baixo - Avatares Antenados

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baixo - Avatares Antenados
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CORPO E PROCESSO CIVILIZADOR NA CIDADE NARRADA:
o humano e o animal na narrativa latino-americana recente
ANA CRISTINA SIMÕES DE ARAUJO
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2015
CORPO E PROCESSO CIVILIZADOR NA CIDADE NARRADA:
o humano e o animal na narrativa latino-americana recente
Ana Cristina Simões de Araujo
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção
do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos
Literários Neolatinos - Literaturas Hispânicas).
Orientador: Prof. Doutor Ary Pimentel
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2015
CORPO E PROCESSO CIVILIZADOR NA CIDADE NARRADA:
o humano e o animal na narrativa latino-americana recente
Ana Cristina Simões de Araujo
Orientador: Professor Doutor Ary Pimentel
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas
da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos quesitos necessários
para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos –
Literaturas Hispânicas).
Examinada por:
______________________________________________________________________
Prof. Doutor Ary Pimentel (orientador)
______________________________________________________________________
Prof. Doutor Paulo Roberto Tonani do Patrocínio – UFRJ
______________________________________________________________________
Prof. Doutor Raimundo Nonato Gurgel Soares – UFRRJ
______________________________________________________________________
Prof. Doutor Víctor Manuel Ramos Lemus – UFRJ, Suplente
_____________________________________________________________________
Prof. Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira – UFRJ, Suplente
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2015
Araujo, Ana Cristina Simões de.
Corpo e processo civilizador na cidade narrada: o humano e o animal
na narrativa latino-americana recente. / Ana Cristina Simões de Araujo. Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras, 2015.
96 f.: il.; 31 cm.
Orientador: Ary Pimentel
Dissertação (Mestrado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de
Pós-graduação em Letras Neolatinas, 2015.
Referências Bibliográficas: f. 86-96.
1. Cidade. 2. Corpo. 3. Processo civilizatório. 4. A. P. Maia. 5. P. J.
Gutiérrez. I. Pimentel, Ary. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas.
III. Título.
RESUMO
ARAUJO, Ana Cristina Simões de. CORPO E PROCESSO CIVILIZADOR NA CIDADE
NARRADA: o humano e o animal na narrativa latino-americana recente. Rio de Janeiro,
2015. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas) – Faculdade de Leras, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
Em um contexto de fragmentação da cidade narrada, surge, na literatura hispanoamericana das duas últimas décadas, temáticas comumente restringidas ao âmbito do
privado e, portanto, omitidas em espaços externos a ele. Nas narrativas produzidas neste
período, ganham destaque a miséria, a violência e as temáticas relacionadas ao corpo, como
o sexo e a excreção, elementos incômodos que, ao serem narrados de maneira crua e direta,
conferem às narrativas o rótulo de literatura pornográfica. A presente dissertação mostra
que essa crueza na representação do obsceno, compreendido como o que deveria
permanecer fora de cena, é fruto de uma naturalização proveniente de situações-limite e de
relações cara-a-cara que se proliferam em territórios específicos, nos quais, ao se
sobressaírem necessidades imediatas e voltadas para a sobrevivência, rompem-se normas
de condutas pré-estabelecidas que visam ao autocontrole de ações impulsivas e/ou
instintivas. O progressivo apagamento de tais regras leva à erosão do padrão de civilidade e
faz com que os limites entre o público e o privado se diluam e deixem de ser essenciais para
a determinação do que deve ou não ser posto para fora de cena. Além disso, o fato de os
personagens serem descritos a partir de aspectos comuns tanto a animais quanto a homens,
como o sangue, o sexo, a doença e a morte, faz com que se perca a distinção entre os dois
âmbitos. Tais processos foram analisados a partir da comparação entre cenas préselecionadas de narrativas publicadas nas duas últimas décadas, produzidas por três autores
hispano-americanos: Ana Paula Maia (Brasil), Pedro Juan Gutiérrez (Cuba) e Washington
Cucurto (Argentina).
Palavras-chave: Corpo. Fragmentação da cidade. Situação-limite. Padrões de civilidade.
RESUMEN
ARAUJO, Ana Cristina Simões de. CORPO E PROCESSO CIVILIZADOR NA CIDADE
NARRADA: o humano e o animal na narrativa latino-americana recente. Rio de Janeiro,
2015. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas) – Faculdade de Leras, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
En un contexto de fragmentación de la ciudad narrada, emergen, en la literatura
hispanoamericana de las últimas dos décadas, temáticas por lo general restringidas a la
esfera de lo privado y, por tanto, omitidas en espacios externos a él. En las narrativas que se
producen en este período, se destacan la miseria, la violencia y las temáticas relacionadas al
cuerpo, al sexo y a la excreción, elementos incómodos que, cuando se los narra de manera
cruda y directa, se le otorgan a las narrativas el rótulo de literatura pornográfica. En esta
tesis se demuestra que la crudeza en la representación de lo obsceno, entendida como lo que
debería quedarse afuera de la escena, es el resultado de la naturalización de situacioneslímite en territorios específicos, en los que, por sobresalir necesidades inmediatas y
orientadas a la supervivencia, se rompen las reglas y patrones de conductas destinados al
auto-controle de acciones impulsivas y/o instintivas. La eliminación progresiva de estas
normas da lugar a la formación de un nuevo modelo de civilidad, en el que los límites entre
lo público y lo privado se difuminan y ya no es esencial para la determinación de lo que
debe o no ser apartado de la escena. Se analizó este proceso a través de la comparación
entre escenas pre-seleccionadas de narrativas publicadas en las dos últimas décadas,
producidas por tres autores latinoamericanos: Ana Paula Maia (Brasil), Pedro Juan
Gutiérrez (Cuba) y Washington Cucurto (Argentina).
Palabras-clave: Cuerpo. Fragmentación de la ciudad. Situación-límite. Normas de civilidad.
ABSTRACT
ARAUJO, Ana Cristina Simões de. CORPO E PROCESSO CIVILIZADOR NA CIDADE
NARRADA: o humano e o animal na narrativa latino-americana recente. Rio de Janeiro,
2015. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas) – Faculdade de Leras, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
In a context of fragmentation of the narrated city emerges, the Latin American literature of
the last two decades, issues commonly restricted to the private sphere and therefore omitted
it in outdoor spaces. Narratives produced in this period are highlighted by poverty, violence
and themes related to the body, such as sex and excretion, troublesome elements that, when
recounted raw and direct way, give the narrative the label of pornographic literature. This
thesis shows that the representation of rawness obscene, understood as it ought to stay out
of the picture, is the result of naturalization from limit situations in specific territories, in
which, by excelling immediate needs and geared to survival, break up rules pre-established
patterns aimed at self-impulsive and / or instinctive actions. Progressive deletion of these
rules leads to the formation of a new standard of civility, in which the boundaries between
public and private are blurred and no longer essential to the determination of what should
or should not be put out of the picture. This process analyzed from the comparison between
pre-selected scenes’ stories published in the last two decades, produced by three Latin
American authors: Ana Paula Maia (Brazil), Pedro Juan Gutiérrez (Cuba) and Washington
Cucurto (Argentina).
Keywords: Body. Fragmentation of the city. Limit situation. Standards of civility.
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, agradeço a Deus, a quem recorri nos momentos de fraqueza (que
não foram poucos) e a quem agradeci por cada leitura, fichamento e página concluída desta
dissertação.
Quero fazer um agradecimento especial à minha mãe, que se emocionou quando
soube da minha aprovação, que falou e fala a todos com muito orgulho disso e que sempre
fazia a dolorosa pergunta: “E aí? Está escrevendo? Escreveu quantas páginas hoje?”.
Obrigada, mãe, por acreditar na minha capacidade de escrever mais de uma página por dia!
Deixo um especial agradecimento também a meu pai, que começou a me incentivar
aos estudos desde a infância, quando me mostrava sua listagem de livros lidos e me deixava
cheia de inveja e louca para ultrapassar sua marca. Eu chego lá, pai! Obrigada por me
apresentar ao universo da leitura. Espero ansiosamente pelo dia em que te darei trote na
Faculdade de Letras!
Obrigada também a vocês, minhas irmãs, por me aturarem mesmo quando nem eu
mesma consegui tal proeza. Como esquecer dos momentos de sinceridade em que eu vinha
toda feliz dizendo: “Olha, gente! Escrevi x páginas!!” e vocês diziam: “Só isso?!” ou um
simples “Aham. E daí?”, me mostrando que sempre há mais o que escrever e aperfeiçoar!
Devo minha gratidão também a meu amigo-tio-irmão-namorado por me mostrar que
é necessário ter fé, confiar naquilo que se deseja e jamais desistir diante dos obstáculos.
Obrigada, Nene, pela paciência ao escutar meus desabafos, por todo o apoio, broncas e
conselhos durante essa caminhada!
Não posso deixar de agradecer a todos os professores que me acompanharam
durante o Ensino Fundamental e Médio e que, ao me reencontrarem, ficam radiantes ao
saber que terminei a faculdade. Podem ter a certeza de que contribuíram imensamente para
isso. E, por falar em contribuição, como não agradecer aos meus professores e amigos do
CPV-NI, pré-vestibular do qual fui aluna, professora e supervisora? Obrigada por me
ajudarem a conquistar o sonho de ingressar na universidade pública! Desse projeto,
guardarei sempre as melhores lembranças! Aí fiz grandes amigos e conheci professores
maravilhosos, que me fizeram ter ainda mais certeza da profissão que escolhi! Ainda
guardo o uniforme laranja com todas as suas mensagens! (“Uhu, Nova Iguaçu!!!”)
Na verdade, o CPV teve um papel ainda mais importante em minha jornada... Foi
nele em que conheci aquele que viria a ser meu orientador, o professor Ary Pimentel. Tudo
começou em uma aula-campo no Museu Nacional, em que um desconhecido começou a
falar muito, mais do que qualquer outro professor ali presente. E então, veio a pergunta:
"Quem é esse que não deixa mais ninguém falar?" Essa pequena indignação foi se
transformando em uma profunda admiração, quando, ao nos reencontrarmos na
universidade, ele me olhou com carinho e disse: “Parabéns, Aninha!” e, logo depois, me
presenteou com aqueles que seriam os primeiros livros de minha biblioteca acadêmica. “Lê
e ficha esses livros aqui, Aninha!” E, assim, foi me inserindo no universo hispânico, até que
veio o convite para participar do grupo de pesquisa “Orillas”, no qual aprendi muito e fiz
amigos valiosos! Obrigada, Ary, por confiar na minha capacidade como pesquisadora e por
me mostrar, com sua paixão, o quanto a literatura hispânica, especialmente as das duas
últimas décadas, é fascinante!
Sou grata a todos os professores que tive durante a graduação por me fazerem ter a
certeza de que fiz a escolha certa ao optar pelo curso de Letras. Obrigada por me
despertarem paixões às quais espero um dia poder me dedicar.
Meu agradecimento também aos professores que conheci ou reencontrei nas
disciplinas
da
pós-graduação
por
compartilhar,
além
de
conhecimentos,
seus
questionamentos e lições de vida. Obrigada por ampliar meus horizontes e aprofundar
minhas leituras e percepções.
A gratidão não poderia deixar de atingir aos amigos das melhores conversas,
conselhos e passeios, que foram capazes de perdoar minhas faltas nos encontros e ausência
nas redes sociais. Obrigada pela compreensão e, sim, temos que comer uma pizza! E aos
meus alunos, que fazem meu dia sempre mais especial após cada aula ministrada. Obrigada
por aliviarem meu estresse, mesmo causando outros...
Por fim, agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES) pelo apoio financeiro durante os dois anos de pesquisa.
DEDICATÓRIA
À família, meu porto seguro.
Aos amigos, minha fonte de conselhos.
A proibição de uma palavra é que faz dela um
instrumento de violência.
Lenny Bruce
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................................13
I. FRAGMENTOS E FRAGMENTAÇÕES: IDENTIDADE, CIDADE E CORPO..16
1.1.
O arquipélago narrado: identificação das ilhas latino-americanas selecionadas.......32
II. CORPO EM CENTRO HAVANA: INCIVILIDADES EM TRILOGÍA SUCIA DE
LA HABANA, DE PEDRO JUAN GUTIÉRREZ.............................................................34
2.1. Da cidade para a cobertura: debilitação do corpo e da cidade......................................38
2.2. O corpo e o edifício em ruínas: os restos e o excesso...................................................50
III. ENTRE DEJETOS, GADOS E HOMENS: AS ILHAS INVISÍVEIS DE ANA
PAULA MAIA.....................................................................................................................60
IV. “SENHORAS E SENHORES, BEM VINDOS AO FABULOSO MUNDO DA
CUMBIA”: SEXO, SANGUE E VIOLÊNCIA NA NARRATIVA CUCURTIANA....74
4.1. Samber, a ilha da cumbia...............................................................................................76
4.2. o caso das múltiplas identidades e a pornografia cucurtiana.........................................80
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................83
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................86
13
INTRODUÇÃO
Todo orden social produce y reproduce un orden
corporal específico.
Préjean
“Os moradores de um apartamento (...) não devem escutar quando outro morador
acionar a descarga do banheiro”1. “Antes de ir fazer o que você tem que fazer, basta dar 4
borrifadas do produto na água do vaso sanitário. Os óleos criam uma barreira na água que
não permite que o odor ruim se propague. (...) Para sua boa saúde, perfume seus flatos”2. É
cada vez mais frequente a preocupação em se ocultar elementos referentes ao corpo que
denunciam sua existência através das excreções. Em julho de 2013, houve uma edição na
NBR 15.575, Norma de Desempenho de Edificações, da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT), determinando a diminuição de decibéis entre apartamentos vizinhos, de
modo a ocultar sons constrangedores, como o da descarga. No entanto, o fator sonoro
parece não ser o único incômodo. Em outubro deste ano, foi divulgado pelas redes sociais o
Poo-Pourri, produto que promete acabar com o constrangimento provocado pelo maucheiro que pode vir a ser deixado na casa de estranhos. Basta dar algumas borrifadas dentro
do vaso sanitário e a essência de óleos cítrica é ativada de acordo com a movimentação da
água. E se a preocupação é com os odores que podem ser liberados antes de ir ao banheiro,
a solução já foi criada: o francês Christian Poincheval inventou a Fart Pill, pílula que
promete “deixar os gases das flatulências (vulgo pum) com odor de chocolate ou de rosas e
deixem de ter o cheiro usual.”. Essas são apenas algumas das várias medidas que se tem
tomado para que os elementos corporais, especialmente aqueles vinculados à excreção e ao
sexo, permaneçam ocultos ou presentes apenas em ambientes privados.
Para se compreender esse processo, faz-se necessário pensarmos sobre o próprio
conceito de vida privada, que é apresentada por Antoine Prost (2009) como “uma realidade
histórica, construída de diversas maneiras por sociedades determinadas” (PROST, 2009, p.
15). Para a burguesia da Belle Époque, a forma de não se expor ao público era o
1
Disponível em: ˂http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2013/07/nova-norma-para-construcao-civilpode-reduzir-reclamacoes-por-barulho.html˃ Acesso em: 11/06/2014.
2
Disponível em: ˂https://queminova.catracalivre.com.br/inventa/sem-vergonha-de-ir-ao-banheiro˃ Acesso
em: 13/10/2014.
14
distanciamento construído na relação com os convidados, desconhecidos ou vizinhos. Para
que isso ocorresse, as visitas eram abrigadas em locais específicos, nos quais só tinham
acesso ao que era considerado apresentável pelos anfitriões. No entanto, quando nos
referimos aos camponeses, a divisão entre o que deve ou não ser exposto não se constitui
tão facilmente. Os cômodos de suas casas eram de múltiplos usos, tanto alimentícios quanto
profissionais, chegando a habitar uma família inteira em cada um deles. A falta de espaço
interno, provocada por essa situação, fez com que a rua se tornasse uma expansão da casa,
espalhando-se não só seus móveis, mas também sua intimidade. Nesse contexto, a vida
privada se integra à pública e torna-se impossível sua diferenciação, podendo ser
constituída apenas no final do século XX, quando se democratiza a possibilidade de se ter
uma casa com a devida separação entre os dois universos.
A concepção do que seria “apresentável” ao público, no entanto, não depende
apenas do espaço físico. Nobert Elias (1993) aponta para uma série de fatores sóciohistóricos que a determinaram. A partir do momento em que se torna necessária a
integração de um indivíduo a um grupo social, criam-se e são impostas, mesmo que não de
forma totalmente racional e/ou planejada, normas de convivência para que os laços
formados se mantenham. Para isso, se estabelece uma espécie de sistema de escambo, no
qual os integrantes deste grupo são protegidos em troca do autocontrole e da
consequentemente repressão de seus impulsos emocionais, já que esses poderiam, em
algum momento, ocasionar uma desestabilização entre eles. Com o passar do tempo, essas
normas são interiorizadas a tal ponto que se tornam automatizadas, fazendo com que o
indivíduo modere de forma mais sistemática e contínua suas paixões e sentimentos.
A divisão entre público e privado e o contínuo surgimento de normas de conduta
parecem ser determinadores das ações dos indivíduos. No entanto, na literatura produzida
nas duas últimas décadas, ao invés de termos personagens que trazem em si as marcas dessa
repressão, o que se destaca é a quantidade daqueles que fogem aos padrões préestabelecidos. Elementos referentes ao corpo, como o sangue, o sexo e a excreção, que
deveriam permanecer restritos a espaços privados, aparecem estendidos/expostos ao
universo público. Além disso, a maioria dos sentimentos e ações impulsivas do indivíduo,
que deveria ser controlada, é exteriorizada, parecendo não obedecer ao padrão civilizado
vigente.
15
Essa pesquisa segue uma espécie de Método Morelliano3 ao se debruçar sobre esses
fatores que não costumam receber visibilidade. A partir deles, pretende-se rastrear o que
parece ser uma nova forma de se narrar o corpo, que aproxima o homem do animal,
processo proveniente de um momento específico do processo civilizatório diferente do
padrão que se costuma postular como o ideal.
Frente, porém, à grande quantidade de obras que tematizam o corpo e à
impossibilidade de, mesmo com a escolha de um corpus especifico, analisá-las por
completo de forma satisfatória, foram recortados apenas alguns capítulos ou cenas que
funcionam como textos autônomos no interior das obras produzidas por três autores latinoamericanos nos últimos vinte anos: Ana Paula Maia (Brasil), Pedro Juan Gutiérrez (Cuba) e
Washington Cucurto (Argentina).
Assim como o médico observa os sintomas de cada paciente, e o detetive analisa os
indícios de cada crime, essa pesquisa quer estudar os indícios de cada obra ou até mesmo
de um determinado capítulo, sem a pretensão de, através deles, chegar a ideias ou leis
aplicáveis a toda e qualquer narrativa hispano-americana produzida no mesmo período,
embora diversas características aqui apresentadas possam ser pertinentes quando falamos
de inúmeras outras obras produzidas nos últimos vinte anos.
Apesar de a ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) postular que as
citações em idioma estrangeiro devem ser apresentadas no original, com a tradução
indicada em nota de rodapé, optou-se aqui por fazer o processo inverso, pondo-se as
citações do corpus literário em língua portuguesa. Essa escolha tem como finalidade
facilitar a compreensão daqueles que possuem pouca proficiência no espanhol e tornar o
processo de leitura do texto mais fluido, visto que muitas expressões utilizadas no original
podem causar estranhamento, mesmo para os leitores que dominam o idioma. Para isso,
foram utilizadas traduções oficiais, sinalizadas nas referências bibliográficas.
3
Morelli foi um pesquisador de arte do século XIX que se propôs a identificar a autoria de quadros anônimos
a partir de elementos pormenorizados, como o lóbulo da orelha ou o formato das unhas dos pés dos
personagens ao invés de utilizar aquilo que é visivelmente característico de cada pintor. Foi acusado de
degradar a obra ao se deter a elementos tão vulgares em relação à sua grandiosidade artística.
16
CAPÍTULO I. Fragmentos e fragmentações: identidade, cidade e corpo
Supongamos que el mundo bipolar ha terminado y que estamos
en otra era. Han cambiado no tanto las imágenes en sí sino la
forma en que se agrupaban, dividían y oponían.
Josefina Ludmer, em Aquí América Latina
Se em algum momento foi possível estabelecer limites fixos e precisos para
classificar ou definir categorias, o que parece se destacar nas duas últimas décadas é o
apagamento destes limites, que pareciam ser intocáveis e imutáveis. Para caracterizar este
momento de frequentes mudanças, Zygmunt Bauman (2001) utiliza o conceito de fluidez,
um processo de liquefação de estruturas, códigos e regras que se constituíam como
unidades estáveis de referências e orientações.
Conceitos como tradição e modernidade, norte e sul, local e global, centro e
periferia, que pareciam facilmente caracterizáveis, agora aparecem em fusão, hibridizados.
Isso faz com que as formas de analisar a identidade e cultura também se modifiquem.
Frente a esse contexto, Néstor García Canclini (2011) propõe que se pense não em uma
busca pela diferenciação entre tais conceitos pré-estabelecidos, mas sim em um processo no
qual eles se mesclem para serem geradas novas estruturas, objetos e práticas. Além disso,
este mesmo autor nos apresenta outras ações que exemplificam o processo de liquefação:
os monumentos, que eram elementos de lembranças sólidas, ressignificam-se frente a
protestos, cartazes, pichações e grafites do universo contemporâneo, e as coleções
especializadas, que se constituíam como bens simbólicos, deixam de prevalecer, assim
como a própria organização fixa, que fora, em outro momento, essencial.
Diante desta liquefação, faz-se necessário considerar o indivíduo não como portador
de uma identidade fixa e imutável, mas de identidades abertas, inacabadas, que estão em
constante (re)configuração. Stuart Hall, em seu livro A identidade cultural na pósmodernidade (2005), destaca as mudanças que o conceito de identidade sofreu em distintos
momentos históricos. O sujeito do Iluminismo, dotado das capacidades de razão,
consciência e ação, tinha um centro interior e autossuficiente, cuja essência permanecia
quase inalterável ao longo da vida, enquanto no caso do sujeito sociológico, embora
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apresentasse também uma essência interior, essa não era autônoma, mas formada a partir da
interação do “eu” com a sociedade e dos significados e valores do espaço exterior, ou seja,
do mundo público.
Em ambos os casos, o indivíduo era composto por uma identidade fixa, unificada e
estável. Na pós-modernidade, porém, este não se constitui apenas de uma, mas de inúmeras
identidades, que se fragmentam, se multiplicam e se adaptam a distintos sistemas de
significação
e
representação
cultural.
Essa
alternância
reflete
uma
sociedade
descentralizada e de constantes rupturas e fragmentações, que tampouco traz em si um todo
unificado e delimitado.
Este contexto determina o fim de uma identidade central, capaz de abarcar de forma
segura todos os interesses e atitudes do indivíduo e entra em seu lugar uma pluralidade de
identidades, ativadas de acordo com o que se apresenta como mais conveniente e/ou
adequado a determinado momento ou espaço, como se fossem máscaras, que podem ser
trocadas inúmeras vezes sem, necessariamente, trazer consequências negativas ao
indivíduo.
Alguns autores relacionam a identidade diretamente a espaços específicos. Essa
relação pode ser observada, por exemplo, no conceito de bairro popular dado por Jesús
Martín Barbero (2008), que o define como lugar de constituição e valorização de
determinadas identidades. Nesse local, de comum existência nas periferias, as
individualidades do cidadão pertencente às classes populares ganham destaque e
importância, construindo-se distintas redes de sociabilidade. Tais características fazem com
que o ambiente familiar do bairro se oponha ao ambiente profissional, onde o indivíduo não
tem nome e tampouco importa se é homem ou mulher, jovem ou adulto, casado ou solteiro,
sendo considerado apenas como um trabalhador, um empregado. As individualidades de
um cidadão ganham destaque e importância apenas quando ele está no bairro, seu ambiente
familiar, onde se constroem distintas redes de sociabilidade.
