passa a ser
instituído. Isto porque se por um lado qualquer indivíduo pode ser considerado como
instituição social em si mesmo, por outro lado, quando indivíduos escolhem comunicar
alguma coisa, escolhem também dizer alguma coisa, [que] é dizer verdadeiramente, é
dizer o que é tal como é. Que significa aqui tal, senão uma equivalência? Como é
possível uma equivalência entre uma seqüência de palavras e um grupo de fatos, coisas,
etc. – senão como instituição? (Castoriadis, 2000, p. 295). O desdobramento do roteiro
de Rastros reflete a experiência acumulada por cada um dos performers em seu
conhecimento específico no campo da pintura e da dança contemporânea. Os
movimentos de dança contemporânea estão coreografados, mas ao serem apresentados
em intensidades diferentes estão abertos a todas as possibilidades de movimento. Dentro
de uma estrutura organizada previamente com uma coreografia que tematiza o ato de
pintar o espaço vazio com movimentos corporais ao invés de pincéis, a própria
coreografia está sujeita a improvisações, a uma troca constante entre os movimentos e
as intensidades.
205
Já no momento da pintura o questionamento circunscreve a ação de colorir as
coisas. Se é instituído que a tela é um espaço em que a prática da pintura acontece, a tela
também é um registro dos movimentos que levam à pintura existir enquanto
acontecimento. Por outro lado, quais seriam as ações similares ao pintar a tela? Pintar as
unhas? Pintar o cabelo? Tatuar a pele? Maquiagem? Ao compor movimentos referentes
a estas ações estéticas cotidianas de embelezamento do corpo as gestualidades em
movimento ficam expostas e se transmutam em dança. As ações performadas têm por
intenção repensar a consciência e seus mandamentos, a vontade e suas conseqüências.
Estas ações retomam o corpo enquanto espaço para multiplicidades de significado
conferidas tanto por quem atua, quanto por quem interpreta pois, ambos momentos
conferem um pensamento próprio sobre o reconhecimento e também, sobre o corpo
enquanto espaço para a identidade. Em meio a questões específicas de linguagem o
corpo transparece como alteridade de um “conceito como representação de um corpo
extraconceitual, mas o corpo como perspectiva interna do conceito: o corpo como
implicado no conceito de perspectiva” (Viveiros de Castro, 2002, p. 140).
A multiplicidade do discurso sobre si mesmo em uma perspectiva de nomeação
da própria biografia aparece enquanto estratégia em categorias de dança contemporânea.
Um exemplo está no trabalho do intérprete-criador Gerhard Bohner na coreografia In
206
goldenen Schnitt II (1989), na qual desenvolve um trabalho com figuras geométricas e
com estruturas de simetria. Ao entrar em cena com uma escultura de metal, Bohner
propõe uma alteridade em que questiona as diferenças e semelhanças entre o humano e
um símbolo da sociedade industrial destituída de emoções. Ao longo do processo pinta
suas mãos de preto, talvez como referência ao trabalho que elas podem executar e
examina a sua essência transmutada. Já com relação ao uso de objetos em cena de modo
a compor com estes nichos inanimados coreografias, Rastros segue a tradição de Pina
Bausch em Café Müller (1978),William Forsythe em Artifact (1984), Susanne Linke em
In Bade wannen (1980) e Urs Dietrich em Da war plötzlich (1995).
Se no início o espaço vazio cênico encontra respaldo por entre a tela branca da
pintura, essa manipulação da tela e dos pincéis acontecem ao mesmo tempo em que o
corpo do bailarino se estende ao chão para sentir movimentos mínimos. Ao compor
alguns gestos os traços do pincel dão ritmo ao movimento do corpo que dança. Os
movimentos vão se organizando, os corpos se colocam no espaço proposto com o
registro de suas dúvidas e reflexões, constituindo movimentos em constante
transformação: as ações cotidianas do corpo são transfiguradas para a linguagem poética
da dança e da pintura simultaneamente dando um ritmo coreográfico composto com
liberdade de improvisação, mesmo tendo uma estrutura pré-elaborada. De um lado, o
corpo do bailarino se movimenta em uma pintura no espaço invisível. Simultaneamente,
o pincel busca no espaço as partes do espaço em que pode atuar como se desse uma
unidade ao processo. Rastros é um trabalho que não tem o intuito de contar uma
história/narrativa, ao mesmo tempo em que transcorre em um registro de si mesmo já
que a tela permanece enquanto espaço de ocorrência. Por entre gestos e intenções
muitas coisas são ditas nesta trajetória sem o uso da palavra falada pois, o encontro dos
movimentos se coloca por entre olhares e espaços de aparente suspensão, de silêncio.
Ambos se transmutam em campos de sensibilidade na qual articulam o desafio do
encontro entre linguagens em que qualquer palavra ou ato de interpretação pode instituir
uma outra representação que transborda o momento. Outro grande desafio está no fato
de “não há objeto que não comprometa um ponto de vista” (Bourdieu, 1984, p. 17), isto
porque a realidade da experiência subjetiva ao mesmo tempo única e cúmplice à
alteridade do outro que se apresenta em co-presença é transposto em práticas de sentido
do corpo. Assim, é possível a produção de uma mútua explicação que promove
discursos alternados.
207
Bibliografia
BOURDIEU, Pierre. Homo Academicus. Paris: Minuit, 1984.
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2000.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O nativo relativo. In: Mana: Estudos de
Antropologia Social. Rio de Janeiro: PPGAS/UFRJ, 2002.
208
SESSÃO 4: TEATRO E RITUAL
O teatro das orgias e dos mistérios de Hermann Nitsch , André
Silveira Lage (Paris 8, USP)
André Silveira Lage
Doutorado em Literatura Francesa (Universidade Paris 8 )
Estágio pós-doutoral (USP-ECA)
[email protected]
Resumo: Este artigo pretende apresentar as características principais do “Teatro
das Orgias e dos Mistérios” de Hermann Nitsch, suas origens estéticas e suas
implicações históricas, artísticas e filosóficas no contexto da arte austríaca do pósguerra. Mostrarei o papel determinante do artista na Áustria, “o país da cultura, da mais
modernista, de Schönberg a Karl Kraus, de Mach a Wittgenstein, de Freud a Schnitzler,
mas também a terra de Hitler” (ONFRAY, 1998, p. 59), bem como as contribuições de
suas “Aktions” – termo da língua alemã que denomina a arte da performance dos anos
70 e 80 – na elaboração de um novo conceito de arte, pautado, entre tantos aspectos, na
reconciliação da arte e da vida, na releitura dos mistérios da paixão da Idade Média, nas
procissões católicas, na sensualidade espontânea das festas populares, nas formas
demoníacas dos velhos ritos de redenção e de fertilidade, na catarsis das grandes festas
greco-romanas, ou ainda, num “outro uso estético e ético da carne” – que é um rito
performático de esquartejamento e de evisceração da carne animal, um rito sanguinário,
dionisíaco, catártico, cruel.
Palavras-chave: performance, ritual, corpo, crueldade.
Hermann Nitsch e o contexto histórico do accionismo vienense
Pintor, cenógrafo, escritor, músico e romancista, Hermann Nitsch76 fundou
(juntamente com Günter Brus, Otto Muehl e Rudolf Schwarzkogler) um movimento de
resistência extremamente subversivo, denominado accionismo vienense, cuja violência
estética exerceu um papel determinante no contexto de um país como a Áustria, “o país
da cultura, da mais modernista, de Schönberg a Karl Kraus, de Mach a Wittgenstein, de
76
Hermann Nitsch nasceu, em Viena, no ano de 1938.
209
Freud a Schnitzler, mas também a terra de Hitler” (ONFRAY, 1998, p. 59).
intimamente ligado ao contexto histórico do país no qual surgiu, o accionismo vienense
revolucionou a arte austríaca do pós-guerra, materializando, pelo viés de suas “Aktions”
– termo da língua alemã que denomina a arte da performance dos anos 70 e 80 – uma
resposta contundente contra o delírio de um homem (Hitler) que se tornou o delírio de
um povo. Visto por esse ângulo, o accionismo vienense se constituiu como um grito de
protesto contra o fantasma de uma sociedade racial pura, idealizada pelo Nazismo, que
pretendia ver-se livre de seus judeus, de suas verminas, de seus comunistas, de seus
homossexuais, de seus artistas decadentes e de seus intelectuais. Em outros termos, o
accionismo vienense foi uma experiência política que denunciou a atroz e inumana
realidade de uma catástrofe histórica inteiramente regida pela necessidade absoluta da
exterminação do impuro e do imperfeito. Foi, nesse sentido, uma atitude artisticamente
radical contra a ausência de limites, contra a exaltação das pulsões de morte que, entre
tantos outros aspectos, serviu de fermento ao totalitarismo, ao nacional-socialismo, ao
holocausto e ao genocído. O accionismo vienense buscou a cura de todas essas
atrocidades, dando-se a tarefa de expulsar os estigmas de um período histórico
inteiramente submetido a Tânatos. Como assinalou o filósofo francês Michel Onfray:
“A vontade de expulsar essas pulsões de morte é arquitetônica na economia do
pensamento accionista” (ONFRAY, 1998, p. 58).
As origens estéticas da obra de Hermann Nitsch
Uma vez esboçado o contexto histórico no qual surgiu o accionismo vienense,
bem como as reações de protesto e de denúncia que dele emergiram, passo agora à
análise da trajetória artística de Hermann Nitsch, identificando tanto suas origens
estéticas quanto suas características principais.
Sua trajetória artística se iniciou primeiramente com uma importante série de
quadros abstratos em grande formato, tais que Bread and Wine (Pão e Vinho, 1960),
Station of de Cross (Estação da via Crucis, 1961) e Spill Picture (Pintura derramada,
1962).
Nesses quadros, cujos títulos já indicam uma referência ao simbolismo cristão,
Nitsch deixa de lado o instrumento tradicional do pintor (o pincel), abandona o cavalete,
servindo-se ora de uma esponja embebida de uma cor vermelha que ele espreme do alto
do quadro, provocando, pelo escoamento natural da cor sobre uma superfície horizontal,
210
a impressão de uma pintura que sangra. Ora de um balde que ele sacode de forma
violenta, possibilitando, pelo derramamento da cor sobre a superfície do quadro
colocado sobre o chão, a explosão do espaço.
Através desses dois procedimentos (o escoamento e o derramamento da cor),
Nitsch recusa também qualquer tentativa de controle e de composição formal, se apóia
nas virtudes imprevisíveis do gesto instintivo e espontâneo, na força pictórica dos
materiais utilizados, nos seus efeitos aleatórios, acidentais e selvagens, mantendo as
formas no seu estado de indeterminação, de indecisão, de borro, de mancha, de sujidade.
Tais procedimentos rompem, de fato, com as técnicas da pintura tradicional, tributária
de uma concepção da pintura como reflexo, repetição ou imitação de uma realidade ou
de um modelo pré-existente ou pré-estabelecido. Antes da pintura, não há nada: nem
sujeito e nem objeto. Trata-se, sobretudo, de uma pintura que resulta do encontro do
gesto do autor com os materiais utilizados e que privilegia muito mais o processo (o ato
ou a ação de pintar) do que o seu resultado (a pintura propriamente dita). Podemos
considerá-la apenas como a constatação de um processo pictural que, por essência, só
existe no tempo real – ou seja, no exato momento do escoamento ou do derramamento
de líquidos sobre a sua superfície. Nesse sentido, o ato ou a ação de pintar torna-se em
si mesmo uma performance que confere à gestualidade do corpo, à materialidade da cor,
à explosão do espaço, à improvisação e ao acaso, um lugar central, inscrevendo-se
assim na tradição do expressionismo abstrato americano, representado pela Action
Painting77 de Jackson Pollock (1912-1955).
No final de 1962, Nitsch vai passar dessa “pintura de ação” a um repertório de
performances que tem em vista um vocabulário formal de base, uma gramática
sinestésica, que será reiterada com freqüência em diversas ocasiões. A principal
característica dessas performances reside na execução de diversas ações sobre o cadáver
animal. Por exemplo, na performance realizada durante o Drei Tage Einmauerung
(Confinamento de três dias, 1962) com Adolf Frohner e Otto Muehl, Nitsch apresenta
ao público um cordeiro crucificado sobre uma cruz de madeira e começa a pintá-lo, ou
melhor, a aspergi-lo e borrifá-lo com o sangue animalesco misturado com água. Tanto o
corpo do cordeiro quanto o tecido branco que se encontrava atrás dele são impregnados
77
O termo Action Painting foi introduzido em 1952 pelo crítico americano Harold Rosenberg, no artigo
da revista Art News. A Action Painting valorizou as noções de “automatismo” e de “inconsciente” já
presentes no surrealismo, bem como o caráter irracionalista do dadaísmo.
211
de sangue. Numa segunda fase da performance, Nitsch vai levar tal obsessão pelo
sangue ao seu paroxismo. Através de ações violentas exercidas com uma espátula,
Nitsch não somente dilacera o corpo do animal crucificado, expondo aos olhos dos
espectadores o odor de suas entranhas e de seus órgãos, mas também deita sobre uma
cama colocada abaixo do corpo do cordeiro, oferecendo seu próprio corpo como suporte
da ação. Este recebe, do mesmo modo que o cordeiro, vários baldes de sangue lançados
por seu amigo Otto Muehl. O sangue, o cordeiro e o próprio corpo do artista tornam-se
os suportes de sua performance. Ou melhor: podemos dizer ainda que há aí uma ponto
limítrofe, uma zona de indiscernibilidade entre os materiais e os suportes utilizados. A
tudo isso vem acrescentar-se uma gestualidade de conotação dramática que promove
não somente a comunhão sinestésica do pintor com a sua obra, mas também um “outro
uso estético e ético da carne” (ONFRAY, 1998, p. 58).
A sala, branca e quase asséptica no seu início, transforma-se, em pouco tempo,
num rito transgressivo, sanguinário e cruel, no qual o sangue (utilizado enquanto
pigmento e como material), a violência exercida sobre o corpo do animal, o impacto
psicológico, visual e olfativo causado pela performance, possibilitam liberar as forças
do inconsciente das amarras do recalque e do interdito, e vão também na direção de um
rito nietzchiano, no qual a força catártica dos símbolos utilizados, do ritual e do sangue,
possibilita a criação de uma festa que se constitui como celebração da vida.
Esta performance, que coloca em jogo o esquartejamento de um animal, nos faz
também lembrar ou tem como equivalente, no âmbito da pintura, Le Boeuf écorché (O
boi esquartejado, 1655) de Rembrandt, retomado e reinterpretado, em 1925, por Chaïm
Soutine, através de um quadro homônimo, como também o Figure with meat (Retrato
com a carne, 1954), de Francis Bacon.
Tanto seus primeiros quadros abstratos quanto as performances que os sucedem
foram, de fato, o estofo de sua principal obra, realizada em 1998, no castelo de
Prinzendorf, a saber, o Teatro das Orgias e dos Mistérios. Tal teatro não se define pela
perspectiva da cena ou da representação, não recorre a atores ou comediantes. Ao
contrário, todos que estão ali presentes são convidados a participar de uma “festa
intensiva” – a festa de tudo aquilo que vibra e faz vibrar a potência da vida, a festa
como espaço do conhecimento vivo, a festa como afirmação de nossa condição, de
nossa existência, ou ainda, como uma “filosofia corporal” que faz vir à tona “a
212
fisionomia dos órgãos”, “a filosofia dos corpos animais”, segundo as palavras do
próprio Nitsch (NITSCH, 2004, p. 39).
Pela embriaguez dos cinco sentidos, pelo êxtase de uma corporalidade levada ao
extremo, pelo abandono violento às experiências sexuais do pecado coletivo que, no
entanto, são controladas e disciplinadas, trata-se ainda de uma festa que aponta um
objetivo bem determinado: a transformação de nossa existência. Uma transformação
regida sob o signo do excesso ontológico e da experiência-limite que a perpassa, e
situada para além do bem e do mal.
Concebido também como um “espetáculo de seis dias” para marcar a referência
à criação do mundo segundo a Bíblia, Nitsch buscou, através de seu Teatro das Orgias e
dos Mistérios, a orgia dos cinco sentidos (visão, audição, olfato, tato, paladar), pelo uso
de diferentes linguagens artísticas (pintura, desenho, teatro, música), pelo uso de
elementos de natureza ora orgânica (cadáveres de animais, vísceras, sangue, esperma),
ora cirúrgica (seringas, algodão, tubos de vidro, sondas), ora religiosa (cruz, ostensório,
objetos usados em celebrações religiosas), ora alimentar (vinho, frutas, carne, comida),
recriando, à sua maneira, a utopia wagneriana da Gesamtkunstwerk (Obra de Arte
Total). Nitsch foi ainda muito mais longe, pois elaborou um novo conceito de arte,
pautado, na reconciliação da arte e da vida, na releitura dos mistérios da paixão da Idade
Média, nas procissões católicas, na sensualidade espontânea das festas populares, nas
formas demoníacas dos velhos ritos de redenção e de fertilidade, na catarsis das grandes
festas greco-romanas, ou ainda, na conexão da arte com a natureza, do mito dionisíaco
com a estética do sangue, das metáforas religiosas com a vida cotidiana, do clássico
com o bárbaro, da sexualidade com a morte. A propósito dessa relação indissociável
entre Eros e Tânatos, Nitsch diz o seguinte:
Pelas ações do Teatro das Orgias e dos Mistérios tudo pode
acontecer: masturbação, menstruação, ato sexual normal, ato
homoerótico o mais íntimo e mesmo as formas extremas da
perversão como o erotismo, o excesso, as formas destrutivas
sadomasoquistas e o desejo de matar que transforma o erotismo
na morte. O Teatro das Orgias e dos Mistérios deve mostrar
tudo o que acontece no mundo, da morte passando pela
sexualidade até o misticismo, ele deve englobar a realidade do
homem (NITSCH, 2004, p. 88, tradução minha).
213
O Teatro das Orgias e dos Mistérios não somente ignora a velha separação entre
o sagrado e o profano, o divino e o humano, mas se constitui também como uma forma
eficaz de “profanação” de todos os dispositivos de poder (sexual, religioso, político,
social), na medida em que ele desativa-os, coloca-os em crise, brinca com eles,
destituindo-os de sua utilidade, fazendo um “uso novo” e operando assim a
“neutralização de tudo aquilo que profana” (AGAMBEN, 2007, p. 68). Tal teatro se
inscreve nessa dimensão particular do “profano” abordada por Giorgio Agamben, a qual
está ligada a esse “uso novo”, que é, paradoxalmente, um “uso comum”. Se profanar é
restituir ao “uso comum” o que havia separado na esfera do sagrado, o Teatro das
Orgias e dos Mistérios reativa esse “uso novo” e “comum” de tudo aquilo que, precisa
Nitsch, engloba a “realidade do homem”. E é nesse sentido que ele devolve ao rito, às
experiências sexuais e ao sacrifício de animais, sua vocação puramente profana, isto é,
enquanto um acontecimento puro.
Bibliografia
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
NITSCH, Hermann. Hermann Nitsch. Das Orgien Mysterien Theater. Catálogo da
7ª. Exposição do Museum Modern Kunst Stiftung Ludwig Wien. Luxembourg, 2004.
ONFRAY, Michel. La Révolution viennoise: l’actionisme radical. In: Quasimodo, n. 5
(Art à contre-corps), printemps 1998, Montpellier, p. 57-66.
214
Ritual e crueldade nas artes do espetáculo: potencialidades de
percepção-ação do corpo, Ricardo da Mata Barbosa (Unesp); Rodrigo
dos Santos Monteiro (PUC -SP)
Ricardo da Mata Barbosa
Graduado em História (Unesp)
[email protected]
Rodrigo dos Santos Monteiro
Graduando em Comunicação das Artes do Corpo (PUC -SP)
[email protected]
Resumo: A proposta de um teatro ritual, a qual Antonin Artaud dedicou grande
parte de sua vida, quando voltada para as artes do espetáculo contemporâneas, permite
que sejam feitas aproximações do seu conceito de crueldade com os atuais
entendimentos das performances corporais. Crueldade, aqui, expandida dos termos que
se voltam para o sofrimento físico ou psicológico, para um campo onde a percepção,
entrelaçada com a experiência artística, é um ato potencial da transformação do ser.
Contemporaneamente, devido aos avanços teóricos sobre os estudos do corpo
artista – corpo que ultrapassa os domínios da representação e promove (auto)
transformação a partir da ação, do ato de perfomar – pode-se dizer que a herança do
teatro artaudiano para a produção de espetáculos cênicos contemporâneos, quando
embebidos da crueldade, volta-se para a potência que estes trabalhos têm de promover
não uma cartase aristotélica, mas uma ressignificação de sentidos para o artista e o
espectador. As mudanças ocasionadas vão desde o cognitivo individual de cada um, até
a valorização em outros âmbitos da união coletiva.
O espetáculo como um ato performático, e também como um ritual, necessita da
relação entre artistas e público para que se desenvolva como tal. Desta forma, o ritual
acontece a partir do momento em que, tanto artistas, quanto os não-artistas, se fundem
em um acontecimento (happening) visando outras possibilidades de vida em um terreno
ainda escuro.
Palavras-chave: Antonin Artaud, corpo, crueldade, performance, ritual.
Os espetáculos teatrais apresentados na cena contemporânea dividem-se em,
basicamente, dois eixos: aqueles voltados à produção comercial e os que são criados nos
215
chamados circuitos alternativos. O primeiro, na maioria das vezes, está associado a uma
função de entretenimento, assumindo uma forma espetacularizada. Já o segundo, com
um caráter mais experimental, busca uma investigação da linguagem e de suas
possibilidades de comunicação.
Segundo Guy Debord (2005), o modo de produção atual que rege a maior parte
do mundo fez com que todo o real fosse trocado por um tipo de vida onde um
determinado tipo de representação fosse dominante – a espetacularizada. Os objetos
deixaram de ter um valor em si mesmos e passaram a ser contemplados, admirados.
Para Debord, o espetáculo vai além das imagens e ultrapassa para o modo como estas
imagens interferem na relação social: as imagens são mediadoras desta relação.
Deste modo, utilizando-nos do chamado eixo alternativo, faremos uma análise
de como uma apresentação teatral pode funcionar como uma manifestação de ritual,
basendo-se, para tal, nas concepções do Teatro da Crueldade de Antonin Artaud.
Sobre ritual e crueldade artaudiana
O conceito de ritual pode ser utilizado para descrever fenômenos variados, tanto
em culturas arcaicas, quanto nas modernas. Ele pode designar, ao mesmo tempo,
cerimônias religiosas, as quais voltam-se para o domínio do sagrado, ou mesmo uma
ação rotineira, como o ato de se alimentar. Agora, a palavra “rito” também pode estar
atrelada a estes dois entendimentos: em uma acepção moderna ela é desvinculada de um
sentido metafísico. “A idéia de rito foi progressivamente deslizando do campo
específico do sagrado para um campo mais amplo da vida social” (QUILICI, 2004: p.
37), como os ritos de passagem modernos (formatura, “trotes” em universidades, etc.);
já uma arcaica designa outros modos de estar e agir diante de uma experiência que se
torna mais intensa a partir do sentido que lhe é atribuído.
O antropólogo Marc Augé (apud QUILICI, 2004: p. 37) considera que os rituais
são fenômenos presentes em qualquer cultura, em qualquer época. Eles não se
restringem apenas à esfera do arcaico. Deste modo, esta visão antropológica permite que
consideremos a relação público-artistas, em um espetáculo teatral, como um
acontecimento ritualístico.
A concepção que Artaud faz de crueldade vai além daquela que tomamos pelo
sentido fisiológico da palavra; ultrapassa para o sentido ontológico. A relação que o
Teatro tem com a crueldade (ou pelo menos deveria ter, segundo Artaud) é a de que em
216
um espetáculo teatral, o público ultrapasse os limites do espetáculo em si e alcance um
sentido, ou melhor, uma sensação metafísica. Para Artaud tudo que atua é uma
crueldade, logo, no teatro – espaço da atuação – há um constante jogo da crueldade. A
crueldade é uma experiência pela qual o ser humano deve passar para que o coloque
diante de todas as suas possibilidades. Um ser humano precisa encontrar, na crueldade,
um modo de ir além daquilo que ele é; um caminho de descobrir aquilo que está oculto
em si mesmo. A crueldade artaudiana é uma espécie de rito, onde há a possibilidade de
enriquecer o espírito. Porém, para Artaud, mesmo havendo esta modificação no espírito
“não se separa o corpo do espírito, nem os sentidos da inteligência, sobretudo num setor
onde a fadiga incessantemente renovada dos orgasmos precisa de bruscos abalos para
reanimar nosso entendimento” (ARTAUD, 1984: p. 111).
Performance como percepção-ação corporal
O teatro, que se baseia na performance, traz um entendimento de ação na
representação. A palavra performance vem do inglês to perform, “verbo correlato do
substantivo ‘ação’” (Austin apud SETENTA, 2006: pág. 18). Assim, uma peça teatral
não necessariamente apenas representa um determinado assunto, mas também age, a
partir daquilo que é colocado em cena. “O discurso da performance é o discurso da mise
en scène, tornando o performer uma parte e nunca o todo do espetáculo”. (COHEN,
2004: p.102). Um teatro ritual, nestes termos, é aquele que desempenha transformações,
tanto em público, quanto nos atores que o promovem.
Na performance há uma acentuação muito maior do instante
presente, do momento da ação (o que acontece no tempo
“real”). Isso cria a característica de rito, com o público não
sendo mais só espectador, e sim, estando numa espécie de
comunhão (e para isto acontecer não é absolutamente
necessário suprimir a separação palco-platéia e a participação
do mesmo, como nos espetáculos dos anos 60). A relação entre
o espectador e o objeto artístico se desloca então de uma
relação precipuamente estética para uma relação mítica,
ritualística, onde há um menor distanciamento psicológico
entre o objeto e espectador (COHEN, 2004: p. 97-98).
Segundo Cohen, a performance, como linguagem, assume a forma de
espetáculo-ritual, na medida em que intensifica o instante presente do acontecimento e a
relação com o público que se torna cúmplice de uma experiência única. Dessa maneira,
217
o performer (ator), em seu contato direto com o público, lida com as energias do “aquiagora”:
Essa energia diz respeito à capacidade de mobilização do
público para estabelecer um fluxo de contacto com o artista: a
energia vai se dar tanto no nível de emissão, como o artísta
enviando uma mensagem sígnica – e quanto mais energizado,
melhor ele vai “passar” isto – como a nível de recepção, que
vem a ser a habilidade do artísta de sentir o público, o espaço e
as oscilações dinâmicas dos mesmos (COHEN, 2004: p. 105).
Um corpo que participa de um espetáculo teatral, enquanto um ato performativo,
está envolvido em um rito pelo fato de passar por mudanças. Como dito anteriormente,
tais mudanças não necessariamente se voltam para o sagrado; elas podem ocorrer no
âmbito corporal, onde a percepção e o movimento se afetam. Um espetáculo teatral tem
a potencialidade de re-arranjar uma série de informações. Admitindo-se que o Teatro é
um lugar onde o possível é freqüentemente testado – uma espécie de laboratório da (s)
realidade (s) – as informações que nele circulam têm o efeito de desestabilizar modelos
já dados pelo cotidiano.
Partindo do conceito da Teoria do Corpomídia (KATZ & GREINER, 2008), a
qual defende que o corpo é uma formação a partir das trocas de informação entre ele e o
ambiente, podemos entender que:
O corpo não é um meio por onde a informação simplesmente
passa, pois toda informação que chega entra em negociação
com as que já estão. O corpo é o resultado desses cruzamentos,
e não um lugar onde as informações são apenas abrigadas. […]
A mídia à qual o corpomídia se refere diz respeito ao processo
evolutivo de selecionar informações que vão constituindo o
corpo (KATZ & GREINER, 2008: p. 131).
Um corpo em um ambiente que oferece a desestabilização de sentidos está,
também, sendo desestabilizado. Suas apreensão é afetada; seu estado é alterado; suas
ações serão revistas.
Segundo Artaud, essa desestabilização dos sentidos é possível através de uma
linguagem sólida, material e física do palco, que desperte mais os sentidos do que
218
propriamente a razão, através de uma poética própria, onde os pensamentos que as
expressa estejam além (ou aquém) de uma linguagem articulada. Essa linguagem que
distingue o teatro da palavra consiste:
[...] em tudo o que ocupa a cena, em tudo aquilo que pode se
manifestar e exprimir materialmente numa cena, e que se dirige
antes de mais nada aos sentidos em vez de se dirigir em
primeiro lugar ao espírito, como a linguagem da palavra. […]
Essa linguagem feita para os sentidos deve antes de mais nada
tratar de satisfazê-los. Isso não impede de, em seguida,
desenvolver todas as suas conseqüências intelectuais em todos
os planos possíveis e em todas as direções. E isso permite a
substituição da poesia da linguagem por uma poesia no espaço
que se resolverá exatamente no domínio do que não pertence
estritamente às palavras (ARTAUD, p. 37).
A “poesia no espaço” se manifesta numa criação performática e ritualística, ao
utilizar-se de todo um arsenal de possibilidades de composição de um ato cênico.
Performace, neste sentido, não está ligada somente à representação, mas, também, à
ação:
Na medida em que se revelam capazes de aproveitar as
possibilidades físicas imediatas que a cena lhes oferece para
substituir as formas imobilizadas da arte por formas vivas e
ameaçadoras, através das quais o sentido da velha magia
cerimonial pode reencontrar, no plano do teatro, uma nova
realidade: na medida em que cedem àquilo que se poderia
chamar de tentação física da cena (ARTAUD, p. 38).
Espetáculo ritual, com isso, passa a ser um tempo-espaço para a performance do
corpo, com o corpo. Suas potencialidades para a transform(ação) permitem, deste
modo, que ele ultrapasse o mero entretenimento e seja cruel: com os sentidos
adormecidos; com as formas dadas; com as verdades pré-concebidas e com a própria
concepção de espetáculo.
Bibliografia
219
ARTAUD, Antonin. A encenação e a metafísica. O teatro e seu Duplo. São Paulo:
Editora Max Limonad, 1984, p. 31-48.
______. O teatro e a peste. O teatro e seu Duplo. São Paulo: Editora Max Limonad,
1984, p. 9-29.
COHEN, Renato. Da atuação: o performer, ritualizador do instante-presente.
Performance como linguagem: criação de um tempo-espaço de experimentação.
São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 93-111.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Comentários sobre a sociedade do
espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.
GREINER, Christine; KATZ, Helena. Por uma teoria do corpo mídia. In: GREINER,
Christine. O Corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume,
2008, p. 125-133.
SETENTA, Jussara Sobreira. Falas que se enunciam. Comunicação Performativa do
Corpo: o fazer-dizer da contemporaneidade. Tese (Doutorado em Comunicação
e Semiótica, Pontífica Universidade Católica), São Paulo, 2006, pp. 13-25.
QUILICI, Cassiano Sydow. Teatro e ação ritual. Antonin Artaud: teatro e ritual. São
Paulo: Annablume/Fapesp, 2004, p. 35-64.
220
As Bacantes e Teatro Oficina: a paródia e o
bakhitiniano, Maria Angélica Rodrigues de Sousa (Unicamp)
grotesco
Resumo: Capturar e esmiuçar o uso do grotesco e da paródia bakhtiniana na
montagem de As Bacantes, de Eurípides, pelo grupo paulistano Oficina, é uma das
principais propostas do trabalho aqui apresentado. Buscar-se-á articular as impressões
colhidas da experiência em campo – composta pela análise de ensaios, imagens e
apresentações – ao conceito de carnavalização de Bakhtin, assim como às problemáticas
teóricas da análise da performance e do teatro ritual. A intenção é ponderar sobre a
performance do grotesco na concepção montada pelo grupo, e articulá-las ao uso
antropológico destes conceitos, buscando esmiuçar a relação entre performance,
etnografia e teoria.
A nudez presente na obra será utilizada para pensar o corpo como lugar do
realismo grotesco, distinguindo o grotesco ambivalente, utilizado neste caso por
comportar também um sentido positivo que expressa a idéia de comunhão e
regeneração, do grotesco satírico, de função denegridora, como descrito por Bakhtin,
também presente na montagem. Ambos os tipos grotesco são tomados como reforços da
estilização paródica das falas e corpos dos atores do grupo. Em conclusão, o trabalho
pensa as paródias e formas carnavalescas bakhtinianas em diálogo com os conceitos de
liminaridade e liminóide de Victor Turner, por suas semelhanças no que se refere ao
estranhamento e a suspensão do fluxo normal da vida cotidiana e dos processos centrais
de produção simbólica.
Palavras-chave: teatro, ritual, performance, nudez, grotesco.
A participação do corpo num outro mundo possível,
a faculdade de compreensão do corpo adquire
uma importância capital para o grotesco.
(Bakhtin, 1999, p. 42)
Em A Cultura popular na Idade Média e no renascimento: o contexto de
François Rabelais, Mikhail Bakhtin observa a importância de se compreender a obra do
autor francês dentro do contexto ideológico em que foi produzida: o caráter cômico dos
escritos seria reflexo das críticas paródicas e ambivalentes produzidas em oposição ao
tom sério da cultura oficial do século XVI. Neste sentido, o riso rabelaisiano comporta
221
um sentido positivo, um estranhamento em relação à vida cotidiana com potencial
regenerador. É justamente neste sentido positivo que encontramos a descrição do corpo
no realismo grotesco, definido por Bakhtin como um sistema de imagens da cultura
popular cômica em que o princípio material e corporal aparece de forma exagerada,
festiva e utópica. O autor afirma que o termo estaria associado a três momentos
históricos principais: a idade média, o renascimento e o modernismo, mas por sua força
expressiva teria deixado marcas em diversos outros momentos.
O termo grotesco foi utilizado pela primeira vez para designar um tipo de arte
pictórica encontrada em grutas romanas no final do século XV,78 em que figuras
mesclavam corpos humanos, animais e vegetais ultrapassando as fronteiras dos “reinos
naturais”, “exprime-se a transmutação de certas formas em outras, no eterno
inacabamento da existência” (BAKHTIN, 1999, p. 28, grifos do autor). O uso do termo
alarga-se lentamente, passando a ser utilizado não apenas com referência a imagens
quiméricas, mas também a um estilo de representação caracterizado pelo pela sátira,
pelo hiperbolismo, pelo excesso e pela ênfase no baixo corporal.79
Na montagem do espetáculo As Bacantes, de Eurípedes, o grupo de teatro
paulistano Oficina produz sobre o texto grego de 405 a.C. uma versão hiperbólica, em
que personagens clássicas ganham tons grotescos e satíricos. Para além dos elementos
textuais que tomam aspectos da estética do grotesco, a montagem do Oficina adapta e
reforça, em uma linguagem que lhe é característica, críticas e apologias presentes na
obra. Para fins de análise, o foco das proposições aqui colocadas assentará sobre o uso
que o grupo faz do grotesco, negligenciando as contribuições legadas pelo texto. A peça
estreou em 2001 sob o subtítulo de Ópera Elektrocamdomblaika de Carnaval do Bexiga
Uma tragykomédyorgia. A concepção traz um pastiche de elementos estéticos diversos,
apresentando, sobretudo, a referência carnavalesca na montagem.
Pretende-se apontar aqui a maneira pela qual o grotesco participa no
rebaixamento das personagens, contribuindo assim para a caracterização paródica das
imagens, distinguindo entre os dois tipos de utilização do estilo grotesco na encenação:
o grotesco satírico, de função denegridora, do grotesco ambivalente com sentido
positivo, e assim demonstrar como corpo grotesco ganha força expressiva na montagem.
78
Em italiano grotta, donde a origem do termo grotesco.
“... orifícios, protuberâncias, ramificações e excrescências, tais como a boca aberta, os órgãos genitais,
seios, falo, barriga e nariz” (BAKHTIN, 1999, p. 23).
79
222
A concepção grotesca do corpo, destacada por Bakhtin como oposta a concepção
clássica de perfeição e acabamento, representa-o sem contornos definidos, em contato e
interpenetração com outros corpos; é ícone de um mundo inacabado, em transformação,
e representa simultaneamente a morte e o nascimento, o alimento e a excreção. Tem
valor positivo ao representar a capacidade de regeneração da vida. Este ideal aparece em
diversos momentos da montagem de As Bacantes, sobretudo na figura de Dionísio. Um
de seus figurinos mostra a mistura de touro e homem, sua roupa se assemelha
vestimenta travesti, figura recorrentemente evocada por Bakhtin: usa salto muito alto,
roupa bem justa ao corpo, tem um chicote em mãos e um orifício na roupa expõe
comicamente o falo do ator: “... o ventre e o falo, essas são as partes do corpo que
constituem o objeto predileto de um exagero positivo, de uma hiperbolização” (Bakhtin,
1999, p. 277). Nota-se que a apresentação de caráter cômico não tem apenas a intenção
de satirizar a exposição do falo, mas reafirmar seu caráter renovador e crítico: “Não ao
conservadorismo, ao falso-pudorismo e à cegueira!”,80 enuncia o site da peça. O
rebaixamento evoca o sentido terreno, o nascimento e a eterna continuidade cósmica e
histórica a qual este sentido atrela-se: é necessária uma idéia de comunhão com algo que
supere a própria existência para atribuir sentido ao devir, seja esta continuidade social,
histórica ou cósmica.
80
Disponível no site: <http://teatroficina.uol.com.br/posts/251#>.
223
Foto: Tommy Pietra
Observa-se que o recurso ao grotesco ambivalente é recorrente na montagem: o
coro das bacantes exibe as nádegas para Cadmo, o rei; a cena repete-se em outro
momento através da personagem Tirésias; o coro tem figurino que descobre seios,
nádegas e falo; há uma longa cena de parto em que Dionísio nasce da morte de sua mãe
ao ser passado para a coxa de Zeus;81 rebaixam-se as figuras de autoridade em sua
aproximação às necessidades corporais do homem; os reis são beijados na boca e
tocados em suas partes baixas. Para Bakhtin, este estado de inacabamento, de ligação às
necessidades corporais, toma o corpo como microcosmos do mundo, as partes baixas
rebaixam aquilo para qual são direcionadas ligando-as a terra, o baixo bakhtiniano tem
sentido topográfico.
A paródia de caráter puramente satírico aparece através dos representantes do
poder político e religioso: as filhas de Cadmo, tias de Dionísio que se recusam a
81
Episódio enunciado pelo mito, mas não descrito no texto de Eurípedes. A imagem é, portanto, evocada
pela montagem.
224
reconhecê-lo como deus, são caracterizadas como fanáticas religiosas que berram em
tom agudo exibindo suas bíblias e vestindo-se com extremo recato. A sátira à igreja,
guardadas as devidas proporções, era também alvo dos mais freqüentes na paródia
rabelaisiana. A peça também a satiriza a lógica de mercado: quando o texto original
pede o uso de vestes reais, os reis aparecem na montagem de terno e gravata, no caso de
Cadmo a indumentária é laranja, reforçando a ridicularização da personagem. Penteu é
um sósia de Barak Obama que carrega sacos de dinheiro enquanto de dólar flameja
como uma bandeira.
“De fato, o objetivo da sátira é atacar os males da sociedade,
(...) Por seu caráter denunciador, a sátira é essencialmente
paródica, pois se constrói através do rebaixamento de
personalidades (...), instituições e temas que, segundo as
convenções clássicas, deveriam ser tratados em estilo elevado.
Ou seja: a sátira ri de assuntos e pessoas "sérias", para
denunciar o que há de podre por trás da fachada nobre
impingida à sociedade” (NUTO, 2000).
Nota-se que a concepção proposta na montagem constrói um jogo de oscilações
entre rebaixamento e elevação que nos remetem ao conceito de carnavalização
bakhtiniano; o fato indica que a utilização destes recursos é ferramenta estética do grupo
em o sentido absolutamente crítico.
Para
Bakhtin,
Rabelais
foi
um
autor
bastante
apreciado
por
seus
contemporâneos, mas mal compreendido nos séculos posteriores. Este é o cerne das
críticas de Bakhtin aos autores o antecederam na análise de Rabelais: estes o teriam lido
à luz de padrões artísticos e literários não contemporâneos à produção e, portanto,
ineficazes à análise. É para justificar a importância da obra de Rabelais dentro de sue
tempo que Bakhtin atentará ao papel do riso na idade média. Ao aproximar ícones
formalmente elevados ao baixo corporal, atribuem-se a estas figuras novos sentidos
possíveis, valores ambíguos que fazem pensar sobre a possibilidade da construção de
um mundo diferente. O riso resulta do estranhamento, que no grotesco refere-se à
própria vida cotidiana vista sob a possibilidade de uma outra estrutura, em que os
homens podem se libertar das idéias dominantes do mundo:
[...] a forma do grotesco carnavalesco cumpre funções
semelhantes; ilumina a ousadia da invenção, permite associar
elementos heterogêneos, (...) ajuda a liberar-se do ponto de
vista dominante sobre o mundo, (...) permite olhar o universo
com novos olhos, compreender até que ponto é relativo tudo
que existe, e portanto permite compreender a possibilidade de
225
uma nova ordem totalmente diferente do mundo (BAKHTIN,
1999, p. 30).
O estranhamento da carnavalização descrita por Bakhtin e o estado limiar
apresentado por Victor Turner (1982) apresentam aproximações que merecem ser
destacadas. Ambos os autores atentam para o potencial reflexivo do estranhamento
surgido em uma esfera extra-cotidiana, em que as hierarquias e regras normais ficam
temporariamente suspensas; é neste momento que o simbólico encontra força
expressiva, reflexiva e portanto crítica. Segundo Turner, o teatro deve ser lido como
uma expressão estética de uma ação social que se dá de maneira ritualística. O autor
admite que as sociedades provocam em si mesmas, através da encenação, uma paralisia
com relação ao fluxo da vida cotidiana, uma pausa que gera estranhamento, uma
situação limiar que, como nos lembrará Dawsey (2005), muda o foco do lugar olhado
das coisas. Turner distinguirá na liminaridade os fenômenos liminares dos liminóides,
relacionando este último às sociedades cuja solidariedade reflete os efeitos da
Revolução Industrial. As produções teriam caráter individual no contexto de disputa de
bens simbólicos, podendo mesmo interferir na coletividade, mas dissociadas dos
processos centrais de produção. No geral, questionam o status social vigente, possuindo
conotação revolucionária. Os fenômenos liminares, por sua vez, surgiriam da
experiência coletiva.
Para o autor, a subjuntividade que caracteriza um estado performático, liminar,
surge como o efeito de um "espelho mágico" (Turner, 1987b, p. 22). Trata-se de um
tempo e espaço apropriados a associações lúdicas, fantásticas. Figuras alteradas, ou
mesmo grotescas, ganham preeminência. Abrem-se fendas no real, revelando o seu
inacabamento. [...] Assim, nos espaços liminares, se produz uma espécie de
conhecimento: um abalo (DAWSEY, 2006, grifo meu).
Bakhtin também nos alerta que a possibilidade de uma nova ordem surge como
mera experimentação, um estranhamento em relação à vida cotidiana com potencial
regenerador, através do qual a crítica social pode tornar-se mais nítida e tenaz.
Bibliografia
ALONSO, Aristides. O Grotesco: Transformação e Estranhamento. Comum. Rio de
Janeiro, v. 6, n. 16, p. 64-80, jan/jun. 2001.
Disponível em:
<http://www.facha.edu.br/publicacoes/comum/comum16/pdf/Ogrotesco.pdf>.
226
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto
de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade
de Brasília, 1999.
DAWSEY, John. Turner, Benjamin e Antropologia da Performance: O lugar olhado (e
ouvido) das coisas. Campos, v. 7, n. 2, 2006.
______. Victor Turner e Antropologia da Experiência. Cadernos de Campo, v. 13,
2005, p.110-121.
NUTO, João Vianney Cavalcanti. Grotesco e Paródia em Viva o Povo Brasileiro. In:
Revista Brasil de Literatura. Rio de Janeiro, p. 1-6, 2000. Disponível em:
<http://revistabrasil.org/revista/artigos/grotesco.html>. Acesso em: 25 jan. 2010.
TURNER, Victor. From Ritual to Theatre: the human seriousness of play. New York:
PAJ Publications, 1982.
Webgrafia
<http://teatroficina.uol.com.br/posts/251#>.
<http://www.alkania.com.br/biblioteca/As_Bacantes.pdf>.
<http://antropologia.org.br/colu/colu40.htm>.
227
Mais um ir e vir entre o teatro e a antropologia , Isabel Penoni
(MN/UFRJ)
Mestranda em Antropologia Social
Em Memory, reflexivity and belief, Carlo Severi faz uma distinção entre os tipos
de ficção que se estabelecem no teatro e no ritual. O presente trabalho é uma tentativa
de colocar em questão a hipótese do autor, ou, ao menos, de complexificá-la. Através de
uma breve incursão por exemplos da cena ficcional contemporânea, pretendo explorar a
idéia de que no teatro, tal como Severi postulou a respeito do ritual, o que está em jogo
é uma “enunciação complexa”. Especialmente quando se leva em conta que o “universo
de verdade” do ator – de memórias e associações pessoais – é fator inerente à sua
construção. Tal proposição me permitirá, por fim, formular certas perguntas, entre elas,
se a mobilização de um “universo íntimo de verdade” também faria algum sentido para
a construção de enunciadores rituais? De frente para essas questões, tentarei ainda
esboçar algumas respostas, baseando-me nos resultados do meu trabalho de campo,
realizado entre julho e agosto de 2009 na aldeia Kuikuro de Iptase (Alto Xingu, MT) –
período em que aconteceu nessa localidade o ritual do Jawari, prestigioso ritual intertribal xinguano.
Palavras-chave: ficção, complexidade, teatro e ritual.
Nos últimos parágrafos de “Memory, reflexivity and belief”, Carlo Severi sugere
que os contextos de comunicação e os tipos de ficção produzidos pelo ritual e pelo
teatro são radicalmente diferentes. A primeira diferença é, segundo Severi, de natureza
formal. Trata-se da maneira como num e noutro contexto se constrói a presença do
performer. Enquanto no ritual ele acumula uma série de identidades que não se
excluem, no teatro ele apenas transita por identidades mutuamente exclusivas. A
segunda diferença refere-se à natureza paradoxal do enunciador ritual. Para Severi, o
ritual é menos um espaço de crença e antes, de dúvida: a dúvida sobre a real identidade
do performer, sobre a sua natureza ordinária ou sobrenatural. No teatro, ao contrário,
não há dúvida sobre a identidade do ator, mas simplesmente: “As we enter the theatre,
we accept the kind of fiction which a performance of this kind implies” (Severi 2002:
38).
228
Todavia, basta voltarmo-nos para uns poucos exemplos da cena teatral ou
ficcional contemporânea para percebermos que tais diferenças devem ser, ao menos,
complexificadas. “Jogo de Cena”, o último documentário do diretor brasileiro Eduardo
Coutinho, sugere que a cena cinematográfica e teatral (ou que a criação de personagens
nesses contextos) é um jogo complexo onde a verdade e a ficção, menos se alternam e
mais se sobrepõem. No filme, o diretor borra a fronteira entre o real e o imaginário, a
ponto de o espectador não identificar se quem está na tela é a própria pessoa que viveu
as experiências que narra ou um ator; ou ainda, se é um ator que narra as suas próprias
experiências ou se elas são apenas experiências de um personagem que ele interpreta.
Se nos voltarmos para a cena teatral contemporânea propriamente dita,
encontramos o recém montado In On It, com direção de Enrique Diaz. Em nota, a
tradutora do texto afirma que:
“in on” alguma coisa quer dizer estar envolvido (...). Indica
uma espécie de envolvimento que sugere uma
responsabilidade, uma participação. A dramaturgia guarda isso,
esse trunfo, até o fim: não se trata apenas de contar uma
história que aconteceu com um personagem, mas de perceber o
que move o outro personagem [o ator] a contar essa história:
ele está totalmente ‘in on it’” (Ávila, 2009, online).
O espetáculo, da mesma forma que o filme de Coutinho, baseia-se em uma
intrincada rede de planos de interpretação, onde ora quem está em cena são personagens
de uma história, ora os atores que interpretam aqueles personagens. E estes últimos, por
sua vez, ainda se dividem entre momentos em que discutem, em diálogo com o público,
o processo de construção da peça e momentos em que encenam fragmentos do passado
de sua própria relação.
[...] o espetáculo, tal como posto, sugere aos menos
desavisados que é hora de desconfiar da representação em si.
[...] dois amantes, dois atores, vários personagens de uma peça
dentro da peça, um ensaio, uma apresentação em tempo real e
por aí vai. [...] ficamos a pensar, a cada momento, se o que está
ali é o drama dos atores, das personagens ou daqueles dois
homens, no palco, jogando com a nossa enraizada forma
aristotélica de lidar com a recepção (Marfuz, 2009, online).
229
Há efetivamente uma discussão sobre os limites entre a realidade e a ficção
animando a cena contemporânea brasileira, do teatro ao cinema, passando pela dança e
a performance. Trabalhar sobre as memórias, experências e motivações do ator parece
ser o caminho tomado para se discutir esteticamente se um dia seria possível construir
uma cena de ficção onde o ator não estivesse completamente “in on it”.
Cabe indagar em contrapartida: se num certo tipo de teatro a mobilização de um
universo pessoal do ator é a base para a construção da cena e seus personagens, pois se
parte do pressuposto de que o ator nunca é apenas um suporte oco de textos e marcações
alheios mas que sua “identidade” sempre adere a eles; e, ademais, que sem esse “suporte
de verdade” a composição toda perde o seu poder e o seu sentido; o que, então,
poderíamos dizer do ritual? A mobilização de um universo pessoal de verdade faz
algum sentido para a construção de enunciadores rituais? Quando, em geral, se fala das
formas, imagens ou ações rituais como instrumentos mnemônicos, está-se referindo
apenas a uma memória antiga, impessoal, de mitos ou narrativas tradicionais, ou
também a uma memória mais recente, quase autobiográfica?
Tomemos o exemplo de um ritual realizado entre os Kuikuro do Alto Xingu. O
Hagaka, mais conhecido como Jawari, é um ritual intertribal, feito em homenagem a um
morto ilustre, geralmente um mestre de canto, ou um arqueiro exemplar. Apresenta um
repertório cancional e também coreográfico extenso, executado ao longo de quinze dias,
dos quais apenas os dois últimos compreendem a fase intertribal da festa, quando a
aldeia anfitriã e uma convidada confrontam-se através de um jogo de dardos. Esse
confronto direto interaldeão é antecedido por um confronto mediado, sendo a mediação
feita por uma efígie antropomorfa, chamada kuge hutoho (“desenho de gente”). Essa
efígie protagoniza duas situações bem definidas dentro da rotina de ações rituais que
constitui o Hagaka. A primeira situação refere-se a uma sequência músico-coreográfica
específica, durante a qual os performers atiram e dirigem contra ela flechas e
xingamentos. Contudo, embora esses ataques físicos e verbais sejam dirigidos a efígie,
eles estão endereçados nominalmente a um outro destinatário: um “primo”, identificado
entre os membros da aldeia adversária. A segunda situação, refere-se, por sua vez, a
cremação da efígie, quando os parentes do morto desempenham, em torno dela, um
choro cerimonial. Depois disso, diz-se que a alma do defunto dirigir-se-á,
definitivamente, para a “aldeia dos mortos”.
230
Ora o (duplo do) “primo”, ora o (duplo do) morto. As diferentes identidades
atribuídas ritualmente ao kuge hutoho acabam por definir pelo menos dois diferentes
eixos de relações, ambos indexados a – ou condensados na figura de – um mesmo
“personagem ritual”. Se o que caracteriza o contexto ritual é, conforme propõe Severi
(1998, 2006), a associação de modos de relações que no contexto cotidiano são
mutuamente exclusivos, então, no caso do Hagaka, essa associação se dá através do
kuge hutoho, na medida em que ele é construído como um “personagem” plural e
complexo, acumulando em si identidades heterogêneas, para não dizer contraditórias.
Ao cumprirem com a etiqueta ritual, que em um dos casos consiste em
identificar a efígie com um “primo” e, no outro, identificá-la com o morto, os
participantes recriam no contexto ritual, relações experienciadas no contexto cotidiano –
levando em consideração que, no segundo caso, os participantes envolvidos são os
próprios parentes do morto. Por mais que essas relações recriadas constituam uma
ficção – no caso do Hagaka, porque são mediadas por um “boneco” – elas não deixam
de acionar todo um universo pessoal implicado na experiência dessas relações no
contexto cotidiano.
Segundo o que pude observar durante a execução do Hagaka realizado em julho
de 2009 na aldeia Kuikuro de Ipatse, enquanto a efígie era queimada, os parentes do
morto foram acometidos pelo pranto e também por lembranças, visões e um sentimento
de saudade. Referindo-se a esse momento do ritual, uma das filhas do morto
homenageado disse-me em entrevista: “Eu me emocionei muito e comecei a passar mal.
Eu estava chorando lembrando do seu avô. (...) Foi o meu choro que me fez passar mal
e também a minha saudade”.
Por outro lado, durante a sequência de ataques físicos e verbais à efígie, toda a
carga emotiva experienciada cotidianamente na relação entre “primos cruzados”,
expressava-se na agressividade dos golpes e no tom jocoso dos insultos dirigidos contra
ela. Os impropérios, endereçados, cada um a um “primo” diferente, constituíam, em
alguns casos, mensagens ou comentários muito pessoais, que refletiam intrigas e
rivalidades particulares. Elaborados especialmente para a ocasião, esses ataques verbais
representavam uma oportunidade para o sujeito noticiar experiências recentes, cobrar
dívidas antigas ou expressar desejos comumente reprimidos, ainda que sempre em tom
de provocação. Ao executar o seu impropério cada participante falava como uma pessoa
singular.
231
As duas situações protagonizadas pela efígie antropomorfa do Hagaka mostram,
pois, que objetos-personagens complexos podem mobilizar, não apenas a memória
coletiva de uma determinada tradição, mas também memórias íntimas e biográficas,
relativas à experiência subjetiva e cotidiana dos indivíduos.
Fausto, referindo-se às atividades rituais desencadeadas por um eclipse lunar
ocorrido em 2003 na aldeia de Ipatse, sugere que a cateoria ontológica itseke
(“espírito”) funciona como um índice do contexto extraordinário do ritual. Segundo o
autor, entre os Kuikuro essa categoria é acionada:
[...] sempre que se quer indicar que a ontologia ordinária e
intuitiva do cotidiano deve ser suspensa e substituída por outra,
de caráter transformacional. Temos aqui um ‘efeito de
colchete’: aquilo que era o background passa a foreground – o
mundo transformacional, condição primeira do cosmos, se
reatualiza e o mundo do cotidiano recolhe-se ao segundo plano
(Fausto, 2009a, p. 5).
Ainda que o Hagaka de 2009 não correspondesse a um ritual de “espírito”, como
aqueles aos quais Fausto se refere, um “mundo transformacional” também estava em
jogo no período de sua execução, onde homens metamorfoseavam-se temporariamente
em pássaros e jaguares, e um objeto convertia-se alternadamente em um morto e em
uma série de “primos”. Contudo, não me parece que esse mundo transformacional tenha
substituído por completo o mundo cotidiano. Em certos momentos, eles misturavam-se
em plena ação ritual, expressando apenas diferentes níveis ontológicos operando na
construção de uma mesma ficção, a ritual. Olhar para um e/ou para outro talvez reflita,
mais do que uma determinação contextual, uma perspectiva de análise.
Bibliografia
ÁVILA, Daniele. Disponível em: <http://inonit.wordpress.com/2009/04/27/nota-da-tradutora-1/>.
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prelo).
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233
SESSÃO 5: PERFORMANCE E(M) ESPAÇO URBANO
Estado Pirata: cotidiano e suspensão na prática de performances
na rua, Maicyra Leão (UFBA/UFS)
Doutoranda e professora
maicyraleao@g mail.com
Resumo: A partir da compreensão da Rua como ambiente público capaz de
promover encontros de sutilezas e sinceridades, o texto elege a performance como
mediador artístico que viabiliza sensorialmente a afetação de subjectos e sujeitos
sociais, super-orientados esteticamente, que tornam-se autores de fatos e atos capazes de
“roubá-los” de sua dimensão cotidiana.
O texto aborda ainda a questão da constituição do espaço, a partir das fronteiras
e limites com seu entorno, buscando compreender como se configura o espaço da rua e
como este se relaciona com o acontecimento efêmero da performance. Para tanto,
partindo de investidas práticas, busca apontar alguns aspectos relevantes do
acontecimento performático e a forma como esse se molda e é permeado pelo
transeunte/habitante, que compõe o espaço público.
Como ações norteadoras, apresentarei imagens e relatos de ações performáticas
como “Experimentos Gramíneos”, “Zona de Confronto”, “Paulistanos” e “Cama”.
Palavras-chave: espaço público, corpo, performance na rua.
A condição-corpo82 têm-se apresentado nas últimas décadas como fator
determinante para a compreensão dos processos artísticos. Ela deixou de existir como
suporte central apenas da dança e das artes cênicas para invadir a atenção da produção
nas artes visuais e da elaboração do conhecimento na filosofia contemporânea83. O
corpo passou a ser encarado, não mais como instrumento da arte, mas como agente da
constituição subjetiva, uma máquina de desejo que se tornou condição inevitável para o
movimento, seja ele em relação à criação quanto ao próprio deslocamento.
82
Optei pela utilização dessa palavra-conjugada para ressaltar a noção de corpo, não apenas como
materialidade ou subjetividade histórica, mas pela circunstância do instante e do estado presente, ao
referir-se ao corpo em ação.
83
Ver Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari, Friedrich Nietzsche, entre outros.
234
Para ganhar a fluidez necessária a uma manifestação que visite essas várias
disciplinas, a performance se apresenta então como opção estética que consegue
abranger patamares de compreensão do corpo em sua subjetividade, contribuindo
também para a consolidação da intervenção urbana enquanto artifício de apropriação do
espaço público por meio de seus próprios transeuntes anônimos.
Enquanto instâncias e categorias sociais, os espaços público e privado por sua
vez podem ser entendidos como mera entidades administrativas que são
convencionalmente respeitadas pela sociedade. Nesse sentido, três critérios orientam a
denominação da convenção: propriedade, a questão do acesso e da circulação. Apesar
de critérios claros e objetivos, a vivência cotidiana nesses espaços indicam as
contradições que eles apresentam, sendo necessário denominar um espaço como sendo,
por exemplo, “privado, mas de uso público”. Nesse sentido:
As cidades contemporâneas têm experimentado um intenso
processo de privatização do espaço público, seja através de
mecanismos perversos de combinação de investimentos
públicos para beneficiar o desenvolvimento de projetos
imobiliários privados, seja através de barreiras concretas que
impedem o acesso igualitário de todos, seja com cabines de
segurança privatizando ruas, praças muradas e trancadas,
condomínios fechados, cercamento de áreas públicas, seja
através da cobrança de taxas tributárias exorbitantes, em áreas
urbanas com melhor qualidade de vida (VELOSO, 2004: 349).
Como nos apresenta a antropóloga Mariza Veloso, pela dificuldade de encontrar
a clareza nesse tipo de formulação, encontramos uma série de brechas na forma de
tratamento social a algumas questões, tendendo a nos distanciar da lembrança de que,
no espaço público, de uso público, quem determina o caráter do uso, afinal, são os
usuários, que de uma forma geral não se consideram iniciativa ativa do processo.
A performance na rua, portanto, interfere diretamente nessa relação já que ela
lida com a idéia de improviso e acontecimento presente, exigindo um envolvimento
direto e ativo de quem compartilha o momento da ação. Por vezes, a interação e a
participação do público direcionam a realização da ação, assim a performance se
apresenta como uma “presentação”84, fazendo com que o performer, agente-estímulo da
performance, reivindica seu corpo como espaço mutante para a convivência de reações.
84
Termo criado por Maria Beatriz de Medeiros utilizado em sala de aula e em conversas pessoais.
235
O corpo é o espaço do desejo (LYOTARD, 1990).
Apoiando-nos em algumas iniciativas artísticas que ocorreram no Brasil, neste
início de século, apresentarei descritivamente algumas performances na rua que indicam
a forma através da qual a performance tem contribuído para a relação corpo-sujeitocidade.
Shima - Zona de Conforto / Zona de Confronto
Márcio Shima, Zona de Confronto, Performance, 2007.
236
Márcio Shima é de São Paulo e essa performance, com duração de
aproximadamente trinta minutos, foi criada acerca de suas reflexões sobre público e
privado.
Com fitas plásticas zebradas de isolamento, vestido em um terno preto com
gravata, óculos, relógio e uma maleta; ele seleciona em vias públicas de grande
circulação, dois ou três pilares, como árvores, colunas, postes, etc., onde dá várias voltas
aleatórias com essa fita envolvendo estes, criando assim paredes e uma estrutura capaz
de sustentar uma pessoa de aproximadamente 70kg, o que ele chama de zona de
conforto/ zona de confronto.
Ele penetra então no espaço interior dessa estrutura onde inicia uma série de
ações que podem ser desde um simplesmente olhar as horas no relógio a urinar e
masturbar-se, observando o público através das paredes, e depois começa a interagir
mais incisivamente com essas paredes, pendurando-se, sentando-se e executando vários
movimentos possíveis com essa estrutura, até que ele começa a enrolar-se nela e a
rasgá-las, arrancá-las e recolhê-las para si, envolvendo-se e embolando-se nelas até que
fiquem todas soltas novamente. Assim, todo enrolado com a fita, ele segue seu caminho
normalmente como se nada tivesse acontecido.
GIA (Grupo de Interferência Ambiental) - Cama
237
Grupo de Interferência Ambiental (GIA), Cama, Performance, 2006
Assim como em muitos happenings do Grupo Fluxus, que levavam para as ruas
da cidade atividades cotidianas e simples, desmistificando a arte e aproximando-a da
vida comum, especificamente no happening em que Allan Kaprow executou, ao
instaurar uma seção escovando seus dentes no centro da cidade, o Grupo de
238
Interferência Ambiental – GIA, de Salvador- BA, leva para a rua uma atividade também
cotidiana e residencial porém com uma leitura atualizada e recontextualizada,
relacionando a realidade de exclusão social brasileira ao levar para a rua uma cama onde
um integrante do grupo deitou como se estivesse se recolhido em seu lar para dormir.
Esse ambiente, a princípio inóspito, toma um caráter íntimo que ao mesmo
tempo em que nos desloca nas possibilidades de uso do espaço público nos remete a
situação dos moradores de rua. Com essa idéia e proposta simples, executada em 2006,
no Farol da Barra em Salvador e no cruzamento da Avenida Paulista com a Consolação
em São Paulo, levantam diversos questionamentos, também mencionados anteriormente
aqui no trabalho do Shima, sobre o público e o privado, mas também remetendo-nos a
questão habitacional nos grandes centros urbanos.
Maira Vaz Valente - Paulistanos: ação03_ espaços de contemplação
239
Maíra Vaz Valente, Paulistanos: ação03 , Performance, 2006.
Motivada por um poema de Charles Baudelaire intitulado A uma passante,
Maira Vaz Valente, de São Paulo, propôs essa ação como uma outra forma de habitar e
olhar a cidade. Criou, então esse encontro entre o sujeito e seu habitat urbano.
Paulistanos: ação03_ espaços de contemplação foi feita no dia 19 de outubro de
2007. Na ocasião, ela alugou cadeiras brancas de ferro para que os participantes se
sentassem com elas na faixa de pedestre enquanto o sinal estava fechado e, assim
contemplar a faixa com seus carros quase estacionados de frente para ela ou o fluxo de
transeuntes propondo assim outras formas de estar na cidade e outro ponto de vista para
o olhar nela.
Maicyra Leão – Experimentos Gramíneos
Maicyra Leão, Experimentos Gramíneos, Performance, 2006.
240
Experimentos Gramíneos surgiu através de uma investigação de linguagem,
processo de pesquisa do Mestrado em Arte Contemporânea, na Universidade de
Brasília, concluído em 2008. Já foi realizado no centro da cidade do Rio de Janeiro em
março de 2006, no centro da cidade do Recife, em setembro de 2006, e em Buenos
Aires- Argentina, em junho de 2007.
De forma sucinta, vestida com uma roupa construída a partir de pedaços de
grama artificial, a performer coloca-se deitada, camuflada, num pequeno gramado
próximo a uma área de circulação intensa de pessoas. Em seguida, desloca-se pelas ruas
desenvolvendo a ação, regando a passagem, e potencializando a interação com o público
passante, sem utilização da voz. A performance tem duração e trajetos variáveis, com
uma média de 3 horas.
A performance como ação de intervenção urbana
Definir um espaço exige contraste com seu entorno. Exige conhecer as
diferenças de potenciais que perpassam a fronteira do limite de seu espaço.
Compreender o íntimo e o interior é também compreender os muros, as cercas e as
bordas que o delimitam.
A casa está cercada de rua por todos os lados.
Na rua, há desconhecidos que se cruzam. De acordo com o antropólogo Roberto
DaMatta, “na rua não há, teoricamente, nem amor, nem consideração, nem respeito,
nem amizade. É local perigoso.” (1986: 29) Qualquer manifestação afetuosa remete a
uma intimidade que freia o tempo rápido e corriqueiro da permanência na rua. Ela é
risco porque embora, na supermodernidade defendida por Marc Augé (1994) os lugares
tenham se imbuído de aspectos reguladores e padronizados, as ruas são constituídas e
coloridas por uma coletividade que não permitiu anular a sinceridade realçadora do
singular.
Ela é também passagem ou morada nômade. É local de transição, transeuntes
temporários. Circulação arbitrária movida por razões imensuráveis. Fluxo.
A rua, espaço aberto onde supostamente encontra-se o heterogêneo de vontades,
comporta sutilezas veladas que aguardam a eclosão de suas singularidades, em potência.
Realizar uma performance na rua é transitar por imaginários inesperados e fazer eclodir
essas singularidades diacrônicas. Para quem vivencia as reações dessas ações
241
performáticas passa a compreender que não temos controle do que pode se passar com
esses sujeitos. Como podemos perceber no relato da crítica e curadora Clarissa Diniz, de
Recife, a respeito de sua performance na rua Afora,
A minha performance, por exemplo, pouco (ou quase nada) foi
entendida como arte por aqueles que a presenciaram. Ao invés
de ser considerada artista, fui aclamada como louca, como
pagadora de promessas ou como alguém sem identidade (“O
que é isso?”, “Que danado é isso?”, “O que é que ela tá
fazendo?”, “Pra onde ela vai?”), uma vez que não havia
quaisquer tipos de legenda em minha ação (as pessoas que
discretamente me acompanhavam não “explicavam” o que
estava acontecendo e eu, apesar de muitas vezes abordada,
permanecia em silêncio). (DINIZ, Afora. Texto enviado para email pessoal).
Reações como essas são observadas em várias das ações relatadas acima,
evidenciando a atitude ética dessa prática que tenta “fazer de forma que uma
experiência do sensível seja possível para aqueles que o marketing condiciona
esteticamente”, e isso “torna-se uma prioridade e uma responsabilidade”, como afirma o
filósofo Bernard Stiegler (2007: 54).
