mundo árabe - a casa do mago das letras

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mundo árabe - a casa do mago das letras
MUNDO ÁRABE
L P Baçan
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Proibidas a reprodução e a divulgação sem a
expressa autorização do autor.
Copyright © 2014 L P Baçan
2014
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ÍNDICE
Hábitos, Costumes e Tradições Árabes
Maomé e a Unificação
O Islamismo
A Cozinha Árabe
A Escrita
Provérbios
Vestuário Árabe
A Tradição Oral
A Arte Árabe
A Música e a Literatura
O Humor Árabe
Curiosidades
Lendas Árabes
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HÁBITOS, COSTUMES
E TRADIÇÕES ÁRABES
Chama-se genericamente de Oriente Médio a duas grandes
regiões: a Ásia Ocidental e a Península Arábica, cujos principais
pontos em comum são a língua, a religião e as tradições
islâmicas. Esses países, em sua maioria, têm sua economia
baseada na exportação de petróleo. A leste do Mediterrâneo, há
uma região com um formato semelhante ao de uma lua
crescente, conhecida desde a antiguidade como o Crescente
Fértil. Nessa região, milênios antes de Cristo, o homem passou
pela mais importante evolução da história da humanidade. Os
babilônios erigiram um grande império agrícola na
Mesopotâmia. Os fenícios estabeleceram importantes rotas de
navegação e comércio, cobrindo quase todo o Mar Mediterrâneo.
A região rapidamente se desenvolveu, realizando
extraordinários progressos técnicos e científicos, avançando
também nas artes, na religião e no direito. Tempos depois, as
expansões grega e romana deram início a profundas
transformações nas civilizações daquela região, que iniciariam
sua própria expansão, estendendo-se até a Península Ibérica,
onde permaneceram por alguns séculos. A partir do século XII,
as civilizações da área entraram em dramático declínio, resultado
das invasões de mongóis e otomanos e de severos danos
ambientais decorrentes da destruição das florestas e dos canais
que drenavam os pântanos e evitavam as cheias dos rios. A área
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de deserto aumentou substancialmente, enquanto diminuíam as
áreas de cultivo e de pastagem, situação que se agravava com o
proporcional aumento na aridez do clima.
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MAOMÉ E A UNIFICAÇÃO
Nos primeiros séculos da era cristã, a região da Arábia era
percorrida por caravanas de mercadores e por expedições
militares, responsáveis pela disseminação de influências gregas,
persas e indianas. Os árabes do sul cultuavam deuses
personificados por planetas, enquanto que, ao norte, a crença
vigente relacionava uma série de espíritos, os djinns,
representados por árvores e pedras. Um ponto em comum unia
essas duas crenças. Todas as divindades estavam subordinadas a
um deus supremo, chamado Alá, formando uma hierarquia
divina. A justiça era a mais primitiva possível, prevalecendo a lei
de Talião, que valorizava a vingança.
O centro das atividades comerciais e religiosas da região era
Meca, cidade importante pelos seus depósitos de água que
abasteciam as caravanas e por se situar numa estratégica
encruzilhada que levava ao Iêmen, Egito, Síria e Mesopotâmia.
A partir do século V, Meca se transformou num centro de
peregrinações, com a construção da Caaba ou Caba, Ka’ba, a
Casa de Deus, que abrigava as divindades de todas as seitas,
onde cada um podia cultuar sua crença. Esse local era
considerado sagrado e inviolável.
Até o século VI, não havia, na Arábia, unidade religiosa,
política e comercial. Tudo isso mudaria, no entanto, com o
surgimento de Maomé. Sobre ele, há poucos dados biográficos.
As informações a seu respeito baseiam-se nos hadith, uma
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coleção de orientações e narrações deixadas por ele, formando as
máximas da tradição muçulmana. Sabe-se que, aos vinte anos,
foi escolhido como homem de confiança de uma viúva chamada
Kadidja, com quem se casaria cinco anos depois. Maomé passou
a se dedicar a uma série de retiros, onde recebeu importantes
revelações de natureza espiritual, que começou a revelar a partir
de 613.
Apesar de pregar durante dez anos, não converteu os
cidadãos de Meca, sendo com frequência ironizado, injuriado e
quase morto. Em 620, conseguiu converter seis peregrinos, que
passaram a ajudá-lo, convertendo outras pessoas. Em 24 de
setembro de 622, vítima de perseguições e ameaças, fugiu para
Yatrib, dia que passou a ser chamado Hégira, ou emigração. Essa
data assumiu tal importância para os islâmicos que o tempo
passou a ser calculado a partir daí.
Em Yatrib, iniciou-se uma fase decisiva para sua religião.
Maomé conseguiu unir diversos grupos e tribos que aderiram a
ele, submetendo-se a sua autoridade.
Em 630, regressou a Meca com um exército de dez mil
homens. Após definir sua vitória, foi até a Caaba e deu sete
voltas ao seu redor, tocando a pedra com seu bastão. Ordenou
que fossem derrubados todos os ídolos, apagados os afrescos dos
profetas bíblicos, deixando apenas as imagens de Abraão, de
Jesus e da Virgem Maria.
Em 10 de março de 632, já doente, fez uma peregrinação de
adeus a Meca, ocasião em que definiu todos os ritos a serem
seguidos e proferiu seu último sermão, no monte Arafat. Antes
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de sua morte, declarou Meca território sagrado, pediu união aos
árabes e estabeleceu alguns direitos e deveres quanto ao
casamento e ao comércio. Enquanto estava vivo, Maomé
também extinguiu a lei de Talião, definiu o ano com doze meses
lunares e proibiu a usura. Morreu em 8 de junho de 632 aquele
que lançou as bases de uma religião que unificaria o mundo
árabe e daria novos rumos àquela civilização.
Seu filho adotivo, Thalit, transcreveu seus escritos em um
livro chamado Kitab Allah, Livro de Alá, que se tornaria mais
conhecido como Corão, Al Corão ou simplesmente Alcorão. A
obra só foi finalizada vinte anos depois de iniciada,
compreendendo cento e quatorze souras ou capítulos.
Exemplos das Pregações do Profeta
Muitos dos ensinamentos de Maomé são apresentados em
máximas e parábolas simples, de fácil entendimento, mas de
sentido profundo, próprios para a meditação e a reflexão, como
estas, por exemplo.
Disse o Profeta:
— Deus não tem nenhuma clemência com quem não tem
nenhuma clemência pelos outros.
— Ninguém verdadeiramente tem fé até que deseje para seu
irmão o mesmo que deseja para si próprio.
— Quem come com abundância enquanto seu vizinho passa
fome não é um crente.
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— O homem de negócios verdadeiro e fiel é associado com
os profetas, os santos e os mártires.
— Poderoso não é aquele que derruba o outro; realmente
poderoso é aquele que se controla em momento de ira.
— Deus não julga de acordo com seus corpos e aparência,
mas Ele esquadrinha seus corações e observa suas ações.
Narrou o Profeta:
— Um homem muito sedento caminhou ao longo de uma
estrada. Alcançando um poço, desceu, bebeu água e saiu. Então
viu um cachorro com sua língua pendurando, tentando lamber
lama para aplacar sua sede. O homem viu que o cachorro estava
sentindo a mesma sede que ele tinha sentido. Assim, ele se
abaixou novamente no poço, encheu seu sapato com água e deu
para o cachorro beber. Deus perdoou seus pecados por esse ato.
Perguntaram então ao Profeta:
— Ó mensageiro de Deus, nós somos recompensados pela
generosidade para com os animais?
Ele respondeu:
— Há uma recompensa pela generosidade para com todos
os seres vivos.
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O ISLAMISMO
Não se pode falar em hábitos, costumes e tradições árabes
sem passar pelo Islamismo que, muito mais que uma religião, é
um código de conduta e procedimentos que move a vida de todos
os seus adeptos. Para se entender um árabe muçulmano, é
preciso conhecer, compreender e respeitar essa religião.
O Islamismo não é uma religião nova, mas é a mesma
verdade que Deus revelou através de todos os Seus profetas a
todas as pessoas. Para um quinto da população do mundo, Islã,
ou Islamismo, é uma religião e um modo completo de vida.
Muçulmanos seguem uma religião de paz, clemência e perdão e
a maioria não tem nada que ver com os radicalismos que são
associados a sua fé.
Um bilhão de pessoas de várias raças, nacionalidades e
culturas, das Filipinas à Nigéria, estão unidas pela fé islâmica
comum. Aproximadamente dezoito por cento delas vivem no
mundo árabe. A maior comunidade muçulmana do mundo está
na Indonésia. Partes significativas da Ásia e a maioria da África
são muçulmanas, enquanto minorias significantes serão achadas
nos países da antiga União Soviética, China, Américas do Norte
e do Sul e Europa.
Os muçulmanos acreditam em um Deus Sem Igual,
Incomparável, nos Anjos criados por Ele, nos profetas por quem
as revelações dele foram trazidas ao gênero humano, no Dia de
Julgamento, no livre arbítrio, na autoridade total de Deus sobre o
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destino humano e em uma vida após de morte. Acreditam ainda
em uma cadeia de profetas que começou com Adão e inclui Noé,
Abraão, Ismael, Isaac, Jacó, José, Jó, Moisés, Aarão, Davi,
Salomão, Elias, Jonas, João Batista e Jesus. Mas a mensagem
final de Deus para o homem, uma confirmação da mensagem
eterna e um soma de tudo aquilo que foi dito antes, foi revelada
ao Profeta Maomé pelo Arcanjo Gabriel.
A despeito do que se possa imaginar, os muçulmanos
respeitam e veneram Jesus e esperam Sua Segunda Vinda. Eles o
consideram um dos maiores Mensageiros de Deus para o gênero
humano. Um muçulmano nunca se refere simplesmente a ele
como Jesus, mas sempre acrescenta a frase “nele esteja a paz”.
A Família
A família é a base da sociedade islâmica. São muito
estimadas a paz e a segurança oferecidas por uma unidade
familiar estável e vista como essencial para o crescimento
espiritual de seus membros. Uma ordem social harmoniosa é
criada pela existência das famílias. As crianças são consideradas
tesouros e raramente deixam a casa antes do casamento.
A Mulher
O Islã vê a mulher solteira ou casada como um indivíduo no
seu próprio direito, podendo possuir e dispor de suas
propriedades e de seu salário. Um dote de matrimônio é
determinado pelo noivo para o uso pessoal da noiva que, ao se
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casar, mantém o nome próprio de família em lugar de usar o do
marido dela.
As Roupas
Espera-se que homens e mulheres se vistam de modo
modesto e digno. As tradições dos vestidos femininos
encontrados em alguns países muçulmanos são frequentemente a
expressão de costumes locais e não uma regra geral.
O Casamento
A religião do Islã foi revelada para todas as sociedades e em
todos os tempos e, assim, acomoda amplas diferenças e
exigências sociais. Certas circunstâncias podem ocorrer,
garantindo a um homem o direito de ter outra esposa, sempre de
acordo com o Alcorão, com a condição de que o marido seja
escrupulosamente leal e honrado. O matrimônio muçulmano não
é um sacramento, mas um acordo simples e legal no qual
qualquer sócio é livre para incluir condições. Costumes
matrimoniais variam de país a país. Como resultado, o divórcio
não é comum, embora não seja proibido como último recurso.
De acordo com Islã, nenhuma menina muçulmana pode ser
forçada a se casar contra a sua vontade. Seus pais simplesmente
sugerirão homens jovens que imaginam serem bons partidos.
Os Velhos
No mundo islâmico não há asilos para pessoas velhas. O
esforço de cuidar dos pais nesse tempo difícil de suas vidas é
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considerado uma honra e uma bênção como uma oportunidade
para um grande crescimento espiritual. Deus exige que não só se
reze pelos pais, mas que se aja com compaixão ilimitada.
A Morte
Como os judeus e os cristãos, os muçulmanos acreditam
que a vida presente é só uma preparação para o próximo reino da
existência. Artigos básicos de fé incluem: o Dia de Julgamento,
Ressurreição, Céu e Inferno. Quando um muçulmano morre, é
lavado, normalmente por um membro da família, embrulhado em
um pano branco limpo e enterrado com uma oração simples,
preferencialmente no mesmo dia. O Profeta ensinou que três
coisas podem ajudar uma pessoa, mesmo depois da morte: a
caridade que teve, o conhecimento que ensinou e orações em seu
benefício feitas por uma criança justa.
A Guerra
Assim como o Cristianismo, o Islã permite lutar em
autodefesa, em defesa da religião ou em defesa dos que foram
expulsos violentamente de suas casas. Impõe regras rígidas de
combate, que incluem proibições contra ferir civis e destruir
colheitas, árvores e gado. Na visão dos muçulmanos, a injustiça
triunfaria sobre o mundo se os homens bons não estivessem
preparados para arriscar suas vidas por uma causa justa. O
Alcorão diz: Lute na causa de Deus contra esses que lutam
contra você, mas não transgrida limites. Deus não ama os
transgressores. Se eles buscam a paz, então busque também a
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paz. E confia em Deus porque Ele é o Único que tudo ouve e
tudo sabe. Dessa forma, guerra é o último recurso e está sujeita
às condições rigorosas colocadas pela lei sagrada. O termo
Jihad, literalmente significa esforço e os muçulmanos acreditam
que há dois tipos de Jihad. Uma é a guerra contra os agressores.
A outra Jihad é a luta interna que todo o mundo empreende
contra o egoísmo para atingir a paz interior.
A Comida
O código que os muçulmanos observam proíbe o consumo
de carne de porco e de qualquer tipo de bebida tóxica. O Profeta
ensinou que o corpo tem direitos. O consumo de comida
saudável e a manutenção de um estilo de vida saudável são
vistos como obrigações religiosas. O Profeta disse: Peça a Deus
firmeza de fé e bem-estar, pois depois da fé nenhum presente é
melhor do que a saúde.
Os Pilares da Fé
Islã é uma palavra semítica, formada pelas consoantes s l m,
significando submissão a Deus. Quem se coloca sob essa
condição é chamado de muçulmano, pessoa que se coloca sob a
proteção de Deus. O Islamismo tem peculiaridades que a diferem
das religiões mais conhecidas no Ocidente. Não possui uma
hierarquia religiosa e dispensa a presença de um guia espiritual,
pois todos os ensinamentos estão claramente expressos no
Alcorão. Desses ensinamentos, os pilares da fé são obrigações
que todo muçulmano deve observar:
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1 – O Pilar da Fé, que reconhece que só há um Deus e
Maomé é Seu Profeta.
2 – Pilar da Oração – antes do sol nascer, ao meio-dia, antes
e depois do pôr do sol e à primeira vigília da noite.
3 – Pilar da Caridade, que envolve a esmola e a
hospitalidade.
4 – Pilar do Jejum durante o Ramadã (mês sagrado).
5 – Pilar da Peregrinação a Meca, na Arábia Saudita, para
visitar a Caaba.
O Ramadã
O Mês Sagrado do Ramadã é recebido com grande fervor
religioso no mundo islâmico. Tradições religiosas e sociais
durante o Ramadã permaneceram inalteradas, unindo os
muçulmanos de hoje com seus antepassados. As datas do
Ramadã, o nono mês da Hégira, variam conforme o calendário
lunar, iniciando aproximadamente onze dias mais cedo cada ano.
A primeira aparição da lua crescente anuncia o começo do jejum.
Quando o Profeta Maomé deixou Meca indo para Medina,
jejuou durante três dias. Subsequentemente, uma revelação
divina estabeleceu a obrigação de jejuar certo número de dias e
isso determinou o mês do Ramadã. O jejum exige total
abstinência de comida, bebida e tabaco. Todo muçulmano tem
que jejuar do amanhecer ao crepúsculo. Exceções são feitas a
certas pessoas como os doentes, viajantes em longas jornadas e
mulheres grávidas ou que estejam amamentando. Essas, porém,
jejuarão o número de dias perdido em outra data no futuro. O
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ancião e crianças abaixo da idade da puberdade estão isentas,
embora muitas famílias encorajem suas crianças, a partir dos sete
ou oito anos, a jejuar durante algumas horas a cada dia para
treiná-las na disciplina.
Ramadã não só é um mês de abstinência física, mas
também tem a virtude social de criar laços novos de
compreensão entre as classes de pessoas. O jejum praticado pelo
rico é semelhante ao do pobre, mas recorda aos mais afortunados
o sofrimento da fome que o pobre padece.
O Islã prega a igualdade. O pobre e o rico, os homens e as
mulheres, todos são iguais como devotos aos olhos de Deus.
Deus escolheu o mês do Ramadã para dar a oportunidade aos
muçulmanos de buscar o perdão pelos seus pecados. O profeta
Maomé disse que quem jejua durante o mês do Ramadã com fé
sincera e esperando apenas a recompensa do Deus Altíssimo terá
seus pecados perdoados.
O décimo dia do Ramadã comemora a morte da primeira
esposa do profeta Maomé. O décimo sétimo dia marca a vitória
decisiva dos muçulmanos sobre os incrédulos em Badr. O
décimo nono é o dia da conquista de Meca pelo profeta Maomé.
Em um dos últimos dez dias do Ramadã, em um dia incerto,
ocorre a Lailat Al-Qadr, a Noite de Poder. Nesse período, as
orações sinceras dos muçulmanos serão certamente respondidas.
Lailat Al-Qadr é uma noite santificada, quando os anjos descem
e a paz reina até o amanhecer. De acordo com tradição, o profeta
Maomé passava os últimos dez dias do mês na mesquita de
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Medina. O Alcorão, a revelação final de Deus, foi feito na
Lailat-Al-Qader.
Durante o Ramadã, além das orações obrigatórias, os
muçulmanos são encorajados a fazer orações voluntárias, recitar
e entender o Alcorão inteiro, fazer caridade e, se capaz, seguir o
exemplo do profeta Maomé, retirando-se na mesquita para
contemplação espiritual durante os últimos dez dias do mês. A
cada noite, acontecem serviços de oração especiais em cada
mesquita, nas quais uma trigésima parte do Alcorão é lida e a
leitura do livro todo se completa no trigésimo dia. As pessoas
ficam acordadas toda a noite em orações. As mulheres vão à
mesquita para orações noturnas. Há leituras religiosas após a
Ashr, a oração da tarde. Ao pôr do sol, o profeta Maomé
quebrava o jejum com tâmaras e água. O jejum pode ser
quebrado com comidas que não sejam proibidas pela lei
islâmica. Um lanche simples de tâmaras com iogurte e sopa
normalmente é consumido.
Seguindo isso, a oração do pôr do sol, a Maghrab, é
executada antes do jantar, uma refeição completa, composta de
sopa, seguida de um prato principal, como o Tashiriba, contendo
pão, galinha e vegetais, acompanhado de líquidos como água, o
laban ou uma bebida feita com damascos.
Meca
Cidade na Arábia Saudita com mais de 600.000 habitantes,
localizada a cerca de 80 km da costa do Mar Vermelho, foi
construída ao redor de uma fonte natural. É a mais sagrada
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cidade do Islamismo, reverenciada como o primeiro lugar
construído na Terra, onde Abraão e seu filho Ismael construíram
a Ka'ba, o centro do Islã, uma construção retangular feita de
tijolos. Ao redor de Ka'ba está a grande mesquita, al-Haram. Ao
redor dela, entre as montanhas, espalham-se as casas.
Meca era um ponto central das rotas de caravanas que
percorriam toda a península arábica no tempo de Maomé,
quando já era considerada uma cidade sagrada. Hoje é centro da
peregrinação obrigatória e foco central de todos muçulmanos.
Muitos de seus moradores são peregrinos que buscam a cidade
para estudar o islamismo no lugar considerado como o centro do
mundo. Além dos serviços destinados a atender os peregrinos, há
pouca atividade econômica na cidade. Todo ano, cerca de dois
milhões de peregrinos a visitam e esse número é regulado. Cada
país do mundo islâmico só pode mandar um número
determinado de fiéis.
A estrutura de pedra chamada Ka’ba é um local de culto
mandado construir por Deus. Abrão e Ismael a construíram a
mais de quatro mil anos atrás. É coberta com o Kiswah, um
manto negro com bordados em ouro, trocado anualmente por
ocasião da peregrinação da Haj, ou peregrinação obrigatória que
todo muçulmano deve fazer a Meca. Voltados na direção dessa
construção, muçulmanos de todo o mundo fazem as suas orações
diárias. Para saber exatamente qual é essa direção, as mesquitas e
quartos de oração possuem o que é chamado de mihrab, que
indica a qiblah, ou a direção de Meca. Essa direção é fixada
conforme cálculos exatos, mas admite-se que os muçulmanos
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fixem essa localização aproximadamente. Quando em viagem,
por exemplo, podem ser utilizados instrumentos ou formas
comuns de orientação.
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A COZINHA ÁRABE
Um árabe oferecerá a seu convidado a melhor comida e
todo o conforto de que ele puder dispor, frequentemente tirando
de si para oferecer ao visitante. Segundo essa tradição, a mulher
árabe se orgulha de sua casa e busca fazer dela o centro da vida
familiar e social. Para criar um clima atraente e convidativo, ela
deverá ser uma excelente cozinheira. Normalmente aprende a
arte culinária com a mãe e adapta as receitas tradicionais para as
necessidades da vida moderna e de sua casa. Aprende a
simplificar as receitas antigas, de forma a poder preparar a
comida que a família gosta e, ao mesmo tempo, ter um tempo
livre para se dedicar a outras atividades.
A hospitalidade árabe se apoia firmemente na necessidade
de que uma mesa farta possa ser servida a qualquer momento.
Uma anfitriã tem comida disponível para oferecer a um
convidado, não importa em que momento do dia ou da noite ele
chegue. Ela encorajará cordialmente seus convidados a que
comam da grande variedade de comida que tem preparada para a
satisfação deles. Há um provérbio árabe que diz que se mede a
consideração de um convidado para com o anfitrião pela quantia
de comida que ele come. Em alguns países do mundo árabe,
como no Líbano, o café é essencial. É o símbolo tradicional de
boas vindas. Seu preço faz dele um luxo e, assim, servi-lo é um
sinal de respeito para com uma visita. O café árabe ou turco não
pode ser reaquecido porque deve ser recém-preparado para ser
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bom. Assim, um convidado fica lisonjeado porque sabe que
aquela xícara de café que lhe está sendo servida foi preparada
única e especialmente para ele.
Cardápios são planejados cuidadosamente pelas anfitriãs.
Muitas comidas têm um significado especial no padrão cultural
árabe. Esses pratos são reservados para ocasiões específicas. Por
exemplo, doces especiais são preparados para celebrar o
nascimento de um bebê ou marcar o surgimento do primeiro
dente de uma criança. Bolos especiais chamados ma'moul só são
assados na Páscoa ou no Natal. O mais famoso prato árabe
conhecido, a mistura de carne moída chamada kibbeh, ou quibe,
da qual existem dezenas de variações, só é servido em encontros
felizes ou festivos e nunca depois de um enterro, quando uma
família está de luto, ou ainda em uma despedida qualquer. A
ocasião também determina a quantia de açúcar adicionada ao
café árabe. Geralmente, quanto mais doce for café, mais alegre é
a ocasião.
O carne de cordeiro e carneiro são as preferidas das pessoas
no Oriente Médio, uma vez que são abundantes e mais barata
que a carne de boi. Muitos tipos de peixe estão disponíveis a
quem mora no litoral. Leites de vaca e de cabra são normalmente
convertidos em laban, o iogurte, ou em queijo de nata, o labneh.
Os cereais principais são o arroz e o trigo moído, chamado
burghul. São consumidas batatas em quantidade.
A culinária árabe depende em grande parte de óleo. A
comida é frita nele ou regada ao ser servida. O uso de gordura na
arte culinária identifica frequentemente o país onde a receita teve
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origem. O árabe gosta de usar o próprio óleo de oliva fresco ou
uma manteiga clarificada chamada samneh. Os turcos usam óleo
de oliva, óleo vegetal ou untam com manteiga, enquanto na
Arábia Saudita a gordura preferida é a ghee, obtida do leite de
cabra ou de ovelha.
Azeitonas, nozes, passas, ervilhas, sementes de abóbora
torradas sempre estão disponíveis como aperitivos. Picles feito
de nabo, beterraba, cebola, couve-flor verde e pepino junto com
verduras frescas são muito apreciados. Pão é muito importante
na dieta, havendo, no Oriente Médio, uma enorme variedade de
receitas. Os árabes gostam de untar o pão com óleo de oliva ou
com queijo branco suave, ou imergi-lo nos purês oleosos
deliciosos que eles fazem de ervilhas, berinjela grelhada ou salsa
temperada com óleo picante de gergelim. Em todas as receitas,
condimentos e ingredientes são absolutamente naturais.
Algumas receitas a seguir darão uma dimensão da riqueza
dessa culinária e, com certeza, vão incentivar os apreciadores da
boa comida a investir num livro específico de receitas ou num
curso sobre o assunto.
O Al akl 'ala kadd el mahabeh (a comida iguala o afeto).
Sopa de Carne
SHOURABAT MOZAAT
Ingredientes:
2 1/2 xícaras de sopa de carne em cubos
4 xícaras de arroz ou talharim
1 pedaço de canela
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1 xícara de salsa bem picadinha
1 1/2 colher de chá de sal
1/4 colher de chá de pimenta
Ossos
Água
Modo de Preparar:
A dona de casa árabe passava a maior parte do dia cuidando
da panela para fazer esta sopa nutritiva para sua família. Hoje, a
mesma sopa pode ser cozida em uma hora de fogão, usando uma
panela de pressão. Seu sabor inusitado vem da canela
acrescentada ao caldo. Com pão árabe torrado, é uma comida
saudável.
Coloque a carne e os ossos numa panela de pressão com
água suficiente para cobrir os ingredientes. Deixe ferver,
retirando a nata que se formar. Separe 2 1/2 xícaras do caldo,
acrescente a canela e cozinhe sob pressão por 30 minutos.
Reduza a pressão e retire a carne e os ossos. Adicione arroz ou
talharim e o caldo reservado na panela e cozinhe sob pressão por
oito minutos.
Deixe sair a pressão e abra a panela. Prove o tempero e faça
as correções necessárias. Retorne a carne à sopa e deixe ferver.
Sirva em tigelas de sopa guarnecidas com salsa cortada. Para
variar, acrescente cenouras pequenas, um tomate cortado pela
metade, abobrinhas e aipo no caldo, antes adicionar o arroz ou o
macarrão.