Em um universo de constantes deslocamentos, inseguranças e instabilidades,
homens e mulheres tendem a buscar grupos dos quais possam fazer parte, geralmente
relacionados a espaços que proporcionam reconhecimento, proteção e pertencimento,
intensificando-se a relação face-a-face entre seus integrantes. Para isso, constrói-se um
18
“nós” que se opõe diretamente a “eles”, os quais devem ser mantidos a uma distância
segura. No entanto, isso não quer dizer que o primeiro grupo seja homogêneo, mas que nele
são valorizadas mais as semelhanças que as diferenças. Da mesma forma, “eles” não
diferem totalmente do “nós”, mas possuem alguma diferença que se sobressai diante de
outras possíveis afinidades, o que, por si só, impede sua integração.
A formação de um “nós” para a constituição do pertencimento também é indicada
por Bendict Anderson (2008) ao explicitar as estratégias utilizadas para se construir o
conceito de nação, definido como uma comunidade imaginada, limitada e soberana. É uma
comunidade porque possui uma estrutura horizontal, abarcando pessoas de diferentes
classes e posições sociais; imaginada porque se cria entre seus membros um sentimento de
comunhão, embora a maioria não se conheça; limitada porque possui fronteiras, visto que
não é possível que toda a espécie humana faça parte de uma única nação; e é soberana por
trazer a sensação de uma liberdade a antigas estruturas de dominação.
O bairro periférico também se relaciona à comunidade real, que, por ser menor do
que a sinalizada anteriormente, possibilita uma aproximação face-a-face entre os
integrantes e a constituição mais efetiva de laços de interdependência, tal como ocorre na
concepção de comunidade apresentada por Bauman (2003).
Nesta, não habitam estranhos. Sempre com conotação positiva, a comunidade
promete a proteção de seus integrantes dos perigos externos a ela, trazendo-lhes um
ambiente seguro, confortável, aconchegante e de ajuda mútua. Paraíso perdido da
modernidade, ela “é o tipo de mundo que não está, lamentavelmente, ao nosso alcance –
mas no qual gostaríamos de viver e esperamos vir a possuir.” (BAUMAN, 2003, p. 9). Para
a realização dessa comunidade imaginada/sonhada seria necessário privar-se da liberdade,
afastando-se e protegendo-se de tudo o que for estranho ou externo a ela, o que poderia, em
pouco tempo, torná-la opressiva.
Essa opressão é necessária para o estabelecimento de uma convivência sempre
tranquila entre membros de um mesmo grupo. Assim, aquele que provocar algo capaz de
destruir ou abalar essa harmonia deve ser rapidamente corrigido ou posto para fora deste,
visto que se converte em um perigo para os demais integrantes da pequena e instável
comunidade.
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Torna-se necessário, então, o estabelecimento de um grupo de habilidades
denominado por Richard Sennet (1978, apud BAUMAN, 2001) como “civilidade”, um
conjunto de ações que objetivam a proteção mútua entre os indivíduos ao priorizar a
situação social no lugar das necessidades e desejos individuais. Em nome de um bem
comum, são ativadas as identidades públicas, que deixam transparecer apenas aquilo que
não vá, de alguma maneira, constranger ou prejudicar aos demais.
É justamente a necessidade de um bom convívio social que proporciona a existência
de um contínuo processo civilizatório. Conforme a estrutura das relações humanas vai
alterando-se, modificam-se também as condutas ditas como adequadas. Nobert Elias (1993)
indica que em outra época, quando predominavam as disputas entre cavaleiros, a
moderação dos impulsos ou afetos tornava-se impossível e desnecessária, posto que, em
meio a um contexto no qual a violência apresenta-se de forma constante e diária e em que
os guerreiros sobreviviam do que era produzido em sua própria terra, não havia a
necessidade de se formarem extensos laços de dependência entre os indivíduos. Essa vida
dava aos guerreiros a “extraordinária liberdade para dar forma concreta a seus sentimentos
e paixões, à alegria selvagem, a uma satisfação sem limites do prazer à custa das mulheres
que desejasse, ou ao ódio na destruição ou tortura.” (ELIAS, 1993, p. 199)
No entanto, a partir do momento em que começa a constituir-se um monopólio
central de violência, regido pelo Estado, torna-se necessária uma pacificação entre os
indivíduos, já que atos violentos contra o outro podem ser mais severamente punidos que
outrora. Além disso, um progressivo avanço da formação e distribuição de funções sociais
acarretou no desenvolvimento de laços de interdependência entre os indivíduos, tornandose inevitável uma integralização e sincronização das ações a ser alcançada a partir de uma
postura uniforme e estável.
Esses fatores fazem com que se desenvolvam determinados moldes de
comportamento que, apesar de, inicialmente, serem formados externamente, são pouco a
pouco internalizados e transformados em autocontrole. Devido a esse processo, “as
atividades humanas mais animalescas são progressivamente excluídas do palco da vida
comunal e investidas de sentimentos de vergonha” (ELIAS, 1993, p. 195), resultando na
construção de condutas e anseios “civilizados”.
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É importante destacar que o processo civilizador, como o próprio nome adverte, não
é fixo ou finito:
A civilização a que me refiro nunca está completada, e está sempre ameaçada. Corre perigo
porque a salvaguarda dos padrões mais civilizados de comportamento e sentimento em
sociedade depende de condições específicas. Uma destas é o exercício de autodisciplina,
relativamente estável, por cada pessoa. Isto, por sua vez, está vinculado a estruturas sociais
específicas. Estas incluem também, sobretudo, a resolução pacífica de conflitos intraestatais – isto é, a pacificação social. Mas a pacificação interna de uma sociedade está
sempre correndo perigo. Ela é ameaçada por conflitos tanto sociais quanto pessoais, que são
atributos normais da vida humana em comunidade – os próprios conflitos que as instituições
pacificadas estão interessadas em dominar. (ELIAS, 1997, p. 161)
Nobert Elias indica diversos fatores que podem fazer com que este se reconfigure
ou ocorra de maneira distinta em determinadas regiões ou estratos: o estágio de
desenvolvimento da sociedade, a função que o indivíduo assume na cadeia de
interdependência e as mudanças na organização do tecido social.
A inconstância desse processo pode ser verificada a partir da análise de manuais de
conduta realizada pelo autor, que mostra o avanço de sentimentos como o nojo e a
vergonha em relação a hábitos como o de escarrar ou assoar-se e a mudança na conduta à
mesa quanto ao uso de utensílios. Com o passar do tempo, a maioria das normas de
convivência tornam-se automatizadas, comprovando-se que a civilização é uma “ordem
mais irresistível e mais forte do que a vontade e a razão das pessoas isoladas que a
compõem” (ELIAS, 2011, p. 195). Quanto mais cedo o indivíduo aprende a controlar ações
e moderar as paixões, maior é a sua vantagem social frente aos demais. Aos poucos, as
funções corporais começaram a adquirir caráter privado, sendo domesticados e fechados ao
âmbito do individual e do pessoal.
Alguns controles comportamentais também são formados no ambiente profissional
e financeiro. Rafael Huertas, no livro organizado por Miranda & Sierra (2009), aponta a
ação moralizante que o trabalho e o uso do salário assumiram no século XIX, período em
que higienistas consideraram a miséria, a doença e a dificuldade de integração dos
trabalhadores como problemas morais que precisavam ser corrigidos através de uma
mudança nos costumes e comportamento das classes populares.
Adquirir uma postura adequada e disciplinada no trabalho teria a função de regular
as atitudes do empregado não só nos limites da fábrica, mas em sua vida particular. A
21
necessidade de se lidar com horários, prazos e atividades regulares no trabalho faria com
que sua vida fosse também disciplinada e ordenada, inserindo-se o ritmo laboral em seu
ritmo biológico.
O incentivo à administração correta do salário também era, para os higienistas
burgueses, uma forma de se acabar com problemas como a miséria e o alcoolismo, pois, se
o empregado deixasse de gastar seu dinheiro com a compra de bebidas, este não seria
levado à pobreza. Esse pensamento transformava o problema econômico em um problema
moral, culpabilizando ao trabalhador que, ao fazer mau uso de seu salário, traz pobreza para
toda a sua família. Através deste discurso de subjetivação da norma e do uso da ciência e da
medicina como instâncias de autoridade, tenta-se convencer a população de que o
autocontrole é necessário para a construção de uma sociedade harmônica e ordenada, na
qual “el sujeto debe hacer suyas las normas que se le imponen.”(HUERTAS, 2009, p. 40).
Enrico Ferri nos dá uma mostra de como a internalização de normas de conduta
separam o indivíduo de sua animalidade quando, em 1893, diz que “delincuentes en su tipo
más común y peligroso, reproducen en nuestra civilización los caracteres del hombre
salvaje y primitivo.” (FERRI, 1893, apud SIERRA, 2009, p. 45). Aqueles que não se
inserem nos moldes comportamentais que visam ao convívio harmônico entre os seres, não
podem receber o rótulo de “civilizados” ou mesmo de “humanos”.
Da mesma forma, Giogio Agambem (2013), a partir de considerações de Kojève
sobre o devir animal do homem, nos leva a refletir que o homem não é biologicamente
formado a partir de substâncias que integram sua condição, mas a partir da capacidade de
transcender sua animalidade, transformá-la, dominá-la e, eventualmente, destruí-la,
negando-se elementos que possam unir humanidade a animalidade.
Diferenciar ou afastar o homem do animal é um trabalho árduo por parecer que esta
oposição está se desvanecendo, entrando em colapso. Para Agambem (2013), isso ocorre
porque, no lugar de características notáveis, o homem é identificado pelo reconhecimento
de si próprio como não-animal ou a partir da linguagem, que é elaborada históricosocialmente. Portanto, não há, biologicamente, características que sejam pertencentes
unicamente ao homem.
22
Sem a presença de um diferenciador natural e decisivo, o homo parece estar
suspenso entre o animal e o humano, destituído de essência e identidade. Por isso, para
recuperar ou conquistar sua humanidade, o homem deve manter em latência a sua
animalidade, governando-a e conservando-a dentro de si.
Podemos vincular essa estratégia à definição de corpo como um significante
ficcional ou uma construção simbólica, postulada por Le Breton (2011), já que este, apesar
de ser um atributo pessoal, físico e biológico, está intimamente relacionado e formado por
uma série de sentidos e de valores que determinam suas condutas e etiquetas em relação a
lugares ou a tempos distintos.
A etiqueta corporal, assinala Le Breton (2011), provém de um conjunto de normas
implícitas que guiam o indivíduo a controlar a imagem que transmite ao outro. A maneira
de cumprimentar, a permissão ou não do toque, as formas de lidar com a perda de seu
controle muscular (referindo-se a tropeçar, arrotar, bocejar, “emitir ventosidades”) são
diferentes em cada sociedade e variáveis dentro dos grupos a que pertencem, tal como já
nos mostrara Nobert Elias (1993).
A constante necessidade de autocontenção produzida pelo processo civilizatório
pode causar no indivíduo uma sensação de aprisionamento, fazendo com que se inicie uma
busca por um espaço no qual ele possa transparecer seus desejos e sentimentos inatos que
são, constantemente, reprimidos no convívio social. Ezra Park (1979) denomina como
região moral esse ambiente “nos quais os impulsos, as paixões e os ideais vagos e
reprimidos se emancipam da ordem moral dominante” (PARK, 1979, p. 65), como o são as
casas de jogos e prostituição. Elas surgem como uma resposta às restrições impostas pela
vida urbana ao priorizar os interesses individuais mais imediatos e fundamentais que são
comumente reprimidos em nome de uma convivência social harmônica.
O constante impulso em direção à segregação – seja para o alcance de uma
proteção, como é o caso dos bairros ou das comunidades, seja para uma libertação das
amarras sociais, como o das regiões morais – e a grande quantidade de espaços aos quais
pertencemos diariamente, fazem da cidade “um mosaico de pequenos mundos que se
tocam, mas não se interpenetram” (PARK, 1979, p. 63). Usando os conceitos estabelecidos
por Ezra Park, Soraya Simões (2010) fez um estudo sobre a Vila Mimosa, um antigo
espaço de prostituição do Rio de Janeiro, no qual “não se chega, mas se entra” (SIMÕES,
23
2010, p. 31). Nela, novas identidades são ativadas a fim de se manter o anonimato ou,
simplesmente, se assumirem os papéis proibidos nos espaços ditos “normais” e, ao sair dali,
o indivíduo pode reassumir a função pela qual é reconhecido na sociedade.
Apesar de não possuir portas ou uma entrada certa, diz a autora que, ao fazer sua
pesquisa de campo, percebeu sua entrada nesse pequeno mundo quando os olhares das
pessoas que o integravam se voltaram para ela imediatamente. Além disso, mesmo sem
uma divisão demarcada fisicamente, estabeleciam-se neste espaço condutas diferentes das
que se costuma expor ao público. Dentro dele, o ato sexual constituía-se de uma mera
relação carnal, algo que seria condenável em outros ambientes, o mesmo ocorrendo com a
exposição do corpo feminino, que se mostra coberto apenas por ínfimas peças de lingerie
utilizadas pelas prostitutas para atrair seus clientes.
A presença de espaços como estes, que possuem normas próprias, diferenciando-se
de tudo o que o convívio citadino exige, aponta para uma liquefação não apenas das
identidades, mas também da urbe. Mais do que uma cidade que pode ser observada por
distintos ângulos e perspectivas, como propõe Beatriz Sarlo (2009), o que parece estar se
configurando é a fragmentação deste espaço que já tivera um único centro, bem demarcado
e facilmente identificável.
Com uma imagem semelhante à do mosaico, proposta por Ezra Park (1979), Michel
Maffesoli (2010) compara a cidade a uma boneca gigogne4 por ter em seu interior várias
outras microlocalidades autônomas, com centros próprios e, portanto, desvinculadas umas
das outras mesmo que, muitas vezes, não se apresente uma clara separação física entre elas.
Cada microlocalidade relaciona-se ao que Maffesoli chamou de tribo, universo no
qual, mais do que por razões políticas ou econômicas, se entra pelo prazer de estar junto,
por uma identificação com o espaço e/ou com seus integrantes. Forma-se uma comunidade
de relação face-a-face, na qual são superados os traços da individualidade e enfocados os
aspectos comuns a todos os seus integrantes, como o corpo, com seus orifícios,
protuberâncias, secreções, excreções e odores. Tais elementos que os une e que lembram o
4
Também conhecida como “Matrioshka”, é uma boneca russa formada por uma série de bonecas colocadas
umas dentro das outras, da maior (que representaria a cidade como um todo) à menor (que seriam as tribos).
24
lado animal do humano tornam esse um espaço bárbaro e selvagem, no qual podem se
destacar o cotidiano, as emoções, as paixões coletivas e o corpo.
Aqui, o retorno ao bárbaro não pode ser visto como algo negativo, mas como o
regresso das ações ou instintos da natureza humana que foram sendo “domesticados” e
reprimidos com o passar do tempo por um constante processo civilizatório. Afastado das
condutas pré-estabelecidas, o relacionamento com o outro nessa “mini-comunidade” pode
se realizar de uma maneira mais aproximada entre todos os que dela participam, mesmo
que sejam diferentes em aspectos políticos e/ou econômicos.
No tribalismo, as trajetórias individuais são substituídas por uma relação em rede,
na qual cada indivíduo representa papéis e funções diferenciados, dependendo da tribo a
que pertence. Assim, tal como afirma Stuart Hall (2005) sobre a identidade pós-moderna,
torna-se comum a existência de várias identidades a serem ativadas de acordo com o dia e o
local em que o indivíduo se encontra. Ademais, dentro da tribo, prevalecem as histórias
cotidianas ao invés do relato da nação do protagonismo das grandes personalidades
históricas. Com isso, tudo o que, em outros contextos, seria insignificante, como rituais,
odores ou ruídos, recebe destaque, se ressignifica e se torna determinante por ser
compartilhável com todos os seus integrantes.
Organizadas em torno de territórios, sejam estes reais ou simbólicos, as tribos
indicam um retorno do investimento afetivo, da relação com o outro, mas, ao mesmo
tempo, traz em si uma rede de relacionamento efêmera, pois o fato de o pertencimento a
determinado grupo ser condicionado a interesses do momento faz com os sentimentos de
afastamento e proximidade se misturem, produzindo-se uma constante movimentação.
Frente a essa instabilidade, Maffesoli (2010) determina a existência não de uma
tribo somente, mas de uma “multidão de aldeias”, que se entrecruzam, se opõem, se
entreajudam, ao mesmo tempo em que permanecem elas mesmas” (MAFFESOLI, 2010, p.
224), multidão da qual um mesmo indivíduo pode participar desde que se adapte a cada
uma delas de forma devida.
Para explicar o que ocorre dentro e fora da tribo, Maffesoli (2010) recorre à noção
de proxemia, criada por Edward Hall, que se refere às distâncias físicas que cada indivíduo
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busca manter em relação às outras pessoas de acordo com um conjunto complexo e sutil de
regras culturais internalizadas. Espontaneamente, criam-se barreiras simbólicas que
impedem a aproximação física do outro durante o convívio social, tal como ocorre no
espaço externo à tribo, onde esse distanciamento é priorizado, tornando-se incômoda sua
violação. Internamente, no entanto, esse distanciamento diminui, permitindo uma relação
mais íntima entre seus integrantes e um consequente prolongamento do corpo, deixando-se
transparecer elementos que pertenceriam ao âmbito do individual e, portanto, do íntimo e
privado.
Diante de tantas concepções relacionadas ao processo de fragmentação da cidade,
escolheu-se aqui a imagem proposta por Josefina Ludmer em Aquí, America Latina (2010).
A concepção de “ilha urbana” parece abarcar a maioria dos aspectos vistos anteriormente e
se mostra de extrema importância para a análise do corpus previamente selecionado.
A autora parte de uma constatação já feita por Bauman (2001): a formação de um
novo mundo social, que se diferencia estrutural e politicamente do anterior. Frente a esse
novo contexto, tornam-se necessárias também novas palavras e noções capazes de dar conta
de modos de narrar o presente que se reconfiguram em um efêmero e constante movimento.
São diluídas as fronteiras entre o individual e o social e entre o público e o privado,
proporcionando uma externalização do particular e da intimidade, além de uma
consequente reconfiguração da proxemia pré-determinada. O apagamento ou a
superposição dessas categorias estende-se às narrativas produzidas na América Latina nos
últimos anos, nas quais dificilmente consegue-se distinguir a realidade da ficção, formandose o que Ludmer (2010) denomina de “realidadficción”, um termo que, ao ser escrito sem
espaço ou hífen, concretiza a fusão entre os dois conceitos.
Todas essas alterações fazem com que a autora especule novas formas de análise
dessa recente produção latino-americana. Para isso, sugere que se veja a literatura para
além de seus autores, obras e estilo, pensando-se em dois conceitos “abstractosconcretos”
que atravessam a todas as divisões e que pertencem a todos os indivíduos. São eles as
temporalidades e os territórios.
26
Nos últimos anos, a evolução tecnológica e sua democratização tem tornado
possível a existência de um “tempo zero”, no qual as relações interpessoais se realizam
imediatamente, não importando a distância entre os envolvidos. Com isso, apaga-se a
oposição entre inúmeras fronteiras pré-estabelecidas, como “longe” e “perto” ou “presente”
e “futuro”.
Tal como a temporalidade, a territorialidade também é um conceito capaz de apagar
ou tornar imprecisas determinadas fronteiras. Definido como “una delimitación del espacio
y una noción electrónica-geográfica-económica-social-afectiva-de género-y-de sexo, todo
al mismo tempo” (LUDMER, 2010, p. 122), cada território no qual os indivíduos transitam
ou ao qual pertencem ajuda a compreender o novo mundo.
Junto às alterações já mencionadas, surgem também novos territórios e sujeitos,
além de uma nova configuração narrativa, na qual a literatura urbana já não se diferencia da
rural, assim como caem também as diferenciações entre literatura pura ou social. Ademais,
alteram-se as temáticas abordadas, formando-se uma literatura “cargada de droga, de sexo,
de violencia y miseria” (LUDMER, 2010, p. 128)
A própria cidade latino-americana da literatura não se mantém a mesma. Assim
como a cidade-mosaico de Ezra Park (1979) e a cidade-gigogne de Maffesoli (2010)
apresentam uma característica insular por dividir a urbe em microlocalidades, Josefina
Ludmer (2010) aponta para a existência de um regime territorial dividido internamente em
“islas urbanas”, espaços que, embora efêmeros, apresentam limites precisos, sejam estes
físicos ou simbólicos.
Tal como o espaço apresentado por Soraya Simões em sua pesquisa (2010), a ilha
urbana também está aberta e se pode adentrá-la, embora possua fronteiras, regras e leis
específicas que determinam o comportamento de seus integrantes. Nesse território, que está
dentro da cidade por estar nela localizado e, ao mesmo tempo, fora por se diferenciar da
mesma, forma-se uma comunidade capaz de sincronizar e fundir categorias pertencentes a
distintas classes ou funções sociais.
Impulsionado por “accidente-enfermidad-peste-hambre-sueño-sexo” (LUDMER,
2010, p. 132), o indivíduo cruza a fronteira da ilha e permanece nela por um tempo. Ali, seu
27
corpo é posto em sintonia com o território e perde-se não apenas a separação entre urbano e
rural já mencionada, mas também a diferenciação entre animais e humanos. Isso ocorre
porque essas diferenças são amalgamadas e superpostas dentro desse regime de
significação para que as classes e funções sejam apagadas e se possa formar um todo, com
habitantes igualados por suas características de “fundo natural”, como o sangue, o sexo, a
idade, as doenças e a morte, que pertencem a todos, humanos e animais,
independentemente de sua história ou situação político-social.
Esse “fundo natural” ativa os mesmos elementos que eram enfocados durante o
carnaval da Idade Média, estudados por Bakhtin (2010) ao analisar o contexto e a obra de
François Rabelais, que fora apelidado como “poeta da carne” e “do ventre” por destacar “o
princípio da vida material e corporal: imagens do corpo, da bebida, da comida, da
satisfação de necessidades naturais e da vida sexual” (BAKHTIN, 2010, p. 16).
Denominado como “realismo grotesco”, esse destaque não era visto de forma
isolada ou negativa na Idade Média. O princípio material e corporal recebia um caráter
cósmico e universal por pertencer não apenas a um indivíduo, mas a um corpo coletivo,
popular e genérico, e seu exagero denotava festividade e alegria. Por isso, era comum na
literatura renascentista e, especialmente, em Rabelais, que os valores elevados, espirituais,
ideais e abstratos fossem transferidos para o âmbito do concreto, do plano material e
corporal, em um processo designado “rebaixamento”, também encontrado em festas
populares, como o Carnaval na praça pública.
