linguagens: letra, imagem e som - Tabuleiro de Letras
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Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Departamento de Ciências Humanas – DCH I Universidade do Estado da Bahia – UNEB LINGUAGENS: LETRA, IMAGEM E SOM setembro/2009 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB REITOR Lourisvaldo Valentim da Silva VICE-REITORA Amélia Tereza Santa Rosa Maraux PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE GRADUAÇÃO – PROGRAD Mônica Moreira Oliveira Torres PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO – PPG Wilson Roberto de Mattos PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO – PROEX Adriana Santos Marmori Lima PRÓ-REITORIA DE ADMINISTRAÇÃO – PROAD Mirian de Almeida Costa PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS – PPGEL Profa. Dra. Márcia Rios da Silva Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Prof. Dr. João Antônio de Santana Neto Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Profa. Dra. Verbena Maria Rocha Cordeiro Coordenadora da Linha de Pesquisa Leitura Literatura e Identidades Profa. Dra. Jaciara Ornélia Nogueira de Oliveira Coordenadora da Linha Pesquisa Linguagens, Discurso e Sociedade REVISTA TABULEIRO DE LETRAS Editor-Chefe: Prof. Sílvio Roberto dos Santos Oliveira COMISSÃO EXECUTIVA Profa. Dra. Lígia Pellon de Lima Bulhões Profa. Dra. Norma da Silva Lopes Prof. Dr. Sílvio Roberto dos Santos Oliveira Profa. Dra.Verbena Maria Rocha Cordeiro Prof. Marcos Antonio Maia Vilela (Mestrando PPGEL – UNEB) CONSELHO EDITORIAL Prof. Dr. Alan Norman Baxter (UMAC - Universidade de Macau) Profa. Dra. Elza Miné (USP) Profa. Dra. Elizabeth Ramos (UFBA) Profa. Dra. Emília Helena Portella M. de Souza (UFBA) Profa. Dra. Esther Gomes de Oliveira (UEL) Profa. Dra. Ceila Ferreira Martins (UFF) Prof. Dr. César Nardelli Cambraia (UFMG) Profa Dra. Denise Barata (UFRJ) Prof. Dr. Diógenes Cândido de Lima (UESB) Prof. Dr. José Augusto Costa Avancini (UFRGS) Profa. Dra. Vera Teixeira de Aguiar (PUC - RS) Prof. Dr. Leopoldo Comitti (UFOP) Profa. Dra. Maria Célia Lima-Hernandes (USP) Profa. Dra. Maria da Conceição Fonseca da Silva (UESB) Profa. Dra. Maria de Lourdes Crispim (UNL - Universidade Nova de Lisboa) Profa. Dra. Maria Teresa Gonçalves (UFRJ) Prof. Dr. Sebastião Carlos Leite Gonçalves (UNESP) Profa. Dra. Tânia Maria Alckimim (UNICAMP) APRESENTAÇÃO Prezados leitores No ar, a revista eletrônica TABULEIRO DE LETRAS, criada pelo Programa de PósGraduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia. Com seus tabuleiros, as “baianas do acarajé”, vendedoras de quitutes da culinária afrobaiana, encontram-se espalhadas pela cidade do Salvador. Essas iguarias, preparadas em segredo, ficam expostas no tabuleiro, como um mosaico, cujas peças serão compostas por seus apreciadores. Como um mosaico, a revista TABULEIRO DE LETRAS abriga textos de autores, com filiações teóricas distintas, que concebem a linguagem em sua heterogeneidade: de sujeitos, práticas e valores. As peças desse TABULEIRO devem montar um jogo do conhecimento que desestabilize as fronteiras rígidas dos campos disciplinares, pelo entendimento de que os saberes estão em movimento constante. TABULEIRO DE LETRAS: signos, dobras da cultura em espaços de troca e negociação. Márcia Rios da Silva Coordenadora do PPGEL LINGUAGENS: LETRA, IMAGEM E SOM Editor-Chefe: Prof. Sílvio Roberto dos Santos Oliveira SUMÁRIO VOLUME 02 – setembro/2009 GUERREIRA DAS LETRAS ANGOLANAS: Entrevista com Isabel Ferreira Mayrant Gallo – Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) ARTIGOS: I - ESTA TERRA NÃO É MINHA, MAS EU ME AFOGO NELA: CONSIDERAÇÕES SOBRE O MAL-ESTAR INGLÊS Alléx Leilla - Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO-SSA) II - LEITURA E ESCRITA: PROCESSOS DE AUTORIA E CO-AUTORIA Ana Lúcia Gomes da Silva - Universidade do Estado da Bahia (UNEB) III - DA VIDA RASGADA. IMAGENS E REPRESENTAÇÕES SOBRE O NEGRO EM MADAME SATÃ Ari Lima - Universidade do Estado da Bahia (UNEB) IV - DE RUÍNAS E RECOMEÇOS: RASURANDO OS PARADIGMAS DA MODERNIDADE Iraci Simões da Rocha - Universidade do Estado da Bahia (UNEB) V - INTERDISCURSIVIDADES: BASES CONCEITUAIS PARA ANÁLISES CRÍTICAS DO DISCURSO. Licia Soares de Souza - Universidade do Estado da Bahia (UNEB) VI - A RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA COMO TEMA NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL DE REGINALDO PRANDI Lidiane Neves Rodrigues - Universidade Federal da Bahia (UFBA) VII - A GALERIA DOS DESVALIDOS EM CHICO BUARQUE E MANUEL BANDEIRA Luciano Marcos Dias Cavalcanti – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) VIII - O HOMEM “SUAVE”? OS ITALIANOS RE-INTERPRETAM O BRASIL Paolo Spedicato IX - DINORÁ: A INOCÊNCIA DESPEDAÇADA NO SILÊNCIO DA TRAGÉDIA Robério Pereira Barreto - Universidade do Estado da Bahia (UNEB) X - UNIDADE E DIVERSIDADE NAS IMAGENS NACIONAIS EM MEU QUERIDO CANIBAL, DE ANTÔNIO TORRES Juliana de Souza Gomes Nogueira – Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) Paulo André de Carvalho Correia – Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) Roberto Henrique Seidel – Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I GUERREIRA DAS LETRAS ANGOLANAS (Entrevista com a escritora Isabel Ferreira) Mayrant Gallo ELA É ANGOLANA, ROMANCISTA E POETISA. ANGOLANAS. JÁ FOI GUERRILHEIRA E HOJE É UMA GUERREIRA DAS LETRAS ELA É ISABEL FERREIRA, AUTORA DO ELOGIADO O GUARDADOR DE MEMÓRIAS, ROMANCE SOBRE “AS MULHERES ANGOLANAS QUE SE VERGAM, MAS NÃO QUEBRAM”. ISABEL VEIO A SALVADOR DUAS VEZES E AFIRMA QUE, AQUI, SENTE-SE “COMO QUEM REENCONTRA UM IRMÃO OU IRMÃ PERDIDOS NO MATO”. FELIZES DE NÓS QUE A ACHAMOS E A CONVENCEMOS A NOS DAR ESTA ENTREVISTA. Mayrant Gallo: Qual a sua expectativa nesta sua segunda passagem por Salvador? O que a trouxe aqui e o que, na cidade, culturalmente, mais a impressionou? Isabel Ferreira: Sempre que vou a um país, ou regresso a um local, onde já estive, considero uma dádiva ou benção do Divino. Voltar a ver as pessoas que estabelecem ou estabeleceram um vínculo comigo é sempre uma expectativa agradável. Aqui em Salvador sinto-me como quem reencontra um irmão ou irmã perdidos no mato... MG: Não li seu livro ainda. Então, gostaria que você falasse dele como um ator ou diretor de cinema comenta seu filme para o público, a fim de despertar o interesse do leitor. Qual o seu assunto? Passa-se onde e em que época? Quem são os personagens? Que discussões ele promove? IF: O cenário é Luanda; as personagens, o seu povo. O enredo ou a trama é o modo de vida dos angolanos, o desenrasque, a vontade de viver, associada à vontade de enriquecer, fazendo negócios ou esquemas... Depois, temos um morto que, mesmo morto, faz justiça aos vivos ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I com a “a alma de outro mundo”. Entre risos e cantares, está patente uma crítica de um modo reflexivo e humorístico à sociedade angolana: “Onde todos querem ter, sem ser...” MG: Na imprensa, há referências ao seu livro O guardador de memórias como um “desabafo de mulheres angolanas descontentes com o mundo sentimental e social”. No que consiste, de fato, este “descontentamento”? IF: Bem, esta é uma afirmação que não me agrada... Mas vou ser flexível... Posso considerá-la e responder-te com uma análise, mas não profunda, do meu livro. O dia-a-dia das mulheres angolanas é atroz é um tremendo desafio... Acresce-se a uma luta constante para afirmação profissional, sentimental e pessoal... A obra revela as debilidades de uma sociedade em que algumas mulheres são vistas como sexo frágil, mas que, apesar desta discriminação, Foto: Anderson Sotero ASCOM-FPC continuam lutando para dignificar as suas famílias. Tanto as zungueiras (vendedeiras ambulantes) como as que labutam no escritório. E tem outra situação inquietante para a narradora: o fato de as mulheres se submeterem a uma relação poligâmica é por si só desgastante, daí que é também uma homenagem à mulher. É preciso ser guerreira para suportar uma sociedade em que tudo é mais difícil de conseguir e depois conviver com um homem que tem mais de duas mulheres. Para mim é um exercício mental permanente e constante de tolerância, digno de um desabafo – não pejorativo, mas de exaltação – à mulher angolana. As mulheres angolanas são mulheres que se vergam, mas não quebram... ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I MG: Como é ser escritora num país em reconstrução? IF: É difícil! Temos duas situações paralelas: difícil e fácil. O país está em reconstrução, assim como toda estrutura humana e mental do Homem angolano. Do ponto de vista econômico, é difícil, mas do ponto de vista da imaginação, é fácil! Angola é país muito fértil para qualquer criador. Somos um povo que canta chorando, que dança com a morte. A morte e a vida são celebradas com doses de humor; com cantares diversos e cheios de simbologia. Temos uma maneira muito forte e vertical de estar na vida em todos os aspectos da nossa vida. O angolano é hospitaleiro, alegre e orgulhoso. Mesmo entristecido não baixa a cara. Mostra o que tem e o que não tem e, quando chega o estrangeiro, lhe dá tudo o que tem, de um modo muito altruísta. Sem contar na forma folgada e alegre de viver. Para o angolano o amanhã a Deus pertence, vai daí... Hum, farra de sexta a domingo. Vive de esquemas, ninguém sabe de onde sai o dinheiro, mas grifa (veste-se bem) e anda com muhatos (mulheres) bonitas. Trabalha do seu jeito, mas trabalha com dignidade e honestidade! Há toda uma estrutura humana neste modo de ser e estar que leva o estrangeiro à reflexão sociológica. Mas ao mesmo tempo provoca a criação artística... Em Luanda, o criador tem matéria para realização de um filme, para um romance, para tudo... MG: A quantidade de leitores e o nível de leitura estão diretamente associados a uma educação formal de qualidade. Como está a educação em Angola? Está sendo reconstruída como o país ou, como no Brasil, não se dá tanta importância a isso? IF: Os intelectuais estão preocupados com a educação, mesmo porque “um país faz-se com homens e livros”. Contudo, há de fato muitas debilidades no ensino, fruto já de uma herança colonial, que se agravou com a guerra de mais de trinta anos. Somos um país que saiu de uma guerra que “mexeu com os valores morais e com a educação”. O governo e a sociedade civil têm consciência deste fenômeno, há uma aposta no sentido de melhorar o ensino e incentivar a leitura em massa. Assiste-se em Angola a um fenômeno muito interessante: toda a gente tem ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I vontade de estudar; já reconstruíram as escolas públicas e há abertura de inúmeros colégios privados. Isso é positivo, isso é importante para uma sociedade que está a nascer... O lema do povo parece querer dizer: aprender cada vez mais! E como se costuma dizer na gíria, ir atrás do lucro... Aprendendo! MG: Que autores – poetas, ficcionistas, filósofos, historiadores – os angolanos lêem? IF: Temos uma diversificação de autores, ficcionistas e historiadores que se destacam na arena internacional. Os angolanos lêem e se revêem nestes autores. Mas vou fugir à pergunta e dizer-lhe o seguinte: temos bons escritores e muito bons poetas angolanos. Há uma geração, que considero de “mais velhos”, que fez e continua a fazer a história da intelectualidade angolana. Alguns me marcaram de um modo muito positivo: Mendes de Carvalho, Viriato da Cruz, Alda Lara, António Jacinto, Pepetela, Manuel Rui Monteiro, Celestina Fernandes, Eugénia Neto, Paula Tavares. São escritores que, a meu ver, fazem parte do cânone literário angolano. E, apesar do factor guerra e das fragilidades do ensino, há ainda a nova geração, da qual faço parte, que vai fazendo um esforço para escrever, editar e mostrar este lado “sacrificante” da criação, do ponto de vista da Literatura. Sinto que, por vezes, esta geração é ignorada e até “ocultada intencionalmente”... Existem escritores da nova geração que já vão obtendo algum sucesso em Angola, mas que não são conhecidos no círculo internacional, por falta de divulgação ou por ausência de uma política de distribuição das obras e dos autores, como Jacinto de Lemos, Conceição Cristóvão, Botelho de Vasconcelos... O Ondjaki já vai sendo conhecido a nível internacional, embora jovem... E tem mais! Na literatura feminina, as autoras vêm mostrando um posicionamento aguerrido, desafiando as regras com uma escrita ousada e inquieta. Falo de escritoras como Amélia Dalomba, Elsa Major, Chó do Guri e Ana Branco. Há também a Rosário da Silva, a única romancista angolana cuja obra foi muito bem referenciada no círculo nacional, com o romance “Totonha”. MG: Brasil, Portugal, Angola e os demais países africanos de língua portuguesa já estão devidamente integrados literariamente uns aos outros ou falta alguma coisa? ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I IF: Integração? Eu não colocaria a questão em termos de integração. Mas na minha visão, de mulher ligada às artes, apercebo-me que há uma vontade de conhecer o que os escritores vão fazendo. Por vários fatores... Angola está centralizando as atenções, devido ao advento da paz e ao seu crescimento econômico e também pelo seu posicionamento geográfico. A C.P.L. tem projectos significativos para incentivar e divulgar a literatura destes países, mas parece-me insuficiente devido a inúmeros fatores. Julgo que é necessário convocar os intelectuais e os círculos com vocação específica para tal, a fim de trabalhar em parecerias. Particularmente noto que o Brasil tem estado a fazer muito pela divulgação da literatura angolana em termos de pesquisa: destaco nomes de pesquisadoras brasileiras como Lucia Calvacanti e Laura Padilha. Também me refiro aos docentes universitários Pires Laranjeira e a Inocência Mata, esta última docente Santomense que, em colaboração com a pesquisadora Lucia Cavalcanti, tem feito um ótimo trabalho em prol da divulgação da Literatura Angolana. Portanto, aqui não seria tanto a integração, mas a divulgação e o consumo da literatura angolana e, como conseqüência, a pesquisa, a fim de enquadrá-la no contexto da aceitação como literatura de estudo nas Universidades e escolas. Um modo de divulgar a nossa cultura também. MG: Políticas governamentais de educação e cultura podem ajudar brasileiros, portugueses e africanos a se lerem mais ou você acha que, no fundo – como disse Einstein certa vez –, o Governo é inimigo do povo? IF: Não! Não devemos colocar a questão nestes termos. Acho que os governos têm políticas especificas, para determinadas situações. No caso de Angola, particularmente durante muito tempo a justificação foi a guerra. Ela impediu que a cultura fosse uma prioridade do governo, agora que estamos num processo de paz, precisamos consolidar a paz e estabelecer metas que permitam a divulgação da cultura nacional. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I MG: Que autores brasileiros foram importantes para a sua formação? IF: Comecei a ler Jorge Amado aos 12 anos. Marcaram-me muito as obras Seara vermelha, Capitães da areia, Mar morto, Tieta do agreste, Dona Flor e seus dois maridos e Quincas Berro D´Água. Mais tarde, roubei de um convento de freiras Helena, de Machado de Assis, e um livro de poemas de Cecília Meireles. Foi uma maka (problema, confusão) quando me descobriram. Estes dois autores marcaram-me profundamente numa época da minha adolescência e parte da juventude. Mas foi com Florbela Espanca que comecei a escrever, ainda hoje há pessoas que ao lerem a minha poesia encontram algum paralelismo poético com ela. De um modo geral, a minha formação em termos de literatura foi muito marcada pelo consumo da literatura brasileira, se atentarmos ao fato de que, no período colonial, os nossos autores angolanos não tinham tanta relevância, devido ao sistema, que reprimia a literatura engajada. MG: Para mim, uma cena inesquecível de um livro de Jorge Amado é o suicídio do Cem-Pernas, em Capitães da Areia. Sempre que passo pelo Elevador Lacerda, ela me vem à mente. Há uma cena de algum livro de Jorge Amado que você jamais esqueceu? IF: Seara vermelha foi a obra que mais me marcou, a longa fila de pessoas que caminhavam em busca de terra fértil e que, por conseqüência, morriam de fome e sede ao longo do caminho. Nesta romance, chorei muito devido à força da mensagem e das marcas com o cotidiano. Mais tarde, já guerrilheira, vi semelhanças com a minha vida quando estive em Ndalantando num período de guerra em Angola. Ou ainda Tieta do agreste, “o relacionamento duvidoso” entre Tieta e o padre que era sobrinho dela... Este tipo de “amizade” ofendia a moral e os bons costumes da época. Li este livro há muito tempo (quase 30 anos), mas surpreendeu-me a forma de escrita para a época, de pessoas ainda muito conservadoras... ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I MG: Você também é poetisa – e sabemos que a poesia é a linguagem primordial, visceral, de raiz, a linguagem que está dentro de todos os homens e com a qual é mais fácil nos expressarmos genuinamente. A poesia é importante para Angola, tanto quanto a música e as demais expressões artísticas e culturais? IF: A poesia é importante em Angola e em qualquer parte do mundo. O que seria da vida sem poesia? Todos os dias os homens socorrem-se da poesia, ainda que inconscientemente. Para mim, Poesia é o Foto: Carlos Souza ASCOM-FPC enamoramento com a vida. Sem poesia não há namoro! Na poesia, há o recurso do subjetivismo, há o brincar com as palavras... Tantas palavras para quê, se está aí a poesia para preencher com o olhar poético aquilo que a frase pode não conseguir realizar...? Há como que um subestimar da poesia em Angola, o mesmo está a acontecer em Portugal... Há editoras que nem sequer aceitam publicar poesia, mas acredito que é uma fase. Em relação a Angola, uma das maiores manifestações artísticas de relevo tem sido a música, com o Semba, e a dança, com o Kuduro e a Tarraxinha... Mas a pintura e a literatura angolanas têm um grande potencial artístico, que no porvir poderá vir a ter mercado de exportação artística. MG: A literatura pode transformar as pessoas, um país? Você se transformou com a literatura? ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I IF: Pode! Se houver disponibilidade para a leitura, para o sentido crítico do que se lê! De certa forma, me transformei com o muito que vou digerindo através da leitura. Aprendi que o escritor com a sua pena tem uma responsabilidade maior que um cidadão comum. Que o escritor deve ser um ser criador livre, assumindo o compromisso com o mundo que o rodeia. Sei que como mulher e como escritora me é exigido muito mais... Tenho a certeza de que ainda não transformei ninguém, mas luto para a mudança de mentalidades no meu mundo, onde nem sempre a leitura é a prioridade. Vivo num país onde ainda temos que lutar por um copo de leite ou um iogurte... Não é possível a leitura onde a fome abunda... MG: Que verso ou frase literária você julga poder definir o estado em que Angola se encontra no momento? IF: Utilizo muito a expressão de um artista angolano, como forma de elevar a minha autoestima em relação a Angola e na minha vida pessoal, como angolana que sou, que é: Estamos sempre a subir... Ou ainda a frase que um amigo meu, o ator Daniel Martinho (também angolano) um dos melhores atores negros residentes em Portugal, arranjou para mim, e que é de um cantor angolano, o Bonga: Seja sempre resoluta. Quando ele me disse esta frase, encarnei-a como minha e me pus a batalhar para estar aqui em Salvador. Se não fosse resoluta, não teria solicitado ao meu amigo, o Prof. Ubiratan Castro, homem de cultura e de grande sapiência cultural, para que me convidasse a vir a esta terra de Jorge Amado, que me ensinou que estamos sempre entre as searas vermelhas, mas que apesar de tudo é preciso caminhar, mesmo com sede. Se não fosse resoluta, não estaria neste chão que se chama Salvador da Bahia! MG: Gostaria de dizer alguma coisa, para finalizar? IF: Quero deixar aqui um kandando (abraço) de gratidão ao meu amigo prof. Ubiratan Castro, grande nome na cultura baiana, por me ter convidado a vir a esta cidade tropicalíssima, onde ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I tão fui muito bem acolhida. Aqui fiz muitas amizades que me serão preciosas no futuro. Deixo muitas sementinhas plantadas... muito férteis por sinal! Não quero esquecer de ninguém... Mas acho que me vou esquecer... São tantas as pessoas que me têm ajudado... Espero que me perdoem. Mas deixo o reconhecimento a todos os amantes de literatura e aos amigos que me apóiam, incondicionalmente. Gostaria particularmente de agradecer o convite formulado pela diretora artística da Lusodramas, Marilda de Carvalho, uma brasileira que vive em Montreal, Canadá, que me conheceu pela internet, através do site da Angolanistas, elaborado pelo antropólogo Zaqueu Nzengo, radicado no Brasil. Foi neste site que ela me descobriu e tudo fez para que eu pudesse lançar o livro no Canadá. Este meu reconhecimento é extensivo à LS Produções. Seu diretor Eugenio Neto, assim que soube que eu vinha à Bahia, disponibilizou vários CDs de música angolana, assim como obras literárias, para divulgação nas rádios, não só de Salvador, mas também de Teresina, onde estarei para a Festa do Livro. Obrigada! Kandando forte de gratidão. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Esta terra não é minha, mas eu me afogo nela: Considerações sobre o mal-estar inglês Állex Leilla1 Resumo: Este trabalho pretende refletir sobre um certo mal-estar sócio-político-cultural presente nos roteiros de filmes e romances escritos pelo indo-britânico Hanif Kureishi, e as possíveis relações do seu “estranho e caótico mundo londrino” com aquele traçado pelas letras do cantor inglês Stephen Patrick Morrissey, ontem vocalista dos Smiths (uma das bandas mais representativas do pop-rock dos anos 80), hoje em trajetória solo mais do que consolidada. Esta escolha orienta-se pelas possibilidades de leituras das categorias de estranho e estrangeiro, conceituadas por Bhabha e Bauman. Palavras-chave: Literatura comparada; Hanif Kureishi; Morrissey; estranho; estrangeiro. Resumo: Esto documento pretende reflejar sobre un incómodo socio-político y cultural presente en películas y novelas escritas por el indo-británico Hanif Kureishi, y los posibles vínculos de su "extraño mundo caótico Y británico” con aquel localizado en las letras del Inglés Stephen Patrick Morrissey, el cantante ayer Smiths (una de las más representativas bandas de pop-rock de the'80s), hoy en día en trayectoria suelo más que consolidada. Esta opción de lectura está orientada por las orientaciones posibles de las categorías de extraños y extranjeros, conceptualizadas por Bhabha y Bauman. Palabras clave: Literatura comparada; Hanif Kureishi; Morrissey; extraño; extranjero. Uma das questões mais visíveis nos textos de Hanif Kureishi é o entrecruzamento de olhares estrangeiros que explodem em seus textos. Os estrangeiros e sua solidão. Os estrangeiros e suas vivências. Os estrangeiros e seu caminhar. Ser estrangeiro, estar estrangeiro. A própria condição híbrida do autor, que é indo-britânico, o faz ser sempre visto como alguém “de fora”: na Inglaterra, onde cresceu e se formou, é “estranho”, um oriental, tanto pelos aspectos físicos quanto culturais; no Paquistão, devido ao fato de ter estabelecido 1 Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Mestre em Letras pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), professora de Teoria da Literatura do Curso de Letras, da Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO-SSA). É escritora, com três livros publicados: Urbanos (contos, 1997), Obscuros (contos, 1999) e Henrique (romance, 2001), e recentemente foi contemplada com o edital de Criação Literária da Petrobrás (2006/2007), cujo romance encontra-se em processo de finalização. Email: [email protected] ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I um trânsito desde muito cedo na Europa, ter estudado lá, falar inglês e possuir costumes “brancos”, é visto também como “estranho”, um não-nativo. Sua escrita incorpora esse problema com a referência de origem, que está perdida: se no lugar onde nasceu e de onde seus pais são não pode ser reconhecido, uma vez que saiu de lá muito pequeno, no lugar para onde foi, devido a sua condição étnica, será sempre um estranho, independentemente do quanto de valores locais tenham sido introjetados nessa vivência londrina. Essa condição confusa — uma não-identidade ou um espaço móvel de identificações provisórias — se transforma num terreno movediço de construção e desconstrução de formas discursivas que vão refletir sobre a difícil sobrevivência desses seres “párias”, sempre “estranhados” e apontados como diferentes em qualquer lugar aonde chegam. De forma parecida, embora com diferenças consideráveis, pode-se dizer que esse mundo conflituoso de Kureishi também explode nas letras das canções de Morrissey. Descendente de família irlandesa, porém nascido na Inglaterra, na cidade industrial de Manchester, o ex-vocalista dos Smiths viveu tanto a infância quanto a adolescência em bairros tidos como “marginais”. Por ser de origem pobre, filho de um operário com uma funcionária de uma biblioteca (responsável por despertar no filho o amor pela literatura), no repertório de imagens de suas canções o que mais aparece não são a riqueza, o glamour, os clichês e a tradição de conquistas da cultura inglesa, mas os subúrbios, as chaminés das fábricas, os conjuntos habitacionais populares, a miséria, a repressão dos sistemas educacionais de ensino público, a luta pela sobrevivência, o isolamento, a discriminação, a incomunicabilidade. Trata-se de todo um universo marginal que se apresenta e se representa, num jogo de forças entre o diverso e o mesmo, a exemplo da letra de This night has opened my eyes, do repertório smithiano, inspirada na peça Um gosto de mel, de autoria de uma das escritoras preferidas de Morrissey, a dramática Shelagh Delaney. Essa peça, de 1958, que também foi levada à tela, é uma referência crucial para se entender certos painéis tristes e sem saídas daqueles ingleses não-vitoriosos, não-glamurosos, não-ricos, cantados por Morrissey em muitas de suas canções. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I O letrista opõe, muitas vezes, o modo de “ser” do Sul com o do Norte do país, para flagrar as diferenças irredutíveis entre os próprios ingleses, expondo uma nação multifacetada, com problemas étnicos que, desde a sua origem, não foram resolvidos. Sua Inglaterra é uma espécie de barril de pólvora segurado por forças tênues de união: a língua inglesa (que ele mostra em The nacional front disco não ser tão “inglesa” assim), o amor ao futebol (abordado do ponto de vista de um torcedor fanático em We’ll let you know), e um certo passado histórico comum (cantado em músicas que narram perda de lugares referenciais, como Late night, Maudlin Street e Piccadilly Palare). Aqui e ali, entretanto, vemos formar, nas letras de suas músicas, um panorama confuso e multifacetado, semelhante ao de Kureishi, e totalmente distante de um mundo regido por valores e identidades sólidas, fixas, cristalizadas, como deveriam ser os produtos de uma cultura tipicamente britânica. Bem, mas o que seria uma cultura tipicamente britânica? Antes que nos percamos em terrenos muito complexos e, por isso mesmo, vagos, é importante ressaltar que aqui nos referimos àquelas noções de identidade com as quais todo povo lida e escolhe ser reconhecido. Ou seja, o que Homi Bhabha chama de “local da cultura”. Uma das possibilidades de se entender porque a vivência dessa identidade não ocorre nos diferentes contextos usados pelos dois autores é, justamente, refletindo sobre a dificuldade de se resolver as questões histórico-político-sócio-culturais que já existiam entre os povos da Grã-Bretanha — como é o caso da Irlanda do Norte, subjugada pela hegemonia econômica da Inglaterra —, e as novas questões que surgiram a partir da entrada dos povos orientais, invadidos e dominados, no passado, pelos conquistadores europeus. Nesse contexto, ser ou não ser estrangeiro lembra a canção de Caetano Veloso: depende mais do momento do que do lugar. Muitas produções artísticas inglesas contemporâneas abordam essa perda de capacidade de separar os povos: todos eles se odeiam, acham que nunca se misturam totalmente, mas estão sempre mesclados, quer pelas fusões amorosas (os casamentos mais comuns são entre ingleses e escoceses, mas também existem entre ingleses e irlandeses, irlandeses e indianos etc.), quer pela proximidade das fronteiras e nomadismo (quase todos os irlandeses, por exemplo, vão, num determinado momento de suas vidas, para a Inglaterra, ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I estudar ou trabalhar; os indianos têm bairros inteiros criados pelo governo inglês etc.). Sendo assim, o “estrangeiro” pode estar, em muitos casos, menos circunscrito ao espaço do que a uma situação específica de confronto. Esse barril de pólvora europeu é percebido claramente em filmes britânicos como Delicada atração (1996), de Hettie McDonald; Beatifull people (1999), de Jasmin Dizdar; ou mesmo na produção premiadíssima da Macedônia-Inglaterra, Antes da chuva (1994), de Milcho Manchesvski. Todos eles mostram tanto a Europa bretã quanto a dos bálcãs permeadas por focos de conflitos étnicos, políticos, religiosos e econômicos. Se vão explodir de forma grave como ocorreu na França, em 2005, é uma questão mais da lógica da vida do que de exercícios futurólogos. Aliás, parece que barris de pólvora não faltam na Europa, como mostra Luciano Máximo em Quem segura essa bomba?, matéria publicada na Revista Caros Amigos (Dezembro de 2005, Edição 105) que aborda os problemas da mesma estirpe em solo português. Todos eles giram em torno de um fantasma: os estrangeiros. A palavra “estrangeiro” povoa, direta ou indiretamente, todos os estudos que trabalham com as noções de cultura e alteridade, uma vez que os países periféricos e póscoloniais têm sua (s) história (s) inscrita (s) sempre a partir de um olhar de fora, um pensar de fora, uma língua de fora. Nos ensaios “O compromisso com a teoria” e “DissemiNação: o tempo, a narrativa e as margens da nação moderna”, do livro O local da cultura (1998), Homi Bhabha pensa questões relativas à identidade, cultura, teoria e ação política, tendo em vista todo um sistema de formação e condicionamento do discurso colonial, cuja estrutura ou estruturação ele esquadrinha para melhor entender. Embora muitos critiquem Bhabha devido a um hermetismo lingüístico e um certo lugar-comum em seus textos, seus ensaios ainda são importantes para se discutir a pertinência ou não de noções acerca da hegemonia cultural e política, o multiculturalismo, a negociação cultural, a questão da identidade, o hibridismo e o conceito de nação. Um dos primeiros lembretes que o pensador, também indo-britânico, faz ecoar feito fantasma durante sua análise sobre a condição pós-colonial é a assertiva de que na história dos países europeus já havia, desde o início, a marca de grupos exilados, de situações de diáspora, de refúgio em guetos, reuniões em cafés e bares dos centros das grandes cidades. Desta forma, ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I a condição de “estrangeiro” sempre foi vivida de maneira constante pelos europeus que, com as grandes navegações, passam a ser “os estrangeiros” dos novos mundos, aqueles que chegaram com costumes, valores e, principalmente, com o poder de fora. E, com esse mesmo poder, para sermos sintéticos e óbvios, subjugaram tudo que consideravam “primitivo” ou “não-civilizado” na terra do outro. Como o mundo gira e a Lusitânia roda, os primitivos não têm mais ouro, nem solo, alguns nem água, todavia, continuam com aquele defeito incorrigível: querem porque querem sobreviver. Vão, então, em bando, atrás da mãe-pátria, ou mátria, sabe-se lá. Essa noção, bastante óbvia, de um poder que vem do exterior, inteiro, identificado, com língua e armas próprias, e se estabelece entre os nativos, subjugando-os, está presente nas discussões acerca da alteridade e identidade cultural e, muitas vezes, constitui seu principal foco de análise. Entretanto, o que Bhabha traz é uma espécie de lembrete sobre o “sentir-se diferente, sentir-se estrangeiro”: isso já era uma marca inscrita na pele do próprio colonizador enquanto habitante de sua nação, ou seja, o seu lugar já estava, desde o princípio, questionado, no terreno da provisoriedade dos limites geográficos de cada país europeu e de suas crises sócio-político-culturais. Isso explica porque, nos discursos fundadores das nações modernas ou da “maneira de ser moderno”, o provisório, o instável e o ilegível são como fantasmas a serem rejeitados, a exemplo da narrativa de Thomas Mann, A montanha mágica, em que seu personagem, Hans Castorp, mesmo já se sabendo curado da tuberculose, tem grande dificuldade em deixar o local para onde foi em busca de cura, pois os caminhos do mundo lá fora se tornaram, novamente e sempre, impossíveis de serem previstos, traçados, solidificados. Uma prova disso é o contexto histórico do romance: a Primeira Guerra Mundial, que está se formando dia-a-dia, atingindo seus países de origem, enquanto eles, os europeus enfermos, tentam se reequilibrar num terreno neutro, numa estação de repouso nas montanhas. Assim, a estação de repouso passou a ser um lugar familiar, seguro, por isso, mágico. Os lugares de onde vinham tornaram-se estranhos, desconhecidos, e, como de praxe no panorama moderno, o estranho deveria ser evitado, temido, odiado. Vê-se, aí, uma fusão entre “estranho” e “estrangeiro”, uma vez que na estação de repouso havia estrangeiros de vários ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I países europeus (mas principalmente dos quatro pilares modernos: Alemanha, Itália, França e Inglaterra), e a essa condição foi acrescentada a de “estranho”, obtida a partir do temor que sentiam do mundo de onde vieram, da vida distante que um dia possuíram e tiveram de abandonar. Para Zygmunt Bauman, no ensaio “A criação e anulação dos estranhos”, do livro O mal-estar na pós-modernidade, o que diferencia a relação que a sociedade moderna tinha com “os estranhos” da relação que tem, hoje, a sociedade pós-moderna, é a impossibilidade de traçar um lugar fixo para eles, tal como existia na modernidade, e correspondia à fronteira (das cidades, dos estados, dos países): A diferença essencial entre as modalidades socialmente produzidas de estranhos modernos e pós-modernos é que, enquanto os estranhos modernos tinham a marca do gado da aniquilação, e serviam como marcas para a fronteira em progressão da ordem a ser constituída, os pós-modernos, alegre ou relutantemente, mas por consenso unânime ou por resignação, estão aqui para ficar. (...) Se eles não existissem, teriam de ser inventados. (BAUMAN, 1997, p. 43). Assim, guardados os graus de variações subjetivas que decorrem dos usos da palavra “estranho”, que vão desde a noção freudiana de categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar até uma certa mitificação do “estranho/estrangeiro” que povoou um certo período a literatura (a exemplo de romances como Teorema, de Pier Paolo Passolini, ou Cleo e Daniel, de Roberto Freire), retorna-se ao entendimento de Homi Bhabha (tomado de empréstimo de Eric Hobsbawm) de que a própria história da nação ocidental moderna é construída sob a perspectiva da margem da nação e do exílio de migrantes. Ou seja, é “antigo” e “estrutural” sentir-se “outro”, sentir-se “diferente”. Essa noção é importante para se perceber as contradições existentes nas produções artísticas e discursivas daqueles que já nasceram sob o signo da mistura, do múltiplo, da confusão. O conhecimento do “outro”, conceito amplamente difundido nos Estudos Culturais e de Literatura Comparada é uma das preocupações de Homi Bhabha. Esse “outro”, essa alteridade, tão discutida por aqueles que trabalham com produções de qualquer que seja a ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I minoria social, é ainda associado às histórias de resistência dos grupos minoritários em questão. A partir de 1960, convencionou-se ler a experiência da dor e da exclusão como uma configuração do “outro”, do “diferente”. Mas, segundo Bhabha, historicamente, sabe-se que as histórias de vencidos e vencedores são tão interpenetradas que eles somos nós e vice-versa. Assim, Bhabha chama a atenção para o hibridismo cultural, lembrando que apenas insistir numa “devolução do poder” (ou da voz) a sujeitos que foram violentados num determinado tempo e espaço, não é suficiente para fazer perceber os diferentes graus de absorção e/ou introjeção na cultura do discurso-opressor. Segundo ele, o crítico pós-colonial que não vê tais liames na estruturação do pensamento colonial acaba por se identificar, num discurso polarizador, com as divagações do crítico eurocêntrico despolitizado ou, então, cair no abismo da militância panfletária, que separa luta e saber teórico. Em O álbum negro, Intimidade (romances) e Minha adorável lavanderia (filme) Hanif Kureishi traça um painel bastante complexo acerca da convivência de paquistaneses, indianos e outras minorias étnicas no solo europeu, mais precisamente em Londres, the babylon city, como a chamava Caio Fernando Abreu. Em muitos momentos, principalmente em O álbum negro, a questão dos embates culturais é tão forte e multifacetada que remete imediatamente às letras de Everyday is like Sunday, Bengali in the platforms ou This is not your country, todas do repertório da carreira solo de Morrissey. Tais embates estão bem próximos da teoria de Bhabha, no que se refere à impossibilidade de perceber os problemas, as crises, a violência e a resistência das minorias não mais invadidas em seus territórios/países, mas dispersas no solo europeu, sem, antes, compreender a interpenetração dos discursos, de valores hegemônicos nas estruturas heterogêneas que são desenhadas pelo cinema e literatura. O álbum negro narra a história de um estudante paquistanês, Shahid, em Londres, dividido, confuso, afetado por uma necessidade de sobreviver dentro de um mundo caótico e fascinante, onde nem ele mais consegue identificar o que seria seu, ou seja, de origem paquistanesa, e o que é do outro, ocidental, europeu, inglês etc., e onde está o seu desejo pessoal/masculino/subjetivo no meio de tudo isso. Ele faz uma faculdade que lhe excita e lhe retrai ao mesmo tempo. Goza do direito de estudar, concedido pelo governo britânico às ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I minorias étnicas, mas tem consciência de que a faculdade em si já é uma espécie de gueto, um arranjo governamental que exclui e controla muito mais do que concede. Ao mesmo tempo em que ama a literatura e a música pop, principalmente o músico negro norte-americano Prince (que, inclusive, inspira o título do livro), o personagem sabe das ilusões e afastamentos que ambos os universos artístico-discursivos ocidentais trazem para um habitante originário de um outro mundo, como ele. Shahid é um ser do caos, que anda dentro do caos, pensando suas questões mais caras. Lembra, em muitos momentos, o caminhar produtivo de Rimbaud, o walk writing, abordado por Maurício Vasconcelos em Rimbaud das Américas e outras iluminações (2000), uma vez que é andando em Londres, tal qual Rimbaud na França, e sentindo/vivendo/pensando sua estrutura perversa, caótica, bela, cosmopolita, fascinante, que o personagem apreende, reflete, seleciona e rejeita valores, quer sejam seus, de seu povo, quer sejam “estranhos”, londrinos, europeus, ocidentais. Sendo ele mesmo um estrangeiro em Londres, habita, junto com sua gente, uma espécie de fronteira que, há muito, encontra-se confusa, impossível de ser totalmente detectada. Ainda que geograficamente os bairros onde eles habitam sejam marginais, periféricos, essa demarcação se perde diante do caminhar livre, do ir e vir dos povos, vasculhando outras ruas e outros bairros distantes, desconhecidos. Em relação ao seu povo disperso em Londres há de tudo: Shahid, que estuda e busca um equilíbrio entre esses dois mundos, Londres e o Paquistão, Ocidente e Oriente; a professora Deddee, por quem ele se apaixona, e o marido dela, exemplos de intelectuais perdidos dentro do sistema educacional britânico destinado a estrangeiros, mas incapaz de integrá-los; os colegas de Shahid, desinteressados e entediados, que freqüentam a faculdade mais por hábito do que por objetivo; os vizinhos paquistaneses, conservadores e fanáticos religiosos que o convidam para se converter à causa religiosa; seu irmão drogado e fora da lei, que despreza os valores paquistaneses e sente-se inglês, tal qual o pai de ambos se sentia, acreditando, também, que bastava o dinheiro para serem aceitos no mundo londrino; a mãe deles que vive no Paquistão, dentro dos moldes mulçumanos; Zulma, a cunhada de Shahid, que vive uma parte do ano na Inglaterra, curtindo os prazeres do mundo consumista inglês, e outra na sua terra natal. Enfim, há um verdadeiro esquadrinhamento desse povo paquistanês, o que demonstra a intenção ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I autoral de representá-los sem uma unidade político-cultural, e, sim, fragmentados, perdidos e múltiplos. Já em Minha adorável lavanderia, um garoto paquistanês, homossexual, tenta sobreviver aos ataques raciais que sua lavanderia — símbolo da conquista de sua família no solo europeu — sofre de grupos neofacistas. O personagem vive um relacionamento amoroso com um punk-europeu, representado no cinema por Daniel Day-Lewis. Vê-se, assim, um complexo embate cultural ser materializado. Dessa guerra de valores e costumes entre o grupo do protagonista e o de seu namorado surgem algumas negociações, um certo “jogo de corpo” que solidifica o relacionamento amoroso. Paralela à luta pela sobrevivência dos personagens, há também a desintegração do núcleo familiar paquistanês, temas caros ao universo de Kureishi, que sempre somará a esses dois pólos (luta e origem) a questão do desejo, do direito e experimentação da sexualidade. A cena em que o punk dá um beijo meio de lado e meio de língua no protagonista, na porta da lavanderia, diante dos neofacistas que não conseguem visualizar direito a cena, pode ser considerada um símbolo do chamado espaço intervalar de convivência cultural. Por uma questão de posicionamento, isto é, por estarem num ponto da calçada em que o ângulo não os permitem ver direito o que acontece, os neofacistas não podem agredir o casal gay e multirracial, pensam que o protagonista, dono da lavanderia, está apenas pagando ao punk por ele ter pintado a fachada do estabelecimento. Entretanto, aproveitando a pouca visibilidade, o punk esconde o rosto do outro e erotiza a relação “aparentemente” profissional. Nesse filme, há todo um aproveitamento das oportunidades cotidianas, um viver segundos de trégua, de afeto e poesia, na guerra urbana que se desenrola em todos os cantos da cidade. É essa potência que interessa a Kureishi ressaltar, não mais a guerrilha armada, as lutas étnicas, os discursos políticos já estéreis diante da impossibilidade de traçar limites entre o que é inglês, o que é irlandês, o que é galês, o que é escocês, o que é paquistanês, indiano, africano etc. Intimidade também traz um panorama desses conflitos sócio-étnico-afetivo-culturais londrinos, só que menos na cidade e mais dentro do seio de uma família paquistanesa, a partir da voz narrativa de um homem, roteirista, pai de dois filhos, que pretende abandonar o núcleo ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I familiar em prol de sua liberdade pessoal, sexual e afetiva. Sua voz discute a opressão do modelo papai-mamãe-filhinhos, expondo a anulação da singularidade do indivíduo e a automação dos papéis que tal estrutura institui. A contradição entre o amor familiar e a morte diária de seus indivíduos acaba traçando um panorama dos conflitos de uma geração que viveu a contracultura, com seus avanços sexuais e políticos, mas se viu, depois, aprisionada dentro do mesmo sistema de valores caducos a que combateu com unhas e dentes. Para Kureishi, não há nenhum porto seguro, fórmula mágica ou escudo capaz de livrar o indivíduo desses conflitos. Quando eles não vêm de fora, do outro, que estranha e agride tudo aquilo que não é espelho, vêm de dentro, das forças de liberdade individuais, do desejo. É interessante ressaltar também que o sexo é um lugar de força tanto nos roteiros cinematográficos quanto nos romances do autor. É vivenciando a sexualidade, inclusive fora da relação a dois, com outras pessoas, outros jogos e papéis, que as personagens discutem e aprofundam tanto suas questões internas quanto as situações caótico-político-sociais do país onde escolheram viver e do país que deixaram para trás. Não se trata, portanto, de dar voz aos “coitadinhos” e “oprimidos” paquistaneses, mas de flagrá-los em suas lutas cotidianas, com suas dores e suas forças, suas contradições, suas violências e conquistas. Um contraponto interessante a esse universo de Kureishi, narrado sempre a partir de vozes paquistanesas, são as já mencionadas letras de Bengali in the platforms, Everyday is like Sunday e This is not your country. Nelas, Morrissey dá voz não ao “oprimido oriental que retorna como invasor”, mas ao inglês, ex-invasor, que, agora já desprovido de armas e de um poder absoluto, vê seu resto de harmonia desaparecer com a chegada dos orientais e a conseqüente explosão dos conflitos multirraciais oriundos dessa outra invasão. A capacidade de penetrar no que seria a estrutura de formação discursiva desse sentimento — do inglês invadido, ultrajado pela imposição dos costumes daqueles que vêm de fora e bagunçam seu habitat — é a maior força das letras de Morrissey, que vai registrando frases contraditórias, entre aspas, flagrando essa zona de “estranhamento” entre as duas culturas, porém, sem tomar um partido claro. Quando aborda a sexualidade de seus personagens, no entanto, o letrista a coloca numa zona de incerteza, e, ao contrário de Kureishi, a vivência sexual e a afirmação do desejo não são vistas como oportunidades de ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I aprofundamento de discussões ou positivação das subjetividades. Para Morrissey, gostar de homens, de mulheres ou de ambos, ou mesmo não gostar de sexo, não leva à equação alguma acerca de si mesmo. O sexo nada revela da interioridade do sujeito. Essa interioridade é feita de cacos, de flashes incomunicáveis, incompartilháveis. Ser gente, para Kureishi, é vivenciar as várias faces do desejo, apossando-se dele e desautorizando a entrada de forças de condicionamento e normatização do erótico, do sexual. Através do sexo, os personagens se auto-reconhecem e conhecem o outro. Para Morrissey, no entanto, o sexo é secundário. Em suas letras, ser gente é a grande tragédia do ser humano e o reconhecimento dessa condição trágica vem antes de qualquer possibilidade de descoberta ou vivência sexual. É exatamente por serem humanos que os sujeitos configurados em suas letras estão separados dos outros, mesmo de seus objetos de desejo, e jamais podem se descobrir, se reintegrarem ou traçarem pactos com o outro. Mesmo reconhecendo a sexualidade como um processo complexo, Morrissey não acredita que, por exemplo, uma performance que positive a condição de homossexual (ou bissexual) seja algo que vá trazer aos sujeitos o direito à sociabilidade dentro das demarcações heteronormativas, originárias da intensa liberação da energia yang ou pólo masculino que, no Ocidente, se configura a partir de uma noção hegemônica do macho, branco, heterossexual. Vozes e corporalidades capazes de inscrever em sua superfície as diferenças nesse modelo hegemônico existem, e as letras dele podem até cantá-las, mas isso em nada afeta o isolamento trágico dos sujeitos que, enquanto vivos, serão sempre estranhos, impenetráveis. É o que vemos na canção em que ele homenageia Little Richard (1932), por exemplo. Essa letra remete ao roqueiro que, com seu visual andrógino e sua dança sexualizada, quebrou desde início os padrões comportamentais polarizadores, chocando a classe média branca norte-americana da época — para quem a demarcação entre masculino e feminino era bastante rígida. A performance pioneira de Little Richard é motivo para a amarga homenagem que Morrissey lhe presta em Little man, what now? (que faz parte da carreira solo do vocalista). No entanto, quando questiona o que teria ocorrido após a passagem fulgurante do roqueiro, a letra registra os jogos perversos do mainstream, que podem se nutrir de qualquer energia sexual, inclusive da andrógina, sem necessariamente permitirem a expansão livre ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I dessa libido: “Velho demais para ser uma criança prodígio/ Muito jovem para os papéis principais/ Quatro temporadas/ e eles te cortaram/ Nervosamente jovem/ (não vá sorrir!)