linguagens: letra, imagem e som - Tabuleiro de Letras

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linguagens: letra, imagem e som - Tabuleiro de Letras
Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
LINGUAGENS: LETRA, IMAGEM E SOM
setembro/2009
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
REITOR
Lourisvaldo Valentim da Silva
VICE-REITORA
Amélia Tereza Santa Rosa Maraux
PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE GRADUAÇÃO – PROGRAD
Mônica Moreira Oliveira Torres
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO – PPG
Wilson Roberto de Mattos
PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO – PROEX
Adriana Santos Marmori Lima
PRÓ-REITORIA DE ADMINISTRAÇÃO – PROAD
Mirian de Almeida Costa
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS – PPGEL
Profa. Dra. Márcia Rios da Silva
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Prof. Dr. João Antônio de Santana Neto
Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Profa. Dra. Verbena Maria Rocha Cordeiro
Coordenadora da Linha de Pesquisa Leitura Literatura e Identidades
Profa. Dra. Jaciara Ornélia Nogueira de Oliveira
Coordenadora da Linha Pesquisa Linguagens, Discurso e Sociedade
REVISTA TABULEIRO DE LETRAS
Editor-Chefe: Prof. Sílvio Roberto dos Santos Oliveira
COMISSÃO EXECUTIVA
Profa. Dra. Lígia Pellon de Lima Bulhões
Profa. Dra. Norma da Silva Lopes
Prof. Dr. Sílvio Roberto dos Santos Oliveira
Profa. Dra.Verbena Maria Rocha Cordeiro
Prof. Marcos Antonio Maia Vilela (Mestrando PPGEL – UNEB)
CONSELHO EDITORIAL
Prof. Dr. Alan Norman Baxter (UMAC - Universidade de Macau)
Profa. Dra. Elza Miné (USP)
Profa. Dra. Elizabeth Ramos (UFBA)
Profa. Dra. Emília Helena Portella M. de Souza (UFBA)
Profa. Dra. Esther Gomes de Oliveira (UEL)
Profa. Dra. Ceila Ferreira Martins (UFF)
Prof. Dr. César Nardelli Cambraia (UFMG)
Profa Dra. Denise Barata (UFRJ)
Prof. Dr. Diógenes Cândido de Lima (UESB)
Prof. Dr. José Augusto Costa Avancini (UFRGS)
Profa. Dra. Vera Teixeira de Aguiar (PUC - RS)
Prof. Dr. Leopoldo Comitti (UFOP)
Profa. Dra. Maria Célia Lima-Hernandes (USP)
Profa. Dra. Maria da Conceição Fonseca da Silva (UESB)
Profa. Dra. Maria de Lourdes Crispim (UNL - Universidade Nova de Lisboa)
Profa. Dra. Maria Teresa Gonçalves (UFRJ)
Prof. Dr. Sebastião Carlos Leite Gonçalves (UNESP)
Profa. Dra. Tânia Maria Alckimim (UNICAMP)
APRESENTAÇÃO
Prezados leitores
No ar, a revista eletrônica TABULEIRO DE LETRAS, criada pelo Programa de PósGraduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia.
Com seus tabuleiros, as “baianas do acarajé”, vendedoras de quitutes da culinária
afrobaiana, encontram-se espalhadas pela cidade do Salvador. Essas iguarias, preparadas em
segredo, ficam expostas no tabuleiro, como um mosaico, cujas peças serão compostas por
seus apreciadores.
Como um mosaico, a revista TABULEIRO DE LETRAS abriga textos de autores,
com filiações teóricas distintas, que concebem a linguagem em sua heterogeneidade: de
sujeitos, práticas e valores.
As peças desse TABULEIRO devem montar um jogo do conhecimento que
desestabilize as fronteiras rígidas dos campos disciplinares, pelo entendimento de que os
saberes estão em movimento constante.
TABULEIRO DE LETRAS: signos, dobras da cultura em espaços de troca e
negociação.
Márcia Rios da Silva
Coordenadora do PPGEL
LINGUAGENS: LETRA, IMAGEM E SOM
Editor-Chefe: Prof. Sílvio Roberto dos Santos Oliveira
SUMÁRIO
VOLUME 02 – setembro/2009
GUERREIRA DAS LETRAS ANGOLANAS: Entrevista com Isabel Ferreira
Mayrant Gallo – Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
ARTIGOS:
I - ESTA TERRA NÃO É MINHA, MAS EU ME AFOGO NELA: CONSIDERAÇÕES
SOBRE O MAL-ESTAR INGLÊS
Alléx Leilla - Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO-SSA)
II - LEITURA E ESCRITA: PROCESSOS DE AUTORIA E CO-AUTORIA
Ana Lúcia Gomes da Silva - Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
III - DA VIDA RASGADA. IMAGENS E REPRESENTAÇÕES SOBRE O NEGRO EM
MADAME SATÃ
Ari Lima - Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
IV - DE RUÍNAS E RECOMEÇOS: RASURANDO OS PARADIGMAS DA
MODERNIDADE
Iraci Simões da Rocha - Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
V - INTERDISCURSIVIDADES: BASES CONCEITUAIS PARA ANÁLISES
CRÍTICAS DO DISCURSO.
Licia Soares de Souza - Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
VI - A RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA COMO TEMA NA LITERATURA
INFANTO-JUVENIL DE REGINALDO PRANDI
Lidiane Neves Rodrigues - Universidade Federal da Bahia (UFBA)
VII - A GALERIA DOS DESVALIDOS EM CHICO BUARQUE E MANUEL
BANDEIRA
Luciano Marcos Dias Cavalcanti – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
VIII - O HOMEM “SUAVE”? OS ITALIANOS RE-INTERPRETAM O BRASIL
Paolo Spedicato
IX - DINORÁ: A INOCÊNCIA DESPEDAÇADA NO SILÊNCIO DA TRAGÉDIA
Robério Pereira Barreto - Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
X - UNIDADE E DIVERSIDADE NAS IMAGENS NACIONAIS EM MEU QUERIDO
CANIBAL, DE ANTÔNIO TORRES
Juliana de Souza Gomes Nogueira – Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
Paulo André de Carvalho Correia – Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
Roberto Henrique Seidel – Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
ANO 01 - NÚMERO 02
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
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GUERREIRA DAS LETRAS ANGOLANAS
(Entrevista com a escritora Isabel Ferreira)
Mayrant Gallo
ELA
É ANGOLANA, ROMANCISTA E POETISA.
ANGOLANAS.
JÁ
FOI GUERRILHEIRA E HOJE É UMA GUERREIRA DAS LETRAS
ELA É ISABEL FERREIRA, AUTORA DO ELOGIADO O GUARDADOR DE MEMÓRIAS, ROMANCE SOBRE
“AS MULHERES ANGOLANAS QUE SE VERGAM, MAS NÃO QUEBRAM”. ISABEL VEIO A SALVADOR DUAS VEZES E
AFIRMA QUE, AQUI, SENTE-SE
“COMO
QUEM REENCONTRA UM IRMÃO OU IRMÃ PERDIDOS NO MATO”.
FELIZES
DE NÓS QUE A ACHAMOS E A CONVENCEMOS A NOS DAR ESTA ENTREVISTA.
Mayrant Gallo: Qual a sua expectativa nesta sua segunda passagem por Salvador? O
que a trouxe aqui e o que, na cidade, culturalmente, mais a impressionou?
Isabel Ferreira: Sempre que vou a um país, ou regresso a um local, onde já estive, considero
uma dádiva ou benção do Divino. Voltar a ver as pessoas que estabelecem ou estabeleceram
um vínculo comigo é sempre uma expectativa agradável. Aqui em Salvador sinto-me como
quem reencontra um irmão ou irmã perdidos no mato...
MG: Não li seu livro ainda. Então, gostaria que você falasse dele como um ator ou
diretor de cinema comenta seu filme para o público, a fim de despertar o interesse do
leitor. Qual o seu assunto? Passa-se onde e em que época? Quem são os personagens?
Que discussões ele promove?
IF: O cenário é Luanda; as personagens, o seu povo. O enredo ou a trama é o modo de vida
dos angolanos, o desenrasque, a vontade de viver, associada à vontade de enriquecer, fazendo
negócios ou esquemas... Depois, temos um morto que, mesmo morto, faz justiça aos vivos
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com a “a alma de outro mundo”. Entre risos e cantares, está patente uma crítica de um modo
reflexivo e humorístico à sociedade angolana: “Onde todos querem ter, sem ser...”
MG: Na imprensa, há referências ao seu
livro O guardador de memórias como um
“desabafo
de
mulheres
angolanas
descontentes com o mundo sentimental e
social”. No que consiste, de fato, este
“descontentamento”?
IF: Bem, esta é uma afirmação que não me
agrada...
Mas
vou
ser
flexível...
Posso
considerá-la e responder-te com uma análise,
mas não profunda, do meu livro. O dia-a-dia
das mulheres angolanas é atroz é um tremendo
desafio... Acresce-se a uma luta constante para
afirmação profissional, sentimental e pessoal...
A obra revela as debilidades de uma sociedade
em que algumas mulheres são vistas como sexo
frágil, mas que, apesar desta discriminação,
Foto: Anderson Sotero ASCOM-FPC
continuam lutando para dignificar as suas
famílias. Tanto as zungueiras (vendedeiras ambulantes) como as que labutam no escritório. E
tem outra situação inquietante para a narradora: o fato de as mulheres se submeterem a uma
relação poligâmica é por si só desgastante, daí que é também uma homenagem à mulher. É
preciso ser guerreira para suportar uma sociedade em que tudo é mais difícil de conseguir e
depois conviver com um homem que tem mais de duas mulheres. Para mim é um exercício
mental permanente e constante de tolerância, digno de um desabafo – não pejorativo, mas de
exaltação – à mulher angolana. As mulheres angolanas são mulheres que se vergam, mas não
quebram...
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MG: Como é ser escritora num país em reconstrução?
IF: É difícil! Temos duas situações paralelas: difícil e fácil. O país está em reconstrução,
assim como toda estrutura humana e mental do Homem angolano. Do ponto de vista
econômico, é difícil, mas do ponto de vista da imaginação, é fácil! Angola é país muito fértil
para qualquer criador. Somos um povo que canta chorando, que dança com a morte. A morte
e a vida são celebradas com doses de humor; com cantares diversos e cheios de simbologia.
Temos uma maneira muito forte e vertical de estar na vida em todos os aspectos da nossa
vida. O angolano é hospitaleiro, alegre e orgulhoso. Mesmo entristecido não baixa a cara.
Mostra o que tem e o que não tem e, quando chega o estrangeiro, lhe dá tudo o que tem, de
um modo muito altruísta. Sem contar na forma folgada e alegre de viver. Para o angolano o
amanhã a Deus pertence, vai daí... Hum, farra de sexta a domingo. Vive de esquemas,
ninguém sabe de onde sai o dinheiro, mas grifa (veste-se bem) e anda com muhatos
(mulheres) bonitas. Trabalha do seu jeito, mas trabalha com dignidade e honestidade! Há toda
uma estrutura humana neste modo de ser e estar que leva o estrangeiro à reflexão sociológica.
Mas ao mesmo tempo provoca a criação artística... Em Luanda, o criador tem matéria para
realização de um filme, para um romance, para tudo...
MG: A quantidade de leitores e o nível de leitura estão diretamente associados a uma
educação formal de qualidade. Como está a educação em Angola? Está sendo
reconstruída como o país ou, como no Brasil, não se dá tanta importância a isso?
IF: Os intelectuais estão preocupados com a educação, mesmo porque “um país faz-se com
homens e livros”. Contudo, há de fato muitas debilidades no ensino, fruto já de uma herança
colonial, que se agravou com a guerra de mais de trinta anos. Somos um país que saiu de uma
guerra que “mexeu com os valores morais e com a educação”. O governo e a sociedade civil
têm consciência deste fenômeno, há uma aposta no sentido de melhorar o ensino e incentivar
a leitura em massa. Assiste-se em Angola a um fenômeno muito interessante: toda a gente tem
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vontade de estudar; já reconstruíram as escolas públicas e há abertura de inúmeros colégios
privados. Isso é positivo, isso é importante para uma sociedade que está a nascer... O lema do
povo parece querer dizer: aprender cada vez mais! E como se costuma dizer na gíria, ir atrás
do lucro... Aprendendo!
MG: Que autores – poetas, ficcionistas, filósofos, historiadores – os angolanos lêem?
IF: Temos uma diversificação de autores, ficcionistas e historiadores que se destacam na
arena internacional. Os angolanos lêem e se revêem nestes autores. Mas vou fugir à pergunta
e dizer-lhe o seguinte: temos bons escritores e muito bons poetas angolanos. Há uma geração,
que considero de “mais velhos”, que fez e continua a fazer a história da intelectualidade
angolana. Alguns me marcaram de um modo muito positivo: Mendes de Carvalho, Viriato da
Cruz, Alda Lara, António Jacinto, Pepetela, Manuel Rui Monteiro, Celestina Fernandes,
Eugénia Neto, Paula Tavares. São escritores que, a meu ver, fazem parte do cânone literário
angolano. E, apesar do factor guerra e das fragilidades do ensino, há ainda a nova geração, da
qual faço parte, que vai fazendo um esforço para escrever, editar e mostrar este lado
“sacrificante” da criação, do ponto de vista da Literatura. Sinto que, por vezes, esta geração é
ignorada e até “ocultada intencionalmente”... Existem escritores da nova geração que já vão
obtendo algum sucesso em Angola, mas que não são conhecidos no círculo internacional, por
falta de divulgação ou por ausência de uma política de distribuição das obras e dos autores,
como Jacinto de Lemos, Conceição Cristóvão, Botelho de Vasconcelos... O Ondjaki já vai
sendo conhecido a nível internacional, embora jovem... E tem mais! Na literatura feminina, as
autoras vêm mostrando um posicionamento aguerrido, desafiando as regras com uma escrita
ousada e inquieta. Falo de escritoras como Amélia Dalomba, Elsa Major, Chó do Guri e Ana
Branco. Há também a Rosário da Silva, a única romancista angolana cuja obra foi muito bem
referenciada no círculo nacional, com o romance “Totonha”.
MG: Brasil, Portugal, Angola e os demais países africanos de língua portuguesa já estão
devidamente integrados literariamente uns aos outros ou falta alguma coisa?
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IF: Integração? Eu não colocaria a questão em termos de integração. Mas na minha visão, de
mulher ligada às artes, apercebo-me que há uma vontade de conhecer o que os escritores vão
fazendo. Por vários fatores... Angola está centralizando as atenções, devido ao advento da paz
e ao seu crescimento econômico e também pelo seu posicionamento geográfico. A C.P.L. tem
projectos significativos para incentivar e divulgar a literatura destes países, mas parece-me
insuficiente devido a inúmeros fatores. Julgo que é necessário convocar os intelectuais e os
círculos com vocação específica para tal, a fim de trabalhar em parecerias. Particularmente
noto que o Brasil tem estado a fazer muito pela divulgação da literatura angolana em termos
de pesquisa: destaco nomes de pesquisadoras brasileiras como Lucia Calvacanti e Laura
Padilha. Também me refiro aos docentes universitários Pires Laranjeira e a Inocência Mata,
esta última docente Santomense que, em colaboração com a pesquisadora Lucia Cavalcanti,
tem feito um ótimo trabalho em prol da divulgação da Literatura Angolana. Portanto, aqui
não seria tanto a integração, mas a divulgação e o consumo da literatura angolana e, como
conseqüência, a pesquisa, a fim de enquadrá-la no contexto da aceitação como literatura de
estudo nas Universidades e escolas. Um modo de divulgar a nossa cultura também.
MG: Políticas governamentais de educação e cultura podem ajudar brasileiros,
portugueses e africanos a se lerem mais ou você acha que, no fundo – como disse
Einstein certa vez –, o Governo é inimigo do povo?
IF: Não! Não devemos colocar a questão nestes termos. Acho que os governos têm políticas
especificas, para determinadas situações. No caso de Angola, particularmente durante muito
tempo a justificação foi a guerra. Ela impediu que a cultura fosse uma prioridade do governo,
agora que estamos num processo de paz, precisamos consolidar a paz e estabelecer metas que
permitam a divulgação da cultura nacional.
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MG: Que autores brasileiros foram importantes para a sua formação?
IF: Comecei a ler Jorge Amado aos 12 anos. Marcaram-me muito as obras Seara vermelha,
Capitães da areia, Mar morto, Tieta do agreste, Dona Flor e seus dois maridos e Quincas
Berro D´Água. Mais tarde, roubei de um convento de freiras Helena, de Machado de Assis, e
um livro de poemas de Cecília Meireles. Foi uma maka (problema, confusão) quando me
descobriram. Estes dois autores marcaram-me profundamente numa época da minha
adolescência e parte da juventude. Mas foi com Florbela Espanca que comecei a escrever,
ainda hoje há pessoas que ao lerem a minha poesia encontram algum paralelismo poético com
ela. De um modo geral, a minha formação em termos de literatura foi muito marcada pelo
consumo da literatura brasileira, se atentarmos ao fato de que, no período colonial, os nossos
autores angolanos não tinham tanta relevância, devido ao sistema, que reprimia a literatura
engajada.
MG: Para mim, uma cena inesquecível de um livro de Jorge Amado é o suicídio do
Cem-Pernas, em Capitães da Areia. Sempre que passo pelo Elevador Lacerda, ela me
vem à mente. Há uma cena de algum livro de Jorge Amado que você jamais esqueceu?
IF: Seara vermelha foi a obra que mais me marcou, a longa fila de pessoas que caminhavam
em busca de terra fértil e que, por conseqüência, morriam de fome e sede ao longo do
caminho. Nesta romance, chorei muito devido à força da mensagem e das marcas com o
cotidiano. Mais tarde, já guerrilheira, vi semelhanças com a minha vida quando estive em
Ndalantando num período de guerra em Angola. Ou ainda Tieta do agreste, “o
relacionamento duvidoso” entre Tieta e o padre que era sobrinho dela...
Este tipo de
“amizade” ofendia a moral e os bons costumes da época. Li este livro há muito tempo (quase
30 anos), mas surpreendeu-me a forma de escrita para a época, de pessoas ainda muito
conservadoras...
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MG: Você também é poetisa – e sabemos
que a poesia é a linguagem primordial,
visceral, de raiz, a linguagem que está
dentro de todos os homens e com a qual é
mais fácil nos expressarmos genuinamente.
A poesia é importante para Angola, tanto
quanto a música e as demais expressões
artísticas e culturais?
IF: A poesia é importante em Angola e em
qualquer parte do mundo. O que seria da vida
sem poesia? Todos os dias os homens
socorrem-se
da
poesia,
ainda
que
inconscientemente. Para mim, Poesia é o
Foto: Carlos Souza ASCOM-FPC
enamoramento com a vida. Sem poesia não há
namoro!
Na
poesia,
há
o
recurso
do
subjetivismo, há o brincar com as palavras... Tantas palavras para quê, se está aí a poesia para
preencher com o olhar poético aquilo que a frase pode não conseguir realizar...? Há como que
um subestimar da poesia em Angola, o mesmo está a acontecer em Portugal... Há editoras que
nem sequer aceitam publicar poesia, mas acredito que é uma fase. Em relação a Angola, uma
das maiores manifestações artísticas de relevo tem sido a música, com o Semba, e a dança,
com o Kuduro e a Tarraxinha... Mas a pintura e a literatura angolanas têm um grande
potencial artístico, que no porvir poderá vir a ter mercado de exportação artística.
MG: A literatura pode transformar as pessoas, um país? Você se transformou com a
literatura?
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IF: Pode! Se houver disponibilidade para a leitura, para o sentido crítico do que se lê! De
certa forma, me transformei com o muito que vou digerindo através da leitura. Aprendi que o
escritor com a sua pena tem uma responsabilidade maior que um cidadão comum. Que o
escritor deve ser um ser criador livre, assumindo o compromisso com o mundo que o rodeia.
Sei que como mulher e como escritora me é exigido muito mais... Tenho a certeza de que
ainda não transformei ninguém, mas luto para a mudança de mentalidades no meu mundo,
onde nem sempre a leitura é a prioridade. Vivo num país onde ainda temos que lutar por um
copo de leite ou um iogurte... Não é possível a leitura onde a fome abunda...
MG: Que verso ou frase literária você julga poder definir o estado em que Angola se
encontra no momento?
IF: Utilizo muito a expressão de um artista angolano, como forma de elevar a minha autoestima em relação a Angola e na minha vida pessoal, como angolana que sou, que é: Estamos
sempre a subir... Ou ainda a frase que um amigo meu, o ator Daniel Martinho (também
angolano) um dos melhores atores negros residentes em Portugal, arranjou para mim, e que é
de um cantor angolano, o Bonga: Seja sempre resoluta. Quando ele me disse esta frase,
encarnei-a como minha e me pus a batalhar para estar aqui em Salvador. Se não fosse
resoluta, não teria solicitado ao meu amigo, o Prof. Ubiratan Castro, homem de cultura e de
grande sapiência cultural, para que me convidasse a vir a esta terra de Jorge Amado, que me
ensinou que estamos sempre entre as searas vermelhas, mas que apesar de tudo é preciso
caminhar, mesmo com sede. Se não fosse resoluta, não estaria neste chão que se chama
Salvador da Bahia!
MG: Gostaria de dizer alguma coisa, para finalizar?