Sopa de Lentilha
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SHOURABAT ADAS
Ingredientes:
3 xícaras de chá de lentilhas
1/2 xícara de arroz (opcional)
1/2 xícara de samneh (caldo de carne)
1 xícara de cebola cortada
1 1/2 colher de chá de sal
Água
Modo de Preparar:
Esta é uma receita antiga, das aldeias nas montanhas,
surgida da necessidade, quando a dieta de inverno consistiu
principalmente nesses alimentos que haviam sido colhidos e
secados no verão e armazenados em jarros de louça ou sacos de
tecido para serem comidos no inverno.
Deixe a lentilha de molho por uma noite em água fria.
Coloque numa panela de pressão com água até uns 5 centímetros
acima do ingrediente. Cozinhe sob pressão durante 15 minutos.
Passe a sopa por uma peneira ou por um moedor. Adicione
água, se preciso, para obter a consistência desejada. Frite a
cebola até dourar e acrescente à sopa. Cozinhe em fogo brando
por 10 minutos. Adicione sal e sirva espesso e quente com
quadradinhos de pão torrado.
Sopa de Almôndega
SHOURABAT EL QEEMA
Ingredientes:
2 1/2 xícaras de carne magra moída
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2 kg de carne para sopa em cubos
Ossos
1/2 xícara de samneh (caldo de carne)
1 1/2 colher de chá de sal
1/4 colher de chá de pimenta
1/4 colher de chá de canela
1/4 xícara salsa picadinha
1/2 xícara de suco de tomate ou
1 colher de sopa de massa de tomate em meia xícara de
água
5 xícaras de água fria
Modo de Preparar:
Moa a carne várias vezes. Misture bem com sal e pimenta.
Amolde em bolas pequenas e doure em óleo quente. Leve a sopa
ao fogo na panela de pressão, sem tampar. Desnate, à medida
que for espumando, depois cozinhe sob pressão durante 20
minutos.
Acrescente as bolas de carne, arroz e suco de tomate.
Cozinhe sob pressão durante 10 minutos. Remova os ossos.
Adicione salsa e canela antes de servir.
Sopa de Iogurte
YAYLA CHORBASHI
Ingredientes:
1/2 xícara de cevada
2 cebolas grandes cortadas
1/2 litro de iogurte ou laban
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3 xícaras de caldo de galinha
2 colheres de sopa de manteiga
2 xícaras de salsa picada
1 xícara de hortelã picada
1 colher de chá de sal
Pimenta branca
Modo de Preparar:
Ponha a cevada de molho por uma noite. Escorra bem e
leve a ferver em fogo brando com o caldo de galinha. Enquanto
isso, frite a cebola na manteiga até ficar transparente. Misture
com a cevada e o caldo. Adicione hortelã, salsa, sal e pimenta a
gosto. Cozinhe em fogo brando durante uma hora.
Cinco minutos antes de servir, acrescente o iogurte bem
batido. Sirva em tigelas aquecidas.
Peixe Frito
SAMAK MAQLI
Ingredientes:
As águas do Mar Mediterrâneo que banham alguns países
árabes produzem suculentos peixes. Destes, o preferido é o
conhecido como Sultão Ibrahim, que eles normalmente fritam e
servem quente com um molho. O tempero do peixe inclui
maionese, taratour bi tahheni, um molho de gergelim, ou uma
mistura de nozes bem esmagadas com suco de limão, alho e sal.
Pedaços de limão sempre acompanham o peixe, não importa se
outro molho é servido.
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Limpe e faça cortes nas laterais. Deixe a cabeça, mas
remova os olhos. Salgue por dentro e por fora, depois coloque o
peixe salgado no refrigerador durante algumas horas. Deixe
retornar à temperatura ambiente antes de cozinhar.
Passe o peixe na farinha, depois frite em óleo de oliva até
dourar, agitando suavemente a panela durante o cozimento para
prevenir que grude no fundo. Vire-o uma vez. A quantidade de
óleo deve ser suficiente para cobrir até a metade do peixe.
Frite pedaços de pão árabe no mesmo óleo e use-os para
guarnecer o peixe, juntamente com rabanetes e cebola verdes.
Esse peixe é servido frequentemente com pedaços de legumes
fritos como abóbora, berinjela ou couve-flor.
Peixes Cozido Molho de Gergelim
SAMAK TAJIN ou SAMAK BI TAHEENI
Ingredientes:
1 peixe de aproximadamente 1 quilo
1 1/2 xícara taheeni (óleo de gergelim)
1 1/2 xícaras de cebola picada
1 xícara de óleo de oliva
3/4 xícara de suco de limão
1 1/4 colher de chá de sal
Água
Modo de Preparar:
Limpe e salgue o peixe. Leve ao refrigerador por algumas
horas. Deixe voltar à temperatura ambiente, unte com óleo de
oliva e asse em forno moderado até a carne se separar, quando
27
mexida com um garfo. Enquanto isso, frite a cebola em óleo de
oliva até dourar. Bata suco de limão e água lentamente com
taheeni e prove, adicionando mais suco de limão se necessário.
O molho de taheeni ficará bem cremoso.
Misture cebola no molho, cubra com isso o peixe assado e
volte ao forno. Asse por aproximadamente 20 minutos em forno
moderado. Parte do molho será absorvida pelo peixe e a cebola
ficará bem cozida. Sirva frio.
Arroz para Peixe
RIZ BI SAMAK
Ingredientes:
2 xícaras de arroz cru
3/4 xícara de óleo
1 xícara de cebola fatiada
1/4 xícara de nozes
1/4 colher de chá de açafrão
1 colher de chá de sal
Água
Modo de Preparar:
Deixe o arroz de molho em água quente durante 30
minutos. Escorra. Aqueça óleo de oliva ou o óleo que restou de
uma fritura. Frite nozes no óleo até ficarem ligeiramente
douradas. Retire as nozes. Adicione o arroz ao óleo, junto com
sal e misture. Acrescente 2 1/2 xícaras de água e o açafrão.
Cozinhe em fogo baixo, tampado, até que seque e o arroz esteja
macio.
28
Coloque o arroz numa travessa. Cubra com as cebolas fritas
e as nozes e sirva como o acompanhamento para o peixe. O arroz
pode ser guarnecido com pedaços de peixe frito e pode ser
servido com uma salada de repolho, alface ou rabanetes.
Quibe libanês
KIBBEH
Ingredientes:
2 1/2 xícaras de cubos de carne de cordeiro
2 xícaras de burghul (trigo próprio para quibe)
2 cebolas médias
2 colheres de chá de sal (ou a gosto)
1/2 colher de chá de pimenta
Água gelada
Modo de Preparar:
O quibe é virtualmente o prato nacional de Líbano e chamálo de um bolo de carne é uma heresia. Sua preparação tradicional
é emocionante. Requer um pilão de pedra e um malho pesado
chamados jorn e modaqqa. A carne é batida com movimentos
rítmicos até ficar lisa e pastosa. Toda a vizinhança conhece o
barulho quando de faz quibe.
Selecione um lombo de cordeiro bem tenro e corte a carne
em cubos. Adicione uma colher de chá de sal e bata a carne em
um pilão. Remova a carne quando estiver pastoso. Bata a cebola
com uma colher de chá de sal e pimenta até reduzir a uma massa.
Misture a carne com a cebola e bata até ficar bem liso.
29
Lave bem o trigo em água corrente, mas faça isso depressa
senão não ficará macio. Aperte para remover água. Amasse o
trigo e a carne com as mãos. Bata no pilão. Verifique o tempero.
Mergulhe o malho do pilão ocasionalmente em água gelada para
manter a carne úmida e lisa.
Para ser corretamente preparado, o quibe deve ser batido
por pelo menos uma hora. Então estará pronto para ser comido
como está, frito ou assado. O tempo de preparação pode ser
encurtado consideravelmente moendo-se a carne várias vezes
com lâmina fina em um moedor de carne. Moa a cebola duas
vezes. Depois moa uma vez a carne misturada com a cebola.
Misture com o trigo lavado. Amasse bem e tempere com sal e
pimenta. Moa essa mistura três vezes, acrescentando a cada vez
uma colher de sopa de água gelada para manter liso.
Cordeiro grelhado
LAHM MASHWI
Ingredientes:
1/2 kg de smaiskeh (filé de cordeiro)
1 colher de chá de sal
1/2 colher de chá de pimenta
12 cebolas pequenas (opcional)
Modo de Preparar:
Estrangeiros chamam este prato de shish kebab. Tem
melhor sabor quando feito com cordeiro brm jovem. Cozinheiros
libaneses grelham a carne em um espeto na brasa, usando
braseiros próprios chamados manqals. Os sucos que gotejam
30
durante o grelhar são recolhidos em um pedaço de pão árabe.
Quando a carne está pronta, é posta no pão com o suco
recolhido. Na Turquia, a carne é marinada em óleo de oliva antes
de ser grelhada.
Corte a carne em cubos de cinco centímetros. Tempere com
sal e pimenta e deixe de lado durante uma hora. Coloque no
espeto seis pedaços de carne por pessoa, alternando carne magra
com carne gorda e cebola.
Grelhe sobre uma chama bem quente ou em cima de brasas
até ficar bem dourado. Se grelhar no forno, coloque um pouco
óleo de oliva em cima da carne para que seque.
Acompanhamentos excelentes para esta carne são laban e os
molhos a gosto.
Passarinhos
ASSAFEER
Ingredientes:
Restaurantes nas cidades montanhosas do Líbano se
especializaram neste prato, feito com cotovias. Elas são servidas
frequentemente com pão árabe e araq, uma bebida feita de ervas
doce.
Prepare os pássaros, tirando as penas, depois corte bicos e
os pés. Limpe o interior. Esfregue sal e pimenta do lado de fora.
Alinhe vários pássaros num espeto e grelhe na brasa. Sirva
quente.
31
Os pássaros podem também serem fritos na manteiga.
Limpe-os, esfregue com sal, pimenta e suco de limão e frite em
óleo quente.
Folhas de Vinha Recheadas (Charutos)
MAHSHI WARAK AREESH
Ingredientes:
1/2 kg de folhas de vinha tenras e frescas
2 xícaras de carne de cordeiro picada ou moída
Ossos
1 1/2 xícaras de arroz
2 cravos-da-índia inteiros
8 cravos-da-índia esmagados com sal
1/2 xícara de suco de limão
1 1/2 colher de chá de sal
1/2 colher de chá de pimenta
1/2 colher de chá de canela
2 xícaras de água fria
2 tomates médios fatiados
1 tomate médio picado (opcional)
1 colher de chá de hortelã seca
Modo de Preparar:
Canela e hortelã fazem desta versão de uma popular comida
mediterrânea um prato de especial sabor. Amacie e branqueie as
folhas de vinha imergindo por alguns instantes em água fervente
salgada. Separe. Lave o arroz e misture bem com carne, tomate
cortado, sal, pimenta, canela e uma xícara e meia de água fria.
32
Recheie uma folha de cada vez da seguinte maneira.
Coloque uma colher de recheio no centro de cada uma. Dobre o
fundo da folha para cima sobre o recheio, então dobre cada lado
para o meio. Role nas mãos para formar um cilindro firme de
aproximadamente 15 centímetros, um pouco mais espesso que
um charuto.
Coloque os ossos em uma panela de pressão e cubra com
tomates fatiados e os cravos inteiros. Disponha os charutos lado
a lado, em camadas sobre os tomates. Tempere com sal e suco de
limão. Acrescente água e cozinhe sob pressão por 12 minutos.
Retire a pressão, abra e a panela e deixe cozinhar
destampada, em fogo brando, para reduzir o molho. Misture uma
xícara e meia do molho com o cravo esmagado e a hortelã. Junte
de volta à panela e cozinhe em fogo baixo por mais alguns
minutos para aumentar o sabor.
Remova os mahshi, ou charutos, cuidadosamente da panela.
Dedos molhados em água fria o um pegador apropriado facilitam
a tarefa de organizar os rolos numa travessa. Sirva quente com
molho.
Utensílios de Cozinha
Os utensílios utilizados na cozinha árabe têm suas
peculiaridades, mas nada que não tenha seu assemelhado na
cozinha ocidental. A panela de pressão se tornou um item
comum praticamente a todas as culinárias. Outros elementos,
como o instrumento para fazer doses individuais de café, tem sua
utilidade e são insubstituíveis, pois além da qualidade do
33
resultado final, há todo um ritual de caráter cultural envolvido no
preparo do alimento.
34
A ESCRITA
Com estas noções não se pretende ensinar ninguém a ler o
árabe, mas dar uma ideia de como funciona essa língua que, a
princípio, nos parece tão incompreensível. À medida que se
avança no estudo dela, as dificuldades diminuem
consideravelmente.
O árabe é a língua de uma grande parte do nosso planeta e a
língua espiritual do Islamismo. Diferentemente do português e
de outras línguas conhecidas, o árabe é escrito da direita para a
esquerda. Cada letra pode ser escrita de quatro formas, o que não
difere da nossa forma de escrever, uma vez que a letra, quando
inicia uma palavra difere ligeiramente de quando é escrita no
meio da palavra, no final da palavra ou escrita isoladamente. Nas
figuras apresentadas, pode-se ver que não é tão difícil assim
reconhecer as quatro formas de cada letra. É preciso se lembrar
sempre de que esse alfabeto é escrito da direita para a esquerda.
No início isso pode confundir um pouco, até se habituar. As
letras isoladas e as letras finais são muito parecidas. A forma
inicial e a do meio diferem apenas do acréscimo feito na segunda
para sua ligação com a letra anterior. As vogais não são
representadas por letras isoladas, mas por marcas, mais ou
menos parecidas com os nossos acentos.
Um bom início de um estudo mais aprofundado dessa
língua pode ser encontrado em sites básicos de pesquisa, como a
Wikipédia
35
(http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADngua_%C3%A1rabe) e
outros.
Dicionário Árabe-Português
Números
1 - wahed
2 – thinien/ ethnien
3 - thalatha
4 - arbaa
5 - khamsa
6 - sitta
7 - sabaa
8 - thamanya
9 - tisaa
10 - ashra
11 - hedashar
12 - ehtnashan
13 - thalatash
14 - arbatash
15 - khamestash
16 - settash
17 - sabatash
18 - thamantash
19 - tesatash
20 - eshreen
21 - wahed eshreen
22 - ethnien whe eshreen
36
30 - thalatheen
40 - arbaein
50 - khamseen
60 - sitteen
70 - sabein
80 - thamanein
90 - tesein
100 - meya
Palavras e Expressões Mais Comuns
a vontade de Deus - inshaalha
abaixo - tahat
aberto - eftah
açúcar - sokkar
agora - al Ann
água - mayia
ajude-me - saadni
ajude-o - saedo
ajude-os - saedhome
ali - hennak
amanhã - boukra
amarelo - asfar
amigo - sadiq
antes - gabel
apanhe isto - erfah haza foak
aqui - hema
armazém - makhzau
37
até logo - maasalaama
avião - tayarah
azul - asrag
banheiro - hamam
bem feito (cozinha) - mistawiiy jiddan
bem feito (trabalho) - kowayes
boa-noite - masaa al kair
bom - kowaies
bom dia - sabah al khair
branco - abyad
café - kahwa
cama - sarier
caminhar - emshi
carne - lahma
carregar - ehmel ou sheif
carregue isto - hamal haza
carro - sayara
casa - biet
cedo - badri
chá - shaay
chá gelado - shaay barid
chega - bass ou kefaya
cheio - maliin
colher - maalaka
começar - excer
comer - yacol
comida - akal
38
como - keif ou ezai
como se chama isto em árabe? - maza tosumi haza bel
arabi?
como vai você - keif halac ou ezaiyak
conferir - efhas
corra (numa emergência) - egry besoraa
cuidado! - shoef
de (vindo) - min
de nada - maa leesh
de onde você veio? - min fain inta
deixar - yasaar
depois - baedien
desculpe-me - ismahlee
deste modo - kidha
devagar - shway shway
dinheiro - feluus
direita - yamien
do lado de fora - barra
domingo - yowm il-ahad
dormir - noum
e - wa
economizar - waffer
ela - heeya
ele - howa
eles - homma
eles, elas - home
elevador - aceussor
39
em meu quarto - fil ghurfa
emergência - tawarek
empurrar - zok
entendeu? - maf hoom
escritório - mactab
esperando ordens - mestani awamer
espere ou pare - estanna
espere um minuto - estana shoeya
estouro - yeseal
eu - ana
eu estou bem - ana mabsoot, ana kowayes
eu estou contente com seu trabalho - ana mabsout
beshughlak
eu não entendo - ana ma fehempt
eu não falo árabe - ana la tet kalam al arabiah
eu não quero - ana ma abgha
eu não tenho - ana ma endi
eu quero - ana abgha
eu tenho - ana endi
eu tenho fome - ana gowaan
eu trabalho em - ana bash taghel fi
eu vou - ana raieh ela
eu, me - ana
faca - sikkiyn
fácil - sahel
fale devagar - takallam besch wesch
fogo - narr
40
frio - bard
fundo - tahat
galinha - dajaaj
garfo - showka
gerente - mudier
gorjeta - bakchies
graças a Deus - alhandullellah
grande - kabier
homem, homens - reejal
hotel - fon doq
idiota - gha ' bi
íntimo - sacer
isto - haza
lá - honak
lama - tina
lapis, caneta - kalam
legumes - khudra
leite - haliyb
lentamente - shwai shwai
limpe com água - nadef bil mayia
litro - litr
lixo - zibala
longe - tawiel
maior - akbar
mais duro - akoa
mais rápido - besoraa
marreta - shakoosg kabir
41
mecânico - mekanic
menino - walad ou sabi
menor - aasar
metade - nos
metro - mitr
meu nome é - ana ismee
mostre-me - war keni
motociclista - rakeb motocykl
motorista - sawag
mudança - badel
muito bom - kowaies kateer
muitos, muitos - ketier
na casa - fiel beit
nada - wala hayoh
não - la
não desse modo - moush kedah
não importa - maalish
não jogue fora - la termi
não, eu não tenho - iaa ma audich
negro - aswad
nenhum - ia
nenhum, nada, ninguém - mafee
nós - nihna
novo - jadiid
noz - samola
o que é isto? - eh dah?
o que você está fazendo? - shoe betiimal ou hetiimal eh?
42
o que você quer? - ayez eh?
o que? - aish
obrigado - shukran
oi, olá - marhaba salam alekom
ok - taieb
olá - marhaba
óleo - zeit
onde você vai? - wein rayeh, rayeh feen?
onde? — feen?
pá - shibel
papel - waraq
para (um lugar) - ala
para cima - foak
parafuso - borshe mosmar
pare - wagef
passeio - ercab
peixe - samak
pequeno - osayer
pequeno - shoeya
perder-se - fok ou hel
pimenta - filfil
ponha - hot
por favor - men fadlak
por favor, tome um café - Etfadal echrab kahwa
por quê?- ly ish
pressa - besorao
puxar - eshab
43
qual é seu nome? - shoe ismack ou ismack eh
qual é seu número? - kamm raqamak
quando você terminará? - mata sawfa tukhalis
quando? - mata ou emta
quanto - can
quanto custa isto? - can tganeb haza ou bekam?
quarta-feira - youm il-arbaa
que - hazah
que droga - yaha
quem? - meen
quente - sochen
quinta-feira - yown il-khamiys
rua - sharee
ruim - mosh kowayes
sábado - yown is-sabt
saco - kies
sal - malh
sal - melh
segunda-feira - yowm el itnen
segurança - amaan
segurar - emsiek
sexta-feira - gomao de el de yom
siga em frente - ala tool
sim - aewa, naam
sim, eu entendo - na am fahamt
sopa - shurba
substâncias químicas - kimaweyat
44
tábua - khashab
talvez - yem ken
tenha cuidado - entabeh
terça-feira - yowm ith-thalaatha
terminado - khalast
trabalhar - shughul
trabalho - shoghol
traga-me - jiegeblye
tu (homem) - Inta
tu (mulher) - Intee
tudo - kollo
vá - roah
valentão - couhe khechen
vamos - yala
vazio - faregh
velho - atiik ou kadeem
veneno - sem
venha aqui - taa'la hena
venha comigo - taa'la maei
verde - akhdar
vermelho - ahmar
vire à direita - lif yameen
vire à esquerda - lif yassar
você - inta
você é bem-vindo - ahlan wa sahlan
você entende? - inta fahamt?
você tem? — indek?
45
você terminou? - hul khalast?
voltar – lef
46
PROVÉRBIOS
Provérbio é uma “máxima ou sentença de caráter prático e
popular, comum a um grupo social, expressa em forma sucinta e
geralmente rica em imagens”, conforme define o Dicionário
Aurélio. Sendo uma forma popular, traduz de forma sábia os
costumes e a própria cultura de um povo. Sua riqueza é medida
pelos ensinamentos que transmite, reflexo da própria sabedoria
popular.
Nada mais interessante para conhecer o espírito árabe que
conhecer alguns de seus provérbios. Os Provérbios Egípcios a
seguir, traduzidos pelo sentido e comentados, são um bom
exemplo dessa tradição.
Elle fat kadimoh tah
Tradução: Perdida é a pessoa que se esquece de seu
passado.
Significado: Lembre-se sempre do que você era antes de se
vangloriar sobre o que você se tornou.
Uso: Criticar quem se esquece de suas raízes.
El ghazzala el shatra teghzel be regl humar
Tradução: A solteirona hábil gira com a perna de um burro
Significado: Um trabalhador hábil pode fazer um bom
trabalho até mesmo com ferramentas inadequadas.
47
Uso: Criticar trabalhadores incompetentes que culpam as
ferramentas pelo trabalho pobre que fazem.
Ya bani fi gher melkak, ya merabi fi gher weldak
Tradução: Quem constrói em propriedade alheia está
criando filhos dos outros.
Significado: Faça suas ações onde devem ser feitas.
Uso: Criticando esses que fazem as coisas corretas às
pessoas erradas.
Gat elhazina tefrah ma lketlahash matrah
Tradução: Quando a mulher triste começar a ficar contente,
ela não acha um lugar para ela.
Significado: Pessoas tristes sempre estarão tristes.
Uso: Queixando-se sobre a tristeza.
In keber ebnak khaweeh
Tradução: Quando seu filho crescer, trate-o como um
irmão.
Significado: Não continue tratando seus filhos como
crianças.
Uso: Quando alguém trata o filho maduro como uma
criança.
Yedi elhalak leli bela wedan
Tradução: O brincos são dados a quem não tem orelhas.
48
Significado: Algumas pessoas adquirem coisas para as
quais não estão preparadas.
Uso: Quando alguém adquire algo que não pode usar.
Ma shatamak ela man balaghak
Tradução: Quem insulta é o mesmo que conta sobre o
insulto.
Significado: Não escute às pessoas que lhe falam sobre
outros que o insultaram.
Uso: Quando alguém conta a outro como ele foi insultado.
Tammakhada al gamala wa walada fa'aran
Tradução: O camelo foi trabalhar só para parir um rato.
Significado: Olhares se enganam.
Uso: Expressar decepção quando algo grande é esperado,
mas nunca se materializa.
No'ollohom tor, ye'oolo ihlibooh
Tradução: Nós lhes falamos que era um touro, eles disseram
para ordenhá-lo.
Significando: Estão tentando adquirir mais do que podem.
Uso: Criticar quem teima em buscar o que não está
disponível.
Labbes el khonfesa teb'a sett el nesa
Tradução: Vista uma barata e a ele se tornará uma Senhora.
Significado: Maquiagem pode tornar o feio bonito.
49
Uso: Não se engane com as aparências.
Ya me'amen el regaal ya me'amen el mayya fel ghorbal
Tradução: Homens confiantes estão confiando na água em
uma peneira.
Significado: Um provérbio feminista que faz a analogia de
homens confiantes com água mantida em uma peneira.
Uso: Para esposas traídas ou enganadas pelos maridos.
El rosasah elli matsebshi tedwesh
Tradução: A bala que não fere faz ruído.
Significado: Acusações injustas magoam.
Uso: Fazer um comentário sobre danos causados por um
escândalo, por exemplo.
Goha 'awla belaHm toroh
Tradução: Goha (um personagem cômico árabe) tem direito
à carne de seu touro.
Significado: Cuide do que é seu.
Uso: Enfatizar as responsabilidades de alguém.
Ya dakhel bein el-basala we 'eshret-ha may noubak 'ella
sannet-ha
Tradução: Quando você se mete entre a cebola e sua casca,
tudo que consegue é ficar mal cheiroso.
Significado: Preste atenção a seu próprio negócio.
Uso: Aconselhar alguém a não se envolver em briga alheia.
50
Gat el-hazina tefrah ma le'tlahash matrah
Tradução: Uma mulher triste não tem nenhuma chance de
ser feliz, mesmo que tente.
Significado: Algumas pessoas estão condenadas à
infelicidade.
Uso: Quando as expectativas não se realizam.
Seketna luh dakhal be humaru
Tradução: Nós deixamos e ele trouxe o burro junto.
Significado: Cuidado ou se aproveitarão de você.
Uso: Quando alguém não respeita seus limites.
Tabbakh el-sim dawa'uh
Tradução: O cozinheiro prova sua comida mesmo que seja
veneno.
Significado: Cada um é responsável por suas ações.
Uso: Fazer um comentário sobre alguém que sofre por seus
próprios erros.
El-salaf talaf we el-rad khosara
Tradução: Emprestar é ruim, devolver é uma perda.
Significado: Quando se empresta, apossa-se.
Uso: Conselho dado para desencorajar empréstimos.
Men kharag men daruh et'al me'daruh
51
Tradução: Quem deixa sua casa, perde seu prestígio.
Significado: O prestígio da pessoa está entre as pessoas que
a conhecem.
Uso: Fazer um comentário sobre pessoas desprezadas por
alguém que não as conhece.
Yeddi el-hala' lelli bela wedan we el-fustu' lelli bela sinan
Tradução: Dar brincos a quem não tem orelhas e pistache a
quem não tem dentes.
Significado: Algumas pessoas adquirem o que não podem
usar.
Uso: Fazer um comentário sobre alguém adquirindo algo
que não pode usar.
El-kezb ma loosh reglein
Tradução: Mentira não têm pernas.
Significado: As mentiras são descobertas. O mesmo que "a
mentira tem pernas curtas", pois não pode ir longe.
Uso: Fazer um comentário sobre o destino de um
mentiroso.
Ya me'amna lel-regal ya me'amna lel-mayiah fi elghurbal
Tradução: Os homens confiantes são como confiar que um
coador pode reter água.
Significado: Não se deve confiar nos homens.
Uso: Conselho para mulheres cujos maridos as enganam.