/ O que aconteceu com você?/ Aquele eclipse repentino te torturou?”2 Eis o retorno do transgressor à solidão do mesmo e do nenhum. Trata-se do canto de uma solidão impossível de ser negociada, que enclausura a subjetividade numa redoma. Se se vive brevemente o desejo, como em Hand in glove ou em Handsome devil (canções smithianas que abordam o homoerotismo) ou se opta pela ironia à própria necessidade de realização sexual-amorosa, como em I know its over e Last night I dreamt that somebody loved me, o que importa ao letrista é destacar que nada retira os sujeitos do tédio e da diferença inconciliável de sua interioridade. Nascer como seres humanos estragou a saúde deles, parece dizer clariceanamente a voz melancólica de Morrissey. Tal estrago é irremediável. Essa outra maneira de aproveitar o multifacetado, o híbrido, o multicultural, faz tanto as letras de Morrissey quanto os textos de Kureishi serem um lugar rico para se discutir formas e linguagens possíveis para uma outra crítica teórica das divisões entre Países Desenvolvidos e Periféricos e seus desdobramentos. Afinal, qual seria a função de uma crítica acerca da alteridade se as perspectivas artísticas — lugar por excelência onde se pode pensar as efervescências culturais —, de natureza múltipla, não são ouvidas em sua variedade infinita? Mais do que reflexos dos supostos interesses desse objeto (minorias, povo etc.), o que aparece nos discursos das personagens de Kureishi e nas letras de Morrissey é a hibridização da própria noção de diferença. Ou seja, o um e o outro estão interpenetrados, e seus embates, muitas vezes, por mais violentos que sejam, mostram a impossibilidade dos limites entre o que é originário de um e o que vem do outro. Trata-se, então, de reconhecer que todo e qualquer discurso que se ocupa do outro, sem prever e expor as contradições de sua estruturação nas formas discursivas da cultura, fatalmente está, de alguma maneira, idealizando esse “outro”. Reconhecer isso já é o primeiro 2 Little man, what now?. MORRISSEY e Stephen STREET. Viva Hate. EMI. 1988. (faixa 02). No original: Too old to be a child star/ too young to take leads/ four seasons passed/ and they AXED you/ nervously juvenile/ (WON'T SMILE!)/ What became of you?/ did that swift eclipse torture you? ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I passo para se livrar dessa imagem pré-selecionada que, sem tal reconhecimento, periga a ser o foco de produção das idéias. Um outro aspecto que surge no panorama traçado por Hanif Kureishi e por Morrissey é a noção de hegemonia. Segundo Stuart Hall (2003), tal noção tem a ver com o espaço intervalar de negociação e não significa, exatamente, o mesmo que dominação cultural. Por isso, está no intervalo entre direita e esquerda. Habita o imaginário e é capaz de se reproduzir mesmo em contextos opostos. Não perceber o mecanismo operacional dessa diferença impediria de ver determinadas nuances que aproximam e afastam colonialismo de imperialismo, entre outras coisas. Para Hall, o colonialismo estaria mais para a dominação, posto que usava claramente a força física contra os dominados (escravos, por exemplo); enquanto o chamado imperialismo norteamericano estaria mais para a hegemonia, porque negocia, mesclando à conquista não somente a força, e, sim, outros instrumentos de fascínio, como o cinema hollywoodiano, o McDonald’s, a Coca-Cola etc. A força e seu aparelhamento bélico são usados em espaços onde tais apelos culturais estariam bloqueados pela ação de uma outra cultura hegemônica, caso da mulçumana no Oriente Médio, por exemplo. Já a postura de Homi Bhabha aponta para uma rearticulação do discurso de identidade e da sua reconstrução no tempo da nação, a partir de um descentramento, de um deslocamento do local da cultura. Embora Foucault, com sua teoria da descontinuidade e dos micro-poderes (que revelaram tanto a exclusão de vários outros tempos no tempo dos enunciados históricos, quanto uma mobilidade permanente nos mecanismos de estruturação do poder), e Deleuze e Guattari, com a teoria do rizoma (conceito que já remetia a esse corpo de situações culturais, representativas e móveis, dentro de uma mesma fala, cultura, nação), já tivessem trazido uma possibilidade de articulação dos discursos do sujeito híbrido, tais teorias, somadas a de teóricos culturalistas, também levaram ao multiculturalismo, que é um conceito rejeitado por Bhabha. Para ele, a própria maneira como as culturas pós-coloniais são indefinidas já mostra que as categorias mais utilizadas pelos estudos multiculturais — de classe, identidade e gênero — são insuficientes para articular os discursos produzidos por elas, necessitando de ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I outros conceitos, como geração, local, localidade geopolítica, orientação sexual, negociação etc. Bhabha questiona como os valores culturais são negociados nesses lugares, pois a aquisição de poder em histórias comuns de privação e discriminação pode, muitas vezes, ser antagônica e conflituosa. Ele mostra que a própria história da nacionalidade tem efeito ambivalente nas narrativas, uma vez que ser estranho/exilado é, ao mesmo tempo, estar longe e sofrer a sombra, a projeção da nação no lugar que deveria ser de exílio, de fuga. Caso de Hanif Kureishi, por exemplo. Interessa ao pensador indo-britânico não só a história dos movimentos nacionais — quando esse povo, então, emerge e sua performance é pedagogicamente inscrita na história nacional — e, sim, as tradições da escrita que tentam construir narrativas do imaginário social desse povo-nação. Por isso, a crítica deve abranger as narrativas e as contra-narrativas, o pedagógico e o performático, afinal, pegando de empréstimo uma afirmação de Fanon, Homi Bhabha vai dizer, também, que o povo reside numa zona de instabilidade oculta. Essa zona é um conhecimento, uma significação cultural, é nela que se articulam o moderno, o colonial, o pós-colonial, o nativo etc. Não pode, portanto, ser um conhecimento estável nem fixo, uma vez que o pedagógico e o performático se enfrentam de maneira antagônica e ambivalente, e o suplementar é a renegociação desse tempo, dos termos e das tradições do povo-nação. Assim, não é instalando o “um” e o “outro” no mesmo espaço que suas diferenças serão aceitas e respeitadas, até porque essa “instalação” seria sempre utópica e mascaradora daquilo que é irredutível entre as culturas diversas. Ele propõe, então, um lugar móvel de negociação entre as fronteiras. O conceito de fronteira surge do entendimento de que é necessário mesmo o espaço de negociação (não de apagamento ou banalização) para esses sujeitos híbridos, “produtos de uma interação cultural originada nas fronteiras, onde os significados e valores são (mal) lidos e os signos apropriados de maneira equivocada” (BHABHA, 1998, p. 204). Muitos desses “equívocos” constituem o universo discursivo das letras de Morrissey, quando captura a mistura de sentimentos antagônicos e desarticulados dos ingleses que estão incomodados em seu próprio país, tema, aliás, trabalhado em quase todo o cd Viva hate (1987) — primeiro ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I trabalho solo do artista após a dissolução dos Smiths —, assim como também materializam as representações múltiplas de Hanif Kureishi. Desta forma, pode-se afirmar que ambos os criadores, dentro de seus universos parecidos, porém, distintos, estão escrevendo uma história outra dos tempos londrinos, britânicos. Entendendo, aqui, tanto o conceito de tempo quanto o de história não mais como um corpo discursivo coeso e contínuo, e, sim, dentro das noções mais contemporâneas, como a de Sandra Pesavento (2003), que relativiza histórias e tempo a partir de seus aspectos culturais e artísticos. O retrato que eles pintam da Inglaterra é fragmentado, disforme, estranho para quem se acostumou a pensar a história dos países europeus, principalmente Inglaterra, Alemanha, França e Itália, como a história da própria civilização ocidental, dentro de um conjunto uno de características harmônicas e tradicionais, sedimentadas por narrativas que lhes conferiam uma identidade sólida, facilmente localizável. O viver/ver as fronteiras (para usar uma expressão deleuziana) não mais como se forjou que elas deveriam ser e, sim, como são, diariamente, faz dançar diante dos olhos uma outra Europa, multifacetada, hibridizada, confusa, própria daquela zona de instabilidade oculta, onde o conhecimento é mediado pelas negociações culturais, e os espaços e conquistas são precários, momentâneos, vividos no cotidiano das relações sócio-político-afetivos-econômico-sexuais. REFERÊNCIAS: BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar na pós-modernidade. Trad. Mauro e Cláudia Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. BHABHA, Homi. “O compromisso com a teoria”. In: O local da cultura. Trad. Myriam Ávila et. al. Belo Horizonte: UFMG, 1998. p. 42-68. ____. DissemiNação: o tempo, a narrativa e as margens da nação moderna. In: O local da cultura. Trad. Myriam Ávila et. al. Belo Horizonte: UFMG, 1998. p. 199-238. DELANEY, Shelagh. Um gosto de mel. Trad. João Marschner. São Paulo: Brasiliense, S/D. DELEUZE, Gilles. Conversações. 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ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Leitura e escrita: processos de autoria e co-autoria Ana Lúcia Gomes da Silva1 RESUMO: Este artigo discute sobre a leitura /escrita e seus processos de autoria e co-autoria a partir da apresentação e reflexão de sete deslocamentos que nos possibilitam compreender que ler e escrever traz implicações de diversas ordens, tais como: comprometer consigo e com o outro, ser referência de leitura e escrita, possibilitar o diálogo e a co-autora como leitores e produtores de texto, além de perceber a leitura não apenas como prática escolar, mas também, como ato cultural e político que demanda políticas públicas para leitura, e que aponta a formação leitura como um processo multidisciplinar. Objetiva, pois, caracterizar o/a leitor/a como um ser comprometido/a com as transformações sociais, mas também com a de si mesmo. É na verdade compreender sua responsabilidade como sujeito leitor, que ao transformar a si, transforma o outro e a outra, pelo ato educativo, pelo exemplo, pela reflexão que possibilita. Aponta ainda algumas possibilidades transformativas advindas do ato de ler e escrever, além de refletir sobre o poder da leitura como maior possibilidade de inserção social, organização de classes, senso crítico, articulação política, e, sobretudo, modificação da estrutura social vigente se articuladas a outras transformações sociais. Afinal, os saberes se produzem e se compartilham através de determinados tipos de discursos, desde os científicos aos narrativos, tanto nos relatos literários como na vida cotidiana, passando por toda gama de discursos profissionais. Finalmente, o texto nos convida a compreender o nosso papel como mediador/a e orientador/a dos processos de leitura e escrita dos alunos e alunas. O que significa sermos leitores/as e produtores de texto de diversos gêneros textuais, em potencial dos gêneros acadêmico-científicos? Palavras - chave: Leitura -escrita; Discursos; Deslocamentos; Textos; Autoria-co-autoria; ABSTRACT: This article discusses the issue of reading/writing. It also discusses the process of authorship and co-authorship. The reference is a presentation and reflection of seven points which make us possible to understand that reading and writing imply a series of aspects such as: having a compromise with him/herself and with the Other; being a reference of reading and writing; making a dialogue possible in the condition of readers and producers of texts. Besides these aspects, it is necessary to perceive reading not only as a school practice but also as a cultural and political act which demands public policy for reading that points this formation as a multi instruction process. This work aims at identifying the reader as a person engaged with social changes and with him/herself. It means to understand his/her responsibility as a reader who by transforming him/herself will be transforming the Other, by educative act, by giving examples, by creating possible space for reflections. It also points out some transforming possibilities coming from the act of reading and writing. The reading power offers better possibilities to social inscription, class organization, critical sense, political articulations, and above all, modifications of the current social structure if it is articulated with other social transformations. After all, knowledge is produced and disseminated through certain types of discourses, from the scientific to the narrative ones in the literary reports and in the everyday life going through a series of professional discourses. Finally, the 1 Universidade do Estado da Bahia - UNEB/ DCH IV. Núcleo de Estudos Orais Memória e Iconografia-NEO. Linha de Pesquisa Educação e Linguagem. E-mail: [email protected] ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I text invites us to understand our roles as mediator and guider of reading and writing processes of students. What does it mean to be readers of texts of several textual genders, potentially academic-scientific genders? Key words: Reading-writing; Discourses; Movements; Texts; Authorship/co-authorship. 1) Leitura: transformação de si e do outro “Ser leitor/a é sentir-se comprometido com seu estar no mundo e com a transformação de si, dos outros, das coisas; é acreditar que se apreende o mundo quando se compreende o que o faz ser como é”. (Jean Foucambert, 1994). Se ler é provocar mudanças é sentir-se comprometido com seu ser e estar no mundo, conforme nos sinaliza Foucambert na epígrafe que abre este texto, então proponho que façamos alguns deslocamentos necessários, a fim de que possamos olhar retrospectivamente e prospectivamente sobre nós mesmos, nossos atos, nossas leituras e o que verdadeiramente nós faz leitores e leitoras. Primeiro deslocamento: Considero como primeiro deslocamento o ato de fé, de crença, de vontade, é esta última quem nos move e também nos comove. A fé a que me refiro não é uma fé religiosa, embora não a exclua, mas uma fé como vontade política, intencional, uma fé mais ampla, que como nos convida poeticamente Gonzaguinha é preciso ter “Fé na vida, fé no homem, fé no que virá, nós podemos tudo, nós podemos mais [.... ]2 De fato podemos mais, se as políticas públicas para a cultura do livro e da leitura, promoverem acesso a todos que estão alijados do contato aos bens e usufrutos culturais. Se as nossas ações forem constantes, permanentes e deslocadoras, sim, se nos permitirmos alçar 2 Ver “Nunca pare de sonhar” disponível em http://vagalume.uol.com.br/gonzaguinha/directory/. Acesso em 03.08.08. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I vôos mais ousados e altos em prol da formação leitora de crianças, idosos, jovens, docentes, para que a leitura seja uma prática social concreta no cotidiano, modificando a realidade insossa de muitas pessoas. É preciso começar agora, nem antes, nem depois, pois nossos discursos precisam ser ações e não mais projetos, idéias, intenções. Reverter essa realidade perversa com violências e carências de todas as ordenas é nosso desafio maior e já está posto há muito, muito tempo.... Observem que na epígrafe que abre este texto, Foucambert conceitua que ser leitor/a é ser comprometido/a com as transformações sociais, mas também com as transformações de si mesmo, é na verdade compreender sua responsabilidade como sujeito leitor, que ao transformar a si, transforma o outro e a outra pelo ato educativo, pelo exemplo, pela reflexão que possibilita, pela “escuta sensível”, utilizando uma expressão de René Barbier (2000), que nos permite conhecer melhor nossos amigos, colegas, nossos pares, nossos alunos e alunas. Mas, como nos diz Guiomar Grammont, (1999, p.1), ao afirmar: Ler devia ser proibido [...] acorda os homens/mulheres3 para as realidades impossíveis, tornando-os/as incapazes de suportar o mundo insosso e ordinário em que vivem. [...] A criança que lê poderá tornar-se um adulto perigoso, inconformado com os problemas do mundo, induzindo a crer que tudo pode ser de outra forma. E com certeza a realidade pode ser de outras e outras formas, com outros contornos e possibilidades, pois o poder advindo da leitura é transformador, desestruturante, inebriador, revolucionário, demasiadamente político, intencional, e traz sentidos plurais. 2. A leitura e a formação do leitor: os sentidos construídos ao longo da história Segundo deslocamento: Formação de leitores e leitoras: um processo multidisciplinar A compreensão da leitura como possibilidade transformadora é defendida por inúmeros teóricos que discutem o ato de ler, dentre eles, Ezequiel Theodoro da Silva (1988, p.99), que diz: “: [...] a leitura, se empreendida criticamente, vem facilitar o surgimento da reflexão e da 3 Grifo nosso para leitora na epígrafe e mulheres na citação de Guiomar. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I tomada de posição. ‘Reflexão’ significa a apropriação do nosso destino de existir [...] Por isso mesmo deve ser colocada como instrumento de participação, mudança e renovação sóciocultural”. Refletir, escrever, falar, sobre a leitura e o poder que dela emana, nos coloca numa ebulição profunda, inquietante, de deslocamentos, irrupção, fruição, responsabilidades compartilhadas, em que todos os sentidos e poros ficam num alerta constante, num frenesi próprio e apropriado dos que, como eu, sabem que formar leitores/as é tarefa complexa, que transcende o ambiente escolar, o currículo, as disciplinas, por ser mais que uma prática escolar, ser uma prática cultural, política, portanto, intencional e militante, que tem como premissa primeira, a interlocução/engajamento de todos os profissionais das diversas áreas do conhecimento. A leitura sempre foi tema de estudos, debates, pesquisas, terreno fértil para discussões fecundas e permeadas de sentidos plurissignificativos. Roger Chartier, (2001), ao discutir a história de leitura, o papel do leitor, do livro, as práticas de leitura, chama atenção para “as revoluções da leitura”, pois afirma que quando a leitura se estabelece no mundo das escolas, das universidades, ela se torna uma prática intelectual. A leitura monástica seria a da “mastigação’, o ritual era ler em voz alta, de forma atenta, corpo disciplinado, havendo aí um controle, uma vigilância, o corpo recebe a palavra sagrada por meio desta leitura que se vincula á prece, enquanto que a leitura do mundo escolástico é por sua vez uma leitura que busca o deciframento da compreensão. Ainda de acordo com Roger Chartier, (2001), nos séculos XII ou XIII, surge uma técnica ou método de leitura, que vai do deciframento da palavra e compreensão do sentido do texto à compreensão da doutrina. Deseja-se ajustar a mensagem religiosa ou a utilidade na vida cotidiana – a chamada alfabetização funcional, que chega ao longo dos séculos XIX e XX, tendo a definição da leitura como acesso à cultura, a um mundo de obras que devem permear a mente e a ética. 4 Já nos séculos XVI e XVII, a leitura silenciosa, é tida como perigosa, pois permite a cada um desenvolver seus próprios pensamentos a partir dos textos recebidos, sem possibilidade de 4 O estudo realizado por Roger Chartier toma como base a sociedade francesa e estende alguns dados para a pesquisa feita também na Inglaterra. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I controle por parte da comunidade ou da autoridade, é o que hoje discutimos como autonomia do leitor, que desde os séculos citados, já se delineia nas frinchas, na desobediência à ordem estabelecida. O leitor caçador, 5como exprime Michel de Certeau, (1994), é nômade, caça em terras alheias sem tomar o lugar de/do autor. É necessário, portanto, que o leitor assuma a sua condição de leitor “criativo e caçador” conforme assinala Michel de Certeau (1994, p.228) e busque na leitura as várias formas de enfrentamento, análise e reflexão do que lê, percebendo antes de mais nada “o que lê, para que lê e por que lê.”Quem lê reflete, analisa, escreve. Ao ler, o leitor estabelece a relação dialógica com o texto, assume posturas através do processo dialético, rompe com o estabelecido e converge para a (re)elaboração criativa do pensamento, torna-se co-autor simultaneamente. Assim, fica evidenciado o duplo registro histórico do ensino escolar e dos seus suportes, a fim de que compreendamos a definição de leitura e seus fins. No primeiro caso, a alfabetização funcional, utiliza como suporte as cartilhas, catecismos e silabários – material que mistura uma didática religiosa com a aprendizagem da leitura. Já a leitura numa perspectiva de abertura e não inculcação ideológica, e sim, agudização do senso crítico, leva a inventar manuais e enriquecer seus conteúdos. É, pois, fundamental, perceber que ao longo do processo histórico, a educação das classes populares era vista como um elemento de desordem, pois podia desequilibrar a sociedade e fazer com que os filhos dos camponeses e artesãos desejassem sair de sua condição multiplicando a população de intelectuais frustrados que cresceu na Inglaterra das primeiras décadas do séc. XVII ou na França de meados do séc. XVIII. Observem, pois, o poder da leitura como maior possibilidade de inserção social, organização de classes, senso crítico, articulação política, e, sobretudo de modificação da estrutura social vigente, provocando o receio, o medo, o cerceamento por parte dos poderes constituídos, que viam na organização dos camponeses, a leitura como elemento de desordem, 5 O moleiro humilde do séc. XIV em Friuli, interior da Itália.,Menocchio, conforme descrito em O Queijo e os vermes , de Carlos Ginzburg,1987, foi leitor caçador e ousou ler para além da ordem estabelecida, o que lhe valeu o processo de inquisição pela igreja católica. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I de não-submissão, de enfrentamento das adversidades, mesmo em contextos tão pouco democráticos. Não é à toa, que as comunidades camponesas, e urbanas, conforme estudos de Roger Chartier, (2001), têm a partir do séc. XVII, a idéia de que se um filho sabe ler e escrever pode modificar sua condição, encontrar emprego, estar a serviço de uma casa de notáveis ou de aristocratas. Outro fato interessante no séc. XVIII são os anúncios de jornais, nos quais as pessoas solicitam algum empregado ou empregada que soubesse ler ou escrever para ajudar os patrões nas tarefas cotidianas. O ato de ler requeria certas capacidades de leitura conforme as formas do texto. Por exemplo, se aprendia a ler com os textos impressos e desta maneira, alguns leitores, podiam ler a letra impressa em caracteres romanos, mas não a escrita à mão. Para ler um texto impresso, supunha a capacidade de produzi-lo e que antes de ler aprendera a escrever. Estes dois momentos estão separados em todas as doutrinas e práticas pedagógicas. Ensinava-se a ler separado do ensinar a escrever, o ensinar se dava de forma dicotômica. Isso se deu até o começo do século XIX, quando se estabelece na França, a simultaneidade de ambas as aprendizagens.6 Havia, portanto, muita gente que podia ler, mas que nunca aprendeu a escrever. E a assinatura, pertence, pois, a essa aprendizagem da escrita. E as mulheres onde estão neste contexto? Qual a inserção das mesmas no mundo da leitura/escritura?7 Às mulheres, bem como aos alunos mais humildes, dos meios dos artesãos e dos camponeses, a escola oferece apenas a aprendizagem da leitura, mas não a da escrita. O que ratifica a exclusão, discriminação dos grupos das mulheres, dos pobres e camponeses. Entretanto, havia nos séculos XVII e XVIII, muita gente que conquistou a escrita e a leitura 6 Cf. para maior aprofundamento os estudos de Roger Chartier, 2001, In: Cultura escrita, Literatura e História, que explicita juntamente com outros autores, como Daniel Goldin, Carlos Aguirre, Anaya Jesús, o mapa da história dos livros, a compreensão da cultura escrita, as práticas de leitura, o papel do leitor e da leitura a compreensão das obras clássicas, e canônicas, as fontes e os meios que permitem o historiador refletir sobre o ato sempre efêmero e misterioso que é a apropriação de um texto. 7 No Brasil a educação feminina aponta as últimas décadas do século XIX como sendo necessária a educação para a mulher. Denuncia-se a falta de mestres e mestras com boa formação, devido ao abandono da educação nas províncias, já sinalizado desde o início do império. Em resposta aos reclamos sobre a grave situação da educação, em meados do séc. XIX, algumas medidas foram tomadas e logo começaram a ser criadas as primeiras escolas normais para formação docente. Para maior aprofundamento cf.Mulheres na sala de aula de Guacira Lopes Louro, 2000. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I fora de todo o marco escolar. Essa entrada na cultura escrita sem a mediação da escola, deu-se por meio do encontro de algum personagem singular com os livros, conforme atestam algumas autobiografias do século XVIII, na França. Tudo se dá com, na e pela leitura. Ela agudiza o senso crítico, faz perceber a ideologia subjacente aos textos veiculados socialmente. Faz interagir intelectualmente com discursos elaborados dentro de regras específicas com sintaxe, léxico, e universo de referências próprias. A leitura implica tensão, desacordo, não linearidade, debate, diálogo, mudanças, humildade, pois às vezes não adentramos em certos textos com facilidade, necessitamos voltar a outras leituras para depois retomar aquela que nos pareceu impossível compreender naquele momento, naquele contexto. Devemos, pois, utilizar nosso acervo de leituras realizadas no sentido lato sensu (de textos não apenas escritos) e buscar por analogia, estabelecer sentidos/diálogos, com as novas leituras que nos são apresentadas. Ler é, pois, vital. Por isso, Umberto Eco (1995, p.44), afirma: “As leituras falam de leituras e todo leitor lê uma história já lida”. Ler é, sobretudo, ler os implícitos, os não-ditos, conforme já mencionamos neste texto. Terceiro deslocamento: Leitura e poder Depois dessa primeira reflexão panorâmica na história, percebemos o quanto a leitura sempre esteve vinculada ao poder, a inserção social, a libertação, a compreensão do mundo, de si, e do outro/a, como formas concretas de existência significativa. Assim afirma Alberto Manguel, (1997,p.19-20): Todos nós lemos a nós e ao mundo à nossa volta para vislumbrar o que somos e onde estamos. Lemos para compreender, ou para começar a compreender. Não podemos deixar de ler. Ler, quase como respirar é nossa função essencial. Aprendi a escrever muito tempo depois. Aos sete anos de idade. Talvez pudesse viver sem escrever, mas não creio que pudesse viver sem ler. Ler - descobri-vem antes de escrever [...] uma sociedade pode existir sem escrever, mas nenhuma sem ler. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Nesse sentido, o nosso alargamento acerca do poder que a leitura nos concede permite que, para além da palavra escrita, leiamos o mundo, as imagens, a cidade, a escola, os outros e a nós mesmos numa postura sempre interrogante, desconfiada, que nos impele a pensar sobre o grande texto social que nos engendra, e nos faz permanentemente ativos no mundo. Assim, nossa concepção de leitura e de leitor se respalda nas idéias de Paulo Freire, (1985, p. 11), que diz: “o ato de ler não se esgota na decodificação pura da palavra escrita, mas se antecipa e se alonga na inteligência do mundo”. Portanto, o leitor na concepção freiriana, lê para além do código escrito, lê as muitas linguagens disponíveis na cultura e, portanto, no mundo. Construindo sentido, sendo co-autor, interagindo sempre com a leitura realizada. Sobre o leitor Freire (1985, p.11) afirma: “A compreensão do meu ato de ler o mundo em particular em que me movia é absolutamente significativa [...] re-crio, re-vivo, no texto que escrevo, a experiência vivida quando ainda não lia a palavra.” É nessa leitura, que acreditamos. Na que nos move ao encontro do conhecido, do desconhecido, do dócil, do incômodo, e que nos enriquece e nos transforma de algum modo. Para tanto, se faz necessário ler tudo o que nos rodeia através do sentido táctil, olfativo, visual, auditivo entre outros, deixando vir às memórias e as experiências passadas que fazem parte do percurso do leitor/a, é fazer o que nos assinala Paulo Freire: (1985, p.12) “a leitura da palavramundo”. Mas o poder da leitura é pulverizado e traz implicações diversas às nossas ações cotidianas, desde as mais simples como pegar um ônibus, verificar o troco, tomar um remédio, ler/fazer uma receita, ler um manual, saber chegar numa rua, pagar os boletos nos cachs eletrônicos, sacar/transferir dinheiro, nos faz sentir autônomos ou dependentes, e/ou alijados de um processo social mais amplo, cujas demandas exigem mais e mais do sujeito leitor/a, já que o mundo da oralidade se organiza de forma diferenciada do mundo da escrita já que nos movemos entre palavras, imagens, sons e cores. O analfabeto é mais dependente, vive o drama de não se sentir incluído no mundo da escrita para realizar ações das mais simples às mais complexas. Usa estratégias diversas para ler o mundo e nele se movimentar com eficácia. Ler os ônibus pelas cores, faixas, observam as ruas e referências nelas contidas, mas sabem que são precárias e provisórias suas estratégias, pois o dinamismo, as mudanças de ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I cores, design, de rota, entre outras, os deixam perdidos, atônitos dependentes de outras pessoas, às vezes, ou na maioria das vezes, são ludibriados, roubados, enganados. Quarto deslocamento - Leitura e escrita: práticas sociais concretas E para que essa reflexão se contextualize como prática social concreta, convidamos para o diálogo novamente Eliana Yunes, (2001) que afirma: Na sociedade brasileira, uma das metades não lê porque não sabem, a outra porque não quer. Por que então insistimos na escola? Pelo diploma, pelo cumprimento formal de um rito ao universo de produção? Repito, vamos à escola “aprender a ler” e saímos de lá detestando tudo que se relacione com ela: estudo, pesquisa, produção textual etc. (YUNES, 2001, p.1) Esse quadro de desigualdade no acesso aos bens e usufrutos culturais nos coloca permanentemente atentos e mobilizados, por entendermos ser perverso e gritante o não-acesso ao mundo da leitura do código escrito, haja vista que nosso processo de alfabetização é entendido, hoje, como uma aprendizagem que dura a vida toda e não apenas um momento pontual da vida do sujeito leitor/a. Cabe, pois, a todos/todas educadores/as o desafio de formar leitores/ras. Para Eliana Yunes, (2001, é preciso considerar que a leitura é, [...] a mais cara moeda do século: quem está informado pode com mais rapidez e clareza fazer escolhas. [...] Sem dúvida a leitura por si só, não resolve os problemas sociais e/o individuais, mas ter opções, compreender as situações, é menos amargo do que ser levado, sem domínio, ao que se passa em torno. ( YUNES, 2001, p.2), É por entendermos os poderes que a leitura nos concede e que está no bojo de nossas memórias, nossas lutas, nosso poder de reinventar, ousar, compreender, discordar, desconfiar, que, ampliamos nossa concepção de poder-saber a partir dos conceitos foucoutiano ( 2003, 2004), de poder-saber, haja vista que as relações sociais são marcadas pelo poder, o qual nos incita a estar na arena de luta pela formação continuada de alunos/as, professores/as, pesquisadores/as, uma vez que somos todos/todas eternos aprendizes. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Para Michel Foucault, (2004 p.21), não há saber neutro. Todo saber é político, porque todo saber tem sua gênese em relações de poder. Nesse sentido, a amplitude do que afirmam as teóricas feministas, ratificam o entendimento do saber-poder, ao afirmarem que “o pessoal é político”, e que é citado por Gabriela Castelhanos, (1996), de forma a dialogar com Michel Foucault (2003,2004), no seu entendimento acerca do saber-poder, o qual acrescenta que saber e poder se implicam mutuamente: não há relação de poder sem constituição de um campo de saber, como também reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder. Todo ponto de exercício do poder é, ao mesmo tempo, um lugar de formação de saber. O saber funciona na sociedade dotado de poder. É enquanto é saber que tem poder. É a partir dessas reflexões que a tessitura do poder, saber discursivo se encarnam nos cenários investigados por Michel Foucault. O saber para Michel Foucault, (2004, p.14-15) nos remete a uma compreensão sobre as relações humanas produzidas pelas culturas e nas sociedades. O saber é, portanto, relativo ao invés de absoluto e é objeto de lutas políticas, uma vez que se constitui em um dos meios pelos quais se constroem as relações de poder. Os saberes se produzem e se compartilham através de determinados tipos de discursos, desde os científicos aos narrativos, tanto nos relatos literários como na vida cotidiana, passando por toda gama de discursos profissionais. Em relação ao poder Michel Foucault, (2004, p. 15) afirma: O poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona como uma maquinaria, uma máquina social que não está situada em um lugar privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina por toda a estrutura social. E esse caráter relacional do poder implica que as próprias lutas contra seu exercício sejam feitas dentro da própria rede de poder, teia que se alastra por toda a sociedade e a que ninguém pode escapar. Ele está sempre presente e se exerce como uma multiplicidade de relações de força. É exatamente nessa relação de forças, de resistências, de redes discursivas móveis e transitórias, que se distribuem por toda a estrutura social os mecanismos e estratégias do saber-poder, os quais estão localizados em diferentes pontos na estrutura social funcionando como rede de dispositivos ou mecanismos que nada ou ninguém escapa; não há fronteiras ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I nem limites, são movediços, circulares e circundantes e produzem sentidos explícitos, implícitos e subentendidos. Esperamos que os leitores/as a partir das reflexões tecidas até aqui, já tenham se dado conta do quanto ler é poder, bem como tenham compreendido que o interesse de formar leitores é demasiadamente perigoso para todos os segmentos sociais, instituições, poderes constituídos e institucionalizados que não queiram ser questionados, nem modificados frente às reivindicações dos que se indignam diante do não-acesso irrestrito a todos que têm fome de justiça social, de leitura, palavras, sons, imagens, histórias, mapas, cores, letras, paisagens, corpos, números, vida... Escrever e se inscrever no texto que produz: o processo de autoria Quinto deslocamento – Professor/a: mais que avaliador de um texto, um orientador/a. Segundo Pereira (2007, p.2), discutir sobre o ensino-aprendizagem de produção de texto, é buscar compreender como a sociedade e a linguagem estabelecem relação de mútua constituição como essa relação de interdependência é fundamental para a compreensão e desenvolvimento de práticas de ensino e de aprendizagem da escrita em diferentes espaços sociais de letramento. É procurar compreender a escrita enquanto ação social. Assim, os sujeitos produtores de textos perceberão os diferentes gêneros que circulam socialmente e a partir das demandas da escola, da universidade e das suas necessidades pessoais, aprenderá como escrevê-los. Mas para isso, é preciso encontrar mediadores desse processo, que funcionem como orientadores, leitores dialógicos que realizam intervenções sistemáticas na escrita dos alunos e alunas, de forma a sistematicamente fazê-los repensar seu modo de dizer, de usar e operar com a linguagem, considerando as condições de produção já recorrentemente conhecidas e divulgadas nas obras de Geraldi ( 1999). 1) Tem o que dizer? 2) Tem uma razão para dizer o que se tem a dizer? 3) Tem para quem dizer? ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I 4) Constitui-se como locutor que se compromete com o que diz? É inegável que o sujeito constitui-se pela experiência e que esta experiência, refletida nos gêneros acadêmicos científicos produzidos ao longo da itinerância acadêmica na universidade, a exemplo do memorial formação, memorial de leitura, artigos científicos, artigos de relato de experiência, ensaio monográfico, etc, marcam as conquistas do sujeito que se mostra e se expõe, mas, ao fazer isso, escolhe o que quer que saibamos dele, ou melhor, exibe-se no que ele julga ser o melhor de si. Não sem dificuldades, relutâncias, pausas, incompletudes, mas com todo esse forjar que forma e transforma no que somos e no que continuadamente ainda estamos construindo de nós e sobre nós. Vão sendo ratificadas a cada semestre de convivência com os alunos e alunas do curso de Letras, que essas transformações são forjadas e se constituem como um olhar retrospectivo sobre si mesmo, sobre o fazer docente exigindo ainda, um olhar prospectivo sobre a formação desse profissional que está sob a nossa co-responsabilidade, pois sendo ele sujeito de sua aprendizagem, responsável por sua formação de leitura e escrita, compartilhamos responsabilidades, pois também nos cabe mediar essa formação. Quando falamos de mediação sabemos que pode haver interação sem mediação, mas nunca uma mediação sem interação. A educação, de fato, pode ser utilizada pelos educadores e educadoras como possibilidade de transformação humana, pois, na expressão do educador Paulo Freire (2001, p.55): “Ensinar exige consciência do inacabamento. O inacabamento do ser humano. Onde há vida, há inacabamento. Mas só entre homens e mulheres o inacabamento se tornou consciente.” Este “inacabamento humano”, que vai sendo revelado ao longo de cada semestre letivo, vai sendo força motriz para o que o educador Pedro Demo chama de “esforço reconstrutivo do aluno/a”, pois sem esse esforço não é possível crescimento intelectual, muito menos formar leitor autônomo e produtor de texto que se traduza em seu discurso representando os diversos papéis que os lugares sociais exigem. Como por exemplo, lugar do aluno, lugar do professor, lugar do estagiário, lugar do representante do DA, etc. Daí ser possível acreditarmos na mudança de cada ser humano mediada, entre tantos fatores, pela ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I educação, porque é ela que torna homens e mulheres conscientes de seu ser/estar e fazer no mundo. As histórias de vida/de leitura dos sujeitos com os quais convivemos e partilhamos saberes, nos faz refletir sobre as representações acerca de si mesmos e dos outros, as tristezas, as reflexões, os sonhos e as experiências vivenciadas, todos esses elementos são passíveis da análise, de pesquisa, de redimensionamento do nosso fazer pedagógico. E nos impele a compreender o nosso papel como mediar e orientador dos processos de leitura e escrita dos alunos. O que significa sermos leitores e produtores de texto de diversos gêneros textuais, em potencial dos gêneros acadêmico-científicos? Como ensinar o que, o que não praticamos e não exercitamos? Como realizar a análise lingüística dos textos produzidos pelos alunos do curso de Letras? É, pois, fundante que sejamos referência do nosso discurso e do nosso fazer acadêmico. Que sejamos leitores e produtores dos gêneros acadêmico-científicos e partilhemos nossas produções em sala de aula e em tantos outros espaços de debate e circulação do saber. Sexto deslocamento - Aprende-se a escrever, escrevendo. Jorge Larrosa (2001) demonstra que a compreensão sobre o que nos toca, nos faz saber algo que não está nas informações lidas, mas no vivenciar dos fatos, é isso é o desafio que nos impele a pensar nos processos de escrita e leitura uma experiência como intransferível. É pessoal. Única. Singular. Plural. É feita de nós, linhas, pausas, emoções, cores, tons que variam e se mesclam, num ir e vir de meditações, confissões, desabafos, crenças que vão brotando, como se fosse uma necessidade urgente num momento único, em que ao dizer (re)vive, (trans)forma, forma e (in)quieta. Por isso quem escreve se inscreve no texto que produz. Para Jorge Larrosa (2001, p.3), “[...] a possibilidade de que algo nos aconteça requer parar para pensar, requer um gesto de ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I interrupção, parar para olhar, para escutar, para sentir, tudo isso mais devagar, demorar nos detalhes, calar muito e ter paciência.” Por isso nossa fala nesta mesa-redonda de hoje deve estar permeada com poesia, dores, confissões, emoções, incertezas, tristezas, crenças, fé e esperanças que nos convida a dialogar com as palavras poéticas de Manoel de Barros (1990), que expõe sobre seu processo de criação. Ele diz que assim como se lava roupa no tanque, ao batermos nas palavras, as espumas que ficarem no ralo serão boas para o início do texto. Depois é ir imitando os camaleões que se mostram de formas e cores diversas, sendo lesma, pedra, lata. As palavras do nascer adubam-se de nós; seduzem ao poeta e fazem reaprender a errar a língua, fazendo desse processo uma desarrumação da cartilha. E nosso convite está lançado aos alunos e alunas que compartilham comigo dessa mesa trazendo suas experiências de leitura e escrita em sala de aula, sendo mediadores na formação de outros tantos leitores e leitoras e produtores de texto. Novamente trazemos para nossa reflexão, o educador e escritor Jorge Larrosa (2001, p.3), que afirma: “[...] ninguém pode aprender da experiência do outro a menos que essa experiência seja de algum modo revivida e tornada própria.” Nada pode substituir nossa experiência de escrita e de leitura. Cada leitor traz para si sentidos únicos e marcados pelo que tocou, refletiu e sentiu e isso podemos perceber ao ler e partilhar os textos dos nossos alunos e alunas. Convidamos ainda, para tecer conosco este texto, o educador da esperança Paulo Freire (2002), que militou nobremente pela educação e, portanto, a favor da vida. Para esse educador: “[...] não posso continuar sendo humano, se faço desaparecer em mim a esperança [...] a mudança do mundo implica a dialetização entre a denúncia da situação desumanizante e o anúncio de sua superação, no fundo, o nosso sonho.” (FREIRE, 2002, p. 88). Se esse sonho é coletivo, as mudanças, ainda que incipientes e tímidas, certamente aparecerão e, de forma sensibilizadora e exitosa, lançarão outros convites a tantas outras pessoas em diferentes espaços de aprendizagem. Conclusões ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Em síntese, podemos destacar que ler e escrever são processos que estão imbricados, mas se constituem de diversas formas e distintos objetivos. Nesse sentido, a universidade não pode mais trabalhar de forma fragmentada, isolada em áreas do conhecimento. È fundamental o diálogo entre as áreas, os vários olhares e saberes, a fim de construirmos uma prática menos simplista e mais sistematizada e aprofundada. Para tal, acredito ser imprescindível realizar o que nos aponta Eliana Yunes (1998), que uma prática pedagógica desta natureza não pode ser oferecida por um único professor, sob a pena de se disciplinarizar em uma visão de mundo, um tipo de leitura sob um determinado recorte ou com interpretantes recorrentes. Construir um corpo docente circulante, de vários departamentos, de diferentes grupos de pesquisa, é imperioso, de forma que buscando todos os mesmos fins, contribuam com suas diferentes práticas interpretativas, suas diferentes leituras, para a formação do leitor/cidadão entre universitários. É preciso provocar deslocamentos para que a prática multidisciplinar comece a emergir. A vida é por excelência multidisciplinar, já observaram como produzimos nossas existências? Se formos refletir sobre uma atividade cotidiana simples como, por exemplo, comprar um livro, fazer o supermercado, acionamos conhecimentos matemáticos, geográficos, históricos, culturais e ainda vamos lendo, selecionando, inferindo, realizando escolhas que nos incita a articular conhecimentos, habilidades e competências variadas ,mas não nos damos conta disso. Realizamos essas atividades de forma automatizada, sem nos dar conta das leituras realizadas durante todo a nossa atividade. É urgente, pois, que constantemente façamos nossas reflexões sobre nossa própria capacidade de formar leitor e leitora. Forma-se leitor/a sem ser leitor e leitora? Impossível. Formar leitores e leitoras exige trabalho prático, ação recorrente, e intelectiva constante. As reflexões apontadas neste caso já são um começo para que a universidade constitua o espaço da discussão e das propostas interdisciplinares e multidisciplinares, em ações conjuntas e efetivas. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I REFERÊNCIAS BARROS. Manoel. Gramática expositiva do chão. (poesia quase toda). São Paulo: Civilização Brasileira, 1990. BARBIER, René. A pesquisa-ação. Brasília: Plano, 2002. CHARTIER, Roger. Cultura escrita, literatura e história : conversas de Roger Chartier, com Carlos Aguirre Anaya, Jesús Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio Saborit. Porto Alegre: Artmed, 2001. FOUCAULT, Michel. Estratégia, poder–saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2004. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1985. 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ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I PEREIRA, Rodrigo Acosta. Ensino de produção textual: questões teóricas e didáticas. Revista eletrônica de divulgação científica em Língua Portuguesa, Lingüística e Literatura. Ano 04 n.06-1º Semestre de 2007. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Da vida rasgada. Imagens e representações sobre o negro em Madame Satã ∗ Ari Lima RESUMO: O filme Madame Satã, de Karim Aïnouz, transcorre nos anos 1930, período em que o Estado brasileiro, as elites e até mesmo o cidadão comum – homem ou mulher, pobre ou abastado, negro, branco ou mestiço - se engajaram num esforço de modernização das instituições, das artes, dos gostos e das atitudes. Naquela ocasião, as capitais brasileiras, em particular a cidade do Rio de Janeiro, então distrito federal, evidenciavam este ideal através de políticas de saneamento e eugenismo, assim como através da implantação paulatina da indústria cultural do cinema, do disco e do rádio como meio de informação e entretenimento. Além da literatura e do teatro, o cinema, o disco e o rádio se transformaram em novos meios de reverberação e mesmo redefinição do imaginário sobre a nação brasileira. A propósito disso, este artigo tratará de duas questões fundamentais suscitadas em relação ao negro e à cultura negro-africana no Brasil. A primeira delas diz respeito à permanência de imagens e representações pré-modernas sobre o negro que configuraram o ideal de modernidade no Brasil. A segunda, diz respeito às atitudes dos negros no sentido da adesão e reinterpretação de um projeto das elites de modernização da sociedade brasileira que previa o negro e a cultura negro-africana como objeto e matéria-prima. Palavras-chave: Negro; Madame Satã; Modernidade RÉSUMÉ: Le film "Madame Satã" de Karim Aïnouz se passe dans les années 30, période au cours de laquelle l'Etat, les élites et même le citoyen commun - homme ou femme, pauvre ou nanti, noir, blanc ou métis - se sont engagés dans un effort de modernisation des institutions, des arts, des goûts et des attitudes. A cette occasion, les principales villes brésiliennes, Rio de Janeiro en particulier, alors capitale, mettaient en évidence cet idéal à travers des politiques d'assainissement et d'eugénisme, et enfin, à travers l'implantation progressive de l'industrie cuturelle du cinéma, du disque et de la radio comme moyen d'information et de divertissement. Au-delà de la littérature et du théâtre, le cinéma, le disque et la radio se sont transformés en de nouveaux moyens de réverbération, voire même de redéfinition de l'imaginaire sur la nation brésilienne. Cet article traitera, en ce sens, deux questions fondamentales suscitées par rapport au noir et à la culture négro-africaine au Brésil. La première concerne la permanence d'images et de représentations prémodernes du noir qui ont donné forme à l'idéal de modernité au Brésil. La seconde porte sur les attitudes des noirs à l'égard de leur adhésion à un projet des élites, et de leur réinterprétation, de modernisation de la société brésilienne qui considérait le noir et la culture négro-africaine comme objet et matière première. Mots-clés: Noir; Madame Satã; Modernité Ari Lima é antropólogo e Prof. Adjunto do Departamento de Educação do Campus II/ UNEB e Coordenador do Núcleo das Tradições Orais e Patrimônio Imaterial (NUTOPIA)/Campus II/UNEB. Como autor se responsabiliza exclusivamente por todas as idéias e argumentos apresentados ao longo deste artigo. Entretanto, agradece aos queridos alunos e alunas do 3º semestre, 2006.1, do curso de História do Campus II, da UNEB, pelas sugestões críticas sobre o filme Madame Satã em debate realizado em sala de aula. E-mail: [email protected] ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Na primeira seqüência de imagens do filme Madame Satã, de Karim Aïnouz, enquanto observamos o rosto abatido do personagem João Francisco dos Santos, o mesmo Benedito Itabajá da Silva ou simplesmente Madame Satã, interpretado pelo ator Lázaro Ramos, ouvimos uma voz em off que diz: O sindicado, que também diz-se chamar Benedito Itabajá da Silva, é conhecidíssimo na jurisdição deste distrito policial como desordeiro, sendo freqüentador contumaz da Lapa e suas imediações. É pederasta passivo, usa as sobrancelhas raspadas e adota atitudes femininas, alterando até a própria voz. Não tem religião alguma, fuma, joga e é dado ao vício da embriaguez. Sua instrução é rudimentar, exprime-se com dificuldade e intercala em sua conversa palavras da gíria do seu ambiente. É de pouca inteligência, não gosta do convívio da sociedade por ver que ela o repele dado os seus vícios. É visto sempre entre pederastas, prostitutas, proxenetas e outras pessoas do mais baixo nível social. Ufana-se de possuir economias, mas como não ofere proventos de trabalho digno, só podem ser essas economias produto de atos repulsivos ou criminosos. Pode-se adiantar que o sindicado já respondeu a vários processos e sempre que ouvido em cartório, provoca incidentes e agride mesmo os funcionários da polícia. É um indivíduo de temperamento calculado, propenso ao crime e por todas as razões inteiramente nocivo à sociedade. Rio de Janeiro, Distrito Federal, 12 dias do mês de maio do ano de 1932. O trecho acima transcrito remete a uma série de imagens e representações sobre o negro recorrentes na literatura, na música, no cinema, na televisão, em obras de importantes intelectuais tais como Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) e, fundamentalmente, no imaginário coletivo brasileiro. Além disso, remete também à condição social do negro desde que a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, em 1888, extinguiu o sistema escravocrata e transformou o negro escravo em Homem livre e cidadão. Ou seja, remete a uma condição social modelar nas grandes cidades do Brasil, como era o caso do Rio de Janeiro nos anos 1930, então Distrito Federal, cidade onde se passa o filme Madame Satã e onde viveu João Francisco dos Santos. Os anos 1930 foram um período em que o Estado brasileiro, as elites e até mesmo o cidadão comum – homem ou mulher, pobre ou abastado, negro, branco ou mestiço - se engajaram num esforço de modernização das instituições, das artes, dos gostos e das atitudes. Daí que o filme Madame Satã, que transcorre nos anos 1930, suscita duas questões ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I fundamentais em relação ao negro e à cultura negra-africana1 no Brasil. A primeira delas diz respeito à permanência de imagens e representações pré-modernas sobre o negro que configuraram o ideal de modernidade no Brasil. A segunda, diz respeito às atitudes dos negros no sentido da adesão e reinterpretação de um projeto das elites de modernização da sociedade brasileira que previa o negro e a cultura negra-africana como objeto e matéria-prima (cf. GOMES, 1980; VIANNA, 1995; STAM, 1997). Ao longo das próximas páginas abordarei uma e outra questão. De um regime estético para o corpo negro O corpo negro é imagem e representação em Madame Satã. Neste caso, o termo imagem denota a designação e semelhança de um objeto ou pessoa a um registro visual ou gráfico correspondente, uma vez que comunga algumas propriedades em comum com a coisa denotada. Apresentada num suporte, a tela do cinema, a imagem composta implica na admissão de uma presença virtual, mas também sugere uma existência contígua, não visível, fora dos limites materiais do suporte fílmico (cf. XAVIER, 1984). Assim, a imagem é uma ilusão de realidade. A imagem é representação. 1 Ao usar as categorias “negro”, “afro-descendente” e “cultura negro-africana”, pretendo me afastar e combater tanto o viés do discurso freyriano sobre a hibridez quanto um outro discurso que tende a essencializar origens “tribais” africanas ou perpetuar a pureza cultural no Novo Mundo colonizado, desconsiderando a agência e a reinvenção mesmo quando se tratou de resistência cultural e afirmação de “África” na diáspora. Ao contrário do que possa parecer, ao usar as categorias “negro”, “negro-africano” e “afro-descendente” pretendo me referir a sentidos diferentes. Com a categoria “negro” quero enfatizar uma idéia projetada do branco que naturaliza, racializa e desistoriciza o processo social ao qual estiveram submetidos africanos e seus descendentes. Neste caso, o que mais se evidencia é uma história de subordinação, aparente passividade cultural, dessubstancialização e estetização da diferença representada pelo corpo negro. Com a categoria “afro-descendente” quero enfatizar a negação do negro como cidadão brasileiro pleno, seu movimento de crítica, de resistência à inferiorização e à sua anulação como sujeito social. Postulo também, neste caso, uma nova identidade afrodiaspórica e transnacional. Com a categoria “negro-africano” quero enfatizar um movimento oscilante de africanos e descendentes no Brasil que ora se dirige à África como mito, ideologia ou transitividade, ora em direção à sua representação como “negro” (cf. ALVES, 2003). ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I A possibilidade de composição de imagens e representações pelo cinema trouxe questões novas e específicas desde o seu primeiro momento. Walter Benjamin (1982), ao refletir sobre a especificidade do discurso da obra de arte na época de sua normativa reprodutibilidade técnica ainda na primeira metade do século XX, quando as noções de aura, de autenticidade e de valor cultural antigas foram destituídas ou deslocadas pelo valor de troca e consumo industrial, elaborou uma reflexão sobre o regime e um novo poder de representação da imagem cinematográfica. Para Benjamim, se a obra de arte burguesa tradicional, como artefato cultural e estético ensimesmado, elitista, era capaz de deslocar o receptor e, deste modo, mobilizar sua consciência e imaginação, as novas e vindouras técnicas de produção de imagens penetravam mais na vida tanto quanto mais se distanciavam porque a fragmentavam e a refratavam todo o instante. O cinema, para Benjamim, devolvia o real artificializado uma vez que se esforçava para esconder ou dissimular sua intervenção. Logo, a captação imediata da realidade que prometia era quimera e desencanto. É bastante claro, conseqüentemente, que a natureza que fala à câmera é inteiramente diversa da que se dirige aos olhos. Diferente, sobretudo, porque substitui o espaço no qual o homem age conscientemente por um espaço onde sua ação é inconsciente. Se é banal analisar, pelo menos globalmente, o modo de andar dos homens, por outro lado, por certo nada sabemos de sua atitude na fração de segundo em que dá um passo. (...). É neste domínio que a câmera penetra, com todos seus meios auxiliares, com suas extensões de campo e suas acelerações, suas ampliações e reduções. Pela primeira vez, ela nos abre a experiência de um inconsciente visual, assim como a psicanálise nos fornece a experiência do inconsciente instintivo (BENJAMIN, 1982, p. 234). Contra isso, Walter Benjamin propôs politizar a arte ou, de outro modo, politizar o olhar que vê e representa o mundo. Era a apatia, a despolitização e o controle social das massas, intensificados pouco a pouco pela arte técnica e industrializada do cinema, que Benjamin atacava. A crítica de Benjamin, todavia, revela um desencanto com o esvaziamento de uma determinada noção de beleza da imagem. O distanciamento, a aura, a autenticidade, o valor de culto da obra de arte tradicional, tão valorizados por Benjamin, revelam categorias do belo que, ao invés de substantivas, são ideológicas e pretensamente universais. Logo, do mesmo modo que Benjamin propôs politizar a arte técnica, era preciso perscrutar e ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I desconstruir os discursos da arte tradicional sobre “primitivos” - onde se incluem índios assim como negros – representados, antes do cinema, pela pintura e pela fotografia. A representação de “primitivos”, desde o Renascimento europeu, evidencia a transformação de indígenas e negros em objeto de culto, cuja condição social, solapada, aparecia mediada pela imagem artística de seus corpos. Nicolau Sevcenko (1996) afirma que, normalmente, o regime estético renascentista denota o corpo “primitivo” através da pele assinalada em cor escura, em inscrições corporais, na associação dos corpos a feras, a bestas selvagens, a monstros ou criaturas abomináveis. Ocorre também um reenquadramento estético - que exibe um corpo “primitivo” proporcional, segundo uma escala de beleza greco-latina, e ético – a exibição de um corpo igual, mas avesso ao corpo branco, por conseguinte deslocado para a ociosidade, a licenciosidade, a selvageria, a estupidez, o paganismo. Este regime, acredito, é uma orientação que se proliferou nos séculos posteriores ao Renascimento e permanece nos dias atuais. No Brasil, as mais antigas e recorrentes imagens e representações sobre o negro normalmente figuram escravos africanos ou párias. Por outro lado, as mais recentes, quando o retratam deslocado destas posições, provocam fascínio ou desconforto uma vez que transformam o negro em estereótipo ou fetiche. Tais imagens e representações não têm sido originalmente do negro, diferentemente, são imagens e representações racializadas sobre o negro, produzidas de acordo com uma perspectiva colonial e branca2. Ou seja, temos, de acordo com Frantz Fanon (1983), primeiro um aspecto psicanalítico, depois material e simbólico da configuração do homem negro como falo luxurioso e destruidor. Temos, além disso, uma dada evidência biológica da diferença racial, e desde então, a tensão entre uma 2 Esta problemática que levanto, aliás, tem um precedente no trabalho de Zilá Bernd (1988) quando busca definir e identificar a emergência de uma literatura negra, do negro no Brasil. Bernd cita negros como Cruz e Sousa e Machado de Assis, dois grandes autores da historiografia literária brasileira, que não teriam construído uma literatura negra, mas uma literatura sobre o negro. Ambos pertenceriam à mesma linhagem literária do poeta abolicionista, branco, Castro Alves, que os antecede, ou do poeta modernista, também branco, Jorge de Lima, que depois destes, já no século XX, do mesmo modo se destaca por incluir o negro e a temática negra em sua obra. Todos os quatro seriam grandes autores adaptados ao mundo branco, aos padrões culturais e estéticos ocidentais. Teriam construído uma literatura negra, do negro se além de serem negros ou brancos, de humanizarem e positivarem a ancestralidade africana, encontrássemos em suas obras o negro como eu enunciado em primeira pessoa, desvencilhado do anonimato, da invisibilidade, da subordinação e condição de objeto do qual se fala, se encontrássemos em suas obras elementos de uma epopéia negra, a reversão de valores e uma nova ordem simbólica presentes em autores como Luiz Gama, Lima Barreto, Cuti e Ele Semog. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I possível natureza e a dimensão social, cultural e histórica do negro, particular à civilização branca. No contexto brasileiro, moderno, a opinião sobre o homem negro, africano ou descendente, como de baixo nível mental, de vida selvática, incapaz de civilizar-se, com propensão biológica ao crime e - com ênfase, detentor de uma sexualidade insaciável, imoral e predatória foi traduzida em discursos eruditos, em imagens e representações sobre a cultura e o corpo negro-africanos produzidas por estrangeiros e nacionais (cf. AUGEL, 1980). As imagens e representações sobre o negro no teatro, assim como aquelas que temos assistido no cinema e na televisão, têm um precedente e mesmo fundamento histórico comum, que é a literatura produzida no Brasil desde o século XIX. David Brookshaw (1983) observa que a figura do negro na literatura brasileira anterior à abolição do tráfico de escravos, em 1850, praticamente não existe. Quando a mesma começa a aparecer é utilizada para contrastar com a figura do índio. O negro de índole escrava, humilde e resignada esteve então para o índio por natureza corajoso, orgulhoso e independente. Enquanto se aproximava a extinção da escravidão, a representação do negro foi alterada. Mesmo na literatura abolicionista, o escravo fugitivo, insurrecto, foi transformado no negro “escravo demônio e imoral”, degenerador da propriedade e ordem familiar aristocrática. Mais tarde, afirma ainda Brookshaw, o nacionalismo racista de uma literatura exemplarmente representada por Monteiro Lobato respeitava o negro enquanto ser selvagem, autêntico e tragédia biológica, porém odiava-o no que dizia respeito ao contato com o branco. Ao contrário da literatura do escritor Jorge Amado, que, a partir dos anos 1930, celebrava a mestiçagem e transformava o negro em mestiço encantadoramente irreverente, anárquico, embora puro e sensual, faceta de uma positivação conservadora, preconceituosa e populista. Em relação à história da imagem e representação do negro no cinema, Robert Stam (1997) afirma que se, no plano intelectual, social e político, no Brasil dos anos 1930, havia um discurso sobre a equivalência da contribuição das raças para a formação do Brasil, na cinematografia da época a contribuição do negro foi reduzida ao pitoresco e ao folclórico. O negro foi mais um personagem da cozinha, estimulado a tocar e dançar do que um agente político e econômico. Entre as décadas de 1930 e 1950, foram produzidas inumeráveis ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I chanchadas modeladas em musicais americanos, mas também no teatro de revista e nos programas de auditório do rádio. Estas chanchadas foram filmes que combinavam um forte apelo popular com uma estética branca que favorecia o protagonismo de estrelas brancas, enquanto os negros apareciam acompanhando estas estrelas – entre elas, Eliane Macedo, as cantoras Carmen Miranda, Aurora Miranda, Marlene, Emilinha Borba – ou serviam de “escada”, como foi o caso de Grande Otelo, para personagens interpretados por atores brancos. Nas chanchadas, o enredo se desenvolvia em torno do universo do carnaval, dos valores do carnaval, em ambientes populares e negros. Na oportunidade, divulgavam-se as marchas e sambas do carnaval vindouro. Stam observa que, relativamente à expressiva presença de uma música negra nos filmes, nota-se a ausência de negros nos filmes. Era como se os negros e a cultura negra-africana produzida no Brasil fossem canibalizados por este cinema branco. Em Madame Satã várias seqüências atualizam estas idéias e atitudes. A ambiência, o contexto em que se encontra João Francisco dos Santos é da depravação, do elogio ao pecado, da luxúria, da violência física e simbólica, da insalubridade, da vida rasgada. É neste contexto que homens e mulheres brancos acessam uma reserva de furor sexual e de força vital desprezíveis ao mesmo tempo em que cortejáveis. Assim é que no filme, Álvaro – interpretado por Guilherme Pita, um homem branco, tímido, cheiroso, distinto e com dinheiro no bolso vai em busca de uma “moça morena, de lábios e coxas grossas” que se traduz no pênis de João Francisco, batizado como “Josefa”, uma versão brasileira do nome da dançarina negra Josephine Baker, sucesso em Paris nos anos 1930 e devoção de João Francisco. Do mesmo modo, o malandro branco Renatinho – interpretado por Fellipe Marques, se entrega a esta mesma “moça morena” na ânsia de absorver uma virilidade escorregadia, cruel e destemida encarnada pelo malandro João Francisco do Santos. Entretanto, antes disso, este mesmo João Francisco, com máscara de cidadão, como lúmpen do mercado das artes carioca saíra sorrateiro de um camarim ao roubar o dinheiro que deveria ter pago seus direitos trabalhistas não respeitados pelo patrão expropriador que ofendido, mais tarde, lhe denuncia à polícia. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Novamente, a direção e o roteiro do filme Madame Satã, em obediência a um regime estético anterior para o corpo negro, optam por privilegiar imagens e representações em que o negro é um homem problema devolvido ao atavismo de uma suposta irracionalidade que lhe impede de compreender os termos de seus próprios dilemas, lhe impede de amar a si mesmo ou então só conceber o amor e o afeto através da dor, da violência ou da projeção de si em um outro. A propósito, no filme, depois de um quebra-quebra promovido por João Francisco, ao ser barrado na portaria de um clube da alta sociedade carioca, há uma seqüência de imagens e diálogos comovente entre João Francisco e a prostituta Laurita, interpretada por Marcélia Cartaxo, que evidencia isto: Laurita – E precisava fazer aquilo? João Francisco – Mas é claro que precisava! Vou levar desaforo pra casa! Todo mundo pode entrar, por que é que eu não posso? Laurita – Porque tu não é todo mundo. (...) Laurita – Tu parece um bicho, sai por aí, batendo a cabeça na parede. João Francisco – Eu quero me endireitar. Laurita – Endireitar o quê! Tu já nasceu torto! (...) Laurita – E por que tu não se acalma? João Francisco – Tem uma coisa dentro de mim que não deixa. Laurita – E que coisa é essa? João Francisco – Não sei... Laurita – Que coisa é essa? João Francisco – Raiva. Laurita – Tu parece que tem raiva de tá vivo. João Francisco – Vai ver que é. Laurita – Mas essa raiva passa. João Francisco – Pois a minha parece que só aumenta, uma raiva que não tem fim e que eu não tenho explicação pra ela. Laurita, o que é que você vê quando olha pra mim que eu não vejo? Laurita – Eu vejo... (risos) o Rodolfo Valentino, o John Ralph Miller (?), o Gary Cooper... João Francisco dos Santos, em sua máscara de cidadão, jamais poderia ser um astro hollywoodiano. Não era branco, não era belo e desejável como branco e era nascido no Brasil, um país periférico. “Já nasceu torto”. Era um homem negro, mergulhado no drama da sua negrura não percebida nem por ele nem por sua melhor amiga Laurita. Iludido ou irônico, ele reivindicava para si uma condição moderna e elementar de pessoa – em várias falas se refere a ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I si mesmo como “minha pessoa...” – que se choca com uma condição de pessoa que a sociedade lhe atribui (cf. BRANDÃO, 1986). Ou seja, João Francisco insinua todo o tempo, ao se referir a si mesmo como “minha pessoa...” que se concebe como homem livre, universal, cidadão dotado de direitos por posição social – homem de família, provedor e protetor da vida de uma prostituta, de sua filha e de um travesti, dotado de status e honrarias – malandro famoso, admirado e temido na antiga zona da Lapa carioca. Porém, João Francisco é pessoa para a sociedade hegemônica na medida em que bem se adequa ao papel de um ser negro, predeterminado por uma ordem social e simbólica que antecipadamente prevê seus sentimentos, pensamentos e ações, como sublinha a atriz Vitória Aparecida Ximenes dos Santos Cruz, interpretada por Renata Sorrah: “bem que me avisaram, não confia nesse preto, ele é mais doido do que cachorro raivoso!” De fato, a pessoa de João Francisco dos Santos é um analfabeto, sem profissão definida, vigiado pela polícia, negro, homossexual, sem pai, sem mãe, irmãos, esposa ou filhos, generoso e cruel. Entretanto, é esta realidade e experiência social renegada que informa este original artista da performance que sabia dançar, cantar, recitar histórias e “tirar onda” de malandro. Madame Satã nasceu do “submundo”, foi orientado pelos enigmas transmitidos por africanos – João Francisco define-se como filho dos deuses africanos Yansã e Ogum, mas também por imagens e representações negrófilas veiculadas pelos meios de comunicação da época, em particular o cinema disseminador da imagem da performer negra Josephine Baker, radicada em Paris, emblema da negrofilia do movimento da avant-garde. Em relação à negrofilia da avant-garde parisiense dos anos 1920, Petrine ArcherStraw (2000) observa que, se, por um lado, a avant-garde pretendeu criar um antídoto contra a sufocante civilidade burguesa antinegra, por outro lado, não conseguiu evitar conotações negativas em relação ao negro ao canonizar seu corpo, sua expressão e o continente negro, África, como “primitivos”. Negrofilia, como gosto e representação, orientou desde então a explosão de um mercado do entretenimento que sugeria ou mesmo incluía músicos, atores e dançarinos negros na Europa, nos Estados Unidos e logo em seguida no Brasil (cf. GOMES, 2001). Este mercado exigiu, num primeiro momento, a presença do menestrel, ou seja, o ator cômico branco que pintado de preto, porém de alma branca, imitava sempre um negro ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I fisicamente disforme, indolente, simplório, animalesco, dócil e grotesco. E em seguida, homens e mulheres negros que no palco assimilaram esta representação mimetizada de si mesmos. Nem europeu nem americano do norte... Tampouco plenamente brasileiro A performance de Josephine Baker, em Paris, exacerbou a imagem caricatural do homem negro, a reiteração do seu primitivismo e, paradoxalmente, uma nova aspiração de modernidade advinda de uma certa liberação sexual da mulher, de um espontaneísmo e ruptura aos valores morais burgueses. João Francisco dos Santos encontrou na mise en scene da ambígua Josephine Baker um modelo de expressão social e artístico e de liberação das amarras do ideal de masculinidade que suportava no corpo de homem negro. Um tanto quanto homem, um tanto quanto mulher, homem valente, viril, duro, mas também feminino, sensual e “pederasta passivo”. Exímio capoeirista, desaforado e agressivo, mas também bom amante, sedutor na atitude e no gesto diante da ausência ou na impossibilidade de fazer-se ouvir ou ser entendido através das palavras. Onde se esperava a mulher em João Francisco, se manifestava o homem, onde se reconhecia o homem, se apresentava a mulher, onde se esboçava o anjo, se revelava Madame Satã. Esta superposição de identidades e lugares de poder estão de acordo com as representações que se atribuíam a Josephine Baker, mas também à sabedoria elaborada por homens e mulheres negros ao longo do processo de colonização e escravização de africanos quando aprenderam a viver através dos interstícios do sistema de relações entre homens e mulheres, a transitar entre o masculino e o feminino, o público e o privado (cf. MOTT, 1988). Na condição e contexto em que se encontrava, João Francisco não poderia se permitir encapsular na máscara de homem ou mulher. Não poderia, do mesmo modo, encerrar-se na possibilidade de transgressão que realizava o travesti Tabu, interpretado por Flávio Bauraqui, uma vez que o travestismo é uma estratégia de afirmação e combate mais ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I óbvia e insuficiente. Tabu era membro, juntamente com a prostituta Laurita e sua filha pequena, do núcleo familiar comandado, às vezes com tirania, por João Francisco. Odiava violência, era frágil e covarde. Apesar de negro, contrariava a expectativa em relação a um falo devorador até porque era absolutamente passivo no ato sexual com um homem branco, policial, interpretado por Urã Figueredo, a quem chamava “meu anjo de bondade” como ouvimos numa cena em que revela seus sonhos: Tabu – Já eu, vou comprar uma máquina Singer, de pedal, pra costurar as fardas do meu anjo de bondade, meu marido. E viver uma vida lazer. Enfim, Tabu pretendia reproduzir o papel da mulher passiva, realizada como donade-casa, ama do marido e dos filhos, legitimadora da apropriação masculina do capital e do trabalho. Isto não cabia na mulher nem no homem que João Francisco trazia consigo. Por outro lado, o homem moderno, tipicamente nacional, que João Francisco prometia, inspirado na representação de mulher moderna que Josephine Baker configurara na Europa, estava deslocado da ordem social e simbólica de sua época e muito mais da estética que as artes de um modo geral e o cinema em particular esboçaram até o anos 1950 com as chanchadas. A propósito, Paulo Emílio Salles Gomes, um dos mais respeitados críticos brasileiros de cinema, já afirmou que a fraqueza do cinema nacional tem sido seu estado de subdesenvolvimento, caracterizado pela falta de originalidade básica, pela falência cognitiva e indevida representação do ponto de vista de uma grande maioria de brasileiros ausentes como produtores e espectadores deste cinema. Para este crítico, a precariedade da linguagem do cinema nacional tem sido a ausência de um povo brasileiro: Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro. O filme brasileiro participa do mecanismo e o altera através de nossa incompetência criativa em copiar. O fenômeno cinematográfico no Brasil testemunha e delineia muita vicissitude nacional (GOMES, 1980, p. 77). Entretanto, apesar do diagnóstico perspicaz e ferino, Paulo Emílio Salles Gomes (1916-1977) pensa a precariedade do cinema nacional em termos da oposição de classes de “ocupantes” e “ocupados”, mas desloca da sua reflexão o debate sobre relações raciais e ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I cultura negra-africana. Desconhece uma base cultural não-ocidental que viesse orientar a cinematografia brasileira, porém não tem nada a dizer sobre a persistência, o dinamismo e caráter milenar de tradições ameríndias e africanas, capazes de reivindicar e redefinir a cultura e o processo social brasileiro (PINHO, 2000, p. 68). O dilema do cinema nacional, como vicissitude da nação, é então o índio ou o negro que não fala por si como imagem e representação, porém é retrato ou re-presença sob a ótica do outro “ocupante”, mas também branco. O negro, portanto, se também não é europeu, não é americano do norte, tampouco é plenamente brasileiro, aquele destituído de cultura original, uma vez que traz a lembrança de uma ancestralidade indesejada, afro-descendente. Neste sentido é que podemos suscitar práticas negras de auto-representação que evidenciam a seleção, a combinação e rearticulação crítica de sentidos construídos sobre o negro e mesmo sobre a nação. Um caso emblemático é a participação e a presença dos africanos e descendentes na maior festa brasileira que é o carnaval, referência contextual nos filmes das chanchadas, em Madame Satã e na trajetória do personagem João Francisco dos Santos. A propósito, as autoras Raquel Soihet (1998) e Monique Augras (1998), fundamentadas basicamente nas mesmas fontes, chegam a conclusões curiosas e distintas sobre o significado do carnaval. Soihet, influenciada pela interpretação que Mikhail Bakhtin faz da cultura popular na Idade Média e Renascimento, defende o argumento de que o riso no carnaval e nas festas “populares” cariocas é uma arma eficaz contra a hierarquização e a opressão dos subalternos. (...) por meio de canções, representações teatrais, cartas anônimas, inversões e utilizações jocosas de signos do poder, os populares demonstraram sua resistência a situações que lhes eram opressivas. Para esses segmentos excluídos, o carnaval, particularmente, representou uma possibilidade de participação da qual não se omitiram. Muito pelo contrário, através de formas alternativas de organização, nele investiram toda a sua energia. Valendo-se de metáforas, explorando sua criatividade, tendo o riso como arma, procuraram reagir às diversas formas de opressão que sobre eles incidiam. Não foram, portanto, passivos e impotentes, nem ficaram a mercê de forças históricas externas e dominantes. Pelo contrário, desempenharam um papel ativo e essencial na criação de sua própria história e na definição de sua identidade cultural (SOIHET, 1998, p.15-16). Monique Augras, por sua vez, afirma que é comum os autores tomarem a cultura “popular” como um “bastião de ‘resistência’”. Para Augras, a cultura “popular” não pode ser ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I percebida isolada da sociedade mais ampla. No caso do samba carioca, isto quer dizer que o riso não é necessariamente sintoma ou estratégia de subversão. Pelo contrário, ao longo da história deste samba a ordem acompanha, passo a passo, a aparente desordem. (...) o desfile (das escolas de samba) obedece a um regulamento estrito. O tempo é rigorosamente controlado. Nenhum detalhe dos quesitos deixa de ser explicitado, seja para a comissão julgadora, cujos membros têm de assistir às aulas de um curso preparatório para esse fim, seja para os próprios sambistas, que se encarregam de vigiar o desempenho das escolas concorrentes para denunciar os eventuais deslizes que as podem levar à desqualificação. O excesso e a loucura da festa são canalizados por um esquema econômico-financeiro que assegura altíssimos lucros às diversas instituições que regem a organização do desfile e sua divulgação (AUGRAS, 1998, p.16). Temos então que, num contexto adverso, de desagregação, de subordinação econômica, social e racial, africanos e seus descendentes do mesmo modo que reinventaram manifestações e tradições culturais encontradas aqui, como é o caso do carnaval que chegou ao Brasil como festa européia e civilizada, tiveram que transformar tradições trazidas de África de modo que pudessem ser difundidas e manter redes de solidariedade e reagregar etnias, civilizações várias, valores, crenças e símbolos estéticos. Para Roger Bastide (1985), no Brasil, em especial o Candomblé cumpriu esse papel, ao aproximar divindades de grupos étnicos vizinhos, e deste modo se mostrar eficiente no domínio da desesperança, da dor pelos castigos e humilhações, na reconformação de atitudes afetivas, de laços de parentesco, na definição de uma corporalidade insubordinada e categorias de pensamento originais. Entretanto, o negro que partilha o mundo africanizado partilha também, como afirma Bastide, o mundo brasileiro no mais baixo grau da hierarquia social. Teria ocorrido, então, uma distância social, muito mais que um isolamento geográfico que permitiu ao africano e depois ao negro encontrar, na estrutura da sociedade brasileira, os nichos, como os denominamos, em que podia inserir suas civilizações nativas. Esses nichos foram, vimos, os batuques, as confrarias dos homens de cor, as organizações de negros de ganho, as “nações” constituídas sob a autoridade de “reis”, ou de governadores nas cidades, as danças domingueiras em parte também nas zonas rurais. Certamente, todos esses agrupamentos eram grupos de controle de uma classe por outra, mas vão ser modificados em suas realidades profundas pela vontade dos negros, ou, mais ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I exatamente, pela pressão das representações coletivas religiosas sobre os indivíduos membros desses agrupamentos (BASTIDE, 1985, p. 225). Esta resposta africanizada minimizou e reificou a diversidade cultural africana, mas reteve o controle social branco. No Candomblé ou em formas culturais lúdicas, aparentemente restritas ao exercício e desenvolvimento de habilidades e força física, como a capoeira e os diversos sambas nacionais, encontramos referência a mitos, deuses e idéias que viveram no pensamento, como imagens mentais sujeitas às perturbações da memória, mas também estiveram inscritos no corpo como mecanismos motores, passos de danças, toques rítmicos ou gestos rituais, constituindo um largo repertório onde se buscam e se reinterpretam imagens, símbolos e representações da condição negra-africana no Brasil, em si mesmas, descontínuas, conflitivas, coaguladas tantas vezes em sincretismos ou hibridez cultural. O que faz João Francisco no palco, como Madame Satã, é sacar deste repertório de signos e experiências que tanto evidenciam adesão quanto reinterpretam o programa de modernização das elites. Ele é um negro no palco ou, quem sabe, a negra, a “mulata do balacoxê”, porém desloca o signo ator negro/ personagem negro da sua fala e função recorrentes no palco. Desmascara a negrura como signo do mal ou como signo do bem (cf. MARTINS, 1989). Tem um domínio de sua movimentação e das suas articulações assegurado pela movimentação corporal elaborada na capoeira, no samba e nas danças arquetípicas de diversos deuses africanos cultuados no Brasil. Numa atitude moderna, aproxima diversas linguagens cênicas assim como reinventa mitos de origem, recheando-os de ironia e originalidade, como podemos ouvir numa fala de João Francisco, como Madame Satã, após 10 anos preso na cadeia, na última seqüência de imagens do filme: Madame Satã – Vivia presa, por 10 anos, num castelo de uma ilha das arábias, uma princesa de nome Jamassi. No intuito de inveja, a rainha maléfica tinha aprisionado a jovem princesa que vivia triste e solitária. Até que num dia de carnaval, um cavaleiro em seu camelo libertou a princesa, que correu a pé até chegar na sua Lapa querida. A princesa foi logo se apressando de preparar sua fantasia pra o desfile dos caçadores de veados. Jamassi vestida, desfilou com brilhantismo no carnaval de 42. E Jamassi ficou conhecida assim pro resto do mundo como MADAME SATÃ! Considerações finais ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Por fim, é bom apontar para o fato de que este é um dos poucos filmes brasileiros, desde o Cinema Novo, em que embora possamos apontar para reincidentes imagens e representações estereotipadas e racializadas sobre o negro, também encontraremos vários aspectos louváveis. O primeiro deles diz respeito ao acabamento do filme Madame Satã. A maioria das seqüências do filme, dia ou noite, foram elaboradas em ambientes fechados ou em ambientes abertos noturnos quando havia pouca luz. O que parece dificultar a percepção de detalhes dos ambientes compostos, favorece, no espectador, a impressão da precariedade material em que viviam os personagens, assim como a impressão da precariedade moral que lhes era atribuída. Mais ainda, tal procedimento remete o espectador para o mundo subjetivo e emocional dos personagens, assim como sua atenção para o desempenho dos atores em cena, sobretudo os atores principais – Lázaro Ramos, Marcélia Cartaxo e Flávio Bauraqui – que estão impecáveis nos gestos, olhares, atitudes, expressões e uso da voz capturados pela câmara. Ou seja, os três atores citados, dois homens negros, uma mulher branca nordestina, fora do padrão de beleza do cinema estrangeiro e brasileiro, não adequados ao estereótipo daqueles e daquelas que foram definidos como “naturais ao olhar da câmera” e por isso, tidos, como de uma fotogenia óbvia e arrebatadora, são revelados numa beleza proveniente das interpretações brilhantes dos atores e no modo como a câmera valoriza seus corpos em partes e no todo. Além disso, o filme traz um figurino cuidadoso e uma trilha sonora, com canções da época, bem cuidada que complementa o sentido dos textos e os contextos das seqüências de imagens. Um outro aspecto louvável é a direção dos atores. Há muita sintonia entre todos eles e até mesmo entre aqueles que fazem apenas figuração. Além disso, novamente, os três atores principais – Lázaro Ramos, Marcélia Cartaxo e Flávio Bauraqui – conseguem estabelecer uma cumplicidade que favorece o talento individual de cada um, do mesmo modo que favorece o protagonismo e subjetivação negada aos personagens negros desde os primórdios do cinema brasileiro. Ou seja, os personagens principais apontam para dramas existenciais ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I que não são devidamente problematizados, mas estão indicados através da composição das seqüências de imagens, trilha sonora, fotografia, figurino, texto e interpretação destes atores. Um terceiro e último aspecto que gostaria de salientar diz respeito a um fato raro na cinematografia brasileira que é a interessante interseção entre raça, gênero e sexualidade apresentada no filme Madame Satã. Através do que ouvimos e vimos no filme, percebemos vicissitudes para a raça no Brasil, porém percebemos também que as expectativas do branco em relação a posições de gênero e sexualidade negras geram modalidades de manejo e vivência da raça e do racismo uma vez que o corpo masculino e homossexual que encontramos em Madame Satã desarticula certezas sobre o macho, porém reacomoda idéias e certezas sobre um corpo negro. Oxalá, a partir de Madame Satã, o cinema brasileiro venha a desdobrar ‘a penosa construção de nós mesmos, a rarefeita dialética entre o não ser e o ser outro’ a qual se referia Paulo Emílio Sales Gomes há algumas décadas atrás. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, Arivaldo de Lima. A experiência do samba na Bahia. Práticas corporais, raça e masculinidade. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), Departamento de Antropologia, UnB, Brasília, 2003. ARCHER-STRAW, Petrine. Negrophilia. Avant-Garde Paris and Black Culture in the 1920s. 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ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I De ruínas e recomeços: Rasurando os paradigmas da modernidade1 Iraci Simões da Rocha2 RESUMO: O propósito desse artigo é discutir questões relacionadas à mudança de paradigmas nos Estudos Literários e Estudos Culturais, focalizando todo um movimento que se esboçou a partir dos anos de 1960, intensificando-se da década de 1990, em diante. Abordo aspectos da reconfiguração dos lugares canônicos e nãocanônicos da cultura e da literatura, sob o impacto dos emergentes Estudos Culturais e das práticas dos Estudos Comparatistas, na contemporaneidade. Palavras-chave: Estudos Literários; Estudos Culturais; Modernidade; Contemporaneidade ABSTRACT: The purpose of this article is to discuss subjects related to the change of paradigms in the Literary and Cultural Studies, emphasizing an entire movement that drafted itself since the early 1960’s, becoming more intense in the 1990’s. I approach aspects of the reconfiguration of the canonical and non-canonical places of culture and literatre, under the impact of the emergent Cultural Studies and the practices of the Comparative Studies, at the present days. Key Words: Literary Studies, Cultural Studies, Modernity, Contemporaneity. Aos navegantes: “Antes de mais nada tarefas negativas. É preciso se libertar de todo um jogo de noções que estão ligadas ao postulado de continuidade”. Michel Foucault. Arqueologia do saber. Chega um tempo em que mulheres e homens olham para trás e conseguem divisar estantes, prateleiras, mesas, gavetas, espaços abarrotados de livros, guias, catálogos, cartas, mapas, documentos valiosos que encerram um passado, uma história com princípio, meio e fim. Suas mentes também arquivaram um conhecimento ensinado e aprendido, muitas vezes 1 O presente texto, apesar de inédito, foi escrito em dezembro de 2002. Doutora em Letras: Teorias e Crítica da Literatura e da Cultura, pela UFBA; professora do Curso de Letras DCH I / UNEB. Email: [email protected]. 2 ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I com paixão e violência incomensuráveis. Tudo foi sendo construído seqüencialmente e se esses homens e mulheres pudessem voltar no tempo, eles encontrariam o fio de Ariadne que os conduziria pelo labirinto a fora. Ocorre que eles, mesmo mantendo suas memórias, não podem voltar no tempo de um passado remoto, e o passado recente que faz fronteira com o tempo presente revela-se em ruínas. Essas ruínas os assustam e os fascinam, ao mesmo tempo, porque é a partir dos escombros que vão tentar recuperar sua memória. O fio condutor partiu-se e, ainda que o recuperassem, este já não os conduziria a um ponto definido e estável, uma vez que se apresentam tantos pontos, um diferente do outro. O que fazer? De onde eles poderiam retomar o fio da História? E de qual História poderiam falar, se outras personagens entram em cena e reivindicam a sua inclusão nos fatos? Esse tempo que emerge dos destroços da história é a contemporaneidade e os atônitos homens e mulheres em busca de significações para o que está ocorrendo somos todos nós, intelectuais e estudiosos da cultura. Temos pela frente fragmentos de um passado que não pode ser jogado fora. Trata-se de lançar sobre ele um outro olhar, rasurar seus escritos, negociar com outros discursos e áreas de conhecimento e inscrever nessa tela outros textos elaborados por “mãos grosseiras” e pouco afeitas às delicadezas do trabalho intelectual. A insegurança em relação à ocupação de lugares e posições é um fato que deve conduzir a paradoxos, mas provavelmente será um exercício produtivo, em que pesem a incerteza e a perplexidade. É com essa perplexidade que começo a refletir sobre a quebra das estruturas de pensamento da modernidade, tomando como ponto de partida o SL - Suplemento Literário de setembro de 20023. Esta publicação, dedicada especialmente à literatura, como o próprio título indica, traz um texto de duas páginas de Mariana Santos Rodrigues, artista gráfica, sobre o trabalho do “artesão designer profissional”, que é o conhecido pintor de “placas”, muros e outros, nos bairros periféricos das cidades brasileiras. A autora faz uma breve reflexão sobre o assunto, lembrando que o leitor do SL poderia encontrar ali “um divertido exercício de novas descobertas estéticas”. 3 O Suplemento Literário é uma publicação da Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Motivada por questões que serão discutidas, ao longo deste ensaio, retomei outros números do mesmo SL e fui encontrando textos sobre cinema, fotografia, quadrinhos, música, disputando espaço com poemas de autores canônicos, textos de intelectuais contemporâneos – poeta escrevendo poesias, antropólogos como Hermano Viana (SL / fevereiro, 2002) discutindo a música brasileira, professores de literatura estudando telenovela, estudiosos da obra de Machado de Assis analisando o rap dos morros cariocas. O que está acontecendo e o que tudo isso tem a ver com um “Suplemento Literário?” Respostas aos questionamentos exigem reflexões acerca da reconfiguração dos espaços ocupados pela cultura e artes, contemporaneamente. A partir da segunda metade do século XX, quando se pode marcar o fim da modernidade, um conjunto de fatores e acontecimentos nas ciências, na economia mundial, os avanços nas tecnologias e nas artes, a voracidade da indústria cultural e suas reações mercadológicas produziram mudanças que se refletiram em todas as áreas do conhecimento. Gianni Vattimo identifica o fim da modernidade como o momento em que não é mais possível “... hablar de la historia como de algo unitário”. (VATTIMO, 1996, p. 75). Para a construção dessa história coesa e una, é fundamental a idéia de progresso, de organização evolutiva que se articula pela negação de valores do passado e da tradição considerados superados. A visão da história, nesse caso, remetia à idéia de um centro em torno do qual ela era escrita. A crise da história como construção unitária é identificada pelo filósofo alemão Walter Benjamin, em Teses sobre Filosofia da História (1985), para quem a linearidade histórica tem um caráter ideológico, por ser o produto das representações que resultam do ponto de vista das classes dominantes. Benjamin toma um quadro de Paul Klee, intituladado “Angelus Novus”, para ilustrar metaforicamente o “Anjo da História”: Parece querer afastar-se de algo que ele contempla. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão prontas para voar. O Anjo da História deve parecer assim. Ele tem o rosto voltado para o passado. Onde diante de nós aparece uma série de eventos, ele vê uma catástrofe única, que sem cessar acumula escombros sobre escombros arremessando-os diante dos seus pés. (BENJAMIN, 1985, p. 157-8). ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Na visão de Benjamin, o Anjo bem que gostaria de reconstruir todo o caos, mas uma “tempestade impele-o incessantemente para o futuro, ao qual ele dá as costas, enquanto o monte de escombros cresce ante ele até o céu. Aquilo que chamamos de progresso é essa tempestade.” (Ibid., p. 159). Benjamin, na verdade, está retomando idéias já trabalhadas por Marx e Nietzsche sobre a unicidade histórica resultante de representações elaboradas pelas estruturas de poder. Vattimo (1996, p. 76) acrescenta que o ideal de história e de progresso construído até a modernidade está relacionado a um “ideal de homem” que era o “homem moderno europeu”, com seus postulados e valores emblemáticos. Com a quebra do imperialismo e da colonização, os “povos primitivos” considerados “bárbaros” pelos colonizadores passam a reivindicar o direito de usar seus próprios idiomas, exercitar costumes, crenças e práticas religiosas, enfim, de reapropriar-se de sua cultura. Isso só foi possível porque o mundo já vivia a chamada “era da comunicação”, com a entrada em cena de múltiplas vozes e fontes de informações, a partir de pontos de vista diferentes. É um tempo de simultaneidades, em que várias ações ocorrem paralelamente, sem possibilitar modelos prontos e definitivos. O fruidor contemporâneo - pesquisador, crítico, leitor - é um ser faminto pelo conhecimento, mas impossibilitado de apreendê-lo, de modo definitivo e com segurança. É preciso reconhecer esse conhecimento, com uma atitude aberta para a negociação e construção de sentidos possíveis e provisórios, levando-se em conta os contextos de produção e de recepção, com instrumental e conceitos que também estão sendo construídos. Ilustra bem essa discussão a emergência de publicações sobre cultura, em geral, que reúnem textos de autores e temas variados, segundo Heidrun Olinto, sem o compromisso “com filiações duradouras, atestando a substituição da voz autoral particular pelo consenso/dissenso de subgrupos de uma comunidade sem identidade”. (OLINTO, 1996, p. 137). A ação dos mídias contribuiu para quebrar a idéia de centro e a representação linear da voz monocórdia dos discursos hegemônicos porque, em que pese o caráter alienante dos meios de comunicação de massa, eles abriram espaços para os discursos periféricos e para o ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I confronto de vozes dissonantes. Esse outro tipo de organização, na visão de Vattimo (1996, p.78), não proporciona uma sociedade “transparente”, “iluminada” e “consciente de si mesma”, mas uma sociedade mais “complexa” e “caótica”, com possibilidades de transformar esse caos em “esperanças de emancipação”. A tese de Vattimo é a de que a emancipação das minorias toma impulso com o fim dos discursos centrais, nas palavras de Jean François Lyotard, o fim das “grandes narrativas” e a emergência das múltiplas vozes periféricas. Ganham estatuto de texto os micro discursos - os testemunhos, as entrevistas, os relatos de experiências - das minorias étnicas, sexuais, religiosas, estéticas e culturais, com suas representações particulares, locais, heterogêneas e plurais. Entendo que, por si só, a entrada em cena dos discursos das minorias não garante a emancipação política desses grupos, mas desestabiliza o mundo da “comunicação global” generalizada, em função do atrito da “racionalidade central” com os discursos das “racionalidades locais”. Os Estudos Culturais, da década de 1990 em diante, com algumas raízes no estruturalismo francês dos anos 60, principalmente marcado pelas idéias de Lévi-Strauss, Roman Jakobson, Roland Barthes, Gerard Genette, Jacques Lacan, Michel Foucault e Louis Althusser4, dão início a uma série de reflexões e reposicionamento de objetos de estudos e operações teóricas nas diversas áreas do conhecimento. Os autores citados serão lidos na Inglaterra e Estados Unidos, principalmente, entre os anos 60 e 70. “A outra fonte dos Estudos Culturais Contemporâneos é a teoria literária marxista na Grã-Bretanha” com a obra de Raymond Williams (Cultura e Sociedade, 1958)” e The Uses Of Literacy, 1957, de Richard Hoggart. (CULLER, 1999). Os Estudos Culturais surgem como conseqüência de rupturas, operando um deslocamento da posição da literatura em favor de outras produções culturais “não-literárias” que passam a ser lidas como textos, enquanto o “texto literário” passa a ser lido também como produto cultural que dialoga com tantos discursos. Sem uma metodologia própria e objeto de estudo específico, os Estudos Culturais insubordinam-se contra o estabelecido, transitam pelas 4 Mais tarde, alguns desses autores como Lacan, Barthes e Foucault terão suas idéias identificadas com o pósestruturalismo, quando explicitam uma crítica do conhecimento, do sujeito e da idéia de totalidade. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I situações provisórias, abrem espaço para os discursos minoritários ou marginais, reconhecendo-se como prática política com intervenções sociais emancipatórias. Em geral, propõem uma mudança de olhar dos conceitos “eurocentristas” que identificam culturas e povos como “primitivos”, “subdesenvolvidos”, “estranhos”, “atrasados”. Em paralelo, os estudos de Literatura Comparada já estavam consolidados na Europa Ocidental e América do Norte, pois vinham se desenvolvendo há décadas. Inicialmente, os estudos comparatistas foram marcados pelo historicismo e “princípios científico-causalistas” e depois por uma “óptica formalista”, apesar das fortes dissonâncias, mas sempre apoiados no etnocentrismo. (COUTINHO, 1998, p. 67-8). A partir da década de 1990, os estudos de Literatura Comparada assumem um viés transdisciplinar, operando entre fronteiras, num trabalho que inclui uma espécie de militância em favor do subalterno e das chamadas minorias. O “fenômeno literário” já não é o foco exclusivo da Literatura Comparada. Eduardo Coutinho fixa os anos 1970 como o período a partir do qual ocorreram mudanças, tanto no foco de atuação da Literatura Comparada o qual se desloca para “pólos geográficos tidos como marginais” - China, Índia, África e América Latina - quanto na relação dos estudos com a política. O viés apolítico tradicionalista e reafirmador da “supremacia de um sistema sobre os demais” que foi a sua marca, especialmente na “Escola Americana”, vai ser questionado a partir dos anos 70, quando se fortalecem as discussões sobre as identidades culturais e nacionais. A Teoria, a Historiografia e a Crítica Literárias operaram um “desvio de olhar”, passando a ver o texto não exclusivamente como objeto fechado na sua imanência estética, mas como artefato cultural, que se configura de maneira “híbrida”, para usar o termo de Garcia Canclini (1998) incorporando elementos das chamadas “alta cultura” e da “cultura popular”, ambas em permanente diálogo com a “cultura de massas”. Isso equivale dizer que o texto literário agora é produto que se relaciona não apenas com outras áreas do conhecimento, mas também com os textos de outros estratos culturais, antes considerados em posição hierarquicamente inferior. Nesse contexto, as estruturas do pensamento moderno, que vinham ao longo do tempo se fragilizando, esboroam-se de vez. Os modelos universalistas, baseados nas idéias de ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I evolução e linearidade, não conseguem mais dar conta das questões locais, das mudanças que se processam com incorporações e reelaborações de conteúdos, materiais, idéias, com um caráter múltiplo e rizomático5. Como representar grupos minoritários e povos com saberes diferentes com o diapasão da cultura hegemônica? A entrada em cena de vozes até então silenciadas - ou representadas por discursos sobre essas vozes, isto é, uma estrutura de poder hegemônico falando em nome de um povo ou no lugar desse povo, dessas vozes silenciadas - força o Comparativismo, os Estudos Culturais e Pós-Coloniais a enfatizarem seu caráter político. Isso tem, como conseqüência, o reposicionamento dos campos do conhecimento que passam a operar de maneira transdisciplinar, recusando as práticas excludentes, os territórios e enfoques isolados. Tal postura acaba conduzindo os estudos acadêmicos a intervenções que sejam também práticas sociais e políticas, funcionando como uma espécie de “Insurreição” contra as certezas cristalizadas. Se o mundo é lido como discurso, e é na comunicação que se formam as expressões culturais, as construções lingüísticas são ideologicamente marcadas pelos signos carregados dos valores de povos, classes e contextos diferentes. (BAKHTIN, 1979). Assim, os paradigmas do pensamento moderno foram se fragmentando, uma vez que não era mais possível falar de uma cultura, mas de expressões culturais, que, por seu lado, são representações e não “descrições neutras” e “naturais”, isto é, são construções discursivas e ideológicas engendradas na linguagem. O olhar das culturas hegemônicas sobre as “outras culturas” constrói um “discurso especializado e autorizado” ancorado na arrogância hierárquica. Essa posição baseia-se no paradigma de contraste em que as imagens de alteridade são estereotipadas e desqualificadas com representações elaboradas por um discurso racista e etnocêntrico. (SAID, 1990). Uma vertente dos Estudos Culturais e Comparatistas, com posição de engajamento político, recusa a suposta neutralidade acadêmico-científica da História, da Cultura e da 5 A imagem do rizoma, vegetal de crescimento desordenado, é trabalhada por Gille Deleuze e Félix Guattari, em Mille plateaux (1980), associada ao pensamento contemporâneo de uma ciência “nômade”, rizomática e se opõe ao modelo tradicional fundado em dicotomias, relações hierárquicas, controladas por uma estrutura central. Heidrun Olinto retoma essa imagem no texto “Teoria da Literatura em desalinho”. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Literatura. A partir daí e com a visão de que “identidade”, “nação” e “cânone” são construções ideológicas,6 intelectuais de diversas partes do mundo, incluindo a América Latina, mudaram o olhar e passaram a considerar objeto de estudo textos até então desprezados, a exemplo dos produzidos em línguas indígenas e africanas, e aqui destaco as formas da tradição oral: contos, ditos populares, parlendas, cordel, cantorias, festas e outras. O que essa postura defende é a idéia de que identidade, nação e cultura não podem mais “ser vistas em termos ontológicos, isto é, de forma definida, acabada, integral, mas em termos plurais e híbridos”. (COUTINHO, p. 57). Hoje, perde força, por exemplo, o modelo de História da Literatura na sua formatação tradicional - una, substantiva, geral, universal - em favor de “histórias-problema” que abrigam a divergência, a contradição, o confronto de idéias, sem síntese nem harmonia. Heidrum Olinto, em “Como falar de Histórias (de Literatura?) Hoje?” posiciona-se contrariamente ao projeto de história como herança do século XVIII mantida até a modernidade, baseada nos princípios de teleologia, evolução, progresso e continuidade. Fortalece-se, por tal prisma, a defesa da inexistência de uniformidade quanto à identidade nacional, de encadeamento de eventos em sucessão progressiva, em favor da coexistência de perspectivas heterogêneas, dispersas, fragmentadas das micro narrativas. A esse respeito, Rita Terezinha Schmidt lembra que a “lógica perversa, calcada em noções de causalidade e de determinação de valores originários que se tornaram modelares, precisa ser desconstruída”. Schmidt (1996, p. 116) opõe o discurso da modernidade que tem o centro como referência ao discurso contemporâneo, produzido não da margem ou na margem, que deve ser crítico e desestabilizador do discurso canônico. Em outras palavras, desfaz-se o sentido de centro e margem com a entrada em cena, ao mesmo tempo, das vozes periféricas e canônicas. Ou seja, margem e centro não vão mais trilhar caminhos paralelos, mas encontrar-se, bater-se, e produzir resultados, com reconfiguração dos espaços e discursos. O questionamento do cânone artístico, tomado como modelo “a ser preservado para as futuras gerações”, baseia-se na crítica à hegemonia da chamada “alta cultura”, cujos padrões foram sendo moldados, ao longo do tempo, sempre a partir de um “lugar de poder”. (REIS, 6 As idéias de nação e nacionalidade são trabalhadas por Benedict Anderson como “artefatos culturais”. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I 1992). Linguagem, cultura, escrita e literatura estão relacionadas às estruturas de poder e de dominação, razão por que suas produções não podem ser vistas como “naturais”, “espontâneas” e “inocentes”. São construções ideológicas balizadas por “valores” que se foram cristalizando, a partir do “lugar da autoridade” historicamente ocupado pela crítica, pelos intelectuais, pelas instituições legitimadoras. Tal autoridade é, por princípio, violenta, conservadora, erigindo o cânone e produzindo exclusões, com interesses de classe. O bombardeamento dos paradigmas da modernidade se faz também no “campo de batalha das chamadas políticas de identidade ou multiculturalismo” (SCHMIDT, 1996, p. 119) e desestabiliza o cânone porque traz para a cena do debate conceitos de desconstrução, diferença e alteridade que vão colocar sob suspeita discursos “construídos” de maneira a formar um todo harmônico e totalizante. Contemporaneamente, quando se percebe que uma oposição não é natural nem inevitável, mas uma construção produzida por discursos, não se sustentam os binarismos e as exclusões. Nesse sentido, também os campos de estudos e práticas disciplinares passam a operar fronteiriçamente, por entrecruzamento, sem limites rígidos. Nas comemorações dos 500 anos do “Descobrimento do Brasil”, o discurso oficial e todos os preparativos de rituais, gestos e símbolos não conseguiram recompor o “Mito do Descobrimento” construído, ao longo do tempo, pelas autoridades. Não foi simplesmente o fiasco da “Nau Capitânia”7 que estragou a festa, mas as vozes de outros discursos que se fizeram ouvir, - índios, negros, homossexuais, mulheres, sindicalistas, estudantes - com outras histórias. Nesse momento, os meios de comunicação de massa e a organização popular ajudaram a quebrar o discurso dos “Mitos Fundadores” da identidade nacional, como algo posto e constituído harmônica e naturalmente, ocupando pela representação lingüística e demais símbolos os espaços dos “fatos reais”. Quem escreveu a história do “Descobrimento do Brasil?” Quando os nativos que aqui viviam falaram e foram ouvidos? Nas comemorações, na cidade de Porto Seguro, no sul da Bahia, a televisão e a mídia, em geral, 7 Refiro-me à construção da “Nau Capitânia”, para comemorar os 500 anos do “Descobrimento do Brasil”. O projeto, custeado com verbas públicas, previa uma réplica da embarcação portuguesa que trouxe a comitiva de Pedro Álvares Cabral, às nossas terras. As comemorações, em 2000, tiveram seu brilho empanado pelo fiasco da Nau Capitânia: uma sucessão de falhas técnicas que iam desde a falta de lastro na embarcação até uma falha na construção do motor. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I não puderam deixar de exibir as imagens do confronto entre a força policial e os índios e outras minorias que buscavam mostrar o “outro lado” da história, muito diferente daquele “construído” pelas classes dominantes, durante 500 anos. Cultura do nosso tempo? O que cabe nessa expressão? No trânsito congestionado, já nas primeiras horas, do dia 25.11.2002, de um dia comum em Salvador, capital da Bahia, ouço pelo rádio uma manchete jornalística, informando que Fernando Pessoa é a grande vedete responsável pelo sucesso de novo espetáculo musical. Logo depois, leio na coluna de Diogo Mainardi que Oriana Fallaci, “a mais célebre jornalista” da Itália, publicou recentemente um manifesto contra o mundo árabe e a top model internacional Gisele Bündchem, ao desfilar com casacos de peles naturais, torna-se alvo da ira dos ecologistas, no mundo inteiro.8 A literatura e a música dialogam e são consumidas pelas massas, sem hierarquias; a voz da autoridade “formadora de opinião” articula um discurso etnocêntrico, apontando a legitimidade ou ilegitimidade de práticas culturais; uma modelo rica e poderosa é obrigada a negociar com o discurso radical dos ecologistas. Tempo de contradições, de riqueza e de indigência, tempo de rápidas mudanças, que exigem habilidades para as negociações. As verdades do mundo se alteram; as civilizações se chocam e a autoridade não pode mais ignorar o lugar da “outridade”. Esses outros, mantidos em posição de subalternidade, ao longo da história, pelas teorias colonialistas, que afinaram o “discurso competente” com base no estereótipo e no preconceito, agora se apropriam dos instrumentos e se lêem não como “atrasados”, “preguiçosos”, “ignorantes”. A civilização ocidental é forçada a rever seus mitos, a considerar as vozes de outras culturas; à ciência não cabe mais a indumentária de pureza, neutralidade e desinteresse. Enquanto isso, a música erudita vai ao parque, embalando a venda de fast-food, o artista de rua vai ao “templo sagrado do teatro”; o grafite passeia entre o poema e as artes plásticas; criam-se formas alternativas de poesia performática. O Museu de Arte Moderna da Bahia, de cujo acervo fazem parte os agora canônicos Di Cavalcanti e Anita Malfatti, entre outros, abre as portas para exposições de objetos que revelam o neokitsch ou talvez o velho kitsch; “instalações” de alta voltagem poética, cuja fruição tem tudo a ver com a participação 8 Revista VEJA, edição 1779, 27.11.2002, p. 147; 104 – 111. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I do espectador: sim, é permitido pisar nos trabalhos que expõem as caras de personagens midiáticos. Quebraram-se os paradigmas da modernidade. As expressões da cultura brasileira do nosso tempo, híbridas à Garcia Canclini, com um pé nas tradições populares, agora em sintonia com as formas mundializadas, já não causam reações extremadas. Muitos intelectuais, entretanto, ainda torcem o nariz para as telenovelas e os professores se alarmam com a instrução dos adolescentes, que “lêem” as obras literárias canônicas em versão condensada ou pelo seriado de tevê. Os modelos uniformizadores não dão conta das multiplicidades das expressões culturais e do aparato teórico para tomá-las como objetos de estudo, pois esses objetos mudam, a todo o instante. E a saída? Na falta de placas indicativas de um caminho a seguir, resta ao intelectual olhar par trás e não se deixar petrificar de espanto ou de horror ante as ruínas de uma civilização descentrada. O melhor é colocar a mochila nas costas, calçar suas sandálias de andarilho, sacudir a poeira dos escombros e seguir por atalhos, reaprendendo a olhar as coisas do mundo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. Imagined Communities. Reflections on the Origin and Spread of Nationalism. Trad. Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo: Ática, 1989. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do Método Sociológico na Ciência da Linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1979. BENJAMIN, Walter. Teses sobres filosofia da história. In:__ Walter Benjamin. Org. e trad. Flávio R. Kothe. São Paulo: Ática, 1985. P. 153-164. COUTINHO, Eduardo. A reconfiguração de identidades na produção literária da América Latina. Cadernos do Centro de Pesquisas Literárias da PUCRS. Anais do II Seminário ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Internacional da História da Literatura. Org. MOREIRA, Maria Eunice. Porto Alegre, 1998. CULLER, Jonathan. Literatura e estudos culturais. In:__. Teoria literária: uma introdução. Trad. Sandra Vasconcelos. São Paulo: Beca, 1999. p.48-58. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mille Plateaux. Paris: Minuit, 1980. GARCIA CANCLINI, Néstor. 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Com esse objetivo didático, já que temos uma linha de pesquisa, nesse campo, no Mestrado de Linguagens da UNEB, empreendemos um exercício analítico de algumas mensagens de propaganda institucional e política, suscetíveis de por em relevo os entrelaçamentos dos principais enfoques de análise crítica do discurso. Texto/discurso Existem várias dificuldades para se definir, com precisão, os termos “texto” e “discurso”, e é o lingüista Beaugrande ( 1997) quem recomenda uma prática de conectá-los, ao invés de opô-los. Para o autor, um texto é um evento comunicativo onde se relacionam as ações lingüísticas, cognitivas e sociais, e não apenas uma seqüência de palavras faladas ou escritas. Nessa perspectiva, o texto é mais que um artefato, e sim um sistema de conexões entre vários elementos: sons, palavras, imagens, participantes, etc. Já que esses elementos pertencem a diferentes níveis, o texto se apresenta como um “multi-sistema”, comportando múltiplos sistemas interativos. A textualidade não ocorre, assim, de forma reificada, distanciada das instâncias de produção e de recepção, e das convenções sociais, como foi projetada pela Lingüística do texto2. A textualidade permite um diálogo dinâmico entre o texto e os contextos sociais onde ele emerge. 1 Norman Fairclough ( 2001, p. 32) classifica as abordagens da AD assim : 1- Posições não-críticas : Sinclair e Coulthard ( 1975), com os pressupostos para a descrição do discurso na sala de aula ; O trabalho etnometodológico da « análise da conversação » ; O modelo do discurso terapêutico de Labov e Fanshel ( 1977) ; e uma abordagem recente da análise de discurso desenvolvida pelos psicológos sociais Potter e Whaterell ( 1987). 2- Posições críticas 1) A Linguistica crítica de Fowler et al. ( 1979) ; a abordagem francesa desenvolvida por Pêcheux, e trabalhada com base em pressupostos foucaultianos e bakhtinianos. É essa última que vamos adotar nesse trabalho. 2 Lembremos que a textualidade, concebida nos anos 1970, pela Lingüística do texto, consiste em um conjunto de propriedades ( coesão coerência, intencionalidade, aceitabilidade, e outras ) que asseguram o sucesso comunicativo do texto. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Charaudeau ( 2004, p. 29) entende por texto o resultado de um ato de linguagem produzido por um sujeito dado em uma situação e troca social dadas. Como um ato de linguagem, o texto tem propriedades gerais de todo fato linguageiro, como a materialidade significante ( oral, escritural, mimogestual) e suas condições de construção lingüística ( morfológica, sintática). Um texto é produzido em uma situação contratual dependendo assim da identidade dos sujeitos envolvidos e de circunstâncias materiais particulares. Um sujeito dá origem a um texto que deve se apresentar com as propriedades singulares de quem o emite. Os textos possuem pontos comuns, encontrados em três níveis : nos componentes do contrato situacional, nas restrições discursivas e nos diferentes aspectos de sua organização formal. Na perspectiva de Charaudeau, o lugar de ancoragem social é um lugar que define um certo número de dados situacionais que, por sua vez, instruem o processo de discursivação. Os dados situacionais induzem as regularidades discursivas e estas as formas textuais. O receptor deve reconhecer então o gênero-contrato com o qual ele trata. De um lado, o texto é visto como um evento comunicativo, de outro, como um ato de linguagem. Mas, nos dois casos, fica patente o caráter organizador que um texto assume, possibilitando as interconexões entre vários registros discursivos. É assim que o semioticista Louis Francoeur (1992 apud SOUZA, 2003) ressalta que a cultura funciona como uma hierarquia de sistemas significantes designados de textos. Estes estão sempre em interação contínua não possuindo mecanismos que lhes permitiriam nascer e se desenvolver de forma isolada. Mas, a cultura funciona como uma pirâmide e, em determinadas épocas, algum ou alguns desses textos ocupam o vértice. Como exemplo, o autor cita a língua, a literatura e a religião que foram considerados, em muitos países do Ocidente, durante um longo período, como os sistemas textuais por excelência da cultura. Na atualidade, a economia ganha esse status e, interagindo com os textos artísticos, ela aproxima do vértice os sistemas textuais suscetíveis de se integrar na nova ordem econômica. Sabemos que essa idéia de conexões de textos levou à observação da intertextualidade, conceito introduzido para o público ocidental por Kristeva, em 1969, a partir dos trabalhos de Bakhtine sobre o fenômeno do dialogismo. Gérard Genette, nos anos 1960, desenvolveu as pesquisas sobre as transcendências textuais de um texto, vistas no fenômeno da ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I transtextualidade que contém cinco tipos distintos: intertextualidade, metatextualidade, hipertextualidade, arquitextualidade e paratextualidade3. Vale lembrar igualmente do conceito de cenário intertextual, criado por Umberto Eco (1985), a representação de outros textos em um texto que o leitor atualiza graças a suas competências enciclopédicas. Este conceito é trabalhado por SOUZA (2003), nas narrativas telefictícias que retomam constantemente temáticas e expressões do patrimônio cultural da humanidade. Essa mesma autora contrapõe, na teleficção, este último cenário ao cenário hipertextual, que é responsável em trazer um patrimônio fictício para a atualidade em narrativas fragmentadas, como é a da ficção seriada. O termo hipertertexto, advindo da informática, assinala o terreno da não-linearidade e da nãohierarquização, com várias entradas não-seqüenciais: uma rede constituída por vários documentos ligados por elos ( links) que o leitor pode ativar segundo seus desejos de combinatória. Todos esses desdobramentos do termo texto só faz acentuar seu caráter de evento comunicativo, mostrando sua capacidade de interatividade que, de todas as formas, trouxe novas formas de percepção e de reação aos diversos tipos de representação. Como podemos ver agora a questão da existência do discurso? É sabido que os lingüistas sempre associaram o discurso à fala ( parole), sublinhando sua parte prática e singular no uso de uma linguagem. Benveniste, em 1966, quando abriu o caminho para os estudos da enunciação, inaugurou uma lingüística da fala, distinguindo o plano do discurso, como aquele que contém elementos de interpelação de um destinador a seu destinatário, do plano do relato, onde os fatos se apresentam por si só, sem a condução de um elemento enunciador. Essas observações nos levam, inclusive, a lançar mão da teoria das categorias de Peirce4, preconizando que o texto teria uma dimensão de terceiridade, na medida em que estrutura normas e convenções para organizar um evento comunicativo em sua totalidade, seja ele oral, sonoro, verbal, mímogestual, ou, em seu estado genérico, literário, cinematográfico, teatral, musical, etc. Nesse sentido, um texto existe como entidade estruturada, reconhecida como elemento social e, muitas vezes, canonizada como forma social. Já o discurso se 3 4 Vide uma descrição detalhada em SOUZA, Licia, Introudução às teorias semióticas, 2006. Vide SOUZA ( 2006). ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I compõe e circula como prática social, envolvendo uma comunidade discursiva, mas nem sempre ele existe em forma de texto, como entidade estruturada. Por exemplo, em uma revista, como Isto É, todos os artigos são textos, classificados como jornalísticos. Mas neles se entrecruzam discursos políticos, científicos, propagandísticos, humorísticos, etc. Um discurso político pode muitas vezes se solidificar numa comunidade discursiva e gerar textos, como o carlismo, o getulismo5, o juscelismo, etc. Muito já se falou de um discurso político batizado como o lulismo, mas que ainda não foi capaz de gerar textos pela indefinição de suas propriedades que não se caracterizam necessariamente com as do partido PT. Nessa ordem de idéias, o discurso pode se situar na zona da primeiridade, uma zona de virtualidade, precisando participar de um evento comunicativo que é um texto para passar a existir como uma entidade social estruturada. Formações discursivas Como ressalta Fairclough (2001), discurso é um conceito conflitante. No entanto, podemos continuar a vê-lo como um processo de produção e de interpretação de significados e visões de mundo, e o texto como um produto falado ou escrito, verbal, icônico ou sonoro, desse processo em escala social. Assim como texto gerou desdobramentos diacrônicos relativos às diferentes interações entre os inúmeros produtos sociais, o discurso, em seu dinamismo virtual primeiro, deu origem a um campo conceitual bastante profícuo que fundamentou à Análise Crítica do Discurso, a chamada de inspiração francesa. Os teóricos da formação discursiva (FD) recusaram alguns aspectos dos textos de Jakobson e Benveniste que preconizam uma intenção subjetiva em utilizar o código/língua para particularizar uma prática discursiva. Michel Foucault postula a existência das instâncias da enunciação em termos de lugares, pondo a ênfase na preexistência de uma topografia social sobre os falantes que aí vêm se inscrever. É um conceito de lugar cuja especificidade reside no fato de que cada um alcança sua identidade no interior de um sistema de lugares que 5 O getulismo é inclusive muito forte na literatura. Exemplos: Quarup de Antonio Callado, Agosto de Rubem Fonseca, Incidente em Antares de Érico Veríssimo, entre outros. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I o ultrapassa. A teoria do discurso não é assim uma teoria do sujeito antes dele enunciar, é sobretudo uma teoria da instância de enunciação que é intrinsecamente um efeito de enunciado. Nesse contexto, a principal tese de Foucault concernente à formação das instâncias de enunciação é a de que o sujeito social, que produz um enunciado, não existe fora do discurso, mas é uma função do próprio enunciado. Em outras palavras, os enunciados posicionam os sujeitos, tanto os que produzem como os que os recebem, de modo que descrever um enunciado não consiste em analisar a relação entre o autor e o que ele diz, mas em determinar que posição pode e deve ser ocupada por qualquer indivíduo para que ele seja o sujeito dela. O trabalho de Foucault constitui efetivamente uma grande contribuição para o exame do descentramento do sujeito social nos discursos sociais modernos, para a visão do sujeito constituído e transformado na prática social e para a visão do sujeito fragmentado. Neste trabalho existe igualmente campo para as relações entre os enunciados que é reminiscente dos trabalhos de Bakhtine sobre o dialogismo. Colocado o discurso no seio das formações discursivas, a partir de Foucault, cumprenos agora lembrar as reflexões de Michel Pêcheux para reforçar os elos entre intertextualidade e o interdiscurso. Em 1977, o conceito de interdiscurso, elaborado por Pêcheux, contém esse vetor pragmático do dialogismo, isto é, a relação dinâmica entre o enunciado atual e enunciados anteriores que serão catalogados como o pré-construído. Mas toda a importância do pré-construído reside no fato de que ele comanda uma formação discursiva diretamente ligada a uma formação ideológica. Dito de outra forma, o autor explicita as relações do fenômeno da interpelação-identificação com os aparelhos ideológicos do Estado, preconizando que o sentido das palavras, expressões e signos em geral não existe em si, e sim em referência a posições de classe daqueles que os utilizam. A formação discursiva é assim o que, em uma formação ideológica, isto é, a partir de uma posição determinada em uma certa conjuntura, ordenada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito. A formação discursiva, regida pelo interdiscurso, orienta a comunicação à medida que o sujeito interpela e é interpelado no interior de um sistema de signos pré-vistos, pré-ouvidos e pré-lidos. Dessa forma, a subjetividade na comunicação se encontra desdobrada: um sujeito ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I é o locutor singular, o que emite, o que recorta o sistema sígnico da formação discursiva; o outro sujeito é o locutor universal, ninguém e todo mundo, o círculo de expressões permitidas na formação discursiva que torna possível a interpelação e a conseqüente identificação dos sujeitos individuais com os discursos gerados em uma formação social. Nesse contexto, o interdiscurso é construído através da organização ideológica que garante a existência de discursos já produzidos, retransformados por um novo ato intercolutório. Um enunciado assim: O nordestino é preguiçoso manifesta uma atividade interdiscursiva. Ele pode ser emitido por um locutor determinado agindo numa situação circunscrita espacio-temporalmente, mas ele traduz resíduos lingüísticos estáveis, depositados no curso histórico do contexto de produção e de recepção de uma certa sociedade. Assim, o sujeito do discurso relator, o locutor, e o sujeito universal ideológico são confundidos por meio de um vetor histórico. O primeiro produz e recompõe unidades lingüísticas historicizáveis que são submetidas a uma orientação argumentativa: Paulo não gosta de trabalhar. Ora, Paulo é nordestino. O nordestino não gosta de trabalhar. A conclusão do argumento universaliza o sujeito. Nessa direção, ela contém um vetor pragmático estabelecendo relações interdiscursivas com enunciados produzidos anteriormente. Ela comporta assim a presença lógica do terceiro incluído, o mediador, o comandante do processo comunicativo, o sempre-lá ideológico espécie de conector de discursos. Esse terceiro termo funciona como um tipo de força dinâmica que convoca a experiência colateral histórica e social para correlacionar em determinado momento de produção de signos. No funcionamento das FDs, fica patente a idéia que desenvolvemos do discurso como prática de primeiridade, sempre apto a acionar variadas premissas do sujeito ideológico que comanda as práticas discursivas, em determinadas comunidades discursivas. Nessa perspectiva, a noção de heterogeneidade (MAINGUENEAU,1993), sempre auxiliou nas distinções entre intertextualidade e interdiscursividade. Na heterogeneidade mostrada, existe uma manifestação explícita e localizável de vozes citadas pelo autor de um texto analisado, em que marcas de outros textos estão visíveis na superfície, que é a verdadeira intertextualidade assim como a descreve Genette. Já na heterogeneidade constituída, o texto ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I analisado incorpora outros textos, como nas práticas sociais de circulação de discursos, em que as marcas não estão visíveis, mas existem estratégias discursivas que levam os receptores a buscar o movimento argumentativo do texto em enlaçamentos com outros textos e discursos: é a interdiscursividade. Por exemplo, Os sertões de Euclides da Cunha põe em cena um narrador viajante pelo interior do Brasil que dialoga explicitamente com Alexander von Humboldt, como com outros cientistas, em processo de intertextualidade. Em várias outras obras do ciclo canudiano, existem narradores e personagens viajantes que permitem marcar a interação do artista e do cientista na observação das formas telúricas, mas sem mostrar fontes textuais distintas, em processo de interdiscursividade. Para mostrar as relações das FDs com seus interdiscursos, nas formas em que as FDs podem ser reconfiguradas, no dinamismo social, Maingueneau (1993, p. 116) recorre a três termos complementares que assim se definem: 1) Universo discursivo. É o conjunto de todos os tipos de FDs que existem e que interagem em uma conjuntura. É um conjunto finito, mas irrepresentável, nunca concebível em sua totalidade pela AD. 2) Campo discursivo. É um conjunto de FDs que se encontram em concorrência e se delimitam em uma dada região. 3) Espaço discursivo. É um subconjunto do campo discursivo, ligando, pelo menos, duas FDs que mantêm relações privilegiadas para a compreensão dos discursos considerados. Por outro lado, na parte intitulada Enlaçamentos, Maingueneau (1993, p. 67), mostra como os textos de uma FD reflete sua própria enunciação em quatro níveis: a) Textos de primeiro grau, que revelam unicamente sua doutrina; b) Textos de segundo grau, que descrevem um ideal enunciativo realizado em sua própria enunciação ou uma comunidade cujo funcionamento é o das comunidades discursivas que lhes estão associadas. c) Textos de terceiro grau, em que a transmissão de sua doutrina coincide com a descrição de seu ideal enunciativo ou da sua comunidade discursiva; d) Textos de quarto grau, que fundem estes diversos elementos em um único: a descrição do mundo é, a um só tempo, definição de um ideal enunciativo e percurso de uma instituição. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Mas antes de começarmos uma análise com tais termos, necessário se faz ainda outras definições cruciais para a compreensão de todo o processo de manifestação das FDs. Cenografias A noção de cenografia foi trabalhada por Maingueneau, em 1987, ( cf. bilbio 1993), no intuito de mostrar que um texto não é um conjunto de signos inertes, mas um lugar onde a fala é encenada. Existem assim cenas de enunciação onde o diálogo discursivo se torna dinâmico. Inicialmente, dois tipos definem o quadro cênico de um texto. 1) A cena englobante corresponde ao tipo de discurso do texto. A cena de enunciação de um discurso político é a cena englobante política, a cena de enunciação de um discurso filosófico é uma cena englobante filosófica, e assim por diante. 2) A cena genérica define seus próprios papéis, de tal forma que, num texto de campanha eleitoral, é um candidato que se dirige a seus receptores. Mas esses dois tipos de cena podem comportar um grande dinamismo interdiscursivo, escapando das fronteiras que determinam a cena genérica. Maingueneau estipula então o nascimento do terceiro tipo de cena que é chamado de cenografia. Existem textos que se limitam ao cumprimento de sua cena genérica, como a lista telefônica, por exemplo. Outros textos possuem traços de vários discursos, tornando possíveis o imbricamento de várias cenografias. A entrada numa cenografia se dá, inicialmente, por uma dêixis discursiva envolvendo o locutor e o destinatário discursivos, a cronografia e a topografia. A cenografia de uma FD deve ser entendida como a materialização de situações de enunciação que distinguem os atores do jogo discursivo, o tempo e o lugar. Esses três elementos podem ser partes de uma dêixis fundadora ( locução, cronografia e topografia fundadoras) que dá início a um texto inovador, como podem fazer parte de uma dêixis geradora que dá continuidade a uma série de discursos já legitimados numa formação social6. 6 Nos discursos políticos, é interessante observar as incorporações intra-políticas de candidatos tradicionais: Brizola reencarnou Vargas; Collor atualizou a voz de JK, se apresentando ao lado de Dona Sara que emitiu: “ É ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Ethos Existe um consenso em que trabalhar com a noção de ethos é uma tarefa espinhosa. A idéia de que um locutor constrói uma representação de si mesmo, quando fala, parece simples, mas possui suas aporias. A. Auchlin (apud Maingueneau ) afirma que a noção de ethos tem um interesse prático, mas não é um conceito teórico claro. Como torná-la então operacional? Todas as vezes que se recorre à noção de ethos, o mais comum é se fazer um longo caminho até Aristóteles. No entanto, como não temos sempre espaço para discorrer sobre o modo de ser da Retórica antiga e de suas modificações, resumimos, contemplando o seguinte: Os textos atuais não são mais entidades homogêneas e são investidos por várias forças discursivas que testemunham os vários tipos de dialogismos, muitas vezes imprevisíveis, de nosso século. Dessa forma, a noção de ethos só pode ser vislumbrada numa confluência de forças discursivas heterogêneas autorizando formas distintas de incorporação. O ethos não é uma representação bem delimitada. Enquanto forma dinâmica, construída pelo destinatário, por todos os vetores que configuram a fala do locutor, o ethos implica a experiência desses destinatários com o “sujeito ideológico” das FDs. Esses buscam ver, em um orador, um ethos parecido com os seus, a tal ponto que podemos afirmar que um ethos emerge das tensões entre elementos extra e intra-discursivos. O ethos se elabora, assim, através de uma percepção complexa que extrai suas informações da representação, desenvolvida em um texto, e do ambiente dos protagonistas da comunicação. De todas as formas, o ethos é uma noção discursiva, só se constrói no discurso, embora tenha elos com o ambiente extra-discursivo, o que equivale aos objetos dinâmicos de Peirce, podendo ser individual ou coletivo. preciso que haja um continuador de Juscelino”. O valor heurístico desse método consiste em se repertoriar as figuras políticas fundadoras de discursividades capazes de orientar a construção de uma memória políticodiscursiva nacional que serve de inspiração para a construção de personagens na ficção em geral. O Senador Caxias, na telenovela O rei do Gado ( 1996-7 ) desdobra valores simbólicos do marechal da Guerra do Paraguai. O método da descorporificação/incorporação simbólicas muito pode oferecer também a pesquisas históricas, simbólicas e literárias ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I O ethos é o resultado de uma dupla identidade: o sujeito aparece, ao olhar do outro, com uma identidade psicológica e social que lhe é atribuída, como também com sua identidade discursiva que ele constrói para si ( CHARAUDEAU, 2006). Discorrendo sobre o discurso político, Charaudeau apresenta uma tipologia de ethé suscetível de fornecer ferramentas úteis para a operacionalização das incorporações nas FDs. As figuras identitárias do discurso político se reagrupam em duas grandes categorias de ethos: o ethos de credibilidade e o ethos de identificação. 1) Os ethé de credibilidade. A credibilidade não é ligada naturalmente à identidade social do sujeito, como a legitimidade. Ela é construída pela identidade discursiva de um sujeito que fala, de tal modo que os destinatários sejam levados a julgá-lo digno de crédito. No caso do político, ele deve se perguntar: Como faço para ser aceito? Na credibilidade, ressaem três ethé. 2) O ethos de sério. Construído com o auxílio de uma iconicidade de rigidez (postura do corpo, ausência de atitudes frívolas, ausência em lugares suspeitos e em programas midiáticos populistas), esse ethos se elabora com declarações a respeito de si mesmo, capazes de delinear uma pessoa séria. Evita-se igualmente as promessas de difícil realização. 3) O ethos da virtude. Esse ethos floresce de um conjunto de imagens ligado à fidelidade a um pensamento virtuoso e à coragem do sujeito político, associado à imagem de honestidade pessoal. 4) O ethos da competência. Aqui é exigido saber e habilidade, traduzidos no conhecimento profundo do domínio particular no qual o orador exerce sua atividade. Embora seja uma questão delicada caracterizar os ethé de identificação, Charaudeau destaca alguns. 1. O ethos de potência. Remetendo à imagem de uma força da natureza, força telúrica que não pode se enfrentar facilmente, esse ethos exprime uma figura de virilidade masculina. Em culturas em que se valoriza a conquista múltipla, o político pode usar a figura do sedutor de mulheres. Em outras, onde essa prática, é rejeitada, a potência tende a deixar emergir interpretantes de ação; o político (aqui pode-se incluir mulheres) é mais do que um homem de palavras, ele é sobretudo ativo. E encarna a figura do vociferador, exercendo violência verbal em relação a adversários. 2. O ethos de caráter. Esse ethos também participa de um imaginário de força, mas é a força do espírito. Aqui o “berro” configura a vituperação, caracterizada por declarações de impacto. As variantes dessa figura são a provocação e a polêmica.Associa-se a elas a figura da coragem que forma o ethos do caráter forte. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I 3. O ethos da inteligência. Na guerra política, a inteligência está associada a duas figuras primordiais: a astúcia e a malícia. 4. O ethos da “humanidade”. Nesse ethos, a figura do sentimento, principalmente o da compaixão pelos que sofrem, constitui um imaginário importante para os políticos. A ela se associa a figura da confissão, quando o político reconhece que não fez o suficiente para com seus eleitores. Numa configuração da sinceridade, montada com a ajuda de jornalistas, a intimidade também se constitui uma figura crucial no conjunto desse ethos. 5. O ethos de chefe. Esse é um ethos que se direciona para o outro, o cidadão. Ele é uma construção de si para que o outro adira. A figura do guia tem variantes: o guia-pastor, o guia-profeta, o guia-soberano. O político deve mostrar sua capacidade de indicar a via que a comunidade deve seguir7. 6. O ethos de solidariedade. Esse ethos faz do guia um ser que não só está tento às necessidades dos outros, mas que as partilha e se torna responsável por elas. Estamos agora aparelhados para tentarmos algumas análises de textos distintos. Temos dois anúncios publicitários da PETROBRÁS, um veículo na Manchete 2000, edição histórica, e o outro na Carta Capital de agosto de 2008. A cena englobante dos dois textos é a da propaganda institucional e a cena genérica é a do anúncio impresso. O texto do primeiro anúncio se inscreve no quarto grau, desenvolvendo uma cenografia instalada no espaço da Petrobrás, através de um tempo histórico em que dois presidentes visitam campos petrolíferos, Vargas, em 1953, e Collor, em 1990. Os elos interpretantes entre a Petrobrás e a Manchete se resumem no título do texto : Petróleo dá Manchete, retomados pelo slogan abaixo da logo da empresa: Aconteceu virou Manchete. Existe aí a definição de um ideal enunciativo em que a Manchete mostra que surgiu na época da campanha O petróleo é nosso!, em 1952, tendo noticiado vários acontecimentos da empresa de petróleo, inclusive a visita dos presidentes. Esse tipo de meta-reportagem conduz ao percurso das duas instituições, pois, através da história da revista, é perfilada a história da Petrobras. São fornecidas aos leitores informações relevantes do lugar enunciativo que a revista ocupa na história institucional do país. Na Carta Capital, existe outro tipo de texto de quarto grau, mas é a própria Petrobrás que ocupa sua cenografia. É a própria instituição que vai contar sobre suas descobertas, na sua 7 Para observar as diferenças das características das várias figuras de guia, vide Charaudeau ( 2006, p. 153-163). ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I nova era, que é “mais um capítulo de sucesso na história do Brasil”. São relatados os resultados das pesquisas, um campo lexical científico pertinente ao modo de falar dos engenheiros que conhecem o campo de saber: sondas de perfuração, plataformas, estrutura marítima e fluvial, gasoduto, biocombustível e biodiesel. Vejamos que, no primeiro exemplo, existe um ethos de certeza e confiança apto a despertar a adesão à revista: o leitor é levado a identificar-se com a fala do enunciador e a incorporar seu modo de ver o mundo, principalmente a instituição que está focalizando. No segundo exemplo, são as imagens dos próprios pesquisadores e operários da revista que são mostradas configurando um ethos de segurança, sucesso e confiança no futuro do país. Assim sendo, vemos um tipo de propaganda institucional que valoriza o senso de equipe e de corporação e que constrói seu ethos como uma espécie de nós coletivo, representativo da nacionalidade, por uma “empresa brasileira feita por brasileiros”. Passando para outra cena englobante, como a do discurso político, vamos observar a disputa dos candidatos do PT e do PMDB, na campanha municipal de Salvador, para usar a imagem de Lula. Três candidatos, Pinheiro (PT), Imbassahy (PSDB, prefeito do nicho carlista, em dois mandatos, entre 1996 e 2004) e João Henrique ( PMDB, atual prefeito ) se opõem ao herdeiro ACM Neto (DEM) sobre o qual incidem os elementos do ethos do avô que caracterizou uma doutrina política, originando textualidade própria, conhecida como o carlismo. Em razão dessa textualidade, o carlismo ultrapassou o status de doutrina política e passou a ser uma FD bem ancorada numa formação social. O candidato do PMDB, João Henrique, cujo ethos se modificou negativamente, passando a ter um elevado índice de rejeição, começou a usar a imagem de Lula como aliado em seu material impresso, anterior ao horário eleitoral gratuito. Pinheiro (PT) abriu processo na justiça para impedir que o adversário usasse a imagem do presidente, alegando que só os candidatos do PT poderiam fazê-lo. Não diríamos que o ethos político do presidente possui todas as figuras dos ethé da credibilidade e da identificação. Houve escândalos de corrupção com membros de seu partido no governo, que anulam o efeito do ethos da virtude. Fala-se de sua falta de escolaridade superior, o que atenua os traços de um ethos da inteligência. Lula ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I tem primordialmente o ethos do chefe, com figuras da humanidade e da solidariedade, pela sua origem humilde e aparência de homem do povo. No artigo de A Tarde, o advogado de João Henrique fala de se estatizar a imagem do presidente. É uma voz de justiça que instaura um argumento de autoridade contra a interdição de usar a imagem do presidente em propaganda impressa, já que, na TV só podem parecer nas mensagens candidatos do mesmo partido. A disputa pela imagem do presidente é assim restrita a um tipo de veículo de comunicação. De qualquer forma, como imagem suprema da soberania, a figura do chefe entra no cruzamento das FDs eleitorais onde são expostas regras da comunicação com suas permissões e restrições. Nesse âmbito, os textos produzidos são quase sempre de quarto grau, pois é necessário mostrar a formação das figuras que compõem os ethé dos políticos e as formas pelas quais eles se direcionam a seus receptores. Para mostrar ainda um exemplo da formação de ethos , vejamos a capa da Carta Capital de agosto de 2008. A questão é aquela de herdar a identidade do chefe do carlismo que constituía-se verdadeiramente em uma identidade social de locutor. A sombra do chefe aparece, portanto, ao olhar dos outros com ethos de chefe soberano que, com uma identidade psicológica que lhe é atribuída, deve ser incorporada por outro ethos-chefe. É toda uma identidade social construída por uma predicação política que emana de opiniões em relação a um grupo. Mas, se o chefe carlista foi constituído como ethos político, atravessado de todas as figuras da legitimidade e da credibilidade, as últimas notícias da imprensa destruíram, aos olhos do povo brasileiro, e principalmente baiano, sua figura de honestidade. O texto da capa fala de disputa pela sua posição de chefe, mas refere-se igualmente à disputa familiar pela herança “estimada em 300 milhões de reais” que é impossível de se construir, em qualquer lugar do mundo, apenas com trabalho assalariado, sem investimentos de risco. Contrato Para podermos aprofundar nossas análises, temos que examinar igualmente a noção de contrato. Toda proposta comunicativa tem modos específicos de se dirigir ao outro, de interpelá-lo, e de seduzi-lo para continuar o diálogo. No esquema de Jakobson, a interpelação ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I é caracterizada pela função conativa e define um modo de endereçamento a um receptor ideal. A função conativa tem a ver com o que Verón ( 1985) denominou contrato de leitura , uma forma pela qual os emissores constituem seus públicos como sujeitos receptores de seus discursos. Charaudeau chamou o estabelecimento dos dispositivos de interpelação de contrato de comunicação, haja vista que Verón estipulou uma concorrência de mensagens para que fosse possível se analisar o contrato de leitura. Os parceiros desse contrato são categorias abstratas, desencarnadas e destemporalizadas definidas pela posição que ocupam no dispositivo de comunicação. (CHARAUDEAU, 2006). Nesse contexto, o dispositivo também tem uma ordem conceitual, sendo o que estrutura a situação na qual se desenvolvem as trocas linguageiras e que dispõe lugares para que os parceiros possam se instalar, em função da natureza de suas identidades. Um dispositivo é assim um lugar social de interação apto a materializar seus próprios modos de comunicação. Analisando os anúncios de revista e textos de jornal, podemos contemplar sinteticamente os principais componentes do dispositivo de cada um desses veículos de comunicação. Eles têm suas zonas de cooperação social de produção com objetivos, discursos ideológicos dominantes, públicos visados, tecnologias utilizadas, etc. Têm seus parâmetros de linguagem, tipos de texto e gêneros de discursos; e a zona de cooperação social de recepção na qual os públicos decodificam as mensagens, estruturam respostas e recodificam as mensagens segundo suas competências culturais. Sendo o dispositivo uma cena em que as instâncias de produção e recepção estão em interação constante, ele só existe em uma conjuntura social, e determina as formas do contrato de comunicação. Por outro lado, a análise do contrato permite determinar a especificidade de um dispositivo que se articula em uma FD dada. Assim sendo, o dispositivo é o que garante que espaços discursivos se concretizem, com suas cenografias e ethé relacionados a suas FDs. O ethos político de ACM se configurou, graças a uma série de dispositivos acionados, inicialmente, nos meios de comunicação amparados pelos campos discursivos da ditadura militar com seus governantes biônicos. Toda a textualidade dos militares estabeleceu ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I contratos de comunicação em torno do slogan político Brasil, ame-o ou deixe-o, em que amar era sinônimo de concordar com o regime. Posteriormente, ACM, com seu ethos de autoridade, enquanto ministro das comunicações, construiu um império midiático, no qual o jornal Correio da Bahia e a filial da TV Globo, a TV Bahia, praticamente “arrancada” das mãos da TV Aratu, desdobrou uma série de dispositivos aptos a engendrar contratos de comunicação, relativos a sua figuração potente e paterna vinculada ao campo sígnico emocional de amor à Bahia8. Montou-se assim dispositivos políticos configuradores de uma FD determinada, com suas cenografias fundadoras, via contratos bem delineados. Nesse momento, ACM Neto se serve dos dispositivos já estabelecidos, tentando renovar os contratos, através das ligações interpretantes do interdiscurso. Por outro lado, na disputa pelo uso da imagem de Lula, podemos observar que o que está em jogo é, primeiramente, a montagem do dispositivo midiático através do qual o prefeito João Henrique ( PMDB) busca estabelecer contratos com eleitores potenciais, passando-lhes a idéia de que conta com o apoio do presidente. Nesse sentido, ver-se-á que toda comunicação possui sua dimensão relacional com suas características enunciativas e pragmáticas, muito mais do que conteudísticas. Cada contrato, em cada dispositivo, está apto a mostrar que os indivíduos pertencentes a um mesmo campo discursivo são suscetíveis de chegar a um acordo sobre as representações discursivas desse campo. Instâncias O conceito de comunicação midiatizada levantou muitas questões acerca das mediações que governam as interações entre os meios de comunicação e seus públicos. A um determinado momento, chegou-se à conclusão de que falar de mídia supõe falar de um complexo muito vasto de veículos de comunicação que foram, com o tempo, mesclando suas linguagens9. O exemplo hipermídia da Internet, com seus hipertextos, ilustra a natureza da complexidade da comunicação midiatizada. Esta, para Meunier e Peraya (2008, p. 312), 8 9 Sobre o ethos de ACM e o amor à Bahia, vide SOUZA ( 2006) Sobre a história do folhetim à telenovela, vide SOUZA ( 2003) ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I refere-se a toda forma de comunicação que utiliza dispositivos tecnológicos. Seria, então, legítimo falar de dispositivo de comunicação midiatizada ou dispositivo midiático. Mas, pensando nas formas de mediação entre um meio e o público, podemos pensar que o livro também sempre fez parte da comunicação midiatizada. Este é um debate que merece um espaço maior para se desenvolver. Os autores citados enumeram quatro formas de mediação ( tecnológica, sensóriomotora, social e semiótica, ou melhor, semiocognitiva). Não vamos descrevê-las, citamo-las apenas para atestar a riqueza de ferramentas para se trabalhar com a comunicação midiatizada. Na perspectiva que adotamos, pretendemos falar de instância, e voltar ao trabalho de Charaudeau (2008) a fim de verificar como seu modelo pode dar conta das ligações orgânicas entre o campo extra e intradiscursivo, com agentes diferenciados em cada campo. Sugerimos que a tradicional questão feita a um texto sob a forma: “Quem fala?” seja substituída por outra: “Quem o texto faz falar?”, ou quais sujeitos o texto faz falar”, já que sabemos que um ato de linguagem é composto de vários sujeitos ( EUc-EUe; TUd-TUi). ( CHARAUDEAU, 2008, p. 63) O EUc é um sujeito comunicante- ser social que se dirige a um receptor TUi, sujeito intérprete- ser social. Ambos se encontram no campo extra-discursivo e estão ligados por uma situação de comunicação, com finalidade contratual mais um projeto de fala. Estas instâncias são denominadas de parceiros do ato da linguagem e são definidos por um certo número de traços identitários que o ato de comunicação legitima. (CHARAUDEAU, 2008, p. 76). Por outro lado, os protagonistas são seres de fala internos ao ato de linguagem e são definidos por papéis linguageiros, no campo intradiscursivo. Um é o EUe, enunciador, ser de fala, e o outro é o TUd, Destinatário, ser de fala. Diferenciando o campo externo do campo interno, de um ato de comunicação, Charaudeau estabelece uma reflexão profícua para o estudo dos variados dispositivos, com seus variados contratos, em campos discursivos, nos quais se confrontam vários ethé. Lembremos da propaganda institucional da Petrobrás, na Manchete 2000. Quem é o EUc do anúncio? Idealmente são dois eus que poderiam formar um NÓSc: a Petrobrás e a Manchete (com seus fotógrafos Gil Pinheiro, Sérgio de Souza, etc) que se dirigem aos leitores ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I da revista, TUi. No campo interdiscursivo, existem vários EUe, os presidentes, Vargas e Collor, e os operários, nas plataformas, nas imagens visuais. No texto, existe uma fusão entre o EUc, a revista Manchete, com seus dispositivos de produção ( seus repórteres e fotógrafos) e o EUe, a Manchete, como nós inclusivo ( nós temos muita coisa em comum) que se dirige ao TUd (no nosso dia-a-dia) o povo brasileiro, que é também o TUi ,leitores no meio do povo brasileiro. O essencial do contrato, na fusão, repousa na informação de que a impressão da revista depende do petróleo. Esquema gerativo da comunicação Após termos exposto o esquema de comunicação de Charaudeau, podemos pensar no desdobramento das instâncias em um projeto gerativo, que já apresentamos no livro Introdução às teorias Semióticas (2006), tentando concluir essa apresentação. As conclusões, serão evidentemente, incompletas, em razão da extensão do assunto. Esse esquema inspirado de Bakhtin e Pêcheux requer uma tensão interdiscursiva e intertextual. Interdiscurso intertexto Contexto narrativo (CN) (1) Locutor Discurso citado (DC) (4) Ideologema Alocutário (3) (2) Discurso citado (DC) Contexto narrativo(CN) ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I As relações entre Emissor (Locutor) e Receptor (Alocutário), EUc e TUi , são representadas pelas setas 1-2-3-4. EUc realiza um ato discursivo. Esse ato é regido por uma condição de produção, não de emissão ideal da mensagem que requer a tensão entre o contexto narrativo, pré-existente à vontade de emitir do locutor, e o discurso citado, em estilo direto, indireto ou indireto livre. As modificações que o DC do locutor, enquanto EUc, introduz no CN dão origem a outro CN onde o alocutário, enquanto TUi, deve perceber o DC de origem. Podemos observar, por exemplo, no artigo de A Tarde, que o DC do locutor, para formatar outro CN, monta várias falas de EUe ( afirmou o advogado...; o PT afirmou...; Pinheiro destacou...e confirmou; Segundo a assessoria de ACM Neto...Já a assessoria do prefeito entrou com recurso...). Os textos políticos obedecem a um dispositivo próprio para relatar opiniões com expressões e verbos indicadores de posições e argumentos10. O importante é que o novo CN, onde o alocutário TUi apreenda o texto, deve transparecer um ou mais ethos investidos de um saber político imbuído da capacidade de suscitar a crença no episódio relatado. O CN político se apresenta, assim, sempre como uma cenografia onde vários EUs , complementares e contraditórios, se expressam, em lugar de ecoar apenas uma só voz, seja do autor do texto ( EUc) ou de um político determinado (EUe). Para o TUi, o ato de decodificação não pode se reduzir ao reconhecimento de um sinal estável, e sim repousar na compreensão da sua significação em um contexto concreto preciso. Entender as razões que levam o PT e Pinheiro a tentar evitar o uso da imagem de Lula, pelo candidato de outro partido, exige conhecimento de um CN no qual os dispositivos de comunicação vêm sendo montados com suas cenografias particulares. Dizemos então que o DC ( seta 1), apreendido no CN (seta 2) representa o primeiro passo de uma operação interpretativa destinada a marcar uma correlação codificante contextual. Ela constitui o exemplo mais evidente de contrato de comunicação emanando de duas zonas de cooperação social interligadas, em torno de um 10 Vide a classificação dos verbos introdutores de opinião feita por Marcushi (1991) que se enquadra perfeitamente neste tipo de análise. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I referencial que Samuel Celestino ( A Tarde, 1-8-08) denominou como Um homem em disputa. Existe, em seguida, a apreensão do DC (seta 4) como verdadeiro produto social. Esta apreensão deve ir do procedimento de avaliação do DC, enquanto discurso de um locutor, a uma espécie de competência discursiva consistindo a pô-lo em relação com a rede de discursos anteriores à comunicação emitidos pelo mesmo locutor ou grupo de locutores. Nesse exemplo da imagem de Lula, trata-se do confronto de vários discursos emitidos sobre o assunto, em veículos distintos, com dispositivos variados, que devem ser apreciados e avaliados não apenas pelos membros do PT e do PMDB, mas por todos os cidadãos, que são eleitores potenciais para a prefeitura de Salvador. Celestino, para ironizar as cenografias dos vários textos que circulam sobre o assunto, acrescenta: “Homem brigar por outro homem, por ciúme, inveja ou pela exclusividade do cidadão em disputa,era algo há muito tempo inimaginável na Bahia”. Continua seu estilo irônico, imaginando várias cenas de diálogos entre os candidatos e o presidente: - “Presidente, você é de quem?” Lula: “- Eu tenho o lirismo da lua, tenho todos os encantos, mas não sou de ninguém.” A briga por homem, que Celestino diz nunca ter visto antes em sua carreira, desencadeia uma série de cenografias, com seus contratos através das quais fica patente a subordinação social dos parceiros da comunicação com a formação discursiva. E justamente a intervenção do interdiscurso preside à apreciação do ato discursivo já existente retransformado por um novo ato interlocutório que o situa circunstancialmente. Ele rege a orientação social das posições de classe que autorizam o que deve ser dito em determinado momento da evolução da sociedade. De tal forma que as unidades discursivas sobre o uso exclusivo da imagem de Lula pode entrar em relação dialógica com unidades lingüísticas do discurso político, tais como aliança, partido, governabilidade, disputa judicial, faixa presidencial, símbolos da República, privatização do presidente, que vão se constituindo nos efetivos sujeitos ideológicos dos enunciados. O dialogismo indica igualmente a permuta intertextual entre os enunciados onde se alarga o horizonte social dos protagonistas e onde o horizonte axiológico pode conduzir os enunciados emitidos aos campos semânticos da nação, ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I da formação de comunidades, do envolvimento partidário e ideológico, da manipulação da opinião, etc. Esses horizontes, que determinam efetivamente os estudos sobre condições de recepção, sendo, ao mesmo tempo, dois vetores de produção sígnica são mediatizados pelo produto ideológico que unifica a competência comunicativa dos agentes sociais. Bakhtine diz que todo enunciado funciona como um entimema11, e é por isso que ele convoca relações intertextuais. O ideologema, um enunciado, um entimema, é um mediador que ocupa o centro diagramático do esquema e substitui a função topológica das mensagens. Ele é um produto de troca realizado num determinado momento de produção de signos; ele é produzido em série e garante o diálogo do produto atual com os outros postos em circulação neste período historicamente determinado em que a comunicação é processada. De um lado, tem-se o ideologema O presidente é meu ( diz o PT) que desencadeia todas as reações de relação polêmica para afirmá-lo ou negá-lo; Por outro lado, nos outros exemplos, tem-se outros ideologemas: 1. É preciso disputar o espólio do coronel, em relação à dita lacuna política deixada pelo carlismo, que todos querem ocupar, mesmo “sem repetir o estilo grotesco de ACM” (Isto É, 2008, p. 22); 2. Nova era de sucesso brasileiro com a empresa brasileira Petrobrás, que funciona como um verdadeiro ideologema dinamizando uma série de enunciados eufóricos sobre a atividade produtiva e de pesquisas da instituição. Nesses exemplos, podemos verificar textos de quarto grau que põem em cena suas doutrinas, os percursos institucionais e seus ideais enunciativos, dirigindo-se diretamente a comunidades discursivas que são identificadas explicitamente como os aliados, os eleitores, os tucanos, os carlistas, os peemedebistas, os seguidores, etc, no caso da política. Quanto aos textos da Petrobrás, fica claro que as comunidades discursivas concretizadas nos textos são formadas pelos pesquisadores e operários, e sobretudo pelos brasileiros. Assim, trazendo para essas reflexões finais a problemática das tensões do interdiscurso e do intertexto, resta-nos lembrar que a centralidade de muitos tipos de textos e discursos acaba por se desfazer, na época atual, em favor de uma pluralidade de propósitos socioinstitucionais , ligados a comunidades discursivas determinadas. Os textos 11 políticos, os textos de propaganda Um silogismo truncado que não se apresenta com todas as premissas. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I institucional, artigos jornalísticos, etc., são vários exemplos de textos plurais que materializam convenções variadas de produção e recepção, proporcionando as imbricações de regularidades discursivas diversas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BEAUGRANDE, R., New foundations for a science of text and discourse. Cognition, communication, and the freedom of access to knowledge and society. Norwood, New Jersey, Ablex Publishing Corporation, 1997. CELESTINO, Samuel, Um homem em disputa, A Tarde, 1-8-08. CHARADEAU, P., Linguagem e discurso. Modos de organização. Tradução de Ângela M. S. Corrêa e Ida Lúcia Machado, São Paulo, Contexto, 2008 (orig. 2008). CHARAUDEAU, P., Discurso político, tradução de Fabiana Komesu e Dílson Ferreira da Cruz, São Paulo, Contexto, 2006. 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Assim percorrerei uma trilogia infanto-juvenil composta pelo escritor acima citado analisando a sua perspectiva de olhar sobre as relações étnico-raciais no Brasil. Que aspectos da mitologia Yorubá perpassam as suas obras. Palavras-chave: Literatura-infanto-juvenil – relações étnico-raciais – Reginaldo Prandi ABSTRACT This text aims to think about the children and young people's literature Reginaldo Prandi, sociologist of religion, under the analysis of cultural studies, as it appears in this day and age as an opportunity to meet the demand required by law in order 10.639/03 in school curricula to include the study of history and culture africanBrazilian and African officers in the curricula of education specifically in the areas of literature, arts and history. So traveling in a trilogy children and youth comprise the writer above examining its perspective to look on the ethnic-racial relations in Brazil. What aspects of mythology Yorubá permeates your works. Keys: Literature-children and youth - ethnic-racial relations - Reginaldo Prandi “Iemanjá era filha de Olocum, a Senhora do Mar. Um dia Iemanjá foi viver no continente e sua mãe lhe deu uma cabaça mágica, que ajudaria numa situação de perigo” (PRANDI, 2003, p.33). Reginaldo Prandi é escritor, pesquisador, professor da USP e sociólogo das religiões, com inúmeros trabalhos publicados e carreira acadêmica construída dentro dessa temática. Recentemente publicou uma trilogia literária infanto-juvenil a qual se reporta a mitos da 1 Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e mestranda do Programa de PósGraduação em Estudos Étnicos e Africanos pelo Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Email: [email protected] ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I tradição religiosa Yorubá presentes na cosmologia dos terreiros de candomblé. Alvo de reconhecimento social, suas obras já receberam várias premiações2. Em ordem de publicação, os livros são: Ifá, o Adivinho (2002); Xangô, o Trovão (2003) e Oxumarê, o Arco-Íris (2004), ambos compostos de contos adaptados em linguagem e forma, retirados de seu livro para adultos “Mitologia dos Orixás”.3 Essa versão infanto-juvenil, de forma resumida, traz inúmeros contos que para além de seus títulos, adentra ao universo das interações entre os orixás, entre estes e seus devotos. Aborda também a reconstrução histórica dos negros na formação do Brasil. São vários contos, uma média entre 10 a 13 histórias em cada publicação, que vai da revelação das identidades dos orixás a conflitos e disputas internas entre eles. É pertinente chamar a atenção para que pretendo, a partir dessa trilogia e da representação intelectual do escritor, Reginaldo Prandi, pensar essa literatura infanto-juvenil sob a ótica das discussões dos Estudos Culturais e para isso, me debruçarei nas reflexões teóricas de Stuart Hall, Paul Gilroy, Muniz Sodré, Kwame Appiah e Eduard Glissant. Procurarei dialogicamente articular a percepção sobre a questão étnica construída no texto de Prandi com o significado sócio-cultural da produção literária infanto-juvenil para a realidade das relações raciais brasileira. Com isso, percorrerei um caminho ainda em fendas, uma vez que apesar de vasta a produção dessa literatura nos últimos anos, ela ainda se caracteriza em sua construção inicial, daí pensá-la na realidade sócio-cultural hoje, mas que revela desde já, um futuro promissor. Hoje a discussão da temática étnico-racial na escola é uma exigência legal percorrida nos últimos vinte e cinco anos pelo Movimento Negro Unificado (MNU) o que se caracteriza como uma vitória, resultado de lutas político-sociais que, materializados na Lei 10.639/03, remonta a história sócio-política das organizações negras do nosso país. Ou seja, a Lei 10.639/03 é símbolo da presença das revoltas, dos negros que ascenderam socialmente, das representações tradicionais que subsistem até hoje nos espaços sócio-educativos em que torna vivaz a cultura negra (terreiros, quilombos, etc), da Frente Negra Brasileira e do MNU, todos 2 Dentre as premiações destaca-se a que recebeu em 2003 com o livro Ifá, o Adivinho da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, Prêmio Melhor Livro Reconto. 3 PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Editora Companhia das Letras. 2001. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I estes deturpados em sua História Oficial, quando não, negados nos ambientes educacionais formais, daí a importância desta lei que procura reparar em termos curriculares, consequentemente, da formação ideológica esse dado ofuscado pelas redes de ensino. Enfim, a Lei 10.639/03 vela a participação dos africanos e seus descendentes em solo brasileiro enquanto agentes na constituição do nosso país e que contraditoriamente, teve sua história negada nos espaços sócio-culturais, sendo estes por sua vez, formadores de opinião e mentalidades. Muniz Sodré ao tratar das relações raciais no Brasil e na mídia, fala que “o imaginário é categoria importante para se entender muitas das representações negativas do cidadão negro, quando se considera que, desde o século passado, o africano e seus descendentes eram conotados nas elites e nos setores intermediários da sociedade como seres fora da imagem ideal do trabalhador livre, por motivos eurocentrados” (SODRÉ, 1999, p. 244-245). Essa imagem construída enquanto seres fora do sistema e da incapacidade de adequação ao progresso dos negros sobre a elite branca percorreu diversos meios de representação. Sodré se refere especificamente à negatividade projetada na mídia, mas ela é percebida em todos os mecanismos de propagação cultural, ao mesmo tempo em que constrói percepções e orienta as relações interpessoais e subjetivas. Nesse sentido, literatura infantojuvenil não está distante dessa realidade, como destaca Lima, enquanto espaço formador e construtor do imaginário social não se constitui enquanto um espaço neutro, longe das influências externas e da veiculação ideológica, ela é formada “(...) de enredos e lógicas, onde ‘ao me representar eu me crio, e ao me criar eu me repito’ (LIMA, 2001, p.96)”. A literatura infanto-juvenil vem se reconfigurando muito nas últimas décadas, o que em sua história inicial era destinado a uma pequena parcela da sociedade, hoje se populariza e abre um leque de possibilidades de diálogos, tal quais as emergências sociais a atender novos contextos4. É dessa maneira que as questões étnico-raciais caracterizadas aqui como cunho 4 Desde as décadas de 60-70 que a literatura infanto-juvenil, sob a preocupação de enfatizar os problemas sociais do Brasil, se comprometeu em trazer a realidade brasileira enquanto problemática a ser incorporada nesse gênero literário. Do faz-de-conta, à regionalização brasileira e aos problemas sociais, muitos foram os estereótipos construídos acerca das minorias. É nessa lógica que o negro sempre esteve quase ausente nas tramas literárias e quando representado sempre seguido de posições de inferioridade em relação ao personagem não-negro. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I político-ideológico se (re)fazem nas tramas literárias infanto-juvenis, as quais ganham maior atenção frente a implementação da Lei 10.639/03 ao tornar obrigatória a inserção da abordagem étnico-racial nos currículos escolares. Passam a ser exigência social e legal, a ser incorporada e traduzida em prática cultural, a exemplo, da abertura do mercado editorial, pósgraduações e cursos de capacitação de professores. Observo que dentro dessas obras literárias há uma freqüência muito recorrente da afirmação de identidades das populações negras, tal qual uma busca pela origem comum decorrente do continente africano, a exaltação da beleza do povo negro, a (re)constituição familiar e cultural frutos da experiência da diáspora, e uma presença muito forte e especial atenção às religiões afro-brasileiras. Daí a importância dessa reconstrução das imagens em que humanizem e dê visibilidade aos negros, no sentido de reposicionar o imaginário social. As literaturas de Prandi correspondem a essas expectativas, pois, informa sobre outros olhares à explicação de fenômenos sob o ponto de vista da cultura afro-brasileira. Ou melhor, especificamente as literaturas de Prandi trabalhadas aqui dão conta de mitos que revelam partes do universo simbólico dos orixás e dos terreiros de Candomblé. Traços podem ser identificados nas obras de Prandi o que se refere à cosmologia envolta do culto aos orixás, tal quais as elencadas a seguir: 1) Personalidade - os orixás são portadores de personalidades que os aproximam da figura humana, dotados de características individuais e gostos que permeiam uma individualidade e diferenças entre cada orixá. Assim, cores, comidas, saudações, cidades de origem fazem parte do repertório simbólico dos orixás, correspondentemente no culto dos terreiros. Além disso, é muito recorrente nos contos a associação dos orixás com seus respectivos cognomes, símbolo a meu ver de sua subjetividade, dessa forma, Yansã é a Destemida, Omolu o Curador, Xangô o Trovão, Oxalá é o Criador da Humanidade, Oxum a Bela, etc. 2) Relação dialética entre o humano e as divindades. Alguns contos de Prandi (2004) denotam a veneração dos humanos para com os orixás em troca dos “favores” que estes podem lhe retornar, assim podemos dizer que um depende do outro para conferir sentido à ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I vida. Oferendas entram como uma referência da crença, assim como, os infortúnios e os castigos devotados aos humanos e aos próprios orixás quando agem de má fé ou desobedecem a uma ordem de seus superiores. Tal qual Exu a Oxalá quando este não obedece às orientações de Olorum a respeito da oferenda a Exu antes da criação do universo, por sua vez, este lhe causa muita sede e para saciá-la bebe vinho de palma, se embriaga e dorme. Nesse momento Odudua passa em sua frente e realiza tal obrigação. Cabe a Oxalá depois disso se desculpar com Olorum, o Ser Supremo, pedir permissão a Exu e assim terminar a criação, fazendo o homem. 3) Presença muito forte de Ifá, o Oráculo. Como um orientador, Ifá tem todas as soluções para as dificuldades que se apresentam cotidianamente, seja dos orixás, seja dos humanos, se aproximando dos conflitos terrenos. Ifá “sabia o que era melhor para resolver cada infortúnio, quer se tratasse de doença, de dificuldade com a família, de falta de emprego e dinheiro (...) enfim, tudo o que pode tornar sofrida e infeliz a vida de alguém” (PRANDI, 2001, p. 45). 4) Retorno a África como origem. A África é construída como a figura materna dos mitos yorubás, daí os contos se referirem a rios, cidades e aldeias que remetem a esse ambiente. Ao mesmo tempo em que aborda a reconstrução cultural provinda do processo histórico vivenciada pelos africanos no Brasil e constituindo aqui outras práticas culturais. Nos três livros há referências a esse respeito acredito que tanto por ser o candomblé fruto dessa realidade, quanto por se tratar de uma preocupação em reconstituir e trazer a tona esse passado. 5) Criação do mundo. Oxalá, Odudua, Olorum e Exu são figuras representantes quando se trata da construção do mundo na mitologia yorubá e como tal referendados nos contos de Prandi como mencionei anteriormente. Olorum, o Ser Supremo que habita o Orum, Oxalá, Criador da Humanidade, Odudua criou o mundo, a Exu é conferido o poder de tudo transformar ou criar, o que confere passagem. É preciso pedir licença a Exu para se realizar qualquer coisa. Essa temática é importante como mais um dado de deslocamento da versão construcionista judaico-cristã. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I 6) Imagens - As imagens enquanto uma representação simbólica, se apresentam nos textos de Prandi de modo a reforçar os aspectos tratados ao longo da trama literária, é dessa forma que símbolos a exemplo do ibiri de Nanã, o adô de Euá, o machado de duas lâminas (obá) de Xangô, contas, búzios, peneiras, galos, bodes, quiabos, atabaques, pilão, cores etc, compõe o repertório simbólico dos orixás e do Candomblé representados na obras de Prandi. No fim de cada livro o autor fala “Quem são os nossos personagens, os orixás” e com cunho explicativo situa questões gerais sobre origem, processo histórico e escravidão e reconstrução cultural ao tempo em que situa individualmente cada orixá segundo suas personalidades. Trata-se de uma síntese teórica sobre a questão racial no Brasil, da reconstrução cultural para se chegar ao Candomblé e em específico aos orixás e todo o seu significado e cosmologia. Assim, vemos a partir dos contos de Prandi o que o escritor Éduard Glissant (2005, p.72) chamou de cultura compósita, síntese do cruzamento cultural entre diversos povos, de diversas origens. Podemos pensar no campo de que a construção do Candomblé é uma religião presente apenas em solo brasileiro, mas que ao mesmo tempo é sinônimo da diversidade de povos africanos que se organizaram no Brasil com o intuito de manter vivos, traços culturais vivenciados na terra de origem. Só que outro elemento é incorporado nos últimos anos como o próprio Prandi (2003, p.55) relata, o candomblé necessariamente deixou de ser exclusivamente uma religião étnica, tida há décadas atrás como uma instituição apenas de negros, mas que já se vêem brancos compondo esse cenário, mesmo que minoritariamente. Isso faz lembrar o que Hall (2006, p.30) define de transculturação, uma vez que está em órbita valores tanto do colonizador, quanto do colonizado e em relação geo-temporal inventam outras formas de relacionar-se com o mundo a sua volta. Em outra passagem, ao tratar do conceito de diáspora e aplicá-lo à realidade caribenha, pensa no conceito derridadiano de différance em que há sempre a possibilidade de manter abertas as fronteiras das relações culturais, pois, trata-se de uma construção humana e dinâmica em constante transformação, assim, “(...) sempre há o deslize inevitável do significado na semiose aberta de uma cultura, enquanto aquilo que parece fixo continua a ser dialogicamente reapropriado” (HALL, 2006 p.33). ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Origens e mudanças podem ser observadas nas tramas que regem os princípios do Candomblé. A própria noção de Orixá remete-nos a uma tradição Yorubá5 que permanece até hoje na nossa cultura, outros exemplos são as associações dos orixás e suas características, personalidades, sua ligação com a natureza e a relação íntima entre devoto e o orixá, sendo que cada pessoa têm o seu numa reciprocidade de personalidades e de cuidados devotados a ambos. Um alimenta o universo simbólico do outro. Esses são traços culturais que a meu ver foram ressignificados perante mediação cultural dos povos africanos aqui em comunhão com o processo da escravidão. Afinal, são traços comuns dos valores Yorubá, mas que não foram todos os orixás, nem todos os significados e representações que os negros africanos conseguiram reconstituir aqui. Glissant (2005) ao falar da realidade cultural dos ciganos nos remete à idéia de que todos os povos têm a legitimidade de se posicionarem como uma resposta político-social no contexto em que vivem. Acredito ser a literatura enquanto espaço de representação e construção ideológica, um espaço de reorganização e de reposicionamento do imaginário social. Vejo na literatura infanto-juvenil afro-brasileira um instrumento de poder, luta e ressignificação histórica. Segue o autor falando: não mudaremos nada da situação dos povos do mundo se não transformarmos esse imaginário, e a idéia de que a identidade deva ser uma raiz única, fixa e intolerante (GLISSANT, 2005, p. 80). Essa literatura com as características que se apresenta desloca o lugar dos cânones literários e da negação acometida ao povo negro. Vem mostrar que negro também constitui esse país, produz cultura e que vem buscar legitimidade junto às formas formais de representação, proporcionando as gerações futuras uma dinâmica de auto-estima, reconhecimento social da condição de ser e estar no mundo. Na trilogia de Prandi, os primeiros contos dos livros vêm falando (brevemente) sobre o fato histórico da escravidão e conseqüentemente das tradições, deuses, costumes que trouxeram consigo, sob o pretexto consciente da ligação das religiões afro-brasileiras com sua 5 Maiores informações ver BARBER, Karin. “Como o homem cria Deus na África Ocidental: atitudes dos Yoruba para com o òrìsà”. In.: Moura, C. E. M. de (org). Meu sinal está no teu corpo. São Paulo: EDICONEDUSP, pp. 142-175; PARÉS, Luis Nicolau. “Do Calundu ao Candomblé”. In.: A formação do Candomblé: História e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas, Editora Unicamp, 2006. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I origem africana. Não é a toa que nas folhas de rosto dos livros refira-se: mais histórias dos deuses africanos que vieram para o Brasil com os escravos. Por se tratar de livros de mitologias dos orixás do candomblé, não há referência explícita a religiões em contexto africano, mas sim, do ambiente onde nascem os orixás, como um templo, uma base, uma raiz. É essa a noção de África que nos remete o autor. De um passado que também é presente nas memórias de indivíduos que crêem e que vivem tais princípios, é o exemplo do povo-de-santo que tem no candomblé uma instituição vista como resistência e patrimônio cultural viva. Esse retorno à África é muito presente e vamos encontrá-la em muitos contos, tempos em que os orixás habitavam a África, sendo o ambiente em que se passam as histórias, construindo uma identidade entre África-Brasil, entre o passado e o presente. No último volume, “Oxumarê, o Arco-íris”, relata o autor, “Ifá, o Advinho, aquele que conhece todas as histórias e as que vão acontecer, conta que na África negra, em tempos imemoriais, vivia a mais velha das mulheres, e mais antiga de todas (...)” (PRANDI, 2004, p.09). O passado sempre se cruza com o presente, tal qual Ifá conhecedor de todas as histórias do passado, presente e das que pertencerão ao futuro, reconstituídas a partir do processo histórico e da dinâmica cultural acometida ao longo dos anos às nações africanas no Brasil. Essas noções entre dois mundos, ou melhor, vários mundos e realidades distintas nos remetem a idéia de diáspora apresentado por Stuart Hall quanto a um resultado de conexões culturais que os torna singulares na diferença. Fala que, “(...) nossos povos têm suas raízes nos – ou mais precisamente, podem traçar seus suas rotas a partir dos - quatro cantos do globo, desde a Europa, África e Ásia; foram forçados a se juntar nos quatro quantos, na cena primária do Novo Mundo. Suas rotas são tudo, menos “puras” (HALL, 2003, p. 30). É Appiah quem nos diz que até o século XIX se falava apenas na unidade da identidade africana. Várias identidades, desde o período pré-colonial já existia, assim como, durante e depois desse processo. Mas, a identidade africana ainda está em construção, pois ela é histórica. Aponta como uma identidade (apesar de negar o conceito) a uma questão de raça em que um negro do continente africano se identifica pertencente a esse traço comum. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Entretanto há várias outras identificações, vejam que identidade é um campo complexo e de multiplicidade de sentidos. De fato, apesar de Prandi se reportar para a realidade dos terreiros, há inúmeras outras formas de representação em que o negro é reportado. Identidade móvel é essa a dinâmica que deve ser assumida, pois, como pressupõe a própria noção de história, trata-se de um processo e como tal muda, e as transformações ocorrem. Então há um arsenal de representações em que a literatura vem se debruçar a dar conta de diversas realidades de acordo com os diferentes papéis sociais da população negra. No segundo volume (2004), acrescentando o primeiro, Reginaldo Prandi além de trazer outras histórias sobre Xangô dá a cena também a outros orixás não apresentados no primeiro livros da trilogia. É o caso de Iroco, um orixá que morava em uma gameleira branca; yemanjá que castigou os humanos pela falta de cuidado com a sua morada, o mar, daí o surgimento das ondas como uma forma de rebeldia e de retornar aos homens todas as sujeiras jogadas ao mar. Apresenta ainda, yansã, Oxaguiã e Oxalá. Em “Oxumarê, o Arco-Íris”, permeia os mesmos universos simbólicos dos outros contos, tal qual a relação entre os próprios orixás, a sua relação com os humanos e com a natureza. Diferenciando-se ao acrescentar outros orixás Nanã, Omolu, Enrilé, Ajalá e Ossaim, ampliando o horizonte de informações da representação desses orixás. Nanã briga com Ogum por este não lhe dar o devido valor e respeito, tudo aconteceu em uma festa no palácio de Olorum onde todos os orixás estavam reunidos, conversando sobre a importância de cada um, mas a conversa tomou uma direção em que Ogum chegou a dizer que Nanã é também conhecida como a Velha, a Ranzinza. Nanã não gostou e “(...) nunca mais se usou faca de metal por causa do desentendimento sobre o poder e a humildade” (2004, p. 18). Omolu representa o curador conhecedor das ervas e que proporciona a cura. A história conta o porquê de Omolu ter o corpo revestido de palha, depois de ter adquirido a varíola daí seu interesse pela cura de doenças. Só que em estado de tristeza e solidão, Yemanjá em reconhecimento a Omolu presenteou-o com suas pérolas e essas cobrem as marcas de sua doença. Mas mesmo “ele orgulhoso de seus mistérios de curador e sua riqueza (...) é triste e retraído” (2004, p. 21). Sua saudação é Atotô, que significa respeito e silêncio. Por sua vez Enrilé, Caçador de Elefantes aparece em duas histórias, uma delas, fala de uma ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I acusação injusta que ele recebe e se transforma em um rio, a segunda ele se relaciona com Oxum e daí nasce Logum Edé. Esse tipo de escrita está preocupado em romper com modelos de representações depreciativas e inferiorizantes da cultura afro-brasileira. É preciso conviver com a diferença, mostrando as identidades afro-brasileiras que permutam em formas culturais. Sodré a esse respeito, diz que, “(...) tal identidade aparece na história a partir da discriminação cultural operada por indivíduos e grupos de cor clara. Estes, por sua vez, só se reconhecem como ‘identidade branca’ ou ‘eurocidental’ no contexto relacional com os ditos nãobrancos ou não-ocidentais” ( SODRÉ, 1999, p. 255). Nesse mesmo contexto, reflete que os conflitos raciais entre brancos e não-brancos se dão em relações de poder entre o “Mesmo Dominante” e o “Outro Subalterno” numa construção “sígnico-imagística” do Outro em que pese à marca identitária em traços físicos enquanto uma apropriação do mercado e da mídia como forma de “minimizar a dimensão política em favor da promoção de uma auto-estima individual, estético-mercadológica” (1999, p. 255). De fato vemos essa apropriação por parte do mercado, principalmente nos últimos anos, mas acredito que na contramão há lugar - mesmo que ínfimo perante as outras produções, de “luta” simbólica dos escritores comprometidos com a temática étnica que aproveitam o momento de abertura e aceitação do mercado a essas publicações afrobrasileiras. Não é a toa que Sodré afirma que há em todo esse processo, identificações de conflitos contra esse sistema ao se negar as desigualdades sociais. Penso que mesmo não diretamente, e apesar de falar no contexto do mercado e da mídia e produtos de consumo a atender a uma nova demanda social, a crítica de Sodré é muito pertinente na análise contextual de outras esferas também. É preciso reconhecer quem de fato faz um trabalho engajado e comprometido com a causa étnico-racial e quem simplesmente se apodera desse momento para usufruto liberal, e claro, há também quem se arrisca a assumir essas duas posições. Falo isso no campo da produção simbólica e a literatura enquanto tal se encaixa nessa observação. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I É pautado nessas diferenças relacionais entre o Mesmo e o Outro como trata Sodré em que as desigualdades vão se formando na sociedade, consequentemente, as identidades a dar uma conotação de quem é o outro são delineadas. E encarando essa questão identitária como um fator de mobilidade e reconhecimento social dentro das relações sociais, precisamos ter uma definição mais adequada ao contexto atual a não incorrer em questões de essencializála e assim, congelar a imagem do Outro. Assumo aqui, a noção de identidade defendida por Hall e Gilroy como um campo em aberto, móvel, fluido e dinâmico construído historicamente dado as transformações de cada concepção e mudanças de sentidos que cada época incita. Vemos que as obras de Prandi reportam-se a uma idéia de identidade assumida e enfatizada geralmente nos terreiros de Candomblé. Mas há outras formas de representação dessa identidade que não apenas a apresentada aqui e que outros autores vêm dando conta, é essa dinamização de papéis sociais e culturais que orientam a escrita desses escritores e dão uma vasta representação em que o leitor possa se identificar, construindo-se a se mesmo. Sodré (1999) também nos fala que a identidade é construída em bases de um território, tomando isso como um pressuposto sem necessariamente se limitar na noção de nacionalismo, as obras de Prandi pensa em uma identidade calcada na África e no Brasil. Gilroy por sua vez em seu livro O Atlântico Negro fala como intelectuais negros no século XIX assumiram uma postura de autoconsciência de seu estar e ser no mundo e de como sua escrita projetaram um mundo de autonomia e liberdade. Assumindo para além da postura intelectual, uma postura política com a condição da realidade acerca da população negra e dos lugares simbólicos ocupados e não ocupados por eles. É a utilização de espaços sociais e formais, a exemplo da academia, que fornece a percepção teórica e do lugar e da produção simbólica na reorganização dos indivíduos frente as injustiças sociais e, que instrumentaliza nesse mesmo plano a busca pela reparação. Nesse caso em estudo, vemos a utilização do conhecimento teórico-prático aplicado à realidade do negro no Brasil e em que Prandi instrumentalizado sob um trabalho de pesquisa e investigação se debruça a trazer à tona informações concernentes à cultura afro-brasileira. Mesmo que sob uma via também formal, mas que se configura enquanto um espaço simbólico ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I e de sentidos, a escrita tal qual traduzida numa linguagem particular sob o olhar dos terreiros de Candomblé. Ao longo desse texto procurei pensar a literatura infanto-juvenil como um instrumento na reparação da desigualdade pelo menos na representação social dentro dessa literatura em específico, uma vez que hoje ela é concebida pela temática étnica de modo que décadas atrás não correspondia a tais expectativas. O autor abordado aqui reverencia um exemplo de como mudanças significativas vem ocorrendo nesse ramo. Na trilogia de Prandi encontramos aspectos da cultura Yorubá típicos do nosso Candomblé, mas também que remete à épocas longínquas quando essa cultura era apenas uma realidade africana, que depois foi reconstruída aqui no Brasil. Resistindo até hoje enquanto mediadores das vidas dos adeptos ao Candomblé, é assim que Ifá, Xangô, Yansã, Oxóssi, Oxalá para além das narrativas presentes nos contos de Prandi revelam em sua prática sóciocultural viva nos barracões, uma certa intimidade entre seus devotos. Isso evidencia o que Beek e Blakely6 anuncia como mudanças não necessariamente no cunho religioso, mas que a África sendo palco de transformações nesses últimos dois milênios decorre de “conquistas políticas, fragmentação e redistribuição de impérios e reinos, todos resultaram em um continente com uma miríade de culturas em constante interação” (1994, p. 21) proporcionou mesmo que na experiência do terror racial uma pluralidade de representações culturais, tal qual o Candomblé. Vejamos que na literatura analisada aqui o autor se posiciona frente a um compromisso já fixado anteriormente declarado pela própria carreira acadêmica dele em trazer à tona informações acerca do candomblé e de sua origem na visão Yorubá, a ponto de traços comuns dentro da própria religião confinada nesta, se expõe em nível de tornar público outras formas de vida. Uma íntima e fiel relação dentre devoto e orixá se faz presente, assim como, a criação do mundo é vista pela cosmologia tradicional Yorubá; Ifá e seu poder de intermediar entre os problemas que aflingem os devotos e a interdição perante os orixás, quais 6 BLAKELY, T.D. & VAN BEEK, W. E. & TOMSON, D.L., (EDS.). “Introducion”. Religion in Africa, London, James Currey, 1994. pp. 1-20. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I procedimentos aqueles precisam tomar para se libertarem, hoje Ifá é personificado em pais e mães-de-santos; traço este decorrente do processo histórico-cultural vivenciado em solo brasileiro quando da escravização, evidencia Reginaldo Prandi (2001, p.51). Assim, informação e comprometimento político se encontram em um desafio que para Reginaldo Prandi se traduz na consciência e respeito à alteridade, onde lugares se desloquem ao reverterem estereótipos e invisibilidade do negro na mais tenra idade. Crianças e jovens podem conhecer a mitologia presente no candomblé, o que de fato não creio que se trata apenas de mitos, uma vez que ele (re)orienta a vida de muitas pessoas, tem um sentido prático-ideológico que o faz vivo e presente. Assim, identidades podem ser construídas no sentido de que Gilroy chama de dupla consciência, uma vez que o leitor que se identifica com a temática pode ser levado ao passado e origem na África, mas ao mesmo tempo integrante de uma cultura brasileira e diversa. São multiplicidades que ao mesmo tempo, recoloca o sujeito a pensar sobre o lugar onde está inserido, sobre que realidade vive e dessa maneira pressupõe-se que se alargam as percepções acerca da cultura afro-brasileira, tantas vezes negada na escola, na mídia e na prática sóciocultural. É preciso de fato ocupar os espaços dessa literatura e de todos os outros espaços em que a imagem seja construída. Nesse caso, a figura do intelectual, como expõe Gilroy (2001, p. 41) é referência no sentido de que sua prática pode ser revertida em luta política, a levar o negro a ser percebido pela sociedade como um agente histórico que apesar de toda a condição submetida a ele ao longo dos séculos de escravização e a posteriori de subjugação de suas capacidades intelectuais, ele resistiu, reorganizou e fundou outras formas de vida e de referências culturais. É nessa órbita que Gilroy (2001) também traz referência ao navio como um instrumento viabilizador mesmo que forçosamente, do intercâmbio cultural e constituiu outras referências, daí podemos ressignificar que a literatura infanto-juvenil sendo necessariamente uma construção eurocêntrica, ela também traz o rompimento dessa fronteira, uma vez que o negro vem sendo representado de forma mais presente, enaltecido e ocupando também o espaço de ator e escritor. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Glissant fala que “o problema que temos de enfrentar é como mudar o imaginário, a mentalidade e intelecto das humanidades de hoje” (GLISSANT 2005, p.74) e vejo na literatura infanto-juvenil de temática étnico-racial, uma forma de se mudar esse imaginário, reconstruindo sentidos e lugares como o Outro é visto e concebido, claro que esse é um trabalho longo e que de fato pertencem às tramas do futuro, mas os passos principais estão sendo dados e ganhando espaços. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APPIAH, Kwame Anthoni. “Identidades africanas”. In.: Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. GILROY, Paul. “O atlântico negro como contracultura da modernidade”. O Atlântico Negro: modernidade dupla consciência. São Paulo, Editora 34. 2001. HALL, Stuart. “Pensando a Diáspora”. In.: Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. LIMA, Heloísa Pires. “Personagens negros: um breve perfil na literatura infanto-juvenil”. In.: Superando o racismo na escola. Kabenguele Munanga (Org.). Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Fundamental. 2001. SODRÉ, Muniz. A identidade como valor e Rejeição da alteridade. In.: Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999. PRANDI, Reginaldo. Ifá, o Adivinho. Ilustrações de Pedro Rafael. São Paulo: Editora Companhia das Letrinhas, 2002; PRANDI, Reginaldo. Xangô, o Trovão. Ilustrações de Pedro Rafael. São Paulo: Editora Companhia das Letrinhas, 2003; PRANDI, Reginaldo Oxumarê, o Arco-Íris. Ilustrações de Pedro Rafael. São Paulo: Editora Companhia das Letrinhas, 2005; ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I PRANDI, Reginaldo. Os Príncipes do Destino. Ilustrações de Paulo Monteiro. São Paulo: Editora Cosac & Naify Edições, 2001. PRANDI, Reginaldo. “Deuses africanos no Brasil: uma apresentação do candomblé”. In. Herdeiras do Axé. São Paulo, Hucitec, 1997, pp. 1-50; PRANDI, Reginaldo. As religiões afro-brasileiras nas ciências sociais: uma conferência, uma bibliografia. Revista Brasileira de Informação bibliográfica em Ciências Sociais – BIB, 2006; PRANDI, Reginaldo. As religiões e as culturas: dinâmica religiosa na América Latina. Texto proferido na Conferência Inaugural das XIV Jornadas Sobre Alternativas Religiosas na América Latina. Bueno Aires, 25 a 28 de setembro de 2007; ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I A galeria dos desvalidos em Chico Buarque e Manuel Bandeira Luciano Marcos Dias Cavalcanti ∗ RESUMO: Este trabalho tem como objetivo principal constatar, através de um estudo comparativo, a valorização do desqualificado nas letras musicais de Chico Buarque e na obra poética de Manuel Bandeira. Palavras-chave: Musica Popular Brasileira; poesia; desqualificado; Chico Buarque; Manuel Bandeira. ABSTRACT: This essay seeks to verify, through comparative analysis, how Chico Buarque’s lyrics and Manuel Bandeira’s poems privilege “disqualified” objects. Keywords: Brazilian Popular Music; poetry; “disqualified”; Chico Buarque; Manuel Bandeira. Uma das coisas mais importantes da ficção literária é a possibilidade de poder “dar voz”, de mostrar em pé de igualdade os indivíduos de todas as classes e grupos, permitindo aos excluídos exprimirem o teor da sua humanidade que de outro modo não poderia ser verificada. (Antonio Candido) O problema básico ao fazer um estudo comparativo entre Chico Buarque e Manuel Bandeira é o fato de o primeiro ser considerado um “poeta-compositor engajado” e o segundo, um poeta lírico não engajado, como ele próprio diz em seu poema intitulado “Testamento”: “Sou poeta menor, perdoai! /Não faço versos de guerra/...”. Nesses versos, Manuel Bandeira fala de sua impossibilidade de fazer “versos de guerra”, ou seja, engajados. Portanto, é necessário notarmos que na obra poética de Chico Buarque a sua matéria não diz respeito somente ao tema político, mas também ao lírico. Mas não de uma forma isolada, como se em uma hora o artista se fizesse político; em outra, lírico. Acreditamos que, em sua obra, as variantes temáticas não constituem fases separadas e estanques: o lírico e o político andam juntos. Doutor em Teoria e História Literária IEL/UNICAMP. e-mail: [email protected] ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I A poesia de Chico Buarque não se prende a um contexto circunstancial, mas a um contexto humano existencial do século XX. Sua poesia, como a de Manuel Bandeira, pretende significar o homem do nosso século inserido na trajetória da humanidade. Outro fator que problematiza a comparação entre os dois autores diz respeito á própria comparação entre um poeta propriamente dito a um compositor da MPB. Soma-se a isso o fato das letras musicais serem simultaneamente texto poético e musical. Rodrigues ressalta que isso: "faz com que suas palavras [das letras] não devam ser consideradas a partir do papel frio e estagnante, mas a partir do movimento lábil da melodia que evapora no momento que se executa.”. (RODRIGUES, 1989-90: 27) Mas se, independentemente da música, o texto de uma canção é literariamente rico, não há nenhuma razão para não se considerarem seus méritos. Hoje, os compositores modernos já são lidos e não, somente ouvidos. Há exemplos claros disso: um deles é o fato de Chico Buarque ser o primeiro compositor brasileiro a incluir nas capas de seus discos suas letras musicais; e outro, é este estar incluído na coleção Literatura Comentada, como também o fato do compositor travar um diálogo frutífero com a tradição literária brasileira. O próprio significado primitivo da palavra lírica é derivado do grego que corresponde ao canto individual do verso acompanhado de uma lira. É a união da palavra com a melodia. Nas canções de Chico Buarque, é possível notar, em várias letras, a aproximação de sua poesia com a lírica medieval. “Com açúcar e com afeto”, “Sem fantasia”, “Pedaço de mim”, “Olhos nos olhos”, entre outras, são algumas canções que podem ser “lidas” como cantigas trovadorescas modernas. Estas reconstruções da poesia medieval, feitas por Chico Buarque, são incansavelmente repetidas em livros didáticos que desejam falar do trovadorismo e da cantiga de amigo. São reconhecidamente poemas trovadorescos modernos. Embora Chico Buarque seja essencialmente um compositor popular, podemos notar, a partir de suas canções trovadorescas, suas refinadas metáforas e as elaboradas construções de suas composições, que ele transita no universo da cultura erudita. Aliás, é uma característica de sua poética estabelecer uma relação reversível entre o popular e o erudito. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I O início de sua produção poética de Manuel Bandeira foi influenciado pela estética parnasiano-simbolista, que usava da linguagem de estilo elevado e das metáforas penumbristas para se expressar. Logo após A Cinza das Horas, já percebemos no poeta a libertação de sua herança parnasiano-simbolista. Sua linguagem vai se libertando progressivamente do estilo elevado e se mistura a um estilo humilde, mas de forma que o sublime se encontre no humilde. Em Manuel Bandeira, o grande é encontrado sutilmente no pequeno. E, para isso, o poeta usa as palavras do dia-a-dia, o verso livre e valoriza o desqualificado. Apesar de Manuel Bandeira não ter uma atitude engajada, isso não quer dizer que ele foi um poeta que viveu em uma torre de marfim, isolado do mundo e de tudo, contemplando a si mesmo. Muito pelo contrário; Manuel Bandeira tem os pés no chão é um poeta profundamente misturado à vida. Sobre a valorização que Bandeira dá aos humildes e aos desqualificados, é importante notarmos que o poeta não vê a pobreza ou a miséria como algo poético e bom, reforçando assim a condição de miséria e exploração em que vive o povo brasileiro por causa dos descuidos e dos desmandos dos governantes. Bandeira retira do dia-a-dia de seu povo a matéria de sua poesia, no qual o “eu” se acha situado. “Poema do beco”, “O martelo”, “O bicho”, poemas de Manuel Bandeira, são exemplos que podem ser considerados esparsos na obra do poeta, mas que nos revelam a sua emoção social. São poemas que têm como matéria a pobreza e a miséria. Vejamos o que nos diz o poeta, no seu Itinerário de Pasárgada: Da janela do meu apartamento em Moraes e Vale podia contemplar a paisagem, não como fazia do morro do Curvelo, sobranceiramente, mas como que dentro dela: as copas das árvores do passeio público, os pátios do convento do Carmo, a baía, a capelinha da Glória do Outeiro (...) No entanto, quando chegava à janela, o que me retinha os olhos, e a meditação, não era nada disso: era o becozinho sujo em baixo, onde vivia tanta gente pobre lavadeira e costureiras, fotógrafos do Passeio Público, garçons de cafés. (BANDEIRA, 1977: 81) ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Manuel Bandeira nega a trivialidade da vida burguesa, lança um olhar crítico à rotina tediosa do dia-a-dia burguês. E busca no popular a matéria de sua poesia. Bandeira também busca sua inspiração na rua e no bar, entre salões literários, prostíbulos, livrarias, cabarés e cafés-cantantes, locais que constituíam uma via de comunicação real e efetiva do poeta com seu povo. Nestes lugares – o Amarelinho, a Lapa e a José Olympio, no Rio de Janeiro; o Franciscano, a Rua Lopes Chaves (endereço de Mário de Andrade, outro poeta que manteve uma relação estreita com a música e a cultura popular), em São Paulo –, como ressalta Arrigucci foram locais onde travavam-se relações variadas entre mundos heterogêneos. Salões da alta burguesia, da aristocracia paulista do café e movimentados focos da vida boêmia carioca, em meio à gente pobre da Lapa. Salões, cafés, restaurantes, livrarias, cabarés e botequins não foram apenas pontos de encontro da roda literária dos anos 20 e 30; foram cadinhos de relações importantes, pessoais e sociais de classe, de raça, relações intersubjetivas, que acabaram por integrar a nova matéria artística, com sensível aguçamento da consciência do escritor com respeito à realidade em volta e evidente ampliação do próprio conceito de literatura. (ARRIGUCCI, 1990: 64) Outro aspecto importante a se ressaltar em Manuel Bandeira é o seu relacionamento estreito com a música; sua obra é marcadamente musical. Bandeira leva sua poesia ao sentido primitivo, que é o canto. O poeta é amante da música, autor de vários poemas musicados. Notadamente, o poeta mais musicado do país. Letrista, colaborador e amigo de vários músicos importantes e crítico bissexto. O fato de ser tão marcadamente musical com certeza é o motivo de sua poesia ter sido preferencialmente musicada pelos compositores brasileiros. Bandeira é um poeta que se identifica com a música, ele próprio nos diz: "sinto que na música é que conseguiria exprimir-me completamente." (BANDEIRA, 1977: 50) O poeta chegou a estudar música, teoria musical e tocar instrumentos como o piano e o violão. Esta aproximação com a música pode ser vista também como um meio de aproximação da tradição popular. A música, para Bandeira, é um objeto usado para construção de seus poemas, para isso o poeta fez uso de técnicas musicais na estrutura dos poemas, buscando efeitos semelhantes aos da música. Unindo, assim, as duas artes irmãs. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Uma "personagem" freqüente na poesia de Manuel Bandeira é a do poeta e músico Jaime Ovalle. Há várias referências a seu nome em poemas, no Itinerário de Pasárgada, nas crônicas e nas cartas do poeta. Manuel Bandeira chegou até mesmo a escrever vários poemas em que notamos a presença de Ovalle. Um deles tem o nome do compositor em seu título. Considerado de grande importância para o entendimento de sua obra é o “Poema só para Jaime Ovalle”. Um poema que valoriza o cotidiano e que tem no título o nome de um compositor de música popular brasileira. Quem sabe poderia ser substituído ou comparado a Chico Buarque? Ovalle (juntamente com Bandeira, autor da letra) que, como Chico, parodiou a “Canção do Exílio” com sua canção mais conhecida, “Azulão”. Jaime Ovalle, considerado representante do ambiente boêmio da Lapa, tinha em seu círculo de amizades sambistas consagrados, hoje mitológicos, como Sinhô, Donga, João da Baiana, Pixinguinha, Chiquinha Gonzaga, Catulo da Paixão Cearense, entre outros. Além de músicos, a Lapa também concentrava outras personalidades que fizeram desta não somente um centro de zona boêmia e da música, mas também um espaço literário. Eram poetas, artistas e intelectuais como Raul de Leoni, Ribeiro Couto, Dante Milano, Manuel Bandeira, Sérgio Buarque (pai de Chico), Caio de Mello Franco, Osvaldo Costa, Di Cavalcanti, Cícero Dias e Villa-Lobos. A Lapa foi mitificada por todas estas pessoas com suas "histórias", suas memórias, seus desejos, suas verdades e suas paixões. Lembra-nos a própria Pasárgada bandeiriana, como o próprio poeta diz sobre a roda boêmia e cultural da Lapa: "o ambiente, de resto, favorecia as iluminações ..." (Apud ARRIGUCCI, 1990: 67) Uma presença garantida tanto na obra poética de Manuel Bandeira quanto na obra poético-musical de Chico Buarque é a dos desvalidos. Em suas obras, se configura uma galeria de desqualificados, tanto socialmente quanto moralmente, como por exemplo, as pessoas pobres, trabalhadores assalariados, como o pedreiro e o operário; trabalhadores autônomos de baixa renda, como os camelôs e vendedores ambulantes; as pessoas que não seguem a moral e os bons costumes da tradição pequeno-burguesa e cristã, como malandros, prostitutas, travestis; além das pessoas humildes moradoras dos subúrbios. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Manuel Bandeira nos declara, em seu Itinerário de Pasárgada, que foi na sua infância, na casa de Larangeiras, que travou contato com as pessoas simples: “nunca faltava pão, mas a luta era dura. E eu desde logo tomei parte nela, como intermediário entre minha mãe e os fornecedores – vendeiro, açougueiro, quitandeiro, padeiro. Nunca brinquei com os moleques da rua, mas impregnei-me a fundo do realismo da gente do povo.” (BANDEIRA, 1986: 22) E inclusive este contato com o povo lhe fornece um importante recurso lingüístico utilizado em sua poética, posteriormente: a linguagem popular. Outra declaração de Bandeira, em seu Itinerário, nos ajuda a perceber a importância dessa linguagem: “essa influência da fala popular contrabalançava a minha formação no Ginásio, onde em matéria de linguagem eu me deixava assessorar por meu colega Sousa da Silveira, naquele tempo todo voltado para a lição dos clássicos portugueses.” (BANDEIRA, 1986: 22) Posteriormente, Bandeira nos declara que foi na Rua do Curvelo que o elemento de humilde cotidiano começou a se manifestar em sua poesia. Para o poeta, este elemento não resultava de nenhuma intenção modernista, mas simplesmente do ambiente do morro do Curvelo. Manifestação que não pode ser encarada como exclusiva, pois, como sabemos, encontramos além dessa manifestação do popular que o poeta diz provir da Rua do Curvelo, a presença de várias manifestações da estética modernista em sua poética. Chico Buarque também busca em suas reminiscências infantis sua relação e valorização pelas pessoas do povo. Ligando-se a um movimento chamado Organização de Auxílio Fraterno, Chico participou algumas vezes de expedições noturnas a lugares como a Estação da Luz, no centro de São Paulo. Levava cobertores para os mendigos que dormiam nas calçadas, como nos conta Chico em uma entrevista: A gente ia de noite, assim um grupo pequeno, com umas Kombis, à Estação da Luz, levar cobertor. A gente olha hoje, e pode achar bobagem. Mas pra um cara como eu que morava ali na Zona Sul de São Paulo, (...) e que estudou em colégio de menino rico, de repente ter essa missão, duas vezes por semana, era muito importante. Então a gente, ia, chegava com aqueles cobertores e o pessoal, os mendigos, fugiam apavorados. (FOLHA DE SÃO PAULO – 11/09/77) ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Experiência que o marcou fortemente, como podemos perceber na seqüência de seu depoimento: mas acho que devo um bocado a essa experiência, entende? Ela, pelo menos, me abriu os olhos para esse negócio, porque, normalmente, eu não estaria vendo nada disso (...) e esse contato direto que eu tive naquela época, eu procuro ter sempre. Inclusive, eu comecei a gostar de mantê-los, entende? De conhecer, de ver essa gente, de conversar. Quando eles não fogem. Em geral eles fogem. (FOLHA DE SÃO PAULO – 11/09/77) De acordo com Davi Arrigucci, a compreensão da “atitude humilde” de Manuel Bandeira, é um dos problemas mais complexos de sua obra. Configurada no despojamento e na redução ao essencial, tanto nos temas quanto na linguagem, esse tipo de atitude pode ser encarada de diversas maneiras. Uma decisiva é a da sua relação com a pobreza. Trata-se, antes de mais nada, de uma postura depurada do espírito. E também de uma disposição para agir e significar, que acaba implicando um modo específico de conceber o poético e fazer concretamente o poema. Uma atitude estilística, enfim, em que o modo de ser se converte num modo de ver a vida e a poesia, numa concepção do fazer – fundação de uma poética. É este o termo que, na sua acepção do original, parece caber à noção que Bandeira tem do fazer poético: uma atividade do espírito, em momentos de súbita iluminação, concretizada em obras feitas de palavras. E trata-se de uma poética centrada num paradoxo: o da busca de uma simplicidade em que brilha oculto o sublime. (ARRIGUCCI,1983:106-7) De modo semelhante, Chico Buarque também se aproxima dessa “atitude humilde” de Bandeira ao buscar construir com extremo cuidado e apuro técnico as suas composições, conjuntamente com elementos provindos da classe pobre e o seu mundo existencial, unindo forma e fundo em uma coisa só, a poesia. Característica do compositor que fez com que suas composições recebessem status de poema. Estas relações empreendidas tanto por Manuel Bandeira quanto por Chico Buarque com o elemento humilde se tornam constituintes de uma concepção poética, se materializando na construção do poema, que, como diz Arrigucci, na verdade, corresponde a uma inserção do poeta na existência real, no mundo, no mundo misturado do cotidiano. Ao contrário de que se poderia pensar, o poeta, ao construir o poema, não estará poetizando o cotidiano.(...) Não se ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I trata absolutamente de elevar o que se capta no plano comum do dia-a-dia, mas de desentranhar aqui o poético, junto às circunstâncias em que o Eu se acha situado. A pobreza se revela então como condição real de dar forma ao poema. (ARRIGUCCI,1983:108) O que demonstra a clara relação entre o artista e seu meio, como exprime SainteBeuve: “o poeta não é um resultante, nem mesmo um simples foco refletor; possui o seu próprio espelho, a sua mônada individual e única. Tem o seu núcleo e o seu órgão, através do qual tudo o que passa se transforma, porque ele combina e cria ao devolver à realidade. (Apud CANDIDO, 1985: 18) Portanto, será da rua e do povo simples que tanto Manuel Bandeira quanto Chico Buarque irão retirar os elementos essenciais para construção de suas poéticas, como bem demonstra seus depoimentos e seus poemas que passamos a analisar. O poema de Manuel Bandeira “Estrela da Manhã” pode ser relacionado a pelo menos duas canções de Chico Buarque: “Geni e o Zepelin” e “A Rosa”. Vejamos, primeiramente, o poema de Bandeira para depois o relacionarmos às canções mencionadas. Eu quero a estrela da manhã Onde está a estrela da manhã? Meus amigos meus inimigos Procurem a estrela da manhã Ela desapareceu ia nua Desapareceu com quem? Procurem por toda parte Digam que sou um homem sem orgulho Um homem que aceita tudo Que me importa? Eu quero a estrela da manhã Três dias e três noites Fui assassino e suicida Ladrão, pulha, falsário Virgem mal-sexuada Atribuladora dos aflitos Girafa de duas cabeças Pecai por todos pecai com todos ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Pecai com os malandros Pecai com os sargentos Pecai com os fuzileiros navais Pecai de todas as maneiras Com os gregos e os troianos Com o padre e o sacristão Com o leproso de Pouso Alto Depois comigo Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas [comerei terra e direi coisas [de uma ternura tão simples Que tu desfalecerás Procurem por toda parte Pura ou degradada até a última baixeza Eu quero a estrela da manhã. O poema “Estrela da Manhã” abre o livro de mesmo nome e, inicialmente, nos mostra uma busca incessante à “estrela da manhã”: uma prostituta. Vindo de três dias e três noites (provavelmente as noites do carnaval) de buscas e auto-humilhação, sem se preocupar com a censura ou vergonha, o eu lírico invoca a “estrela da manhã”. Como na canção de Chico, “Geni e o Zepelin”, a personagem principal – “Geni” –, assim como a “Estrela da manhã”, se relaciona com os tipos mais desvalidos possíveis: De tudo que é nego torto Do mangue do cais do porto Ela já foi namorada O seu corpo é dos errantes Dos cegos, dos retirantes É de quem não tem mais nada Dá-se assim desde menina Na garagem, na cantina Atrás do tanque, no mato É a rainha dos detentos Das loucas, dos lazarentos Dos moleques do internato E também vai amiúde Co’os velhinhos sem saúde E as viúvas sem porvir Ela é um poço de bondade E é por isso que a cidade Vive sempre a repetir ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Joga pedra na Geni Joga pedra na Geni Ela é feita pra apanhar Ela é boa de cuspir Ela dá pra qualquer um. A “Estrela da manhã”, como “Geni”, ao se relacionar com estes tipos desvalidos também é considerada uma depravada sexual, como bem demonstram as quatro últimas estrofes do poema. O poema “Estrela da Manhã” se relaciona também com “A Rosa”, canção de Chico Buarque que trata da mulher que escapa ao domínio masculino e que, apesar da tentativa incessante de apreendê-la, não consegue: “A santa às vezes troca o meu nome/E some/ E some nas altas da madrugada”. Outro ponto importante a se ressaltar é a presença constante, nesta canção de Chico, dos elementos rosa e estrela tão presentes na poética bandeiriana, como bem observaram Antonio Candido e Gilda de Melo e Souza, em ensaio introdutório à Estrela da Vida Inteira. A “Rosa”, mulher extremamente ativa no que diz respeito à sua sexualidade; “Demente, inventa cada carícia” seduz seu amante de forma que ele sempre a deseje. Mesmo ela sempre escapando às suas mãos, sem vergonha e sem censura como em “A estrela da manhã”: “Digam que sou homem sem orgulho/Um homem que aceita tudo/Que me importa?/Eu quero a estrela da Manhã”. O amante não a deixa, a quer perto dele. Mesmo sabendo que ela é uma mulher enganadora: “A falsa limpou minha carteira” ou “Bandida, cadê minha estrela guia” e da comprovação irrefutável de que é traído: “A santa às vezes me chama de Alberto”, seu companheiro “oficial” não deixa a “Rosa”. Da mesma forma, em “Estrela da Manhã”, o amante apaixonado não se importa com o envolvimento amorososexual de sua amada com outros amantes. Depois do relacionamento da “estrela da manhã” com os tipos mais desqualificados possíveis, o amante “enfeitiçado” ainda a quer e a recebe com presentes e carinho: Depois comigo Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas [comerei terra e direi coisas [de uma ternura tão simples Que tu desfalecerás ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Procurem por toda parte Pura ou degradada até a última baixeza Eu quero a estrela da manhã. Podemos notar outra relação estreita entre os dois autores, no que diz respeito ao tema tratado, com a relação entre “Pedro Pedreiro”, composição de Chico e “Poema tirado de uma notícia de jornal”, poema de Bandeira, nos quais a matéria básica é a vida de duas pessoas humildes: João Gostoso e Pedro Pedreiro. Poema tirado de uma notícia de jornal João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no [morro da Babilônia num barracão sem número Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro Bebeu Cantou Dançou Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado. O nome da personagem do poema, como também da personagem da canção, refere-se a pessoas comuns, do povo, indicam a condição social do sujeito, são generalizações do povo brasileiro. Todos são Joões e Pedros. Há uma substituição do sobrenome por um apelido comum porque não pertence à família importante. Tanto João Gostoso quanto Pedro pedreiro têm um emprego sem nenhum prestígio social, o primeiro é carregador de feira-livre e o segundo, é pedreiro. Estes empregos implicam o uso da força física e a baixa remuneração, reforçando assim a condição humilde destes sujeitos. Talvez Pedro pedreiro seja o mesmo operário que, em “Construção”, outra composição de Chico, tropeça no céu como um bêbado e agoniza no meio de um passeio público. Outro fator que é também importante observarmos, o qual reforça ainda mais as condições precárias das “personagens”, são as suas origens: João Gostoso mora em uma favela carioca, no morro da Babilônia em um barracão sem número e Pedro pedreiro é um migrante do norte e mora em um subúrbio, pois tem que esperar o trem para ir ao trabalho. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Tanto João Gostoso quanto Pedro pedreiro são pessoas humildes de uma grande cidade, onde se chocam as contradições do desenvolvimento moderno e do atraso. Os poetas, ao nos revelar esse retrato da pobreza, se solidarizam com ela e nos mostram a poesia no “baixo” onde o sublime se oculta, numa vida humilde e simples. Outra importante semelhança entre estes poemas é o fato deles extraírem a poesia de onde menos se espera. A poesia aqui é retirada do mais humilde cotidiano, da vida de pessoas humildes, trabalhadoras. Ao retirarem a poesia deste meio “baixo”, não “elevado”, os poetas se afastam da matéria da poesia tradicional na qual o poético significa o nobre e o raro. Para estes poetas, a poesia está no chão, no mais humilde cotidiano. Mais um elemento importante presente nestes dois textos poéticos é o da modernidade, acentuado pela poesia prosaica (produção poética moderna), na qual o homem está na grande cidade, inserido no seu espaço, em seu cotidiano, em suas ruas, em suas multidões de anônimos. Sofrendo as degradações a que o mundo moderno sujeita os homens com suas experiências, como também nos mostra outro poema de Manuel Bandeira denominado “Tragédia Brasileira”. Este poema se assemelha profundamente ao “Poema tirado de uma notícia de um jornal” e “Pedro pedreiro”. “Tragédia Brasileira” foi retirado de uma notícia de um crime passional de um jornal. Sua estruturação é muito próxima à da prosa, nos parecendo modernamente com um “poema em prosa”. Talvez por ter sido tirado de uma notícia de jornal, Bandeira tenha preferido construí-lo formalmente desse modo, diferenciando-se assim, (nesse sentido) de seu poema de mesmo nome. O poema trata da história de Misael, um funcionário da fazenda, de 63 anos, que tirou Maria Elvira, uma prostituta, da Lapa. Pagou médico, dentista, manicura, mudou de vários lugares por causa dos namorados que a moça arranjava. Estes locais por onde Misael e Maria Elvira passaram são uma espécie de peregrinação a vários subúrbios carioca, demonstrando assim mais um elemento humilde presente na poética bandeiriana: “Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bom Sucesso, Vila Isabel, rua Marquês do Sapucaí, Niterói, Encantado, rua Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos...”. Ironicamente, “Misael” acabou matando Maria Euvira vestida com seu organdi azul, com seis tiros, na Rua da Constituição, privado da razão e dos sentidos. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Retomando o poema e a canção que vínhamos analisando, podemos notar que os poetas se inspiram num drama de um João–ninguém e o transformam em uma experiência humana, densa e complexa. Um destino particular é transformado em um valor geral, abstrato e universal do indivíduo angustiado. João Gostoso se mata e Pedro pedreiro espera ansiosamente a sua melhora de vida, exaustivamente, em sessenta versos. Em “Pedro pedreiro”, Chico faz uma crítica à esperança e deixa o indivíduo no mundo real onde não há expectativas de melhora. Pedro pedreiro espera tanto até desistir e querer ser “pobre e nada mais”. Chico também voltará a falar na desesperança em “Bom Conselho”, canção que inverte o ditado popular “Quem espera sempre alcança” para “Quem espera nunca alcança”. Tanto em “Pedro pedreiro” quanto em “Poema tirado de uma notícia de jornal” é exposto de forma emblemática o destino de uma pessoa humilde de uma grande cidade, mostrando a condição de incerteza da vida moderna. Percebemos que o elemento social presente tanto no poema quanto na canção não são tomados como um simples engajamento político, mas que, ao contrário, a referência ao social revela nelas próprias algo de essencial, algo que fundamenta sua qualidade poética. O que para Adorno [Essa referência] não deve levar embora da obra de arte, mas levar ao mais fundo dela. (...) pois o conteúdo de um poema não é a mera expressão de emoções e experiências individuais. Pelo contrário, estas só se tornam artísticas quando, exatamente em virtude da especificação do seu tomarforma estético, adquirem participação no universal. (ADORNO, 1980: 193) Manuel Bandeira e Chico Buarque nos mostram que é possível encontrar a poesia no “mais humilde cotidiano, de onde o poético pode ser desentranhado, à força da depuração da linguagem, na forma simples e natural do poema.” (ARRIGUCCI, 1990: 15) Outra importante relação entre nossos escritores está na valorização da vida simples, configurada na rotina e na forma de vida dos subúrbios. A paz que é passada pela vida destas pessoas se contrapõe à vida agitada e conturbada dos grandes centros urbanos considerados comumente como desconfortáveis, pela falta de harmonia entre seus cidadãos que, agitados, já nem mesmo se cumprimentam. É a perda de um modo de vida mais lento e tranqüilo, visto pelos poetas como saudável e prazeroso. Assim o demonstram bem as canções de Chico ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Buarque, “Gente humilde” (parceria de Chico com Garoto e Vinícius de Moraes) e “A banda”, como também os poemas de Manuel Bandeira, “Evocação do Recife” e “Recife”. Gente humilde Tem certos dias Em que eu penso em minha gente E sinto assim Todo o meu peito se apertar Porque parece Que acontece de repente Feito um desejo de eu viver Sem me notar Igual a como Quando eu passo no subúrbio Eu muito bem Vindo de trem de algum lugar E aí me dá Como uma inveja dessa gente Que vai em frente Sem nem ter com quem contar São casas simples Com cadeira na calçada E na fachada Escrito em cima que é um lar Pela varanda Flores tristes e baldias Como a alegria Que não tem onde encostar E aí me dá uma tristeza No meu peito Feito um despeito De eu não ter com como lutar E eu que não creio Peço a Deus por minha gente É gente humilde Que vontade de chorar Um fator interessante de se notar nesta canção é que a força de sobrevivência dessas pessoas parece provir de seus hábitos simples de vida, de forma nostálgica, lembrando-nos um costume antigo anterior ao invento da televisão, quando as pessoas colocavam cadeiras em suas calçadas para conversarem com os amigos ou vizinhos de forma harmônica e ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I despreocupada, sugerindo um ambiente de extrema felicidade e harmonia entre as pessoas. Ambiente que se contrapõe ao da vida moderna, da metrópole agitada em pleno caos urbano, em que as pessoas sem amigos se sentem sós e tristes, invejosos da coragem daquelas pessoas humildes que vivem no interior, ou mesmo nos subúrbios, como é o caso da canção: tranqüilos e felizes. Outra canção de Chico Buarque que também nos remete a este ambiente nostálgico interiorano é “A banda”: Estava à toa na vida O meu amor me chamou Pra ver a banda passar Cantando coisas de amor A minha gente sofrida Despediu-se da dor Pra ver a banda passar Cantando coisas de amor O homem sério que contava dinheiro parou O faroleiro que contava vantagem parou A namorada que contava as estrelas parou Para ver, ouvir e dar passagem A moça triste que vivia calada sorriu A rosa triste que vivia fechada se abriu E a meninada toda se assanhou Pra ver a banda passar Cantando coisa de amor O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou Que ainda era moço pra sair do terraço e dançou A moça feia debruçou na janela Pensando que a banda tocava pra ela A marcha alegre se espalhou na avenida e insistiu A lua cheia que vivia escondida surgiu Minha cidade toda se enfeitou Pra ver a banda passar Cantando coisas de amor Mas para meu desencanto O que era doce acabou Tudo tomou seu lugar Depois que a banda passou ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I E cada qual no seu canto Em cada canto uma dor Depois da banda passar Cantando coisas de amor Esta canção de Chico Buarque também busca no ambiente simples e nostálgico das bandas do interior um momento mágico no qual todas as pessoas, que inicialmente são tristes, avarentas, feias, sérias, cansadas, etc., são transformadas, por meio da magia da música e do ambiente formado por ela, em felizes, bonitas e bem dispostas. “A banda” quando foi lançada obteve grande repercussão no cenário nacional. Em pouco tempo, lançada em um compacto, alcançou notável venda. A canção também repercutiu nos meios literários com depoimentos entusiásticos de nomes como o de Carlos Drummond que saúda a canção com as seguintes palavras: “a felicidade geral com que foi recebida a passagem dessa banda tão simples, tão brasileira e tão antiga na sua tradição lírica, que um rapaz de pouco mais de vinte anos botou na rua, alvoroçando novos e velhos, dá bem a idéia de como andávamos precisando de amor...” (ISTO É, 28/02/99). Nelson Rodrigues também saldou “A banda” com as seguintes palavras: “Desde sua primeira audição, a Banda se instalou na História. O povo não assobiava mais. Voltou a assobiar por causa do Chico...” (Apud ZAPPA,1999: 61). O cronista Rubem Braga escreveu, em 1966: “A coisa mais importante no momento em matéria de música popular é mesmo Chico Buarque de Holanda (...) A banda é algo que todo mundo entende e que emociona todo mundo (...) é uma boa crônica, cheia de poesia” (Apud ZAPPA,1999: 61) Justamente pelo fato desta canção trazer para um mundo completamente conturbado, um tempo feliz e harmônico. Em um trecho de “Evocação do Recife” Manuel Bandeira também se remete a esse ambiente – no caso de Bandeira esse ambiente foi realmente vivido, não apenas idealizado, como pudemos ver em seus depoimentos em seu Itinerário de Pasárgada – tão bem caracterizado pelas canções anteriormente citadas. Vejamos o fragmento do poema: A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e [partia as vidraças da casa de Dona Aninha Viegas Totônho Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na [ponta do nariz ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, [mexericos, namoros, risadas ..................................... Recife.... Rua da União.... A casa de meu avô... Nunca pensei que ela acabasse! Tudo lá parecia impregnado de eternidade Recife... Meu avô morto. Recife morto, recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô. “Evocação do Recife” é um poema fundamental para o entendimento da poética bandeiriana, pois nele podemos notar a presença das principais temáticas de sua poesia, como por exemplo: a linguagem coloquial, a infância, a morte, a humildade, etc. No entanto, o que no presente momento pretendemos mostrar, com o fragmento deste poema, é a presença marcante e nostálgica do Recife provinciano e interiorano onde as famílias após o jantar – como na canção de Chico Buarque –, “(...) tomam a calçada com cadeiras, mexericos, namoros, risadas”, remetendo-nos a um ambiente bom de extrema simplicidade e felicidade como o próprio final do poema nos afirma: “Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô.” Mostra-nos assim, perfeitamente, o ambiente nostálgico que o poeta diz ser bom, o Recife interiorano de sua infância onde as pessoas podiam com tranqüilidade e paz viver num ambiente agradável e até mesmo mágico, já que o mundo infantil é cheio de imaginação. É este Recife, de 1925, ano em que foi escrito o poema, que está morto, que o poeta busca rememorar em seus versos. Outro poema que reafirma esta busca da vida agradável e simples levada nos subúrbios e no interior é o poema denominado “Recife”, no qual o poeta nos fala novamente do ambiente provinciano, valorizado por ele. Vejamos um fragmento do poema: Há que tempo que não te vejo! Não foi por querer, não pude. Nesse ponto a vida me foi madrasta, Recife Mas não houve dia em que te não sentisse dentro de mim: ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Nos ossos, nos olhos, nos ouvidos, no sangue, na carne, Recife. Não como és hoje, Mas como eras na minha infância, Quando as crianças brincavam no meio da rua (Não havia ainda automóveis) E os adultos conversavam de cadeiras nas calçadas (Continuavas província Recife) Eras um Recife sem arranha-céus, sem comunistas, Sem Arraias, e com arroz, Muito arroz, De água e sal, Recife. Um recife ainda do tempo em que meu avô materno Alforriava espontaneamente A moça preta Tomásia, sua escrava, Que depois foi nossa cozinheira Até morrer, Recife. Como podemos perceber, o poema “Recife” parece uma reafirmação do poema “Evocação do Recife”, já que naquele podemos notar a presença dos mesmos elementos presentes na evocação do poeta. O Recife do passado é novamente rememorado “Não como és hoje,/mas como eras na minha infância”. No entanto, esse Recife (que não existe mais), mitificado pelo poeta, esta sempre presente em sua vida, como se estas lembranças tão marcantes para ele estivessem entranhadas em seu corpo: “Mas não houve dia em que não te sentisse dentro de mim:/Nos ossos, nos olhos, nos ouvidos, no sangue, na carne,”. Portanto, este Recife funciona como uma substância revivescente e que dá força e alegria ao poeta para poder suportar sua “vida madrasta.” As obras de nossos autores vão apresentar uma espécie de galeria dos desqualificados. A constância desses personagens é tão grande que, em certos textos, vamos encontrar diversos representantes dessa categoria de personagens, concentrados em apenas um poema ou uma canção, como podemos ver no poema “Mangue”, de Manuel Bandeira e na canção “Mambembe”, de Chico Buarque, respectivamente: ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Mangue mais Veneza americana do que o Recife Cargueiros atracados nas docas do Canal Grande O Morro do Pinto morre de espanto Passam estivadores de torso nu suando facas de ponta Café baixo Trapiches alfandegados Catraias de abacaxis e de bananas A Light fazendo crusvaldina com resíduos de coque Há macumbas no piche Eh cagira mia pai Eh cagira E o luar é uma coisa só Houve tempo em que a Cidade Nova era mais subúrbio do [que todas as Meritis da Baixada pátria amada idolatrada de empregadinhos de repartições [públicas Gente que vive porque é teimosa Cartomantes da Rua Carmo Neto Cirurgiões-dentistas com raízes gregas nas tabuletas avulsivas O Senador Eusébio e o Visconde de Itaúna já se olhavam [com rancor (Por isso Entre os dois Dom João VI mandou plantar quatro renques de palmeiras imperiais) Casinhas tão térreas onde tantas vezes meu Deus fui funcionário [público casado com mulher feia [e morri de tuberculose pulmonar Muitas palmeiras se suicidaram porque não viviam num [píncaro azulado. Era aqui que choramingavam os primeiros choros dos carnavais [cariocas. Sambas da tia Ciata Cadê mais tia Ciata Talvez em Dona Clara meu branco Ensaiando cheganças para o Natal O Menino Jesus – Quem sois tu? O preto – Eu sou aquele preto principá de centro do [cafange do fundo do rebolo. Quem sois tu? O Menino Jesus – eu sou o fio da Virge Maria. O preto – Entonces como é fio dessa senhora, obedeço. O Menino Jesus – Entonces cuma você obedece, reze [aqui um terceto pr’esse exerço vê. O Mangue era simplesinho Mas as inundações dos solstícios de verão Trouxeram para Mata-Porcos todas as uiaras da Serra da Carioca ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Uiaras do Trapicheiro Do Maracanã Do rio Joana E vieram também sereias de além-mar jogadas pela ressaca [ nos aterrados da Gamboa Hoje há transatlânticos atracados nas docas do Canal Grande O Senador e o Visconde arranjaram capangas Hoje se fala numa porção de ruas em que dantes ninguém acreditava E há partidas para o Mangue Com choros de cavaquinho, pandeiro e reco-reco És mulher És mulher e nada mais OFERTA Mangue mais Veneza americana do que o Recife Meriti meretriz Mangue enfim verdadeira Cidade Nova Com transatlânticos atracados nas docas do canal Grande Linda como Juiz de Fora! Como podemos observar, o ambiente do espaço deste poema é povoado pelos mais diversos tipos de pessoas desqualificadas socialmente. Como o próprio lugar já o indica, o Mangue é onde vemos perambular entre “catraias de abacaxis e bananas” estivadores de torsos nus e suados, trapiches, meretrizes, empregadinhos de repartições públicas, cartomantes, macumbeiras, etc., gente que o poeta diz – como ainda é costume dizer até hoje: “Gente que vive porque é teimosa”. Teimosos porque suas condições de vida são extremamente precárias, desprovidos de qualquer requisito de vida saudável, condições de higiene e moradia. Ambiente, portanto, caracterizado como baixo, onde até mesmo as palmeira imperiais suicidam, pois não poderiam viver ali, já que são nobres. Mas este ambiente não é desqualificado pelo poeta, muito pelo contrário; é um lugar que, com a mudança vinda com a construção da “Cidade Nova”, perde sua áurea, pois foi nesse local que surgiram os primeiros choros de carnaval, onde se podiam escutar os sons do pandeiro, do cavaquinho e do reco-reco, sons provindos deste ambiente e também da famosa casa de Tia Ciata, incentivadora do samba no seu nascimento e que também recebia, em sua casa, os sambistas pobres e as pessoas da classe alta e política do Rio de Janeiro. Portanto, é de forma saudosa que o poeta nos fala deste “Mangue”, como um lugar poético e bom. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I A composição “Mambembe”, de Chico Buarque, também nos apresenta, no mesmo espaço, um amontoado de desqualificados. De forma que estes sejam também valorizados enquanto seres humanos importantes, criativos e merecedores de um reconhecimento social. No palco, na praça, no circo, num banco de jardim Correndo no escuro, pixado no muro Você vai saber de mim Mambembe, cigano Debaixo da ponte, cantando Por baixo da terra, cantando Na boca do povo, cantando Mendigo, malandro, moleque, mulambo, bem ou mal Escavo fugido ou louco varrido Vou fazer meu festival Mambembe, cigano Debaixo da ponte, cantando Por baixo da terra, cantando Na boca do povo, cantando Poeta, palhaço, corisco, errante judeu Dormindo na estrada, não é nada, não é nada E esse mundo é todo meu Mambembe cigano Debaixo da ponte, cantando Por baixo da terra, cantando Na boca do povo cantando Na obra de Chico podemos notar que o perfil das personagens que mais freqüentemente povoam suas letras levará à figura do marginal, do desvalido. Formam uma galeria imensa de desvalidos que são arrolados em “O que será” (À flor da pele), que foram mutilados física ou socialmente: os infelizes, as meretrizes, os bandidos. Vejamos a segunda estrofe da canção que nos demonstra bem isso: O que será que será Que vive nas idéias desses amantes Que cantam os poetas mais delirantes Que juram os profetas embriagados Que está na romaria dos mutilados Que está na fantasia dos infelizes Que está na no dia-a-dia das meretrizes No plano dos bandidos, dos desvalidos ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Em todos os sentidos, será que será O que não tem decência nem nunca terá O que não tem censura nem nunca terá O que não faz sentido. (grifos nossos) O mesmo tipo de personagem o compositor arrolará para o seu festival, em “Mambembe”: Mendigo, malandro, moleque, escravo fugido ou louco varrido, poeta, palhaço, pirata, corisco errante judeu. Como também em “Partido alto”, canção que caracteriza sua personagem principal como uma espécie de paradigma do desvalido: Deus é um cara gozador, adora brincadeira Pois pra me jogar no mundo, tinha um mundo inteiro Mas achou muito engraçado me botar cabreiro Na barriga da miséria, eu nasci batuqueiro (brasileiro)* Eu sou do Rio de Janeiro (...) Deus me fez um cara fraco, desdentado e feio Pele osso e simplesmente, quase sem recheio (grifos nossos) * Termo original, vetado pela censura. Também na Ópera do Malandro essas personagens estarão presentes, configuradas nos mais variados tipos de desvalidos, misturadas ao poder policial, e que podem ser bem caracterizadas pelo eu lírico da canção “Até o fim”, paródia do “Poema de sete faces” de Carlos Drummond de Andrade: Quando eu nasci veio um anjo safado O chato dum querubim E decretou que eu tava predestinado A ser errado assim Já de saída a minha estrada entortou Mas vou até o fim Inda garoto deixei de ir a escola Cassaram meu boletim Não sou ladrão, eu não sou bom de bola Nem posso ouvir clarim Um bom futuro é o que jamais me esperou ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Mas vou até o fim Eu bem que tenho ensaiado um progresso Virei cantor de festim Mamãe contou que eu faço um bruto sucesso Em Quixeramobim Não sei como o maracatu começou Mas vou até o fim Por conta de umas questões paralelas Quebraram meu bandolim Não querem mais ouvir minhas mazelas E a minha voz chinfrim Criei barriga, minha mula empacou Mas vou até o fim Não tem cigarro, acabou minha renda Deu praga no meu capim Minha mulher fugiu com o dono da venda O que será de mim? Eu já nem me lembro pronde mesmo que vou Mas vou até o fim Como já disse era um anjo safado O chato dum querubim Que decretou que eu tava predestinado A ser todo ruim Já de saída a minha estrada entortou Mas vou até o fim O tema do gauche drumondiano é revisitado por Chico Buarque nesta canção que com bom humor faz uma espécie de auto-retrato do desajuste social em que a personagem da canção está inserida, como também a maioria das personagens da Ópera do malandro. Como pudemos ver, tanto na poética de Manuel Bandeira quanto na poética de Chico Buarque a figura do desqualificado esta sempre presente. Poderíamos ainda nos estender nas análises de muitos outros poemas ou canções em que este tema está presente. Por exemplo, na obra bandeiriana, podemos constatar ainda a presença do camelô em seu poema de mesmo nome, do ferreiro que bate seu martelo com “seu cântico de certezas”, em seu poema “O martelo”, das mulheres prostitutas, negras e pobres da Lapa boêmia, no poema “Última canção do beco”, entre outros poemas. Também na obra de Chico Buarque podemos destacar ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I ainda várias outras canções nas quais o desqualificado está presente, como por exemplo em “Realejo”, canção nostálgica na qual os sonhos e a felicidade parecem acabar com a venda do Realejo que encantava as pessoas com suas músicas, do operário em “Primeiro de maio” e, também, em “Linha de Montagem”, como dos mendigos amando sobre os jornais em “Amando sobre os jornais”, etc. O discurso literário em grande parte de sua tradição representou e associou o pobre, predominantemente, ao pitoresco e ao rústico. Portanto, o pobre normalmente não chega a ser representado em si, mas sim por um imaginário que normalmente vai caricaturá-lo ou utilizálo como passaporte para uma pseudo realização literária legitimada muitas vezes pelo engajamento político, ou até mesmo, como fez o Naturalismo, que utilizou a ideologia positivista para associar os pobres a um inevitável destino ao fracasso. O que podemos notar na representação dos desqualificados (aqui Arrigucci refere-se exclusivamente a Bandeira, mas também acreditamos que essa consideração feita pelo crítico pode ser perfeitamente aplicada a Chico) feita por nossos autores é que a pobreza aparece como objeto da representação literária, isto é, como assunto a que não se pode furtar um poeta com os olhos voltados para a realidade brasileira, onde a miséria é o prato de cada dia. Mas não é como tema que a pobreza aqui importa. É essencialmente no modo de representação que se afirma sua importância fundamental: concebida como um valor ético de base, um modo de ser exemplar, a humildade se converte ainda num princípio formal de estilo. É, então, no modo de ser mais íntimo da linguagem poética, no coração da lírica, que o social surge como uma dimensão decisiva: a relação com a pobreza passa ser um fator interno da estruturação com a obra. (ARRIGUCCI, 1983: 113) Manuel Bandeira e Chico Buarque em suas obras reconhecem o outro, resgatam sua experiência tanto da dor quanto da alegria, que na verdade pertencem a todos os seres humanos e não somente a uma classe privilegiada. O indivíduo está inserido no mundo sujeito a todas prováveis situações que possam ocorrer. Com o sentimento de solidariedade confraternizam-se numa igualdade universal. Essa nova postura diante do mundo e da poesia se revela nos poemas e nas canções de Manuel Bandeira e Chico Buarque como uma atitude estética. Seja através da renúncia ao ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I academicismo, ao distanciamento do artista com o público leitor ou ouvinte, como também pela valorização da cultura popular e das expressões encontradas em sua linguagem, na música e em suas manifestações culturais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ADORNO, Theodor W. Lírica e Sociedade. In: BENJAMIN, Walter et alii. Textos escolhidos. São Paulo: Nova Cultural, [s/d.] ADORNO, Theodor W. Engagement. Notas de literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980. ARRIGUCCI JR., Davi. Humildade, paixão e morte: A poesia de Manuel Bandeira. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. ARRIGUCCI JR., Davi. O humilde cotidiano de Manuel Bandeira. Enigma e comentário. São Paulo: Companhia das Letras, 1983. BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira: poesias reunidas e poemas traduzidos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. 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Os italianos re-interpretam o Brasil Paolo Spedicato RESUMO: A revista italiana de estética e estudos culturais, Ágalma, passa a limpo a trajetória de todos os tropicalismos brasileiros, no que diz respeito caráter nacional, cultura popular, antropologia, neo-sincretismo religioso. Palavras-chave: Cosmopolitismo; Tropicalismo; Homen cordial; Homen suave. Sabe, no fundo eu sou um sentimental / Todos nós herdamos no sangue lusitano uma dose de lirísmo... (além da sífilis, é claro) / Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar / Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora... Chico Buarque, “Fado tropical”, 1973 O pintor Paul Gauguin amou a luz da Baía de Guanabara / O compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela / A Baía de Guanabara / O antropólogo Claude Levy-Strauss detestou a Baía de Guanabara: / Pareceu-lhe uma boca banguela. / E eu, menos a conhecera mais a amara? / Sou cego de tanto ve-la, de tanto te-la estrela / O que é uma coisa bela? Caetano Veloso, “O estrangeiro”, 1989 FIGURAS DO COSMOPOLITISMO O cosmopolitismo que este ensaio pretende discutir é um conceito que procede até nós, perdidos no globalismo do mundo contemporâneo, de uma tradição enraizada no século XVIII das Lumiéres e da grande Revolução Francesa, burguesa e popular, berço de todos os modernismos: a nossa infância gloriosa. Sem esquecer que cosmopolitas já se chamavam os filósofos, cínicos e estóicos da antiga Grécia, bem antes de Leibniz, de Kant, e das Lettres ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I persanes de Montesquieu1. Mas, num balanço mais claro de figuras e formas que desenvolveram sensibilidade e discursos dentro de uma suposta Cosmópolis, eu vou apontar, sem nenhuma hierarquia e como lembrete metódico, três dispositivos de construção de sentido cosmopolitano: 1. um cosmopolitismo da alma, intrinsecamente poético-filosófico, não ligado necessariamente a um lugar específico; sentimento ubíquo de sentir-se em casa em qualquer lugar do mundo, inclusive no grande vazio, nas imensidades desérticas ou nas províncias extremas, mas todas símbolos de existência mundial, de “ser-no-mundo” (Heidegger). Uma certa isonomia do tipo local-global ou centro-periferia já está no dito rosiano “O sertão é do tamanho do mundo”, enquanto Elio Vittorini, ao fim de Conversazione in Sicilia (1941), um dos romances italianos mais interessantes do século XX, explica que ele escreveu duma viagem de retorno do protagonista à nativa Sicília, sendo esta “só por acaso Sicília; só porque Sicília me soa melhor do nome Pérsia ou Venezuela”. 2. o dispositivo Walter Benjamin que desvenda, a partir da análise da parte superior galerie-passage-arcade sobreposta ao subsolo de ruína-catacumba-cloaca, o destino da metrópole emblemática Paris: o “shoke” urbano; a guerra urbana entre controle social e revolução social; um terreno que nunca foi de ninguém mais que das vanguardas artísticas, de Baudelaire aos surrealistas. 3. o declínio do cosmopolitismo ‘clássico’, historicamente ligado a elites políticas e intelectuais, mas sempre expressão de culturas hegemônicas da Europa e dos Estados Unidos, e a sua superação pelo fenômeno das “cidades globais”, Nova Iorque, Londres, Tokyo, pela realidade da nova economia globalizada e pelo “denationalizing of the urban space” e o “denationalizing of politics”, segundo a socióloga novaiorquina Saskia Sassen. No ajuste sísmico entre continentes e blocos culturais, além da linha privilegiada que o filósofo norte-americano Richard Rorty chamou uma vez de “conversation of the West”, ou 1 Veja-se um recente comentário de Sérgio Paulo Rouanet: “O estoicismo, por exemplo, imaginava a idéia de uma civitas magna, ou seja, o mundo era considerado como una grande cidade mundial. Esse sonho foi parodiado por algo que se chama globalização, que também transborda suas fronteiras nacionais, mas cujo princípio fundamental é a lógica do mercado”.Entrevista a Sérgio Paulo Rouanet. “O intelectual está deixando de existir”. In: Cult. Sao Paulo, ano 9, n. 108, novembro 2006, p. 13. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I seja, a linha direta Europa-Estados Unidos, diálogo entre filosofia continental e pragmatismo americano, e dentro do espaço-tempo do novo “império” multicêntrico, não dá para não perceber o trabalho transversal de olhares amorosos entre tribos de territórios diferentes, engajadas em recíprocas passagens de fronteira. Nessa troca de olhares, uma tentativa abrangente de abordar a cultura brasileira contemporânea está no número 10 (setembro 2005) da revista de estudos culturais e de estética da Universidade de Roma-Tor Vergata, Ágalma, rica com dez contribuições de vários estudiosos, e com tema monográfico: “Tropicalismi”. Ágalma é palavra grega que signifíca ornamento, dom, imagem. Trata-se de uma rica encruzilhada semântica feita de valor econômico, estético e simbólico. O Brasil tropical e tropicalista não foge a esse tipo de abordagem crítica. A revista italiana desenha um passeio complexo através dos territórios mentais e espaços físicos de Gilberto Freire a Guimarães Rosa; a música de um cantautore intelectual como Caetano Veloso; a pop culture toda, dos poemas-objetos e “esculturas” de Hélio Oiticica e do seu movimento descontextualizante “tropicália”; a estética “cafona”; a improvável “happyland” da violência e da emarginação urbana entre cinema e literatura; as últimas manifestações da New Age pós-sincretista brasileira. SUAVIDADE VS. SAUDADE Multiplicidade e unicidade do Brasil. Existe vasto consenso sobre a existência de muitos Brasiis dentro de uma homogênea identidade brasileira, a partir da penetração unificadora, causa também de isolamento linguístico-cultural, e de uma aglutinação sistemática e violenta: o “imenso Portugal” de Chico Buarque. Ciente desta complexidade, o inglês Peter Burke propõe como ponto de saída uma reavaliação das teorias e das muitas contribuições do mestre do Recife Gilberto Freyre. A partir dos anos cinquenta, Freyre resgatou o termo tropicalismo do sentido pejorativo que carregava, chegando a propor uma ciência nova, mistura de ecologia, antropologia, sociologia, história etc., e chamando-a “tropicológia”. Típica da cultura tropical do Brasil, e de outros trópicos, seria a capacidade de ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I transformar, de adaptar ao clima e aos materiais locais elementos de culturas alheias. A “brasilianização” seria um processo de aglutinação. Freyre menciona a transformação dos móveis estilo Chippendale, importado no Brasil da Inglaterra, ao começo do século XIX, que acaba se transformando, nas mãos dos artesãos brasileiros, em estilo Império-Dom Pedro II: das linhas angulosas do original inglês às curvilíneas do brasileiro. No criativo glossário freyriano entram palavras compostas como “paratropical”, (os artistas europeus viajantes nos trópicos como Gauguin e Rimbaud), “eurotropical” e “luso-tropicalismo”. Este último conceito causou acusações a Freyre de empatia com o colonialismo e o autoritarismo português, na altura significativa da luta de emancipação das colônias africanas contra Portugal2. Aliás, inovadoras perspectivas historiográficas têm recentemente corrigido a interpretação das relações históricas entre a metrópole portuguesa, a pequena pátria, (contraposta à “gran pátria” castilhana), e o Brasil colonia3. As criativas “intuições” freyrianas têm funcionado e circulado por um tempo, mas, desprovidas de análise comparativa e cultural mais científica, não problematizam mais a suficiência dentro e para uma perspectiva pós-colonial. Segundo Burke: A idéia de tropicalismo, ou pelo menos de Luso-Tropicalismo, nao tem sustentado o juízo do tempo e da crítica. A idéia de tropicológia é atractiva e a abordagem comparativa aos trópicos é valiosa, mas a “ciência” ou a “disciplina” prometida ainda não apareceu4. 2 No mesmo número de Ágalma, Roberto Motta registra a “reabilitaçao da figura – por tanto tempo caluniada – do colonizador português no Brasil”, são palavras de Freyre, desde o livro Uma cultura ameaçada: A LusoTropical de 1942, contra “agentes culturais de um imperialismo etnocêntrico, interessados a nos desacreditar como raça – qualificando-a “mestiça”, “inepta”, “corrupta” – e como cultura - [...] como vilmente inferior à deles”. Como nesse caso, todas as traduções do italiano para o português são do autor desse ensaio [N.d.A]. 3 ALENCASTRO de, Luiz Felipe. O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlantico Sul. Séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Segundo Alencastro, o Brasil se formou fora do Brasil, com a África e o tráfico negriero no Atlântico como elementos fundantes do país, que, antes do século XVIII não existe de verdade, enquanto existem um “arquipélago do Capricórnio” e uma constelação de feitorias e domínios lusos espalhados entre África e Sul América. 4 BURKE, Peter. “Tropicalizzazione, tropicalismo, tropicologia. Il contributo di Gilberto Freyre”. In: Ágalma. Roma, n. 10, settembre 2005, pp. 17-8. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Para Burke, talvez só o conceito de tropicalização, como apropriação e aglutinação brasileira de elementos alheios, teria mais raison d’etre. Seria o que faria mais viável e vencedor o Sul europeu emotivo e católico sobre o Norte racional e protestante. Junto ao pensamento freyriano, não poderia ficar esquecido, após setenta anos da sua publicação, o clássico Raízes do Brasil, o fundamental estudo de Sérgio Buarque de Holanda sobre a identidade e a mentalidade brasileira. Mas será que a ‘cordialidade’ brasileira, conceito do poeta Ribeiro Couto e analisado por Buarque, representa um conceito ainda viável? E o Brasil, como se apresenta no horizonte da pós-modernidade? País habitualmente colocado entre primeiro e terceiro mundo, categorias ainda usadas embora um pouco obsoletas, sempre prometeu ser o destaque do século. Várias apostas foram feitas sobre este gigante geográfico, a partir da profecia inicial da vanguarda modernista dos anos vinte até o Brasil um país do futuro de Stefan Zweig, a retórica da ditadura militar e ufanismos retornantes. Mas, segundo o diretor e autor do prefácio de Ágalma, o filósofo Mario Perniola, está descartada a possibilidade de um neoufanismo, embora um tropicalismo tão superficial quanto consolatório, e tentações nesse sentido não faltem no horizonte cultural, cúmplices a banalização e infantilização veiculadas pela mídia, e a retórica neopopulista da classe política brasileira e do mesmo chefe da nação. O neotropicalismo seria uma forma particularmente torva e feroz de neoufanismo. A possibilidade de uma modernidade brasileira alternativa à modernidade americana seria completamente descartada a favor de uma hipermodernidade (a “mais-modernidade” de Alfredo Bosi) de cunho neoliberal. Aliás, é exactamente esta coexistência de degradação e de abjecção de um lado, e de eficiência do outro, que muitos filmes de ficção científica nos mostraram. Contudo, não se trata de ser antimodernos, mas de buscar outras dimensões de modernidade, nas quais a dimensão pública seja valorizada através da incrementação e o desenvolvimento das tendencias que pertencem profundamente à história e à cultura do país, às suas raízes, ...5 As contradições da realidade sócio-cultural do Brasil e do mundo globalizado lembram de perto, trinta anos depois, as teorias do futurólogo italiano Roberto Vacca, o 5 PERNIOLA, Mario. “Suavidade”. In: Ágalma, cit., p.6. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Medioevo prossimo venturo, e justifícam as provocações do último livro de Umberto Eco6: às vezes, apesar da profecia duma “sociedade aberta” (Karl Popper), da eficiência e do avanço tecnológicos e sociais, a era democrática da internet e do digitalismo revela traços assustadores de atraso, exclusão e barbárie. Guerra sem fim e globalização excludente são, infelizmente, os alicerces do neoliberalismo contemporâneo. Gap sempre mais profundo entre elites e massas de salariados e excluídos pobres; medo e segurança no comportamento e no estílo de vida urbano: os enormes cinturões das favelas vs. as gated communities protegidas com altas grades e muros, como fossem novos castelos medievais, são mencionados na análise de Perniola. O brasilianista Nello Avella, também ensaista de Ágalma, tem observado que, na encruzilhada semântica ‘cordial/coração’, amor/ódio, para o “antropófago” Oswald de Andrade o homem cordial “sabe ser cordial come sabe ser feroz”7. Junto com a comum origem latina e católica, o mundo luso-brasileiro e a Itália parecem compartilhar mentalidade e comportamentos típicos principalmente do mundo rural, de uma organização “econômico-corporativa” (economia fechada) pré-capitalista, à origem de um individualismo exasperado, que Buarque, pensando na Península Ibérica, chamava de “cultura da personalidade”, ambientada numa comum Arcádia. Vem à toa a discussão sobre o ideal do “particulare” do historiador e pensador renascentista, o florentino Francesco Guicciardini, por muito tempo interpretado como puro interesse material do indivíduo e de comportamento egoísta em geral, embora pareça convincente a recente interpretação de Mario Perniola, segundo a qual, se trataria, mais apropriadamente, de boa “reputação”, “honra”8. 6 ECO, Umberto. A passo di gambero. Guerre calde e populismo mediatico. Milano: Bompiani, 2006. AVELLA, Nello. “Il ritorno del “Maestro cordiale”, In: BUARQUE de HOLANDA, Sérgio. Radici del Brasile. Prefazione di Fernando Henrique Cardoso. Introduzione e cura di Nello Avella. Trad. di Luciano Arcella. Firenze: Giunti, 2000, p. 25. Para o historiador da USP Francisco Alambert, “O homem cordial pode ser afetuoso e violento conforme ele queira, e pode variar entre a regra e a exceção segundo sua vontade. Mas as justificativas para essas idas e vindas, para essas aparentes “contradições”, são sempre pessoais e sentimentais”, Resenha a Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, ano 2, n. 13, outubro 2006, p. 94. 8 PERNIOLA, Mario. Del sentire cattolico. La forma culturale di una religione universale. Bologna: il Mulino, 2001. Veja-se o n. 218 dos Ricordi politici e civili, elaborados entre 1512 e 1530, de GUICCIARDINI, Francesco. Reflexões. Trad. de Sérgio Mauro. São Paulo: Hucitec, 1995, p.147. “Os homens que conduzem bem as suas coisas neste mundo tem sempre diante dos olhos o próprio interesse, e medem todas as suas ações por este fim. Mas erram os que não conhecem bem seu interesse, isto é, pensam que este consista mais em alguma 7 ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I É bom lembrar-se da controvérsia causada na Itália pela tese do antropólogo americano Edward Banfield nos anos cinquenta. Pesquisando a sociedade patriarcal e agrícola de uma aldeia no sul da Itália, Banfield hipotizara uma realidade social caracterizada pelo “familismo amoral”, ou seja, uma lógica de comportamento funcionante unicamente pelo bem imediato da família próxima, e totalmente fechado ao exterior e à qualquer dinâmica social ou de bem comum9. Esta teoria de uma Itália rural e mediterrânea, amoral e socialmente atrasada, achou defensores e muitos adversários, que a acusavam de divulgar um estereótipo acientífico. Menciono aqui esta polêmica que se tornou cause célèbre, por que há uma certa confluência atemporal de comportamento e de ideais entre o centro-sul rural e mediterrâneo da Itália e dos países ibéricos de um lado e os do Brasil tradicional da Colônia e do Império do outro. Seriam assim privilegiadas as relações emocionais e afetivas que favorecem os familiares, o grupo de amigos, o “espírito de clã”, e não o individualismo e os formalismos da metrópole e da vida urbana. Corretamente Antônio Cândido interpretava assim a crítica de Buarque ao anacronismo e ao caráter promíscuo, veja-se a política brasileira, da suposta “cordialidade”nacional: O “homem cordial” não pressupõe bondade, mas somente o predomínio dos comportamentos de aparência afetiva, inclusive suas manifestações externas, não necessariamente sinceras nem profundas, que se opõem aos ritualismos da polidez. O “homem cordial” é visceralmente inadequado as relações impessoais que decorrem da posição e da função do indivíduo, e não da sua marca pessoal e familiar, das afinidades nascidas na intimidade dos grupos primários10. O homem tropical é, portanto, provável carregador de certa ambivalência, de certa inconsistência espiritual e psicológica. “... uns desterrados em nossa terra”, na imensidade de um país-continente, embora parte “de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem”, ou seja, habitantes de margens e veredas sulamericanas, em correspondência com outras margens, de “uma zona fronteiriça, de transição”, de uma “região indecisa entre a vantagem pecuniária que na honra, no saber manter a reputação e o bom nome”. 9 BANFIELD, Edward. Una comunità del Mezzogiorno. Bologna: il Mulino, 1961. Veja-se também de Banfield, Le basi morali di una società arretrata. A c. di D. De Masi. Bologna: il Mulino, 1976. 10 CANDIDO, Antonio. “O significado de “Raízes do Brasil”. In: Raízes do Brasil, op. cit., p. 17. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Europa e a África, que se estende dos Pireneus a Gibraltar”11, os brasileiros se posicionam no lado “fraco”12 da identidade contemporânea. Certa indeterminação brasileira estaria já, segundo Ettore Finazzi-Agrò, que medita sobre “A construção do espaço brasileiro”, no caráter hollow, blank, da wilderness brasileira. Finazzi recupera num escritor canônico como Euclides da Cunha, viajante na Amazônia, uma misteriosa “espacialidade atópica”: “Para vêla deve renunciar-se ao propósito de descortiná-la” 13. É a sensação que fica até amplificada após uma chuva forte no Brasil, ou dias de chuvas fortes: a sensação que esta terra imensa feita de barro vermelho esteja por desaparecer, por esfacelar-se. A natureza acquática, líquida da natureza brasileira é confirmada pelo tamanho de suas reservas: poco menos de um quinto da água doce do planeta é do Brasil. Um país pós-colonial e mestiço como o Brasil tem a oportunidade de mostrar o caminho de um cosmopolitismo forte, de uma dialética global-local à altura dos desafios desse momento histórico, marcado pela volta a velhas nostalgias metafísicas, seja na vertente religiosa, o fundamentalismo e o despejo do suposto “relativismo” cultural, seja na política, a tendencia ao pensamento único, disfarçado como democrático, e a formas de neoimperialismo atualizado. Nesse sentido as palavras-guia da bandeira brasileira, “ordem e progresso”, expressão da parte mais europeia e superada da identidade nacional, são as menos indicadas a definir o destino dos brasileiros. Rejeitada a componente provinciana, colonial e ambivalente da “cordialidade”, enterrado de uma vez, e com todas as honras, mas sem saudade, o Macunaíma nacional, a alteridade e a criatividade brasileira podem se manifestar, incorporando a condição da desorientação e da suspensão no meio da natureza tropical com uma maneira de ser e uma visão mais mundial, cosmopolitana, cósmica. O grito que sai da terra nao é mais o da tristeza individuada pelo modernista Paulo Prado: “Numa terra radiosa vive um povo triste” 14. E sim, talvez, da “suavidade”: 11 BUARQUE de HOLANDA, Sergio. Op. cit., pp.31-32. Uso o adjectivo “fraco” no sentido antimetafísico e anti-Grund (fundamento) dado pelos pensadores italianos do “pensiero debole”, no livro organizado por ROVATTI, Pier Aldo. VATTIMO, Gianni. Il pensiero debole. Milano: Feltrinelli, 1983. 13 DA CUNHA, E. Um paraíso perdido. Ensaios, estudos e pronunciamentos sobre a Amazónia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986. p. 201. 12 ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Este sentimento cósmico não é uma alienação, mas uma apropriação: portanto ele não está longe da oikeiosis da que falavam os antigos filósofos estóicos a respeito da relação entre o ser humano e a natureza. Nessa palavra grega (traduzida em latim como conciliatio e commendatio, e em italiano como attrazione) é implícito seja o aspecto affetivo da cordialidade, seja aquilo social do altruísmo. Tal experiencia tem pouco a ver com a saudade portuguesa, relacionada à solidão e à recordação nostálgica do passado. É por isso que a palavra suavidade é a mais pertinente ao tropicalismo brasileiro. Suavidade tem a mesma raiz da palavra persuasão: porém não se trata de convencer ou comunicar uma idéia. A suavidade é algo de aconceitual e de exprimível somente através da poesia e da música, que não por acaso representam os melhores produtos da cultura brasileira15. Esta suavidade parece ter sido adiantada e confirmada por un singular documento, que acaba de ser publicado em edição bilíngue, e que se insere num subgênero literário, pela sua própria natureza multidisciplinar e extraordinariamente moderno: o diário de viagem do então jovem estudante de medicina, o futuro filósofo do pragmatismo americano William James, irmão do grande romancista Henry James. A “empatia” do jovem americano, no Brasil por oito meses entre 1865 e 1866, segundo a organizadora do livro, com o barqueiro que o leva numa travessia do rio Solimões, é assim expressa no diário: Nunca houve uma classe de pessoas mais decentes do que estas. O velho Urbano, especialmente, por seu refinamento nativo, inteligência e espécie de limpeza e pureza é talhado para ser amigo de qualquer homem que exista, não importando quão elevado seja seu nascimento & bens. (...) Urbano & seus companheiros conversam com tanta beleza e harmonia (...), em um tom suave [grifo meu], baixo e vagaroso, como se a eternidade estivesse à frente deles”16. 14 PRADO, P. Retrato do Brasil. Ensaio sobre a tristeza brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 53. 15 PERNIOLA, M. Suavidade. In: Ágalma, op. cit. p. 7. 16 MACHADO, Maria Helena P. T (Org.). Brazil through the eyes of William James. Trad. de John M. Monteiro. Cambridge: Harvard University Press, 2006. A citação do trecho de W. James foi tomada do artigo-resenha de Marcelo Leite, “Antiliteratura de viagem”. “A Folha de São Paulo”. Caderno “Mais”. 3 de dezembro de 2006, p. 7. Vale a pena, porém, reproduzir inteiramente o trecho jamesiano no original em inglês, e última entry do “Brazilian Diary”: “16th. EVENING. I am sitting writing this in front of the house of my excellent old friend Urbano. I fell behind hand so much in this dry kind of composition that I find it now quite impossible to make up my lost time, and can now only give a kind of general retrospect of the last days. I now fell perfectly domesticated in this place & with these people. Never were there a more decent worthy set of gentry. Old ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Um barqueiro na Amazônia da segunda metade do século XIX, com o nome digno de um Papa de Roma, Urbano, é visto como herói cultural, (conversa suave, harmonia, refinamento de costumes, humanidade...), características quase de uma nova Renascença, que se ergue das águas amazonenses da mesma forma que uma humanística e renascentista Vênus de Botticelli nascia das águas, num outro lugar, quatro séculos antes. TERRA EM TRANSE 2 Uma síntese muito bem informada para entender o universo tropicalista é, para o japonês e ex-aluno de Umberto Eco em Bolonha, Shuei Hosokawa, a bíblia de Caetano Veloso: o autobiográfico Verdade tropical (1997), publicado na Itália em 2003. Hosokawa começa sua história do tropicalismo vertente pop-musical-intelectual, lançando a idéia que Caetano e Gil (e o Chico romancista) sejam talvez outros tantos intelectuais “orgânicos”, no sentido gramsciano do termo. Não sei quanto isto agradaria Caetano Veloso e a sua enorme produção de artista mutante, sempre se superando. Uma coisa é clara. Veloso parece ser orgânico somente à sua própria natureza proteiforme e a um protagonismo que travessa inteligentemente os vários territórios da cultura pós-moderna, à qual ele adapta de forma criativa uma espécie de ‘eterno brasileiro’. As incursões trans-gêneros e trans-estilos, a assemblage cultura alta-cultura baixa ou popular, a trajetória “do luso-nacionalismo ao anglouniversalismo”, são ricamente explicitadas e investigadas por Hosokawa. O exergo inicial do ensaio dele parece confirmar uma leitura da “suavidade” toda poético-musical da alma Urbano especially, by his native refinement, intelligence and a sort of cleanliness and purity is fit to be the friend of any man who ever lived, how elevated his birth & gifts. There is not a bit of our damned anglo saxon brutality and vulgarity either in masters or servants. I am always reminded when the neighbors come in to visit Urbano of our family & the Tweedy family at Newport. Urbano & his gossips talk with just as much beauty & harmony or perhaps a good deal more than Tweedy & Father did, in an easy low slow [grifo meu] tone as if all eternity was before them. I have never heard any swearing or an hyperbole or far fetched similes or extravagant jokes or steep piled epithets or chaffing such as we Yankees delight in”, p. 92. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I brasileira, como proposto por Mario Perniola: “Se você tem uma ideia incrível / É melhor fazer uma canção” (Caetano Veloso, “Língua”). Segundo a visão transversal de Hosokava, afinal, há “duas Américas” na produção de Caetano: a vertente pop e contra-cultural, que se coloca nas trilhas do international style anglo-americano (mas também de certo radicalismo artístico à la John Cage, Fluxus de Nova Iorque, com a supervisão de Rogério Duprat, Décio Pignatari e o movimento MARDA), e, segundo, o remake e detournement tropicalista, segundo o qual o hibridismo, o antropofagismo e a paródia, típica de Caetano e de outros artistas brasileiros, fazem justíça da nova versão americana de imperialismo cultural e de pensamento único, sustentado pela teoria do “conflito de civilizações” do Samuel Huntington. Não escapa a esse coletivo olhar italiano ao Brasil, que originou primeiro como congresso na Universidade de Roma-Tor Vergata, a história e as transformações recentes das práticas religiosas no Brasil. E bem posicionado parece o teórico italiano das comunicações da USP, Massimo Di Felice, quando coloca a sua pesquisa sob a estrela das veredas rosianas ou, eu diria, dos Caminhos silvestres (Holzwege) heideggerianos: “Eu cá, não perco de ocasião da religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue”17. Di Felice descreve a trajetória do espiritualismo e das práticas religiosas no Brasil a partir de elementos importantes como o messianismo que entrelaça a história do país e a teologia da libertação dos anos ’60-’70, cujo fim foi o prelúdio do grande crescimento do pentecostalismo e neo-pentecostalismo, protagonizado sobretudo pelas várias confissões e seitas evangélicas, que sempre mais tomaram o rumo do televangelism mediático norte-americano, no que diz respeito a conteúdos teológicos, rituais e agressiva retórica linguística; sem esquecer o papel da New Age como pano de fundo da sensibilidade geral dessa virada de século. O sincretismo da religiosidade afro-brasileira, nas formas híbridas que lhe são próprias, a partir dos fundamentais estudos de Roger Bastide nos anos sessenta, mostra uma certa precariedade conceitual e deve ser vista de forma mais dinâmica e como expressão da “visão subjetiva dos fieis”. Continua Di Felice: 17 GUIMARAES ROSA, João. Grande sertão, veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 20. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Mais que se reconhecer dentro duma única identidade religiosa, o que caracteriza o éthos espiritual do povo brasileiro parece ser uma abordagem utilitarística e compulsiva que ultrapassa as barreiras dos dogmas e das instituições religiosas, deslocando-se sem uma meta, cumulando experiências diversas e tradicionalmente diferentes entre si18. “Hierofanías sem religião”, “pós-sincretismos”, ritos sem mitos, devem ser consideradas algumas das manifestações de fé bem estabelecidas na realidade brasileira: o Vale do Amanhecer, o Santo Daime ou doutrina da floresta, o movimento Espírita do fundador Allan Kardec e de seu O Livro dos Espíritos de 1860, chegado ao Brasil com a mediação do mineiro Chico Xavier. Dinamismo e impermanência, eis as regras da religiosidade popular contemporânea, na ótica de estudos culturais e de sociologia da comunicação do estudioso uspiano. A esta informatíssima e convincente cavalgada pelos territórios da espiritualidade e do irracionalismo tão ostensivo de muitos brasileiros, poderia talvez faltar um olhar mais tradicionalmente sócio-político. Afinal, o momento fundante do Brasil moderno sendo, não a Lei Áurea de 1888, não o golpe republicano de 1889, mas a “guerra civil” de Canudos, ou seja, um fato histórico habitualmente interpretado com a lente do messianismo cristão do Conselheiro, e descrito pelo texto canônico Os sertões,de Euclides Cunha, não é sem prazer que vi recentemente uma leitura de Canudos como uma “comuna”, a semelhança da Comuna de Paris de 1871, primeiro experimento comunista da Europa moderna e que adiantou Canudos só de poucos anos19. Entregados definitivamente o “homem cordial” e o “Italiani brava gente” à la poubelle de l’histoire, essas duas ricas tradições culturais podem retomar o caminho da consciência planetária, rumo de um autêntico cosmopolitismo. 18 DI FELICE, Massimo. “Dalla Teologia della liberazione alla New Age. I mutamenti del sacro nel Brasile contemporaneo”. In: Ágalma, op. cit. p. 98. 19 “Na America Latina, como em alguns outros países do Terceiro Mundo, existe uma situação que permite que uma espécie de antimodernidade se expresse sob forma que a pós-modernidade pode acolher como perspectiva eficaz – bem, este é o tema da libertação dos escravos e dos servos. A “comuna” de Canudos, ordenada (exterminada) em nome do progresso durante a “guerra do fim do mundo”, reaparece hoje em toda a sua potente antecipação como alternativa irredutível à modernidade. Dentro dela encontra-se uma outra tensão, que se pode definir como cosmopolita: ela atravessa o mundo em que vivemos e nos ensina a urgência de libertar todos aqueles que o biopoder restringe nas correntes de seu comando”. (NEGRI, Antonio. COCCO, Giuseppe. Glob(AL). Biopoder e luta em uma America Latina globalizada. Rio de Janeiro- Sao Paulo: Record, 2005. p. 199). ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Dinorá: a inocência despedaçada no silêncio da tragédia Robério Pereira Barreto* RESUMO: Este artigo evidencia o erotismo no campo de violação do corpo feminino na literatura contemporânea de Dalton Trevisan. Aqui representada pelo conto Dinorá, moça do prazer (1997). A partir da exploração da subjetividade e a procura da identidade mais profunda dos personagens da narrativa, Trevisan faz de Dinorá a metonímia da sociedade brasileira atual e por meio de uma intertextualidade com Jonh Cleveland, ele nos aproxima de Fanny ao mostrar sua incursão primaria às tentações dos ambientes luxuoso dos bordéis brasileiros do século XX. Na medida de seus atrativos, uma mulher está exposta ao desejo do homem. Com efeito, tem-se nessa narrativa uma presença significativa do silêncio que, faz parte da estética da ficção pósmoderna. Verifica-se isso no tom dramático que Dinorá usa para descrever os acontecimentos e o ambiente que a iniciaram no mundo do luxo e do prazer, deixando assim, vir à tona o seu espanto diante do glamour do salão, no qual viria acontecer à orgia de iniciação. Palavras-chave: Silêncio; Prazer; Prostituição; Estética; Ficção contemporânea. RESUMEN: Este artículo evidencia el erotismo en el campo de romperse del cuerpo femenino en la literatura contemporánea de Dalton Trevisan. Aquí representado por el cuento Dinorá, joven del placer (1997). A partí de la exploración de la subjetividad y de la búsqueda de la identidad más profunda de los personajes de la narrativa, Trevisan hace de Dinorá la metonímica de la sociedad brasileña actual y por medio de una intertextualidad con Jonh Cleveland, el nos presenta su incursión primaria a las tentaciones de los ambientes lujosos de los burdeles brasileños del siglo XX. En la medida sus atractivas, exhiben a una mujer al deseo del hombre. Con efecto, una presencia significativa del silencio se tiene en esta narrativa tan, es parte de la estética de la ficción despuésmoderna. Esto en el tono dramático que Dinorá utiliza describir los acontecimientos y se verifica el ambiente que lo había iniciado en el mundo del lujo y del placer, así yéndose, a continuación para venir al tona su asombro del encanto del pasillo, en el cual vendría suceder al orgía de la iniciación. Palabra-llave: Silencio; Placer; Prostitución; Estético; Ficción contemporánea. ABSTRACT: This article evidences the erotism in the field of breaking of the feminine body in literature Dalton contemporary Trevisan. Here represented for the Dinorá story, young woman of the pleasure (1997). From the exploration of the subjectivity and the search of the identity deepest of the personages of the narrative, Trevisan makes of Dinorá the metonymies of the current brazilian society and by means of a intertext with Jonh Cleveland, it in them it approaches to Fanny when showing its primary incursion to the temptations of environments luxurious of the brazilian brothels of century XX. In the measure of its attractive ones, a woman is displayed to the desire of the man. With effect, a significant presence of the silence is had in this narrative that is part of the aesthetic one of the after-modern fiction. This in the dramatically tone that Dinorá uses to describe the events and the environment is verified that had initiated it in the world of the luxury and the pleasure, thus leaving, to ahead come to evidence its astonishment of glamour of the hall, in which it would come to happen to the orgies of initiation. * Professor de Lingüística, Linguagens e Literatura e outras artes – DCHT – UNEB – Campus XVI – Irecê – BA. e-mail: [email protected]. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Word-keys: Silence: Pleasure; Prostitution; Aesthetic; Fiction contemporary As formas imortais, claras e ufanas, Da graça grega, da beleza pura, Resplandem na Angélica brancura Desse teu corpo de emoções profanas.1. A prostituição das personagens femininas de Dalton Trevisan não era uma das principais atenções de nossa investigação, porque visávamos à significação erótica do discurso existente na narração de seu romance A Polaquinha2 (1985). No entanto, leituras e observações mais acuradas das obras do escritor curitibano nos levaram a dedicar um olhar mais imperativo à presença de tal tema nas suas outras produções [contos que, segundo alguns especialistas, foi o gênero no qual autor do Vampiro de Curitiba se destacou, levando o leitor para além da fruição]. Na ficção de Dalton Trevisan, sobretudo em Dinorá, moça do prazer3 há a presença de jovens que em virtude de uma série de problemas sociais são introduzidas à prostituição e que passam a servir aos caprichos sexuais de seus senhores. Em tal obra, o enredo discorre sobre a iniciação sexual de uma adolescente [Dinorá, que depois de ficar órfã é amparada por Madame Ávila, que vai ensiná-la como fazer uso de sua beleza e pureza para torna-se uma 1 SOUZA, Cruz de. Corpo. In: Poesias completas: Broqueis, faróis, últimos sonetos. Rio de Janeiro, Ediouro,1997, p. 137. 2 Otto Lara Resende em um texto que acompanha a orelha deste livro – terceira edição, datada de 1985 -, diz que esta obra é uma narrativa longa, a qual ganha característica de romance. Entretanto, nela o escritor mantêm “sua nota pessoal é imutável e está no texto cada vez mais cerrado.” Trevisan, ainda segundo o crítico literário, criou um universo próprio, que lhe pertence por direito de conquista e originalidade. Assim, se tornou autor singular. O escritor curitibano mostra-se insatisfeito, por isso seus textos são cada vez mais condensados na tentativa de expor a vida humana por meio de uma visão macroscópica e sem compaixão, as andanças que a vida propõe ao sujeito, mostrando lhe as culpas e castigos físicos e psicológicos. 3 Décimo segundo conto da obra Cemitério de elefantes de Dalton Trevisan, a qual é composta por vinte e três contos, sendo que o último texto é que dá o nome ao livro. Publicado pela editora Record 1997, este texto está na décima segunda edição. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I dama da sociedade], só que para sobreviver nesse mundo ela tem que usar a ambigüidade e a dissimulação do corpo até o limite4. Conforme já dissemos, é interessante notar que a exploração do corpo feminino é tema corrente na escrita trevisaneana, a qual deixa evidente para nós que a submissão da mulher ao fetiche do homem é um aspecto sócio-cultural, no qual o poder masculino5 instalase devido às promessas de proteção e vida digna feita por homens e mulheres mais velhas as meninas. É nessa situação que Dinorá se encontra. Isso é percebido na fala da protagonista de Dinorá, moça do prazer quando se apresenta ao leitor: NO ESTILO DE FANNY HILL6: Meu nome é Dinorá. Nascida em Curitiba, de pais pobres, mas honestíssimos, fui na infância ignorante do vício. Vítimas da gripe espanhola morreram os coitados mal entrara eu nos quinze anos. Fiquei só, sem parente que me advertisse das traições no caminho da jovem órfã. Condoída de tão triste sorte, uma venerável matrona assumiu graciosamente a minha proteção Madame Ávila7 contaria cinqüenta anos, aparentava mais pelo abuso de banhos quentes. Antes me queria dama de companhia do que criada de servir e, se me revelasse boa menina, seria para mim verdadeira mãe. Gorda, casaco de pele em pleno verão, eu lhe invejava o vestido de púrpura, o chapéu de fita farfalhante, a pulseira dourada que tilintava no bracinho roliço.89. 4 Se tomarmos Dinorá sob a ótica foucaulteana veremos que, na verdade, há um processo de servidão em que a personagem é disciplinada para as práticas libidinosas de seus senhores. 5 De acordo com Foucault, em seu clássico Microfísica do poder (1979), entendemos que na sociedade contemporânea o poder tornou-se institucionalizado, sendo o corpo do Rei a representação física dele. 6 Conforme apresenta Eliane Robert Moraes no seu livro O que é pornografia, Fanny Hill é a heroína de uma das maiores obras-primas da literatura erótica ocidental. Escrita por Jonh Cleveland em 1749, Fanny Hill, segundo argumenta Moraes, é também conhecida como Memórias de uma mulher de prazer. A qual, segundo consideram alguns moralistas de plantão, esta é a narrativa mais escandalosa de que se têm notícias. Entretanto, a pesquisadora nos assegura que em tal discurso literário não há absolutamente nada que comprove esta assertiva. “Fanny Hill não contém uma só palavra ou expressão obscena, do começo ao fim do livro. No entanto, a estudiosa deixa claro que, na verdade”, Há cenas de violência, sedução, homossexualidade, flagelação, das mais diferentes formas de contato sexual e até mesmo instruções para simular virgindade “. (Moraes, 1985, p. 31). Para melhor compreensão da questão posta aqui em discussão, fica como recomendação a leitura do texto de Jonh Cleveland. Fanny Hill. 7 Para Tânia Regina Oliveira Ramos em Literaturas de peso. In: Genealogias do silêncio: Feminismo e gênero. Florianópolis: Editora Mulheres, 2004. p. 157, essa personagem comporia casting das mocinhas de Gaby Hauptmann.“As mocinhas de Gaby Hauptmann têm perto de cinqüenta anos e não estão preocupadas com dietas.” TREVISAN, Dalton, 1997, pp.48.9). 8 9 Esta atitude, segundo Foucault é resultante de ações políticas direcionadas ao domínio do corpo por meio de controles extremamente pensados. Assim, nasce a Filantropia no século XIX, a qual assegura o estudioso francês dar-se a partir de “pessoas que vêm se ocupar da vida dos outros, de sua saúde, da alimentação, da moradia...” (FOUCAULT, 1979, p. 150). ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I É, portanto, a partir disso que os personagens masculinos da narração, na tentativa de manter seu estado de mando recorrem aos mais variados mecanismos de poder, tendo principalmente à persuasão econômica como instrumento de sedução10. E, por meio da oferta de bens materiais às suas vítimas é que eles conseguem a manipulação de suas mentes e corpos. Ficam ainda expostos nessa narrativa os ambientes onde acontecem essas seduções. São, portanto, casas acima de qualquer suspeita. Vejamos isso conforme o tom dramático que Dinorá usa para descrever os acontecimentos e o ambiente que a iniciaram no mundo do luxo e do prazer, deixando assim, vir à tona o seu espanto diante do glamour do salão, no qual viria acontecer à orgia11 de iniciação. Convidou-me uma noite – ah, terrível noite foi aquela! – para a festinha galante, espicaçando-me a curiosidade com a descrição do ambiente luxuoso e das finas maneiras dos convidados. No casarão, escondido de ciprestes, esperava-nos a uma das portas laterais o nosso anfitrião, a quem madame, entre mesuras, saudou a Excelência. Sem que deparássemos outro conviva, fomos introduzidas no salão discretamente mobiliado de uma mesa, algumas cadeiras, um canapé e uma cama de veludo encarnado, que mais parecia digna de uma rainha12. Sem querer fazer comparações, até porque esta não é a intenção desse trabalho, não foi possível deixar de lado alguns comentários a respeito das protagonistas Fanny e Dinorá uma vez que ambas narram suas experiências ao serem iniciadas no universo da prostituição. Segundo Eliane Moraes, Fanny Hill é uma narrativa contada pela heroína que dá nome a obra, que, por meio de grandes cartas narra suas experiências com diversos amantes e sua vida num bordel de luxo. Ainda segundo a pesquisadora, Fanny “termina casada com o homem que ama, desfrutando de um bom lugar na sociedade e gastando com ele a fortuna que ganhara na 10 Essa palavra está sendo empregada aqui de acordo com sua etimologia, que significa tirar do caminho, desviar (seducere). Fato este comprovado nas ações de Madame Ávila, quando apresenta Dinorá a sua Excelência. 11 Entendemos e, conseqüentemente, usamos a terminologia à maneira de Georges Bataille em seu clássico livro: O erotismo, quando este nos informa que “A orgia supõe, ela exige a equivalência dos participantes. Não somente a própria individualidade fica submersa no tumulto da orgia, mas cada participante nega a individualidade dos outros. Aparentemente, é a inteira supressão dos limites, mas não pode acontecer que nada sobreviva de uma diferença entre os seres à qual, por outro lado, está ligada a atração sexual.” (Bataille, 2004 pp. 201.2). 