IF: Quero deixar aqui um kandando (abraço) de gratidão ao meu amigo prof. Ubiratan Castro,
grande nome na cultura baiana, por me ter convidado a vir a esta cidade tropicalíssima, onde
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tão fui muito bem acolhida. Aqui fiz muitas amizades que me serão preciosas no futuro.
Deixo muitas sementinhas plantadas... muito férteis por sinal! Não quero esquecer de
ninguém... Mas acho que me vou esquecer... São tantas as pessoas que me têm ajudado...
Espero que me perdoem. Mas deixo o reconhecimento a todos os amantes de literatura e aos
amigos que me apóiam, incondicionalmente. Gostaria particularmente de agradecer o convite
formulado pela diretora artística da Lusodramas, Marilda de Carvalho, uma brasileira que
vive em Montreal, Canadá, que me conheceu pela internet, através do site da Angolanistas,
elaborado pelo antropólogo Zaqueu Nzengo, radicado no Brasil. Foi neste site que ela me
descobriu e tudo fez para que eu pudesse lançar o livro no Canadá. Este meu reconhecimento
é extensivo à LS Produções. Seu diretor Eugenio Neto, assim que soube que eu vinha à Bahia,
disponibilizou vários CDs de música angolana, assim como obras literárias, para divulgação
nas rádios, não só de Salvador, mas também de Teresina, onde estarei para a Festa do Livro.
Obrigada! Kandando forte de gratidão.
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Esta terra não é minha, mas eu me afogo nela: Considerações sobre o mal-estar inglês
Állex Leilla1
Resumo: Este trabalho pretende refletir sobre um certo mal-estar sócio-político-cultural presente nos roteiros de
filmes e romances escritos pelo indo-britânico Hanif Kureishi, e as possíveis relações do seu “estranho e caótico
mundo londrino” com aquele traçado pelas letras do cantor inglês Stephen Patrick Morrissey, ontem vocalista
dos Smiths (uma das bandas mais representativas do pop-rock dos anos 80), hoje em trajetória solo mais do que
consolidada. Esta escolha orienta-se pelas possibilidades de leituras das categorias de estranho e estrangeiro,
conceituadas por Bhabha e Bauman.
Palavras-chave: Literatura comparada; Hanif Kureishi; Morrissey; estranho; estrangeiro.
Resumo: Esto documento pretende reflejar sobre un incómodo socio-político y cultural presente en películas y
novelas escritas por el indo-británico Hanif Kureishi, y los posibles vínculos de su "extraño mundo caótico Y
británico” con aquel localizado en las letras del Inglés Stephen Patrick Morrissey, el cantante ayer Smiths (una
de las más representativas bandas de pop-rock de the'80s), hoy en día en trayectoria suelo más que consolidada.
Esta opción de lectura está orientada por las orientaciones posibles de las categorías de extraños y extranjeros,
conceptualizadas por Bhabha y Bauman.
Palabras clave: Literatura comparada; Hanif Kureishi; Morrissey; extraño; extranjero.
Uma das questões mais visíveis nos textos de Hanif Kureishi é o entrecruzamento de
olhares estrangeiros que explodem em seus textos. Os estrangeiros e sua solidão. Os
estrangeiros e suas vivências. Os estrangeiros e seu caminhar. Ser estrangeiro, estar
estrangeiro. A própria condição híbrida do autor, que é indo-britânico, o faz ser sempre visto
como alguém “de fora”: na Inglaterra, onde cresceu e se formou, é “estranho”, um oriental,
tanto pelos aspectos físicos quanto culturais; no Paquistão, devido ao fato de ter estabelecido
1
Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Mestre em Letras pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA), professora de Teoria da Literatura do Curso de Letras, da Universidade
Salgado de Oliveira (UNIVERSO-SSA). É escritora, com três livros publicados: Urbanos (contos, 1997),
Obscuros (contos, 1999) e Henrique (romance, 2001), e recentemente foi contemplada com o edital de Criação
Literária da Petrobrás (2006/2007), cujo romance encontra-se em processo de finalização. Email:
[email protected]
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um trânsito desde muito cedo na Europa, ter estudado lá, falar inglês e possuir costumes
“brancos”, é visto também como “estranho”, um não-nativo.
Sua escrita incorpora esse problema com a referência de origem, que está perdida: se
no lugar onde nasceu e de onde seus pais são não pode ser reconhecido, uma vez que saiu de
lá muito pequeno, no lugar para onde foi, devido a sua condição étnica, será sempre um
estranho, independentemente do quanto de valores locais tenham sido introjetados nessa
vivência londrina. Essa condição confusa — uma não-identidade ou um espaço móvel de
identificações provisórias — se transforma num terreno movediço de construção e
desconstrução de formas discursivas que vão refletir sobre a difícil sobrevivência desses seres
“párias”, sempre “estranhados” e apontados como diferentes em qualquer lugar aonde
chegam.
De forma parecida, embora com diferenças consideráveis, pode-se dizer que esse
mundo conflituoso de Kureishi também explode nas letras das canções de Morrissey.
Descendente de família irlandesa, porém nascido na Inglaterra, na cidade industrial de
Manchester, o ex-vocalista dos Smiths viveu tanto a infância quanto a adolescência em
bairros tidos como “marginais”. Por ser de origem pobre, filho de um operário com uma
funcionária de uma biblioteca (responsável por despertar no filho o amor pela literatura), no
repertório de imagens de suas canções o que mais aparece não são a riqueza, o glamour, os
clichês e a tradição de conquistas da cultura inglesa, mas os subúrbios, as chaminés das
fábricas, os conjuntos habitacionais populares, a miséria, a repressão dos sistemas
educacionais de ensino público, a luta pela sobrevivência, o isolamento, a discriminação, a
incomunicabilidade.
Trata-se de todo um universo marginal que se apresenta e se representa, num jogo de
forças entre o diverso e o mesmo, a exemplo da letra de This night has opened my eyes, do
repertório smithiano, inspirada na peça Um gosto de mel, de autoria de uma das escritoras
preferidas de Morrissey, a dramática Shelagh Delaney. Essa peça, de 1958, que também foi
levada à tela, é uma referência crucial para se entender certos painéis tristes e sem saídas
daqueles ingleses não-vitoriosos, não-glamurosos, não-ricos, cantados por Morrissey em
muitas de suas canções.
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O letrista opõe, muitas vezes, o modo de “ser” do Sul com o do Norte do país, para
flagrar as diferenças irredutíveis entre os próprios ingleses, expondo uma nação
multifacetada, com problemas étnicos que, desde a sua origem, não foram resolvidos. Sua
Inglaterra é uma espécie de barril de pólvora segurado por forças tênues de união: a língua
inglesa (que ele mostra em The nacional front disco não ser tão “inglesa” assim), o amor ao
futebol (abordado do ponto de vista de um torcedor fanático em We’ll let you know), e um
certo passado histórico comum (cantado em músicas que narram perda de lugares
referenciais, como Late night, Maudlin Street e Piccadilly Palare). Aqui e ali, entretanto,
vemos formar, nas letras de suas músicas, um panorama confuso e multifacetado, semelhante
ao de Kureishi, e totalmente distante de um mundo regido por valores e identidades sólidas,
fixas, cristalizadas, como deveriam ser os produtos de uma cultura tipicamente britânica.
Bem, mas o que seria uma cultura tipicamente britânica? Antes que nos percamos em
terrenos muito complexos e, por isso mesmo, vagos, é importante ressaltar que aqui nos
referimos àquelas noções de identidade com as quais todo povo lida e escolhe ser
reconhecido. Ou seja, o que Homi Bhabha chama de “local da cultura”.
Uma das possibilidades de se entender porque a vivência dessa identidade não ocorre
nos diferentes contextos usados pelos dois autores é, justamente, refletindo sobre a
dificuldade de se resolver as questões histórico-político-sócio-culturais que já existiam entre
os povos da Grã-Bretanha — como é o caso da Irlanda do Norte, subjugada pela hegemonia
econômica da Inglaterra —, e as novas questões que surgiram a partir da entrada dos povos
orientais, invadidos e dominados, no passado, pelos conquistadores europeus. Nesse contexto,
ser ou não ser estrangeiro lembra a canção de Caetano Veloso: depende mais do momento do
que do lugar.
Muitas produções artísticas inglesas contemporâneas abordam essa perda de
capacidade de separar os povos: todos eles se odeiam, acham que nunca se misturam
totalmente, mas estão sempre mesclados, quer pelas fusões amorosas (os casamentos mais
comuns são entre ingleses e escoceses, mas também existem entre ingleses e irlandeses,
irlandeses e indianos etc.), quer pela proximidade das fronteiras e nomadismo (quase todos os
irlandeses, por exemplo, vão, num determinado momento de suas vidas, para a Inglaterra,
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estudar ou trabalhar; os indianos têm bairros inteiros criados pelo governo inglês etc.). Sendo
assim, o “estrangeiro” pode estar, em muitos casos, menos circunscrito ao espaço do que a
uma situação específica de confronto.
Esse barril de pólvora europeu é percebido claramente em filmes britânicos como
Delicada atração (1996), de Hettie McDonald; Beatifull people (1999), de Jasmin Dizdar; ou
mesmo na produção premiadíssima da Macedônia-Inglaterra, Antes da chuva (1994), de
Milcho Manchesvski. Todos eles mostram tanto a Europa bretã quanto a dos bálcãs
permeadas por focos de conflitos étnicos, políticos, religiosos e econômicos. Se vão explodir
de forma grave como ocorreu na França, em 2005, é uma questão mais da lógica da vida do
que de exercícios futurólogos. Aliás, parece que barris de pólvora não faltam na Europa,
como mostra Luciano Máximo em Quem segura essa bomba?, matéria publicada na Revista
Caros Amigos (Dezembro de 2005, Edição 105) que aborda os problemas da mesma estirpe
em solo português. Todos eles giram em torno de um fantasma: os estrangeiros.
A palavra “estrangeiro” povoa, direta ou indiretamente, todos os estudos que
trabalham com as noções de cultura e alteridade, uma vez que os países periféricos e póscoloniais têm sua (s) história (s) inscrita (s) sempre a partir de um olhar de fora, um pensar de
fora, uma língua de fora. Nos ensaios “O compromisso com a teoria” e “DissemiNação: o
tempo, a narrativa e as margens da nação moderna”, do livro O local da cultura (1998), Homi
Bhabha pensa questões relativas à identidade, cultura, teoria e ação política, tendo em vista
todo um sistema de formação e condicionamento do discurso colonial, cuja estrutura ou
estruturação ele esquadrinha para melhor entender.
Embora muitos critiquem Bhabha devido a um hermetismo lingüístico e um certo
lugar-comum em seus textos, seus ensaios ainda são importantes para se discutir a pertinência
ou não de noções acerca da hegemonia cultural e política, o multiculturalismo, a negociação
cultural, a questão da identidade, o hibridismo e o conceito de nação.
Um dos primeiros lembretes que o pensador, também indo-britânico, faz ecoar feito
fantasma durante sua análise sobre a condição pós-colonial é a assertiva de que na história dos
países europeus já havia, desde o início, a marca de grupos exilados, de situações de diáspora,
de refúgio em guetos, reuniões em cafés e bares dos centros das grandes cidades. Desta forma,
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a condição de “estrangeiro” sempre foi vivida de maneira constante pelos europeus que, com
as grandes navegações, passam a ser “os estrangeiros” dos novos mundos, aqueles que
chegaram com costumes, valores e, principalmente, com o poder de fora. E, com esse mesmo
poder, para sermos sintéticos e óbvios, subjugaram tudo que consideravam “primitivo” ou
“não-civilizado” na terra do outro. Como o mundo gira e a Lusitânia roda, os primitivos não
têm mais ouro, nem solo, alguns nem água, todavia, continuam com aquele defeito
incorrigível: querem porque querem sobreviver. Vão, então, em bando, atrás da mãe-pátria,
ou mátria, sabe-se lá.
Essa noção, bastante óbvia, de um poder que vem do exterior, inteiro, identificado,
com língua e armas próprias, e se estabelece entre os nativos, subjugando-os, está presente
nas discussões acerca da alteridade e identidade cultural e, muitas vezes, constitui seu
principal foco de análise. Entretanto, o que Bhabha traz é uma espécie de lembrete sobre o
“sentir-se diferente, sentir-se estrangeiro”: isso já era uma marca inscrita na pele do próprio
colonizador enquanto habitante de sua nação, ou seja, o seu lugar já estava, desde o princípio,
questionado, no terreno da provisoriedade dos limites geográficos de cada país europeu e de
suas crises sócio-político-culturais.
Isso explica porque, nos discursos fundadores das nações modernas ou da “maneira de
ser moderno”, o provisório, o instável e o ilegível são como fantasmas a serem rejeitados, a
exemplo da narrativa de Thomas Mann, A montanha mágica, em que seu personagem, Hans
Castorp, mesmo já se sabendo curado da tuberculose, tem grande dificuldade em deixar o
local para onde foi em busca de cura, pois os caminhos do mundo lá fora se tornaram,
novamente e sempre, impossíveis de serem previstos, traçados, solidificados. Uma prova
disso é o contexto histórico do romance: a Primeira Guerra Mundial, que está se formando
dia-a-dia, atingindo seus países de origem, enquanto eles, os europeus enfermos, tentam se reequilibrar num terreno neutro, numa estação de repouso nas montanhas.
Assim, a estação de repouso passou a ser um lugar familiar, seguro, por isso, mágico.
Os lugares de onde vinham tornaram-se estranhos, desconhecidos, e, como de praxe no
panorama moderno, o estranho deveria ser evitado, temido, odiado. Vê-se, aí, uma fusão entre
“estranho” e “estrangeiro”, uma vez que na estação de repouso havia estrangeiros de vários
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países europeus (mas principalmente dos quatro pilares modernos: Alemanha, Itália, França e
Inglaterra), e a essa condição foi acrescentada a de “estranho”, obtida a partir do temor que
sentiam do mundo de onde vieram, da vida distante que um dia possuíram e tiveram de
abandonar.
Para Zygmunt Bauman, no ensaio “A criação e anulação dos estranhos”, do livro O
mal-estar na pós-modernidade, o que diferencia a relação que a sociedade moderna tinha com
“os estranhos” da relação que tem, hoje, a sociedade pós-moderna, é a impossibilidade de
traçar um lugar fixo para eles, tal como existia na modernidade, e correspondia à fronteira
(das cidades, dos estados, dos países):
A diferença essencial entre as modalidades socialmente produzidas de
estranhos modernos e pós-modernos é que, enquanto os estranhos
modernos tinham a marca do gado da aniquilação, e serviam como
marcas para a fronteira em progressão da ordem a ser constituída, os
pós-modernos, alegre ou relutantemente, mas por consenso unânime
ou por resignação, estão aqui para ficar. (...) Se eles não existissem,
teriam de ser inventados. (BAUMAN, 1997, p. 43).
Assim, guardados os graus de variações subjetivas que decorrem dos usos da palavra
“estranho”, que vão desde a noção freudiana de categoria do assustador que remete ao que é
conhecido, de velho, e há muito familiar até uma certa mitificação do “estranho/estrangeiro”
que povoou um certo período a literatura (a exemplo de romances como Teorema, de Pier
Paolo Passolini, ou Cleo e Daniel, de Roberto Freire), retorna-se ao entendimento de Homi
Bhabha (tomado de empréstimo de Eric Hobsbawm) de que a própria história da nação
ocidental moderna é construída sob a perspectiva da margem da nação e do exílio de
migrantes. Ou seja, é “antigo” e “estrutural” sentir-se “outro”, sentir-se “diferente”. Essa
noção é importante para se perceber as contradições existentes nas produções artísticas e
discursivas daqueles que já nasceram sob o signo da mistura, do múltiplo, da confusão.
O conhecimento do “outro”, conceito amplamente difundido nos Estudos Culturais e
de Literatura Comparada é uma das preocupações de Homi Bhabha. Esse “outro”, essa
alteridade, tão discutida por aqueles que trabalham com produções de qualquer que seja a
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minoria social, é ainda associado às histórias de resistência dos grupos minoritários em
questão. A partir de 1960, convencionou-se ler a experiência da dor e da exclusão como uma
configuração do “outro”, do “diferente”. Mas, segundo Bhabha, historicamente, sabe-se que
as histórias de vencidos e vencedores são tão interpenetradas que eles somos nós e vice-versa.
Assim, Bhabha chama a atenção para o hibridismo cultural, lembrando que apenas
insistir numa “devolução do poder” (ou da voz) a sujeitos que foram violentados num
determinado tempo e espaço, não é suficiente para fazer perceber os diferentes graus de
absorção e/ou introjeção na cultura do discurso-opressor. Segundo ele, o crítico pós-colonial
que não vê tais liames na estruturação do pensamento colonial acaba por se identificar, num
discurso polarizador, com as divagações do crítico eurocêntrico despolitizado ou, então, cair
no abismo da militância panfletária, que separa luta e saber teórico.
Em O álbum negro, Intimidade (romances) e Minha adorável lavanderia (filme) Hanif
Kureishi traça um painel bastante complexo acerca da convivência de paquistaneses, indianos
e outras minorias étnicas no solo europeu, mais precisamente em Londres, the babylon city,
como a chamava Caio Fernando Abreu. Em muitos momentos, principalmente em O álbum
negro, a questão dos embates culturais é tão forte e multifacetada que remete imediatamente
às letras de Everyday is like Sunday, Bengali in the platforms ou This is not your country,
todas do repertório da carreira solo de Morrissey. Tais embates estão bem próximos da teoria
de Bhabha, no que se refere à impossibilidade de perceber os problemas, as crises, a violência
e a resistência das minorias não mais invadidas em seus territórios/países, mas dispersas no
solo europeu, sem, antes, compreender a interpenetração dos discursos, de valores
hegemônicos nas estruturas heterogêneas que são desenhadas pelo cinema e literatura.
O álbum negro narra a história de um estudante paquistanês, Shahid, em Londres,
dividido, confuso, afetado por uma necessidade de sobreviver dentro de um mundo caótico e
fascinante, onde nem ele mais consegue identificar o que seria seu, ou seja, de origem
paquistanesa, e o que é do outro, ocidental, europeu, inglês etc., e onde está o seu desejo
pessoal/masculino/subjetivo no meio de tudo isso. Ele faz uma faculdade que lhe excita e lhe
retrai ao mesmo tempo. Goza do direito de estudar, concedido pelo governo britânico às
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minorias étnicas, mas tem consciência de que a faculdade em si já é uma espécie de gueto, um
arranjo governamental que exclui e controla muito mais do que concede.
Ao mesmo tempo em que ama a literatura e a música pop, principalmente o músico
negro norte-americano Prince (que, inclusive, inspira o título do livro), o personagem sabe das
ilusões e afastamentos que ambos os universos artístico-discursivos ocidentais trazem para
um habitante originário de um outro mundo, como ele. Shahid é um ser do caos, que anda
dentro do caos, pensando suas questões mais caras. Lembra, em muitos momentos, o
caminhar produtivo de Rimbaud, o walk writing, abordado por Maurício Vasconcelos em
Rimbaud das Américas e outras iluminações (2000), uma vez que é andando em Londres, tal
qual Rimbaud na França, e sentindo/vivendo/pensando sua estrutura perversa, caótica, bela,
cosmopolita, fascinante, que o personagem apreende, reflete, seleciona e rejeita valores, quer
sejam seus, de seu povo, quer sejam “estranhos”, londrinos, europeus, ocidentais.
Sendo ele mesmo um estrangeiro em Londres, habita, junto com sua gente, uma
espécie de fronteira que, há muito, encontra-se confusa, impossível de ser totalmente
detectada. Ainda que geograficamente os bairros onde eles habitam sejam marginais,
periféricos, essa demarcação se perde diante do caminhar livre, do ir e vir dos povos,
vasculhando outras ruas e outros bairros distantes, desconhecidos. Em relação ao seu povo
disperso em Londres há de tudo: Shahid, que estuda e busca um equilíbrio entre esses dois
mundos, Londres e o Paquistão, Ocidente e Oriente; a professora Deddee, por quem ele se
apaixona, e o marido dela, exemplos de intelectuais perdidos dentro do sistema educacional
britânico destinado a estrangeiros, mas incapaz de integrá-los; os colegas de Shahid,
desinteressados e entediados, que freqüentam a faculdade mais por hábito do que por
objetivo; os vizinhos paquistaneses, conservadores e fanáticos religiosos que o convidam para
se converter à causa religiosa; seu irmão drogado e fora da lei, que despreza os valores
paquistaneses e sente-se inglês, tal qual o pai de ambos se sentia, acreditando, também, que
bastava o dinheiro para serem aceitos no mundo londrino; a mãe deles que vive no Paquistão,
dentro dos moldes mulçumanos; Zulma, a cunhada de Shahid, que vive uma parte do ano na
Inglaterra, curtindo os prazeres do mundo consumista inglês, e outra na sua terra natal. Enfim,
há um verdadeiro esquadrinhamento desse povo paquistanês, o que demonstra a intenção
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autoral de representá-los sem uma unidade político-cultural, e, sim, fragmentados, perdidos e
múltiplos.
Já em Minha adorável lavanderia, um garoto paquistanês, homossexual, tenta
sobreviver aos ataques raciais que sua lavanderia — símbolo da conquista de sua família no
solo europeu — sofre de grupos neofacistas. O personagem vive um relacionamento amoroso
com um punk-europeu, representado no cinema por Daniel Day-Lewis. Vê-se, assim, um
complexo embate cultural ser materializado. Dessa guerra de valores e costumes entre o grupo
do protagonista e o de seu namorado surgem algumas negociações, um certo “jogo de corpo”
que solidifica o relacionamento amoroso.