O termo “rebaixamento” é utilizado pelo fato de este mudar o foco do alto,
representado pelo rosto ou pela cabeça, para o baixo, representado pelos órgãos genitais, o
ventre e o traseiro. Feito como forma de (re)nascimento, esse processo leva a uma
aproximação com a terra, símbolo da fertilidade e do crescimento, e com a parte inferior do
corpo e atos a ela relacionados, como o sexo, a concepção, a gravidez e o parto, que
também proporcionam um novo nascimento. No contexto de Rabelais, “o baixo é sempre o
começo” (BAKHTIN, 2010, p. 19) e o corpo recebe um enfoque e uma função
diferenciados:
Coloca-se ênfase nas partes do corpo em que ele se abre ao mundo exterior, isto é,
onde o mundo penetra nele ou dele sai ou ele mesmo sai para o mundo, através de
orifícios, protuberâncias, ramificações e excrescências, tais como a boca aberta, os
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órgãos genitais, seios, falo, barriga e nariz. É em atos como o coito, a gravidez, o
parto, a agonia, o comer, o beber, e a satisfação de necessidades naturais, que o
corpo revela sua essência como princípio em crescimento que ultrapassa seus
próprios limites. (BAKHTIN, 2010, p. 23)
No realismo grotesco, o corpo apresenta-se sempre aberto e inacabado, e, como não
está fechado em seus próprios limites, (con)funde-se com o mundo, com os animais e as
coisas, enquanto que em épocas posteriores, o corpo começa a ser visto de maneira isolada
e pronta. Consequentemente, seus orifícios, protuberâncias, ramificações e excrescências
são omitidos, assim como as referências às necessidades naturais do indivíduo. Diante do
cuidado em se manter esses elementos fora de cena, o corpo aberto e inacabado torna-se
monstruoso e repugnante.
Mesmo considerando que Bakhtin (2010) trata de um autor e contexto específicos,
podemos contrastar essa aversão ao corpo humano/animal (em particular ao baixo corporal)
inacabado com uma espécie de “pornografização” que expõe o corpo narrado na literatura
latino-americana das últimas duas décadas.
Dominique Maingueneau (2010) analisa o discurso pornográfico a partir da
significação do vocábulo “pornografia”, que, apesar de ser comumente definido como um
termo que “remete o homem àquilo que ele tem de mais evidente e de mais elementar”
(MAINGUENEAU, 2010, p. 13), quando apareceu na literatura pela primeira vez,
provavelmente no século XVIII, referia-se somente à prostituta e à prostituição, até
designar, como conhecemos hoje, a “qualquer representação de ‘coisas obscenas’”
(MAINGUENEAU, 2010, p. 13).
Devido ao fato de a pornografia ter um tom pejorativo e, às vezes, agressivo para
algumas pessoas, Maingueneau (2010) a coloca em uma dupla impossibilidade: é
impossível ela não existir, já que pode ser encontrada em diversos contextos da sociedade
(literatura, cinema, artes de maneira geral) e, ao mesmo tempo, sua existência é
impossibilitada, visto que é frequentemente camuflada.
Essa camuflagem, muitas vezes, é realizada a partir do erotismo, uma forma mais
compatível com os valores sociais e, portanto, mais “aceitável” de se falar do baixo
corporal ao serem usados constantemente a ambivalência, os processos de metaforização,
metonímia e eufemismo como fuga de termos muito diretos ou grosseiros. Em
29
contrapartida, o pornográfico está mais associado à obscenidade, à evocação de um prazer
partilhado, como a alimentação, a bebida e a festividade proporcionada pela inversão de
valores, típico do contexto outrora analisado por Mikhail Bakhtin (2010).
A pornografia está associada ao obsceno por “dar visibilidade máxima a práticas às
quais a sociedade busca, ao contrário, dar visibilidade mínima, quando não, para algumas
delas, visibilidade nenhuma” (MAINGUENEAU, 2010, p. 39). Ela se propõe a mostrar,
sem eufemismos, tudo o que o processo civilizatório tentou ocultar ao máximo, fazendo da
atividade sexual um espetáculo performático do qual o espectador é também participante e
pode compartilhar da satisfação sexual narrada.
Algumas cenas da recente narrativa latino-americana poderiam ser denominadas
pornográficas justamente por apresentarem e exporem o corpo sem restrições nem
ocultamentos, por trazerem à tona aspectos comumente silenciados que deveriam
permanecer restritos a espaços privados ou às festas populares de praça pública como o
Carnaval da Idade Média, onde o “rebaixamento” do espiritual não era considerado
negativo.
No entanto, é interessante observar que, embora esse corpo seja narrado de forma
crua, parece estar situado no grupo a que Maingueneau (2010) classifica como “pornografia
canônica”, que seria a configuração menos agressiva do discurso pornográfico. Esse grupo
abarca todas as atividades que condizem com as normas que regem os relacionamentos
sociais, visto que todos os participantes da cena sexual saem satisfeitos por haver, entre
eles, uma mútua permissividade e um desejo compartilhado, o que não aconteceria, por
exemplo, em um caso de estupro.
Na verdade, o que temos na literatura latino-americana das duas últimas décadas
seria apenas a presença de “sequências passíveis de uma leitura pornográfica”
(MAINGUENEAU, 2010, p. 43), nas quais as ações sexuais aparecem sempre previamente
motivadas e entre parceiros voluntários que cooperam entre si para que haja uma relação
sexual bem sucedida. Mesmo sem se aprofundar nessa problemática, Maingueneau aponta
para a existência de uma “tentação pornográfica” nas produções literárias recentes:
Uma das características mais evidentes da literatura contemporânea é o
considerável aumento da parte da sexualidade que chamaremos ‘explícita’,
30
fenômeno que vai paralelamente ao surgimento de textos que são dados como uma
espécie de testemunhos, de autoficções nos quais o autor narra suas experiências
sexuais. (MAINGUENEAU, 2010, p. 109)
O autor apresenta três justificativas possíveis para este impulso: o interesse da
literatura em aproveitar materiais disponíveis, posto que a pornografia e o corpo exposto
estão cada vez mais frequentes nos meios midiáticos, a necessidade de dar visibilidade a
uma literatura que parece não causar mais tanto interesse ao público leitor e a natureza
transgressora da pornografia. Esse último fator, talvez o mais essencial para essa pesquisa,
confere à literatura que recorre ao pornográfico um caráter de escândalo ou ruptura com os
códigos dominantes, dando ao discurso literário o poder de contestação, funcionando como
uma “máquina de guerra” do artista engajado.
Para que possamos desenvolver melhor esse aspecto transgressor, é essencial
ampliarmos o sentido de “pornografia” para além da exposição das práticas sexuais. A
partir de uma entrevista na qual Rubem Fonseca se diz pornográfico por escrever livros
“cheios de miseráveis sem dentes”, Karl Erik Schollhammer (2013) define como literatura
pornográfica aquela que revela “temas e objetos ligados a tudo o que é excluído e proibido
em nossa cultura – não só o sexo, que hoje já não recebe o mesmo estigma cultural, mas a
miséria, a violência, a loucura e a morte.” (SCHOLLHAMMER, 2013, p. 122-123).
Devido ao fato de serem apresentados, nas narrativas das últimas décadas, temas já
expostos pelo Realismo no século XIX, muito tem se discutido sobre a relação entre as
produções literárias destes dois momentos. De fato, elementos considerados pornográficos,
tanto aqueles correspondentes à definição de Maingueneau (2010) quanto os que
correspondem à de Scholhammer (2013), já estiveram presentes na prosa brasileira, porém,
para que se faça esta comparação, torna-se necessário ampliar ou redefinir determinados
conceitos, como a própria noção de “real”.
Sandra Contreras (2013), junto a autores como Mariana Catalin e Carlos Leonel
Cherri, discutem e criticam este conceito através de artigos resultantes do seminário
intitulado Realismos: problemas teóricos, cuestiones críticas, ocorrido em 2009 na cidade
de Rosario e, no ano seguinte, em Santa Fe.
31
Em grande parte destes artigos, é proposto que se pense o realismo para além de
uma simples relação entre signo e referente ou de uma ingênua apropriação da realidade
humana. Seguindo-se uma concepção mais abstrata do termo “real”, baseada na concepção
de Lukács, é denominado como realista aquele que capta e expressa de forma única as
forças latentes de uma sociedade. Assim sendo, mais do que uma aproximação ao que foi
escrito sobre o que ocorre ou ocorreu em determinado contexto sociocultural, é importante
analisar como se deu o processo narrativo, dando atenção especial aos procedimentos e
pontos de vista utilizados por cada autor para a invenção da realidade. (CONTRERAS,
2013, p. 07).
Sem o comprometimento de retratar fielmente os acontecimentos, o autor realista
evidencia hoje uma constante tensão entre o natural e o construído ao narrar novas imagens
da realidade social, cultural e política que nos cerca. “Novas” não por nunca terem sido
mencionadas, mas por serem postas a partir de um paradigma específico, determinado por
aquele que as selecionou e reinventou em seu texto.
Izabel Margatto (2012) aponta também uma série de características que tem feito
com que o conceito de realismo se distancie de sua concepção inicial. Em busca do que
acreditava ser a “verdade absoluta”, em oposição ao sentimentalismo romântico, o
Realismo do século XIX pretendia criticar diretamente a burguesia e, através de uma
evidente referencialidade advinda de um processo de observação e experimentação,
“estabilizava e ordenava uma determinada visão de mundo, construída a partir de um ponto
de vista preciso e determinado.” (MARGATO, 2012, p. 10).
No século XXI, o realismo deixa de dar enfoque apenas à classe burguesa,
relacionando-se agora a problemas sociais mais generalizados, que atinge a todas as classes.
Além disso, parece haver uma forma diferenciada de representação do real: “Entre efeitos e
experiências, surge a radicalidade de novas formas de retorno do real, tal como evocadas
ora através de corpos violados, submetidos ao limite do estado inumano, ora através do
conhecimento advindo do acontecimento traumático.” (MARGATO, 2012, p. 12). António
Pedro Pita, no mesmo livro, adverte que esse regresso à realidade não pressupõe uma
captação fotográfica do real, mas um enfoque no devir histórico-social.
32
É interessante observar que a presença de corpos violados ou inumanos costuma não
gerar estranheza dentro do contexto em que são inseridos. Renato Cordeiro Gomes (2012)
destaca cenas literárias e cinematográficas nas quais a violência urbana, marcada pela
presença de corpos mutilados e de sangue, parece estar passando por um processo de
naturalização/banalização. Para ele, “a crueldade estaria então não só no tema, ou na
realidade a que remete, mas também na enunciação, expressa pelo explícito” (GOMES,
2012, p. 77) e é justamente essa que dá ao “real” um caráter violento, sem mediações ou
eufemismos, dando indícios do desenvolvimento de um “realismo brutal e cruel”.
É importante destacar que a crítica ou redefinição do termo “real”/“realismo” não
objetiva afirmar que tudo seja simulacro/ficção na produção recente, em oposição a um
momento no qual houve a tentativa de se apreender o real, mas que é possível ou necessário
se pensar em um rompimento das dicotomias realidade e ficção ou objeto real e simulacro,
e considerar, assim como nas especulações de Ludmer (2010), a presença de uma
realidadficción.
Posto que o processo criativo da realidade é formado de acordo com os
procedimentos aplicados por cada autor, inviabiliza-se a invenção de uma categoria capaz
de abarcar distintas produções literárias e torna-se necessário utilizar estes artifícios como
centro de análise da narrativa recente, permitindo-nos falar não em Realismo como escola
literária, mas em “realismos”.
Dessa forma, diante da compreensão do real como múltiplo, não se pretende aqui
buscar uma forma estável de análise ou de classificação, mas pensar as produções latinoamericanas a partir de elementos que são nelas recorrentes, como a cidade fragmentada e o
corpo interdito.
1.1.
O arquipélago narrado: identificação das ilhas latino-americanas selecionadas
Como já foi sinalizado, a cidade não se apresenta na narrativa recente como uma
unidade coesa e indivisível, mas fragmentada, capaz de conter em si várias pequenas
cidades, denominadas por Josefina Ludmer (2010) de “ilhas urbanas”. Cada fragmento
33
desse arquipélago apresenta características e regras de convívio próprias e traz em si
habitantes que se identificam com tais particularidades, indivíduos estes, que por
apresentarem não apenas uma, mas inúmeras identidades (HALL, 2005), podem pertencer
também a inúmeras ilhas, desde que se adaptem adequadamente a cada uma delas.
Considerando, portanto, que um mesmo personagem pode formar seu próprio
arquipélago ao pertencer a distintos territórios e que seria inviável analisarmos todos na
presente dissertação, torna-se necessário definir sobre quais ilhas esta pesquisa pretende se
debruçar em meio a diversidade delas que aparecem nas obras dos autores selecionados.
Muitas pesquisas sobre Pedro Juan Gutiérrez e seu livro Trilogía sucia de La
Habana (1998) analisam a forma como Cuba é narrada. Aqui, porém, o enfoque será dado a
um lugar menor, mas igualmente significativo: o edifício em que o personagem-narrador
reside em Centro Havana, que parece refletir uma Cuba em crise. A autora Ana Paula Maia,
por sua vez, terá duas ilhas analisadas, que, embora estejam presentes em obras diferentes,
possuem características bem semelhantes: o depósito de lixo e o matadouro de gado, que
figuram, respectivamente, nos livros Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos (2009) e
De gados e de homens (2013); e, no caso de Washington Cucurto, iremos, seguindo o
convite do próprio narrador, abordar o Samber, casa de espetáculos e dança onde se respira
o universo da cumbia, lócus da narrativa que abre o livro Cosa de negros (2003).
Ao escolher determinadas ilhas em detrimento de outras não se pretende esgotar as
possibilidades de análise das mesmas, tampouco menosprezar pesquisas que tenham
seguido outro caminho de análise, mas sim, partindo destes espaços, demonstrar como suas
especificidades e normas parecem proporcionar o enfoque a um corpo interdito e uma
aproximação do humano ao animal, proposições desenvolvidas no decorrer dos capítulos
seguintes.
34
CAPÍTULO II. Corpo em Centro Habana: incivilidades em Trilogía sucia de La
Habana, de Pedro Juan Gutiérrez
Creo que la noción de moral no puede englobar en su
totalidad los problemas de nuestro tempo. Por el
momento, no hay más que dos dominios que incumben
directamente, digamos, a la actividad humana, cuando
es a la vez colectiva e individual. Esos dos dominios
son la política y la sexualidad.
Michel Foucault, em ¿Qué es usted, profesor Foucault?
O livro de contos ou de relatos5 Trilogía sucia de La Habana foi escrito entre 1994
e 1997 pelo escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez e publicado em 1998 pela editora
espanhola Anagrama. Composto pelos volumes Anclado en la tierra de nadie, Nada que
hacer e Sabor a mí, faz parte do chamado Ciclo de Centro Habana ou Ciclo Habanero6,
conjunto de cinco livros que relatam o cotidiano miserável de Havana em um momento de
crise econômica iniciada em dezembro de 1991, quando, devido à dissolução da União
Soviética, Cuba perdeu seus principais laços comerciais, o comércio teve uma redução de
80% e as condições de vida da população chegaram a um nível crítico (GOTT, 2006).
O governo declarou o início do Período Especial em Tempos de Paz, que incluía
cortes nos serviços de transporte e no fornecimento de eletricidade, e inclusive
racionamento de combustíveis e de comida para tentar fazer frente ao grave
desabastecimento. Pedro Juan Gutiérrez não nega o impacto desta crise em sua obra e
conta, em uma entrevista a Stephen Clark, o que estava ocorrendo neste período:
Trilogía es un libro de catarsis que yo escribo entre el 94 y el 97, en un momento en que yo
estoy saliendo de un divorcio muy traumático en que tuve que separarme de mis dos hijos,
con el país y todo un proyecto político en crisis. (...) todo vino junto en tres o cuatro años: el
país cae en una crisis tan terrible y empieza a haber mendigos por la calle, niños pidiendo
limosna en las calles a los turistas. La crisis fue muy violenta (...) Entonces cuando yo
empiezo a escribir la Trilogía necesitaba una catarsis y por eso esos cuentos son tan duros.
Escribí con mucho rencor, con mucha furia dentro de mí. Son cuentos muy furiosos.
(GUTIÉRREZ, 2000b)
5
Os termos “livro/coletânea de contos” e “livro/coletânea de relatos” são comumente utilizados tanto pela
crítica literária quanto pelo mercado editorial para definir Trilogía sucia de La Habana”. Também foram
encontrados, embora em menor quantidade, o rótulo de “série de novelas” ou a categoria geral de “romance”.
6
O Ciclo de Centro Habana é composto pelos livros Trilogía sucia de La Habana (1998), El Rey de La
Habana (1999), Animal tropical (2000), El insaciable hombre araña (2002) e Carne de perro (2003).
35
Devido à presença de uma Cuba decadente e de personagens que sofrem com as
consequências da crise econômica, enfrentando cotidianamente situações-limite, Trilogía
sucia de La Habana é vista como uma forte crítica ao governo cubano, embora o escritor se
declare como alguém que não possui interesse em narrar a vida política diretamente. Em
uma entrevista concedida à revista Playboy em 2001, o escritor afirma que, se é possível
identificar a realidade de Cuba em sua obra, é porque “a literatura se contamina com o
ambiente do escritor, ainda que ele não queira.” (GUTIÉRREZ, 2001)
Essa “contaminação” justificaria o fato de termos uma obra repleta de personagens
em situação-limite que utilizam o sexo, o rum e o tabaco como forma de fuga da caótica
realidade cubana desses anos. Narradas de forma crua e dura, através de uma linguagem
cotidiana, sem preciosismo ou barroquismos, sem adornos ou adereços, as paixões,
aventuras, decepções e alegrias presentes na trilogia parecem fazer parte do que Cordeiro
Gomes (2012) denomina como “realismo brutal e cruel” ao recusar-se o uso de palavras
que possam amenizar a realidade apresentada: “Yo hago una escritura muy cruda, muy
visceral, un strip-tease de mi alter ego. Trato de ser sincero al escribir. (…) Siempre he sido
un tipo corrosivo y ácido y eso se ve en la escritura.” (GUTIÉRREZ, 2002)
Este contexto de recessão e anomia que marca a dura realidade cubana assim como
o interesse de Pedro Juan em narrar o presente de maneira crua e visceral faz com que o
escritor cubano seja frequentemente considerado como um dos nomes mais destacados do
realismo sujo, uma categoria crítica, mas também uma etiqueta comercial que, segundo
Anke Birkenmaier (2004), é utilizada para definir uma série de recentes escritores latinoamericanos que apresentam em suas obras o pornográfico, a linguagem sexual explícita e o
politicamente incorreto.
Talvez a definição mais nítida do que seria este Realismo Sujo, tenha sido dada por
Bill Buford em um número especial da revista Granta sobre “Dirty Realism” em 1983,
referindo-se aos escritores norte-americanos Raymond Carver, Richard Ford e Tobias
Wolff, entre outros. Apesar de não se referir diretamente às produções literárias latinoamericanas, sua definição do Realismo Sujo como uma ficção dedicada ao detalhe
aparentemente supérfluo e banal, que descreve os problemas da condição humana, as
pessoas comuns e suas necessidades e desejos imediatos e privados, parece encaixar-se
perfeitamente à produção de Pedro Juan Gutiérrez, com seu narrador chamado Pedro Juan,
36
que aparece em quase todas as obras do Ciclo Habanero. Lajolo e Zilberman (2006 apud
Medeiros, 2010) usam ainda a expressão “soco no estômago” para referir-se a essa estética
utilizada por Pedro Juan Gutiérrez em obras nas quais se narra de maneira crua e incisiva a
realidade social.
O próprio escritor Pedro Juan Gutiérrez, na entrevista dada a Stephen Clark,
reconhece que sua obra está inserida em uma linha de realismo sujo, mas a define como
uma estética que busca chegar ao limite, seja dos personagens ou da própria literatura e não
apenas de uma escrita sobre a sujeira e o sexo:
Yo creo que ese libro está dentro de una línea muy fuerte del realismo sucio, entendido
como una manera de llegar siempre al límite de la literatura, al límite de los personajes, de
no esconder nada de los personajes. Eso es lo que yo entiendo del realismo sucio. Hay quien
cree que el realismo sucio es hablar de la suciedad material que puede haber en Centro
Habana o describir escenas sexuales. Pero para mí, escribir de esta manera es llegar al límite
de cada personaje, no esconder. (…) Estoy haciendo literatura, no periodismo ni testimonio,
pero con mucha sinceridad, tratando de decir lo que nadie se atreve a decir. Y a la editorial
que no le guste, que no publique mi libro. (GUTIÉRREZ, 2000b)
Esta fala nos indica a presença da pornografia em um sentido mais genérico do que
a simples exposição do baixo corporal. O que temos é a visibilização da obscenidade
compreendida como tudo o que costuma ser obscurecido, o que abarca tanto os elementos
referentes à alimentação, à excreção e ao sexo, que foram sendo restringidos ao âmbito do
privado no decorrer do processo civilizatório, quanto à violência e à miséria, temáticas
sistematicamente excluídas do projeto de formação de uma sociedade harmônica e
civilizada, bem como temas que anunciam o fracasso do projeto utópico da Revolução
Cubana.
Tal como Gomes (2012) e Contreras (2013), Luz Horne (2011) afirma que desde o
século XIX há uma ambição em se representar o presente, mas que esta parece ter assumido
uma nova configuração na vida do século XX para o XXI. Nas últimas décadas, “ciertos
aspectos bajos y turbios de lo humano y de la vida en sociedad” (HORNE, 2011, p. 10),
temas que já apareciam no naturalismo, tem ganhado destaque nas narrativas produzidas na
América Latina. A autora alerta que, apesar de não ser, necessariamente, uma novidade, a
presença destes aspectos baixos não só na literatura, como também nas artes plásticas e no
cinema, permite que se pense em uma nova configuração cultural, pois, da mesma maneira
que se alteram as formas de entendermos e percebermos a realidade ou de categorizarmos
aquilo que é verossímil, também se modificam os modos de representação da realidade.
37
Diante da diversidade de definições na crítica literária, Horne destaca três
características consensuais utilizadas para se definir o realismo clássico. A primeira seria
uma narrativa direta, cotidiana e ostensiva. A segunda, uma busca pela representação fiel da
realidade ou pela construção de um “efeito de real” e a terceira, uma localização espaçotemporal contemporânea e a ambição de fazer um testemunho da própria época.
Há, no entanto, na produção literária recente, uma tendência cada vez mais
generalizada que se destaca por adotar uma estética realista para expor uma crescente
marginalidade e mostrar a cidade como um espaço degradado, sujo e em ruínas, sem o
objetivo de ser representacional ou verossímil, mas de “señalar o incluir lo real en forma de
indicio o huella y, al mismo tiempo, producir uma intervención en lo real” (HORNE, 2011,
p. 12).
Como resposta àqueles que poderiam considerar o não comprometimento com o
verossímil como uma característica capaz de anular o termo “realista”, Horne afirma que a
ambição realista pode ser vista justamente no rompimento simbólico e racional que as
narrativas tem feito com a verossimilhança, demonstrando que há uma transformação
daquilo que se considera como realismo clássico, produzindo-se um realismo de outro
modo.
A busca pela verossimilhança e pela verdade nas narrativas recentes é tão constante
que Pedro Juan Gutiérrez escreve, em 2001, um texto sobre a verdade e a mentira/ficção na
literatura. Neste, o escritor diz que, desde a primeira apresentação do livro Trilogía sucia de
La Habana, a pergunta que mais o tem perseguido é a se tudo o que escreve é verdade. De
fato, isso é tão comum que, em uma das entrevistas pesquisadas por nós, o jornalista lhe
pergunta sobre a possibilidade de se contrair doenças provenientes da quantidade de orgias
narradas:
ÉPOCA: Pedro Juan, personagem de Trilogia, é o da vida real?
Gutiérrez: O livro é autobiográfico. Eu diria 90%, talvez.
ÉPOCA: Você narra orgias. Não temeu contrair doenças como Aids?
