DE ANTONIO CARLOS VIANA Marilia Simari Crozara1

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DE ANTONIO CARLOS VIANA Marilia Simari Crozara1
MEMENTO - Revista de Linguagem, Cultura e Discurso
Mestrado em Letras - UNINCOR - ISSN 1807-9717
V. 07, N. 1 (janeiro-junho de 2016)
APONTAMENTOS SOBRE A MEMÓRIA E A LITERATURA EM “MOONLIGHT
SERENADE”, DE ANTONIO CARLOS VIANA
Marilia Simari Crozara 1
RESUMO: Aventurar-se na contística de Antonio Carlos Viana é, sem dúvida, aceitar o papel de
espectador e espiar o lado violento e traumático da miséria imposta a seus personagens. Contista
premiado diversas vezes no Brasil, o escritor sergipano teve sua primeira obra publicada em 1974,
Brincar de Manja, trazendo à tona o lado violento de experiências sexuais concernentes à infância e à
adolescência. A partir dessa coletânea, sua contística denuncia a marginalização da mulher, da criança,
do adolescente, do idoso, enfatizando relações que mesclam corrupção e poder. Desde então, essas
características foram acentuadas em obras subsequentes, a saber: Em pleno castigo (1981), No meio do
mundo e outros contos (1993), Aberto está o inferno (1994) e Cine Privê (2009). Nessa perspectiva,
“Moonlight Serenade”, narrativa presente em Cine Privê, corresponde a um desses contos que
encaminham seu leitor a seguir o fio da memória pela objetiva de uma câmera. Assim, neste estudo,
objetivo discutir as relações interpessoais responsáveis pelo comportamento da narradora-personagem,
advindo da instauração da memória no conto contemporâneo brasileiro. Dessa forma, considero como
escopo teórico o pensamento de Jacques Le Goff e Márcio Seligmann-Silva a fim de debater a
recuperação da memória como meio de constituição identitária.
PALAVRAS-CHAVE: Memória; Literatura; Antonio Carlos Viana; Cine Privê; Moonlight Serenade.
RESUMEN: Aventurarse en los cuentos de Antonio Carlos Viana es, sin dudas, aceptar el rol de
espectador y espiar el lado violento y traumático de la miseria que se impone a sus personajes. Cuentista
diversas veces galardonado en Brasil, el escritor de Sergipe (Brasil) tuvo su primera obra publicada en
1974, Brincar de Manja, mencionando el lado violento de las experiencias sexuales que tocan a la
infancia y a la adolescencia. A partir de esa compilación, su modo de hacer cuentos denuncia la
marginalización de la mujer, de los niños, de los adolescentes, de los mayores, poniendo en relieve las
relaciones que mezclan corrupción y poder. Desde entonces, esas características se han ido acentuando
en otras obras suyas, como Em pleno castigo (1981), No meio do mundo e outros contos (1993), Aberto
está o inferno (1994) y Cine privê (2009). Bajo esa perspectiva, “Moonlight serenade”, narrativa
presente en Cine Privê, corresponde a un cuento que conlleva el lector a seguir el hilo de la memoria
por la objetiva de una cámara. Así, en este estudio, se tiene por objetivo discutir las relaciones
interpersonales a través del comportamiento de la narradora-personaje, advenido de la instauración de
la memoria en el cuento contemporáneo brasileño. De ese modo, se considerará como alcance teórico el
pensamiento de Jacques Le Goff y de Márcio Seligmann-Silva con el propósito de debatir la
recuperación de la memoria como medio de constitución identitária.
PALABRAS CLAVE: Memoria; Literatura; Antonio Carlos Viana; Cine Privê; Moonlight Serenade.
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Mestra em Estudos Literários pela Universidade Federal de Uberlândia (FAPEMIG/UFU). E-mail:
[email protected].
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No fim da visita, não deixava de fazer a mesma pergunta, mas
ninguém sabia onde fora parar a sua malinha de ferramentas.
Eu tinha vontade de dizer pra ele que esquecesse a malinha, que
só olhasse pra frente, olhar pra trás é sempre perigoso.
Antonio Carlos Viana
Antonio Carlos Viana está entre os escritores brasileiros contemporâneos cujos
personagens problematizam o lugar do homem na sociedade, revelando, de maneira ácida, suas
diversas mazelas. Podemos perceber em suas narrativas sólidas críticas à humanidade,
promovendo discussões quanto à marginalização do ser humano frente às diferentes relações
sociais permeadas pela corrupção e pelo poder. Contista premiado várias vezes no Brasil, o
escritor sergipano teve sua primeira obra publicada em 1974, Brincar de Manja, na qual já
anunciava uma escrita prenhe de recursos de linguagem – a exemplo do uso do realismo
mágico2, bem como um estilo de escrita que encaminharia para o novo realismo 3 – e variada
em suas temáticas, traços cada vez mais intensificados nas demais obras.