Assim, agir e provocar na rua é abrir frestas que desrespeitam a maneira habitual
de comportar-se diante de desconhecidos. È promover um estado pirata em que somos
roubados de nossa dimensão cotidiana, performer e transeuntes. É mostrar-se e invadirse permitindo rearranjar a subjetividade simbólica. É uma reação desencadeada por uma
simples ação estética que permite que aqueles passantes experimentem a insensatez de
não-saber, de não-reconhecer, de buscar uma razão onde a sensação impera como
perturbação e afetação.
A obra de arte só existe na medida em que ela afeta aquele para
quem ela faz obra, isto é, aquele em que ela abre porque é isso
que quer dizer obra, isto é, opera: trabalho, mas também
abertura: isso abre, isso opera (STIEGLER, 2007: 55).
Ao mesmo tempo, estar na rua é estar entre muitos e suas muitas vontades e
atenções e, enquanto Stiegler afirma que “para olhar (regarder) é preciso estar
disponível” (2007: 45), na rua é preciso conquistar essa disponibilidade.
Estamos correndo num espaço-mundo onde o tempo desce a ladeira em
descontrole de velocidade, enquanto isso, o deslocamento digital nos permite cruzar a
242
fronteira do particular, envolvido por paredes que têm ouvidos, e a concretude do
espaço da rua, toque e contato sem a intimidade do desejo, assume uma aridez de
contraponto ao acético de solidões em frente ao computador.
O exercício de “estar” na rua, onde os simples e outrora passantes assumem o
protagonismo de um experimento estético, é devolver ao sujeito o poder de reconhecerse como singular e frear seu anseio vertiginoso pela velocidade cotidiana.
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Pós-graduação em Arte da Universidade de Brasília, v. 1, 2004.
243
Pode o tempo ter lugar no corpo do performer? , Gilberto Icle
(UFRGS)
Doutor em Educação
[email protected]
Resumo: Este trabalho procura evidenciar, por intermédio dos Estudos da
Presença, como o tempo se materializa, se corporifica, no trabalho do performer. Para
tanto, descreve-se o trabalho de criação do grupo gaúcho Usina do Trabalho do Ator em
suas produções de teatro de rua. São discutidas três dimensões distintas e solidárias de
tempo: 1) um illud tempus, tempo originário das narrativas populares, donde provém
imagens e figuras para a criação; 2) um tempo poiético, no qual o trabalho meticuloso
faz uma articulação entre tempo e espaço, corporificando a experiência do performer de
maneira coletiva; e, 3) um tempo corporificado, dimensão na qual tempo e espaço se
confundem, tranbordando a ideia de tempo como mera duração. Assim, torna-se visível
a experiência da presença, como dimensão e efeito do trabalho artesanal de contornar,
burlar os significados, circunscrevendo no corpo do performer e do público um tempopresença. O trabalho toma como aporte teorizações diversas dentre as quais Foucault,
Gumbrecht, Schechner.
Palavras-chave: performance, teatro, presença, tempo, criação teatral
O objetivo deste trabalho é mostrar o tempo como experiência da presença e,
dessa forma, propor a ideia de um tempo que se corporifica, que se torna corpo no
trabalho do performer. Para levar ao cabo esse intento, vou descrever dimensões
distintas, mas solidárias, do tempo: 1) o tempo como origem da criação, illud tempus; 2)
o tempo como processo da criação, tempo poiético; 3) o tempo como presença, o tempo
materializado no corpo do performer.
A primeira dimensão de tempo eu chamo de illud tempus e ela tem relação com
a origem no sentido cunhado por Walter Benjamin (Pereira, 2007; Benjamin, 1984).
Como lócus original e originário da narrativa, o illud tempus é sempre para a minha
criação um tempo-espaço mítico que guarda algo de sagrado e, por isso mesmo, donde
brota uma potência imagética, simbólica e poética. Assim, os espetáculos em que atuo
ou dirijo junto ao grupo gaúcho Usina do Trabalho do Ator – UTA, originaram-se de
um illud tempus encontrado em lendas e narrativas populares anônimas, recolhidas por
244
autores ou assinadas, mas que carregam em si a marca de uma certa ingenuidade, de um
traço quase infantil, em relação à cultura chamada erudita, assim caracterizadas por
força de se manterem à margem do que comumente chamamos cultura de massa.
Esse espaço-tempo, aqui denominado illud tempus, conforma uma materialidade
discursiva precisa (Foucault, 2005). Trata-se de relatos coletados por alguns autores,
histórias ouvidas de pais e avós, costumes híbridos herdados de distintos modos e
histórias e lendas publicadas na literatura sul-brasileira.
Aqui temos um tempo idealizado, localizado num passado remoto. Esse tempo é
espaço de potência. O illud tempus conserva a potência do ato criativo, mas o trabalho
artesanal de direção e de atuação cênica não pode se materializar apenas a partir desse
espaço-tempo. É por isso que o illud tempus é tão somente um ponto difuso de início.
Ele não é o início do discurso que ele origina, mas é início do qual provém o motif para
a criação de nossos espetáculos.
O tempo do qual se originam nossos espetáculos é um tempo ficcional, mas não
inventado pelos artistas da cena, ele nos precede como origem, como dimensão dispersa
de produções infinitas de significados e presenças. Tais significados – para não cair na
armadilha da vontade de interpretação – são tomados como mote para a sua
presentificação, mas, sobretudo, para a produção de um segundo tempo, o tempo
poiético.
Se o illud tempus é para nossos espetáculos a origem, o salto original por
intermédio do qual começamos nosso trabalho, ele é também condição de possibilidade
para o que chamo de tempo poiético, o tempo-espaço do processo, da criação artesanal
na qual laboramos minuciosamente com os elementos que paulatinamente se
configuram em formas teatrais.
Esse tempo poiético é um tempo suspenso, pois não se trata do tempo
cronológico, tampouco de um estágio de desenvolvimento, ainda que todo processo
tenha certa medida de tempo cronológico. No entanto, esse tempo poiético não se
resume à preparação dos atores ou do espetáculo, porquanto ele permaneça agindo
depois da estreia e durante a vida do espetáculo, mesmo na estrada, em turnê, quando
realizamos uma temporada num teatro, esse tempo nos acompanha como dimensão
criativa do e no nosso cotidiano de trabalho, mesmo que ele esteja mais explicito nos
longos meses nos quais criamos a primeira (mas não última) forma de nossos
espetáculos.
245
Ao burlar a interpretação ordinária, na qual o ator parte do estudo de uma
figura/personagem para aduzir um comportamento em direção à criação de obstáculos
que impeçam a utilização de clichês, burla-se os significados primeiros, as
interpretações superficiais. Em nossos espetáculos, um esforço de adaptação entre
materiais improvisados apenas com os usos do corpo e materiais semânticos
provenientes das narrativas populares é levado ao cabo para reconstruir os sentidos e
configurar a cena, trata-se, portanto, de uma espécie de comportamento restaurado
(Schchener, 2008).
Esse tipo de procedimento de burla implica um tempo específico, aqui chamado
de poiético: tempo de conduta, de normatização e de repetição. Mas é também tempo de
diminuir a distância entre potência e ato, entre vontade e ação. O tempo poiético é para
nós um tempo de profanação (Agamben, 2007), pois é o momento de intervenção da
ética, a tomada de consciência da conduta criadora em prol de uma obra que emerge
dessa própria conduta. Profanar é, com efeito, tornar algo exclusivo, restrito, de uso
comum, coletivo, partilhado. Fazer-se presente não é uma operação inocente de
presentificar um tempo qualquer, é uma postura política, uma ação potente para quem
faz e para quem participa do ritual da partilha, desse partilhar o sensível tal como nos
ensinou Rancière (2005).
Por fim, a terceira dimensão de tempo aqui abordada não é apenas o resultado do
illud tempus no tempo poiético, mas uma dimensão complexa que se converte em
presença: o tempo presentificado no corpo.
Tem o tempo um lugar? Pode o tempo ser corpo? De que modo o tempo se
materializa, então na cena? De que maneira o tempo pode ser identificável no processo
de criação ou na performance? Trata-se de uma duração determinada ou um espaço
temporal multiforme?
Se a presença é uma espacialidade, como nos ensinou Gumbrecht (1993, 1998,
2004), a cena é tempo no espaço. Corpos vincados pelo tempo de trabalho, pelo tempo
originário, pela narrativa. No entanto, o que nos toca na cena não é a narrativa, não é a
linguagem. O que nos toca é a presença de um corpo potente, a encarnação de um tempo
feito espaço. Assim, os significados atuam apenas como o suporte por intermédio do
qual atingimos e somos atingidos pelo tempo da cena. Nos nossos espetáculos,
procuramos guiar o espectador por uma narrativa quase infantil, quase ingênua. Não é
ela apenas que presentificamos. O que está em jogo é o tempo para além da duração.
246
Em cinquenta minutos ou uma hora contamos uma história e fazemos ver, colocamos
em evidência um tempo. A experiência mais significativa como ator em relação a essas
questões, no meu entendimento, pode ser expressa na sensação de relação com o
público. O significado, a narrativa, a história, funciona como um elo de ligação, como
isca para tomar a atenção do público, mas essa isca é sempre a mesma, não mudamos de
história a cada apresentação do espetáculo. O que muda a cada apresentação e a cada
instante mesmo da experiência de se dar a ver é a relação que se estabelece entre aquele
que se oferece como corpo apresentável (ator) e aquele que o acolhe como um corpo
receptivo (público). Essa experiência - a da sensação de ter ou não uma ligação com o
Outro da cena – é que me permite pensar que esse tempo é um tempo corporificado que
se converte nessa espacialidade da cena. Percebo essa relação não como um tempo
cronológico, mas como um tempo material, um acontecimento que se desloca do tempo
cronológico.
Quando o tempo se faz corpo na ação, o que essa ação faz é transgredir o tempo
cronológico, seja na narrativa, com seus saltos e peripécias, seja na presença potente de
um corpo que requer a atenção descomprometida do público. A presença toma uma
forma renovada a cada instante pela relação com a plateia. No entanto, o que nos
encanta como espectadores, não é tanto a função narrativa, mas sua materialidade, a
corporificação de um ente abstrato, que está aí, ao mesmo tempo da suspensão do
tempo cronológico e abstrato com o qual acostumamos a viver.
Presentificar o tempo no corpo é mais do que reproduzir o tempo-ritmo da ação
para simular um personagem, para insinuar uma cena, para fazer o público lembrar um
conflito. Presentificar o tempo é criar um corpo do qual emana uma intensidade e na
qual reside um labor.
Da poiética – de nosso processo de fazer teatro, de criar formas, desse tempo de
angústias que é a criação, desse espaço de incertezas que é o fazer teatral, desse tempo
que nos consome de forma coletiva – é que provém o experimentar o tempo
corporificado, rasgado, inscrito em nós mesmos, entranhado num corpo performer:
tempo corporificado na ranhura da pele, na textura da carne, na elasticidade dos
músculos, na dureza dos ossos.
As artes da cena, as artes do corpo, as artes do espetáculo vivo, utilizam uma
forma que acontece no tempo. Não é noutro senão no tempo que ocorre a espacialização
da experiência da presença. Não é senão no tempo que se conforma as artes da
247
performance. E não é senão na extinção do tempo que o espetáculo vivo deixa de
existir.
Sustentar o tempo no corpo, presentificar a experiência viva, fazer emergir um
tempo subjetivo, retomar a experiência e torná-la presente: haverá tarefa mais difícil e
sensação mais agradável do que essa, para nós que costuramos com o fio de Ariadne, o
tempo no corpo?
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248
SESSÃO 6: IMAGEM, PERFORMANCE E EXPERIÊNCIA
O Espelho do Outro: o cinema, o espectador e as relações de
alteridade na Trilogia das Cores de Krzysztof Kieślowski , Bruna Nunes
da Costa Triana (UEL)
Graduanda em Ciências Sociais
[email protected]
Resumo: Partindo da observação de Geertz de que a arte é um componente
essencial da vida, e adotando o cinema como campo de pesquisa, passível de
observação e interpretação, o objetivo deste trabalho é analisar a especificidade da
relação entre cinema e sociedade, pensando os filmes como produtos culturais que
criam, constroem e fazem circular representações, traços culturais e valores. Para isso,
pressupomos, como Souriau, que as imagens projetadas acompanham o espectador
mesmo depois que o filme acaba, marcando-o em lembranças e modelando seu
comportamento, seus gestos e suas idéias. Deste modo, tomando o cinema, sobretudo,
como uma arte do espetáculo, buscamos refletir acerca do alcance global das imagens
cinematográficas, seus mecanismos de produção, circulação e consumo como
mercadorias visuais; preocupando-nos, como Walter Benjamin, com a experiência, com
a arte de contar e de transmitir conhecimentos, uma vez que os filmes se transformaram
nos grandes veículos de construção e divulgação de imaginários, conceitos, valores e
significados. Portanto, nossa abordagem privilegia a Antropologia para analisar a
experiência cinematográfica, tentando perceber, como o fez Morin, de que forma o
cinema, e em particular os três filmes da Trilogia das Cores de Krzystof Kieślowski,
através dos processos de projeção-identificação dos espectadores com as imagens, narra
e constrói a imagem do Outro e, ainda, quais as relações de alteridade que ele engendra
com o Outro e com o mundo.
Palavras-chave: antropologia visual; cinema; alteridade; kieślowski; Trilogia
das Cores.
A arte, como atenta Geertz (1997), é um elemento essencial da vida social, já
que ela denota e divulga modos de se pensar a vida. Os sentimentos que um povo tem
pela vida surgem e são transmitidos na moral, no direito, na ciência e, sobretudo, na
249
arte. Dessa forma, a expressão artística deve ser entendida como um sistema cultural,
assim como a religião e o parentesco, que igualmente revelam maneiras de estar no
mundo e que estão incorporadas nas atitudes e formas de expressões sociais. Em vista
disso, percebemos a preocupação desse autor em advertir que uma expressão artística é
conseqüência de uma sensibilidade coletiva, formada na totalidade da vida social; isso
nos faz compreender que a ligação entre arte e vida não se dá no plano instrumental,
mas sim no plano semiótico.
Partindo desta abordagem semiótica da arte proposta por Geertz, entendemos
que ela não é um mero reflexo da vida, mas uma maneira de se pensar sobre esta; isto é,
as representações artísticas oferecem modos de experimentar a realidade e materializar
preocupações recorrentes da vida. A arte, assim, é uma fala da sociedade sobre a própria
sociedade, uma vez que é capaz de sintetizar experiências coletivas e cotidianas. As
expressões artísticas fazem sentido, deste modo, porque se relacionam com uma
sensibilidade coletiva da qual fazem parte e que ajudaram a criar. Dentro deste contexto,
consideramos o cinema como campo de pesquisa, passível de observação e
interpretação, e procuramos analisar a especificidade da relação entre cinema e
sociedade:
Os chamados filme de ficção [...] [são] documentários
preciosos sobre nosso imaginário, sobre nossos valores e
aspirações. Como antropólogos e cientistas sociais, interessanos o cinema como campo de expressão imagética de valores,
categorias e contradições de nossa realidade social (CAIUBYNOVAES, 2009, p. 53).
Nesta perspectiva, o cinema, como um produto cultural, é resultado de um
trabalho de equipe em que várias sensibilidades individuais, vários olhares, se unem
para realizá-lo; e, ainda, é direcionado para um público determinado, que é capaz de
interpretar e compreender seus significados. Aqui, cremos que todo filme é uma ficção
– isto é, algo inventado, criado –, e que sua relação com a vida social é que ele penetra e
é produto de uma experiência coletiva que o transcende. Deste modo, entendemos que o
cinema pode ser uma maneira profícua para se pensar questões presentes nas análises
antropológicas, como a alteridade:
O fato de uma obra ser uma obra de ficção tanto aos olhos de
seu autor quanto aos olhos do público não a define
250
necessariamente como alheia ou oposta ao real, não só porque
este constitui, sob diversos aspectos, sua matéria-prima, mas
porque, em torno e a propósito da obra, podem nascer
fenômenos sociais coletivos (AUGÉ, 1998, p.105).
Logo, o filme é uma experiência capaz de invocar sentidos e construções sociais,
pois desenvolve uma questão acerca da vida, um ponto de vista de como estar e se
relacionar no mundo e, portanto, desvenda e reflete os sentidos, as representações, as
memórias e as experiências pessoais de cada um; isto porque, como sugere CaiubyNovaes (2008, p.464), através de metáforas e sinestesias, as imagens envolvem a
imaginação do espectador, favorecendo a identificação com as imagens do écran. Da
mesma forma, como observou Jameson (1995, p. 1), os “filmes são uma experiência
física e, como tal, são lembrados e armazenados em sinapses corpóreas que escapam à
mente racional”. Segundo este autor, o cinema é um vício que deixa marcas no corpo e
que, como uma atividade tão profundamente assinalada em nosso cotidiano e em nossos
corpos, seu estudo não pode ser restrito a uma disciplina especializada.
É justamente essa a preocupação da Antropologia com o outro, com a alteridade,
que nos incentiva a abordar o cinema como campo desta pesquisa. Como Shohat e Stam
(2006, p. 19) atentam, devemos ter consciência do legado eurocêntrico que constituiu e
ainda se faz presente nos debates intelectuais de nossa disciplina e nas imagens do
cinema e da televisão. Cinema e Antropologia, como ressaltam vários autores – Shohat
e Stam (2006); Barbosa e Cunha (2006); Canevacci (1990a e 1990b) –, nasceram e se
desenvolveram olhando para o “exótico”. O antropólogo italiano Massimo Canevacci
(1990a, p. 56) observa que “toda cultura de massa – positiva, metafísica, materialista –
continua a ter por objeto a demonização do outro e a beatificação do próprio si mesmo e
do próprio grupo”.
Tendo em vista que nossa sociedade dá grande importância ao visual, assistir a
algum meio de comunicação audiovisual de massa é uma experiência cotidiana para a
maioria das pessoas – esses meios fazem a mediação de nossas relações com o mundo,
são veículos de representação e divulgação de valores e traços culturais. O cinema faz
um recorte na realidade, problematiza e dramatiza o cotidiano comum ao espectador,
revelando os gestos sutis e as particularidades do meio que nos envolve. A
Antropologia, e em particular a Antropologia Visual, trabalha com o cruzamento de
olhares, e “é nesse cruzamento de intencionalidades que reside a possibilidade de
251
pensar a imagem como um objeto fértil para a reflexão antropológica” (BARBOSA e
CUNHA, 2006, p. 54).
Dessa maneira, enxergamos na Trilogia das Cores, de Krzystof Kieślowski, uma
proposta de novas abordagens da experiência e do contato com o outro. Na verdade, o
cinema é em si mesmo uma relação com o outro; ele pressupõe um olhar, ele é feito
para este olhar, e, assim, ao mesmo tempo em que impõe as imagens, ele pede ao
espectador que complete os sentidos, que faça as conexões apenas sugeridas pelo filme.
Ao exigir a participação do espectador, estabelece-se um diálogo entre a subjetividade
do público e a do filme; e é exatamente este diálogo que se faz presente na Trilogia das
Cores. Além desta relação dialógica, dentro mesmo dos filmes, se faz presente uma
crítica ao fechamento e à negação do outro, propondo uma abertura e uma possibilidade
de contato com o outro, onde este é ouvido e respeitado.
Compreendemos que o cinema faz parte da vida social contemporânea, basta
pensarmos na circulação mundial de filmes que ultrapassa fronteiras territoriais e
culturais. Diante disso, podemos afirmar que a relação entre cinema e sociedade se
constitui numa dupla interferência: o cinema produz imagens de nossos desejos, de
nossas fantasias e necessidades e constitui “nossos imaginários, nossas relações com o
Outro, nossos conhecimentos, nossas opiniões” (FRANÇA, 2005, p. 34). A relação dos
filmes com o imaginário pode ser compreendida quando observamos que o cinema, ao
dispor do encanto da imagem, “renova ou exalta a visão de coisas banais” (MORIN,
1983, p. 153). Ao assistir um filme, ocorrem “verdadeiras transferências entre a alma do
espectador e o espetáculo na tela”, ou seja, “o filme pode transformar a audiência
psicologicamente e politicamente. (...) A sala escura (...) permite que nos transportemos
para outro mundo, o que significa voltar a ver este mundo já com outros olhos”
(SZTUTMAN, 2005, p. 122).
Entendemos, deste modo, que o cinema, como uma arte do espetáculo, um
espetáculo das multidões – haja vista o alcance mundial das imagens cinematográficas –
, teve sua linguagem aprendida e assimilada durante seu desenvolvimento histórico,
criando um repertório imagético no espectador. Destarte, percebemos que os filmes se
transformaram nos grandes veículos de construção e divulgação de comportamentos,
gostos, gestos. Então, refletindo acerca da preocupação de Benjamin com o declínio da
arte de narrar e da própria experiência, enxergamos no cinema uma capacidade de
renovar e recriar essa arte da narrativa, de transmitir experiências através de histórias.
252
Faz parte do espetáculo do cinema contar histórias, narrar imageticamente; é no cinema,
nos filmes, que hoje as pessoas se abrem para ver e ouvir as narrativas de países
longínquos, as histórias que invocam provérbios e morais.
Para Benjamin (1993, p. 198), o declínio da arte de narrar nos conduziria à
privação “de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de
intercambiar experiências”. Porém, o cinema nos afeta, produz um impacto emocional,
já que este é o seu propósito. O cinema nos conta histórias, e, como reflete Cabrera
(2006, p.21), “é claro que um filme sempre pode ser colocado em palavras. (...) Só que
isto só será plenamente compreensível somente vendo-se o filme, instaurando a
experiência correspondente, com toda a sua força emocional”. Isto significa que um
filme é, sobretudo, uma experiência, pois propõe uma participação afetiva e uma
reflexão acerca do mundo. As histórias que o cinema nos conta fazem dele o
instrumento do narrador contemporâneo, tendo em vista que, segundo Benjamin, o
narrador é aquele que sabe transmitir experiências, continuar uma história.
Nesta perspectiva, entendemos que os filmes da Trilogia das Cores
“desestabilizam o instituído, desacomodam, inquietam e questionam, apresentando
soluções abertas [...] para os problemas das quais trata” (DUARTE, s/d, p.5) e, assim,
nos contam histórias que nos afetam, nos colocam questões relevantes, nos fazem
pensar. Os filmes escolhidos propõem um desmascaramento da individualidade, um
enfrentamento desse medo do contato com o outro, que o faz fechar-se em si mesmo, ou
seja, eles são uma experiência em si, pois nos sugerem novas experiências, tanto ao ver
os filmes como depois de ver, nas marcas que deixam em nós. Como nos lembra Ortega
(s/d, p.4), a noção arendtiana de nascimento constitui o pressuposto ontológico da
existência, e que só se realiza ao aceitarmos o desafio do outro, do desconhecido,
sacudindo nossas formas de sociabilidade e reinventado a amizade.
Entendendo a Antropologia, neste contexto, como um exercício do olhar, temos
que, conseqüentemente, os filmes podem ser objetos passíveis de estudos
antropológicos, haja vista que eles são, também, um exercício do olhar. Como nos
lembra MacDougall (2009, p. 68), “antes que os filmes sejam uma forma de representar
ou comunicar, eles são uma forma de olhar. Antes de expressar idéias, eles são uma
forma de olhar. Antes de descrever qualquer coisa, eles são uma forma de olhar”. Aqui,
nos voltando para a proposta de Geertz (1989), de uma Antropologia interpretativa,
253
compreendemos que os filmes são recortes do mundo, descrições de fatos pequenos
densamente entrelaçados, interpretações de segunda ou terceira mão.
Nesse sentido, escolhemos a Trilogia das Cores, de Kieslowski, como objeto de
estudo, porque encontramos nestes filmes um diálogo efetivo com o outro, uma criação
de situações onde o real é múltiplo e irredutível a dualismos simplistas. Este diretor faz
parte de um cinema que “enfatiza as descontinuidades no interior do nosso presente, as
fissuras do Estado-nação, do mundo globalizado, do humanismo universalista, das
classes sociais, das identidades, das culturas” (FRANÇA, 2005, p. 36). A Trilogia das
Cores narra e constrói uma imagem do outro muito característica. Ao se propor a
trabalhar com os ideais “universais” do homem – Liberdade, Igualdade e Fraternidade,
que formavam o lema da Revolução Francesa e sustentam a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, – o diretor Kieślowski retira as maiúsculas desses valores e os
coloca para serem vivenciados em situações concretas e particulares, procurando, dessa
forma, problematizar a universalidade desses ideais. Dentro da Trilogia, podemos
observar a inquietação em olhar para a subjetividade das personagens, mostrando o
universal dentro de uma situação específica e problematizando esses valores, que já não
podem ser vividos plenamente no mundo contemporâneo diante das circunstâncias
concretas em que nos encontramos. Kieślowski nos mostra, de tal modo, que não
existem Liberdade, Igualdade ou Fraternidade como verdades universais; sua questão é
descobrir de que maneira é possível viver esses ideais no presente, ou seja, “de que
maneira suscitar pequenos acontecimentos que forcem a vivência destes valores não
como entidades absolutas, mas como pequenas sementes de experimentação que se
modificam para cada nova situação, para cada novo encontro” (FRANÇA, 1996, p. 16).
Na Trilogia das Cores, percebemos que um diálogo se estabelece entre a
subjetividade do autor e a do espectador, ou seja, há um desejo de falar ao outro e de
ouvi-lo. Os filmes mostram indivíduos lançados fora de suas individualidades e que
precisam estabelecer contato com o novo, com o outro. Ao propor este novo olhar, ao
propor o diálogo e a amizade em seus filmes como possibilidade de salvamento do si
mesmo, Kieślowski também nos mostra a importância do cinema não apenas como
construtor de imaginários, mas também o seu papel como questionador destes
imaginários criados e consolidados.
A liberdade experimentada em Bleu (1992) é apenas uma liberdade, particular,
construída a partir da perda. Da mesma forma, Blanc (1994) representa uma igualdade,
254
possível depois de ter sido negada pela diferença lingüística e cultural. Finalmente,
Rouge (1994) aponta para uma fraternidade constituída pela amizade entre duas pessoas
diferentes. Esses três filmes mostram indivíduos que se colocam em contato com o
outro; esses pequenos encontros casuais forçam as personagens sair de sua intimidade, e
os arremessa para a ação, para a efetivação da necessidade de se conhecer o outro, o que
amplia os próprios conhecimentos.
Kieślowski também introduz em seus filmes a problemática do contexto
histórico, político e social da Europa do final dos anos oitenta e começo dos anos
noventa, em contraposição à idéia de uma Europa unificada sob o signo do “cidadão
europeu”. Os filmes nos colocam diante de uma Europa fragmentada e da incerteza
dessa união (Bleu, 1992); do questionamento da suposta igualdade entre seus cidadãos e
dos novos tempos para os países marginais dessa Europa (Blanc, 1994); e do naufrágio
dessa idéia, ainda que seja apontada uma possibilidade de salvamento (Rouge, 1994). A
análise desses filmes, do contexto e da leitura da formação da União Européia, pela
Trilogia das Cores, nos faz questionar as atuais rachaduras da, agora já consolidada,
“fortaleza-Europa”; isto é, dos problemas com minorias étnicas, dos “campos de
permanência temporária” e dos “campos de identificação e expulsão”,85 por exemplo,
que podem ser lidas hoje como denúncias presentes na Trilogia das Cores, e ressaltam a
atualidade e a necessidade de estudar as formas de estigmatizar86 e negar ao outro voz,
existência, direitos.
Notamos que os três filmes narram e constroem uma imagem do outro, mas não
uma imagem etnocêntrica, onde “o ‘outro’ torna-se o bando de contemporâneos
perfeitamente idêntico ao próprio e, portanto, a si mesmo” (CANEVACCI, 1990, p.
167). Diante das novas maneiras de estar e se relacionar no mundo contemporâneo,
enxergamos a inquietação do autor da Trilogia em apontar para uma possibilidade de
salvamento, de contato com o outro que não o faça desaparecer diante do “si mesmo”,
85
Estamos nos referindo aqui aos espaços de exceção da atualidade e das formas com que o outro, o
estranho, estrangeiro, vem sendo tratado na Europa contemporânea. Sobre esses espaços, como os campos
de permanência temporária, campos de identificação e expulsão, campos de refugiados e prisões de
“combatentes ilegais”, ver: Butler (2007); Ferrajoli (2009); Agier (2006). Lembrando, ainda, do
“problema” específico e histórico da Europa quanto a estrangeiros e imigrantes ilegais, ver: Abdelmalek
(1998). O cinema contemporâneo também vem refletindo e questionando essas políticas, espaços e os
problemas enfrentados pelas sociedades marginais da Europa e pelos imigrantes estrangeiros ou ilegais,
divulgando, dado seu alcance global, essas questões; são diretores como: Abbas Kiarostami, Fatih Akin,
Philippe Lioret, entre outros.
86
Entendemos que estigma é, como conceituou Goffman (1982, p.7), a situação de indivíduo ou grupo
que não está habilitado para a aceitação social plena
255
do igual. Ao invés do esquecimento do outro, do refúgio na interioridade, percebemos,
principalmente no último filme, Rouge, uma preocupação do diretor em “criar e recriar
formas de relacionamento voltadas para o mundo, para o espaço público, tais como a
amizade, a cortesia, a civilidade, a solidariedade, a hospitalidade, o respeito”
(ORTEGA, s/d, p. 3).
Por fim, ao analisar o cinema poesia de Kieślowski, um cinema que “representa
sobremaneira a possibilidade de diálogo entre o universo do cineasta e o do público”
(SAVERNINI, 2004, p.210), percebemos que essa relação dialógica, presente também
dentro dos filmes são índices da poética da alteridade que Kieślowski procura construir
em suas obras. Ao se abrir para a participação do espectador e ao se preocupar em
mostrar a necessidade de conhecer o outro, podemos reconhecer nos filmes de
Kieślowski, e particularmente na Trilogia das Cores, “a possibilidade de concebermos a
amizade como um processo, no qual os indivíduos implicados trabalham na sua
transformação, na sua invenção” (ORTEGA, s/d, p.4); ou seja, é na relação que se
estabelece com o outro, que expande os conhecimentos de si próprio, e que só é
realizável “se sairmos da esfera da segurança e confrontarmos o novo, o aberto”
(ORTEGA, 2001, p.235), que podemos estabelecer novas formas de sociabilidade,
como a amizade, estética fundamental presente nos filmes – visto que o movimento de
abertura e conhecimento do outro nas obras Kieślowski se constroem em relações de
amizade entre as personagens de cada filme.
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258
Experimente em si (mesmo) ou descartável v ocê?, Cláudia Schulz;
Luciana Hartmann (UFSM)
Resumo: Experimente em si (mesmo) ou descartável você? É um artigo
desenvolvido a partir de reflexões sobre o processo de criação e execução da série –
composta por três web performances – Dramaturgia da Carne. Na série, o corpo em
performance é expandido por meio da transmissão ao vivo das ações performáticas,
ampliando e (re)dimensionando o próprio conceito de arte feita 'ao vivo', bem como
instigando a audiência on-line à interação como forma de co-autoria na construção da
dramaturgia do corpo. A partir do encontro entre os corpos proporcionados pelo corpo
em performance virtualizado, a experiência resultante desse momento único passa a ser
compreendida como uma ação em si mesma, capaz de gerar novos corpos, tanto dos que
executam a ação performática quanto dos que são afetados por ela. Assim, a arte da
performance desencadeia um processo de trans-formação, anunciando a potencialidade
que o corpo tem de ser um sistema relacional aberto, suscetível e cambiante. Para
embasar teoricamente essas reflexões teço um diálogo com Pierre Lévy e Eleonora
Fabião, Eduard0 Kac e Edmond Couchot no intuito de ampliar o conceito de corpo em
performance no contexto contemporâneo.
Palavras-chave: corpo, performance, experiência, virtualidade.
Proponho neste artigo uma reflexão sobre a virtualização do corpo em
performance da série de web performances, Dramaturgia da Carne, bem como
desdobramentos desencadeados por esse processo. Dramaturgia da Carne foi elaborada
a partir de experimentações práticas de relação do corpo com projeções de imagens
(fotografias e vídeos). Três web performances compõe essa série: 4° Seminário sobre a
lista de compras do corpo, realizada no dia 19 de março às 20h; a segunda, Coração,
realizada no dia 16 de setembro às 19h, e a terceira, Mapa Anatômico, realizada no dia
04 de novembro às 19h. Dramaturgia da Carne foi executada durante o ano de 2009, e
as duas primeiras ações performáticas se realizaram no Teatro Caixa Preta – Espaço
Rozane Cardoso localizado na Universidade Federal de Santa Maria – UFSM e a
terceira e última ação aconteceu no Bar Macondo Lugar, no centro de Santa Maria.
Nesse sentido, Dramaturgia da Carne, desde seu embrião é um trabalho plural e
interdisciplinar, pois procurou entrelaçar e horizontalizar as percepções de diferentes
259
áreas artísticas (artes cênicas e artes visuais), para enfatizar ainda mais essa possível
relação e fundamentação na arte efêmera que deixa sua marca pela suspensão temporal
na memória de cada testemunho.
A série de Dramaturgia da Carne trata-se de três ações performáticas
transmitidas pela rede mundial de comunicação (Internet). Cada ação, distinta uma da
outra, possuiu como foco principal o uso do corpo em performance redimensionado no
espaço-tempo por meio da virtualização87 acarretada pela transmissão na Internet em
tempo real. Com o intuito de atravessar, suscitar e produzir corpo, em Dramaturgia da
Carne é fundamental pensar no corpo em performance como um sistema aberto,
mutável, cambiante, pronto para adentrar na zona de compartilhamento e fundar uma
nova hierarquia do sensível.
A transmissão das ações performáticas pela Internet desencadeou um processo
de virtualização que pode ser considerada, segundo Pierre Lévy, estudioso e filósofo
dos processos da informação, uma desterritorialização. Segundo o autor quando ações,
informações ou corpos se virtualizam eles se tornam “não-presentes”:
Uma espécie de desengate os separa do espaço físico ou
geográfico ordinários e da temporalidade do relógio e do
calendário. É verdade que não são totalmente independentes do
espaço-tempo de referência, uma vez que devem sempre se
inserir em suportes físicos e se atualizar aqui ou alhures, agora
ou mais tarde. No entanto, a virtualização lhes fez tomar a
tangente. Recortam o espaço-tempo clássico apenas aqui e ali,
escapando de seus lugares comuns “realistas”: ubiqüidade,
simultaneidade, distribuição irradiada ou massivamente
paralela. A virtualidade submete a narrativa clássica a uma
prova rude: unidade de tempo sem unidade de lugar (graças às
intervenções em tempo real por redes eletrônicas, às
transmissões ao vivo, aos sistemas de telepresença) [...] Mas
nem por isso o virtual é imaginário (2007, p. 21).
Dessa maneira, as três ações que compõem o corpo de Dramaturgia da Carne
precisaram de um espaço-tempo referencial para que de fato ocorressem, pois é
intrínseco a arte da performance o momento efêmero com sua materialidade de espaço87
Segundo Pierre Lévy (2008) o corpo virtualizado por meio de transmissões em tempo real pela rede
mundial de computadores, como em Dramaturgia da Carne, possibilita que o corpo se torne nômade,
capaz de estar aqui e lá ao mesmo tempo. A transmissão em tempo real do corpo, segundo o autor,
transporta o próprio corpo e não apenas uma representação dele, sendo uma quase presença. O corpo
virtualizado, torna-se nômade e parcialmente ubíquo, assim como o corpo do interlocutor é também é
afetado pelos desdobramentos (aqui e lá): “de modo que ambos estamos, respectivamente, aqui e lá, mas
com um cruzamento na distribuição dos corpos tangíveis” (2007, p. 29).
260
tempo. Porém, a transmissão em tempo real por meio da rede mundial de comunicação
desencadeou um acesso horizontal colocando a prova, como Lévy propõem, a narrativa
clássica de unidade de tempo e lugar.
Colocar a narrativa clássica em xeque também é um dos fatores pensados pela
arte da performance e pelo teatro pós-dramático. As ações performáticas em uma linha
geral, não seguem uma narrativa aristotélica, não procuram contar uma “historinha”
para o espectador, longe disso, buscam operar em oposição ao narrativismo e
ilusionismo. Tornam-se, segundo Fabião, complicadores culturais (2008, p. 237), que
em outras palavras não buscam comunicar um determinado conteúdo à audiência, mas
promover o encontro e a experiência e por meio dela elaborar os conteúdos,
redimensionalizando as relações que o espectador gera consigo mesmo, com o
performer, com os outros, com a performance, com o espaço, com o tempo e com o
contexto histórico.
O processo de (des)narrativização do espaço-tempo proposto pela virtualidade
de Lévy e a ruptura com uma linguagem embasada nas regras clássicas de Aristóteles
proposta pela arte da performance encontram na série Dramaturgia da Carne um corpo
potencial88.
A transmissão pela web das ações performáticas de Dramaturgia da Carne
desencadeou uma multiplicação de espaços para a ação, tornando a si própria nômade,
por meio da rede e suas bifurcações.
Na série de web performances Dramaturgia da Carne a audiência assistia as
ações performáticas por meio de um mesmo olho coletivo89 não havendo uma
hierarquização de percepção. As lentes das câmeras de transmissão mediavam essa
experiência coletiva e realizavam mais do que uma simples projeção da imagem do
corpo e da representação da sonoridade da música nos espaços múltiplos e nômades da
rede. As câmeras, bem como todo o sistema de transmissão, procuravam transportar o
88
Nessa discussão podemos acrescentar o ponto de vista de Hans Lehmann (2007) sobre o Teatro PósDramático, sobre o qual já elucidei alguns aspectos anteriormente. Para Lehmann, o que está no cerne da
discussão é a subversão as heranças formais dominantes, como a estrutura aristotélica e dramática
calcadas na totalidade, ilusão e representação de uma fábula para alcançarmos o que ele denomina de
Teatro Pós-Dramático, que faz uso de diversas mídias onipresentes ao cotidiano desde os anos 1970.
Assim, na cena do pós-dramático como na arte da performance o processo de (des)narrativização do
espaço-tempo atribuem ao espectador a tarefa de “mobilizar sua própria capacidade de reação e vivência a
fim de realizar a participação no processo que lhe é oferecida” (LEHMANN, 2007, p. 224).
89
É importante salientar que esse “olho coletivo” refere-se ao ponto de vista da transmissão, tendo-se
clareza que existe ali à subjetividade do olho que vê através da câmera e a opera.
261
próprio corpo e música (transformados, mediados), desdobrando os limites de espaço e
tempo bem como da materialidade do corpo, possibilitando a ação performática estar
“viva” e “ao vivo” em múltiplos espaços.
Pierre Lévy nos fala deste estar “aqui e lá” ao mesmo tempo, possibilitado pelas
transmissões ao vivo, como uma forma parcial de ubiqüidade. Para o autor, o que é
transmitido é mais do que uma imagem, é quase presença, pois tanto o corpo que está
sendo transportado quanto o corpo da audiência é afetado pelos desdobramentos de uma
maneira que ambos estão aqui e lá, “mas com o cruzamento na distribuição dos corpos
tangíveis” (2007, p. 29).
A partir do uso dos recursos de transmissão, bem como da própria multiplicidade
intrínseca à rede mundial de computadores, a arte da performance se redimensiona e
consegue colocar em prática o que Fabião define sendo um corpo como um sistema
aberto, múltiplo, cambiante e, acrescentando, onipresente.
A virtualização do corpo incita o processo de troca, de co-autoria com a
audiência, concretizando a zona de compartilhamento proposta pela arte da
performance. Em Dramaturgia da Carne, um dos maiores objetivos residia na
ampliação da presença ativa e interativa da audiência na construção da dramaturgia do
corpo em performance. Esse objetivo somente foi alcançado na última ação Mapa
Anatômico, em grande parte devido ao estímulo do acaso. Explico: devido à
contratempos técnicos, não foi possível projetar em um telão a página de transmissão
onde se encontrava o chat, no qual seriam escritas as palavras e frases pela audiência
on-line e orientando a ação de cartografia do corpo, a ação dependia totalmente da
interatividade para existir, sem essa interação ela não seria transmitida. Desta maneira,
por meio do acaso, durante a ação performática pude interagir diretamente com a
audiência estimulando-os a escrever palavras e tornando concreta a co-autoria da
audiência com a ação performática, incitando-os a uma tomada de decisão imediata.
Em Mapa Anatômico, o público passou de mero observador a agente ativo e
definitivo para o acontecimento da ação. Dependente da cumplicidade da ação do
público para que a cartografia do corpo fosse realizada, depositei nesses autores da
dramaturgia escrita no papel-pele a responsabilidade e a capacidade de construir em
conjunto o corpo em performance. Dividir com outros corpos o mesmo desejo, a mesma
vontade e responsabilidade, o “mesmo espaço sensível, [...] e por meio da mesma lógica
de imediatismo, eles dividem a mesma temporalidade – aquela do tempo real e de sua
262
instantaneidade. A interatividade não espera” (COUCHOT apud DOMINGUES, 1997,
p. 140). Deste modo, assumimos performer e público a mesma posição: todos
performando por meio de um único corpo físico visível a todos.
Em Mapa Anatômico, pude perceber que nessa última ação eu havia alcançado o
que almejava desde o inicio da elaboração do projeto de pesquisa e das ações
performáticas: o convite aos interatores de suspenderem temporariamente a sua
identidade, localização geográfica e presença física, trocando, opondo, confundindo e
cruzando as posições de performers e interatores, mas sempre mantendo-se cúmplices.
Eduardo Kac (apud DOMINGUES, 1997, p. 322), artista visual e criador de obras
interativas, acredita que a arte interativa:
[…] cria um contexto no qual participantes anônimos percebem
que é somente através de suas experiências partilhadas e de sua
colaboração não hierárquica que, pouco a pouco, ou quase tela
a tela, uma nova realidade é construída. Nesta nova realidade,
distâncias espaço-temporais tornam-se irrelevantes, espaços
virtuais e reais tornam-se equivalentes e barreiras lingüísticas
podem ser temporariamente removidas em favor de uma nova
experiência comunicativa.
A arte da performance busca o encontro, a troca e a experiência. De maneira
crua, o corpo em performance, o corpo em zona de compartilhamento e vitualização se
expande, adquire outra velocidade, conquista novos espaços antes impensáveis, projeta
a ação do ser humano em tempo real para outros espaços-temporais. “Ao se virtualizar,
o corpo se multiplica” (Pierre Lévy, 2007, p. 33) não se desmaterializa como na
dissecação e sim se (re)inventa, (re)encarna e se (re)descobre, agrega-se a outros, vira
nômade. A pele permeabiliza-se.
Bibliografia
COUCHOT, Edmond. A arte pode ainda ser um relógio que adianta? O autor, a obra e o
espectador na hora do tempo real. In: DOMINGUES, Diana (Org.). A arte no
século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: Fundação Editorial da
UNESP, 1997, p. 135-143.
FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea.
Sala Preta, São Paulo, n. 8, p. 235-246.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac naif, 2007.
KAC, Eduardo. A arte da telepresença na Internet. In: DOMINGUES, Diana (Org.). A
arte no século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: Fundação
Editorial da UNESP, 1997, p. 325-323.
LÉVY, Pierre. O que é virtual? São Paulo: Editora 34, 2007.
263
O palco nas lentes fotográficas: reflexões sobre a construção de
narrativas por meio de fotogra fias de espetáculos teatrais , Francieli
Rebelatto (UFSM) 90
Resumo: Fotografar espetáculos teatrais foi a maneira como me reencontrei
com o teatro, com o palco, e com visões sobre como ser ator e construir narrativas
significativas de um texto dramatúrgico. A lente fotográfica é o palco que escolhi para
entender a performance de atores, seu envolvimento com o espaço cênico e assim
constituir um lugar de construção de novos significados, uma possível leitura sobre as
representações de mundo que estão sendo encenado, assim construindo espaços de
enunciação. Neste sentido, este trabalho se propõe a uma reflexão de como se dá o
encontro entre o ato-fotográfico e o fazer teatral, entre o jogo de ordem performativo
realizado por sujeitos enunciadores operando em dispositivos e códigos diferentes,
mas que se encontram e movimentam sentidos. No ato-fotográfico mais do que
registrar, é possível criar, re-significar os espetáculos teatrais, estabelecendo uma
relação com o outro, com o seu fazer.
Palavras-chave: fotografia, espetáculo, enunciação.
Na fotografia um novo palco. O palco do mesmo espetáculo. Um espetáculo
resignificado.
No recorte da imagem fotográfica e no palco, espaços de enunciação. Na
narrativa do texto fotográfico o encontro de elementos que compõe: uma cena, um
olhar – o meu olhar no exercício de sua subjetividade. Um jogo de ordem performativo
entre a fotografia e o fazer teatral. Essas frases carregadas de significados vêm à tona
toda vez que penso no meu trabalho como fotógrafa de espetáculos teatrais. Há três
anos quando iniciei este trabalho, a “única” intenção era a de registrar, garantir a
documentação de um momento cênico que acabaria ali no palco, naquele instante.
Mesmo que o espetáculo fosse apresentando inúmeras vezes, todas elas seriam
90
Mestranda em Ciências Sociais, na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), sob orientação da
Profª Drª Luciana Hartmann, com o projeto “Marcas e marcos de uma cultura de fronteira à luz da
fotoetnografia”. Graduação em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, pela UFSM.
264
diferentes, seja no ritmo, no palco, nos atores, no cenário, então, aquele momento
único estava eternizado na imagem.
No entanto, somente a intenção de registrar, no sentido de registro como algo
inocente, desprovido de qualquer motivação além do documento, não me cabia mais.
Senti a necessidade de me apropriar e refletir essa prática, pensando quais significados
e leituras que poderia realizar a partir deste olhar. Foi uma maneira, também, de me
reencontrar91 com o fazer teatral, já que não consegui levar adiante minha formação
no curso de Artes Cênicas.
Por meio da fotografia, passei a vivenciar e re-significar os espetáculos teatrais
que fotografava, entendendo no ato-fotográfico uma possibilidade de criar narrativas
significativas, encontros entre: atores, leitura dramatúrgica, espaço cênico, figurinos e
cenários.
Por este motivo, as reflexões propostas aqui giram em torno do ato-fotográfico
como recorte e como minha leitura de determinada realidade. A re-significação do
espetáculo a partir das escolhas feitas no ato-fotográfico por meio de diversas técnicas
e de determinados enquadramentos, criando um espaço de enunciação. Por fim, o
encontro da máquina fotográfica com o ator, momento que é estabelecido um jogo,
no qual a máquina é inserida no contexto da peça teatral, no desenrolar de
determinadas performances. Todas essas reflexões partem da experiência de um
exercício prático, em que eu como fotógrafa, tenho me encontrado em muitos palcos:
no público, “entre” e em cena.
Ato I – O jogo performativo no espaço de enunciação entre a fotografia e a
prática teatral
Antes de adentrar nas reflexões sobre o ato-fotográfico e sua relação com o
fazer teatral, é importante definir enunciação, lembrando que este termo faz parte dos
estudos da lingüística, mas pode ser apropriado para entendermos o recorte da
fotografia, e do espetáculo teatral e os significados impregnados nos seus textos.
Segundo Peruzzolo (2002), a enunciação é uma instância, um lugar e um trabalho
91
Uso o verbo “reencontrar” com o teatro já que comecei a cursar Artes Cênicas em 2005, quando já
cursava Jornalismo e depois de levar os dois cursos juntos durante dois anos, optei por abandonar a
formação em teatro e então acabei finalizando somente o curso de Jornalismo.
265
realizado pelo enunciador responsável pela construção de um discurso. A enunciação
corresponde a um espaço de incursões realizadas pelo sujeito enunciador, a partir de
um universo de códigos, dos quais ele deixa marcas espalhadas pelo discurso
organizado:
A função da enunciação enquanto ato é constituir a
manipulação do discurso em forma de texto, isto é, sob forma
de signos e de relação entre signos. Assim que o enunciador faz
uma série de “escolhas” de pessoa, de tempo, de espaço, de
figuras, de categoria, de termos e com eles conta, diz, informa
alguma coisa (PERUZZOLO, 2002:151).
O sujeito enunciador ao contar algo constrói um enunciado, uma narrativa, por
fim organizando um discurso, a partir de suas escolhas. O autor, ainda, acrescenta que
a enunciação corresponde ao movimento de afirmação de ideias, de desejos, que é
único, se entendermos que as condições de produção jamais serão as mesmas, pois,
cada vez que construímos um discurso, novos sentidos serão movimentados. Neste
texto, Peruzzolo constrói sua argumentação sobre enunciação levando em conta o
discurso construído a partir da fala ou do texto escrito, porém, para este trabalho
retomo essa discussão com a intenção de perceber que o discurso pode ser construído
por meio do texto da fotografia, também do fazer teatral.
No espaço de enunciação do recorte fotográfico, o fazer teatral pode ser
resignificado, ganhando na imagem novas maneiras de ser vivido. Segundo Arthur
Omar (1997), a fotografia não para o tempo, mas abre a trama do tempo extraindo daí
algo que já é fotografia. Ela não fixa, mas modula o tempo. Assim, o autor afirma que o
ato-fotográfico representa a propriedade estética das coisas: os instantes de êxtase, de
espanto, de sensualidade, de desconfiança, que são extraídos da natureza, mas acima
de tudo produzidos pelo olhar do fotógrafo. Por meio do fazer fotográfico, para mim
também do fazer teatral, o sujeito enunciador é capaz de descobrir a “glória” que
atravessa as coisas mais insignificantes, fazendo surgir, os corpos e suas máscaras,
determinando o que Arthur Omar chama de “ressurreição estética”.
E essa propriedade estética impregnada nas coisas é ainda mais visível nos
espetáculos teatrais, que já partem de um fazer que considera: a leitura de um texto
266
dramatúrgico, a encenação do ator, a construção de um cenário, enfim elementos que
juntos compõem um “todo” repleto de sentimentos e das mais diversas formas de
manifestações.
Assim, a fotografia ao modular o tempo, dá forma e sentido para as emoções
vividas no palco, num jogo de ordem performativo (Dubois, 1993), na concepção
lingüística do termo, em que dizer é fazer, bem como em seu significado artístico, a
performance.
Ao se falar de performance não podemos esquecer que seu conceito é bastante
abrangente, podendo ser encontrado nas artes, na antropologia e até mesmo para
tratar do desempenho de práticas cotidianas. Segundo Langdon (1999), o conceito de
performance nos últimos vinte anos é caracterizado pelo “imprevisto ou
indeterminado, pela heterogeneidade, polifonia de vozes, relações de poder,
subjetividade e transformação contínua”, características ligadas ao mundo pósmoderno. Para a autora, no entanto, ao tratar de performance, é importante se pensar
em dois paradigmas da antropologia: a vida social como uma dramaturgia ou um
drama social, e a perfomance com um evento.
Bauman (2008) discute três principais concepções nas abordagens de
performance:
as performances culturais, a performatividade e a performance como
comunicação habilidosa. As performances culturais estão ligadas à Émile Durkheim
onde estas correspondem aos momentos que valores e significados de determinados
grupos sociais são representados de forma simbólica ou são corporificados, ou seja,
performados. Ao que se refere à performatividade, provinda das discussões do
lingüista John Austin, a abordagem procura entender que todo enunciado é uma ação.
A terceira característica pontuada por Bauman se concentra nas reflexões sobre a
perfomance como comunicação habilidosa: nas relações entre a forma lingüística, sua
função social e seu significado cultural, dirigindo sua preocupação para a poética da
ação. Conforme Bauman, a poética é tomada como uma prática discursiva, pois, toda
expressão lingüística é situada, socialmente constitutiva e polifuncional. Para mim,
essas interpretações e entendimentos de perfomances e de performatividade, podem
267
ser ligadas aos conceitos de enunciação, ou seja, ao ato de construir um discurso,
organizar códigos de uma linguagem no sentido de produzir possíveis leituras sobre o
mundo. Por isso, é importante pensar em como as performances são construídas.
Entendo que ao falar de um jogo de ordem perfomativo que acontece entre/na
fotografia e o fazer teatral, evoco o sentido desenvolvido por Bauman de
performatividade, em que todo enunciado é uma ação. Uma ação desenvolvida, pelos
atores no palco ao representarem um espetáculo teatral, ao fotógrafo no atofotográfico ao re-significar o fazer teatral, ao construir uma leitura sobre o que está
sendo encenado no palco. Vale lembrar aqui das ideias desenvolvidas por Dubois
(1993) que considera qualquer fotografia com um golpe, com uma jogada.
Segundo Dubois (1993) a fotografia pode ser tomada com um jogo, uma partida
em andamento, em que cada um dos seus parceiros: fotógrafo, observador, referente,
se arriscam tentando realizar a jogada certa. Conforme o autor, neste jogo todas as
artimanhas são válidas, e todas as oportunidades devem ser aproveitadas:
E a cada jogada, todos os dados podem ser mudados, todos os
cálculos devem sereventualmente ser refeitos. Em foto, tudo é
um problema de sucessividade. É a lógica do ato: local,
transitória, singular (DUBOIS, 1993:162, grifo do autor).
Interpretando o que o autor considera como problema de sucessividade, temos
que pensar que a fotografia é o tempo todo refeita, assim, remetendo ao sentido
performativo, onde a construção de um enunciado é acima de qualquer coisa uma
ação. Ao mesmo tempo, fotografar é pensar em performance como comunicação
habilidosa, tomando como referência a poética da ação, uma prática discursiva, em
que expressão lingüística é situada socialmente e tendo múltiplas funcionalidades. Por
isso, fotografar espetáculos tem sido, para mim, o encontro entre o fazer fotográfico e
o teatral, considerando que estes dois espaços de enunciação constituem um encontro
profícuo para se pensar em performances.
Para Omar (1997) ao fotografar lixa-se, num só movimento, a figura e o fundo,
e isso se faz com a câmera colada ao próprio rosto, onde o corpo permanece em moto
perpétuo dentro da cena, e a câmera recebe os impactos provindos de passos, giros,
risos, lágrimas, golpes, tremores, temores. Segundo Omar, o fotógrafo se coloca
268
imóvel em relação ao seu objeto, por que se move com ele e juntos se deslocam como
um único conjunto em relação ao mundo. Assim, o fotógrafo não está observando o
outro, não está analisando, mas está em ato com o outro e neste encontro, que para
mim é performativo, o instante surge.
E nesse instante que surge o clic, o “momento decisivo” citado por CartierBresson, se concretiza um “encontro” entre o ato-fotográfico e o fazer teatral. Ao
pensar em encontro, dialogo com Grotowski (1981; 1987), que concentrou seus
estudos no ator e em uma possível técnica para a atuação, considerando a dimensão
humana, em que existe o encontro como o outro, um contato, um sentimento de
compreensão mútua, e a impressão criada a partir do fato de que nos abrimos para
outro ser, e assim tentamos compreendê-lo. O encontro, neste sentido, para o autor,
seria constituído por uma experiência: concreta, palpável, carnal, sensorial inserida no
tempo e no espaço, uma relação entre duas partes, que constituem uma totalidade.
Ainda, para Grotowski (1987), um encontro depende de organização, preparação, um
lugar específico e de um tempo, emergindo de experiências vividas em comum, para
isso, o autor, acrescenta que o corpo está presente na experiência vivida.
Por fim, para dialogar com as reflexões propostas neste trabalho descrevo uma
experiência vivenciada por mim durante um dos espetáculos teatrais que fotografei. O
espetáculo La perseguida é um trabalho de clown, encenado somente por um ator. Sua
primeira apresentação se realizou no espaço da Praça Saldanha Marinho em Santa
Maria, em que o espetáculo dependia essencialmente das reações do público, de sua
cumplicidade no jogo proposto pelo ator-clown. Como o espetáculo aconteceu em um
espaço que não era pré-determinado, fotografei o tempo todo me deslocando pela
praça em torno/entre o círculo formado pelo público. Neste sentido, muitas vezes o
jogo proposto pelo ator se direcionava a mim, na verdade, para a máquina fotográfica.
Ao jogar com a máquina fotográfica, o ator de forma cômica olhava para a câmera,
realizando “poses”, que parte da ideia de senso comum, que fotografar é fazer poses,
improvisar a melhor maneira de ser visto no retrato.
Entendo que neste momento, no jogo proposto pelo ator diante de uma
máquina fotográfica, acontece efetivamente um encontro. Para o ator o encontro se
efetiva nas motivações do processo de criação. Para o fotógrafo o encontro se dá em
269
cada momento decisivo que expressa emoções. E nesse encontro, que a meu entender
um jogo de ordem performativo, se efetiva os espaços de enunciação tanto na
fotografia, quanto no fazer teatral.
Já no dia seguinte o espetáculo foi apresentado em outro palco, no Teatro
Caixa Preta, da UFSM, um espaço cênico completamente diferente da proposta do dia
anterior, por isso fotografei sentada na primeira fila do público. Inspirado no jogo
estabelecido na primeira apresentação, o ator-clown, dessa vez ao olhar e jogar com
minha máquina fotográfica, retira de sua caixa de objetos cênicos sua própria máquina
fotográfica, remetendo, ao jogo, ao encontro estabelecido na primeira apresentação.
Este é apenas um exemplo de experiências vivenciadas por mim no palco, entre, e no
público. Nessa experiência empírica de fotografar espetáculos entendo que posso
pensar em possíveis encontros de ordem performativa, espaços de enunciação, assim
leituras possíveis sobre o mundo.
Bibliografia
BAUMAN, Richard. A Poética do Mercado Público: Gritos de Vendedores no México e
em Cuba. Antropologia em Primeira Mão. Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis,
UFSC: 2008.
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Maria Appenzeller (Trad.).
Campinas: Papirus, 1993.
GROTOWSKI, Jerzy. Em Busca de um Teatro Pobre. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1971 [1987].
LANGDON, J. A fixação da narrativa: do mito para a poética de literatura oral. In:
ECKERT; ROCHA (Org.). Revista Horizontes Antropológicos, n. 12. Porto
Alegre: UFGRS, 1999.
OMAR, Arthur. Antropologia da Face Gloriosa. São Paulo: Cosac & Naify, 1997.
PERUZZOLO, Adair Caetano. A estratégia dos signos: quando aprender é fazer. Santa
Maria, 2002.
270
A performance na antropologia de Jean Rouch , Pedro Lopes (USP)
[email protected]
Resumo: O objetivo desta pesquisa é analisar a obra de Jean Rouch em seu
caráter performático, partindo do que Geertz chamou de analogia do drama. Sugere-se
aqui pensar, à semelhança da analogia do drama, uma forma de analogia da
performance. Com referências interdisciplinares vindas da teoria teatral e da arte da
performance, busca-se explorar contribuições da noção de performance para a produção
antropológica. Para tal, realizou-se uma análise da etnoficção de Rouch A Pirâmide
Humana, entendida como um acontecimento. Essa escolha deu-se em função das
características que a aproximam da noção de performance, da produção de presença, de
uma experiência compartilhada. Ao assumir-se como um acontecimento “real”, crônica
de um grupo de amigos inter-racial, formado na criação cênica conjunta, o filme se
mostra transformador da vida daqueles que dele participaram. Assim, a noção de
performance vinda das artes corporais pode ser entendida como um procedimento
metodológico utilizado por Rouch. Contudo, ao se olhar para o filme como uma
performance, para além do próprio discurso que ele enuncia, outros elementos se
destacam. A proibição de sua circulação em países africanos até meados dos 1990 é um
desses elementos, que adquire maior relevância nessa metáfora conceitual. Os caminhos
encontrados, ainda preliminares, expõem o tensionamento das fronteiras entre arte,
antropologia e sociedade, permitindo observar os agenciamentos produzidos em redor
de um projeto de pesquisa antropológica.
Palavras-chave: Jean Rouch, etnoficção, performance, drama.
No texto “Mistura de gêneros: a reconfiguração do pensamento social”, Clifford
Geertz (1997) avalia o uso de analogias vindas das humanidades como metáforas
conceituais para a interpretação de fenômenos diversos nas ciências sociais. Uma delas
é a analogia do drama, ponto de partida para esta reflexão. O que se fará aqui é buscar,
no campo da teoria teatral, referências para se pensar a analogia do drama e,
principalmente, analogias que dialoguem com o que foi feito do drama.
Dois autores são referências no debate sobre o significado do drama no contexto
teatral: Szondi (2002) e Lehmann (2007). Szondi define o drama moderno, segundo
271
uma perspectiva histórica, a partir de sua oposição ao épico. Esquematicamente, o
drama poderia ser caracterizado pela identificação do espectador com a cena, em
oposição ao distanciamento crítico proposto pelo teatro épico.
O drama para Szondi mobiliza fatos presentes e intersubjetivos, ou seja, ações
realizadas por e entre pessoas em uma comunidade. O autor defende que o drama
moderno é assistido pelos espectadores de forma passiva: embora haja um envolvimento
emocional com a cena, o espectador não está de modo algum em jogo –é vouyeur de um
segundo mundo que se desenrola aos seus olhos.
Para Lehmann, cuja preocupação é explorar traços do que chama de pósdramático, a noção de drama ganha maior abrangência, incluindo o teatro épico. O
ponto central da distinção não é mais a identificação e o distanciamento crítico, ou a
ação e a narração, como fora para Szondi. Para Lehmann, o debate é entre a
representação e a presença, identificando como eixo gravitacional da forma dramática a
fabulação, e, no teatro pós-dramático, a produção de presença.
Fernandes (2008) e Bonfitto (2008) problematizam os contornos do conceito de
pós-dramático de Lehmann, o que permite trazer a este texto a noção de performance.
Os dois autores, em diálogo direto com a reflexão de Lehmann, defendem que o
horizonte cênico analisado pelo autor é tão vasto que dilui o seu próprio objeto,
tornando imprecisas suas fronteiras com a arte da performance. Toma-se aqui essa
dificuldade como uma potencialidade para o debate acerca da noção de performance.92
A partir do cotejamento da leitura de Lehmann e dos teóricos e historiadores da
performance Cohen (2007), Goldberg (2006) e Glusberg (2007) é possível (in)definir as
fronteiras entre teatro –pós-dramático, mas não somente– e performance como duas
manifestações artísticas em intercâmbio, histórico e atual.
Cohen, ao refletir sobre o tema, aproxima a performance do rito, no qual o
público, não mais espectador passivo e seguro, está implicado no ato performático; é coautor de uma experiência compartilhada e, segundo Lehmann, auto-transformadora.
Glusberg observa que isso costuma acontecer no corpo e no discurso corporal do
performer, mas também tem lugar na experiência dos presentes. Conforme mostra
92
Quando usado para designar ações físicas realizadas para algum público num determinado espaço e
tempo (Bial, 2008; Cohen, 2004), o termo performance será usado sem grifos. Quando se referir à arte da
performance, com grifo.
272
historicamente Goldberg, a transformação também significa um enfrentamento dos
aspectos tradicionais da arte e da sociedade, imbricando essas duas esferas.
Com essas considerações exploratórias, a criação de um esboço de metáfora
conceitual da performance será aplicada na análise da obra de Jean Rouch, focada no
filme La Pyramide Humaine (1961).
A importância de Rouch para o pensamento antropológico contemporâneo tem
crescido nos últimos anos no Brasil, o que se pode verificar pelo aumento das pesquisas
sobre sua obra93, além de lançamentos de seus filmes com tradução.
Uma forte insígnia do projeto de conhecimento do “antropólogo-cineasta”
(Sztutman, 2004) é a antropologia compartilhada, uma prática de pesquisa que se
fundamenta num compromisso ético com os sujeitos com os quais se compartilha a
pesquisa. Este ponto remete diretamente a um elemento central na arte da performance:
a experiência compartilhada. Se na performance, o ato artístico envolve todos os
presentes (que, para Szondi eram espectadores vouyers) numa experiência
compartilhada, que leva a uma auto-transformação, são transformados aqueles que
participam das filmagens. O próprio Rouch (2003), ao filmar rituais, se vê como um
catalisador de transe. A auto-transformação, nesse caso, ocorre em dois sentidos: Rouch
catalisa o transe dos filmados e é afetado por ele(s), tendo de seguir a “estranha
coreografia” do ritual.
O fator transformador é identificado por Stoller (1994) como um objetivo
mesmo do cinema antropológico de Rouch, especialmente nos filmes de etnoficção.
Assim, aponta Stoller, “o objetivo do cineasta não é recontar por si, mas apresentar um
conjunto inquietante de imagens que buscam transformar o público psicológica e
politicamente”94 (p.85).
Para além dos encontros entre as características da arte da performance e a
antropologia cinematográfica de Rouch, ao tratar da etnoficção La pyramide humaine a
analogia da performance enquanto ferramenta conceitual de análise ficará mais clara.
O filme é aberto por um intertítulo: “Este filme é uma experiência provocada
pelo autor em um grupo de adolescentes negros e brancos. Lançado o jogo, o autor se
93
Destaca-se a recente publicação de Marco Antônio Gonçalves, O real imaginado (2008), livro
exclusivamente dedicado à análise da obra de Rouch, dentre diversos outros artigos e entrevistas,
publicados e traduzidos recentemente.
94
Tradução minha.
273
contentou em filmar seu desenvolvimento”95. O local onde as cenas se passam é
Abidjan, Costa do Marfim. Segundo Rouch (Sztutman & Schuler, 1997):
Essa experiência se deu no momento em que me sensibilizei
pelo fato de que, no terceiro colegial de um liceu francês, em
Abidjan, os alunos praticavam um racismo inaceitável. Quando
os encontrei pela primeira vez, os brancos jamais iam às casas
dos negros e vice-versa. Então, eu lhes propus fazer um filme
[...]. (p.18)
Os estudantes se disponibilizam para o experimento: cada um passa a assumir
um papel, interpretado livremente e sem roteiro. A mistura entre regimes de ficção e
realidade, sugerida pelo intertítulo inicial, vai se consolidando na medida em que o
filme se desenvolve. Surge um grupo de amizade inter-racial, protagonizado por Denise,
africana, e Nadine, européia.
A sala de aula, que era dividida nos dois grupos raciais torna-se cada vez mais
mista. Os atores-personagens visitam-se e fazem festas nas quais todos estão presentes.
Em certa altura, Nadine começa a se envolver afetivamente com os rapazes, tanto
europeus quanto africanos. Nesse momento, mais uma vez, a distinção entre realidade e
ficção é borrada: seria Nadine-atriz ou Nadine-personagem que estaria explorando
relacionamentos inter-raciais? A dúvida não se resolve.
Em meio a uma cena em sala de aula, na qual os atores-personagens discutem o
apartheid sul-africano, o filme é cortado. Vê-se uma cena na qual os participantes
assistem, em meio a risos, as cenas apresentadas até então. Surge a narração de Rouch,
que fala que, assistindo-se a si mesmos, os atores-personagens redescobrem-se e a
ficção torna-se realidade: “O filme passa a ser a crônica de um grupo de amigos, com
suas anedotas particulares”.
No final, com a morte de um de seus integrantes, o grupo se desfaz. Como
aponta Gardnier (s/data), Rouch e seus co-autores encerram o filme sem uma conclusão:
[...]o filme faz questão de não ‘chegar’ a nenhuma prova, não
mostra o resultado de nenhuma pesquisa. Ao contrário, ele se
mostra a si mesmo, exibe na voz off do próprio realizador seus
objetivos: não fazer uma pesquisa sobre o racismo (mesmo que
o assunto seja discutido em vários momentos do filme) ou
sobre as dificuldades de convivência, mas antes de tudo
estabelecer essa convivência, com uma experiência que é o
filme.[grifos originais]
95
Idem.