Gutiérrez: Foi um período específico. A situação do país piorava e o sexo era um escape
para todos. Mas tomava cuidados. Escrevi a Trilogia entre 1994 e 1997. Fui anotando os
contos à mão, como um desabafo. Botei o ponto final e nunca reli. (GUTIÉRREZ, 2010)
38
Pedro Juan Gutiérrez não recusa a ideia de que a narrativa tenha muito de
autobiográfico, ou de que ele lance mão de suas próprias experiências para contar a história
do Pedro Juan narrador-personagem da Trilogia, mas indica que “un escritor lo único que
puede hacer es coser una gran pieza con trozos de realidad y trozos de ficción. La gracia
consiste en que no se vean las costuras.” (GUTIÉRREZ, 2001b) Isso nos mostra que,
conforme propõe Sandra Contreras (2013), é essencial que se pense não na porcentagem em
que a narrativa retrataria, de fato, a vida do autor ou a crise de Cuba, mas na forma como
esse realismo sujo, brutal e cruel é narrado.
Portanto, essa dissertação não se propõe a apresentar respostas que indiquem se as
referências políticas foram ou não propositais, se representam uma crítica ao governo
cubano ou se a Trilogia é, de fato, 70, 80 ou 90% autobiográfica e representativa da
realidade, mas sim que é importante observarmos como o cenário de uma cidade em crise
contribui para o aparecimento de determinadas “incivilidades” na fatura da obra em análise.
2.1. Da cidade para a cobertura: debilitação do corpo e da cidade
A mí me interesa el superviviente y sus dramas. Ver el
mundo desde abajo, desde el barrio. Quiero escribir como
pintaba Brueghel, el Viejo. En sus cuadros no aparecen los
ricos y poderosos, sino la gente común. Y él vivía como
ellos. Gente sucia, desnutrida, borracha y desagradable. Era
un hombre culto, pero escondía todo lo que sabía. Pintaba
fotografiando lo que veía.
Pedro Juan Gutiérrez, em entrevista a La Tercera
Sabemos que a presença de elementos do cotidiano não é exclusiva do século XXI,
tampouco seu uso, único da literatura. O pintor Pieter Bruegel, no século XVI, já
apresentava personagens que integram grupos frequentemente excluídos de protagonismo
nas artes plásticas. Também dava destaque para elementos do baixo corporal, em especial, a
alimentação. Logicamente, não foi o único nome a fazê-lo,7 mas recebe aqui destaque pela
7
Na mesma linha de Brughel, o Velho, Diego Velázquez (1599-1660) pintou quadro “Los borrachos”,
embora em sua pintura ainda apareçam elementos de um mundo elevado. Uma celebração mais acorde com
39
possibilidade de se estabelecer relações entre as duas obras selecionadas (ver Imagens 1 e
2) e a de Pedro Juan Gutiérrez, numa perspectiva que ressalta uma semelhança entre sua
narrativa e as escolhas artísticas de Pieter Bruegel, o Velho (1525-1569).
Imagem 1: The Peasant Wedding8
Imagem 2: The Land of Cockaigne9
esse tipo de olhar que privilegia o baixo corporal pode ser encontrada na pintura de José Malhoa (1855-1933),
apropriadamente intitulada “Festejando o S. Martinho”, mas que se tornou mais conhecida como “Os
Bêbados”. No quadro, podemos ver um detalhe do ambiente sórdido de uma taberna na qual se destacam seis
de aldeões bêbedos, sentados à volta de uma mesa com sardinhas, castanhas e vinho.
8
BRUEGEL, Pieter. The Peasant Wedding (1567). Óleo sobre tela. Viena, Kunsthistorisches Museum.
9
BRUEGEL, Pieter. The Land of Cockaigne (1567). Óleo sobre tela. Munique, Alte Pinakothek.
40
A primeira imagem, conhecida como “O casamento camponês” ou “Bodas de
Caná”, chama a atenção por colocar em primeiro plano não os noivos ou a celebração do
casamento, mas o momento do banquete, com seus integrantes levando a comida ou a
bebida à boca. Elias (2011) já nos mostrou o quanto, desde a Idade Média, os hábitos à
mesa foram privilegiados nos manuais de etiqueta. Beber grandes goles de bebida
diretamente da jarra ou colocar os dedos sujos no vasilhame, ações que aparecem retratadas
por Bruegel em seu quadro, surgem como particularmente criticáveis desde o século XIII
nos manuais de conduta.
Apesar de não se ter muitos dados biográficos a respeito de Pieter Bruegel, sabe-se
que ele tinha o hábito de frequentar casamentos e outras festas vestido de camponês para ter
contato com as classes populares e, assim, inspirar-se para as suas criações. Talvez tenha
sido a escolha por representar essa população em específico que lhe tenha proporcionado a
possibilidade de mostrar um aspecto do baixo corporal sem os filtros instaurados pelo
processo civilizador. Isso ocorre porque a classe camponesa, como nos indica Antoine Prost
(2009), por muito tempo sofreu uma restrição de espaço em suas habitações, não sendo
possível a instauração de uma divisa clara entre o público e o privado. A mescla, pois, entre
os dois âmbitos proporcionou um entrosamento maior entre os indivíduos integrantes de
diferentes grupos, fazendo com que a exposição do íntimo se naturalizasse a ponto de se
tornar desnecessário o desenvolvimento da noção de obscenidade de certas condutas
perante os outros.
No segundo quadro, a presença de homens caídos ao chão, provavelmente dormindo
após comer e/ou beber demasiadamente, também não aparece de maneira isolada. Não há
uma indicação clara de que se esteja retratando o universo camponês, mas sabemos que a
atitude dos homens está relacionada a um ambiente específico: Cockaigne, um país
mitológico no qual não há trabalho e todos podem desfrutar de modo desmesurado da
comida, bebida e do sexo sem que sejam acusados de gula ou luxúria.
Assim como ocorre nos quadros de Bruegel, o baixo corporal também se encontra
relacionado ao espaço e às pessoas em meio aos quais Pedro Juan vive. Para ver como isso
se configura na narrativa, analisemos a seguinte cena, que chama a atenção por abordar o
41
sexo por um viés material, concreto, que a sociedade, ao longo do processo civilizador,
restringiu ao âmbito do privado:
Ali perto mora Margarita. Fazia um bom tempo que não a via. Quando cheguei, ela estava
lavando roupa e suava. Ficou contente e foi tomar banho. Éramos namorados furtivos —
não me levem a mal, tenho que dizer de algum jeito — havia quase vinte anos e, quando nos
vemos, trepamos primeiro e depois conversamos bem relaxados. Por isso não a deixei tomar
banho. Tirei a roupa dela e lhe passei a língua de alto a baixo. Ela fez o mesmo: tirou minha
roupa e me passou a língua de alto a baixo. Eu também estava muito suado de tanta bicicleta
e tanto sol. Ela parecia recuperada e engordando. Não estava mais pálida. Tinha as nádegas
duras, redondas e sólidas de novo, apesar de seus quarenta e seis anos. Os negros são assim.
Cheios de fibras e músculos, com muito pouca gordura, e uma pele limpa, sem espinhas.
Ah, não resisti à tentação e, depois de um bom tempo brincando, ela já tivera três orgasmos,
fui enrabá-la. Lentamente, com o pau bem molhado de líquidos da vagina. Pouco a pouco.
Metendo e tirando e masturbando o clitóris com a mão. Ela esperneava de dor, mas me
pedia mais e mais. Mordia o travesseiro, mas retrocedia a bunda e me pedia que metesse até
o talo. Essa mulher é fabulosa. Nenhuma outra goza mais que ela. Assim ficamos unidos
por muito tempo. Quando tirei o pau, estava melado de merda e ela sentiu nojo. Eu não. Eu
tinha o cínico alerta, não dormia nunca. O sexo não é para gente escrupulosa. O sexo é um
intercâmbio de líquidos, de fluidos, saliva, hálito e aromas fortes, urina, sêmen, merda, suor,
micróbios, bactérias. Ou não é. Se for apenas ternura e espiritualidade etérea, não passa de
uma paródia estéril do que poderia ser. Nada.10 (GUTIÉRREZ, 1999, p. 10-11)
Nesta cena, são apresentadas três justificativas que permitem a Pedro Juan narrar
sua relação com Margarita: a de que os dois eram namorados furtivos, a de que não se viam
há quase vinte anos e a de que já é costume que só conversem depois. A partir dessas
proposições, podemos identificar entre eles um alto nível de proximidade, que parece se
intensificar com o tempo em que estão afastados e que permite a realização de um ato
sexual como o apresentado. Além disso, considerando-se o laço afetivo que os une, o limpo
10
No original: “Cerca vive Margarita. Hacía tiempo que no nos veíamos. Cuando llegué estaba lavando y
sudaba. Se alegró y fue a bañarse. Éramos novios furtivos -no me hagan caso, de algún modo tengo que
decirlo- hacía casi veinte años y cuando nos vemos primero templamos y después conversamos muy
relajados. Así que no la dejé bañarse. Le quité la ropa y le pasé la lengua por todas partes. Ella hizo lo mismo:
me quitó la ropa y me pasó la lengua por todas partes. Yo también estaba muy sudado de tanta bicicleta y
tanto sol. Se estaba reponiendo y engordaba. Ya no estaba demacrada. De nuevo tenía las nalgas duras,
redondas y sólidas a pesar de sus cuarenta y seis años. Los negros son así. Llenos de fibras, y músculos, con
muy poca grasa, y una piel limpia, sin granos. Oh, no resistí la tentación y, después de un buen rato jugando
con ella, ya había tenido tres orgasmos, se la metí por el culo. Muy despacio, bien mojada con los líquidos de
su vagina. Poco a poco. Metiendo y sacando y masturbándole el clítoris con mi mano. Ella rabiaba de dolor,
pero me pedía más y más. Mordía la almohada, pero retrocedía el culo y me pedía que se la metiera hasta el
tronco. Es fabulosa esa mujer. Ninguna disfruta más que ella. Así estuvimos unidos mucho rato. Cuando se la
saqué estaba embarrada de mierda, y ella se asqueó. Yo no. Yo tenía el cínico alerta, nunca dormía. Es que el
sexo no es para gente escrupulosa. El sexo es un intercambio de líquidos, de fluidos, saliva, aliento y olores
fuertes, orina, semen, mierda, sudor, microbios, bacterias. O no es. Si sólo es ternura y espiritualidad etérea
entonces se queda en una parodia estéril de lo que pudo ser. Nada. Nos dimos una ducha y quedamos listos
para un café y para conversar un rato. Ella quería que la acompañara a El Rincón.” (GUTIÉRREZ, 1998: 1011)
42
e o higiênico não seriam condizentes com a relação que une Margarita e Pedro Juan, o que
tornaria o sexo “uma paródia estéril do que poderia ser.” (GUTIÉRREZ, 1999, p. 11).
O próprio lugar em que estão também proporciona a emergência do baixo corporal
de maneira naturalizada, pois o fato de terem tido um relacionamento anteriormente faz
com que a casa de Margarita torne-se uma Cockaigne para Pedro Juan, onde os prazeres
podem ser desfrutados sem limites pré-definidos. Além disso, o fato de a cena se desenrolar
na casa de Margarita, e não na “ilha” do edifício de Centro Habana, torna-se significativo,
pois temos aí ainda uma reserva de espaço privado. Por isso, a costumeira omissão dos
líquidos, secreções, excreções e cheiros não se faz necessária. Estes fatores deixam de ser
incômodos e tornam-se naturalizados, em contraponto ao que ocorre na cena seguinte,
quando os dois tomam banho para ir a “El Rincón”, pequeno povoado para onde fiéis
católicos se dirigem para fazer e pagar promessas no Santuário de São Lázaro, em que se
torna necessária outra postura.
Essa mudança de atitude ocorre porque, como postula Stuart Hall (2005), o
indivíduo da pós-modernidade não apresenta uma única identidade, sólida, coesa e
imutável, mas várias que se reconfiguram constantemente. Tal multiplicidade permite a
rápida adaptação a cada uma das ilhas do arquipélago pelo qual o indivíduo circula
diariamente, tal como percebemos no trecho analisado, no qual tanto Margarita quanto
Pedro Juan assumem uma conduta diferenciada ao transitar de um espaço a outro.
Por mais que esteja previamente justificada e relacionada a uma situação específica,
com a utilização de uma linguagem direta, apesar de se encontrarem termos considerados
didáticos por Maingueneau (2010), como “vagina” e “clitóris”, e não se referir ao órgão
sexual masculino explicitamente, mas através de expressões como “se la metí” e “se la
saqué”11, a cena chama a atenção por sua forma de narrar o sexo, ato que deveria
permanecer restrita ao âmbito do privado e que aqui assume o primeiro plano do relato. Ao
defini-lo como “um intercâmbio de líquidos, de fluidos, saliva, hálito e aromas fortes, urina,
sêmen, merda, suor, micróbios, bactérias”12 (GUTIÉRREZ, 1999, p. 11), Pedro Juan aproxima
11
Embora apareça na tradução a referência ao órgão sexual masculino, isso não ocorre na versão original.
No original: “un intercambio de líquidos, de fluidos, saliva, aliento y olores fuertes, orina, semen, mierda,
sudor, microbios, bacterias”
12
43
sua narrativa de um discurso obsceno/pornográfico, conforme o definido por Maingueneau
(2010) como aquele que traz à tona o que o homem tem de mais evidente e elementar, de
uma forma direta, sem subterfúgios e que, portanto, está destinado à proibição, ao
anonimato e à clandestinidade. Isto diferenciaria este discurso do erotismo, no qual
predominam os usos de eufemismos, duplo sentido, metonímias, metáforas, entre outros
recursos discursivos necessários para a espiritualização do sexual. Cenas como essas
causam incômodo por abordar a realidade a partir de um viés da materialidade e da
referência direta, trazendo para um lugar protagônico aquilo que a sociedade ocidental
recalcou em nome dos bons modos e das coisas do espírito, que foram priorizados ao longo
do processo civilizador.
Essa busca pelo carnal pode ser comparada com a literatura carnavalesca descrita
por Bakhtin (2010), na qual encontramos uma constante inversão entre o alto e o baixo
substituindo-se o destaque antes dado ao espiritual pelo enfoque à parte inferior do corpo,
como seus orifícios, secreções e excreções. Porém, se, na obra de Rabelais analisada por
Bakhtin (2010), o rebaixamento tem como objetivo destronar elementos sagrados e
elevados para então reinterpretá-los e renová-los no plano material e corporal, o que
encontramos na obra de Pedro Juan Gutiérrez parece ser um dispêndio improdutivo, termo
utilizado por Georges Baitalle (2013) para nomear ações que tem seu fim em si mesmas.
Em um momento no qual há uma incessante instauração de controle social,
enquadrando os sujeitos em parâmetros que impõem a busca por utilidade material,
fundamental para as necessidades de produção e conservação da sociedade, o prazer tornase uma patologia, sendo aceito apenas se for moderado ou reduzido a determinados limites.
Se há uma oposição a esta atitude civilizada, ele torna-se parte do dispêndio improdutivo,
um conjunto de ações que não apresentam função ou utilidade social, como a atividade
sexual desviada de sua finalidade genital e/ou da procriação, tal como ocorre na narrativa
de Pedro Juan, em que o sexo tem a exclusiva função de causar prazer e, da mesma forma
que o rum e as drogas, servir como uma válvula de escape às mazelas que enfrentam os
sujeitos em sua cidade altamente degradada pela crise.
É importante destacar que não apenas o sexo recebe protagonismo na obra de Pedro
Juan Gutiérrez, mas também a excreção, elemento que durante o processo civilizador
44
também foi restringida ao âmbito do privado e posta na condição de obscenidade, fazendose necessária a criação de estratégias para mantê-lo afastado do âmbito público.
Nos manuais de conduta do século XVI a XVIII analisados por Norbert Elias
(2011), já se recomendava que os atos de urinar e defecar fossem, sempre que possível,
realizados longe de ambientes públicos e de uso comum, como portas, janelas, corredores e
escadas, e que o som das flatulências, se não fosse possível evitá-lo, fosse omitido com uma
simulação de ataque de tosse. Em alguns manuais pedia-se que não se lavassem as mãos
após o uso do banheiro, para evitar que os demais levantassem suspeitas sobre o ato
realizado.
Apesar de já existirem tais normas, essas temáticas eram tratadas de forma
naturalizada. Deveriam ser evitadas as demonstrações públicas da excreção, mas não eram
proibidas, visto que o fato de impedi-las poderia causar sérios problemas de saúde. No
entanto, os sentimentos de vergonha, nojo e embaraço na sociedade ocidental para com
essas temáticas foram sendo desenvolvidos à medida que o indivíduo os internalizava,
fazendo com que fossem postas para fora de cena todas as referências ao baixo corporal,
cuja menção quase desaparece em todo o século XIX dos manuais. Um indivíduo que não
aprendesse a lidar adequadamente com esses fatores seria excluído do convívio social e/ou
associado a alguma doença patológica.
Apesar de, segundo Nobert Elias (2011), termos no século XIX certo “relaxamento”
quanto à menção às funções corporais, até hoje são produzidas estratégias para ocultá-las
ou mostrá-las da melhor forma possível. Além de pílulas e produtos que prometem deixar o
ambiente com cheiro de chocolate, flores ou óleos cítricos e a criação de normas na
construção civil para se ocultar possíveis ruídos, foram criadas ainda, em dezembro de
2014, cápsulas com glitter que prometem deixar as fezes coloridas e brilhosas. 13
No plano literário, destacamos aqui dois autores que colocaram a excreção em
primeiro plano: Rubens Fonseca no conto “Copromancia” (2001) e Julio Cortázar no conto
“Lucas y sus pudores” (2011). No primeiro, o narrador, apesar de confessar já ter sentido
repugnância ao observar excrementos, começa a analisar as próprias fezes, medindo-as,
45
pesando-as e descrevendo-as diariamente, chegando a fazer previsões a partir de sua
aparência. Quando encontra uma mulher pela qual se apaixona, tem vergonha e medo de
lhe contar seus estranhos hábitos, mas, após a descoberta não esperada por parte de sua
amada, sente forte emoção e fortalecimento de seus laços quando ela, mais tarde, o deixa
observar suas fezes. No caso de Lucas, há um duplo esforço para o ocultamento do
processo de excreção numa oportunidade em que, encontrando em uma reunião de amigos
no apartamento de um deles, vê-se obrigado a usar o vaso sanitário. Enquanto ele, dentro do
banheiro, esforça-se para disfarçar sua atividade, as pessoas do lado de fora aumentam o
tom de voz para ocultar os ruídos que transpassam as fronteiras dos ambientes. Para Lucas,
a ida ao banheiro traduz-se em um momento de intenso horror que o deixa aflito perante
duas circunstâncias: enquanto está lá dentro, devido à impossibilidade de prever ou
controlar o que seu intestino pode produzir, e ao sair, por temer que, quando o próximo
entrar no banheiro, saiba o que ocorreu.
Trazemos aqui esses dois exemplos para compará-los à seguinte situação descrita
por Pedro Juan:
Fui para meu quarto na cobertura. Em Centro Havana. É um lugar bom. O problema ali são
os vizinhos e o banheiro coletivo. O banheiro mais asqueroso do mundo, partilhado por
cinquenta vizinhos que se multiplicam, porque a maioria vem do leste. Vem para Habana às
pencas, fugindo da miséria. Em Guantánamo, o cara entra para a polícia e logo consegue ser
transferido para Havana (em Havana ninguém quer ser policial) e arrasta toda a família com
ele. E conseguem viver todos num quarto de quatro metros por quatro. Não sei como, mas
conseguem. E no banheiro a merda chega até o teto. Nesse banheiro cagam, mijam e se
banham todos os dias nada menos do que duzentas pessoas. Sempre tem fila. Mesmo que
você esteja se cagando, tem de entrar na fila. Muita gente, eu entre eles, nunca entra na fila:
cago num papel e jogo o embrulho de merda na cobertura de um edifício ao lado, que é
mais baixo. Ou na rua. Dá no mesmo. (GUTIÉRREZ, 1999, p. 78)14
13
Reportagem disponível em: ˂http://www.universoaa.com.br/notas/empresa-cria-pilula-com-glitter-quetorna-fezes-coloridas-e-brilhantes/˃ Acesso em dezembro de 2014.
14
No original: “Fui para mi cuarto en la azotea. En Centro Habana. Es un buen lugar. Lo jodío allí son los
vecinos y el baño colectivo. El baño más asqueroso del mundo, compartido por cincuenta vecinos, que se
multiplican, porque la mayoría son de Oriente. Vienen a La Habana en racimos, huyendo de la miseria. En
Guantánamo uno se mete a policía y enseguida logra que lo trasladen a La Habana (en La Habana nadie
quiere ser policía) y ése arrastra a toda su familia. Y se las arreglan para vivir todos en un cuarto de cuatro por
cuatro metros. No sé cómo. Pero lo hacen. Y en el baño la mierda llega al techo. En ese baño cagan, mean y
se bañan todos los días no menos de doscientas personas. Siempre hay cola. Aunque te estés cagando tienes
que hacerla. Mucha gente, yo entre ellos, nunca hacemos cola: cago en un papel y lanzo el bulto de mierda a
la azotea del edificio de al lado, que es más bajo. O a la calle. Da igual. ¡Un desastre! Pero es así. Uno a veces
está en baja, y hay que acostumbrarse.” (GUTIÉRREZ, 1998, p. 81)
46
Considerado, para essa pesquisa, como uma ilha urbana, o edifício onde Pedro Juan
mora parece assumir a degradação da cidade onde está localizado. Apesar de alguns turistas
tirarem foto da sacada por causa de sua majestosa e antiga estrutura, por dentro, o prédio dá
sinais de que pode desmoronar a qualquer momento, refletindo a crise que se instaura em
Cuba durante o Período Especial, cenário dominante da narrativa. Os moradores
constantemente reclamam do mau estado dos quartos e da falta de água, comida e gás,
valorizando pequenos elementos que seriam considerados lixo em outros contextos, como
pedaços de sabão ou restos de desodorante.
Vimos que o privado e o íntimo só puderam ser instaurados de maneira generalizada
graças à possibilidade de uma ampliação dos espaços internos da casa, possibilitando a
divisão de cômodos e a presença de uma linha divisória entre estes e o espaço externo da
rua. No prédio onde mora Pedro Juan, no entanto, essa divisão torna-se precária ou
inexistente, visto que, em muitos casos, um único quarto abriga toda uma família. Além
disso, há quartos em que uma das paredes desmoronou, expondo-se o íntimo ao olhar
externo. Todas essas situações provocam uma expansão do privado, diluindo-se a fronteira
entre o que pode ser externalizado e o que deve ser mantido fora de cena, fazendo com que
se banalizem ações como a de urinar e defecar nas escadas ou no elevador, algo não
condizente com as normas que o processo civilizador instituiu.
Diante da degradação apresentada, não se faz necessário o cuidado que Lucas tem
para disfarçar os odores e ruídos produzidos perante as pessoas do entorno. O contato com
as fezes torna-se tão naturalizado quanto o é para o narrador do conto de Rubem Fonseca.
Portanto, embrulhá-las e jogá-las no edifício vizinho ou na rua não se torna algo tão
desagradável ou ofensivo. Na verdade, diante da cena apresentada, dificilmente conseguese imaginar uma solução mais viável do que a proposta por Pedro Juan.
Essa sensação de que não há outra saída para o leitor a não ser enfrentar a situação
apresentada, coloca Pedro Juan Gutiérrez na categoria denominada por José Ovejero (2012)
de autor cruel, aquele que, contrário ao uso de formas suavizadas do mundo, quer levar o
leitor a refletir ou, pelo menos, a inquietar-se mediante a realidade cruel que lhe é exposta,
não só a partir de cenas referentes a sexo ou à excreção, mas também daquelas que
mostram as camadas miseráveis da sociedade, como os mendigos e velhos que são
47
recolhidos das ruas, junto com o lixo, ou as mulheres que precisam prostituir-se para
conseguir alimento, dados que aproximam a narrativa da concepção de pornografia de Karl
Erik Schollhamer (2013), como aquela que mostra os problemas sociais que costumam ser
omitidos de forma generalizada.