52
Ussi reish teirek la yeloof be gheirek
Tradução: Corte as penas de seu pássaro para que ele não o
deixe por um outro dono.
Significado: Mantenha o olho em seu cônjuge!
Uso: Conselho para homens (e mulheres) serem zelosos
com seus cônjuges.
Khudoohum bel-sot la yeghlebookum
Tradução: Eleve sua voz senão os argumentos dos outros o
vencerão!
Significado: Quando as ideias falham, palavras (e voz alta)
são muito úteis.
Uso: Em português: "quem não chora, não mama.
El-markeb elli feeha rayysein teghra
Tradução: Um barco com dois capitães afundará.
Significado: Você não pode ter dois líderes em um só
grupo.
Uso: O mesmo que "muitos cozinheiros estragam a sopa".
Elli beitoh min 'ezaz, ma yehadefsh el-nass bel toob
Tradução: Se mora em uma casa de vidro, não lance pedras.
Significado: O que você faz aos outros será feito a você.
Uso: Todo o mundo é vulnerável. Em português, "quem
tem telhado de vidro não joga pedras na casa do vizinho".
53
Haza al-shebl men zaka al-asad
Tradução: Este bebê deste leão.
Significado: Crianças herdam a estatura de seus pais.
Uso: Palavras de elogio para uma criança promissora.
Ekhtob le bentak wa matekhtobsh le ebnak
Tradução: Não procure casamento para seu filho tanto
quanto para sua filha.
Significado: Não é vergonhoso para os pais falar de suas
filhas e oferecê-las como noivas para pessoas fidedignas.
Uso: Quando pais encontram um bom partido para suas
filhas.
El bab elli yigi menno el reeh, seddo westareeh
Tradução: Bloqueie a porta onde sopra o vento e relaxe.
Significado: Não fuja da luta, enfrente seus problemas ou
previna-se, como em "um homem prevenido vale por dois".
Uso: Conselho para prevenir problemas quando alguém está
vacilando para resolver suas dificuldades.
Egri garey elwehoosh, gher rezkak lan tehoosh
Tradução: Corra como besta, você só conseguirá a sua
parte.
Significado: Você adquire o que é seu.
Aplicabilidade: Quando alguém está trabalhando demais.
Elganaze hara we elmaiet kalb
54
Tradução: O enterro é de luxo, mas o defunto é um
cachorro.
Significado: Pessoas podem receber atenção sem merecer.
Uso: Criticar quando uma coisa muito espalhafatosa é feita
para homenagear quem não merece.
Delle ragel wala delle heta
Tradução: A sombra de um homem é melhor que a de uma
parede.
Significado: É melhor ter um homem que viver só.
Uso: Quando uma mulher está a ponto de se casar com um
homem não muito bom.
55
VESTUÁRIO ÁRABE
Maddas
Maddas são as sandálias tradicionais, usadas nos países
árabes. Sua confecção foi elevada ao nível de uma verdadeira
arte. Os materiais para essa arte são os couros de cabra e de
camelo. Alguns couros são usados em sua coloração natural,
outros são pré-tingido por artesãos especiais que usam hoje
tinturas artificiais, embora em tempos remotos fossem utilizadas
tinturas naturais. Esses artesãos tingem o couro e o deixam
pronto para o sapateiro. A sola é de pele de camelo. O topo é de
pele de cabra. A sola é cortada na forma desejada e no tamanho
preciso e, então, são cosidas três camadas, uma sobre a outra.
Um pico afiado é usado como ferramenta para perfurar as
sandálias e linha de plástico branca é usada para coser a sola.
Um pé de metal padrão é usado para cortar a sola,
classificando-a conforme o tamanho. O pedaço cru de couro é
colocado no padrão de metal e cortado. Outra folha de metal é
usada como padrão para o topo. Cores diferentes de linhas
grossas e largas são usadas para coser e topo à sola.
Técnica de Manufatura e Ferramentas
Conforme a tradição, primeiro o sapateiro faz a sola das
sandálias, depois de todos os artigos de couro terem sido tratados
56
com uma grossa banha de camelo para protegê-los contra o
desgaste do clima árabe.
As ferramentas usadas pelo sapateiro precisam ser pesadas
e fortes para trabalhar eficazmente e com precisão com o couro.
Uma agulha de metal grande é enfiada com várias cores de linha
de plástico para costurar a sola em 3 camadas. Coser isso é um
exercício em si mesmo para o sapateiro, pois exige força nos
braços e nas mãos para perfurar o couro com o pico. Para coser,
tem que puxar inúmeras vezes a linha restante pela da sola da
sandália.
Algumas das solas de sandália exigem cinco, sete ou até
nove costuras para unir as camadas. Quanto mais pontos, de
melhor qualidade é considerada a sandália. No topo que se ajusta
sobre o pé o couro de cabra, mais suave, é usado. Para uni-lo à
sola, é costurado com várias cores de linhas e pontos. A parte de
topo da sandália pode ser vermelha, amarele, verde e marrom ou
qualquer outro número de uma variedade de combinações de cor.
A fabricação das sandálias levará um dia ou mais e é uma
arte que data de antes dos tempos islâmicos. O trabalho é
passado pela família como outras artes.
Ghutrah
Ghutrah, a tradicional cobertura de cabeça usada pelos
homens do mundo árabe, vem em uma variedade de cores e
padrões, embora nenhum denote alguma afiliação cultural ou
geográfica. Os mais amplamente usados são o branco, o branco e
vermelho quadriculado e o branco e negro quadriculado. O
57
Ghutrah também pode ser comprado em branco com linhas
coloridas espessas e finas adornando os lados. Cores populares
para ornamento são o preto, o marrom ou o verde.
Os dois tipos mais populares de ghutrahs são o vermelho e
branco quadriculado e o branco claro. A touca branca é chamada
ghutrah simplesmente. O vermelho e branco quadriculado é
chamado shumagh. Ambos vêm com ou sem borlas de algodão
brancas pequenas.
Essas toucas permanecem no lugar graças a um boné que se
encaixa na cabeça, feito de algodão branco, o taqiyya. É usados
debaixo do ghutrah, junto com um rolo duplo de corda negra
amarrado em cima, chamado de Iggal. É normalmente grosso o
bastante para manter apertado e impedir que o conjunto deslize
da cabeça. Usado por sua praticidade, o ghutrah protege a pessoa
tanto do frio quanto do calor. Com suas dobras longas de tecido,
pode ser puxado pela face para proteger quem o usa das
tempestades de areia, ventos fortes e sol ardente. O Ghutrah tem
sido usado principalmente como uma proteção contra o calor, a
areia e o sol. É feito de algodão e, assim, mantém a cabeça e o
corpo frio no clima quente do deserto. A popularidade do
ghutrah se deve ao fato de que, antigamente, os homens
frequentemente tinham cabelo longo e essa cobertura impedia
que os cabelos interferissem na visão, enquanto cavalgavam um
cavalo ou um camelo.
Tradicionalmente, o ghutrah era cosido à mão. Embora
alguns ainda sejam feitos dessa forma, a máquina de costura
substituiu agora em grande parte o bordado tradicional. O
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material para o ghutrah é produzido domesticamente ou
importado. As origens exatas dessa peça do vestuário árabe estão
perdidas no tempo. O que se sabe é que sempre foi amplamente
usado pelos habitantes da península árabe.
A Roupa Masculina
Enquanto muitos árabes vestem roupas de estilo ocidental,
frequentemente se vê homens que usam a bata branca longa e
prática, conhecida como thobe. Originalmente projetado para
refletir o sol quente do deserto e deixar o ar circular por dentro, o
thobe também se conforma ao princípio da simplicidade pregado
pelo Islã. Sobre o thobe, é usado um manto exterior chamado
bisht ou mishlah. Normalmente é feito de lã clara ou pelo de
camelo tingido de preto, creme ou marrom, e guarnecido com
linhas de ouro. Este traje representa a roupa oficial dos árabes da
península.
Roupas Femininas
Os vestidos das mulheres também são soltos e vaporosos.
Dependendo da região, enfeites e estilos variam. Frequentemente
os vestidos exibem motivos regionais ou tribais e são decorados
com moedas, cequins, linha metálica ou bordados. Em
deferência à convenção religiosa, a maioria das mulheres
muçulmanas usam uma cobertura na cabeça quando em público.
Uma echarpe preta transparente chamada shayla cobre os
cabelos e o pescoço. O manto exterior preto é o abaya. Um
acessório favorito de mulheres árabes de todas as idades são as
59
joias. Historicamente, as mulheres nômades das tribos de deserto
levavam toda a sua riqueza material na forma de pulseiras,
brinco, anéis e colares. Este amor por sinos minúsculos, moedas
penduradas, contas coloridas e pedras semipreciosas continua até
hoje. É por isso que os mercados de ouro do mundo árabe são os
melhores e os mais ocupados de qualquer outro lugar no mundo.
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A TRADIÇÃO ORAL
Os contos de fadas para adultos, cujo exemplo maior está
compilado nas 1001 Noites, são um dos aspectos mais ricos e
criativos das tradições árabes. Num tempo quando não havia
livros nem diversão, pessoas se reuniam para ouvir contadores de
histórias desfiarem suas narrativas em contos cheios de
encantamento, peripécias, perigos e ensinamentos. O caráter
mais marcante dessas histórias é que seus enredos intrincados
intercalavam aventuras dentro de aventuras, culminando com um
desfecho onde a virtude, a honestidade, a honra e a fé tinham,
finalmente, seu reconhecimento.
As histórias a seguir são pequenos exemplos dessas
grandiosas narrativas árabes. Uma parte deste livro é reservada a
histórias ainda mais significativas.
Uma Linda História
Uma mulher viu três homens desconhecidos com longas
barbas brancas sentados diante de sua casa.
Disse ela:
— Não os conheço, mas devem estar famintos. Por favor,
entrem, vou lhes servir o que comer!
— Onde está o homem da casa? — perguntou um deles.
— Ele não está no momento — respondeu a mulher.
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— Então não podemos entrar — disseram eles,
permanecendo no lugar onde estavam.
À noite, quando o marido chegou, a mulher lhe contou o
que acontecera e ele ouviu atentamente.
— Pois vá lá e diga a eles que estou em casa e que eu os
convido a entrar e cear comigo.
A mulher foi fazer o que o marido lhe ordenara.
— Não podemos entrar juntos — disseram eles no entanto.
— Por que não? Meu marido está em casa e é ele quem lhes
faz o convite. Seria um insulto recusar. Por que fazem isso?
Um dos velhos, porém, tratou de lhe explicar:
— O nome dele é Fartura — falou, apontando um de seus
amigos. — O nome do outro é Sucesso — continuou. — E o
meu nome é Amor. Agora vá e discuta com o seu marido para
decidirem qual de nós ele quer que entre em sua casa.
A mulher entrou e contou ao marido a conversa que tivera
com os desconhecidos. Ele ficou maravilhado e falou:
— Que bom! Vamos convidar Fartura. Deixe-o vir e encher
nossa casa de fartura!
A esposa, porém, discordou daquela decisão.
— Marido, por que não convidamos o Sucesso?
Antes que ele respondesse, a cunhada dela, que os ouvia a
um canto da sala, apressou-se em dar a sua opinião:
— Não é melhor convidar Amor? A casa ficará cheia de
amor.
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— Este é um bom conselho — ponderou o marido. — Boa
mulher, vá lá fora e convide Amor para ser nosso hóspede e se
sentar à mesa conosco.
A mulher saiu imediatamente e disse:
— Amor, por favor, entre e seja nosso convidado!
Amor se levantou e seguiu a mulher em direção á casa. Os
outros dois, no entanto, levantaram-se e seguiram-no, para
surpresa da mulher que virou e lhes perguntou:
— Apenas convidei o Amor. Por que vocês estão entrando
juntos com ele?
Os velhos homens responderam a uma só voz:
— Se você convidar Fartura ou Sucesso, os outros dois
esperarão aqui fora, mas se você convidar Amor, onde ele for os
outros dois irão com eles, pois onde há amor, há também fartura
e sucesso!
Uma Flor Especial
Era uma vez, no reino da Pérsia, um poderoso califa que
queria se casar. Para poder fazer a melhor escolha, resolveu
promover uma disputa entre as moças mais lindas da corte ou
qualquer outra que se achasse capaz de participar e marcou uma
data para reuni-las.
Uma velha e bondosa senhora, serva do palácio desde sua
infância, ouvindo os comentários sobre os preparativos para o
desafio, sentiu uma profunda tristeza, pois sua jovem filha nutria
um profundo e sincero amor pelo califa. Quando chegou em casa
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e contou à jovem sobre a disputa, surpreendeu-se ao ouvir que a
jovem pretendia ir ao desafio.
Incrédula, indagou à moça:
— Minha filha, o que você vai fazer lá? Virão as mais belas
e ricas donzelas do reino. Tire agora mesmo essa ideia insensata
da cabeça. Sei que deve estar sofrendo muito por perder o califa,
mas não transforme seu sofrimento em loucura.
A filha lhe respondeu:
— Não, minha boa mãe, não estou sofrendo e muito menos
enlouqueci. Estou ciente de que jamais poderei ser a escolhida
do califa, mas eu seria uma tola se perdesse minha única
oportunidade de estar ao lado dele, nem que seja por apenas
alguns instantes. Apenas isso já me fará feliz, pois sei que meu
destino é outro.
No dia da disputa, a jovem foi ao palácio cheia de
humildade. Lá encontrou, de fato, as mais belas donzelas do
reino, com as mais belas roupas, com as mais ricas joias e com
as mais determinadas intenções. Então, finalmente, o califa
anunciou o desafio:
— Darei a cada uma de vocês uma semente. Aquela que
dentro de seis meses trouxer para mim a mais bela flor, será
escolhida minha esposa e reinará comigo sobre a Pérsia.
O desafio do califa respeitava as profundas tradições
daquele povo, que sempre valorizava a habilidade de cultivar
coisas, fossem tradições, costumes, amizades, relacionamentos,
plantas ou animais. Além disso, o sábio desafio igualava todas as
donzelas, independente de sua origem, natureza ou educação.
64
O tempo passou rapidamente e a inocente jovem, não tendo
muita habilidade na arte da jardinagem, cuidava com muita
paciência e ternura da semente que plantara. Ela sabia que se a
beleza das flores tivesse a mesma intensidade de seu amor, ela
não precisaria se preocupar com o resultado.
Passaram-se três meses e nada surgiu. A jovem tentara de
tudo, usando todos os métodos que conhecia ou que lhe foram
ensinados, mas nada havia nascido. Dia a dia ela percebia que se
tornava cada vez mais distante o seu sonho e cada vez mais
profundo e sincero o seu amor. Ela não desistiu, no entanto.
Procurou o jardineiro do palácio real e pediu que lhe desse um
pouco do seu conhecimento. Depois implorou aos mais
afamados botânicos do reino que lhe ensinassem todos os
segredos capazes de fazer a semente germinar. De tudo ela fez,
mas a semente em seu vaso não germinava.
— Desista, minha filha! — aconselhou-a sua mãe. — Jogue
fora esse vaso e tire de sua cabeça essa ideia ridícula.
— Não posso fazer isso, minha boa mãe. Neste vaso está o
meu destino e tenho de me esforçar ao máximo para que ele seja
belo e feliz como sempre sonhei para mim.
Apesar de tudo que fez, a semente não brotou. Finalmente,
os seis meses haviam se passado e nenhuma planta surgira da
semente que ela cultivara. Consciente de seu esforço e de sua
dedicação, comunicou a sua mãe que, apesar do resultado não ter
sido satisfatório, retornaria ao palácio na data e hora
combinadas. Afinal, não pretendia nada além de poder ficar mais
alguns momentos na companhia do califa a quem amava.
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Na hora marcada, estava lá com seu vaso vazio, enquanto as
outras pretendentes exibiam as mais belas flores, uma mais linda
do que a outra, nas mais variadas formas e cores. Ela estava
decepcionada consigo mesma, mas maravilhada com aquela
visão, pois jamais vira tantas belezas juntas.
O momento decisivo chegou. O califa se aproximou e
observou cada uma das pretendentes com muito cuidado e
atenção. Após passar por todas elas, uma a uma, parou diante da
jovem:
— Onde está sua flor? — indagou ele.
— Não brotou, poderoso califa, apesar de todos os meus
cuidados e de todo o amor que dediquei a ela.
O califa pensou por alguns instantes, depois anunciou o
resultado, escolhendo a filha de sua serva como sua futura
esposa. As pessoas ali presentes tiveram as mais inusitadas
reações, pois ninguém entendeu porque ele a havia escolhido, já
que fora a única que nada cultivara em seu vaso. Ele pediu
silêncio e explicou com toda a calma de sua sabedoria:
— Esta foi a única que cultivou a semente que a tornou
digna de se tornar a esposa do califa. Ela foi a única que me
trouxe a flor mais bela de todas, a flor da honestidade, pois todas
as sementes que lhes entreguei eram estéreis.
E ele reinou com sabedoria e felicidade, pois encontrara seu
maior tesouro, a Flor da Honestidade.
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Lenda Árabe da Amizade
Conta uma antiga lenda árabe que dois amigos viajavam
pelo deserto e, em um determinado ponto da viagem, discutiram.
Deixando-se levar pela ira, um deles esbofeteou o outro que,
ofendido, sem nada dizer, escreveu na areia:
Hoje, meu melhor amigo me bateu no rosto!
Seguiram a viagem e chegaram, finalmente, a um oásis
onde resolveram se refrescar. O que levara a bofetada,
inadvertidamente nadou até um local mais profundo e, de
repente, começou a se afogar, mas foi salvo rapidamente pelo
amigo. Ao se recuperar, pegou sua adaga e entalhou numa pedra:
Hoje, meu melhor amigo salvou a minha vida!
Intrigado, o amigo lhe indagou:
— Por que quando eu lhe bati, você escreveu o feito na areia
e agora entalhou na pedra que lhe salvei?
Sorrindo, o outro amigo explicou:
— Quando um grande amigo nos ofende, escrevemos isso na
areia onde o vento do esquecimento e do perdão se encarregará
de apagar. Quando, porém, um amigo nos faz algo grandioso,
devemos gravar isso na pedra do coração, onde vento nenhum do
mundo poderá apagar.
67
A ARTE ÁRABE
Os Arabescos
Em 622, Maomé se exilou em Medina, Madinat al-Nabi, ou
cidade do profeta. De lá, graças à atuação de seus sucessores, os
califas, o Islamismo se expandiu rapidamente pela península,
alcançando a Palestina, a Síria, a Pérsia, a Índia, a Ásia Menor, o
Norte da África e a Espanha. A origem nômade dos muçulmanos
não impediu que, após algum tempo, fossem estabelecidas e
assentadas definitivamente as bases de uma estética própria
desses povos.
Como isso envolveu certo número de países, traços
estilísticos dos povos conquistados foram absorvidos e
adaptados, transformando-os em sinais de identidade. As cúpulas
bizantinas são aplicadas nas mesquitas e a tapeçaria persa
incorpora o colorido dos mosaicos.
O islamismo aboliu a arte figurativa, dando ênfase aos
motivos geométricos e abstratos, surgindo os arabescos,
combinando ornamentação com caligrafia. As letras gravadas
numa parede recordam, a quem as contempla, que aquela é uma
obra feita para louvar Deus.
Tapetes
Os tapetes e os tecidos têm um importante papel na cultura
e na religião islâmicas. Com eles os nômades decoravam o
interior das tendas e, à medida que se tornavam sedentários,
68
seda, brocados e tapetes foram usados na decoração de seus
palácios e castelos. No aspecto religioso, os tapetes são de
fundamental importância no aspecto funcional, pois o islamismo
exige do crente, quando reza, que não fique em contato com a
terra.
Os tapetes fabricados antes do século XVI, chamados de
arcaicos, eram verdadeiras obras de arte do artesanato, possuindo
tramas com 80.000 nós por metro quadrado. Ganharam fama
especial os tapetes da Pérsia por sua trama composta de nada
menos que 40.000 nós por decímetro quadrado. Os artesãos mais
importantes foram os das cidades de Shiraz, Tabriz e Isfahan, no
Oriente, e Palermo, no Ocidente. Os motivos clássicos utilizados
são os florais, caça, animais, plantas e geométricos.
Pintura
A pintura islâmica expressou-se através de afrescos, com
raras obras em bom estado conservadas até hoje, e miniaturas.
Os afrescos eram usados para decoração de paredes, com cenas
de caça ou do cotidiano, semelhantes no estilo à pintura dos
gregos, com influências das artes indiana, chinesa e bizantina.
As miniaturas foram usadas para exemplificar textos
científicos e ilustrar obras literárias.
Arquitetura
As mesquitas islâmicas foram construídas, em sua maioria,
em um período compreendido entre os séculos VI e VIII. Todas
elas seguem um modelo quadrangular básico, inspirado no
69
modelo da casa do Profeta, em Medina. Essa casa tinha um pátio
no lado sul e duas galerias cobertas de palha, sustentadas por
troncos de palmeira. Na área coberta, eram feitas as orações. As
fontes do pátio eram usadas para abluções. A casa servia para
reuniões de oração, discussões políticas, hospital e refúgio para
os necessitados, funções estas que foram transferidas depois para
as mesquitas e edifícios públicos.
A arquitetura das mesquitas não se limitou à simplicidade e
à rusticidade da construção da casa de Maomé, mantendo-se,
porém, a preocupação com a preservação de formas geométricas,
como o quadrado e o cubo. A cúpula de pendentes, que tornou
possível cobrir um quadrado com um círculo, foi amplamente
utilizada na edificação das casas de oração.
As residências dos emires eram normalmente palácios
quadrangulares, cercados por sólidas muralhas, semelhantes a
fortalezas, ligados à mesquita por pátios e jardins. Nesses
palácios, o aposento mais importante era a sala do trono, ou
diwan.
Outra construção característica do Islã foi o minarete, uma
torre alta, de formato cilíndrico ou octogonal, no exterior da
mesquita. Dali o almuadem ou muezim faz chegar aos fiéis o
convite para as orações. A arquitetura do mundo árabe se
destacou também na construção de mausoléus destinados aos
santos e aos mártires.
70
Joias
A ourivesaria árabe é marcada pela criação de peças de
elevado valor artístico e estético. Joias femininas se caracterizam
pela delicadeza e pelos pingentes, bem a gosto da mulher árabe.
Adagas e espadas são elaboradas com a aplicação de pedras
preciosas, tornando-as verdadeiras obras de arte. Em tudo,
percebe-se um toque quase sagrado, característica de um povo
que, em tudo o que faz, vê e louva a obra divina.
A história da ourivesaria árabe começou quando artesãos
começaram a usar seus recursos naturais e elevaram a atividade
ao nível de uma verdadeira arte. As criações mais comuns são
brincos, colares, pulseiras, pingentes, braceletes e anéis.
Muitas culturas influenciaram isso, como consequência
natural da expansão islâmica. A religião influenciou a inclusão
de arabescos. Caixinhas de amuletos, contendo papel fino com
versos do Alcorão para proteger seu portador, eram muito
comuns. Devido à existência dos Cinco Pilares da Fé, braceletes
ou anéis são usados em número de cinco. São comuns brincos
com cinco contas. Uma joia singular consiste em um grosso
bracelete, preso a cinco anéis, um em cada dedo.
A cor das pedras tem um significado específico. Verde, azul
e vermelho são usados para proteção. Pela mesma razão,
turquesa, ágata, coral e contas de vidro coloridas são materiais
populares.
Às joias também são atribuídos poderes mágicos especiais.
A turquesa, por exemplo, afasta o mau-olhado. Sininhos
presentes em vários tipos de peça são usados para afastar
71
espíritos maliciosos. Crianças usam joias, mas, para os homens,
o uso de joias de ouro não é tolerado pela religião. Para as
mulheres, as joias são adornos e símbolo de sua posição social.
Normalmente ela é presenteada quando noiva e, mais tarde,
quando se torna mãe.
Mesmo as mulheres mais pobres usam algum tipo de joia.
Isso é possível pelo costume do dote, que torna as joias recebidas
pela noiva como sua propriedade pessoal. Há casos de mulheres
que iniciaram seu próprio negócio ou ajudaram a família em
dificuldade vendendo suas joias.
72
A MÚSICA E A LITERATURA
Literatura
A literatura, segundo o professor Dr. Helmi Nasr,
particularmente a poesia, foi cultivada no mundo árabe por muito
tempo, antes que os primeiros registros literários fossem feitos,
no século V. A eloquência era uma grande virtude e os
contadores de história e os declamadores de poemas faziam a
alegria e a diversão dos antigos habitantes da península. São
desse período oral provérbios e peças para reflexão, como as
poesias de Zuhayr Ibn Abi Sulma ou de Imru Al-Qays. Desse
autor há um poema celebrando o cavalo árabe. Inicia-se com a
descrição das sensações de se cavalgar um corcel com a força do
vento. O cenário pintado pelo poeta é esplêndido. É madrugada e
os pássaros ainda dormem em seus ninhos. As feras, à vista do
animal galopando, fogem estarrecidas. Ao descrever o tropel do
animal, assim se expressa o poeta:
Mikarrin, mifarrin, muqbilin, mudbirin, ma'an!
(Avança, retrocede, arranca e recua num mesmo ato!).
Da época clássica, há um livro, Al-Albab, O Presente dos
Espíritos, de Abu Hamid Al-Garnati, narrando suas viagens no
século XII, percorrendo o mundo todo, atravessando os mares e
se encontrando com monstros. Esse viajante visita as pirâmides
e, inclusive, tira as bandagens de uma múmia. Especialmente
73
interessantes são as descrições de monumentos que hoje já
desapareceram, como o farol de Alexandria.
A Música
O oud é um antigo instrumento de cordas que foi refinado e
aperfeiçoado pelos árabes, empregado na execução de obras
primas musicais. Desenhos desse instrumento foram encontrados
em cavernas e paredes do Egito Antigo e da Mesopotâmia. Os
instrumentos antigos eram entalhados numa sólida peça de
madeira semelhante aos instrumentos japoneses e chineses, todos
inspirados no barbat persa, modelo original de todos os demais
instrumentos.
Durante o período mouro, na Espanha, o corpo do oud
ganhou sua aparência definitiva. Confortavelmente apoiada nos
braços do instrumentista, é leve como uma pena e suave ao
toque. O oud não tem trastes como os instrumentos de cordas
conhecidos, o que permite ao instrumentista improvisar e
expressar seu talento de modo único. No passado, o músico se
sentava numa manta de lã ou num tapete com as pernas cruzadas.
Hoje em dia, os músicos se sentam numa cadeira confortável,
apoiando o pé direito numa banqueta, segurando o oud como um
violão.