12 TREVISAN, Dalton, 1997, pp.48.9. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I sua antiga profissão”13. Já Dinorá, à maneira de Fanny nos mostra sua incursão primaria às tentações dos ambientes luxuoso dos bordéis brasileiros do século XX. [...] Após apresentação, madame alegou afazeres urgentes. Suplicou-me fizesse um pouco de sala a sua excelência e, conduzindo-me a um canto, perguntou se eu apreciaria como protetor tão bonito pedaço de homem. Acudi que não possuía dote e, além do mais, era muito jovem para casar. Madame retrucou que pretendia fazer a minha fortuna e, se o soubesse agradar, seria elevada à categoria de grande dama e poderia escolher jóia, vestido, carruagem.14 Para Bataille (2004), historicamente a mulher é o objeto de erotização e de desejo do homem. Elas mulheres15 se propõem como objetos ao desejo agressivo dos homens. Não existe uma prostituta em potencial em cada mulher, mas a prostituição é a conseqüência da atitude feminina. Na medida de seus atrativos, uma mulher está exposta ao desejo do homem. A menos que ela se resguarde inteiramente, por uma decisão de castidade, a questão é, em principio, a de saber a que preço, em que condições ela cederá. Mas, com as condições satisfeitas, ela sempre se dá como um objeto. A prostituição propriamente dita só introduz uma prática de venalidade. Pelo cuidado que ela dispensa a seus enfeites, pela preocupação que ela tem com sua beleza, que sua roupa realça, uma mulher se considera ela mesma um objeto, incessantemente oferecido à atenção dos homens. Da mesma maneira, se ela se desnuda, ela revela um objeto distinto ao desejo de um homem, individualmente proposto à apreciação.16 As afirmações do estudioso francês, certamente, nos levam à compreensão de que o erotismo17 é exposto como elemento de poder, deixando nas entrelinhas que o corpo feminino é instrumentalizado de significação erótica e, por isso, as prostitutas o usam de maneira a seduzir seus parceiros. “A prostituta é, com seu corpo real, a encarnação da mulher famélica de sexo, [...] prostituição nos mostra que há uma região do erotismo masculino 13 14 15 16 17 MORAES, Eliane, 1895, p. 33. Idem, 1997, p. 49 Grifo nosso BATAILLE, Georges, 2004, pp.203-4. O étimo da palavra erotismo aponta para “Eros”, palavra de origem grega que significa “amor”. No entanto, “erotismo” prende-se muito mais ao sentido sexual da ligação amorosa que ao afetivo.” FRANCONI, R. A. Erotismo e poder na ficção Brasileira contemporânea. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I totalmente estranha à mulher. Que não a interessa. Que ela aceita apenas por dinheiro, isto é, como atividade explicitamente não-erotica, profissional”.18 As palavras de Alberoni corroboram para a compreensão do drama de Dinorá ao sentir-se seduzida pelas possibilidades de se tornar alguém com posse e status de dama da sociedade. “Montar-me-ia casa e permitiria que, sentada em esplendida carruagem, me exibisse pelas avenidas. Quem sabe até me fizesse duquesa! [...] Submissa aos seus caprichos, antes que madame regressasse, jurou que da cabeça aos pés cobrir-me-ia de jóias.”19 À moda de Foucault entendemos que as relações sexuais seguem além dos prazeres as hierarquias sociais, sendo que ao homem devido ao poder que lhe é atribuído na escala social, lhe facultam o direito de ser ativo e, conseqüentemente, manipular os desejos do corpo feminino, transformando o em escravo. As práticas de prazer são refletidas através das mesmas categorias que o campo das rivalidades e das hierarquias sociais: analogias na estrutura agonística, nas oposições e diferenciações, nos valores atribuídos aos respectivos papéis dos parceiros. E pode-se compreender, a partir daí, que há no comportamento sexual, um papel que é intrinsecamente honroso e que é valorizado de pleno direito: é o que consiste em ser ativo, em dominar, em penetrar e em exercer, assim, a sua superioridade.20 Tal exercício de poder se manifesta por meio de galanteios e intencionalidades que atingem diretamente o psicológico da futura vítima. Assim, foram as primeiras ações de sua excelência na tentativa de possuir seu objeto de desejo, conforme nos narra Dinorá. Doces palavras com que acompanhava as carícias não eram suficientes para me tranqüilizar. Os dedinhos grossos e cobertos de anéis titilavam-me a nuca, desfazendo os caracóis da loira cabeleira e – coro ao confessar – proporcionado-me os primeiros arrepios de prazer. Ó Deus, tua carne é mais branca que a neve! Deixa, deixa, um beijinho só. Qual foi a minha surpresa ao reconhecer a chama da paixão na desgraciosa figura pelo revirar de olho, lânguido suspiro, respiração ofegante e calva em fogo. Tentando afasta-lo, queixei-me de ligeira enxaqueca. Cólera e desprezo eram impotentes diante daquele gladiador cego de luxaria. 18 19 20 ALBERONI, Francesco, 1986, p. 14. TREVISAN, Dalton,1997, p. 50. FOUCAULT, Michel, 1994, p. 191. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Aproveitando-se da minha agitação, quis o monstro libidinoso desfrutar-me a concha dos lábios nacarados. Gritei que planejava minha ruína.21 Com efeito, Dinorá dá os primeiros sinais de que está muito próxima de ceder aos ataques imperativos de sua excelência, mostrando-se frágil diante de tudo o que havia tramado sua protetora, Madame Ávila. Seguindo o pensamento de Foucault (1994), sobre o objeto de prazer que se torna a jovem mulher diante dos olhares masculinos, entendemos que a iniciação de Dinorá ao mundo dos prazeres é a manutenção de uma cultura falocrática, na qual o homem conta além da força física com a passividade feminina diante de afagos e elogios. Não obstante, Foucault nos assegura: “No que diz respeito à passividade da mulher, ela marca muito bem uma inferioridade de natureza e de condição; mas ela não deve ser reprovada como conduta, posto que é, precisamente, conforme ao que a natureza quis e ao que o status impõe”.22 Nesse sentido o poder de Dinorá se realiza e, conseqüentemente, se modaliza de erotismo em virtude dela pertencer a uma sociedade patriarcalista que, por sua vez está carregada de significado e de elementos simbólicos que controlam e inevitavelmente neutralizam o desejo feminino, posto que é formada para tanto. O poder do feminino se encontra expresso nos mitos, dos pagãos aos cristãos; a Bíblia traz exemplos inesgotáveis da necessidade de regular, de “proteger” as mulheres e de se proteger contra elas, que silenciosas e passivas, ameaçam a ordenação e assepsia da humanidade, sobretudo durante a menstruação e a gravidez, estados considerados impuros e impróprios, que as remetem naturalmente à “conexão” erótica.23 Como já dissemos, não é possível deixar de falar de violência, da qual será vítima a protagonista de narrativa em questão - Dinorá, moca do prazer -, pois é objeto de prazer e volúpia por parte daquele que a iniciará ao universo sexual. Usando de força, inclusive física, na tentativa de realizar seus impulsos eróticos, sua excelência transforma-se, e deixa vir à tona seu lado animal. Tal ato é comprovado no drama que a personagem apresenta. Embora demasiado logo entendemos que é importante citá-lo. 21 22 23 TREVISAN, Dalton, p. 51. FOUCAULT, Michel. 1994, BRANCO, Lúcia Castello de. 1984, p. 14. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Tão comovida, teria desmaiado se duas lágrimas providenciais não aliviassem a aflição que me consumia. Abusando de minha inexperiência, rompeu o falso gentil-homem a preciosa mantilha de Granada que me cobria os ombros resplandecentes de alvura e conspurcava-os com seus olhares impuros. Encorajado por este prelúdio, avançou para min – ai de mim! – que, possuída de terror, tombei de decúbito dorsal, tremula e palpitante sobre o canapé que ele escolhera para o nosso campo de batalha. Mãos postas, implorei que não me profanasse. (...) Meus grandes olhos verdes e cismadores, que lançavam lampejos, não intimidaram o velho corcel que tomara a brida nos dentes. Na confusão rompeu-se um alça do vestido de tafetá branco. Os cabelos esparsos – na luta eu perdera um sapatinho bordado em fio de ouro -, toda a encantadora desordem de minha pessoa excitavam a sua febre criminosa. Submissa aos seus caprichos, antes que madame regressasse, jurou que da cabeça aos pés cobrir-me-ia de jóias.24 Eis que nesse contexto surge um misto de poder, flagelação e galanteios que, certamente, leva os envolvidos a uma relação de cumplicidade e satisfação erótica, sendo que ao homem – sua excelência – é relegado papel de dominador. Por isso, o marquês de Sade dizia: “Todo homem é um tirano na cama”.25 E assim, tal atitude é “legítima” quando se trata de uma convivência sexual. Até porque o personagem masculino da trama é um cidadão da polis, conforme tratamento a ele dispensado por Dinorá e Madame Ávila, ”sua excelência” embora tratamento seja dispensado em letras minúsculas, o que pode subentender certo grau de ironia presente no discurso de cada uma. A partir do momento em que a jovem personagem passa a compreender as circunstâncias em que foi submetida, conforme mencionamos no corpo desse texto, inicia seu processo de dissimulação visando atender suas necessidades individuais. Nesse ínterim percebemos que Dinorá não consegue mais se desvencilhar dos ataques e das carícias que recebe de sua “excelência”, vindo a sentir sensações e prazeres que até aquele instante eram 24 25 TREVISAN, Dalton, 1994, p. 51. Essa afirmação é de Donatien-Alphonse-Francois, Marquês de Sade. Nasceu em 1740 em Paris e morreu em 1814, que segundo especialistas seus biógrafos terminou seus últimos dias num asilo de loucos onde esteve internado. Conforme asseguram Eliane Robert Moraes e Sandra Maria Lapiez, o maior crime, do qual Sade foi acusado e codenado “foi o estupro de uma mulher de trinta e oito anos de idade chamada Rose Keller, a quem açoitou com um ramo de árvore, fez várias incisões no seu corpo com um canivete e por fim colocou cera nas feridas.” Eis aí, segundo alguns estudiosos do assunto a origem dos termos sádico e sadismo. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I desconhecidos, por isso está a um passo da aceitação, entretanto dissimulação. “- Ai, o senhor me perde. Antes a morte!”26 Dessa maneira, nossa protagonista passa a compreender as intenções e as reações de seu corpo diante de tais ataques e, assim mostra-se cada vez mais acuada pelo “monstro” libidinoso que intenta contra sua honra. Vencida a desconfiança inicial, passando a mão de leve no meu colo de brancura imaculada, produziu-me sensações estranhas que e perturbavam, se logo não escandalizassem. Doces palavras com que acompanhava as carícias não eram suficientes para me tranqüilizar. Os dedinhos grossos e cobertos de anéis titilavam-me a nuca, desfazendo os caracóis da loira cabeleira e – coro ao confessar – proporcionando-me os primeiros arrepios de prazer27. Nessa passagem há uma descrição metafórica da iniciação sexual da protagonista. Para Bataille isso se deu porque Dinorá se tornou objeto de desejo de sua “excelência” a partir de atitudes de passividade por ela cometida. Ou seja, a personagem passa a experimentar de algo que não tinha – prazer- e por isso vai além. Embora continue achando deselegante sua “excelência”. Com efeito, ouvimos o que ela afirma sobre tal momento: “Qual foi minha surpresa ao reconhecer a chama da paixão na desgraciosa figura pelo revirar de olho, lânguido suspiro, respiração ofegante e calva em fogo.”28 Depois disso, Ela é absorvida totalmente pelo ambiente. Em seguida lhe oferecem uma substância proibida, que a fará sentir atônita e não resistirá às investidas de sua excelência. Empurrei-o violentamente, puxei o cordão da campainha, o criado acorreu pressuroso a receber as ordens de sua excelência. Quando soube o que era, ofereceu-me algumas gotas de amoníaco29 para aspirar e retirou-se no mesmo instante. Depois desta prova, senti-me tão abatida, tão lânguida e enervada que não tinha ânimo de levantar o braço – estava à mercê do impiedoso carrasco. As palavras da personagem segundo os ensinamentos de Foucault são de “docilidade” que foi alcançada através de dispositivo nada convencional. Em outros termos, 26 TREVISAN, Dalton, 1994, p. 51. TREVISAN, Dalton. 1994, p. 51. 28 Idem, 1994, p. 51. 29 Segundo Dicionário Globo, 1996, p. 42 trata de S.m. (quim.) Gás incolor, de cheiro irritante e sabor caustico. Formado pela combinação de um átomo de nitrogênio e três de hidrogênio; adj. O mesmo que amoniacal. (sin.: álcoli volátil.) (Do gr. Ammoniakon.) 27 ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I temos aí o famoso “boa noite Cinderela” que envolve a bela adolescente numa relação de submissão codifica, tendo assim, seu corpo transformado em objeto estático e permissivo. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica de poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina.” Para Branco (1984) a presença de erotismo na cultura ocidental está ligada à exploração do físico. Entretanto, a religiosidade da civilização ocidental criou um modelo a ser seguido pelas mulheres, tomando a virgem que concebeu “sem pecado” como representação. O corpo feminino segundo os preceitos das ideologias cristãs é aprimorado nos moldes de docilidade, negando-se ao prazer. “Imaculado, inativo e impassível, o corpo, na ideologia cristã, é reduzido ao estado de corpus (cadáver, em latim), em seu eterno repouso e absoluta inércia30” É importante notarmos que estes aspectos filosóficos mencionados pela pesquisadora que citamos a pouco corroboram com o que Trevisan apresenta através no discurso direto da protagonista de Dinorá, Moça do Prazer. Portanto, temos que considerar que a ficção do pai do Vampiro de Curitiba pode ser classificada como neonaturalista, pois traz à baila através de seus personagens as temáticas que são, na verdade, a vida nas sociedades civilizadas. [homossexualismo, prostituição, a histeria, o alcoolismo, etc]. Nesse momento, priorizamos a prostituição dos corpos femininos que tem em Dinorá a sua representante. Concluindo temporariamente, observamos que em Dinorá, moça do prazer Trevisan nos apresenta um retrato de uma sociedade que embora esteja vivendo temporal e espacialmente no contemporâneo, ainda utiliza paradigmas do século XVII. Vimos no decorrer da narrativa à exploração de uma jovem que foi vítima do destino e que sob a alegação da protegê-la Madame Ávila a prepara para atender os caprichos sexuais de figuras ignobéis e decadentes. Com efeito, podemos ver que a ficção do contista curitibano tem uma 30 BRANCO, Lúcia. 1984, p. 48. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I dimensão urbana, ou seja, os enredos de suas obras transitam entre o centro e a periferia de Curitiba e trazem em sua essência narrativa as pequenas tragédias que o cidadão comum da polis está sujeito diariamente. Entretanto, a correria pela sobrevivência o impede de percebêla, deixando assim um espaço aberto para àqueles que detêm o poder praticarem as ações mais vis contra o desejo e corpo feminino. Trevisan trabalha com as pequenas tragédias da vida moderna, e, por isso, sua obra vai além de padrões rígidos de criação literária. Portanto, o leitor incauto precisa se prepara para apreender a essência de sua ficção, pois, o autor apresenta em suas narrativas ambigüidades que; agradam, deliciam e, principalmente, amedrontam porque busca dialogar com ele a partir de monólogos interiores, para os quais, na maioria das vezes, esse receptor pouco afeito a desnudar-se de paradigmas estabelecidos não tem estrutura para um desafio de tão grande envergadura. Referências ALBERONI, Francesco. O erotismo. 5. ed. São Paulo: Rocco, 1997. BAKHTIN, Mikhail. O Freudismo. São Paulo: Perspectiva, 2001. BATAILLE, Georges. O erotismo. São Paulo: Arx, 2003. BRANCO, Lúcia Castello. O que é erotismo. 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ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Unidade e diversidade nas imagens nacionais em Meu querido canibal, de Antônio Torres1 Juliana de Souza Gomes Nogueira2 Paulo André de Carvalho Correia3 Roberto Henrique Seidel4 RESUMO: O presente trabalho procura da conta a forma como as imagens que fixam a idéia de nação são deslocadas pelo imaginário contemporâneo. Estas imagens serão analisadas na obra Meu querido canibal, de Antônio Torres, especificamente a partir da terceira parte da narrativa. O estudo fundamenta-se em dois marcos teóricos: a) no conceito de imaginário de Gaston Bachelard, segundo o qual o imaginário é a faculdade de deslocar imagens; e b) no conceito de nação como uma construção discursiva, segundo Stuart Hall. Objetiva-se analisar de que modo as imagens que representam a idéia de nação são problematizadas na narrativa contemporânea pela dialética identidade/alteridade que dilacera o discurso da unidade nacional. PALAVRAS-CHAVE: imagens, imaginário, identidade e alteridade. ABSTRACT: The present work aims analyze as the images that fasten a nation idea are dislocated by the imaginary contemporary. These images will be analyzed in Antônio Torres, “My Dear Cannibal”, specifically from the third part of the narrative. The study it bases in two theoretical landmarks: a) the concept of imaginary of Gaston Bachelard, according to which the imaginary is the faculty of dislocating images; and b) of the nation concept as a discursive construction that produce a representation, according to Stuart Hall. It objectifies analyze that way the images that represent the traditional idea of nation are problematized in the contemporary narrative by the dialectic of the identity/alterity that lacerates the speech of the national unit. KEY WORDS: images, imaginary, identity/alterity. 1 2 3 4 Uma primeira versão do presente texto foi apresentada em 28 de agosto de 2007, no Sethil, Seminário de História Literária, promovido pela Universidade Estadual do Sudoeste Baiano – UESB. Agradecemos ao Prof. Dr. Cláudio Cledson Novaes, da Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS, pela leitura e orientações para aquela primeira versão. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural da Universidade Estadual de Feira de Santana – PPGLDC/UEFS, integrante do Grupo de Pesquisa UEFS/CNPQ Descaminhos do Viandante: Espaço Nacional, Fronteiras e Deslocamentos na Obra de Antônio Torres. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural da Universidade Estadual de Feira de Santana – PPGLDC/UEFS, integrante do Grupo de Pesquisa UEFS/CNPQ Descaminhos do Viandante: Espaço Nacional, Fronteiras e Deslocamentos na Obra de Antônio Torres. Professor Adjunto de Teoria Literária do Curso de Letras, da Especialização em Estudos Literários e do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural da Universidade Estadual de Feira de Santana – PPGLDC/UEFS. Coordenador do Grupo de Pesquisa UEFS/CNPQ Descaminhos do Viandante: Espaço Nacional, Fronteiras e Deslocamentos na Obra de Antônio Torres. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I INTRODUÇÃO Desde o modernismo, a literatura brasileira vem, com maior intensidade, relendo e deslocando o discurso de formação política e sociocultural da nação. No primeiro momento, como aponta Bernd (2003), este processo deu-se através da dessacralização, que corresponde, segundo Glissant (apud BERND, 2003, p. 20), “a um pensamento politizado, equivalendo a uma abertura contínua para o diverso, território no qual uma cultura pode estabelecer relações com outras”. Ainda segundo a autora, este processo de dessacralização — junto com o processo de sacralização — compõem uma espécie de binômio que caracteriza a formação da literatura brasileira: “A formação da literatura caracteriza-se, pois, por uma espécie de errância por movimentos alternados de predominância ora de forças sacralizantes, ora de forças dessacralizantes” (BERND, 2003, p. 20). A relação literatura brasileira e identidade nacional é flagrante na dinâmica de nossa produção literária (PEREIRA, 1991, p. 3). Esta relação, como afirmou Cândido (1981, p. 23), consubstancia-se a partir do arcadismo, quando nossa literatura se configura enquanto um sistema articulado, relacionando, sob a ótica do racionalismo, as instâncias autor-obrapúblico. Esta relação, segundo Cândido, é marcada pela tensão dialética entre o localismo e o cosmopolitismo, ou seja, entre a função sacralizadora e a função dessacralizadora. Estas funções, por sua vez, serão intensamente tencionadas pela narrativa contemporânea. Só bem recentemente começa[-se] a operar a síntese — ainda inacabada — deste jogo dialético, associando o resgate dos mitos à sua constante desmistificação, o redescobrimento da memória coletiva a um movimento contínuo de textos, o que equivale a um perseverante questionamento de si mesmo [...] (BERND, 2003, p. 20). Neste processo recente de releitura, o imaginário contemporâneo vem deslocando as imagens que fixam uma idéia de nação, buscando justamente este questionamento de si mesmo, revelando os mecanismos ideológicos presentes na narrativa da identidade cultural. O romance Meu querido canibal, de Antônio Torres, pode ser inserido neste processo de ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I revisitação do discurso nacionalista, realizando um deslocamento que cria um espaço de leitura em que são desveladas as diferenças no discurso de unidade nacional, pautado em relações de poder entre as classes sociais (PEREIRA, 1991, p. 1). Sob o foco de um narrador comprometido com a recuperação da memória indígena, o romance traz à cena a problemática da representação nacional e, por intermédio da trama histórico-ficcional, relê o discurso historiográfico oficial, tensionando-o e revelando, sob a suposta idéia de unidade nacional, a tentativa de apagamento das diferenças. Segundo Olivieri-Godet (2007, p. 1), Em Meu querido canibal, narrativa que recorre largamente à intertextualidade para reconstruir, num estilo ao mesmo tempo dramático e paródico, a história do Rio de Janeiro no século XVI, centrada no episódio da conquista da cidade pelos franceses (15551560), trata-se claramente de produzir um texto visando “corrigir” uma imagem do índio Cunhambebe, marginal e marginalizada, omitida ou deformada pela versão oficial da história, transformando Cunhambebe em herói nacional. É um narrador apaixonado e indignado que denuncia o apagamento do lugar do índio na história e na sociedade brasileiras e que empreende a construção desse herói marginal num tom polêmico e provocador que rasura as páginas da história. O romance trilha um caminho percorrido por inúmeras narrativas latino-americanas, o da resistência às representações oficiais e muitas vezes eurocêntricas da história, uma espécie de antihistória construída a partir do ponto de vista dos vencidos. Esta “correção” da imagem do índio, como aponta a autora acima, recorre muitas vezes ao diálogo com outros textos, com outros signos, deixando explícito o caráter híbrido, heterogêneo e alogêneo na narrativa torresiana, conforme nos aponta Seidel (2006, p. 137). Neste sentido, pela heterogeneidade de formas e vozes que absorve e potencializa, Meu querido canibal se enquadraria no que Roland Walter (2002) chamou de transwriting (em português: trans-escrita) — termo utilizado por este autor no contexto da análise da produção literária latino-americana e chicana. Destarte, a trans-escrita, segundo Seidel (2006, p. 142-143), seria [...] um tipo de escrita que se move por através de um espaço intersticial dentro de e entre fronteiras, atravessando territórios culturais compostos por múltiplas zonas de contato, esforçando-se para ir mais além desse limbo cultural intermédio e assim tentar mudá-lo. A “trans-escrita” representaria, dessa forma, um esforço na direção do ato contínuo de des-escrever, reescrever o já antes escrito, de descrever e escrever o novo a partir da experiência vivida nos ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I distintos locais intermediários em constante processo de transformação nos limiares ambíguos entre nações, regiões, culturas, cosmovisões e identidades. Destarte, como trans-escrita é que Meu querido canibal realiza o deslocamento das imagens nacionais fixas, des-escrevendo e reescrevendo por entre o discurso que fixa a idéia de nação, de unidade nacional e de identidade nacional. Devemos agora ver como este processo se dá mais propriamente a partir da imaginação literária. 1 APORTES DE VIAGEM Gaston Bachelard, no ensaio O ar e os sonhos — que põe em foco a imaginação literária —, estabelece uma relação entre a imaginação e a mobilidade, afirmando que “o vocábulo fundamental que corresponde à imaginação não é imagem, mas imaginário (BACHELARD, 1990, P. 1). Pois a imaginação é a faculdade de deformar imagens “[...] é sobretudo a faculdade de libertar-nos das imagens primeiras, de mudar as imagens” (Idem, p. 1). Ainda segundo o autor, “uma imagem que abandona seu princípio imaginário e se fixa numa forma definitiva assume pouco a pouco as características de uma percepção presente” (Idem, p. 1). O que nos interessa nessa relação entre a imaginação e a mobilidade é o dinamismo que não permite que uma imagem se fixe numa forma definitiva. Por intermédio do imaginário (individual e coletivo ao mesmo tempo), a imagem vai ser sempre algo aberto, algo que está em processo. O imaginário, portanto, desloca o conceito de identidade nacional, pois, como afirma Stuart Hall (2005, p. 48), esta é “formada e transformada no interior da representação, isto é, constitui-se como unidade discursiva, simbólica”. Hall desvenda o processo narrativo da identidade nacional e demonstra que esta não está livre do jogo de poder, de divisões e contradições internas de lealdade e de diferenças sobrepostas. Imaginário e identidade, portanto, são dois processos que se constituem enquanto abertura. O imaginário, na literatura brasileira contemporânea, caracterizar-se-ia como o pólo que mobiliza as diversas imagens e identidades nacionais. Far-nos-ia perceber a identidade ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I como processo, como movimento, como lugar de confluência do múltiplo e do diverso (BERND, 2003, p. 28). Roland Walter já nos assinalou, nas obras do autor aqui estudado e nas obras de João Ubaldo Ribeiro, a entre-condição ou o limiar da cultura e identidade brasileira, [um] espaço intersticial [...] caracterizado por tensão e ambigüidade precisamente porque representa o limite do “entre” da hegemonia, uma zona híbrida “onde a construção de um objeto político que é novo, nem um e nem outro”, significa a transcendência de polaridades e a possibilidade de formular novos sistemas e ordens sociais (WALTER, 2002, p. 11-12). Neste espaço intersticial, por Bhabha denominado de inbetweenes (entre-lugar), Antônio Torres instala sua narrativa, “lascando” o discurso oficial da história, desvelando, sobre a homogeneidade do discurso historiográfico oficial, as heterogeneidades agentes na cultura brasileira. 2 VIAGEM A MEU QUERIDO CANIBAL O livro, Meu querido canibal (2000), do baiano Antônio Torres, narra a luta e a dizimação indígenas da costa paulista e carioca no séc. XVI. É narrada a história de Cunhambebe, do chefe da Confederação dos Tamoios — união dos povos que viviam ao longo da costa para lutarem contra a dominação do conquistador português, em uma guerra que ocorreu ao longo dos anos de 1565-67. Na obra, além disso, o autor faz uma leitura mais acurada deste choque cultural entre portugueses e tupinambás, bem como ainda referindo tangencialmente a presença dos franceses, enquanto aliados dos tupinambás e inimigos do portugueses. Com esta obra, de forma geral, está-se dentro do que as teorias pós-coloniais têm colocado como uma de suas ênfases de trabalho, notadamente, o descortinamento da manipulação da história por parte do colonizador. Por intermédio dessa manipulação foi possível fazer valer apenas um dos pontos de vista acerca desse choque cultural entre o ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I colonizador e as culturas autóctones, o que tornou possível a omissão do genocídio de povos inteiros1. Dessa relação entre literatura e história como meios de representação social, nasce a possibilidade de se desconfiar dos discursos hegemônicos, sobretudo o da unidade nacional. A obra de Torres é dividida em três partes: I — O Canibal e os Cristãos, II — No princípio Deus se chamava Monan e III — Viagem a Angra dos Reis. Neste trajeto reflexivo, nosso foco centrou-se na terceira parte do romance: “Viagem a Angra dos Reis ou: Não enterre meu coração nas curvas destas estradas, florestas e águas, outrora de sonho e fúria”, que relata a viagem que o narrador faz, já no limiar do sexto século do descobrimento do Brasil, “em busca das trilhas perdidas, trilhas por onde andara seu querido canibal Cunhambebe”. Nesta seção, o narrador torna-se personagem de sua própria narrativa, deslocando-a até si mesmo enquanto entidade discursiva. Ele (o narrador) coloca em questão sua própria identidade, desvelando os processos discursivos que a constituem. Se, nas duas primeiras seções do livro, mesmo que se implicasse, ainda o líamos como uma entidade discursiva à parte, que, distante, seleciona os fatos que vai narrar; nesta última seção, ele se torna objeto da própria narrativa, solapando o conceito de narrador do discurso positivista da história oficial. Isso nos revela o processo dialético que perpassa todo o romance. O processo que põe em tensão permanente o discurso de unidade nacional e as diferenças costuradas por este discurso. Este processo nos aponta a identidade como um processo contínuo de identificação, como “algo que vive na tensão, em uma permanente incompletude” (BERND, 2003, p. 27). Mostra-nos ainda que uma representação nunca se torna fixa se nasce de uma “ação imaginante”, pois nesta a forma em que se apresenta um acontecimento artístico nunca constitui apenas uma espécie de veículo para a transmissão de algum conteúdo que independente dela pudesse existir. Pelo contrário, a forma incorpora o caráter híbrido sob tensão da narrativa e expõe sua própria heterogeneidade sob aparente unidade. Comunicandonos suas ordenações, em Meu querido canibal a forma nos comunica sua razão de ser e seu 1 Acerca dos métodos de dominação, assimilação, aculturação e extermínio, especificamente neste contexto dos tupinambás, veja-se interessante trabalho recente de João Adolfo Hansen (2006). ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I sentido, num processo estético-dialético de revisitação da história indígena pelo imaginário contemporâneo. A viagem narrada no capítulo é uma metáfora e nos sugere a mobilidade, requisito fundamental para que uma imagem não se cristalize. Se não há mudança de imagens, união inesperada das imagens, não há imaginação, não há ação imaginante. Se uma imagem presente não faz lembrar uma imagem ausente, se uma imagem ocasional não determina uma prodigalidade de imagens aberrantes, uma explosão de imagens, não há imaginação. Há percepção, lembrança de uma percepção, memória familiar, hábito das cores e das formas (BACHELARD, 1990, p. 1). Consensualmente, criar é, basicamente, formar. Nós nos movemos entre formas (imagens). Infelizmente, a maioria delas “abandona seu princípio imaginário e se fixa numa forma definitiva, assume pouco a pouco as características da percepção presente” (BACHELARD, 1990, p. 2). É assim que a história indígena, recontada pela literatura, revela o esforço do sujeito contemporâneo em reconhecer o outro, reconhecer a alteridade exterior, ao mesmo tempo em que revela os paradoxos da sociedade ocidental. Como bem pontuou Todorov (1983, p. 245), “os representantes da civilização ocidental já não acreditam tão ingenuamente em sua superioridade”. Simultaneamente, o elemento indígena já não é tão visto como vítima. Para deslocar a posição de inércia relegada ao índio e fazê-lo ocupar um lugar de anti-herói moderno, mais humano, Antônio Torres traça no capítulo “Viagem a Angra dos Reis” um trajeto que engloba desde os lugares outrora habitados pelos índios até os locais com fontes historiográficas sobre os feitos e acontecimentos envolvendo os indígenas. A narrativa da identidade passa pela narrativa da nação, pelo discurso historiográfico. Já sabemos do apagamento que fez este discurso, ao longo de sua narrativa, das diferenças que nos constituem. Em nossa história oficial, não consta nenhum herói índio ou negro. Nossas datas históricas comemoram feitos do colonizador ou de seus descendentes. Só recentemente vemos começar algumas iniciativas que mudem isso um pouco: a instituição do dia da consciência negra, a introdução da história e da cultura dos afro-brasileiros nos currículos escolares, etc. O discurso historiográfico oficial sempre teve uma função ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I sacralizante, que tende à construção de uma identidade que circunscreve a realidade a um único quadro de referências, a história dos vencedores, a do homem branco cristão europeu. Relendo a historiografia brasileira, Antônio Torres opta por problematizar a visão do índio como um herói humano. Para tanto, o narrador coloca em cena um discurso polifônico mais simpático aos franceses que aos portugueses e que se valida pela incursão histórica realizada em documentos de viajantes europeus, na terceira parte da narrativa, sobretudo, na coleção Les vrais portraits, do francês e religioso André Thevet. Nesta obra, sobre o herói Cunhambebe está destacado: “[...] foi hóspede de Villegagnon por trinta dias, com todas as honras e pompas de chefe de Estado, de rei do Brasil [...]” (p. 30)2. 3 A HISTÓRIA E A FICÇÃO NAS TRILHAS DE CUNHAMBEBE O primeiro capítulo da seção III do romance de Torres — “Em busca das trilhas perdidas” — traz o relato do trajeto do narrador até a Rodoviária (ícone desta viagem ao Brasil por se refazer) para iniciar o que ele chama de “programa de índio”: recompor as trilhas de seu herói Cunhambebe. Este trajeto do narrador não é apenas um trajeto espacial, mas espaço-temporal, pois ao mesmo tempo em que narra cronologicamente o trajeto do narrador até a Rodoviária, efetua um recuo temporal. Neste trajeto, o narrador desloca as imagens nacionais, revelando a “colcha de retalhos” sob a idéia de unidade nacional, deslocando o discurso historiográfico oficial, porque mobiliza o imaginário através da anacronia “passado/presente”, fazendo falar, nas suas entrelinhas, a diferença que tentara apagar. O segundo parágrafo do capítulo já nos evidencia isso: Muita água rolou debaixo das pontes destes rios e mares, pensa o homem que saiu de casa nessa manhã ensolarada, deixando para trás os alfarrábios da sua consumição — pilhas aos montes de páginas ensebadas —, nessa perquirição insana feita de tralhas, atrás da história das batalhas perdidas, datas exatas, nomes corretos, mitos, fábulas. Em busca, principalmente isto, da história dos que aqui estavam quando os brancos chegaram, e com começo, meio e fim. Até aqui, só tem encontrado retalhos, fragmentos, e sempre com a indefectível ressalva: “presumivelmente foi assim”. Foi? Não foi? Às 2 Todas as citações do livro de Antônio Torres serão indicadas tão somente pelo número da página. ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I vezes chega a parecer que os índios nem existiram. Vai ver foram só um delírio dos europeus. Personagens de suas ficções (p. 117). Copacabana (outro ícone do cosmopolitismo) é o “tropos” de onde o narrador começa seu deslocamento, brincando com um dos elementos que, segundo Chauí (2000), constitui o mito fundador da nação: a consagração da natureza. Copacabana, enquanto paraíso terrestre referendado pelo mito fundador é colocado como palco de embates desde os quinhentos anos. Se antes o embate era travado entre colonizadores e colonizados, agora o é entre traficantes e traficantes, traficantes e Estado. Copacabana, bairro da cidade do Rio de Janeiro, funciona como um “tropos” dialético, no sentido de por em tensão dois pólos: a cidade como sentido de lugar, definido por Marc Augé (apud GOMES, 1999, p. 223), como identitário, relacional e histórico; e a cidade, como espaço de desenraizamento do sujeito que aponta para a desconstrução do sentido de nacionalismo, como nos afirma Gomes (Idem, p. 130): [Os] cenários urbanos e rarefeitos [...] apontam para a desconstrução do sentido de nacionalismo, marcam um número expressivo de narrativas contemporâneas que sinalizam a reação a qualquer perspectiva de se estabelecer uma identidade nacional una e inquestionável para a literatura, a partir das cidades. A primeira parada do narrador é na esquina entre a rua chamada Sá Ferreira com outra chamada Bulhões de Carvalho. “Já com uma nova pergunta na cabeça: quem foram, afinal, estes homens chamados Sá Ferreira e Bulhões de Carvalho? E por que não havia nomes de índios nas ruas da cidade dos tupinambás?” (p. 119). A esquina é a metáfora do deslocamento, lugar de cruzamentos, um entre-lugar em que a memória do colonizador que permanece no nome das ruas é resgatada pelo discurso do narrador, não para deixá-la intacta, mas para delas fazer aflorar a memória do colonizado. O que esconde a referência à esquina no trajeto do narrador? Talvez a proposta de pensar a identidade como uma zona aberta ao múltiplo e o diverso, como base da (re)elaboração identitária. Outro trecho que nos ilustra o trajeto espaço-temporal do narrador é quando, no táxi, ele entra na Avenida Princesa Isabel e pára no primeiro sinal. A avenida, atulhada de vendedores de bugigangas, recebe o nome da Princesa que entrou para a história do país por ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I ter sido quem decretou a abolição da escravatura, a que “libertou” os escravos. Aí o narrador brinca e insere seu relato que relativiza o discurso da história oficial e tensiona o presente: Livres, os escravos invadiram as ruas do Rio de Janeiro, sem saber o que fazer de si mesmos. Agora, tanto tempo depois, as ruas não estariam atulhadas de pretos, mulatos, morenos, amarelos e brancos em condições semelhantes? (p. 123). Seguindo seu trajeto, o narrador passa pela enseada de Botafogo. Este relato segue-se ao relato do assalto dos turistas franceses, por um falso taxista. Estes dois relatos põem em tensão dois elementos da construção identitária da nacionalidade brasileira: a consagração da natureza através da identificação do Brasil com o Paraíso Terreal, conforme assinalou Sergio Buarque de Holanda, em Visão do Paraíso (2004), e a cordialidade do povo brasileiro. Nos vemos e nos mostramos como um país que é um “paraíso tropical”, lugar de maravilhas naturais. Mas neste “paraíso tropical” a violência a cada dia se torna mais banal. Na narrativa, turistas que chegam para aproveitar o éden abaixo da linha do equador são seqüestrados, assaltados e mortos. Este evento, portanto, coloca em cheque dois clichês caros para o discurso hegemônico de nacionalidade brasileira: o primeiro, de que vivemos em um paraíso; e o segundo, de que o brasileiro é um povo cordial. Afinal, que cordialidade há em usar o táxi como meio para assaltar turistas e matá-los? O tema paradisíaco e sua associação à imagem do Brasil é longamente explorado por Sergio Buarque de Holanda. Em Visão do Paraíso, o autor trata, principalmente, da formação dos motivos edênicos no descobrimento e na colonização do Brasil, justapondo, para tal, lendas e verdades transfiguradas pelo imaginário dos séculos XV, XVI e XVII, o autor analisa como a busca pela “idade de ouro”, utopia recessiva, coloca, nas novas terras, a ocidente, o paraíso terreal: “A idéia de que do outro lado do Mar Oceano se acharia, se não o verdadeiro Paraíso Terreal, sem dúvida um símile em tudo digno dele, perseguia, com pequenas diferenças, a todos os espíritos” (HOLANDA, 2004, p. 184). O narrador segue, então, pelo Flamengo, onde há um monumento erguido em homenagem a Estácio de Sá, do qual contam a história de que foi flechado no rosto e morreu um mês depois. Estácio de Sá é lembrado como herói. O monumento em sua homenagem ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I funciona como elemento sacralizante da identidade cultural, construída através da ótica dos vencedores. Mas aí o narrador opera seu deslocamento: “Bem pelo visto, ou melhor, pelo que não se vê... Aqui também os mais velhos do lugar tiveram sua história empurrada para debaixo de um tapete asfáltico” (p. 139). O segundo capítulo da seção, “Programa de índio”, que relata o trajeto do narrador até Angra dos Reis, em busca de refazer as trilhas do querido canibal, traz uma epígrafe com o poema de Adriano Espínola, o qual opera também um deslocamento espaço-temporal e nos põe diante da tensão apagada pelo discurso da história oficial: “Atenção, não se abale:/assassinato e roubo/há 500 anos”. Enquanto segue seu trajeto espaço-temporal na viagem de ônibus, o narrador, jogando com a intertextualidade, desvela o processo de apagamento das diferenças, relatando o discurso sobre a origem de Angra dos Reis: [...] Afinal, por aqui a história que se conta começa assim: Angra dos Reis fica na baía de Ilha Grande, no litoral sul do Estado do Rio de Janeiro, com mais de duas mil praias, centenas de ilhas, rios, cachoeiras e o verde do mar. Foi descoberta pelo navegador português André Gonçalves em 1502. Angra quer dizer “pequena baía”. Reis porque foi descoberta no dia dos Santos Reis Magos (p. 151). O terceiro capítulo, “Nenhum índio nas ruas”, relata a chegada do narrador a Angra, sob um sol nauseante, e o encontro, na Casa de Cultura, com um personagem que busca reescrever/reimaginar a memória perdida de Cunhambebe. Na primeira parte, ele joga com o extermínio indígena e sua própria identidade, formada também pelo fracasso dos indígenas. Sob o sol escaldante, constata: “nenhum índio nas ruas” (p. 157), mas retrata-se: “tem um sim senhor. Você. A errar por ruas selvagens como um espectro tupinambá, um herdeiro de seus fracassos” (p. 157). Na segunda parte, o narrador situa a cena na “Casa de Cultura”. É lá que ele descobre que “nem toda história está perdida”. Em seu contato com Délcio, descobre que a cidade está preocupada em “resgatar” a memória dos que viviam antes da chegada dos portugueses. Esta preocupação com o “resgate da memória” do índio abre espaço para o questionamento da memória preservada pela história oficial. Junto com a cena anterior, revela ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I o que estamos discutindo ao longo deste trabalho, a tentativa de apagamento da diferença, pelo discurso da história oficial, na construção da identidade nacional. O capítulo “A expedição”, narra as andanças do narrador nas trilhas de seu querido canibal. O título do capítulo sugere novo movimento, processo. A busca pela trilhas de Cunhambebe é a reescrita regressiva de uma memória que não foi preservada pela história oficial. Concomitantemente, é discutir o problema da alteridade, entendendo os mecanismos que forjaram uma identidade nacional una, etno e eurocêntrica; e perceber a identidade como lugar de confluência do múltiplo (BERND, 2003, p. 28). Portanto, algo que vive na tensão. A querela para saber por que o lugar que todos conheciam como Frade também era chamado de Vila de Cunhambebe é ilustrativa neste sentido. Há nela a memória do branco, autorizada pelos livros de registro oficiais e a memória do índio que não foi registrada. Os dois topônimos se entrecruzam em tensão, como em tensão se constituem estes dois sistemas simbólicos na constituição da identidade: um, a história dos vencedores que se estabelece tentando apagar as diferenças; o outro que resiste sob um “tapete” para o qual foi jogado, se inscrevendo nas entrelinhas do discurso da história oficial. Após releituras da história da colonização do Brasil, apresentando, como que em flashes, alguns fatos significativos, embora pouco conhecidos, da negação da cultura indígena e que fazem parte do passado e do presente nacional, o narrador, no último capítulo da seção e do livro, narra-nos a declaração de uma autoridade portuguesa em sua chegada ao Brasil: “Não vamos discutir História. Isto será perda de tempo”. Como bem nos lembra o narrador, tal atitude nos lembra a atitude dos jesuítas com uma espada na mão e uma cruz na outra. Discutir a história é discutir o processo da formação identitária brasileira, abrir-se à confluência do múltiplo. E tencionar o discurso que tenta apagar as diferenças em vista de uma certa unidade nacional, produzida, em nosso caso, sob a ótica dos vencedores. “Ora, pois, pois. Perda de tempo para quem, cara-pálida?” (p. 183). CONSIDERAÇÕES FINAIS ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I Meu Querido Canibal se insere no contexto das narrativas que buscam interrogar as relações entre a literatura e a história. Segundo Olivieri-Godet (2007, p. 1): “O romance trilha um caminho percorrido por inúmeras narrativas latino-americanas, o da resistência às representações oficiais e muitas vezes eurocêntricas da história, uma espécie de anti-história construída a partir do ponto de vista dos vencidos”. O que nos leva a afinar o romance com o pensamento de Homi Bhabha, segundo o qual “as culturas nacionais estão sendo produzidas a partir da perspectiva dos vencidos” (BHABHA, 2005, p. 21). A denúncia explícita ao apagamento das diferenças e o trabalho da imaginação e reescrita da memória do vencidos faz da narrativa um tropos de tensão. Enquanto sistema simbólico, de intercâmbio de sentidos, o romance produz um espaço para pensarmos a narrativa da identidade cultural brasileira como diversa e múltipla, na qual confluem diversos matizes culturais numa permanente troca de sentidos. O entrecruzamento de ficção e história no romance é o que constrói este espaço de confluência do múltiplo e do diverso. É este entrecruzamento que faz aflorar das teias do discurso historiográfico oficial a memória dos vencidos. Como afirma o narrador, da história de Cunhambebe: até aqui, só tem encontrado retalhos, fragmentos, e sempre com a indefectível ressalva: “Presumivelmente foi assim”. Foi? Não foi? Às vezes chega a parecer que os índios nem existiram. Vai ver foram só um delírio dos europeus. Personagens de suas ficções (p. 117). Meu querido Canibal convida-nos, com um novo olhar ideológico, a uma reflexão sobre a narrativa da história oficial, sobre as imagens que fixam uma idéia de nação, que constituem uma identidade cultural, para nos revelar o que afirma Stuart Hall (2005, p. 65): “As identidades nacionais não subordinam todas as outras formas de diferença e não estão livres do jogo de poder, de divisões e contradições internas de lealdade e de diferenças sobrepostas”. Meu querido Canibal faz aflorar, das teias do discurso da unidade nacional, as diferenças que este discurso busca costurar numa única identidade, sobretudo porque o seu narrador, em vista do apagamento que se operou em torno da identidade indígena, canibaliza ANO 01 - NÚMERO 02 Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I antigos relatos históricos e narrativas de viagens, ou busca, pelo Rio de Janeiro atual, a memória coletiva de um povo que integra a problemática da identidade brasileira. REFERÊNCIAS BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento. São Paulo: Perspectiva, 1990. BERND, Zilá. Literatura e identidade nacional. 2. ed. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2003. CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981, v. 1. CHAUÍ, Marilena. 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