AULA PARTICULAR DE TECLADO - Início

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AULA PARTICULAR DE TECLADO - Início
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A AULA PARTICULAR DE TECLADO: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA
SOBRE ENSINAR/APRENDER MÚSICA
Ruth de Sousa Ferreira Silva
UnB - Tutora a Distância
[email protected]
Resumo
Este relato de experiência tem o objetivo de descrever o processo de aprendizagem
musical de uma aluna, que iniciou seus estudos após a aposentadoria. As decisões
pedagógico-musicais sobre ensino/aprendizagem são apoiadas em Bozetto (2000),
Corrêa (2008), Souza (2004; 2009; 2012), Marques (2011), Mata (2014), que estudam
as formas de transmissão e apropriação em música em diferentes momentos. São
descritos alguns processos de aprendizados que incluem a importância das dúvidas nas
decisões por conteúdos musicais; mudanças no repertório derivadas das necessidades e
da realidade da aluna; os registros em vídeo, entendidas como formas de compartilhar e
memorizar, bem como as maneiras de a família participar de suas aprendizagens. As
reflexões neste relato levam o repensar a construção da aula, ampliam a ideia de
conteúdos musicais, colaboram para a compreensão de ensino/aprendizagem musical.
Palavras-chave: Ensinar/aprender música. Tecnologias. Aulas de teclado.
1 Introdução
Este relato de experiência tem objetiva descrever as formas como uma aluna,
que se iniciou no estudo da música após sua aposentadoria, vem aprendendo a tocar o
teclado em aulas particulares na cidade de Uberlândia-MG.
Com a aposentadoria muitas pessoas buscam desenvolver novas atividades, ou
até mesmo realizar antigos desejos de estudar (MARQUES, 2011). Conforme a autora,
aprendizagem é um processo que pode acontecer por toda a vida, e esta vontade de
realizar o sonho de “tocar um instrumento” pode acontecer “depois”. A aluna Angeluce,
ao explicar o motivo pelo qual começou a estudar teclado, afirmou que depois de
aposentada teve mais tempo, podendo realizar o seu antigo projeto.
Pesquisas sobre aprendizagens musicais de pessoas na idade adulta têm sido
desenvolvidas: Keback (2009) pesquisou sobre a aprendizagem de adultos em
ambientes coletivos; Cirino (2013) refletiu sobre as preferências musicais de adultos
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acima de 50 anos e suas trajetórias; Ribas (2006) se concentra na questão geracional e
na ideia da “coaprendizagem”, que se estabelece entre pessoas de distintas idades.
Pesquisas com estas temáticas despertam indagações, dentre elas: Quais são os
recursos pedagógico-musicais para ensinar/aprender música “neste momento da vida”?
O que se aprende e como se ensina?
Alguns autores tem pesquisado à partir das teorias do cotidiano sobre maneiras de
ensinar/aprender músicas: Bozetto (2000, p. 115), que vê a importância de estarmos
“atualizados tanto em relação a livros e materiais musicais como outras formas de
expressão do cotidiano midiático”; Corrêa (2008, p. 26), que estuda a questão da
“autoaprendizagem”, e “o tirar músicas”; e Souza (2004; 2009) quando lança os
desafios para o ensino de música na atualidade e reflete sobre a aprendizagem musical
como uma prática social (SOUZA, 2004).
Neste aspecto, vale considerar que pesquisadores tem se debruçado em conhecer
sobre aprendizagens musicais após a aposentadoria. Marques (2011, p. 21) aponta a
importância de se pensar “o que é aprender música nesta fase” e Mata (2014, p. 32)
estuda como as experiências musicais são vividas e compartilhadas “com a
aposentadoria” e aponta o “caráter prazeroso, livre das obrigações das instituições de
ensino”.
Apresento a seguir, descrições sobre o processo dos dois primeiros anos de
aprendizagem
musical
de
Angeluce,
e
decisões
pedagógico-musicais
que
aconteceram/acontecem nas aulas.
2 Descrições das aulas
As aulas de Angeluce iniciaram em agosto de 2012, com encontros semanais de
aproximadamente uma hora de duração. As suas primeiras perguntas foram: “Quanto
tempo vou precisar para tocar uma música?”, “Eu realmente posso aprender?”.