No entanto, Ovejero sinaliza que, assim como os corpos nus em filmes
pornográficos ou os corpos dilacerados nos de terror, as referências cruéis na obra literária,
“más que atacar la moralidad establecida, son una válvula de escape a la represión que toda
moral impone; pero no cuestionan esta, sencillamente invitan a ignorarla durante unas horas
en la oscuridad del cine o en la clandestinidad de la propia vivienda.” (OVEJERO, 2012, p.
39). Esse recurso à crueldade é observado em diversos trechos da Trilogía sucia de La
Habana, como o que segue, no qual, em uma espécie de meta-narratividade, Pedro Juan
explicita seu interesse por relatar de maneira crua a degradação da vida em Cuba através da
exposição dos aspectos “imorais” do corpo e de elementos negados da realidade social
como os que aparecem em distintos momentos da Trilogía:
Sou um revolvedor de merda. E não é que eu esteja procurando alguma coisa na merda.
Geralmente não encontro nada. Não posso dizer-lhes: “Oh, olhem só, encontrei um brilhante
no meio da merda, ou encontrei uma coisa bonita”. Não é assim. Não procuro nada e não
encontro nada. Por tanto, não posso demonstrar que sou um tipo pragmático e socialmente
útil. Só faço como as crianças, que cagam e depois brincam com a própria merda, cheiram,
comem e se divertem até que chega mamãe, tira eles da merda, dá banho, perfuma e ralha
com eles, dizendo que não podem fazer aquilo. Só isso. Não me interessa o decorativo, nem
o bonito, nem o doce nem o delicioso. (GUTIÉRREZ, 1999, p. 101-102).15
O narrador se assume como alguém que exerce um ofício desprezado, rejeitado
pelas pessoas em geral, assim como o são os ofícios de coleta de lixo, de sepultamento ou
de limpeza de fossas, mas com a diferença de que ele não tem como objetivo ocultar esses
elementos incômodos ou limpar a imundície da cidade. Ele enfoca os aspectos sujos da
sociedade por um prazer próprio, como um entretenimento improdutivo, assim como as
15
No original: “Soy un revolcador de mierda. Y no es que busque algo entre la mierda. Generalmente no
encuentro nada. No puedo decirles: «Oh, miren, encontré un brillante entre la mierda, o encontré una buena
idea entre la mierda, o encontré algo hermoso.» No es así. Nada busco y nada encuentro. Por tanto, no puedo
demostrar que soy un tipo pragmático y socialmente útil. Sólo hago como los niños: cagan y después juegan
con su propia mierda, la huelen, se la comen, y se divierten hasta que llega la mamá, los saca de la mierda, los
baña, los perfuma, y les advierte que eso no se puede hacer. Eso es todo. No me interesa lo decorativo, ni lo
hermoso, ni lo dulce, ni lo delicioso.” (GUTIÉRREZ, 1998, p. 104-105)
48
crianças mencionadas no fragmento, que brincam inocentemente com as próprias fezes sem
pensar ou se preocupar com possíveis consequências.
Esse trecho metanarrativo indica que sua escrita não pretende assumir uma função
transgressora. Adentrar-se nos aspectos baixos e sujos da sociedade funciona como um
dispêndio improdutivo (AGAMBEM, 2013), uma ação que não possui uma função
valorizada socialmente. Não se questiona a existência de padrões de escrita previamente
estabelecidos; apenas opta-se por desconsiderá-los e fazer diferente. Assim como, para os
escritores dos manuais de conduta do século XVI, não atender às necessidades de excreção
poderia ocasionar problemas de saúde, para Ovejero (2013), não é saudável ocultar o
escuro, o sombrio, o feio e o mesquinho, visto que integram a vida de cada indivíduo.
Através da figuração do corpo e do lócus de enunciação, que de alguma maneira
também pode ser lido como uma metonímia do corpo da cidade representada no edifício de
Pedro Juan em toda a sua precariedade, parece ser apresentado, insistentemente, um mundo
(uma ilha) no qual já não faz sentido o predomínio das normas do processo civilizatório. A
partir do olhar para o próprio corpo e para o corpo dos outros sujeitos com os quais interage
em um ambiente bastante delimitado, Pedro Juan mostra como o corpo é culturalmente
construído e, com um ponto de vista específico, cronológica e geograficamente falando,
apresenta padrões diferenciados que se manifestam em hábitos, comportamentos e valores
de um grupo social no qual há uma espécie de regressão ao lado animal do ser humano.
Como nos indica Agambem (2013), o que torna o homem superior em relação aos animais
é a sua capacidade de controlar seus instintos. Assim sendo, tanto o narrador como os
personagens que vai encontrando ao longo da narrativa tornam-se seres animalizados, que
buscam simplesmente meios para a própria sobreviver e conseguir passar pelos dias difíceis
da melhor maneira possível:
Os edifícios se arruinaram por falta de cuidados e pouco a pouco se transformaram em
cortiços, com milhares de pessoas amontoadas feito baratas. Gente magra, mal alimentada,
suja, sem emprego, tomando rum a toda hora, fumando maconha, tocando tambor, se
reproduzindo como coelhos. Gente sem perspectiva, com um horizonte curto de mais. E
rindo de tudo. (…) No meio da derrocada, as pessoas riem, sobrevivem, tentam viver o
49
melhor possível, e aguçam seus sentidos e seu olfato, como fazem os animais mais frágeis e
diminutos. (GUTIÉRREZ, 1999, p. 296-297)16
Os personagens de Pedro Juan Gutiérrez, assim como os de Rubem Fonseca,
analisados por Vera Figueiredo em Os crimes do texto (2003), são carentes de referenciais
transcendentes. Os prazeres com os quais Pedro Juan e os demais personagens buscam
aplacar seus desejos são todos referentes ao corpo em sua fisicalidade, baseados em
elementos que foram sendo recalcados pelo processo civilizador. Para além do gozo sexual,
o personagem-narrador demonstra satisfação em elementos igualmente biológicos. No livro
Trilogía sucia de La Habana, há uma cena em particular que demonstra a satisfação do
personagem-narrador ao conquistar um momento de privacidade durante sua ida ao
banheiro. Diante da enorme fila que sempre se forma no banheiro de seu edifício, esse
memento de recolhimento se torna impossível. Por conta disso, quando o alcança, torna-se
essencial e quase inevitável dar destaque à sua conquista na narrativa:
Fui ao banheiro. Gosto de cagar comodamente, com sossego. Mas onde eu moro não posso.
Temos um banheiro partilhado por todos os vizinhos da cobertura e é uma desgraça porque
tem sempre alguém cagando na calça que bate na porta e grita para você acabar logo e sair.
Bom, pois levei uma revista para cagar e ler, sem pressa. (GUTIÉRREZ, 1999, p. 85).17
O corpo recebe destaque a partir de seus aspectos fisiológicos, aqueles que foram
sendo reprimidos no processo de formação social do homem ocidental “porque lembram o
que nele é natureza, matéria perecível que não o distingue dos outros animais”
(FIGUEIREDO, 2003, p. 119). Segundo Edna dos Santos (1999), esse controle sobre o
corpo e a produção de comportamentos desejáveis na América Latina foram criados pelo
discurso médico do final do século XVIII e início do XIX, quando se estabeleceu uma
espécie de domesticação corporal, civilizando as condutas e criando-se a imagem de um
indivíduo polido, disciplinado, contido e, por isso, civilizado. Tais contratos ou
convenções, porém, não são cumpridas por Pedro Juan. Ao se banalizarem os aspectos do
16
No original: “Edificios se arruinaron por la falta de cuidados y poco a poco se convirtieron en cuarterías
con miles de personas hacinadas como cucarachas. Personas delgadas, mal alimentadas sucias, sin empleo,
tomando ron a todas horas, fumando mariguana, tocando tambor, reproduciéndose como conejos. Gente sin
perspectiva, con un horizonte demasiado corto. Y riéndose de todo. (…) En medio de la debacle la gente ríe,
sobrevive, intenta pasarlo lo mejor posible y aguza sus sentidos y su olfato, como hacen los animales más
débiles y diminutos.” (GUTIÉRREZ, 1998, p. 296)
17
No original: “Fui al baño. Me gusta cagar cómodamente, con lentitud. Pero donde yo vivo no puedo
hacerlo. Tenemos un baño compartido por todos los vecinos de la azotea y eso es una desgracia porque
50
baixo corporal que deveriam ser recalcados pelo indivíduo, desfazem-se as dicotomias de
alto/baixo, digno/indigno, normal/patológico e, até mesmo, de humano/animal, conforme
assinala Josefina Ludmer (2010, p. 148).
2.2. O corpo e o edifício em ruínas: os restos e o excesso
É fácil ser audacioso neste país; basta dizer aquilo que todo
mundo pode ver se quiser se dar ao trabalho.
Boris Vian, em Vou cuspir no seu túmulo
Corpos exibidos, corpos nus, corpos feridos, corpos abertos. Corpos que falam sem
dizer uma palavra e palavras que narram corpos. Textos que vêm falar do fisiológico e
põem o leitor em contato com os corpos dos personagens em sua intimidade às vezes
radical.
As narrativas de Pedro Juan apresentam sequências repetidas das ações mais
simples e cotidianas, comer, beber, excretar, fazer sexo, num ciclo que permite ao leitor
ingressar num mundo social complexo no qual a racionalidade foi magnificada e o corpo
(com seus prazeres e necessidades) negado ou postergado. Através de diferentes estratégias
de controle, o regime cubano estabeleceu numerosos mecanismos institucionais com vistas
a produzir um homem novo, um sujeito utópico livre das taras da burguesia. Em uma obra
recente encontramos de modo indireto uma verdadeira poética da narrativa de Pedro Juan,
na qual podemos ler o seguinte diálogo:
― ¿Te acuerdas, Conde, cuando cerraron los clubes y los cabarets porque eran antros de
perdición y rezagos del pasado?
― A veces me pongo a pensar… ¿Cuántas cosas nos quitaron, nos prohibieron, nos negaron
durante años para adelantar el futuro y para que fuéramos mejores?
―Lo peor es que nos quitaron la posibilidad de vivir al ritmo que vivía la gente en el
mundo. Para protegernos…” (PADURA FUENTES, 2014, p. 198)
siempre hay alguien, cagándose en los pantalones, que te toca en la puerta y te grita que te apures y salgas.
Bueno, pues me llevé una revista para cagar y leer, sin prisa.”
51
A exposição do corpo e a opção inegociável pelo prazer se revela como discurso dos
rebeldes e desobedientes diante de uma regime que impõe como causa única a utopia da
formiga (utopia da ordem) fundada no controle absoluto do homem.
Com um conjunto de pequenas histórias que nunca se articulam para narrar um
relato maior, Pedro Juan Gutiérrez concentra seu olhar naqueles sobre os quais se abate um
conjunto de regras e regulações, naqueles que infringem todas as formas de conduta, não
apenas os parâmetros impostos pelo regime, mas também os códigos de civilidade. Seus
personagens preferidos se encontram entre os desvalidos e marginais da sociedade em crise.
Apesar dos embaraços gerados pelo Período Especial, compraz-se em viver em meio à
corja sórdida de um cortiço ou de um edifício em ruínas:
Às vezes achava aquela rotina preferível ao cortiço, aos grilhões dos negros e à miséria
absoluta. Outras, queria mandar à merda o petróleo e voltar ao cortiço. Eu, o eterno
indeciso, sempre confuso até a medula. Confuso como um péndulo. Pensando bem, prefiro o
patético à sordidez. (GUTIÉRREZ, 1999, p. 176)18
Há uma espécie de regressão parcial à barbárie como forma de defender alternativas
aos ideais de civilidade impostos hegemonicamente e aos princípios tópicos que, na prática,
implicam em um regime autoritário. Os bárbaros estão chegando juntamente com o
processo que lança por terra as grandes utopias. Com a crise dos grandes relatos, restam os
pequenos relatos. Portanto trata-se de desenvolver uma narração que, tomando como
elemento estrutural da figuração do corpo os dados relativos à alimentação, à excreção e ao
sexo, projeta imagem do humanoanimal ou do animal tropical, como prefere Pedro Juan.
Outra base dos referentes corporais são os que remetem ao corpo da cidade na
imbricação com o corpo humano. Essa interseção é representada na maioria das vezes pelo
edifício no qual reside o protagonista. O próprio corpo com suas marcas e ruínas (a
decadência física e moral da cidade e do protagonista-narrador da maioria dos relatos é
18
No original: “A veces creía que esa rutina era preferible al solar, al brete de los negros y a la miseria
absoluta. Otras veces quería mandar al carajo el petróleo y regresar al solar. Yo, el eterno indeciso,
confundido siempre hasta la médula. Confundido como un péndulo. Después, de todo, prefiero el patetismo a
la sordidez. No tenía tiempo ni fuerzas para pensar. Y eso era bueno. La vida precipitada, azarosa, me ha
conducido siempre a callejones sin salida” (GUTIÉRREZ, 1998, p. 179).
52
sublinhada insistentemente) se converte em recurso para uma narrativa autoficcional19 que
é ao mesmo tempo o relato de uma sociedade através das rugosidades da cidade.
Em vários dos contos de Trilogía sucia de La Habana, o edifício foi retratado de
forma alegórica. Elementos da arquitetura, aspectos das alterações incorporadas à estrutura
do apartamento ou tramas que compõem a vida de seus habitantes aparecem e reaparecem,
dando forma a um mundo cada vez mais articulado a uma realidade maior.
Aos poucos vamos percebendo que a crise observada por Pedro Juan está também
presente em seu corpo e em seu local de moradia. O prédio, construído antes da Revolução,
está com rachaduras nas paredes e despencando um pouco a cada dia, como observa
Hortensia, uma das moradoras, numa crítica que se torna extensiva a um âmbito mais vasto
da sociedade revolucionaria: “Eles não podem esquecer o povo desse jeito. O edifício está
caindo aos pedaços e nunca tem água, nem gás, nem comida. Nada, filho, nada”
(GUTIÉRREZ, 1999, p. 162)20.
Pedro Juan olha lá do alto da cobertura atrás de vestígios do humano que se revelem
a partir das zonas de sombra da cidade e da sociedade. Como para Brueghel, a rua é o
espaço privilegiado. Dessa posição estratégica, no alto da cobertura de um edifício em
ruínas, seu olhar incide sobre os personagens que transitam pelas ruas de Centro Habana ou
tentam ganhar algum dinheiro no Malecón. Concentra-se também em pequenas imagens
dos que constituem uma realidade mais próxima, no interior do edifício. Coloca em cena
um mundo quase bestial de personagens anti-sociais, restos da utopia, vestígios da festa da
Revolução que durou quase uma década e depois tornou-se uma melancólica ruína
arquitetônica e social.
A crise abre espaço para excentricidades e o que antes poderia provocar escândalo
ou ser passível de prisão passa a ser visto com desinteresse diante de problemas mais
urgente. Os acontecimento do âmbito macro (envolvendo as principais relações no plano
internacional e atravessando áreas como a política, a diplomacia e a economia)
19
Pedro Juan Gutiérrez nasce em Matanzas, em 1950. Como seu personagem Pedro Juan, ele também é filho
de um sorveteiro, também atuou no jornalismo antes de tronar-se escritor, também vem de uma família do
campo e também adotou como estilo um realismo feroz. E as semelhanças não terminam aí, ao ponto de com
frequência muitos leitores atribuírem ao escritor as aventuras do personagem narrador.
53
indiretamente liberam a conduta humana de regras, prescrições e parâmetros que a
predeterminavam. O corpo disciplinado resvala para zonas onde impera o desejo e não mais
os mandatos sociais em termos de moral ou papéis sociais.
Os dogmas e receitas (“parâmetros”) para atuação de todo indivíduo na sociedade
revolucionária passam a ser motivo de riso e as “receitas” de comportamento perdem o
sentido diante de uma volta do reprimido que devolve os humanos a uma condição
primitiva. A ênfase panfletária na parametração acrescenta uma carga de mais repressão
que não se sustenta diante da aguda crise econômica dos anos de 1990.
O discurso de Pedro Juan Gutiérrez se forma, portanto, num contexto de crise do
processo civilizador que deriva da ruína de um projeto utópico que prometia levar à
construção do homem novo, mas que, quarenta anos depois do triunfo da Revolução,
apenas libera os animais das jaulas e os libera na “selva tropical”, em cujo horizonte só
aparecem os prazeres do álcool e das drogas, as prostitutas do Malecón e os dólares dos
turistas:
Estávamos entrando na selva. Assim, a chutes na bunda. Saíamos todos das jaulas e
começávamos a lutar na selva. Esse era o assunto. Saíamos atrofiados da jaula. Entediados e
temerosos. Não tínhamos nem ideia de como era a batalha na selva. Mas era preciso
enfrentá-la. Ficamos trancados trinta e cinco anos nas jaulas do zoo. Nos davam alguma
comidinha e algum remédio, mas nem ideia de como era todo o resto além das grades. E de
repente era preciso saltar para a selva. Com o cérebro adormecido e os músculos frouxos e
débeis. Só os melhores podiam competir pela vida na selva. Eu estava tentando. Fazendo
força, muita força. (GUTIÉRREZ, 1999, p. 137)21
Considerando-se a definição de Schollhamer (2013), Trilogía sucia de La Habana
pode ser lida como uma obra pornográfica por narrar situações-limite resultantes da crise
econômica cubana que se agravou com o Período Especial.
20
No original: “- No se pueden olvidar así del Pueblo. El edificio se cae a pedazos y nunca hay agua, ni gas,
ni comida. Nada, hijo, nada.” (GUTIÉRREZ, 1998, p. 165)
21
No original: “Hacíamos nuestra entrada en la jungla. Así, a patadas por el culo. Todos salíamos de las jaulas
y comenzábamos a luchar en la selva. Ése era el asunto. Salíamos atrofiados de las jaulas. Aburridos y
temerosos. No teníamos ni idea de cómo era la batalla en la jungla. Pero había que hacerlo. Estuvimos
encerrados treinta y cinco años en las jaulas del Zoo. Nos daban alguna comidita y alguna medicina, pero ni
idea de cómo era todo más allá de los barrotes. Y de pronto hay que saltar a la selva. Con el cerebro
adormecido y los músculos flojos y débiles. Sólo los mejores podrían competir por la vida en la jungla. Yo lo
intentaba. Poniendo fuerza. Mucha fuerza.” (GUTIÉRREZ, 1998, p. 138)
54
Referências à falta de comida, de água e de elementos básicos de higiene como o
sabão, são frequentes no decorrer do livro: “Já perdi a conta de quanto tempo faz que não
tem sabão aqui. (...) só tenho duas calcinhas, mais nada, e as duas rasgadas. Um lixo. Estou
sem sabão, sem comida, sem nada. (...) Os habaneros andavam com muita fome.”
(GUTIÉRREZ, 1999, p. 23-24)22. Essa situação-limite atinge a todos os personagens com
quem o narrador-personagem Pedro Juan convive e também marca seus encontros e
reencontros com uma galeria de cubanos que saíras das jaulas para mergulhar na selva. A
exceção seriam os turistas que não pertencem a este contexto e chegam a chamar atenção
por suas ações incompatíveis com a crise. Um caso exemplar é o de Rita de Cássia, uma
brasileira que, ao voltar para o seu país, deixa para trás sandálias de borracha usadas, restos
de xampu e de sabonete, balas, blocos de anotações e um aparelho de barbear descartável,
alegando que estes objetos já não serviam para nada. “Ah, serve sim. Essas sandálias de
borracha, o xampu, os sabonetes. Aqui tudo serve, mesmo que seja lixo para você”
(GUTIÉRREZ, 1999, p. 33)23, contesta imediatamente o narrador.
Sem julgamento de valor, o narrador se limita a relatar os acontecimentos que se
desenrolam diante de seus olhos. Mesmo quando envolvem crimes, transgressões ou
desvios, assumindo muitas vezes uma dimensão de extrema violência ou crueldade para
com o leitor.
Às vezes, com um texto mais descritivo que narrativo, o personagem narrador
apresenta não apenas aquilo que faz de relevante. Transcendendo as grandes ações e
focando no cotidiano, escreve sobre aquilo que vê, ouve, come, bebe e cheira. O que
observa do alto da cobertura ou nas suas caminhadas pelas ruas do bairro tem um peso
especial.
Expõe o corpo para através dele mergulhar no drama humano que não se encontra
na épica, nos movimentos das multidões, mas nos pequenos fatos da vida cotidiana dos
indivíduos. É justamente nesses dramas pessoais que se desenrolam ao seu redor que o
22
No original: “Ya perdí la cuenta desde cuándo no hay jabón aquí (…) tengo dos bloomers nada más y los
dos rotos. Hechos un ripio. Sin jabón, sin comida, sin nada (…) Los habaneros tenían mucha hambre”
(GUTIÉRREZ, 1998, p. 24-25)
23
No original: “Oh, sí sirve. Esas chancletas de goma, el shampoo, los jabones. Aquí todo sirve, aunque para
ti sea lixo.” (GUTIÉRREZ, 1998, p. 34)
55
personagem narrador Pedro Juan foca o seu olhar e através deles remete ao drama coletivo
do povo cubano.
O narrador, em sua conhecida deselegância, refere-se aos órgãos sexuais como
“pinga”, “coño” ou “tareco”, reconhece que somos “uns animaizinhos primários, simples e
frágeis” e diz que gosta do “solar” onde os negros vivem em estado natural, resolvendo
tudo com pancadas e uma enxurrada de insultos.
Como vimos anteriormente, o edifício em Centro Habana, é considerado um bom
lugar por Pedro Juan (“me sentia bem naquele cortiço pestilento.” “É um lugar bom”,
GUTIÉRREZ, 1999, p. 46 e 78), apesar do grande problema que representava seu banheiro
coletivo, o qual não possuir as mínimas condições de higiene péssima, fato que era
agravado pela constante falta de água. Nesta situação, de fato, tornam-se inimagináveis o
uso de óleos que impeçam a proliferação do odor ruim ou a aplicação de métodos para
impedir a propagação dos sons que deixam o personagem de “Um tal de Lucas” tão
constrangido.
Diante da constante busca por emprego, comida ou rum, a fila parece incomodar
mais do que o odor ou os ruídos. A grande quantidade de usuários do banheiro proveniente
do fato de muitos quartos constituídos por um único cômodo quatro por quatro abrigarem
famílias inteiras e haver apenas um banheiro para todos os moradores. Essa situação acaba
por impossibilitar uma divisão adequada entre o público e o privado, debilitando-se
constantemente a noção de íntimo ou intimidade.
Com a falta de espaço interno, o íntimo se amplia e se integra à vida pública,
fazendo com que a ação de se jogar as fezes pela janela não seja tão condenável como o
seria em outras circunstâncias. “Um desastre! Mas assim é. A gente às vezes está em baixa,
e tem que se acostumar” (GUTIÉRREZ, 1999, p. 202).
A proximidade faz com que o corpo perca o seu potencial agressivo, ou melhor
dizendo, que a percepção do corpo se transforme, passando os elementos do baixo a
integrar os termos públicos da vida cotidiana. Um corpo humano visto de muito próximo, e
sem nenhum estranhamento, destitui o fisiológico e o animal de seu caráter obsceno. O que
torna o corpo estranho é o lugar a partir do qual é visto. Longe da esfera pública partes ou
56
funções do corpo perdem seu valor de agressividade, incômodo ou obscenidade. O uso
compartilhado do banheiro ou o amontoamento de inúmeras pessoas vivendo num mesmo
cômodo implica a construção dessa proximidade.