Essas características foram acentuadas em textos subsequentes, como, Em pleno castigo
(1981), No meio do mundo e outros contos (1993), Aberto está o inferno (1994), Cine Privê
(2009) e Jeito de matar lagartas (2015), obras marcadas pelo niilismo e pela crueza que, num
jogo entre memória e esquecimento, discutem a miséria e a degradação humanas. Essa relação
da memória com o esquecimento aparece nos contos de Antônio Carlos Viana mediante a
narração de personagens que retomam episódios de suas vidas, considerando o trauma vivido,
a leitura simbólica desses acontecimentos, bem como possíveis embates culturais. Dentre as
situações conflitantes apresentadas nas narrativas de Viana, pode-se considerar o embate
ocorrido entre a cultura norte-americana e a brasileira, apresentado no conto em estudo. Assim,
ínfimas ocorrências já são suficientes para que os fios da lembrança se soltem: basta uma
música, a fotografia de um ambiente onde o personagem se encontrava na ocasião narrada, uma
produção cinematográfica para que os traumas sejam revividos. É, portanto, a partir desse tecer
e destecer da memória que analiso o conto “Moonlight Serenade”.
Nessa história, a narradora e protagonista desfia o tecido da memória e transforma o
leitor em espectador dos traumas vivenciados. Mas as suas lembranças são permeadas por
lacunas, por espaços em branco, por esquecimentos que a impedem de narrar. Nesse sentido, é
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A esse respeito, vide os contos concernentes à coleção Brincar de manja, de 1974.
O conto em estudo é um exemplo do uso de uma linguagem que viabiliza um novo olhar para o realismo, valendose dos recursos de uma escrita performática. Nessa forma de narrar, a carnalidade dos sentidos se realiza na e pela
integração entre a imagem, o som e a gestualidade, evocando as marcas de uma mão, como na tradição do
manuscrito. A esse respeito, sugiro os estudos de Karl Erik Schøllhammer (2011) e Paul Zumthor (2007).
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preciso concordar com Márcio Seligmann-Silva, quando afirma que “a memória só existe ao
lado do esquecimento: um completa e alimenta o outro, um é o fundo sobre o qual o outro se
inscreve” (SELIGMANN-SILVA, 2003a, p. 53).
Já adulta, a protagonista revela a história de sua vida, determinada por um
acontecimento em especial: as dores nos dentes que teve quando adolescente, fato que suscita
o próprio desenvolvimento da narrativa. Com efeito, o texto trata da história de uma menina de
treze anos que “permite” o assédio sexual de um prático de periferia, o Dr. Lustosa, em troca
de seu tratamento dentário. Os encontros eram embalados pela música “Moonlight Serenade”,
de Glenn Miller, que oferece título ao conto e motiva as rememorações da narradora.
Lustosa não era o nome do prático, mas sim da cera utilizada a fim de tratar a dor dos
dentes, pois a personagem não tinha dinheiro para o tratamento dentário. O medicamento
adormecia a boca e a deixava com cheiro de cravo. O personagem é descrito pela narradora
como um indivíduo asqueroso, mas o único meio encontrado por ela para tratar de seus dentes
apodrecidos.
Sobre outras personagens, as informações são limitadas: seu pai falecera, deixando a
família na completa miséria. A maneira pela qual a mãe conseguira sustentar os cinco filhos foi
silenciada pela protagonista, haja vista a menina preferir não saber de que lugar vinha o dinheiro
da mãe, entretanto, ela sugeria tal origem: a prostituição, pois, de acordo com a menina, sua
mãe “corria doida pelo mundo, atrás de dinheiro para botar as coisas dentro de casa. [...] Nunca
soube como ela arrumava dinheiro, eu, a mais velha, nunca perguntei” (VIANA, 2009, p. 105).
A esposa de Lustosa é tão alheia aos acontecimentos quanto os passantes anônimos das ruas da
cidade. O restante da família é odiado pela menina. Tais informações superficiais oferecidas
pela narradora já apontam para o efeito que a ausência familiar desempenhará na vida da
menina, papel ocupado por Dr. Lustosa, de alguma maneira. Tal perspectiva encaminha para o
processo entre memória e silenciamento acontecido no decorrer do conto.
Ao longo do conto, percebe-se que as lembranças da narradora são marcadas por uma
mescla de rancor e, contraditoriamente, de gratidão, como evidenciado pela própria
personagem, “pior se o buraco que ficou em mim tivesse sido na minha boca” (VIANA, 2009,
p. 109). Em contrapartida, a boca já representa um buraco que hora ocupa uma situação
privilegiada, como o lugar da palavra, da respiração e da alimentação, ora aparece como parte
abjeta do corpo, passível de putrefação, do cuspe e do escarro. Segundo Eliane Robert Moraes,
em O corpo impossível: a decomposição da figura humana – de Lautréamont a Bataille, “a
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boca concentra em si o princípio da inversão que precipita o incessante trabalho das
contradições entre o ideal e o abjeto” (MORAES, 2012, p. 199).