274
A observação de Gardnier remete às características destacadas como próprias da
arte da performance: a noção de experiência compartilhada auto-transformadora dos
participantes é acionada, não mais no contexto ritual. Conforme Sztutman: “Ao suscitar
novos contextos de interação entre os jovens, o filme acabava por produzir situações
como o namoro entre um africano e uma francesa, que não eram exatamente
“pensáveis” naquela época tingida pelo colonialismo.” (2009, p.249).
Esses elementos, de forma mais ou menos acentuada, estão no próprio discurso
anunciado pelo filme. Para levar a sério a possibilidade de uma analogia da performance
é preciso aplicá-la a ele.
Se detivermos o olhar na forma como a criação do grupo de amizade se criou,
veremos que é nas atitudes corporais que se centra essa transformação. Para além do
teor narrativo da aproximação dos novos amigos, a mistura de suas posições corporais
na sala de aula, as danças nas festas inter-raciais e o contato físico e afetivo entre os
casais expõem mudanças – sociais – que ocorrem nos corpos.
Outro elemento importante diz respeito à recepção do filme. Se entendemos La
Pyramide Humaine como uma performance, a experiência ampla de sua realização
ganha maior importância. O seu efeito transformador naqueles que tiveram contato com
o filme pode ser avaliado. Rouch recorda:
O resultado foi que o filme, quando terminado, foi proibido de
circular em toda a África. Foi livrado da censura há apenas um
ano [entrevista realizada em 1996]. [...] O filme ganhou um
valor histórico bastante grande, pois [...] é um testemunho, um
exemplo de ficção no qual se fala do horror do apartheid.
(Sztutman & Schuler, 1997,p.18-19).
Assim, ao ampliarmos a performance fílmica de Rouch, veremos seu potencial
de transformação e de enfrentamento do tradicional numa escala que transcende o grupo
que participou diretamente do filme.
La pyramide humaine, portanto, configura-se, pela analogia com a performance,
como uma iniciativa artístico-científica absolutamente interventiva, tensionando as
fronteiras entre arte, antropologia e sociedade ao implicá-las e misturá-las umas às
outras.
Bibliografia
BONFITTO, Matteo. O Ator Pós-Dramático: Um Catalisador de Aporias. In:
GUINSBURG, J. & FERNANDES, Sílvia (Orgs.). O pós-dramático: um
conceito operativo? São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 87-100.
275
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FERNANDES, Sílvia. Teatros Pós-Dramáticos. In: GUINSBURG, J. & FERNANDES,
Sílvia (orgs.). O pós-dramático: um conceito operativo? São Paulo: Perspectiva,
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cinema e outros diálogos. Campinas: Papirus, 2009, p. 229-254.
Filme
LA PYRAMIDE HUMAINE. Jean Rouch. França: Films de la Pléiade, 1961 [1959].
90min. (Costa do Marfim)
276
Cici Pinheiro: vida, história e arte uma grande atriz do teatro
goiano, Belisa Monteiro Dias Ferreira (UFG)
Graduanda em Artes Cênicas
[email protected]
Resumo: A teatróloga Cici Pinheiro, atriz fundamental na história do teatro
goiano, desenvolveu 40 anos de trabalhos como atriz, produtora e diretora realizando
atividades pioneiras no teatro, rádio, televisão e cinema em Goiânia e São Paulo. A
carreira da teatróloga inicia-se em 1949, com o seu primeiro trabalho de atriz na peça
Vila Rica, de R. Magalhães Júnior, da Agremiação Goiana de Teatro (AGT) e termina
em 1989, com a encenação da importante peça Gimba, de Gianfrancesco Guarnieri, sua
produção no Teatro Goiânia. Cici foi pioneira no teatro goiano ao lado de Otavinho
Arantes e João Bênnio, assim como trabalhou junto ao Teatro Brasileiro de Comédia,
em São Paulo e o importante Teatro de Arena. A atriz guardou em seu arquivo pessoal
recortes de jornais, fotos, folhetos de peças, fitas de áudio e vídeo, além da trilha sonora
da peça Gimba, último trabalho que dirigiu nos palcos goianos, tema que será abordado
neste artigo. Este trabalho é parte da pesquisa do Núcleo Máskara de Pesquisa do
Espetáculo e da Rede Goiâna de Performances Culturais, apoiado pela FAPEG.
Palavras-chave: Gimba, teatro goiano, Teatro Brasileiro de Comédia, Teatro de
Arena de São Paulo.
A teatróloga Floracy Alves Pinheiro, conhecida como Cici Pinheiro,
desenvolveu atividades pioneiras na cultura goiana. A goiana natural de Orizona
começou no teatro acompanhando a irmã atriz Floramy Pinheiro96 nos ensaios da
Agremiação Goiana de Teatro (AGT), de Otavinho Arantes, que foi o mestre de Cici.
Ela estreou nos palcos em 1949 na peça Vila Rica, de R. Magalhães Júnior, na qual
atuou e também foi assistente de direção.
Ainda pela AGT, Cici encenou em O Escravo, de Lúcio Cardoso (1950) e
Carlota Joaquina (1951). Neste ano, a atriz recebeu um convite para atuar na rádio que
96
Floramy Pinheiro trabalhou na AGT ao lado de Otavinho e recebeu uma bolsa do governo do estado
para estudar no Teatro Brasileiro de Comédia. Também foi premiada na Escola de Arte Dramática, de
São Paulo.
277
partiu do jornalista Pimenta Neto, que nessa época havia escrito um programa para que
a própria apresentasse.
Tratava-se do Magazin no ar da Rádio Brasil Central, de Goiânia. Em 1951, a
atriz escreveu a primeira radionovela goiana Era uma senhora mais brilhante que o sol
homenageando a vinda da imagem de Nossa Senhora de Fátima a capital de Goiás. Um
programa com duração de três semanas veiculado na RBC. No período de 1951-53, a
teatróloga vai para São Paulo e trabalha na Companhia Graça Mello encenando A
mulher sem pecado, de Nelson Rodrigues. Também apresentava programas no rádio,
fazia locuções e atuava na TV Tupi e TV Paulista. Em 1953 volta para Goiânia e cria
sua própria companhia de teatro. O primeiro sucesso da Companhia Cici Pinheiro foi a
peça Morre um gato na China, de Pedro Bloch. Depois vieram as peças
Deslumbramento97 (1954) cujo marco foi o primeiro beijo nos palcos goianos, e O
marido da deputada (1954) uma comédia em que Cici imitava a deputada Ana Maria
Gontijo [a atriz também dirigiu o espetáculo].
Através desta mesma companhia a dramaturga lançou o ator mineiro João
Bênnio, em Goiás. Um folheto datado de 1955, disponível no arquivo de Cici traz os
seguintes dizeres: “Companhia Cici Pinheiro lança João Bênnio em as As mãos de
Eurídice. A maior dupla de teatro do Brasil”.
Em 1957, a atriz retorna à capital paulista para fazer um teste no Teatro
Brasileiro de Comédia (TBC) sendo aprovada em primeiro lugar diante dos jurados
Cacilda Becker, Rugerro Jacobbi e Ziembinski. No TBC, Cici atuou em duas peças:
Matar, de Paulo Wecher Filho, sob a direção de Walmor Chagas, e Do outro lado da
rua, de Flávio Rangel, dirigida por Augusto Boal.
A atriz permaneceu em São Paulo até 1963 passando também pelo Teatro de
Arena de São Paulo, onde trabalhou com Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, além
de participar da Rádio Nacional de SP, Companhia Lídia Lycia, entre outros.
Cici também atuou na peça Quarto de despejo (1961), dirigida por Amir
Haddad, baseada no livro homônimo de Maria Carolina de Jesus, ex-catadora de papel
que escrevia em seu diário pessoal o cotidiano das favelas cariocas.
97
A cena em que a atriz beija o ator Willian Ayer causou repercussão na sociedade goianiense. Na época
a atriz foi rotulada como “prostituta”.
278
Em 1963 a teatróloga retorna à Goiânia e realiza trabalhos pioneiros. Dois anos
depois estréia na TV Anhanguera a primeira telenovela goiana A família Brodie baseada
no livro O castelo do Homem sem Alma, de A.J. Cronin dirigida e produzida por Cici
Pinheiro. O programa exibido em 45 capítulos, com seis semanas de duração era aovivo já que, na época não existia recursos para gravação. Em 1967 a atriz já realizava as
filmagens do primeiro longa-metragem goiano O Ermitão de Muquém, com todas as
cenas gravadas em Goiás. Sem verbas e apoio oficial, Cici Pinheiro teve que parar a
produção.
A atriz guardou todo seu arquivo pessoal composto por fotos, jornais, folhetos
de peças, fitas de áudio e vídeo, além da trilha sonora98 que tocou no Teatro Goiânia na
peça Gimba, de Gianfrancesco Guarnieri, seu último trabalho nos palcos. A família, que
detém os direitos autorais de todo o material, está produzindo uma fotobiografia e um
documentário para este ano, com o intuito de divulgar para a população o legado
deixado por Cici. A pesquisa que está sendo desenvolvida para a Rede Goiana de
Performances Culturais visa um recorte semiótico, um estudo do acervo fotográfico de
Cici Pinheiro, de forma a estudar a representação das peças teatrais. Mas para esse
Encontro, em especial, será abordado o artigo abaixo de forma a divulgar os primeiros
passos desta pesquisa que está em andamento. Trata-se de uma breve abordagem da
peça Gimba, encenada no palco do Teatro Goiânia em 1989.
Gimba, o presidente dos valentes. A última peça de Cici Pinheiro (1989) A
história de um malandro condenado socialmente, mas aceito no morro onde morava.
Um espetáculo cujo pano de fundo era a falta de acesso das camadas menos favorecidas
da população, a qualquer instituição do Brasil, passando a mensagem de que a própria
sociedade pode “formar” um ‘malandro’. Gimba, o presidente dos Valentes é um
espetáculo de Gianfrancesco Guarnieri99 que foi encenado pela primeira vez no Teatro
Maria Della Costa, em São Paulo, no dia 17 de abril de 1959.
Cici Pinheiro trouxe Gimba para os palcos goianos em 1989, seu último trabalho
nos palcos. Tratava-se de uma homenagem a sua irmã Floramy Pinheiro e ao “mestre
Otavinho Arantes”, dedicatórias datilografadas pela teatróloga em um livreto da peça.
98
Trilha sonora da peça Gimba tem letras do próprio Gianfranscesco Guarnieri e música de Walter
Mustafé e Carlos Brandão.
99
Nascido em Milão, Itália, um dos fundadores do Teatro Paulista do Estudante, vindo a ser presidente.
(Revista de Teatro, janeiro a junho de 1959).
279
Gimba foi escrita por Gianfrancesco Guarnieri e dirigida e produzida pela
Companhia de Teatro Cici Pinheiro, levando ao palco 50 atores goianos e apenas dois
da velha guarda: Magda Santos e Oswaldo Mesquita. O palco do Teatro Goiânia se
transformou literalmente em uma favela do Rio de Janeiro e lá toda história da
marginalidade, vivida por seus moradores. (Ferreira, Helenice e Silva, 1989).
Em um dos jornais no arquivo de Cici há o seguinte anúncio: “Cici Pinheiro
necessita de atores para completar o elenco da peça teatral Gimba. Os interessados
deverão comparecer à TV Anhanguera, as 23 hs, a fim de se submeter a testes”.100
Por se tratar de uma superprodução, envolvendo altos custos com cenário e
pessoal, o espetáculo, além do original, havia sido encenado uma única vez no Brasil,
por Flávio Rangel.
A peça original que foi premiada no Rio de Janeiro, São Paulo e em Paris foi
trazida a Goiânia, por Cici Pinheiro. Para Rangel:
Gimba é uma beleza. Não sei se será rigorosamente um
espetáculo teatral, naquele sentido restrito que os críticos
entendem um espetáculo teatral. Mas, sobretudo, é um quadro
palpitante, real, da vida brasileira, uma fotografia do morro, do
malandro, do crime.E tudo isso com uma nova movimentação
que traz ao palco dezenas de mulatinhos rosados e cabrochas
sacudidas para exaltar a habilidade de chorar a morte do
presidente dos valentes. (1959, p. 3-4).
Cici estreou a peça em 8 de setembro de 1989. No primeiro dia, um incidente
ocorreu com o ator Luciano Aiola, que interpretou o protagonista. Uma bala de festim
atingiu o supercílio direito, sendo que a peça retornou aos palcos no dia 14 de setembro
de 1989. No elenco, nomes como o radialista Oswaldo Mesquita e Magda Santos, na
época diretora artística da TV Anhanguera atores veteranos, que já tinham atuado em A
Família Brodie (1965), Cleonice Leandro, como Guiô, Tião Sodré (Gabiró) e um garoto
que na época foi lançado por Cici Pinheiro: Hilton Mendes Júnior, no papel de Tico, na
peça um jovem “adotado” por Gimba.
O espetáculo também contou com a participação da Polícia Militar de Goiânia,
que cedeu as armas utilizadas no espetáculo e uma escola de samba que atua na peça foi
constituída por soldados da PM. A cenografia foi de Martins Muniz, que na época
100
Trata-se de um recorte de jornal no arquivo, sem identificação.
280
retornava a Goiânia para fazer a decoração do carnaval e resolveu ficar em sua terra
natal. O cenógrafo
também atuou na peça no papel de “Negão”, amigo do protagonista. A
iluminação foi de Ricardo Grillo, sonoplastia de Gibson Garcia e Mateus Brito. Na
direção Cici Pinheiro e produção de Ronaldo Magalhães, Erotildes Pererira e Sonia
Alóia.101
Cici Pinheiro (1989) demonstrava em entrevistas o cunho social do espetáculo:
Com Gimba nós pretendemos chamar a atenção da sociedade,
contando a história de sua vida, porque ele se tornou um
malandro, como foi a transformação e porque muitos se
tornarão iguais a ele se a sociedade não lhes der maiores
oportunidades (Jornal O Popular, 8 de set 1989).
Cici guardou a trilha sonora da peça em uma fita, com letras e música de
Gianfrancesco Guarnieri, Carlos Brandão e Walter Mustafé, na voz de Sinval Costa,
“puxador de samba”. A trilha foi gravada nos estúdios Araguaia, de Íris Mendes.
Na casa de Cici Pinheiro, um quadro com a peça publicitária de Gimba chama
atenção. Uma pietá tupiniquim sentada sobre a bandeira nacional, com o filho Gimba,
morto no colo. A mãe segurava um revólver na mão esquerda e fazia um gesto com a
direita, de forma a dar um basta à violência. “Ele(Gimba) dá um voto de confiança no
Brasil, apesar de tudo que está aí”. (Pinheiro 1989).102
O contexto da peça Gimba assemelhava-se ao trabalho de Cici no Centro de
Observação e Oriental Juvenil(Cooj) em que fazia uma tentativa de “resgate” de
menores infratores.103
Em 1991, Cici ganhou o prêmio O Jaburu104 pela peça Gimba. Foi o último
trabalho da teatrologa nos palcos e, devido a problemas de saúde, permaneceu reclusa
na chácara onde morava, no Setor Criméia Leste, em Goiânia até o seu falecimento em
2002.
101
GIMBA. DM Revista, 7 set. 1989.
102
Gimba, a ficção nos limites da realidade. Jornal O Popular, Goiânia, p. 2, 16 jun. 1989.
Cici assumiu o Cooj em 1980, um órgão ligado a Febem. No mesmo ano escreve e monta a peça SOS
Goiás tendo no elenco, os internos da entidade.
104
Informação retirada do currículo da atriz.
103
281
Bibliografia
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jun, 1989.
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GOMES, Margareth. Cortinas se abrem para o amanhã. Jornal O Popular,
Goiânia, p. 6, 3 dez. 1989.
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REVISTA DE TEATRO. Gimba, presidente dos Valentes. São Paulo: Coletânea
Teatral, n. 53, 1959.
Tiros na realidade. O Popular. Goiânia, 12 set. 1989.
282
FESTA E MANIFESTAÇÕES POPULARES
SESSÃO
LIMINARIDADE
1:PÁSSAROS
JUNINOS,
CARNAVAIS
E
Os liminares dentro da liminaridade: matutos e feiticeiras nas
performances dos Pássaros Juninos de Belém (PA) , Eliane Suelen
Oliveira da Silva (UFPA)
Mestranda em Ciências Sociais/Antropologia
Resumo: Os Pássaros Juninos ou Melodrama-Fantasia são uma brincadeira
popular paraense que, composta pelo conjunto de teatro, música e dança, é apresentada
em espaços públicos e privados durante a época junina. Os papéis brincados são de
nobres, índios, matutos, feiticeiras e seres encantados, além do pássaro e do caçador,
que tenta abater o animal. As tramas passeiam entre o melodrama e o cômico,
abordando questões como família, conflitos amorosos e religiosidade. A partir de
instrumentais teórico-metodológicos propostos por Victor Turner e Richard Schechner,
o objetivo da comunicação será o de prestar reflexões sobre esta brincadeira, destacando
uma análise de personagens que possuem condutas controversas nas narrativas
brincadas: os matutos e as feiticeiras. Trata-se, portanto, de uma análise dos liminares
(matutos e feiticeiras) dentro da liminaridade (performances dos pássaros juninos), onde
sugiro, a partir dos subsídios teóricos e Schechner e Turner, que tal brincadeira é uma
agência de reflexividade sobre a cultura paraense.
Palavras-chave: cultura popular, liminaridade, pássaros juninos, performance.
Pássaros Juninos e performance
Os Pássaros Juninos ou Melodrama-Fantasia são uma brincadeira popular
composta por teatro, música e dança que ocorre na época junina em espaços públicos e
privados. Participam dos Pássaros agrupamentos de indivíduos que se denominam como
brincantes,105 onde cada grupo é batizado pelo nome da ave brincada.
105
Assumo como brincantes aqueles que participam de folguedos ou brincadeiras populares de forma
espontânea e festiva, diferenciando-se da noção de ator enquanto participante do teatro profissional ou
vinculado ao saber acadêmico.
283
As histórias brincadas trazem temas como relações familiares, religiosidade,
proteção da natureza, entre outras, atravessadas pela questão maior da luta entre o bem e
o mal, característico ao melodrama (Huppes, 2001). A maioria das narrativas é de
autoria de escritores populares entusiastas da brincadeira e dividem-se em peças de
coronéis ou de nobres, cujas últimas são mais comuns na quadra junina belemense atual.
O enredo principal traz dois personagens. Primeiro o pássaro, brincado por uma
criança que carrega a alegoria de uma ave. Na busca por capturá-la devido às benesses
que o feito pode trazer, há o caçador que sempre falha em seu plano, graças às
intervenções mágicas de personagens que são capazes de livrar o bicho de seu algoz.
Dessa intriga essencial ramificam-se outras e, logo, diversos personagens, que
podem ser alocados em quatro grupos: 1) os já citados seres com poderes mágicos,
aptos a restaurar ou interromper a ordem social das histórias (a exemplo de fadas,
princesas da floresta e feiticeiras); 2) a matutagem, composta por caboclos paraenses ou
cearenses, que é responsável pelo teor cômico da brincadeira; 3) a nobreza, constituída
por príncipes, duques, entre outros, onde se passam intrigas como brigas familiares,
questões amorosas e luta por riquezas; 4) e, por fim, a maloca, organização social de
uma tribo indígena, de onde se destacam as lutas pela proteção da natureza e dos
costumes da tribo. Diversos desses personagens podem apresentar comportamentos
conflituosos entre vício e virtude, maldade e bondade.
De tal modo, a questão da liminaridade, que segundo Turner (1982)106
manifesta-se como suspensão temporária da estrutura social, se faz presente em dois
sentidos. Primeiro, uma vez que os Pássaros são performances, isto é, eventos
extraordinários que colocam os indivíduos em suspensão de seus papéis cotidianos para
o desempenho de outros. Por seu turno, as performances “constituem um espaço
simbólico e de representação metafórica da realidade social, através do jogo de inversão
e desempenho de papéis figurativos que sugerem criatividade e propiciam uma
experiência singular” (Silva, 2005, p. 43). Dessa forma, o Pássaro é evento liminóide
(Turner, 1982), pois, mesmo ligado a expectativas de entretenimento, proporciona aos
brincantes experienciar papéis diferentes daqueles corriqueiros.
106
Vale ressaltar o conceito de “liminaridade” proposto por Turner muito deve àquele de “margem”
proposto por Van Gennep (1978), que o entendeu como um período de indeterminação social no contexto
dos ritos de passagem, quando o indivíduo não é o que era (antes do ritual) e ainda não é o que será (após
o ritual). É aquela pessoa que “flutua entre dois mundos” (Van Gennep, 1978, p. 37).
284
Em segundo lugar, a liminaridade se expressa também nos comportamentos dos
personagens brincados, uma vez que eles flutuam entre mundos diferentes, por vezes,
contraditórios: a bondade e a maldade; a ingenuidade e a astúcia. Deitando o olhar sobre
tal questão, este trabalho pretende analisar dois papéis específicos, cujos
comportamentos na brincadeira são controvertidos: as feiticeiras e os matutos.
Feiticeiras e matutos: os liminares
Alguns personagens brincados são pura e maniqueistamente definidos, repletos
de bondade e valores incorruptíveis. A fada, por exemplo, evoca a imagem da redenção.
Seu universo “é o da estabilidade, o da realização [...], de limpidez, de vigor, em
oposição ao mundo das feiticeiras, feito de podridão e trevas, decomposição e
transformação, insaciabilidade e incompletude” (Moura, 1997, p. 187). Feiticeiras e
fadas ocupam posições diametralmente antagônicas e irreconciliáveis no universo dos
Pássaros.
Quem são as feiticeiras? São mulheres vaidosas e poderosas, que causam medo e
atraem. Conhecedoras de magias, elas usam objetos e dizeres que evocam espíritos e
encantados para alcançar seus objetivos: separar amantes, seduzir homens, atordoar
outros sujeitos. Através de seus feitiços, sobretudo realizados à noite, elas causam
infortúnios, transgridem a ordem cotidiana. Enquanto mulher, tal quais outros tipos
femininos brincados nos Pássaros107, a feiticeira carrega a impureza. Ela é perigo
sempre à espreita.
Todavia, nos diz Moura (1997), longe de serem monolíticas como as fadas, as
feiticeiras são humanizadas. Não raro suas ações malévolas originam-se de amores mal
sucedidos, de terríveis traumas e recordações. A exemplo disso temos a feiticeira
(Aretuza) brincada no Pássaro Tucano em 2009, que direcionava seus poderes contra o
marquês (Rodolfo), com quem possuía uma filha fora do casamento. Porque o pai não
queria reconhecer a filha, a mulher, ajudada pelos matutos (Matuto, Matuta,
Caduquinha e Matutinha), realiza um ritual a fim de vingar-se do ex-amante.
Aretuza: [...] Minha filha será uma rainha quando sair do
colégio e não precisará de suas migalhas. Hoje é noite de lua
cheia! [...] Rodolfo vai saber quem é Aretuza! Vou rufar meus
107
Assim como algumas mulheres nobres que causam o desmantelamento da instituição familiar, devido
seus desejos socialmente repudiados.
285
tambores e chamar meus orixás. Filhos de unbau, saravá!...
Agora que todos estão preparados, vamos começar os
trabalhos. Aruê aruê, povo de Aruanda, reis e rainhas de
Angola, pretos velhos e caboclos ondinos.
Todos: Ae, ae, mamãe oxum, saravá!
Aretuza: [Atuada] Minha finalidade neste trabalho é fazer uma
vingança...
Matuto: Mas vingança, Seu Mestre?
Caduquinha: Por
avingamento?
que
vingança?
Por
que
tamanho
Aretuza: [Repreendendo-os] Confiança, muleque! Ponha a
cachaça nos encrusos, dê-me o boneco pra eu poder fazer os
trabalhos.
Matuta: E pra quem é esse trabalho, mestre?
Aretuza: É para o dono dessas terras!
Caduquinha: Vige, meu deus!
Matuto: Pro seu Rodolfo!?
Aretuza: É ele mesmo. Quero destruí-lo e fazê-lo rastejar como
uma cobra! Os tambores rufam! [Após realizar os cantos]
Agora que meu pai zumbelê já subiu, vamos fechar os
trabalhos.108
F EITICEIRA E MATUTOS
108
EM CENA DE FEITIÇARIA NO
P ÁSSARO J UNINO T UCANO (2009). F OTOGRAFIA : H ÉLIO N ETTO .
Trecho de peça “A vingança de uma feiticeira” de Jorge M. dos Santos (s/d), não publicada.
286
Não é por acaso que são sempre os matutos que auxiliam nos trabalhos da
feiticeira, cujos feitos são revertidos graças à fada e sua poderosa varinha de condão. Os
matutos, tais quais as feiticeiras, também caminham entre mundos díspares,
representando com toda eloqüência o caráter mestiço do povo amazônida ao brincar
tipos como o caboclo do Pará e o cearense migrante,109 com valores e imaginários
também mestiços: ora crêem no deus cristão, chamando-o quando tem medo, ora
participam dos trabalhos da feiticeira; ora demonstram ser solidários às vítimas das
histórias, ora são facilmente manipuláveis. A matutagem demonstra querer tirar proveito
das situações a seu próprio favor, a despeito de serem ingênuos, medrosos e
zombeteiros, seja das regras sociais, seja da situação alheia ou da sua própria.
Aos matutos brincados nos Pássaros é permitido, portanto, extravasar as
emoções e valores, sejam eles ridículos ou contraditórios. São sujeitos repletos de vícios
e deles destacam-se os sexuais, expressos em diálogos que exploram o duplo sentido e a
subversão, ao mesmo tempo em que tratam de valores e costumes regionais, como na
cena a seguir, brincada no Tucano em 2007 pelos matutos (Zélirio, Figênia, Neneco e
Ceará) na festa de aniversário da feiticeira (Lucinda):
Neneca: Sua bença nhu pai!
Zélirio: Vem cá, muleque!... Peraí! Que diacho já é isso que tu
vem todo de perna aberta? Tu não sabe mais andar? Responde!
Me diz uma coisa, tu já andou de novo trepando na goiabeira
do vizinho?
Neneco: [Com medo] Eu não trepei não senhô! [...]
Ceará: Mas isso que é um espírito de porco, tem algum mal a
criança trepá na goiabeira?
Figênia: Pois é meu cumpadre, ele, com a idade que tá, ainda
trepa!
Zélirio: Ah, mas EU sei como trepo!
Neneco: E o senhô pensa que eu também não sei?
Zélírio: Tu não te põe surtando [???], porque sinão... Que
diacho tu já tem no bolso, chega já tá tufado? [Mete a mão no
bolso do filho e tira um pote de vaselina]. Ah!... Aqui está a
109
A presença do migrante cearense no Pará entre 1889 e 1916 foi analisada por Lacerda (2006). É
relevante ressaltar que nessa época se consolidou a brincadeira do Pássaro em Belém, em plena Bélle
Époque, período auge do comércio da borracha na Amazônia que movimentou a economia da região, bem
como a circulação e produção de diferentes expressões artísticas. Para o contexto paraense da Bélle
Époque, consultar Sarges (2002).
287
arma do crime! Pra que tu quer essa vaselina, muleque?
Responde!
Neneco: [Chorando] É pra dona Lucinda passar... no cabelo!
Figênia: Mas tu não tá vendo que é o presente da criança? [...]
Zélirio: Nhá Lucinda, eu lhe trago este paneirinho com essas
macaxeiras, por via da senhora cozinhar e tomar com café!
Lucinda: Obrigada! Mas esta não é como a outra que me
trouxestes, que quanto mais cozinhava, mais endurecia?
Zélirio: Este eu lhe garanto! Aquela era do terreno do meu
vizinho, mas esta uma é da minha plantação!
Lucinda: Quer dizer que a qualidade da macaxeira depende do
terreno?
Zélirio: A senhora acertou em cheio!
Neneco: Que nada, mãe Lucinda, a qualidade da macaxeira
depende...
Zélirio: Te cala, porcaria!110
Como sugere Moura (1997), é a temática sexual a grande chave da comicidade
da matutagem, em assuntos que vão da virgindade aos efeitos da menopausa, da
anatomia dos órgãos genitais à homossexualidade. As questões, porque ditas por
metáforas (como macaxeiras, periquitos, pirogas, cobras, baratas, entre outras), não são
menos explícitas. Inclusive nas sérias cenas de feitiçaria os matutos agregam
comicidade.
É o que percebemos da cena a seguir, brincada pelo Tucano em 2001, quando,
ao auxiliar a feiticeira em seus trabalhos, um dos matutos (Pulquério) acaba sendo alvo
de chacota dos demais (Salviana e Jujuba), pois um espírito “entrou” nele. Aliás,
brincados como sujeitos moralmente vulneráveis, frequentemente os matutos são
possuídos pelos espíritos evocados pela feiticeira, e associam a possessão à
homossexualidade.111
Pulquério: [Ainda incorporado, fala com a feiticeira] O resto
agora é com a senhora; chame seu guia para fazer o trabalho
[desincorpora]. Ai... Ai... que coisa esquisita. Quem entrou em
mim, minha velha?
Salviana: Eu sei lá meu velho.
Jujuba: O senhor gostou.
110
Trecho de peça “O meu grande pecado” de João de Oliveira (1987), não publicada.
Sobre isso é instigante a pesquisa de Fry (1982) sobre a associação entre a homossexualidade e os ritos
de possessão em Belém.
111
288
Pulquério: Gostou do que, muleque?
Jujuba: Ora de quê!? De receber o espírito... Entrou todinho!
Pulquério: Me respeita, muleque!112
Por certo, aos matutos cabe suavizar o drama e a seriedade através da irrisão e
eloqüência de seus personagens. O Pássaro Junino, dessa forma, é permeado por
momentos que vigoram entre o drama e o jocoso, o sério e a pilhéria.
Performance, selfs e reflexividade
Para Loureiro (1995), o Pássaro Junino:
[…] é um exemplo do maravilhoso objetivado que constitui
uma das marcas distintivas da arte produzida na Amazônia.
Uma alegoria de mestiçagem ou síntese cultural, essa espécie
de ópera cabocla se estrutura com elementos da cultura
indígena e da cultura européia, revelando, vez por outra, traços
da cultura negra (Loureiro, 1995, p. 324).
Tal afirmativa também sustenta que as narrativas e os papéis brincados contêm
um conjunto de diversos saberes, práticas e imaginários significantes ao contexto
amazônico. Dessa forma, os Pássaros sugerem dialogar com elementos comuns ao
conjunto de preceitos ético-estéticos (ethos) e visões de mundo (eidos) compartilhados
no universo simbólico dos grupos juninos.
Todavia, sigo a perspectiva de que o popular qualifica “um tipo de relação, um
modo de utilizar objetos ou normas que circulam na sociedade, mas que são recebidos,
compreendidos e manipulados de diversas maneiras” (Chartier, 1995, p. 6), de modo
que o uso de tais elementos no Pássaro se dá a partir de uma constante re-significação,
isto é, modos de fazer através dos quais se expressa a criatividade, mediante uma arte de
intermediação de onde resultam efeitos inesperados (Certeau, 1994).
De tal modo, não almejo sugerir que nos Pássaros os brincantes representem a si
mesmos de forma dramatizada ou idealizada, pois, se consideramos que as histórias não
foram por eles escrita (embora abertas a improvisações e mudanças) e que os tipos que
brincam são díspares de seus papéis sociais cotidianos, tal escopo não possuiria muitos
alicerces. Contudo, mesmo que a maioria não tenha formação teatral, os brincantes são
capazes de convencer a platéia, não de que são ou estão de acordo com os personagens,
112
Trecho de peça “A justiça das selvas” de Francisco de Oliveira (2001).
289
mas que estes, com seus valores e ações, são tipos possíveis, que não estão enraizados
no indivíduo que brinca, mas numa pluralidade de selfs construída através de um
processo criativo e, por vezes, subversivo.
É relevante, assim, recuperar a noção de performance enquanto caracterizada
pelo comportamento restaurado que, para Schechner (1995), se constitui por uma
aprendizagem consciente de técnicas e modos de agir em determinados momentos, e na
possibilidade de modelar e de adaptar estes comportamentos. Para o autor, tal
comportamento “é simbólico e reflexivo [...] irradia pluralidade de significados. Esses
termos expressam um princípio simples: a pessoa pode agir como outra; a pessoa social
ou transindividual é um papel ou conjunto de papéis” (Schechner, 1995, p.206), cuja
experiência pode possuir duas conotações: o caráter recreativo e a possibilidade de,
através da reflexividade, incitar repercussões sociais (Schechner, 1985).
Tal perspectiva vai ao encontro de Turner (1987), ao propor que a sociedade
gera o seu contrário durante as performances culturais que, neste sentido, são dialéticas
e reflexivas. Nesse domínio, a performance “É, novamente, não uma questão de
idealizar ou imobilizar o self projetado [...] mas agir sobre um outro-self-construído de
tal forma a transformá-lo” (Turner, 1987, p. 25) e “levantar problemas sobre os
princípios norteadores considerados aceitáveis ‘na vida real’” (idem, p. 27)113.
No que diz respeito aos Pássaros, destas contribuições teóricas aponto duas
questões. Primeiro, que tanto seu teor recreativo é explícito (basta lembrar que as
brincadeiras se dão no período das festividades juninas), quanto as histórias, que tratam
de temas como problemas familiares, são passíveis de repercutir nos espectadores e
brincantes reflexões, bem como provocá-los a agir sobre estas questões em suas vidas
cotidianas.
Por fim, neste mesmo caminho emerge a relevância dos matutos e feiticeiras das
performances como potenciais reflexivos no que concerne aos valores e práticas
brincados e socialmente reconhecidos, uma vez que os dois tipos aparecem como
sujeitos liminares lidando com diferentes visões de mundo e questões éticas. A feiticeira
Aretuza deveria realizar trabalhos contra o marquês, por conta do amor que possuía pela
filha? A iniciação sexual do matuto ainda na fase infantil é adequada? A educação deste
por meio de repressões é ideal? As ações e falas dos personagens, ao mesmo tempo em
113
Tradução livre.
290
que provocam riso e apreensão, são problematizados, legitimados ou condenados pelo
público e pelo grupo.
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VAN GENNEP, A. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978.
292
A estética dos contrastes no carnaval d as escolas de samba: a
continuidade no espetáculo da mudança , 114 Renata de Sá Gonçalves
(UFRJ)
Doutora em Antropologia Cultural
[email protected]
Resumo: Mestre-sala e porta-bandeira, únicos qualificados a portarem o maior
símbolo de uma escola de samba, exaltam a imagem de um casal de nobres bailando um
minueto. No solo ritual em que carros alegóricos, alas, bateria evoluem linearmente,
uma conotação estética específica do casal, que gira com a bandeira, engendra
interações de respeito, modos nobres e tradicionais de se comunicar e de se relacionar.
Para a análise dessa performance, usarei a idéia dos contrastes e dos interstícios
presentes na dança do casal em relação ao próprio idioma do desfile carnavalesco. No
plano da temporalidade, pretendo demonstrar como a atuação do mestre-sala e da portabandeira propõe uma conversa entre diferentes modos de temporalidade e problematiza
ritualmente a própria idéia da duração de uma tradição. Cabe investigar nos sentidos
dados pela performance do casal o lugar crítico e surpreendente desse elemento de
permanência. Os níveis de significação da passagem do tempo promovem a reflexão
sobre o risco da existência da escola e, por isso, a cada ano, é necessário “defender a sua
bandeira”. Tal defesa não se faz de modo agressivo, mas de maneira bela e
emocionante, aquela que ao longo dos carnavais produziu uma “criatividade
conservadora”.
Palavras-chave: dança, espetáculo, festa, temporalidade, tradição.
O desfile das escolas de samba ora vigente, de natureza ritual, competitiva115 e
artística, integrou, ao longo do século XX, música, canto, dança e artes plásticas em um
114
Este texto integra um dos tópicos formulados na tese de doutorado “A dança nobre no espetáculo
popular: a tradição como aprendizado e experiência” apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Sociologia e Antropologia/IFCS/UFRJ sob orientação da Prof. Dra. Maria Laura Viveiros de Castro
Cavalcanti. Agradeço a Capes pela bolsa de estudos concedida.
115
A partir de 1934, a União de Escolas de Samba protegeu o interesse dos sambistas e defendeu seus
direitos autorais. No mesmo ano, o governo municipal, por meio de seu Departamento de Turismo,
começou a patrocinar as escolas de samba. A oficialização do concurso data de 1935, mas o primeiro
concurso informalmente organizado teria sido em 20/1/1929, quando competiram o Conjunto Osvaldo
Cruz, a Mangueira e o Estácio. Em 1932, numa organização do jornal Mundo Sportivo, 19 escolas
participaram de um concurso na Praça Onze (Araújo et alii, 1991).
293
cortejo linear.116 A um só tempo é festa e espetáculo, pois duas maneiras de participação
estão no cerne de sua configuração estética e ritual – sambar e ver. “Visual” e “samba”
englobam e relacionam os diferentes gêneros expressivos que compõem o desfile. O
“visual” é referendado pela tendência à adoção de carros alegóricos suntuosos e de
fantasias deslumbrantes, enquanto o “samba” é o aspecto mais participativo, através do
cantar e do dançar no decorrer da festa. A relação entre estes dois aspectos marca a
vitalidade dos desfiles (Cavalcanti, 2006, p. 59).
Em meio à multiplicidade de elementos que se apresentam nos desfiles, e que já
foram explorados pela análise antropológica,117 um par, formado por um homem e uma
mulher, representa um “casal enamorado” que carrega o principal símbolo da escola – a
bandeira. Mestre-sala118 e porta-bandeira,119 trajados com roupas inspiradas no figurino
da nobreza européia, bailam elegantemente ao som acelerado do samba-enredo.
Diversas situações cerimoniais são mediadas por sua “corte”, porque onde está a
escola, estará a bandeira e o casal que a conduz. Sua presença será necessária em vários
contextos, tais como eliminatórias dos sambas, ensaios nas quadras, ensaios técnicos
nas ruas, visitas às outras escolas, apresentações dos protótipos das fantasias,
cerimoniais diversos, shows. Em tais ocasiões, os casais são responsáveis por manter
práticas e atitudes de como receber convidados, fazer visitas, representar a escola em
diferentes momentos e comunicar-se diplomaticamente com as demais escolas. Por isso,
eles não ocupam um lugar de rápida passagem pela escola, ao contrário, estão ligados a
ela e comprometidos com ela durante todo o ano.
116
As bases da riqueza do desfile das escolas, a fonte de sua graça e de sua vitalidade são sintetizadas por
Cavalcanti (1999, 2006) em torno de três idéias centrais. São elas: a dimensão agonística dessa festa
carnavalesca, que possibilita a rivalidade entre escolas e as controla por meio de regras comuns; a sua
forma artística altamente elaborada, em que as dimensões espetacular e festiva se articulam de forma
dinâmica; e o desfile, como um canal de expressão de importantes processos urbanos, por exemplo, a
expansão das camadas médias e populares (idem, 1999, p. 75). Dinamizado por um campeonato entre
grupos, o desfile consolidou um modelo eficaz de hierarquia competitiva (idem, 2006, p. 34).
117
Centrados especificamente nas escolas de samba, importantes trabalhos tiveram como foco a parte
musical do espetáculo – o “samba”. Incluem-se aí análises mais específicas em torno das composições do
samba-enredo (Augras, 1998; Valença, 1983; Goldwasser, 1975) e da bateria das escolas de samba (Prass,
1998; Cunha, 2001). As artes plásticas – e a “visualidade” – também foram enfocadas em trabalhos sobre
as fantasias carnavalescas (Ferreira, 1999) e sobre as alegorias (Cavalcanti, 2003). E ainda a respeito da
performance dos passistas (Toji, 2006) e sobre a atuação e o papel de mediação do carnavalesco
(Guimarães, 1992; Santos, 2006).
118
A definição de mestre-sala, segundo o Dicionário Aurélio (1986) é: 1. Empregado da casa real que nas
recepções do paço e noutros atos solenes dirigia o cerimonial; 2. Diretor ou principal participante de um
baile público ou de um desfile festivo, como ranchos, maracatus, etc.; 3. Figurante que faz par com a
porta-bandeira no desfile das escolas de samba.
119
A definição de porta-bandeira, segundo o Dicionário Aurélio (1986), é: 1. Oficial que conduz a
bandeira do regimento; 2. Pessoa que leva uma bandeira em solenidade ou desfile.
294
Distinguindo-se dos outros integrantes da escola a quem o corpo à mostra é
permitido e valorizado, o mestre-sala e a porta-bandeira vestem roupas comportadas e
luxuosas. O casal dificilmente inova com roupas ou coreografias muito diferentes. Na
contramão da surpresa esperada com a entrada da comissão de frente, das alegorias e
dos carros, de uma batida ou uma “paradinha” diferente da bateria, o casal apresenta-se
sem muitas ousadias. Embora percorra a Avenida com um bailado relativamente
previsível, sempre emociona e desperta reações intensas.
O núcleo – bandeira, porta-bandeira e mestre-sala, tal como apontado pela
bibliografia, tem longa presença no carnaval. A investigação sobre esse elemento
tradicional no espetáculo das escolas ao enfatizar princípios que organizam e
transformam a experiência de sua atuação diante de uma platéia, pretende oferecer uma
compreensão diferenciada daquela que a reifica como resistência cultural, dando lugar à
tradição a partir de uma antropologia da experiência.
Para a análise da performance do casal de mestre-sala e porta-bandeira, usarei a
idéia dos contrastes e dos interstícios presentes na dança do casal em relação ao próprio
idioma do desfile carnavalesco.
A dança do casal no desfile é delineada pelo mesmo movimento circular
presente em outras situações, como as apresentações nas quadras. O casal percorre a
Passarela e segue em frente como os demais integrantes mas, aproveitando o seu modo
habitual de interagir com a platéia, a dança da dupla segue constantemente em círculos.
Sempre no chão e nunca em um carro alegórico ou em um plano mais elevado,
onde pode dançar com desenvoltura e levar adiante o pavilhão da escola, o casal está
ciente de que será visto de muitos ângulos pelo público disposto em pontos diversos. A
roda, momentaneamente gerada, permite que o casal baile por alguns segundos em
comunicação com o público. A bandeira deve seguir em frente, girar e ser mostrada aos
presentes. No chão, o casal desempenha melhor seus passos, pois tem mais a preencher.
e ali os diretores de harmonia cuidam de reservar um espaço para o casal desempenhar
sua dança. A performance do casal tem uma forte ligação com o samba da bateria que o
acompanha.
A música que acompanha a dança “bailada” é o samba-enredo. Por isso, as
principais habilidades a serem desenvolvidas são escutar a cadência do samba, ter ritmo
e saber desenvolver passos e gestos adequados às diferentes fases do samba. O casal
desenvolve o bailado com passos e giros precisos e elegantes. Mesmo os giros mais
295
entusiasmados são feitos com exatidão, sem arquear o corpo ou a bandeira. O mestresala curva-se apenas levemente, enquanto a porta-bandeira permanece altiva com um
dos braços elevados, enquanto o outro braço segura o mastro. Os dois não podem se
empolgar excessivamente. Devem dançar elegantemente e sorrir. Ao contrário de outros
componentes, como os passistas, que precisam “arrebentar”, o casal expressa a sua
dança com mais sutileza e sobriedade. Ele não deve avançar e correr em determinados
momentos para acompanhar o resto da escola, mas sim “bailar” ao ritmo do samba, sem
jamais “sambar”. O anacronismo entre o acelerado ritmo do samba e o seu leve bailado
é evidente. É com ele que o casal tem de lidar. O descompasso é compensado no próprio
corpo, que expressa a leveza de uma dança enquanto se ouve a força do samba. Ser bons
mestre-sala e porta-bandeira é saber lidar da melhor maneira com essa diferença.
Contraste temporal: criatividade conservadora
Há ainda um outro nível de significação de contrastes e interstícios trazidos pela
experiência performativa.
Jonh Dawsey (2006, p. 3) sintetiza a estrutura processual da experiência tal
como Turner a entende e descreve “momentos” que constituem a estrutura processual de
cada erlebnis (Dilthey), ou experiência vivida. Dawsey chama a atenção para as
imagens de experiências do passado que são evocadas e delineadas de forma aguda na
estrutura da experiência. Nesta, as emoções associadas aos eventos do passado são
revividas. O passado, que se articula ao presente numa “relação musical” (conforme a
analogia de Dilthey), torna possível a descoberta e a construção de significado. Por fim,
a experiência se completa através de uma forma de “expressão”. Desse modo, a
performance refere-se justamente ao momento da expressão e completa uma
experiência.
A performance do casal nos desloca em relação à perspectiva de um tempo em
que passado e presente são acionados. Elegantemente ele porta a bandeira da escola,
sinalizando sua presença e mediando sua relação para além da escola. Promove uma
comunhão de interesses. Frustra e satisfaz. Emociona. Nessa vivência, o bailado e a
bandeira operam de modo conservador em vários planos de significação. Faz referência
a um nobre passado e a uma permanência circular.
Trata-se aqui, portanto, no plano da performance, de um tipo específico de
“atividade criativa” (Seeger, 2004) ou de estética de um ritual urbano que lida com uma
296
sociedade que se pensa, mais comumente, em termos históricos e que segue uma linha
de evolução linear e progressiva. O desfile de carnaval apresenta a possibilidade de lidar
com uma duração com a qual não estamos acostumados e que sugere a relativização
dessa temporalidade histórica. A estética desse rito urbano lida com uma passagem do
tempo que se distingue e se relaciona com a própria compreensão da duração, de modo
a produzir uma determinada consciência da história e do mito, da mudança e da
continuidade, do presente e do passado aglutinada numa única expressão ritual,120
permitindo e valorizando uma alegoria da duração.
Essa dramatização da duração revela-se nas roupas, nos gestos e na dança do
casal que, no conjunto da escola de samba, expressam tensões tanto em sua visualidade
caracteristicamente nobre como em seu samba bailado. Dançam uma outra dança.
Giram. Há uma referência ao casal enamorado, à conjunção tradicional entre homem e
mulher. Seu bailado e sua relação com o público é um apelo a uma forma de
sensibilidade que já não predomina nos desfiles – a dupla de namorados que baila.
A porta-bandeira e o mestre-sala, desse modo, são exemplos da formulação de
uma idéia de “tradição” e de compreensão da duração temporal, esteticamente expressa
no desfile, definindo situações e organizando um sistema carnavalesco mais amplo. O
bailado não tem interesse em romper com a tradição, porque a criatividade não prevê a
mudança.
Mestre-sala e porta-bandeira, nesse conjunto, expressam de modo belo
mensagens sobre a idéia de tradição. O casal, usando trajes com poucas tecnologias e
inovações, mas com muito luxo e nobreza, preserva um repertório de gestos e versa
expressivamente a metáfora de um determinado passado que é evocado no presente.
A dança do mestre-sala e da porta-bandeira, tal como no balé, promove a
abertura para diversas experiências e possibilidades de arranjos tensos, abrigando
continuidades e mudanças que não apenas “refletem” a vida social, mas são significadas
em planos denotativos, comunicativos e metacomunicativos.
Nosso estudo demonstrou, portanto, que ao contrário de integrar uma “tradição
inventada” em seu sentido fraco, que pauta o conceito de uma natureza artificial, a
performance do casal no desfile permanece porque guarda uma capacidade renovada de
120
Evans-Pritchard ao estudar os Nuer do Sudão traz a importante relativização do tempo histórico linear.
Como percebe o autor, entre os Nuer o tempo não é um contínuo, mas um relacionamento estrutural
constante entre dois pontos (Evans-Pritchard, 1978, p. 121).
297
significar, de modo a construir novas continuidades com a memória do passado. Essas
continuidades se dão em diversos planos, como no teatro da vida cotidiana, no plano das
interações sociais (Goffman, 1975), ou como na metáfora da dança (Bateson, 2000) e no
metateatro da vida social (Turner, 1988) ritualmente experimentado.
A performance, como argumenta Turner, traz à tona eventos e tensões que não
seriam reconhecidos como tais no fluxo contínuo da vida cotidiana. Nos espaços
liminares, como nos carnavais, o que se tem não é uma inversão mecânica ou um
espelhamento de uma imagem do real, mas um “espelho mágico”121 que pode fazer
surgir outras realidades e efetivamente transformá-las. No desfile carnavalesco, o samba
é repetido até que a escola toda passe e o casal de mestre-sala e porta-bandeira conclua
o seu último giro até chegar à Apoteose com a certeza de ter defendido sua escola, que
retornará no próximo giro do ciclo carnavalesco.
No plano ritual, em torno da “matriz de sentido promovida pelo desfile” das
escolas de samba (Cavalcanti, 1999, p. 83), uma configuração estética, performática e
alegórica, exemplarmente desempenhada pelo casal, “continua” na festa que promove a
“mudança”. No plano estético do desfile, essa dança ganha um enquadramento próprio
pois, ao dialogar com outras danças e outras performances, torna-se “tradicional”, pois
parte de uma totalidade que se estabelece sempre em meio a contrastes e a tensões. Os
altos carros alegóricos compartilham o espaço da Passarela com as pessoas que dançam
em alas no chão. A nudez das rainhas de bateria contrasta com as fantasias sóbrias do
casal. O samba no pé convive com o nobre bailado. Samba e visual dialogam de modo
crítico.
No plano da temporalidade, a atuação do mestre-sala e da porta-bandeira propõe
uma conversa entre diferentes modos de temporalidade e problematiza ritualmente a
própria idéia da duração de uma tradição. A compreensão da performance “tradicional”
do mestre-sala e da porta-bandeira, que remete à permanência nos carnavais, adquire um
caráter especial por lidar com a passagem de um tempo linear, moderno e também
circular, pois volta renovado a cada carnaval (Cavalcanti, 1999). E assim, os sentidos
dados pela performance do casal atualizam o lugar crítico, belo e surpreendente desse
elemento de permanência no dinâmico espetáculo da mudança.
121
The mirrors themselves are not mechanical, but consist of reflecting consciousnesses and the products
of such consciousnesses formed into vocabularies and rules, into metalinguistic grammars, by means of
which new unprecedented performances may be generated” (Turner, 1988: 22).
298
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300
O modo de produção familiar do carnaval de curitibano:
qualidade e performance na avenida , Vanessa Maria Rodrigues Viacava
(UFPR)
Mestranda em Antropologia
Resumo: As pesquisas realizadas ao longo de 2008 nos levaram a pensar o
carnaval da cidade nos termos definidos por Victor Turner, como um drama social.
Entre as narrativas acerca do carnaval curitibano nos chamou a atenção um recorrente
assunto: o relacionamento das escolas de samba e a Fundação Cultural de Curitiba. Em
diversas conversas os cartolas, bambas e foliões enfatizaram a falta de apoio da
prefeitura e a ausência de uma infra-estrutura para o carnaval na cidade. As escolas não
possuem barracões nem quadras de ensaio e Curitiba não tem sambódromo. Esses
seriam os motivos para a baixa qualidade estética do carnaval de Curitiba e o pouco
interesse da população local em prestigiar o evento na avenida Cândido de Abreu. A
escassa verba cedida pela FCC para as escolas de samba promove uma organização
bastante específica de se fazer carnaval: um modo de produção familiar. O estilo do
carnaval curitibano pode ser definido como familiar e se contrapõe ao padrão carioca de
carnaval-negócio. Para essa comunicação pensamos em apresentar os bastidores do
carnaval curitibano de 2009 a partir de seu modo de produção familiar. Nossa
preocupação se coloca na busca da qualidade estética e como essa qualidade pode
significar qualificação do carnaval na cidade. Para tais questões, nos aproximamos das
discussões de Turner & Schechner sobre as diferenças entre competência e
performance.
Palavras-chave: Curitiba, carnaval, qualidade e performance.
Em 1978 a prefeitura Municipal criou a Fundação Cultural de Curitiba, órgão
responsável pela organização atividades artísticas e culturais da cidade. Entre as
responsabilidades da FCC se colocou a organização do desfile das escolas de samba e o
repasse da verba destinada para as agremiações carnavalescas da cidade122. Nos
primeiros carnavais, as escolas de samba captavam recursos a partir da assinatura dos
122
Para essa comunicação não pretendo examinar detalhadamente os mecanismos de organização do
carnaval curitibano antes do surgimento da FCC. As considerações sobre o processo de formação das
escolas de samba – ocorrida no fim dos anos 1940 – e da organização dos concursos carnavalescos
anteriores a 1978 estarão presentes em minha dissertação a ser concluída no segundo semestre de 2010.
301
“livros de ouro” pedindo colaborações dos comerciantes locais. O mestre de bateria da
extinta Escola da Samba Colorado Maé da Cuíca nos contou sobre a contribuição da
prefeitura com o carnaval da cidade. Enquanto alguns prefeitos foram muitos generosos
com as escolas de samba, outros não conseguiam disfarçar sua antipatia pela festa
carnavalesca e poucos recursos cediam aos foliões.
Nos primeiros anos do carnaval na rua XV de novembro ainda não havia um
concurso entre as escolas de samba. O primeiro concurso organizado aconteceria no
início dos anos 1960, patrocinado pelo jornal Tribuna do Paraná. Pouco tempo depois,
a prefeitura de Curitiba assume a organização do concurso. Mas a insatisfação com os
resultados dos concursos promoveram mudanças. Embora não possamos precisar o ano
do surgimento da Associação das Escolas de Samba podemos afirmar que ela entidade
surgiu numa situação de crise no sentido dado por Victor Turner. Maé da Cuíca não
concordou com a decisão dos jurados – acontece o rompimento na relação entre escolas
de samba e prefeitura. A crise se instala com a vitória da Embaixadores da Alegria e se
intensificou quando Maé procurou conhecer as qualidades técnicas dos juízes escolhidos
pela prefeitura. Para Maé, os juízes não tinham competência para julgar as escolas de
samba. A ação reparadora acontece com o surgimento da Associação das Escolas de
Samba e como desfecho, Maé da Cuíca passa a organizar o carnaval de Curitiba.
Nas décadas de 1970 e 1980 percebemos uma verdadeira explosão de escolas de
samba em Curitiba. O aumento do número de escolas acontece num momento onde todo
o repasse de verba era feito através Associação das Escolas de Samba. Nesse período, o
samba se espalhou por diversos bairros da cidade. Mansuedem dos Santos Prudente – o
“Chocolate” – cria sua escola os Ideais do Ritmo no bairro Capão da Imbuia. No bairro
Barreirinha Leia Dotti, presidente da Associação de Moradores da Vila Santa Efigênia,
organiza a Deu Zebra no Batuque. Surge na região do Prado Velho a Unidos da
Sapolândia de Julio Cesar Amaral de Souza, o “Julinho”.
Gilmar Renaud, mais
conhecido como “Mima”, cria sua escola de samba na região metropolitana da capital, a
Unidos de Pinhais. Nos anos 1980, o mestre Libânio cria no bairro Boqueirão a Unidos
da Zona Sul.
Em 1997 a Associação das Escolas de Samba deixou de existir e foram
realizados dois concursos carnavalescos, um organizado pela Liga das Escolas de
Samba e outro liderado pela Federação das Escolas de Samba. A ruptura entre as
escolas aconteceu em uma das reuniões da Associação. Um grupo de escolas – liderados
302
pela Embaixadores da Alegria de Saul D’Ávila – questionava o mau uso da verba no
carnaval e levantava acusações de desvio de dinheiro público. A cisão entre as escolas
de samba e o conseqüente racha da Associação pode ser explicada a partir de uma
questão da qualidade dos desfiles apresentados na avenida Cândido de Abreu. Se nos
anos 1960 a preocupação dos cartolas se fixava em questões internas às escolas de
samba, nos anos 1990 a briga entre dirigentes colocou em relevo uma questão de maior
amplitude. Para D’Ávila algumas escolas saíam não apresentavam preocupação alguma
com um melhor acabamento estético, desfilavam com fantasias feitas de “tnt” e
praticamente sem adereços. Mas várias agremiações se esforçavam em reaproveitar
materiais e utilizar matérias-primas mais criativas e mais baratas. As escolas de samba
passam a refletir123 sobre si mesmos e cobram de seus pares uma melhoria na qualidade
estética para modificar a opinião pública sobre o carnaval de Curitiba.
A Federação das Escolas de Samba durou apenas por um carnaval e a Liga das
Escolas de Samba sobreviveu por nove anos. A maior vitoriosa do carnaval curitibano
durante os anos de existência da Liga foi escola do presidente da entidade Saul D’Ávila.
A Embaixadores da Alegria conquistou cinco títulos, a Acadêmicos da Realeza venceu
três concursos e a Mocidade Azul sagrou-se campeã no ano 2000. Para muitos, as
sucessivas vitórias da Embaixadores foram importantes para a dissolução da Liga. Mas
o sepultamento da entidade carnavalesca de Curitiba aconteceria após um evento
dramático: o “quebra-quebra” da apuração do carnaval 2006124.
Em Curitiba o processo de produção do carnaval acontece de forma bastante
artesanal, um verdadeiro estilo familiar. Na tradicional escola Embaixadores da Alegria,
toda a família D’Ávila se envolve nas atividades carnavalescas. A Embaixadores não
contrata um carnavalesco, ela compartilha todas as funções com sua diretoria e
componentes. A escola possui um forte caráter comunitário na produção do carnaval. A
construção do desfile se faz nas mãos dos componentes da escola, eles se sentem à
vontade para opinar na composição e nas modificações dos desenhos das fantasias.
123
“[...] tal como Roland Barthes chamou o teatro, de um ‘cálculo do lugar olhado das coisas’. Daí, o
exercício que aqui se propõe: repensar o lugar olhado das coisas na antropologia da performance. Isso, a
partir de uma audição dos ruídos”. Dessa forma, o conceito de performance não se apresenta apenas uma
dimensão da exibição, mas principalmente reflexiva para os grupos envolvidos e para observadores que
procuram interpretá-lo (DAWSEY, 2006).
124
As escolas de samba de Curitiba ganharam os noticiários de todo o Brasil de forma trágica. Na
ocasião desses eventos, a antropóloga Selma Baptista se encontrava em campo e definiu os
acontecimentos como “Um jogo perigoso: notas sobre a briga carnavalesca em Curitiba” numa
intencional analogia ao clássico texto de Clifford Geertz (1973).
303
Ninguém recebe remuneração para fazer o carnaval, são todos voluntários. A escola da
família D’Ávila é a única da cidade a possuir um barracão próprio no bairro Santa
Quitéria.
Entre as escolas de samba de Curitiba apenas a Acadêmicos da Realeza anuncia
indícios de uma profissionalização. Mas apresenta um modelo híbrido de produção,
transita entre o profissional e o “feito em casa”. Diversos componentes produzem suas
próprias fantasias a partir de uma matriz elaborada pelos carnavalescos. A escola
presidida por Paulo Schneumann defende a auto-gestão. Para ele, as escolas só poderão
melhorar a qualidade estética quando deixarem de depender exclusivamente da verba
cedida pela FCC e buscarem patrocinadores. A Realeza não se identifica com nenhum
bairro da cidade. Seus componentes são freqüentadores da cena do samba e se
encontram nos bares da cidade durante todo o ano. De maneira ainda provisória,
identificamos a Acadêmicos da Realeza como uma “escola-empresa” composta por uma
classe média curitibana amante do samba.
Nos últimos três carnavais a Acadêmicos da Realeza sagrou-se campeã. Sua
estratégia de captação de recursos converteu-se em belos resultados na avenida. Em
2009 o enredo sobre os 100 anos do Coritiba Foot Ball Club rendeu bons frutos. Os
valores jamais foram confirmados pela diretoria, mas cogitam-se valores em torno de
vinte a cinqüenta mil reais cedidos pelo clube do Alto da Glória. A riquezas nos
detalhes bem ao estilo barroco de Rosa Magalhães surpreende não apenas aos jurados,
mas a todos os espectadores. A Acadêmicos da Realeza vem se tornando sinônimo de
“escola bonita do carnaval curitibano”. Essa beleza passa por uma re-elaboração no
estilo de se fazer carnaval. Em 2010 a Realeza contratou artistas circenses de Porto
Alegre para atuar como comissão de frente. Ainda na avenida, a presidente da
Embaixadores da Alegria questionou o uso de artistas profissionais na escola e disse:
“isso não é a comunidade”. No dia seguinte, momentos antes do início da apuração,
outro dirigente da Embaixadores apresentou um discurso menos inflamado e refletiu:
“O carnaval vai ter que mudar”.
O modelo carnaval-negócio do Rio de Janeiro125 ainda parece distante da capital
paranaense, mas as escolas da cidade apresentam tentativas de aproximação com o
125
O desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro movimentam milhões de reais em atividades
turísticas, se associa ao jogo do bicho e ao tráfico de drogas. A visibilidade das escolas aproxima a
304
carnaval carioca. Além da tentativa de profissionalizar a produção, o desfile de 2010
ressaltou a presença de bailarinos do Teatro Guaíra na avenida do samba. Depois de três
anos de ausência dos desfiles a tradicional Mocidade Azu trouxe como novidade um exbailarino e aderecista da cena teatral curitibana como carnavalesco. Sua presença na
escola promoveu a formação de uma comissão de frente composta de bailarinos
profissionais. Embora o carnavalesco tenha recebido pagamento ele “vestiu a camisa”
da agremiação, arrecadou materiais para a confecção de fantasias e muitas vezes
sambava alegremente na quadra da escola. O carnavalesco não trouxe uma equipe de
profissionais, o trabalho de execução foi feito pela comunidade. Assim como a
Embaixadores da Alegria, a Mocidade Azul possui um espaço próprio para suas
atividades no bairro Fazendinha. Assim, sugerimos a produção da Mocidade Azul como
um exemplo de produção híbrida, profissional e comunitário.
O carnaval de Curitiba passa por transformações e as escolas de samba
Acadêmicos da Realeza e Embaixadores da Alegria apresentam modelos distintos de
produção, embora ambas procurem o mesmo resultado: colocar na avenida um lindo
espetáculo. A Mocidade Azul parece mesclar os elementos profissionais e comunitários
em sua produção. A etnografia no samba nos mostrou como acontece a preparação dos
desfiles e pudemos compreender como as escolas se prepararam para o desfile e como
planejaram e desejavam ser vistas pelo público e por seus pares. As noções de Turner
sobre a performance nos iluminam nesses caminhos complexos do carnaval curitibano.
As negociações para se fazer um carnaval são intensas, seja com a FCC, seja com outras
formas de parceria e associação. A cada ano, as escolas colocam a si o desafio de
colocar na avenida um espetáculo a ser julgado e aprovado (ou não) pelos espectadores.
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306
Carnaval curitibano: o “lugar” do popular na metrópole , Caroline
Glodes Blum (UFPR)
Graduanda em Ciências Sociais
[email protected]
Resumo: Através de uma pesquisa etnográfica, realizada desde 2008 nos
espaços de barracão e ensaios das escolas de samba de Curitiba e região metropolitana,
acompanhamos o período de preparação para o desfile do carnaval, observando as
especificidades deste modo de produção carnavalesco: as escolas transitam entre um
modo de produção “familiar” e “comunitário” em direção à uma intenção e primeiras
iniciativas de “profissionalização”. Foi possível acompanhar as mediações culturais para
a sua feitura e experiência popular, observando os processos internos de circulação de
alguns profissionais entre as escolas de samba, constituindo “redes” produtivas, sociais
e culturais, ao mesmo tempo em que se constroem. Tomamos o desfile das escolas
como um exemplo dramático de uma festa popular na capital paranaense, que se
multiplica em diversos discursos, criando uma “arena” de confrontos. Mostra-se muito
produtivo pensar o carnaval como performance, ou, como uma prática que calcula o
lugar olhado das coisas, apresentando-se não apenas como uma prática festiva e
tradicional, mas principalmente “reflexiva” para os grupos populares e para
observadores que pretendem interpretá-lo. O desfile carnavalesco propõe uma série de
diálogos, internos e externos às escolas, com o Estado e com a “cidade”, na medida em
que invade seu centro e toma conta da “arena pública/palco”, mesmo que por algumas
horas, emergindo dramas sociais, que permeiam as relações e experiências cotidianas
de seus membros.
Palavras chaves: Curitiba, carnaval, etnografia, performance.
O ciclo anual do carnaval das escolas de samba se caracteriza por sua própria
temporalidade, cíclica, em que nasce, morre e renasce de forma contínua, ininterrupta,
porém diferenciada. Como já disse Maria Laura Viveiro de Castro (1994, p.214):
Sua natureza ritual, a um só tempo agonística e festiva,
permitiu-lhe a absorção e expressão dos conflitos e relações da
cidade em expansão (...) Esta é a base de sua permanência e
atualidade: trata-se de uma forma cultural complexa e
307
estrutural cujo conteúdo expressivo – o enredo, samba-enredo,
as fantasias e as alegorias – é o vetor da vasta rede de
reciprocidade que percorre anualmente diferentes bairros e
camadas sociais da cidade.
E com este ponto de partida tomemos o que se passa na cidade de Curitiba.
O carnaval em Curitiba, assim como todos, não se resume na festa, ou apenas no
desfile na Avenida Candido de Abreu, mas é também toda a sua preparação: a
“construção do pertencimento” das pessoas, afetiva e ideologicamente com a sua escola
de samba: com a construção das alegorias, fantasias, a formação da bateria e com o
contexto festivo da sua agremiação.
Para adentrarmos nesse processo e no diálogo estabelecido com a “cidade”,
realizamos uma pesquisa etnográfica coletiva126 na preparação para o carnaval de 2009
e 2010 com todas as escolas que participariam do desfile, além de algumas figuras
históricas e blocos ligados à festividade. Com o desenvolvimento da pesquisa pudemos
tomá-la com um exemplo “dramático” de uma festa popular que se desenvolve em uma
situação conflituosa na capital paranaense.
Há mais de meio século a capital e cidades de sua região metropolitana, como
Colombo e Pinhais, desenvolvem este diálogo que pode ser expresso pela frase do
Cidadão Samba de Curitiba, seu Maé da Cuíca: “Para participar do carnaval tinha que
passar o trilho do trem” nos remetendo aos tempos de umas primeiras escolas da cidade
– a já extinta Colorado – cuja imponente bateria saia tocando da antiga Vila Tassi, atual
bairro do Capanema, até chegar ao centro da cidade, o local da festividade.
Ainda hoje a maioria das escolas de samba de Curitiba está localizada em bairros
distantes do centro da cidade, em regiões periféricas e que muitas vezes são
marginalizadas nas prioridades dos governantes, como era na Vila Tassi e como ainda é
grande parte do atual Capanema, o carnaval de Curitiba continua a ser produzido nesses
espaços, para posteriormente ocupar uma pequena e contestada parte da região central
da cidade.
Acompanhando os preparativos, pudemos perceber como as escolas se
prepararam e se construíram para o desfile, ou seja, como realizaram “um cálculo do
126
Com a pesquisadora orientadora Selma Baptista, Larissa Sant’anna Fernandes, também graduanda de
Ciências Sociais e da Iniciação Científica e a mestranda em Antropologia Social Vanessa Viacava.