Paralela à luta pela sobrevivência dos personagens, há também a desintegração do
núcleo familiar paquistanês, temas caros ao universo de Kureishi, que sempre somará a esses
dois pólos (luta e origem) a questão do desejo, do direito e experimentação da sexualidade. A
cena em que o punk dá um beijo meio de lado e meio de língua no protagonista, na porta da
lavanderia, diante dos neofacistas que não conseguem visualizar direito a cena, pode ser
considerada um símbolo do chamado espaço intervalar de convivência cultural. Por uma
questão de posicionamento, isto é, por estarem num ponto da calçada em que o ângulo não os
permitem ver direito o que acontece, os neofacistas não podem agredir o casal gay e
multirracial, pensam que o protagonista, dono da lavanderia, está apenas pagando ao punk por
ele ter pintado a fachada do estabelecimento. Entretanto, aproveitando a pouca visibilidade, o
punk esconde o rosto do outro e erotiza a relação “aparentemente” profissional.
Nesse filme, há todo um aproveitamento das oportunidades cotidianas, um viver
segundos de trégua, de afeto e poesia, na guerra urbana que se desenrola em todos os cantos
da cidade. É essa potência que interessa a Kureishi ressaltar, não mais a guerrilha armada, as
lutas étnicas, os discursos políticos já estéreis diante da impossibilidade de traçar limites entre
o que é inglês, o que é irlandês, o que é galês, o que é escocês, o que é paquistanês, indiano,
africano etc.
Intimidade também traz um panorama desses conflitos sócio-étnico-afetivo-culturais
londrinos, só que menos na cidade e mais dentro do seio de uma família paquistanesa, a partir
da voz narrativa de um homem, roteirista, pai de dois filhos, que pretende abandonar o núcleo
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familiar em prol de sua liberdade pessoal, sexual e afetiva. Sua voz discute a opressão do
modelo papai-mamãe-filhinhos, expondo a anulação da singularidade do indivíduo e a
automação dos papéis que tal estrutura institui. A contradição entre o amor familiar e a morte
diária de seus indivíduos acaba traçando um panorama dos conflitos de uma geração que
viveu a contracultura, com seus avanços sexuais e políticos, mas se viu, depois, aprisionada
dentro do mesmo sistema de valores caducos a que combateu com unhas e dentes.
Para Kureishi, não há nenhum porto seguro, fórmula mágica ou escudo capaz de livrar
o indivíduo desses conflitos. Quando eles não vêm de fora, do outro, que estranha e agride
tudo aquilo que não é espelho, vêm de dentro, das forças de liberdade individuais, do desejo.
É interessante ressaltar também que o sexo é um lugar de força tanto nos roteiros
cinematográficos quanto nos romances do autor. É vivenciando a sexualidade, inclusive fora
da relação a dois, com outras pessoas, outros jogos e papéis, que as personagens discutem e
aprofundam tanto suas questões internas quanto as situações caótico-político-sociais do país
onde escolheram viver e do país que deixaram para trás. Não se trata, portanto, de dar voz aos
“coitadinhos” e “oprimidos” paquistaneses, mas de flagrá-los em suas lutas cotidianas, com
suas dores e suas forças, suas contradições, suas violências e conquistas.
Um contraponto interessante a esse universo de Kureishi, narrado sempre a partir de
vozes paquistanesas, são as já mencionadas letras de Bengali in the platforms, Everyday is
like Sunday e This is not your country. Nelas, Morrissey dá voz não ao “oprimido oriental que
retorna como invasor”, mas ao inglês, ex-invasor, que, agora já desprovido de armas e de um
poder absoluto, vê seu resto de harmonia desaparecer com a chegada dos orientais e a
conseqüente explosão dos conflitos multirraciais oriundos dessa outra invasão.
A capacidade de penetrar no que seria a estrutura de formação discursiva desse
sentimento — do inglês invadido, ultrajado pela imposição dos costumes daqueles que vêm
de fora e bagunçam seu habitat — é a maior força das letras de Morrissey, que vai registrando
frases contraditórias, entre aspas, flagrando essa zona de “estranhamento” entre as duas
culturas, porém, sem tomar um partido claro. Quando aborda a sexualidade de seus
personagens, no entanto, o letrista a coloca numa zona de incerteza, e, ao contrário de
Kureishi, a vivência sexual e a afirmação do desejo não são vistas como oportunidades de
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aprofundamento de discussões ou positivação das subjetividades. Para Morrissey, gostar de
homens, de mulheres ou de ambos, ou mesmo não gostar de sexo, não leva à equação alguma
acerca de si mesmo. O sexo nada revela da interioridade do sujeito. Essa interioridade é feita
de cacos, de flashes incomunicáveis, incompartilháveis.
Ser gente, para Kureishi, é vivenciar as várias faces do desejo, apossando-se dele e
desautorizando a entrada de forças de condicionamento e normatização do erótico, do sexual.
Através do sexo, os personagens se auto-reconhecem e conhecem o outro. Para Morrissey, no
entanto, o sexo é secundário. Em suas letras, ser gente é a grande tragédia do ser humano e o
reconhecimento dessa condição trágica vem antes de qualquer possibilidade de descoberta ou
vivência sexual. É exatamente por serem humanos que os sujeitos configurados em suas letras
estão separados dos outros, mesmo de seus objetos de desejo, e jamais podem se descobrir, se
reintegrarem ou traçarem pactos com o outro.
Mesmo reconhecendo a sexualidade como um processo complexo, Morrissey não
acredita que, por exemplo, uma performance que positive a condição de homossexual (ou
bissexual) seja algo que vá trazer aos sujeitos o direito à sociabilidade dentro das demarcações
heteronormativas, originárias da intensa liberação da energia yang ou pólo masculino que, no
Ocidente, se configura a partir de uma noção hegemônica do macho, branco, heterossexual.
Vozes e corporalidades capazes de inscrever em sua superfície as diferenças nesse modelo
hegemônico existem, e as letras dele podem até cantá-las, mas isso em nada afeta o
isolamento trágico dos sujeitos que, enquanto vivos, serão sempre estranhos, impenetráveis. É
o que vemos na canção em que ele homenageia Little Richard (1932), por exemplo.
Essa letra remete ao roqueiro que, com seu visual andrógino e sua dança sexualizada,
quebrou desde início os padrões comportamentais polarizadores, chocando a classe média
branca norte-americana da época — para quem a demarcação entre masculino e feminino era
bastante rígida. A performance pioneira de Little Richard é motivo para a amarga homenagem
que Morrissey lhe presta em Little man, what now? (que faz parte da carreira solo do
vocalista). No entanto, quando questiona o que teria ocorrido após a passagem fulgurante do
roqueiro, a letra registra os jogos perversos do mainstream, que podem se nutrir de qualquer
energia sexual, inclusive da andrógina, sem necessariamente permitirem a expansão livre
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dessa libido: “Velho demais para ser uma criança prodígio/ Muito jovem para os papéis
principais/ Quatro temporadas/ e eles te cortaram/ Nervosamente jovem/ (não vá sorrir!)/ O
que aconteceu com você?/ Aquele eclipse repentino te torturou?”2
Eis o retorno do transgressor à solidão do mesmo e do nenhum. Trata-se do canto de
uma solidão impossível de ser negociada, que enclausura a subjetividade numa redoma. Se se
vive brevemente o desejo, como em Hand in glove ou em Handsome devil (canções
smithianas que abordam o homoerotismo) ou se opta pela ironia à própria necessidade de
realização sexual-amorosa, como em I know its over e Last night I dreamt that somebody
loved me, o que importa ao letrista é destacar que nada retira os sujeitos do tédio e da
diferença inconciliável de sua interioridade. Nascer como seres humanos estragou a saúde
deles, parece dizer clariceanamente a voz melancólica de Morrissey. Tal estrago é
irremediável.
Essa outra maneira de aproveitar o multifacetado, o híbrido, o multicultural, faz tanto
as letras de Morrissey quanto os textos de Kureishi serem um lugar rico para se discutir
formas e linguagens possíveis para uma outra crítica teórica das divisões entre Países
Desenvolvidos e Periféricos e seus desdobramentos. Afinal, qual seria a função de uma crítica
acerca da alteridade se as perspectivas artísticas — lugar por excelência onde se pode pensar
as efervescências culturais —, de natureza múltipla, não são ouvidas em sua variedade
infinita?
Mais do que reflexos dos supostos interesses desse objeto (minorias, povo etc.), o que
aparece nos discursos das personagens de Kureishi e nas letras de Morrissey é a hibridização
da própria noção de diferença. Ou seja, o um e o outro estão interpenetrados, e seus embates,
muitas vezes, por mais violentos que sejam, mostram a impossibilidade dos limites entre o
que é originário de um e o que vem do outro.
Trata-se, então, de reconhecer que todo e qualquer discurso que se ocupa do outro,
sem prever e expor as contradições de sua estruturação nas formas discursivas da cultura,
fatalmente está, de alguma maneira, idealizando esse “outro”. Reconhecer isso já é o primeiro
2
Little man, what now?. MORRISSEY e Stephen STREET. Viva Hate. EMI. 1988. (faixa 02). No original: Too
old to be a child star/ too young to take leads/ four seasons passed/ and they AXED you/ nervously juvenile/
(WON'T SMILE!)/ What became of you?/ did that swift eclipse torture you?
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passo para se livrar dessa imagem pré-selecionada que, sem tal reconhecimento, periga a ser o
foco de produção das idéias.
Um outro aspecto que surge no panorama traçado por Hanif Kureishi e por Morrissey
é a noção de hegemonia. Segundo Stuart Hall (2003), tal noção tem a ver com o espaço
intervalar de negociação e não significa, exatamente, o mesmo que dominação cultural. Por
isso, está no intervalo entre direita e esquerda. Habita o imaginário e é capaz de se reproduzir
mesmo em contextos opostos.
Não perceber o mecanismo operacional dessa diferença impediria de ver determinadas
nuances que aproximam e afastam colonialismo de imperialismo, entre outras coisas. Para
Hall, o colonialismo estaria mais para a dominação, posto que usava claramente a força física
contra os dominados (escravos, por exemplo); enquanto o chamado imperialismo norteamericano estaria mais para a hegemonia, porque negocia, mesclando à conquista não
somente a força, e, sim, outros instrumentos de fascínio, como o cinema hollywoodiano, o
McDonald’s, a Coca-Cola etc. A força e seu aparelhamento bélico são usados em espaços
onde tais apelos culturais estariam bloqueados pela ação de uma outra cultura hegemônica,
caso da mulçumana no Oriente Médio, por exemplo.
Já a postura de Homi Bhabha aponta para uma rearticulação do discurso de identidade
e da sua reconstrução no tempo da nação, a partir de um descentramento, de um deslocamento
do local da cultura. Embora Foucault, com sua teoria da descontinuidade e dos micro-poderes
(que revelaram tanto a exclusão de vários outros tempos no tempo dos enunciados históricos,
quanto uma mobilidade permanente nos mecanismos de estruturação do poder), e Deleuze e
Guattari, com a teoria do rizoma (conceito que já remetia a esse corpo de situações culturais,
representativas e móveis, dentro de uma mesma fala, cultura, nação), já tivessem trazido uma
possibilidade de articulação dos discursos do sujeito híbrido, tais teorias, somadas a de
teóricos culturalistas, também levaram ao multiculturalismo, que é um conceito rejeitado por
Bhabha. Para ele, a própria maneira como as culturas pós-coloniais são indefinidas já mostra
que as categorias mais utilizadas pelos estudos multiculturais — de classe, identidade e
gênero — são insuficientes para articular os discursos produzidos por elas, necessitando de
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outros conceitos, como geração, local, localidade geopolítica, orientação sexual, negociação
etc.
Bhabha questiona como os valores culturais são negociados nesses lugares, pois a
aquisição de poder em histórias comuns de privação e discriminação pode, muitas vezes, ser
antagônica e conflituosa. Ele mostra que a própria história da nacionalidade tem efeito
ambivalente nas narrativas, uma vez que ser estranho/exilado é, ao mesmo tempo, estar longe
e sofrer a sombra, a projeção da nação no lugar que deveria ser de exílio, de fuga. Caso de
Hanif Kureishi, por exemplo.
Interessa ao pensador indo-britânico não só a história dos movimentos nacionais —
quando esse povo, então, emerge e sua performance é pedagogicamente inscrita na história
nacional — e, sim, as tradições da escrita que tentam construir narrativas do imaginário social
desse povo-nação. Por isso, a crítica deve abranger as narrativas e as contra-narrativas, o
pedagógico e o performático, afinal, pegando de empréstimo uma afirmação de Fanon, Homi
Bhabha vai dizer, também, que o povo reside numa zona de instabilidade oculta. Essa zona é
um conhecimento, uma significação cultural, é nela que se articulam o moderno, o colonial, o
pós-colonial, o nativo etc. Não pode, portanto, ser um conhecimento estável nem fixo, uma
vez que o pedagógico e o performático se enfrentam de maneira antagônica e ambivalente, e o
suplementar é a renegociação desse tempo, dos termos e das tradições do povo-nação.
Assim, não é instalando o “um” e o “outro” no mesmo espaço que suas diferenças
serão aceitas e respeitadas, até porque essa “instalação” seria sempre utópica e mascaradora
daquilo que é irredutível entre as culturas diversas. Ele propõe, então, um lugar móvel de
negociação entre as fronteiras.
O conceito de fronteira surge do entendimento de que é necessário mesmo o espaço de
negociação (não de apagamento ou banalização) para esses sujeitos híbridos, “produtos de
uma interação cultural originada nas fronteiras, onde os significados e valores são (mal) lidos
e os signos apropriados de maneira equivocada” (BHABHA, 1998, p. 204). Muitos desses
“equívocos” constituem o universo discursivo das letras de Morrissey, quando captura a
mistura de sentimentos antagônicos e desarticulados dos ingleses que estão incomodados em
seu próprio país, tema, aliás, trabalhado em quase todo o cd Viva hate (1987) — primeiro
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trabalho solo do artista após a dissolução dos Smiths —, assim como também materializam as
representações múltiplas de Hanif Kureishi.
Desta forma, pode-se afirmar que ambos os criadores, dentro de seus universos
parecidos, porém, distintos, estão escrevendo uma história outra dos tempos londrinos,
britânicos. Entendendo, aqui, tanto o conceito de tempo quanto o de história não mais como
um corpo discursivo coeso e contínuo, e, sim, dentro das noções mais contemporâneas, como
a de Sandra Pesavento (2003), que relativiza histórias e tempo a partir de seus aspectos
culturais e artísticos.
O retrato que eles pintam da Inglaterra é fragmentado, disforme, estranho para quem
se acostumou a pensar a história dos países europeus, principalmente Inglaterra, Alemanha,
França e Itália, como a história da própria civilização ocidental, dentro de um conjunto uno de
características harmônicas e tradicionais, sedimentadas por narrativas que lhes conferiam uma
identidade sólida, facilmente localizável. O viver/ver as fronteiras (para usar uma expressão
deleuziana) não mais como se forjou que elas deveriam ser e, sim, como são, diariamente, faz
dançar diante dos olhos uma outra Europa, multifacetada, hibridizada, confusa, própria
daquela zona de instabilidade oculta, onde o conhecimento é mediado pelas negociações
culturais, e os espaços e conquistas são precários, momentâneos, vividos no cotidiano das
relações sócio-político-afetivos-econômico-sexuais.
REFERÊNCIAS:
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Leitura e escrita: processos de autoria e co-autoria
Ana Lúcia Gomes da Silva1
RESUMO: Este artigo discute sobre a leitura /escrita e seus processos de autoria e co-autoria a partir da
apresentação e reflexão de sete deslocamentos que nos possibilitam compreender que ler e escrever traz
implicações de diversas ordens, tais como: comprometer consigo e com o outro, ser referência de leitura e
escrita, possibilitar o diálogo e a co-autora como leitores e produtores de texto, além de perceber a leitura não
apenas como prática escolar, mas também, como ato cultural e político que demanda políticas públicas para
leitura, e que aponta a formação leitura como um processo multidisciplinar. Objetiva, pois, caracterizar o/a
leitor/a como um ser comprometido/a com as transformações sociais, mas também com a de si mesmo. É na
verdade compreender sua responsabilidade como sujeito leitor, que ao transformar a si, transforma o outro e a
outra, pelo ato educativo, pelo exemplo, pela reflexão que possibilita. Aponta ainda algumas possibilidades
transformativas advindas do ato de ler e escrever, além de refletir sobre o poder da leitura como maior
possibilidade de inserção social, organização de classes, senso crítico, articulação política, e, sobretudo,
modificação da estrutura social vigente se articuladas a outras transformações sociais. Afinal, os saberes se
produzem e se compartilham através de determinados tipos de discursos, desde os científicos aos narrativos,
tanto nos relatos literários como na vida cotidiana, passando por toda gama de discursos profissionais.
Finalmente, o texto nos convida a compreender o nosso papel como mediador/a e orientador/a dos processos de
leitura e escrita dos alunos e alunas. O que significa sermos leitores/as e produtores de texto de diversos gêneros
textuais, em potencial dos gêneros acadêmico-científicos?
Palavras - chave: Leitura -escrita; Discursos; Deslocamentos; Textos; Autoria-co-autoria;
ABSTRACT: This article discusses the issue of reading/writing. It also discusses the process of authorship and
co-authorship. The reference is a presentation and reflection of seven points which make us possible to
understand that reading and writing imply a series of aspects such as: having a compromise with him/herself and
with the Other; being a reference of reading and writing; making a dialogue possible in the condition of readers
and producers of texts. Besides these aspects, it is necessary to perceive reading not only as a school practice but
also as a cultural and political act which demands public policy for reading that points this formation as a multi
instruction process. This work aims at identifying the reader as a person engaged with social changes and with
him/herself. It means to understand his/her responsibility as a reader who by transforming him/herself will be
transforming the Other, by educative act, by giving examples, by creating possible space for reflections. It also
points out some transforming possibilities coming from the act of reading and writing. The reading power offers
better possibilities to social inscription, class organization, critical sense, political articulations, and above all,
modifications of the current social structure if it is articulated with other social transformations. After all,
knowledge is produced and disseminated through certain types of discourses, from the scientific to the narrative
ones in the literary reports and in the everyday life going through a series of professional discourses. Finally, the
1
Universidade do Estado da Bahia - UNEB/ DCH IV. Núcleo de Estudos Orais Memória e Iconografia-NEO.
Linha de Pesquisa Educação e Linguagem. E-mail: [email protected]
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text invites us to understand our roles as mediator and guider of reading and writing processes of students. What
does it mean to be readers of texts of several textual genders, potentially academic-scientific genders?
Key words: Reading-writing; Discourses; Movements; Texts; Authorship/co-authorship.
1)
Leitura: transformação de si e do outro
“Ser leitor/a é sentir-se comprometido com seu estar
no mundo e com a transformação de si, dos outros,
das coisas; é acreditar que se apreende o mundo
quando se compreende o que o faz ser como é”. (Jean
Foucambert, 1994).
Se ler é provocar mudanças é sentir-se comprometido com seu ser e estar no mundo,
conforme nos sinaliza Foucambert na epígrafe que abre este texto, então proponho que
façamos alguns deslocamentos necessários, a fim de que possamos olhar retrospectivamente e
prospectivamente sobre nós mesmos, nossos atos, nossas leituras e o que verdadeiramente nós
faz leitores e leitoras.
Primeiro deslocamento:
Considero como primeiro deslocamento o ato de fé, de crença, de vontade, é esta
última quem nos move e também nos comove.
A fé a que me refiro não é uma fé religiosa, embora não a exclua, mas uma fé como vontade
política, intencional, uma fé mais ampla, que como nos convida poeticamente Gonzaguinha é
preciso ter “Fé na vida, fé no homem, fé no que virá, nós podemos tudo, nós podemos mais
[.... ]2
De fato podemos mais, se as políticas públicas para a cultura do livro e da leitura,
promoverem acesso a todos que estão alijados do contato aos bens e usufrutos culturais. Se as
nossas ações forem constantes, permanentes e deslocadoras, sim, se nos permitirmos alçar
2
Ver “Nunca pare de sonhar” disponível em http://vagalume.uol.com.br/gonzaguinha/directory/. Acesso em
03.08.08.
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vôos mais ousados e altos em prol da formação leitora de crianças, idosos, jovens, docentes,
para que a leitura seja uma prática social concreta no cotidiano, modificando a realidade
insossa de muitas pessoas.
É preciso começar agora, nem antes, nem depois, pois nossos discursos precisam ser
ações e não mais projetos, idéias, intenções. Reverter essa realidade perversa com violências e
carências de todas as ordenas é nosso desafio maior e já está posto há muito, muito tempo....
Observem que na epígrafe que abre este texto, Foucambert conceitua que ser leitor/a é
ser comprometido/a com as transformações sociais, mas também com as transformações de si
mesmo, é na verdade compreender sua responsabilidade como sujeito leitor, que ao
transformar a si, transforma o outro e a outra pelo ato educativo, pelo exemplo, pela reflexão
que possibilita, pela “escuta sensível”, utilizando uma expressão de René Barbier (2000), que
nos permite conhecer melhor nossos amigos, colegas, nossos pares, nossos alunos e alunas.