Seu som tem uma tonalidade suave, lembrando a espineta
ou o bandolim. Paciência e dom são necessários para fazer o
instrumento tanto quanto para tocá-lo. Mesmo sendo tão antigo,
nunca perdeu sua popularidade no Oriente Médio e ainda hoje há
74
muitos músicos se dedicando a ele, que representa a música
árabe.
75
O HUMOR ÁRABE
O humor árabe é caracterizado pela valorização da
criatividade e da astúcia, aspectos presentes também nos contos e
lendas árabes. Personagens que povoam esses contos e lendas
também estão presentes nas anedotas, como o escritor Abu
Nuwas, que se relacionava com o famoso califa Harun AlRashid.
Emenda Pior Que o Soneto
Conta-se que, certo dia, o califa passeava pelos jardins com
o escritor e pediu que este lhe desse uma explicação mais
compreensível de um antigo provérbio árabe: "a desculpa foi
pior que a falta".
O escritor não se fez de rogado. Sorrindo maliciosamente,
se aproximou do califa e aplicou-lhe um dolorido beliscão no
braço.
Indignado, o califa o repreendeu:
— Que modos são esses, ó insensato. Acaso te permiti tal
liberdade.
Abu Nuwas respondeu em seguida, dando ao califa a
explicação que ele queria:
— Perdão, Sua Alteza, pensei que fosse a rainha!
76
O Joãozinho Árabe
Um garoto foi mandado para a escola para aprender a ler,
mas se recusava a fazer isso. Não havia como fazê-lo pronunciar
ou escrever a primeira letra do alfabeto árabe, o alif. O professor
tentou de todas as formas e usou de todas as ameaças ao seu
alcance, mas não houve como fazer o garoto cumprir a tarefa.
Desolado, procurou o pai do menino, contando o que estava
acontecendo.
— Meu bom filho, por que essa teimosia? O alif é apenas
uma letra, não vai te fazer nenhum mal. Por que esse temor? —
indagou o pai com brandura e paciência.
O garoto respondeu imediatamente:
— Meu querido pai, eu não tenho medo do alif, mas tenho
muito medo do que vem depois dele.
Conversa de Amigos
— Há quanto tempo não nos vemos — diz um amigo ao
outro.
— E não podia ser de outra forma. Você não vai à mesquita
nem eu vou ao cabaré!
Chistes
— Calma, meu amigo! Não é porque eu disse enterre-me
que você vai correndo pegar a pá.
— Sim, eu disse que a casa é sua, mas não precisa trancar a
porta e levar a chave.
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— Meu amigo, meus olhos, luz da minha vida, mas... longe
de minha bolsa!
O corvo quis imitar o passo da perdiz e perdeu o seu.
Pode Cuspir a Pedrinha
Mansur era um praguejador e vivia dizendo palavrões.
Servia como sacristão de um bispo que, para corrigir o péssimo
hábito de seu ajudante, teve uma brilhante ideia:
— Mansur, mantenha esta pedrinha em sua boca. Enquanto
ela estiver aí, você se lembrará de não dizer palavrões.
Numa tarde de muito calor, Mansur e o bispo caminhavam
por uma estrada, a pé, quando notaram uma mulher no alto de
um morro, acenando e gritando insistentemente.
Pensando que se tratasse de uma extrema unção, subiram
penosamente a encosta. Quando chegaram lá, extenuados e
suados, o bispo, apreensivo, indagou à mulher:
— O que houve, minha boa senhora, para tanta urgência?
— Minha galinha estava chocando e hoje nasceu a ninhada.
Gostaria que o bispo abençoasse os pintinhos.
Respirando fundo, o bispo enxugou a testa e se voltou para
o ajudante, igualmente aborrecido.
— Está bem, Mansur, pode cuspir a pedrinha!
O Mundo é dos Espertos
Jiha caminhava com os amigos pela estrada que, ao
avistarem uma árvore alta, propuseram-lhe um desafio
78
— Jiha, se você é tão ágil, mostre-nos, escalando essa
árvore.
Jiha descalçou as sandálias e as guardou no bolso.
— Vou levar as sandálias comigo. Vai que eu encontre um
atalho lá em cima e precise caminhar até a estrada.
Para a Esperteza, Esperteza e Meia
Chegara o momento da oração na mesquita e os crentes
esperavam pela chegada do imam. Como ele se demorassem,
sugeriram que alguém tomasse o seu lugar e o escolhido foi Jiha.
Pego de surpresa, tentou de todas as formas fugir ao
encargo, mas não houve como. Finalmente, ele subiu ao minbar.
— Irmãos, que posso eu vos ensinar hoje?
— Não sabemos, somos burros — responderam os fiéis.
— Eu me recuso a pregar para animais! Ide embora, instruívos e da próxima vez sabereis o que pedir ao imam.
Dizendo isso, desceu do minbar e foi embora. Os fiéis ali
presentes não se conformaram com isso e combinaram.
— Na próxima vez que isso acontecer, quando ele
perguntar, alguns responderão negativamente, enquanto outros
responderão que sabem sobre que assunto ele falará.
Numa outra oportunidade, o imam novamente faltou e
obrigaram Jiha a subir ao minbar.
— Sabeis o que vos vou ensinar hoje? — indagou ele.
— Sim! — disseram alguns. — Não! — gritaram outros.
Jiha lhes devolveu imediatamente:
79
— Então os que sabem instruam os que não sabem e todos
ficarão sabendo.
O Falso Profeta
Um homem, que dizia ser profeta, foi levado à presença do
califa, que lhe perguntou:
— Que prodígios és capaz de fazer?
— Qualquer coisa que o Califa desejar.
— Tens aqui um cadeado, profeta. Abre-o!
O profeta devolveu de imediato:
— Poderoso senhor, sou só um profeta, não um chaveiro!
Profeta Preso
O califa mandou vir a sua presença um homem que dizia ser
um profeta e saber tudo sobre todas as coisas.
— Conheço o espírito humano. Agora mesmo, o Califa
julga que sou um mentiroso e impostor — disse o espertalhão.
— Acertaste, mas não adivinhaste que, por isso, vais para o
cárcere.
Depois de alguns dias numa cela, o falso profeta foi levado
de novo à presença do mesmo califa.
— E então, profeta, tiveste alguma revelação importante?
— Não!
— E por que não, se és profeta e tiveste tempo?
— Anjos não visitam prisioneiros.
Divertido com a tirada, o califa o pôs em liberdade, desde
que ele prometesse deixar de enganar os incautos. Algum tempo
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depois, no entanto, foi levado de novo à presença do califa, pois
havia queixas de que continuava enganando os ingênuos.
— Ordeno que produzas, aqui e agora, um melão!
— Dá-me três dias e o farei — pediu o mentiroso.
— Não, faze isso agora mesmo!
— Isso não é justo, poderoso califa. Deus demorou seis dias
para criar o céu e a terra. A natureza leva três meses para fazer
um melão e tu não podes esperar três dias!
Comigo não!
Um profeta chamado Abrão foi levado à corte para ser
interrogado pelo califa.
— Como vai nos convencer de que és um verdadeiro
profeta? Abraão enfrentava as chamas e não se queimava.
Moisés transformou seu cajado em serpente e com ele fez brotar
água no deserto. Jesus ressuscitou mortos e tu, o que sabes fazer?
— Realizo o milagre da ressurreição. Vou decapitar Ibn
Abu Dawd e ressuscitá-lo no momento seguinte.
Ao ouvir aquilo, Ibn Abu Dawd protestou:
— Não precisa, não precisa. Eu acredito firmemente que ele
é um autêntico profeta.
81
CURIOSIDADES
O sistema escolar da Arábia Saudita é parecido com o dos
Estados Unidos, com o ano acadêmico indo de setembro a junho.
Crianças começam aos seis anos e estudam doze anos até se
graduarem do colégio. A partir daí, tem opção de ir para uma
universidade. O currículo enfatiza os estudos islâmicos, junto
com matérias acadêmicas, esportes e artes. A educação, bem
como o atendimento médico, é grátis até a universidade.
O árabe é a línguas oficial e é falado por todos os sauditas.
O inglês é ensinado nas escolas públicas e a maioria dos
habitantes do país fala essa língua, principalmente os homens de
negócios. Algumas escolas particulares oferecem uma segunda
língua estrangeira, normalmente o francês.
Para encorajar a prática saudável de atividades físicas desde
a juventude, a Arábia Saudita estabeleceu uma enorme rede de
instalações culturais e esportivas. Mesmo nas menores cidades,
há instalações, salões de reuniões e clubes para todas as
atividades intelectuais e atléticas. Há também uma rede de
parques nacionais e de instalações para esportes aquáticos.
O futebol é o esporte mais popular do país e somente aos
homens é permitido jogar ou assistir a jogos. Muitas cidades têm
campos de futebol e há uma liga específica. A equipe nacional
tem feito muitos progressos, participando das copas de 1994,
1998 e nas Olimpíadas de 1996.
82
A chuva é rara e irregular na região, ocorrendo de outubro a
abril, mas geralmente restrita a poucos chuvisqueiros em janeiro
e fevereiro. Em algumas áreas, notadamente no deserto, pode
não chover por anos seguidos.
Para manter seus suprimentos de água, foi estabelecida uma
rede de barragens para conter chuvas sazonais, juntamente com
aquíferos e usinas de dessalinização que suprem as necessidades
urbanas, industriais e agrícolas.
Estrangeiros devem se vestir de forma modesta e
conservadora em público. Mulheres devem usar vestidos longos,
folgados, de mangas compridas e colarinho alto, tomando o
cuidado de cobrir seus cabelos. Homens podem usar terno ou
camisas de mangas compridas com calças compridas. As
mulheres não são autorizadas a dirigir. Muitas áreas tem um
serviço regular de ônibus com linhas regulares para escolas e
lojas. Contratos de emprego para estrangeiros normalmente
incluem o custo de um motorista.
Lanches são muito populares na Arábia Saudita como em
qualquer outra parte. Além das cadeias nacionais, que
comercializam comidas tradicionais, há franquias da maioria das
marcas mundiais, incluindo as famosas McDonald's e Pizza Hut.
Uma rede de farmácias atende a população e, para se
comprar remédios, não há necessidade de receitas.
O sistema de governo é baseado no Islamismo, que é
considerada uma religião pacífica. Ocorrências de crimes são
raras e as estatísticas mostram uma média elogiável de menos de
83
cem homicídios numa população de mais de dezesseis milhões
de habitantes.
Paralelamente à riqueza, à fartura e à organização da Arábia
Saudita, há países do mundo árabe marcados pela miséria, pela
fome e pelas guerras internas, onde as condições culturais em
nada lembram seus vizinhos.
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LENDAS ÁRABES
As histórias de Fadas sempre foram contadas pelas mães a
seus filhos e depois a seus netos. Ninguém sabe quão velhas elas
são ou quem as contou primeiro. Os netos de Noé podem tê-las
ouvido na Arca durante o Dilúvio. Heitor pode tê-las ouvido na
Cidade de Tróia e é quase certo que Homero as conheceu.
Algumas delas podem ter surgido no Egito, no tempo de Moisés.
Pessoas em países diferentes contam-nas de forma diferente, mas
são sempre as mesmas histórias. As mudanças só são percebidas
em matéria de usos e costumes, como o tipo de roupa usada,
títulos e locais.
Há sempre muitos reis e rainhas nos contos de fadas,
simplesmente porque, no passado, havia muitos reis e países. Um
cavaleiro, porém, poderia ser um escudeiro ou um rei,
dependendo de onde a história era contada. Essas histórias
antigas, nunca esquecidas e sempre recontadas, após serem
exaustivamente transmitidas oralmente, foram finalmente
escritas em tempos diferentes e em lugares diferentes e em todos
os tipos de línguas, formando o conteúdo do Grande Livro dos
Contos de Fadas.
As Lendas Árabes, em sua maioria, são contos de fadas do
Oriente, compreendendo Ásia, Arábia e Pérsia, escritas no seu
próprio modo de narrar, não para crianças, mas para adultos. Não
havia romances então, nem qualquer livro impresso, mas havia
pessoas cuja profissão era divertir os homens e mulheres
85
contando contos. Eles recontavam essas histórias, destacando
personagens pelos seus valores muçulmanos. Os acontecimentos
ocorriam frequentemente no reino do grande Califa Haroun al
Raschid, que viveu em Bagdá do ano de 786 ao de 808. O vizir
que acompanhava o Califa também era uma pessoa real da
grande família dos Barmecidas. Ele foi condenado à morte pelo
Califa de um modo muito cruel e ninguém nunca soube o
motivo.
As histórias devem ter sido contadas por um longo tempo
depois que o Califa morreu, quando ninguém mais sabia o que
realmente tinha acontecido exatamente. Escritores, finalmente,
escreveram os contos, fixando-os em sua forma definitiva, isto é,
narrados a um cruel Sultão pela sua esposa.
Pessoas na França e Inglaterra não souberam quase nada
sobre As Noites Árabes nos reinados da Rainha Anne e do Rei
George I, até que fossem traduzidos em francês por Monsieur
Galland. Adultos eram então muito apaixonados por contos de
fadas, que julgavam essas histórias árabes as melhores que
tinham lido. Eles se deliciavam com os Ghouls, que viviam entre
as tumbas, com Gênios, com Princesas que faziam feitiços
mágicos e com Peris, as fadas árabes. Simbad viveu aventuras
que talvez tenham sido inspiradas pela Odisseia, de Homero, da
mesma forma que histórias narradas na Bíblia podem ter sido
contadas e recontadas, assumindo a forma de um conto de fada,
depois de muito tempo. Ou, até mesmo a Bíblia, compilou
alguns desses contos. Há estreitas ligações, por exemplo, entre a
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história narrada no livro de Ester e a história de Sherazade, em
Mil e Uma Noites.
Nada impediu, também, que ao longo do tempo essas
histórias destinadas aos adultos sofressem mudanças e
acabassem se tornando histórias para crianças. Após o
surgimento do livro impresso e da proliferação de uma nova
literatura, retratando valores locais e resgatando aspectos do
passado dos povos, o interesse gradativamente se voltou para
esses novos títulos. As Lendas Árabes, no entanto, jamais
perderam seu encanto e até hoje fascinam, pela criatividade e
pela imaginação, leitores de todas as partes do mundo. O motivo
de tanta popularidade é fácil de ser percebido? Basta começar a
ler AS LENDAS ÁRABES!
O COMERCIANTE E O GÊNIO
Havia um comerciante que possuiu grande riqueza, tanto
em terras e mercadorias como também em dinheiro. Ele era
obrigado, de tempos em tempos, a viajar para cuidar de seus
negócios. Numa dessas vezes, ele montou seu cavalo, levando
com ele uma sacola pequena na qual ele tinha posto alguns
biscoitos e tâmaras, porque teria que atravessar o deserto, onde
nenhuma comida poderia ser encontrada. Ele chegou ao seu
destino sem qualquer infortúnio e, tendo terminado seus
negócios, partiu em retorno. No quarto dia da jornada, o calor do
sol era muito grande e ele decidiu descansar debaixo de algumas
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árvores. Ele achou, ao pé de uma enorme nogueira, uma fonte de
água clara e corrente. Ele desmontou, amarrou seu cavalo a um
galho da árvore e se sentou junto à fonte, depois de ter tirado da
sacola algumas tâmaras e alguns biscoitos. Quando terminou de
comer, lavou a face e as mãos na fonte.
De repente, ele viu um gênio enorme, pálido de fúria, vindo
para ele, com uma cimitarra nas mãos.
— Levante-se! — ordenou o gênio com uma voz terrível.
— Deixe-me mata-lo como você matou meu filho!
Ao dizer estas palavras, ele deu um grito horroroso. O
comerciante, totalmente petrificado diante da face horrorosa do
monstro e com as palavras contra ele, respondeu tremulamente:
— Ai, meu bom senhor, o que posso eu ter feito a você para
merecer esta morte horrorosa?
— Eu o matarei! — repetiu o gênio. — Da mesma forma
como você matou meu filho.
— Mas — disse o comerciante — como possa eu ter
matado seu filho se não o conheço e nunca o vi até agora?
— Quando você chegou aqui, você não se sentou no solo?
— perguntou o gênio. — E você não apanhou algumas tâmaras
de sua sacola e, ao comê-las, não lançou os caroços fora?
— Sim, eu certamente fiz isso — confirmou o comerciante.
— Então, eu lhe falo você matou meu filho. Enquanto
atirava os caroços fora, meu filho passou a sua frente e um deles
o acertou no olho, matando-o. Assim, eu também matarei você.
— Ah, senhor, me perdoa! — implorou o comerciante.
— Não terei clemência com você — respondeu o gênio.
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— Mas eu matei seu filho sem querer, assim eu imploro que
me poupe a vida.
— Não! Eu o matarei como matou meu filho!
Dizendo isso, ele amarrou os braços do comerciante,
lançando-o ao solo. Ergueu a cimitarra para lhe decepar a
cabeça. O comerciante protestou mais uma vez sua inocência e
lamentou as crianças de sua esposa, tentando evitar seu trágico
destino. O gênio, com a cimitarra erguida acima da cabeça,
esperou até que ele tivesse terminado, nem um pouco
sensibilizado com suas súplicas. Quando o mercador percebeu
que o gênio estava determinado a lhe cortar a cabeça, ele disse:
— Só mais um pedido, eu peço. Conceda-me um
adiamento, apenas um pouco de tempo para eu ir para casa dizer
adeus a minha esposa e filhos e fazer meu testamento. Quando
eu fizer isto, eu voltarei aqui e você me matará.
— Se eu lhe conceder o adiamento que me pede, temo que
você não volte mais aqui.
— Eu lhe dou minha palavra de honra — respondeu o
comerciante. — Eu voltarei sem falta.
— Quanto tempo você quer? — perguntou o gênio.
— Eu lhe peço a graça de um ano — respondeu o
comerciante. — Eu lhe prometo que, daqui a doze meses, eu o
estarei esperando debaixo desta árvore para lhe entregar minha
vida.
O gênio, então, o deixou perto da fonte e desapareceu. O
comerciante, tendo se recuperado do susto, montou seu cavalo e
retomou seu caminho. Quando chegou em casa, a esposa e as
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crianças o receberam com a maior das alegrias. Mas em vez de
abraçá-los, ele começou a se lamentar amargamente. Eles
adivinharam logo que algo terrível havia acontecido.
— Fale, conte-nos o que aconteceu! — pediu a esposa dele.
— Ai! — respondeu-lhe. — Eu só tenho um ano para viver.
Então ele lhes contou o que tinha acontecido entre ele e o
gênio, e como ele tinha dado sua palavra de voltar ao término de
um ano para ser morto. Quando eles ouviram esta notícia
terrível, entraram em desespero e lamentaram muito. No dia
seguinte, ao retomar seus negócios, a primeira coisa que o
comerciante começou a fazer foi pagar suas dívidas. Deu
presentes para os amigos e grandes esmolas para os pobres. Ele
determinou a liberdade de seus escravos e cuidou para nada
faltasse à esposa e aos filhos.
O ano passou logo, obrigando-o a partir. Quando ele tentou
dizer adeus, quase foi vencido pelo sofrimento e, com
dificuldade, tomou a direção de seu destino final. Quando lá
chegou, ele desmontou e se sentou junto à fonte, onde esperou a
chegada do gênio terrível. Estava ali, esperando, quando um
homem velho, que conduzia uma corça, veio até ele. Saudaramse e, então, o velho indagou:
— Deixe-me perguntar, irmão, o que o trouxe a este lugar
do deserto onde há tantos gênios maus? Vendo estas belas
árvores, qualquer um imagina que o local é habitado, mas, na
verdade, é um lugar perigoso para se parar por muito tempo.
O comerciante falou para o velho por que era obrigado a
estar ali. O outro o ouviu com surpresa.
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— Mas esse é um acontecimento maravilhoso! Eu gostaria
de ser testemunha de seu encontro com o gênio — falou o velho,
sentando-se ao lado do comerciante.
Enquanto eles conversavam, outro velho chegou seguido
por dois cachorros negros. Ele os saudou e perguntou o que eles
estavam fazendo naquele lugar. O velho que estava conduzindo a
corça lhe contou a aventura do comerciante com o gênio. O
segundo velho, que jamais ouvira uma história semelhante,
também decidiu ficar para ver o que iria acontecer. Sentou-se
junto aos outros e estavam conversando, quando um terceiro
velho chegou, trazendo em seus braços um pote amarelo. Ele
perguntou por que o comerciante que estava com eles parecia tão
triste. Eles lhe contaram a história e ele também decidiu ficar
para ver o que aconteceria entre o gênio e o comerciante.
Estavam esperando, quando viram uma fumaça espessa
como uma nuvem de poeira. Aquilo foi se aproximando cada vez
mais e então tudo desapareceu repentinamente. Eles viram o
gênio que, sem falar com eles, se aproximou do comerciante com
espada na mão. Segurando-o pelo braço, disse:
— Levante-se e me deixe matá-lo como você matou meu
filho.
O comerciante e os três velhos começaram a lamentar e
gemer. Então o velho que conduzia a corça se lançou aos pés do
monstro e suplicou:
— Príncipe dos Gênios, eu imploro que detenha sua fúria e
me escute. Eu vou lhe contar minha história e a da corça que
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tenho comigo. Se você achá-la maravilhosa, eu peço que anule
um terço do castigo do comerciante que está a ponto de matar!
O gênio considerou algum tempo e então disse:
— Muito bem, eu concordo com isso.
— Eu vou começar minha história agora — disse o velho.
— Por favor, ouça-me com atenção! — pediu ele e iniciou.
A História do Velho e da Corça
Esta corça que você vê comigo é minha esposa. Nós não
tínhamos nenhum filho nosso, então adotei o filho de meu
escravo favorito e determinei fazê-lo meu herdeiro. Minha
esposa, porém, sentia uma grande antipatia pela mãe e pela
criança, fato que me escondeu até que fosse tarde demais.
Quando meu filho adotivo tinha aproximadamente dez anos, fui
obrigado a sair em viagem. Antes de ir, confiei a minha esposa a
criança e a mãe dela, implorando que cuidasse delas durante
minha ausência, que durou um ano inteiro. Durante esse tempo,
ela se dedicou ao estudo das artes mágicas para levar a cabo seus
planos maléficos. Quando adquiriu conhecimento e poderes
suficientes, levou meu filho e a mãe para um lugar distante,
transformando-os num bezerro e numa vaca. Depois pediu a meu
mordomo que cuidasse dos dois como se fossem animais que ela
havia comprado. Por fim, tratou de dar fim no meu escravo, pai
da criança transformada em bezerro.
Quando voltei, perguntei por meu escravo e pela criança.
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— Seu escravo está morto — disse ela. — Quando a seu
filho, eu não o vejo há dois meses e não sei onde ele está.
Eu lamentei ao ouvir falar da morte de meu escravo, mas
como meu filho havia apenas desaparecido, eu pensei que logo
haveria de encontrá-lo. Porém, oito meses se passaram sem
nenhuma novidade. Então chegou a época das festas de Bairam.
Para celebrar, ordenei que meu mordomo trouxesse uma vaca
gorda para sacrificar. Ele assim fez. A vaca que ele trouxe era
minha escrava, a mãe de meu filho. Quando eu estava a ponto de
matá-la, ela começou a mugir baixinho como se suplicasse por
sua vida. Eu vi, então, que os olhos dela estavam cheios de
lágrimas. Tomado de piedade, ordenei ao mordomo levá-la e
trazer outra. Minha esposa, que estava presente, ridicularizou
minha compaixão, dizendo maliciosamente:
— O que está fazendo você? Mate esta vaca. É a melhor
que nós temos para sacrificar.
Tentei agradá-la, mas novamente o animal mugiu e suas
lágrimas me desarmaram.
— Leve-a embora! — ordenei ao mordomo. — Mate-a
você, eu não posso fazer isso.
O mordomo, cumprindo minhas ordens, a matou. Ao esfolála, porém, descobriu que ela não tinha nada além de ossos,
embora aparentasse ter muita gordura. Fiquei consternado.
— Fique com ela! — disse ao mordomo. — E se tiver um
bezerro gordo, traga-o no lugar dela!
Em pouco tempo ele trouxe um bezerro gordo que, embora
eu não o reconhecesse, era meu filho. Tentou arduamente partir
93
sua corda e vir até mim. Lançou-se a meus pés com sua cabeça
no solo como se desejasse despertar minha piedade, implorandome para não lhe tirar a vida. Eu fiquei ainda mais surpreso com
essa ação do que fiquei com as lágrimas da vaca.
— Vá! — ordenei ao mordomo. — Leve de volta este
bezerro com bastante cuidado e traga imediatamente outro em
seu lugar.
Assim que minha esposa me ouviu falar isso, indagou:
— O que está fazendo você, marido? Não sacrifique
nenhum outro bezerro senão este!
— Esposa! — eu respondi. — Não sacrificarei este bezerro!
Rebati todos os argumentos dela e permaneci firme. Matei
outro bezerro e libertei o primeiro. No dia seguinte, o mordomo
me procurou e pediu para falar em particular.
— Eu vim lhe contar uma notícia que eu o penso que irá
gostar de ouvir. Eu tenho uma filha que conhece magia. Ontem,
quando libertei o bezerro que você recusou sacrificar, eu contei a
ela e ela sorriu. Imediatamente depois começou a chorar. Eu lhe
perguntei por que ela estava fazendo aquilo.
— Pai! — ela respondeu. — Este bezerro é o filho de
mestre. Eu sorri de alegria ao vê-lo ainda vivo, mas lamentei ao
lembrar que a mãe dele foi sacrificada. Essas transformações
foram forjadas pela esposa de nosso mestre, que odiava o filho
adotivo.
Ao ouvir essas palavras do mordomo, mal podem imaginar
minha surpresa. Pedi ao mordomo que trouxesse a filha dele e fui
para o estábulo ver meu filho, que respondeu a seu modo a todo
94
o meu carinho. Quando a filha do mordomo apareceu, eu lhe
perguntei se ela poderia fazer meu filho voltar a sua forma
natural.
— Sim, eu posso, — ela respondeu — sob duas condições.
A primeira é que ele me seja dado como marido. A segunda é
que o mestre me deixe castigar a mulher que o transformou em
bezerro.
— Com a primeira condição — respondi — eu concordo de
todo meu coração e ainda lhes darei um generoso dote. Quanto à
segunda condição, também concordo, mas eu só lhe imploro que
poupe a vida dela.
— Assim será! — disse ela. — Será tratada como tratou o
filho.