Não é só o banheiro que está em péssimas condições. Pedro Juan descreve
constantemente a estrutura decadente do prédio. Apesar de ter uma fachada que chama a
atenção dos turistas, internamente está desmoronando. Passagens como esta permitem a
leitura de uma realidade mais geral a partir de um fragmento espacial: o edifício é a ilha
urbana, o cortiço é o bairro.
O elevador geralmente não funciona, para entre um andar e outro e, quando
funciona, é “muito escuro, porque os vizinhos roubam as lâmpadas, e com um fedor
permanente de urina, porcaria e vômitos diários de um bêbado do quarto andar”
(GUTIÉRREZ, 1999, p. 29)24. Quando se necessita utilizar as escadas, o que acontece na
maioria das vezes, a situação permanece incômoda porque as suas lâmpadas também são
roubadas e “de madrugada, as pessoas entram para fazer de tudo na escada: trepar, fumar
maconha, cagar, mijar” (GUTIÉRREZ, 1999, p. 29).
A porta de Dalia, uma das moradoras, por exemplo, precisa ser amarrada porque
está podre e sem dobradiças e, quando chove, a água entra desenfreadamente. Em uma
dessas chuvas, uma parede inteira se desprende e tomba, numa exemplificação física da
exposição do íntimo ao público que ocorre frequentemente neste espaço: “O edifício ficou
como essas casinhas de bonecas em que falta uma parede e dá para ver os móveis e todo o
seu interior” (GUTIÉRREZ, 1999, p. 67)25.
A carência de momentos de privacidade chega a ser tão intensa que a cena em que o
narrador-personagem vai ao banheiro na casa de Estrella ganha particular destaque. Porém,
nem assim Pedro Juan consegue seu momento de tranquilidade, porque a dona da casa
começa a lhe contar causos através da porta, invadindo, mesmo que não fisicamente, seu
espaço privado e interferindo em seu tão desejado sossego. “Limpei a bunda e dei a
24
No original: “muy oscuro porque los vecinos se roban los bombillos y con una peste permanente a orina,
porquería y a los vómitos diarios de un borracho del cuarto piso” (GUTIÉRREZ, 1998, p. 30)
25
No original: “el edificio quedó como esas casitas de muñecas que les falta una pared y se ven los muebles y
todo el interior” (GUTIÉRREZ, 1998, p. 30)
57
descarga na privada. Saí e fui embora. Estava irritado com Estrella.” (GUTIÉRREZ, 1999,
p. 86)26.
Se o que mais incomodava Pedro Juan era o banheiro coletivo, em certo ponto da
narrativa parece ter surgido uma boa oportunidade. Em um momento de aparente melhora
de qualidade de vida, ele pôde se mudar para uma cobertura com apenas dois vizinhos.
Com um quarto limpo, fogão a querosene e banheiro próprio, ele pode respirar mais
aliviado, mas não por muito tempo. Segundo o narrador, com a crise de 1990, muitas
famílias começaram a criar galinhas e porcos em suas casas como garantia de se ter sempre
comida e é a esse pequeno negócio a que seus vizinhos se dedicam.
Apesar de declarar não ser amante dos bons cheiros (“Agora mesmo não consigo
lembrar de nenhum cheiro perfumado de mulher nenhuma. Não gosto desses cheiros. Não
me interessam” [GUTIÉRREZ, 1999, p. 92]27), o odor das fezes dos porcos e das galinhas
começou a incomodar, assim como os mosquitos levados pelo verão e os ratos e baratas
atraídos pelo lixo e cascas das criações vizinhas. A falta de água e o forte calor contribuíam
ainda mais para a pestilência da cobertura. Dentro dos edifícios apresentados, a condições
de habitabilidade parecem cada vez mais escassas e ao mesmo tempo generalizadas, o que
faz com que a descrição de um cortiço se confunda com outro facilmente.
Um prédio vizinho tem paredes escoradas com madeiras que, se retiradas, podem
ocasionar o desmoronamento completo do edifício: “Todo o edifício estava em ruínas e
reforçado. Desmoronaria de tirassem um pedaço de madeira do lugar” (GUTIÉRREZ, 1999,
p. 248)28. Em outro, há pessoas sem água, comida e com um banheiro coletivo em péssimo
estado de higiene, assim como o da cobertura de Pedro Juan.
A poucas quadras dali, uma cobertura está infestada de ratos e baratas, e, apesar de
ter banheiro masculino e feminino, ainda apresenta fila e “a maioria geralmente caga em
um cartucho de papel que atira na valeta junto da calçada ou no barril de lixo da esquina.”
26
No original: “Me limpié el culo y descargué el inodoro. Salí del baño y me fui. Estaba irritado con Estrella.
(GUTIÉRREZ, 1998, p. 89)
27
No original: “Ahora mismo no logro recordar un olor perfumado de alguna mujer. No me gustan esos
olores. O no me interesan” (GUTIÉRREZ, 1998, p. 95)
28
No original: “Todo el edificio estaba en ruinas y reforzado. Se desmoronaba si quitaban un trozo de madera
de su sitio.” (GUTIÉRREZ, 1998, p. 247)
58
(GUTIÉRREZ, 1999, p. 278)29. Em outro, no Malecón, há rachaduras no teto, nas paredes e
moradores que temem a ação de um vento capaz de derrubar o prédio e esmagá-los. A
maioria dos edifícios está semidestruída, “infestado de ratos e baratas, mas ainda é útil e
continuará sendo enquanto sobrar uma pedra.” (GUTIÉRREZ, 1999, p. 278)30.
Os personagens carecem de urbanidade. Não raro passam longo tempo sem tomar
banho. Já não se incomodam com a sujeira ou com o mau cheiro. Respondem unicamente
às pulsões de vida ou de morte. As restrições os levam a cometer excessos.
Observa-se nos relatos de Pedro Juan uma verdadeira exacerbação dos sentidos, e é
através deles que o corpo se manifesta. Num universo em que há tanta exposição do
privado e do íntimo a paisagem é construída, muitas vezes, com o próprio corpo. Ganha,
portanto, especial importância a forma como Pedro Juan se relaciona com o espaço e com
os sujeitos que o circundam, os quais são quase sempre extensões do seu corpo,
constituindo um segundo corpo, coletivo. Ai reside uma das estratégias centrais da obra:
contestar a política através da narrativa do corpo.
O narrador evoca o caráter de descontrole da busca desregrada pelo prazer, ao
mesmo tempo em que relata a busca pelos elementos básicos para a sobrevivência humana.
A ênfase nestes dois aspectos se denota na repetição incontrolável de cenas de sexo, bebida
e comida, nas reiteradas referências à situação limite do corpo, reduzido à condição de
máquina sensorial. Já na própria repetição a narrativa indica o que poderíamos chamar de
canto à fisicalidade. Pedro Juan emprega a repetição como forma de explicitar o elemento
censurado ao mesmo tempo em que, por sua vez, censura o processo social que conduz a
este estado de coisas. Caberia ver a repetição excessiva como uma subversão.
Mergulhado num cotidiano de grosseria, sordidez e ruína, o narrador-personagem da
moderação e do bom gosto, ri da transcendência que outros perseguem na arte e ironiza os
olhares estrangeiros que só identificam na realidade cubana o exotismo nos velhos edifícios
29
No original: “La mayoría simplemente caga en un cartucho de papel y lo botan en el arroyo junto a la acera
o en el contenedor de basura de la esquina.” (GUTIÉRREZ, 1998, p. 277)
30
No original: “atiborrado de ratas y cucarachas, pero todavía es útil y seguirá siéndolo mientras quede alguna
piedra.
59
que registram em fotos antes de voltar aos seus países. Essa visão de mundo se traduz na
sua concepção do fazer artístico:
A arte só serve para alguma coisa se é irreverente, atormentada, cheia de pesadelos
desespero. Só uma arte irritada, indecente, violenta, grosseira, pode nos mostrar a outra face
do mundo, a que nunca vemos ou a que nunca queremos ver, para evitar incômodos a nossa
consciência. Pronto. Nada de paz e tranquilidade. (GUTIÉRREZ, 1999: 102)31.
A inadequação ao mundo que se explicita em seu olhar privilegiado (do alto) e ao
mesmo tempo na narrativa de sua vida que vai se imbricando com inúmeras outras. Pedro
Juan, narrador personagem é uma pessoa com uma rica vivência, mas que, apesar disso,
está ali sobrevivendo, no limite do desespero. Despois de perder o emprego de jornalista
por não compartilhar a visão do regime em relação à realidade, procura as mais diferentes
estratégias para levar a vida, desde a prostituição até mercado ilegal de alimentos. Mas em
meio a tantos empregos, subempregos e recursos ilegais aos quais recorre o personagem
para sobreviver, destaca-se a insistência com que volta ao ofício de lixeiro. É como se esta
fosse a condição primeira do personagem Pedro Juan: recolhedor de restos e ao mesmo
tempo recolhedor de refugo humanos em seus relatos. Sujeito anti-social e não
parametrado, Pedro Juan é uma figura incômoda de qualquer lugar que o olhemos, pois
trabalha com os elementos essencialmente incômodos, com aquilo que há de mais “sujo”
em Havana, com aquilo de que a sociedade quer se livrar.
Pedro Juan Gutiérrez tem sensibilidade para perceber na sociedade cubana do
presente uma crise do processo civilizador e representar em suas obras o fim de uma época
através de uma complexa rede de características carnavalescas. Essa carnavalização aparece
através de numerosos elementos, quase todos denotando um mundo de pernas para o ar. O
sentido carnavalesco é identificado na vida cotidiana como num quadro de Bruegel. Não se
trata de uma negação radical do antigo ideal civilizador, mas de uma relativização que
refuta a linearidade e a uniformização ou universalização desses padrões morais e
comportamentais.
31
No original: “El arte sólo sirve para algo si es irreverente, atormentado, lleno de pesadillas y desespero.
Sólo un arte irritado, indecente, violento, grosero, puede mostrarnos la otra cara del mundo, la que nunca
vemos o nunca queremos ver para evitarle molestias a nuestra conciencia. Así. Nada de paz y tranquilidad.
(GUTIÉRREZ, 1998: 102)
60
CAPÍTULO III. Entre dejetos, gados e homens: as ilhas invisíveis de Ana Paula Maia
Sua vida não é um lixo. Sua vida é muito lixo. Seu
olfato está impregnado com o aroma do podre. Seu
cheiro é azedo; suas unhas, imunda; e sua barba crespa
e falhada é suja.
Ana Paula Maia, em O trabalho sujo dos outros
Manuel da Costa Pinto (2004), ao introduzir o livro intitulado Literatura brasileira
hoje, fala da dificuldade e do risco de se apresentar um panorama da literatura brasileira
contemporânea, já que o surgimento e a repercussão de novos autores e obras estão
tornando-se cada vez mais imediatas. Em vista disso, alerta que entre os sessenta autores
que seleciona para o seu livro haverá contradições e formas de desenvolvimento únicas e,
por isso, diferentes umas das outras, mas que, mesmo assim, possuem um campo de força
comum, “ou seja, aponta para certas tendências ou dicções presentes em outros escritores,
cujo número ultrapassa em muito os 60 capítulos aqui dispostos” (PINTO, 2004, p. 11).
Ao se referir, mais especificamente, à prosa brasileira, o autor aponta como seu
campo de força o fato de essa produção estar pautada em um solo urbano, alertando, porém,
que embora haja uma afinidade temática, não há uma homogeneidade nos estilos, visto que
a liberdade individual do autor, proveniente de sua condição como sujeito moderno,
permite a criação de “formas literárias que transitam entre os registros memorialístico,
realista, metafísico, escatológico, fantástico e satírico” (PINTO, 2004, p. 84).
Ampliando essa questão, trazemos também os questionamentos de Beatriz Resende
(2005) sobre o que seria a literatura recente da América Latina. Em um contexto de rápida e
global circulação de conhecimentos pela via tecnológica, as fronteiras de alcance de uma
produção podem ser rompidas se disponibilizadas em sites ou blogs, mesmo que sua
aquisição seja fisicamente impossibilitada em determinados casos. Além disso, o
crescimento das cidades sem uma melhora significativa nas condições sociais faz com que
a questão urbana seja um tema recorrente nas narrativas. Mudanças como essas no cenário
recente nos coloca diante de uma literatura latino-americana múltipla, com características
próprias, ainda que nem sempre comuns aos diferentes autores:
Pluralidade, fertilidade e diferentes possibilidades de inovar vêm marcando a produção
recente em todos os países da América Latina. De saída, se pode constatar que, ao falar de
61
América Latina e de latino-americanismo, estamos falando de identidades plurais,
múltiplas, flexíveis, contraditórias por vezes. (RESENDE, 2005, p. 09)
Diante
da
multiplicidade
de
produções
literárias,
conforme
apresentado
anteriormente, não se pretende aqui chegar a uma padronização do que seria a narrativa
recente, caracterizá-la ou mesmo esgotar as interpretações dos livros de Ana Paula Maia,
mas analisar como, nas cenas selecionadas de sua obra, esse solo está indissociavelmente
vinculado às figurações de corpo e à constituição de um homem-refugo/animal, o que nos
remete a uma comparação inevitável com o que encontramos em Trilogía sucia de La
Habana.
Assim como Pedro Juan Gutiérrez, Ana Paula Maia também possui uma espécie de
ciclo narrativo do refugo urbano, no qual relata o dia-a-dia de pessoas que lidam com
profissões incomuns no universo literário e que, por trabalharem com aspectos mais sujos
da sociedade, como o lixo, o esgoto e as vísceras de porcos, gados e corpos humanos, são
invisibilizados por aqueles que dependem destes trabalhadores, mas desviam seu olhar
quando os encontram.
A trilogia “Saga dos brutamontes” é constituída pelas novelas Entre rinhas de
cachorros e porcos abatidos (2009) e O trabalho sujo dos outros (20091), ambas
publicadas em um mesmo volume, e pelo romance Carvão animal (2011). Apesar de não
fazer, oficialmente, parte da saga, De gados e de homens (2013) também traz a vida bruta
do humano/animal ao narrar o cotidiano de Edgar Wilson, que lida constantemente com o
sangue e as vísceras do gado que abate.
Com uma linguagem menos direta e crua32 do que a utilizada por Pedro Juan, a
pornografia e a violência em Ana Paula Maia se constituem a partir da presença destes
personagens que se embrutecem como resultado de seu contato com a sujeira e os refugos
da cidade, transformando-se eles próprios em refugos humanos, como a própria autora
indica em uma entrevista ao Jornal Rascunho (2011):
32
A agressividade amena em sua escrita, se comparada a outras do mesmo período, e o valor que dá à
amizade entre seus personagens faz com que alguns autores considerem sua obra como um retorno ao
Humanismo/Romantismo do século XIX. Porém, como o foco desta pesquisa é a relação entre o corpo dos
personagens e seu ambiente de trabalho, assim como os processos de animalização provenientes desse
contato, o retorno ao sentimentalismo não será aqui enfocado.
62
Não estou interessada nisso, em bandido, em pivete. Estou interessada em uma outra
violência, que é muito pior porque é gerada por trabalhos e profissões que as pessoas
precisam ter. Alguém tem que recolher o lixo, abrir o asfalto, desentupir o esgoto. O cara
tem que meter a mão ali no esgoto, sentir o cheiro, desentupir. Alguém tem de fazer o
trabalho sujo. Trabalho nessa dimensão de violência, de brutalidade. (MAIA, 2011)
A escolha por esse tipo de violência faz com que sua obra se aproxime de uma pulp
fiction, não como um gênero literário, mas uma forma de escrita. Sergio Fanjul (2012)
explica que o termo surgiu nos Estados Unidos, na primeira década do século XX para
designar revistas populares e baratas destinadas às classes médias e baixas escritas em
papel igualmente barato, feito de polpa de celulose, material que teria dado origem ao
termo pulp. Feita para ser lida e descartada, essa produção trazia “Monstruos de múltiples
ojos, rudos detectives infalibles y alcohólicos, indios y vaqueros, tórridos romances
imposibles, (...) y así hasta donde abarque una imaginación desbocada” (FANJUL, 2012).
Mais tarde, começaram a receber o rótulo de pulp as obras que davam mais destaque
para a ação do que para a experimentação estética, trazendo personagens sem
complexidade, cujos músculos são mais valorizados do que o cérebro. Com essa
perspectiva, eram apresentados casos de tortura, escravidão sexual, drogas, violência
exagerada, temas considerados politicamente incorretos em outros contextos. Na Espanha,
segundo Franjul (2012), produções deste tipo eram duramente criticadas pelo governo e por
parte da população por conter erotismo e violência desmedidos.
Ricardo Barberena (2012) relaciona o rótulo de pulp dado à escrita de Ana Paula
Maia à polpa de sangue, vísceras, bichos, violência e dejetos apresentada em suas
narrativas. Em lugar desses monstros que provocam escândalo, Ana Paula Maia trabalha
com os invisíveis monstros cotidianos das profissões relegadas aos que habitam uma franja
de infra-humanidade.Na primeira novela da “Saga dos brutamontes”, o contato constante
com as entranhas dos porcos abatidos faz com que a morte se banalize para Edgar Wilson e
seu amigo Gerson, perdendo-se a distinção entre a polpa humana e animal. Entre rinhas de
cachorros e porcos abatidos apresenta uma cena33 em que o rompimento entre essas duas
fronteiras se debilita claramente.
33
Apesar de utilizar o termo “cena”, ressalvamos que “o caso do rim” ocupa em média dez páginas da
narrativa, mas não de forma contínua. A narrativa dos fatos vai desde o comentário sobre a necessidade de um
rim novo, no começo da novela, até o desenlace sangrento e grotesco, já no final da obra.
63
Gerson está doente e precisa de um transplante de rim, mas não, necessariamente,
de alguém desconhecido. Edgar Wilson sugere que o amigo resgate o rim que deu à irmã, a
qual, por estar com câncer, não precisará dele por muito tempo. Os dois dirigem-se à casa
de Marinéia, atual portadora do rim, solicitando-o de maneira tão naturalizada e carente de
ênfase que a devolução do rim é reivindicada juntamente com um pedido para usar o
banheiro. Na sequência, após anestesiá-la com um soco no maxilar, os dois começam a
operação-resgate ao som de música sertaneja. Procurando sempre aproximar o processo
operatório ao de abrir porcos, com o qual está acostumado a lidar diariamente, Edgar retira
o rim junto com outros dois órgãos e Gerson os guarda em uma bolsa térmica. Mais tarde,
ocorre a ação que concretiza a indistinção entre a polpa humana e animal: seu pai come o
rim com cebolas, pensando ser um fígado de boi. Essa confusão ocorre também em Trilogía
sucia de La Habana, quando várias pessoas comem, sem saber, fígados humanos roubados
de cadáveres e vendidos como se fossem fígados de porcos.
Para Ricardo Barberena (2012), cenas como essa exemplificam a animalização do
humano, visto que as ações de retirar órgãos humanos ou vísceras de animais são colocadas
lado-a-lado, sem uma diferenciação clara entre elas:
O destrinchar dos porcos não se mostra distante das lacerações e profanações do corpo
humano. Rasgar a carne da irmã é imprescindível. Digerir o rim do filho (e da filha) com
cebolas é um mero descuido. O desossar dos porcos, dos cães e das pessoas estabelece uma
perigosa vertigem na qual as lascas mutiladas se intercambiam sem que haja uma
hierarquização entre os pedaços-do-humano e os pedaços-do-animal. (BARBERENA, 2012,
p. 20)
Com a banalização da violência, tornam-se normais condutas como as
representadas, que seriam brutais em outros contextos, mas que, na narrativa, são apenas
“uma pasta de fígados, rins, tripas, porcos, pessoas” (BARBARENA, 2012, p. 20).
Paulo André Correia (2011) levanta a hipótese de que a exposição de sangue e
vísceras na obra de Ana Paula Maia funciona também como “forma de revelar ao mundo
higienizado seu lado sujo, escondido sob o véu da artificialidade” (CORREIA, 2011).
Considerando tal proposição, podemos comparar o fazer narrativo da autora com o trabalho
de revolvedor de merda, com o qual Pedro Juan se identifica, pois também ela adentra os
espaços e temas mais incômodos para uma sociedade que se pretende civilizada.
64
Enquanto o autor do Ciclo Habanero o faz, principalmente, a partir de uma
linguagem dura e do destaque dado ao sexo e à excreção em uma cidade em crise
econômica e marcada pela extrema miséria, a escritora dos brutamontes o realiza através da
exposição das vísceras, do sangue e do cheiro, dando protagonismo àqueles que limpam a
imundície da qual todos querem livrar-se. Embora em lugares diferentes (o edifício de
Centro Habana e os matadouros, p. ex.), ambos apresentam elementos do baixo corporal e
aspectos desdiferenciantes que, por remeterem a uma pura existência biológica, podem
fazer com que as fronteiras entre o humano e o animal praticamente desapareçam.
Para analisarmos esse processo em Ana Paula Maia, foram selecionadas as novelas
O trabalho sujo dos outros (2009) e De gados e de homens (2013), nas quais a autora da
um particular destaque para dois espaços comumente esquecidos ou pouco mencionados
em produções literárias: o depósito de lixo e o matadouro de gado bovino, nos quais
trabalham, respectivamente, Erasmo Wagner e Edgar Wilson, semelhantes não apenas nas
iniciais de seus nomes, mas também na forma como são vistos (ou melhor, não são vistos)
pelas pessoas que os cercam.
Essas duas ilhas, assim como as profissões referentes a elas, podem ser colocadas
em uma posição de dupla impossibilidade de existência, tal como Maingueneau (2010)
posiciona a própria literatura pornográfica: todos sabem que elas existem porque o lixo é
recolhido e as carnes já estão devidamente mortas e cortadas quando chegam até nós, mas,
ao mesmo tempo, ambas estão na linha da inexistência por serem constantemente
invisibilizadas, ocultadas, afastadas dos olhares daqueles que evitam ao máximo cruzar
com/por elas.
Separado em diversas seções, o abatedouro do fazendeiro Milo é descrito como um
ambiente fétido e respingado de sangue. No curral, o gado recebe uma dieta especial à base
de água e, após banho e inspeção, é levado a um corredor onde aguarda em fila para entrar,
um de cada vez, no boxe de atordoamento. Neste lugar, levará uma marretada na fronte
para ser removido já desmaiado à sala de degola e sangria, local em que será suspenso e
degolado antes de ser transferido ao setor de triparia e bucharia, do qual sairá limpo e
esquartejado para ser enviado às fábricas de hambúrguer e frigoríficos.
65
Além desses espaços, há quatro outros locais importantes para o funcionamento do
abatedouro do Seu Milo: o escritório, ao lado do setor de bucharia, o alojamento onde os
funcionários aguardam o próximo dia de trabalho, um improvisado crematório para
incinerar os animais que não passam pela inspeção ou que morrem ainda no curral, o setor
de graxaria, onde os produtos que não servem ao consumo humano são processados e
transformados em farinha e o Rio das Moscas, onde são jogados os restos não aproveitáveis
e para onde escorre o sangue dos animais abatidos. Em todos esses espaços observamos o
mesmo debilitamento da fronteira que separa o humano do animal, mas isso se mostra de
maneira mais clara no alojamento onde permanecem confinados os trabalhadores:
Ambos os confinamentos, de gado e de homens, estão lado a lado, e o cheiro, por vezes, os
assemelham. Somente as vozes de um lado e os mugidos do outro é que distinguem homens
e ruminantes. (MAIA, 2013, p. 20).
Assim como o local de trabalho de Edgar Wilson, que se estende para além dos
muros do abatedouro, o de Erasmo Wagner tampouco se restringe ao depósito de lixo. Ele
se constitui do aterro sanitário, onde serão postos os resíduos processados ou não pela
esmagadora do caminhão de coleta, o próprio caminhão que leva os funcionários e o
itinerário, que pode se ampliar caso haja a necessidade de se cobrir alguma outra área.