Talvez, o desejo de manter-se “inteira”, de manter sua dignidade espelhada pela
brancura dos dentes, fosse uma forma de sobreviver à miséria, à história vivida e, com isso,
“buscar superar” o trauma, enfrentando-o diretamente, ao escutar novamente as canções de
Glenn Miller em sua vida adulta para conseguir narrar os abusos sofridos. A boca, os dentes,
bem como a audição das canções citadas, funcionarão como um monumento/documento das
agressões sofridas pela personagem, colaborando no processo de restabelecimento de sua
memória ao recontar os acontecimentos vivenciados.
Jacques Le Goff, em seu livro Memória e história, problematiza a relação do historiador
com o acontecimento, com o monumento/documento, contribuindo, significativamente, para a
Teoria da História e para a Historiografia. A memória, a seu ver, corresponde a um meio de
representar o passado, social e historicamente. É por meio dela que o homem atualiza a sua
existência no mundo, frisando a realização de determinados acontecimentos e silenciando
outros no tempo. É no encontro com a memória que as diferentes culturas são instituídas. Para
ele, o
[...] conceito de memória é crucial. [...] A memória, como propriedade de
conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de
funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou
informações passadas, ou que ele representa como passadas (LE GOFF, 2003,
p. 424).
Dessa forma, a memória pode ser entendida como a capacidade de adquirir, armazenar
e recuperar informações disponíveis, especialmente por meio de mecanismos artificiais e/ou
coletivos. Com efeito, o estudioso busca discutir a existência da memória como um monumento
social, desde sua instituição nas sociedades ainda sem escrita até a contemporânea e seus
múltiplos meios de materialização do passado. Consequentemente, seguindo a esteira desse
pensamento, o homem precisaria de seu entorno para existir. Portanto, toda a sua história
individual dependerá da memória coletiva, em outros termos, das condições históricas e
ideológicas circundantes.
Le Goff apresenta como uma prática de memorização oral a utilização do canto. Esse
artifício mnemônico permite mais liberdade e possibilidades criativas, sendo, conforme o autor,
o aedo o responsável pela instituição da memória. Ele recitava ou cantava para a plateia que,
por sua vez, o ouvia atentamente, fazendo do ato de cantar um artifício mnemônico.
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A importância da música para a composição da memória é notável no conto de Viana,
atuando de maneira semelhante ao que ocorre com o aedo. Pode-se dizer que as lembranças das
músicas funcionam como a trilha sonora de um filme mental, e cada canção lança a personagem
para as profundezas de seu passado.
O tempo e os sentimentos da personagem são marcados pela orquestração de Glenn
Miller, que faz vir à tona os acontecimentos que marcaram sua vida. A sinfonia permite, ainda,
uma experiência sinestésica, como o cheiro de cravo da cera Lustosa, que adormecia a boca da
menina. A ação de adormecer a boca da menina mediante o uso da cera é importante no que
concerne à instituição da memória da personagem. Nos episódios apresentados pela narradora,
anestesiar a dor implica em viabilizar a prática do sexo oral, seguido do lento tratamento
dentário, pago mediante o assédio sofrido cotidianamente. Música e cera Lustosa funcionam,
portanto, como recursos para subtrair a atenção do acontecimento. Entretanto, a cada acorde de
“Moonlight Serenade”, a memória da personagem é ativada, levando-a a narrar o trauma vivido,
como se pode ler neste trecho:
Tocava “Moonlight Serenade” quando ele enfiou pela primeira vez a mão em
minha boca. Uma mão gelada, parecia uma jia que tivesse sido lavada com
sabonete vagabundo. Eucalol, na certa. Um alívio quando abriu o dente. Não
dava para acreditar: a dor tinha passado milagrosamente. Eu não tinha um
tostão para cuidar da boca, por isso o dr. Lustosa passou, pouco a pouco, a se
apossar de mim. Tanta inocência, meu Deus! Foi ali que descobri que quem
se apossa de sua boca se apossa de sua alma (VIANA, 2009, p. 104).
Desde esse primeiro parágrafo do conto já se entrevê a violência sexual sendo apontada
pela narradora. A mão enfiada na boca da menina aparece como uma sugestão do ato: a invasão
do corpo que sugere e antecede o abuso sexual. Essa boca escancarada também pode ser
percebida como uma manifestação do grotesco, como evidenciado por Bakhtin em A cultura
popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1987). A boca
seria, dessa maneira, a parte mais importante do rosto para o corpo grotesco, o abismo corpóreo
que se conecta com a parte inferior, com o baixo corpo, com os órgãos genitais e,
consequentemente, com a fertilidade e a reprodução. Para Bakhtin,
Degradar significa entrar em comunhão com a vida da parte inferior do corpo,
a do centro e dos órgãos genitais, e portanto com atos como o coito, a
concepção, a gravidez, o parto, a absorção de alimentos e a satisfação das
necessidades naturais. A degradação cava o túmulo corporal para dar lugar a
um novo nascimento (BAKTHIN, 1987, p. 19).