Então ela apanhou uma vasilha de água e pronunciou sobre
ela algumas palavras incompreensíveis. Depois, lançou essa água
sobre o bezerro, que tomou imediatamente a forma de um
homem jovem e belo.
— Meu filho, meu querido filho! — exclamei — beijando-o
cheio de alegria. Esta linda jovem o salvou do terrível encanto.
Estou certo de que, não apenas por gratidão mas também por
amor, você concorda em se casar com ela.
Ele consentiu cheio de alegria, mas antes que eles
estivessem casados, a jovem transformou minha esposa em uma
corça e é ela quem vê você aqui, ao meu lado. Eu desejei que ela
tivesse esta forma, ao invés de uma de um animal mais estranho,
de forma que ninguém a olhasse com repugnância. Deixei meu
filho cuidando de meus negócios e vivo viajando. Como não
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queria confiar minha esposa aos cuidados de ninguém, eu a levo
comigo aonde for.
E então, o que achou de minha história?
— Realmente, é uma história maravilhosa e surpreendente
— afirmou o gênio. — Por causa disso, eu concedo a você um
terço do castigo desse comerciante.
Quando o primeiro velho terminou de agradecer, o segundo,
que estava conduzindo os dois cachorros pretos, disse ao gênio:
— Eu gostaria de lhe contar o que aconteceu a mim e estou
certo de que achará minha história até mesmo mais
surpreendente que essa que acabou de ouvir. Mas quando eu
terminar, também vai me garantir a terceira parte do castigo do
comerciante.
— Sim — respondeu o gênio. — Contanto que sua história
seja mais surpreendente que a história da corça.
Com este acordo feito, o segundo velho começou a narrar
sua história.
A História do Segundo Velho e dos Cachorros Pretos
Grande Príncipe dos Gênios, você tem que saber que nós
somos três irmãos, estes dois cachorros pretos e eu. Nosso pai
morreu e deixou mil cequins para cada um de nós. Com essa
quantia, resolvemos ter a mesma profissão e nos tornamos
comerciantes. Pouco tempo depois que abrimos nossas lojas,
meu irmão primogênito, um destes dois cachorros, resolveu
visitar países estrangeiros para vender mercadorias. Com essa
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intenção, ele vendeu tudo que tinha e comprou novas
mercadorias para a viagem que estava a ponto de fazer. Ele
partiu e se passou um ano inteiro. Ao término deste tempo, um
mendigo veio a minha loja.
— Bom-dia! — eu disse.
— Bom-dia! — respondeu ele. — É possível que você não
me reconheça?
Então eu o olhei bem de perto e vi que era meu irmão. Eu o
fiz entrar em minha casa e lhe perguntei o que ocorrera com o
empreendimento dele.
— Não me questione! — ele me respondeu — Veja, você
vê tudo o que sobrou do que eu tinha. Sinto dificuldade em
contar os infortúnios que me aconteceram nesse ano e que me
deixaram assim.
Eu fechei minha loja e lhe dei toda a minha atenção. Leveio ao banho, dando-lhe uma de minhas batas mais bonitas. Eu fiz
minhas contas e descobri que tinha dobrado meu capital.
Entreguei a metade ao meu irmão, dizendo:
— Agora, irmão, você pode esquecer suas perdas.
Ele aceitou com alegria e vivemos juntos como vivíamos
antes. Algum tempo depois, meu segundo irmão também desejou
fazer a viagem de negócios dele. Meu irmão primogênito e eu
fizemos tudo que pudemos para dissuadi-lo, mas foi inútil. Ele se
juntou a uma caravana e partiu, para retornar ao término de um
ano no mesmo estado que nosso irmão mais velho.
Tomei conta dele e como eu tinha mil cequins para repartir
eu os dei a ele e ele reabriu sua loja. Um dia, meus dois irmãos
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vieram até mim para propor que nós viajássemos para vender
mercadorias. No princípio eu recusei.
— Vocês viajaram e o que ganharam com isso? —
indaguei.
Eles não desistiram e vieram repetidamente a mim e, depois
de insistirem durante cinco anos, eu acabei cedendo. Finalmente,
quando eles tinham feito os preparativos deles e começaram a
comprar as mercadorias que iríamos vender, perceberam que
haviam gastado todo o dinheiro que eu lhes havia dado. Eu não
os repreendi e dividi minha fortuna, no total de seis mil cequins,
da seguinte forma. Dei mil a cada um deles, guardei mil para
mim e enterrei os outros três mil em um canto de minha casa.
Nós compramos mercadoria, carregamos um navio com elas e
partimos com um vento favorável.
Depois de navegar dois meses, chegamos a um porto onde
desembarcamos e fizemos excelentes negócios. Então nós
compramos mercadorias do país e nos preparamos para velejar
mais uma vez. Eu estava no barco, parado na praia calma,
quando uma linda mas pobremente vestida mulher subiu a rampa
e veio até mim, beijou minha mão e me implorou que me casasse
com ela e a levasse a bordo. No princípio eu recusei, mas ela
implorou tanto, prometendo ser uma boa esposa, que eu, afinal,
consenti. Eu comprei alguns vestidos bonitos e, depois de termos
nos casado, embarcamos e fixamos a vela. Durante a viagem,
descobri tantas qualidades boas em minha esposa que comecei a
amá-la cada vez. Mas meus irmãos começaram a ter ciúmes de
minha prosperidade e resolveram conspirar contra minha vida.
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Uma noite, quando nós estávamos dormindo, eles nos jogaram
no mar. Porém minha esposa era uma fada e não me deixou
afogar, transportando-me para uma ilha. Quando o dia
amanheceu, ela disse a mim:
— Quando eu o vi naquela praia, fiquei encantada com
você e desejei testar sua natureza para ver se era boa, por isso me
apresentei na forma em que me viu. Agora eu o recompensei,
salvando sua vida. Mas estou muito brava com seus irmãos e não
descansarei até levar as vidas deles.
Eu agradeci à fada tudo que ela tinha feito para mim, mas
supliquei para não matar meus irmãos. Tanto fiz que consegui
aplacar sua ira. Num momento, então, ela me transportou da ilha
onde estávamos para o telhado de minha casa, desaparecendo em
seguida. Eu desci, abri as portas e desenterrei os três mil cequins
que tinha enterrado. Eu fui para o lugar onde minha loja estava
localizada e abri-a, recebendo as boas-vindas de meus
companheiros comerciantes pelo meu retorno. Quando fui para
casa, ao fim do dia, vi dois cachorros pretos que vieram
humildemente ao meu encontro como me conhecessem. Fiquei
surpreso, mas a fada reapareceu e disse:
— Não fique surpreso com esses cachorros. Eles são seus
dois irmãos, condenados a permanecer durante dez anos nessa
forma.
E entes que eu pudesse falar alguma coisa, ela desapareceu.
Os dez anos já quase se passaram e eu estou viajando a procura
dela. Quando passava por aqui, vi esse comerciante e o velho
com a corça e fiquei com eles.
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— Realmente! — disse o gênio — Sua história é
maravilhosa e por isso eu lhe concederei um terço do castigo do
comerciante.
Então o terceiro velho fez para o gênio o mesmo pedido que
os outros dois haviam feito e o gênio lhe prometeu o último terço
do castigo do comerciante se a história dele ultrapassasse as
outras.
Assim ele contou a história dele ao gênio.
A História do Terceiro Velho e do Pescador
Senhor, havia um pescador tão velho e tão pobre que mal
podia sustentar sua esposa e três filhos. Saia pescar muito cedo
diariamente e havia estabelecido uma regra para si: jamais lançar
sua rede mais do que quatro vezes. Ele partiu certa manhã, ainda
à luz da lua, e foi para a beira do mar. Ele se despiu e lançou a
rede. Quando a estava puxando para o banco de areia, sentiu um
grande peso. Imaginando ter pegado um grande peixe, ficou
muito contente. Mas, no momento seguinte, viu em sua rede, ao
invés de um grande peixe, a carcaça de um asno. Ele ficou muito
desapontado.
Aborrecido com tal pescaria, ele consertou a rede que a
carcaça do asno havia arrebentado em vários pontos. Em
seguida, atirou a rede ao mar pela segunda vez. Ao puxar, ele
novamente sentiu um grande peso de forma que pensou que ela
estivesse cheia de peixes. Mas só achou uma enorme cesta cheia
de lixo. Ele ficou ainda mais aborrecido.
100
— Ó, sorte! — ele clamou — Não faça troça comigo, um
pobre pescador que não pode sustentar sua família!
Dizendo isso, ele jogou fora o lixo e lavou a rede,
limpando-a de toda sujeita. Novamente ele a lançou ao mar, pela
terceira vez agora. Dessa vez, só pegou pedras, conchas e lama.
Estava à beira do desespero. Então lançou a rede pela quarta vez.
Quando pensou que nada pescara, ele a puxou com muita
dificuldade. Não havia peixes, mas ele achou um pote amarelo
que, pelo seu peso, parecia conter alguma coisa. Notou que
estava fechado e lacrado com um selo. Ficou encantado.
— Eu o venderei ao fundidor e com o dinheiro que
conseguir comprarei uma medida de trigo.
Ele examinou o jarro por todos os lados depois o
chacoalhou para ouvir algum ruído, mas nada ouviu. Analisando
o selo na tampa, ele pensou que, mesmo assim, poderia haver
alguma coisa lá dentro. Usando sua faca, com um pouco de
dificuldade ele conseguiu soltar a tampa. Virou o pote de cabeça
para baixo, mas nada saiu dali. Levantou o objeto à altura dos
olhos e estava olhando seu interior, tentando ver alguma coisa,
quando saiu dali uma fumaça espessa, fazendo-o recuar alguns
passos. Essa fumaça se levantou até as nuvens e estendeu-se por
cima do mar e da orla, formando um nevoeiro que muito
surpreendeu o pescador. Quando toda a fumaça estava fora do
pote, ela se concentrou numa massa enorme, na qual apareceu
um gênio duas vezes maior que um gigante. Quando viu aquele
monstro terrível olhando para ele, o pescador ficou tão
aterrorizado que não conseguiu dar um passo para fugir.
101
— Grande rei dos gênios! — exclamou o monstro —
Jamais voltarei a desobedecê-lo!
Estas palavras levaram coragem ao pescador.
— O que você está dizendo, grande gênio? Conte-me sua
história e como acabou encerrado nesse vaso.
O gênio olhou o pescador com arrogância.
— Dirija-se a mim com cortesia antes que eu o mate!
— Ai! Por que você deveria me matar? — indagou o
pescador — Eu o libertei, já se esqueceu?
— Não! — respondeu o gênio — Isso não me impedirá de
matar você. Mas vou lhe conceder um favor: escolha como quer
morrer!
— Mas o que fiz eu a você? — insistiu o pescador.
— Eu não o posso tratar de qualquer outro modo — disse o
gênio — Se quiser saber o motivo, escute a minha história. Eu
me rebelei contra o rei dos gênios. Para me castigar, ele me
encerrou neste vaso de cobre, lacrando-o com um selo de
chumbo, que é o único encanto capaz de me deter e me impedir
de sair. Em seguida, ele jogou o vaso no mar. Durante o meu
cativeiro, jurei que se qualquer um me libertasse antes de cem
anos, eu o faria rico até mesmo depois da morte. Aquele século
passou e ninguém me livrou. No segundo século, prometi que
daria todos os tesouros do mundo para meu libertador, mas ele
nunca veio. No terceiro século, eu prometi fazer de meu salvador
um rei, sempre estar perto dele e lhe conceder diariamente três
desejos. Mas aquele século também se passou e eu permaneci na
mesma prisão. Finalmente, fiquei furioso por ter permanecido
102
cativo por tão longo e prometi que se alguém me soltasse, eu o
mataria imediatamente e só lhe permitiria escolher de que
maneira deveria morrer. Como vê, você me libertou, agora
escolha de que forma deseja ser morto por mim.
O pescador estava muito infeliz.
— É isso que um homem azarado como eu ganha por ter
salvado você. Eu lhe imploro que poupe minha vida.
— Já lhe disse! — tornou o gênio — Sejamos breves.
Escolha, você está desperdiçando meu tempo!
O pescador teve uma ideia repentina.
— Considerando que eu tenho que morrer, — falou ele —
antes que eu escolha a maneira de minha morte, eu suplico por
sua honra que me diga se estava realmente dentro do vaso!
— Sim, eu estava — respondeu o gênio.
— Eu realmente não posso acreditar nisso — afirmou o
pescador — Aquele vaso pequeno mal pode conter um de seus
pés, quanto mais o corpo inteiro. Eu não posso acreditar nisso, a
menos que eu veja.
— Pois vou lhe mostrar como! — falou o gênio com
desprezo.
Então ele começou a se transformar em fumaça que, como
antes, esparramou-se por cima do mar e da orla, depois foi se
juntando e começando a entrar lentamente no vaso até que nada
restasse do lado de fora. Lá dentro, indagou:
— Bem, pescador descrente, aqui estou eu dentro do vaso.
Acredita em mim agora?
103
O pescador, em vez de responder, apanhou a tampa de
chumbo e fechou depressa o vaso.
— Agora, ó gênio do mal — exclamou o pescador — Peça
perdão a mim e escolha de que morte morrerá! Mas não, será
melhor eu lançá-lo ao mar e construir uma casa na praia para
avisar a todos os pescadores que aqui vêm para lançar suas redes,
prevenindo-os de pescar um gênio tão mau como você, que jura
matar o homem que o libertar.
A estas palavras, o gênio fez tudo que pôde para sair, mas
não podia por causa do encanto da tampa.
— Se me ajudar, eu o farei o homem mais sábio do mundo
todo, capaz de desafiar gênios, seduzir fadas e conquistar reinos.
— Se eu confiar em você, nada me garantirá que serei
tratado com justiça. Além disso, se minha astúcia superou a de
um gênio, estou certo de que poderei vencer pela astúcia
qualquer outro que aparecer no meu caminho — disse o velho.
— Poderá ter tudo que jamais teve em sua miserável vida!
— continuou o gênio.
— Vou fazer melhor! Vou correr o mundo, levando você
para ensinar as pessoas a enfrentarem a maldade — finalizou o
velho, encarando agora o gênio que queria tirar a vida do pobre e
desesperado comerciante.
— Devo confessar que sua história é a mais surpreendente e
maravilhosa de todas as outras — afirmou o gênio, realmente
surpreso, olhando de rabo de olho para o pote que o velho tinha
nas mãos. — Por isso eu lhe dou a terceira parte do castigo do
comerciante. Ele deve agradecer a todos os três pelo empenho
104
demonstrado em salvá-lo. Se não fossem vocês, ele já teria
partido desta vida.
Dizendo assim, ele desapareceu para grande alegria do
comerciante e de seus companheiros. Ele não soube como
agradecer seus amigos e fez tudo que estava a seu alcance para
demonstrar sua gratidão. Convidou a todos para irem morar na
casa dele, mas os viajantes agradeceram e cada um tomou seu
rumo. O comerciante voltou para sua esposa e para seus filhos,
passando o resto de sua vida feliz com eles.
105
A HISTÓRIA DO REI LEPROSO
E O MÉDICO DE DOUBAN
No país de Zouman, na Pérsia, viveu um rei leproso e todos
seus doutores tinham tentado inutilmente curá-lo, quando um
médico muito inteligente apareceu na corte. Esse médico era
instruído em todos os idiomas e tinha um conhecimento muito
grande sobre ervas, poções e medicamentos. Assim que soube da
enfermidade do rei, vestiu sua melhor roupa e se apresentou
diante do monarca.
— Senhor! — disse ele — Eu sei que nenhum médico pôde
curar sua majestade, mas se seguir minhas instruções, eu vou
curar sua doença sem usar qualquer medicamento ou aplicação
externa.
O rei escutou atentamente essa proposta.
— Se você é inteligente o bastante para fazer isto, eu
prometo para sempre fazê-lo um homem rico e também seus
descendentes.
O médico foi para a casa dele e fez um bastão de polo,
escavando seu punho e pondo nele a droga que desejou usar.
Depois ele fez uma bola e com essas coisas foi ver o rei no dia
seguinte. Ele lhe falou que desejava que o rei jogasse polo. O rei
concordou e montou seu cavalo, indo para o lugar onde se
praticava esse esporte. O médico se aproximou com o taco que
havia feito.
— Leve este, senhor, e golpeie a bola até que sinta sua mão
e todo o seu corpo arderem. Quando o remédio que está no
106
punho do taco esquentar pelo calor de sua mão, ele vai penetrar
ao longo de seu corpo. Quando isso acontecer, volte para seu
palácio, tome um banho e vá dormir. Quando despertar amanhã,
estará curado.
O rei levou o taco e esporeou o cavalo atrás da bola. Ele a
golpeou e ela foi rebatida pelo cortesão que estava com ele. O
jogo continuou por um longo tempo. Quando o rei se sentiu
muito quente, deixou de jogar e voltou para o palácio, entrou no
banho e fez o que o médico tinha dito. No dia seguinte, quando
ele acordou, percebeu com grande surpresa que estava
totalmente curado. Ao entrar na sala de audiências, grande foi a
alegria de todos os seus súditos por aquela cura maravilhosa. O
médico de Douban entrou pelo corredor e foi se curvar para o
rei, que o viu e o chamou, fazendo-o se sentar ao lado dele,
demonstrando toda a sua honra e sua gratidão. Naquela noite, o
rei deu ao médico uma bata oficial longa e rica e o presenteou
com dois mil cequins. No dia seguinte, ele continuou o cobrir o
médico de toda sorte de favores.
Acontece que o rei tinha um grão-vizir avarento e invejoso,
um homem muito ruim mesmo. Enciumado pelas graças
concedidas, ele tramou a ruína do médico. Para isso, pediu uma
audiência particular com o rei, alegando que tinha uma
importante revelação a fazer.
— O que é — perguntou o rei.
— Senhor, — respondeu o grão-vizir — é muito perigoso
para um monarca confiar em um homem cuja fidelidade ainda
107
não foi provada. Quem pode garantir que esse médico não é um
traidor que veio aqui para assassinar sua majestade?
— Estou seguro disso — afirmou o rei. — Esse homem é o
mais virtuoso e o mais fiel de todos os homens. Se ele desejasse
levar minha vida, por que me curou? Eu sei o que está havendo.
Você tem ciúme dele. Não pense que possa me indispor contra
ele. Eu me lembro bem do que um vizir disse ao Rei Simbad, seu
senhor, para impedir que o príncipe fosse levado à morte.
O que o rei disse excitou o curiosidade do vizir, que pediu:
— Majestade, eu imploro, seja condescendente e me conte
o que o vizir disse ao Rei Simbad!
— Esse vizir — falou o rei — disse a Simbad que jamais
acreditasse em tudo que lhe fosse dito, contando-lhe em seguida
esta história.
A História do Marido e do Papagaio
Um homem bom teve uma esposa bonita a quem ele amou
apaixonadamente e da qual jamais se afastava. Um dia, quando
foi obrigado a fazer uma viagem de negócios muito importante,
afastando-se da esposa, foi a um lugar onde vendiam todos os
tipos de pássaros e comprou um papagaio. Esse papagaio não só
falava muito bem, mas tinha a facilidade de contar tudo aquilo
que presenciava. Ele o trouxe para sua casa em uma gaiola e
pediu para a esposa que o pusesse no quarto dela, cuidado dele
enquanto o marido estivesse fora.
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O homem viajou, realizou seus negócios com sucesso e, ao
retornar, perguntou ao papagaio o que tinha acontecido durante a
ausência dele e o papagaio lhe falou algumas coisas que o
fizeram ralhar com a esposa. Ela pensou que um dos escravos
devia ter contado sobre ela, mas eles lhe garantiram que fora o
papagaio, por isso ela resolveu se vingar dele pessoalmente.
Quando o marido partiu para uma viagem de um dia, ela
ordenou a um escravo para girar um moinho sob a gaiola. Outro
deveria lançar água sobre a gaiola e um terceiro fazer refletir a
luz de uma candeia, da direita para a esquerda e da esquerda para
a direita, direto nos olhos do papagaio. Isso durou toda a noite.
No dia seguinte, quando o marido voltou, perguntou o que o
papagaio tinha visto. O pássaro respondeu:
— Meu bom senhor, raios, trovões e chuva perturbaram-me
tanto a noite toda me, que eu não nada vi nem ouvi.
O marido, que sabia que nem tinha chovido nem tinha
trovejado na noite anterior, ficou convencido de que o papagaio
não estava falando a verdade, tirou-o da gaiola e o lançou tão
asperamente no solo que o matou. Não obstante, ele ficou depois
arrependido, porque jamais soube se o papagaio tinha falado a
verdade ou não.
Quando o rei terminou a história do papagaio, ele disse ao
vizir:
— E assim, vizir, eu não escutarei você e cuidarei bem do
médico no caso de me arrepender, como o fez o marido que
matou o papagaio.
Mas o vizir insistiu:
109
— Majestade, a morte do papagaio nada significou. Quando
está em jogo a vida de um rei, no entanto, é melhor sacrificar um
inocente que salvar um culpado. Não pode ser uma coisa incerta,
no entanto. O médico deseja assassinar sua majestade. Meu zelo
exige que eu comprove isso. Se eu estiver errado, mereço ser
castigado como um vizir foi castigado uma vez.
— Que fez o vizir para merecer o castigo? — quis saber o
rei.
— Eu contarei, se sua majestade me der a honra de escutar.
A História do Vizir que Foi Castigado
Havia um rei que teve um filho que gostava muito de caçar.
Ele lhe permitia frequentemente se dedicar a esse passatempo,
mas tinha ordenado a seu grão-vizir que sempre acompanhasse o
príncipe e que nunca o perdesse de vista. Um dia, os cães
acossaram um veado e o príncipe, pensando que o vizir estava
atrás dele, deu início à perseguição. Cavalgou velozmente e,
depois de algum tempo, percebeu que estava só. Ele parou e,
tendo perdido de vista a caça, voltou para se reunir com o vizir,
que não tinha tido o devido cuidado de segui-lo.
O príncipe se viu perdido. Estava tentando encontrar o
caminho, quando viu ao lado da estrada uma linda senhora, que
chorava amargamente. Ele puxou as rédeas do cavalo e lhe
perguntou quem era ela, que estava fazendo naquele lugar e se
ela precisava de ajuda.
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— Eu sou a filha de um rei da Índia — respondeu ela — e
rumava para meu país, mas parei para descansar e adormeci.
Meu cavalo fugiu e não sei qual é seu paradeiro.
O príncipe jovem teve piedade dela e se ofereceu para levála na sua garupa, o que ela aceitou. Quando passavam por umas
ruínas, ela desmontou e entrou. O príncipe também desmontou e
a seguiu. Para sua grande surpresa, ouviu alguém dizer:
— Regozijem-se, minhas crianças, eu estou lhes trazendo
um jovem belo e gordo para vocês.
Ao que as outras vozes responderam:
— Onde ele está, mama? Será que nós podemos comê-lo
imediatamente, já que temos tanta fome?
O príncipe percebeu o perigo iminente. Descobriu, então,
que a mulher que se dizia filha de um rei da Índia era, na
verdade, uma ogra que habitava locais ermos e desolados,
atraindo e devorando os viajantes perdidos. Aterrorizado,
esporeou o cavalo. A suposta princesa apareceu naquele
momento e, vendo que havia perdido a presa, gritou-lhe:
— Não tenha medo! O que você quer agora?
— Estou perdido — respondeu ele. — Preciso achar a
estrada.
— Siga sempre em frente e a encontrará — disse ela.
O príncipe, mal podendo acreditar em seus ouvidos,
galopou tão rápido quanto foi possível. Encontrando o caminho,
ele voltou ao palácio de seu pai são e salvo, narrando-lhe o
perigo que havia corrido por causa do descuido do grão-vizir. O
rei ficou muito bravo e o estrangulou imediatamente.
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— Senhor, — insistiu o vizir — se não tomar cuidado com
o médico de Douban, poderá vir a se arrepender de ter confiado
nele. Quem pode garantir que o mesmo remédio que o curou
possa vir a matá-lo futuramente?
O rei era naturalmente muito fraco e não percebeu as
verdadeiras e más intenções de seu vizir, nem era firme o
bastante para manter sua decisão inicial.
— Bem, vizir, — disse ele — você tem razão. Talvez ele
tenha vindo me tomar a vida. Ele pode fazer isso pelo simples
cheiro de uma de suas drogas. Verei o que pode ser feito.
— A melhor maneira, Senhor, de pôr sua vida em
segurança é mandar cortar imediatamente a cabeça dele — disse
o vizir.
— Acho que é mesmo a melhor maneira — concordou o
rei, que ordenou a um de seus ministros que fosse buscar o
médico, que o atendeu prontamente.
— Eu o chamei para me livrar de você — sentenciou o rei.
O médico ficou terrivelmente surpreso com aquilo.
— Que crime cometi, majestade?
— Eu sei que você é um espião e pretende me matar. Mas
eu serei mais rápido e o matarei primeiro. Golpeie! — ordenou
ele a um executor que ali estava. — Liberte-me desse assassino!
A essa ordem cruel, o médico se lançou nos joelhos dele.
— Poupe a minha vida — suplicou e o rei o empurrou,
afastando-o de seus joelhos. — Pelo menos me deixe colocar
meus negócios em ordem e deixar meus livros para pessoas que
farão bom uso deles. Há um que eu gostaria de presentear a sua
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majestade. É muito precioso e deve ser mantido cuidadosamente
em seu tesouro, pois contém coisas maravilhosas. Quando eu
morrer, se sua majestade virar a sexta folha e ler a terceira linha
da página à esquerda, minha cabeça responderá todas as
perguntas que fizer.
O rei, ansioso para ver tal maravilha, adiou a execução para
o próximo dia e o mandou sob forte escolta para casa. Ali o
médico colocou seus negócios em ordem e, no dia seguinte,
havia uma grande multidão reunida para ver sua morte e o que
aconteceria depois. O médico entrou e foi até os pés do trono
com um livro grande numa das mãos e uma bacia na outra.
Disse o médico, então:
— Senhor, pegue este livro. Quando minha cabeça for
cortada, coloque-a na bacia. Abra o livro e minha cabeça
responderá suas perguntas. Mas imploro sua clemência, porque
sou inocente.
— Suas súplicas são inúteis. Se só posso ouvir sua cabeça
falar quando estiver morto, então você deve morrer!
Dizendo isso, ele tomou o livro das mãos do médico e
ordenou ao carrasco que cumprisse com seu dever. A cabeça foi
cortada tão habilmente que caiu direto na bacia. Imediatamente o
sangue deixou de fluir. Então, para grande surpresa do rei, os
olhos se abriram e a cabeça ordenou ao rei que abrisse o livro.