Mas, como nos diz Guiomar Grammont, (1999, p.1), ao afirmar:
Ler devia ser proibido [...] acorda os homens/mulheres3 para as realidades
impossíveis, tornando-os/as incapazes de suportar o mundo insosso e
ordinário em que vivem. [...] A criança que lê poderá tornar-se um adulto
perigoso, inconformado com os problemas do mundo, induzindo a crer que
tudo pode ser de outra forma.
E com certeza a realidade pode ser de outras e outras formas, com outros contornos e
possibilidades, pois o poder advindo da leitura é transformador, desestruturante, inebriador,
revolucionário, demasiadamente político, intencional, e traz sentidos plurais.
2. A leitura e a formação do leitor: os sentidos construídos ao longo da história
Segundo
deslocamento:
Formação
de
leitores
e
leitoras:
um
processo
multidisciplinar
A compreensão da leitura como possibilidade transformadora é defendida por inúmeros
teóricos que discutem o ato de ler, dentre eles, Ezequiel Theodoro da Silva (1988, p.99), que diz:
“: [...] a leitura, se empreendida criticamente, vem facilitar o surgimento da reflexão e da
3
Grifo nosso para leitora na epígrafe e mulheres na citação de Guiomar.
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tomada de posição. ‘Reflexão’ significa a apropriação do nosso destino de existir [...] Por isso
mesmo deve ser colocada como instrumento de participação, mudança e renovação sóciocultural”.
Refletir, escrever, falar, sobre a leitura e o poder que dela emana, nos coloca numa
ebulição profunda, inquietante, de deslocamentos, irrupção, fruição, responsabilidades
compartilhadas, em que todos os sentidos e poros ficam num alerta constante, num frenesi
próprio e apropriado dos que, como eu, sabem que formar leitores/as é tarefa complexa, que
transcende o ambiente escolar, o currículo, as disciplinas, por ser mais que uma prática
escolar, ser uma prática cultural, política, portanto, intencional e militante, que tem como
premissa primeira, a interlocução/engajamento de todos os profissionais das diversas áreas do
conhecimento.
A leitura sempre foi tema de estudos, debates, pesquisas, terreno fértil para discussões
fecundas e permeadas de sentidos plurissignificativos. Roger Chartier, (2001), ao discutir a
história de leitura, o papel do leitor, do livro, as práticas de leitura, chama atenção para “as
revoluções da leitura”, pois afirma que quando a leitura se estabelece no mundo das escolas,
das universidades, ela se torna uma prática intelectual. A leitura monástica seria a da
“mastigação’, o ritual era ler em voz alta, de forma atenta, corpo disciplinado, havendo aí um
controle, uma vigilância, o corpo recebe a palavra sagrada por meio desta leitura que se
vincula á prece, enquanto que a leitura do mundo escolástico é por sua vez uma leitura que
busca o deciframento da compreensão. Ainda de acordo com Roger Chartier, (2001), nos
séculos XII ou XIII, surge uma técnica ou método de leitura, que vai do deciframento da
palavra e compreensão do sentido do texto à compreensão da doutrina.
Deseja-se ajustar a mensagem religiosa ou a utilidade na vida cotidiana – a chamada
alfabetização funcional, que chega ao longo dos séculos XIX e XX, tendo a definição da
leitura como acesso à cultura, a um mundo de obras que devem permear a mente e a ética. 4 Já
nos séculos XVI e XVII, a leitura silenciosa, é tida como perigosa, pois permite a cada um
desenvolver seus próprios pensamentos a partir dos textos recebidos, sem possibilidade de
4
O estudo realizado por Roger Chartier toma como base a sociedade francesa e estende alguns dados para a
pesquisa feita também na Inglaterra.
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controle por parte da comunidade ou da autoridade, é o que hoje discutimos como autonomia
do leitor, que desde os séculos citados, já se delineia nas frinchas, na desobediência à ordem
estabelecida. O leitor caçador, 5como exprime Michel de Certeau, (1994), é nômade, caça em
terras alheias sem tomar o lugar de/do autor.
É necessário, portanto, que o leitor assuma a sua condição de leitor “criativo e
caçador” conforme assinala Michel de Certeau (1994, p.228) e busque na leitura as várias
formas de enfrentamento, análise e reflexão do que lê, percebendo antes de mais nada “o que
lê, para que lê e por que lê.”Quem lê reflete, analisa, escreve. Ao ler, o leitor estabelece a
relação dialógica com o texto, assume posturas através do processo dialético, rompe com o
estabelecido e converge para a (re)elaboração criativa do pensamento, torna-se co-autor
simultaneamente.
Assim, fica evidenciado o duplo registro histórico do ensino escolar e dos seus
suportes, a fim de que compreendamos a definição de leitura e seus fins. No primeiro caso, a
alfabetização funcional, utiliza como suporte as cartilhas, catecismos e silabários – material
que mistura uma didática religiosa com a aprendizagem da leitura.
Já a leitura numa
perspectiva de abertura e não inculcação ideológica, e sim, agudização do senso crítico, leva a
inventar manuais e enriquecer seus conteúdos. É, pois, fundamental, perceber que ao longo do
processo histórico, a educação das classes populares era vista como um elemento de
desordem, pois podia desequilibrar a sociedade e fazer com que os filhos dos camponeses e
artesãos desejassem sair de sua condição multiplicando a população de intelectuais frustrados
que cresceu na Inglaterra das primeiras décadas do séc. XVII ou na França de meados do séc.
XVIII.
Observem, pois, o poder da leitura como maior possibilidade de inserção social,
organização de classes, senso crítico, articulação política, e, sobretudo de modificação da
estrutura social vigente, provocando o receio, o medo, o cerceamento por parte dos poderes
constituídos, que viam na organização dos camponeses, a leitura como elemento de desordem,
5
O moleiro humilde do séc. XIV em Friuli, interior da Itália.,Menocchio, conforme descrito em O Queijo e os
vermes , de Carlos Ginzburg,1987, foi leitor caçador e ousou ler para além da ordem estabelecida, o que lhe
valeu o processo de inquisição pela igreja católica.
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de não-submissão, de enfrentamento das adversidades, mesmo em contextos tão pouco
democráticos.
Não é à toa, que as comunidades camponesas, e urbanas, conforme estudos de Roger
Chartier, (2001), têm a partir do séc. XVII, a idéia de que se um filho sabe ler e escrever pode
modificar sua condição, encontrar emprego, estar a serviço de uma casa de notáveis ou de
aristocratas. Outro fato interessante no séc. XVIII são os anúncios de jornais, nos quais as
pessoas solicitam algum empregado ou empregada que soubesse ler ou escrever para ajudar
os patrões nas tarefas cotidianas.
O ato de ler requeria certas capacidades de leitura conforme as formas do texto. Por
exemplo, se aprendia a ler com os textos impressos e desta maneira, alguns leitores, podiam
ler a letra impressa em caracteres romanos, mas não a escrita à mão. Para ler um texto
impresso, supunha a capacidade de produzi-lo e que antes de ler aprendera a escrever. Estes
dois momentos estão separados em todas as doutrinas e práticas pedagógicas. Ensinava-se a
ler separado do ensinar a escrever, o ensinar se dava de forma dicotômica. Isso se deu até o
começo do século XIX, quando se estabelece na França, a simultaneidade de ambas as
aprendizagens.6 Havia, portanto, muita gente que podia ler, mas que nunca aprendeu a
escrever. E a assinatura, pertence, pois, a essa aprendizagem da escrita.
E as mulheres onde estão neste contexto? Qual a inserção das mesmas no mundo da
leitura/escritura?7 Às mulheres, bem como aos alunos mais humildes, dos meios dos artesãos
e dos camponeses, a escola oferece apenas a aprendizagem da leitura, mas não a da escrita. O
que ratifica a exclusão, discriminação dos grupos das mulheres, dos pobres e camponeses.
Entretanto, havia nos séculos XVII e XVIII, muita gente que conquistou a escrita e a leitura
6
Cf. para maior aprofundamento os estudos de Roger Chartier, 2001, In: Cultura escrita, Literatura e História,
que explicita juntamente com outros autores, como Daniel Goldin, Carlos Aguirre, Anaya Jesús, o mapa da
história dos livros, a compreensão da cultura escrita, as práticas de leitura, o papel do leitor e da leitura a
compreensão das obras clássicas, e canônicas, as fontes e os meios que permitem o historiador refletir sobre o
ato sempre efêmero e misterioso que é a apropriação de um texto.
7
No Brasil a educação feminina aponta as últimas décadas do século XIX como sendo necessária a educação
para a mulher. Denuncia-se a falta de mestres e mestras com boa formação, devido ao abandono da educação nas
províncias, já sinalizado desde o início do império. Em resposta aos reclamos sobre a grave situação da
educação, em meados do séc. XIX, algumas medidas foram tomadas e logo começaram a ser criadas as primeiras
escolas normais para formação docente. Para maior aprofundamento cf.Mulheres na sala de aula de Guacira
Lopes Louro, 2000.
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fora de todo o marco escolar. Essa entrada na cultura escrita sem a mediação da escola, deu-se
por meio do encontro de algum personagem singular com os livros, conforme atestam
algumas autobiografias do século XVIII, na França.
Tudo se dá com, na e pela leitura. Ela agudiza o senso crítico, faz perceber a ideologia
subjacente aos textos veiculados socialmente. Faz interagir intelectualmente com discursos
elaborados dentro de regras específicas com sintaxe, léxico, e universo de referências
próprias. A leitura implica tensão, desacordo, não linearidade, debate, diálogo, mudanças,
humildade, pois às vezes não adentramos em certos textos com facilidade, necessitamos voltar
a outras leituras para depois retomar aquela que nos pareceu impossível compreender naquele
momento, naquele contexto. Devemos, pois, utilizar nosso acervo de leituras realizadas no
sentido lato sensu (de textos não apenas escritos) e buscar por analogia, estabelecer
sentidos/diálogos, com as novas leituras que nos são apresentadas. Ler é, pois, vital. Por isso,
Umberto Eco (1995, p.44), afirma: “As leituras falam de leituras e todo leitor lê uma história
já lida”. Ler é, sobretudo, ler os implícitos, os não-ditos, conforme já mencionamos neste
texto.
Terceiro deslocamento: Leitura e poder
Depois dessa primeira reflexão panorâmica na história, percebemos o quanto a leitura
sempre esteve vinculada ao poder, a inserção social, a libertação, a compreensão do mundo,
de si, e do outro/a, como formas concretas de existência significativa.
Assim afirma Alberto Manguel, (1997,p.19-20):
Todos nós lemos a nós e ao mundo à nossa volta para vislumbrar o que
somos e onde estamos. Lemos para compreender, ou para começar a
compreender. Não podemos deixar de ler. Ler, quase como respirar é nossa
função essencial. Aprendi a escrever muito tempo depois. Aos sete anos de
idade. Talvez pudesse viver sem escrever, mas não creio que pudesse viver
sem ler. Ler - descobri-vem antes de escrever [...] uma sociedade pode
existir sem escrever, mas nenhuma sem ler.
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Nesse sentido, o nosso alargamento acerca do poder que a leitura nos concede permite que,
para além da palavra escrita, leiamos o mundo, as imagens, a cidade, a escola, os outros e a
nós mesmos numa postura sempre interrogante, desconfiada, que nos impele a pensar sobre o
grande texto social que nos engendra, e nos faz permanentemente ativos no mundo. Assim,
nossa concepção de leitura e de leitor se respalda nas idéias de Paulo Freire, (1985, p. 11), que
diz: “o ato de ler não se esgota na decodificação pura da palavra escrita, mas se antecipa e se
alonga na inteligência do mundo”. Portanto, o leitor na concepção freiriana, lê para além do
código escrito, lê as muitas linguagens disponíveis na cultura e, portanto, no mundo.
Construindo sentido, sendo co-autor, interagindo sempre com a leitura realizada.
Sobre o leitor Freire (1985, p.11) afirma: “A compreensão do meu ato de ler o mundo
em particular em que me movia é absolutamente significativa [...] re-crio, re-vivo, no texto
que escrevo, a experiência vivida quando ainda não lia a palavra.”
É nessa leitura, que acreditamos. Na que nos move ao encontro do conhecido, do
desconhecido, do dócil, do incômodo, e que nos enriquece e nos transforma de algum modo.
Para tanto, se faz necessário ler tudo o que nos rodeia através do sentido táctil, olfativo,
visual, auditivo entre outros, deixando vir às memórias e as experiências passadas que fazem
parte do percurso do leitor/a, é fazer o que nos assinala Paulo Freire: (1985, p.12) “a leitura da
palavramundo”.
Mas o poder da leitura é pulverizado e traz implicações diversas às nossas ações
cotidianas, desde as mais simples como pegar um ônibus, verificar o troco, tomar um
remédio, ler/fazer uma receita, ler um manual, saber chegar numa rua, pagar os boletos nos
cachs eletrônicos, sacar/transferir dinheiro, nos faz sentir autônomos ou dependentes, e/ou
alijados de um processo social mais amplo, cujas demandas exigem mais e mais do sujeito
leitor/a, já que o mundo da oralidade se organiza de forma diferenciada do mundo da escrita
já que nos movemos entre palavras, imagens, sons e cores. O analfabeto é mais dependente,
vive o drama de não se sentir incluído no mundo da escrita para realizar ações das mais
simples às mais complexas. Usa estratégias diversas para ler o mundo e nele se movimentar
com eficácia. Ler os ônibus pelas cores, faixas, observam as ruas e referências nelas contidas,
mas sabem que são precárias e provisórias suas estratégias, pois o dinamismo, as mudanças de
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cores, design, de rota, entre outras, os deixam perdidos, atônitos dependentes de outras
pessoas, às vezes, ou na maioria das vezes, são ludibriados, roubados, enganados.
Quarto deslocamento - Leitura e escrita: práticas sociais concretas
E para que essa reflexão se contextualize como prática social concreta, convidamos
para o diálogo novamente Eliana Yunes, (2001) que afirma:
Na sociedade brasileira, uma das metades não lê porque não sabem, a outra
porque não quer. Por que então insistimos na escola? Pelo diploma, pelo
cumprimento formal de um rito ao universo de produção? Repito, vamos à
escola “aprender a ler” e saímos de lá detestando tudo que se relacione com
ela: estudo, pesquisa, produção textual etc. (YUNES, 2001, p.1)
Esse quadro de desigualdade no acesso aos bens e usufrutos culturais nos coloca
permanentemente atentos e mobilizados, por entendermos ser perverso e gritante o não-acesso
ao mundo da leitura do código escrito, haja vista que nosso processo de alfabetização é
entendido, hoje, como uma aprendizagem que dura a vida toda e não apenas um momento
pontual da vida do sujeito leitor/a. Cabe, pois, a todos/todas educadores/as o desafio de
formar leitores/ras. Para Eliana Yunes, (2001, é preciso considerar que a leitura é,
[...] a mais cara moeda do século: quem está informado pode com mais
rapidez e clareza fazer escolhas. [...] Sem dúvida a leitura por si só, não
resolve os problemas sociais e/o individuais, mas ter opções, compreender
as situações, é menos amargo do que ser levado, sem domínio, ao que se
passa em torno. ( YUNES, 2001, p.2),
É por entendermos os poderes que a leitura nos concede e que está no bojo de nossas
memórias, nossas lutas, nosso poder de reinventar, ousar, compreender, discordar, desconfiar,
que, ampliamos nossa concepção de poder-saber a partir dos conceitos foucoutiano ( 2003,
2004), de poder-saber, haja vista que as relações sociais são marcadas pelo poder, o qual nos
incita a estar na arena de luta pela formação continuada de alunos/as, professores/as,
pesquisadores/as, uma vez que somos todos/todas eternos aprendizes.
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Para Michel Foucault, (2004 p.21), não há saber neutro. Todo saber é político, porque
todo saber tem sua gênese em relações de poder. Nesse sentido, a amplitude do que afirmam
as teóricas feministas, ratificam o entendimento do saber-poder, ao afirmarem que “o pessoal
é político”, e que é citado por Gabriela Castelhanos, (1996), de forma a dialogar com Michel
Foucault (2003,2004), no seu entendimento acerca do saber-poder, o qual acrescenta que
saber e poder se implicam mutuamente: não há relação de poder sem constituição de um
campo de saber, como também reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder.
Todo ponto de exercício do poder é, ao mesmo tempo, um lugar de formação de saber. O
saber funciona na sociedade dotado de poder. É enquanto é saber que tem poder.
É a partir dessas reflexões que a tessitura do poder, saber discursivo se encarnam nos
cenários investigados por Michel Foucault.
O saber para Michel Foucault, (2004, p.14-15) nos remete a uma compreensão sobre
as relações humanas produzidas pelas culturas e nas sociedades. O saber é, portanto, relativo
ao invés de absoluto e é objeto de lutas políticas, uma vez que se constitui em um dos meios
pelos quais se constroem as relações de poder.
Os saberes se produzem e se compartilham através de determinados tipos de discursos,
desde os científicos aos narrativos, tanto nos relatos literários como na vida cotidiana,
passando por toda gama de discursos profissionais.
Em relação ao poder Michel Foucault, (2004, p. 15) afirma:
O poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona como uma
maquinaria, uma máquina social que não está situada em um lugar
privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina por toda a estrutura social. E esse
caráter relacional do poder implica que as próprias lutas contra seu exercício
sejam feitas dentro da própria rede de poder, teia que se alastra por toda a
sociedade e a que ninguém pode escapar. Ele está sempre presente e se exerce
como uma multiplicidade de relações de força.
É exatamente nessa relação de forças, de resistências, de redes discursivas móveis e
transitórias, que se distribuem por toda a estrutura social os mecanismos e estratégias do
saber-poder, os quais estão localizados em diferentes pontos na estrutura social funcionando
como rede de dispositivos ou mecanismos que nada ou ninguém escapa; não há fronteiras
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nem limites, são movediços, circulares e circundantes e produzem sentidos explícitos,
implícitos e subentendidos.
Esperamos que os leitores/as a partir das reflexões tecidas até aqui, já tenham se dado
conta do quanto ler é poder, bem como tenham compreendido que o interesse de formar
leitores é demasiadamente perigoso para todos os segmentos sociais, instituições, poderes
constituídos e institucionalizados que não queiram ser questionados, nem modificados frente
às reivindicações dos que se indignam diante do não-acesso irrestrito a todos que têm fome de
justiça social, de leitura, palavras, sons, imagens, histórias, mapas, cores, letras, paisagens,
corpos, números, vida...
Escrever e se inscrever no texto que produz: o processo de autoria
Quinto deslocamento – Professor/a: mais que avaliador de um texto, um orientador/a.
Segundo Pereira (2007, p.2), discutir sobre o ensino-aprendizagem de produção de
texto, é buscar compreender como a sociedade e a linguagem estabelecem relação de mútua
constituição como essa relação de interdependência é fundamental para a compreensão e
desenvolvimento de práticas de ensino e de aprendizagem da escrita em diferentes espaços
sociais de letramento. É procurar compreender a escrita enquanto ação social.
Assim, os sujeitos produtores de textos perceberão os diferentes gêneros que circulam
socialmente e a partir das demandas da escola, da universidade e das suas necessidades
pessoais, aprenderá como escrevê-los. Mas para isso, é preciso encontrar mediadores desse
processo, que funcionem como orientadores, leitores dialógicos que realizam intervenções
sistemáticas na escrita dos alunos e alunas, de forma a sistematicamente fazê-los repensar seu
modo de dizer, de usar e operar com a linguagem, considerando as condições de produção já
recorrentemente conhecidas e divulgadas nas obras de Geraldi ( 1999).
1) Tem o que dizer?
2) Tem uma razão para dizer o que se tem a dizer?
3) Tem para quem dizer?
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4) Constitui-se como locutor que se compromete com o que diz?
É inegável que o sujeito constitui-se pela experiência e que esta experiência, refletida
nos gêneros acadêmicos científicos produzidos ao longo da itinerância acadêmica na
universidade, a exemplo do memorial formação, memorial de leitura, artigos científicos,
artigos de relato de experiência, ensaio monográfico, etc, marcam as conquistas do sujeito que
se mostra e se expõe, mas, ao fazer isso, escolhe o que quer que saibamos dele, ou melhor,
exibe-se no que ele julga ser o melhor de si. Não sem dificuldades, relutâncias, pausas,
incompletudes, mas com todo esse forjar que forma e transforma no que somos e no que
continuadamente ainda estamos construindo de nós e sobre nós.
Vão sendo ratificadas a cada semestre de convivência com os alunos e alunas do curso
de Letras, que essas transformações são forjadas e se constituem como um olhar retrospectivo
sobre si mesmo, sobre o fazer docente exigindo ainda, um olhar prospectivo sobre a formação
desse profissional que está sob a nossa co-responsabilidade, pois sendo ele sujeito de sua
aprendizagem, responsável por sua formação de leitura e escrita, compartilhamos
responsabilidades, pois também nos cabe mediar essa formação.
Quando falamos de mediação sabemos que pode haver interação sem mediação, mas
nunca uma mediação sem interação. A educação, de fato, pode ser utilizada pelos educadores
e educadoras como possibilidade de transformação humana, pois, na expressão do educador
Paulo Freire (2001, p.55): “Ensinar exige consciência do inacabamento. O inacabamento do
ser humano. Onde há vida, há inacabamento. Mas só entre homens e mulheres o
inacabamento se tornou consciente.”