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A posse do corpo evidencia a relação de poder estabelecida entre eles, ou seja, a
dependência e subjugação da garota, sinalizando, ainda, a extensão do sentido de posse para o
de possessão. Segundo o pensamento cristão, esse fenômeno se refere aos indivíduos que são
possuídos e inteiramente dirigidos por entidades astrais, sem poder resistir. Salma Ferraz, no
artigo “O Bruxo do Cosme Velho decretou a morte do Diabo”, afirma que “o problema ocorre
quando o Diabo passa a ser designado pela palavra dáimon ou demônio. [...] Na tradução do
Novo Testamento para o grego, a palavra dáimon manteve somente a acepção de espírito do
mal” (FERRAZ, 2008, p. 6). A possessão aqui passa, então, pela concepção cristã do termo
endemoniado, ou seja, aqueles que estavam possuídos pelo Diabo. No que concerne ao conto
em estudo, a direção tomada pela protagonista em sua vida será determinada pela presença de
Dr. Lustosa – um demônio, segundo a personagem –, durante o tratamento dentário.
Se o prático influenciou a vida da menina, como se ela estivesse possuída, notamos que
tal dominação não se dissipa completamente com o avançar da idade, pois a narradora encontrase no tempo presente, confidenciando ao leitor os horrores que sofrera no passado, mediante a
rememoração. Trata-se, portanto, de um testemunho:
Eu chorava, sempre choro, quando ouço Glenn Miller. Ouvi-lo é como se eu
tivesse fazendo parte de um daqueles filmes de guerra em que, enquanto
algumas pessoas dançam ao som da música suave, outras perdem braços e
pernas nas valas cheias de lama. Ninguém sabe o que é mal pôr o pé na
adolescência e deixar que um homem avance sobre seu corpo sem a mínima
chance de defesa e, se não deixar, seus dentes se partem um a um (VIANA,
2009, p. 106).
Como sempre, Glenn Miller aparece como um elemento catalizador das memórias da
garota. A metáfora presente no fragmento demonstra o sentimento provocado pela escuta de
“Moonlight Serenade”: as mutilações sofridas pelos soldados em uma guerra podem ser
comparadas à perda de sua inocência frente ao mundo motivadas pela iniciação sexual; uma
forma de também representar a sua interioridade, fragmentada pelo sofrimento. Considero
significativo apontar ainda o fato de o músico ter se destacado durante a Segunda Guerra
Mundial, colaborando para a formação das big bands, ingressando no exército americano como
diretor da banda do exército. No entanto, o avião em que tripulavam os músicos desapareceu
sobrevoando o Canal da Mancha, em 1944. Tais canções se tornaram clássicas e representativas
desse momento da história da humanidade.
O swing do jazz cadencia o desenvolvimento econômico no pós-Segunda Guerra
Mundial. Muitas canções, além de serem, usualmente, utilizadas no conto como trilha sonora
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dos tratamentos dentários da personagem, embalaram a Golden Age americana, tais como
“Boog it”, “In the mood”, “A String of Pearls”, bem como outros músicos também o fizeram,
a exemplo de Ray Conniff. Tal efervescência cultural – ditada pela indústria da moda, do
cinema, da música – findou por interferir na cultura brasileira, inclusive nos locais mais
recônditos do nordeste, como sugere o conto.
Como se pode notar, produtos da indústria estadunidense cinematográfica a exemplo de
...E o vento levou, O mágico de Oz, No tempo de diligências, Cidadão Kane, bem como
musicais famosos como Dançando na chuva, A Noviça Rebelde, Mary Poppins e My Fair Lady,
produzidos entre as décadas de 1930 e 1960, traspassaram a cultura brasileira, processo
fomentado pelos meios de comunicação de massa, primeiramente pela era de ouro do rádio no
Brasil, seguida pela teledramaturgia brasileira, tais como A escalada (1975), Anos dourados
(1986), Chocolate com pimenta (2003), Alma gêmea (2005). Com efeito, enquanto para o dr.
Lustosa a Golden Age significava uma ascensão cultural, para a narradora, representava uma
invasão.
