O Dragão do Mar e o Dragão da Terra

Transcrição

O Dragão do Mar e o Dragão da Terra
O Dragão do Mar e o Dragão da Terra
O Dilúvio Mapuche.
A tradição cantada. A impotência perante forças que não compreendemos. Destruição e reconstrução.
Sacrifício do mais valioso pelo coletivo.
Por Áureo Gaspar, Moty Shdaior e Roque Saenz. Julho de 2012.
Conta a lenda que certo dia as águas do mar mudaram de cor e o vento se
agitou de forma horrenda. Os mapuches a princípio não entenderam o que
acontecia, mas logo descobriram que era Kai-Kai, a mal humorada serpente
do mar, que despertara de seu longo sono e emergia do inframundo
marinho, causando grandes tormentas. Furiosa ao acordar, a grande
serpente queria destruir a tudo e a todos.
As machis, conselheiras e protetoras espirituais do povo mapuche,
acorreram de todos os cantos e se reuniram no topo do
mais alto vulcão para pedir auxílio a Tren-Tren, a
imponente serpente que dominava todas as terras. Ao
ouvir seus clamores e sentir seu sofrimento, Tren-Tren
ergueu-se das profundezas andinas, causando a erupção do vulcão. A serpente
marinha se enfureceu ainda mais com esta demonstração de poder e revidou com imenso
maremoto. Tren-Tren respondeu fazendo crescer as montanhas, e nelas os mapuches se
abrigaram das águas revoltas. Aqueles que não conseguiram alcançar as montanhas foram
engolidos pelas águas e transformados em peixes, baleias, mariscos e lobos do mar.
O titânico embate das poderosas serpentes continuou noite afora, mas
estas se equivaliam, e não despontava vencedor. Diante do impasse, as
machis voltaram a consultar Tren-Tren, perguntando como podiam
aplacar a ira de Kai-Kai. Tren-Tren disse que a única forma de acalmá-la
era sacrificando o que de mais valioso tivessem.
As machis levaram esta informação
ao povo mapuche. Houve grande tristeza e transtorno, as
mulheres choraram e os guerreiros quebraram suas lanças,
em sinal de dor. Mas sabiam que o conflito era insustentável
e, se tudo continuasse como estava, a nação toda pereceria.
Neste impasse uma machi, muito triste, mas de olhar resoluto, tomou sua netinha,
a quem considerava mais preciosa que sua própria vida, e em plena tempestade
galgou com ela nos braços o penhasco de frente ao mar. Estancou na borda do
abismo e lançou o bebê às águas turbulentas. Kai-Kai se comoveu com tamanho
sacrifício e acolheu o bebê, acalmando-se e levando a criança para as profundezas
marinhas. As águas recuaram, e a tempestade passou. Os mapuches foram até Tren-Tren para
agradecer-lhe, por tê-los salvo, e até hoje rendem homenagem à grande serpente protetora. Foi
este o primeiro Nguillatun, a primeira prece ritual que buscava o equilíbrio das forças da vida e
construção (Ngnechen) e da destruição e morte (Weküfe).
Créditos: todas as figuras foram adaptadas do vídeo postado por HANAFAXMOVIE, de San Bernardo, Chile, em http://www.youtube.com/watch?v=G4LYe_OixGM
1
Os Mapuche
Os mapuches são um povo indígena que habita a região centro-sul do Chile e sudoeste da
Argentina. No seu idioma mapudungun, ‘mapuche’ significa ‘gente da terra’. Eles se
autodenominam ‘reche’ (seres humanos verdadeiros). Resistiram bravamente aos conquistadores
espanhóis, lutando por mais de 300 anos, até ter sua autonomia reconhecida. Sua nação e o
território ancestral Wallmapu foram absorvidos
posteriormente, à força,
pelos estados chileno e argentino, que confinaram os
mapuches
em
‘reducciones’ e ‘reservas’. Estima-se que hoje existam
pouco mais de 600 mil
mapuches no Chile e 200 mil na Argentina, muitos
vivendo
de
forma
quatro milhões.
urbanizada, e seus descendentes mestiços superam
O povo Mapuche se organiza em quatro nações,
assim
como
no
Tawantisuyu ou Quatro Suyus dos povos andinos: Qollasuyu, Antisuyu, Contisuyu e Chinchasuyu:
Os Pewenche (Leste), de “pewen” que significa araucária, árvore ancestral que dá o “piñón”
(pinhão), comida que lhes permitiu sobreviver nos períodos de inverno nas montanhas (durante o
dilúvio), dando força "newen" aos homens e mulheres.
Os Picunche (Norte), mapuches do norte tinham uma enorme responsabilidade de conexão e
comunicação com os povos andinos como os quechua, os aymara e outros.
Os Lafquenche (Oeste), gente dos lagos (lafken), e das historias sobre estes lagos, assim como a
conexão com o mar.
Os Huilliche (Sul): A historia de Kai-Kai e Tren-Tren Vilu, que contaremos aqui, é uma historia dos
huilliches, especialmente de uma ilha mágica chamada Chiloé. Há aqui uma relação com a lenda de
Wiracocha, ou indo um pouco mais ao norte, nações Maia e Asteca, com a Serpente Emplumada,
e relação com a historia de Thunderbird (dragão ou pássaro trovão) e Whale (baleia ou urca) dos
povos indígenas do Canadá (Haida).
Vivendo às margens do Oceano Pacífico e na cordilheira dos Andes, região famosa pela atividade
sísmica e tectônica, os elementos naturais ligados a terremotos e maremotos fazem parte íntima
da cultura e das tradições mapuches.
Créditos: todas as figuras foram adaptadas do vídeo postado por HANAFAXMOVIE, de San Bernardo, Chile, em http://www.youtube.com/watch?v=G4LYe_OixGM
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A narrativa do embate entre os dois poderosos dragões, Kai-Kai Vilu, a serpente da água, e TrenTren Vilu, a serpente da terra, é parte de uma busca para trazermos à tona lendas e contos de
diversas tradições, que mostrem a relação entre humanos e demais animais e elementos da
natureza, como as serpentes e águas, ou mesmo mitológicos como os dragões, em seu devir na
tapeçaria da vida.
A versão do dilúvio Mapuche fala dos momentos difíceis e das terríveis decisões e sacrifícios que
se sucederam durante eventos dantescos, até que os elementos naturais se acalmassem. Também
explica a formação da topografia local como fruto da interação de imensas forças, representadas
por gigantescas cobras, o que mostra alguns pontos em comum e até certo ponto remente ao
mito do Waugyl australiano, cujo serpentear criou montanhas, vales, rios e lagos.
Esta crônica é uma iniciativa colaborativa e voluntária que endossa a ética de Crescimento Pessoal,
a Formação de Comunidades e o Serviço à Terra, e inspirou-se no excelente vídeo “El Diluvio
Mapuche”, do qual também foram adaptadas as figuras.
Para saber mais sobre os mapuche, sua historia e sua luta por se manterem íntegros como nação e cultura:
http://www.mapuche-nation.org
http://pt.wikipedia.org/wiki/Mapuche
http://pt.scribd.com/doc/12694026/El-Diluvio-Mapuche
http://pt.wikipedia.org/wiki/Machi
Para conhecer sobre Dragon Dreaming, visite:
Dragon Dreaming Brasil – http://www.dragondreamingbr.org
Dragon Dreaming Brasil no Facebook – https://www.facebook.com/groups/107192366047436/
Dragon Dreaming International – http://www.dragondreaming.org/en
Fichas técnicas em inglês – http://dragondreaming.jimdo.com/sources-1/john-croft-fact-sheets/
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