Se os olhos são realmente a janela da alma, então

Transcrição

Se os olhos são realmente a janela da alma, então
“Se os olhos são realmente
a janela da alma, então
algumas pessoas deveriam
instalar cortinas.”
ANYA PAMPLEMOUS, em seu livro
Os Enigmas Interiores.
Havia uma menina
chamada Ruby
FAZIA UM REFRESCANTE DIA DE OUTUBRO na Avenida
Cedarwood, e uma menina de dois anos estava em pé sobre uma
banqueta alta, diante de uma enorme janela. Ela observava as
folhas caírem, estudando os padrões que desenhavam ao rodopiar em seus caminhos pelo ar. Seus olhos as acompanharam
até que seu olhar foi pego por uma única folha amarela, quase
do formato de uma mão. Ela a assistiu mergulhar no jardim e
depois levantar voo acima, além da cerca e através da rua. Ela
a assistiu dançar para cima e para baixo com a brisa e depois
bater no para-brisa de um caminhão que passava.
O caminhão estacionou em frente à cinzenta casa revestida
de madeira do velho Sr. Pinkerton. O motorista desceu da cabine, caminhou pelo passeio e bateu na porta. O Sr. Pinkerton
saiu rapidamente para a varanda, e o motorista lhe mostrou um
mapa. Os dois homens se animaram em uma conversa.
Exatamente um minuto depois, uma mulher elegante dobrou a esquina carregando uma grande cesta verde de piquenique. Com uma olhadela para a casa e um discreto consentimento do motorista, a mulher desceu de seus saltos, os recolheu
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e guardou, depois escalou agilmente a cerca do Sr. Pinkerton.
Ele, que estava ocupado analisando o mapa, não notou nada; a
criança viu tudo. Quarenta e cinco segundos se passaram e a
mulher reapareceu: estava carregando a mesma cesta, mas ela
parecia muito mais pesada do que antes, e seu conteúdo parecia
estar se mexendo.
A menininha tentou chamar a atenção dos pais, mas como
seu uso da língua ainda era limitado, não conseguiu fazer com
que a compreendessem. Ela acompanhou quando a mulher enfiou os pés de volta em seus sapatos pretos, caminhou para trás
do caminhão e para fora de vista. Sr. Pinkerton seguiu batendo
papo. A menina pulava para cima e para baixo, apontando para
a janela. Seus pais, sentindo que ela estava ansiosa por uma caminhada, foram vestir seus casacos.
A criança desenhou um caminhão em seu quadro-negro.
Seu pai sorriu e deu uns tapinhas na cabeça dela.
Enquanto isso, o motorista dobrou o mapa, agradeceu ao
Sr. Pinkerton e retornou ao seu veículo – acenando para ele enquanto partia. A folha amarela do formato de uma mão flutuou
para o solo. A mulher, agora sem a cesta de piquenique, seguiu
caminhando. Ela tinha um recente arranhão escarlate em sua
bochecha esquerda.
A criança soletrou a placa do caminhão com seus blocos
alfabéticos.
Sua mãe guardou os blocos na caixa e vestiu-lhe uma touca
de lã vermelha com um pompom no alto, com as luvas correspondentes.
A família deixou a casa e passeou pela Avenida Cedarwood.
Quando eles chegaram à casa cinza revestida de madeira, a
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menininha parou para recolher a folha amarela, e ali, sob a folha, encontrou um pequeno broche de latão gravado com uma
imagem. O que era aquilo?
Um repentino grito abalou a calmaria da Avenida Cedarwood. Um grito que atravessou o coração da criança. Ela agarrou o broche com força e sentiu o alfinete perfurar a palma de
sua mão. Os vizinhos foram para a rua como um enxame, para
encontrar o gentil Sr. Pinkerton curvado de tanto desgosto. A
despeito dos melhores esforços do Esquadrão de Investigações
Criminais de Twinford – uma busca que prosseguiu durante
dezesseis semanas. O premiado cão pequinês do Sr. Pinkerton
nunca mais foi visto.
