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População mapuche:
700 mil a 1 milhão de indivíduos
Territórios:
Argentina e Chile
+
Línguas:
mapugundun e espanhol
ESQUI na montanha
sagrada
Grupos étnicos relacionados:
pehuenche, huilliche e picunche
Bandeira Mapuche
No ano passado, 10 mil pessoas visitaram o
Parque de Neve Batea Mahuida, na Patagônia,
a primeira estação de esqui de um povo
indígena no mundo. Os mapuches argentinos
descobriram o caminho da inovação para
preservar seu território.
Texto e fotos: Heitor e Silvia Reali
A
CENÁRIO MÁGICO: a
1.600 metros de altitute, as ladeiras do
vulcão Batea Mahuida são ideais para
esquiadores principiantes.
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té o final do século passado, os
índios mapuches de Villa Pehuenia, a 310 quilômetros ao norte da
cidade de Neuquén, na Patagônia
argentina, viviam como a maioria
dos povos indígenas latino-americanos:
sofrendo para preservar suas terras e identidade; pressionados pela integração compulsória ao mundo dos brancos; lutando
contra a degradação do ambiente; e às voltas com problemas como alcoolismo, pobreza, urbanização e miscigenação.
Em 1998, o lonko (“chefe” em língua
mapuche, o mapudungun) José Miguel Puel
procurava soluções que pudessem desviar a
comunidade da pobreza sem abrir mão da
sua cultura ancestral. Para Puel, a busca de
um negócio sólido e socialmente responsá-
vel virara uma obsessão, pois queria ver sua
gente longe das calçadas vendendo suvenires baratos. Mas a chance não surgia.
O inesperado foi encontrá-la com a
visita do coronel aposentado da armada
Abel Balda, ex-comandante de missões na
Antártida e criador do Centro de Esqui
de Caviahue, também na Patagônia. Balda
fora à Pehuenia para conhecer o belo cerro
Batea Mahuida, escondido entre bosques
milenares de pinheiros Araucaria araucana, várias crateras de vulcões e lagos azuis
ofuscantes. Além da natureza imponente,
o militar notou imediatamente que a neve
era de ótima qualidade para esquiadores,
mas suas conclusões não passaram disso.
Seu pensamento congelara com o azul dos
lagos Aluminé e Moquehue e as monta-
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nhas dos vulcões Batea Mahuida,
Llanin, Villarica, Quetrupillán,
Llanay e Lonquimay.
O que ninguém imaginava é
que a visita despretensiosa fosse
gerar o Parque de Nieve. Tão logo
soube da presença do coronel na
vila, lonko Puel o procurou para
conversar e solicitar seu apoio, junto ao governo argentino, para um
empreendimento exclusivamente mapuche. Pronto. Com pouca
conversa, no final daquele mesmo dia os dois homens selaram o
compromisso de criar o Parque de
Neve Batea Mahuida.
Acima, a vista do lago Aluminé. Abaixo, a pista de esqui em setembro de 2014.
Na cosmovisão
mapuche, a neve
e a montanha
são entidades
tão vivas quanto
as plantas e os
animais.
Defesa do território
O direito ao território é a précondição para a sobrevivência física e cultural de uma população
tradicional. “Sem a terra, o indígena não é ninguém”, diz Daniel
Puel, o atual administrador do
parque mapuche. “Sem a terra o
povo perde-se a si mesmo e talvez
seja melhor morrer”, ressalta.
Daniel era apenas um menino em 1998, mas participou das
assembleias da comunidade em
que o projeto foi discutido – mais
de dez. No início, os mais velhos
eram contra, porque na cosmovisão mapuche a montanha e a neve
são entidades vivas, portanto sagradas, tanto quanto os
animais e as árvores. “Como
vão brincar com a neve”?, era
a pergunta recorrente. Mas
,assim que o consenso foi alcançado, todos se engajaram
no projeto.
Enquanto Balda se empenhava em conseguir a posse
das terras do cerro para os
mapuches, e também em levantar a soma necessária para
o empreendimento, o lonko
Puel mobilizava as 80 famílias das duas comunidades
indígenas da região para elaborar o projeto do parque:
como utilizá-lo, como aplicar os recursos, como profissionalizar empregados e como distribuir os lucros.
Com tudo decidido, o chefe e os anciãos foram ao
local escolhido para a construção das instalações e realizaram um ritual: pediram permissão ao cerro para
instalar a estação de esqui, pois desejavam realizar
mais coisas na vida, além de criar ovelhas e vacas.
No ano 2000, a Província de Neuquén reconheceu
a soberania mapuche sobre as terras do cerro e destinou subsídios para o empreendimento. A virada do
século foi duplamente comemorado pela comunidade.
Em junho de 2002 o Parque de Nieve foi inaugurado
numa área de 14.500 hectares, localizada a oito quilômetros da Villa Pehuenia, a 1.600 metros de altitude,
sob minuciosa proteção ambiental. Atualmente, a estação dispõe de hotel, restaurante, loja de artesanato,
posto de saúde (inclusive ambulância) e toda a infraestrutura necessária para esquiadores, pistas de esqui,
teleférico, motos de neve e instrutores indígenas.
Daniel Puel não tem dúvida de que o empreendimento é um sucesso, pois, além de proporcionar 70
empregos à comunidade, o público vem crescendo
ano após ano. Na última temporada de inverno, de
junho a outubro de 2014, dez mil pessoas passaram
pelo parque, o que possibilitou o pagamento dos salários, investimentos em manutenção, verbas para famílias carentes e subsídios para os jovens que desejam
estudar em outras cidades argentinas.