308
lugar olhado das coisas”,127 como planejaram a maneira pela qual desejavam ser vistos
pela “cidade”. Por outro lado, seguindo as idéias de Clifford Geertz, podemos pensar
que, ao mesmo tempo em que prepararam materialmente o carnaval, os carnavalescos
realizaram um “metacomentário” sobre si mesmos.
128
Enfim, a partir da etnografia do
modo de produção foi possível perceber através dos discursos, as maneiras com que se
representavam enquanto carnavalescos.
Entretanto evidencia-se uma desconformidade entre as atividades carnavalescas
e à imagem que Curitiba procurou projetar de si para o resto do país, percebida nos
diálogos entre as escolas e a Fundação Cultural de Curitiba (FCC), ou mesmo em
diversas matérias vinculadas nos meios de comunicação.129
Essa desconformidade se expressa em vários níveis: no confronto entre o ethos
carnavalesco e uma suposta identidade metropolitana, avessa às manifestações
populares de rua; nas disputas em relação ao mecenato público, verba, espaço,
divulgação, marketing etc. As manifestações populares, mais especificamente o
carnaval, na sua dimensão simbólica, coloca em cheque a estrutura social, e nesse caso,
as representações sobre a cidade.
Como se sabe através das pesquisas já realizadas desde 2005, o núcleo agônico
das discussões sobre o carnaval curitibano, acima inclusive das questões financeiras, é o
“lugar” do popular da metrópole, que vai se evidenciar sob vários aspectos: o local dos
desfiles e os espaços de produção.
O desfile ocupou a Avenida Marechal Deodoro desde os anos 70. Além de ser o
“miolo” comercial da cidade, esse local se desenhou na memória folia como o “espaço”
da festa carnavalesca. Desde 1997, o desfile foi deslocado para a Avenida Cândido de
Abreu, bem na frente do Palácio do Governo, distante do centro, e, como afirmam os
bambas, perdeu-se o “lugar” construído ao longo de décadas.
127
Cf. John C. Dawsey, 2006.
Cf. Clifford Geertz, 1989.
129
Por exemplo: “Festa, mesmo sem vocação”, publicado na Folha de Londrina online
<http://www.bonde.com.br/folha/folhad.php?id=7650LINKCHMdt=20090219>, em 19 fev. 2009,
acessado em: 12 mai. 2009. “O que fazer com o carnaval”, publicado no portal RPC
<http://portal.rpc.com.br/gazetadopovo/colunistas/conteudo.phtml?id=858984&tit=O-que-fazer-com-ocarnaval&tl=1>, em 18 fev. 2008, acessado em: 11 mai. 2009. Ou que remetem a um carnaval sem festa:
“Carnaval alternativo lota hotéis em Curitiba”, publicado na Gazeta do Povo online
<http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?tl=1&id=971262&tit=Carnavalalternativo-lota-hoteis-de-Curitiba>, em 7 fev. 2010, acessado em: 9 fev. 2010.
128
309
Além da arena pública em que se exibem e competem entre si, destaca-se a falta
de lugares próprios para os ensaios e confecção das alegorias e fantasias, que cria de
antemão a dificuldade anual de encontrar um local com as condições e dimensões
necessárias para desenvolver o trabalho, e o comprometimento da filiação de membros.
Obviamente as escolas têm seus foliões, mas aqui “comunidade” pode ter
diversos significados. Pode se referir a uma “comunidade da escola”, como nos disse o
carnavalesco e um dos fundadores da escola Acadêmicos da Realeza, ligada não a um
bairro, mas a um grupo de pessoas que trabalha na agremiação; ou uma potencial
comunidade, como no caso da escola Leões da Mocidade, que em seu terceiro carnaval
já esteve em três regiões diferentes da cidade.
Outra situação interessante ocorre com a escola Unidos do Bairro Alto, que
apesar do nome referente a um bairro da região sul da cidade, desenvolve desde o ano
passado (2008) todas suas atividades na Vila Trindade, no bairro do Cajuru, localizado
na região leste. Um dos motivos para essa mudança é o potencial de participantes para a
escola, pois ali havia a Garotos Unidos, que encerrou suas atividades em 2001.
Como procurei mostrar a busca pela ocupação do espaço central e definição dos
lugares específicos dos barracões e locais de ensaio de cada escola, podem ser vistos
como indicações desta situação dramática da festa carnavalesca na capital paranaense.
Essas tensões e contradições também envolvem uma forma de superação pela
busca da
profissionalização, como
modo
de mediação nessa
situação de
desconformidade citada interiormente, colocada como hipótese deste trabalho.
Inspirados em Geertz (1973), tomamos o carnaval curitibano como um
metacomentário e uma expressão ritual das tensões inerentes a estrutura social. O
carnaval como uma experiência performática, como uma atividade reflexiva, como uma
maneira de se falar e representar o mundo, ou seja, o carnaval como uma alegoria da
vida social. Como diz Maria Laura Cavalcanti, ao se constituir como “(...) um
dispositivo de deslocamento de perspectivas, propiciado por uma sociedade a si mesma
(...)” (Cavalcanti, 2002), é também uma atividade reflexiva que produz o estranhamento
de si, a dramatização de tensões e contradições do mundo social.
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311
SESSÃO 2: FOLIÕES DIVINOS E REAIS
Identidade e Herança Cultural Açoreana através das Festas do
Espírito Santo , Gyorgy Henyei Neto (UFSCar)
Graduado em Ciências Sociais
[email protected]
Resumo: O arquipélago dos Açores pode ser considerado um meio termo entro
Portugal e algo completamente diferente. Suas tradições, costumes e práticas se
colocam como meios de, ao mesmo tempo em que se produzem como fundados nas
mesmas bases de seus conterrâneos no continente, tentam construir um corpo social
diverso e independente de Portugal.
O trabalho que se segue visa, de acordo com as práticas das Festas do Espírito
Santo nas ilhas açorianas, declarar e demostrar a indepêndencia identitária das ilhas em
relação ao continente. De que modo ela se produz, como as práticas se diferenciam de
uma ilha para outra, as diferentes identidades que surgem a partir das noções de
parentesco, localização e crença e o que se produz de fato quando, da observação de
uma parte dos festejos, o Pico se eleva acima de uma identidade nacional e cria um
grupo de semelhança fora dos esquemas e noções portuguesas.
Palavras-chave: nacionalidade, açoraneidade, religiosidade.
História – razão social e cultural
O objetivo deste trabalho visa expor e analisar o caráter da identidade e da
herança cultural na região dos Açores. O objeto que terá o foco principal aqui é a
construção desta identidade e o entendimento do corpo social pelos modos e maneiras
das festividades religiosas. Tendo em vista que a região dos Açores é um território
independente de Portugal, pode ser implicado que eles, o povo, compartilhem o mesmo
fundo religioso e cultural. Por isso, pode ser visto que o açoriano pode produzir e
exteriorizar sua identidade pelas expressões de sua herança cultural.
O principal evento dentro deste estudo é mostrar a habilidade açoriana em
produzir sua própria identidade, independentemente da portuguesa, mas, ao mesmo
tempo, baseada em fundos similares. E o pano de fundo que é posto a frente aqui é a
religiosidade e como essa caracteristica religiosa poderia, e finalmente pode, produzir e
312
exteriorizar a identidade de um povo, uma nação dentro de outra nação, um pequeno
grupo de diferença, em um país que, através da história, tenta compreender a si mesmo,
seu povo e sua terra.
Descobertas em meados do século XV (aproximadamente 1431), as ilhas
açorianas são hoje uma região autonoma de Portugal, com um governo independente. O
Infante D. Henrique começa a colonização e, com a ajuda da Princesa Isabel, as ilhas
são povoadas. Essa decisão foi tomada para a proteção da nova terra contra invasões e
intrusos que poderiam tentar se apoderar do arquipélago, como bretões e flamengos. A
influência dessas duas naçõesque é amplamente vista na cultura açoriana e até mesmo
na portuguesa, começará algum tempo depois. Começaria assim, desse modo, a
formação de uma identidade forçadamente portuguesa, apesar de ter sido, e ainda ser,
criada e manufaturada diferentemente.
Em 25 de abril de 1974, a Revolução dos Cravos130 trouxe um período de
enorme turbulência política e social. Todos os departamentos e escritórios do governo
foram dispensados e diversas manifestaçõs populares começaram a erupcionar através
de todo o território português. Em 8 de semtembro de 1976, a região açoriana ingressou
numa nova mudança em seus aspectos políticos. Pelo governo Regional dos Açores, a
rivalidade e o conflito constante entre as nove ilhas, devido às divisões e interferência
política do continente, foram postos de lado para que se iniciasse uma união açoriana.
Isso foi feito com o discurso de ser para um bem maior, para promover as ilhas e para
chamar a atenção de investimentos e da mída internacional.
O arquipélago dos Açores é constituido de nove ilhas principais e diversos
outros pedaços menores de terra. Existem três grandes grupos nos quais o arquipélago é
dividido: o grupo ocidental, o oriental e o central. As maiores e mais populosas ilhas são
Terceira, Pico e Santa Maria.
O tema principal do estudo que segue é iluminar a questão da identidade. A
identidade, a identidade social como pode ser colocada, pode ser produzida por diversos
meios, em muitos aspectos e pode ser vista em inúmeras caracteristicas específicas que
são especiais em certa região.
130
A Revolução dos Cravos basicamente colocou de lado o ditador Antonio de Oliveira Salazar, que
governou Portugal de 1932 a 1968, quando caiu de uma cadeira e perdeu a habilidade de andar e de
governar.
313
A identidade nacional pode ser produzida, no cenário português, por um grupo
de diferenças que, por essa especificidade, são capazes de criar uma unidade
portuguesa, unida pela diferença. Pelo fato de Portugal não mais ser uma nação dita
central, desde os finais do século XIX pelo menos, os estudos portugueses começaram a
focar na realidade que poderia expressar a identidade nacional. Esse foco era o próprio
povo português, em um “quase estado de natureza”; em outras palavras, o ruralismo. Da
literatura à arquitetura, passando pela arqueologia, o cenário rural deu o tom aos grupos
e identidades nacionais, de modo a produzir uma identidade através da cultura popular
de Portugal. Nas palavras do professor João Leal:
[…] a cultura popular tende a ser vista como uma tradição
remota e imemorial, tão remota e imemorial que poderia ser
redundante precisar seu grau de autenticidade: por definição,
está lá desde o início do tempo (Leal, 2000, p. 47).
Ou seja, as práticas, os costumes, as técnicas e os simbolismos do cenário rural
foram a expressão de uma identidade que é fixa e nunca se perde, apenas se adapta ao
tempo. Do mesmo modo que Marshall Sahlins discorre sobre a introdução dos
mosquetes nas guerras e trocas Kwaikiutl (Sahlins, 2007).
Impérios – ciclos, símbolos e religião
Sahlins diz que a introdução de uma nova peça instrumental em um grupo
desconhecido ou “remoto” não deve ser tomado como uma imposição da ideologia mais
forte. Existem diversos estudos sobre a relação dessas culturas e a notória introdução de
mecanismos durante a colonização que desenvolve aspectos semelhantes.131 O que é
importante perceber é que existem diversas culturas, nações e pessoas, cada uma
produzida através de diferentes aspectos, símbolos e tradições. Desse modo, cada uma
tem seu arcabouço histórico individual, uma herança cultural própria, as quais são
produzidas pelos tempos e pelos eventos em que cada uma se ve envolvida.
Sahlins se aproxima desse pressuposto de um modo que nós podemos perceber
que não existe um grupo de pessoas pré-histórico ou não-histórico, existem
131
Sahlins (2007) discorre sobre a introdução dos mosquetes nas querras fijianas, dos cobertores nas
relações de troca dos Kwaikiutl, do recebimento dos presentes ingleses pelo imperador chinês e as
funcionalidades e simbologias distintas que são criadas a partir de uma construção social da interação.
314
simplesmente grupos que não compartilham da mesma história, dos mesmos espectos
físicos e dos mesmos arcabouçous sociais e culturais. Assim, a “imposição” de uma
funcionalidade não-familiar, como por exemplo os mosquetes, não aprisionariam ou
quebrariam aqueles que estão recebendo essas novas ferramentas. A funcionalidade é
colocada, como uma roda dentada, no mecanismo cultural que expressa a identidade.
Como o próprio Sahlins coloca: “foram os mosquetes que entraram nas guerras fijianas,
não os fijianos que entraram em guerras de mosquetes” (Sahlins, 2007, p. 388).
Isso dito, a identidade do açoriano em geral, a identidade de cada ilha e de todos
que vivem lá, pode ser expressada por meios e maneiras diversos, ambos novos ou de
tempos passados. Ao mesmo tempo, a identidade açoriana pode estar unida e dividida.
Isso vai ser visto mais a frente, quando se observará a rivalidade recíproca entre as ilhas
do arquipélago.
O começo do século XX trouxe um novo olhar aos estudos portugueses.
Começaram a se tornar mais desentralizados, virando seus olhos para os pequenos
grupos, os micro-estudos que produzem a “unidade diferenciada” que é Portugal. Por
isso, os estudos açorianos surgiram e começaram a chamar a atenção do campo
antropológico. João Leal, que foi citado anteriormente, trabalha com o Festival do
Espírito Santo na reigão dos Açores. Seu trabalho põe uma luz sobre os significados e
os simbolismos que são vistos nas festas, de um modo que quase se pode compreender
isso como se fossem práticas corporais, um instrumento físico que produz, expressa e
individualiza as ilhas, cidades e freguesias.132 Esses estudos regionais tem a capacidade
de desenvolver uma identidade local, “grupos de semelhança”, independentes e
originais, distintos da sempre buscada nacionalidade universal de Portugal; e ao mesmo
tempo é também parte da nação, como um dos diversos extremos que criam o corpo
social e identitário potuguês.
Cada uma das ilhas produzem o Império133 diferentemente da outra. Cada cidade
e freguesia teem suas próprias maneiras e seus símbolos para criar e expressar sua
identidade pelos festivais. O Festival do Espírito Santo tem uma importância primordial
na formação do corpo social açoriano. Baseado num mito religioso, a celebração atesta
132
A freguesia é uma pequena vila, que na maioria das vezes possui uma igreja central e também seu
próprio império.
133
A celebração do Espírito Santo é chamada de império numa alusão ao fato de representar o império de
Deus na Terra, onde ele toca a humanidade, em contraste com o reino do céu, que está distante dos
homens.
315
as inúmeras individualidades e especificidades que, em um micro-cosmo que é o
arquipélago, cria um sistema de oposição e reciprocidade que perpassa todas as ilhas, as
freguesias e as casas. O símbolo principal do Império é a distribuição de alimentos. A
comida apresenta uma grande importância nos tempos dos impérios. A origem dessa
prática vem do século XIV. Foi inspirado pela Rainha Isabel, a qual foi beatificada
como Santa Isabel, que costumava distribuir alimentos, como sopas, pão e alguns tipos
de carne para os pobres. As pessoas acreditavam que a rainha era uma santa e a
protetora dos necessitados. Assim, como uma forma de manter a tradição e produzir um
entendimento simbólico da prestação alimentar, seja para as pessoas ou para os santos,
os festejos do Espírito Santo se tornaram um marco cerimonial, social e temporal, tendo
criado um sentimento especial no espírito açoriano. Leal diz que:
O Festival do Espírito Santo tem sido, como um todo,
interpretado no cenário de um, ideológico por natureza, grupo
de discursos, que buscam enraizar a ‘identidade nacional’
(Leal, 1994, p. 16).
Portanto, visto tanto no sentido da diferenciação, quanto no da unidade nacional,
os festejos são a extensão da chamada “obsessão da cultura portuguesa pela identidade
nacional” (id.). Isso se ve como um modo de criar um sistema de reciprocidade, baseado
em símbolos, práticas, técnicas, parentesco e localidade, muito observado e analisado
nas “Estruturas Elementares do Parentesco”, de Claude Lévi-Strauss (1976), onde pode
ser percebida uma semelhante reciprocidade entre distintos, produzindo uma relaçõ de
dependência comunitária, identidade individual, identidade de grupo e oposição.
Tal oposição é amplamente observada na relação de uma ilha do arquipélago
com outra. Certamente existe uma oposição semelhante com o continente, tanto quanto
existem também em relação com os centros de imigração. Mas, visto a diversidade nas
pessoas do arquipélago, é difícil não imaginar, ou mesmo comparar, suas técnicas, suas
práticas e sua importância e significados religiosos. Como dito anteriormente, existem
três regiões que se diferem, separadas geograficamente. Mas tal divisão cria outro
instrumento importante, a “divisão de significância”. O Festival do Espírito Santo tem
suas características que devem, ou ao menos se espera que, sejam de algum modo
universalmente observadas. Essa universalidade é vista nos motivos e em alguns
símbolos mais importantes, como a coroa do Espírito Santo. Mas, como Sahlins coloca
316
tão bem, os meios simbólicos podem ser diferentes, masa significância e o uso no ritual
vão apenas ser adaptados ou talvez especializados. Cada grupo de ilhas mantém um
modo de fazer do ritual, uma técnica própria de cada região.
Entre a ilha de Santa Maria e a ilha do Pico, por exemplo, a distribuição de
comida se dá de modo diferentes, os grupos que distribuem os alimentos, que organizam
a festa, que participam da procissão também. A significância é a mesma, mas o método
usado para expressar isso que produz a especificidade, a identidade de cada ilha. Como
Sahlins afirma, “existem variedades, não níveis, de culturas” (Sahllins, 1997, p.46).
Ao produzir o corpo social do açoriano diferente, as festividades se tornam um
meio de expressar sua existência como distintos e especiais, ao mesmo tempo em que
retornam à cultural portuguesa, numa mistura de etno-genealogia e saudade, que faz do
açoriano mais açoriano.
O Festival do Espírito Santo implica algumas virtudes e práticas que assumem
um papel134 particular na reunião e na relação entre os açorianos. A distribuição de
alimentos e os ritos do festival aprimoram a reciprocidade e a dádiva, como visto nos
trabalhos de Marcel Mauss. O alimento tem uma razão simbólica para ser distribuido.
Como nos potlatchs, a alimentação das pessoas é um modo de se comunicar e
estabelecer uma relação como os deuses, ou santos no caso. Ao dar comida para as
pessoas e preparar o império, o imperador135 está pagando um tributo aos poderes
divinos, aumentando seu status perante os olhos celestes.
A produção, distribuição e recebimento dos alimentos é capaz de desenhar linhas
que conectam os principais papéis das festividades. O imperador, ou o mordomo, então
pormove seu status social como o “doador”, aprimorando suas relações futuras com os
outros habitantes. Leal fala sobre os vizinhos e a relação de vizinhança entre os
imperadores. Quanto mais próximos os vizinhos estão de certo imperador, maiores são
suas interações no império que está se fazendo. Assim, as linhas de vizinhança, como as
de parentesco, podem iniciar relações, identificações, criações de grupos de semelhança
e, finalmente, uma oposição como outros imperadores.
134
Uso o termo “papel”, mas não cogito que existam papéis ou ethos de qualquer modo previamente
produzidos. A tese da descontrução de métodos stratherniana é, de fato, preferida no trabalho. O termo foi
usado numa analogia das festas ao teatro, e o desempenho de ações definidas pelos personagens os quais
são encenados.
135
A pessoa que recebe a coroa do Espírito Santo no domingo de Pentecostes é chamada de imperador ou
mordomo, dependendo da origem da festa.
317
Além disso, o que pode ser visto de um modo especial na produção da
identidade açoriana são os atores que interpretam essas noções e significados. Além dos
próprios habitantes locais, outro papel, ou construção social, que tem uma importância
primordial na construção da comunidade açoriana são os imigrantes. Estes são atores
que, mesmo fora do meio ambiente que são familiares, conseguem expressar sua
identidade, produzindo relações, oposições e noções de pertencimento em um novo
lugar que esteja fora do contexto simbólico que conhecem. Por isso, estes imigrantes
produzem uma importante e particular função nos modos de se produzir uma identidade.
Podemos perceber então que as distribuições alimentares são um dos principais
símbolos das festividades, representados pelas sopas e pães (cada ilha produz seus
próprios modos e possuem símbolos secundários, de acordo com sua origem e tradição).
Além da coroação em si, esse “potlatch açoriano” pode ser visto como “mecanismos de
reafirmação, criação, ou quebra de determinados laços sociais” (Leal, 1994), onde cada
mebro da família, ou grupo social, é incorporado num sistema de dar e receber, ambos
simbólico e material.
Como sugere Mauss, as dádivas são processos mentais que oferecem
significados aos processos sociais (Mauss, 2003), fornecendo as relações funcionais
entre pessoas e instituições com entendimento simbólico que anima a estrutura das
relações de reciprocidade, tanto para como as pessoas, quanto para com os santos. Pode
ser aqui, novamente, observada e compreendida a semelhança entre o festival do
Espírito Santo e o potlatch norte-americano. Ao expressar a identidade a partir de um
status mais elevado, a qualidade e a quantidade do que é feito e produzido no império é
doado e recebido num sistema circular que é capaz de trazer de volta o espírito, se
assemelhando ao hau ou o mana.
As festividades são uma parte integrante do calendário açoriano. Esses períodos
são chamados de “tempos do império”. Império é o nome dado aos dias e períodos no
qual o festival acontece, especialmente o úlitmo domingo de sete. O imperador é a
pessoa que paga, faz a comida, organiza os papéis dentro do festival e são eles que se
envolvem nos entrementes das dádivas. O imperador desempenha a principal posição no
império; é aquele que recebe a coroa no último domingo, o de Pentecostes, e é aquele
que “paga” o débito ou a promessa aos santos. Essas promessas são a razão simbólica
para a organização de um império.
318
No tempo dos impérios, é vivido um distinto e particular entendimento do
tempo. Como nos Nuer (Evans-Pritchard, 1978) que percebiam a passagem do tempo
pela movimentação de um local a outro e pela produção social coletiva, os impérios
também demarcam um marco no calendário cultural. Ao tempo que acontecem no
primeiro semestre, na estação da primavera, muitas representações simbólicas se
utilizam de motivos do período. As flores que adornam as casas e as igrejas, os vegetais,
a carne, os métodos e culturas de plantação produzem representações da estação do
império, o qual ocorre do começo da quaresma e dura cinquenta dias. O império
acontece no último domingo de sete, dentro desses cinquenta dias, no mesmo em que se
comemora o dia da Santíssima Trindade, mais conhecido como Pentecostes.136
Impérios – promessas, grupos e imigrantes
O império é uma forma de se pagar um débito ou uma promessa. Em outras
palavras, é uma relação de reciprocidade entre o homem que pede e o Santo que
responde. É assim criado um entendimento simbólico ou uma linguagem específica para
transmitir a mensagem desejada. O imperador opera um rito que se estende por toda a
freguesia. O processo começa com a determinação dos papéis principais, representativos
e os coadjuvantes do império. É comum escolherem entre os círculos de relação, como
vizinhaça e parentesco,137 os que irão participar do evento. Os grupos são escolhidos
pelo imperador, cada um deles tendo um trabalho específico. Por exemplo, é muito
comum a família seguir a criança coroada pela procissão que vai do local onde estava a
coroa até a igreja. No caso dos vizinhos, os trabalhos são mais manuais, como a
preparação dos pães e sopas, o abate dos animais para a carne e fazer parte dos jantares
e dos ritos pesosas, como também preparando o próprio imperador para a cerimônia.
Existem também tarefas divididas por sexo e idade. As mulheres são
responsáveis pela decoração, enquanto os homens têm trabalhos mais braçais, como
retirar e preparar a carne para a cozinha e colher os frutos da plantação. Vendo isso,
pode-se estabelecer um interessante paralelo. As mulheres são designadas para as
tarefas mais fixas e localizadas, como tomar conta das crianças e da casa, assim,
simbolizando a casa e a genealogia que não se move; por outro lado, os homens têm
136
Curiosamente, por se tratar de uma festa extremamente importante para o açoriano, se comemora o dia
dos Açores no mesmo dia em que se celebra o Pentecostes.
137
São os filhos do imperador, ou mordomo, que são escolhidos para serem coroados. Sempre o filho
mais velho, independente se garoto ou garota.
319
tarefas menos fixas (pois “movimentam seu corpo social”), como a colheita e a caça.
Essa divisão sexual do trabalho traz de volta a noção do sistema compreensivo da troca
de esposas, muito observados em trabalhos anteriores com grupos nativos, como Maori,
Tallensi, Nuer ou fijianos. Os homens são a parte movel e, por isso, atuam como o
princípio da relação e da reciprocidade, enquanto as mulheres são, ou produzem, a
parte fixa ou “trocada” nessa relação de troca simbólica. Entender isso põe uma luz no
principal objeto dos estudos etnográficos, que foram trazidos por Sahlins, Mauss, LéviStrauss, entre outros. O comportamento social pode ser estabelecido pela razão
simbólica que movimenta esse grupo. A imposição de alguma ideologia forasteira
poderia apenas trazer novos mecanismo de significância para o significante. A estrutura
não é fixa, mas é antes fluida, assim podendo se encaixar no dispositivo simbólico que
traz de volta todo o arcabouço social e cultural.
Por essa customização simbólica de grupos, poderia haver numerosos
conglomerados feitos de uma pequena sociedade, como os açorianos. Isto é o que pode
ser chamado de “grupo de semelhança”; um grupo de pessoas que se produzem como
sendo parte de uma identidade coletiva, feita unida tanto pela individualização quanto
pelo entendimento de grupo. É a “cultural interpretativa, [onde] símbolos e
significâncias apresentam um valor objetivo, funcional, espiritual, religioso e
metodológico, distinto em cada cultura que os utiliza e os imprime em sua estrutura
social” (Henyei Neto, 2009).
Mas o império nunca irá acontecer sem a razão simbólica ser apresentada. A
promessa traz de volta toda a herança cultural, o conhecimento e as crenças, religiosas e
sociais. As promessas são feitas para os santos, como um acordo com os céus. As
promessas são, assim, o principal dispositivo, buscando a herança da cultura que está
nos arcabouços tradicionais, de modo que tentam promover as relações entre homens e
Deus. Um ponto que deve ser apresentado é que a razão da promessa é baseada sempre
no meio social, cultural, político e natural. Assim, as principais promessas são feitas
buscando uma boa colheita, uma boa estação e uma boa viagem. Os viajantes são um
dos mais intrigantes atores. Os movimentos imigratórios açorianos começaram nos fins
do século XIX; os principais portos de chegada são os Estados Unidos e o Canadá.
Quando nesses novos ambientes, o açoriano procura meios de regressar a sua identidade
e seus meios culturais de relação. Por essa razão, inúmeros impérios são feitos nessas
320
novas “terras açorianas”. Existem, hoje em dia, diversas casas açorianas espalhadas por
todo o mundo.138
Com a influência desses imigrantes, o dispositivo simbólico está em constante
mudança. O principal momento em que isso é percebido é durante os tempos dos
impérios. Os eventos acontecem uma vez por ano e por causa da ação dos imigrantes, é
agora mais fluido e bastante relacionado com as necessidades daqueles que vem de fora.
O imigante é agora levado a voltar, por imposição de seu trabalho ou de sua estada no
novo lugar, a voltar para o arquipélago em diferentes perídos no ano, algumas vezes não
correspondendo às datas específicas das festas do espírito santo, produzindo o que se
pode denominar de “impérios fora do tempo”, como Leal coloca. Os impérios se fazem
a partir de símbolos provenientes dos lugares de chegada dos imigrantes, pois são agora
seus lares e locais de relação.
Outra mudança nos impérios tradicionais é a introdução de mecanismos e
funcionalidades dos novos locais. São ícones, novos tipos decoração, diferentes tipos de
comida. Nos escritos de Leal, ele exemplifica isso com a introdução dos hamburgueres
americanos nas prestações alimentares por um açoriano vivendo nos Estados Unidos.
Esse novo mecanismo não foi bem aceito e os hamburgueres não conseguiram interagir
como esperado com a tradição local. Apesar disso, as novas significâncias podem trazer
uma nova ordem de relações aos impérios, sem interferir nas tradições e na herança
cultural de seus significados rituais.
As relações de parentesco continuam fortes mesmo separadas por um oceano.
Isso se dá pela prestação de dádivas simbólicas ao local de origem, como Mauss
explicita que as relações devem ser apresentadas: uma troca de dispositivos
significantes os quais são tidos como identificadores e opositores de grupos de
semelhança. Existem dois tipos de impérios de imigrantes: os primeiros são os
“impérios fora do tempo”, que ocoreem nas ilhas açorianas, quando aquele que vive
longe dos Açores volta para produzir sua relação simbólica com suas linhas de
parentesco e afinidade, baseada firmemente na questão da “saudade”. Pode-se entender
a “saudade” como um dispositivo que traz de volta o imigrante às suas origens
tradicionais. Assim, o sentimento de sentir falta de alguma parte da pessoa, deixada no
138
Existem diversas casas no Canada (Ontario, Quebec e Winnipeg), no Brasil (São Paulo, Rio de
Janeiro, Rio Grande do Sul e Santa Catarina), em Portugal (Porto, Algarve e Lisboa) e nos Estados
Unidos (Nova Inglaterra), oficializadas pelo governo açoriano.
321
local de nascimento, é o que traz de volta e expressa a identidade, a herança cultural e a
importância das relações que se mantém em seu local de origem. Isso é capaz de
produzir um entendimento individual e coletivo do que é o corpo social. O outro tipo de
império imigrante são aqueles feitos nas novas terras. Por essa característica, e se
baseando no tipo anterior, podem ser denominados de “impérios fora do lugar”. Este
promove a identida de no micro cosmo que é a comunidade, ou grupo de semelhança,
instalado na nova e desconhecida terra, ao se deparar com novos ícones simbólicos,
criando um entendimento novo e, ao mesmo tempo, tradicional da significância da
expressão da identidade.
São dados então novos motivos e promessas aos impérios, como a proteção aos
imigrantes, um bom retorno as viagens e sucesso nos negócios que existem nos novos
locais. Por essa razão, os impérios tomam a forma e o simbolismo do imigrante. O que é
visto e sentido fora do ambiente açoriano é introduzido nas celebrações. Um novo
simbolismo é então criado , dando uma nova identidade ao “espírito santo [que] é agora
visto como o protetor do sucesso do processo migratório” (Leal, 2009).
Impérios – o que é criado
A nacionalidade açoriana deve ser vista como uma produção independente, uma
identidade regional própria dos Açores. Isso porque, na organização dos festejos, da Ilha
de Pico a de Santa Maria, todos os símbolos trazem de volta os significados das dádivas,
da prestação e da reciprocidade, portanto, apenas pode ser uma identidade individual
com o entendimento do “outro”, esse “outro” sendo um distinto, pois não se produz
reciprocidade com o mesmo, a troca não se faz do corpo para esse mesmo. Assim, de
uma ilha a outra, e destas a Portugal, o festival do espírito santo cria uma noção do
corpo social açoriano, a integração entre as ilhas, tanto quanto a distinção, o ciclo de
dádivas, de dar e receber por entre as freguesias. Do modo que Lévi-Strauss ve a
oposição, e desenvolve os significados dos símbolos totemicos, pode ser reciclado e
reorganizado ao se observar esses grupos de oposição que se formam entre as freguesias
e os impérios. Um império é, como um potlatch, uma prestação total. Ele influencia
todos os níveis de relações dentro do grupo, ao deslocar uma riqueza espiritual de um
lugar a outro, fazendo disso um grande cerimonial, um enorme fluxo de “riqueza
simbólica”. Quanto mais caro e mais ostensivo é um império, maior o status que o
imperador, ou mordomo, adquirem em novas relações sociais, espirituais, comerciais e
322
políticas. Ao representar uma freguesia e uma linha de parentesco, o império luta para
superar seu antecessor, já que o imperador pode ser considerado o representante da
freguesia, e o próprio império são as representações simbólicas do grupo de semelhança.
Desse modo, uma oposição social é criada, e o império se torna o símbolo
representativo do grupo, se opondo a um outro.
Existe uma outra produção interessante dos impérios. São o que chamo de
“colegas de império”. São os imperadores que produzem sua cerimônia num mesmo
domingo. Eles podem tanto auxiliar, oferecendo alimento quando falta, desempenhando
alguma tarefa quando necessário, quanto podem atrapalhar, competindo para comprovar
quem produz o melhor império do dia. É comum, apesar do sempre presente sentimento
de rivalidade, que os imperadores sejam tanto ajudantes quanto rivais. Podem ajudar até
o momento em que para isso tenham que sacrificar algum momento de sua produção.
Essa relação de “duas-mãos” pode, de certo modor, encaixar na observação de Manuela
Carneiro da Cunha (1986) dos amigos formais e companheiros entre os Krahó. O amigo
formal representa o outro, o “de fora”, aquele ao qual se deve respeito e distância, assim
criando a imagem do que “não é”. Estes amigos formais podem tomar a posição de
obstáculos nos rituais, a contra-imagem ou um espelho socializado. De outro lado se
encontra o companheiro. O companheiro é aquele que vive junto e do mesmo modo que
a pessoa que o tem como ponto de relação. Comem juntos, brincam e participam dos
ritos de passagem, atravessando esse limbo social entre um lado e outro da iniciação ao
mesmo tempo, ou sofrendo os mesmos perigos. Isso tem a capacidade de expressa uma
identidade: o “espelho” daquele que vem de fora e a similaridade de seu semelhante.
Isso é tratado em outro trabalho sobre identidade nacional e os grupos de semelhança
(Henyei Neto, 2009).
Como pode ser observado, as celebrações se tornam uma espressão, uma prática
corporal, num limite, e uma produção simbólicaque afirma a si mesmo como um meio
para compreender a diferença, o pertencimento e a identidade coletiva em um grupo de
semelhança, enquanto produz sua própria identidade individual como um membro, ou
uma projeção, desse grupo particular. A razão simbólica é expressada nesses rituais,
ritos, promessas, grupos e impérios, e assim se constrói uma imaginação da
comunidade, como Benedict Anderson coloca:
Na verdade, qualquer comunidade maior que a aldeia
primordial do contato face-a-face (e talvez mesmo ela) é
323
imaginada. As comunidades se distinguem não por sua
falsidade/autenticidade, mas pelo estilo em que são imaginadas
(Anderson, 2008, p. 33).
Não é uma instituição física; é antes um ser psicológico e social, um corpo
cultural que toma contorno, toma forma, produzindo significado e significância aos
símbolos, criando identidade a partir das relações, relações a partir da troca, a troca da
diferença, e assim por diante, até o indivíduo que encontra seu colega. Essa produção
cultural e constantemente mutável dos significados, produz o que Marilyn Strathern
diria que são os impactos que produzem uma “eficácia [que por um lado] deriva da ação
coletiva, baseada no compartilhamento de identidade; por outro, de relações
particulares, baseadas na interdependência e na diferença entre pessoas” (Strathern,
2006, p. 152). Ou seja, o indivíduo e sua constante mudança de posição nas relações, e
essas próprias relações, que, nas palavras de Strathern, tomam agência, produzem um
entendimento a partir de um interpretativismo cultural dos significados e significâncias.
“A acumulação de símbolos”, como dito por Victor Turner (1974, p. 21),
“aumenta a importância dos laços de parentesco”. Em outras palavras, a reciprocidade
simbólica traz de volta uma genealogia a qual é expressada através de diferentes
celebrações, provindas, num exemplo, das Festas do Espírito Santo.
Bibliografia
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nacionalismo. [Imagined communities: reflections on the origin and spread of
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325
Folia e fé: performance e identidade nas festas de Santos Reis
em João Pinheiro-MG, Maria Célia da Silva Gonçalves (TRANSE/UnB)
Doutoranda em Sociologia
[email protected]
Resumo: Esse trabalho objetiva investigar como a Performance Ritual da Folia
de Reis escreve as memórias ligadas à religiosidade dos foliões do município de João
Pinheiro-MG. Participar das Folias de Reis implica sair do cotidiano e viver o contexto
da partilha, do encontro, por meio do ritual da festa. A performance dos foliões
apresenta uma linguagem que faz surgir as mais diversas leituras e interpretações. A
festa é um lugar de memória coletiva, em que a identidade de cada um se
constrói/reconstrói intermediada pela arte popular. O corpo do folião é lúdico e também
um corpo ritual, sacralizado, que sabe o valor da religiosidade repassada de geração a
geração por meio da oralidade. A cada apresentação, esses conhecimentos são
reinterpretados, (re)siginificados e, assim, preservam a memória coletiva e a tradição
deste povo. O emprego das técnicas etnográficas justifica-se por acreditar que o
pesquisador deve mergulhar no universo pesquisado; buscando muito além do ver, ele
deve vivenciar as práticas culturais de seus narradores.
Palavras-chave: folias de Reis, performances, memória, identidade, ritual.
Este artigo objetiva investigar como a Teatralidade e a Performance Ritual da
Folia de Reis escrevem as memórias ligadas à religiosidade dos foliões do município de
João Pinheiro-MG. Teixeira (2004, p.08) alerta que:
Performance é um conceito-em-progresso, ou seja, em
construção, que assume várias nuances e focos, conforme as
circunstâncias, visando ajudar a esclarecer objetos tantos
específicos quanto variados, seja em perspectiva histórica ou
trascultural. [...] ele se coloca como mecanismo eficiente para
pensarmos as interações entre ciência e arte, situando-se, por
exemplo, na fronteira entre ciências sociais e as manifestações
artísticas num sentido mais lato.
Embora seja o conceito de Performance elástico e em construção, até mesmo
pelo seu pequeno tempo de vida no
Brasil, ele vem se tornando um conceito
326
extremamente relevante para investigar manifestações culturais que são feitas por
artistas do povos, como é o caso da Folias de Reis, porque:
no estudo da performance, os valores e os objetivos da cultura
são vistos e percebidos em ação, oferecendo a possibilidade de
questionamentos críticos na compreensão de práticas sociais,
com os aspectos da vida cotidiana e até mesmo da complexa
rede de movimento social da pós-modernidade (Guilarduci,
2003, p.162-163).
O que é Performance? De acordo com Turner (1982, p. 11), seria:
Uma peça teatral? Dançarinos dançando? Um concerto
musical? O que você vê na TV? Circo e carnaval? Uma
entrevista coletiva de um presidente da república? [...]
Performance não é mais um termo fácil de se definir: seu
conceito e estrutura se expandiram por toda parte. Performance
é étnica e intercultural, histórica e atemporal, estética e ritual,
sociológica e política. Performance é um modo de
comportamento, um tipo de abordagem à experiência humana;
performance é o exercício lúdico, esporte, estética,
entretenimento popular, teatro experimental e muito mais [...].
O trabalho com a teoria da Performance se justifica por ser ela um campo de
estudo
que
exige
interdisciplinaridade.
Para
estudar
uma
manifestação
artística/religiosa/cultural como a Folia de Reis faz-se necessária a imersão no domínio
de outras ciências sociais, uma vês que “o estudo da Performance combina antropologia,
artes performáticas e estudos culturais, usando lentes inter-disciplinares para examinar
um conjunto de atos sociais: rituais, festivais,teatro, dança, esporte e outros eventos ao
vivo” (Ligiéro, 2004, p. 90).
Ao estudar as Folias de Reis pinheirense, sob a luz da teoria da Performance, é
possível perceber que a “Performance empresta insghts valiosos para a formação e
identidade permitindo um espaço para entendimento intercultural e através da
performance os significados centrais, valores e objetivos da cultura são visto em ação”
(Ligiéro, 2004, p. 90). Partindo deste pressuposto, pode-se inferir que a performance é
uma forma de comportamento, uma maneira de agir e pensar sobre as atividades
humanas.
Por meio da Performance, os grupos de Folia de Reis de João Pinheiro vão
criando/(re)criando uma identidade muito peculiar, vão marcando o seu lugar social por
327
meio da teatralidade de suas apresentações. Nesse trabalho, a teatralidade 139 é pensada
como jogo dos atores que potencializa o universo performático, ocupando uma função
primordial: a de ser visto, notado e, dessa maneira, eternizado enquanto memória. A
Festa de Reis ocupa, nessa situação, uma posição de evidência, devido à grande
sociabilidade que propõe e oferece ao conjunto da sociedade pinheirense, possibilitando
aos envolvidos inúmeros e entrecruzados olhares.
Stelzer (2007, p. 130) afirma: “A teatralidade, como elemento da performance
do ator, se refere ao seu desempenho na interpretação de uma obra. Portanto, é um
modo de realização que não implica na autoria da obra em sua totalidade”. Pensando
dessa maneira, o folião é ator de um teatro popular, a Folia de Reis. Ele interpreta uma
história tão antiga quanto a Bíblia, mas ao mesmo tempo se renova a cada encenação.
João Pinheiro é o maior município em extensão territorial do Estado de Minas
Gerais; de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) são
10.717 quilômetros quadrados e uma população de 43.229 habitantes (IBGE, 2007). Sua
economia é baseada fundamentalmente na agropecuária sendo, atualmente, pautada nos
agronegócios.
Como todas as cidades do interior mineiro, mais pontualmente do Noroeste de
Minas, a sociedade se formou sob os auspícios da religião católica e, ainda hoje,
mantém os seus ritos e festas. Durante o ano, são celebradas as festas em homenagem
aos santos devocionais, destacando-se, dentre elas, as festas em homenagem aos Santos
Reis.
Todos os anos, aos Sábado e Domingo de carnavais, é realizado em João
Pinheiro o encontro de Folia de Reis promovido pela Associação de Foliões de Santos
Reis de João Pinheiro. Nesse ano, o encontro contou com a apresentação de 28 Ternos
de Folia da cidade e dos distritos, além da visita de um terno da cidade vizinha de
Paracatu.
O encontro iniciou no sábado dia 13/02/10 com a celebração da Santa Missa,
momento em que os presentes e os foliões aproveitaram para pedir as bênçãos a Deus e
proteção para a realização do evento, que começou com a apresentação da Folia das
139
A noção de teatralidade é complexa, a despeito de sua aparente simplicidade em constituir-se como
um substantivo urdido a partir do adjetivo teatral. Em sua acepção comum e mais divulgada, a
teatralidade designa algo levemente ostentatório ou arbitrariamente empreendido para gerar um efeito
(Mostaço, 2007).
328
Almas, cujo capitão é o Senhor Luiz Paulo. Essa é uma folia muito atuante e sempre se
fez presente nos encontros anuais. Sua performance conta com uma bela cantoria e
atuação de um palhaço que encantou os presentes. Várias outras folias se apresentaram.
Ao meio dia, foi servido um farto almoço, como é de praxe nas festas de reis. Nos
intervalos de uma folia e outra acontecia a apresentação de duplas e trios cantando
desafios ou música de raiz, brindado ao público presente com um show de alta
qualidade da cultura sertaneja local. Coube à Folia do Facão o encerramento do dia de
Sábado. Esse enceramento foi feito com toda a alegria e disposição, depois da cantoria
tradicional ainda apresentaram o lundu do palhaço e o sanfoneiro fez um belo show.
329
F OTOS 01 E 02: D ECORAÇÃO DO S ALÃO DA A SSOCIAÇÃO DO F OLIÃO E
FEITAS PELA PESQUISADORA NO DIA
O
P ALHAÇO DA F OLIA DAS A LMAS (F OTOS
13/02/2010).
No Domingo, dia 14/02/10 se apresentaram 20 Ternos de Reis, tornando-se um
dia denso e extremamente festivo. A cada grupo que se apresentava o público presente
aplaudia fervorosamente. As folias ofereceram um grande espetáculo de ritmos, cores,
330
vozes e performances diferenciadas. Sem contar o almoço servido a milhares de pessoas
que se fizeram presentes. O Dia foi encerrado com a celebração da Santa Missa pelo Pe.
Preguinho, padre que em sua trajetória de sacerdócio tem apoiado a divulgação das
performances culturais Folia de Reis de João Pinheiro.
Cada terno trouxe os seus donativos em dinheiro ou em produtos que foram
doados para o Abrigo S’Antana, Fazendinha e Casa do Peregrino140, demonstrando a
grande solidariedade que envolve essa manifestação artística/cultural/religiosa.
Solidariedade e Sociabilidade são palavras que compõe a tradição das Folias de Reis:
“A tradição é uma orientação para o passado, de tal forma que o passado tem uma
pesada influência ou, mais precisamente, é constituído para ter uma pesada influência
para o presente” (Beck; Giddens, 1997, p. 80). Pensando desta forma, as folias
permitem conhecer um pouco da História do passado rural de João Pinheiro e
compreender a cultura religiosa presente.
O fato de o evento estar em sua trigésima edição e conseguir reunir anualmente
por volta de 30 grupos de Folias de Reis, confirma a hipótese de que João Pinheiro
possui uma das maiores expressões de folia do Brasil e de que elas são tradicionais.
140
Instituições de caridade existentes no município de João Pinheiro (MG).
331
F OTOS 03
E
04: P ALHAÇOS
PESQUISADORA NOS DIA
DA
F OLIA
DO
F ACÃO
E DA
F OLIA
DO
B AIRRO
DO
P APAGAIO . (F OTOS
FEITAS PELA
13 E 14/10/2010).
Segundo Beck; Giddens (1997), a tradição agrega e monitora a ação à
organização tempo-espacial da comunidade (ela é parte do passado, presente e futuro; é
um elemento intrínseco e inseparável da comunidade). Ela está vinculada à
compreensão do mundo fundada na superstição, religião e nos costumes; ela pressupõe
uma atitude de resignação diante do destino, o qual, em última instância, não depende
da intervenção humana, do “fazer a história”. Pensando dessa maneira, conhecer é ter
capacidade para produzir algo e está ligado à técnica e à reprodução das condições do
viver. A ordem social embasada na tradição demonstra a valorização da cultura oral, do
passado e dos símbolos enquanto fatores que eternizam a experiência das gerações.
A tradição envolve o ritual das Folias de Reis; este constitui um meio prático de
preservação. Nas sociedades que integram a tradição, os rituais são mecanismos de
preservar a memória coletiva e as verdades inerentes ao tradicional. O ritual reforça a
experiência cotidiana e refaz a liga que une a comunidade, mas ele tem uma esfera e
linguagem próprias e uma verdade em si, isto é, uma “verdade formular” que não
depende das “propriedades referenciais da linguagem”. Pensando de outra forma:
a linguagem ritual é performativa, e às vezes pode conter
palavras ou práticas que os falantes ou os ouvintes mal
conseguem compreender. [...] A fala ritual é aquela da qual não
332
faz sentido discordar nem contradizer – e por isso contém um
meio poderoso de redução da possibilidade de dissenção (Beck;
Giddens, 1997, p. 83).
Os foliões de João Pinheiro são guiados em uma “verdade formular” na qual se
funda o ritual, necessitando do intérprete, e este é o guardião da tradição. Ele se
caracteriza pelo papel que ocupa na ordem social. Seguindo essa linha de pensamento,
pode-se afirmar que os foliões de João Pinheiro são verdadeiros guardiões da tradição
local de Folia de Reis.
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333
Perigo e criatividade nas performances cômicas de palhaços
de folias de reis, Daniel Bitter (UFF)
Doutor em Antropologia (UFRJ)
Professor Depto. de Antropologia (UFF)
[email protected]
Resumo: Em diversas regiões brasileiras, homens, mulheres e crianças se
envolvem em amplas teias de reciprocidades sociais, em especial no período natalino,
motivados por devoção aos Reis Magos do Oriente, configurando-se as chamadas folias
de reis. O palhaço é um personagem marcadamente liminar, presente em algumas dessas
manifestações e sua ambivalência simbólica é uma de suas características mais notáveis.
Por um lado, os palhaços são associados às idéias de perigo e desordem e a valores
moralmente negativos, e por outro, à própria imagem divina dos Magos. Essa
ambigüidade evidenciada a partir das exegeses mitológicas e do uso ritual da máscara é
uma via privilegiada para a sua performance cômica e criativa.
Procura-se mostrar, por meio de dados etnográficos, que o palhaço exerce uma
função ritual operatória central, por meio da qual reafirmam-se valores e concepções
cosmológicas fundamentais, bem como abre-se uma via para a renovação dessas idéias.
Palavras-chave: folias de reis, mito, rito, comicidade, performance.
Ao sinal do toque acelerado da sanfona e dos instrumentos de percussão, uma
extensa roda de animados espectadores se forma, aguardando ansiosamente a entrada do
palhaço, personagem mascarado da folia de reis. O palhaço pede licença ao dono da
casa para iniciar sua performance espetacular a que todos chamam de brincadeira, na
qual este personagem de aparência e gestos assustadores e debochados executa
virtuosísticas acrobacias e declama versos rimados, quase sempre de caráter cômico,
conhecidos como “chulas”.
Quem é bom já nasce feito
Eu tento fazer o que pode
Me dá licença meu povo
que eu tô dentro do pagode
334
você vai me dar os dois real
eu posso falar do seu bigode?
Eu gostei do seu bigode, meu filho
porque ele é uma coisa correta
Tem duas curvas no meio
tem outra curva na reta
Você parece que engoliu
Três guidões de bicicleta
(Palhaço Criolo. Laranjal, MG)
O intento dessa comunicação está em explorar alguns dos sentidos associados ao
lugar que o palhaço ocupa nas chamadas folias de reis, empreendimento festivo muito
difundido no território brasileiro, que apresentam uma grande diversidade de variações
regionais e denominações locais. Tratam-se de grupos de cantores e instrumentistas que
realizam visitas rituais às casas de devotos, distribuindo bênçãos em troca de donativos
para a realização de uma grande festa. Em geral, estas visitas chamadas de “jornadas”,
são realizadas entre os dias 25 de dezembro e 6 de janeiro (dia de Reis).
A literatura sobre o assunto é relativamente extensa, mas coube a Carlos
Brandão (1977, 1981) renovar os estudos sobre o tema notando que as folias de reis são
sistemas de trocas simbólicas de dons (favores, gentilezas, presentes, bênçãos,
donativos etc.), envolvendo foliões, devotos e suas divindades, contribuindo para a
consolidação de importantes laços sociais. Observando folias de reis no interior de
Goiás, Brandão partiu das teorias desenvolvidas por Marcel Mauss que em seu Ensaio
sobre a dádiva (2003) aponta para a dimensão política das trocas, por meio das quais os
homens se comprometem moralmente entre si.
Em geral, as folias de reis originam-se de “promessas” religiosas dedicadas aos
reis magos e a outros santos, como forma de retribuição por benefícios e graças
alcançadas. Diz-se que, uma vez que a folia tenha sido criada, deve manter-se
obrigatoriamente em atividade por sete anos consecutivos, mas o que se observa é que
passado esse período, em geral as atividades têm continuidade.
A brincadeira do palhaço é uma parte das atividades realizadas por uma folia de
reis durante a visitação nas casas de devotos, envolvendo uma sequência ritualizada de
335
ações: chegada, entrada na casa, distribuição de bênçãos, refeição, apresentação dos
palhaços, ofertas de donativos, agradecimentos e despedida. A maior parte dessas ações
gira em torno da manipulação da “bandeira”, objeto material que, segundo foliões e
devotos, é capaz de trazer bênçãos e graças a quem a recebe. Trata-se de um suporte
sobre o qual são fixadas imagens de santos católicos e representações pictóricas de
narrativas bíblicas. Sua guarda fica sob a responsabilidade da “bandeireira”, uma das
funções rituais da folia. A “bandeira” estabelece uma relação contrastante e
complementar com o palhaço e sua máscara. Esta relação pode ser definida nos termos
de uma hierarquia entre um ‘sagrado puro’ e ‘sagrado impuro’ (Dumont, 1992), ou entre
um mais sagrado e um menos sagrado (Van Gennep, 1978). Há nas folias, portanto,
uma marcada oposição entre palhaços e foliões, e também entre a máscara e a
“bandeira”, reforçada por outras oposições correlatas, como a existente entre rua e casa,
sério e cômico etc. Essas oposições parecem evidenciar um sistema de idéias que aponta
para o fato de que foliões e devotos compõem uma visão totalizadora do mundo.
Conforme observei na Candelária, um dos núcleos populacionais do Complexo
de Mangueira, durante as ações rituais que se desenrolam no interior das casas os
palhaços permanecem obrigatoriamente do lado de fora, chamando a atenção da
vizinhança, correndo agitadamente, gritando e assustando crianças que se juntam ao seu
redor. Em alguns casos, o palhaço é autorizado a realizar sua apresentação no interior da
casa, mas nessas ocasiões, em geral, a “bandeira” precisa ser coberta com um pano ou
retirada do local, devido às incompatibilidades rituais entre ambos. Noto que se a
“bandeira” está simbolicamente associada à “casa”, o palhaço, por sua vez, está mais
ligado à “rua”, enquanto categorias totalizadas numa moral (DaMatta, 1987).
A apresentação do palhaço é sempre iniciada com insistentes e longos pedidos
de licença ao dono da casa, através de versos memorizados e improvisados, numa
espécie de “rito de passagem” (Van Gennep, 1978).
Eu comprei uma casa
Lá do lado do sertão
Bebo sangue do caboclo
Arranco fora o coração
Patrão, me dê licença
Pra passar no seu portão?
336
(Palhaço Pimentinha, Candelária, Complexo de Mangueira.
Janeiro, 2006)
Os versos podem, em algumas ocasiões, ser proferidos de modo mais sério,
apresentando conteúdo moral, exigindo-se, às vezes, quando os temas tratados são
religiosos, que a máscara seja retirada. A apresentação do palhaço desenrola-se em forte
interação com o público e com os familiares da casa. Seu jogo está em divertir os
espectadores com versos e malabarismos de todo tipo e conseguir tirar proveito do
dinheiro ofertado pelos presentes, que é jogado no chão. Os ganhos, assim, dependem
de uma negociação permanente entre palhaço e público, na qual se trocam versos ou
bailados por dinheiro.
Os palhaços são personagens intensamente cercados de obrigações, regras e
restrições. Quando mascarados, costumam ser impedidos de entrar em igrejas ou em
outros lugares sagrados, ou de se aproximar da “bandeira”, ou ainda de fazer as
refeições junto dos foliões. Considera-se, por vezes, perigoso tocar em suas vestes ou
máscara, e o motivo de tanto cuidado com estes personagens misteriosos se deve aos
significados a eles atribuídos. Algumas interpretações os relacionam com o Diabo, o
Cão, Herodes ou com seus soldados que teriam seguido a trilha dos Magos em
perseguição ao menino Jesus, de acordo com as narrativas míticas. Os palhaços são,
portanto, considerados fonte de poluição, e como bem notou Mary Douglas “A reflexão
sobre a sujeira envolve reflexão sobre a relação entre a ordem e a desordem, ser e não
ser, forma e não forma, vida e morte” (1976: 17).
Por outro lado, o palhaço é também tido como guardião da folia de reis e da
“bandeira”. Em algumas regiões do sul de Minas Gerais, por exemplo, são os
mascarados que vêm à frente do grupo, ladeando a “bandeira”, a anunciá-la aos donos
das casas. De acordo com Porto (1982), os palhaços da região sul-mineira são, por
vezes, confundidos com os próprios Magos, sobretudo quando levantam a parte frontal
da máscara transformando-a em uma verdadeira coroa. Ana Suzel Reily relata que entre
folias de Reis de São Bernardo – SP os palhaços são também tidos como os próprios
Magos disfarçados com máscaras para desviar a atenção dos soldados de Herodes de
sua busca ao menino Jesus (2002: 74).Também, considera-se que os palhaços, mais do
que qualquer outro, necessitem da proteção da “bandeira”, de seus poderes divinos. Se
337
por um lado devem manter certa distância da “bandeira”, por outro, não podem
distanciar-se demais dela.
Uma pessoa torna-se um palhaço, muitas vezes, em decorrência do pagamento
de uma “promessa” feita aos Magos e, uma vez tendo se iniciado nesta prática, deverá
assim permanecer por pelo menos sete anos, sob o risco de ser severamente castigado
por seres imaginários. As observações etnográficas têm apontado para o fato de que o
exercício da função de palhaço tem repercussões nas demais dimensões da vida
individual e na concepção de pessoa que se elabora.
Todas estas características contribuem para desenhar uma personalidade
extremamente complexa e ambivalente. Sua força está exatamente nas variantes de seus
significados. A ambigüidade própria do palhaço está em que, representando o mal e,
portanto, lidando concretamente com forças perigosas, deve, no entanto, proteger-se
destas forças maléficas. Para isso, muitos são os preparativos que um palhaço deve
realizar antes de se fardar e de sair numa folia, por meio de numerosos procedimentos
“mágico-religiosos”, tais como rezar, acender velas, louvar a “bandeira”, tomar passes,
etc.
As observações até aqui colocadas indicam que uma das características mais
marcantes do palhaço parece, de fato, ser sua “liminaridade”, no sentido dado por Victor
Turner (2005), uma vez que o autor sugere que, na fase liminar de certos rituais onde se
objetiva mudança de status, o individuo muitas vezes exibe características ambíguas,
tornando-se estruturalmente invisível e perigosamente antissocial. Por essa razão, com
frequência usa máscara e é isolado do grupo.
Essa ambivalência torna-se ainda mais evidente no ritual denominado “entrega
da bandeira” durante o encerramento do ciclo anual de “jornadas”, no qual os palhaços
passam por uma mudança de status. Nesta ocasião, foliões e palhaços se encontram
reunidos na sede do grupo para a despedida da “bandeira”. Os palhaços retiram as
máscaras e caminham de joelhos lentamente em direção à “bandeira”, deitando-se de
bruços diante dela, enquanto se desenrola a cantoria de versos. A bandeireira, então,
pousa a “bandeira” sobre suas costas, girando-a, de modo a realizar o sinal da cruz, na
forma de um benzimento. Na seqüência das ações, os palhaços e foliões beijam a
“bandeira” demoradamente, quando então, são liberados de suas funções e obrigações
rituais.
338
Diz-se que, nessa ocasião, os palhaços estão pedindo perdão pela perseguição ao
menino Jesus, como aparece nos mitos, e declarando-se arrependidos. Trata-se de uma
conversão simbólica, por meio da qual confirma-se a supremacia moral do bem contra o
mal, da ordem contra a desordem, sempre iminente. Uma das muitas explicações que
foliões dão para o uso de máscaras pelos palhaços é que, de acordo com os mitos, os
soldados de Herodes teriam se convertido ao ver o menino Jesus e assim, as teriam
adotado para que o próprio Herodes não os reconhecesse e acusasse de traição.
A importância do palhaço nesse contexto parece estar, portanto, em confirmar
idéias, valores morais e visão de mundo de foliões e devotos e, ao mesmo tempo,
renová-los e atualizá-los por meio de seu poder criativo. Como sinaliza Turner, as
situações liminares são particularmente propícias à emergência de novos padrões,
modelos, símbolos e paradigmas. A brincadeira do palhaço é, de certa forma, o lugar
potencial da subversão, da desordem, da criatividade, em contraste complementar com a
formalidade e a solenidade do canto, da música, das palavras e dos gestos dos foliões.
Nesse sentido, os palhaços podem ser vistos também como portadores de idéias não
oficiais. Por meio da folia de reis, manifestação na qual as relações entre mito e rito,
pensamento e ação, ocupam lugar central, foliões, palhaços e devotos ordenam
continuamente o mundo.
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VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978.
339
SESSÃO 3: MULHERES EM PERFORMANCE: SANTA DICA,
ENCOMENDADEIRAS,
AGENTES
PENITENCIÁRIAS,
FLAM ENCAS
E
MULHERES-BATERA
A corrida e bateras: reinvenções performativas numa
comunidade de pescadores em Florianópolis -SC, Maycon Melo (UFSC)
[email protected]
Resumo: As experiências performativas formam um espaço privilegiado através
do qual as culturas se exprimem e ganham consciência de si próprias. Em setembro de
2009 na Barra da Lagoa, comunidade pesqueira em Florianópolis que recebe grande
fluxo de turistas no verão, um grupo de mulheres organizou na forma de performance
cultural uma Corrida de Bateras. As bateras são pequenos barcos onde se utiliza um
bambu para o deslocamento em curtas travessias e representam uma imagem marcante
da identidade local. Nas antigas corridas participavam em sua maioria pescadores e o
longo trajeto testava os atributos que marcavam as características dos homens do mar.
As performances também são espaços de negociação do poder e de reconfiguração
cultural. A Corrida de Bateras reuniu numa mesma experiência performática pescadores
e uma rede heterogênea de moradores da região advindos de outras cidades e países. A
corrida que servia como distinção agora engloba um grupo que é reflexo do processo
turístico da região. Um jogo de complexos performáticos, estruturados de forma tênue
entre teatralidade e performatividade, reconfigurou a relação entre pescadores, os
moradores “de fora” e o poder público local. Reverberando pelo canal da Barra da
Lagoa se viu um pastiche que na apropriação estética da imagem do “outro” colocou
foco numa performance que desdobra a tradição local e a contextualiza no debate
político e cultural contemporâneo.
Palavras-chave:
comunidade
pesqueira;
reconfiguração
performática;
reivindicação e legitimação política.
A Barra da Lagoa, Dona Maria e Agência
Este artigo pretende colocar em discussão o recente processo que ocorre numa
comunidade pesqueira de Florianópolis, onde entram em cena performances que tanto
reivindicam uma identidade essencialista quanto fogem dela num jogo-de-espelhos
340
(CAIUBY NOVAES, 1992) que se dá com os “outros”, moradores que devido ao
intenso turismo da região permaneceram na comunidade.141 Mais do que trazer a tona às
estratégias de representação deste grupo pretendo valorizar uma abordagem que destaca
a agencia dessa comunidade e a não linearidade dos processos que envolvem sua
inserção no âmbito cultural e político contemporâneo.142
A Barra da Lagoa é uma das importantes comunidades pesqueiras do leste da
Ilha de Santa Catarina.143 Tem 10 mil habitantes, cem barcos de pesca e inúmeras
bateras. Considerada uma comunidade tradicional recebe um número crescente de
turistas no verão que multiplica sua população normal. Os pescadores embarcados, a
pesar de produzir durante os outros nove meses dentre duas a três vezes o equivalente
do turismo em dinheiro real, padecem uma imobilidade política que resulta no
ancoramento da triste classificação de pescadores artesanais (GODIO, 2005).
Ao mesmo tempo em que o grupo tenta gerir a representação de imagem
marcante da identidade local, a de comunidade pesqueira com tradição açoriana, seus
filhos trocam a pesca pela atividade em restaurantes e pousadas, muitos deixam de viver
na Barra em busca de melhores opções de trabalho e as construções locais a algum
tempo ganharam novo formato para atender a demanda dos inquilinos vindos de toda
parte do país e do mundo. A Barra, assim como toda Florianópolis:
[…] evidencia um certo ar de “desarranjo” em categorias
analíticas da modernidade, como etnia, classe, gênero e
condição profissional, que antes situavam socialmente os
indivíduos, e hoje se transformam em fronteiras ambíguas,
permeáveis e móveis [...] (SILVA, 2005).
Não pretendo neste artigo discutir as nuances da modernidade e da globalização,
especificamente, no que diz respeito às reivindicações de identidades contemporâneas,
mas é fundamental para se compreender o valor político e cultural da Corrida de Bateras
situar a Barra e seus moradores neste contexto mundial. Nele se intensificam as relações
141
Essa discussão, ainda numa fase inicial, está vinculada ao projeto Pesca, Gênero e Turismo,
desenvolvido pelo Núcleo de Antropologia Visual e Estudos da Imagem; Núcleo de Antropologia Urbana
e Marítima (NAVI/GUM) PPGAS/UFSC.
142
O texto de Rita de Cácia Oenning da Silva (2005) foi de grande inspiração para essa abordagem.
143
Meu inicio de campo na Barra e as discussões que faço aqui são fruto dos intensos diálogos com
Matias Godio_PPGAS/UFSC e os membros da ONG Comuna Visual que atuam nesta comunidade.
341
que ligam localidades distantes com os acontecimentos locais,144 uma interferindo na
estruturação da outra (GIDDENS, 1991). As características de desterritorialização e de
novos agrupamentos sociais e políticos dentro dos interesses dos moradores da Barra da
Lagoa145 operam de maneira a dissolver as fronteiras que marcavam as identidades
locais (APPADURAI, 1994). Também não pretendo insistir no paradoxo apontado por
Geertz (2001) entre a uniformização cultural e a diluição do mundo em etnias, tribos e
indivíduos, mas sim apontar através da Corrida de Bateras as estratégias de
representação e de agencia que fazem parte da constituição do grupo frente o mundo
global. Ou seja, como estas estratégias constituem um fluxo entre essas duas vias
extremas de análise geertziana. Nelas as identidades não mais aparecem como um
marco que remete a cultura e a sua permanência, mas sim a identidade e suas fronteiras
(BARTH, 1969). É nessas fronteiras que de objetos de estudo os agentes deste processo
tornam-se sujeitos que agem a fim de reivindicar e legitimar seus interesses políticos
seja nas agendas públicas ou privadas (SILVA, 2005).
É sob esse aspecto que Dona Maria exerce um papel fundamental sobre o grupo
de moradores da Barra e os participantes da Corrida de Bateras. Maria, 79 anos, é a
matriarca de um “household” que agrupa territorialmente mais de 50 membros ligados
familiarmente no Morro Torquato. O Morro è chamado assim pelo marido falecido de
Maria. Trata-se de um amplo e valioso território de aproximadamente 105.000 m2 que
vai do canal, que liga o mar a Lagoa da Conceição, até o chamado Costão da Barra da
Lagoa, área de grande especulação imobiliária. A presença de Maria à frente da corrida
de bateras foi um forte elemento aglutinador entre os pescadores, os moradores da
região e os representantes políticos. A corrida de bateras por anos foi realizada durante a
Festa da Tainha, celebração típica da Barra desde os anos 70 durante o governo de
Espiridião Amin e a Criação do Conselho Comunitário. Há dois anos a festa não
acontecia por diferenças políticas e pela primeira vez a corrida tornou-se um evento
144
Um exemplo são as variações no câmbio do dólar e o fluxo de turistas argentinos à Barra da Lagoa.
Ano após ano os moradores nunca sabem se poderão contar com esse grupo que vem a Barra em grande
número. Entre os moradores e empresários já se fala de estruturar um turismo visando os europeus.
145
Na Barra a quantidade de moradores vindos de outras regiões modificou a estrutura econômica da
região, com restaurantes e pousadas de gaúchos, paulistas e argentinos, as relações de parentesco, através
do casamentos com os ditos outsiders, as festas populares, como o caso da corrida de bateras que inclui os
“moradores de fora” e a própria organização política, por exemplo, através da ONG Comuna Visual
formada a princípio por argentinos.
342
com autonomia própria, configurando uma certa “performance cultural” na Barra. 146 Foi
Maria quem meticulosamente escolheu e dividiu as duplas para a corrida, colocando em
cada batera um “nativo” e um “morador de fora”.147 Ela quem conseguiu patrocínio,
divulgação e a presença de um vereador entre os espectadores.