Foi naquele dia de outubro que a menininha resolveu dispensar a fala de bebê e aperfeiçoar suas habilidades linguísticas. Mais importante do que isso, aquele foi o dia em que ela
decidiu direcionar seus esforços para se tornar uma detetive.
A menininha era Ruby Redfort.
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Uma criança comum
QUANDO RUBY REDFORT TINHA SETE ANOS, venceu o
Campeonato Infantil de Quebra de Código – resolvendo o famoso enigma de Eisenhauser em apenas dezessete dias e quarenta e sete minutos. No ano seguinte, ela participou do Concurso
Infantil de Criação de Código, e chocou os juízes quando perceberam que seu código era inquebrável. No final, ele foi mandado para os professores da Universidade de Harvard, que finalmente conseguiram solucioná-lo, duas semanas depois. Ela
imediatamente recebeu um convite para uma vaga no semestre
seguinte, mas declinou. Não tinha interesse em se tornar, como
ela mesma disse, algum tipo de geek maluco.
Alguns anos depois...
Capítulo 1
Você nunca está
completamente certo do que
pode acontecer a seguir
RUBY REDFORT ESTAVA EMPOLEIRADA sobre uma banqueta alta diante da janela do banheiro, com seus binóculos travados em um caminhão de entrega de bolo que havia permanecido estacionado na Avenida Cedarwood, precisamente por vinte e um minutos. Até então, ninguém havia emergido do caminhão, nem mesmo com um muffin de mirtilo. Ruby gorgolejou
engolindo os últimos restos de seu leite batido com banana, e fez
uma nota no pequeno bloco de anotações amarelo que estava em
seu colo. Ela tinha 622 desses blocos de anotações amarelos; todos, exceto um, estavam empilhados embaixo das tábuas do piso
sob sua cama. Apesar de ela ter iniciado esse hobby nove anos
atrás, ninguém, nem mesmo Clancy, seu melhor amigo, havia
lido uma única linha que ela tenha escrito. Muito do que Ruby
observava parecia muito mundano, mas MESMO O MUNDANO
PODE CONTAR UMA HISTÓRIA {REGRA 16}.
Ruby também mantinha um bloco de notas rosa-choque,
com orelhinhas de cachorro e cheirinho de chiclete de tutti frutti
e era neste que ela listava as “regras de Ruby”. Já eram setenta
e nove, até agora.
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RUBY REDFORT
{REGRA 1}: VOCÊ NUNCA ESTÁ COMPLETAMENTE CERTO DO QUE PODE ACONTECER A SEGUIR. Uma verdade que
ninguém poderia questionar.
Ruby era uma menina franzina, pequena para a sua idade –
à primeira vista, uma criança com uma aparência bem simples. Não havia nada em particular que a destacasse – quer dizer, nada até que você olhasse com um pouco mais de atenção.
Aí você começaria a ver que seus olhos tinham tons de verde
ligeiramente diferentes. Quando eles olhavam para você, de
alguma forma ficava difícil se lembrar do ponto que você estava defendendo. E quando sorria, ela revelava pequenos dentinhos, como os de uma boneca, que de algum jeito tornavam
impossível considerá-la de outra forma que não uma gracinha
de criança. Mas a coisa mais notável sobre Ruby Redfort é que
quando você a conhece sente uma enorme necessidade de que
ela goste de você.
O telefone do banheiro tocou; preguiçosamente, Ruby se esticou e tateou em busca do aparelho.
– Salão de perucas da Brandy, cabeludo hoje, careca
amanhã?
– Oi, Rube – retornou a voz do outro lado da linha; era
Clancy Crew.
– E aí, Clance, o que manda?
– Nada de mais, para dizer a verdade.
– Então, a que devo a honra desta ligação?
– Tédio – bocejou Clancy.
– Então por que você não aparece aqui, seu bobo?
OLHE NOS MEUS OLHOS
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– Bem, eu até iria, sabe, Rube, mas meu pai me quer em
casa. Ele tem um tipo de compromisso diplomático e quer todos
nós sorrindo, sabe o que quero dizer?