Ele assim o fez e achando que a primeira folha estivesse grudada
à segunda, ele pôs o dedo na boca para umedecê-lo e virar a
página facilmente. Ele repetiu o gesto até alcançar a sexta
página.
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— Médico, a folha está em branco! — exclamou, então.
— Vire mais algumas páginas! — respondeu a cabeça.
O rei continuou virando as folhas, sempre pondo o dedo na
boca a cada movimento. Com isso, o veneno que havia em cada
folha começou a fazer efeito. A visão escureceu e ele caiu aos
pés do próprio trono. Quando a cabeça do médico percebeu que
o veneno tinha agido e que o rei só tinha mais alguns minutos de
vida, gritou:
— Tirano! Veja como são castigadas a crueldade e a
injustiça.
— Por favor, médico, salve a minha vida e lhe darei tudo o
que quiser, até metade de meu reino! — suplicou o rei, sentindo
a vida esvair-se de seu corpo rapidamente.
— Já tive a minha vingança!
— Não foi culpa minha — afirmou o rei pusilânime. — Foi
o grão-vizir quem me convenceu a matá-lo.
— Ele mente! O rei mente! — protestou o grão-vizir.
— Um rei jamais mente, principalmente no seu leito de
morte. Cortem a cabeça do grão-vizir pela sua perfídia! —
ordenou o rei e sua ordem foi cumprida imediatamente.
— Já tive a minha vingança — disse a cabeça, fechando os
olhos para sempre.
— Não morra! Por favor, eu suplico! Não morra! — ficou
repetindo o rei, até silenciar-se para sempre.
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A HISTÓRIA DO JOVEM REI DAS ILHAS NEGRAS
Ao redor da fogueira, na tenda do sultão que estava de
passagem por aquelas terras fazendo justiça, todos prestavam
atenção à história que o jovem contava. Ele escondia o corpo
num manto longo. Seu rosto estava parcialmente coberto por um
turbante cujas abas pendiam sobre uma de suas faces. O fogo, no
entanto, provocava naquela parte de seu rosto estranhos reflexos
como chamas se refletindo no mármore polido.
Saibam vocês que meu pai era Mahmoud, o rei das Ilhas
Negras, assim chamadas por causa de quatro pequenas
montanhas que um dia foram ilhas. A capital era no lugar onde
agora há o grande lago e o deserto. Minha história lhes contará
como essas mudanças ocorreram. Meu pai morreu quando tinha
sessenta e seis anos e eu o sucedi. Casei-me com minha prima, a
quem amei ternamente e acreditei que me amava também. Mas
uma tarde, quando eu estava meio adormecido e sendo abanado
por duas de suas escravas, ouvi uma dizer à outra:
— Que pena que nossa ama já não gosta de nosso senhor!
Eu acredito que ela gostaria de matá-lo se pudesse, porque ela é
uma feiticeira.
Logo acabei concordando com elas. Quando seu escravo
favorito ficou gravemente ferido num acidente, ela implorou que
a deixasse construir um palácio no jardim, onde o chorou e o
lamentou durante dois anos, cuidado e conservando seu corpo.
Eu lhe implorei, então, que deixasse de lamentá-lo, pois ele não
podia falar nem se mover e somente era mantido conservado
115
daquela forma graças aos encantamentos que ela usava. Ela se
virou contra mim furiosa e proferiu algumas palavras mágicas e
eu me tornei imediatamente como vocês me veem agora, meio
homem e meio mármore. Essa feiticeira má transformou a
capital, uma populosa e florescente cidade, no lago e no deserto
que há agora. E não há um só dia que ela não venha a minha
procura e me bata com um chicote feito de couro de camelo.
Quando o rei jovem terminou sua triste história triste, o
Sultão demonstrou ter ficado sensibilizado com seu destino.
— Conte-me — ordenou ele — onde está essa mulher má?
— Onde ela vive agora que eu não sei, — respondeu o
infeliz príncipe infeliz, — mas ela vai diariamente, ao
amanhecer, ver se o escravo fala com ela, depois de me bater.
— Rei desgraçado! — exclamou o Sultão. — Serei sua
vingança!
Consultou o jovem rei qual seria o melhor modo para agir,
traçando um plano para o dia seguinte. O sultão foi descansar,
prometendo-lhe que tudo se resolveria favoravelmente. Quando
o dia começou a nascer, o sultão entrou no palácio do jardim
onde o escravo jazia. Sacou a espada e destruiu a pouca vida que
permanecia nele, depois lançou o corpo num poço. Ele se deitou,
então, na cama onde estava o escravo e esperou pela feiticeira.
Ela primeiro procurou o jovem rei, em quem aplicou cem
chibatadas. Em seguida, foi para o quarto onde pensava que o
escravo ferido estivesse, mas o Sultão ocupava seu lugar.
Ela chegou até perto do leito e disse:
116
— Está melhor neste dia, meu querido escravo? Fale pelo
menos uma palavra para mim.
— Como eu posso estar melhor, — respondeu-lhe o Sultão,
imitando a língua do escravo — quando eu nunca posso dormir
por causa dos gritos e gemidos de seu marido?
— Que alegria ouvi-lo falar! — exclamou a rainha. — Quer
que eu devolva a ele a forma normal? Peça o que quiser e lhe
concederei.
— Por favor! — disse o Sultão. — Livre-o de sua maldição
e lhe dê liberdade para que eu não ouça mais os gritos dele.
A rainha saiu imediatamente, levando uma xícara de água.
Disse algumas palavras que fizeram o conteúdo ferver como se
estivesse no fogo. Então ela lançou isso em cima do príncipe,
que imediatamente recuperou sua forma totalmente humana. Ele
ficou feliz com isso, mas a feiticeira lhe disse:
— Suma daqui imediatamente e não volte nunca mais. Se
não fizer isso agora mesmo, eu o matarei!
O jovem rei fingiu que fugia em desabalada carreira, mas
foi se esconder para ver o fim do plano do Sultão. A feiticeira
voltou ao Palácio das Lágrimas e disse:
— Eu fiz o que você desejou!
— O que você fez — disse o Sultão — não é o bastante
para me curar. Vá agora mesmo e liberte todas as pessoas que
enfeitiçou até agora. Vá e lhes devolva a forma humana.
A feiticeira saiu apressadamente e disse algumas palavras
na direção do lago. Os peixes se transformaram em homens,
mulheres e crianças. Tudo voltou ao normal. As ruas estavam
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cheias novamente e as casas e lojas fervilhavam como se nada
tivesse acontecido. Assim que terminou de desfazer seus
encantamentos, a rainha regressou ao palácio.
— Você está bem melhor agora? — indagou.
— Venha para bem perto de mim — disse o Sultão. —
Mais próximo ainda.
Ela obedeceu. Então ele pulou sobre ela e com um assobio,
sua espada cortou-a a meio, matando-a.
Então ele procurou e encontrou o príncipe.
— Regozije-se! — disse ele. — Sua cruel inimiga está
morta.
O príncipe não sabia o que fazer para agradecer o sultão.
— Vá governar seu país com justiça e igualdade. Para que
sua felicidade e a minha sejam completas, mandarei Suleima,
minha sobrinha favorita, vir de Bagdá para se casar com você e o
fazer feliz para sempre. Ela será o símbolo da nossa aliança. De
agora em diante, você é um protegido meu e nenhum mal lhe
acontecerá ou a seu reino.
Algum tempo depois, a graciosa princesa, sobrinha do
sultão, chegou às Ilhas Negras, onde se casou com o jovem rei
numa festa que durou noventa dias.
Foram felizes para sempre!
118
A HISTÓRIA DO BURRO, DO BOI E DO
COMERCIANTE
Havia, no tempo do grande Califa Haroun al Raschid, que
viveu em Bagdá, um comerciante, senhor de muitas posses,
casado e pai de muitos filhos. Alá, o Altíssimo, lhe deu o dom de
entender a língua dos animais. Esse comerciante morava numa
região fértil à margem de um rio e tinha um burro e um boi.
Certo dia, o boi chegou ao lugar que era ocupado pelo burro
e o encontrou varrido e regado de água. No cocho havia cevada
bem joeirada e palha desfiada. O burro estava deitado em
repouso como se fosse uma figura importante. Indignado, o boi
se lembrou de que, quando seu senhor montava o burro, era
apenas para uma curta viagem, quando havia urgência, pois o
burro voltava logo ao seu repouso. Protestou, então, sem
perceber que o comerciante o ouvia.
— Comes do bom e do melhor e que isso te seja saudável,
proveitoso e de fácil digestão! Eu estou fatigado e tu, repousado.
Tu comes a cevada bem joeirada, a palha desfiada e és bem
cuidado em seu estábulo. Se às vezes, por alguns momentos, teu
senhor te monta, bem depressa te traz de volta! Quanto a mim,
sirvo apenas para a labuta e para o trabalho pesado do moinho!
Então o burro disse em resposta:
— Ó pai do vigor e da paciência, em vez de te lamentares,
faze o que vou te dizer. Digo-te isso por amizade, simplesmente
pelo gosto de Alá. Quando saíres para o campo e meterem o jugo
no teu pescoço, atira-te por terra e não te levantes, mesmo que te
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batam. Quando te levantares, deita-te depressa pela segunda vez.
Se te fizerem voltar ao estábulo e te apresentarem favas, não as
coma. Finge-te de doente e esforça-te por não comer nem beber
por uns três dias. Dessa maneira, repousarás da fadiga e do
trabalho e te trarão da melhor palha e da melhor cevada para tua
alimentação.
O comerciante, escondido, ouviu aquelas palavras. Quando
o tratador foi para junto do boi para lhe dar forragem, viu que o
animal comia muito pouco. No dia seguinte, pela manhã, quando
foi buscá-lo para o trabalho, encontrou-o doente. Foi depressa e
comunicou o fato ao seu senhor, que lhe disse em resposta:
— Leva o burro e faze com que ele trabalhe no lugar do boi
durante o dia todo!
O tratador assim o fez e levou o burro no lugar do boi,
fazendo-o trabalhar durante o dia inteiro. No fim do dia, quando
o burro voltou para o estábulo, o boi lhe agradeceu a
benevolência que permitiu que ele, o boi, repousasse de sua
fadiga durante aquele dia. Arrependido, o burro não respondeu.
Na manhã seguinte, um semeador foi buscar o burro e o fez
trabalhar o dia inteiro. O burro voltou com o pescoço esfolado e
vencido pela fadiga. O boi, vendo-o naquele estado, agradeceu
efusivamente, glorificando o amigo com louvores.
Disse o burro, então:
— Antes eu estava muito tranquilo. A minha esperteza me
condenou. Mas é preciso que eu lhe diga que ouvi nosso amo
dizer que se o boi não se levantar de seu lugar, será dado ao
magarefe para que o mate e faça de sua pele um couro para a
120
mesa. Eu ouvi e tive muito medo por ti. Aviso-te, portanto, para
tua salvação.
Ao ouvir as palavras do burro, o boi agradeceu-lhe e disse:
— Amanhã mesmo irei livremente com o tratador cuidar de
minhas ocupações.
Na mesma hora começou a comer toda a forragem. Nenhum
dos dois percebeu, no entanto, que o comerciante, escondido,
ouvia cada uma das palavras deles. Quando o dia amanheceu, o
comerciante saiu com a esposa para onde ficavam os bois e as
vacas e ali sentaram. Veio o tratador, tomou o boi e saiu. Como
não estava acostumado com a comida que havia ingerido durante
aquele tempo de inatividade, inesperadamente e à vista de seu
amo, o boi começou a agitar a cauda e a soltar ventos
ruidosamente, girando como doido de um lado para outro. O
comerciante foi tomado de tal ataque de risos que caiu de seu
assento. Sua esposa quis saber:
— De que te ris tanto?
Ele respondeu:
— De uma coisa que vi e ouvi, mas que não posso divulgar
sem morrer.
Ela insistiu:
— Eu exijo que me contes a razão de teu riso, mesmo se
devesses morrer por isso.
Ele replicou:
— Não posso divulgar isso, porque tenho medo da morte.
Ela lhe disse:
— Mas então estás rindo de mim!
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Concluindo isso, não cessou de discutir com ele e de
atormentá-lo teimosamente com palavras. Tanto fez que, por
fim, ele se sentiu obrigado a lhe contar. Fez vir seus filhos a sua
presença e mandou chamar o cádi e testemunhas, pois queria
fazer seu testamento antes de revelar o mortal segredo à esposa,
a quem ele amava e com quem tinha vivido um tempo
considerável de sua vida. Ao saberem da exigência da mulher,
amigos e parentes disseram:
— Por Alá! Deixa de lado essa história pelo temor que
morra teu marido, o pai dos teus filhos!
Mas ela lhes disse:
— Não lhe darei paz enquanto não me tiver dito seu
segredo, mesmo que deva morrer!
Então cessaram de falar com ela. E o mercador se levantou
de junto deles e se dirigiu para o lado do estábulo, no jardim, a
fim de fazer suas abluções e voltar para contar o segredo e
morrer. Ocorre que ele tinha um galo valente, capaz de satisfazer
cinquenta galinhas. Tinha também um cão muito valente. Ele
ouviu, naquele momento, o cão que chamava o galo e insultavao, dizendo:
— Não tens vergonha de te mostrares alegre quando nosso
senhor vai morrer?
E o galo disse ao cão:
— Como é isso?
O cão contou toda a história e o galo disse:
— Por Alá! Nosso senhor é bem pobre de inteligência. Eu,
que tenho cinquenta esposas, sei me desembaraçar delas,
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agradando uma e ralhando com outra! Ele tem uma só e não sabe
nem o bom meio nem a maneira de tratar com ela! Ora, é bem
simples! Não tem senão que cortar em intenção dela algumas
boas varas de amoreira, entrar bruscamente em seu reservado e
bater-lhe até que ela morra ou se arrependa e nunca mais ela
tornará a importuná-lo com qualquer pergunta que seja!
Ao ouvir aquelas palavras, o comerciante sentiu a luz voltar
a sua razão e ele resolveu espancar a esposa. Assim, ele entrou
no quarto reservado de sua esposa, depois de ter cortado em sua
intenção as varas de amoreira e de tê-las escondido.
Disse-lhe, chamando-a:
— Vem até o quarto reservado para que eu te diga o
segredo e ninguém me possa ver morrer depois!
Ela entrou com o marido e ele fechou a porta do quarto
reservado sobre ambos e caiu-lhe em cima a golpes dobrados até
vê-la desmaiar.
Exclamou ela em altos brados, então:
— Eu me arrependo! Eu me arrependo! — e se pôs a beijar
as mãos e os pés do marido, demonstrando que estava
verdadeiramente arrependida.
Depois, saiu com ele e toda a assistência se regozijou. O
casal viveu no estado mais feliz e afortunado até a morte. O
burro jamais tentou ser mais esperto que seu amo e o boi jamais
lamentou sua sorte novamente. Como gratidão, o comerciante
dobrou a quantidade de galinhas aos cuidados de seu galo.
Às vezes, quando o comerciante sozinho a um canto
começava a rir, lembrando daquilo que não podia contar, sua
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esposa imediatamente se lembrava da surra de varas de amoreira
e espantava toda a curiosidade de seu coração.
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O FALCÃO DO REI DE FURS
Contam que o rei de Furs era grande amigo de
divertimentos, de passeios e de todo tipo de caça. Possuía um
falcão treinado por ele próprio que não o abandonava nenhum
momento. Mesmo durante a noite, o rei o trazia preso ao seu
punho. Quando ia à caça, levava consigo. No pescoço dessa ave,
tinha mandado pendurar uma vasilha de ouro onde lhe dava de
beber. Um dia, em seu palácio, o rei viu subitamente chegar o
encarregado dos bosques e florestas.
Disse-lhe esse encarregado:
— Ó rei, estamos de novo na época das caçadas!
— Isso me deixa muito feliz! — exultou o rei e começou a
fazer os preparativos para a partida.
No dia seguinte, com o falcão em seu punho, partiram,
rumando para um vale, onde estenderam as redes de caça.
Repentinamente, uma gazela ficou presa na rede. Então o rei
alertou:
— Matarei aquele que deixá-la escapar!
Começaram a puxar a rede em torno da gazela, que se
acercou do rei, ergueu-se sobre as patas traseiras, encolhendo
junto do peito as patas dianteiras. Nisso o rei bateu as mãos uma
contra outra, espantando a gazela, que saltou e fugiu, passandolhe por cima da cabeça e desaparecendo no meio das árvores. O
rei se voltou para os guardas e viu que eles piscavam os olhos
uns para os outros, referindo-se a ele, o rei. Percebendo isso,
perguntou ao grão-vizir:
125
— Que têm os soldados?
O grão-vizir respondeu:
— Eles dizem que tu juraste matar quem quer que deixasse
escapar a gazela!
Falou o rei, em seguida:
— Pela minha cabeça, precisamos perseguir aquela gazela e
trazê-la de volta!
Começou a galopar, seguindo a pista do animal. Libertou o
falcão, incitando-o a perseguir a presa. O falcão rapidamente a
localizou e, num voo rasante e certeiro, atirou-se sobre a gazela,
enterrando-lhe o bico aguçado nos olhos, cegando-a. O rei
apanhou seu bastão e bateu no animal, fazendo-o rolar. Desceu
resolutamente, degolou-a, esfolou-a e prendeu a caça a sua sela.
Fazia calor e o local era árido e sem água. O rei teve sede e
cavalo também. Olhando ao redor, o monarca viu uma árvore de
onde escorria um líquido parecido com manteiga. O rei tinha a
mão coberta com uma luva de pele, onde pousava o falcão.
Apanhou a vasilha do pescoço da ave, encheu-a com aquele
líquido e colocou-a diante do falcão. Inesperadamente, o animal,
com um golpe de uma de suas garras, entornou-a. O rei apanhou
a taça pela segunda vez, encheu-a, imaginando que a ave
também tinha sede, mas o falcão, pela segunda vez, entornou-a.
O rei ficou enraivecido com o falcão e deu-lhe o líquido pela
terceira vez. O falcão novamente o entornou e o rei disse:
— Que Alá te enterre, ave infernal!
Dizendo isso, feriu o falcão com sua espada, cortando-lhe
as asas. O falcão ergueu a cabeça e sinalizou para o rei:
126
— Olha o que há sobre a árvore! — queria ele dizer.
O rei levantou a cabeça e viu uma serpente monstruosa na
árvore. O que escorria era seu veneno. O rei, arrependido de ter
cortado as asas do falcão, levantou-se, tornou a montar a cavalo
e partiu levando a gazela. Mandou o cozinheiro preparar a
gazela, depois se sentou em seu trono, tendo o falcão no punho.
Percebeu, então, que a luva que vestia estava empapada de
sangue. Imaginou que fosse da corça, mas, ao observar o falcão,
percebeu as penas coladas à pele pelo sangue que escorria dos
ferimentos.
— Meu amigo, você não pode morrer! — lamentou o rei,
apertando a ave junto ao peito.
O falcão, às portas da morte, apontou a taça que trazia ao
pescoço e fez sinais para que o rei a enchesse de vinho. Aflito, o
rei assim o fez, aproximando-a do bico da ave. Novamente o
falcão fez sinais, dando a entender ao rei que desejava que este
tomasse o primeiro gole. O rei o atendeu, bebendo um gole do
vinho, depois voltou a oferecer o vinho ao falcão, que soltou um
longo soluço e morreu. Vendo aquilo, o rei soltou gritos de luto e
aflição por ter matado o falcão que o salvara da morte. Sentiu um
aperto no coração, mas estava por demais concentrado em seu
sofrimento para perceber que o resto do veneno da serpente, que
ficara na taça, o estava matando.
127
A HISTÓRIA DA SULTANA E SUAS IRMÃS
CIUMENTAS
Era uma vez, no reino da Pérsia, um sultão chamado
Kosrouschah, que desde a sua juventude vestia um disfarce e
saía à procura de aventuras por todas as partes da cidade,
acompanhado por um de seus oficiais também disfarçado. Logo
após o sepultamento de seu pai e o encerramento das cerimônias
fúnebres, o jovem sultão despiu suas roupas de estado e chamou
seu grão-vizir para se preparar. Ambos vestiram roupas simples e
saíram como cidadãos comuns a caminhar pelas ruas menos
conhecidas da capital.
Passando por uma delas, o sultão ouviu vozes de mulheres
em discussão. Espiando por uma fresta da porta, ele viu três
irmãs sentadas em um sofá, em um grande corredor,
conversando de maneira muito decidida e séria. Prestando
atenção, percebeu que cada uma delas explicava com que tipo de
homem desejava se casar.
— Eu não preciso de nada melhor — disse a primogênita —
que ter o padeiro do sultão como marido. Pensem como seria
bom poder comer tudo que puder daquele pão delicioso que é
assado apenas para Sua Alteza. Quero ver se desejam mais do
que eu!
— Eu desejo — respondeu a segunda irmã. — Eu me
contentaria com o cozinheiro-chefe do sultão. Com que guisados
delicados eu me deliciaria! E como sei que todos comem bem
128
naquele palácio, seu desejo é uma ninharia. Veja você, minha
querida irmã, que meu gosto é tão bom ou melhor que o seu.
Era agora a vez da irmã mais jovem, sem dúvida a mais
bonita das três e, além disso, tinha mais juízo que as outras duas.
— Quanto a mim, — disse ela — gosto de voos altos e, se
tenho que desejar alguém para marido, por que não desejar o
próprio sultão para mim?
O sultão se divertiu tanto com aquela conversa que decidiu
satisfazer os desejos delas. Virando-se para o grão-vizir,
mandou-o tomar nota do endereço e, no dia seguinte, pela
manhã, levar as jovens à presença dele.
O grão-vizir cumpriu a missão. No dia seguinte, mal o dia
amanheceu, foi até a casa delas e ordenou que elas o seguissem
até o palácio, mal lhes dando tempo de mudar de roupas. Ali elas
foram apresentadas uma por uma e, quando se curvaram diante
do sultão, ele abruptamente lhes perguntou:
— Contem-me o que vocês desejaram ontem à noite,
quando conversavam. Não tenha medo e me respondam com
sinceridade!
Essas palavras tão inesperadas encheram de confusão as
irmãs, que abaixaram os olhos. O rubor nas faces da mais jovem
causou uma forte impressão no coração do sultão. As três
permaneceram em silêncio e ele insistiu:
— Não fiquem amedrontadas. Minha intenção não é outra
senão a de agradá-las. Eu sei o desejo que cada uma de vocês
formulou ontem à noite — acrescentou ele, voltando-se para a
mais jovem. — Você, que me desejou para marido, terá seu
129
desejo satisfeito hoje mesmo. Quanto a vocês — disse ele,
dirigindo-se às outras, — vão se casar com meu padeiro e com
meu cozinheiro-chefe.
Quando o Sultão terminou de falar, as irmãs se lançaram a
seus pés. A mais jovem falou com voz hesitante.
— Senhor, já que ouviu minhas tolas palavras, acredite, eu
imploro, foi apenas uma brincadeira! Não sou merecedora da
honra que me propõe. Só lhe peço que perdoe a minha ousadia!
As outras irmãs também tentaram se desculpar, mas o
Sultão não lhes deu ouvido.
— Não, não! — disse ele. — Minha decisão já foi tomada.
Vou satisfazer seus desejos.
O Ciúme das Irmãs e o Tormento da Sultana
Assim, os três casamentos foram celebrados naquele
mesmo dia, mas com diferença de magnificência. O da mais
jovem com o sultão foi marcado por toda a pompa habitual no
matrimônio de um Xá da Pérsia, enquanto as núpcias do padeiro
e do cozinheiro-chefe foram de acordo com as posições e
condições deles.
Isto, embora fosse bastante natural, considerando as
posições de um e outro, desagradou enormemente às irmãs mais
velhas que, tomadas pelo ciúme, acabaram causando muitas
dificuldades e sofrimentos a várias outras pessoas. Na primeira
vez em que tiveram a oportunidade de conversar, depois de
130
algum tempo, numa casa de banhos públicos, não conseguiram
disfarçar seus sentimentos.
— Você pode entender o que o Sultão viu naquela gatinha
insossa? — indagou a esposa do padeiro para a outra. — O que a
tornou tão fascinante aos olhos dele?
— Ele deve ser cego — devolveu a esposa do cozinheiro.
— Só porque ela era um pouco mais jovem do que nós? O que
importa isso? Você seria uma Sultana muito melhor que ela.
— Oh, não falo por mim — comentou a mais velha. — Se o
sultão tivesse escolhido você, tudo bem para mim. O que
lamento é que ele escolheu justamente aquela criaturinha
miserável para se apaixonar. Mas eu vou me vingar de alguma
maneira dela, por isso suplico que me ajude nisso. Conte-me
qualquer coisa que souber que possa perturbá-la ou mortificá-la.
— Conte comigo! — garantiu a outra.
Para levarem a cabo seus pérfidos propósitos, as duas
irmãos passaram a se encontrar com frequência, discutindo suas
ideias e seus planos. Enquanto isso, fingiam continuar tão
amigas como sempre foram da sultana. Esta, sem nada
desconfiar, sempre as tratou com generosidade. Por um longo
tempo, apesar de todos os planos e do ciúme das irmãs, nada
aconteceu, pois não viam surgir uma chance apropriada.
Finalmente, a expectativa do nascimento de um herdeiro do
sultão deu a elas a chance pela qual tinham estado esperando.
Eles obtiveram permissão do sultão para transferir seus
domicílios para o palácio sob o pretexto de assistir a irmã e
jamais saíam do lado dela fosse de dia, fosse de noite. Quando,
131
afinal, o menino nasceu bonito como o sol, elas o puseram num
berço e o levaram até um canal que passava próximo do palácio.
Então, deixando a criança entregue a seu próprio destino, elas
informaram o Sultão que em vez do filho que ele tanto desejava,
a Sultana tinha dado à luz um filhote de cachorro. Ao ouvir essa
terrível notícia, o sultão foi tomado de tanta ira e pesar que
somente com muita dificuldade o grão-vizir conseguiu salvar a
vida da sultana.
Enquanto isso, o berço continuou flutuando pacificamente
ao longo do canal, nos arredores dos jardins reais, até que, de
repente, foi visto pelo intendente, um dos cargos oficiais mais
altos e respeitados de todo o reino.
— Vá! — ordenou ele ao jardineiro que estava trabalhando
ali perto. — Apanhe aquele berço e o traga para mim!