Ao mesmo tempo em que Maria representa uma imagem da identidade do
açoriano, viúva de pescador com filhos pescadores e rendeira, reivindicando em suas
falas essa identidade essencialista, ela incorpora na sua ação organizativa do evento esse
outro que vem de fora. Ou seja, não é só o turismo que incorpora sua família e tradição
em seus apelos modernos, mas é também Maria quem incorpora o turismo e o moderno
dentro de sua família e tradição. Dito de outra forma, num jogo-de-espelhos (CAIUBY
NOVAES, 1993) a imagem deste outsider, supostamente representando risco a tradição
local, é incorporada pela Corrida que Maria organiza como parte da própria
remodelação ou reinvenção dessa tradição. A corrida, antes realizada para testar os
atributos dos homens do mar, passa a acontecer a partir da Corrida de Bateras numa
ação que coloca lado-a-lado a tradição e as nuances da globalização e da
desterritorialização. “O jogo de espelhos é, assim, uma metáfora [...] adequada para
ilustrar, tanto o processo de formação, como as transformações da auto-imagem de uma
sociedade em contato com grupos sociais diferentes de si própria” (idem, p. 108).
A Corrida de Bateras: reivenções performativas
Sobre esse pano de fundo a Corrida de Bateras se configura como um espaço
privilegiado através do qual as estratégias culturais na Barra permitem aos seus
moradores se exprimir e ganhar consciência de si próprios.
O conceito de performance há mais de 20 anos é desenvolvido dentro da
Antropologia e pode ser pensado como desdobramento das preocupações simbólicas em
torno do rito e das abordagens centradas no discurso realizadas a partir da etnografia da
fala (LANGDON, 1996; HARTMAN 2005). De forma mais clara, a diferença entre os
estudos clássicos sobre ritual para as preocupações em performances diz respeito ao
deslocamento das análises; enquanto o primeiro se preocupava com os aspectos
146
O termo performance cultural de Singer foi adotado por Turner (1987: 23) e se refere a expressões
artísticas e culturais marcadas por um limite temporal, por um programa de ações organizadas, por uma
seqüência de atividades, atores (performers), platéia (audiência), um lugar e ocasião para acontecer.
147
Esses moradores eram em sua maioria inquilinos de Maria em suas residências no Morro do Torquato.
Dentre eles, paulistas, gaúchos, argentinos e italianos.
343
semânticos dos símbolos o segundo coloca em evidência as dimensões temporárias do
evento, aquilo que emerge da interação entre os sujeitos, a poética e a negociação das
expectativas (SCHIEFFELIN, 1985). Enfim, trata-se de momentos pós 70, onde a
antropologia entrou numa fase de crítica a seus conceitos e pressupostos, “caracterizado
pelo imprevisto ou indeterminado, a heterogeneidade, a polifonia de vozes, as relações
de poder, a subjetividade e a transformação contínua” (LANGDON, 1999, p. 07). Paulo
Raposo (2003), seguindo essa lógica de transformação contínua, sugere o conceito de
“complexos performáticos” para se pensar os processos de reconstrução e reinvenção
das performances entre os sujeitos e os grupos. Trata-se de momentos que intercalam
ações teatralizadas, ou seja, do modelo “as if”, do falso, do fingir, até o modelo que
chega a idéia de que a performance não é teatro; é vida na qual o corpo do performer
promove uma desteatralização do teatro. O que temos nas representações são nuances
da cultura, das experiências e das negociações políticas e de poder emergindo entre os
participantes.
No caso da Corrida de Bateras toda a ação/representação do grupo não só
transitou entre os dois modelos, mas se apropriou intencionalmente dos mesmos
conforme seus interesses.148 No passado a corrida era realizada por moradores da Barra,
os “manézinhos da Barra”. Nelas, além de se testar os atributos dos homens do mar,
como coragem, força e perseverança, também se colocava em jogo/drama as disputas
entre as famílias. Em sua nova versão a Corrida passou a integrar os “moradores de
fora”, representantes da modernização e do turismo local, aos antigos participantes. A
atividade assumiu um formato preocupado mais em ser visto e assim representar os
interesses dos grupos locais, deslocando em parte as rivalidades comunitárias,
[…] trata-se de manifestações sociais que foram antes
produzidas em contextos culturais de outro tipo no passado
(arcaicos, comunitários, ruralizantes), onde encontravam o
sentido e a sua função social. Estas celebrações foram depois
recuperadas na sua forma e tornadas em espetáculo para, assim,
se assumirem quase exclusivamente como objetos para
contemplar e assistir (RAPOSO, 2003, p. 11).
148
Em determinados momentos os participantes assumiram um certo papel. Vestiram camisetas do
evento, posaram para fotos e recitaram discursos louvando a identidade do “manezinho” que integra na
comuniade aqueles vindos “de fora”. Noutros, principalmente na confraternização após a Corrida, os
discursos marcaram as diferenças nos gestos, falas e ações entre os “nativos” e os “outros”. Ou seja, em
cada momento uma ação que, ao invés de excluir uma ou outra, fazia com que ambas configurassem os
interesses que estavam em jogo.
344
Como disse no inicio deste artigo, a Corrida de Bateras se configurou num meio
de tornar evidente as reivindicações e os interesses políticos e de poder dos grupos
locais. A batera é de certa forma o principal elemento de caracterização do grupo
familiar liderado por Maria. Ressaltar esse traço cultural é colocá-lo numa ordem
política, de negociação e reconhecimento de especificidade social do grupo. Reunir em
torno deste símbolo “nativos” e outsiders atende as demandas modernas de
reatualização, de reinvenção das culturas ditas tradicionais. É sim um pastiche; com
arestas, ambigüidades e contradições. Um pastiche que compõe não só a experiência
deste grupo que se reinventa frente à modernidade global, mas que também deixa claro
que eles mesmos podem falar por si, reivindicar e legitimar seus interesses.
Bibliografia
APPADURAI, A. “Disjunção e Diferença na economia global”. In: Featherstone, M.
Cultura Global. Petrópolis: Vozes, 1994.
BAUMAN, R. Verbal Art as Performance. Massachusetts: Newbury House Publishers,
1977.
BARTH, F. “Grupos étnicos e suas Fronteiras”: In POUTIGNAT, P e
STREIFFFENART, J. Teorias da Etnicidade. São Paulo: Editora da UNESP,
[1969] 1998.
CAUBY NOVAES, Silvia. Jogo de espelhos. Imagens da representação de si através
dos outros. São Paulo: EDUSP, 1993.
GEERTZ. C. “O mundo em pedaços: cultura e política no final do século”. In: Nova luz
sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
GIDDENS. A. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora da UNESP, 1991.
GODIO, Matias. 500 Kilos: Ensaio etnográfico sobre uma sócio-montagem audiovisual
com um grupo de trabalhadores da pesca na comunidade da Barra da Lagoa.
Dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,
UFSC, 2005.
HARTMANN, Luciana 2005. Performance e experiência nas narrativas orais da
fronteira entre Argentina, Brasil e Uruguai. Horizontes Antropológicos, Porto
Alegre-RS, v. 11, n. 24, p. 125-153.
LANGDON, E. Jean. “Performance e Preocupações Pós-Modernas em Antropologia”.
In: TEIXEIRA, João Gabriel L.C. Teixeira (Org.). Performáticos, performance e
Sociedade. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996.
______. A Fixação da Narrativa: Do Mito para a Poética de Literatura Oral. Horizontes
Antropológicos. Ano 5, n. 12, p. 13-37, 1999.
RAPOSO, Paulo. “Caretos” de podence: um espetáculo de reinvenção cultural, 2005.
345
SCHIEFFELIN, Edward L. Problematizing Performance. In: HUGHES-FREEDLAND,
Felicia. 1998. Ritual, Performance, Media. ASA Monographs #35. Routeledge,
1998.
SILVA, Rita de Cácia Oenning da. A performance da cultura: identidade, cultura e
política num tempo de globalização. Antropologia em Primeira Mão, 2005.
TURNER, Victor 1987. The Anthropology of Performance. In: The Anthropology of
Performance. New York, PAJ Publications.
346
SESSÃO 4: DANÇANDO A TRADIÇÃO
A produção de subjetividade a partir de uma dança tradicional: o
Mineiro-Pau de Salinas, Luciana de Araujo Aguiar (UFRJ)
Mestranda em Sociologia e Antropologia
Resumo: Esse artigo examina a dinâmica de uma dança brasileira dita
“tradicional”: Mineiro-Pau, que acontece na cidade de Nova Friburgo no estado do Rio
de. Através da análise dessa dança percebemos que ela ilumina, explicita ou
implicitamente, aspectos importantes da vida social do grupo que a pratica. O objetivo
desse artigo é, pois, através de uma descrição etnográfica da dança, mostrar como ela
pode caracterizar aspectos da sociedade na qual ela está inserida.
Palavras-chave: Mineiro-Pau, dança tradicional, cultura popular.
Introdução
Analisando uma dança dita tradicional como um ritual, por conta da sua
dimensão simbólica, expressiva, e de produção de subjetividade contida nela, este artigo
tem como objetivo analisar a dança do mineiro-pau que acontece em Salinas, distrito da
cidade de Nova Friburgo, cidade do interior do estado do Rio de Janeiro.
A análise será feita tomando como base o conceito de ritual como uma ocasião
de ação sobre a realidade e de produção de subjetividade (Tambiah: 1985; Turner:2005,
Van Gennep:1978). Portanto, a partir das leituras citadas e outras leituras de referência,
pretendo analisar a execução da dança, ou em outras palavras, sua performance, através
da sua dimensão simbólica e da subjetividade produzida por conta da sua execução.
Contextualizando o lugar e a dança
Salinas é um distrito de Nova Friburgo que dista da cidade 44 quilômetros da
cidade de Nova Friburgo. É um pequeno lugarejo com 347 votantes149 onde se
encontram várias lavouras de frutas e hortaliças que, junto com distritos vizinhos,
fornecem a maior parte do consumo no município e em municípios próximos. O
lugarejo é composto por uma estrada de asfalto, ladeando o correr dessa estrada há
149
Fonte: Pólo Eleitoral de Nova Friburgo
347
casas, lavouras, uma escola, botecos, um cemitério, uma Igreja Católica e uma Igreja
Assembléia de Deus.
Estive em Salinas pela primeira vez em 2006, para começar a pesquisar o
mineiro-pau, no terceiro período da graduação. O que mais me chamou atenção nesse
primeiro dia foi a forma como fui recebida na casa de Reinaldo150. Logo ao descer do
ônibus perguntei onde era a casa dele e alguns meninos sentados perto do asfalto me
mostraram a casa. Chamei Reinaldo e fomos conversar dentro da casa, nesse momento,
vários integrantes do grupo entraram e me vi rodeada por vários homens que, conforme
eu senti, pareciam querer saber o que eu, mulher, jovem (da idade da filha de Reinaldo),
da cidade, estava fazendo lá, pesquisando uma dança que é essencialmente masculina.
Conversamos rapidamente, ele me falou sobre o grupo, a dança, a existências de
outros grupos de mineiro-pau no estado do Rio de Janeiro, a festa onde a dança ocorre e
as dificuldades materiais do grupo. No momento de uma pausa na conversa saí para ir
ao banheiro, quando voltei já não tinha mais homem nenhum na cozinha, somente
mulheres. Permaneci a tarde inteira na casa com a esposa de Reinaldo, junto com sua
filha, sua nora e uma vizinha, conversando sobre alguns assuntos que estavam fazendo
parte do cotidiano local da época como touradas e festas de aniversário.
Esse primeiro encontro marcou claramente para mim a importância de divisão de
gênero na vida social local: os integrantes do grupo me ensinaram isso através da
maneira como me deixaram após a conversa. Eles me informaram meu lugar lá, ou seja,
com as mulheres, fora da arena masculina de atuação, isso mudava minha idéia da
pesquisa. Comecei então a conhecer o mineiro-pau através de uma convivência com as
mulheres de Salinas. Foram elas, principalmente Renata, filha de Reinaldo, que me
apresentaram então aos integrantes do grupo de dança, e foi a partir de Renata, que o
universo de Salinas e do mineiro-pau se apresentou a mim.
Justamente por eu ter sido informada, pelas próprias ações dos interlocutores,
sobre a relação de gênero presente em Salinas, um dos pontos que me chamou a atenção
na dança do mineiro-pau foi a composição exclusivamente masculina do grupo de
dançarinos, ou batedores, como eles se classificam, porque utilizam bastões na dança e
batem nos bastões uns dos outros de modo ritmado segundo coreografias prescritas.
150
Reinaldo era o organizador da dança na época.
348
A dança do mineiro-pau de Salinas consiste, dessa maneira, em um grupo de
homens organizados em círculos, chamados de batedores, que executam passos
movimentando um bastão, fazem a “bateção dos porretes”, ou seja, batem nos bastões
uns dos outros de várias maneiras sob a liderança de um juiz. Os batedores-dançarinos
são acompanhados por músicos que tocam caixa e acordeom. Estes instrumentos,
principalmente a caixa, marcam o passo primordial da dança que é a marcha, como a
marcha de carnaval conforme dizem os brincantes. O grupo não canta, apenas bate os
porretes no ritmo dos instrumentos, junto com a marcação dos pés.
Sobre como os movimentos são organizados, citarei a passagem do livro de
Oswaldo Giovannini Júnior Folguedos da Mata, sobre o mineiro-pau da zona da mata
mineira que explica essa técnica e que pude também observar em Salinas:
Os movimentos são sempre executados em duplas (...) ficando
um de frente para o outro, tendo às costas o outro par (...). A
dança consiste no confronto entre os porretes, marcando o
ritmo da música. Segurando com as duas mãos, ora batem no
porrete do outro na parte de cima, ora invertem e batem na
parte debaixo, da mesma forma, ora da esquerda para a direita,
ora da direita para a esquerda. A pancada pode ocorrer
alternando os pares, formando par com o companheiro de trás e
depois com quem tá na frente e retornando ao par de trás.
Enfim, criam várias combinações tendo como base este simples
padrão: bater com o seu pau no pau do outro, conforme o
andamento rítmico (Giovannini, 2005:64).
As apresentações vistas por mim do mineiro-pau de Salinas obedeciam a esse
mesmo padrão.
É o juiz que sinaliza a hora de começar a bater: ele pega o bastão, vai até a dupla
do organizador da dança mostrar como será a batida daquela rodada151. Após a
demonstração , essa dupla começa a bater, quando acaba o movimento, cada um da
dupla vira de costas e começa a bater com o batedor de trás, que ainda não havia
começado a bater, e assim por diante até todos os batedores terem batido. A rodada
termina quando chega à dupla oposta àquela que a iniciou. É sempre a dupla do
organizador da dança que começa uma rodada. As batidas de porrete desse grupo
seguiam, em 2006, um padrão de seis rodadas.
151
Importante notar que o juiz sempre começa uma rodada indo até a dupla do organizador da dança e
não em direção a outra dupla qualquer
349
A produção de papeis sociais de gênero a partir do simbolismo do pau e da
execução da dança
A composição exclusivamente masculina do grupo de batedores-dançarinos é
uma das características da dança que mais chama atenção, juntamente com o bastão de
madeira utilizado na dança. O “pau” é um bastão de madeira que marca o ritmo da
dança e a dança consiste na “bateção” desse bastão de várias formas. Tal “bateção” é
um aspecto fundamental do mineiro-pau.
O bastão, considerando essa assertiva, pode criar formas específicas de
subjetividade masculina como a destreza, a habilidade e a força que só os homens
possuem ao serem os únicos personagens no universo social que podem brincar com o
pau. Dessa forma, o “pau” poderia ser visto como um símbolo do mineiro-pau não só
por expressar o nome da dança e sua performance, mas também porque exerce uma
função de formação de subjetividade coletiva reinscrevendo na dança o papel de homem
evidenciado pela sociedade.
O bastão também cria formas específicas de subjetividade feminina, pois as
mulheres não podem participar da bateção dos bastões, mas integram o grupo na medida
em que são mediadoras de acesso e responsáveis por cuidar da indumentária dos
maridos ou filhos. Além disso, no dia da apresentação da dança (dia 24 de junho) na
festa de São João de Salinas são elas as responsáveis por fazer os quitutes que serão
vendidos nas barraquinhas.
Um ritual, dessa maneira, não apenas significa coisas, mas produz coisas. O
mineiro-pau não somente fala da relação entre os gêneros, mas ele efetivamente produz
gêneros diferenciados. Alguns teóricos sobre o ritual já apontaram essa dimensão de
ação e não somente de significação presente nos rituais.
Para Van Gennep (1978) os rituais de passagem não só dizem coisas sobre as
passagens da vida, mas efetivamente as consolida. Desse modo, os rituais envolvidos na
gravidez e no parto, por exemplo, como rituais de reclusão e de retorno social após o
parto não só querem dizer que a condição da mulher mudou entre os períodos antes da
gravidez, durante a gravidez e após o parto, mas fazer a mulher mudar realmente, é o
ritual que, por conta dos seus procedimentos simbólicos e expressivos, consegue fazer
com que a mulher mude.
350
O autor adianta o que Victor Turner (2005) vai falar mais claramente.
Segundo o autor: “Os símbolos produzem ação” (Turner, 2005:52) e “O símbolo ritual
transforma-se em um fator de ação social, em uma força num campo de atividade”
(Turner, 2005: 59). Dessa forma, para o autor o símbolo não tem só um papel narrativo,
mas tem uma agência sobre a realidade social e estão essencialmente envolvidos com o
processo social
Tambiah (1985) também chama atenção para a relação entre dizer alguma coisa
e fazer alguma coisa presente no ritual. O autor utiliza a formulação de Austin (1975)
de que é possível fazer coisas com palavras e a amplia dizendo que a ação ritual também
faz coisas, a ação ritual é desse modo, performativa. Para o autor a ação ritual não só faz
alguma coisa, ou seja, é performativa na acepção austiniana do termo, mas também se
utiliza de múltiplas mídias como palavras, música, dança para acontecer. Essas mídias
são necessárias, segundo o autor, para que os participantes possam experimentar o
evento de forma mais intensa.
Esses autores nos ajudam a compreender o caráter de ação e produção sobre a
realidade social que são mobilizados pela influência do ritual. O símbolo então, e no
nosso caso o “pau” utilizado na dança do mineiro-pau, não só apresenta uma narrativa
sobre a distinção dos gêneros em Salinas, mas efetivamente os distingue. O pau, no
momento da execução da dança e fora dele, atua na produção de papeis sociais de
gênero, construindo assim, imagens de homem e mulher que sejam coerentes com a
representação de homem e mulher presente naquela realidade social.
Dessa forma, parece que o mineiro-pau, através da sua execução e através do seu
símbolo dominante produz mulheres que devem ser donas de casa, o que implica em
cozinhar, lavar e passar, isto posto na brincadeira quer dizer fazer e vender as comidas
no dia da festa em que a dança é apresentada e cuidar da indumentária do marido ou do
filho que estará dançando.
Por outro lado, a performance da dança parece produzir homens viris, fortes e
com uma percepção mais aguçada
do mundo, podendo, por possuir essas
características, executar operações difíceis com um bastão de madeira pesado. A
população de Salinas parece legitimar a posição masculina destes homens, reforçando
essa posição através das atitudes observadas na vida cotidiana.
351
A performance do mineiro-pau pode ser pensada, dessa maneira, como o
momento de síntese de um ideal e realização completa do ethos152 de masculinidade
presente em Salinas. Segundo Turner, (1987) o termo “Performance” completa uma
experiência e é um momento de “declaração para um público dado que o personagem
passou por uma transformação de status e estágio” (tradução livre) (Turner, 1987:76). A
execução do mineiro-pau completa, assim, uma experiência que já foi evidenciada nas
relações cotidiana entre homens e mulheres nesta sociedade. O ritual, dessa maneira,
formaliza idéias da ordem social e performativamente os instaura.
Considerações finais
Tentei mostrar no trabalho como a análise de uma dança considerada tradicional
como um ritual pode revelar aspectos que de outro modo não seriam revelados. O
mineiro-pau, através não só do seu símbolo dominante, mas também através da sua
performance, não só se apresenta como composição formal e lúdica, mas também
informa sobre a cultura na qual ele está inserido.
O corpo que dança, que executa uma técnica, é também uma linguagem e como
tal comunica idéias e valores que, do modo como foi visto, se colocam de maneira
bastante eficaz. O corpo que dança, e por que não também o corpo que assiste,
associado ao objeto nomeia a dança, atuam de maneira tão eficaz na experiência das
pessoas que dançam e que assistem que acaba por produzir sujeitos, produção que no
contexto da localidade onde a dança acontece se acentua no domínio do gênero.
Vê-se, dessa maneira, que a dança, levando em conta os seus aspectos
simbólicos e expressivos, pode construir e produzir papéis sociais de gênero. A
performance do mineiro-pau pode ter, dessa maneira, função prática na vida social,
transcrevendo, de forma simbólica, certos valores-chaves e certas orientações culturais.
Bibliografia
AUSTIN, John L., How to do Things with Words, Oxford, Oxford University Press,
1975.
152
Ethos segundo Geertz (1989) se refere ao tom, ao estilo de vida e as disposições morais e estéticos de
um povo. Geertz utiliza a definição de ethos criada por Bateson (2008) para criar sua terminologia.
Segundo Bateson, o que define um ethos determinado de uma cultura é um determinado sistema de
atitudes emocionais que é ativado pelas pessoas em seus contatos com outras pessoas e o mundo exterior
352
BATESON, Gregory. Naven. São Paulo: EDUSP, 2008.
JUNIOR, Oswaldo Giovanni. Folguedos da Mata: Um Registro do Folclore da Zona da
Mata, 2005.
TAMBIAH, Stanley. A performative Approach to Ritual. Culture, Though and Social
Action: An Anthropological Perpesctive. Cambridge, MA: Havard University
Press, 1985.
TURNER, Victor. Floresta de símbolos. Niterói: EDUFF, 2005
______. The anthropology of performance. New York: PAJ Publications, 1987.
VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978.
353
Cacuriá: A tradição maranhense em terras candangas , Rita de
Cássia Souza Cruz; Camila Paula Lopes Soares; Luciana Hartmann (UnB)
Resumo: Esta é uma pesquisa recentemente iniciada que pretende analisar o
Grupo de Dança maranhense Cacuriá Filha Herdeira como manifestação folclórica que,
sediada em Brasília, aparece descolada de seu lugar de origem. Como objetivos
principais podemos destacar a análise da espetacularidade presente nesta dança. Com 17
anos de existência, o Cacuriá Filha Herdeira passa por dificuldades de sobrevivência em
virtude da falta de um espaço físico próprio, de subsídios para sua manutenção e da
escassez de participantes, que não tem garantia nem de sustentabilidade nem de
crescimento dentro do grupo. Neste trabalho estamos partindo da observação, registro
em áudio e vídeo e identificação dos elementos performáticos presentes nesta
manifestação expressiva, como o uso da dança, a distribuição dos dançarinos no espaço,
a marcação rítmica de seus corpos, a coreografia preocupação com o público, a questão
da indumentária, para posteriormente partirmos para a análise destes à luz dos
referenciais teóricos oriundos da antropologia da performance. Através de uma pesquisa
participativa reuniremos todo material histórico do grupo (apresentações, festivais,
fotos, vídeos) para, juntamente com a filmagem de apresentações e ensaios do grupo,
organizar um registro de pesquisa que permita a análise dessa tradição em nossos
próprios corpos, visando o estudo e a transmissão desse conhecimento tradicional
permanentemente recriado.
Palavras-chave: performance, cacuriá, dança, ritmo.
O Cacuriá é uma dança maranhense que agrega vários outros ritmos e festas da
região: o carimbó, o bumba-meu-boi, os ritmos das caixas da Festa do Divino Espírito
Santo e as festividades juninas. Munida de sensualidade e ritmada por duas caixas (uma
espécie de tambor que é feito geralmente com couro de boi) o Cacuriá é dançado com
passos marcados e tem um repertório de músicas em geral compostas pelos próprios
Grupos; os dançarinos se utilizam principalmente do rebolado do quadril, um pouco de
improviso e muita interação com o público.
A dança é coreografada, cheia de simbolismo, e cada passo da
dupla transmite a manifestação da cultura, crenças e costumes
do povo. È uma dança alegre, criativa, sensual e
envolvente.”(Trecho retirado da História do Cacuriá Filha
Herdeira, s/d).
354
Como recursos atrativos se utilizam do riso e da sensualidade para colocar o
público dentro da dança. O rebolado e requebrado do corpo, o contato corporal com o
parceiro da dança, o riso e o olhar entre os dançantes e espectadores tornam essa dança
provocante e excitante. O prazer relacionado à prática do Cacuriá se reflete na expressão
corporal e facial que é o elo direto com todos que participam e assistem.
Analisando essa manifestação identificamos elementos de teatralidade: da dança,
do uso do espaço, do ritmo, da sincronicidade, da preocupação com o público, da
performance a ser assistida, da vestimenta, do tempo de apresentação. Todos esses
elementos refletem a preocupação com a forma e estética, com a beleza e a fluidez.
Embora no Cacuriá haja a preocupação com a beleza e o encantamento das
apresentações, a dança não exige espaços especiais, não necessita do enquadramento do
palco nem do requinte do edifício teatral e das maquinarias e suportes, mesmo porque
não é a isso que se propõe. Necessita sim de espaço de ensaio, de uma não separação
entre os dançarinos e o público, que devem interagir dançar e comungar do mesmo
espaço e desse mesmo ritual.
Esse ritmo foi criado na década de 1970 na cidade de São Luís do Maranhão por
Dona Florinda e Seu Alauriano, mais conhecidos por dona Filoca e seu Lauro. Teve
início no interior do estado como uma dança profana, que fechava à Festa do Divino.
Oriundo da cidade de Guimarães, no Maranhão, foi para capital e passou a acompanhar
o bumba-meu-boi nas festas juninas e festivais culturais (Jornal A Gazeta/SP, 1975).
Atualmente, existem cerca de setenta Grupos de Cacuriá somente na cidade de São
Luís.
Disseminado por várias partes do país, o Cacuriá se mistura a realidades de
outros estados e bairros ganhando novas características e tendências. Os descendentes
de seus fundadores, no entanto, acreditam que logo após a formação de outros Grupos
de Cacuriá que não o de Seu Lauro e Dona Filoca, houve um desvirtuamento da dança e
a conseqüente sexualização do ritmo por letras mais ousadas e por uma forma de dançar
muito mais sensual.
Após a morte de Dona Filoca, no final da década de 80, Elisene de Fátima falecida em 2008- sua filha legítima e herdeira desse folguedo, mudou-se pra Brasília.
Logo começou a bordar o coro dos bois153 do Bumba-Meu-Boi do Seu Teodoro, na
153
Tecido que é bordado com miçangas e cobre a estrutura do boi, configurando assim o seu couro.
355
cidade de Sobradinho/ DF. Ali mesmo, no Centro de Tradições Populares do BumbaMeu- Boi, de Seu Teodoro, ela, juntamente com seus filhos, criou em 1993 o Grupo
Cacuriá Filha Herdeira.
Ao iniciar esta pesquisa percebemos, com a convivência de um pouco mais de
um mês com o Grupo, que Dona Elisene tinha como objetivo dar continuidade à dança
que seus pais geraram. Tanto é que Cristiano Olimpio, seu filho, relatou que seu último
pedido durante a vida é que eles - seus filhos - não deixassem o Cacuriá acabar, e que
trabalhassem para que o Cacuriá Filha Herdeira fosse reconhecido como um ritmo
tradicional e de criação de seus pais, Dona Florinda e Seu Lauriano.
Observamos que tanto a morte da Dona Florinda, como a de Dona Elisene,
foram momentos cruciais na vida da família, divisores de águas. Quando a primeira
faleceu, a filha veio pra Brasília, pra tentar recomeçar aqui, e agora, com a morte de
Dona Elisene, seus filhos tentam manterem-se firmes pra realizar todo o trabalho que
ela fazia para sustentar o Cacuriá Filha Herdeira. Estes, como qualquer Grupo,
preocupam-se com a freqüência dos ensaios, a assiduidade dos participantes, como a
organização sistemática da parte burocrática, com a preparação de projetos, com a
escolha dos figurinos, e com a inserção de novos dançarinos e sua integração ao Grupo.
Com dezessete anos de existência, o Cacuriá Filha Herdeira passa atualmente
por sérias dificuldades de sobrevivência, em virtude, sobretudo, da falta de incentivo e,
como conseqüência desta, da escassez de participantes, que não tem garantia de
sustentabilidade nem de crescimento dentro do Grupo. Sempre associados à imagem do
Boi do Seu Teodoro, até hoje o Grupo não tem um espaço próprio de ensaio e utiliza o
galpão do Centro de Tradições Populares, em Sobradinho. Além disso, na maioria das
vezes suas apresentações vão acompanhando as apresentações do Boi.
Entre diversos comentários, os coordenadores do Grupo, filhos de Dona Elisene,
reclamam que os participantes são os mesmos há mais de cinco anos e que dos poucos
que ainda restam frequentemente há desistências, por motivos diversos: trabalho,
gravidez, desestímulo, etc. Esse desestímulo pode ser explicado pela falta de recursos
financeiros do Grupo. Alguns moram em outras cidades satélites e tem que pegar ônibus
pra chegar até o galpão do Bumba-Meu-Boi. Mesmo para a família é difícil, pois eles
dedicam toda semana aos ensaios do Grupo e não conseguem um retorno financeiro do
seu trabalho. Eliane, filha de Dona Elisene, relatou que houve época que em que haviam
de quinze a vinte pares dançando no Grupo, sendo que na sua última apresentação, no
356
Festival de Cultura do Seu Estrelo, no dia 21 de novembro de 2009, na área externa da
Funarte de Brasília, o Filha Herdeira conseguiu reunir apenas cinco pares. Também
pudemos observar essa realidade nos ensaios, pois, em um mês eles não conseguiram
realizar nenhum ensaio completo, com todos os atuais componentes do Grupo.
Para os herdeiros, essa falta de estabilidade e de reconhecimento artístico
Brasiliano Distrito Federal afeta direta e principalmente a família: Eliane, Cristiano,
Fofa e filhos, pois eles nascerem e cresceram envolvidos com esse ritmo e acreditam
que só sabem fazer isso. Começaram dançando desde pequenos e conforme foram
crescendo passaram a puxar os pares da dança, ficando na frente da fila. Hoje tocam e
cantam, puxando a música e marcando a toada do ritmo envolvente. Assim aconteceu
com o Cristiano e Fofa, a filha mais nova. Já Eliane, depois do falecimento da mãe, em
2008, cuida da parte administrativa do Grupo.
Como mudar essa realidade? O Grupo tem se arriscado a responder, buscando
registrar judicialmente o Cacuriá Filha Herdeira, e tentando o apoio governamental e
privado pra consegui um espaço próprio e a aprovação de um projeto artístico que possa
mantê-los a longo prazo.
Refletindo, entretanto, sobre estes primeiros dados levantados pela pesquisa, não
podemos afirmar que o objetivo do Grupo esteja bem claro. Em primeiro lugar o Grupo
- principalmente a família herdeira - tem que decidir se realmente quer investir e dedicar
a vida a esta manifestação expressiva e, assim, sobreviver dela. E a partir daí, buscar
estabelecer metas de trabalho, procurando montar projetos a longo e médio prazo para,
assim, poder manter-se economicamente e profissionalmente, tendo em vista as
responsabilidades mais definidas dentro do Grupo.
Este, sem dúvida, é um momento liminar do Filha Herdeira: ou o grupo
consegue se organizar ter reconhecida sua importância na região, ou acaba. É sob a
perspectiva desse “drama social” (Turner, 2008) que se apresentou por detrás dessa
envolvente dança ritmada por tambores que estamos procurando compreender, de forma
devidamente contextualizada, os múltiplos significados do Cacuriá.
Bibliografia
“Cacuriá”. A Gazeta. São Paulo, 14 de outubro de 1975. Disponível em:
<http://www.jangadabrasil.com.br/revista/agosto69/fe69008c.asp>. Acesso em:
17 fev. 2010.
357
História do Cacuriá Filha Herdeira. Mimeo, s/d (autoria coletiva do grupo).
TURNER, Victor. Dramas, Campos e Metáforas. Rio de Janeiro: EdUFF, 2008.
358
SESSÃO 5: CORPOS ESCRITOS, FOLIÕES E DANÇANTES
Os corpos da escrita: corpo e caligrafia japonesa , Rafael Tadashi
Miyashiro (Unicamp ); Arthur Lara (USP); Anna Paula Gouveia (USP)
Resumo: No conceito de mídia primária de Harry Pross, o corpo é considerado a
primeira mídia, na qual todas as outras se sobrepõem. No caso da caligrafia japonesa,
esse viés traz uma perspectiva muito interessante, porque coloca o corpo no centro de
algo que, em geral, é diretamente relacionado às letras e às artes visuais. Nesse sentido,
ganha profundidade a escrita como resultado de um corpo que pensa e faz a caligrafia –
e que atualiza anos da história da escrita num momento singular. Esse corpo, no entanto,
não é algo serializado e formatado. Inserido num território criativo, onde atuam
elementos da cultura japonesa como ma, ki, e kokoro, ele traz uma caligrafia de
múltiplas manifestações e intenções, resultado das singularidades de cada calígrafo, o
que a afasta, em muito, da caligrafia oriental “clichê”, tão presente na mídia e no
imaginário, que tende a chapar tudo num mesmo estado, pretensamente “zen”.
Palavras-chave: caligrafia japonesa, corpo, escrita, shodô.
Os corpos da escrita
Uma breve incursão pelo bairro da Liberdade, em São Paulo, nos apresenta uma
profusão de ideogramas chineses154, presentes nas barracas da feira de artesanato, nas
lojas e nas próprias pessoas que por ali circulam: camisetas, cartões de felicitação,
adesivos, chaveiros e tatuagens com os kanji de “paz”, “amor”, “amizade” e “força” são
bastante comuns.
Palavras que não apenas inspiram, mas demonstram um certo caráter “místico”
em geral associado à cultura oriental, também aproveitado pela grande indústria – no
verão de 2007 uma marca de batatinhas fritas deu como brindes do seu “verão místico”,
entre outras coisas, uma tatuagem e um “amuleto”, ambos com ideogramas chineses.
Não por acaso, a caligrafia japonesa – conhecida principalmente por shodô155,
mas também por vezes chamada de sho e shuji no Brasil – é associada a um certo estado
154
155
Chamados em japonês de kanji.
Shodô: Sho: escrita; dô: caminho; ou seja: o caminho da escrita.
359
“zen”, que seria um estado espiritual estático de paz e sintonia: imaginamos o calígrafo
como um ancião, um monge budista, uma pessoa “iluminada” (e sem pecados, já que
vivemos numa tradição cristã), e toda sua escrita deve refletir quietude, paz e mansidão.
No entanto, esse lado “místico”, “zen”, está longe do zen verdadeiro e revela
apenas uma faceta possível da caligrafia, enquanto obscurece outras de suas
manifestações, chapando-as, como se todas elas tivessem um mesmo sentido.
E a caligrafia japonesa, pelo contrário, é dinâmica e é tão diversa quanto as
pessoas que a praticam. “Há uma crença no Japão e na China que a caligrafia de uma
pessoa reflete ou revela a sua personalidade (isto é conhecido sho wa hito nari,
literalmente ‘a caligrafia é como a pessoa” (Nakamura, 2007: 83). De fato, ela é capaz
de carregar consigo as singularidades de cada um, representando seu melhor e seu pior,
suas habilidades, suas decisões, seu caráter. A escrita está ligada, inevitavelmente, ao
corpo de quem a escreve.
Harry Pross (Baitello, 2001), por outro lado, apresenta uma classificação dos
sistemas de mediação, divididos em mídia primária, secundária e terciária, que permite
refletir mais sobre o corpo e a caligrafia. A mídia primária se encontra naquilo que
origina toda comunicação: o corpo. Como Pross (ibidem) cita, os recursos dessa mídia
são vastos, incluindo as possibilidades expressivas dos olhos, testa, nariz, movimentos e
posturas corporais, os sons e odores corporais, e as próprias línguas naturais (verbal e
falada).
Já a mídia secundária é constituída por aqueles meios de
comunicação que transportam a mensagem ao receptor, sem
que este necessite de um aparato para captar seu significado,
portanto são mídia secundária a imagem, a escrita, o impresso,
a gravura, a fotografia, também em seus desdobramentos
enquanto carta, panfleto, livro, revista, jornal (...) (PROSS,
1971: 128 citado por BAITELLO, 2001: 2).
Norval Baitello Jr. (2001: 2) lembra que nessa mídia acontece uma apropriação
do emissor para aumentar a comunicação:
Assim, podemos dizer que, na mídia secundária, apenas o
emissor se utiliza de prolongamentos para aumentar ou seu
tempo de emissão, ou seu espaço de alcance, ou seu impacto
sobre o receptor, valendo-se de aparatos, objetos ou suportes
materiais que transportam sua mensagem.
360
Por fim, na mídia terciária, há uma dependência de aparelhos que permitam a
concretização da comunicação, tanto do lado do receptor quanto do emissor. São
exemplos dessa mídia os dvd’s, cd’s, a televisão, o cinema, a telefonia, entre outros.
Uma característica interessante desse sistema é a sua “cumulatividade” a partir
da mídia primária, ou seja: é a partir do corpo que as outras mídias se sobrepõem. E
Pross (ibidem) lembra que é ao corpo (ou seja, à pessoa) que a comunicação, volta,
inevitavelmente.
O interessante de se pensar a caligrafia japonesa a partir dos conceitos de Pross,
é que se coloca em evidência primeiramente o corpo como origem de toda a caligrafia,
que, em geral, é associada às artes ou às letras de imediato. Mas é no corpo, antes de
tudo, que residem as possibilidades e as potencialidades da expressão de cada um –
mesmo daquelas materializadas posteriormente, como a caligrafia no papel, no caso,
mídia secundária.
Teoria da comunicação e tradição da caligrafia clássica aqui parecem se
complementar. De um lado, temos a escrita como representação e conseqüência do
corpo, entendido aqui como o ser na totalidade; de outro, os conceitos de Pross nos
lembram do fluxo da comunicação envolvida na escrita: a caligrafia surge de uma
necessidade própria do calígrafo, que é corpo e expressão. E essa comunicação não se
fecha em si mesma, mas retorna ao outro. São questões que se apresentam e instigam a
uma investigação maior sobre o corpo, a escrita e a materialização da palavra.
Corpo e caligrafia japonesa
Pesquisar o corpo da caligrafia japonesa significa entrar em outros contextos. No
Oriente o corpo nunca teve a dicotomia positivista corpo/mente presente no Ocidente
(Yuasa, 2005: 10 Apud Greiner, 2002: 22). Isso se deve, sem dúvida, no caso da cultura
japonesa, às influências que ela sofreu, como a filosofia e a prática shintoísta, budista e
confucionista (Mcdonald, 2005).
Na caligrafia há alguns aspectos que podem ser ligados à influência do zen, que
afetam a forma como a caligrafia é feita e pensada até hoje, mesmo que sua prática
atualmente não esteja ligada diretamente ao zen. Tais aspectos também se afastam das
idéias relacionadas ao clichê “zen”, pois se baseiam mais em fundamentos do zen que
em imagens superficiais. Por exemplo, a caligrafia valoriza o momento presente, mais
do que a busca de uma escrita de forma perfeita e bem acabada. Por isso mesmo é uma
361
arte que não admite o retoque e que considera o momento da escrita como único e
singular. Outras influências são a relação com o espaço e o pensamento não dualista –
presentes tanto na relação da linha com o espaço, como na do calígrafo com os materiais
e o meio que o circunda.156
Um estudo do corpo, ao mesmo tempo, não deve implicar apenas aspectos gerais
da cultura, mas também dimensões mais pessoais, como a experiência que é incorporada
pelo praticante (Cox, 2003). No caso das Artes Zen157, essa corporificação em geral se
dá de forma especial através dos kata ou katachi, que são movimentos fixos
determinados, utilizados no zen para moldar e disciplinar o corpo, de forma que haja
uma integração entre corpo e mente. Como ressalta Rupert Cox (ibidem), a imitação
desses movimentos introduz o praticante às qualidades estéticas e o conecta,
temporalmente, àqueles que a praticaram, no passado e no presente.
Na caligrafia japonesa, o aprendizado e a corporificação acontecem pelo
treinamento do rinsho, que é a prática que envolve o domínio técnico, a reprodução e a
interpretação pessoal dos clássicos. Utilizado tanto por calígrafos da linha mais
tradicional quanto pelos mais modernos, é através do rinsho que “os calígrafos
japoneses dizem que adquirem ‘a essência da caligrafia’” (Nakamura, 2006: 295).
Em geral, no rinsho, o praticante de caligrafia reproduz um modelo, tehon, que
pode ser a reprodução fotográfica de um trabalho clássico de caligrafia ou uma
reprodução feita a pincel por um sensei. Em geral, no Japão, atribuem-se três estágio: o
primeiro é chamado keirin – onde o praticante deve-se ater ao domínio da técnica do
estilo e do pincel, procurando alcançar fidelidade no caractere traçado; o segundo, irin,
é onde deve-se reproduzir o trabalho buscando ver o “espírito do pincel”, ou seja, além
do que é visível; o último estágio, hairin, é onde o praticante se expressa mais
livremente, confiando somente na memória, sem olhar o tehon (ibidem)158.
É através da sua prática que o conhecimento vai se corporificando e preparando
o calígrafo e o praticante para trabalhos artísticos pessoais e expressivos, como aqueles
produzidos pelos calígrafos de tendência mais artística e autoral, conhecida como sho. O
156
Helen Westgeest (1998) discute mais sobre a influência do zen nas artes de forma geral. Aqui se
aproximou a caligrafia com as idéias discutidas por ela. Para mais detalhes dessa relação, ver Miyashiro
(2009).
157
Artes ou práticas que tem valores e influências zen, como o shodô, o ikebana, o judô etc.
158
No Brasil, os três estágios do rinsho não são seguidos rigorosamente, embora o domínio técnico e uma
interpretação pessoal do clássico sejam estimulados e apreciados. De qualquer forma, a função do rinsho
permanece a mesma que a do Japão: o treinamento e o aprimoramento.
362
peso deste aprendizado não pode ser ignorado: histórias se unem nesse momento, a
linha e seu passado, com diferentes estilos e interpretações, se juntam à memória e à
história pessoal do calígrafo, para juntos traçarem uma linha particular, pessoal e
marcada pelo presente. Aqui é possível distinguir dois movimentos: um que, via o
rinsho, corporifica a tradição da escrita no calígrafo pelo treinamento constante; e o
outro que internaliza esse aprendizado e, junto com as singularidades de cada um,
permite ao calígrafo alçar trabalhos mais criativos.
Para isso acontecer, no entanto, há também outros fatores, como a produção de
subjetividade envolvida e elementos da cultura japonesa como o ma159 (conceito ligado
a tempo, espaço e tempo-espaço – um espaço que pode ser preenchido artisticamente), o
ki (a energia psicofísica do indivíduo) e o kokoro (coração-mente, mas que também
pode ser entendido como um sistema de relação de afetos entre, no caso da caligrafia, o
calígrafo, seus materiais, o entorno e sua intenção)160.
Ao assistir a demonstrações de caligrafia, a relação entre esses elementos e o
corpo é percebido mais facilmente. O corpo avança, retrocede, mergulha, controlado
pelo ki que também domina as pausas, pela respiração; os joelhos semidobrados, ou
dobrados, são suportes para os diferentes ritmos e estilos de escrita, em que o espaço é
preenchido e ativado.
Às vezes, o corpo quase se suspende no ar – os pés se alternam como passos de
dança e de um ritual. Em outras vezes, o trabalho lembra um dia tranqüilo numa praia,
graveto à mão, escrevendo sob a areia. Como demonstram as fotos abaixo161:
159
Michiko Okano tem uma pesquisa bastante aprofundada sobre o ma. Ver Okano (2007a; 2007b).
Esses itens foram mais trabalhados e discutidos em Miyashiro (2009). Por uma questão de espaço
omitiu-se essa parte.
161
As fotos, nesse artigo, não estão inseridas como simples ilustração, mas como algo mais profundo,
cheio de dados a serem explorados, na linha do que Jacques Le Goff propõe sobre documentomonumento. A autoria das imagens utilizadas é de Rafael Tadashi Miyashiro.
160
363
Observam-se gestos, posturas e ações diante da caligrafia que confirmam o
caráter pessoal da escrita, já que a criação depende do kokoro, intimamente ligado ao ki
e ao ma durante a caligrafia. Na fotomontagem abaixo, essa integração, em suas
diversas manifestações, fica mais evidente.
364
Essa integração do calígrafo/corpo com o espaço e as coisas ao redor, quase que
contínua, propõe um “corpo expandido”, ou, seja, um corpo de fronteiras não muito
bem definidas, que, em busca de expressão, se apropria de materiais e suportes, ao
mesmo tempo em que atua em limites de fronteiras temporais entre o passado da
tradição e um presente/futuro imerso de possibilidades, por isso mesmo local do ma por
excelência. Isso mostra o quanto a caligrafia é vasta, complexa e, porque produzida pelo
corpo, tem a capacidade de refletir seu autor, ultrapassando clichês e tornando-a, de
fato, viva.
Bibliografia
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terciária. In: FAUSTO NETO, Antônio et al. (Orgs.). Interação e sentidos no
ciberespaço e na sociedade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.
365
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WESTGEEST, Helen. Zen in the Fifties: Interaction in Art between East and West.
Zwolle: Waanders Uitgevers, 1996.
366
Pé de valsa: danças antigas de salão que con tam histórias,
Valéria Maria Chaves de Figueiredo (UFG)
[email protected]
Resumo: O presente trabalho teve como objetivo trazer a dança como arte da
memória e expressa em corpos que dançam. Pesquisamos danças antigas e populares de
Goiás, expressões quase que esquecidas e presentes apenas na memória de antigos
moradores da região de Santa Cruz em Goiás. Foi na perspectiva da história oral que a
inter-relação com a comunidade manifestou-se como condição fundamental para se
apreender os modos, as histórias, os movimentos, as dramaturgias que marcaram estes
cotidianos e sua arte. Estas danças resistiram como fragmentos na memória de antigos
moradores, sem registros oficiais continuam, de certo modo, vivas na tradição da
oralidade, particularmente nas memórias do corpo. Aprendidas em festas rurais, são
danças de salão, da cultura caipira e eram realizadas nas fazendas da região. Entre
mutirões e pagodes tinham o intuito de agregar, coletivizar experiências, ancorando-se
nas trocas e nas relações afetivas, sociais e culturais. Ao longo dos anos foram proibidas
e/ou desprezadas pela modernidade capitalista. Nossa intenção foi olhar para o corpo
como um texto múltiplo e constituído de história, memória e arte. São poesias inscritas
no cotidiano e na dança onde a presença de uma multiplicidade de diálogos se constitui
como campo de conhecimento polissêmico, aberto, de muitas sensibilidades e
humanidades. Nosso referencial teórico dialogou com diversos autores, entre eles Mario
de Andrade, Regina Lacerda, Walter Benjamin, entre outros.
Palavras-chave: dança, memória, cultura popular.
A cultura do Centro-Oeste é originada pela convergência de grupos advindos de
diversas regiões do país, mas, principalmente, a paulista que chega do centro-sul. Ao
longo do século XVIII, com o advento do bandeirantismo e da catequese jesuítica, se
estabelece ampla frente de exploração e penetração que chega ao Estado de Goiás.
O achado do ouro promoveu, então, a fixação do homem em terras goianas, bem
como a criação de bases da colonização portuguesa no Centro-Oeste. Nesta perspectiva,
surge a noção da mestiçagem onde a cultura ibérica aqui se mistura à cultura indígena e
à cultura negra africana, estas duas, ambas escravizadas pelo colonizador. Antônio
367
Cândido, em seu livro Parceiros do Rio Bonito (1975), descreve que a partir dos
processos históricos e sociais da colonização do sudeste, a formação da cultura caipira
se dá fruto da miscigenação do branco português com o indígena brasileiro, que depois
se mistura à forte presença da cultura africana no centro-sul do país.
É uma rota que se funde à própria trajetória dos bandeirantes e o nosso processo
de colonização. Como cita Vilela (2004), os bandeirantes foram chamados de pioneiros
e adentraram as terras brasileiras. Muitas vezes eles mesmos eram mestiços de índias
com portugueses, chamados de mamelucos e abriam frentes no interior que depois eram
ocupadas por pequenos agricultores, portanto, amalgamavam-se suas maneiras de viver
com os povos que já habitavam ali.
Após o bandeirantismo no séc. XVII e XVIII, fortes transformações sócioeconômicas passam a interferir na vida cotidiana das pessoas de São Paulo, Minas
Gerais, Goiás e Mato Grosso. Antônio Cândido (1975) revela, portanto, que surgem,
assim, as fazendas e a mão-de-obra escrava, bem como novos equipamentos e novas
relações econômicas, mas, a cultura caipira persiste bravamente com sitiantes, posseiros
e agregados.
As particularidades e percalços da história não extinguiram a cultura caipira e,
sim, fortaleceu a música caipira como representante de um Brasil do interior. Alguns
autores chegam a diferenciar o conceito de Brasil Urbano e Brasil Rural, como Pinto
(1999), que se refere a marcas com diferenças profundas entre o que se chama de Brasil
Rural, sugerindo a existência de um rural sertanejo, rural caipira, rural dos pampas, rural
seringueiro, cada um com suas configurações próprias.
É certo que tanto a música quanto a dança na cultura caipira são partes
indissolúveis nas tradições. Muitos destes ritos, a exemplo das folias de reis, passam do
sagrado para o profano a todo instante, onde o rito religioso se transforma em festa,
encontro, comidas e cantorias. O mesmo autor também relata que nos próprios mutirões
e nas colheitas estão sempre presentes os cantos de trabalho.
É comum às violas tocarem durante o trabalho, fazendo com que a
música dê ritmo aos que estão colhendo ou carpindo [...] [...] Nos
cantos de mutirão, os homens trabalham cantando e parte da
conversa é feita com canto. [...] Já nas cantigas de roda passam
conceitos e valores de conduta. Assim, a música exerce diversos
368
papéis e é por vezes um elemento amenizador nas relações e
aproximador das pessoas (Vilela, 2004, p.174).
Acompanhadas de viola, sanfona e caixa, como cita nosso depoente, as danças
de roda e de salão, reuniam pessoas em espaços simples, em frente à casa principal, para
depois do trabalho festejar o convívio e a possibilidade de se formar ou estreitar novos
laços familiares e de amizade. Também estabelecer estratégias políticas, que muitas
vezes, terminavam em intrigas ou brigas fora do salão.
Nos mutirões, as práticas musicais são muito comuns para realização de alguma
tarefa como a colheita, construir casa, roçar pasto, entre outras, como se referiu Ikeda
(2004). Ao final do dia realizavam-se festanças, noites adentro. Festivas e
comemorativas, de convivência mútua e de agradecimento pelo trabalho realizado,
certamente eram expressão da coletividade e da gratidão para com o outro.
São práticas comunitárias que trazem o sentido identitário aos grupos.
Os
indivíduos realizam-se com a presença coletiva, e é elemento de afirmação dos valores
sociais e culturais de um povo. Com suas hierarquias, as danças e músicas populares são
alimentadas pela tradição oral, onde os mais velhos, detentores dos saberes da cultura
local, preservam o conhecimento, bem como, constituem na fonte guardiã da memória,
reafirmando seus laços afetivos também com seus ancestrais.
Vale ressaltar que é bastante difícil sintetizar a história da dança e seus
significados em algumas páginas, mas nosso esforço traz a evidente intenção de
apresentar algumas reflexões, tentando entender à presença da dança enquanto
constitutiva da vida humana. Mas também como reflexos e espelhos da memória
revelados nela, que nos trazem os emblemas e os sinais para se re-significar o tempo no
presente.
É claro, portanto, que não é possível darmos conta de toda história, nem é nosso
propósito, por isso, não seguimos a idéia de uma construção histórica cronológica dos
acontecimentos, mas apresentamos fatos e imagens que são indiciantes no conjunto das
indagações, como sugeriu Ginsburg (1989 p. 145) “o conhecedor de arte é comparável
ao detetive que descobre o autor do crime”.
Nós sabemos que a prática da dança está presente em todas as épocas da vida
humana, sejam nas pequenas vilas, cidades, nos salões, nas ruas, ela está amalgamada à
própria história da civilização, construção das cidades e suas inter-relações. Curt Sachs
369
(1944), já acenava para o aparecimento das danças dos homens, qual, remontaria
milhares de anos a.C., como a exemplo das danças que chamou de “circulares sem
contato”.
Também Bourcier (1987), relatou a existência de documentos revelando a
presença da dança nas inúmeras celebrações humanas. Um dos documentos mais
antigos de representação desta presença é a figura na gruta de Trois- Frères, em Ariège,
na França, datada de 10.000 a.C. Para os historiadores, esta imagem sugere que o
personagem executa giro sobre si mesmo e que talvez esteja em busca de um estado de
êxtase.
O mesmo autor, atravessando os tempos, cita que, como analogia, podemos
lembrar-nos de nossas próprias danças sagradas. Elas são expressões que também se
pretende um estado de comunicação extrassensorial, a exemplo dos xamãs, dos lamas,
os devixes, os ritos religiosos africanos, muçulmanos, entre muitos outros povos que
possuem danças de exercício religioso, celebrativo ou de catarse.
Existem outros documentos também significativos, como cita Boucier (1987), e
que revelam a presença da dança nos cultos da igreja católica, por exemplo, durante
Idade Média, embora condenada, persistiu à prova repressão como um costume da
época, como no caso da Chronique de Saint Martial de Limoges, qual indica a
organização de uma Chorea162 no ano de 1215, para celebrar a partida dos Cruzados.
Por outro lado, nas ruas, o hábito de cantar e dançar pelas noites, para suas
amadas, como no caso das serenatas, é comum também desde a idade média. No Brasil
chega com os portugueses, segundo a descrição de Tinhorão (2005) sobre a visita do
francês viajante M. Lê Gentil de La Barbinais, em 1717, que afirmava que “à noite só
ouvia os tristes acordes de uma viola... Portugueses, vestidos de camisolões, rosário ao
pescoço e espada nua sob as vestes, passavam debaixo das janelas de suas amadas de
viola em punho, a cantar com voz ridiculamente terna...”.
As imagens antigas das danças em pares, as trocas, galanteios, rodas, nos levam
a pensar que são técnicas, gestos ou pequenas células coreográficas, que percorrem
tempos e que se misturam na formação das culturas e dos povos. Como no caso das
representações em grupo e em desenhos circulares, estas formas são encontradas em
antigos documentos que remontam aproximadamente 8.000 a.C.
162
Chorea é uma carola, uma roda.
370
São desenhos, gravuras, pinturas, esculturas, técnicas que se tornam registros das
diversas épocas da história e da arte. Sendo de autores desconhecidos ou não, elas
retrataram a existência da dança na vida das pessoas.
Esta gravura, de autor desconhecido, sugere uma dança cortesã. De origem
européia e executada em pares: Passepied. Foi mencionada por volta de 1612, segundo
Caminada (1999) seu nome deriva do próprio passo característico da dança “um pé que
deverá golpear o outro e cruzar sobre ele”. Sugere-se que originalmente fosse uma
dança coral da Bretanha, porém, ao longo dos anos, ao adotar a pantomina163 de
galanteio, acaba por extinguir-se e não mais ser dançada no século seguinte, porém a
idéia das mãos entrelaçadas, o jogo dos pés, o possível movimento de tronco e cabeça,
percorreram os tempos e chagaram a nós como rastros e marcas nas nossa danças de
pares.
Figura 1. Passepied
É certo que as imagens revelam os muitos sentidos do conhecimento produzido
pelo ser humano, bem como, suas diferentes linguagens. Pode ser uma fotografia, mas,
também um cheiro, um gesto ou um gosto. A imagem deseja, e é agente particular,
linguagem que traz a possível ideia de uma sintaxe da sociedade, bem como, de uma
estética e de uma escolha.
A dança é presença marcante na vida humana seja na expressão dela e nas
diversas épocas com suas particularidades. O costume de dançar nasce com o próprio
163
Pantomina segundo Monteiro (1998), a serviço da estética do sentimento, une-se à música para que a
dança adquira inflexão, ritmo, entonação e se torne mais expressiva. É comum nos balés criados na
primeira metade do século XVIII.
371
homem. Modifica-se, se mistura e reconstrói, se inventa e reinventa, mas o essencial é a
necessidade da dança na produção humana, onde o lugar dela é nas casas, nas ruas e na
vida das pessoas, como disse Béjart in Garaudy (1980), como na Figura de Virgil Solis,
um casal dançante do século XVI.
Figura 2. Couples dansants
É sempre polêmico tentar explicar o significado da dança na vida humana, por
sua imensa possibilidade e diferentes pontos de vista. Aproximamo-nos, portanto, da
idéia que ela nasce a partir das tensões e suas representações simbólicas, sempre
vivenciando e exprimindo a intensidade das relações. Segundo Garaudy (1980), a
própria palavra dança, em todas as línguas européias – danza, dance, tanz – deriva da
raiz tan que, em sânscrito, significa “tensão”.
O acervo que tratamos, revela danças que são de salão, na sua maioria danças de
roda, mas também passando por desenhos em filas. Algumas são individuais e em pares,
com contato e sem contato, porém todas as danças celebrativas, populares e de festas
campesinas. Regina Lacerda, importante folclorista da cultura goiana, dizia que:
[…] dos antigos ouvíamos referência à dança de roda e dança
de par. É possível que, nos tempos passados, talvez pela
observância das normas de moral, a dança de roda fosse a mais
comum, a permissão de pares enlaçados foi uma conquista
mais recente, com a mudança de costumes e comportamentos
sociais (Regina Lacerda 1977 p. 13).
372
Estas danças goianas são profanas, de encontros, relacionamentos, remetem à
terra, ao rural, à poeira e à simplicidade. Não são danças de exposição ou que explorem
o diferente, as diferenças são marcas do individuo, “cada um dançava do seu jeito, mas
sempre em e para o grupo”, diz nosso depoente. Falamos, portanto, de outra noção de
sociedade e de verdade.
É a dança do povo, “dança de gente” como refere seu Alberto e retrata, sim, um
tempo que não mais existe, porém, é tradição oral e deixam as suas marcas nas gerações
e na memória. Não tem caráter pedagógico, mas é uma educação visual, política,
estética, moral e filosófica. Não é empobrecida pelo didatismo. Eram ensinadas
dançando e cantando, os mais antigos detinham a honra de inserir na roda os mais novos
e na hora determinada como certa. Não eram danças infantis, mas poderiam assistir e
aprender assim, com a imitação e a brincadeira.
Segundo o nosso depoente, eram realizadas em pagodes164, depois da lida165,
encontros festivos que aconteciam após o trabalho campesino. No salão rural em frente
à sede da fazenda, dançava-se com ares de corte, compartilhando olhares, namoros,
disputas e intrigas. Um ritual lúdico e profano, de uma cultura caipira, rural, goiana e
brasileira.
A ele, Seu Alberto, lhe foi concedido entrar nas rodas de dança ainda cedo, pois,
ainda jovem, com doze ou treze anos, já apresentava facilidades para aprendizado da
viola caipira, a cantoria e a dança de par. Mostrando-se já com forte habilidade para o
improviso e para poesia caipira.
Nas influências desta gente nascida na cultura caipira, sugere-se estar
amalgamada e imersa da cultura ibérica e percebemos fortemente estes indícios e nas
danças pesquisadas. São heranças que atravessaram o continente e nos trouxeram
referências fortes dos imigrantes colonizadores do Brasil. Antônio Cândido (1993, p.
249), atentamente reforça que é preciso pensar no caipira como um homem que
manteve a herança portuguesa nas suas formas mais antigas.
Sabemos também, que as origens das danças se perdem na noite e nos tempos, se
parecendo a um mosaico com influências e convergências culturais. Vemos nestas
danças estes sedimentos acumulados pelas culturas e suas técnicas.
164
Pagodes - Bariani Hortêncio (2004) diz ser o pagode, como fandango, qualquer baile de roda ou de
ponta de rua. Ir ao pagode é ir ao baile. Pagode hoje também é ritmo, um batidão de viola onde é cantada
uma moda de viola.
165
Depois da lida - expressão caipira usada no campo para denominar depois do trabalho campesino.
373
Mário de Andrade (1982) relata em sua obra Danças Dramáticas do Brasil que
não será talvez muito difícil compreender as origens religiosas e primitivas das nossas
danças dramáticas, mas será sempre bastante complicado determinar as influências
técnicas diversas que as constituem.
São os cantores de serestas, de bares, vendedores de modinhas, homens do
realejo, bandas militares, cafés cantantes, gafieiras, salões, pianeiros, forrós, enfim, os
sons e as danças que vem do povo, bem como, das ruas, nos fazem descobrir, também,
aspectos da vida popular urbana e rural. São fontes ricas da história do Brasil e de seu
povo.
Porém, de fato, existem dificuldades de se encontrar registros ou muitas vezes, a
inexistência deles, como no caso das danças antigas e rurais. Por isso, a importância da
pesquisa em história oral, cria-se possibilidade de se valorizar outras formas de
documentos, os sonoros e as imagens, por exemplo.
A falta dos arquivos e dos
registros, sejam quais forem eles, geralmente leva ao total desaparecimento daquele
saber, principalmente aqueles que dizem respeito às tradições orais, como Tinhorão
(2000) revela sobre a música brasileira na época da colônia.
[…] quando se procura conhecer, hoje, os sons que animaram
os mais de três séculos inaugurais de festas no Brasil, o que se
encontra é o silêncio: a não ser que em algum arquivo, em
qualquer parte do país, ainda guarde entre seus papéis o
registro esquecido das “armonias” do tempo, pode-se afirmar
que a memória da música brasileira das ruas colônias
definitivamente se perdeu (Tinhorão, 2000, p. 151).
Por isto, a proposta de trazer à tona, danças quase perdidas, esquecidas e
proibidas há muitos anos pela igreja católica da região, recriando-as e documentando-as,
justifica-se. Na perspectiva, entretanto, de uma visão amplificada, também com leitura
narrativa de obras artísticas e históricas, de textos científicos e literários.
Formando assim, uma rede de saberes, conectando as diversas linguagens,
recontando histórias, bem com, recuperando as memórias impressas no corpo que
dança.
Sem condenação e sabendo do potencial de imaginação de nosso depoente,
talvez na própria história hajam partes recontadas ao seu modo, porém, no tempo atual,
374
fatos cruéis foram esquecidos ou ludibriados pela própria fonte, mas, outros narrados
com a emoção de se ter vivido intensamente aqueles momentos e daquela forma.
Talvez por isso, seu Alberto encontre forças, ainda hoje, para acreditar na sua
missão de ensinar humanidades para os jovens, como diz, tem certeza ter sido
escolhido, entre muitos, para ser o mestre: aquele que recebe o cajado, o bastão, a viola,
a caixa ou a dança, qual se recebe do avô, do pai ou do mais velho do grupo. Uma
dança que amplia a noção de sujeito da própria historia, e que é sempre pertencimentos
entre o cantar, o tocar, o dançar e as poéticas que circulam entre o fazer, a fruição e o
conhecimento.
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376
SESSÃO 6: CONGADA, MARACATU E SÃO JOÃO
Congada: o signicado cultural e pe rformance dos dançantes em
João
Pinheiro-MG,
Giselda Shirley da Silva (TRANSE/UNB)
Mestre em História Cultural
Resumo: Este trabalho visa refletir sobre a Congada e a performance dos
dançantes do grupo de Santa Luzia da Serra, distrito de João Pinheiro, noroeste de
Minas Gerais, percebendo-a como parte das tradições locais. Objetiva perceber os
sentidos da congada para os integrantes do grupo e a (re) criação da dança para os
dançantes. A pesquisa etnográfica foi realizada através da observação, entrevistas com
membros do grupo e fontes iconográficas. A congada é uma manifestação cultural
importante em muitos municípios e mineiros está presente na história e na tradição de
João Pinheiro. Foi por muito tempo uma das grandes tradições do município
constituindo-se em um ritual de fé e festa, entrecruzando religiosidade e diversão.
Segundo a memória coletiva das pessoas mais idosas da região, não sabem precisar o
início dessa manifestação no município, narram que é muito antiga, todavia, desde a
década de 1970, essa manifestação foi perdendo espaço, sendo recriada na última
década. Muitas indagações surgiram ao observar esta dança e sua (re) criação, entre
elas, o significado cultural para os dançantes, a forma como ela foi/é repassada as
gerações mais novas, principalmente aos jovens que são integrantes do grupo, a
contribuição da memória para a performance atual do grupo e a (re) criação da dança. O
estudo revelou a ressignificação da dança no contexto contemporâneo, percebendo a
reinvenção dessa tradição que está sendo repassada através da oralidade as gerações
mais novas.
Palavras-chave: dança, congada, performance.
Este estudo trás a baila reflexões sobre a Congada em Santa Luzia da Serra,
distrito de João Pinheiro (MG). Busca-se conhecer a (re) criação da dança de congada
377
na referida localidade, constituindo-se um vetor identitário importante para os seus
moradores.
Minas Gerais possui uma pluralidade cultural riquíssima. Entre as tradições
mineiras, pode-se mencionar a relevância da congada, presente em vários municípios.
Leda Martins (2003, p. 73) escreve que em Minas Gerais, a diversidade de guardas
engloba dentre outros, Congos, Moçambiques, Marujos, Catopés, Vilões e Caboclos. A
hierarquia e a reverência às tradições são elementos relevantes nessa festividade. A
congada foi por muito tempo uma das grandes tradições de João Pinheiro, sendo um
ritual de fé e festa, entrecruzando religiosidade e diversão. “Congadas ou reisados são
um sistema religioso alterno que se institui no âmbito mesmo da encruzilhada entre os
sistemas religiosos cristãos” (Martins-Leda, 2003, p. 70).
A pesquisa analisa a arte de dançar a congada, percebendo-a como uma tradição,
recriada no contexto atual. Tradição não é entendida aqui como algo cristalizado, mas
dinâmico, que se recria e transforma. A revalorização dessa prática cultural ganha nova
força no significado e no repasse dos passos, na performance dos dançantes e
reinvenção da tradição.
Performances afirmam identidades, curvam o tempo,
remodelam e adornam corpos, contam histórias. Performances
artísticas, rituais ou cotidianas – são todas feitas de
comportamentos duplamente exercidos, comportamentos
restaurados, ações performadas que as pessoas treinam para
desempenhar, que tem que repetir e ensaiar (SCHECHNER,
2003, p. 7).
A festa de Nossa Senhora do Rosário é uma tradição antiga. Na segunda metade
do séc. XX reduziu o número de congadeiros, a festa perdeu o apoio da Igreja e deixou
de existir, assim, essa arte ficou restrita a um pequeno grupo que foram os guardiões da
tradição. Reiniciaram a dança atendendo aos pedidos do pároco e comunidade local. A
fé, motivação e a receptividade do público foram importantes na reestruturação do
terno. Sr. Levi coordena os trabalhos, ensaios, busca manter o sentido da dança e a
tradição: “Começamos com 17 membros. Hoje são 20”.
A congada é um ritual realizado através da dança e música. Um conjunto de
passos, ritmos, movimentos e cantorias que em harmonia marcam a performance dos
dançantes. O sentido está voltado para o religioso, sendo a fé o instrumento que
378
possibilita a existência desta arte devocional. Entre os integrantes do grupo, o sentido
atribuído diferencia-se. Entre os mais jovens, significa fazer parte de uma tradição
familiar, entre os mais velhos destaca-se a força da religiosidade e da fé. Adquire
também outro sentido no olhar do pesquisador.