Um restaurante com culinária mapuche – na qual
Abaixo, o centro de Villa Pehuenia. À direita, instrutores de esqui mapuches em motos de neve.
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Paraguai
viagem
Brasil
Uruguai
Chile
Argentina
Buenos Aires
Santiago
se destacam pratos de carne
com pinhões de auracária – e
uma loja de artesanato indígena complementam a renda
da instituição e atraem turistas. A estação dispõe de quatro pistas e quatro teleféricos.
A inclinação da montanha
é ideal para os esquiadores
principiantes e famílias, mas
fora das pistas há ladeiras
ideais para o esporte radical.
Alberto Puel, o chef de
cozinha do parque, explica que o empreendimento
é uma exceção no contexto de uma Argentina que vive um momento
econômico desfavorável. “Há comunidades aqui em Neuquén que estão
vivendo situações difíceis. Eles não têm o que temos: estabilidade. Não
podem se fortalecer nem se projetar. Nós também passamos por isso
antes do ano 2000 e sabemos o quanto é difícil. O nosso projeto fortaleceu a comunidade.”
“O Parque de Neve não significa só independência financeira”, ressalta Daniel Puel. “Incorporamos o turismo sustentável como fonte de
renda e motor do desenvolvimento de Pehuenia, que vivia só dos esportes de verão nos lagos.” Antes, o movimento acabava no outono e a vila
quase fechava de abril a outubro. Atualmente, virou destino turístico
durante todo o ano. Para o administrador, o Parque Batea Mahuida não
oferece apenas neve, esqui, cavalgadas e passeios de motos. “Este projeto
é único no mundo. Estamos no Mapu, o país mapuche, dos vulcões mágicos e das florestas milenares.”
Mas todos têm consciência de que o empreendimento só virou realidade porque houve consenso e esforço compartilhado entre a comunidade, o coronel Balda e o governo de Neuquén. “Todo o ano, em fevereiro,
fazemos uma cerimônia privada para pedir permissão à montanha para
esquiar nas ladeiras. Tudo o que você vê está vivo, neve, montanha, árvores, pássaros, lagos, vulcões, todos são parceiros para os mapuches.”
Villa Pehuenia
Neuquén
Temos o
que outras
comunidades
indígenas
argentinas
não têm:
estabilidade.
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Um povo
em dois
países
Território mapuche ancestral
Território mapuche atual
Família m
apuche e
m 1908,
na Patag
ônia arge
ntina.
orgulho e persistência
Pegue o mapa da América do Sul e
Entretanto, após a independência dos
Para ele, não há grande diferença entre
observe a área compreendida entre os
dois países, os acordos deixaram de ser
mapuches argentinos ou chilenos. No Chile,
paralelos 36 e 46. Ali, no centro-sul do
respeitados por ambos os governos,
calcula-se que existam 500 mil mapuches,
Chile e da Argentina viviam, até a chegada
que, a partir da metade do século
especialmente na região administrativa
dos espanhóis, 2 milhões de mapuches.
XIX, empreenderam a “Conquista da
de Araucanía. Na Argentina, o censo indica
Em língua mapudungun, mapu quer
Patagônia”, no Chile, e a “Campanha do
pouco mais de 200 mil “Isso, sem contar
dizer “terra” e che, “gente”. Originários da
Deserto”, na Argentina.
os descendentes que se miscigenaram.
região de Neuquén, os antigos mapuches
Acima, à esquerda, Daniel Puel,
administrador do parque. Ao lado, a loja
de artesanato indígena. Abaixo, avisos
de preservação ambiental dentro da
área protegida e o concorrido “ravióli de
ovelha com pinhões de araucária”, muito
apreciado pelos turistas.
Durante séculos os mapuches
Aí poderíamos passar, somando os dois
expandiram seu território além dos Andes
conseguiram desarticular as ações militares
até o Pacífico, trocaram hábitos nômades
desencadeadas pelos espanhóis, mas
pelo sedentarismo e, após o contato
não tiveram sucesso contra os militares
otimista, o mesmo não acontece em
com os espanhóis (que os chamavam de
chilenos e argentinos. Várias aldeias foram
outras áreas mapuches, em geral muito
araucanos), se dedicaram à agricultura e
dizimadas. O massacre na Argentina foi
pobres. Um sinal amarelo começou
ao pastoreio. Nas migrações, conquistaram
intenso. A vitória final sobre os mapuches
a piscar recentemente na Patagônia
ou deslocaram para longe outros povos
rendeu ao comandante das tropas, o
argentina, quando mapuches se
nativos como os picunches e os huilliches.
general Julio Roca, a presidência da
rebelaram, em novembro, contra a
nação, em 1880. Derrotados, os índios
instalação de torres petrolíferas em suas
território, os mapuches lutaram 300 anos
foram reduzidos a “reduções” no Chile e a
terras. No Chile, também há resistência
contra a coroa espanhola. Em 1641, antes
“reservas” na Argentina.
militante contra a construção de torres
Obstinados em defender seu vasto
da independência do Chile e da Argentina,
Daniel Puel diz que seu povo não
países, de 1 milhão”, contabiliza Daniel.
Se em Villa Pehuenia o futuro é
de alta tensão em território indígena. A
os espanhóis reconheceram a nação
guarda rancor, só pesar. “Mudamos o olhar.
afirmação da vontade de viver diferente
mapuche por meio de vários tratados.
Não queremos ficar presos ao passado.”
dos mapuches continua.
foto: reprodução
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