Os estudos de Bauman (2005) indicam claramente a importância da produção e da
eliminação de refugos para a sociedade moderna, na qual um novo projeto só pode ser
posto em prática quando os dejetos do anterior são completamente eliminados, posto que “o
novo não pode nascer a menos que algo seja descartado, jogado fora ou destruído”
(BAUMAN, 2005, p. 31). O próprio Erasmo Wagner reconhece a importância de sua
profissão para o bom desenvolvimento da sociedade e teme que, sem a coleta de lixo, a
cidade se torne um caos sem controle.
No entanto, retomamos aqui a ideia de dupla impossibilidade de Maingueneau
(2010), pois se sabe que o lixo existe, mas são inúmeras as estratégias criadas para que sua
existência jamais seja percebida:
Removemos os dejetos da maneira mais radical e efetiva: tornando-os invisíveis, por não
olhá-los, e inimagináveis, por não pensarmos neles. Eles só nos preocupam quando as
defesas elementares da rotina se rompem, e as precauções falham (...). O refugo é o segredo
sombrio e vergonhoso de toda produção. De preferência permaneceria como segredo.
(BAUMAN, 2005, p. 39).
66
Parece uma contradição, mas ao mesmo tempo em que a passagem do caminhão de
lixo incomoda pelo forte cheiro de podridão, a falta dele traz um incômodo ainda maior.
Expor os dejetos, para cuja ocultação criou-se todo um mecanismo complexo a fim livrar a
população de seu contato e destiná-lo aos longínquos depósitos ou aterros sanitários, é o
princípio de um processo caótico que pode dominar toda a cidade. Elemento obsceno (a ser
mantido fora de cena), o lixo ganha espaço na mídia apenas se lhe houver sido dada alguma
utilidade, através do processo de reciclagem, quando o cheiro dos aterros sanitários invade
domicílios ou, especialmente, quando há uma greve dos trabalhadores dessa área. Basta
lembrar-se do que ocorreu em março de 2014, quando, logo após o Carnaval, uma das datas
mais propícias ao acúmulo de lixo, houve uma paralisação dos garis na cidade do Rio de
Janeiro com duração de oito dias, tempo o suficiente para a notícia virar manchete em
jornais e revistas do Brasil e na imprensa internacional.
No livro de Ana Paula Maia, ocorre algo semelhante. As condições trabalhistas são
péssimas. Se um caminhão quebra, outro precisa fazer a coleta em seu lugar sem que haja o
recebimento de hora extra pelo trabalho dobrado. O valor do adicional de insalubridade é
quase insignificante, e se algum funcionário for afastado por acidente de trabalho é
esquecido como o lixo que recolhe. “Não importa sua cor, seu cheiro, seu paladar. Não
importa o que pensa, deseja, planeja ou sinta. O que importa é que recolha o lixo, leve-o
para bem longe e desapareça junto dele.” (MAIA, 2009, p. 103).
Erasmo Wagner, assim como outros de profissões semelhantes à sua, está inserido
em uma categoria denominada por Bauman (2005) como refugo humano. Seres excessivos
e redundantes como ele são incômodos e sua eliminação não traz nenhum prejuízo aos
demais. Eles podem ser, a qualquer momento, substituídos por outros, que também se
tornarão dejetos:
Ser “redundante” significa ser extranumerário, desnecessário, sem uso. (...) Os outros não
necessitam de você. Podem passar muito bem, e até melhor, sem você. Não há uma razão
autoevidente para você existir nem qualquer justificativa óbvia para que você reinvidique o
direito à existência. (...) “Redundância” compartilha o espaço semântico de “rejeitos”,
“dejetos”, “restos”, “lixo” – com refugo. (BAUMAN, 2005, p. 20).
Erasmo Wagner sabe que as pessoas estão mencionando sua classe de trabalhadores
não porque reconhecem sua importância, mas porque querem se livrar do lixo que as
67
rodeia, mas que, no fundo, eles próprios são refugos humanos como tantos outros. Em uma
das ruas em que recolhe o lixo, deixaram um saco preto com um menino morto, mal
costurado com nylon, indicando que seus órgãos foram roubados. Um menino que fora
esquecido e desprezado como dejetos que não possuem mais nenhum tipo de utilidade:
Esta cidade atinge a todos: aos meninos, às mulheres, aos órfãos, aos velhos. Esta cidade
não faz exceção. Tudo se transforma em lixo. Os restos de comida, o colchão velho, a
geladeira quebrada e um menino morto. Nesta cidade tenta-se disfarçar afastando para os
cantos o que não é bonito de se olhar. Recolhendo os miseráveis e lançando-os às margens
imundas bem distantes. (MAIA, 2009, p. 113)
Edgar Wilson também percebe que pessoas como ele podem ter o mesmo fim que o
gado que ajuda a abater. Para fazer uma cobrança em uma fábrica de hambúrguer, ele
precisa, a pedido de Seu Milo, deixar Zeca em seu lugar como atordoador, embora saiba
que Zeca é alguém que “gosta de ver o animal sofrer. Gosta de matar” (MAIA, 2013, p. 12).
Ao voltar da missão de cobrança, Edgar Wilson se sente incomodado ao vê-lo destroçar a
cabeça do animal a marretadas. À noite, quando todos já foram dormir, Edgar acerta a
fronte do atordoador substituto com sua própria ferramenta de trabalho, faz o sinal da cruz,
enrola seu corpo morto em um cobertor e, “no fundo do rio, com restos de sangue e
vísceras de gado, é onde deixa o corpo de Zeca” (MAIA, 2013, p. 21). Nenhum parente,
amigo ou conhecido procura por ele.
Conhecido como o Rio das Moscas, ele é uma representação evidente da mescla
humano-animal. Avermelhado devido ao derramamento diário de grande quantidade de
sangue do gado abatido, ele une os restos destes animais ao de homens que, ali jogados,
misturam-se ao sangue e vísceras animais atiradas no rio, tornando-se apenas mais um
elemento indistinto na massa de dejetos ali derramados.
Após um tempo, Seu Milo encontra Zeca, mas ele continua esquecido como os
restos do gado que não são mais aproveitáveis, o lixo que é colocado para fora de casa ou o
menino morto que, sem os seus órgãos, já não possui serventia. “É nesse rio que todos os
matadouros da região lançam as toneladas de litros de sangue e resíduos de vísceras de
gado.” (MAIA, 2013, p. 14). A cidade, tal como se configura no texto de Ana Paula Maia, é
um espaço da indistinção entre o humano e o animal: “Em lugares onde o sangue se mistura
68
ao solo e à água é difícil fazer qualquer distinção entre o humano e o animal.” (MAIA,
2009, p. 113)
Não é apenas na condição de dejeto humano que Erasmo Wagner se encontra.
Barberena (2012) afirma que ele, assim como os outros personagens dessa novela, vive
como um homem-rato, que sobrevive dos restos ao complementar sua renda com a venda
de dejetos que somente tem serventia para pessoas como ele, os roedores, cães e urubus, o
que nos coloca diante de “um assustador paralelismo entre o humano e os ignóbeis
animais” (BARBERENA, 2012, p. 22). O mau cheiro e a imundície, que se alastram na
cidade por conta de uma greve dos responsáveis pela coleta do lixo, agravam ainda mais a
situação, fazendo com que ratos, urubus, habitantes e dejetos compartilhem o mesmo
espaço, rompendo-se as fronteiras entre o lugar do lixo, dos animais e dos homens.
Da mesma forma, como vimos acima, o cheiro que emana do gado, no abatedouro
descrito por Ana Paula Maia (2013), tem a capacidade de igualar os homens que moram no
alojamento aos animais que abatem. A fronteira entre o humano e o animal, que deveria ser
estabelecida e mantida pela meia-parede que divide os setores, se rompe a partir desse
elemento que pertence aos os dois âmbitos: o cheiro.
A fome e a alimentação também são fatores que igualam o humano e o animal nas
ilhas urbanas narradas por Ana Paula Maia. Em ambas há a presença de homens que
disputam com cachorros o alimento necessário para a sua sobrevivência. No aterro
sanitário, cães disputam com mendigos restos de alimentos ou esperam impacientemente
por sobras atraídos pelo cheiro que o lixo exala: “Os cães não entendem que sua vez
haveria de chegar, os restos e sobras seriam deles, mas cães são impacientes e, quando
esfomeados, agem como qualquer um; como eu e você” (MAIA, 2009, p. 133). E, no
matadouro, mulheres disputam com os cães porções menos nobres do gado morto: “Tonho
despeja um saco com pedaços gordos da vaca aos pés das mulheres, que precisam disputar
com uma matilha de cães famintos que rodeiam o matadouro” (MAIA, 2013, p. 58).
A alimentação possui um papel tão importante na indistinção homem-animal que há
várias referências a este ato como fator de aproximação entre os dois âmbitos:
69
Edgar Wilson está apoiado no batente da porta do escritório do patrão, o fazendeiro Milo,
que concluiu um telefonema aos berros, já que desde cedo aprendeu a berrar, quando solto
no passo, ainda bem menino, disputava com o bezerro a teta da vaca. (MAIA, 2013, p. 09)
[Seu Milo] nunca pensou que ao comer a carne dos bois e beber do seu sangue também de
torna parte do gado que diariamente ele abate. (MAIA, 2013, p. 76)
[Cristóvão] cresceu alimentando-se de porco: gordura, sangue, ossos e órgãos. Com tanto de
porco em si, sente-se parte do animal. Prepara o alimento com respeito ao suíno e a si
mesmo. (MAIA, 2009, p. 130)
Essa indistinção ocorre porque tanto a alimentação quanto o cheiro e o sangue
pertence ao que Josefina Ludmer (2010) denomina como aspectos desdiferenciantes,
aqueles que fazem parte, naturalmente, dos dois âmbitos e que, portanto, nos impedem de
diferenciá-los. A cidade tomada pelo lixo, funcionando como extensão do depósito de lixo
e do abatedouro, assim como o rio próximo a ele, implica a presença de refugos
humanoanimais justamente por causa da associação deste um mesmo universo indistinto no
qual destacam-se os elementos mencionados acima.
Daniel Faria (2009) analisa diversas obras brasileiras em que seres transitam entre o
humano e o animal. A partir da simples comparação ou metaforização, que remete à
presença de homem em um cenário tomado por animais, o leitor pode “desconfiar que a via
de comparação pudesse ser feita ao contrário” (FARIA, 2009, p. 354), pensando, por
exemplo, não em homens que rastejam como ratos, mas em ratos que se comportam como
gente, havendo uma constante metamorfose entre os dois. Para o autor, muitas vezes a
própria dúvida do personagem ao se perguntar se pode ou não ser considerado gente, ou o
fato ser constantemente confundido pelos demais com os animais que o cercam coloca-o na
fronteira ou em um fluxo constante entre o humano e o animalesco. Essas considerações
nos ajudam a compreender a desdiferenciação que ocorre entre os personagens de Erasmo
Wagner e Edgar Wilson e seus respectivos objetos de trabalho.
O primeiro está contaminado pelo cheiro podre do lixo que recolhe. É atacado
constantemente por urubus e ratos que o confundem com os dejetos dos quais se
alimentam. É também ignorado pelos homens que o tratam como o próprio lixo do qual
querem livrar-se. Enquanto o lixo está concentrado no depósito, são animais apenas aqueles
que sobrevivem dos dejetos, como o próprio Erasmo Wagner, os mendigos que lá disputam
os restos de comida com os cães ou os meninos que lá são jogados e esquecidos, como o
70
caso d0 menino encontrado no aterro, que, após ter seus órgãos retirados, é descartado em
um saco preto, misturando-se aos refugos recolhidos diariamente. No entanto, quando o
lixo, assim como os ratos e urubus, ultrapassam suas fronteiras e invadem a cidade, todo e
qualquer habitante está vulnerável a ser confundido com esses elementos.
Como Daniel Faria (2009) sinaliza, essa metamorfose homem-animal não é fixa e,
em alguns casos, um personagem pode se re-humanizar. De fato, Erasmo Wagner não é
sempre um ser insignificante em seu trabalho. Sua experiência o coloca em uma posição
acima dos miseráveis, trazendo-lhe uma superioridade em relação àqueles que não têm suas
habilidades. Ele, com toda a sua experiência, pode, por exemplo, explicar a Valtair, seu
novo colega de trabalho, algumas normas para a coleta do lixo ou defender-se em situações
como a seguinte:
Valtair ajuda o velho a se levantar. Ele se feriu pouco. Alguém chama um guarda num posto
policial próximo. O dono do cão aparece. Quer saber onde está o animal. Erasmo Wagner
mostra o que há na “esmagadora”. O rapaz agacha-se e vomita açaí com granola. Quer ser
indenizado. Quer discutir. — Você sabe com quem está falando? — pergunta o rapaz. — Eu
conheço o seu lixo — diz Erasmo Wagner. — Eu sei com quem tô falando. Diz isso e
parece ser bem maior do que é. Enfurecido e ensanguentado ele se torna assustador. O rapaz
se cala. (MAIA, 2009, p. 99)
Essa cena ocorre após uma briga entre um cão e um velho ao término do itinerário
da coleta. Para livrar-se do animal, Erasmo Wagner o joga na caçamba de lixo, onde ele é
triturado pela esmagadora do caminhão. Ao ver o que aconteceu, o dono quer enfrentá-lo,
mas podemos perceber nesse momento uma valorização e um engrandecimento do
personagem que raramente aparece na narrativa. A habilidade e a experiência conferem a
Erasmo Wagner autoridade o suficiente para fazer o rapaz calar-se, mostrando que, em
situações como essa, ele deixa de ser um simples dejeto e torna-se um homem capaz de
destacar-se perante os demais.
Edgar Wilson também possui habilidades que o diferenciam dos outros
funcionários. Sente-se tão unido ao gado que consegue conectar-se com ele e acalmá-lo
para o abate. Seu olhar assemelha-se ao das vacas que abate diariamente e, se Seu Milo
berra como os bezerros com os quais mamava, Edgar constantemente rumina suas ideias e
pensamentos, assim como o gado faz para alimentar-se. O contato com os animais faz com
71
que ambos adquiram suas características, como Cristóvão, seu amigo, que de tanto
alimentar-se de carne de porco, sente-se um deles.
Como nos indica Daniel Faria (2009), não apenas há na literatura brasileira pessoas
que se animalizam, mas também animais que se humanizam. (FARIA, 2009, p. 354). Em
De gados e de homens, a justaposição entre o homem e o gado faz com que também as
vacas adquiram características humanas, como a capacidade de pensar em suicídio. Edgar
Wilson sempre reparara um código de conduta entre elas, que faz com que todas pastem
para o norte. Quando mudam essa direção, começam a ter comportamentos estranhos, até
que se dirigem a um precipício e se suicidam. Para Edgar, uma mostra de que os animais
também podem assemelhar-se aos homens, rompendo-se as fronteiras entre os dois
âmbitos:
― O que você acha que aconteceu, Edgar?
― Elas se mataram.
― São apenas animais, Edgar. Não tem vontade própria. Elas não pensam em suicídio.
― Acho que se afeiçoaram a gente. (MAIA, 2013, p. 115)
Assim como o realismo, a temática das fronteiras entre o homem e o animal não é
exclusiva deste século. No final do século XIX, a teoria evolucionista de Darwin, que
considerava o homem como um animal qualquer, fez com que filósofos, poetas e cientistas
repensassem essa clivagem, pondo a dimensão da vida como determinante frente à razão.
“Vida pensada como um fluxo de energia que atravessaria os indivíduos e as espécies,
formando um contínuo entre as bactérias mais simples e os organismos complexos”
(FARIA, 2009, p. 361). Neste período, o conceito de humanidade entra em crise, visto que
se mostra constituído apenas de atributos relacionados a imposições políticas, culturais e
sociais.
Assim, o conceito de humanidade, que deveria ser fixo, depende da capacidade de
adaptação do indivíduo a normas pré-estabelecidas, sendo humano, apenas aquele que
supera sua animalidade a partir de comportamentos ditos “civilizados”, tal como nos indica
Agambem (2013) e Marcuse (2013), o qual nos indica a existência de uma super repressão,
um conjunto de restrições e imposições dadas ao indivíduo para que ele possa desenvolver
um bom convívio social.
72
No século XVIII, segundo Koselleck (2004, apud FARIA, 2009), eram
considerados humanos os que possuíam os dons da razão, da moral e do discurso. Mais
tarde, compreende-se a vida humana como um direito e a humanidade, vista como um
conceito político, determinada por classes consideradas soberanas em um momento
histórico ou espaço específico.
É interessante apontar que, assim como Erasmo Wagner adquire autoridade em
Entre Rinhas de cachorros e porcos abatidos (2009), Edgar Wilson também traz um papel
soberano em determinado momento do livro De gados e de homens. Ele tem a função de
atordoador, uma prática que, segundo Edgar, poucos conseguem realizar corretamente. Um
poder de vida e de morte sobre outros animais. E, em certos casos, esse poder soberano se
expande para suas relações com outros seres humanos, como Zeca. Para fazer o animal
desmaiar, primeiro encomenda sua alma e depois lhe dá uma pancada na fronte, o que
provocará uma hemorragia cerebral. O golpe deve ser firme e preciso. Assim, o gado não
precisa sofrer.
A partir do acontecido no caso do assassinato do companheiro de trabalho,
mencionado anteriormente, podemos perceber que, para Edgar Wilson, o fato de Zeca não
seguir as normas de um abatimento correto permite que sua morte não seja considerada um
crime. Se ele não é capaz de exercer a função de atordoador sem crueldade, ou melhor, se
não é capaz de adaptar-se às regras de conduta estabelecidas, torna-se um animal como os
que Edgar mata diariamente e, assim, só faz-se necessário abatê-lo.
Isso demonstra o que Daniel Faria denomina como um paradoxo da humanidade:
“Seres de uma mesma espécie na ótica da ciência biológica podem ser ora mais ora menos
humanos, e mesmo desumanos.” (FARIA, 2009, p. 363). Para que isso fique mais claro,
podemos recorrer aos conceitos de biopolítica e homo sacer utilizados por Agambem
(2010).
Segundo Aristóteles (apud AGAMBEM, 2010), o homem é formado por zoé, uma
vida nua, existência biológica que todo ser vivente possui, mas, devido à linguagem que lhe
é própria, recebe também uma existência política (politikòn zôon). A partir desse último
conceito, Foucault (apud AGAMBEM, 2010) elabora sua teoria da biopolítica, fundada a
73
partir do momento em que a vida biológica e a saúde da nação tornam-se problemáticas do
poder soberano e que recebe a função de “domesticar” os indivíduos. O biopoder permite
ao Estado ter a soberania para definir quem possui humanidade o suficiente para ter sua
vida protegida ou animalizar politicamente um indivíduo, possibilitando sua eliminação
física.
Apenas o indivíduo que consegue excluir ou ocultar sua vida nua pode integrar a
pólis e receber o direito de viver. Aquele, porém, que se reduz unicamente à existência
biológica torna-se matável, tal como o era o homo sacer, figura do direito romano arcaico,
que, por haver cometido um delito, não possuía dignidade para ter sua vida oferecida em
sacrifício aos deuses e cuja morte não se constituía um crime, podendo ser morto por
qualquer um, sem que este fosse punido.
Se a humanidade, portanto, é dada pela capacidade do indivíduo de se integrar e
adaptar-se à pólis, esta não é fixa. Em um contexto em que Erasmo Wagner e Edgar Wilson
se confundem com seu objeto de trabalho a partir de elementos biológicos, estes só podem
ser vistos como homens-refugo ou homines sacri, mas quando assumem posição de
destaque e fugazmente se empoderam, assemelham-se ao poder soberano e podem fazer
outros calarem-se ou animalizá-los.
74
CAPÍTULO IV: “Senhoras e senhores, bem vindos ao fabuloso mundo da cumbia”34:
Sexo, sangue e violência na narrativa cucurtiana
Señoras y señores,
¡se acabó!
¡tomemos la historia por el culo!
Washington Cucurto
Washington Cucurto, uma espécie de heterônimo do autor Santiago Vega, é descrito
como um dançarino de cumbia nascido em Quilmes, província de Buenos Aires,
extremamente mulherengo e politicamente incorreto. Pertencente ao livro 1810: La
Revolución de Mayo vivida por los negros, a epígrafe aqui utilizada é parte de um
manifesto que teria sido escrito por seu bisavô, no qual ele denuncia a necessidade de se
reinventarem as grandes histórias que trazem heróis falsamente inventados e propõe que a
história seja reescrita não a partir de suas gestas, mas de seus atos e feitos do cotidiano.
Esse manifesto parece adaptar-se perfeitamente ao que é feito em Cosa de negros
(2012) e dar chaves de interpretação do que seria um “realismo atolondrado”, termo
utilizado pelo próprio autor para denominar suas produções. Em uma entrevista dada a
Christina Lima, em 2005, ele define e caracteriza esse “gênero” da seguinte maneira:
Escrever com liberdade. Penso que a arte é libertação ou não é nada. (...) minha literatura é
vitalista, estando mais perto do equívoco do que da perfeição e dos sentimentos do que da
intelectualidade. O sexo, a dança e o amor são coisas que marcam esse estilo apressado, de
como quem está tateando no escuro como quando fazemos amor pela primeira vez com uma
mulher. Não sabemos qual será o ponto em que ela tocará, nem do que ela mais gosta.
Assim é minha literatura: caminhar por um terreno desconhecido onde os sentidos cumprem
um papel fundamental, como na cama. O sexo e o amor são obscenos, têm odores, suor,
saliva, grude, secreções. Isso é o amor! (CUCURTO, 2005)
Com uma descrição muito semelhante com a oferecida por Pedro Juan de um sexo
material, não baseado apenas em ternura e espiritualidade, Cucurto indica sua preferência
pelo baixo corporal e por temas banais, como o sexo, já mencionado, a dança e o amor não
como um sentimento elevado, mas tão obsceno quanto o ato sexual. Esse estilo apressado,
34
CUCURTO, 2007, p. 70. No original: “Señoras y señores, bienvenidos al fabuloso mundo de la cumbia.”
(CUCURTO, 2012, p. 53)
75
também denominado por ele como um realismo irresponsável e imprudente, pautado no
equívoco, reflete-se em diversos momentos do texto, nos quais o narrador se coloca como
um péssimo contador de histórias. Junto ainda a essa liberdade de escrita vem uma
composição de excessos que José Ovejero (2012) interpreta como um convite do autor para
que o leitor leia a realidade a partir de aspectos e sentimentos que são considerados
perversos e subversivos.
Segundo o autor, há uma literatura dominante que determina quais temas podem ser
mencionados ou como eles são passíveis de serem representados. Assim sendo, o escritor
que fale em sua narrativa de temas como aborto, violência de gênero ou sexualidade infantil
corre o risco de ser denominado como um produtor de alto mau gosto ou como um traidor
da sociedade, sendo imediatamente rotulado como violento, pervertido ou machista.
Segundo Luciene Azevedo (2007, p.80), a primeira versão de Cosa de negros vinha
com um encarte que zombava a teoria do evolucionismo cientificista ao conter fotos de
Washington Cucurto/Santiago Vega imitando a posição do homem de Neandertal até a
postura vertical para destacar momentos de sua carreira literária. Além disso, a presença de
tais temas e “a recriação de um léxico que mistura gírias, ditados populares e falares
paraguaios, antilhanos e portenhos, justapondo discursos de registros diversos” fez com que
esse e outros livros fossem considerados racistas, chegando a ser queimados em praças
como forma de protesto à sua distribuição na rede escolar.