Com a preocupação de apresentar o teclado de forma que ela pudesse ter o
conhecimento sobre o instrumento passo a passo, iniciei com o reconhecimento de cada
dedo, em cada tecla, sem um registro escrito. Depois de aprender as notas, fomos
trabalhando pequenas cirandas e até mesmo pequenos cânticos evangélicos, utilizando
os textos das músicas.
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Assim, criamos um repertório de canções. Depois de tocar estas melodias, sem
saber o nome das notas na pauta, mas desenvolvendo a parte auditiva, iniciamos
anotações escritas sobre os sons que estavam sendo tocados. Juntamente a esses
exercícios foi introduzido um trabalho harmônico: primeiro com duas notas, depois, os
acordes iniciais com as suas inversões.
Essas atividades melódicas, utilizando as escalas e os acordes, levaram a
descobertas sobre o teclado e ao conhecimento dos dispositivos do seu instrumento: o
metrônomo (tempo), os acompanhamentos (style) e as possibilidades de diferentes
timbres (voices). A leitura da partitura foi algo que ela demonstrou interesse, e
aconteceu depois de ela ter aprendido as primeiras músicas, por considerar um estágio
avançado no conhecimento musical.
2.1 O espaço da aula “lugar não fixo”
As aulas de teclado acontecem em diferentes espaços da casa. Essa característica
de realizar as aulas em lugares não fixos deve-se a questões ligadas à aluna, por
exemplo: reforma do imóvel; necessidade de maior privacidade e concentração. Nem
todas as aulas foram para “tocar” ou aprender música. Muitas vezes, paramos para
conversar sobre assuntos diversos.
2.2 O papel das “dúvidas” na escolha dos conteúdos musicais
Nos momentos de conversas que acontecia antes e durante as aulas, Angeluce
expunha suas dúvidas que vivenciava em seu estudo semanal: “Como eu toco notas
juntas?”, “Qual o dedilhado para tocar esta parte?”, “Qual o nome deste acorde?”
“Como posso tocar esta música?”. Na intenção de mostrar um “caminho” e respostas às
suas perguntas, é que os conteúdos surgiram. Nesses casos, quando por iniciativa
própria, estudava uma música nova, e a levava para a aula, já colocava quais eram as
suas dificuldades. Geralmente, as dúvidas eram esclarecidas via Internet, por meio de
tutoriais e vídeos. Nas aulas, a partir de suas práticas que algumas vezes não
‘funcionavam’, Angeluce expunha suas dificuldades e questionamentos, e assim
surgiam o detalhamento sobre conteúdos musicais.
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2.3 A escolha dos métodos para a aula de teclado
No desenvolver das aulas, com as dúvidas que foram surgindo, entendi que seria
necessário mudar a forma de trabalhar a mesma música. Foi quando, aos poucos, adotei
distintos métodos com a finalidade de buscar diferentes formas de trabalhar os
conteúdos. Entendi que aprender o mesmo conteúdo em dessemelhantes formas de
escrita, com informações e atividades dispostas em outra ordem, ajudaria Angeluce a
compreender e se desenvolver mais no instrumento. Alguns métodos eram de
introdução ao teclado, outros de leitura de partitura, de exercícios de dedos, de escalas,
de apostilas de cânticos da igreja, exercícios que visavam o estudo de arpejos, métodos
com e sem os nomes das notas escritas, de músicas infantis, de MPB, dentre outros.
Quando começou o trabalho com acordes, também buscamos na Internet e
encontramos outras formas de aprendê-los, até mesmo a tabela do manual do teclado foi
adotada. Conforme ia aprendendo, aplicava tais acordes nas pequenas melodias e
cânticos da igreja, fossem eles com três ou quatro sons. Houve momentos que, quando
chegava a tocar algumas músicas, ela comentava que já conhecia aquele acorde, que
havia tocado-o anteriormente.
A aluna foi adquirindo os métodos aos poucos. À medida que eu solicitava, ela
encontrava-os na internet ou em livrarias. Algumas músicas avulsas, que aspirava tocar
um dia, ela conseguiu download. Em um dos casos, encaminhei o endereço de um site
que vende um material didático específico para alunos adultos, iniciantes ao teclado. E
Angeluce, por iniciativa própria, fez a escolha e aquisição de vários métodos.
Mesmo adotando métodos diversificados, a aula com esta aluna era
impulsionada também por outros conteúdos: músicas que ela gostaria de aprender,
músicas da igreja, e músicas que alguns amigos e parentes pediam para que ela
aprendesse. Desse modo, os métodos foram apenas uma parte do que foi utilizado em
aula para guia de estudo.