Este “inacabamento humano”, que vai sendo revelado ao longo de cada semestre
letivo, vai sendo força motriz para o que o educador Pedro Demo chama de “esforço
reconstrutivo do aluno/a”, pois sem esse esforço não é possível crescimento intelectual, muito
menos formar leitor autônomo e produtor de texto que se traduza em seu discurso
representando os diversos papéis que os lugares sociais exigem. Como por exemplo, lugar do
aluno, lugar do professor, lugar do estagiário, lugar do representante do DA, etc. Daí ser
possível acreditarmos na mudança de cada ser humano mediada, entre tantos fatores, pela
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educação, porque é ela que torna homens e mulheres conscientes de seu ser/estar e fazer no
mundo.
As histórias de vida/de leitura dos sujeitos com os quais convivemos e partilhamos
saberes, nos faz refletir sobre as representações acerca de si mesmos e dos outros, as tristezas,
as reflexões, os sonhos e as experiências vivenciadas, todos esses elementos são passíveis da
análise, de pesquisa, de redimensionamento do nosso fazer pedagógico. E nos impele a
compreender o nosso papel como mediar e orientador dos processos de leitura e escrita dos
alunos. O que significa sermos leitores e produtores de texto de diversos gêneros textuais, em
potencial dos gêneros acadêmico-científicos? Como ensinar o que, o que não praticamos e
não exercitamos? Como realizar a análise lingüística dos textos produzidos pelos alunos do
curso de Letras?
É, pois, fundante que sejamos referência do nosso discurso e do nosso fazer
acadêmico. Que sejamos leitores e produtores dos gêneros acadêmico-científicos e
partilhemos nossas produções em sala de aula e em tantos outros espaços de debate e
circulação do saber.
Sexto deslocamento - Aprende-se a escrever, escrevendo.
Jorge Larrosa (2001) demonstra que a compreensão sobre o que nos toca, nos faz
saber algo que não está nas informações lidas, mas no vivenciar dos fatos, é isso é o desafio
que nos impele a pensar nos processos de escrita e leitura uma experiência como
intransferível. É pessoal. Única. Singular. Plural. É feita de nós, linhas, pausas, emoções,
cores, tons que variam e se mesclam, num ir e vir de meditações, confissões, desabafos,
crenças que vão brotando, como se fosse uma necessidade urgente num momento único, em
que ao dizer (re)vive, (trans)forma, forma e (in)quieta.
Por isso quem escreve se inscreve no texto que produz. Para Jorge Larrosa (2001, p.3),
“[...] a possibilidade de que algo nos aconteça requer parar para pensar, requer um gesto de
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interrupção, parar para olhar, para escutar, para sentir, tudo isso mais devagar, demorar nos
detalhes, calar muito e ter paciência.”
Por isso nossa fala nesta mesa-redonda de hoje deve estar permeada com poesia,
dores, confissões, emoções, incertezas, tristezas, crenças, fé e esperanças que nos convida a
dialogar com as palavras poéticas de Manoel de Barros (1990), que expõe sobre seu processo
de criação. Ele diz que assim como se lava roupa no tanque, ao batermos nas palavras, as
espumas que ficarem no ralo serão boas para o início do texto. Depois é ir imitando os
camaleões que se mostram de formas e cores diversas, sendo lesma, pedra, lata. As palavras
do nascer adubam-se de nós; seduzem ao poeta e fazem reaprender a errar a língua, fazendo
desse processo uma desarrumação da cartilha.
E nosso convite está lançado aos alunos e alunas que compartilham comigo dessa
mesa trazendo suas experiências de leitura e escrita em sala de aula, sendo mediadores na
formação de outros tantos leitores e leitoras e produtores de texto.
Novamente trazemos para nossa reflexão, o educador e escritor Jorge Larrosa (2001,
p.3), que afirma: “[...] ninguém pode aprender da experiência do outro a menos que essa
experiência seja de algum modo revivida e tornada própria.” Nada pode substituir nossa
experiência de escrita e de leitura.
Cada leitor traz para si sentidos únicos e marcados pelo que tocou, refletiu e sentiu e
isso podemos perceber ao ler e partilhar os textos dos nossos alunos e alunas.
Convidamos ainda, para tecer conosco este texto, o educador da esperança Paulo
Freire (2002), que militou nobremente pela educação e, portanto, a favor da vida. Para esse
educador: “[...] não posso continuar sendo humano, se faço desaparecer em mim a
esperança [...] a mudança do mundo implica a dialetização entre a denúncia da situação
desumanizante e o anúncio de sua superação, no fundo, o nosso sonho.” (FREIRE, 2002, p.
88). Se esse sonho é coletivo, as mudanças, ainda que incipientes e tímidas, certamente
aparecerão e, de forma sensibilizadora e exitosa, lançarão outros convites a tantas outras
pessoas em diferentes espaços de aprendizagem.
Conclusões
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Em síntese, podemos destacar que ler e escrever são processos que estão imbricados,
mas se constituem de diversas formas e distintos objetivos. Nesse sentido, a universidade não
pode mais trabalhar de forma fragmentada, isolada em áreas do conhecimento. È fundamental
o diálogo entre as áreas, os vários olhares e saberes, a fim de construirmos uma prática menos
simplista e mais sistematizada e aprofundada. Para tal, acredito ser imprescindível realizar o
que nos aponta Eliana Yunes (1998), que uma prática pedagógica desta natureza não pode ser
oferecida por um único professor, sob a pena de se disciplinarizar em uma visão de mundo,
um tipo de leitura sob um determinado recorte ou com interpretantes recorrentes. Construir
um corpo docente circulante, de vários departamentos, de diferentes grupos de pesquisa, é
imperioso, de forma que buscando todos os mesmos fins, contribuam com suas diferentes
práticas interpretativas, suas diferentes leituras, para a formação do leitor/cidadão entre
universitários. É preciso provocar deslocamentos para que a prática multidisciplinar comece a
emergir.
A vida é por excelência multidisciplinar, já observaram como produzimos nossas
existências? Se formos refletir sobre uma atividade cotidiana simples como, por exemplo,
comprar um livro, fazer o supermercado, acionamos conhecimentos matemáticos,
geográficos, históricos, culturais e ainda vamos lendo, selecionando, inferindo, realizando
escolhas que nos incita a articular conhecimentos, habilidades e competências variadas ,mas
não nos damos conta disso. Realizamos essas atividades de forma automatizada, sem nos dar
conta das leituras realizadas durante todo a nossa atividade.
É urgente, pois, que constantemente façamos nossas reflexões sobre nossa própria
capacidade de formar leitor e leitora. Forma-se leitor/a sem ser leitor e leitora? Impossível.
Formar leitores e leitoras exige trabalho prático, ação recorrente, e intelectiva constante. As
reflexões apontadas neste caso já são um começo para que a universidade constitua o espaço
da discussão e das propostas interdisciplinares e multidisciplinares, em ações conjuntas e
efetivas.
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PEREIRA, Rodrigo Acosta. Ensino de produção textual: questões teóricas e didáticas. Revista
eletrônica de divulgação científica em Língua Portuguesa, Lingüística e Literatura. Ano
04 n.06-1º Semestre de 2007.
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Da vida rasgada. Imagens e representações sobre o negro em Madame Satã
∗
Ari Lima
RESUMO: O filme Madame Satã, de Karim Aïnouz, transcorre nos anos 1930, período em que o Estado
brasileiro, as elites e até mesmo o cidadão comum – homem ou mulher, pobre ou abastado, negro, branco ou
mestiço - se engajaram num esforço de modernização das instituições, das artes, dos gostos e das atitudes.
Naquela ocasião, as capitais brasileiras, em particular a cidade do Rio de Janeiro, então distrito federal,
evidenciavam este ideal através de políticas de saneamento e eugenismo, assim como através da implantação
paulatina da indústria cultural do cinema, do disco e do rádio como meio de informação e entretenimento. Além
da literatura e do teatro, o cinema, o disco e o rádio se transformaram em novos meios de reverberação e mesmo
redefinição do imaginário sobre a nação brasileira. A propósito disso, este artigo tratará de duas questões
fundamentais suscitadas em relação ao negro e à cultura negro-africana no Brasil. A primeira delas diz respeito à
permanência de imagens e representações pré-modernas sobre o negro que configuraram o ideal de modernidade
no Brasil. A segunda, diz respeito às atitudes dos negros no sentido da adesão e reinterpretação de um projeto
das elites de modernização da sociedade brasileira que previa o negro e a cultura negro-africana como objeto e
matéria-prima.
Palavras-chave: Negro; Madame Satã; Modernidade
RÉSUMÉ: Le film "Madame Satã" de Karim Aïnouz se passe dans les années 30, période au cours de laquelle
l'Etat, les élites et même le citoyen commun - homme ou femme, pauvre ou nanti, noir, blanc ou métis - se sont
engagés dans un effort de modernisation des institutions, des arts, des goûts et des attitudes. A cette occasion, les
principales villes brésiliennes, Rio de Janeiro en particulier, alors capitale, mettaient en évidence cet idéal à
travers des politiques d'assainissement et d'eugénisme, et enfin, à travers l'implantation progressive de l'industrie
cuturelle du cinéma, du disque et de la radio comme moyen d'information et de divertissement. Au-delà de la
littérature et du théâtre, le cinéma, le disque et la radio se sont transformés en de nouveaux moyens de
réverbération, voire même de redéfinition de l'imaginaire sur la nation brésilienne. Cet article traitera, en ce
sens, deux questions fondamentales suscitées par rapport au noir et à la culture négro-africaine au Brésil. La
première concerne la permanence d'images et de représentations prémodernes du noir qui ont donné forme à
l'idéal de modernité au Brésil. La seconde porte sur les attitudes des noirs à l'égard de leur adhésion à un projet
des élites, et de leur réinterprétation, de modernisation de la société brésilienne qui considérait le noir et la
culture négro-africaine comme objet et matière première.

Mots-clés: Noir; Madame Satã; Modernité
Ari Lima é antropólogo e Prof. Adjunto do Departamento de Educação do Campus II/ UNEB e Coordenador do
Núcleo das Tradições Orais e Patrimônio Imaterial (NUTOPIA)/Campus II/UNEB. Como autor se
responsabiliza exclusivamente por todas as idéias e argumentos apresentados ao longo deste artigo. Entretanto,
agradece aos queridos alunos e alunas do 3º semestre, 2006.1, do curso de História do Campus II, da UNEB,
pelas sugestões críticas sobre o filme Madame Satã em debate realizado em sala de aula. E-mail:
[email protected]
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Na primeira seqüência de imagens do filme Madame Satã, de Karim Aïnouz,
enquanto observamos o rosto abatido do personagem João Francisco dos Santos, o mesmo
Benedito Itabajá da Silva ou simplesmente Madame Satã, interpretado pelo ator Lázaro
Ramos, ouvimos uma voz em off que diz:
O sindicado, que também diz-se chamar Benedito Itabajá da Silva, é conhecidíssimo
na jurisdição deste distrito policial como desordeiro, sendo freqüentador contumaz
da Lapa e suas imediações. É pederasta passivo, usa as sobrancelhas raspadas e
adota atitudes femininas, alterando até a própria voz. Não tem religião alguma,
fuma, joga e é dado ao vício da embriaguez. Sua instrução é rudimentar, exprime-se
com dificuldade e intercala em sua conversa palavras da gíria do seu ambiente. É de
pouca inteligência, não gosta do convívio da sociedade por ver que ela o repele dado
os seus vícios. É visto sempre entre pederastas, prostitutas, proxenetas e outras
pessoas do mais baixo nível social. Ufana-se de possuir economias, mas como não
ofere proventos de trabalho digno, só podem ser essas economias produto de atos
repulsivos ou criminosos. Pode-se adiantar que o sindicado já respondeu a vários
processos e sempre que ouvido em cartório, provoca incidentes e agride mesmo os
funcionários da polícia. É um indivíduo de temperamento calculado, propenso ao
crime e por todas as razões inteiramente nocivo à sociedade. Rio de Janeiro, Distrito
Federal, 12 dias do mês de maio do ano de 1932.
O trecho acima transcrito remete a uma série de imagens e representações sobre o
negro recorrentes na literatura, na música, no cinema, na televisão, em obras de importantes
intelectuais tais como Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) e, fundamentalmente, no
imaginário coletivo brasileiro. Além disso, remete também à condição social do negro desde
que a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, em 1888, extinguiu o sistema escravocrata e
transformou o negro escravo em Homem livre e cidadão. Ou seja, remete a uma condição
social modelar nas grandes cidades do Brasil, como era o caso do Rio de Janeiro nos anos
1930, então Distrito Federal, cidade onde se passa o filme Madame Satã e onde viveu João
Francisco dos Santos.
Os anos 1930 foram um período em que o Estado brasileiro, as elites e até mesmo o
cidadão comum – homem ou mulher, pobre ou abastado, negro, branco ou mestiço - se
engajaram num esforço de modernização das instituições, das artes, dos gostos e das atitudes.
Daí que o filme Madame Satã, que transcorre nos anos 1930, suscita duas questões
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fundamentais em relação ao negro e à cultura negra-africana1 no Brasil. A primeira delas diz
respeito à permanência de imagens e representações pré-modernas sobre o negro que
configuraram o ideal de modernidade no Brasil. A segunda, diz respeito às atitudes dos negros
no sentido da adesão e reinterpretação de um projeto das elites de modernização da sociedade
brasileira que previa o negro e a cultura negra-africana como objeto e matéria-prima (cf.
GOMES, 1980; VIANNA, 1995; STAM, 1997). Ao longo das próximas páginas abordarei
uma e outra questão.
De um regime estético para o corpo negro
O corpo negro é imagem e representação em Madame Satã. Neste caso, o termo
imagem denota a designação e semelhança de um objeto ou pessoa a um registro visual ou
gráfico correspondente, uma vez que comunga algumas propriedades em comum com a coisa
denotada. Apresentada num suporte, a tela do cinema, a imagem composta implica na
admissão de uma presença virtual, mas também sugere uma existência contígua, não visível,
fora dos limites materiais do suporte fílmico (cf. XAVIER, 1984). Assim, a imagem é uma
ilusão de realidade. A imagem é representação.
1
Ao usar as categorias “negro”, “afro-descendente” e “cultura negro-africana”, pretendo me afastar e combater
tanto o viés do discurso freyriano sobre a hibridez quanto um outro discurso que tende a essencializar origens
“tribais” africanas ou perpetuar a pureza cultural no Novo Mundo colonizado, desconsiderando a agência e a
reinvenção mesmo quando se tratou de resistência cultural e afirmação de “África” na diáspora. Ao contrário do
que possa parecer, ao usar as categorias “negro”, “negro-africano” e “afro-descendente” pretendo me referir a
sentidos diferentes. Com a categoria “negro” quero enfatizar uma idéia projetada do branco que naturaliza,
racializa e desistoriciza o processo social ao qual estiveram submetidos africanos e seus descendentes. Neste
caso, o que mais se evidencia é uma história de subordinação, aparente passividade cultural, dessubstancialização e estetização da diferença representada pelo corpo negro. Com a categoria “afro-descendente”
quero enfatizar a negação do negro como cidadão brasileiro pleno, seu movimento de crítica, de resistência à
inferiorização e à sua anulação como sujeito social. Postulo também, neste caso, uma nova identidade afrodiaspórica e transnacional. Com a categoria “negro-africano” quero enfatizar um movimento oscilante de
africanos e descendentes no Brasil que ora se dirige à África como mito, ideologia ou transitividade, ora em
direção à sua representação como “negro” (cf. ALVES, 2003).
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A possibilidade de composição de imagens e representações pelo cinema trouxe
questões novas e específicas desde o seu primeiro momento. Walter Benjamin (1982), ao
refletir sobre a especificidade do discurso da obra de arte na época de sua normativa
reprodutibilidade técnica ainda na primeira metade do século XX, quando as noções de aura,
de autenticidade e de valor cultural antigas foram destituídas ou deslocadas pelo valor de
troca e consumo industrial, elaborou uma reflexão sobre o regime e um novo poder de
representação da imagem cinematográfica. Para Benjamim, se a obra de arte burguesa
tradicional, como artefato cultural e estético ensimesmado, elitista, era capaz de deslocar o
receptor e, deste modo, mobilizar sua consciência e imaginação, as novas e vindouras técnicas
de produção de imagens penetravam mais na vida tanto quanto mais se distanciavam porque a
fragmentavam e a refratavam todo o instante. O cinema, para Benjamim, devolvia o real
artificializado uma vez que se esforçava para esconder ou dissimular sua intervenção. Logo, a
captação imediata da realidade que prometia era quimera e desencanto.
É bastante claro, conseqüentemente, que a natureza que fala à câmera é inteiramente
diversa da que se dirige aos olhos. Diferente, sobretudo, porque substitui o espaço
no qual o homem age conscientemente por um espaço onde sua ação é inconsciente.
Se é banal analisar, pelo menos globalmente, o modo de andar dos homens, por
outro lado, por certo nada sabemos de sua atitude na fração de segundo em que dá
um passo. (...). É neste domínio que a câmera penetra, com todos seus meios
auxiliares, com suas extensões de campo e suas acelerações, suas ampliações e
reduções. Pela primeira vez, ela nos abre a experiência de um inconsciente visual,
assim como a psicanálise nos fornece a experiência do inconsciente instintivo
(BENJAMIN, 1982, p. 234).
Contra isso, Walter Benjamin propôs politizar a arte ou, de outro modo, politizar o
olhar que vê e representa o mundo. Era a apatia, a despolitização e o controle social das
massas, intensificados pouco a pouco pela arte técnica e industrializada do cinema, que
Benjamin atacava. A crítica de Benjamin, todavia, revela um desencanto com o esvaziamento
de uma determinada noção de beleza da imagem. O distanciamento, a aura, a autenticidade, o
valor de culto da obra de arte tradicional, tão valorizados por Benjamin, revelam categorias do
belo que, ao invés de substantivas, são ideológicas e pretensamente universais. Logo, do
mesmo modo que Benjamin propôs politizar a arte técnica, era preciso perscrutar e
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desconstruir os discursos da arte tradicional sobre “primitivos” - onde se incluem índios assim
como negros – representados, antes do cinema, pela pintura e pela fotografia.
A representação de “primitivos”, desde o Renascimento europeu, evidencia a
transformação de indígenas e negros em objeto de culto, cuja condição social, solapada,
aparecia mediada pela imagem artística de seus corpos. Nicolau Sevcenko (1996) afirma que,
normalmente, o regime estético renascentista denota o corpo “primitivo” através da pele
assinalada em cor escura, em inscrições corporais, na associação dos corpos a feras, a bestas
selvagens, a monstros ou criaturas abomináveis. Ocorre também um reenquadramento estético
- que exibe um corpo “primitivo” proporcional, segundo uma escala de beleza greco-latina, e
ético – a exibição de um corpo igual, mas avesso ao corpo branco, por conseguinte deslocado
para a ociosidade, a licenciosidade, a selvageria, a estupidez, o paganismo. Este regime,
acredito, é uma orientação que se proliferou nos séculos posteriores ao Renascimento e
permanece nos dias atuais.
No Brasil, as mais antigas e recorrentes imagens e representações sobre o negro
normalmente figuram escravos africanos ou párias. Por outro lado, as mais recentes, quando o
retratam deslocado destas posições, provocam fascínio ou desconforto uma vez que
transformam o negro em estereótipo ou fetiche. Tais imagens e representações não têm sido
originalmente do negro, diferentemente, são imagens e representações racializadas sobre o
negro, produzidas de acordo com uma perspectiva colonial e branca2. Ou seja, temos, de
acordo com Frantz Fanon (1983), primeiro um aspecto psicanalítico, depois material e
simbólico da configuração do homem negro como falo luxurioso e destruidor. Temos, além
disso, uma dada evidência biológica da diferença racial, e desde então, a tensão entre uma
2
Esta problemática que levanto, aliás, tem um precedente no trabalho de Zilá Bernd (1988) quando busca definir
e identificar a emergência de uma literatura negra, do negro no Brasil. Bernd cita negros como Cruz e Sousa e
Machado de Assis, dois grandes autores da historiografia literária brasileira, que não teriam construído uma
literatura negra, mas uma literatura sobre o negro. Ambos pertenceriam à mesma linhagem literária do poeta
abolicionista, branco, Castro Alves, que os antecede, ou do poeta modernista, também branco, Jorge de Lima,
que depois destes, já no século XX, do mesmo modo se destaca por incluir o negro e a temática negra em sua
obra. Todos os quatro seriam grandes autores adaptados ao mundo branco, aos padrões culturais e estéticos
ocidentais. Teriam construído uma literatura negra, do negro se além de serem negros ou brancos, de
humanizarem e positivarem a ancestralidade africana, encontrássemos em suas obras o negro como eu enunciado
em primeira pessoa, desvencilhado do anonimato, da invisibilidade, da subordinação e condição de objeto do
qual se fala, se encontrássemos em suas obras elementos de uma epopéia negra, a reversão de valores e uma
nova ordem simbólica presentes em autores como Luiz Gama, Lima Barreto, Cuti e Ele Semog.
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possível natureza e a dimensão social, cultural e histórica do negro, particular à civilização
branca.