É, pois, dessa mnemônica cultural que percebemos ser montado o caleidoscópio de
lembranças da narradora. As canções das big bands exaltavam o american way of life, evocando
a prosperidade vendida pelos meios de comunicação. Ressalte-se que foi, provavelmente,
através desses meios de comunicação que a menina do conto de Viana ouviu, pela primeira vez,
quando de seu primeiro “tratamento” dentário, a tal música americana, demarcando a posse de
Lustosa também aos bens de consumo desejados na época, e, ao mesmo tempo, a degradação
da menina. A narrativa evidencia o plano mais degradante possível para o ser humano e, mais
especificamente, para a mulher: uma das razões para considerar as canções citadas no conto
como mnemônicas.
A indústria cultural aparece, no conto, de forma contrastante, invadindo, em várias
instâncias, a vida da personagem. É possível sugerir que, antes de conhecer Lustosa, a menina
tivesse acesso somente às canções próprias da cultura regional, tais como as nordestinas, os
cantos de quermesse e do coco. O acesso ao rádio foi propiciado pelo contato com o prático,
que, devido à situação de violência por ela vivenciada, tornou a experiência diante da cultura
de massa um trauma. Dessa forma, a memória da personagem ao som dessas canções
corresponde a um choque, que não era oferecido pelas canções de outrora, passando a relacionar
a agressão sexual à música de Miller.
As canções do músico são ressaltadas em diferentes momentos da narrativa, como se
fossem estágios da violência narrados, cada uma em concordância com o desespero da
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protagonista. Há instantes em que ela busca a lembrança de outras músicas, bem como a de
outros orquestradores a fim de evidenciar a sensação experimentada:
Uma tarde quando passei por uma loja de discos, estava tocando “Boog it”,
uma música toda saltadinha, bem diferente das outras, que me davam nos
nervos. Eu tinha saído do consultório e estava com um lado do rosto ainda
adormecido, tomado pela anestesia. Comecei a vomitar. As pessoas foram
parando, perguntando o que eu tinha e eu queria gritar: “É tudo culpa do Glenn
Miller”. Aí o som aumentou e o jato veio mais forte. Me levaram para dentro
da loja e minha vontade era dizer: “Tirem a porra desse disco, quebrem essa
porra de Glenn Miller”. Mas, naquele tempo, uma moça não falava palavrão.
Me deram água, lavei a boca, nenhuma sensibilidade. Naquele dia, ele havia
emporcalhado meus lábios pela primeira vez. Cada vez mais o dr. Lustosa me
assustava. Eu já entrava de coração miúdo em sua sala. Me achava suja por
deixá-lo fazer o que queria, mas não tinha outro jeito, eu queria salvar minha
boca. O demônio disse que veio sem esperar e, quando vi, estava agulhando.
Cuspi na escarradeira e o rodopio da água demorou a arrastar aquela gosma
nojenta. Acho que foi essa lembrança que me fez vomitar. Naquela época, não
era todo mundo que tinha um telefone em casa, muito menos eu, ninguém
podia avisar que eu estava passando mal numa lojinha do centro. Assim que
melhorei, saí, agora ao som de Ray Conniff, mais de acordo com o meu
desespero (VIANA, 2009, p. 108).
É interessante essa relação entre o presente narrativo e as memórias narradas. A
personagem demonstra conhecimento sobre as referências musicais: Glen Miller, Ray Conniff,
entre outros nomes, os quais podem sugerir tal compreensão mediante a convivência com o
prático, uma vez que, até então, tais referências não fariam parte do repertório cultural da
personagem. No trecho, fica evidente a relação que ela realiza entre a música de Ray Conniff e
a amargura ocasionada pelo estupro durante seu atendimento dentário: “O demônio disse que
veio sem esperar e, quando vi, estava agulhando. Cuspi na escarradeira e o rodopio da água
demorou a arrastar aquela gosma nojenta” (VIANA, 2009, p. 108). A agressão sexual também
pode ser percebida pela maneira em que a personagem desejaria pedir às pessoas presentes na
loja de discos que suspendessem as músicas tocadas: “Tirem a porra desse disco, quebrem essa
porra de Glenn Miller” (VIANA, 2009, p. 108). As canções e seus respectivos músicos ficaram
registrados em sua memória como a representação de gozo do prático, entretanto, para ela,
simbolizam a subjugação e sua humilhação diante do outro.
Outro aspecto de resgate de memória realizado pela personagem pode ser apontado em
seus momentos de oração, realizada durante a missa católica. Se o ritual religioso é considerado
um meio de preservação da memória coletiva, da repetitiva reminiscência da paixão e morte de
Cristo, para a menina talvez fosse somente um hábito, mas que não aliviava nunca o seu
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sofrimento e o de sua família. Na Igreja de sua cidade, a narradora elabora metáforas e críticas
significativas à Instituição Católica. Um desses momentos corresponde ao instante em que a
protagonista narra sua contrição durante a missa:
No domingo, eu punha a hóstia dentro do dente cariado e rezava para que tudo
que era santo ajudasse, que não deixasse o buraco crescer mais do que já havia
crescido, porque aí era a dor. Ajoelhada, eu chorava por dentro, e todos
achavam que a minha contrição era de tanto amar Jesus e sua mater dolorosa.