O jardineiro fez como lhe havia sido ordenado e logo
colocou o berço nas mãos do intendente. O funcionário do reino
ficou muito surpreso ao ver que o berço que ele supunha estar
vazio continha um bebê que, embora recém-nascido, já dava
mostras de grande beleza. Não tendo nenhum filho, embora já
estivesse casado há alguns anos, ocorreu-lhe imediatamente ficar
com a criança como se fosse seu próprio filho. Pedindo silêncio
ao jardineiro, ele imediatamente levou o berço e a criança para
casa.
— Esposa! — exclamou ele, entrando no quarto. — O céu
nos tem negado filhos, mas aqui está uma criança que foi
enviada no lugar deles. Chame uma enfermeira. Eu farei o que é
publicamente necessário para reconhecê-lo como meu filho.
132
A esposa aceitou o bebê com alegria, imaginando que o
intendente sabia que o bebê viera de algum lugar do palácio, mas
não era obrigação dele investigar esse tipo de coisa.
No ano seguinte, outro príncipe nasceu e teve o mesmo
destino. Felizmente também para esse bebê, o intendente estava
caminhando nos jardins, ao longo do canal, viu-o, salvou-o e
levou-o para casa como o primeiro.
O sultão, naturalmente, ficou ainda mais furioso por
acontecer com o segundo filho o mesmo que ocorrera com o
primeiro. Quando o fato se repetiu pela terceira vez, no entanto,
ele não conseguiu se controlar, para alegria das irmãs ciumentas.
O sultão ordenou que a esposa fosse imediatamente executada.
Só que a infeliz sultana era muito amada por todos no reino e,
mesmo correndo o risco de compartilhar o mesmo destino dela, o
grão-vizir e os principais cortesãos se lançaram aos pés do
sultão, implorando que não infligisse o cruel castigo, já que,
afinal de contas, não era culpa dela.
— Deixa-a viver — pediu o grão-vizir. — Aplica-lhe uma
pena mais branda, banindo-a de tua presença pelo resto dos dias
dela.
A ira se abrandou e o sultão recuperou a calma.
— Sim, deixem-na viver então — ordenou ele. — Mas eu
concedo a vida a ela com a condição de que ela, ao fazer suas
preces diárias na mesquita, reze por sua morte. Construa uma
caixa na entrada, ao lado da porta, com uma janela
permanentemente aberta. Ali ela se sentará com suas roupas mais
grosseiras e todo muçulmano que entrar na mesquita cuspirá no
133
rosto dela ao passar. Qualquer um que se recusar a fazer isso terá
o mesmo castigo dela. Você, vizir, cuidará para que minhas
ordens sejam cumpridas.
O grão-vizir sabia que era inútil dizer mais e concordou.
Cheias de triunfo, as irmãs assistiram à construção da caixa,
depois ouviram com prazer a zombaria das pessoas, dirigidas à
impotente sultana no interior da caixa. Mas a pobre senhora agiu
com tanta paciência, dignidade e mansidão, que ganhou a
simpatia de todo mundo.
A Princesa Parizade
Enquanto isso, o terceiro bebê, uma princesa, da mesma
forma que seus irmãos teve também a sorte de ser encontrada
pelo intendente no canal ao lado do jardins, adotando-a. Os três
foram criados com todo cuidado e toda ternura.
Enquanto as crianças cresciam, a beleza delas e o ar de
distinção mais e mais se evidenciavam, revelando que se
tratavam de pessoas de berço nobre. O primeiro deles foi
chamado pelo pai adotivo de Bahman. O segundo, de Perviz,
nomes de dois reis antigos da Pérsia, enquanto a princesa foi
chamada de Parizade.
O intendente teve o cuidado de apresentá-los sempre como
seus próprios filhos, cuidando pessoalmente de sua educação.
Mais tarde, designou um tutor para ensinar à jovem princesa ler e
escrever. A jovenzinha, determinada a não ficar para trás,
mostrou que estava tão ansiosa para aprender com os irmãos dela
134
que o intendente consentiu que ela os acompanhasse. Logo ela
sabia tanto quanto eles.
Desde aquele tempo, todos seus estudos foram feitos em
comum. Eles tiveram os melhores mestres em belas artes,
geografia, poesia, história e ciência. Mesmo essa matéria, em
que poucos eram instruídos, parecia a eles tão fácil que seus
professores ficaram surpresos com o progresso feito. A princesa
demonstrou paixão pela música e aprendeu a tocar todos os tipos
de instrumentos. Também aprendeu a montar tão bem como seus
irmãos. Sabia usar o arco e a seta e atirar um dardo ou lança com
a mesma habilidade como eles e, às vezes, até melhor.
Para incentivar essas habilidades, o intendente resolveu que
seus filhos adotivos não mais deveriam ser limitados pelas
estreitas fronteiras do jardim do palácio, onde sempre tinham
vivido. Assim, comprou para uma esplêndida casa na zona rural,
não muito distante da capital, cercada por um imenso parque.
Esse parque ele encheu de animais selvagem de vários tipos, de
forma que os príncipes e a princesa podiam caçar como
gostavam de fazer.
Quando tudo estava pronto, o intendente se lançou aos pés
do sultão e, depois de se referir à idade dele e aos longos
serviços prestados, implorou permissão de Sua Alteza para
renunciar a seu posto. O sultão agradeceu com palavras corteses,
indagando que tipo de recompensa o criado desejava por ter
servido tão fielmente por tanto tempo. Agradecendo, o
intendente declarou que nada mais desejava que continuar
135
merecendo a consideração do sultão. Prostrando-se mais uma
vez, ele se retirou.
Cinco ou seis meses se passaram nos prazeres do campo,
quando a morte atacou o intendente tão de repente que ele não
teve nenhum tempo de revelar o segredo do nascimento às
crianças adotadas por ele. Como sua esposa já havia morrido
havia muito tempo, parecia que os príncipes e a princesa jamais
saberiam que tinham uma origem muito mais alta do que
imaginavam. O pesar pela morte do pai foi tão grande que eles
preferiram continuar morando na nova casa, sem nenhum desejo
de trocá-la pela corte e suas intrigas.
A Velha Peregrina e as Três Maravilhas
Um dia, quando os príncipes saíram para caçar como
sempre faziam, a irmã ficou a sós em seus aposentos. Enquanto
eles estavam fora, uma velha devota muçulmana surgiu à porta e
pediu licença para entrar, pois era a hora da oração. A princesa
imediatamente deu ordens para que a velha senhora fosse levada
ao oratório privado. Quando ela terminasse as orações, seriam
mostrados a casa e o jardim, depois ela seria conduzida diante da
princesa.
Embora a velha senhora fosse muito piedosa, não ficou de
todo indiferente à magnificência a seu redor. Depois de visitar e
admirar tudo que lhe foi mostrado, foi conduzida pelos criados
até a princesa, em um quarto que ultrapassava em esplendor todo
o resto.
136
— Minha boa mulher! — disse a princesa, apontando um
sofá. — Venha e se sente a meu lado. Estou encantada com a
oportunidade de estar por alguns momentos com pessoa tão
santa.
A velha senhora tentou contestar o elogio que a princesa
havia acabado de fazer, mas esta se recusou a ouvi-la, insistindo
que sua convidada deveria ficar confortável. Como julgou que
ela estiva cansada, ordenou que lhe servissem refresco e comida.
Enquanto a velha estava comendo, a princesa lhe fez diversas
perguntas sobre o modo dela de vida, os exercícios piedosos que
ela praticava. Finalmente, perguntou o que ela havia achado da
casa que acabara de visitar.
— Senhora! — respondeu a peregrina. — Seria preciso ser
muito rude para encontrar qualquer falta. É tudo muito bonito,
confortável e bem ordenado. É impossível imaginar qualquer
coisa mais adorável que o jardim. Mas, já que você me
perguntou, eu tenho que confessar que faltam três coisas para
torná-la perfeita.
— E quais podem ser elas? — suplicou a princesa. — Digame agora, para que eu as compre imediatamente.
— As três coisas, senhora, — respondeu a velha — são as
seguintes: a primeira é o Pássaro Falante, cuja voz puxa o canto
de todos os outros pássaros, unindo-os num único coro. A
segunda coisa é a Árvore Cantora, onde cada folha é uma canção
que nunca se cala. Finalmente, a última é a Água Dourada, da
qual só é necessário verter uma única gota em uma bacia para ela
se transformar numa fonte que jamais secará nem transbordará.
137
- Oh, como possa eu lhe agradecer? — perguntou a
princesa. — Você me revelou a existência de tesouros
inimagináveis. Por favor, eu imploro a sua bondade para que me
diga onde posso achar essas maravilhosas!
— Senhora, — respondeu a peregrina — eu seria indelicada
para com a gentil hospitalidade com que me receberam se me
recusasse a responder sua pergunta. As três coisas de que lhe
falei podem ser encontradas em um único lugar, na fronteira
deste país com a Índia. Só precisa mandar um mensageiro seu
seguir a estrada que passa por diante de sua casa durante vinte
dias e, ao término desse tempo, ele deve perguntar à primeira
pessoa que encontrar pelo Pássaro Falante, pela Árvore Cantora
e pela Água Dourada.
Ela se levantou, então, disse adeus para a princesa e saiu. A
velha partiu tão abruptamente que a princesa não percebeu, até
que ela realmente tivesse sumido de seus olhos. Como a noite
caíra, não havia como procurá-la. A jovem princesa estava
pensando em como seria maravilhoso possuir aquelas três
preciosidades, quando os príncipes, seus irmãos, voltaram da
caça.
— Qual o problema, irmã? — indagou o Príncipe Bahman.
— Por que está assim? Está doente? Aconteceu alguma coisa?
A Princesa Parizade não respondeu diretamente, mas o
brilho de seu olhar demonstrava que nada de mal havia ocorrido.
— Mas deve ter acontecido algo — insistiu o Príncipe. —
Você não pode ter mudado tanto durante nossa curta ausência.
Nada esconda de nós, eu lhe peço, minha irmã, a menos que
138
deseje que a confiança que sempre tivemos um no outro acabe
agora mesmo.
— Quando eu disse que não era nada, — explicou a
princesa, comovida com o interesse do irmão — eu quis dizer
que não era nada que nos afetasse, embora admita ser certamente
muito importante para mim. Como eu, você sempre pensou que
esta casa, que nosso pai construiu com tanto cuidado e tanta
preocupação, fosse perfeita para nós, mas só hoje eu soube que
há três coisas que faltam para completá-la. Essas coisas são o
Pássaro Falante, a Árvore Cantora e a Água Dourada.
Depois de explicar as peculiares qualidades de cada uma
das coisas, continuou a princesa:
— Foi uma muçulmana devota que me contou tudo isso,
bem como me indicou o local onde podem ser achadas. Talvez
você pense que a casa é bonita o bastante como está e que nós
podemos passar muito bem sem essas três coisas, mas nisso eu
não concordarei com você. Eu nunca serei feliz, enquanto não as
possuir. Assim, ajude-me, por favor, a escolher o mensageiro
certo para mandar nessa empreitada!
— Minha querida irmã! — exclamou o Príncipe Bahman —
O que disse é muito importante para você e, assim, passa
também a ser importante para nós, seus irmãos. Como seu irmão
mais velho, eu reivindico o direito de fazer a primeira tentativa,
se me disser que direção tomar e quais os passos que me levarão
a meu destino.
O Príncipe Perviz objetou imediatamente, dizendo que, por
ser o cabeça da família, seu irmão não deveria se expor ao
139
perigo, mas o Príncipe Bahman não lhe deu ouvidos e se
apressou em fazer os preparativos necessários para iniciar sua
viagem. Na manhã seguinte, Bahman se levantou muito cedo e,
após se despedir do irmão e da irmã, montou. No momento em
que estava prestes a tocar seu cavalo com o chicote, um grito da
princesa o impediu.
— Oh, talvez no fim de tudo você nunca possa voltar.
Acidentes podem acontecer numa viagem. Desista, por favor, eu
imploro. Prefiro perder mil vezes o Pássaro Falante, a Árvore
Cantora e a Água Dourada que deixar você ir de encontro ao
perigo.
— Minha querida irmã, — respondeu o príncipe —
acidentes só acontecem com pessoas azaradas e eu espero não
ser uma delas. Mas, como tudo é incerto, eu lhe prometo ter
muito cuidado. Fique com esta faca — pediu ele, prendendo a
bainha no cinto dela. — De vez em quando, tire-a e examine-a.
Enquanto ela se mantiver luminosa e limpa como está agora,
você saberá que eu estou vivo. Se a lâmina estiver manchada
com sangue, será o sinal de que eu estou morto e você lamentará
para mim.
Dizendo assim, Príncipe Bahman disse-lhes adeus mais
uma vez e galopou estrada a fora, montado em seu cavalo e
levando todas as suas armas.
O Velho Dervixe
140
Por vinte dias ele seguiu em frente sem se desviar para a
direita nem para a esquerda, até se encontrar na fronteira da
Pérsia com a Índia. Sentou-se sob uma árvore à beira do caminho
e esperou, até ver um homem velho e horroroso com um bigode
branco longo e uma barba que quase lhe chegava aos pés. Suas
unhas não eram cortadas havia muito tempo e estavam enormes.
Na cabeça usava um chapéu gigantesco, que lhe servia também
de guarda-chuva.
O Príncipe Bahman que, de acordo com as indicações da
velha senhora, tinha estado desde o amanhecer esperando,
reconheceu imediatamente o velho como sendo um dervixe, um
religioso muçulmano. Assim que ele desmontou do cavalo, o
jovem príncipe se curvou diante do homem santo, saudando-o:
— Meu pai, possam seus dias ser longos na terra e possam
todos os seus desejos ser realizados!
O dervixe fez o que pôde para responder, mas o bigode dele
era tão espesso que as palavras eram ininteligíveis. O príncipe
percebeu o problema, apanhou um par de tesouras na bolsa de
sua sela e pediu permissão para cortar alguns fios do bigode, pois
ele tinha uma questão de grande importância para perguntar ao
dervixe. O sinal de aprovação do dervixe indicou que aquilo o
agradava. Quando tinham sido podados alguns bons centímetros
da barba e do bigode, o príncipe notou que o homem santo não
parecia assim tão velho. O dervixe sorriu aos elogios dele e lhe
agradeceu o que ele tinha acabado de fazer.
141
— Deixe-me mostrar minha gratidão por tornar mais
confortável a minha vida dizendo o que posso fazer por você —
falou o dervixe.
— Bom dervixe, — respondeu o Príncipe Bahman —
venho de muito longe e procuro o Pássaro Falante, a Árvore
Cantora e a Água Dourada. Eu sei que eles serão achados em
algum lugar por estas partes, mas ignoro a exata localização.
Diga-me, eu lhe peço, se você pode, para que eu não me perca
em buscas inúteis.
Enquanto falava, o príncipe observou uma mudança no
semblante do dervixe, que esperou por algum tempo antes de
responder.
— Meu senhor, — disse ele afinal — eu sei qual é a estrada
que me pede, mas sua generosidade e a amizade que recebi de
você me fazem negar a mostrar-lhe qual é.
— Mas por quê? — quis saber o príncipe — Que perigo
pode haver lá?
— Talvez mesmo o maior de todos os perigos — respondeu
o dervixe. — Outros homens tão valentes quanto você trilharam
esta estrada, após me fazerem a mesma pergunta. Eu fiz de tudo
para demovê-los de seus propósitos, mas foi inútil. Nenhum
deles escutou minhas palavras e nenhum deles voltou. Fique
alerta e não siga em frente.
— Eu sinceramente agradeço seu interesse por mim, —
continuou o príncipe Bahman — mas não posso aceitar o
conselho que me deu. Diga-me, porém, que perigos pode haver
142
nessa aventura que a coragem e uma boa espada não possam
enfrentar?
— Imagine se seus inimigos fossem invisíveis, como seria
então? — argumentou o dervixe.
— Nada me deterá — afirmou corajosamente o príncipe. —
O tempo está passando, eu lhe peço que me mostre para onde
devo ir.
Quando o dervixe percebeu que o príncipe estava decidido a
seguir em frente, tirou uma bola de uma bolsa que trazia a
tiracolo e ofereceu-a ao príncipe.
— Se deve ser assim, — disse ele, com um suspiro — leve
isto e, quando montar seu cavalo, atire a bola a sua frente. Ela
rolará até alcançar o pé de uma montanha e parará. Quando isso
acontecer, você também vai parar. Lance a rédea no pescoço de
seu cavalo sem qualquer medo de que ele fuja e desmonte. Em
cada lado você verá vastos montes de enormes pedras negras e
ouvirá uma multidão de vozes gritando insultos, mas não lhes
preste atenção. E acima de tudo, previna-se de jamais se virar
para trás. Se fizer isso, você se tornará uma pedra negra
imediatamente como todo o resto. Na verdade, essas pedras são
homens como você, que foram em busca da mesma resposta e
falharam como eu temo que você também falhe. Se você
consegue evitar esta armadilha e alcançar o topo da montanha,
você achará o Pássaro Falante em uma gaiola esplêndida. Então
poderá perguntar a ele onde você deve procurar a Árvore
Cantora e a Água Dourada. Isso é tudo eu tenho para lhe dizer.
Você sabe o que tem de fazer e o que evitar, mas se você é sábio
143
vai pensar melhor sobre isso e retornar imediatamente para o
lugar de onde veio.
O príncipe sorridente balançou a cabeça, agradeceu e
montou seu cavalo, lançando a bola a sua frente. A bola rolou ao
longo da estrada tão depressa que o Príncipe Bahman teve muita
dificuldade para acompanhá-la, mas não desistiu um só instante,
até que o pé da montanha foi alcançado. Ela parou subitamente.
O príncipe desmontou e atirou a rédea no pescoço do cavalo.
Parou por instantes para olhar em volta e ver a massa de pedras
pretas nos dois lados da montanha. Em seguida começou a
escalar resolutamente. Mal havia dado quatro passos, quando
ouviu o som de vozes ao redor dele, embora nenhuma outra
criatura fosse avistada nos arredores.
— Quem é o imbecil? — gritou alguém. — Pare
imediatamente!
— Vamos matá-lo! — gritaram outras vozes.
— Socorro! Ajuda! Ladrões! Assassinos! Ajude! — ouviu
ele claramente alguém dizendo.
— Deixa ele! — zombou uma voz. — É um jovem tão
bonito, tenho certeza de que a gaiola e o pássaro estão reservados
a ele.
No início, o príncipe não deu nenhuma atenção a todo
aquele clamor, mas as vozes continuaram gritando tanto e o
insultando, como se seu silêncio mais e mais as irritasse. Novas
vozes surgiam e o clamor aumentava cada vez mais furioso e
ameaçador. Agora já não vinham dos lados, mas surgiam a sua
frente e atrás dele. Depois de algum tempo, ele ficou
144
desnorteado, seus joelhos começaram a tremer e, achando que
iria cair, esqueceu o conselho do dervixe. Ele se voltou para
enfrentar a queda da montanha e, no mesmo momento, se
transformou numa pedra negra.
O Rosário de Cem Pérolas
Como era de se esperar, o Príncipe Perviz e sua irmã
ficaram todo esse tempo na maior ansiedade, consultando a faca
mágica, não uma vez, mas muitas vezes por dia. Nesse período, a
lâmina permaneceu brilhante e imaculada, mas na hora fatal em
que o Príncipe Bahman e seu cavalo foram transformados em
pedras negras, grandes gotas de sangue surgiram na superfície.
— Ah, meu irmão amado! — gritou de horror a princesa,
atirando longe a faca. — Eu nunca mais o verei novamente e fui
eu quem o matou. Tola fui eu em ouvir a voz sedutora daquela
mulher. Provavelmente ela não falava a verdade. O que são o
Pássaro Falante, a Árvore Cantora e a Água Dourada em
comparação com você? Mas, desgraçadamente, eu ainda almejo
aquelas riquezas!
O pesar do Príncipe Perviz pela perda do irmão não era
menor que o da Princesa Parizade, mas ele não perdeu tempo em
lamentações inúteis.
— Minha irmã, por que a velha iria enganar você sobre
aqueles tesouros? O que teria ela a ganhar com isso? Não, não,
nosso irmão deve ter conhecido a morte por algum acidente ou
por falta de precaução. Amanhã mesmo partirei na mesma busca.
145
Terrificada com o pensamento de que ela poderia perder seu
último irmão, a princesa pediu para que ele desistisse de seu
intento, mas ele permaneceu firme em sua decisão. Antes de
partir, porém, ele deu a ela um rosário de orações de cem
pérolas, dizendo:
— Quando eu estiver ausente, conte-as diariamente. Se
você sentir que as contas estão fixas de forma que uma não
deslize depois da outra, você saberá que tive o mesmo destino de
nosso irmão. Mas vamos esperar melhor sorte, minha querida
irmã.
Então ele partiu e no vigésimo dia de sua jornada, ele se
encontrou com o dervixe no mesmo local que o Príncipe Bahman
o tinha conhecido e começou a questionar sobre o lugar onde o
Pássaro Falante, a Árvore Cantora e a Água Dourada seriam
achadas. Como no caso de seu irmão, o dervixe tentou dissuadilo de seu projeto e até mesmo lhe falou que só faziam algumas
semanas desde que um jovem muito parecido com ele tinha
passado por ali, mas jamais voltara.
— Santo dervixe, — respondeu o príncipe — era meu
irmão mais velho que agora está morto, mas não sei como ele
morreu.
— Ele foi transformado em uma pedra preta — respondeu o
dervixe — como todos os outros antes dele. Você fatalmente
será mais um, se não seguir fielmente minhas instruções.
Então ele instruiu o príncipe como ele deveria se cuidar e
não olhar para trás de forma alguma quando surgissem as vozes.
Depois lhe deu uma bola de sua bolsa e se despediu dele.
146
Quando o Príncipe Perviz alcançou o pé da montanha, saltou do
cavalo e parou por um momento para recordar as instruções que
o dervixe tinha dado. Então começou a escalar corajosamente,
mas mal havia dado cinco ou seis passos, foi surpreendido pela
voz de um homem perto da orelha dele, que exclamou:
— Pare, precipitado, e me deixe castigar sua audácia!
Esta afronta o fez esquecer completamente o conselho do
dervixe. Ele puxou a espada e se virou para se vingar, mas antes
que tivesse percebido que não havia ninguém lá, ele e seu cavalo
foram transformados em duas pedras pretas.
Não passava uma manhã, desde que o Príncipe Perviz tinha
partido, sem que a Princesa Parizade manuseasse as contas. À
noite, ela dormia com ele ao redor do pescoço de forma que
assim que despertasse podia verificar se o seu irmão estava em
segurança. Estava em pleno ato de mover as contas pelos dedos,
no exato momento em que o príncipe tombou vítima de sua
própria impaciência. O coração da jovem bateu doloridamente
quando a pérola seguinte ficou imóvel em seu lugar. Ela soube,
então, que seu último irmão estava morto.
Após meditar por todo o dia, lamentando a morte de mais
um irmão, a princesa tomou uma decisão e, na manhã seguinte,
disfarçada como homem, partiu para sua busca. Como tinha sido
criada acostumada a montar desde sua infância, pôde viajar
diariamente como seus irmãos tinham feito. Como eles, no
vigésimo dia chegou ao lugar, encontrando o dervixe sentando
sob a árvore.
147
— Bom dervixe, — disse ela educadamente — você me
permite descansar com você para alguns momentos. E talvez seja
tão amável que me fale se alguma vez ouviu falar de um Pássaro
Falante, de uma Árvore Cantora e de uma Água Dourada.
Saberia, por acaso, onde poderiam ser encontrados?
— Senhora, — respondeu o dervixe — sua voz a traiu,
apesar das roupas de homem. Ficarei orgulhoso se puder lhe
servir de alguma forma. Mas posso perguntar o propósito de sua
pergunta?
— Bom dervixe, — respondeu a princesa — eu ouvi a
descrição dessas maravilhas e não descansarei até possuí-las.
— Senhora, com certeza foi uma descrição das mais
bonitas, mas você parece ignorar todas as dificuldades senão já
teria desistido. Desista, por favor, eu lhe peço, e retorne para sua
casa. Não me peça que a ajude a rumar para a morte certa.
— Pai santo, — respondeu a princesa — eu venho de muito
longe e cairia em desespero se retrocedesse sem ter atingido meu
objetivo. Você falou de dificuldades. Conte-me quais são para
que eu saiba se posso superá-las ou se estão além de minhas
forças.
Assim o dervixe repetiu suas orientações, enfatizando
firmemente sobre o clamor das vozes, os horrores das pedras
negras em que se transformaram os homens e as dificuldades de
escalar a montanha. Mostrou como ter sucesso se nunca olhasse
para trás até que apanhasse a gaiola.
— Até onde eu posso ver, — disse a princesa — a primeira
coisa é não prestar atenção ao tumulto das vozes que me
148
perseguirão até alcançar a gaiola e nunca olhar para trás. Sobre
isto, penso ter bastante autocontrole para olhar diretamente a
minha frente, mas, como é possível que eu possa ficar assustada
pelas vozes como os homens antes de mim o foram, eu tamparei
minhas orelhas com algodão, de forma que, mesmo que eles
façam o maior dos alaridos, eu nada ouça.
— Senhora! — exclamou o dervixe. — De todos os que me
perguntaram como chegar ao alto da montanha, você é a
primeira que se previne, pensando numa forma de escapar do
perigo! É possível que você possa ter sucesso, mas, mesmo
assim, tenha em mente sempre que o risco é grande.
— Meu bom dervixe, — acrescentou a princesa — eu sinto
que terei sucesso e só me resta perguntar o modo como chegar
lá.
Então o dervixe viu que era inútil dizer qualquer outra coisa
e lhe deu a bola que ela arremessou a sua frente. A primeira
coisa que a princesa fez em chegar ao pé da montanha foi tapar
os ouvidos com algodão. Assim que decidiu qual a melhor
maneira de escalar a montanha, começou sua ascensão. Apesar
do algodão, um pouco do eco das vozes chegava até seus
ouvidos, mas não era suficientemente alto para incomodá-la.
Elas cresceram mais e mais, insultando-a o mais alto que
podiam, mas princesa ria e continuava sua escalada, dizendo que
jamais deixaria que algumas palavras ásperas se pusessem entre
ela e sua meta.
149
O Pássaro Falante
Finalmente, ela percebeu a gaiola e o pássaro, cuja voz se
uniu às vozes que ficavam para trás, ordenando:
— Retorne, retorne! Não ouse se aproximar de mim.