No contexto brasileiro, moderno, a opinião sobre o homem negro, africano ou
descendente, como de baixo nível mental, de vida selvática, incapaz de civilizar-se, com
propensão biológica ao crime e - com ênfase, detentor de uma sexualidade insaciável, imoral
e predatória foi traduzida em discursos eruditos, em imagens e representações sobre a cultura
e o corpo negro-africanos produzidas por estrangeiros e nacionais (cf. AUGEL, 1980). As
imagens e representações sobre o negro no teatro, assim como aquelas que temos assistido no
cinema e na televisão, têm um precedente e mesmo fundamento histórico comum, que é a
literatura produzida no Brasil desde o século XIX. David Brookshaw (1983) observa que a
figura do negro na literatura brasileira anterior à abolição do tráfico de escravos, em 1850,
praticamente não existe. Quando a mesma começa a aparecer é utilizada para contrastar com a
figura do índio. O negro de índole escrava, humilde e resignada esteve então para o índio por
natureza corajoso, orgulhoso e independente. Enquanto se aproximava a extinção da
escravidão, a representação do negro foi alterada. Mesmo na literatura abolicionista, o escravo
fugitivo, insurrecto, foi transformado no negro “escravo demônio e imoral”, degenerador da
propriedade e ordem familiar aristocrática. Mais tarde, afirma ainda Brookshaw, o
nacionalismo racista de uma literatura exemplarmente representada por Monteiro Lobato
respeitava o negro enquanto ser selvagem, autêntico e tragédia biológica, porém odiava-o no
que dizia respeito ao contato com o branco. Ao contrário da literatura do escritor Jorge
Amado, que, a partir dos anos 1930, celebrava a mestiçagem e transformava o negro em
mestiço encantadoramente irreverente, anárquico, embora puro e sensual, faceta de uma
positivação conservadora, preconceituosa e populista.
Em relação à história da imagem e representação do negro no cinema, Robert Stam
(1997) afirma que se, no plano intelectual, social e político, no Brasil dos anos 1930, havia
um discurso sobre a equivalência da contribuição das raças para a formação do Brasil, na
cinematografia da época a contribuição do negro foi reduzida ao pitoresco e ao folclórico. O
negro foi mais um personagem da cozinha, estimulado a tocar e dançar do que um agente
político e econômico. Entre as décadas de 1930 e 1950, foram produzidas inumeráveis
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chanchadas modeladas em musicais americanos, mas também no teatro de revista e nos
programas de auditório do rádio. Estas chanchadas foram filmes que combinavam um forte
apelo popular com uma estética branca que favorecia o protagonismo de estrelas brancas,
enquanto os negros apareciam acompanhando estas estrelas – entre elas, Eliane Macedo, as
cantoras Carmen Miranda, Aurora Miranda, Marlene, Emilinha Borba – ou serviam de
“escada”, como foi o caso de Grande Otelo, para personagens interpretados por atores
brancos.
Nas chanchadas, o enredo se desenvolvia em torno do universo do carnaval, dos
valores do carnaval, em ambientes populares e negros. Na oportunidade, divulgavam-se as
marchas e sambas do carnaval vindouro. Stam observa que, relativamente à expressiva
presença de uma música negra nos filmes, nota-se a ausência de negros nos filmes. Era como
se os negros e a cultura negra-africana produzida no Brasil fossem canibalizados por este
cinema branco.
Em Madame Satã várias seqüências atualizam estas idéias e atitudes. A ambiência, o
contexto em que se encontra João Francisco dos Santos é da depravação, do elogio ao pecado,
da luxúria, da violência física e simbólica, da insalubridade, da vida rasgada. É neste contexto
que homens e mulheres brancos acessam uma reserva de furor sexual e de força vital
desprezíveis ao mesmo tempo em que cortejáveis. Assim é que no filme, Álvaro –
interpretado por Guilherme Pita, um homem branco, tímido, cheiroso, distinto e com dinheiro
no bolso vai em busca de uma “moça morena, de lábios e coxas grossas” que se traduz no
pênis de João Francisco, batizado como “Josefa”, uma versão brasileira do nome da dançarina
negra Josephine Baker, sucesso em Paris nos anos 1930 e devoção de João Francisco. Do
mesmo modo, o malandro branco Renatinho – interpretado por Fellipe Marques, se entrega a
esta mesma “moça morena” na ânsia de absorver uma virilidade escorregadia, cruel e
destemida encarnada pelo malandro João Francisco do Santos. Entretanto, antes disso, este
mesmo João Francisco, com máscara de cidadão, como lúmpen do mercado das artes carioca
saíra sorrateiro de um camarim ao roubar o dinheiro que deveria ter pago seus direitos
trabalhistas não respeitados pelo patrão expropriador que ofendido, mais tarde, lhe denuncia à
polícia.
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Novamente, a direção e o roteiro do filme Madame Satã, em obediência a um regime
estético anterior para o corpo negro, optam por privilegiar imagens e representações em que o
negro é um homem problema devolvido ao atavismo de uma suposta irracionalidade que lhe
impede de compreender os termos de seus próprios dilemas, lhe impede de amar a si mesmo
ou então só conceber o amor e o afeto através da dor, da violência ou da projeção de si em um
outro. A propósito, no filme, depois de um quebra-quebra promovido por João Francisco, ao
ser barrado na portaria de um clube da alta sociedade carioca, há uma seqüência de imagens e
diálogos comovente entre João Francisco e a prostituta Laurita, interpretada por Marcélia
Cartaxo, que evidencia isto:
Laurita – E precisava fazer aquilo?
João Francisco – Mas é claro que precisava! Vou levar desaforo pra casa! Todo
mundo pode entrar, por que é que eu não posso?
Laurita – Porque tu não é todo mundo.
(...)
Laurita – Tu parece um bicho, sai por aí, batendo a cabeça na parede.
João Francisco – Eu quero me endireitar.
Laurita – Endireitar o quê! Tu já nasceu torto!
(...)
Laurita – E por que tu não se acalma?
João Francisco – Tem uma coisa dentro de mim que não deixa.
Laurita – E que coisa é essa?
João Francisco – Não sei...
Laurita – Que coisa é essa?
João Francisco – Raiva.
Laurita – Tu parece que tem raiva de tá vivo.
João Francisco – Vai ver que é.
Laurita – Mas essa raiva passa.
João Francisco – Pois a minha parece que só aumenta, uma raiva que não tem fim e
que eu não tenho explicação pra ela. Laurita, o que é que você vê quando olha pra
mim que eu não vejo?
Laurita – Eu vejo... (risos) o Rodolfo Valentino, o John Ralph Miller (?), o Gary
Cooper...
João Francisco dos Santos, em sua máscara de cidadão, jamais poderia ser um astro
hollywoodiano. Não era branco, não era belo e desejável como branco e era nascido no Brasil,
um país periférico. “Já nasceu torto”. Era um homem negro, mergulhado no drama da sua
negrura não percebida nem por ele nem por sua melhor amiga Laurita. Iludido ou irônico, ele
reivindicava para si uma condição moderna e elementar de pessoa – em várias falas se refere a
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si mesmo como “minha pessoa...” – que se choca com uma condição de pessoa que a
sociedade lhe atribui (cf. BRANDÃO, 1986). Ou seja, João Francisco insinua todo o tempo,
ao se referir a si mesmo como “minha pessoa...” que se concebe como homem livre,
universal, cidadão dotado de direitos por posição social – homem de família, provedor e
protetor da vida de uma prostituta, de sua filha e de um travesti, dotado de status e honrarias –
malandro famoso, admirado e temido na antiga zona da Lapa carioca. Porém, João Francisco
é pessoa para a sociedade hegemônica na medida em que bem se adequa ao papel de um ser
negro, predeterminado por uma ordem social e simbólica que antecipadamente prevê seus
sentimentos, pensamentos e ações, como sublinha a atriz Vitória Aparecida Ximenes dos
Santos Cruz, interpretada por Renata Sorrah: “bem que me avisaram, não confia nesse preto,
ele é mais doido do que cachorro raivoso!”
De fato, a pessoa de João Francisco dos Santos é um analfabeto, sem profissão
definida, vigiado pela polícia, negro, homossexual, sem pai, sem mãe, irmãos, esposa ou
filhos, generoso e cruel. Entretanto, é esta realidade e experiência social renegada que informa
este original artista da performance que sabia dançar, cantar, recitar histórias e “tirar onda” de
malandro. Madame Satã nasceu do “submundo”, foi orientado pelos enigmas transmitidos por
africanos – João Francisco define-se como filho dos deuses africanos Yansã e Ogum, mas
também por imagens e representações negrófilas veiculadas pelos meios de comunicação da
época, em particular o cinema disseminador da imagem da performer negra Josephine Baker,
radicada em Paris, emblema da negrofilia do movimento da avant-garde.
Em relação à negrofilia da avant-garde parisiense dos anos 1920, Petrine ArcherStraw (2000) observa que, se, por um lado, a avant-garde pretendeu criar um antídoto contra
a sufocante civilidade burguesa antinegra, por outro lado, não conseguiu evitar conotações
negativas em relação ao negro ao canonizar seu corpo, sua expressão e o continente negro,
África, como “primitivos”. Negrofilia, como gosto e representação, orientou desde então a
explosão de um mercado do entretenimento que sugeria ou mesmo incluía músicos, atores e
dançarinos negros na Europa, nos Estados Unidos e logo em seguida no Brasil (cf. GOMES,
2001). Este mercado exigiu, num primeiro momento, a presença do menestrel, ou seja, o ator
cômico branco que pintado de preto, porém de alma branca, imitava sempre um negro
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fisicamente disforme, indolente, simplório, animalesco, dócil e grotesco. E em seguida,
homens e mulheres negros que no palco assimilaram esta representação mimetizada de si
mesmos.
Nem europeu nem americano do norte... Tampouco plenamente brasileiro
A performance de Josephine Baker, em Paris, exacerbou a imagem caricatural do
homem negro, a reiteração do seu primitivismo e, paradoxalmente, uma nova aspiração de
modernidade advinda de uma certa liberação sexual da mulher, de um espontaneísmo e
ruptura aos valores morais burgueses. João Francisco dos Santos encontrou na mise en scene
da ambígua Josephine Baker um modelo de expressão social e artístico e de liberação das
amarras do ideal de masculinidade que suportava no corpo de homem negro. Um tanto quanto
homem, um tanto quanto mulher, homem valente, viril, duro, mas também feminino, sensual
e “pederasta passivo”. Exímio capoeirista, desaforado e agressivo, mas também bom amante,
sedutor na atitude e no gesto diante da ausência ou na impossibilidade de fazer-se ouvir ou ser
entendido através das palavras. Onde se esperava a mulher em João Francisco, se manifestava
o homem, onde se reconhecia o homem, se apresentava a mulher, onde se esboçava o anjo, se
revelava Madame Satã. Esta superposição de identidades e lugares de poder estão de acordo
com as representações que se atribuíam a Josephine Baker, mas também à sabedoria
elaborada por homens e mulheres negros ao longo do processo de colonização e escravização
de africanos quando aprenderam a viver através dos interstícios do sistema de relações entre
homens e mulheres, a transitar entre o masculino e o feminino, o público e o privado (cf.
MOTT, 1988).
Na condição e contexto em que se encontrava, João Francisco não poderia se
permitir encapsular na máscara de homem ou mulher. Não poderia, do mesmo modo,
encerrar-se na possibilidade de transgressão que realizava o travesti Tabu, interpretado por
Flávio Bauraqui, uma vez que o travestismo é uma estratégia de afirmação e combate mais
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óbvia e insuficiente. Tabu era membro, juntamente com a prostituta Laurita e sua filha
pequena, do núcleo familiar comandado, às vezes com tirania, por João Francisco. Odiava
violência, era frágil e covarde. Apesar de negro, contrariava a expectativa em relação a um
falo devorador até porque era absolutamente passivo no ato sexual com um homem branco,
policial, interpretado por Urã Figueredo, a quem chamava “meu anjo de bondade” como
ouvimos numa cena em que revela seus sonhos:
Tabu – Já eu, vou comprar uma máquina Singer, de pedal, pra costurar as fardas do
meu anjo de bondade, meu marido. E viver uma vida lazer.
Enfim, Tabu pretendia reproduzir o papel da mulher passiva, realizada como donade-casa, ama do marido e dos filhos, legitimadora da apropriação masculina do capital e do
trabalho. Isto não cabia na mulher nem no homem que João Francisco trazia consigo. Por
outro lado, o homem moderno, tipicamente nacional, que João Francisco prometia, inspirado
na representação de mulher moderna que Josephine Baker configurara na Europa, estava
deslocado da ordem social e simbólica de sua época e muito mais da estética que as artes de
um modo geral e o cinema em particular esboçaram até o anos 1950 com as chanchadas. A
propósito, Paulo Emílio Salles Gomes, um dos mais respeitados críticos brasileiros de cinema,
já afirmou que a fraqueza do cinema nacional tem sido seu estado de subdesenvolvimento,
caracterizado pela falta de originalidade básica, pela falência cognitiva e indevida
representação do ponto de vista de uma grande maioria de brasileiros ausentes como
produtores e espectadores deste cinema. Para este crítico, a precariedade da linguagem do
cinema nacional tem sido a ausência de um povo brasileiro:
Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original,
nada nos é estrangeiro, pois tudo é. A penosa construção de nós mesmos se
desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro. O filme brasileiro
participa do mecanismo e o altera através de nossa incompetência criativa em
copiar. O fenômeno cinematográfico no Brasil testemunha e delineia muita
vicissitude nacional (GOMES, 1980, p. 77).
Entretanto, apesar do diagnóstico perspicaz e ferino, Paulo Emílio Salles Gomes
(1916-1977) pensa a precariedade do cinema nacional em termos da oposição de classes de
“ocupantes” e “ocupados”, mas desloca da sua reflexão o debate sobre relações raciais e
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cultura negra-africana. Desconhece uma base cultural não-ocidental que viesse orientar a
cinematografia brasileira, porém não tem nada a dizer sobre a persistência, o dinamismo e
caráter milenar de tradições ameríndias e africanas, capazes de reivindicar e redefinir a cultura
e o processo social brasileiro (PINHO, 2000, p. 68). O dilema do cinema nacional, como
vicissitude da nação, é então o índio ou o negro que não fala por si como imagem e
representação, porém é retrato ou re-presença sob a ótica do outro “ocupante”, mas também
branco. O negro, portanto, se também não é europeu, não é americano do norte, tampouco é
plenamente brasileiro, aquele destituído de cultura original, uma vez que traz a lembrança de
uma ancestralidade indesejada, afro-descendente.
Neste sentido é que podemos suscitar práticas negras de auto-representação que
evidenciam a seleção, a combinação e rearticulação crítica de sentidos construídos sobre o
negro e mesmo sobre a nação. Um caso emblemático é a participação e a presença dos
africanos e descendentes na maior festa brasileira que é o carnaval, referência contextual nos
filmes das chanchadas, em Madame Satã e na trajetória do personagem João Francisco dos
Santos. A propósito, as autoras Raquel Soihet (1998) e Monique Augras (1998),
fundamentadas basicamente nas mesmas fontes, chegam a conclusões curiosas e distintas
sobre o significado do carnaval. Soihet, influenciada pela interpretação que Mikhail Bakhtin
faz da cultura popular na Idade Média e Renascimento, defende o argumento de que o riso no
carnaval e nas festas “populares” cariocas é uma arma eficaz contra a hierarquização e a
opressão dos subalternos.
(...) por meio de canções, representações teatrais, cartas anônimas, inversões e
utilizações jocosas de signos do poder, os populares demonstraram sua resistência a
situações que lhes eram opressivas. Para esses segmentos excluídos, o carnaval,
particularmente, representou uma possibilidade de participação da qual não se
omitiram. Muito pelo contrário, através de formas alternativas de organização, nele
investiram toda a sua energia. Valendo-se de metáforas, explorando sua criatividade,
tendo o riso como arma, procuraram reagir às diversas formas de opressão que sobre
eles incidiam. Não foram, portanto, passivos e impotentes, nem ficaram a mercê de
forças históricas externas e dominantes. Pelo contrário, desempenharam um papel
ativo e essencial na criação de sua própria história e na definição de sua identidade
cultural (SOIHET, 1998, p.15-16).
Monique Augras, por sua vez, afirma que é comum os autores tomarem a cultura
“popular” como um “bastião de ‘resistência’”. Para Augras, a cultura “popular” não pode ser
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percebida isolada da sociedade mais ampla. No caso do samba carioca, isto quer dizer que o
riso não é necessariamente sintoma ou estratégia de subversão. Pelo contrário, ao longo da
história deste samba a ordem acompanha, passo a passo, a aparente desordem.
(...) o desfile (das escolas de samba) obedece a um regulamento estrito. O tempo é
rigorosamente controlado. Nenhum detalhe dos quesitos deixa de ser explicitado,
seja para a comissão julgadora, cujos membros têm de assistir às aulas de um curso
preparatório para esse fim, seja para os próprios sambistas, que se encarregam de
vigiar o desempenho das escolas concorrentes para denunciar os eventuais deslizes
que as podem levar à desqualificação. O excesso e a loucura da festa são canalizados
por um esquema econômico-financeiro que assegura altíssimos lucros às diversas
instituições que regem a organização do desfile e sua divulgação (AUGRAS, 1998,
p.16).
Temos então que, num contexto adverso, de desagregação, de subordinação
econômica, social e racial, africanos e seus descendentes do mesmo modo que reinventaram
manifestações e tradições culturais encontradas aqui, como é o caso do carnaval que chegou
ao Brasil como festa européia e civilizada, tiveram que transformar tradições trazidas de
África de modo que pudessem ser difundidas e manter redes de solidariedade e reagregar
etnias, civilizações várias, valores, crenças e símbolos estéticos. Para Roger Bastide (1985),
no Brasil, em especial o Candomblé cumpriu esse papel, ao aproximar divindades de grupos
étnicos vizinhos, e deste modo se mostrar eficiente no domínio da desesperança, da dor pelos
castigos e humilhações, na reconformação de atitudes afetivas, de laços de parentesco, na
definição de uma corporalidade insubordinada e categorias de pensamento originais.
Entretanto, o negro que partilha o mundo africanizado partilha também, como afirma Bastide,
o mundo brasileiro no mais baixo grau da hierarquia social. Teria ocorrido, então, uma
distância social, muito mais que um isolamento geográfico que permitiu ao africano e depois
ao negro encontrar,
na estrutura da sociedade brasileira, os nichos, como os denominamos, em que podia
inserir suas civilizações nativas. Esses nichos foram, vimos, os batuques, as
confrarias dos homens de cor, as organizações de negros de ganho, as “nações”
constituídas sob a autoridade de “reis”, ou de governadores nas cidades, as danças
domingueiras em parte também nas zonas rurais. Certamente, todos esses
agrupamentos eram grupos de controle de uma classe por outra, mas vão ser
modificados em suas realidades profundas pela vontade dos negros, ou, mais
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exatamente, pela pressão das representações coletivas religiosas sobre os indivíduos
membros desses agrupamentos (BASTIDE, 1985, p. 225).
Esta resposta africanizada minimizou e reificou a diversidade cultural africana, mas
reteve o controle social branco. No Candomblé ou em formas culturais lúdicas, aparentemente
restritas ao exercício e desenvolvimento de habilidades e força física, como a capoeira e os
diversos sambas nacionais, encontramos referência a mitos, deuses e idéias que viveram no
pensamento, como imagens mentais sujeitas às perturbações da memória, mas também
estiveram inscritos no corpo como mecanismos motores, passos de danças, toques rítmicos ou
gestos rituais, constituindo um largo repertório onde se buscam e se reinterpretam imagens,
símbolos e representações da condição negra-africana no Brasil, em si mesmas, descontínuas,
conflitivas, coaguladas tantas vezes em sincretismos ou hibridez cultural.
O que faz João Francisco no palco, como Madame Satã, é sacar deste repertório de
signos e experiências que tanto evidenciam adesão quanto reinterpretam o programa de
modernização das elites. Ele é um negro no palco ou, quem sabe, a negra, a “mulata do
balacoxê”, porém desloca o signo ator negro/ personagem negro da sua fala e função
recorrentes no palco. Desmascara a negrura como signo do mal ou como signo do bem (cf.
MARTINS, 1989). Tem um domínio de sua movimentação e das suas articulações assegurado
pela movimentação corporal elaborada na capoeira, no samba e nas danças arquetípicas de
diversos deuses africanos cultuados no Brasil. Numa atitude moderna, aproxima diversas
linguagens cênicas assim como reinventa mitos de origem, recheando-os de ironia e
originalidade, como podemos ouvir numa fala de João Francisco, como Madame Satã, após
10 anos preso na cadeia, na última seqüência de imagens do filme:
Madame Satã – Vivia presa, por 10 anos, num castelo de uma ilha das arábias, uma
princesa de nome Jamassi. No intuito de inveja, a rainha maléfica tinha aprisionado
a jovem princesa que vivia triste e solitária. Até que num dia de carnaval, um
cavaleiro em seu camelo libertou a princesa, que correu a pé até chegar na sua Lapa
querida. A princesa foi logo se apressando de preparar sua fantasia pra o desfile dos
caçadores de veados. Jamassi vestida, desfilou com brilhantismo no carnaval de 42.
E Jamassi ficou conhecida assim pro resto do mundo como MADAME SATÃ!