Com isso, entre as minhas proposições enquanto professora e as escolhas da
aluna, construímos um programa individual, com propriedade, durante as aulas.
2.4 Formas de aprender o teclado
A aprendizagem do teclado com métodos é algo que faz parte da aula de
Angeluce, contudo, demonstra que não é a única forma de aprender. Nos primeiros
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meses, não foram fundamentais na aprendizagem, e depois que iniciamos com métodos
de introdução ao instrumento, entendi que precisávamos de mais alguns “ingredientes”
para tornar o aprendizado mais interessante e próximo da realidade de Angeluce.
As conversas sobre música, ou a respeito do interesse em estudar, ajudam na
escolha de o quê ensinar/aprender primeiro. Na maioria das vezes, as músicas que se
gostaria de aprender não estão nos métodos. Esse foi o caso de Angeluce.
Existe grande preocupação de ficar se perguntando: O que poderia ser feito para
aprender mais? E a busca por coisas novas. Assim, o que estudar primeiro, segue um
percurso também, prático, de tornar possível a execução de suas escolhas. A sua rotina
de estudo demonstra que ela aprende também “sozinha”. Ela procura realizar todas as
atividades propostas rigorosamente, mas ainda busca outras formas de aprender.
Muitas aprendizagens aconteceram por meio do computador. Angeluce fez
pesquisas sobre assuntos teóricos e formas de tocar, bem como utilizou partituras e/ou
cifras das músicas de seu interesse para aprender (OLIVEIRA, 2008). De tal modo, que
ao começar a aprendizagem de uma música, os sons já lhe eram familiares.
2.5 Registrando na pauta a música
Aos poucos, além de trabalhar os conteúdos, incentivando a memorização,
trabalhamos a escrita musical na pauta. Em uma das aulas, Angeluce trouxe uma
melodia, escrita a seu modo na pauta, dizendo que havia “tirado” a música, e perguntou
se estava correto. Naquela sua tentativa de escrever as notas, acrescentamos algumas
informações, tocamos a música e acrescentamos a parte da mão esquerda. Como
Angeluce demonstrou interesse em saber a maneira de escrever uma partitura, iniciamos
um estudo sobre a escrita musical: organização do conhecimento teórico até o registro
da música. Nesse aspecto, não era possível compreender ainda o que a aluna sabia sobre
teoria e percepção musical, então sugeri que baixasse o editor de partituras Finale. Tal
editor auxiliaria na prática e organização de seus conhecimentos teóricos.
O processo possibilitou o exercício da escrita musical e a revisão por meio do
Play. Nessa experiência nova e desafiadora, a aluna detectou auditivamente quando
escreveu correto e em que compasso e “o que” escreveu incorretamente.
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2.6 A memorização das músicas por meio de registros em vídeos
A memorização das pequenas melodias desde as primeiras aulas foi algo
importante no processo de aprendizagem musical. Quando começávamos um novo
método, enfatizava não apenas o aprender a ler, mas também desenvolver uma memória
auditiva das músicas. Angeluce afirmou que com a memorização, se sentia mais
confiante olhando nas mãos.
Uma atividade inicial foi a de escolher canções e registrá-las em sua câmera,
cada uma com mais ou menos dezesseis compassos, com repetições, que ela tocou
décor. Pensando ser impossível, Angeluce expunha sua dificuldade em decorar. No
decorrer de dois anos, essa impossibilidade desapareceu e a aluna manteve, por decisão
própria, a memorização como forma de concluir um repertório. No total foram dezoito
músicas no primeiro vídeo, e vários outros vídeos com uma ou duas músicas. Com isso,
a aluna guarda suas músicas e organiza em registros visuais e auditivos o repertório já
estudado.
2.7 Compartilhar vídeos: uma forma de ensinar/aprender
No início, algo que marcou o aprendizado foi o interesse de compartilhar o que
estava sendo aprendido. À medida que memorizava as melodias, logo nos primeiros
meses de estudo, ela postou no facebook um pequeno vídeo. Nesse vídeo, ela tocou o
tema da Nona Sinfonia de Beethoven, melodia e acorde acompanhados. Sua prima,
assistiu, gostou, elogiou e compartilhou. O resultado foi uma força motivacional para a
sequência dos estudos de Angeluce.