A dolorosa era eu. Chorava de tristeza, por sermos tão pobres. Eu não tinha
coragem de dizer que meus dentes estavam apodrecendo, nossa vida já tão
podre naquele arremedo de casa de um cômodo só. Havia muito deixara de
quebrar com ele até unha de aratu, que é tão molinha (VIANA, 2009, p. 104105).
A imagem da súplica da menina a fim de que o buraco do dente não crescesse desenha
a interioridade da personagem. O furo que há no dente estende-se para o seu interior, também
vazio e despedaçado. Com efeito, a dor e o buraco não acontecem somente nos dentes da
narradora. O sofrimento e o vazio causados pelo fato de necessitar dos cuidados clínicos do
prático se estendem à psique da personagem. Ali nos dentes estava, também, a dor da alma.
Na busca de se redimir perante Deus, a personagem inicia o ato de contrição, em outras
palavras, o estabelecimento da dor ou do arrependimento profundo por ter ofendido a Deus com
o firme propósito de não mais pecar, atitude vista pelos passantes como intenso amor aos
mártires da Igreja Católica citados no conto. No entanto, o trocadilho realizado no texto entre
“mater dolorosa” e a personagem “dolorosa” oferecem o tom da ironia e dessacralizam o
monumento memorialístico cristão.
O fragmento apresenta uma espécie de humor ácido e sutil no tratamento das mazelas
da personagem. É fundamental perceber a possibilidade de duas perspectivas aqui: a da
personagem e dos espectadores (o leitor e as personagens secundárias na igreja) e suas relações.
Para a personagem, o momento funcionava como súplica a fim de que as mazelas familiares,
bem como a podridão dos dentes, não aumentassem. No que concerne aos personagens que
passavam pela menina durante sua contrição, a sugestão era de extrema devoção à mater
dolorosa. Na visão do leitor, conhecedor das perspectivas desses personagens, a relação entre o
entendimento dos passantes e o da menina em se colocar no lugar de mater dolorosa leva à
sátira da situação: a menina relacionada à mística cristã, e na medida em que tal fato se realiza,
a figura é dessacralizada.
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A memória coletiva ativada nesse conto toma como referência os santos da igreja
católica, em especial, Nossa Senhora das Dores, que possui esse nome devido às sete dores
sofridas por Maria, desde a profecia de Simeão até o Santo Sepulcro. Quanto à personagem de
Antonio Carlos Viana, a dor da menina pode também ser entendida como uma releitura irônica
das dores de Maria, em primeira instância, com a constatação da dor de dente, seguida pela
necessidade de aceitar a negociação do prático de periferia e, enfim, a consumação do ato nos
encontros subsequentes. No decurso da leitura, é possível entrever o percurso de seu sofrimento,
sua degradação moral, bem como a intensificação do assédio sexual.
Apenas como ratificação da comparação entre a imagem sacra e a da narradora,
conforme foi sutilmente pincelado por Viana, a menina ganha, de uma prima que odeia, um
vestido usado e azul, cor também presente no manto de N. S. das Dores. Nessa leitura simbólica,
o vestido, remendado pela mãe, aparece como representação da dor. Ressalto que o ato de
recoser esse manto de dor reafirma o padecimento da menina que perdura pelos próximos anos.
Isso pode ser dito, uma vez que esta foi a única veste que ela possuiu durante o tratamento
dentário, e a lembrança de tal roupa funcionava também como um dispositivo de recordação
dos fatos vivenciados no consultório de Dr. Lustosa.
Durante a leitura do conto, temos a sensação de que a narradora busca uma série de
artifícios para lembrar-se da situação limite vivida, forçando o surgimento da memória, na
intenção de tentar esquecê-la. Esse processo de rememoração é importante, haja vista tais
lembranças serem constitutivas de sua identidade e que tirar do esquecimento a experiência
traumática vivenciada junto ao Dr. Lustosa a encaminha para uma busca de entendimento dos
acontecimentos. Para Márcio Seligmann-Silva, essa atitude corresponde a um aspecto da
literatura testemunhal − uma narração que busca traduzir o “indizível”, a ausência, a falta, o
incômodo:
A experiência traumática é, para Freud, aquela que não pode ser totalmente
assimilada enquanto ocorre. Os exemplos de eventos traumáticos são batalhas
e acidentes: o testemunho seria a narração não tanto desses fatos violentos,
mas da resistência à compreensão dos mesmos. A linguagem tenta cercar e dar
limites àquilo que não foi submetido a uma forma no ato da sua recepção.