A hierarquia é importante na manutenção dessa tradição. O capitão, entendedor
do saber religiosos é responsável por manter a ordem, o treinamento e as apresentações
do grupo. Durante a dança percebe-se a preocupação dos dançantes com a sua
performance, percebida através dos olhares freqüentes aos movimentos do capitão que
direciona o ritmo e os passos da folia com maestria e segurança nos diversos ritmos e
momentos da apresentação.
O rito acontece com a organização em duas filas paralelas no meio das quais se
coloca o mestre. Na frente da primeira, há o alferes com a bandeira de Nossa Senhora
do Rosário, ela é importante no rito como símbolo da fé e religiosidade. O capitão
coordena a performance permanecendo sempre entre as filas, como elo entre as mesmas.
Cada membro tem seu papel definido. Às vezes os passos são mais lentos, ora, mais
rápidos, acompanhados pelo som dos instrumentos e repicos dos tambores. Santos
(2003, p. 152) escreve que a dança “não é apenas arte, é celebração, magia, encontro
com o passado, presente e futuro”. Nesse sentido, o significado da dança vai além da
arte.
Os instrumentos musicais possuem papel fundamental na apresentação e
performance. O maior instrumento é a sanfona, que em conjunto com o tambor,
cavaquinho, caixa, pandeiro, meia-lua, tamborim e os instrumentos de corda dão vida e
ritmo aos passos dos congadeiros.
O repertório e a criatividade são atributos do capitão que ao entoar os versos
ganham vida e ritmo ao som dos instrumentos. Os versos cantados são criações do
capitão que dá asas a sua imaginação, improvisando conforme a situação que se
encontra. As palavras rimadas são orações cantadas, agradecimentos ou convites para a
comunidade participar das celebrações. O fortalecimento da crença está na energia do
ritual, na performance do grupo e representação da fé através do rito.
As cores e detalhes das vestimentas utilizadas sofrem modificações de acordo
com o tempo. Atualmente usam um uniforme com predominância do azul claro e
branco. A veste possibilita uma visão de harmônica do conjunto, não sendo uma
fantasia, mas, uma “farda” que os identifica.
379
A memória é fundamental na preservação das reminiscências do grupo de
outrora e no repasse da dança, nos passos, no ritmo, toques dos instrumentos e na
construção do ritual. O Sr. Levi ancora sua prática nas lembranças da dança de outrora.
Busca conhecer mais sobre a tradição e avivar a memória em relação aos passos da
dança. A memória é um instrumento poderoso para transmitir as gerações mais novas
esses saberes e fazeres, sendo também importante na coleta dos dados dessa pesquisa
realizada através da história oral.
Preocupam-se com a performance, realizando ensaios mensais. A participação
no grupo possibilita a visibilidade dos dançantes. Durante as apresentações, ocupam o
centro das atenções, visibilidade e reconhecimento, possibilitado pela arte de dançar e
de ser possuidor de um saber tradicional, reconstruído ao longo do tempo. A
apresentação é um espaço de transformação e possibilita ao dançante um exercício de
alteridade. “Fazer parte do ritual é sair da invisibilidade social, é passar a fazer parte de
um grupo que tem prestígio, por exercer uma função social de auxílio à manutenção de
outras pessoas menos abastadas”, escreve Gonçalves (2008, p. 8) ao pesquisar as folias
de Reis em João Pinheiro. Os congadeiros são em sua maioria foliões de reis.
O motor que move essa tradição e o fazer dos dançantes é o religioso. “Nas
genealogias de seus rituais, os congadeiros performam o sentido mais primevo do termo
religião, etimologicamente derivado do latim religare, re-ligar, restituir, restaurar, Sua
performance refaz pelas dobras espiraladas do corpo os tempos curvos da memória e da
história” (Leda Martins, 2003, p. 82). No entanto, em decorrência da preocupação com a
preservação do patrimônio, está havendo uma (re) valorização das tradições:
“Patrimônio é tudo aquilo que criamos, valorizamos e queremos preservar” (Londres,
2008, p. 21). Atualmente muitas apresentações do grupo são com objetivos culturais, o
que significa uma retomada a essa tradição, percebendo-as como parte do patrimônio
cultural local.
Ao refletir sobre a performance do grupo de Congada, muitas questões são
suscitadas, entre elas, memória, história, identidade, bens culturais, patrimônio. Ao tecer
as considerações finais desse estudo percebe-se que o objetivo do terno com a retomada
a Congada não é a sacralização da tradição, ou a finalidade de fazer dessa manifestação
cultural a maior festividade de João pinheiro como foi outrora, mas, como uma
“revalorizacão”, uma forma de resguardar esse saber e essa crença. Reinventar, dar uma
nova cor e sentido a arte de dançar a congada e de permitir que as gerações mais novas
380
conheçam essa manifestação, rito, ritmo, canções performance e crenças que fazem
parte dos saberes e fazeres locais e as gerações mais velhas a oportunidade de mostrar
de seu passado, festas, religiosidade, crenças, unindo passado, presente e futuro. Nesse
sentido, conhecer essas manifestações é um exercício de cidadania, seguido do direito
de conhecer traços da cultura e da história, resguardar a memória, bem como, o dever de
preservar e valorizar para que as gerações futuras conheçam as diversas manifestações
que constroem a identidade cultural do brasileiro em sua pluralidade e alteridade.
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381
Os maracatus adentram a avenida: performances e rearranjos
identitários na cidade de Fortaleza, Ceará , Danielle Maia Cruz (UFC)
Doutoranda em sociologia
Resumo: O artigo toma como referência o desfile carnavalesco dos maracatus
cearenses ocorrido em 2010. Trata-se de apresentações viabilizadas por meio de editais
municipais que conformam uma temporalidade permanentemente negociada entre poder
público e brincantes. É tempo de promoção da cidade, de difusão de símbolos
identitários, de expor performances, de rememorar mitos. Entende-se que tais
apresentações configuram-se para o poder municipal como instrumentos de promoção
da cidade e redimensionamento das identidades culturais, desconstruindo imagens que
associam Fortaleza somente às belezas naturais.
Palavras-chave: maracatus, performances, Fortaleza, gestão municipal.
1. Considerações iniciais
A cidade de Fortaleza (CE) ganha outra dinâmica no carnaval, pois são
instauradas novas acepções de tempo balizadoras dos usos que os brincantes e o
poder público fazem dos espaços sociais. Nesse período, praças, ruas e avenidas são
conformadas como locais plenos de sociabilidades, sendo intituladas pelo poder public
municipal na atualidade de pólos carnavalescos e ressignificadas pelos brincantes de
acordo com suas lógicas próprias.
O artigo volta o olhar para o pólo Quando Fevereiro chegar onde ocorrem em
caráter competitivo os desfiles dos maracatus. Trata-se de uma prática que, no Ceará,
rememora o cortejo de coroação dos reis negros ocorrido em distintos países, mormente
no século XIX. O pólo mencionado é uma área da cidade situada nas próximas do bairro
Centro, cotidianamente denominada de avenida Domingos Olímpio e onde ocorrem os
desfiles dos maracatus desde a década de 1990.
A prefeitura de Fortaleza lançou quinze editais municipais no ano de 2006 com a
finalidade de propiciar aos fortalezenses a realização de projetos artísticos em áreas
diversas, como literatura, circo, fotografia, teatro, festas juninas, pré-carnaval, carnaval,
dentre outras. No ano de 2008 os maracatus se inserem nessas práticas municipais
quando distintos grupos são contemplados pelos editais recebendo desde então apoio
382
financeiro e logístico para compor as apresentações carnavalescas. O interessante é que
o aporte financeiro às agremiações ocorre mediante o cumprimento de alguns quesitos.
Aos maracatus é solicitada a presença das seguintes alas: “[...] índios, batuque,
baianas, balaieiro, calunga, preto e preta velha, corte representada com suas princesas e
príncipes, serviçais portando sombrinhas, incensos e abanadores” (FORTALEZA,
2007a, p. 1). Além disso, solicita-se que o rei e a rainha tinjam a face de tinta preta,
chamada popularmente de negrume. Este é um elemento peculiar dos maracatus
cearenses.
Fundamentando-se no estilo de apresentações carnavalescas ocorridas
atualmente, é possível demarcar o ano de 1937 como o do início dessas práticas nas ruas
de Fortaleza. Anteriormente a implementação dos editais, a participação do poder
público municipal nessa festividade ocorria mediante a organização do trânsito e
também o oferecimento de verbas à antiga Federação das Agremiações Carnavalescas
do Ceará (FACC). Esta realizava o repasse às agremiações de acordo com critérios
próprios, conforme destaca o regulamento das FACC do ano de 2006.
A participação do poder público nessas apresentações representa um dado
relevante na reflexão em tela, pois a lógica composicional dessas manifestações, os
significados atribuídos à temporalidade do carnaval pelos brincantes e pelo poder
público e os rearranjos simbólicos que se promovem na cidade estão intimamente
relacionados às articulações entre cultura e política. Cultura aqui entendida em seu
sentido antropológico, isto é, como “[...] a organização da experiência e da ação
humanas por meios simbólicos” (SAHLINS, 1997, p.45); como construção e expressão
de significados (GEERTZ, 1990).
O pressuposto deste artigo é que subjacente as atividades promovidas pela
prefeitura por meio dos editais há o interesse desta instituição em redimensionar as
identidades culturais em Fortaleza, em promover imagens da cidade relacionadas às
manifestações culturais, desconstruindo a idéia que relaciona Fortaleza somente às
praias, ao forró e ao humor. Além disso, pressupõe-se que os desfiles dos maracatus se
configuram como instrumentos importantes na propagação de Fortaleza como uma
cidade que valoriza suas tradições, além de um estímulo ao afluxo de turistas no period
carnavalesco, indicando que o elemento cultural é visto pelo poder público também
como propiciador do desenvolvimento econômico da cidade.
383
Destaca-se aqui uma temporalidade vivenciada como especial por brincantes e
poder público e permanentemente negociada entre os atores mencionados. Para o poder
público é tempo de promoção da cidade, de difusão de símbolos identitários; para os
brincantes é tempo de congraçamento, de rememorar mitos, de extravasar, de expresser
visões de mundo, de expor “performances” que se efetivam, na perspectiva de Turner
(2005), como expressões de “experiências” que são “transformativas” e “formativas”.
Os brincantes por meio dos maracatus vivenciam momentos criativos,
ressignificam os elementos postos nos editais, rememoram mitos, reafirmam crenças,
recontam o passado da cidade e reinventam seu presente.
A discussão toma os desfiles dos maracatus no carnaval do ano 2010 como
valiosos rituais de apreensão do social, pois “[...] nos momentos de suspensão das
relações cotidianas é possível ter uma percepção mais funda dos laços que unem as
pessoas” (TURNER, 2005, p. 166). O objetivo é compreender como a temporalidade do
carnaval é conformada em Fortaleza por meio do diálogo ente brincantes de maracatus e
poder público e apreender como as ações municipais operam no processo de
formulações identitárias em Fortaleza, configurando uma cidade voltada às
manifestações culturais.
2. Festa e performances: o desfile dos maracatus
Fevereiro do ano de 2010. A avenida Domingos Olímpio é intitulada pela
secretaria de cultura de Fortaleza (SECULTFOR) de pólo carnavalesco Quando
Fevereiro Chegar. A avenida é reordenada pelo poder público por meio da disposição de
balões infláveis com o slogan da prefeitura em todo o pólo carnavalesco e também
acomodação de equipamentos que garantam o êxito dos desfiles. Além disso, é
propalado pela mídia local acerca da presença de ambulâncias, policiais e guardas de
trânsito no desfile, indicando a presença do poder público junto à festa.
No período carnavalesco, uma das pistas de rolamento que compõe a avenida
Domingos Olímpio é destinada aos desfiles das agremiações, sendo o domingo o dia
reservado aos treze maracatus. Nesta área, restrita a pessoas credenciadas, há camarotes
e arquibancadas disponibilizadas para o público, além de cabines dispostas por toda a
avenida para os jurados do desfile, uma vez que as apresentações ocorrem em caráter
competitivo. Na outra pista de rolamento, verificam-se mesas dispostas nas calçadas,
384
vendedores ambulantes, casais de namorados, brincadeiras entre crianças, conversas
entre amigos, danças coreografadas, dentre outras.
Para parte expressiva dos brincantes, a apresentação carnavalesca é a mais
importante do ano, pois é a de maior visibilidade. Durante o ano não há incentivos
financeiros do poder público para apresentações de maracatus, bem como são escassas
exposições dessa prática na cidade. Parte significativa das pessoas que prestigiam os
desfiles carnavalescos dos maracatus é parente ou amiga dos brincantes, sendo a grande
maioria oriunda de bairros da periferia. Há também pessoas da vizinhança,
especialmente senhoras e crianças.
No Ceará, os maracatus são práticas que teatralizam o cortejo de coroação dos
reis negros, não havendo maracatus denominados de rurais como ocorre em
Pernambuco. Na fala dos brincantes, a coroação remete, principalmente, às práticas
ocorridas em cidades brasileiras no século XIX, quando negros, cativos ou não, elegiam
seus líderes no âmbito das irmandades religiosas de pretos e, no período das festas
religiosas, realizavam a coroação do rei negro na igreja (SOUZA, 2006). Há também
referências às coroações no continente africano antes da diáspora. Os dirigentes do
maracatu Nação Iracema, por exemplo, militantes negros no Ceará, reportam-se,
constantemente, às coroações e danças africanas quando elaboram o enredo do desfile
(CRUZ, 2008).
Os desfiles dos maracatus se caracterizam por vestimentas pomposas, adornos
coloridos e reluzentes, coreografias bem marcadas, impulsionadas pelo ritmo da música
que, segundo os brincantes, relembram as “lamentações dos escravos nas senzalas”.
Contrapondo-se a essa idéia, há quem diga que a elaboração de suas
performances não se pauta por tais recordações, mas sim no enredo proposto pelo
maracatu no qual participam e ainda pelo êxtase da festa. Apesar de muitas similitudes
entre os maracatus, cada grupo marca suas diferenças por meio do enredo, da loa
(música), das alas e das coreografias. Há maracatus, como o Solar com uma proposta de
ritmo menos cadenciado e fantasias menos volumosas.
Uma particularidade dos maracatus cearenses é a face dos brincantes maquiada
por uma grossa camada de tinta negra denominada de negrume. Em relação aos editais,
é obrigatório o uso do negrume no rei e na rainha, figura tida como de maior
importância na composição do maracatu. Sobre isso, verifiquei no ano de 2010, mesmo
que parcamente, brincantes com o rosto tingido de branco ou com a metade da face de
385
negro e a outra de branco. Tais mudanças indicam que a cultura é um processo
dinâmico, não sendo possível evitar “[...] a mudança de significado que altera o
contexto em que os eventos culturais são produzidos” (ARANTES, 2004, p.21).
De maneira geral, à frente do grupo vem uma pessoa com o rosto pintado de
preto, segurando um estandarte. Este menciona o nome do maracatu, a data de sua
fundação e o emblema do grupo. Em alguns maracatus, uma pessoa carrega em suas
mãos um incensário, que exala fumaça perfumada, ou um recipiente com água e flores
brancas. A posição do incensário no desfile não é fixa, pois, com um ritmo de corpo
característico, ele percorre a avenida acompanhando diferentes alas. No entanto, em
grande parte do tempo do desfile, ele se posiciona atrás do porta-estandarte.
Considerando que uma das vias da avenida é o espaço destinado à realização dos
desfiles, pode-se dizer que aspergir águas perfumadas, exalar fumaça, proferir palavras,
dentre outras práticas, é uma tentativa de purificar o local; em outros termos, de
reordená-lo, preparando-o para outro momento. Tal função remete às considerações de
Mary Douglas (1976) sobre pureza e impureza. Segundo a autora, essas concepções se
constroem a partir das crenças de cada coletividade e operam como mecanismos de
ordenação social.
Em distintas culturas, a água relaciona-se às noções de purificação. Em culturas
cujas pessoas professam o islamismo, por exemplo, é considerado pecado grave não
lavar o corpo antes das orações. Na cultura brasileira, a água está também relacionada a
noções de pureza. Veja como exemplo os batizados, a limpeza dos espaços e os banhos
cotidianos, os quais as pessoas os associam à limpeza do corpo, da alma e também à
renovação das energias. Muitos são os rituais que, por meio de banhos, expressam a
passagem de um momento para outro. Tudo isso também é válido para outros
elementos, como a fumaça dos incensos, orações, “dizeres” etc.
Na ala dos índios, os componentes utilizam as cores amarela, vermelha e verde
nas indumentárias e na face. As meninas fazem tranças nos longos cabelos negros e
usam vestimentas que revelam parte expressiva do corpo. As performances ocorrem
mediante passos curtos e danças indígenas, como o toré. No maracatu Nação Iracema,
há à frente dessa ala uma menina representando a índia Iracema tematizada no romance
de José de Alencar.
Após a ala dos índios, segue-se a dos africanos, mas há grupos, como o Vozes
da África, que apresentam homens com malabares em chamas. Na ala dos africanos,
386
alguns grupos enfatizam a palha nas vestimentas e nos adornos, mas preferem o rosto
com leves traços brancos ou vermelhos, diferentemente de outros, que recobrem parte
da face de tinta branca, a testa de vermelho e envolvem os olhos de preto. Sobre a
cabeça, põem cocares com volumosas penas brancas e vermelhas; sobre o corpo,
colocam apenas saiotes.
Logo em seguida, vem a ala dos orixás. Quando passam, os maracatus causam
reações diversas no público, como olhares fixos, aplausos e sorrisos. Os componentes
das alas dançam distanciados uns dos outros e esboçam expressões faciais sérias.
Alguns grupos empreendem um esforço maior nessa ala, exibindo carros
mecânicos com orixás. Mesmo não sendo parte expressiva, há grupos que possuem
íntima relação com religiões afro-brasileiras, sendo o processo de composição da
apresentação permeada de evitações, sobretudo nos dias que precedem o desfile. De
acordo com Douglas (1974), os tabus (evitações, proibições e sanções) procuram
guardar a ordem social; o ideal da sociedade protegendo-a dos perigos e ameaças.
Seguem as baianas, que percorrem a avenida com saias rodadas, blusas brancas e
um turbante adornando a cabeça. De vestimenta semelhante ao estereótipo de uma
baiana, porém colorida, segue rodopiando, com uma boneca à mão, uma brincante no
papel de calunga. Aproximando-se da corte, a última ala do desfile do maracatu, vem o
balaieiro. Com gestos leves e elegantes, o rapaz conduz sobre sua cabeça uma cesta de
frutas tropicais, denominada de balaio. Seus trajes chamam a atenção por causa do
longo vestido colorido e cheio de babados, e também pelo rosto tingido pelo negrume,
pelo uso de batom de cor vermelha e pelos muitos brincos e colares que adornam o
corpo.
A ala da Corte, que encerra o desfile, é composta por rei, rainha, príncipes,
princesas, damas de honra e vassalos. Um dos vassalos rodopia em torno da rainha,
carregando um enorme guarda-sol colorido; o outro abana a rainha com um enorme
leque. Com movimentos lentos e saudando o público com acenos e sorrisos, a rainha –
tradicionalmente representada por um homem – é a personagem tida como de maior
importância. Desse modo, sua indumentária, de elevado volume, possui plumas de
avestruz e abundantes bordados com lantejoulas, além da coroa recoberta de brilho
amarelo e pedras reluzentes. Todos trazem o rosto pintado de preto.
As descrições dos maracatus buscam oferecer ao leitor, em linhas gerais, a
dinâmica do carnaval em Fortaleza no ano de 2010 apresentando seus atores, os
387
elementos presentes na composição dos grupos, indicando tanto o cumprimento dos
quesitos expressos nos editais, bem como a ressignificação dos mesmos que se expressa
nas performances dos brincantes, como veremos a seguir.
3. Os enlaces entre poder público e brincantes
No Carnaval, os indivíduos que estão no pólo onde ocorrem os desfiles dos
maracatus guiam suas ações em função dessa nova temporalidade e das práticas que ali
se tecem, afirmando ou ainda alterando a estrutura (Turner, 1974). Turner (1974)
destaca categorias como liminaridade e communitas que se pensadas de forma
articuladas nos permitem compreender sobre momentos ambíguos e momentos comuns
vivenciados pelos indivíduos que são incumbidos de novas posições sociais (inversão
ou elevação) num sistema que ele denominou de estrutura. Para Turner (1974), a
experiência liminar não reproduz a vida cotidiana de maneira real, mas sim instaura um
“espelho mágico”.
Diante da suspensão momentânea da estrutura social, brincantes de maracatu
vivem experiências de serem reis, rainhas, tirador de loas, dentre outros papéis que não
refletem a sociedade em suas características reais, mas um estado de subjuntividade,
“como as formas alterados do ser” (DAWSEY, 2005, p. 165). Para a grande maioria dos
brincantes, os maracatus são instrumentos de expressão de uma experiência. Logo, tais
práticas são experienciadas não como vivências rotinizadas, mas como uma
“experiência” no sentido que lhe confere Turner (1974). Ao se observar os ensaios e
também o desfile em si, verifica-se que as performances são conformadas por
criatividade, sendo marcadas por elementos que remetem à história pessoal e coletiva
dos brincantes, bem como idealizações de uma África mítica, áurea. De forma real ou
idealizada, passado e presente se cruzam no processo de elaboração do desfile.
Outro aspecto importante na configuração das apresentações dos maracatus é a
atuação do poder municipal por meio dos editais da cultura. Para que sejam
contemplados com o apoio financeiro, é preciso cumprir alguns quesitos. No entanto, é
importante que se diga que tais elementos são ressignificados pelos brincantes de
acordo com suas lógicas próprias. Ao mesmo tempo em que os brincantes buscam
seguir as orientações do edital, adéquam essas exigências ao gosto, valores e interesses
do maracatu no qual participam.
388
A leitura dos editais indica que dentre os objetivos do poder municipal está a
configuração de uma festividade que “opte pela tradição” (FORTALEZA, 2007b).
Verifica-se o interesse em promover um carnaval enfatizando a tradição como elemento
importante da identidade fortalezense, desconstruindo, nesse sentido, imagens que
relacionam Fortaleza e o Ceará somente às praias, ao forró e ao humor. Entretanto, na
composição das performances os brincantes ressignificam os elementos sugeridos no
edital.
No desfile dos maracatus, indumentárias com cores verde, amarela, vermelha,
preta, azul e branca, frutas e legumes da terra, os índios, as baianas, os brancos e os
africanos, além dos orixás, sugerem narrativas relacionadas à nação. Mesmo que os
maracatus destaquem símbolos identitários fortalezenses e cearenses, como a Jangada e
a índia Iracema ou façam menção a personagens emblemáticos do processo histórico
cearense, o que eles apresentam são narrativas ora sobre a ancestralidade africana, ora
sobre a própria nação, repondo, inclusive, o mito das três raças. Isto mostra que a
cultura é alterada na ação e de que toda reprodução cultural é também uma alteração,
porque, como diz Sahlins (1990), os homens repensam, criativamente, seus esquemas
convencionais.
Até o momento, pressupõe-se que tais festividades configuram-se para o poder
municipal como instrumentos de configuração de sentimentos de pertencimento do
fortalezense com suas manifestações, de difusão de símbolos identitários, de propalação
de Fortaleza como uma cidade de tradição, voltada às suas manifestações e, sobretudo
de promoção da cidade, de incentivo ao afluxo de turistas no período carnavalesco.
Bibliografia
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CRUZ, M. D. Sentidos e significados da negritude no maracatu Nação Iracema.
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Federal do Ceará, Fortaleza, 2008.
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FEDERAÇÃO DAS AGREMIAÇÕES CARNAVALESCAS
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DO
CEARÁ.
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FORTALEZA Prefeitura Municipal de Fortaleza, Secretaria de Cultura de Fortaleza.
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______. Prefeitura Municipal de Fortaleza, Secretaria de Cultura de Fortaleza.
Fortaleza: Livro de Bolso, janeiro de 2007b.
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1990.
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1990.
SOUZA, Marina de Mello e. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de
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TURNER, V. Dewey, Dilthey e o Drama: um ensaio de Antropologia da Experiência.
Cadernos de Campo. USP, São Paulo, 13/14, 2005.
______. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Vozes. 1974
390
Nação do Maracatu Porto Rico: um estudo do carnaval como
drama social, Anna Beatriz Zanine Koslinski (UFPE)
Mestranda em antropologia
[email protected]
Resumo: O estudo da categoria de “performance” na antropologia teve seu
início nas décadas de 60 e 70 numa parceria de estudos de Richard Schechner e Victor
Turner que se tornou conhecido por seus estudos acerca de rituais. Ainda no início de
sua obra Turner passa a utilizar o conceito de “drama social” como método de análise
de certos eventos pois ele acreditava que a forma pelas quais as pessoas interagiam e as
conseqüências de sua interação eram “dramáticas”. O presente artigo tem por objetivo
analisar o período do carnaval como sendo um “drama social” para um maracatu-nação
de Recife, no caso a Nação Porto Rico. Durante o carnaval desta cidade, diversas nações
de maracatu competem através de um desfile pelo título de campeã do carnaval. Nesta
competição diversos valores e aspectos culturais dos grupos são revelados através de
um rico simbolismo. Deste modo utilizaremos os métodos de análise elaborados por
Turner para entender a configuração deste “drama social”. Para isso levaremos em
consideração as categorias de ritual, visto que os mesmos emergem de “dramas sociais”,
communitas, configuração específica de interação social recorrente dentro de rituais, e
performance, já que “dramas sociais” se tratam de “performances culturais”.
Palavras-chave: drama social, performance, ritual, carnaval, maracatu.
O estudo de rituais e seus simbolismos se tornou um tema recorrente dentro da
antropologia a partir de meados da década de 60. Um de seus principais expoentes foi
Victor Turner que, além de ter elaborado toda uma metodologia para se analisar os
símbolos rituais também estabeleceu um diálogo com outras áreas das ciências
humanas, utilizando-se de conceitos como o de drama social e o de performance como
ferramentas para se entender diferentes eventos que ocorrem nas sociedades tanto
tradicionais quanto complexas. O presente artigo tem por objetivo analisar o período do
carnaval como sendo um “drama social” para um maracatu-nação de Recife, no caso a
Nação Porto Rico. Durante o carnaval desta cidade, diversas nações de maracatu
competem através de um desfile pelo título de campeã do carnaval. Nesta competição
diversos valores e aspectos culturais dos grupos são revelados através de um rico
391
simbolismo. Deste modo utilizaremos os métodos de análise elaborados por Turner para
entender a configuração deste “drama social”.
Para Turner drama social se trata da representação de papéis sociais prédeterminados em um campo específico de ação através de atores que incorporam
determinados gêneros de desempenho. O caráter simbólico de um drama pode ser
cristalizado em um ou mais ritos de passagem, remetendo a sua propriedade de
reprodução inconsciente de ações e papéis num determinado palco (Turner, 2008). Um
drama social é geralmente expresso em situações de crise ou iminência de ruptura de um
sistema. Como resultado do drama pode haver uma continuidade da estrutura social,
então abalada, ou sua ruptura. Turner define estrutura como um sistema de relações
sociais estabelecidas por normas, regras e posições que os indivíduos ocupam numa
hierarquia. Deste modo a estrutura se apresenta como fixa, rígida, estática, hierárquica e
cotidiana. Em oposição a estrutura Turner define um outro tipo de sistema denominado
communitas que seria um sistema de relações sociais onde as pessoas são unidas por um
vínculo geral e universal de humanidade, logo a communitas destaca-se por ser
espontânea, não normativa, existencial, dinâmica e não institucionalizada. O que une os
sentimentos das pessoas na communitas é a humanidade e a sua maior função é a de
juntar e integrar quem está presente. Situações como a de dramas sociais podem gerar
communitas, sendo que, após ela pode haver, como já mencionamos, um retorno a
estrutura ou a ruptura da mesma; apesar de sua rigidez, a estrutura também é suscetível
a mudanças (Turner, 2008).
Nesse estudo entendemos o período do carnaval como a expressão de um drama
social para a Nação do Maracatu Porto Rico. Antes de focalizar o drama em si
precisamos definir a manifestação que protagoniza este drama. “Maracatu-Nação” ou
“maracatu de baque virado” é uma manifestação popular afro-brasileira com
forte presença no estado de Pernambuco. Essa manifestação denomina um ritmo que é
produzido pela orquestra ou batuque, composta apenas de instrumentos de percussão, e
também a dança executada ao som desse batuque. Geralmente os grupos de maracatu
formam blocos de apresentação composto pelos “batuqueiros” (percussionistas) e pelos
dançarinos, vestidos com trajes nobres, já que se trata de uma corte com rei, rainha,
princesas, duques etc. Os grupos se apresentam nas ruas da cidade e também em eventos
particulares mas o evento mais importante é o Concurso das Agremiações
Carnavalescas que ocorre no período do carnaval onde os grupos competem entre si,
392
tendo seu desfile avaliado por uma comissão julgadora, composta pela elite intellectual
local. Aquele que vencer será considerado o melhor dos grupos além de receber um
prêmio em dinheiro.
O drama em questão é a busca pelo título de campeã deste Concurso das
Agremiações Carnavalescas promovido pela prefeitura do Recife. Turner afirma que os
dramas sociais podem ser divididos em quatro fases: ruptura, crise, ação reparadora e
desfecho (Turner, 2008). No caso estudado a ruptura ocorre uma semana antes do
desfile das agremiações, quando a Nação Porto Rico realiza uma “obrigação” para o
carnaval. Essa obrigação ocorre no terreiro (que é a sede da nação) e consiste numa
série de sacrifícios e oferendas para as calungas do maracatu e para os santos da casa
para que os mesmos tragam proteção para o maracatu e ajudem-no a vencer o concurso.
Antes da obrigação os batuqueiros da nação ainda estão no estado de campeões
ou perdedores do carnaval que ocorreu no ano anterior; agora um novo período se
inicia, eles entram numa crise, pois, a validade do título do ano anterior se expirou, eles
já não são nem campeões nem perdedores e, além disso tudo entram num resguardo que
só irá se encerrar após a contagem de pontos e o resultado do concurso. O desfile do
carnival se trata da ação reparadora da crise pois é ele que poderá trazer a resolução do
drama, ou seja, a conquista do título. Por fim o desfecho ocorre com a divulgação do
resultado do concurso onde pode ocorrer uma mudança de status dos batuqueiros, que
de campeões do ano anterior passam a ser perdedores do ano corrente ou uma
continuidade, ou seja, a manutenção do mesmo status do ano anterior.
O desfecho traz consigo também uma situação de communitas, independente do
resultado. Se o grupo for campeão uma grande festa é realizada na sede da nação onde
todos celebram juntos a vitória e caso o grupo não seja o vencedor as pessoas
permanecem unidas na tristeza, abraçando-se e se consolando mutuamente durante o
resto do dia. Em ambos os casos o sentimento que une a todos é espontâneo e humano e
as posições de cada um dentro do grupo são momentaneamente esquecidas, ou seja, há
uma suspensão da estrutura. Já a estrutura é afirmada no drama no momento do desfile
pois nele percebemos que cada indivíduo tem seu lugar demarcado no grupo com
diferença de prestígio entre as posições; alguns são príncipes e outros vassalos. Sendo
assim a estrutura social do grupo tanto no maracatu quanto no terreiro é rígida, desigual
e hierárquica. Observamos que com o término do drama, apesar do status dos indivíduos
393
ter a chance de ser alterado, a estrutura do grupo continua a mesma, a ordem corrente é
reafirmada.
Percebemos que um drama social é um meio de se revelar visões de mundo e
também a organização social de um grupo. Ele enfatiza fenômenos descontínuos e
desarmônicos que emergem na sociedade e pode ser expresso por meio de
performances, como é o caso do drama estudado. Turner entende por performance
eventos como teatro, música, festa, dança, manifestações étnicas e também rituais, ele
inclusive afirma que rituais podem emergir de drama sociais como forma de ação
reparadora (Turner, 2008) que é exatamente o que observamos no ritual do desfile da
nação Porto Rico. O desfile é a chave para a reparação da crise que se inicia antes do
carnaval.
Em seus estudos Turner desenvolveu uma vasta teoria acerca da análise de
rituais. O antropólogo acredita que os rituais, através dos símbolos articulados por meio
deles, reforçam os valores e a solidariedade social (Turner, 2005). Ele ainda afirma que
símbolos rituais são polissêmicos, ou seja, podem condensar diferentes significados,
além de serem classificados como símbolos dominantes ou instrumentais. Os símbolos
dominantes são aqueles que possuem um alto grau de autonomia dentro do ritual e que
podem ser analisados sem levar em conta sua ordem de aparecimento um dado ritual,
como fins em si mesmos, enquanto representativos dos valores axiomáticos da
sociedade em questão. Já os símbolos instrumentais devem ser vistos em relação ao seu
contexto mais amplo, isto é, ao sistema total de símbolos que constitui um dado tipo de
ritual (Turner, 2005:63) os símbolos instrumentais são meios para atingir o objetivo de
um ritual.
O desfile da Nação Porto Rico é repleto de simbolismo. Um de seus símbolos
dominantes é o título de campeã do carnaval, ele por si só representa o objetivo do
ritual. O ritual estudado também é repleto de símbolos instrumentais. O carnaval possui
símbolos para trazer proteção como é o caso das calungas, dos orixás, dos lanceiros e do
Caboclo de Pena, símbolos de poder e prestígio como a realeza, a nobreza e os vassalos
e símbolos que trazem legitimidade ao grupo como o estandarte. Sendo assim podemos
observar que, como já foi mencionado, os símbolos instrumentais são meios auxiliares
para se atingir o objetivo do ritual. A polissemia dos símbolos pode ser observada
através do título que simboliza prestígio, a união do grupo (já que essa conquista é
394
resultado de um esforço coletivo) e também sua estrutura hierárquica (já que no desfile
as pessoas ocupam papéis diferentes com importâncias diferentes).
Percebemos que momentos extra cotidianos de crise como os expressos nos
dramas sociais tem muito a nos revelar sobre os valores de uma sociedade. Turner,
durante toda sua obra, teve um forte interesse em momentos de ruptura e suspensão do
cotidiano acreditando que essas situações dramáticas são inerentes as sociedades e que
através de performances como os rituais, por exemplo, onde o drama é apresentado
muitas vezes de forma acentuada, existe a possibilidade de uma ação reparadora para a
crise, ocorrendo então uma compensação. Deste modo, ao analisarmos o drama vivido
pelos maracatuzeiros da Nação Porto Rico durante o carnaval observamos como ele é
importante para a manutenção da estrutura do grupo e para o reforço de seus valores e
crenças. O ritual expressa a força da coletividade, reforça as posições que cada
indivíduo possui dentro do grupo e também a importância das obrigações religiosas para
o restabelecimento da ordem social.
Bibliografia
TURNER, Victor. Florestas de Símbolos: Aspectos do Ritual Ndembu. Niterói: EdUFF,
2005.
______. Dramas, Campos e Metáforas: Ação Simbólica na Sociedade Humana. Niterói:
EdUFF, 2008.
395
Festa de São João: a performance como construtora da
identidade étnica dos remanescentes quilombolas em São Domingos,
Paracatu-MG, Vandeir José da Silva (TRANSE/UnB)
Mestrando em História Cultural
[email protected]
Resumo: Esta pesquisa tem como objetivo analisar a Festa de Caretagem, uma
homenagem brincante feita a São João Batista. A festividade é uma das formas que a
comunidade utiliza para a reconstrução da identidade étnica e a preservação da tradição.
Para a pesquisa, utilizou-se de etnografia, onde foram feitas gravações e fotografias
durante a Festa. Adotou-se diário de campo como ferramenta de análise na pesquisa. A
identidade étnica é reconstruída na Festa através da música e dança interligada a
história, tempo e memória. Essa manifestação popular acontece anualmente no dia 23
para 24 de junho, momento em que os moradores compartilham memórias repassando
as novas gerações. A Festa de Caretagem conta com aproximadamente 30 homens
mascarados sendo a metade caracterizados de cavalheiros e a outra de damas, que
dançam pelas casas da comunidade durante toda a noite. O espetáculo envolve sagrado,
profano, música, dança, máscara, cor e alegria na noite de São João Batista, na
comunidade de São Domingos localizado a 3 km da cidade de Paracatu no sertão das
Gerais.
Palavras-chave: festa, memória, oralidade.
I. Introdução
Acredita-se ser importante um trabalho que discuta a participação de
remanescentes de quilombo em festejos e manifestações populares, em específico
danças e músicas que são repassadas às novas gerações, como forma de manutenção da
reconstrução da identidade étnica. Justifica-se também o interesse pelo fato da
existência
de
pouca
produção
acadêmica
que
discuta
as
manifestações
culturais/artísticas envolvendo o conhecimento e a participação desses atores sociais
muitas vezes anônimos da historiografia oficial em Minas Gerais.
Objetiva-se analisar como a Festa contribui para a reconstrução da identidade
étnica, onde os remanescentes utilizam memória e oralidade no espaço dessa
Festividade que acontece na comunidade quilombola de São Domingos.
396
São Domingos se localiza a 3 Km do centro da cidade de Paracatu-MG, a uma
distância de 250 km de “Brasília Capital do Brasil e 506 km de Belo Horizonte Capital
mineira”.
Analisa-se aqui a reconstrução da identidade étnica do grupo de Caretagem;
através do festejo que acontece em homenagem a São João Batista. Essa reflexão voltase em específico para compreender de que forma a Festa de Caretagema torna-se uma
das formas que os moradores utilizam para a reconstrução identidade étnica.
Entendendo como Moscovici (2005:30) que “Compreender consiste em processar
informações”. Neste sentido é que se procura entender a representação social da Festa.
Para uma melhor compreensão dessa manifestação artística/religiosa faz-se
necessário responder os seguintes questionamentos: de que maneira a Festa ajuda a
manter a identidade étnica? Como ela tem sido repassada entre os moradores de São
Domingos?
A busca de sentido da representação social no espaço da Festa é fundamental
para entender as relações de convivência do grupo e o repasse dos ensinamentos, através
dos momentos vividos pelos moradores. Os instrumentos utilizados pelos tocadores na
festividade são: sanfona pequena e grande, tambor, surdo, xiquexique, caixa e pandeiro.
A festa caminha sob repasse dos mais velhos, artesões na construção do
conhecimento, que através das narrativas orais, educam os jovens levando-os a (re)
conhecerem nos momentos da Festas a importância dessa manifestação cultura para a
reconstrução da identidade étnica.
II. Etnografia da festa de caretagem
É interessante pensar que os estudiosos tendiam a pensar que a cultura popular
iria se dissipar, entendendo que os jovens não teriam interesse de levar a frente a
tradição. Geertz (1989:10) diz que: “Compreender a cultura de um povo expõe sua
normalidade sem reduzir sua particularidade”.
Compreende-se que a cultura de um grupo é fruto de construções e recriações,
podendo assim considerar que as manifestações dançantes em São Domingos diz da
realidade vivida e apreendida dos mais velhos para com os mais novos, uma
manifestação cultural que está na mente e no coração dos moradores dessa comunidade.
São Domingos é uma comunidade que procura manter as tradições e cultura. No
povoado são realizadas muitas festas, sendo a mais expressiva a Festa dos Caretas, que
397
acontece no mês de junho. A festa dedicada a São João Batista começa no dia 23 e
termina dia 24. O festejo acontece da seguinte maneira: os preparativos para a
homenagem começam no primeiro domingo do mês de junho estendendo-se até a tarde
do dia 24 de junho. Durante os preparativos são feitos ensaios todos os domingos na
porta da casa do Sr. Aureliano Lopes dos Reis.166
A dança de caretagem é composta por aproximadamente 30 homens. Metade
veste-se de cavalheiros e a outra de damas. Nos ensaios, com exceção dos instrumentos
musicais, tudo é improvisado. Os homens que fantasiam de cavalheiros utilizam cabos
de vassouras, rodos, pedaços de paus que são nomeados pelos dançantes de cajados,167
enquanto que os homens que irão dançar de damas simulam durante o ensaio, estar
segurando na barra do vestido.
O grupo conta com a participação da comunidade que se reúne para assisti-los.
Os homens, mulheres e as crianças ficam atentos às instruções dadas pelo
comandante168 da Caretagem que utiliza, como auxílio para organizar o ensaio, uma
cornetinha de sopro em bronze, a qual possui uma “idade” desconhecida pelo grupo.
Na Festas de Caretagem, somente os homens podem dançar. O grupo é
composto de aproximadamente 30 membros, sendo que a metade deles se veste de dama
e a outra de cavalheiro. Um careta nunca começa a dançar de cavalheiro, devendo
exercer primeiro o papel de dama.
A abertura do festejo é feita sob o toque do batuquim.169 Há pouca luz no
terreiro, mas é grande a animação. Cavalheiros e damas entrecruzam os passos, em
forma de caracol, roda e círculo duplo, formando por duas filas: uma de cavalheiros e a
outra de damas. A junção dos caretas ao sinal para o início da dança, toques musicais,
fantasias, foguetes, guisos, polacos e fogueira, torna o clima contagiante. Nesse sentido,
166
Remanescente de 98 anos. É morador mais idoso da comunidade e tocador de “xiqui-xiqui” na Festa
de caretagem. Participa do grupo dos caretas desde 15 anos. Em suas narrativas, diz que o pai e o avô
eram também participantes da Festa dos Caretagem.
167
Cajado é um instrumento feito de pau. Somente os cavalheiros utilizam cajados. A utilidade desse
demonstra superioridade dos cavalheiros em relação as damas. No momento de mudança de passos as
damas devem tocar no cajado do companheiro.
168
No arraial de São Domingos a função de comandante é repassado tradicionalmente na família dos
Lopes. João está no comando há 2 anos 2008/2009.
169
Nome de uma das danças dos caretas.
398
o Sr. Aureliano narra que “a Festa sempre existiu aqui na comunidade, desde meu avô,
os Careta dançava pra São João”.
Ao narrarem suas lembranças, os velhos evocam o passado, como se quisessem
transportá-lo para o presente. Como guardiões, esses são os semeadores da cultura local
e grande responsáveis pela reconstrução da identidade étnica dos remanescentes. Bosi
(2003: 15) salienta que:
A memória dos velhos pode ser trabalhada como um mediador
entre a nossa geração e as testemunhas do passado. Ela é o
intermediário informal da cultura, visto que existem
mediadores formalizados constituídas pelas instituições e que
existe a transmissão de valores de conteúdos, de atitudes enfim,
os constituintes da cultura.
Nesse sentido quando interrogados sobre a origem da festa são unânimes em
afirmar que ela é repassada através de seus antepassados.
Segundo relatos do Sr. Aureliano, 96 anos, tocador de xiquexique, “Eu dançava
de dama e depois de uns anos, passei a tocá xiqui-xiqui. Desde meu avô é feito a Festa.
Eles diziam que dançavam para reunir a comunidade”. O narrador nos induz a refletir
que dançar é um ato de sociabilidade, possibilitando a união dos moradores através da
Festa que é repassada de geração em geração.
Durante as apresentações nas casas é entoada a marcha de São João. O momento
do canto é também o momento de chorar pelos companheiros que faleceram. Essa
reflexão pode ser compreendida através das palavras de Joaquim Lopes dos Reis Lopes
do Reis170 quando diz: “Nóis temo que cantá. Porque ninguém de nóis sabe se vai tá
aqui o ano que vem”. O narrador demonstra forte sentimento de pertencimento entre os
integrantes do grupo, sendo extensiva também a comunidade, pois a música é
acompanhada pelos presentes.
De acordo com os caretas, a marcha vem sendo repassada entre as gerações e
todas as vezes que é entoada essa canção, as lembranças afloram, pois aprenderam a arte
de dançar tocar e cantar com seus antepassados.
170
Morador da comunidade, 71 anos de idade. Tocador de tambor no grupo de caretagem desde 15 anos.
Também é o capitão de folia de Reis e toca cavaquinho. Embora seja aposentado, trabalha na roça para
tirar parte do sustento da família.
399
Durante a peregrinação da Festa, histórias que são narradas, envolvendo os
antepassados e a forma como acontecia o festejo.
Mikhail Bakhtin (1987), afirma ser a festividade, qualquer que seja o seu tipo,
uma forma primordial, marcante da civilização humana. A vinculação com os fins
superiores da existência humana, com o mundo dos ideais, é condição essencial para
que aconteça um clima de festa. Essa relação, contudo, só se realiza plenamente nas
festas populares e públicas. Em se tratando da Festa de Caretagem, preparada para São
João Batista, somente os negros da comunidade dançam, mantendo historicamente a
tradição, valorizando e participando da festa como forma da manutenção da identidade
étnica.
Essa realidade social é percebida nas histórias e nos contos repassados pelos
mais velhos aos filhos e netos durante a Festa. As histórias narradas tornam-se lugar de
encontro entre passado e presente, possibilitando o conhecimento do outrora, fazendo
com que as novas gerações valorizem a Festa como meio de perpetuar a sua identidade
étnica através da Festa de Caretagem.
Considerações finais
A dança dos caretas, com toda sua magia e encanto, promove a entrega dos
moradores de São Domingos em uma comunhão de pensamentos e de gratidão. Assim,
o prazer mistura-se à manifestação das emoções contidas no âmago da fé, culminado
com uma festividade de cantorias de fundo religioso, entremeada de comilanças e
danças típicas e ao som de instrumentos esplendidamente tocados. A Festa de
Caretagem torna-se, portanto, um dos meios de análise da manutenção da identidade
étnica dos moradores de São Domingos.
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MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social.
Petrópolis: Vozes, 2003.
400
Da ênfase do conteúdo para o modo de expressar os eventos
etnográficos: as contribuições da antropologia da performance para
pensar o retorno dos emigrantes nordestinos às festividades juninas ,
Greilson José de Lima (UFPE)
Doutorando em antropologia
Resumo: O presente trabalho busca discutir as contribuições teóricas e
metodológicas da antropologia da performance para compreender os eventos
etnográficas.171 No decorrer da análise, vou priorizar os desdobramentos teóricos e
interfaces disciplinares que fomentaram o surgimento do paradigma conceitual da
antropologia da performance e as reflexões do valor analítico do conceito de
performance. A medita que a noção de performance senha sendo apresentada, serão
colocados as inquietações teóricas a que ela pretende contrapor e o que propõe, seus
diálogos e divergências. E de uma forma mais geral, os argumentos seguiram em torno
da passagem da ênfase no conteúdo predominante nos estudos clássicos sobre rituais
para a preocupação voltada para o modo de expressar a mensagem, própria da análise
performática. Deste modo, contribuições teóricas clássicas sobre o ritual, de autores
como Van Gennp,Gluckman, Leach e Turner serão analisadas em diálogo com os
modelos explicativos particular a antropologia da performance (apontando por Turner,
Shechner, Dawsey e Langdon) ressaltando as particularidades teóricas do paradigma da
antropologia da performance.
Palavras-chave: antropologia da performance, ritual, novos paradigmas.
Da ênfase no conteúdo para o modo de expressão
A noção de performance em Turner (1982) se torna uma estratégia analítica
importante para se desvencilhar de uma noção de cultura como resposta a normas de
conduta preestabelecidas pela estrutura social. O autor passa a privilegiar uma
perspectiva de caráter construtivista, que venha a considerar a agência dos indivíduos, a
historicidade das práticas sociais e as descontinuidades, as interrupções e elementos
171
A noção de evento etnográfico remete-se tanto aos eventos “diferentes”,“especiais” e “peculiar” do
ponto de vista dos nativos que os vivem e dos nossos interlocutores, assim como, do olhar do pesquisador
que é personagem relevante na escolha dos acontecimentos que são significativos para sua investigação,
tornado-se também co-autor na construção monográfica desses eventos (Peirano, 2006).
401
liminares na elaboração do conhecimento científico mediante as intersubjetividades em
campo.
Peirano (2006) em um texto polêmico de titulo: Temas ou teoria? O estatuto das
noções de ritual e de performance, acredita que a antropologia da performance não se
constitui como um paradigma, ou uma teoria, estaria muito mais colada as categorias
ocidentais e seus objetos e aos temas, e do pondo de vista teórico, não trazia nada de
novo, do que já estava posto no tema do ritual.
Eu, assim como Langdon (2007, p. 9), discordamos da autora, não são os
eventos que difere as análise clássicas dos rituais das análises da performance, como já
coloquei antes, mas a forma de abordá-los. Observa Langdon:
Enquanto as análises mais clássicas do rito resultaram
primordialmente em interpretações do conteúdo semântico dos
símbolos, as de performance chamam atenção para o
temporário, o emergente, a poética, a negociação de
expectativas e a sensação de estranhamento do cotidiano.
Outro aspecto relevante, é o contexto em que a perspectiva da antropologia da
performance surge, e a que demandas ou inquietação ele se propõe corresponder.
Ortner (1984) aponta uma nova orientação teórica na antropologia, chamado de
“prática” (ou ação e praxis), que adveio do desdobramento de várias tendências
dominantes na disciplina, ao que se remetia a agência e a estrutura nos anos 1950 e ao
feminismo e marxismo dos anos 1970. Do marxismo advêm o próprio termo práxis, que
aciona a questão do corpo humano explorado pelo poder e resistente ao poder (o que
remete a teoria do valor) e do feminismo (da relação corpo/gênero), o corpo como foco
de atenção para analítica. Deste modo, a autora observa um caminho unificador entre as
desarmonias teóricas dos anos 1980, onde o corpo é localizado no mundo e principal
locus de interação social. Eriksen & Nielsen (2007) observa que essa combinação
resulta numa tendência que enfoca o corpo, o poder e o ritual.
Dessa perspectiva da qual se refere Ortner, germinou a antropologia da
performance, segundo Eriksen & Nielsen (2007, p. 166) nos últimos escritos de Turner,
ele “propõe uma antropologia experimental, alegre, uma antropologia voltada para o ser
humano pleno, como um corpo que vive, respira e tem emoções”. E diferente do olhar
da perspectiva clássica do ritual, afirma Neves (2005, p. 131):
402
O rito, quando visto através da performance, adquire um aspecto afetivo e,
portanto, é preciso procurar nele todos os sentidos presentes: os sons, a fala, o cheiro,
etc. Ou seja, o rito deixa de ser apenas cognição, na qual se ressalta a mensagem, para
tornar-se uma experiência multidimensional e multifocal.
Langdon (2007), observa que em meio a diversidade dos usos do termo
performance, contrapondo-se à Peirano, afirma que a abordagem da antropologia da
performance tem valor conceitual, à medida em que surgiu como conseqüência das
preocupações teóricas atuais, indo além das teorias da antropologia simbólica clássica
desenvolvidas nos anos de 1960 e 1970.
A performance em espaço e tempo
Para Turner (1988), as abordagem clássicas do ritual se difere da analise da
antropologia da performance, entre outras coisas, por sua disposição em espacializar o
processo ou o tempo como impulso central, a medida que essa última dá ênfase as
análises processuais e dinâmicos da realidades.
Esse argumento se apresenta como um contraponto importante, que em maior ou
menor grau, está presente nos autores discutidos (no que se refere às análises clássicas)
e mesmo que eles partem de concepções de análise do ritual, de natureza, estrutura e
função de orientação teórica distinta, são tomados por esse impulso central que até os
anos 1980 parecia remeter a um único caminho para se chegar ao conhecimento
científico.
No que se refere à abordagem dos ritos de Max Gluckman, na sua descrição do
ritual de inauguração da ponte (já mencionado) e mesmo que ele se refira a uma
realidade de contatos, localizando social e historicamente o evento, os elementos
processuais de sua abordagem foram subsumidos, nas estruturas e subestruturas, nos
papéis e status. Sua perspectiva em torno do conflito foi fundamental para a perspectiva
turniana, no entanto, o que se afligia durante o conflito era o indivíduo não o papel que
ele assumia na organização social, o humano foi sucumbido pela estrutura das
organizações. E o conflito, não assume uma linguagem de dramaturgia que foi além do
estado de manutenção da estrutura, não da vazão a subjetividades, o intersticial do qual
Dawsey (1997) observa entre os bóias-frias.
403
Dawsey (2005) em estudos, junto aos bóias-frias, observou que a sociologia dos
anos 1970 e 1980 os viam como um problema de classificação. Ora eram camponeses
deslocados, ora eram membros de um processo de proletarização ascendente. Ora eram
dispostos em um plano de uma história evolutiva e universal, sob o signo do progresso,
ora como membros de um mundo destroçado cujo desdobramento se manifesta nos
estilhaços desse mundo ou na tentativa de reconstruí-lo.
Para Dawsey, a perspectiva da performance permite lidar com o liminar, o
transitório que não se enquadra em categorias de análises estanques, a exemplo dos
bóias-frias, e por meio da análise do “teatro” desses bóias-frias nas carrocerias de
caminhões, ele encontrou a medida de expressão “uma passagem para uma condição de
passagem” e focou os elementos estruturalmente arredios, como elementos que os
informar. Desse modo, observa entre eles, performances rituais de deboche e de
subversão da ordem, que evidenciam experiências vividas como algo desconcertante e
partir do olhar etnográfico, verifica o caráter contestatório e reflexivo que a condição de
liminar permite nesses momentos de um extraordinário cotidiano (o teatro da vida
cotidiana) (Dawsey, 1997).
O que estou apontando não desmerece a análise do Gluckman e seu valor
analítico do rito, nem tenho o conhecimento de todas as suas obras para isso, apenas
quero marcar teoricamente a particularidade da análise da performance.
A respeito de Van Gennep, Turner (2008) afirma que seu trabalho comparativo
sobre o rito de passagem, trouxe ao conhecimento o movimento tripartido no espaçotempo, permitindo uma abertura para compreender processos sociais extrarituais. E
acrescento, sua contribuição vai além, para ele os atores sociais em suas trajetórias
retratam os movimentos relativos à mudança, onde se fazem transitórios, pessoas e
grupos sociais. Essa perspectiva, do ponto de vista teórico, contribuiu bastante na
perspectiva da antropologia da performance, mas ela aponta uma contradição no modo
que ele vai estruturar seu argumento.
É claro que um autor tem que ser entendido em diálogo com sua época (mas não
pretendo entrar nesse mérito da questão), no entanto, se detendo em mostra sua tese, ou
eficácia do modelo tripartido, Van Gennep comparou ritos de vários contextos, numa
escala temporal espacializada. Para exemplificar um tipo de rito, era posto em seqüência
um exemplo de uma sociedade primitiva, de uma sociedade camponesa e de uma
sociedade moderna industrializada. A análise não era evolucionista mas a forma de
404
apresentar os dados se aproximava ao modo destes. Este fato, que me remete a Fabian
(1983 apud Lobão 2005), sobre o que ele chama de abordagem do “tempo
intersujetivo”, que o antropólogo use uma abordagem sincrônica ou enforque
diacrônico, mas ambas baseada numa cronologia espaciológica, mesmo falando de um
modelo processual do rito, sua escrita etnográfica é exatamente oposta, faz uso de uma
manipulação da temporalidade, deste modo, o tempo não deixou de ser espacializado.
Van Gennep valorizava quantidade em detrimento da riqueza dos dados ou experiências
rituais, sobre o rito, ele buscou alcançar um meta-relato, o que a antropologia da
performance deixou de acreditar ao assumir a crise da representação, tolerando o
incomensurável.
A performance e os modelos explicativos
Turner (1982) ao aderir ao pós-modernismo em algumas de suas formas, se
distanciou dos estudos dos sistemas abstratos e modelos formais, fossem eles orientados
para o indivíduo ou estrutura, sociológicos ou culturais. Para ele, modelos formais
obscureciam a exuberância, a criatividade e o humor da vida humana e colocavam
mente científicas acima das pessoas reais.
Segundo Langdon (2007, p. 8), Leach observa “que a performance ritual torna
explícita a ordem social, mas, para ele, a ordem é um modelo ideal, quase uma fantasia,
e não uma realidade”. Leach (2005, p. 21-2) para apontar sua orientação teórica, afirma
que nossa função como antropólogo é compreender e explicar o que ocorre na
sociedade, como a sociedade funciona. E posteriormente afirma: se um engenheiro
pretende explicar como funciona um computador, não vai perder seu tempo classificado
suas peças, mas explicando seus princípios, representando seus argumentos em formas
equacionais, mesmo que as informações a serem incorporadas nos códigos sejam
extremamente complexas, os princípios básicos são simples, impulsos positivos e
negativos.
Enquanto Leach está preocupado com modelos explicativos abstratos que não
estão nos dados puramente acessíveis à observação, a antropologia da performance, não
se detém unicamente nas ações normativas, nem numa leitura semântica dos símbolos,
mas na interação e contextos que estes emergem, as multiplicidades de formas que
estruturam a vida, uma ação temporal marcada por rupturas de atores sociais que de
modos amiúde manifestam-se sobre seu mundo. Este paradigma busca descrever o
405
contexto e sua exposição interativa e os sentidos do sensível no corpo, o olfato, o
musical e a fala. E continuando com o que coloca Langdon (2007, p. 16), o estudo da
performance envolve: experiência em relevo (ressaltada, pública, momentânea e
espontânea) participação expectativa (participação do evento para produzir a
experiência), experiência multissensorial (a experiência unificada dos vários receptores
sensórias, o ritmo, as luzes, os cheiros, a musica, os tambores e os movimentos do
corpo) e engajamento corporal, sensorial e emocional.
Performance: contexto, liminoide o paradigma do processo
Turner, como afirma Schechner (1988), é um autor que se renova a cada nova
publicação e, após sua publicação “From ritual to theatre: the human seriousness of
play” em 1982, que podemos reconhecer uma nova fase do autor. Ele vai resgatar a
análise dos dramas sociais para pensar as sociedades complexas, deste modo desloca a
noção de liminaridade para outro contexto, o que o permite elaborar um novo conceito o
de liminóide, no propósito de interpretar as dimensões simbólicas do mundo
contemporâneo. Esta noção parece se relacionar com um momento social e histórico
que Durkheim identifica como de solidariedade orgânica, o que pressupõe a divisão
social do trabalho e em conseqüência disso, a divisão de outras instâncias da vida, em
que não é possível reconhecer uma autoridade absoluta entre as categorias sociais.
Foram “reduzindo cada um dos seus domínios sensoriais a um conjunto de gêneros de
entretenimento que floresce no campo de lazer da sociedade, não mais no lugar central
do controle” (Turner 2005. p. 184). No entanto o autor acredita que em meio a
fragmentação dos gêneros da performance, ou gêneros performático é possível
recuperar a dimensão suprimida da experiência, a emergência de um sentimento de
communitas.
Schechner (1988) observa que Turner sempre investiu na noção de processo,
especialmente na maneira em que as pessoas resolvem suas crises. Desse modo, nos
seus trabalhos, reportando a experiências anteriores em campo, ele explorou de forma
detalhada as formas emotivas (sensoriais) e múltiplas, de muitas vozes, formas
performáticas que se instalam no movimento da vida, os atos de performar as crises.
Ainda sobre Turner, Schechner (1988) afirma que, o paradigma da performance é o
paradigma do processo e um elemento central nas suas análises é considerar os eventos
406
em sua vivacidade, em/ ou como ação. O que o aponta também o lidar com o inacabado,
descentralizado, liminar.
Considerações finais
As perspectivas teóricas clássicas sobre o ritual não buscou versar sobre um
mundo do imprevisto e do heterogêneo. Analisar era cortar as arestas da realidade e
domar o objeto ou vislumbrar nas manifestações dos coetâneos, as primitivas “formas
elementares”. Além do termo elementar, grandes metáforas como: sistema, estrutura e
organização buscaram expressar o contingente sem contingência.
A abordagem performática nasce num mundo sem ilusões, de verdades frágeis e
mais conscientes, o mundo chamado de pós-moderno. Este já havia assumido a
bricolagem, a polifonia das vozes e as transformações sociais contínuas. A grande
questão não era sobre o valor semântico do rito, ou se eram mais mitos ou ritos, se
refletiam o inconsciente estrutural ou eram bons pra pensar. A noção de performance
privilegia a construção de um espaço simbólico e de representação metafórica da
realidade em que os laços entre artes e ciência se estreitaram.
Observo que os estudos da antropologia na atualidade têm se voltado cada dia
mais para os gêneros performativos (ritual, teatro, música, dança, festas, narrativas,
esportes, movimentos sociais e políticos e encenações da vida cotidiana), se antes era
comum os estudos voltados para os sindicato, organizações políticas partidárias, as
relações entre as classes sociais e os estudos de comunidades, na atualidade os grupos
de cultura popular, as agremiações carnavalescas, as peregrinações religiosas e os
grupos dançantes como maracatus e outros, vem sendo bastante estudados. Esses são
eventos que se afeiçoam à liminaridade ou liminoid, como colocou Turner, e se
apresentam como objetos de estudos promissores, pela capacidade que eles têm de se
renovarem, de lidarem com divergências internas e as diferenças, sejam elas
econômicas, de gênero de raça e tantas outras. E acredito que a perspectiva da
antropologia da performance apresenta-se como um campo de análise próspero, a
medida que volto-se para o processual, a agência dos sujeitos sociais, as experiências
vividas, as subjetividades confrontadas e as ironias reveladoras (a arte verbal).
A autora Lucas (2005) ressalta a importância da variabilidade semântica e o
deslocamento conceitual da performance como termo que reivindica uma multiplicidade
de vozes disciplinares que pode permitir nos espaços acadêmicos diálogos produtivos.
407
Não discordando da autora, no que se refere à noção performance, mas me preocupo
com seu valor heurístico, esperar que possamos galgar caminhos em direção a bases
teóricas mais sólidas mesmo em meio a terrenos escorregadios. Mesmo em se tratando
de uma perspectiva analítica que se propõe considerar elementos arredios, as
contradições da vida social em seu movimento mesmo (no modo de expressão), a noção
de performance carece aparar as arestas para ressaltar melhor seu valor explicativo.
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409
MÚSICA E ORALIDADE
SESSÃO 1: MÚSICA, PERFORMANCE, ORALIDADE
Escutar, escutar, escutar... um caminho para a construção
poética, Meran Vargens (UFBA)
Resumo: Este trabalho estabelece elos entre o processo de construção do roteiro
do documentário “Vozes do Baixo Sul” (em produção para o IRDEB – TVE- BA no
qual sou atriz e roteirista) e a pesquisa intitulada “Causos Daqui: estudo teórico-prático
em Performance, Oralidade e Histórias de Vida na construção de dramaturgia original
cênica como proposta pedagógica para a formação vocal do ator-criador”.172 Em ambos,
o processo condutor da criação é a escuta sensível. Trata-se de refletir sobre os modos
de buscar, de encontrar, de escolher e de criar vínculos entre vozes e falas para tecer
significados na construção poética. Desta forma o documentário é encarado como um
primeiro experimento para o levantamento de questões, sugestões e análises dos modos
de proceder da pesquisa quanto ao ato de escutar e de provocar a fala do outro
incentivando a expressão e a exposição de si; de gerar temáticas ao interagir na pesquisa
de campo onde se deram e se darão os procedimentos de coleta de histórias de vida; dos
aspectos da vocalidade e da oralidade tocando a percepção do autor/ator/criador.
Palavras-chave: oralidade, voz para o ator, dramaturgia original, processo de
criação cênica, escuta sensível.
O artista tem sempre uma cisma. E só há um caminho para a cisma de um artista:
realizá-la. É assim que a minha cisma de artista decidiu investigar a vida... e assim parti
a tecer caminhos para cumprir minha cisma.
E o que é e de onde veio mesmo esta cisma de investigar a vida? É que quando
num certo dia comecei a por reparo no mundo enxerguei um mundo surdo. Foi então
que pus reparo em mim – eu atriz, diretora teatral com rompantes de dramaturga,
também professora de interpretação, improvisação e voz para atores – e pari um projeto
172
Pesquisa sendo realizada em estágio de Pós-Doutoramento no IA-UNICAMP com supervisão da Prof
ª. Dra. Regina Polo Muller.
410
acadêmico, investigativo, criativo e de resultado cênico. Escutem seu extenso nome
batizado para afirmar em detalhes sua intenção e pretensão: “Causos Daqui: estudo
teórico-prático em Performance, Oralidade e Histórias de Vida na construção de
dramaturgia original cênica como proposta pedagógica para a formação vocal do atorcriador”. Ouça o que escreve suas entrelinhas:
No projeto “Causos Daqui” proponho levantar e criar
estratégias de pesquisa de campo para estabelecer vínculos
pedagógicos entre o ator e o outro da comunidade através da
interação e da observação, como meio de desenvolver o
imaginário, a percepção, a linguagem corporal e vocal, a
clareza do uso da oralidade como elemento da linguagem
cênica, conduzindo-o sempre em direção a expansão de suas
possibilidades expressivas. A intenção é precisa: provocar o
ator colocando-o diante da e em convívio com a realidade
como fonte de inspiração poética, tendo o outro como elemento
revelador e construtor do meio e do si mesmo. Ao mesmo
tempo em que provoco o ator, ofereço-lhe o meio para
materializar sua poética: elaborar a experiência em
performance cênica sendo construtor da dramaturgia num
processo colaborativo.173
Cabe acrescentar aqui que também me coloco como atriz nesta empreitada.
Paralelamente recebi o convite para participar como atriz e redigir o roteiro do
documentário sobre o Território de Identidade Baixo Sul patrocinado pelo o IRDEB –
TVE da Bahia e produzido pela Celeiro Cultural. O Estado da Bahia foi dividido em 26
Territórios de Identidade e este é uma das regiões mais antigas do Brasil com sua
história ancorada na época do descobrimento. Nela encontramos grupos étnicos:
indígenas e quilombolas, e um número significativo de grupos de cultura popular. Uma
região que se mantém economicamente por ter desenvolvido a solidariedade, a
formação de comunidades e cooperativas. Uma região de águas doces e salgadas.
Mais que depressa entrelacei caminhos e batizei o documentário de “Vozes do
Baixo Sul”. Propus um roteiro que apenas delineasse a entrada em campo para dar rumo
a entrevistas abrindo espaço para histórias de vida. Tracei junto com a direção174 uma
estrutura poética para o documentário constituída de um orquestrar de sons, vozes e
falas como uma ópera de 26 minutos com seus movimentos musicais. Colher do
173
174
Fragmento retirado do projeto de pesquisa citado acima.
“Vozes do Baixo Sul” é dirigido por Zélia Uchoa e produzido por Elson Rosário.
411
território o valor da musicalidade de ações, da palavra dita, a força poética das histórias.
Captar a fala que se desenha nas imagens, as imagens que respiram interjeições, ecos,
exclamações, interrogações. Criar uma trilha sonora nas vozes humanas que revelam
seus nomes próprios, e por aí vai. Vendi o peixe que nos convidava a filmar com os
ouvidos.
Me mantive na rota de navegação da cisma artística. E ao filmar o documentário
em dezembro de 2009 percebi que me ensaiava para conduzir a pesquisa de campo em
“Causos Daqui”.
Me experimentei nas dificuldades obvias que nos aguardam: a câmera imprime o
desejo de expressar uma palavra aceita. Percebi na pele a estrutura do diálogo onde
precisamos perguntar já definindo o que vamos ouvir. Nos desviamos deste caminho.
Investimos na perda de tempo, no desperdício dos encontros ao léu, garantimos algum
direito de jogar conversa fora no intuito de tocar na intimidade do indivíduo habitante
do território.