Para as aulas, o registro em vídeos foi algo que fez parte do aprendizado. A cada
música aprendida, Angeluce filmava o resultado. Programávamos várias filmagens,
assistíamos e assim acompanhávamos o processo do aprendizado, possibilitou à aluna
maior tranquilidade em comentar sobre sua forma de tocar.
Quando não há tempo suficiente na aula, ou por algum motivo, não assistimos ao
vídeo, ela o envia pelo Facebook de maneira privada. Esta forma de compartilhar
possibilitou ver a aula e o seu desenvolvimento de maneira mais reflexiva, isto é, deixo
de ser somente a professora e passo a ser um apreciador da música enviada.
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2.8 Aprendizagens envolvendo a família
O processo de aprendizagem que acontece no espaço familiar é permeado de
características e singularidades decorrentes da relação social já estabelecida. Enquanto
estudava, seus filhos e esposo ocupavam o mesmo espaço. Seu caçula atuou como
incentivador, assistindo e comentando seu desempenho, opinando a seu modo, até
mesmo sobre o ritmo ou o prazer de ouvir. Muitas vezes contribuiu nas filmagens,
repetições e cenário. Essa presença familiar colaborou para o seu aprendizado e
confiança.
A família acompanhou o processo do aprendizado e influenciou para que
refletisse sobre a forma de ‘tocar’ o teclado. Por serem as aulas em sua casa, e por
estudar assiduamente, comentavam: “está bonito”, “está melhorando”, “está lento
demais”, “esta música é muito triste”, e até mesmo de maneira brincalhona, “está
faltando a Corujinha! Você ainda não tocou a Corujinha!”
5 Considerações finais
Este relato de experiência descreveu os processos de aprendizagem musical de
uma aluna, que iniciou seus estudos ao teclado após a aposentadoria. Foram pontuadas
temáticas que envolvem a construção da aula, a ideia de aprendizagem e diferentes
formas de aprender, valorizando a relação com a música que se cria no processo.
Nessas descrições, houve a preocupação em relatar sobre a importância de
tecnologias e mídias (SOUZA, 2012), e como estas podem fazer parte de uma aula de
música. Este relato de experiência pode contribuir para a discussão sobre a utilização de
novas mídias, a fim de despertar outras maneiras de aprender música, especialmente
pessoas que começam a aprender depois de se aposentarem.
Referências
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SOUZA, Jusamara (Org.). Música, cotidiano e educação. Porto Alegre: PPG
Música/UFRGS, 2000, p. 107-117.
CIRINO, Andréa Cristina. Musicalização de adultos: gosto musical se discute. In:
Congresso da Associação de Pesquisa e Pós-Graduação em Música, 23, 2013, Natal.
Anais... Natal: ANPPOM, 2013.
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CORRÊA, Marcos Kröning. Discutindo a auto-aprendizagem musical, 2008. In:
SOUZA, Jusamara (org.). Aprender e ensinar música no cotidiano. Porto Alegre:
Sulina, 2008.
KEBACH, Patrícia Fernanda Carmem. A aprendizagem musical de adultos em
ambientes coletivos. In: Revista da ABEM, Porto Alegre, v. 22, 77-86, set. 2009.
MARQUES, Jaqueline Soares. “Até hoje aquilo que eu aprendi eu não esqueci”:
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MATA, Hosana Rodrigues Ferreira da. Ter tempo para aprender música: experiências
vividas e compartilhadas por aposentados. Dissertação (Mestrado em Artes), 136 f.
Universidade Federal de Uberlândia, 2014.
OLIVEIRA, Fernanda de Assis. A inserção do Youtube na aula de piano: um relato de
experiência. XVII Encontro Nacional da ABEM. Diversidade Musical e Compromisso
Social: o papel da educação musical. Anais... São Paulo, 08 a 11 de outubro de 2008.
RIBAS. Guiomar de Carvalho. Música na educação de jovens e adultos: um estudo
sobre práticas musicais entre gerações. Tese (Doutorado em Música), Curso de PósGraduação em Música, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006.
SOUZA, Jusamara. Educação musical e práticas sociais. Revista ABEM. Porto Alegre,
v. 10, 7-11, mar. 2004.
SOUZA, Jusamara (Org.) Aprender e ensinar música no cotidiano. Porto Alegre:
Sulina, 2009.
SOUZA, Jusamara; NASCIMENTO, Antônio Dias. Educação, Música e Mídia. In:
PESCE, Lucila; OLIVEIRA, Maria Olivia de Matos (Org.). Educação e cultura
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