À vista do pássaro, a princesa acelerou seus passos e, sem
se importar com o clamor que se tornara ensurdecedor, ela
caminhou diretamente até a gaiola e, segurando-a, disse:
— Agora, meu pássaro, eu o tenho e tomarei o maior
cuidado para que não me escape.
Assim que ela falou, retirou o algodão das orelhas, porque
já não mais precisava disso.
— Valente senhora, — falou o pássaro — não me culpe por
ter me juntado às vozes que gritavam, mas fiz isso para preservar
minha liberdade. Embora limitado em uma gaiola, estava
contente com meu destino, mas se devo me tornam um escravo,
não poderia desejar como ama alguém mais nobre e constante.
De agora em diante, eu a servirei doce e fielmente. Algum dia
você me porá a prova, porque eu sei quem é você melhor do que
si mesma. Enquanto isso, conte-me o que posso fazer por você e
eu a obedecerei.
— Pássaro! — respondeu a princesa, cheia de uma alegria
que lhe parecia estranha quando pensava que o pássaro tinha
custado as vidas de seus dois irmãos. — Pássaro, deixe-me
primeiro lhe agradecer por sua boa vontade, depois me deixe
perguntar onde encontrar a Água Dourada.
150
O pássaro descreveu o lugar, que não era distante. A
princesa foi até lá e encheu um pequeno frasco prateado que
tinha trazido para esse propósito. Ela retornou à gaiola e
indagou:
— Pássaro, ainda há outra coisa: onde poderei encontrar a
Árvore Cantora?
— Atrás de você, naquele bosque — respondeu o pássaro e
a princesa caminhou naquela direção, procurando pelo som mais
doce que já havia escutado, até encontrá-la. Só que a árvore era
alta e forte e ela ficou desesperada, pensando em como levá-la
consigo.
— Você não precisa arrancá-la — disse o pássaro, quando
ela retornou. — Tire apenas um galho e o plante em seu jardim.
Ele criará raízes e crescerá até se tornar uma árvore magnífica.
Quando a Princesa Parizade teve em suas mãos as três
maravilhas prometidas pela velha senhora, disse ao pássaro:
— Tudo isso não é o bastante. Por causa de vocês, meus
irmãos se transformaram em pedras negras. Eu não posso
distingui-los das outras pedras, mas você deve saber e pode me
indicar. Eu imploro, diga-me onde eles estão, pois desejo leválos comigo.
Por alguma razão que a princesa não soube, suas palavras
pareceram desagradar o pássaro e ele não respondeu. A princesa
esperou alguns momentos, depois retornou em tom severo.
— Você se esqueceu de que disse que seria meu escravo
para fazer minha vontade e também que sua vida está em meu
poder?
151
— Não, eu não esqueci, — respondeu o pássaro — mas o
que me pede é muito difícil. Porém, eu farei o melhor que puder.
Se você olhar ao redor, verá um jarro aqui perto. Leve-o e,
quanto descer a montanha, esparrame um pouco da água nele
contida por sobre as pedras negras e logo achará seus irmãos.
A Princesa Parizade levou o jarro junto com a gaiola, o
ramo e o frasco, descendo a montanha. Foi parando em toda
pedra negra e borrifando-a com a água do jarro. As pedras que
ela ia molhando imediatamente se transformavam em um
homem. Quando ela teve seus irmãos diante de si finalmente, foi
tomada pela emoção.
— O que houve com vocês? — soluçou ela.
— Nós estávamos adormecidos — responderam eles.
— Com certeza, mas sem mim o sono de vocês duraria até
o dia do julgamento final. Já se esqueceram de que vieram aqui à
procura do Pássaro Falante, da Árvore Cantora e da Água
Dourada e encontraram as pedras negras ao longo da escalada?
Olhem em volta e vejam se alguma delas ficou. Esses
cavalheiros e também vocês e todos os seus cavalos foram
transformados em pedras e eu os salvei, borrifando-os com a
água deste jarro. Como eu não poderia voltar para casa sem
você, embora eu tivesse conquistado os prêmios nos quais eu
tinha fixado meu coração, eu forcei o Pássaro Falante a me
contar como quebrar o feitiço.
Ao ouvir essas palavras, os dois príncipes compreenderam
que deviam suas vidas à irmã. Os cavaleiros que estavam ali
também sentiam isso e declararam-se escravos dela, prontos para
152
realizar qualquer desejo seu. A princesa agradeceu a cortesia e
explicou que desejava apenas a companhia de seus irmãos e que
todos os outros estavam livres para voltar para suas casas.
Terminando de dizer isso, a princesa montou seu cavalo.
Recusando a oferta do Príncipe Bahman de levar a gaiola com o
Pássaro Falante, ela lhe confiou o ramo da Árvore Cantora,
enquanto o Príncipe Perviz ficou encarregado de levar o frasco
que continha a Água Dourada. Então eles partiram, seguidos
pelos cavaleiros que imploraram permissão para escoltá-los.
Era intenção deles parar e contar suas aventuras ao dervixe,
mas descobriram que ele estava morto, talvez pela idade
avançada, talvez pelo fato de ter encerrado sua tarefa. Isso eles
jamais saberiam. Seguiram seu caminho e o número deles foi
diminuindo cada vez mais, pois os cavaleiros partiam quando se
aproximavam de suas próprias casas. Finalmente, restaram
apenas os irmãos, que chegaram aos portões da casa. A princesa
levou a gaiola imediatamente para o jardim e tão logo o pássaro
começou a cantar, rouxinóis, cotovias, tordos e todos os tipos de
pássaros entrosaram suas vozes à dele em um coro maravilhoso.
O galho da árvore foi plantado em um canto perto da casa e em
poucos dias tinha crescido e se transformado numa enorme
árvore. A Água Dourada foi vertida numa grande bacia de
mármore especialmente preparada para isso. A água aumentou,
borbulhou e então se atirou para cima alguns metros, formando
uma linda fonte. A fama dessas maravilhas logo se esparramou e
de todas as partes vinham pessoas para vê-las e admirá-las.
153
O Encontro com o Sultão
Depois de alguns dias, o Príncipe Bahman e o Príncipe
Perviz voltaram ao seu modo normal de vida, passando a maior
parte do tempo caçando. Um dia, aconteceu que o Sultão de
Pérsia também estava caçando na mesma região. Não desejando
interferir com o esporte dele, os jovens, ao ouvir o ruído dos
caçadores se aproximando, trataram de se retirar, mas acabaram
tomando o mesmo caminho da comitiva do sultão.
Repentinamente, eles se viram frente a frente com o monarca.
Vendo quem era o cavaleiro que vinha à frente, os dois irmãos
saltaram dos cavalos e se prostraram diante de seu rei. O sultão
ficou curioso ao ver as faces deles e ordenou que se levantassem.
Os príncipes se levantavam respeitosamente, mas totalmente à
vontade. O sultão os olhou para alguns momentos sem nada
dizer, depois lhes perguntou quem eram eles e onde viviam.
— Senhor, — respondeu o Príncipe Bahman — nós somos
os filhos do intendente anterior dos jardins de Sua Alteza e
moramos em uma casa que ele construiu antes de sua morte,
esperando até que ocasionalmente pudesse voltar a servir Sua
Alteza.
— Parecem apaixonados pelas caça — observou o sultão.
— Senhor, — disse o Príncipe Bahman — é nosso exercício
habitual e uma atividade que não deveria ser negligenciada por
nenhum homem que espera seguir os costumes antigos do reino e
manejar armas.
154
O Sultão ficou encantado com essa observação e disse
imediatamente:
— Nesse caso, terei grande prazer em acompanhá-los.
Venham, escolham que tipo de bestas gostariam de caçar.
Os príncipes montaram seus cavalos e seguiram o sultão.
Não tinham ido muito distante, quando viram vários animais
selvagens aparecer. Imediatamente o Príncipe Bahman começou
a perseguir um leão e Príncipe Perviz, um urso. Ambos usaram
suas lanças com tal habilidade que, com arremessos certeiros a
uma distância considerável, eles derrubaram o leão e o urso.
Então o Príncipe Perviz procurou um leão e o Príncipe Bahman
um urso e, em alguns minutos, perseguiram-nos e os mataram da
mesma forma. Quando estavam se preparando para uma terceira
arremetida, o sultão interferiu e enviou um dos funcionários dele
para chamá-los. Disse-lhes sorrindo:
— Se eu os deixar continuar, logo não restará nenhuma fera
para ser caçada. Sua coragem e seus modos ganharam meu
coração. Assim como eu, vocês não têm de se arriscar e avançar
para o perigo. Estou convencido de que algum dia ou outro eu
acharei utilidade para isso.
Ele os convidou calorosamente a permanecer na sua
comitiva, mas eles agradeceram a honra e imploraram suas
desculpas, aceitando ser hóspede deles. O Sultão, que não estava
acostumado a ter seus convites rejeitados, pediu que eles
explicassem o motivo da recusa. O Príncipe Bahman explicou
que eles não desejam deixar a irmã sozinha e que estavam
155
habituados a nada fazer, sem que todos os três fossem
consultados.
— Perguntem a ela, então, — disse o sultão — e amanhã,
quando eu voltar a caçar aqui, venham me dar sua resposta.
Os dois príncipes voltaram para casa, mas a aventura
causou tão pálida impressão em seus espíritos que eles se
esqueceram completamente de comentar o assunto com a irmã.
No dia seguinte, quando foram caçar, encontraram o sultão no
mesmo lugar e ele lhes indagou qual havia sido a opinião da irmã
deles. Os jovens olharam um para o outro e ruborizaram.
Finalmente, depois de um silêncio constrangedor, o Príncipe
Bahman disse:
— Majestade, nós temos que suplicar a clemência de Sua
Alteza. Nem meu irmão nem eu nos lembramos de comentar o
assunto com ela.
— Então seguramente vocês não se esquecerão de fazer isso
hoje e de me trazerem a resposta amanhã — falou o sultão.
Porém, quando a mesma coisa aconteceu uma segunda vez,
eles temerem que o sultão pudesse se enfurecer com o descuido
deles. Mas ele relevou isso e, tirando três pequenas bolas de ouro
de sua bolsa, entregou-as ao Príncipe Bahman, dizendo:
— Coloque-as dentro de sua camisa e você não esquecerá
pela terceira vez. Quando remover seu cinto, as bolas cairão e
seu ruído o fará lembrar-se de meu pedido.
Tudo aconteceu como o Sultão tinha previsto e os dois
irmãos foram até o quarto da irmã, no momento em que ela se
156
preparava para dormir. Eles contaram tudo que havia acontecido.
A Princesa Parizade ficou muito preocupada com as notícias:
— Seu encontro com o Sultão foi uma honraria muito
grande para vocês — disse ela — e irá, ouso dizer, ser muito
proveitosa para vocês, mesmo me colocando numa posição
incômoda. Importo-me muito com vocês, mas sei que resistiram
aos pedidos do sultão por minha causa. Eu lhes sou muito grata
por isso, mas os reis não gostam de ter seus pedidos recusados e,
com o tempo, poderia ter rancor de vocês e isso me faria muito
infeliz. Consultem o Pássaro Falante, que é sábio e enxerga
longe, e vamos ver o que ele nos diz. Assim, o pássaro foi
chamado e o caso apresentado a ele.
— Os príncipes não devem, em hipótese alguma, recusar a
proposta do Sultão — aconselhou ele — e até mesmo devem
convidá-lo para vir até esta casa.
— Mas, pássaro, — objetou a princesa — você sabe como
afetuosamente nós nos amamos. Tudo isso não acabará
deteriorando a nossa amizade?
— Não! — respondeu o pássaro. — Vai torná-los mais
íntimos.
— Então o sultão terá que me ver — disse a princesa.
O pássaro respondeu que era necessário que ele a visse e a
conhecesse e que tudo se tornaria melhor ainda. Assim, na
manhã seguinte, quando o Sultão inquiriu se eles tinham falado
com a irmã e que resposta ela lhes tinha dado, o Príncipe
Bahman respondeu que eles estavam prontos para acatar o
157
convite de Sua Alteza e que a irmã os havia reprovado pela
hesitação deles.
O Sultão recebeu as explicações com grande generosidade e
lhes falou que ele estava seguro de que os jovens lhe seriam fiéis
e prometeu mantê-los a seu lado pelo resto de seus dias, para
aflição do grão-vizir e do resto da corte. Quando o séquito entrou
pelos portões da capital, os olhos das pessoas que se
aglomeraram nas ruas estavam fixos nos dois jovens, estranhos
para todos.
— Oh, quem dera que o sultão tivesse tido filhos assim! —
murmuraram. — Eles parecem tão distintos e têm a mesma idade
que os filhos dele teriam.
O Sultão ordenou que aposentos esplêndidos fossem
preparados para os dois irmãos, depois insistiu para que eles se
sentassem à mesa com ele. Durante o jantar, ele conduziu a
conversa sobre vários assuntos científicos e também para a
história, da qual era particularmente aficionado. Mas, qualquer
que fosse o tópico que discutissem, percebeu que os jovens
falavam apropriadamente e que todos se calavam para ouvi-los.
“Se eles fossem meus próprios filhos”, pensou ele, “não
poderiam ser mais ou melhor educados!” Em voz alta, elogiou o
aprendizado deles e sua prova de conhecimento.
Ao término da noite, os príncipes se prostraram mais uma
vez diante do trono e pediram licença para voltar para casa.
Depois, encorajados pelas palavras corteses de despedida
articuladas pelo sultão, o Príncipe Bahman ousou dizer:
158
— Senhor, podemos ousar ter a liberdade de perguntar se
Sua Alteza nos daria e a nossa irmã a honra de descansar em
nossa casa na próxima vez em que for caçar naquela região?
— Com o máximo prazer! — respondeu o Sultão. — E
como estou impaciente para conhecer sua sábia irmã, podem me
esperar para depois de amanhã.
Pepinos Com Pérolas
A princesa estava muito ansiosa e sabia que tinha de
receber o sultão de modo apropriado. Como não tinha nenhuma
experiência nos costumes da corte, recorreu ao Pássaro Falante e
implorou que ele a aconselhasse sobre que pratos deveriam ser
servidos.
— Minha querida ama, — respondeu o pássaro — seus
cozinheiros são muito bons e você pode deixar tudo por conta
deles, exceto ter o cuidado de mandar preparar uma receita de
pepinos recheados com molho de pérolas, servida com o
primeiro prato.
— Pepinos recheados com pérolas! — exclamou a princesa.
— Por que, pássaro? Quem já ouviu falar de tal prato? O sultão
espera um jantar onde ele possa comer e não um onde ele só
possa admirar a comida. Além disso, se eu fosse usar todas as
pérolas que possuo, elas não seriam o bastante.
— Ama, faça o que lhe digo e tudo sairá bem. Quanto às
pérolas, amanhã ao amanhecer, vá até o jardim e cave ao pé da
primeira árvore à direita. Ali achará tantas quantas você precisar.
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A princesa teve fé no pássaro que sempre provara estar
certo em seus conselhos. Na manhã seguinte, seguida por um
jardineiro, ela seguiu as instruções do pássaro e mandou o
empregado cavar ao pé da árvore indicada. Após cavar algum
tempo, ele retirou dali uma caixa dourada, cuja tampa estava
presa por alguns fechos. Estes estavam tão estragados que
facilmente se abriram. A caixa estava cheia de pérolas não muito
grandes, mas de bom formato e perfeitas na cor. Deixando o
jardineiro enchendo o buraco que havia feito sob a árvore, a
princesa levou a caixa para casa. Os dois príncipes a tinham visto
sair e estavam ansiosos para saber o que a fizera se levantar tão
cedo. Cheios de curiosidade, eles se levantaram, vestiram-se e
foram ao encontro da irmã que retornava com a caixa.
— O que você andou fazendo? — perguntaram eles. — Os
criados estão comentando que o jardineiro encontrou um tesouro.
— Pelo contrário, — respondeu a princesa — fui eu que
achei um — acrescentou, abrindo a caixa e lhes mostrando as
pérolas.
Então, ela lhes contou que havia consultado o pássaro a
respeito dos costumes da corte e em como ele a aconselhara e
ainda a ajudara a encontrar as pérolas. Os três juntos tentaram
adivinhar o significado daquela sugestão tão singular, mas foram
afinal forçados a admitir que a explicação estava além deles, mas
que deveriam obedecer cegamente. Então, a primeira coisa que a
princesa fez em seguida foi mandar cozinheiro-chefe preparar a
refeição para o sultão. Quando ela terminou, acrescentou a
seguinte ordem:
160
— Além dos pratos que eu mencionei, há um que você tem
que preparar expressamente para o sultão e no qual pessoa
nenhuma poderá tocar, além de você. Consiste em um pepino
recheado e o recheio será feito com estas pérolas.
O cozinheiro-chefe, que nunca em sua vida e com toda a
sua experiência ouvira falar de tal prato, recuou assombrado.
— Você pensa que eu estou louca? — indagou a princesa,
ao perceber o que se passava na mente dele. — Sei muito bem o
que estou fazendo. Vá e dê o melhor de si. Leve as pérolas com
você.
Naquela mesma manhã, os príncipes foram para a floresta e
logo se juntaram ao sultão. A caçada começou e continuou até o
meio-dia, quando o calor ficou tão forte que foram obrigados a
parar. Então, como haviam combinado, eles rumaram para a casa
dos irmãos. Enquanto o Príncipe Bahman permanecia ao lado do
sultão, o Príncipe Perviz se adiantou para avisar sua irmã. No
momento em que Sua Alteza entrou no pátio, a princesa se atirou
aos pés dele, mas ele se curvou e a ergueu, contemplando-a por
algum tempo, cativado pela graça e pela beleza dela e também
por aquele indefinível ar de realeza que parecia emanar do corpo
daquela menina do campo. “Eles são tão dignos, tanto um como
outro, e tão unidos”, pensou ele, “que não fico surpreso pelo fato
de os dois darem tanta importância às opiniões dela. Eu tenho
que saber mais sobre eles.”
Passado o constrangimento inicial, a princesa se recuperou
e tratou de fazer seu discurso de boas vindas.
161
— Esta é só uma casa do campo, simples, senhor, — disse
ela — adequada a pessoas que, como nós, apreciam a vida calma
e a quietude. Não se compara com as grandes mansões da
capital, muito menos, é claro, com o menor dos palácios do
sultão.
— Eu não posso concordar totalmente com você, —
respondeu ele — pois o pouco que vi já me causou grande
admiração. Reservarei meu julgamento para depois que você me
mostrar toda a casa.
A princesa conduziu o sultão ao quarto de hóspede e, após
examinar tudo cuidadosamente, ele disse:
— Você chama esta uma casa rural simples? Se toda casa
rural fosse assim, as cidades seriam logo abandonadas. Eu
entendo agora porque seus irmãos evitam deixá-la. Mas vamos
agora conhecer o jardim. Estou certo que deve ser ainda mais
bonito que os aposentos desta casa maravilhosa.
Uma porta se abriu diretamente para o jardim e a primeira
coisa que os olhos do sultão viram foi a Água Dourada.
— Que água de cor tão adorável! — exclamou ele. — Onde
é a fonte e como você a faz subir tão alto? Jamais vi qualquer
coisa como isto em todo a minha vida — acrescentou,
examinando de perto.
Quando satisfez sua curiosidade, a princesa o levou até a
Árvore Cantora. Próximo dela, o sultão foi surpreendido pelo
som de estranhas vozes, mas não podia ver nada.
— Onde estão os músicos escondidos? — ele quis saber,
dirigindo-se à princesa. — Estão no ar, debaixo da terra?
162
Seguramente os donos de vozes tão encantadoras não precisam
se esconder!
— Senhor, — informou ela — as vozes vêm da árvore que
vê a sua frente. Se caminhar um pouco mais até ela, verá que as
vozes ficam mais claras.
O Sultão fez como ela lhe falou e, absorto e deliciado, ficou
algum tempo em silêncio, ouvindo.
— Diga-me, senhora, — disse ele, afinal — como uma
árvore tão maravilhosa veio parar em jardim? Deve ter vindo de
muito longe, pois estudioso como sou a respeito de todo tipo de
curiosidade, eu já teria ouvido falar dela. Diga-me, como a
chama?
— O único nome que ela tem, senhor, é a Árvore Cantora.
Não é uma planta nativa de nosso país. Sua história está
misturada com as da Água Dourada e do Pássaro Falante, que
não viu ainda. Se Sua Alteza assim o desejar, eu lhe contarei a
história inteira, quando se recuperar de sua fadiga.
— Realmente, senhora, — devolveu ele — você me
mostrou tantas maravilhas que é impossível sentir qualquer
fadiga. Deixe-me ir olhar mais uma vez a Água Dourada, depois
quero conhecer o Pássaro Falante.
O sultão não conseguia se afastar da Água Dourada, que o
instigava cada vez mais.
— Você diz que esta água não vem de qualquer fonte nem é
trazida através de tubos? Tudo que eu sei que nem ela nem a
Árvore Cantora são deste país.
163
— É como diz, senhor — respondeu a princesa. — Se
examinar a bacia, verá que é feita em uma peça única, sem
ligação com tubos. Ficará ainda mais surpreso ao saber que eu
apenas esvaziei um pequeno frasco na bacia e o conteúdo dela
aumentou na quantidade que vê agora.
— Bem, eu voltarei a examinar isso outro dia. Leve-me
agora ao Pássaro Falante — pediu ele.
Ao se aproximar da casa, o Sultão notou uma quantidade
enorme de pássaros cujas vozes enchiam o ar. Quis saber logo
por que eram tão numerosos ali do que em qualquer outra parte
do jardim.
— Senhor, vê aquela gaiola numa das janelas do salão? Ali
está o Pássaro Falante cuja voz pode ouvir acima de todas as
outras, mesmo acima da voz do rouxinol. Os pássaros se
aglomeram neste lugar para somar suas vozes à dele, num coro
único e maravilhoso.
O Sultão caminhou até a janela, mas o pássaro não lhe deu
atenção e continuou sua canção como antes.
— Meu escravo, — disse a princesa — este é o Sultão.
Faça-lhe um belo discurso.
O pássaro parou de cantar imediatamente e todos os outros
pássaros também pararam.
— Seja bem vindo, ó sultão! — disse o Pássaro Falante. —
Eu lhe desejo vida longa e toda prosperidade.
— Eu agradeço você, bom pássaro — respondeu o sultão,
sentando-se para comer a uma mesa que fora arrumada perto
164
daquela janela. — Eu estou encantado em conhecê-lo, Rei dos
Pássaros.
O Sultão, notando que seu prato favorito de pepino fora
servido diante dele, preparou-se para comê-lo, mas ficou pasmo
ao descobrir que estava recheado de pérolas.
— Uma novidade, realmente! — exclamou ele. — Mas eu
não entendo a razão disto. Uma pessoa não pode comer pérolas!
— Senhor — disse o pássaro, antes que os príncipes ou a
princesa pudessem falar. — Seguramente não pode ficar
surpreendido assim diante de um pepino recheado de pérolas,
quando acreditou sem nenhuma dificuldade que a Sultana tinha,
em vez de crianças, dado à luz um cachorro, um gato e um
tronco de madeira.
— Eu acreditei, — respondeu o Sultão — porque as
mulheres que a atenderam assim me falaram.
— Essas mulheres eram as irmãs da Sultana, consumidas
pelo ciúme, pela honra concedida à irmã mais nova. Para se
vingar, inventaram essa farsa. Interrogue-as duramente e elas
confessarão o crime. Estes são seus filhos, salvos da morte pelo
intendente de seus jardins e criados por ele como se fossem seus
próprios filhos.
Como um relâmpago, a verdade veio à mente do Sultão.
— Pássaro, — gritou o sultão, arrependido — meu coração
me fala que o que você diz é verdade. Meus filhos, —
acrescentou ele — abracem-me e abracem-se, não só como
irmãos e irmã, mas como tendo em vocês o sangue real da Pérsia
que não poderia fluir em veias mais nobres.
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Quando os primeiros momentos de emoção terminaram, o
sultão, tendo terminado sua refeição, virou-se para seus filhos e
disse:
— Hoje vocês me receberam como seu pai. Amanhã eu vou
trazer a sultana. Estejam prontos para receber sua verdadeira
mãe.
O Sultão montou seu cavalo e galopou rapidamente para a
capital. Sem demora alguma, enviou seu grão-vizir, ordenandolhe que interrogasse as irmãs da sultana. Isso foi feito naquele
mesmo dia. As duas pérfidas irmãs foram confrontadas e
interrogadas e, quando a culpa ficou provada, foram executadas.
O sultão não esperou para ver se suas ordens eram cumpridas.
Saiu imediatamente e caminhou até a grande mesquita,
libertando pessoalmente a sultana da prisão estreita onde ela
tinha passado tantos anos.
— Senhora! — soluçou ele, chorando e abraçando-a com
lágrimas de arrependimento nos olhos. — Eu vim pedir seu
perdão pela injustiça que cometi e consertar meu erro na medida
do possível. Eu já comecei por punir as responsáveis por esse
crime abominável e espero que você me perdoe, quando eu a
apresentar a nossos filhos. Eles são as criaturas mais
encantadoras do mundo inteiro. Venha e terá de volta sua
posição e toda a honra que lhe é devida.
Essa promessa foi dita na presença de uma enorme multidão
que tinha se juntado, unindo pessoas de todas as partes da
cidade, tão logo a notícia do que estava acontecendo fora
passada de boca a boca. No dia seguinte bem cedo, o sultão e a
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sultana vestidos com suas roupas reais e seguidos por toda a
corte partiram para a casa de campo onde moravam seus filhos.
Ali, o sultão os apresentou à sultana, um por um, e durante
algum tempo nada mais fizeram que se abraçar, chorar e
murmurar palavras de ternura. Depois eles comeram uma
refeição magnífica que havia sido preparada para eles e, em
seguida, foram se refrescar no jardim, onde o sultão mostrou a
sua esposa a Água Dourada e a Árvore Cantora. Com o Pássaro
Falante, ela havia travado relações durante o almoço.
À noite, eles montaram e viajaram juntos para a capital,
cada príncipe de um lado do pai e a princesa ao lado de sua mãe.
Muito antes que alcançassem os portões, as ruas estavam
forradas de pessoas à espera deles. O ar se encheu de gritos de
boas vindas que se misturavam às canções do Pássaro Falante,
sentado em sua gaiola, no colo da princesa, seguido por todos os
outros pássaros do jardim. Dessa maneira, eles voltaram para o
palácio do pai deles. Mais tarde a princesa descobriria que o
Pássaro Falante era, na verdade, um príncipe que havia sido
encantado por uma terrível madrasta. Mas essa é outra história...
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