Descobri em mim e exercitei no ato a arte de conduzir conversas para que
cheguem a algum lugar onde a pessoa solte a voz e a fala, sentimento e pensamento.
Onde o falar seja um jogo gostoso de sentir-se ouvido. Conseguimos. Creio que este foi
um dos segredos: me apresentei como a boa ouvinte que sou, a ouvinte entusiasmada
com aquilo que parece insignificante aos olhos dos outros, com interesse em acessar a
pessoa. Isso se mostrou peculiar. Conclusão: o exercício de aceitar o outro faz parte da
nossa preparação para a pesquisa de campo em “Causos Daqui”.
Ponho reparo agora no caminho feito: à medida que fui entrando no espaço mais
íntimo do indivíduo fui desarticulando a maneira pronta e aceita de ver o mundo. As
histórias de vida contam sobre a região donde as pessoas vivem? Sim.
Inevitavelmente a personalidade do interlocutor afeta a conversa. Há um temor e
uma timidez nos que se encontram na situação de exposição, mas a maneira amorosa
quebra barreiras. É possível preparar um grupo de atores para isso? Sim: exercitar a voz
articulada pelo coração e a audição repousada no coração. Isso vem do desejo de uma
ação receptiva, passiva. Experimentar esta passividade ativa no corpo.
A escuta é um meio de receber o mundo, de deixar que ele penetre no corpo,
mente, espírito. Um dos objetivos em “Causos Daqui” é desenvolver a percepção
consciente desta penetração. Aqui dança um segredo. Somos afetados pela presença da
sonoridade do ambiente, das forças que ecoam a nossa volta. Reagimos instintivamente
412
a vozes e textos, ruídos, sons e canções. A força de penetração do som é muito grande e
invade as musculaturas, ossaturas, atingindo camadas sutis da nossa energia vital, em
suma, é pura vibração concreta afetando nossos corpos. Isto se dá num plano mais
inconsciente. Dimensionamos pouco o seu efeito no nosso cotidiano. E é natural que ela
ecoe com precisão de sentimento. Então a aventura é desenvolver a percepção do tom,
dos ritmos, dos silêncios, das pausas, das intenções que chegam a nós e reconhecer
como somos afetados por elas. Testemunhar isto nas falas, na voz, no gesto do corpo, no
olhar. Caso se ponha reparo nessa idéia há de reverberar uma intenção: reorientar a
nossa presença no mundo.
E como enfim se dá a construção poética?
Em “Vozes do Baixo Sul” viajamos por mundos que vão do doutor-médico de
Valença à quilombola da piaçava de Boi Taraca em Nilo Peçanha que contracena
comigo num jogo improvisado chamando pela alegria da vida; do velho artesão do barro
calmo, disciplinado, de voz mansa e baixa em Maragojipinho ao jovem guia turístico
cujo pai foi pescador na Ilha de Boipeba. No processo de escuta percebo o que me
encanta: a força das mulheres, o vinculo com as paixões. Alguns pequenos detalhes
entre tons. Então é natural que eu conduza a construção poética pelo que se tece em
mim. Que eu queira no sabor das comidas a possibilidade do encontro. Que veja na
mulher que canta enquanto faz a farinha a vida que desfruta o simples aqui e agora.
É diante do material filmado que vamos definir o roteiro. E isso tem se dado
pelo processo de escutar, escutar, escutar... Cumprimos a idéia inicial. Criar uma base
para entrar no set e seguir em improvisos na busca do espontâneo para tocar no
individuo e ver se através do indivíduo encontrávamos a região, o lugar, o território de
identidade. Encontramos.
Agora o papel da escuta é mobilizar a ordenação desse convívio de mundos que
compõem o território. Por exemplo: fui afetada pela freqüência da palavra alegria. Ficou
ecoando: alegria de viver tem que ser procurada e cultivada. Lição de casa dada por
dona Celina, dona Damiana, seu Almerentino. Todos foram muito claros. Vou juntando
fatos que vislumbro editar costurando significados. Ao percorrer as imagens coletadas
pela fotografia outra poética se encontra. Quase uma nova aventura: perceber o que há
de vivo e poético nos enquadramentos, no tempo, ritmo. Novamente coisas do coração:
pulsação. Escutar a imagem, escutar a imagem, escutar a imagem até que o silêncio se
faça.
413
Uma curiosidade me fascina em “Causos Daqui”: qual a escuta que encantará o
grupo de atores da pesquisa se deixar a escuta livre? O tema em aberto? A área da
cidade aonde vai-se investigar a vida ser definida pelos indivíduos num coletivo? O que
se revelará? Posso desde o início definir o campo, direcionar a escuta e traçar as linhas
estéticas, mas isto roubaria do ator a possibilidade de entrar em contato com sua cisma
poética. É certo que vamos nos perder no caminho para encontrar o que, aonde e como?
Aventurar-se como os navegantes de antigamente: lançar-se ao mar com uma meta e um
desejo e descobrir um Brasil, um Rio, uma Salvador, um bairro. Pessoas. Coisas. Casas.
Ambientes. O si mesmo.
Coloquei vários pontos convergentes na pesquisa que são áreas que sempre
dialogam em um processo de criação: os aspectos da técnica a ser aplicada para a
linguagem desejada, a formação do artista e o desenvolvimento de linguagem. Me
perguntei por muitos momentos onde criar o foco central da pesquisa: na construção da
dramaturgia através do processo colaborativo? Na pesquisa de campo? Na analise das
histórias de vida coletadas? Na percepção da voz e da oralidade na pesquisa
contextualizada em universo urbano de cidade grande? Escolhi colocar na ponta deste
iceberg a voz e a preparação vocal do ator e com ela a escuta, a percepção, a interação
com o meio. É uma escolha de principio.
Talvez o mais significativo do projeto seja a possibilidade de em tocar no outro
tocar em si mesmo, e o si mesmo ser redimensionado. Entrar desarmado na pesquisa de
campo é o desafio. Isto significa ir de ouvido aberto sem ter temáticas pré-definidas,
apenas seguir em contato com nossa sensibilidade interna, fortificados em nossa
individualidade para interagir. Apto a colocar–se a disposição, a ouvir – ouvir – ouvir. É
este ouvir receptivo que vai dizer o que procurar, o que encontrar e qual é o caminho. A
seleção e as escolhas se dão pelo desejo poético de escutar e atender a voz interna, ao
poder da poesia que ecoa em nós.
414
Códigos e significações da performance oral: em torno da
experiência estética , Marcelo de Andrade Pereira (UFSM)
Doutor em educação
Resumo: O sentido de performance remonta, por certo, a contextos específicos
de investigação, muito embora possamos tomá-la genericamente como forma periférica
de expressão. Historicamente o período que vai do medievo até a renascença constitui
um modelo exemplar para se pensar a performance oral, sobretudo porque nele, nesse
lugar específico da história, a palavra (comportando sua sonoridade) desempenha dois
papéis, enquanto transmissora, a palavra corporifica e comunica uma matéria, uma
substância,
um
sentimento.
Transmissão,
nesse
sentido,
significa
também
contaminação. Com efeito, tanto na trova medieval – no jogo do amor cortesão –
quanto no teatro elisabetano, o ato de comunicar, de falar parece-nos deveras afetado.
Neste lugar histórico em que a palavra encontra um termo final e não apenas mediador,
falar significa atuar, tornar vivo, visto que, na palavra, exprime-se o conjunto de
elementos não verbais e não sígnicos – materializados na voz, nos gestos, no uso da
palavra – que a envolvem e que, não por acaso, a dinamizam. Tais elementos dizem
respeito, sobretudo, à performance – transposta numa espécie de ritualização da fala:
um procedimento, um modo de abordagem, de se pôr da palavra que coopera para o
estabelecimento de uma atmosfera, de um clima, de uma tonalidade afetiva que
hiperdimensiona
a própria palavra e os sentidos por ela ventilados. Este trabalho, de caráter
multidisciplinar, busca apresentar alguns códigos e significações da performance oral
em face da prática educativa e do estabelecimento de um espaço multidimensional de
sentidos, ou seja, estético. Trata, ao fim e ao cabo, do uso da palavra, da voz e do corpo
na prática docente. Conta com os seguintes operadores teóricos: Zumthor, Bauman,
Turner, Schechner, entre outros.
Palavras-chave:
performance,
oralidade,
prática
educativa,
docência,
experiência estética.
O texto que hora apresento constitui, na verdade, um esforço de compreensão e
justificação de uma prática educativa. Quando digo uma prática educativa refiro um
415
modo particular de entender e praticar a docência – em geral e não necessariamente a
prática docente artística ou em arte –, seu modo de operação e seus efeitos. Essa
docência está, por certo, trespassada pela idéia e pela prática da performance.
O desenvolvimento desse problema, de uma prática educativa entendida como
performance – tanto do ponto de vista da ação, como sugere Richard Schechner
(2002),175 quanto da linguagem, para auferir a especificidade da arte da performance tal
como nos introduz no Brasil Renato Cohen (2004; 2002) – pertence, de fato, a uma
investigação maior e anterior intitulada Performance e educação: interfaces, conceitos e
prática docente.176 Em uma primeira fase de elaboração de um pensamento sobre a
performance desde o campo educativo, pedagógico, busquei investigar a dimensão
expressiva do ato pedagógico, sua natureza performativa, em vista de desenvolver o
pensamento e a prática educativa contemporânea. Perguntava-me: de que maneira posso
pensar sobre a performance do professor como elemento com o qual poder-se-ia criar
um espaço de experimentação e construção do conhecimento não apenas pautado por
uma sanha cognitiva, de entendimento, que tudo quer captar, compreender e esboroar,
mas sobretudo e fundamentalmente pela sensibilidade, pelo estético, como espaço
profícuo, germinal de sentidos, sejam eles dados (como sensação) ou produzidos (como
significado)? Essa pergunta dizia respeito à recuperação da dimensão corpórea no e do
ato pedagógico, ela aduzia, estrito senso, à recuperação de um corpo poroso, permeável
pela experiência estética – seja do professor, seja do aluno – no processo de ensinoaprendizagem. Tratava-se, ao fim e ao cabo, de pensar o ato pedagógico como um ato
performático, ato corpóreo de comunicação, de compartilhamento de sentidos –
sensíveis e cognitivos –, de presentificação, interação e integração dos partícipes da
prática formativa.
A afirmação sobre a recuperação do corpo no processo de ensino-aprendizagem
demanda certamente mais explicações. Ela implica, em primeiro lugar, reconhecer que o
corpo no espaço escolar não é de fato um corpo presente, um corpo expressivo. O corpo
constitui historicamente um dos primeiros obstáculos à formação de um genuíno sujeito
do conhecimento. Como sabemos, essa noção foi amplamente discutida na história do
175
Como sendo processo, a performance não se apresenta em alguma coisa, mas entre as coisas, como
ação, interação e relação (Schechner, 2002, p.24).
176
Essa pesquisa representa ademais um desdobramento de minha de tese de doutoramento intitulada Os
Usos da Palavra, defendida em 2007, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de
Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
416
pensamento ocidental, desde os primórdios da filosofia, com Platão, passando pelo
obscurantismo medieval, até a modernidade de Descartes. O corpo reduzido a um
aparelho biológico e, portanto, meramente funcional, mecânico, é herança dessa
tradição que escamoteia a natureza e o sentido do corpo na cultura. Michel Foucault
talvez seja um dos pensadores mais notórios que nos advertiu sobre os processos
discursivos históricoculturais que atribuem ao corpo um sentido específico, particular,
que o recobre, que delimita suas fronteiras, corpo no qual se inscreveria um suposto
sujeito.
Em suma, pode-se dizer sobre o corpo que esse constitui uma questão da ordem
do comum e comum entre os contextos de investigação da performance. E é justamente
a partir desse suporte que uma análise multifocal da performance pode de fato se
realizar. Um exemplo desse exercício investigativo encontra-se na obra de Jorge
Glusberg A arte da performance (Glusberg, 2003).
Embodiment ou incorporação são termos que compreendem a performance
como um campo de imantação [porque plasma] e disseminação [porque comunica] de
sentidos [dados e produzidos]. Seja como for, esse foi apenas o ponto de partida para
uma análise do sentido da performance e da pertinência desse conceito para a educação.
Porquanto seja a performance uma ação discursive mediada pelo corpo, uma acepção
dentre inúmeras possíveis, pode-se afirmar que ela conforma um propósito de
redimensionamento crítico do real, da experiência propriamente dita, cotidiana. A
performance faz repicar, como forma-processo – como meio pelo qual algo se dá, como
procedimento, como representação ou forma de abordagem – os sentidos comumente
atribuídos ao conjunto dos dados da experiência que constituem uma dada realidade e
seu respective conhecimento.177 Dito de outro modo, a performance irradia
reflexividade, sua dimensão crítica pergunta pela consistência da própria experiência,
das vivências particulares que nela são redimensionadas e generalizáveis. É um
território de imantação dos sentidos, dados e produzidos.
177
A caracterização da performance como forma-processo parece validar a hipotética etimologia grega da
palavra, visto que o prefixo grego per indica uma forma de passagem, como se disse, um meio pelo qual
ou através do qual algo se dá ou se apresenta. Como bem observa Victor Turner (1982, p.17) o verbo
grego perao traz em seu bojo o sentido do atravessamento.
417
Decididamente, é nesse encadeamento de vivência e pensamento que se vê
estabelecido um domínio no qual a experiência se plasma em forma. Esse domínio é o
estético.
Dentre a sorte inumerável de sentidos passíveis de serem atribuídos à
performance uma em particular parece aduzir e mesmo dar conta de um dos problemas
fundamentais da educação, a performance como ato de comunicação. Para Paul
Zumthor, célebre teórico da performance oral,
[...] performance designa um ato de comunicação como tal;
refere-se a um momento tomado como presente. A palavra
significa a presença concreta de participantes implicados nesse
ato de maneira imediata. Nesse sentido, não é falso dizer que a
performance existe fora da duração. Ela atualiza virtualidades
mais ou menos numerosas, sentidas com maior ou menor
clareza. Ela as faz ‘passar ao ato’, fora de toda consideração
pelo tempo (Zumthor, 2007, p. 50).
No entendimento de Paul Zumthor o ato de comunicar, abrangido pela idéia de
performance, “não consiste somente em fazer passar uma informação; [comunicar] é
tentar mudar aquele a quem se dirige; receber uma comunicação é necessariamente
sofrer uma transformação” (Zumthor, 2007, p. 52). Para Zumthor (2007, p. 63) é
justamente a voz, na qualidade de “emanação do corpo”, que reintroduz no âmbito
social, pela performance, um domínio de experimentação da palavra qualitativamente
distinto do ordinário, do automático, do instrumental, do sem expressão. Se a
comunicação tem por fim – e a educação nela implicada – a criação de um espaçotempo pleno de significação, tem, porquanto a possibilita, um uso de palavra conforme.
Tal modo de usar a palavra e a voz conforma ademais uma série de códigos próprios da
arte verbal, da arte do falar.
Pode-se dizer, sem hesitação, que a respeito dos códigos da performance – e em
particular, da performance oral – a análise de Richard Bauman constitui a maior
referência acerca deste tópico no âmbito da antropologia da performance. De acordo
com Bauman (1984) a performance como sendo
um modo particular de falar supõe uma competência, na suposição de uma
audiência da capacidade de um indivíduo em particular, um performer, de apresentar
418
uma competência comunicativa.178 A competência residiria, segundo Bauman (1984,
p.11), no conhecimento e na capacidade de falar deste indivíduo em modos
apropriadamente sociais. É a audiência, por assim dizer, que atribui ao performer a
insígnia da competência, na medida em que este consegue estabelecer com o public um
domínio efetivo de comunicação de sentidos, dados ou produzidos, enfim, de expressão.
Para tanto concorre o emprego de uma série de convenções lingüísticas e mesmo
artísticas culturalmente construídas. Insinuação, gracejo, ironia, imitação, tradução,
metáfora são apenas alguns dos modos possíveis de expressão e intensificação de
sentidos de enunciados passíveis de serem comunicados.
Procedimentos que mesmo sem alterar um enunciado o transformam
qualitativamente, seja por artifício lingüístico seja pelo modo de utilização da voz, de
articulação da palavra, sua tonalidade e ritmo.
Ao considerar a eficácia da utilização desses recursos constituintes da arte verbal
é que Bauman (1984, p.17-22) irá apresentar uma lista – segundo ele parcial e não
devidamente elaborada – dos códigos da performance oral. Quais sejam: a) códigos
especiais de uso lingüístico, comumente critério de linguagem poética, quando da
percepção de algo que se formula como distinto do ordinário, do uso convencional da
linguagem; b) linguagem figurativa, porquanto apresente densidade semântica, note-se
o uso de metáforas; c) paralelismo, que envolve o uso sistemático e mesmo repetitivo
de palavras com alguma variação fonética, tal como se apresentam em formas poéticas
mais elaboradas, expressas em rimas, cantos, odes; d) traços paralinguísticos especiais,
como tom de voz, ritmo, escala, peso; e) fórmulas especiais, uso de frases marcadas por
uma dada tradição oral (era uma vez, assim contou, dizia-se...); f) apelo à tradição,
como recuperação de referências estéticas já consolidadas, trazidas por força de sua
atualidade e qualidade intrínseca de expressão; e, por fim, g) declaração do status de
performance, como demarcação de um espaço de representação socialmente
reconhecido.
Com efeito, a utilização desses recursos na prática educativa permite amplificar
o alcance do que se fala, do que se transmite; compreendida como performance a ação
pedagógica pode redimensionar sua própria natureza e função, permitindo, inclusive,
178
De igual modo referem Zumthor (2007; 2005; 1997), Austin (1975), Glusberg (2003) e
Renato Cohen (2002; 2004).
419
confundi-la com outras práticas sociais que estruturam e condicionam o conhecimento e
sua transmissão, transmissão essa que tem, na performance, por força de uma espécie de
ritualização, a vantagem de tornar móvel o imóvel, de abranger estados intermediários
de cognição e experimentação estética. O professor desempenha um papel, executa uma
função, culturalmente construída. Não se trata de um papel/personagem, tal qual a
tradição teatral formulou e desenvolveu desde a cultura grega clássica, mas de um lugar
na performance cotidiana da escola, no ritual cotidiano desse tipo de encontro que se
quer eficaz, transformador, emancipador e multidimensional.
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420
SESSÃO 2: ATOR, ORALIDADE
Rezando em busca da visão: narrativas e performances rituais no
Fogo Sagrado, Aline Ferreira Oliveira (UFSC)
Mestranda
Resumo: Neste trabalho tenho por objetivo retomar uma das reflexões da
pesquisa que realizei na graduação, de como são utilizados diversos meios para produzir
uma experiência em relevo em contextos rituais de um movimento espiritual
internacional conhecido como Fogo Sagrado ou Caminho Vermelho, em que as
narrativas são recursos elementares usados pelos performers que rezam, interpretando
suas experiências. Focarei em aspectos estéticos e semânticos das dinâmicas rituais de
um movimento espiritual internacional conhecido como Fogo Sagrado, destacando os
“rezos” produzidos no contexto de experiências iniciáticas da “busca da visão” - um
retiro de vários dias em jejum na mata, que se dá num evento anual envolvendo rituais
como o “temazcal”, uma espécie de sauna, e a “cerimônia de medicina”, em que se
usam tabaco, ayahuasca, água e alimentos -, em eventos em que múltiplos meios
comunicativos (como variações de luz, espaço, temperatura, cheiros, gostos, sons,
ritmos, etc.) são acionados na produção de uma experiência intensificada que envolve o
cantar e rezar com a participação ativa de todos os presentes. Nesse contexto, o uso do
tabaco estabelece turnos de fala em que os participantes comunicam suas experiências
através dos “rezos”: pedidos e agradecimentos num evento narrativo em que a
construção de reflexões e a negociação dos significados envolvem dramas, risos, choros,
monotonias e intensidades.
Palavras-chave: narrativas, rituais, neo-xamanismo.
Bauman definiu performance como um evento comunicativo que tem o poder de
evocar a experiência em relevo como “conseqüência dos mecanismos poéticos e
estéticos produzidos através de vários meios comunicativos simultâneos”, em que as
qualidades expressivas, emotivas e sensoriais suscitadas pela performance são o centro
da experiência (Langdon, 2007:3). Neste trabalho tenho por objetivo retomar uma das
421
reflexões da pesquisa que realizei na graduação179 (Oliveira, 2009-a), de como são
utilizados diversos meios para produzir uma experiência em relevo em contextos rituais
de um movimento espiritual internacional conhecido como Fogo Sagrado ou Caminho
Vermelho, em que as narrativas são recursos elementares usados pelos performers que
rezam, interpretando suas experiências.
O Fogo Sagrado, também conhecido como Fogo Sagrado de Itzachilatlan, tem
sua fundação institucional no início da década de 80 nos Estados Unidos impulsionada
por um mexicano, Aurélio Tekpankalli, atual líder espiritual mundial desse movimento
que se encontra em vários países do continente americano e europeu.
No Brasil, o Fogo Sagrado tem como seu representante, Ehekateotl, e compõe-se
principalmente de participantes oriundos da classe média urbana, que, com distintas
formas de adesão, passam a participar de práticas que tem seus modelos inspirados em
rituais indígenas norte-americanos, recombinando elementos de diversos contextos
culturais da meso-américa, dos Andes, dos movimentos da Nova Era, etc.
Especificamente no Sul do Brasil, também participam dos rituais do Fogo Sagrado,
membros da religião ayahuasqueira do Santo Daime de uma comunidade em
Florianópolis e os Guarani de uma aldeia de Biguaçu-SC, que passam a iniciar-se e
conduzir alguns de seus rituais. Percebe-se, portanto, que o sistema ritual do Fogo
Sagrado tem um papel central na formação do que na antropologia nomeamos como
(neo) xamãs.
Das práticas impulsionadas pelo Fogo Sagrado, podemos destacar um aspecto
central que é o uso do tabaco – com o qual se fazem “rezos”, que basicamente são
agradecimentos e/ou pedidos ao Grande Espírito – e pontuar que todas essas práticas de
algum modo envolvem a produção de corpos que experienciam intensidades180, tais
como na “chanupa”, com o uso de um cachimbo (chanupa) para rezar tabaco que
veicula o uso da “palavra” expressando o “coração”; o “temazcal”, uma espécie de
sauna aquecida com pedras quentes numa estrutura circular, baixa e escura chamada
“inipi”; a “cerimônia de medicina”, em que se usam sacramentalmente o tabaco, a
ayahuasca, a água e os alimentos; a “dança do sol”, em que se dança por quatro dias em
179
Agradecimentos ao CNPq pelo financiamento da pesquisa, a Jean Langdon e Isabel de Rose pelo
diálogo em torno do tema.
180
Para uma reflexão sobre o tema (ver Ferreira Oliveira, 2009-b).
422
jejum, do nascer ao pôr do Sol; e a “busca da visão”, uma iniciação que se dá em quatro
etapas, uma a cada ano, e consiste em fazer jejum a seco em isolamento na mata.
Subindo a montanha
A experiência de busca de visão é também chamada de “subir a montanha”. No
Brasil, esse ritual é realizado anualmente no planalto serrano catarinense, numa fazenda
chamada de Segualquia (Caminho ao Céu). Experienciar a “subida da montanha” é um
dos aspectos centrais nesse complexo de rituais do Fogo Sagrado, na medida em que é
no processo de quatro anos de iniciação que o participante passa a ser reconhecido como
“carregador de chanupa” – quando recebe um cachimbo podendo realizar rituais com
tabaco – e, uma vez completadas essas quatro etapas181, é designado apto a ser um
“temazcalero”, e assim, a “correr” (conduzir) temazcais. A forma de conduzir esses
rituais é assimilada, sobretudo, pela experiência em participar dessas práticas ao longo
desses anos.
Após passar por um processo ritual, em cada etapa o “buscador” é levado a um
espaço na mata, onde, em torno dele é estabelecido o espaço que limita a área onde
deverá permanecer – sendo este demarcado por um “cordão de rezos” (um fio em que
são enlaçadas 365 trouxinhas de pano com tabaco rezado pelo buscador). A “semente”
(o buscador) é “plantada” (levado) num “espaço” na “montanha” por integrantes do
“apoio” (amigos, familiares, etc.).
Recomenda-se que o buscador não leve mais do que duas cobertas, uma lona e
muda de roupa: considera-se que a eficácia da “ferramenta” da busca de visão reside em
que, isolado na mata, o buscador não dispõe de meios que possam “distraí-lo” (como
objetos, pessoas, intensa mobilidade), trazendo “clareza” na observação e percepção da
própria vida. Assim, a busca é relacionada como um momento para rezar, “conectar-se”
com a “totalidade”, em que o experienciar “incômodos” como sede, fome, frio,
“pensamentos”, sensações de medo, etc. traz “visões”, ou seja, mudanças de
perspectivas que mobilizam novas formas de perceber a si mesmo e ao mundo.
Rezos cantados, cantos rezados
181
A primeira etapa de busca de visão consiste em quatro dias, a segunda em sete, a terceira em nove, e a
quarta em treze dias. Em qualquer uma delas, os primeiros quatro dias são sempre em total silêncio, sem
qualquer contato com alimentos (que passam a ser recebidos a partir do quinto dia, em pequenas
quantidades, segundo cada etapa: chá, frutas, água, carne, milho).
423
O processo ritual de busca da visão envolve a participação em cerimônias de
medicina e temazcais. O evento, que dura em torno de quinze dias, inicia e termina com
“cerimônias de medicina” que fazem parte da “orientação” dada pelos líderes espirituais
a respeito da experiência de busca da visão.
A cerimônia de medicina acontece no Opy182: um espaço circular, com paredes
de madeira, teto de palha e chão de terra. No centro há o fogo, com as toras dispostas
em forma de uma flecha (/\) ao centro do “altar da meia-lua” onde os objetos rituais –
tais como bolsas de tabaco, ervas (cedro), resinas (copal), instrumentos musicais, peles
de animais, baldes de prata e bronze com água, copos e jarras com ayahuasca, etc. – são
meticulosamente posicionados, considerando aspectos estéticos das estruturas rituais do
Fogo Sagrado, tais como as “quatro direções” e a “linha” (imaginada) que conecta
horizontalmente os três ambientes rituais (o centro do círculo da dança do sol, do Opy, e
do Inipi, estrutura onde se fazem os temazcais), e os diversos elementos que orientam a
forma de se movimentar pelo círculo.
Essa disposição estética dos elementos rituais (o altar da meia lua, o
posicionamento do fogo “apontando” para onde o Sol se põe, o uso constante de cedro e
os desenhos feitos com brasa, o uso do tambor, etc.) são diretrizes que são apropriados
por daimistas (quando a cerimônia de medicina é pelo seu representante) e pelos
guaranis (em cerimônias de canto e reza na Opy na aldeia em Biguaçu). O próprio termo
usado para forma como são conduzidos os rituais é chamado de “desenho”. Sugiro,
portanto, pensar que há uma cosmografia, em que termos êmicos como “estar alinhado”
expressa como os participantes do Fogo Sagrado se valem de figuras de linguagem
gráficas para expressar formas de ser e estar no mundo. A cerimônia de medicina dura a
noite inteira e termina bem depois do dia raiar. Vale destacar que o tomar da amarga
bebida que é a ayahuasca potencializa uma experiência sinestésica, em que o cantar, o
rezar, o escutar (ritmos, sons, a lenha queimando, os passos dados no ambiente,..), o
182
Opy é um termo guarani que significa “casa de reza”, e é como é referido o espaço cerimonial em que
se realizam as cerimônias de medicina do Fogo Sagrado (construído, por sua vez, pelos próprios guarani).
Seu teto de palha e chão de terra batida assemelha-se esteticamente à Opy da aldeia Guarani – nota-se que
o Opy (circular) no contexto do Fogo Sagrado é considerado no masculino, enquanto no contexto guarani
a Opy (retangular) é referida no feminino. Percebe-se, portanto, como os espaços rituais transformam-se
mutuamente: o Fogo Sagrado incorporando a(o) Opy, e os Guarani incorporando elementos trazidos pelo
Fogo Sagrado, como a ayahuasca, o tambor, a busca da visão (sendo realizada na aldeia), o “altar da
meia-lua” com o fogo centralizado, etc. (a própria construção da Opy - em Biguaçu - nas proporções
atuais está relacionada com a relação entre o Fogo Sagrado e os Guarani, inicialmente – em 1999 - pela
presença do líder espiritual do Fogo Sagrado na aldeia). Para uma síntese do encontro inicial entre
Ehekateotl e os Guarani (e a posterior aliança com o Santo Daime), ver (Ferreira Oliveira, 2009-b).
424
visualizar (como nas figuras feitas de brasa – águia, coração, garras, borboletas, etc.sob as quais as ervas transformam-se em fumaça), e o saborear, seja em aromas ou com
alimentos... dão-se numa intensidade e temporalidade não ordinária.
Sua dinâmica ritual consiste numa seqüência em que são honrados os
“sacramentos” - tabaco, ayahuasca, água e alimentos – em que se alternam os cantos e
os rezos, sendo estes marcados pelo uso da palavra por parte daquele que tem o tabaco
aceso na mão. Com base nessa premissa, são distintos os momentos rituais em que os
participantes expressam-se verbalmente, seguindo um padrão sob o qual poderíamos
caracterizar esse “gênero performático” que eventualmente vale-se de narrativas.183
Podemos destacar o momento ritual em que a “palavra está aberta a todos” os
participantes, que iniciam os rezos com uma saudação (e suas variantes): “Aho
Mitakuye Oyasin!184”, “Aho Grande Espírito”, etc. Em seguida, os demais participantes,
complementam em uníssono: “Aho!”. Finalizado o rezo, o participante pronuncia “aho
metakiase”, e, em seguida, os demais: “Aho!”. Essa expressão é repetida diversas vezes
durante os rezos, após afirmações que os participantes concordam ou queriam
reforçar.185 Portanto, a figura do rezador circula entre várias vozes, e os rezos
referenciam uns aos outros, negociando os significados.
Notam-se variadas ênfases, extensões e entonações ao falar essas expressões
(“aho” e “aha”), algumas reforçando, com suavidade, e outras com maior intensidade e
entusiasmo. Em alguns casos, escutam-se expressões como: “aaaham”, “hammmm”,
183
Quando me refiro aos rezos nesse trabalho, restrinjo-me a seu significado como manifestação verbal,
embora haja de se considerar que o “rezo”, sendo assimilado às “intenções”, pode ser feito em atos
corporais, pensamentos, atitudes, etc. Portanto, vale mencionar brevemente outra prática central nos
rituais, que são os cantos guiados pelo chocalho na mão daquele que canta, e acompanhados pelo tocar do
tambor de outro participante. Nas cerimônias de medicina, os instrumentos são reverenciados e passados
por todos, portanto o papel de “puxador” circula, enquanto os demais, que acompanham os cantos, devem
procurar deixar que a voz deste esteja em evidência. Aquele que vai cantar, firma o bastão no chão em
direção ao fogo, e com a perna dobrada, inicia o canto apenas com o chocalho. Essa posição evidencia a
ênfase de que fazer um rezo (nesse caso, um canto) é como “atirar flechas” que podem ir a todas as
“direções”. Isso nos remete a uma concepção de que o canto, quando direcionados para os buscadores em
retiro, atuam também como alimentos. Os cantos variam entre hinos do Santo Daime, cantos Guarani, e
cantos do “Caminho Vermelho” (que podem ter trechos em português, inglês, lakota, espanhol, quéchua,
etc.), com conteúdo semântico bastante diverso (com referência aos “quatro elementos”, “direções”, a
animais, e elementos de cosmologias norte-americanas (Wakan Tanka), meso-americanas (Tonazin,
Tonatil, Ometeotl, Wiricuta, etc.), afro-brasileira (Oxum, Ogum, etc.), e de valores centrais nas culturas
espirituais da Nova Era (vinculadas a idéias de transformação, sacralização da natureza e do self, etc.)
(Amaral, 2000).
184
No Fogo Sagrado essa expressão é pronunciada como Aho Metakiase, porém é utilizada a grafia Aho
Mitakuye Oyasin. Notam-se diferenciações nessa expressão, por exemplo, sendo freqüente as mulheres
pronunciarem enfatizando o gênero feminino: “aha”.
425
“uhum” “hum”, que remetem ao “aho” e a expressão “aham”, transmitindo
concordância e compreensão. Assim, essas expressões não apenas sinalizam a
concordância, como dão força ao que está sendo rezado – são, portanto, uma forma de
se rezar em conjunto.
Isso nos coloca a questão que para além da negociação do conteúdo semântico
dos rezos, estes seguem um fluxo em que o rezador central está constantemente sendo
complementado pelos demais, criando uma estética com ritmos, melodias e andamentos
particulares, vinculados ao uso do tabaco sendo fumado, provocando pausas, às vezes
verbalizações lentas com vozes murmuradas em volume baixo (e longos tempos de
silêncio) bem como expressões bastante usadas no meio – como “dizer assim que” ou
“de alguma maneira” – que criam uma melodia específica tornando-se ferramentas
retóricas que chamam a concordância dos demais não apenas no conteúdo, mas na
forma. Ou seja, há uma musicalidade nos rezos, em que aquele que está com a palavra é
constantemente acompanhado (ou não) por outras vozes, ou mesmo no rezo em silêncio
– colocando em evidência uma “audiência” que, ainda que silenciosa, é ativa na
produção da mensagem (Schieffelin, 1998).
Descendo a montanha
O temazcal é o ritual que demarca o início e o término da experiência ritual de
busca de visão: por meio da enunciação do início do recolhimento, a “palavra é
retirada”, produzindo formas de ser e estar dos corpos em condição liminar: os
buscadores não podem ser tocados, evitam gesticular, os olhares são desviados,
produzindo uma minimização na interação (Oliveira, 2009).
Após o período de retiro de 13 dias os buscadores são conduzidos em direção ao
Opy, sendo coroados com flores e recebidos com pétalas jogadas ao ar ao som de cantos
e instrumentos guarani. Em seguida, os buscadores e demais participantes do evento se
dirigem ao inipi para o “temazcal de descida da montanha”, quando os buscadores
rezam, interpretando suas experiências e utilizando-se de recursos poéticos e estéticos
envolvendo os demais em suas narrativas.
Para entrar no temazcal, todos devem abaixar-se e dentro do “inipi”, andar
engatinhando (expressão de humildade perante a todas as formas de vida, e de
reverência “por todas as nossas relações”). Durante o temazcal oscilam a claridade e a
total escuridão, altas temperaturas e frescor, num ambiente aromatizado por ervas e
426
resinas que são depositados nas pedras que brilham incandescentes. Todo som é
potencializado pela acústica do inipi que é baixo, circular e fechado, em que se
condensam expressões de risos, choros, gemidos, soluços, agradecimentos, e, nos
cantos, a força na alternância e complementos de vozes, no tremor do tambor, no guizo
do chocalho, e nos acompanhamentos que cada um pode agregar (como por exemplo,
espécies de gritos, como “EEEIA!!”).
Geralmente a quantidade de participantes faz com que se disponha de um espaço
restrito para se acomodar no chão. Os olhares costumam ser direcionados ao centro (às
pedras), ao chão, etc.: a tendência não é de visualizar quem reza, senão acompanhar os
rezos na escuta. Acendida a “chanupa”, está “devolvida a palavra”. Destaco assim, o
rezo feito por um buscador (e em colchetes, as interações dos demais participantes):
Aho Grande Espírito!
[AHO!!]
Não sei ssei falar ainda mas
[risos]
Vou tentar
[uhum]
Sou mais dado a ouvir do que falar
Mas a gente tenta
[risadinha]
Eu subi a montanha com a intenção de buscar algumas perguntas
Cujas respostas eu já tinha comigo
[risos]
Só que as perguntas que eu tinha eram perguntas erradas pras
respostas que eu tinha.
Mas...
[risadinha]
na montanha de certa forma
O entendimento vem da lagarta
Todos os dias uma ou mais lagartas me visitavam
[hm]
[hm/risadinha]
E a lagarta tem um...
Na vida dela, no processo dela,
ela não sabe o que vai acontecer pra frente.
Tá sempre atinando pra frente.
[hm]
[hm]
Ela não sabe o que vai acontecer com ela
Se uma borboleta chega pra ela e diz:
427
“Ó! Eu sou você amanhã!”
[risos]
Ou
“Você é minha filha!”
Ela vai dizê:
“Ó! Tais me gozando!”
[risos]
Então no processo da lagarta ela não sabe o que vai acontecer.
Então as respostas,
as perguntas pras respostas que eu tinha começou a fazer sentido no
entendimento do processo da lagarta.
Não sabendo o que vai acontecer amanhã
Ela também não tá preocupada com isso.
[Uhum/uhum]
Pelo menos não vi nenhuma coçando a cabeça.
[risos]
Com essa afirmação, os risos se generalizam e se estendem. Podemos sugerir
que o buscador utiliza-se de recursos (como o disclaming), numa poética de certo tom
cômico com seriedade, envolvendo os demais num fluxo narrativo acompanhado por
ironias, risos, murmúrios, “ahos” – o que indica o papel ativo dos demais participantes
que se envolvem achando graça. Percebemos assim, como a experiência de observar as
lagartas emerge como evento narrado (Bauman, apud Hartmann) valendo-se de
analogias da “visão” do buscador num evento narrativo em que diálogos entre lagartas e
borboletas trazem reflexões sobre as transformações e a experiência de viver “o agora”
sem precipitar-se diante do indeterminável.
Em diversos rezos pude perceber como há uma recorrência de fazer do drama,
uma comédia, narrando momentos de tensão - como foram vivenciados em sensações
corporais ou em diálogos que o sujeito trava consigo mesmo ou com outros (pássaros,
espíritos, fogo, chuva, Grande Espírito, etc.) – e como eles são superados, momentos
esses em que aparecem o relato das “visões”. As narrativas continuam emergindo em
outros eventos e estabelecem modelos de compreensão para a atuação no mundo
(Geertz, apud Langdon,1999), remetendo a uma práxis em que a experiência de “busca
de visão” e as “visões” são tidas como modelos simbólicos que orientam a ação em
diversas situações cotidianas.
428
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abordagem etnográfica das narrativas e performances rituais no Fogo Sagrado.
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produzindo corpos intensivos e alter-ações no Fogo Sagrado. In.: Ponto Urbe 4,
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Felicia, 1998. Ritual, Performance, Media. ASA Monographs #35. Routledge. p.
194-207.
429
Peregrinações do corpo, da voz e da m emória, Rosana Baptistella
(Unicamp)
[email protected]
Resumo: O artigo trata de Folias de Reis de três municípios da região do Rio
Araguaia no estado de Mato Grosso - Ribeirãozinho, Araguaiana e Pontal do Araguaia e reflete sobre possíveis desdobramentos destas pesquisas de campo para as artes
cênicas e performáticas, à luz da Antropologia da Performance. São abordados aspectos
como a suspensão de papéis e o fluxo da performance entre público e performers - flow
- através de, respectivamente, Turner e Schechner, em diálogo com pesquisadores das
artes cênicas, da antropologia e da filosofia. A pesquisa de campo é apontada aqui como
um caminho para o artista cênico que pretende deslocar-se do seu lugar, descobrindo
novas possibilidades, remexendo em suas memórias e criando novas vivências, atento às
suas percepções. A integração entre corpo e voz, cantos e causos, danças e festas,
público e performer, que se estabelece nesses campos e se potencializa nos mestres das
folias e em alguns foliões é o que chama minha atenção como artista da cena. A
sonoridade da fala e dos cantos, o movimento e a dança entram nas casas que os foliões
visitam. Corpos ágeis e vigorosos lidam com o lúdico e com o sagrado. Brincam e
protegem, na peregrinação que representa os Santos Reis. Há uma inteireza nas pessoas
que vai além da estética e é isso que pretendo evidenciar.
Palavras-chave: folia de reis, inteireza, artista cênico.
Este trabalho aborda pesquisas de campo186 de Folias de Reis de três municípios
da região do Rio Araguaia, no estado de Mato Grosso: Ribeirãozinho, Araguaiana e
Pontal do Araguaia, relacionando-as a pesquisas na área cênica e performática.
Estas viagens, as trocas com as comunidades e os mestres da cultura popular, me
ensinaram muito, principalmente no que diz respeito à integração entre corpo, voz,
cantos, causos, danças, festas, cotidiano.
186
Elaborei e desenvolvi, de 1995 a 1998 o projeto “Manifestações Culturais de Mato Grosso – pesquisa,
registro e difusão” (1995-98). Esse projeto, que teve vários desdobramentos, priorizou as vozes dos
mestres, dançantes e foliões cujos depoimentos foram coletados, considerando as singularidades que se
nos apresentavam, por cada um.
430
A Folia de Reis conta uma história e tem sua organização própria, com variações
de um para outro grupo. Enquanto peregrinam de casa em casa, “fazendo o giro” ou
“pedindo a esmola”, os foliões estão representando os Três Reis Magos procurando o
Menino Jesus, que será encontrado dia 6 de janeiro, tradicionalmente 187. O dia da
Chegada - que é uma festa com muitos cantos, rezas e fartura de comidas - atrai toda a
comunidade, assim como pessoas que vêm de longe: alguns religiosos pagando
promessas, outros curiosos e pesquisadores estudiosos do assunto. Neste momento de
interrupção da vida cotidiana, a suspensão de papéis é estabelecida (TURNER, 1987).
Os participantes das Folias pesquisadas têm nos gestos e nos cantos significados
implícitos, não decodificados literalmente, mas que funcionam como códigos entre os
foliões e as pessoas que os recebem em suas casas.
Cada momento, cada ação da visita à casa é conduzida pelo mestre e pelo
contramestre, através das cantorias: a Folia chega e canta pedindo para abrirem a porta;
com a porta aberta, pedem licença para entrar; entregam a bandeira ao dono da casa e
cantam para ele e para quem mais morar na casa; quando ganham um café ou um
lanche, agradecem cantando; pedem a bandeira de volta; cantam para abençoar a casa e,
por fim, para se despedirem.
O fluxo que se estabelece entre os foliões, os donos da casa e os que
acompanham o grupo é muito forte. E esse fluxo não se inicia ali, na suposta
efemeridade do momento. Como em um espetáculo, cada um dos atores e das pessoas
do público carrega uma memória, uma história anterior que os constitui e está presente,
compondo a cena. E tampouco se finda naquele momento, uma vez que continuará
acontecendo, repercutindo na história e na memória de quem vivenciou aquela
experiência e foi tocado.
Em seus momentos de maior intensidade, performances
produzem estados de flow. Performers e públicos sentem,
nesses instantes, que algo especial, da ordem do indizível,
aconteceu. Diferentes modos de se criarem estados de flow,
sugere Schechner, associam-se a diversas estéticas (Dawsey,
2006a, p. 139).
187
O que pode variar, para que coincida com finais de semana ou para que um grupo possa participar da
Chegada de outro grupo, por exemplo.
431
Nas Folias, várias nuances de fluxo e de emoções ocorrem. Enquanto o mestre, o
contra-mestre e os foliões cantam as embaixadas, há um tom solene nos corpos, nas
vozes e nas atitudes das pessoas.
Nestes cantos, escalas nos finais de frases musicais percorrem da voz mais grave
à mais aguda entre os foliões. Quando fazem esta escala do grave ao agudo, é visível o
movimento corporal em que firmam a base – no grave – e impulsionam para o alto, cada
vez mais, porém sem perder contato com o chão, atingindo notas bem agudas, como
uma “escalada” da terra ao céu. Este percurso da voz nos permite perceber nitidamente
a integração do corpo e o preenchimento do espaço interno (do corpo) e externo (do
ambiente).
Enquanto o Mestre canta sua embaixada, os demais foliões ouvem concentrados,
com suas vozes silenciadas, para potencializarem sua força quando duas ou mais vozes
fazem esta escalada que parece vir de longe e ir para mais longe ainda... de um passado
remoto, projeta-se além do lugar e do tempo presente, indo para tantos outros lugares –
ecoa do passado, no presente, para o futuro. Esta relação de tradição mantém valores e
referenciais importantes para os grupos e para as comunidades onde fazem o giro.
Durante o giro, o tom solene da manifestação é quebrado quando, após
cumprirem o ritual em uma casa, ganham um café ou uma outra bebida.
Em Ribeirãozinho, quando ganham uma bebida alcoólica, a guardam para o dia
da chegada e dançam uma Catira para agradecer. É um grupo composto, em sua
maioria, por homens com mais de 60 anos de idade; seus corpos densos, que carregam
tantas histórias, fazem música com o corpo; pés e mãos percutem, dialogando com o
catireiro que está à sua frente e com as modas de viola com que intercalam o seu
movimento.
Conforme convivia com eles, os conhecia melhor e apurava o olhar. Então sua
dança se revelava mais individualizada, tornando-se nítido o fato de não existirem dois
corpos realizando-a de forma idêntica. Existe um script, até mesmo uma coreografia a
ser desenvolvida, mas acima disso, a individualidade é mantida e valorizada.
As cantorias são um tipo de moda de viola, sendo entoadas, geralmente, por dois
violeiros. A temática enfocada pode ser relacionada ao dia-a-dia, trabalho, amores,
saudades, lugares ou outros, dependendo do que seja significativo para o cantador e para
a comunidade naquele momento.
432
Em Araguaiana, os motivos para a dança são os mesmos, mas sua dança é o
Lundum, que apresenta alguma semelhança com o Lundu baiano.
Acontece da seguinte maneira: quando ganham uma bebida, a garrafa é colocada
no centro da roda de foliões; o mestre canta uma moda de viola, acompanhado por mais
uma pessoa da companhia. Nesta moda, muitas vezes improvisam um agradecimento,
mencionam algo que está acontecendo no giro etc. Em seguida, o mestre rodeia a
garrafa e alguns foliões entram na roda, um de cada vez, dançando ao redor da garrafa,
até que um deles pega-a com a boca e coloca-a sobre a cabeça, dançando. Então, um
casal de cada vez dança, de acordo com a seguinte brincadeira: a mulher tenta passar a
saia na cabeça do homem e ele não permite e se esquiva, mas a provoca, dançando em
sua volta, parecendo facilitar-lhe esta ação, enquanto ela dança segurando a saia – no
entanto, quando ele menos espera, ela investe para cima dele, em nova tentativa e ele
foge,
dançando
em
rápidos
movimentos,
divertindo
quem
está
assistindo
(BAPTISTELLA, 1997).
Em Pontal do Araguaia, sem o momento da dança coletiva, a quebra do tom
solene ficava por conta dos Palhaços: eram dois, ambos vestindo máscaras, na maioria
das vezes assustadoras, o que tem relação direta com sua função de proteger e divertir.
Durante o giro, como guardiões, protegiam a bandeira e os foliões, cuidando
para que ninguém passasse à frente da procissão e, enquanto os foliões estavam numa
casa, ficavam na porta, cuidando.
Os Palhaços, Bastiões, Vovôs, Bonecos ou Mascarados188 das Folias de Reis
pesquisadas, ao mesmo tempo que protegem, “botam medo” na criançada ou em quem
não esteja levando a sério a Folia. Também representam os personagens dançantes e
brincantes da manifestação: descontraem o grupo, fazem todo mundo rir; desafiam-se
com seus bastões, dando saltos, cambalhotas, fazendo piruetas e trapalhadas.
Corpos ágeis e vigorosos, que lidam com o lúdico e com o sagrado. Brincam e
protegem, na peregrinação que representa os Santos Reis. Sua fala vem de seu corpo.
O corpo das pessoas nas comunidades pesquisadas é muito eloquente. Não só no
seu “festar”, quando dançam e cantam, mas também no seu trabalho, na lida com a
terra, com a pesca, com a cozinha... esses corpos não escondem suas muitas histórias,
188
Encontramos estes personagens com nomes variados.
433
mas deflagram toda uma vida e características da comunidade onde vivem. Esta origem
que lhes dá algo único leva-nos à reflexão sobre o trabalho do artista.
O trabalho artístico que leva em conta a herança cultural que cada artista carrega
e a potencializa, permite a originalidade, no sentido de relacionar-se às origens e ser
original porque é feito de forma única: o artista se revela naquilo que faz.
Pesquisas de campo dessas manifestações possibilitam perceber a inteireza das
pessoas; são fontes riquíssimas para todo artista cênico, pois não é apenas uma estética
que está sendo vivenciada, mas o que as pessoas – os pesquisados - têm de melhor – e
acreditam nisso. “Às margens, no límen, se produzem efeitos de estranhamento.
Desloca-se o lugar olhado das coisas. Gera-se conhecimento.” (DAWSEY, 2006b,
p.18).
Um campo fértil e sensível para o artista cênico que pretende deslocar-se do seu
lugar comum, descobrindo novas possibilidades, ampliando suas possibilidades,
remexendo em suas memórias e criando novas vivências, com a sensibilidade aguçada e
atento às suas percepções, possibilitando “... o contato e comunicação com o outro que
nos leva a refletir sobre nós próprios e acionar processos de transformação e redefinição
de identidade (MULLER, 2005: 72)”.
Para o artista pesquisar culturas ditas tradicionais é importante não procurar
perpetuar, reproduzir, mas atualizar, com seu olhar e a sua criação artística: o que ficou
impresso em seu corpo, na sua memória, daquela experiência e pode ser recriado,
elaborado artisticamente.
Nos próprios grupos pesquisados, os cantos e os causos transitam entre a
tradição, aquilo que é cantado e contado há várias gerações e o improviso, a atualidade,
o que eles querem dizer hoje, remetendo a questões gerais ou específicas daquele grupo.
Finalizo com uma despedida da Folia de Reis de Ribeirãozinho-MT:
Despedida, despedida
Despedida em Belém
Despedida da Lapinha
Até para o ano que vem
Pai, Filho, Espírito Santo
Na hora de Deus, amém
Os romeiros vão-se embora
Prá voltar o ano que vem.
434
BAPTISTELLA, R. Danças Populares de Mato Grosso. Cuiabá: Secretaria de Estado
de Cultura, 1997.
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435
Carne da canção: corpo e performance da palavra cantada no
âmbito da música popular , Conrado Vito Rodrigues Falbo (UFPE)
Doutorando em Teoria da Literatura
conradof [email protected]
Resumo: A canção é uma forma artística bastante versátil cuja aparente
simplicidade estrutural acaba por revelar um complexo sistema de relações entre
palavra, música, corpo e movimento. Buscamos traçar as linhas gerais de uma
abordagem analítica da canção popular focada em sua performance, situando o corpo,
ou, mais precisamente, os corpos (do intérprete e do público) no centro das questões a
serem consideradas na atividade de pesquisa. Encaramos o corpo como dimensão
espacial da subjetividade (Ostrower, 1996), com especial atenção à voz como agente de
mediação intra e intersubjetiva (Castarède, 2004). Em relação à performance, nos
aproximamos da noção aberta de “graus de performaticidade” (Zumthor, 2005), baseada
nas diversas modalidades de interação entre obra e público, inclusive nos casos onde há
mediação tecnológica (Schafer, 1994). Esta visão aponta para a performance como
importante paradigma estético ao considerar a obra artística em todas as fases de sua
existência, levando em conta elementos anteriormente considerados acidentais no
processo de significação e revelando tensões valorativas implícitas em certas práticas
analíticas. A permanente relevância da canção na sociedade contemporânea e sua
adaptabilidade às novas tecnologias a torna emblemática no campo dos estudos da
performance, fornecendo subsídios para uma abordagem transdiciplinar tanto do ponto
de vista analítico quanto artístico.
Palavras-chave: canção, performance, corpo, voz, música popular.
1. Voz, corpo e subjetividade
Para a artista plástica e professora Fayga Ostrower, as vivências do espaço são
determinantes na construção do senso de identidade e sociabilidade das pessoas:
As formas de espaço constituem tanto o meio como o modo de
nossa conscientização, ou seja, o espaço torna-se,
simultaneamente, forma das experiências vividas e imagem de
seus conteúdos [...] E do mesmo modo, quaisquer conteúdos
afetivos que queremos expressar e comunicar aos outros são
por nós traduzidos intuitivamente como imagens de espaço.
436
Mesmo quando essa comunicação se dá a nível verbal. Ao
dizermos, por exemplo, que algo nos toca de modo profundo
ou apenas superficial, usamos intuitivamente imagens de
espaço. Quando falamos das qualidades de um indivíduo (um
ser in-divisível), como sendo aberto ao mundo ou fechado,
como sendo expansivo ou introvertido, desligado, envolvente,
atraente, repulsivo, distante, próximo, usamos sempre imagens
de espaço. Não há outra maneira possível de conscientizar,
formular e comunicar nossa experiência (Ostrower, 1999, p.
86).
Se, como diz Ostrower, o espaço é “tanto o meio como o modo” de nossas
experiências vivas, podemos dizer que o corpo, enquanto dimensão espacial da
condição humana, é também nosso meio e nosso modo de ser e de estar no mundo. O
corpo nos fornece ferramentas de percepção e interação com o ambiente e com outros
indivíduos: ao mesmo tempo em que nossos órgãos captam estímulos externos, também
os filtram e permitem que elaboremos respostas e formulemos perguntas, em forma de
novos estímulos sensoriais num ciclo comunicativo que se estende até o fim da vida.
Entre estes sinais produzidos pelo corpo com finalidade de comunicação nos interessa
particularmente a voz. Na voz está inscrito o corpo de quem a emite, pois a voz também
está ligada ao aspecto material, concreto, corporal da identidade individual, explicitando
traços pessoais e culturais desta identidade.
A voz é um dos primeiros instrumentos de que dispomos como meio expressivo:
o som vem antes do gesto ou da escrita e configura-se como o primeiro traço de nossa
identidade. As crianças choram ao nascer: uma primeira manifestação de vida,
inegavelmente sonora. Entretanto, a relação entre voz e identidade é complexa,
envolvendo dimensões fonológicas, psíquicas e culturais. Esta complexidade que cerca
a voz também pode ser observada no que diz respeito à plurifuncionalidade
dos órgãos que compõem o aparelho fonador humano. A boca, como
exemplifica Lucia Santaella, serve à satisfação de necessidades fisiológicas (comer,
beber, respirar), mas também está envolvida com o prazer, sendo difícil separar estes
dois aspectos nas funções que desempenha, sobretudo no processo que origina a fala, já
que esta “não se coloca apenas a serviço da comunicação e interação dos seres humanos
entre si e destes com o mundo. Ela também pode produzir um excedente de prazer.
Assim como da função de comer se acresce o prazer da degustação, na fala está inscrita
a possibilidade do canto. Encantamento do canto: fala transmutada em prazer”
(Santaella, 2002, p. 37-38). Sabemos também que é impossível falar da voz como
437
fenômeno isolado, sobretudo quando percebemos a intensidade de sua conexão com a
audição: não podemos produzir sons vocais se não formos capazes de ouvi-los.
Além da complexidade relativa à produção dos sons vocais, existe uma relação
entre voz, expressão e identidade, o que significa que a voz é parte essencial do
processo de formação do sujeito. Assim escreve Freud:
Uma criança recém-nascida ainda não distingue seu ego do
mundo externo como fonte dassensações que fluem sobre ela.
Aprende gradativamente a fazê-lo, reagindo a diversos
estímulos. Ela deve ficar fortemente impressionada pelo fato de
certas fontes de excitação, que posteriormente identificará
como sendo seus próprios órgãos corporais, poderem provê-la
de sensações a qualquer momento, ao passo que, de tempos em
tempos, outras fontes lhe fogem - entre as quais se destaca a
mais desejada de todas, o seio da mãe -, só reaparecendo como
resultado de seus gritos de socorro (Freud, 1976, p. 84).
O grito do recém-nascido representa bem mais que um sinal de
descontentamento ou protesto, ele assinala a descoberta de um novo meio de expressão
que passará a ser utilizado de maneira cada vez mais deliberada e articulada pelo
indivíduo. Um meio de expressão que ultrapassa o utilitarismo da comunicação para
inscrever-se também como ferramenta de tradução do indizível: a voz. Do grito à fala
articulada em linguagem, o longo e complexo percurso da voz acompanhará o
desenvolvimento do sujeito e sua transmutação em um ser capaz de manipular relações
simbólicas por meio da linguagem.
A partir dos processos descritos por Freud, Marie-France Castarède posiciona a
voz como agente mediador entre o corpo e a linguagem no processo de formação do
sujeito:
Se o grito é a primeira expressão afetiva, a voz vai lhe suceder,
introduzindo fenômenos sonorous especificamente humanos,
como as vibrações harmônicas. Ela é mediadora entre o corpo e
a linguagem [...] A voz é mediação, não apenas para o sujeito
em si mesmo, entre seu corpo e a língua, mas com a voz do
outro. Ela se encarna em um ‘discurso vivo’, para retomar a
expressão de André Green. A fala levada pela voz é diferente
do pensamento, pois ela é resultado de uma descarga motora.
Falar de viva voz ao outro é se descarregar (Castarède, 2004, p.
134, tradução nossa).
438
Por meio da voz (e da escuta, evidentemente) o ser humano vai construir seu
estatuto de sujeito. A voz desempenha um papel essencial no desenvolvimento da noção
de Eu, que vai possibilitar sua interação com o Outro; ela representa uma espécie de
ponte entre corpo e linguagem, identidade e alteridade.
2. Canção: além de letra e música
O exame da canção como forma expressiva é extremamente revelador quando
analisamos as maneiras pelas quais a voz é utilizada para a produção de significados,
tanto lingüísticos quanto musicais. Porém, como aponta Gil Nuno Vaz, a canção não é
um objeto de fácil definição:
A canção, no senso comum, é entendida como a reunião de
letra e música em uma forma simples. Essa noção generalizada
decorre da importância que elas detêm no processo de criação
artística [...] Quando se fala do significado de uma canção,
contudo, o binômio ‘letra e música’ deixa margem para alguns
questionamentos.
Afinal,
expressões
como
‘canção
instrumental’ ou
‘canção sem palavras’ são usadas
costumeiramente quando uma composição musical é sentida e
referida como tal, mesmo sem a letra. E muitos poemas são
denominados canções, ainda que as palavras não sejam
cantadas com qualquer melodia [...] Fazendo-se uma
compilação de diversas definições de canções, é possível reunir
oito elementos ligados a ela com maior freqüência: (1) o canto/
(2) de um texto poético/(3) geralmente acompanhado por um
instrumento/(4) dentro de uma determinada forma musical/(5)
de duração geralmente breve/(6) com certa interação entre
música e poesia/(7) relacionado com diversos contextos, como
dança, trabalho, acalanto, reza/(8) de âmbito erudito ou popular
(Vaz, 2007, p. 11-13).
Todos os componentes da canção complementam-se para construir seus
significados, o que pede uma abordagem analítica específica. O fato de podermos
diferenciar na canção componentes verbais (o texto, ou letra) e musicais (a melodia e o
acompanhamento instrumental) não quer dizer necessariamente que ela seja uma forma
simples de superposição de linguagens. É verdade que, em alguns casos, podemos
encontrar poemas que foram posteriormente musicados, mas que não tiveram
originalmente nenhuma intenção musical por parte do autor; ou ainda melodias
compostas inicialmente como temas instrumentais que, mais tarde, inspiraram a
composição de uma letra. Em todo caso, dada a simultaneidade de sua expressão, os
elementos verbais e musicais presentes na canção afetam-se mutuamente, modificando
seus significados originários e criando uma nova forma de linguagem, não
439
necessariamente sujeita às dinâmicas de funcionamento das linguagens que foram
conjugadas para criá-la. Por não ser apenas texto, nem apenas música, as análises
puramente literárias ou estritamente musicais da canção acabam por não considerá-la
em sua plenitude e riqueza de significados.
Roland Barthes utilizou a expressão “grão da voz” ao escrever sobre
determinados gêneros da música cantada nos quais “uma língua encontra uma voz”
(Barthes, 1982, p. 237. Tradução nossa). Barthes compreende a voz na canção
(sobretudo na canção erudita) como elemento produtor de significados que ultrapassam
a simples veiculação musical da língua para representar a materialidade de um corpo
que fala/canta:
O ‘grão’ da voz não é - ou não é apenas - seu timbre; a
significância que ele abre não se pode definir mais
precisamente que pela própria fricção da música e de outra
coisa, que é a língua (e de forma alguma a mensagem). É
preciso que o canto fale, ou ainda melhor, escreva (Barthes,
1982, pp. 241-242. Grifo do autor. Tradução nossa).
Temos na canção uma mensagem lingüística e uma mensagem musical, ambas
veiculadas simultaneamente pela voz; acontece que a voz não é capaz de veicular esta
mensagem complexa sem transformá-la por meio da materialidade do corpo do emissor
(o cantor ou intérprete). Para compreender o alcance das palavras de Barthes, basta
escutar versões de uma mesma canção executadas por diferentes intérpretes (os
exemplos se multiplicam na proporção direta da popularidade da canção escolhida): em
muitos casos é simples perceber como os significados da canção podem ser
completamente alterados pelas qualidades vocais (inclusive qualidades idiossincráticas)
de cada intérprete.
Dadas estas peculiaridades formais, a composição de canções no âmbito da
música popular segue parâmetros próprios, que nem sempre coincidem com os
parâmetros utilizados por poetas e músicos em sua atividade criativa. Para Luiz Tatit, o
cancionista (maneira pela qual ele faz referência ao compositor de canções ou
compositor popular), não se considera músico nem poeta; mistura um pouco de tudo e
não encontra muita orientação para sua atividade criativa nem nos conservatórios nem
nos cursos de letras, dadas as especificidades de seu processo de criação, inclusive no
que diz respeito ao registro escrito de suas composições, já que as canções são
geralmente refratárias a um padrão único de execução (Tatit, 2007, pp. 100-101).
440
Como a canção é tomada pelo domínio da voz, em toda sua multiplicidade e
mutabilidade, ela tende a ser re-transformada por quem canta a cada nova interpretação.
Diferentemente do que ocorre com a música (no caso de uma peça instrumental) e com
a poesia, o que geralmente fica de fora do registro escrito é essencial para a canção, não
podendo ser considerado elemento contingencial ou secundário. Estas observações nos
levam ao conceito de performance, por meio do qual a necessidade de uma abordagem
específica da canção pode ser mais bem compreendida. Afinal, é apenas com a
performance (modo pelo qual acontece a execução da canção) que acontecerá a
expressão plena de seus conteúdos lingüísticos, musicais e subjetivos.
3. Performance: a canção em cena
Em um de seus livros mais conhecidos, A letra e a voz (1993), Paul Zumthor
utiliza o termo “literatura” (entre aspas) como forma de sinalizar que a definição
contemporânea de literatura - ligada ao texto escrito, à leitura silenciosa e individual e a
uma cultura livresca - está muito aquém do que ele prefere chamar simplesmente de
“poesia”, apontando para uma idéia mais ampla de manifestação poética da palavra, que
engloba outros elementos além da linguagem escrita. A “poesia” estaria, assim,
intimamente ligada à idéia de ritualidade ou performance, e seria identificada por ele
através da expressão “texto poético” (não necessariamente escrito). Zumthor distingue
vários momentos na existência de um texto poético: a formação (criação ou composição
do texto); a transmissão, que propiciaria a recepção por parte do público, e a reiteração,
já que esta recepção pode acontecer repetidas vezes sem que seja percebida como
redundante pelo ouvinte. A possibilidade de reiteração do texto poético é extremamente
relevante para o conceito de performance, já que as condições de cada performance não
são estáticas e podem chegar a modificar os significados do próprio texto. Apesar disso,
certas características gerais são mantidas, preservando a identidade do texto sem com
isso torná-lo fechado às interferências ambientais de cada situação performática
(Zumthor, 2007, p. 65).
Inicialmente, temos a presença simultânea do cantor e do(s) ouvinte(s) em um
mesmo espaço e tempo como requisito essencial para a performance da canção. Apesar
desta modalidade de performance ainda persistir na sociedade ocidental contemporânea
na forma de shows, festivais e recitais, ela já não é mais a única possibilidade de
performance da canção desde que foram desenvolvidos meios de captar, fixar e
441
transmitir o som à distância. Em seu estudo histórico sobre o desenvolvimento da
“paisagem sonora” (soundscape na expressão original em inglês), o canadense Murray
Schafer aponta o período do século XIX, por ele chamado de “revolução elétrica”, como
decisivo no desenvolvimento das tecnologias relativas ao som, destacando entre elas o
telefone, o fonógrafo e o rádio: “com o telefone e o rádio, o som não estava mais ligado
ao seu ponto original no espaço; com o fonógrafo, ele foi libertado de seu ponto original
no tempo” (Schafer, 1994, p. 89, tradução nossa). Estas tecnologias tornaram possível o
surgimento do fenômeno batizado por Schafer de “esquizofonia”, ou seja, a
desvinculação entre o som original e sua transmissão ou reprodução eletroacústica.
Para Paul Zumthor, “é indiscutível que a transmissão midiática retira da
performance muito de sua sensualidade [...] o que falta completamente, mesmo na
televisão ou no cinema é o que denominei tatilidade. Vê-se um corpo; o rosto fala,
canta, mas nada permite este contato virtual que existe quando há a presença fisiológica
real [...] Uma performance mediatizada não é verdadeiramente teatral, no sentido que a
entendo; no entanto, essa performance se faz bastante diferente do que poderia ser
qualquer forma de escrita” (Zumthor, 2005, p. 70). Esta afirmação relaciona-se com as
idéias de Zumthor sobre o que poderíamos chamar de graus de performaticidade
presentes nos diversos textos poéticos. Deste modo, o texto escrito e a performance ao
vivo representam os pontos extremos desta escala, respectivamente, de menor e maior
grau de performaticidade. Em todos os casos, porém, a performance pode ser entendida
como uma interação entre texto poético e leitor, daí a afinidade entre o pensamento
Zumthor e as teorias literárias conhecidas como “estética da recepção”.189 O leitor
(expressão tomada no sentido de também incluir o ouvinte/espectador) é um
componente chave no desenvolvimento da performance, desempenhando uma atividade
criativa que caminha lado a lado com o trabalho do artista, e que é fundamental para a
produção dos significados da obra de arte apresentada, sendo esta um conjunto
complexo de elementos expressivos.
Encontramos na canção um veículo complexo em termos formais, além de
altamente versátil, tanto do ponto de vista da utilização do corpo como ferramenta
189
Teorias identificadas também pela expressão inglesa reader-response criticism, elaboradas por autores
como Stanley Fish, Wolfgang Iser e Hans-Robert Jauss.
442
artística/comunicativa como de sua capacidade de inserção social, estabelecendo uma
relação de comunicação direta com diversos tipos de públicos.
Ao analisar alguns aspectos relativos à performance da canção, Christian
Marcadet chama atenção para a distinção conceitual entre “performance” e
“interpretação”. Para ele, “A performance abrange um quadro mais amplo com o seu
ambiente social e humano, as condições contextuais (históricas, sociológicas, técnicas e
midiáticas) que a tornam possível, enquanto a interpretação refere-se mais precisamente
ao artista em cena, aos meios artísticos (vocais, corporais e gestuais) que o mesmo
mobiliza e à relação singular que estabelece com os públicos” (Marcadet, 2008, p. 11).