Considerações finais
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Por fim, é bom apontar para o fato de que este é um dos poucos filmes brasileiros,
desde o Cinema Novo, em que embora possamos apontar para reincidentes imagens e
representações estereotipadas e racializadas sobre o negro, também encontraremos vários
aspectos louváveis. O primeiro deles diz respeito ao acabamento do filme Madame Satã. A
maioria das seqüências do filme, dia ou noite, foram elaboradas em ambientes fechados ou em
ambientes abertos noturnos quando havia pouca luz. O que parece dificultar a percepção de
detalhes dos ambientes compostos, favorece, no espectador, a impressão da precariedade
material em que viviam os personagens, assim como a impressão da precariedade moral que
lhes era atribuída. Mais ainda, tal procedimento remete o espectador para o mundo subjetivo e
emocional dos personagens, assim como sua atenção para o desempenho dos atores em cena,
sobretudo os atores principais – Lázaro Ramos, Marcélia Cartaxo e Flávio Bauraqui – que
estão impecáveis nos gestos, olhares, atitudes, expressões e uso da voz capturados pela
câmara. Ou seja, os três atores citados, dois homens negros, uma mulher branca nordestina,
fora do padrão de beleza do cinema estrangeiro e brasileiro, não adequados ao estereótipo
daqueles e daquelas que foram definidos como “naturais ao olhar da câmera” e por isso, tidos,
como de uma fotogenia óbvia e arrebatadora, são revelados numa beleza proveniente das
interpretações brilhantes dos atores e no modo como a câmera valoriza seus corpos em partes
e no todo. Além disso, o filme traz um figurino cuidadoso e uma trilha sonora, com canções
da época, bem cuidada que complementa o sentido dos textos e os contextos das seqüências
de imagens.
Um outro aspecto louvável é a direção dos atores. Há muita sintonia entre todos eles
e até mesmo entre aqueles que fazem apenas figuração. Além disso, novamente, os três atores
principais – Lázaro Ramos, Marcélia Cartaxo e Flávio Bauraqui – conseguem estabelecer
uma cumplicidade que favorece o talento individual de cada um, do mesmo modo que
favorece o protagonismo e subjetivação negada aos personagens negros desde os primórdios
do cinema brasileiro. Ou seja, os personagens principais apontam para dramas existenciais
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que não são devidamente problematizados, mas estão indicados através da composição das
seqüências de imagens, trilha sonora, fotografia, figurino, texto e interpretação destes atores.
Um terceiro e último aspecto que gostaria de salientar diz respeito a um fato raro na
cinematografia brasileira que é a interessante interseção entre raça, gênero e sexualidade
apresentada no filme Madame Satã. Através do que ouvimos e vimos no filme, percebemos
vicissitudes para a raça no Brasil, porém percebemos também que as expectativas do branco
em relação a posições de gênero e sexualidade negras geram modalidades de manejo e
vivência da raça e do racismo uma vez que o corpo masculino e homossexual que
encontramos em Madame Satã desarticula certezas sobre o macho, porém reacomoda idéias e
certezas sobre um corpo negro.
Oxalá, a partir de Madame Satã, o cinema brasileiro venha a desdobrar ‘a penosa
construção de nós mesmos, a rarefeita dialética entre o não ser e o ser outro’ a qual se referia
Paulo Emílio Sales Gomes há algumas décadas atrás.
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De ruínas e recomeços: Rasurando os paradigmas da modernidade1
Iraci Simões da Rocha2
RESUMO: O propósito desse artigo é discutir questões relacionadas à mudança de paradigmas nos Estudos
Literários e Estudos Culturais, focalizando todo um movimento que se esboçou a partir dos anos de 1960,
intensificando-se da década de 1990, em diante. Abordo aspectos da reconfiguração dos lugares canônicos e nãocanônicos da cultura e da literatura, sob o impacto dos emergentes Estudos Culturais e das práticas dos Estudos
Comparatistas, na contemporaneidade.
Palavras-chave: Estudos Literários; Estudos Culturais; Modernidade; Contemporaneidade
ABSTRACT: The purpose of this article is to discuss subjects related to the change of paradigms in the Literary
and Cultural Studies, emphasizing an entire movement that drafted itself since the early 1960’s, becoming more
intense in the 1990’s. I approach aspects of the reconfiguration of the canonical and non-canonical places of
culture and literatre, under the impact of the emergent Cultural Studies and the practices of the Comparative
Studies, at the present days.
Key Words: Literary Studies, Cultural Studies, Modernity, Contemporaneity.
Aos navegantes:
“Antes de mais nada tarefas negativas.
É preciso se libertar de todo um jogo de noções
que estão ligadas ao postulado de continuidade”.
Michel Foucault. Arqueologia do saber.
Chega um tempo em que mulheres e homens olham para trás e conseguem divisar
estantes, prateleiras, mesas, gavetas, espaços abarrotados de livros, guias, catálogos, cartas,
mapas, documentos valiosos que encerram um passado, uma história com princípio, meio e
fim. Suas mentes também arquivaram um conhecimento ensinado e aprendido, muitas vezes
1
O presente texto, apesar de inédito, foi escrito em dezembro de 2002.
Doutora em Letras: Teorias e Crítica da Literatura e da Cultura, pela UFBA; professora do Curso de Letras
DCH I / UNEB. Email: [email protected].
2
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com paixão e violência incomensuráveis. Tudo foi sendo construído seqüencialmente e se
esses homens e mulheres pudessem voltar no tempo, eles encontrariam o fio de Ariadne que
os conduziria pelo labirinto a fora. Ocorre que eles, mesmo mantendo suas memórias, não
podem voltar no tempo de um passado remoto, e o passado recente que faz fronteira com o
tempo presente revela-se em ruínas. Essas ruínas os assustam e os fascinam, ao mesmo
tempo, porque é a partir dos escombros que vão tentar recuperar sua memória. O fio condutor
partiu-se e, ainda que o recuperassem, este já não os conduziria a um ponto definido e estável,
uma vez que se apresentam tantos pontos, um diferente do outro. O que fazer? De onde eles
poderiam retomar o fio da História? E de qual História poderiam falar, se outras personagens
entram em cena e reivindicam a sua inclusão nos fatos?
Esse tempo que emerge dos destroços da história é a contemporaneidade e os atônitos
homens e mulheres em busca de significações para o que está ocorrendo somos todos nós,
intelectuais e estudiosos da cultura. Temos pela frente fragmentos de um passado que não
pode ser jogado fora. Trata-se de lançar sobre ele um outro olhar, rasurar seus escritos,
negociar com outros discursos e áreas de conhecimento e inscrever nessa tela outros textos
elaborados por “mãos grosseiras” e pouco afeitas às delicadezas do trabalho intelectual. A
insegurança em relação à ocupação de lugares e posições é um fato que deve conduzir a
paradoxos, mas provavelmente será um exercício produtivo, em que pesem a incerteza e a
perplexidade.
É com essa perplexidade que começo a refletir sobre a quebra das estruturas de
pensamento da modernidade, tomando como ponto de partida o SL - Suplemento Literário de setembro de 20023. Esta publicação, dedicada especialmente à literatura, como o próprio
título indica, traz um texto de duas páginas de Mariana Santos Rodrigues, artista gráfica,
sobre o trabalho do “artesão designer profissional”, que é o conhecido pintor de “placas”,
muros e outros, nos bairros periféricos das cidades brasileiras. A autora faz uma breve
reflexão sobre o assunto, lembrando que o leitor do SL poderia encontrar ali “um divertido
exercício de novas descobertas estéticas”.
3
O Suplemento Literário é uma publicação da Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais.
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Motivada por questões que serão discutidas, ao longo deste ensaio, retomei outros
números do mesmo SL e fui encontrando textos sobre cinema, fotografia, quadrinhos, música,
disputando espaço com poemas de autores canônicos, textos de intelectuais contemporâneos –
poeta escrevendo poesias, antropólogos como Hermano Viana (SL / fevereiro, 2002)
discutindo a música brasileira, professores de literatura estudando telenovela, estudiosos da
obra de Machado de Assis analisando o rap dos morros cariocas. O que está acontecendo e o
que tudo isso tem a ver com um “Suplemento Literário?” Respostas aos questionamentos
exigem reflexões acerca da reconfiguração dos espaços ocupados pela cultura e artes,
contemporaneamente.
A partir da segunda metade do século XX, quando se pode marcar o fim da
modernidade, um conjunto de fatores e acontecimentos nas ciências, na economia mundial, os
avanços nas tecnologias e nas artes, a voracidade da indústria cultural e suas reações
mercadológicas produziram mudanças que se refletiram em todas as áreas do conhecimento.
Gianni Vattimo identifica o fim da modernidade como o momento em que não é mais
possível “... hablar de la historia como de algo unitário”. (VATTIMO, 1996, p. 75). Para a
construção dessa história coesa e una, é fundamental a idéia de progresso, de organização
evolutiva que se articula pela negação de valores do passado e da tradição considerados
superados. A visão da história, nesse caso, remetia à idéia de um centro em torno do qual ela
era escrita.
A crise da história como construção unitária é identificada pelo filósofo alemão Walter
Benjamin, em Teses sobre Filosofia da História (1985), para quem a linearidade histórica tem
um caráter ideológico, por ser o produto das representações que resultam do ponto de vista
das classes dominantes. Benjamin toma um quadro de Paul Klee, intituladado “Angelus
Novus”, para ilustrar metaforicamente o “Anjo da História”:
Parece querer afastar-se de algo que ele contempla. Seus olhos estão
arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão prontas para voar. O Anjo
da História deve parecer assim. Ele tem o rosto voltado para o passado. Onde
diante de nós aparece uma série de eventos, ele vê uma catástrofe única, que
sem cessar acumula escombros sobre escombros arremessando-os diante dos
seus pés. (BENJAMIN, 1985, p. 157-8).
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Na visão de Benjamin, o Anjo bem que gostaria de reconstruir todo o caos, mas uma
“tempestade impele-o incessantemente para o futuro, ao qual ele dá as costas, enquanto o
monte de escombros cresce ante ele até o céu. Aquilo que chamamos de progresso é essa
tempestade.” (Ibid., p. 159).
Benjamin, na verdade, está retomando idéias já trabalhadas por Marx e Nietzsche
sobre a unicidade histórica resultante de representações elaboradas pelas estruturas de poder.
Vattimo (1996, p. 76) acrescenta que o ideal de história e de progresso construído até a
modernidade está relacionado a um “ideal de homem” que era o “homem moderno europeu”,
com seus postulados e valores emblemáticos.
Com a quebra do imperialismo e da colonização, os “povos primitivos” considerados
“bárbaros” pelos colonizadores passam a reivindicar o direito de usar seus próprios idiomas,
exercitar costumes, crenças e práticas religiosas, enfim, de reapropriar-se de sua cultura. Isso
só foi possível porque o mundo já vivia a chamada “era da comunicação”, com a entrada em
cena de múltiplas vozes e fontes de informações, a partir de pontos de vista diferentes. É um
tempo de simultaneidades, em que várias ações ocorrem paralelamente, sem possibilitar
modelos prontos e definitivos.
O fruidor contemporâneo - pesquisador, crítico, leitor - é um ser faminto pelo
conhecimento, mas impossibilitado de apreendê-lo, de modo definitivo e com segurança. É
preciso reconhecer esse conhecimento, com uma atitude aberta para a negociação e
construção de sentidos possíveis e provisórios, levando-se em conta os contextos de produção
e de recepção, com instrumental e conceitos que também estão sendo construídos. Ilustra bem
essa discussão a emergência de publicações sobre cultura, em geral, que reúnem textos de
autores e temas variados, segundo Heidrun Olinto, sem o compromisso “com filiações
duradouras, atestando a substituição da voz autoral particular pelo consenso/dissenso de
subgrupos de uma comunidade sem identidade”. (OLINTO, 1996, p. 137).
A ação dos mídias contribuiu para quebrar a idéia de centro e a representação linear da
voz monocórdia dos discursos hegemônicos porque, em que pese o caráter alienante dos
meios de comunicação de massa, eles abriram espaços para os discursos periféricos e para o
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confronto de vozes dissonantes. Esse outro tipo de organização, na visão de Vattimo (1996,
p.78), não proporciona uma sociedade “transparente”, “iluminada” e “consciente de si
mesma”, mas uma sociedade mais “complexa” e “caótica”, com possibilidades de transformar
esse caos em “esperanças de emancipação”.
A tese de Vattimo é a de que a emancipação das minorias toma impulso com o fim dos
discursos centrais, nas palavras de Jean François Lyotard, o fim das “grandes narrativas” e a
emergência das múltiplas vozes periféricas. Ganham estatuto de texto os micro discursos - os
testemunhos, as entrevistas, os relatos de experiências - das minorias étnicas, sexuais,
religiosas, estéticas e culturais, com suas representações particulares, locais, heterogêneas e
plurais. Entendo que, por si só, a entrada em cena dos discursos das minorias não garante a
emancipação política desses grupos, mas desestabiliza o mundo da “comunicação global”
generalizada, em função do atrito da “racionalidade central” com os discursos das
“racionalidades locais”.
Os Estudos Culturais, da década de 1990 em diante, com algumas raízes no
estruturalismo francês dos anos 60, principalmente marcado pelas idéias de Lévi-Strauss,
Roman Jakobson, Roland Barthes, Gerard Genette, Jacques Lacan, Michel Foucault e Louis
Althusser4, dão início a uma série de reflexões e reposicionamento de objetos de estudos e
operações teóricas nas diversas áreas do conhecimento. Os autores citados serão lidos na
Inglaterra e Estados Unidos, principalmente, entre os anos 60 e 70. “A outra fonte dos
Estudos Culturais Contemporâneos é a teoria literária marxista na Grã-Bretanha” com a obra
de Raymond Williams (Cultura e Sociedade, 1958)” e The Uses Of Literacy, 1957, de Richard
Hoggart. (CULLER, 1999).
Os Estudos Culturais surgem como conseqüência de rupturas, operando um
deslocamento da posição da literatura em favor de outras produções culturais “não-literárias”
que passam a ser lidas como textos, enquanto o “texto literário” passa a ser lido também como
produto cultural que dialoga com tantos discursos. Sem uma metodologia própria e objeto de
estudo específico, os Estudos Culturais insubordinam-se contra o estabelecido, transitam pelas
4
Mais tarde, alguns desses autores como Lacan, Barthes e Foucault terão suas idéias identificadas com o pósestruturalismo, quando explicitam uma crítica do conhecimento, do sujeito e da idéia de totalidade.
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situações provisórias, abrem espaço para os discursos minoritários ou marginais,
reconhecendo-se como prática política com intervenções sociais emancipatórias. Em geral,
propõem uma mudança de olhar dos conceitos “eurocentristas” que identificam culturas e
povos como “primitivos”, “subdesenvolvidos”, “estranhos”, “atrasados”.
Em paralelo, os estudos de Literatura Comparada já estavam consolidados na Europa
Ocidental e América do Norte, pois vinham se desenvolvendo há décadas. Inicialmente, os
estudos comparatistas foram marcados pelo historicismo e “princípios científico-causalistas”
e depois por uma “óptica formalista”, apesar das fortes dissonâncias, mas sempre apoiados no
etnocentrismo. (COUTINHO, 1998, p. 67-8). A partir da década de 1990, os estudos de
Literatura Comparada assumem um viés transdisciplinar, operando entre fronteiras, num
trabalho que inclui uma espécie de militância em favor do subalterno e das chamadas
minorias. O “fenômeno literário” já não é o foco exclusivo da Literatura Comparada.
Eduardo Coutinho fixa os anos 1970 como o período a partir do qual ocorreram
mudanças, tanto no foco de atuação da Literatura Comparada o qual se desloca para “pólos
geográficos tidos como marginais” - China, Índia, África e América Latina - quanto na
relação dos estudos com a política.
O viés apolítico tradicionalista e reafirmador da
“supremacia de um sistema sobre os demais” que foi a sua marca, especialmente na “Escola
Americana”, vai ser questionado a partir dos anos 70, quando se fortalecem as discussões
sobre as identidades culturais e nacionais.
A Teoria, a Historiografia e a Crítica Literárias operaram um “desvio de olhar”,
passando a ver o texto não exclusivamente como objeto fechado na sua imanência estética,
mas como artefato cultural, que se configura de maneira “híbrida”, para usar o termo de
Garcia Canclini (1998) incorporando elementos das chamadas “alta cultura” e da “cultura
popular”, ambas em permanente diálogo com a “cultura de massas”. Isso equivale dizer que o
texto literário agora é produto que se relaciona não apenas com outras áreas do conhecimento,
mas também com os textos de outros estratos culturais, antes considerados em posição
hierarquicamente inferior.
Nesse contexto, as estruturas do pensamento moderno, que vinham ao longo do tempo
se fragilizando, esboroam-se de vez. Os modelos universalistas, baseados nas idéias de
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evolução e linearidade, não conseguem mais dar conta das questões locais, das mudanças que
se processam com incorporações e reelaborações de conteúdos, materiais, idéias, com um
caráter múltiplo e rizomático5. Como representar grupos minoritários e povos com saberes
diferentes com o diapasão da cultura hegemônica?
A entrada em cena de vozes até então silenciadas - ou representadas por discursos
sobre essas vozes, isto é, uma estrutura de poder hegemônico falando em nome de um povo ou
no lugar desse povo, dessas vozes silenciadas - força o Comparativismo, os Estudos Culturais
e Pós-Coloniais a enfatizarem seu caráter político.
Isso tem, como conseqüência, o
reposicionamento dos campos do conhecimento que passam a operar de maneira
transdisciplinar, recusando as práticas excludentes, os territórios e enfoques isolados. Tal
postura acaba conduzindo os estudos acadêmicos a intervenções que sejam também práticas
sociais e políticas, funcionando como uma espécie de “Insurreição” contra as certezas
cristalizadas.
Se o mundo é lido como discurso, e é na comunicação que se formam as expressões
culturais, as construções lingüísticas são ideologicamente marcadas pelos signos carregados
dos valores de povos, classes e contextos diferentes. (BAKHTIN, 1979).
Assim, os
paradigmas do pensamento moderno foram se fragmentando, uma vez que não era mais
possível falar de uma cultura, mas de expressões culturais, que, por seu lado, são
representações e não “descrições neutras” e “naturais”, isto é, são construções discursivas e
ideológicas engendradas na linguagem.
O olhar das culturas hegemônicas sobre as “outras culturas” constrói um “discurso
especializado e autorizado” ancorado na arrogância hierárquica. Essa posição baseia-se no
paradigma de contraste em que as imagens de alteridade são estereotipadas e desqualificadas
com representações elaboradas por um discurso racista e etnocêntrico. (SAID, 1990).
Uma vertente dos Estudos Culturais e Comparatistas, com posição de engajamento
político, recusa a suposta neutralidade acadêmico-científica da História, da Cultura e da
5
A imagem do rizoma, vegetal de crescimento desordenado, é trabalhada por Gille Deleuze e Félix Guattari, em
Mille plateaux (1980), associada ao pensamento contemporâneo de uma ciência “nômade”, rizomática e se opõe
ao modelo tradicional fundado em dicotomias, relações hierárquicas, controladas por uma estrutura central.
Heidrun Olinto retoma essa imagem no texto “Teoria da Literatura em desalinho”.
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Literatura.
A partir daí e com a visão de que “identidade”, “nação” e “cânone” são
construções ideológicas,6 intelectuais de diversas partes do mundo, incluindo a América
Latina, mudaram o olhar e passaram a considerar objeto de estudo textos até então
desprezados, a exemplo dos produzidos em línguas indígenas e africanas, e aqui destaco as
formas da tradição oral: contos, ditos populares, parlendas, cordel, cantorias, festas e outras.
O que essa postura defende é a idéia de que identidade, nação e cultura não podem mais “ser
vistas em termos ontológicos, isto é, de forma definida, acabada, integral, mas em termos
plurais e híbridos”. (COUTINHO, p. 57). Hoje, perde força, por exemplo, o modelo de
História da Literatura na sua formatação tradicional - una, substantiva, geral, universal - em
favor de “histórias-problema” que abrigam a divergência, a contradição, o confronto de
idéias, sem síntese nem harmonia.
Heidrum Olinto, em “Como falar de Histórias (de Literatura?) Hoje?” posiciona-se
contrariamente ao projeto de história como herança do século XVIII mantida até a
modernidade, baseada nos princípios de teleologia, evolução, progresso e continuidade.
Fortalece-se, por tal prisma, a defesa da inexistência de uniformidade quanto à identidade
nacional, de encadeamento de eventos em sucessão progressiva, em favor da coexistência de
perspectivas heterogêneas, dispersas, fragmentadas das micro narrativas.
A esse respeito, Rita Terezinha Schmidt lembra que a “lógica perversa, calcada em
noções de causalidade e de determinação de valores originários que se tornaram modelares,
precisa ser desconstruída”. Schmidt (1996, p. 116) opõe o discurso da modernidade que tem
o centro como referência ao discurso contemporâneo, produzido não da margem ou na
margem, que deve ser crítico e desestabilizador do discurso canônico. Em outras palavras,
desfaz-se o sentido de centro e margem com a entrada em cena, ao mesmo tempo, das vozes
periféricas e canônicas. Ou seja, margem e centro não vão mais trilhar caminhos paralelos,
mas encontrar-se, bater-se, e produzir resultados, com reconfiguração dos espaços e discursos.
O questionamento do cânone artístico, tomado como modelo “a ser preservado para as
futuras gerações”, baseia-se na crítica à hegemonia da chamada “alta cultura”, cujos padrões
foram sendo moldados, ao longo do tempo, sempre a partir de um “lugar de poder”. (REIS,
6
As idéias de nação e nacionalidade são trabalhadas por Benedict Anderson como “artefatos culturais”.