O pai de Clancy Crew era um embaixador, e havia sempre
um compromisso social ou outro em andamento. O Embaixador Crew gostava de ter suas crianças na estica e servindo
canapés para provar que grande homem de família ele era,
apesar de que, para falar a verdade, ultimamente ele estava
tão ocupado que nem mesmo se lembrava do aniversário deles.
– Algumas pessoas ficam com toda a diversão – disse Ruby,
arrastando a voz.
– Sim, a minha vida fede – disse Clancy.
– Então, que tal se animar um pouco? Corra para cá, vamos
assistir a alguns desenhos, e ainda dará tempo de você chegar
em casa a tempo de sorrir para a câmera.
– Beleza, Rube, você me convenceu. Vejo você em dez minutos.
Ruby desligou o telefone. Ele ficava em uma prateleira com
dois outros: um em forma de uma concha e o outro disfarçado de barra de sabão. Ela tinha muitos outros em seu quarto.
Ela vinha colecionando telefones desde que tinha cerca de cinco anos, todos com diferentes formas e cores. O telefone em
forma de rosquinha foi o seu primeiro. O mais recente era um
esquilo de desenho vestido com terno. Praticamente todos eram
provenientes de vendas de garagem.
Ela iria dar continuidade à sua vigilância a partir do banheiro quando o intercomunicador tocou – os pais de Ruby os
instalaram inteligentemente em cada um dos andares para evitar ao máximo os gritos.
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RUBY REDFORT
Ela apertou o botão “falar”.
– Olá, como posso ser útil?
– Olá – surgiu uma voz do outro lado do intercomunicador. – Aqui é a Sra. Digby, sua governanta. Posso, por favor,
lembrá-la de que seus pais estarão em casa de volta da Suíça
em duas horas e quinze minutos?
– Eu sei, Sra. Digby. Você me disse isso meia hora atrás.
– Fico feliz que tenha lembrado. Devo também mencionar
que eles podem ter um ataque de desgosto ao verem o estado do
seu quarto.
– É o meu estilo, Sra. Digby: “amontoado”. Está muito na
moda.
– Bem, devo lembrá-la mais uma vez que a equipe de uma
certa revista virá fotografar esta mesma casa amanhã, e se sua
mãe vê-la neste estado “amontoado”, você adotará a moda daquilo que é popularmente conhecido como “casinha de cachorro”.
– Beleza, beleza – suspirou Ruby. – Eu vou cuidar disso.
A casa dos Redfort, chamada de Casa do Bosque devido
às suas características ambientais, foi projetada pelo famoso
arquiteto Arno Fredricksson. Mesmo hoje, cerca de dez anos
depois, ela ainda era considerada de ponta, e era regularmente
apresentada nos jornais de arquitetura.
Ruby voltou ao banheiro, se sentou novamente na banqueta
e continuou a espiar através da janela; o caminhão ainda estava
lá, mas agora havia um guaxinim sentado no teto do veículo. A
porta do banheiro se abriu e um grande cachorro husky entrou
a passos lentos, depois farejou ao redor antes de se acomodar no
piso para mastigar o tapete.
OLHE NOS MEUS OLHOS
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– Entediado, hein? – disse Ruby, deslizando da banqueta.
Ela entrou sorrateiramente em seu quarto e inspecionou os destroços. Não era algo bonito de se ver. Ruby não era tão desorganizada quanto era bagunceira. Ela tinha um monte de pertences, e quando estava ocupada trabalhando com alguma coisa, as
paradas tinham o hábito de rastejar de um lugar para outro, e
era disso que sua mãe não gostava.
– Droga! – murmurou Ruby. Se o pessoal da revista estivesse vindo agora, sua mãe iria simplesmente pirar se visse
aquilo. Ela praticamente já era capaz de ouvir seu pai falando:
“pelo amor da sanidade da sua mãe, faça alguma coisa, Ruby”.
Então ela começou a enfiar os discos de volta em suas capas e
a guardar os livros nas prateleiras. Ruby tinha muitos livros;
eles ficavam organizados do chão até o teto em uma das paredes do quarto.
UMA SEÇÃO DE FICÇÃO:
tanto ingleses quanto títulos estrangeiros.
NÃO FICÇÃO:
sobre qualquer assunto.