Entretanto, a concepção de “interpretação” desenvolvida por Marcadet muito se
assemelha à idéia de “performance” tal como apresentada por Paul Zumthor, vejamos:
A interpretação das canções é por essência o cerne do que é
fundamental na performance. É corrente de sentidos em atos
como há corrente de lava. A performance induz uma relação
entre um artista e uma audiência, que convém analisar, e o
conceito que permite essa análise é o de modo de comunicação
cena/platéia – ou intérprete/público, que marca a natureza e a
intensidade da relação estabelecida entre os diferentes atores da
performance. Disso decorrem novos campos de investigação:
relações cantor/público e noções secundárias e flexíveis de
participação, adesão, identificação, interação, intrusão, até
mesmo co-criação. A interpretação é fundamentalmente uma
arte de síntese que combina encenação, enunciado,
personalidade, mito, pulsões do público e contexto. O artista
deve pensar globalmente as suas performances cênicas,
atendendo a seu repertório, a sua personalidade, às personagens
que representa, os meios artísticos aos quais recorre, como os
públicos aos quais seus espetáculos são destinados (Marcadet,
2008, p. 13).
Como podemos perceber, a atenção específica ao aspecto cênico que o termo
“interpretação” quer denotar apenas complementa as idéias de Paul Zumthor sobre a
performance e as situa no panorama específico da canção. As palavras de Marcadet, à
semelhança de Paul Zumthor, apontam para uma compreensão mais ampla de “texto
poético”, o que ocorre por meio de um exame atento das condições nas quais este texto
será efetivamente performatizado. Esta abordagem é necessariamente transdisciplinar e
abrangente, não podendo se resumir a um ou outro aspecto formal da performance da
canção.
443
O pesquisador Gil Nuno Vaz sublinha o papel central do corpo na estrutura
básica da canção ao estudá-la como campo sistêmico. Segundo ele, a gênese da canção
estaria no movimento corporal: gestos que se desdobram em gestos sonoros, entre os
quais o gesto vocal que, por sua vez, produz a fala (gesto verbal) e o canto (gesto
musical). Conforme o pesquisador, é altamente provável que a canção tenha emergido,
historicamente, da necessidade de conjugar toda a potencialidade expressiva do corpo
humano [...] de modo mais autônomo possível, em um campo expressivo mínimo, para
cumprir uma função específica, como o acalanto, por exemplo (Vaz, 2007, p. 21).
Partindo destes elementos essenciais da canção (fala, canto e movimento),
percebe-se os efeitos de duas forças agindo sobre eles, pois, “se de um lado a canção
busca, no processo evolutivo, intensificar a conectividade entre seus elementos para
garantir a continuidade sistêmica (força centrípeta), de outro, ocorre uma ação
desintegradora (força centrífuga) de cada um desses modos primitivos de manifestação
corporal em busca de seu campo expressivo próprio” (Vaz, 2007, p. 25). Sob esta
perspectiva da canção como forma expressiva primitiva ou embrionária, modos
específicos de expressão ligados ao corpo (como música, dança e poesia) seriam formas
derivadas da canção e não o contrário (idéia da canção como superposição de
linguagens específicas). Deste modo, pensar a performance da canção seria voltar ao
início de um caminho expressivo, na busca pela reintegração de linguagens corporais
cada vez mais independentes e sofisticadas, mas que guardam entre si uma origem
comum, ligada a uma visão orgânica e não compartimentalizada do corpo humano.
A canção é capaz de se adaptar a diversas formas do dizer poético e aos mais
distintos suportes, mantendo os traços de sua estrutura original ao mesmo tempo em que
consegue absorver inúmeras inovações tecnológicas relativas tanto à atividade de
composição e gravação como aos circuitos de divulgação artística e distribuição. A
performance da canção, com todas as mudanças por que passou no último século,
continua sendo fonte de prazer artístico e espaço de comunicação entre artistas e
público, sempre pronta a absorver novidades e fazer uso delas a serviço da expressão
artística do ser humano.
4. Considerações finais
O estudo da canção popular, assim como de seus principais canais de interação
com o público revela que as relações entre seus principais elementos constitutivos (letra,
444
melodia, acompanhamento instrumental, performace etc.) e destes elementos com o
público é bem mais complexa do que aparenta à primeira vista. As divisões entre
campos de criação são constantemente desafiadas pela força agregadora da canção,
misturando som, palavra e visualidade. Do mesmo modo, a epistemologia que ainda
rege nossa vida acadêmica significa muitas vezes uma impossibilidade de situar a
canção como objeto de estudo em um só campo do conhecimento, já que sua
investigação necessariamente mobiliza saberes de áreas tão distintas quanto estudos de
mídia, estudos culturais, artes cênicas, música e estudos literários, para citar apenas
alguns exemplos.
Naturalmente esta recusa em pertencer a um só domínio acadêmico também
revela uma série de tensões relativas ao prestígio de cada um destes setores dentro da
universidade, o que também se reflete nos ramos artísticos envolvidos. Estudar a canção
é tentar colocar em prática o difundido discurso transdisciplinar, assim como o artista
tenta fazer arte a partir dos conhecimentos técnicos acumulados ao longo da vida cada
vez que sobe ao palco.
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446
O riso como (re)leitura: o processo de parodização da bossa nova
pela Tropicália, Victor Creti Bruzadelli (UFG)
Graduado em hist ória (UFG)
Integrante da Rede Goiana de Pesquisa em Performances
Culturais (FAPEG)
Se temos uma tradição e queremos fazer algo de novo dentro dela
não só teremos de senti-la, mas conhecê-la.
É este conhecimento que vai nos dar a possibilidade de
criar algo novo e coerente com ela.
(Caetano Veloso)
Modernizar o passado é uma revolução musical
Cadê as notas que estavam aqui?
(Monólogo ao Pé do Ouvido, Nação Zumbi)
Resumo: Os procedimentos de produção e expressão da arte tropicalista são
bastante peculiares. Muitas das vezes, o foco desses cancionistas está não no que se
canta (e se comunica com o público), mas no como isso se dá. Esse dado é de extrema
importância para se compreender a importância desse grupo de músicos no interior da
música popular brasileira, já que estes abriram o universo musical para um enorme
conjunto de idéias que nem sempre estiveram ligadas a ele. Na interpretação
tropicalista, o riso se torna, em vários momentos, central, já que é a partir da evidência
do cômico que se evidencia o processo de revisão crítica da música brasileira. À Bossa
Nova, neste contexto, caberá um papel ambíguo, entre a sacralização e a desconstrução
através da ironia e, sobretudo, da paródia. Neste trabalho, busca-se compreender como
as interpretações (vocal, instrumental, corporal, entre outras) serão decisivas para a
construção desta postura em relação à Bossa Nova.
Palavras-chave: Tropicália, paródia, Bossa Nova.
Abstract: The production procedures and ways of expression from Tropicalism
are very much peculiar. Frequently, the main focus of the musicians is not on how it is
sung (or how it is told), but on how it is built. This is of extreme importance to
comprehend how remarkable this group of musicians was to the Brazilian Popular
Music, once they had showed a huge universe of ideas that were not necessarily
connected to it. In the tropicalist interpretation, laughing is, in different moments, the
447
central point, which became the biggest evidence of the new process of criticism that
was taking place inside the Brazilian Music. For Bossa Nova, in this context, an
ambiguous role was designed between sacralizing and deconstructing through irony and
parody. In the following work, the aim is to comprehend how the performances (vocal,
instrumental, corporal) were decisive to build this new posture towards Bossa Nova.
Key words: Tropicalia, Parody, Bossa Nova.
Ao analisar a “tradição” da música popular brasileira, o historiador Marcos
Napolitano, compreende que ela está sedimentada sobre um eixo que se inicia com o
samba, perpassa a bossa nova e finda com a MPB (NAPOLITANO, 2007, p. 6). É claro
que este constructo intelectual exclui uma infinidade de outros gêneros e estilos que
podem fazer parte da tradição musical brasileira, como a moda de viola, o xote, o lundu,
entre outros. Desta forma, compreendemos que, para que algum projeto estético
alcançasse o status de tradição musical, outros tiveram que ser colocados em lugar de
menor importância, evidenciando que “a história da música popular no século XX
revela um rico processo de luta e conflito ideológico” (NAPOLITANO, 2005, p. 18).
Entretanto, é necessário ressalvar que esta tradição é produto de um processo de
invenção, ou seja, se ela conquistou tal centralidade foi devido à execução de um
projeto que objetivava fazê-lo.
Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas,
normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente
aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam
inculcar certos valores e normas de comportamento através da
repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade
em relação ao passado (HOBSBAWN, 2002, p. 9).
A tradição, quando inventada, necessita de algo que a dote de veracidade e que a
justifique enquanto realidade acontecida, para que seja reconhecida enquanto tal
(PESAVENTO, 2003, p. 95), daí a necessidade da história e/ou do Estado corroborarem
tais modelos. Ou seja, para que o samba, a Bossa Nova e a MPB alcançassem a
condição de receptáculos da tradição musical brasileira, tornando-se referenciais
simbólicos do Brasil e do próprio brasileiro, foi necessário um processo lento de
448
afirmação e constante reafirmação destes “gêneros”190 como “coisas nossas”, como diria
Noel Rosa. Entretanto, é necessário reafirmar que no processo de construção desta
“tradição” muitos projetos foram excluídos ou, ao menos, suprimidos, para que estes
pudessem se sobressair. Para Peter Burke, este é, inclusive, um dos mais fundamentais
problemas com que nos deparamos ao problematizar as tradições: pensar “o que” e
“como” foi escolhido para fazer parte da tradição e “o que” e “como” outras
informações foram excluídas (BURKE, 2005). Neste sentido, é necessário que se
perceba que o
[…] processo de invenção e consagração dessa tradição
[musical brasileira] não se deu sem conflitos, contradições e
mediações das mais diversas, que, em linhas gerais,
acompanham a própria formação da nossa moderna identidade
nacional. Como toda identidade historicamente criada, muitos
elementos foram excluídos, muitos projetos foram agregados,
formando um mosaico complexo que dispõe lado a lado
diversos fatores culturais: o local e o universal, o nacional e o
estrangeiro, o oral e o letrado, a tradição e modernidade
(NAPOLITANO, 2007, p. 6).
A idéia de tradição, segundo Burke (2005) está diretamente relacionada à idéia de
cultura, já que pressupõe um conjunto de práticas e idéias passadas de uma geração à
outra. Ou seja, quando pensamos as tradições de determinado povo, temos que
problematizar a própria cultura em que este está inserido e (re)produz. Entretanto, este
mesmo historiador afirma que a transmissão de uma tradição de uma geração à outra
significa, necessariamente, uma “criação contínua” (BURKE, 2005, p. 130) ou uma
recriação desta. Desta forma, acreditamos que toda a constituição de uma tradição é um
projeto que se vincula muito mais ao futuro que ao passado, já que ela definirá, num
momento posterior, todo um conjunto de referências a serem seguidas, discutidas e
reverenciadas. Neste sentido, a idéia de tradição coloca em contato as três distintas
noções de tempo: passado, presente e futuro. O passado seria o produtor daquela
tradição, ainda que visto de maneira mistificada e idealizada – por isso mais distante, do
190
As discussões a respeito da categoria “gêneros musicais” são muito complexas e estão distantes da
alçada do historiador, sendo mais próxima das discussões dos musicólogos. Entretanto, entendemos que
tanto o samba (e suas várias vertentes) quanto a bossa nova estão mais próximos de tal classificação do
que a chamada MPB. Amparamo-nos na conceituação de Napolitano, segundo o qual: “A MPB passou a
ser vista [a partir da década de 1970] cada vez menos como um gênero musical específico e mais como
um complexo cultural plural, e se consagrou como uma sigla que funcionava como um filtro e
organização do próprio mercado, propondo uma curiosa e problemática simbiose entre valorização
estética e sucesso mercantil” (NAPOLITANO, 2005, p. 72, grifos nossos).
449
ponto de vista do uso pragmático, que o presente e futuro, onde a tradição seria
instrumentalizada. O presente seria o momento em que se elevaria aquele conjunto de
referências passadas (ou inventadas) aos status de tradição e se reproduziria este
constructo; todavia, essa tradição constituída visaria um futuro produzido a partir dela e
problematizado por elementos vindos daquela matriz. Ou seja, a tradição, enquanto
projeto, inventa um passado, um presente e um futuro, mas sempre tendendo a criar de
forma mais definitiva esta última temporalidade.
Em geral, as obras de arte nascem da tensão entre inovação e tradição. É da
fricção destes dois termos que surgirá um objeto artístico novo. A inovação é a parte em
que o artista põe em funcionamento seu “gênio criador” – sua inspiração e seu projeto
artístico –, entretanto, a inovação é perpassada por aspectos da tradição, como os
processos de formação do artista (por exemplo, se freqüentou ou não cursos regulares de
música, no caso da canção), os meios de difusão de sua arte (se a música é ou não
gravada; se sim, em qual tipo de mídia), o conjunto de técnicas e objetos que ele
utilizará para produzi-la (procedimentos de gravação, instrumentação, gênero em que irá
compor), entre outros. Neste sentido, afirma Greenblatt que “a obra é o produto de uma
negociação entre um criador ou uma classe de criadores e as instituições e práticas da
sociedade” (GREENBLATT apud FALCON, 2002, p. 88). Desta forma, quaisquer
canções que façam parte de uma determinada tradição podem ser ressignificadas e
recriadas ao dialogarem com artistas de outros tempos. Neste mesmo sentido, Paranhos
nos alerta que
Canção alguma é uma ilha, mantida em regime de clausura,
como se fosse possível cortar os fios que a ligam a outras
canções e a mil e um discursos e referências sociais. Sem que
se perca de vista sua singularidade, quando ampliamos a escala
de observação de um artefato cultural, pode-se verificar que,
dialeticamente, tudo está em interconexão universal, como que
dialogando entre si. No caso específico de uma canção, ela,
para dizer o mínimo, está permanentemente grávida de outras
canções, com as quais entretém um constante diálogo, seja ele
implícito ou explícito, consciente ou inconsciente
(PARANHOS, 2007, p. 1-2).
No caso das músicas da tropicália, estes fatores se tornam mais evidentes, já que
os artistas procuravam evidenciar as “relíquias do Brasil”, expondo-as ao global de
maneira antropofágica. Os tropicalistas, em seu processo de produção musical, optaram,
450
muitas das vezes, por construir canções utilizando-se da paródia e da justaposição de
elementos díspares. Estes dois processos (que podem ser vistos como complementares)
se coadunaram e possibilitaram a criação de um movimento estético-musical único e, no
limite, revolucionário no final da década de 1960. Este procedimento de criação
tropicalista se baseou na releitura e atualização de elementos arcaicos mais diversos
colocando-os lado a lado com o que havia de mais atual e mais moderno naquele
período. Assim, buscavam evidenciar a convivência desses dois aspectos na vida
cultural brasileira devido ao desenvolvimento desigual do capitalismo periférico. Neste
sentido, eles abriram também as portas da música brasileira a elementos estrangeiros
que eram quase sempre execrados pelos cantores de protesto, vinculados aos ideais
nacionalistas.
Neste processo de reutilização do arcaico entraram em contato com as várias
tradições musicais brasileiras e estrangeiras e puderam fragmentá-las, numa perspectiva
cubista e dadaísta, para utilizá-las posteriormente. Numa interpretação clássica da
tropicália, Vasconcellos afirma ser a intertextualidade um procedimento básico destes
músicos (VASCONCELLOS, 1977, p. 93). Ao citar elementos musicais de outros
gêneros e outros universos musicais, acabam parodiando e ressignificando vários
objetos musicais191. Radicalizando o panorama apontado anteriormente por Paranhos, os
tropicalistas se apropriaram de maneira consciente deste caráter dialógico dos objetos
artísticos, possibilitando criações em contato com as mais diversas tradições musicais
brasileiras e estrangeiras. Este tema, inclusive, será retratado em algumas canções
tropicalistas que buscarão referências em outras “tradições” no interior da história da
música brasileira (e também estrangeira) e as vinculará a outras muito diversas.
A parodização de canções e de outras formas de discursos será de fundamental
importância para o ideário estético da tropicália. O diálogo entre as produções artísticas
deles e de outros artistas será estabelecido, quase sempre, através da paródia. Além
disso, a percepção que se terá da memória musical brasileira também será exposta à
parodização. Este recurso é bastante típico do período da explosão tropicalista já que,
191
A intertextualidade e a paródia musical não são dados trazidos para o ambiente da canção pelos
tropicalistas, já que, por exemplo, a primeira parte da música Com que roupa?, de Noel Rosa, cita e
parodia o Hino Nacional Brasileiro. Noel, inclusive, pode ser considerado um mestre em fazer paródias,
como fica expresso na canção Faz três semanas em que parodia a música Sussuarana, de Hekel Tavares e
Luiz Peixoto. Todavia os tropicalistas radicalizam este procedimento utilizando-o como um dos
elementos principais de suas criações.
451
em tempos de ditadura militar e censura prévia, a necessidade de se produzir “música da
fresta” 192 era bastante dilatada.
A paródia é um recurso lingüístico no qual se constrói um discurso baseando-se
em outro, ao mesmo tempo em se subverte e ressignifica o conteúdo do texto original.
Segundo Cano, “A paródia desenvolve-se no terreno da continuidade, do dialogismo e
da subversão” (CANO, 2004, p. 85). Quase sempre seu conteúdo é recheado de teor
cômico e/ou irônico, transformando o objetivo artístico em risível. Segundo Hutcheon,
“A inversão irônica é o seu modus operandi, mas a sua essência está na ‘autoreflexividade’, na busca do distanciamento crítico e do diálogo independente com a obra
de arte, seja na literatura ou em qualquer outra forma de expressão artística”
(HUTCHEON apud CANO, 2004, p.86). Ou seja, a paródia, enquanto recurso artístico,
impõe ao público uma postura crítica em relação ao objeto de arte, exigindo que o
ouvinte perceba as diversas linhas semânticas que se estabelecem entre aquela obra e as
que ela se vincula. É devido a tal configuração – de colocar o leitor como
“decodificador da mensagem, da intencionalidade do sujeito da enunciação” (SILVA,
2003, p. 218) – que a paródia sempre foi um recurso muito utilizado com fins políticos.
A paródia é fruto de um processo de deslocamento lingüístico, no qual se transforma o
conteúdo primeiro do texto. “Com o deslocamento temos um elemento com a memória
de dois. Por isto é que se pode falar do caráter [...] contestador da paródia”
(SANT’ANNA, 2003, p. 28-29). Neste sentido, “poderíamos afirmar que a paródia só
alcança o seu objetivo na medida em que o leitor é capaz de identificar a inversão
irônica no diálogo intertextual” (CANO, 2004, p. 86).
A ironia, portanto, é um dos elementos mais fundamentais no processo de criação
de um discurso parodístico, cabendo a ele estabelecer alguns dos novos sentidos
atribuídos ao texto. Na paródia, a ironia se põe a serviço da subversão e objetiva o riso,
como aponta Muecke afirmando que “a ironia é dizer alguma coisa de uma forma que
ative não uma mas uma série infindável de interpretações subversivas” (MUECKE,
1995, p. 48). Esse caráter subversivo – pensar o impensável, rompendo os limites até
mesmo da razão – gera, por sua vez, o aspecto cômico e risível da paródia.
Bakhtin no chama a atenção para outro fator produtor de riso na paródia: “o prazer
produzido no leitor que, obrigado a ativar processos cognitivos que o levam a interagir
192
Expressão da época que referenciava músicas que buscavam transmitir mensagens políticas através de
conteúdos não explicitamente políticos, desta forma ludibriando a censura prévia.
452
profundamente com o texto, descobre um universo maior que a realidade imediata da
obra (CANO, 2004, p. 88).
Se a paródia trás como característica básica o apelo ao irônico, ela também faz um
convite ao riso. Segundo Verena Alberti, o riso também é algo bastante subversivo, já
que ele se edifica a partir da oposição entre “ordem e desvio, com a conseqüente
valorização do não-ofical e do não-sério” (ALBERTI, 2002, p. 12). Entretanto, George
Minois aponta outra característica do riso e da ironia no século XX: nascidos da
constatação da impotência frente ao absurdo em que fomos despejados nestes últimos
cem anos, permitem-nos ultrapassar as incoerências dos homens, da sociedade e do
mundo (MINOIS, 2003). Desta forma, a paródia se caracteriza por uma grande força
subversiva e contestadora.
Ao se utilizar da paródia, os tropicalistas construíram uma arte bastante
contestadora no ambiente político e artístico do fim da década de 1960 no Brasil.
Atacando as posturas políticas de direita e esquerda, as concepções artísticas dos
chamados artistas “engajados” e “alienados”, miraram sua crítica ácida em quase todos
os grupos sociais do período procedendo um balanço do Brasil naquele período. É desta
tensão entre o tradicional (parodiado) e o objeto artístico tropicalista (paródia) que irá
surgir a crítica e o efeito de humor destas obras de arte.
No geral, as paródias estão ligadas mais à imitação de alguns aspectos da forma e
da transformação de outros. No entanto, para os tropicalistas a paródia, geralmente, não
está centrada no “o que se diz”, desta forma, não há uma transformação das letras
originais, utilizando-se dos mesmos aspectos propriamente musicais, como ritmo,
melodia e etc. – recurso comum ao universo parodístico. Através de colagens,
justaposições e repetições a paródia, para eles, se estabelece através do “como se diz”,
da interpretação vocal e/ou instrumental, ou seja, da própria performance. Essa
interpretação é quase sempre recheada de ironias, ressignificações, iconoclastia,
carnavalização e “profanação”, transformando semanticamente aquilo que se diz
enquanto se mantém algumas das características morfológicas e sintáticas dos textos de
referência. É o que acontece por exemplo em Carolina (Chico Buarque) na
interpretação de Caetano Veloso, em Chão de estrelas (Sílvio Caldas e Orestes
Barbosa), com Os Mutantes e em Procissão (Gilberto Gil), na versão tropicalista de
Gilberto Gil, essa última se caracterizando pela auto-paródia. Isso se intensifica se
concordarmos com Pedro Murad, que afirma “o erotismo, a licenciosidade e o riso
453
vivenciados numa música surgem sempre a partir da performance” (MURAD, 2008, p.
70).
Desta forma, a interpretação alcança um patamar fundamental no interior das
parodizações tropicalistas. Para se compreender melhor estes objetos artísticos,
precisamos aprofundarmo-nos na questão da performance tropicalista, sobretudo a
vocal. Segundo Cláudia N. Matos, “Não contamos com um quadro teórico e
metodológico assentado para trabalhar nesse campo [a performance vocal]” (MATOS,
2004, p. 2), o que dificulta bastante nossa intenção de analisar, do ponto de vista
metodológico, a interpretação vocal. Tal dificuldade se agiganta quando percebemos
que “A voz não é portadora de sentido, potencializa-se no sussurro, no timbre, no
volume, entre elementos anteriores ao texto. Mesmo numa conversação cotidiana,
diversos elementos gravitam em torno da voz, que muitas vezes ultrapassam o sentido
estreito do discurso verbalizado” (MURAD, 2008, p. 68). Ou seja, além de nos faltar
um aporte metodológico que nos sustente, do ponto de vista teórico percebe-se que ela é
um objeto plural e multifacetado, dificultado as tentativas de sintetizar a performance
vocal.
Ainda assim, apesar de todas as dificuldades que se apresentam, iremos nos
arriscar neste pantanoso terreno da interpretação vocal. Muito longe de ser um método,
nossa estratégia de prática de pesquisa se baseará numa audição intensiva,
posteriormente uma análise crítica do material levantado, após procederemos a uma
descrição de tais dados e, por fim, buscaremos fazer uma síntese deste objeto tão
complexo que é a canção e sua a interpretação vocal.
Quando se utiliza o documento-canção, outras performances podem ser
analisadas, como a performance instrumental, os happenings – tão caros aos
tropicalistas –, a performance de palco, entre outras. Contudo, neste espaço, daremos
atenção apenas para a performance vocal e instrumental, dando mais ênfase ainda sobre
a primeira.
Centremo-nos, então, em uma canção em específico. Escolhemos para tal
empreitada a canção Saudosismo, de Caetano Veloso, que busca problematizar a
tradição musical da Bossa Nova parodiando-a. A música em questão, sobretudo na
gravação escolhida, busca mostrar a visão que Veloso tinha a respeito da tradição
musical brasileira, especialmente a Bossa Nova. Para este, tal qual outros intelectuais do
período, a exemplo de Augusto de Campos e Rogério Duprat, todas as conquistas
454
estéticas empreendidas pela Bossa Nova estavam se diluindo nas chamadas músicas de
protesto de caráter nacionalista (quase xenófobas), que vinham ganhando força na mídia
e, sobretudo, conquistando o público jovem e universitário (VELOSO, 1997). Este
conjunto de músicas era representado pelas composições de artistas como Sérgio
Ricardo, Carlos Lyra, Geraldo Vandré, entre outros. Estes músicos buscavam, desde a
instauração do golpe militar de 1964, denunciar o regime e seus crimes para uma classe
média intelectualizada devido à impossibilidade de um trabalho direto de
conscientização das massas operárias.
Para Caetano, como tangenciado acima, estes compositores faziam da bossa nova
e suas conquistas artísticas apenas um meio de transmissão de conteúdos ideológicos de
esquerda, esquecendo-se da introdução de elementos da modernidade e da sobriedade
das interpretações bossa-novistas, tão apreciadas por Caetano e os demais tropicalistas.
Portanto, fazia-se necessário retomar a “linha evolutiva da música popular brasileira” e
dar um passo à frente na produção musical do país. Porém, para que tal intento pudesse
ocorrer, era necessário se entender a tradição musical brasileira e mesclá-la, de forma
antropofágica, ao que fosse produzido pelo mercado musical em outras partes do
mundo. Dessa forma, os tropicalistas acreditavam que, para retomar a linha evolutiva
seria necessário compreender bem as tradições brasileiras e colocá-las lado a lado com
objetos e procedimentos de outros universos artísticos brasileiros – outras tradições (como o Modernismo de 1922 e a poesia concreta) e estrangeiros (o pop, o rock, o
bolero, o tango, ritmos africanos e etc.), coadunando tudo isso sob a batuta das técnicas
modernas de gravação e produção do objeto musical, sem, contudo, valorar estas
informações, evidenciando, dessa forma, a convivência anacrônica destes elementos na
vida cultural brasileira devido ao desenvolvimento desigual do capitalismo periférico.
A canção Saudosismo193, sobretudo nesta gravação, comenta a necessidade de
ruptura destas tradições musicais brasileiras e a busca de dar um passo à frente na
produção de canções e bens artísticos no Brasil. Vamos à canção:
Eu, você, nós dois
193
Fonograma original/ compacto duplo intitulado: Veloso e os Mutantes, faixa 1, lado B, Philips, 1968.
Remasterizado para o CD Cinema Olympia – Caetano raro & inédito (67-74) presente no Box 1 da série
Quarenta Anos Caetanos, Universal Music.
455
Já temos um passado, meu amor
Um violão guardado
Aquela flor
E outras mumunhas mais
Eu, você, João
Girando na vitrola sem parar
E o mundo dissonante que nós dois
Tentamos inventar, tentamos inventar
Tentamos inventor, tentamos
A felicidade, a felicidade
A felicidade, a felicidade
Eu, você, depois
Quarta-feira de cinzas no país
E as notas dissonantes se integraram
Ao som dos imbecis
Sim, você, nós dois
Já temos um passado, meu amor
A bossa, a fossa, a nossa grande dor
Como dois quadradões
Lobo, lobo bobo
Lobo, lobo bobo
Lobo, lobo bobo
Lobo, lobo bobo
Eu, você, João
Girando na vitrola sem parar
E eu fico comovido de lembrar
O tempo e som
Ah! Como era bom
Mas chega de saudade
456
A realidade é que
Aprendemos com João
Pra sempre
Ser desafinado
Ser desafinado
Ser desafinado
Ser
Chega de saudade
Chega de saudade
Chega de saudade
Chega de saudade
Chega de saudade
Chega!
Esta canção apresenta uma letra (e também sua parte sonora) bastante ambígua,
dificultando a compreensão por parte do público. Num primeiro momento percebe-se
uma certa “declaração de amor” feita ao movimento estético de 1958, devido a citações
de cinco canções da Bossa Nova: Fotografia (Tom Jobim), A Felicidade (Tom
Jobim/Vinícius de Moraes), Lobo bobo (Carlos Lyra/Ronaldo Bôscoli), Chega de
saudade (Tom Jobim/Vinícius de Moraes) e Desafinado (Tom Jobim/Newton
Mendonça) – estas duas últimas tidas como uma espécie de manifesto daqueles
cancionistas194 (SOUSA, 2002: 165). Entretanto, com uma leitura mais atenta da
canção, percebemos uma crítica à apropriação dos parâmetros composicionais da Bossa
por parte dos músicos daquele período. Esta crítica incide sobre vários aspectos, mas
fundamentalmente no que tange aos conteúdos políticos e à necessidade de expurgar da
música brasileira as influências externas. Marcos Napolitano classifica esta
ambivalência como “sentimento difuso de nostalgia”, já que “Esse paradoxo, oscilando
entre o humor e a melancolia, podia ser visto como o combustível da crítica tropicalista
194
“O compositor traz sempre um projeto geral de dicção que será aprimorado ou modificado pelo cantor
e, normalmente, modalizado e explicitado pelo arranjador. Todos são, nesse sentido, cancionistas.” (Tatit,
2002: 11)
457
contra as figuras de linguagem centrais da cultura engajada da esquerda nacionalista: a
mimese e a hipérbole” (NAPOLITANO, 2007, p. 132-133)
Um grande conhecedor da obra de João Gilberto e dos demais bossa-novistas – e
influenciado por eles de forma decisiva –, Caetano explicita nesta canção a existência de
uma tradição musical brasileira através da primeira estrofe da canção. É importante
ressaltar que nestes versos, como em quase todo o fonograma, a interpretação vocal do
intérprete é bastante sóbria e quase intimista, aproximando-se daquela eternizada pelos
artistas da Bossa e deixada de lado pelo expressionismo vocal das músicas de protesto.
Essa voz evidencia também uma grande despreocupação em cantar, já que a mensagem
pode não parecer, à primeira audição, de caráter político. A referência ao “grande
gênio” da Bossa Nova é explicitada pela citação de seu nome e de uma de suas maiores
contribuições à música, para Caetano, a dissonância.
A interpretação sóbria de Caetano é quebrada por sons de palmas e assobios que
irrompem num crescente no fim dos versos “A felicidade, a felicidade/ A felicidade, a
felicidade”. Essas palmas poderiam ter sido trabalhadas em estúdio e serem colocadas
num volume mais baixo, porque quase sobrepõem-se à voz do cantor e aos instrumentos
no fim dos versos, mas são utilizadas para compor a própria música. Este procedimento
de utilizar na mixagem elementos sonoros espontâneos do momento da gravação ao
vivo, elaborando-os no momento de mixagem e produção, aproxima-se muito do
conceito de música concreta, um gênero erudito moderno que busca construir peças
musicais através da gravação e mixagem de sons “espontâneos”, não propriamente
musicais. É importante ressaltar que estas palmas também aludem ao ambiente dos
festivais, aqui representados devido a serem o lócus principal das músicas de protesto,
que estariam tanto diluindo as conquistas estéticas da bossa nova quanto impedindo que
novas informações musicais externas fossem incorporadas à música brasileira.
Esta postura anti-nacionalista se evidencia de forma mais explícita na estrofe que
se segue com os versos “E as notas dissonantes se integraram/ Ao som dos imbecis”,
que demonstra um desdém e até uma certa desilusão em relação aos rumos que a música
brasileira vinha tomando desde os idos da década de 1960. Neste ponto, a interpretação
ganha uma força bastante destacada quando a palavra “imbecis” é invocada, destacandose pela aspereza em que é cantada. Aqui, percebemos uma intencionalidade de ao
mesmo tempo, destacar a palavra enquanto se reforça a idéia expressa pelos versos: a
458
deturpação das conquistas da Bossa Nova pelos chamados músicos de protesto – os
próprios imbecis.
A seguir, Caetano enuncia que passado é este o que estes músicos já possuíam.
Num processo de assonância e aliteração – aqui entendida como “aproximações sonoras
que, quando bem sucedidas no plano da expressão (significante) desimpedem o
caminho para as associações no plano do conteúdo (significado)” (TATIT, 2002: 268) –
o cancionista busca igualar a Bossa (Nova) e a fossa, nos trechos “A bossa, a fossa, a
nossa grande dor/ Como dois quadradões”. Este recurso lingüístico reitera novamente a
posição que Caetano tem em relação ao que ele achava ser um retrocesso na música
brasileira, negando que esta pudesse estar em contato com elementos que lhe dariam
maior substancial estético. Esta postura antiquada da canção no Brasil no fim dos anos
1960 será ironizada com a adjetivação, “quadradões”, que se aplica ao eu lírico e ao
interlocutor daquelas canções.
A postura ambígua em relação à Bossa Nova retorna nos versos “Eu, você, João/
Girando na vitrola sem parar/ E eu fico comovido de lembrar/ O tempo e som”. Aquele
movimento estético gera comoção no eu lírico, segundo a letra, entretanto isso não é
perceptível na interpretação que se mantém invariável neste trecho da canção. A
ambigüidade se torna ainda maior quando percebemos o que virá nos próximos versos.
A ruptura com o esquema de produção musical da Bossa Nova e seus releitores, os
músicos de protesto, se dá de forma mais explícita em alguns versos à frente. “Ah!
Como era bom/ Mas chega de saudade/ A realidade é que/ Aprendemos com João/ Pra
sempre/ Ser desafinado”. Caetano reitera a qualidade das canções de João Gilberto,
citado alguns versos acima, mas já se referenciando a ele como passado (evidenciado
pela utilização do pretérito imperfeito, modo indicativo, do verbo ser: era) no primeiro
dos versos acima.
A canção deflagradora da Bossa é citada novamente, mas aqui é ressignificada. O
caráter lírico e até apolíneo de Chega de saudade é transformado num desabafo devido
a um momento de saturação daquele projeto e de um movimento de busca pelo novo. A
saudade de sempre se referenciar neste passado é rechaçada pelo intérprete. A nostalgia
do baiano é aquela de um conjunto de conquistas musicais – a dissonância, por exemplo
– que deveriam ser mais elementos que auxiliariam na produção de canções no Brasil,
do que um esquema fechado que impediria a apropriação de elementos diversos no
processo de feitura de objetos musicais. Dessa maneira entende-se o título da canção:
459
Saudosismo. Daí a perceber que esse dado novo que a Bossa trouxe poderá ser utilizado
“Pra sempre” pelos novos compositores. É a partir deste contexto que a virulência do
canto de Caetano nos últimos versos da canção deve ser percebida.
A própria estridência do grito reitera esta postura. O grito e o riso se confundem, o
desabafo e lúdico também. A subversão toma conta da interpretação, o caos se instaura
e um grito “Chega!” abafa os demais sons. A epifania e a catarse se dão pela solução
confusa, lúdica e, devido aos elementos anteriores, cômica. As ambivalências são
esclarecidas no último grito, o cenário construído por Caetano se apresenta aos ouvidos
do público que compreende o ideário tropicalista através do poder da fricção entre voz,
instrumentos e discurso. Riso, grito, guitarras, palmas, assobios. Tudo se torna um só
discurso, um só apelo.
Como se pode perceber, os tropicalistas se utilizam dos recursos parodísticos não
somente para gerar o riso e a crítica. Ao tensionar dois referenciais de tempo – presente
e passado –, objetivam estabelecer uma revisão crítica daquilo que foi produzido
anteriormente e ressignificá-lo no presente. A Tropicália, enquanto buscava revisar o
tradicional apontava para os caminhos que a música poderia levar. Longe de fazer
previsões, o tropicalismo já antevia os processos pelos quais a música brasileira
despejaria o elemento temporal no seu processo de composição no momento
imediatamente posterior àquele, o reinado da chamada MPB. Passado, presente e futuro
tornavam-se um só, uma aliança estranha entre duas temporalidades distintas e
formadoras da música brasileira neste processo de criação de uma nova tradição.
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462
“A palavra dita que é canção e a frase cantada que é fala” Maria
Knébel e Stanislavsky sobre a performance oral , Adriana Fernandes
(UFPB); Robson Corrêa de Camargo (UFG) ; Michel Mauch Rosa (UFG)
[email protected]
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Resumo: O presente trabalho levanta e discute alguns aspectos relevantes do
treinamento da fala do ator apresentados por María Ósipovna Knébel em La Palabra en
la Creación Actoral (2000). A autora foi discípula de Stanislavsky, colaboradora de
Vajtángov e Chéjov e depois dirigiu e ensinou vários artistas russos. O trabalho faz uma
resenha breve sobre o conteúdo do livro e então foca em seus três mais extensos
capítulos: Análise por meio da ação; Técnica e lógica da fala; e Tempo-ritmo. Como o
diretor russo faz várias menções e aproximações entre o trabalho da fala do ator com a
estrutura musical, é sob a perspectiva musical na composição da fala que interpretamos
os apontamentos deixados por Knébel.
Palavras-chave: Ator, musicalidade, fala, emissão.
María Ósipovna Knébel em seu livro A Palavra na Criação do Ator, traduzido
pela primeira vez ao espanhol em 1998, nos dá um relato minucioso do trabalho
desenvolvido por Stanislavsky a partir do ponto de vista da fala, ou seja, como o mestre
russo lidava com a questão da emissão do texto pelo ator. Este assunto é motivo de
grande debate entre os pesquisadores e gente de teatro, e atualmente vem sendo cada
vez mais observado não apenas por pessoas da área teatral como também de outras áreas
como a fonoaudiologia e a música. A discussão é muito centrada na questão técnica, e
fatores como respiração, articulação, impostação são pontos recorrentes. No entanto,
não apenas com relação a este livro, mas também baseados em outros escritos de
Stanislavsky é possível perceber que várias vezes o mestre faz claras referências a
questões musicais específicas como quem ouve fala como se ouvisse música. Para
salientar este aspecto é que relatamos neste pequeno trabalho o conteúdo do livro de
Knébel nos atendo principalmente em três capítulos cruciais: o capitulo 2 – Análise por
meio da ação; o capítulo 7 – Técnica e lógica da fala; e o capítulo 10 – Tempo-ritmo,
este último tema bastante discutido em outros livros de Stanislavsky.
463
A Palavra na Criação do Ator possui 10 capítulos, uma conclusão e um prólogo
da autora. Neste prólogo ficamos sabendo que Knébel foi convidada por Stanislavsky
em 1936 a participar de seu Estúdio de Ópera e Drama como a preparadora de fala
cênica. Ela responde que nunca tinha feito isso e ele contesta que era melhor assim, pois
ensinaria aprendendo. O livro então é um relato quase descritivo desta experiência,
bastante autobiográfico como a autora adverte mas longe de ser um manual da ação
verbal (p. 14). Sua importância está na possibilidade de acompanhamento de várias
situações de ensaios e dos procedimentos adotados e quais as observações feitas pelo
mestre, que, no nosso ponto de vista, soam hoje como dicas para a preparação dos
atores.
O primeiro capítulo, intitulado A Palavra é Ação, a autora mostra o
entendimento que Stanislavsky tinha sobre a palavra falada, um entendimento
antropológico:
toda a secular experiência histórica dos povos está fixada na
palavra que, igual a um sensível condensador, absorve para si a
múltipla sabedoria da humanidade. A palavra pronunciada
provoca no cérebro do homem uma complexa cadeia de
imagens e associações de imagens visuais e emocionais,
frequentemente tão acabadas como são as imagens do mundo
percebidas pela via sensorial (p.30, tradução nossa).
Desta forma, a fala, já prenhe de elementos significantes, quando no palco se
transforma em ação, no sentido de “expressão ativa do pensamento,” um pensamento
portanto secular. Knébel vai citar Marx: “as idéias não existem fora do idioma” (p.32) e
terminar o capítulo apontando que é necessário que, no palco, a palavra seja tão
enérgica, ativa, volitiva quanto na vida cotidiana, uma palavra atuante carregada de
significados históricos vividos por aquele idioma e seus falantes.
O segundo capítulo, um dos focos do nosso trabalho, ensina a analisar o texto
teatral do ponto de vista das ações. A autora nos remete aos conceitos stanislavskianos
de supertarefa e ação transversal. O conceito de supertarefa numa versão simplificada
seria a ação do autor do texto, seu objetivo maior. Faz-se necessário entendê-la para
embasar a criação do ator. A ação transversal, ou linha de ação contínua, seria a
principal ação do personagem, seu eixo motriz. Aqui entraria então um estudo linear das
ações, dos resultados das ações, sua sucessão e das relações entre elas, pois assim,
segundo Stanislavsky, o ator poderia compreender como o autor constrói seu
464
argumento. Com este procedimento é possível “imaginar a lógica e a continuidade dos
resultados, a perspectiva do desenvolvimento da ação e da contra-ação” (p.42, tradução
nossa). O objetivo desta linha de ação seria assimilar o caráter do personagem e com
isso o ator passa a dialogar com o personagem, quando este se explica àquele, quando o
ator entende o que se passa no consciente do personagem, com que idéias e
pensamentos este consciente está ocupado, porque já tem traçado seu caráter. Portanto,
Stanislavsky sugere que antes de pronunciar alguma palavra em cena, o ator construa
um discurso com o seu personagem através da compreensão de seu mundo interno, seu
caráter, seus desejos, suas idéias (p.47). Depois desta etapa, o mestre sugeria a inclusão
do corpo para a construção do personagem, suas atitudes físicas, a vida do corpo
humano do personagem. Observem que até aqui o ator ainda não disse nada
verbalmente, mesmo porque o mestre entendia que o estudo do texto estava atrelado ao
estudo das ações físicas. Para que o aprendizado do texto não fosse mecanizado deveria
haver uma unidade entre o psíquico e o físico no processo criativo.
Mais adiante, no livro, este procedimento fica mais claro com um exemplo dado,
quando o mestre faz com que os atores cientes da sucessão de resultados de uma
determinada cena começam a interpretá-la fisicamente e colocar um texto improvisado
sobre a linha de ação. Com este procedimento em andamento o diretor vai “soprando” o
texto do autor e assim o texto do personagem vai se incorporando de forma vital e
efetiva. Com este treinamento também observa-se que o mestre lida com a questão da
contradição, das incoerências entre o que se pensa e o que se faz, e com isso promove a
construção e manutenção da tensão do espetáculo, sua dialética e fatalmente a sua
organicidade. Nos parágrafos finais, Knébel nos diz que Stanislavsky pensava que
observamos muito mal a vida, daí a dificuldade de criação das ações físicas.
O terceiro capítulo com o título enigmático de Valorização dos feitos, fala da
visão de Stanislavsky sobre a escolha das palavras feita pelo autor do texto, palavras
que vão sublinhar as ações físicas e por si próprias, quando enunciadas, serão ações
vocais. O capítulo está focado em um exemplo da peça “A desgraça de ser inteligente”
de Griboyédov e, dando seqüência ao capítulo anterior, reforça a necessidade de
compreensão da vida interior do personagem, mesmo que esta vida seja absolutamente
distinta da vida do ator que o interpreta. Somente ao final do capítulo é que a questão do
texto vem à tona, com uma citação de um trabalho de Maiakovsky e o comentário de
Stanislavsky:
465
Pensa você a miúde – perguntava Stanislavsky, em quanta
energia o escritor emprega para expressar com a palavra, com
exatidão e abundância de imagens, toda a complexidade das
emoções humanas? E você nem se incomoda de aprofundar a
idéia expressa por ele e balbucia mecanicamente as palavras
(p.68, nossa tradução).
Somando-se portanto o segundo e terceiros capítulos, a questão fulcral é o
diálogo estabelecido entre o ator e seu personagem antes da chegada do texto ao
aparelho vocal de seu locutor.
O quarto capítulo – Visualização, é de extrema importância na seqüência desta
construção interna do personagem na iminência de vir ao mundo externo através das
palavras. Stanislavsky sugere que se visualize aquilo que se ouve e o que se fala. Chama
isso de lei do pensamento imaginativo do ator em cena (p.71). Estas imagens inclusive
são buscadas, evocadas e necessárias para a memorização do texto, são o conjunto de
percepções internas que propiciam a comunicação (p.77). Segundo ele, a repetição do
texto é banal e leva ao automatismo, mas quando este texto é fruto de uma visualização
a cada repetição novas imagens são formadas e o texto também se transforma. É quando
aparece, no livro, uma das primeiras grandes dicas em relação a fala: “falar não ao
ouvido e sim ao olho do espectador” (p.81) e com isso convencê-lo. E mais uma vez
Knébel aponta a necessidade de um espírito observador por parte do ator e de uma
ampla formação cultural, intelectual. Embora, nestes três últimos capítulos possa dar a
entender uma visão psicologística do personagem, ao final do quarto capítulo Knébel
cita Chéjov em uma missiva a Stanislavsky: “O melhor é fugir da descrição do estado
de espírito dos personagens; há que se procurar que este seja entendido através das
ações dos personagens” (p.93, tradução nossa).
O capítulo 5, O Trabalho com a palavra artística é, ao nosso ver, um pouco
datado, visto que dialoga com os problemas de emissão e enunciação dos atores da
década de 1930-40 na Rússia e os problemas enfrentados por Knébel na sua nova
posição de preparadora vocal. É ao final do capítulo que alguns tópicos são explicitados
como a questão da imitação, que deve ser evitada para não se cair em clichê. No
entanto, uma aproximação com um determinado dialeto, uma insinuação de entonação e
gesto é mais útil porque estará nos limites de uma atuação. Por último, com relação à
fala afetada e o excesso de precisão da dicção nas tragédias, o mestre aconselha que se
fale de acordo com a lógica da ação e que logo aparecerá a lógica dos sentimentos.
466
O capítulo 6 – Monólogo interno, está intimamente relacionado com os capítulos
3 e 4, Valorização do Feitos e Visualização. No entanto, aqui, um passo a frente, é o
treinamento da concretização do pensamento do personagem, a ponto de fazer existir
uma corrente de pensamentos ativada pela percepção das palavras do interlocutor, pelas
impressões do que ocorre na cena. “É uma reação ao conjunto de material percebido que
origina um determinado modo de pensar” (p.126), e esta cadeia de idéias é que dará o
subtexto do papel. O exercício proposto pelo mestre é fazer os atores em cena falar em
voz alta o que se passa no pensamento do personagem em determinado momento.
O capítulo 7 – Técnica e Lógica da Fala, é o nosso segundo foco do trabalho.
Neste mais longo capítulo, Knébel faz apontamentos muito importantes sobre como
Stanislavsky percebia e treinava, com alto grau de exigência, a fala de seus atores, pois
“o ator deve saber falar” (p.140). Os elementos considerados nesta fala são a qualidade
da voz, sua dicção e habilidade para modelar a palavra (entonação) e a frase. Podemos
depreender a busca de um perfeccionismo com relação a correta pronúncia dos vários
dialetos russos, e o entendimento da fala como um poderoso meio de influência e
expressão cênica. Com relação aos aspectos mais pontuais, salientamos:
a) consoantes expressivas fazem a fala ressoar – “as vogais são a água e as
consoantes as bordas sem as quais o rio se transformaria em pântano” (p.138, tradução
nossa).
b) o acento de uma determinada palavra é como um dedo indicador que assinala
a palavra principal da frase ou do compasso. Uma grande quantidade de palavras
acentuadas faz a frase perder seu sentido e, no entanto, a correta pronúncia de uma frase
requer a habilidade de coordenar muitos acentos em uma mesma oração (p.145).
c) se o objetivo é clareza e agilidade a fala deve ter uma entonação repousante,
apagada, uma falta quase total de acentos, e uma especial contenção e segurança. A
agitação torna o discurso mais pesado (p.145).
d) existe um complexo de acentos: fortes, médios e débeis, assim como também
dependem de onde ocorrem e como ocorrem: de cima para baixo ou de baixo para cima,
se cai forte pesado ou leve, se se mantém durante muito tempo ou se cai como em um
golpe e logo desaparece. Estes matizes funcionam como os efeitos de perspectiva de um
quadro de arte, formando planos diferentes.
467
e) os sinais de pontuação quando observados em seu caráter tonal impedem o
ator de se precipitar e com seu uso correto, nas entonações, fazem com que os
espectadores sejam forçados a o escutar.
f) a arte da fala é tão complexa quanto a arte do canto. Neste sentido a autora
demonstra a preocupação do mestre com as técnicas de relaxamento, impostação
(volume), o treinamento usando as técnicas de extensão vocal.
Vale ressaltar que todos estes itens levantados no decorrer do capítulo são
considerados dentro da perspectiva do texto, de todo o trabalho desenvolvido nos
capítulos anteriores e têm como exigência o trabalho contínuo. Estes quesitos dependem
da intenção da fala do personagem e devem levar em conta o conteúdo da obra
interpretada, a ação transversal e a supertarefa. Assim Knébel enumera os pontos
principais da fala cênica:
1 – a perspectiva da idéia transmitida (lógica)
2 – a perspectiva do sentimento vivido
3 – a perspectiva artística que habilmente distribui as cores que ilustram o relato
ou monólogo (p.155).
E, por fim, uma citação de Stanislavsky que vai reforçar os elementos musicais
presentes nos itens relacionados no decorrer do capítulo e que de acordo com ele são
cruciais na elaboração da ação verbal:
O ator deve criar a música de seus sentimentos sobre o texto da
obra e aprender a cantar esta música dos sentimentos com as
palavras do papel. Somente quando ouvimos a melodia de um
espírito vivo podemos apreciar totalmente em seu justo valor a
beleza do texto, assim como o que ele esconde (p. 166).
O capítulo 8 fala sobre a pausa psicológica que era bastante valorizada pelo
mestre. Ele a compreendia como momentos de “janela” para o subtexto, quando o
ator/personagem deixava entrever aspectos ocultos de sua personalidade. No entanto,
advertia que se demasiadamente usada, a pausa psicológica perdia sua força junto a
platéia e mudava o ponto de atenção dos espectadores da peça para a exibição de
habilidade do ator. A pausa psicológica não pode ser apenas um momento de detenção,
ela normalmente é empregada em momentos de “virada”, de bravata, “turning points”
em inglês, “pausas de gira,” em espanhol. Está intimamente ligada com o monólogo
interno e com a perspectiva da obra. O mestre sugeria como exercício interpretar toda a
cena sem palavras, apenas com gestos, e depois colocar as palavras fazendo o texto
468
inchar com pausas. Daí advém a necessidade de compreensão do todo, a perspectiva
geral da obra e a proporção de distribuição de pausas, pausas psicológicas e os
momentos de “virada.”
O capítulo 9 chamado de Adaptação é intrigante porque é como um ajuste do
capítulo 5, quando Knébel citando o mestre diz que ele condenava a imitação. No
entanto, neste capítulo falando de adaptação, a questão da imitação é colocada mais
cuidadosamente. Stanislavsky chama de adaptação:
a forma de comunicação interna e externa entre as pessoas, o
desenvolvimento progressivo com que uns se adaptam aos
outros durante a comunicação, as invenções que uma pessoa
faz para influenciar outras é,...um importantíssimo elemento da
maestria do ator.” (p.178)
E a maestria com que é feita esta trama não pode se deixar entrever. Segundo
Tolstoi “está feito com tanta maestria que não se vê a maestria” (p.177) A comparação
deste elemento se dá com a pintura figurativa de Répin (1844 - 1930) e Stanislavsky
pensa na adaptação como o emprego de cores num quadro pintado por um grande
mestre. Portanto, refinando aquilo que foi dito no capítulo 5, o mestre Stanislavsky vai
dizer que a imitação pode ser usada desde que o ator apenas se sirva dela, cuidadosa e
sabiamente, muito parecido com o conselho dado por Mário de Andrade sobre a
esperteza com que se deve absorver elementos de outras culturas. A imitação usada
deliberadamente leva ao clichê, empurrando o ator para o amadorismo.
O último capítulo, chamado de Tempo-ritmo, é também o nosso último foco
neste trabalho. Este capítulo foi deixado por último pois é a somatória das técnicas e
informações de todos os outros. De uma certa forma, é exatamente pela não
compreensão e falta de domínio dos outros elementos abordados nos capítulos
anteriores que a fala cênica, segundo Knébel, seja a parte mais atrasada da psicotécnica
da maioria dos atores (p.201) e, como se pode perceber até aqui, um longo e
disciplinado caminho é também um grande empecilho para sua completa realização.
O entendimento que Stanislavsky tinha do tempo-ritmo está intimamente
relacionado ao entendimento da obra como um todo, a supertarefa e as ações
transversais, o âmbito emocional em que se dá a obra, e o teatro como arte de ação: “ali
onde tem vida tem também ação, onde tem ação tem também movimento, mas ali onde
tem movimento também tem tempo e onde tem tempo também tem ritmo” (p.183).
Então, de maneira geral, o capítulo vai costurando as informações anteriores com a
469
questão do tempo-ritmo, que o mestre costumava treinar fazendo uso de vários
metrônomos em funcionamento a diferentes velocidades e era ele quem determinava os
compassos (visto que este dispositivo existe hoje nos metrônomos, e acho que naquele
tempo também, mas ele não o usava).
Uma das primeiras informações importantes que Knébel nos dá é a noção de que
um ator tem o seu próprio tempo-ritmo que é, inevitavelmente, diferente do temporitmo de seu personagem, e ocorre bastante a miúde, que o ator apenas transporte o seu
tempo-ritmo para o personagem sem pensar nas conseqüências disso. É necessário ter
em mente as visualizações do personagem, ter a idéia do todo através da ação
transversal e do subtexto, que é gerado no diálogo interno; a perspectiva das ações
isoladas de um personagem dentro do contexto da supertarefa. Ao ator cabe saber
distinguir e passar do seu tempo-ritmo ao temporitmo do personagem sem nenhuma
dificuldade, através de um treinamento consciente e que corresponda a cena ensaiada.
Sim, porque também se considera o tempo-ritmo da cena e nele coexistem um temporitmo externo e interno. O externo está, de certa forma, ditado pelo autor do texto. O
tempo-ritmo interno a uma cena é aquele que o ator deve trabalhar com maestria, pois é
onde se desenvolve o caráter e a personalidade do personagem.
Ao citar um exemplo dos ensaios de Stanislavsky, sabemos que o mestre
considerava até mesmo um tempo-ritmo atrelado à linha comportamental de um
determinado personagem, como se fosse um tempo-ritmo fundamental. A partir da
determinação destes tempos-ritmos de todos os personagens, Stanislavsky chega a
conclusão que na peça em ensaio, Os Burgueses, de Gorky, os temposritmos emanavam
da luta apaixonada entre o velho e o novo travada na peça.
Ao final do capítulo Knébel reforça a idéia de Stanislavsky ao concordar com a
constatação de que existe, desafortunadamente, uma grande separação entre o ensino da
fala cênica e o ensino da atuação, quando na verdade estes dois elementos deveriam ser
inseparáveis. Um ator deveria ter um controle técnico de sua fala que deveria resultar
em fluidez, lentidão, fusão sonora, por um lado, e por outro rapidez, leveza, precisão e
claridade. Tudo isso tendo em mente a transmissão de idéias do personagem, o que
tornaria a performance orgânica.
Na conclusão, Knébel apenas enfatisa os principais pontos do livro, dentre eles a
necessidade de compreensão da totalidade da obra pelo ator, do lugar que ocupa seu
470
personagem nela e só então começar a usar as palavras do texto. Porque a propriedade
mais importante das palavras é a atividade, portanto, elas estão na gênese da ação.
Do ponto de vista musical, consideramos explicitada a percepção que
Stanislavsky tinha da fala enquanto material sonoro a ser tratado com tantas minúcias
como se fosse “música.”A questão é que o treinamento desta fala deve vir acompanhado
do treinamento do ator, através das ações físicas, que agora está mais claro ainda que as
ações físicas envolvem a fala, uma fala que é atividade e é ativa, mas só será ativada ao
final de um longo processo de compreensão e construção do texto pelo
ator/personagem.
Bibliografia
KNÉBEL, M. O. La Palabra en la Creación Actoral. Madrid: Editorial Fundamentos,
2000.
471
SESSÃO 3: RITUAL, NARRATIVA
Peregrinação kalunga: a letra , a voz e o mastro do Divino Espírito
Santo, Augusto Rodrigues da Silva Junior (Transe-UnB)
Doutor em Literatura Comparada
Prof. Lit. Brasileira
Nesse trabalho, trataremos da dança chamada Suça e dos versos cantados ao pé
do mastro do Divino Espírito Santo no “Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga”.
Localizado no nordeste de Goiás, com quase cinco mil remanescentes de quilombos,
divide-se entre os Municípios de Terezina de Goiás, Cavalcante, Monte Alegre e abriga
aproximadamente 1200 famílias em cinco núcleos: Vão de Almas; Vão do Muleque;
Kalunga; Contenda e Ribeirão dos Bois.
Provavelmente, estas representações surgiram urbanizadas, entre os séculos
dezessete e dezoito no Brasil e são heranças da colonização portuguesa. Depois, foram
levadas para os quilombos com os escravos fugidos. Levaram consigo as marcas da
tradição musical sincopada da voz e do batuque africanos, perceptível na ginga, no
molejo do cóccix, na prosódia nasalada e na alegria como forma de compreensão do
mundo. Ritmos e formas que comportam uma carga sertaneja, com influências das
tropelias de Goiás, Mato Grosso e Maranhão: o pisado, o pandeiro, as palmas, o
movimento giratório, o zigue-zague e o confronto de corpos, a cantoria, a caixa, os pés
nos chão.
Assim, tomamos essas manifestações como performances afro-sertanejas que
fundem heranças sertanejas (curraleira e catira) com a cultura rústica negra (batuque,
gingado etc.).
Tudo isso transformado pelo tempo da seca que permite redemunhos
inomináveis pelos vãos do cerrado. Estas definições servem como paradigmas para
aqueles que não conhecem a expressão quilombola, mas não se fecham em si
mesmas.195 Os termos devem funcionar como ferramentas de esclarecimento, pois há
um esforço de validar a herança inegável dos quilombos brasileiros quanto à etnia. Mas
195
Para esta questão vide: Pena (1921), Rovai (1953), Candido (1964).
472
culturalmente cabe ao pesquisador mapear essa herança e perceber que, uma vez
deslocada no tempo e no espaço, tornou-se sincrética.
Nesse caso, o impalpável e o performático, que não podem ser previstos e
calculados (geram um efeito determinante para o movimento). Entendendo perfomance
como um comportamento comunicativo, parte de reuniões rituais ou públicas com um
grande intercâmbio de informações (SCHECHNER, 1973), percebe-se que nos
movimentos de negros reside uma inspiração das trocas simbólicas entre aqueles que
dançam, aqueles que tocam e aqueles que assistem. Na qualidade daquilo que é
presentado e transmitido, com caracteres evocativos, considera-se performance a
manifestação capaz de condensar em cada ato uma condição subjetiva e, ao mesmo
tempo, marcas identitárias. Assim, este campo surge como uma importante ferramenta
etnográfica, pela capacidade de cultivar afinidades e de estabelecer diferenças no
acontecimento: “ajudando a construir uma estética cognitiva ou uma arte sociológica, os
estudos da performance se constituem no mais amplo campo de experimentação para as
Ciências Sociais” (TEIXEIRA, 2007).
A suça, enquanto letra das canções, presenta elementos do cotidiano mesclados
com uma alegria do discurso popular. A brincadeira, a sugestão e o baixo-corporal
povoam os versos. Em uma abordagem metonímica e de delimitação textual, veja-se
apenas uma das letras e a cena de sua execução: “A Piriquita da menina”. Essa música,
a mais tocada e a mais evocada durante os festejos do ano de 2008 teve, antes de sua
execução ao pé do mastro da Bandeira, um prólogo:
O pai da menina deu uma periquita pra ela
A periquita voou
Agora eu vou contar proceis
Em que pau a periquita da menina sentou
(Valdeci-Valdomiro, batuqueiro)
Um coro de gargalhadas antecede a retomada dos instrumentos. Nos seus gestos,
ele aponta para o mastro como o pau da periquita. O mesmo em que ele anunciou que
uma mulher cairia nele. Num primeiro momento a crônica cotidiana da fuga de um
passarinho não teria nada demais e seria comumente o retrato de um acidente e uma
anedota dentro da comunidade:
473
A periquita da menina é cheio de cor
A periquita da menina é cheio de cor
É marelim é azulzim
É marelim é azulzim
Essa seria a versão mais lenta e menos divertida da “toada” e da letra. A caixa, a
sanfona e as vozes seguem em tons menores e mantém a linearidade do começo ao fim.
Sem aumentar, sem acelerar, sem elevação das vozes. Mero pretexto para se chegar à
segunda parte em que a variação é dada no aproveitamento prosódico das palavras no
final dos dois primeiros versos:
O periquito da menina é cheio de couro
O periquito da menina é cheio de couro
É marelim é azulzim
É marelim é azulzim
O baixo-corporal fornece a manifestação da alegria nesta suça. Os homens, ao
cantarem o refrão, ditam um ritmo muito forte e muito acelerado, justamente pelo fato
de ele ser marcado pela menção à parte sexual da mulher. O caixeiro, neste momento,
realiza a sua performance e o sanfoneiro, principal cantor, também impõe sua voz e seu
sorriso. Enquanto isso, num tom frenético e de efusão as mulheres dançam numa forma
de transe.
Particularmente, as reações corporais também podem ser descritas da seguinte
forma: num primeiro momento, segue uma monotonia, por vezes ressaltada até mesmo
pela não percepção do duplo-sentido que se anuncia. A partir do momento em que a
caixa e a música acelera e rompe progressivamente com a “toada” e os músicos
enfatizam suas performances, maneiras de tocar, é impossível que o corpo não se
solidarize com este convite à alegria. Do cóx ao pescoço, do ouvido ao contato com os
corpos próximos, nos sentidos da visão aguçados pela escuridão da noite e pela poeira
que levanta tudo congrega para a movimentação e uma sensação de alegria e contágio
corporal.
474
De modo geral a suça, enquanto canção, é construída com duas partes distintas:
uma mais lenta, cheia de malemolência e narrativas do cotidiano e uma outra
progressiva, de certa forma violenta, que convida o folião e a “dançadeira” a acelerar os
passos e a entrarem em transe. A metáfora de que “O tambor vai-arriba” varia nos
batuques das suças e certamente agrega batidas das músicas africanas e afro-brasileiras
tocadas nos terreiros e nas variações dos sons de negros em todo Brasil. A batida
congrega um misto de tambor afro e o som do galope musicado, que é sertanejo (e que
encontra sua expressão autoconsciente na curraleira).
Os instrumentos, a caixa (tambor), o pandeiro, a buraca de couro, a viola e a
sanfona também se fundem nas heranças portuguesas, com renovação sertaneja que,
agregadas à batida afro ganham novas nuances.
Mais especificamente, em se tratando da dança, tem-se duas variações: 1) as
mulheres mais velhas, que dançam com os pés mais próximos do chão, sem levantarem
muito a saia, com gestos e trejeitos que suscitam muito mais um sensualismo; 2) as
mulheres mais novas que pulam mais, fazem menção de levantar as saias e as blusas e
tiram mais os pés do chão ao dobrarem os joelhos e jogarem os pés pra frente.
O homem que vem da rua, que passou pela peregrinação e um deslocamento que
é geográfico, físico e espiritual (no sentido filosófico do termo) e que deixa seu corpo
experimentar a suça, reconhece algo profundamente complexo. O dançante é o corpo
mesmo do espetáculo vivo: os músculos, o coração e o sopro que dão vida a este rito
social, estranho e real, possibilita um jogo dramático em que reconhecemos nossa
existência, nossa diferença e as marcas identitárias (LORELLE, 1992).
Essa dança acontece ao pé do mastro do Divino Espírito Santo. Assim que a
ladainha termina, em que todos estão circunspectos de devoção e fé, a música quebra a
introspecção do catolicismo rústico e o povo sai girando feito redemunho: o pacto com
Deus banha-se de riso e alegria. No período da seca, quando acontecem os principais
festejos na comunidade, cada brincante se confunde com os redemunhos de terra
vermelha que se levantam pelo cerrado. O colorido das saias, o movimento dos corpos,
as vozes ancestrais percorrem o espaço imaginário da alegria, do transe e da
continuação (da tradição). A suça, canto-dança de negros, decreta definitivamente a
ruptura com o sério e o trabalho com a terra e revelam trejeitos corporais transferidos de
geração em geração.
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No pisado, nas palmas, no movimento giratório e nas vozes revelam-se técnicas
corporais apuradas. O prestígio por estar ali, no centro da performance, faz com que os
corpos se ordenem e o elemento social transpareça. Envolvendo elementos culturais e
subjetivos, os seres incorporam tons e ritmos do batuque e reafirmam o desejo de
participar da performance.
O redemunho de poeira se ergue e se ilumina à luz da fogueira. No alto do
mastro do Divino, a bandeira tremula, em parte por causa do vento, em parte, por causa
do pacto silencioso e alegre do Santo com a festa. Ser e estar fundem-se na dança
enquanto o canto incansável penetra o infinito sereno da madrugada e recorda uma
alegria da festa que vem de longe e que “nunca que apresentou” seu fim...
Bibliografia
BRAGA, Teófilo. O povo português nos seus costumes, crenças e tradições. Lisboa:
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TURNER, Victor. Dramas, campos e metáfora: ação simbólica na sociedade humana.
Niterói, EdUFF, 2008.
476
Sonoridades e performance no contexto ritual: o caso do
candomblé queto, Jorge Luiz Ribeiro de Vasconcelos (IA/UNICAMP)
Doutorando em Música
Resumo: No contexto ritual das religiões afro-brasileiras música, rito e mito se
articulam em uma complexa liturgia na qual uma série de elementos se agregam para
compor performances rituais bastante expressivas.
Partindo de um ponto de observação que enfatiza as percepções das sonoridades,
ou seja, que mais do que musicológico se coloca como musical, observam-se intricadas
e muito imbricadas relações entre sonoridades e movimentos corporais, momentos
rituais, trechos de narrativas míticas e outros elementos desta complexa e estonteante
trama sensorial que é uma Festa de Candomblé.
A proposta desta comunicação é, através da descrição e análise de um momento
ritual bastante específico, propor uma reflexão – e sugerir um apuro do foco perceptivo
– sobre as articulações entre som, movimento, liturgia e mito, que compõem a
expressão sensível das concepções religiosas, vivenciadas como performances, nos seus
sentidos de “finalização de um processo” ou de algo que “completa uma experiência”
(DAWSEY, 2007).
O momento em questão é de um “transe de possessão” (ROUGET, 1986 apud
BARBARA, 2002, p. 107) do orixá Ogum, observado e documentado na casa de
candomblé Ilè Asè Alaketú Omo Oyá Asè Osun, localizada na cidade de São Vicente,
SP, em uma festa pública em homenagem ao orixá em questão.
Compartilhar uma maneira musical de observá-lo e descrevê-lo, buscando
elementos nos estudos da Antropologia da Performance para potencializar esta e futuras
aproximações, é, portanto, a proposta central desta comunicação.
Palavras-chave: Cultura popular, festa, música, performance, ritual.
Música e religião têm uma relação bastante estreita. No candomblé queto essa
relação se expressa de forma muito particular. Sendo uma religião afro-brasileira de
culto a divindades chamadas “orixás”, que se manifestam – entre outras formas –
através do transe de possessão em seus devotos, propiciando o “axé”, seu princípio
477
religioso fundamental, tem a presença da música e das sonoridad

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