Beatriz Sarlo (2007) denomina Washington Cucurto como escritor de um
populismo pós-moderno, no qual o narrador é colocado em submersão com seus
personagens, sem diferenciar-se de modo algum, seja em relação à linguagem, estrutura
sintática ou nível de ideias e experiências, enfatizando unicamente atos relacionados ao
corpo, especialmente ao sexo:
En el abanico de opciones posibles, Cucurto coloca su literatura en un más allá populista.
Digamos, un populismo posmoderno, que celebra no la verdad del Pueblo sino su capacidad
de coger, bailar cumbia, enamorarse y girar toda la noche. Abandona toda cautela entre lo
que puede decirse y lo que no puede decirse y, sobre todo, no da al narrador una lengua
distinta en nada a la de sus personajes.
(…) A Cucurto le interesa mucho más mencionar culos y tetas que las vueltas de la
subjetividad: le interesa un mundo táctil, donde las superficies corporales se tocan, rebotan,
se humedecen, levitan. (SARLO, 2007)
76
O rompimento de cautela sinalizado por Beatriz Sarlo é proveniente de uma
“espetacularização do politicamente incorreto [que] põe em crise as convenções sem
pretender nenhum gesto revolucionário” (AZEVEDO, 2007, p. 81) e que situa Cucurto na
classificação de autor cruel, postulada por José Ovejero (2012).
Tal como para Pedro Juan, não interessa ao narrador cumbianteiro encontrar
brilhantes em sua escrita ou mudar o cenário social em que se encontra. Sua crueldade
consiste na pura exibição dos elementos do baixo corporal sem eufemismos ou metáforas, o
que faz com que seja identificado com a literatura pornográfica em sua dupla
impossibilidade de existência. Para ele, assim como para seu bisavô, não importam as
grandes gestas do povo, mas suas ações cotidianas, como as de “coger, bailar cumbia,
enamorarse y girar toda la noche”, sinalizadas por Sarlo (2007).
Mesmo tendo a consciência do quão são importantes as questões relacionadas à
escolha de um pseudônimo autor-narrador-personagem por Santiago Vega, as discussões
sobre mercado e marginalidade por ter criado a editora Eloísa Cartonera e livros publicados
por ela, optou-se por analisar, tal como foi feito com as obras anteriores, como se dá as
figurações do corpo e suas relações com o espaço narrado, que faz com que Cucurto receba
o rótulo de “pornográfico”, definido como aquele que “muestra en público actos que suelen
pertenecer a la esfera privada y (...) despoja al acto sexual de cualquier sentimiento,
manteniendo únicamente la excitación” (OVEJERO, 2012, p. 83).
4.1. Samber, a ilha da cumbia
Washington Cucurto, em Cosa de Negros, deixa claro o objetivo de seu livro: fazer
com que o leitor não só conheça o Samber, que o autor define como “o único lugar desta
porra de cidade que vale a pena” (CUCURTO, 2007, p. 12)35, mas que também possa entrar
no universo da cumbia: “às vezes vou, volto, me perco, sou um desastre para contar
histórias, mas daqui você vai direto para o Samber.” (CUCURTO, 2007, p. 12)36. Em um
35
No original: “el único lugar en esta perra ciudad que vale la pena” (CUCURTO, 2012, p. 11)
No original: “a veces me voy, entro, salgo, me disperso, soy un desastre pa contar; pero usted de acá va
directo al Samber.” (CUCURTO, 2012, p. 10)
36
77
tom de uma conversa amigável, às vezes até mesmo em um tom de confidência, depois de
informar que o clube se situa perto da estação ferroviária de San Miguel, Cucurto apresenta
o Samber da seguinte maneira:
Ah, rapaz, você não imagina como é quando as luzes se acendem... o outro mundo
surge, a gente viaja até o centro das estrelas, lá se pode permanecer nu, sem beber
água ou comer, ou ter que pagar ingresso ou pedir licença... cara, quando a luzes se
acendem para você, acende-se a vida, mas não esta de merda, a outra, a que vale a
37
pena viver. (CUCURTO, 2007, p. 18)
Essa entrada no Samber lembra a sensação que Soraya Simões (2010) descreve ao
ingressar na Vila Mimosa pela primeira vez. Mesmo sem limites definidos, ela percebe, em
determinado momento, olhares voltarem à sua direção, indicando que adentrara em um
novo e diferente espaço dentro da cidade. Da mesma forma, a entrada no universo da
cumbia também está marcada por uma alteração não apenas no espaço, mas nas sensações e
atitudes de seus integrantes, marcada pelo acendimento das luzes.
Ao afirmar que nesse espaço ninguém precisa pagar ingresso e que todos podem
andar nus sem precisar de água ou comida, Cucurto transforma o Samber em um
Cockaigne, tal como representado por Bruegel: um lugar em que tudo é permitido, com
acesso ilimitado a sexo, com a única diferença de que não há a necessidade de bebida ou
comida em abundância.
A partir disso, podemos perceber no trecho a ideia de uma boneca gigogne, que
possui dentro dela, outras bonecas de tamanhos menores. Como vimos anteriormente,
Michel Maffesoli (2010) utiliza esta imagem para demonstrar o modo como a cidade se
configura atualmente. Fragmentada, ela apresenta unidades que, apesar de fazerem parte de
um todo, apresentam configurações diferentes. Quando as luzes do Samber se acendem,
este se torna um mundo distinto, único, universo à parte da cidade na qual está inserido.
Definido por Maffesoli como neotribalização, este processo de fragmentação
envolve características do social e da sociabilidade:
37
No original: “Ah, Cabro, no sabés lo que es cuando se encienden las luces... Se aparece el otro mundo, uno
viaja hasta el centro de las estrellas, uno puede permanecer allí desnudo, sin tomar agua o comer o tener que
pagar entrada o derecho por nada… Cabrón, cuando se encienden las luces se enciende la vida, pero no ésta
de bosta sino la otra, la que vale la pena vivir” ( CUCURTO, 2012, p. 15)
78
De maneira quase animal, sentimos uma força que transcende as trajetórias
individuais, ou antes, que faz com que estas se inscrevam em um grande balé cujas
figuras, por mais estocásticas que sejam, no fim das contas, nem por isso deixam de
formar uma constelação cujos diversos elementos se ajustam sob forma de sistema
sem que a vontade ou a consciência tenham nisso a menor importância. (Maffesoli,
2010, p. 133)
Para que seja formado um “nós” na ilha, é necessário que haja uma focalização não
em grandes histórias ou acontecimentos, mas naquilo que pertence a situações cotidianas e
que é comum a todos. Por isso, teremos uma forte presença de elementos desdiferenciantes,
pré-individuais e biológicos, que, por serem naturais, iguala a todos os habitantes da ilha
Samber, o que torna possível que, quando as luzes se acendam, possam conviver pessoas de
distintas culturas e sociedades: “Luzes, luzes, luzes, que desperdício de beleza!
Sensacional, o Samber! (...) O universo é aqui. Todas as raças, todos os tamanhos, todas as
cores, todos os penteados, mil coloridos...”(CUCURTO, 2007, p.31)38.
Todo e qualquer indivíduo pode fazer parte desta ilha/tribo, mas deve-se levar em
consideração que, por haver configurações específicas, determinadas ações podem ter
consequências diferentes dentro deste espaço. Cucurto, em uma de suas “aventuras” no
Samber, presencia sua mulher dançando e descobre que ela o está traindo com outro
homem: “Suculentos, azedos, beijos pornô de língua entre minha rainha e o verdureiro.”
(CUCURTO, 2007, p. 61)39. Diante do ocorrido, Sente-se perdido, morto, e chora: “Chorar
até inundar o salão. Chorar até que se apaguem para sempre as luzes dessa pocilga. Tomara
que a música morra. Hoje a cumbia morreu para mim, mas também morre o Samber e
morro eu.” (CUCURTO, 2007, p. 61)40. Logo em seguida, há uma espécie de justificativa
para tal reação:
Uma pessoa pode perder dinheiro no banco, ser assaltada e assassinada na rua. Até aí tudo
bem, é normal, é coisa digna. Sua mulher pode traí-lo com o verdureiro. Tudo bem. Mil
tragédias, mil vidas; a cada vida sua tragédia. Mas… perder no baile?! Isso é o mais
humilhante. Não tem nada igual em matéria de fracasso. (…) perder no baile é a coisa mais
ignominiosa. Não existe nada que um homem possa fazer para evitar e superar isso. Nessa
38
No original: “Luces, luces, luces, ¡qué encastre de belleza! Sensacional el Samber. (…) Esto es un universo.
Todas las razas, todos los tamaños, todos los colores, todas las teñidas de pelo, coloraciones…” (CUCURTO,
2012, p. 24)
39
No original: “Jugosos, jocosos besos pomo de lengua entre mi reina y el verdulero” (CUCURTO, 2012, p.
45)
40
No original: “Llorar hasta inundar el baile. Llorar hasta que se apaguen para siempre las luces de esa
inmundicia. Ojalá se muera la música. Hoy muere la cumbia para mí, pero también muere el Samber y muero
yo” (CUCURTO, 2012, p. 45)
79
hora o cara desce até o fundo do poço. O homem vira um verme, um rato, uma barata, uma
lacraia. (CUCURTO, 2007, p. 61-62)41
Uma perda fora do espaço do Samber pode ser considerada normal. Perder dinheiro
ou perder a mulher é apenas uma tragédia como qualquer outra e não atinge de forma
negativa a honra do indivíduo. No entanto, perder no baile é inadmissível. Provavelmente,
Cucurto deveria ter reagido frente a esta situação. Porém, como apenas observa e sai,
rompe com o que se espera da atuação de um homem traído no interior do Samber. Desta
forma, ele se sente morto e, para ele, morre também o próprio clube, ao qual não mais pode
pertencer. Diante dos outros habitantes da ilha, ele se tornou um animal insignificante e
indigno de continuar frequentando-a.
É importante observarmos que, enquanto Pedro Juan, Edgar Wilson e Erasmo
Wagner perdem sua humanidade ao integrarem espaços degradados e em crise econômica
e/ou social e ter aspectos que os desdiferenciam dos animais, Cucurto, no caso apresentado,
se animaliza ao sair em desvantagem no processo de conquista.
Ver sua mulher trocando carícias com outro e não reagir frente a isso faz com que
ele perca a identidade de mulherengo e de conquistador infalível das dançarinas de cumbia,
colocando-o na posição de animal insignificante, “um verme, um rato, uma barata, uma
lacraia”. Agambem (2013) nos diz ser a competência de transcender a animalidade um fator
essencial para se constituir a humanidade, mas se, conforme é sinalizado pelo narrador, essa
condição é irreversível dentro do Samber, ele não pode mais integrá-lo, e resta apenas
aguardar que as luzes se apaguem.
Ao mostrar a perda de dinheiro, da mulher ou da própria vida como normal quando
em espaços externos (banco/rua), mas como um fator humilhante e animalizador dentro do
Samber, Cucurto nos mostra mais uma vez que a ilha cucurtiana possui configurações
específicas que determinam seus acontecimentos internos e possíveis consequências.
41
No original: “Uno puede perder dinero en el banco, ser asaltado y asesinado en la calle. Eso está bien, eso
es normal, es digno. Su mujer lo puede engañar con el verdulero. Y está bien. Mil tragedias, como mil vidas
hay; a cada vida su tragedia. ¡Pero, perder en el baile! Eso es lo más humillante. (...) Perder en el baile es la
cosa más ignominiosa. No hay nada que pueda hacer un hombre para evitar y superar eso. Ahí el hombre
80
4.2. O caso das múltiplas identidades e a pornografia cucurtiana
O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade
unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não
de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes
contraditórias ou não resolvidas.
Stuart Hall, em A identidade cultural na pós-modernidade
Em “Cosa de negros”, a ideia de múltiplas identidades postulada por Stuart Hall
(2005) fica clara em um episódio no qual uma mulher com quem Cucurto teve relações
sexuais no dia anterior diz a ele que está grávida. Ela grita, o acusa e, em meio à confusão,
vem a defesa: “ - Assume sua cria! – A gorda insiste com essa de filho. - Que filho, sua
escrota! Eu já sou casado, já tenho um” (CUCURTO, 2007, p. 41)42. Podemos perceber
claramente que a identidade mais conveniente a ser ativada neste momento parece ser, para
o personagem, a de um homem de família, a de ser casado e pai, pois acredita que, desta
forma, pode livrar-se da acusação. Dentro do Samber, porém, esta identidade é substituída
imediatamente por outra:
Volto à danceteria. Sou o último da fila. Tudo muito cheio. Muitos casaizinhos
dançando Cumbia. Muita mulher bonita. (...) Acendem-se as luzes e renasço.
Acendem-se e já não tenho filho, nem mulher, nem mulher, nem família, nem pais,
nem dinheiro, nem trabalho, nem nome... estou feliz, meus olhos veem o máximo
possível. As que mais me excitam são aquelas que dançam acompanhadas por
outros. As que não param.” (CUCURTO, 2007, p. 53-54)43
Um lugar como o Samber, repleto de “mulher bonita”, exige outro tipo de
identidade, que pode ser a de um observador, dançarino, conquistador, mas não a de um
marido ou a de um pai. Durante o período em que permanece no clube de cumbia, os laços
sociais, como o de família ou o profissional, que em outros espaços são imprescindíveis,
são omitidos, tornando-se totalmente dispensáveis.
desciende hasta su escalón más miserable. Ahí el hombre es gusano, rata, cucaracha, lacra.” (CUCURTO,
2012, p. 45)
42
No original: “«¡ Cortala con el crío!» La gorda me insiste con el hijo. «!Qué hijo, pajuerana! Soy casado y
ya tengo uno»” (CUCURTO, 2012, p. 31).
43
No original: “Vuelvo al baile. Voy último en la cola. Todo muy lleno. Muchas parejitas bailando cumbia.
Muchas chicas lindas. (…) Se encienden las luces y vuelvo a nacer. Se encienden y no tengo ni hijo ni mujer,
ni familia, ni padres, ni dinero, ni trabajo, ni nombre… Estoy feliz, mis ojos miran todo lo posible. Las que
más me excitan son las que bailan acompañadas por otros. Esas no paran.” (CUCURTO, 2012, p. 40)
81
No livro analisado, não apenas as identidades mudam em determinados espaços. As
normas de civilização e conduta, que tornam obscenos os atos do baixo corporal, também
são omitidas, especialmente nas cenas em que a carne, o sexo, o corpo, a violência ganham
protagonismo na narrativa. Do mesmo modo que Pedro Juan Gutiérrez, Cucurto registra em
um tom seco, sem adornos, os aspectos mais brutais da experiência cotidianos de um
homem comum. Em algumas cenas se destacam elementos e atos referentes ao corpo
denominado como pornográfico. Trazemos, para análise, um trecho do capítulo intitulado
“A superfoda dentinho de elefante”:
- Me come, negão, me come – vinha gritando a dançarina de Cumbia. – Nossa!
Como você é alto e forte! Vem com tudo, arromba minha persiana, me enterra tudo
até o cabo, até enxaguar o meu duodeno! (…)A garota, para não se sentir em
dívida, começou a tirar-lhe os pentelhos dos bagos, produzindo o efeito
‘palmadinha’. Aos poucos foram se colocando em posição 69; Washington
mamava-lhe a vagina e lhe sorvia o clitóris (...) Quando não pôde mais aguentar
tanta gente em forma de líquido em sua boca, a púbere-impúbere começou a soltar
o sêmen pelo nariz, algo nunca visto, mas sempre ouvido: o lendário ‘dentinho de
elefante” (CUCURTO, 2007, p. 91-94)44
Estas referências cruas ao baixo corporal, especialmente no que se refere aos atos
sexuais, costumam ser interditadas ou silenciadas por aparecerem comumente associadas a
espaços de sociabilidade restritos ou a momentos muito particulares. Tanto é assim que os
discursos pornográficos costumam situar-se, conforme Dominique Maingueneau postula,
em uma posição de dupla impossibilidade, já que é impossível ela não existir, visto que é
massivamente atestada, mas que, ao mesmo tempo, é impossível que exista por causa de
sua clandestinidade comprovada ao ser sempre posta “por debaixo dos panos”
(MAINGUENEAU, 2010, p. 47).
No fragmento de Cosa de negros citado acima, a crueza do discurso não aparece
deslocada desta dupla impossibilidade. Ela apenas se apresenta possível porque está situada
em um momento restrito e associada a uma situação muito particular. A caracterização da
44
No original: “Cogeme, negro, cogeme”, venía gritando la adolescente bailarina de cumbia. “¡Qué grandote
y fuerte! Dame con todo, sacudime la persiana, enterrámela hasta el fondo, enjuagame el duodeno.” (…)La
jovenzuela, para no ser menos, comenzó a tirarle los pelos de los huevos produciendo el efecto “palmadita”.
Progresivamente se fueron poniendo en posición 69; Washington le mamaba la vagina y le sorbía el clítoris
(…) Al no poder soportar a tanta gente en su boca hecha líquido, la púber-impúber comenzó a soltar el semen
por la nariz, algo nunca visto pero siempre oído: el legendario “colmillito de elefante’ ”. (CUCURTO, 2012,
p. 71-73)
82
adolescente como uma dançarina de cumbia nos fornece duas informações que nos ajudam
a compreender este uso: a primeira é a de que a adolescente está diretamente ligada ao
Samber, já que este é o local em que, segundo Cucurto, há o melhor baile de cumbia da
cidade, e a segunda informação é a de que provavelmente eles se conheceram no próprio
Samber. Juntando-se isto à própria situação íntima narrada, omitir ou amenizar as
referências ao baixo corporal torna-se algo totalmente desnecessário e incompatível com o
contexto.
Além disso, dada a proposta de fazer com que o leitor de fato entre no universo da
cumbia e não seja mero observador, o uso de um léxico dito pornográfico e o detalhamento
das posições sexuais ajudam a construir a cena, obtendo-se um discurso altamente
performático, a partir do qual o leitor pode se sentir como um terceiro participante, que
compartilha desta situação particular e que, portanto, não precisa ser privado de um
discurso que seria considerado agressivo se dito a pessoas que estão situadas fora deste
“espaço restrito”.
Em Cosa de negros, de Washington Cucurto, o clube de cumbia Samber apresentase como um espaço determinador para a caracterização do narrador-personagem Cucurto.
Tal como o território de uma tribo ou uma “ilha urbana”, o Samber apresenta configurações
específicas e, por isso, apresenta leis próprias que devem ser respeitadas e seguidas por
aqueles que o frequentam.
Como pertencente não apenas a uma única tribo/ilha, cabe a Cucurto adaptar-se a
cada uma delas, apresentando a(s) identidade(s) que parece(m) ser a(s) mais compatível(is)
com o ambiente em que se encontra, sob o risco de deixar de pertencer a uma delas, caso
não corresponda às expectativas. Tudo isto nos traz de volta o imperativo da proxemia e
mostra que o espaço é uma categoria indispensável para a análise desta obra que, produzida
em meio a um universo líquido, apresenta também um personagem fluido, que se adapta às
distintas ilhas pelas quais circula ao longo de um mesmo dia.
83
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Você percebe que o corpo é realmente interdito quando digita “cagar” e o
Word sugere “defecar”; mas, ao mesmo tempo, percebe sua naturalização
quando digita “bunda” e nada acontece...
Ana Cristina, em página do Facebook
Não é de práxis iniciar esta seção com uma epígrafe, ainda mais quando esta foi
escrita pela própria autora da dissertação e publicada no Facebook, com quinze míseras
curtidas e nenhum comentário, mas essa reflexão que surgiu durante o processo de escrita
me parece essencial para pensarmos em tudo o que foi aqui sinalizado.
Não há dúvidas de que alguns elementos e ações, especialmente relacionados ao
“baixo corporal” (BAKHTIN, 2010) foram interditados a partir de um processo civilizador
que determina como ideais os comportamentos que não causam constrangimentos ou
incômodos ao outro. No entanto, também parece evidente a existência de alguns espaços,
contextos, territórios ou circunstâncias (como, p. ex. o período de carnaval, o espaço do
baile funk ou o ambiente privado da intimidade de um casal) que permitem a menção a tais
termos obscenos. Isso parece fazer com que o uso do termo “bunda” não seja considerado
tão inconveniente para o texto escrito, ao contrário dos elementos referentes à excreção,
que são mais raros de serem mencionados, sendo comumente substituídos por eufemismos,
sons ou até mesmo numerações.
No decorrer dessas páginas, percorremos um arquipélago formado por três ilhas
urbanas, sendo recebidos por habitantes que, embora situados em países diferentes,
apresentaram características em comum não só entre eles, mas, surpreendentemente, entre
todos nós. Primeiramente, entramos no edifício onde mora o personagem Pedro Juan. Com
as paredes desmoronando, não foi preciso ultrapassar a linha que deveria separar o público
do privado. Tentando, sem sucesso, desviar-nos dos suspeitos embrulhos que caíam pela
janela ou nos furtar ao intercâmbio de líquidos, odores e bactérias que nos cercava,
entramos em contato com um autor cruel, que nos colocou diante de elementos que o
processo civilizador tentou ocultar. Logo em seguida, atraídos por um incômodo cheiro de
podre, entramos em um depósito de lixo e, com muita dificuldade para diferenciá-lo dos
dejetos, fomos apresentados a Erasmo Wagner. Diante de um contexto de imundície
84
generalizada, vimos homens sendo confundidos com animais, mas também recuperando sua
humanidade. De repente, entre vozes e mugidos, e com a sensação de que tudo se repetia,
entramos no matadouro do Seu Milo e conhecemos nosso guia turístico local. Edgar
Wilson, apresentando-nos cada etapa do abate de bois e de homens, mostrou-nos como o
sangue, o cheiro e as vísceras podem romper as fronteiras entre o humano e o animal. Por
último, embalados pelo contagiante som da cumbia, fomos apresentados ao Samber por
Cucurto, uma espécie de apresentador de um grande espetáculo circense, pai, marido e ao
mesmo tempo, dançarino e domador de elefantes.
Através deste percurso parafrástico-literário, revemos os conceitos e análises
desenvolvidos nos capítulos da dissertação e que estão contidos em seu título: “Corpo e
processo civilizador na cidade narrada: o humano e o animal na narrativa latino-americana
recente”, no qual encontramos as chaves de leitura utilizadas para a análise das cenas
selecionadas.
A partir da seleção de algumas cenas e sem a pretensão de esgotarmos as
possibilidades de análise das obras de Pedro Juan Gutiérrez e de Ana Paula Maia, vimos
que o corpo foi apresentado, nas quatro narrativas, a partir de elementos referentes ao baixo
corporal, que foram sendo recalcados e omitidos ao âmbito do privado no decorrer do
processo civilizatório. Referências essas, sempre relacionadas a um fragmento específico da
cidade, com normas e configurações próprias.
Devido a uma situação-limite econômica ou social, vimos também construir-se uma
proximidade maior entre os integrantes de uma mesma ilha, e um consequente
esvaziamento das normas de conduta. Sem a repressão do corpo interdito, os personagens
perderam sua humanidade, sendo igualados aos animais através de elementos como o
sangue, o cheiro, a excreção e o sexo, que, por serem desdiferenciantes e puramente
biológicos, diluem as fronteiras entre o homem e o animal.
Logicamente, não é possível chegarmos a uma conclusão decisiva a respeito de toda
a narrativa recente apenas a partir desses dois ou três autores, mas talvez o fato de
podermos utilizar os mesmos elementos de análise em obras escritas por autores diferentes
e em países distintos indique que estamos diante de uma narrativa latino-americana que
apresenta uma configuração própria em relação aos momentos anteriores.
85
Deixo, portanto, essa dissertação como um indicativo de como podemos traçar um
paralelo entre narrativas a partir das figurações do corpo e do processo civilizador na cidade
fragmentada, com a expectativa de incentivar sua aplicação pelos demais pesquisadores em
outras obras produzidas nas duas últimas décadas.
86
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