Destacar a repetição constante, alucinatória, por parte do “traumatizado” da
cena violenta: a história do trauma é uma história de um choque violento, mas
também de um desencontro com o real (em grego, vale lembrar, “trauma”
significa ferida). A incapacidade de simbolizar o choque – o acaso que surge
com a face da morte e do inimaginável – determina a repetição e a constante
“posterioridade”, ou seja, a volta après-coup da cena (SELIGMANN-SILVA,
2003a, p. 48-49, grifos originais).
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As catástrofes do século XX representam um umbral da nossa era. Portanto, é preciso
saber do passado, conhecê-lo, a fim de que o esquecimento total não impere, e, para isso, contase com a memória e a história. Mas a verdade da memória não está nos relatos oficiais e, sim,
no esquecimento, no silêncio, no ato falho, no vazio provocado pela situação traumática,
naquilo que, talvez, a linguagem não dê conta de abarcar, a não ser em suas entrelinhas.
Como é sabido, a noção de trauma adentra as ciências humanas no final do século XIX
mediante a psicanálise, mas valendo-se do termo de maneira metafórica para fazer referência a
feridas psicológicas, tão carentes de cuidados quanto as físicas. Retomo aqui a questão sobre o
buraco do dente e do vazio da alma citados pela personagem. É possível sugerir aí a presença
do trauma: aparentemente ela o soluciona. O trauma é lembrado todos os dias, pelos dentes,
pelo cheiro de cravo da cera Lustosa, pela imagem do vestido azul e pelas músicas de Glenn
Miller que incidem em situações constrangedoras na vida adulta da personagem. O trauma
insiste em se presentificar.
O gatilho da narrativa é sempre disparado pelo fato de a narradora precisar se defrontar
com tais canções e ainda realizar uma busca, muitas vezes frustrante, de superação do trauma.
Com elas, a narradora oferece ao leitor intensos desenhos de seu passado:
Eu só queria deixar de me comover quando ouço Glenn Miller. Já passei por
momentos difíceis por causa dele, em elevador, na sala de espera de
executivos, até em aeroportos. As pessoas pensavam que era medo de avião.
Não era. Suas músicas são um horror para os meus nervos. Ouvi-lo me dá
vontade de recompor o tempo, voltar atrás e começar tudo de novo, de forma
diferente. Não me lembro de mim antes do dr. Lustosa. É como se minha vida
só contasse a partir dele. Se eu pudesse, jamais teria ido àquele consultório,
jamais o teria deixado abrir minha blusa em troca de amálgama e porcelana,
mas ao mesmo tempo penso: pior se o buraco que ficou em mim tivesse ficado
na minha boca (VIANA, 2009, p. 108-109).
Tendo como referência o tempo da memória, a narradora reflete sobre os conflitos
identitários que possui. A convivência com o prático ofereceu à personagem uma identidade
com a qual ela preferiria não se identificar, seu passado foi todo contaminado pelas lembranças
do pretenso dentista, por isso o desejo de refazer o passado vivido, no qual não se deixaria levar
pelos “tratamentos” de Dr. Lustosa, enfim, o desejo de (des)fazer a memória é intenso.
A citação acima ressalta a falta de domínio sobre a memória, que por vezes é
involuntária, e o peso de um fato traumático que se impõe sobre tudo o que houve antes. A
necessidade de contar e tornar o outro participante da história faz do testemunho uma atividade
elementar do homem moderno, que depende dessa relação entre memória, ou seja, aquilo
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alcança a superfície e pode ser contado, e esquecimento, os episódios traumáticos que subsistem
às lembranças, permanecendo alheios à linguagem.
Segundo Márcio Seligmann-Silva (2003a), a literatura de testemunho leva muitos
pesquisadores a revisarem o lugar da literatura e da realidade. Pensada a partir de Auschwitz,
essa forma de narrar amplia sua dimensão e intencionalidade, redirecionando o pensamento do
homem moderno para a relação entre real e linguagem. O testemunho acontece quando um
acontecimento inimaginável se realizou, precisando ser narrado. Essa atitude está permeada não
apenas de um aspecto jornalístico, mas, também, de um traço singular do real que corresponde
à presença do mártir, do sobrevivente de uma experiência traumática. Com efeito, o testemunho
corresponde a um ato de resistência daquele que vivencia o fato e tem dificuldade de assimilálo.
É o que se percebe nesse conto de Antonio Carlos Viana. Há um esforço em tentar gostar
das músicas de Glenn Miller, mas a melodia dispara a memória da narradora e faz emergir toda
a dor e sofrimento silenciados. Tais lembranças funcionam como uma resistência da memória
da protagonista. Essa memória, silenciada em muitos instantes, leva a protagonista a entender
sua vida, a perscrutar o momento do trauma, necessitando, então, ser narrada: “Eu só queria
deixar de me comover quando ouço Glenn Miller. [...] Ouvi-lo me dá vontade de recompor o
tempo, voltar atrás e começar tudo de novo, de forma diferente” (VIANA, 2009, p. 108-109).