GRAPHIC NOVELS E QUADRINHOS:
assuntos predominantes: crime e mistério.
Ruby e a Sra. Digby compartilhavam o entusiasmo por crime e suspense: tanto realidade quanto ficção, nos livros e nas
telas. Frequentemente, elas se acomodavam no sofá com uma
grande tigela de salgadinho de milho roxo e assistiam ao pro18
RUBY REDFORT
grama de perguntas e respostas Qual é o seu Veneno? ou, quando
Ruby era mais nova, a Sra. Digby a colocava para dormir lendo
um de seus suspenses prediletos, A Garra na Janela.
QUEBRA-CABEÇAS:
eram a paixão de Ruby.
Qualquer tipo de quebra-cabeças: palavras-cruzadas, anagramas, charadas e até mesmo os clássicos de montar pecinhas –
qualquer coisa que exigisse encontrar um “padrão”, um “truque” ou uma “chave” para ser solucionado. Isso levou Ruby
para...
CÓDIGOS:
já havia lido inúmeros livros e ensaios sobre o assunto.
De fato, ela era assinante da Código Mestre Mensal, uma
revista chinesa pouco conhecida e não vendida em bancas de
jornal. Os assinantes tinham que comprovar seu talento para
decifrar códigos antes que pudessem receber a permissão para assiná-la. Foi esse periódico que a levou às seguintes leituras:
* De Garp Einholt, A Teoria do Código, sua Dualidade Abstrata e Subtexto (honestamente, Ruby achou esse livro muito
exagerado e nada tedioso).
* De Sherman Tree, o mais vital Quebrar a Minha Mente.
* O resultado de trinta anos de estudo de códigos por Anya
Pamplemous, Os Enigmas Interiores, do qual ela também gostava muito.
OLHE NOS MEUS OLHOS
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Mas seus guias pessoais foram todos escritos há muitos séculos; um, pelo filósofo grego Euclides, com o simples título de
X; o outro, um pequenino livro azul-anil (de origem desconhecida) cheio de todos os tipos de códigos. Ele explicava charadas,
poemas e equações – além de padrões, símbolos e sons. Era a
bíblia do decifrador de códigos.
Tendo lidado com os livros, discos e artigos, Ruby iniciou a tarefa mais complexa: arrumar suas roupas. Todas elas pareciam
estar emaranhadas no chão de seu closet. Foi ali, sob uma pilha
de meias três-quartos listradas, que ela desenterrou seus óculos.
Rapaz, prazer em revê-lo!
Apesar de Ruby ocasionalmente usar lentes de contato, ela
não ligava muito para elas; tinham o hábito de cair exatamente
no momento errado. Se Ruby Redfort tinha um calcanhar de
aquiles, eram os seus olhos; sem algum tipo de suporte visual, a
vida seria apenas um borrão.
Uma nova chamada no intercomunicador.
– Pois não?
– O que você está fazendo?
– Sendo organizada. Por quê?
– Apenas verificando.
– Sra. Digby, você é uma mulher suspeita.
Tendo mandado embora tantas roupas quanto se propôs a
fazer, Ruby agarrou todas as peças restantes e as enfiou tubulação da lavanderia abaixo. Ela estava no clima de jogar toda
sorte de coisas por essa tubulação. Uma vez jogou, inclusive, a
si mesma. Economizou tempo.
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RUBY REDFORT
Julgando haver concluído seu trabalho, o dedo de Ruby
flutuou próximo ao botão “Ligar” da TV, mas sua atenção foi
presa por algo que soou como uma atividade na cozinha. Sete
anos atrás, ela havia construído uma espécie de periscópio ao
contrário, um daqueles observadores de submarinos, para poder ver o que estava ocorrendo na cozinha, no andar de baixo.
Hoje ela viu a Sra. Digby tirar uma fornada fresquinha de biscoitos do forno.
Bom trabalho, Sra. Digby.
Ela colocou cuidadosamente seu bloco de anotações dentro
de um vão no batente da porta e desceu as escadas.
{REGRA 2}: SE VOCÊ QUISER MANTER ALGUMA COISA
EM SEGREDO, NÃO A DEIXE LARGADA POR AÍ.
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