Narrar o trauma, portanto, viabiliza a chance de renascer, de reconstruir a própria identidade a
partir do evento.
Maurice Halbwachs, autor de Memória Coletiva (2004), observa, a contrapelo,
acontecimentos tanto específicos quanto singulares de um grupo social. Para o estudioso francês
(2004), um indivíduo que recorda está sempre inserido e habitado por um grupo de referências,
pois a memória de um sujeito é elaborada em grupo, mas, simultaneamente, fomentada por um
trabalho individual. Assim, a memória coletiva adequa as imagens de acontecimentos do
passado a percepções e necessidades do indivíduo no presente. Dessa forma, a memória pessoal
marcada pelo trauma pode representar uma memória coletiva, caso seja observada a situação
de pobreza e de falta de perspectiva mediante um ciclo de continuidade e repetição,
representado pela irmã da protagonista, que também precisará de tratamentos dentários. Desse
modo, a personagem relata:
Eu via que era hora de cuidar dos dentes da minha irmã, um buraquinho negro
aparecia entre os seus incisivos. Quando suas mamas ficaram do tamanho das
minhas, o dr. Lustosa não estava mais lá. Os dentistas de verdade o puseram
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pra correr. Aí eu já sabia tudo que uma boca pode dar, ainda mais juntando
com os peitos que um dia foram motivo de vergonha. Não precisei conhecer
madame Risomar para saber o valor deles. Anos depois, encontrei o dr.
Lustosa num ponto de ônibus. Nem parecia aquele homem dominador quando
estava com seu jaleco branco. Via-se que estava empobrecido, a cabeleira
espessa era agora apenas uns fiapos de cabelo no pescoço liso. Bem feito,
pensei. Só me restava atravessar a rua, passar por ele e escancarar meu sorriso,
para ele saber que a boca é mesmo tudo (VIANA, 2009, p. 111-112).
O evento do abuso sexual sofrido pela narradora muda a sua percepção sobre o seu
corpo, mais uma vez subentendendo a prostituição, agora, da protagonista. Aproveitando o fato
de que os “dentistas de verdade” assumiram o posto do “prático de periferia”, a narrativa sugere
uma tentativa da protagonista em evitar que a irmã sofra os mesmos constrangimentos que ela.
Subentende-se que a prostituição não aparecerá sob esse viés, entretanto, também é possível
que os problemas dentários da irmã mais nova sejam ampliados, devido às condições
financeiras da família. Com efeito, os dentes funcionam como um arquivo no corpo, uma marca
contra o apagamento das atrocidades sofridas, uma ferida do trauma, e sorrir a seu algoz
funciona quase como uma tentativa de evidenciar que foi possível sobreviver, mas não
esquecer.
Concordando com Seligmann-Silva, “a arte da memória, assim como a literatura de
testemunho, é a arte da leitura de cicatrizes” (SELIGMANN-SILVA, 2003a, p. 56). Tal qual
cicatrizes, os dentes aparecem como marcas da memória da personagem, impedindo o
esquecimento da situação vivenciada e do vazio ocasionado pelo sofrimento. Os dentes
funcionam aqui como uma marca deixada pela experiência, impossibilitando o apagamento
dessa memória. Uma ferida que não cicatriza, mas que, ironicamente, é evidenciada no conto
mediante a insistência da personagem em sorrir para o já decadente dr. Lustosa.
Como se pôde constatar, a vivência traumática gerou feridas psicológicas na narradora
que, com isso, transformaram-se em marcas que, paulatinamente, a relembram da dor; por tal
razão ela conta sua história, a fim de tentar se libertar. As lembranças da personagem são,
também, fomentadas pela presença da memória coletiva, tal qual a simbologia dos santos
católicos a fim de referendar o sentimento de culpa e arrependimento, haja vista ela adaptar
imagens do passado e de uma tradição às experiências sociais e individuais vivenciadas no
momento presente. O mesmo vale para a presença das canções de Glenn Miller, que reforçam
a concepção ideológica da indústria cultural do american way of life em contraponto com a
realidade catastrófica vivida pela personagem durante os atendimentos do protético. A memória
corresponde ao trabalho de reconstrução e reconhecimento em que as lembranças podem ser
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associadas, organizando identidades e quadros sociais. Dessa sorte, percebe-se na escrita de
Antonio Carlos Viana a elaboração de uma narrativa reveladora de rastros e restos
memorialísticos, cravejados de traumas e cicatrizes, que marcam a vida de uma sociedade fruto
do descaso social.
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VIANA, Antonio Carlos. Cine Privê. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
Artigo recebido em setembro de 2015.
Artigo aceito em novembro de 2015.
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