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1992). Linguagem, cultura, escrita e literatura estão relacionadas às estruturas de poder e de
dominação, razão por que suas produções não podem ser vistas como “naturais”,
“espontâneas” e “inocentes”. São construções ideológicas balizadas por “valores” que se
foram cristalizando, a partir do “lugar da autoridade” historicamente ocupado pela crítica,
pelos intelectuais, pelas instituições legitimadoras. Tal autoridade é, por princípio, violenta,
conservadora, erigindo o cânone e produzindo exclusões, com interesses de classe.
O bombardeamento dos paradigmas da modernidade se faz também no “campo de
batalha das chamadas políticas de identidade ou multiculturalismo” (SCHMIDT, 1996, p.
119) e desestabiliza o cânone porque traz para a cena do debate conceitos de desconstrução,
diferença e alteridade que vão colocar sob suspeita discursos “construídos” de maneira a
formar um todo harmônico e totalizante. Contemporaneamente, quando se percebe que uma
oposição não é natural nem inevitável, mas uma construção produzida por discursos, não se
sustentam os binarismos e as exclusões. Nesse sentido, também os campos de estudos e
práticas disciplinares passam a operar fronteiriçamente, por entrecruzamento, sem limites
rígidos.
Nas comemorações dos 500 anos do “Descobrimento do Brasil”, o discurso oficial e
todos os preparativos de rituais, gestos e símbolos não conseguiram recompor o “Mito do
Descobrimento” construído, ao longo do tempo, pelas autoridades. Não foi simplesmente o
fiasco da “Nau Capitânia”7 que estragou a festa, mas as vozes de outros discursos que se
fizeram ouvir, - índios, negros, homossexuais, mulheres, sindicalistas, estudantes - com outras
histórias. Nesse momento, os meios de comunicação de massa e a organização popular
ajudaram a quebrar o discurso dos “Mitos Fundadores” da identidade nacional, como algo
posto e constituído harmônica e naturalmente, ocupando pela representação lingüística e
demais símbolos os espaços dos “fatos reais”. Quem escreveu a história do “Descobrimento
do Brasil?” Quando os nativos que aqui viviam falaram e foram ouvidos?
Nas
comemorações, na cidade de Porto Seguro, no sul da Bahia, a televisão e a mídia, em geral,
7
Refiro-me à construção da “Nau Capitânia”, para comemorar os 500 anos do “Descobrimento do Brasil”. O
projeto, custeado com verbas públicas, previa uma réplica da embarcação portuguesa que trouxe a comitiva de
Pedro Álvares Cabral, às nossas terras. As comemorações, em 2000, tiveram seu brilho empanado pelo fiasco da
Nau Capitânia: uma sucessão de falhas técnicas que iam desde a falta de lastro na embarcação até uma falha na
construção do motor.
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não puderam deixar de exibir as imagens do confronto entre a força policial e os índios e
outras minorias que buscavam mostrar o “outro lado” da história, muito diferente daquele
“construído” pelas classes dominantes, durante 500 anos.
Cultura do nosso tempo? O que cabe nessa expressão? No trânsito congestionado, já
nas primeiras horas, do dia 25.11.2002, de um dia comum em Salvador, capital da Bahia,
ouço pelo rádio uma manchete jornalística, informando que Fernando Pessoa é a grande
vedete responsável pelo sucesso de novo espetáculo musical. Logo depois, leio na coluna de
Diogo Mainardi que Oriana Fallaci, “a mais célebre jornalista” da Itália, publicou
recentemente um manifesto contra o mundo árabe e a top model internacional Gisele
Bündchem, ao desfilar com casacos de peles naturais, torna-se alvo da ira dos ecologistas, no
mundo inteiro.8 A literatura e a música dialogam e são consumidas pelas massas, sem
hierarquias; a voz da autoridade “formadora de opinião” articula um discurso etnocêntrico,
apontando a legitimidade ou ilegitimidade de práticas culturais; uma modelo rica e poderosa é
obrigada a negociar com o discurso radical dos ecologistas.
Tempo de contradições, de riqueza e de indigência, tempo de rápidas mudanças, que
exigem habilidades para as negociações. As verdades do mundo se alteram; as civilizações se
chocam e a autoridade não pode mais ignorar o lugar da “outridade”. Esses outros, mantidos
em posição de subalternidade, ao longo da história, pelas teorias colonialistas, que afinaram o
“discurso competente” com base no estereótipo e no preconceito, agora se apropriam dos
instrumentos e se lêem não como “atrasados”, “preguiçosos”, “ignorantes”. A civilização
ocidental é forçada a rever seus mitos, a considerar as vozes de outras culturas; à ciência não
cabe mais a indumentária de pureza, neutralidade e desinteresse.
Enquanto isso, a música erudita vai ao parque, embalando a venda de fast-food, o
artista de rua vai ao “templo sagrado do teatro”; o grafite passeia entre o poema e as artes
plásticas; criam-se formas alternativas de poesia performática. O Museu de Arte Moderna da
Bahia, de cujo acervo fazem parte os agora canônicos Di Cavalcanti e Anita Malfatti, entre
outros, abre as portas para exposições de objetos que revelam o neokitsch ou talvez o velho
kitsch; “instalações” de alta voltagem poética, cuja fruição tem tudo a ver com a participação
8
Revista VEJA, edição 1779, 27.11.2002, p. 147; 104 – 111.
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do espectador: sim, é permitido pisar nos trabalhos que expõem as caras de personagens
midiáticos.
Quebraram-se os paradigmas da modernidade. As expressões da cultura brasileira do
nosso tempo, híbridas à Garcia Canclini, com um pé nas tradições populares, agora em
sintonia
com as formas mundializadas, já não causam reações extremadas. Muitos
intelectuais, entretanto, ainda torcem o nariz para as telenovelas e os professores se alarmam
com a instrução dos adolescentes, que “lêem” as obras literárias canônicas em versão
condensada ou pelo seriado de tevê. Os modelos uniformizadores não dão conta das
multiplicidades das expressões culturais e do aparato teórico para tomá-las como objetos de
estudo, pois esses objetos mudam, a todo o instante.
E a saída? Na falta de placas indicativas de um caminho a seguir, resta ao intelectual
olhar par trás e não se deixar petrificar de espanto ou de horror ante as ruínas de uma
civilização descentrada. O melhor é colocar a mochila nas costas, calçar suas sandálias de
andarilho, sacudir a poeira dos escombros e seguir por atalhos, reaprendendo a olhar as coisas
do mundo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Interdiscursividades: Bases conceituais para análises críticas do discurso.
Licia Soares de Souza
RESUMO: O presente trabalho apresenta os fundamentos de conceitos-chave para as análises críticas do
discurso, no intuito de oferecer ferramentas para o exame de vários tipos de mensagem da contemporaneidade 1.
Com esse objetivo didático, já que temos uma linha de pesquisa, nesse campo, no Mestrado de Linguagens da
UNEB, empreendemos um exercício analítico de algumas mensagens de propaganda institucional e política,
suscetíveis de por em relevo os entrelaçamentos dos principais enfoques de análise crítica do discurso.
Texto/discurso
Existem várias dificuldades para se definir, com precisão, os termos “texto” e
“discurso”, e é o lingüista Beaugrande ( 1997) quem recomenda uma prática de conectá-los,
ao invés de opô-los. Para o autor, um texto é um evento comunicativo onde se relacionam as
ações lingüísticas, cognitivas e sociais, e não apenas uma seqüência de palavras faladas ou
escritas. Nessa perspectiva, o texto é mais que um artefato, e sim um sistema de conexões
entre vários elementos: sons, palavras, imagens, participantes, etc. Já que esses elementos
pertencem a diferentes níveis, o texto se apresenta como um “multi-sistema”, comportando
múltiplos sistemas interativos. A textualidade não ocorre, assim, de forma reificada,
distanciada das instâncias de produção e de recepção, e das convenções sociais, como foi
projetada pela Lingüística do texto2. A textualidade permite um diálogo dinâmico entre o
texto e os contextos sociais onde ele emerge.
1
Norman Fairclough ( 2001, p. 32) classifica as abordagens da AD assim : 1- Posições não-críticas : Sinclair e
Coulthard ( 1975), com os pressupostos para a descrição do discurso na sala de aula ; O trabalho
etnometodológico da « análise da conversação » ; O modelo do discurso terapêutico de Labov e Fanshel
( 1977) ; e uma abordagem recente da análise de discurso desenvolvida pelos psicológos sociais Potter e
Whaterell ( 1987). 2- Posições críticas 1) A Linguistica crítica de Fowler et al. ( 1979) ; a abordagem francesa
desenvolvida por Pêcheux, e trabalhada com base em pressupostos foucaultianos e bakhtinianos. É essa última
que vamos adotar nesse trabalho.
2
Lembremos que a textualidade, concebida nos anos 1970, pela Lingüística do texto, consiste em um conjunto
de propriedades ( coesão coerência, intencionalidade, aceitabilidade, e outras ) que asseguram o sucesso
comunicativo do texto.
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Charaudeau ( 2004, p. 29) entende por texto o resultado de um ato de linguagem
produzido por um sujeito dado em uma situação e troca social dadas. Como um ato de
linguagem, o texto tem propriedades gerais de todo fato linguageiro, como a materialidade
significante ( oral, escritural, mimogestual) e suas condições de construção lingüística
( morfológica, sintática). Um texto é produzido em uma situação contratual dependendo assim
da identidade dos sujeitos envolvidos e de circunstâncias materiais particulares. Um sujeito
dá origem a um texto que deve se apresentar com as propriedades singulares de quem o emite.
Os textos possuem pontos comuns, encontrados em três níveis : nos componentes do contrato
situacional, nas restrições discursivas e nos diferentes aspectos de sua organização formal.
Na perspectiva de Charaudeau, o lugar de ancoragem social é um lugar que define um
certo número de dados situacionais que, por sua vez, instruem o processo de discursivação.
Os dados situacionais induzem as regularidades discursivas e estas as formas textuais. O
receptor deve reconhecer então o gênero-contrato com o qual ele trata.
De um lado, o texto é visto como um evento comunicativo, de outro, como um ato de
linguagem. Mas, nos dois casos, fica patente o caráter organizador que um texto assume,
possibilitando as interconexões entre vários registros discursivos. É assim que o semioticista
Louis Francoeur (1992 apud SOUZA, 2003) ressalta que a cultura funciona como uma
hierarquia de sistemas significantes designados de textos. Estes estão sempre em interação
contínua não possuindo mecanismos que lhes permitiriam nascer e se desenvolver de forma
isolada. Mas, a cultura funciona como uma pirâmide e, em determinadas épocas, algum ou
alguns desses textos ocupam o vértice. Como exemplo, o autor cita a língua, a literatura e a
religião que foram considerados, em muitos países do Ocidente, durante um longo período,
como os sistemas textuais por excelência da cultura. Na atualidade, a economia ganha esse
status e, interagindo com os textos artísticos, ela aproxima do vértice os sistemas textuais
suscetíveis de se integrar na nova ordem econômica.
Sabemos que essa idéia de conexões de textos levou à observação da intertextualidade,
conceito introduzido para o público ocidental por Kristeva, em 1969, a partir dos trabalhos de
Bakhtine sobre o fenômeno do dialogismo. Gérard Genette, nos anos 1960, desenvolveu as
pesquisas sobre as transcendências textuais de um texto, vistas no fenômeno da
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transtextualidade que contém cinco tipos distintos: intertextualidade, metatextualidade,
hipertextualidade, arquitextualidade e paratextualidade3. Vale lembrar igualmente do conceito
de cenário intertextual, criado por Umberto Eco (1985), a representação de outros textos em
um texto que o leitor atualiza graças a suas competências enciclopédicas. Este conceito é
trabalhado por SOUZA (2003), nas narrativas telefictícias que retomam constantemente
temáticas e expressões do patrimônio cultural da humanidade. Essa mesma autora contrapõe,
na teleficção, este último cenário ao cenário hipertextual, que é responsável em trazer um
patrimônio fictício para a atualidade em narrativas fragmentadas, como é a da ficção seriada.
O termo hipertertexto, advindo da informática, assinala o terreno da não-linearidade e da nãohierarquização, com várias entradas não-seqüenciais: uma rede constituída por vários
documentos ligados por elos ( links) que o leitor pode ativar segundo seus desejos de
combinatória. Todos esses desdobramentos do termo texto só faz acentuar seu caráter de
evento comunicativo, mostrando sua capacidade de interatividade que, de todas as formas,
trouxe novas formas de percepção e de reação aos diversos tipos de representação.
Como podemos ver agora a questão da existência do discurso? É sabido que os
lingüistas sempre associaram o discurso à fala ( parole), sublinhando sua parte prática e
singular no uso de uma linguagem. Benveniste, em 1966, quando abriu o caminho para os
estudos da enunciação, inaugurou uma lingüística da fala, distinguindo o plano do discurso,
como aquele que contém elementos de interpelação de um destinador a seu destinatário, do
plano do relato, onde os fatos se apresentam por si só, sem a condução de um elemento
enunciador.
Essas observações nos levam, inclusive, a lançar mão da teoria das categorias de
Peirce4, preconizando que o texto teria uma dimensão de terceiridade, na medida em que
estrutura normas e convenções para organizar um evento comunicativo em sua totalidade, seja
ele oral, sonoro, verbal, mímogestual, ou, em seu estado genérico, literário, cinematográfico,
teatral, musical, etc. Nesse sentido, um texto existe como entidade estruturada, reconhecida
como elemento social e, muitas vezes, canonizada como forma social. Já o discurso se
3
4
Vide uma descrição detalhada em SOUZA, Licia, Introudução às teorias semióticas, 2006.
Vide SOUZA ( 2006).
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compõe e circula como prática social, envolvendo uma comunidade discursiva, mas nem
sempre ele existe em forma de texto, como entidade estruturada. Por exemplo, em uma
revista, como Isto É, todos os artigos são textos, classificados como jornalísticos. Mas neles
se entrecruzam discursos políticos, científicos, propagandísticos, humorísticos, etc. Um
discurso político pode muitas vezes se solidificar numa comunidade discursiva e gerar textos,
como o carlismo, o getulismo5, o juscelismo, etc. Muito já se falou de um discurso político
batizado como o lulismo, mas que ainda não foi capaz de gerar textos pela indefinição de suas
propriedades que não se caracterizam necessariamente com as do partido PT. Nessa ordem de
idéias, o discurso pode se situar na zona da primeiridade, uma zona de virtualidade,
precisando participar de um evento comunicativo que é um texto para passar a existir como
uma entidade social estruturada.
Formações discursivas
Como ressalta Fairclough (2001), discurso é um conceito conflitante. No entanto,
podemos continuar a vê-lo como um processo de produção e de interpretação de significados
e visões de mundo, e o texto como um produto falado ou escrito, verbal, icônico ou sonoro,
desse processo em escala social. Assim como texto gerou desdobramentos diacrônicos
relativos às diferentes interações entre os inúmeros produtos sociais, o discurso, em seu
dinamismo virtual primeiro, deu origem a um campo conceitual bastante profícuo que
fundamentou à Análise Crítica do Discurso, a chamada de inspiração francesa.
Os teóricos da formação discursiva (FD) recusaram alguns aspectos dos textos de
Jakobson e Benveniste que preconizam uma intenção subjetiva em utilizar o código/língua
para particularizar uma prática discursiva. Michel Foucault postula a existência das instâncias
da enunciação em termos de lugares, pondo a ênfase na preexistência de uma topografia
social sobre os falantes que aí vêm se inscrever. É um conceito de lugar cuja especificidade
reside no fato de que cada um alcança sua identidade no interior de um sistema de lugares que
5
O getulismo é inclusive muito forte na literatura. Exemplos: Quarup de Antonio Callado, Agosto de Rubem
Fonseca, Incidente em Antares de Érico Veríssimo, entre outros.
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o ultrapassa. A teoria do discurso não é assim uma teoria do sujeito antes dele enunciar, é
sobretudo uma teoria da instância de enunciação que é intrinsecamente um efeito de
enunciado. Nesse contexto, a principal tese de Foucault concernente à formação das instâncias
de enunciação é a de que o sujeito social, que produz um enunciado, não existe fora do
discurso, mas é uma função do próprio enunciado. Em outras palavras, os enunciados
posicionam os sujeitos, tanto os que produzem como os que os recebem, de modo que
descrever um enunciado não consiste em analisar a relação entre o autor e o que ele diz, mas
em determinar que posição pode e deve ser ocupada por qualquer indivíduo para que ele seja
o sujeito dela.
O trabalho de Foucault constitui efetivamente uma grande contribuição para o exame
do descentramento do sujeito social nos discursos sociais modernos, para a visão do sujeito
constituído e transformado na prática social e para a visão do sujeito fragmentado. Neste
trabalho existe igualmente campo para as relações entre os enunciados que é reminiscente dos
trabalhos de Bakhtine sobre o dialogismo.
Colocado o discurso no seio das formações discursivas, a partir de Foucault, cumprenos agora lembrar as reflexões de Michel Pêcheux para reforçar os elos entre intertextualidade
e o interdiscurso. Em 1977, o conceito de interdiscurso, elaborado por Pêcheux, contém esse
vetor pragmático do dialogismo, isto é, a relação dinâmica entre o enunciado atual e
enunciados anteriores que serão catalogados como o pré-construído. Mas toda a importância
do pré-construído reside no fato de que ele comanda uma formação discursiva diretamente
ligada a uma formação ideológica. Dito de outra forma, o autor explicita as relações do
fenômeno da interpelação-identificação com os aparelhos ideológicos do Estado,
preconizando que o sentido das palavras, expressões e signos em geral não existe em si, e sim
em referência a posições de classe daqueles que os utilizam. A formação discursiva é assim o
que, em uma formação ideológica, isto é, a partir de uma posição determinada em uma certa
conjuntura, ordenada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito.
A formação discursiva, regida pelo interdiscurso, orienta a comunicação à medida que
o sujeito interpela e é interpelado no interior de um sistema de signos pré-vistos, pré-ouvidos
e pré-lidos. Dessa forma, a subjetividade na comunicação se encontra desdobrada: um sujeito
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é o locutor singular, o que emite, o que recorta o sistema sígnico da formação discursiva; o
outro sujeito é o locutor universal, ninguém e todo mundo, o círculo de expressões permitidas
na formação discursiva que torna possível a interpelação e a conseqüente identificação dos
sujeitos individuais com os discursos gerados em uma formação social.
Nesse contexto, o interdiscurso é construído através da organização ideológica que
garante a existência de discursos já produzidos, retransformados por um novo ato
intercolutório. Um enunciado assim: O nordestino é preguiçoso manifesta uma atividade
interdiscursiva. Ele pode ser emitido por um locutor determinado agindo numa situação
circunscrita espacio-temporalmente, mas ele traduz resíduos lingüísticos estáveis, depositados
no curso histórico do contexto de produção e de recepção de uma certa sociedade. Assim, o
sujeito do discurso relator, o locutor, e o sujeito universal ideológico são confundidos por
meio de um vetor histórico. O primeiro produz e recompõe unidades lingüísticas
historicizáveis que são submetidas a uma orientação argumentativa: Paulo não gosta de
trabalhar. Ora, Paulo é nordestino. O nordestino não gosta de trabalhar.
A conclusão do argumento universaliza o sujeito. Nessa direção, ela contém um vetor
pragmático
estabelecendo
relações
interdiscursivas
com
enunciados
produzidos
anteriormente. Ela comporta assim a presença lógica do terceiro incluído, o mediador, o
comandante do processo comunicativo, o sempre-lá ideológico espécie de conector de
discursos. Esse terceiro termo funciona como um tipo de força dinâmica que convoca a
experiência colateral histórica e social para correlacionar em determinado momento de
produção de signos.
No funcionamento das FDs, fica patente a idéia que desenvolvemos do discurso como
prática de primeiridade, sempre apto a acionar variadas premissas do sujeito ideológico que
comanda as práticas discursivas, em determinadas comunidades discursivas. Nessa
perspectiva, a noção de heterogeneidade (MAINGUENEAU,1993), sempre auxiliou nas
distinções entre intertextualidade e interdiscursividade. Na heterogeneidade mostrada, existe
uma manifestação explícita e localizável de vozes citadas pelo autor de um texto analisado,
em que marcas de outros textos estão visíveis na superfície, que é a verdadeira
intertextualidade assim como a descreve Genette. Já na heterogeneidade constituída, o texto
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analisado incorpora outros textos, como nas práticas sociais de circulação de discursos, em
que as marcas não estão visíveis, mas existem estratégias discursivas que levam os receptores
a buscar o movimento argumentativo do texto em enlaçamentos com outros textos e
discursos: é a interdiscursividade. Por exemplo, Os sertões de Euclides da Cunha põe em
cena um narrador viajante pelo interior do Brasil que dialoga explicitamente com Alexander
von Humboldt, como com outros cientistas, em processo de intertextualidade. Em várias
outras obras do ciclo canudiano, existem narradores e personagens viajantes que permitem
marcar a interação do artista e do cientista na observação das formas telúricas, mas sem
mostrar fontes textuais distintas, em processo de interdiscursividade.
Para mostrar as relações das FDs com seus interdiscursos, nas formas em que as FDs
podem ser reconfiguradas, no dinamismo social, Maingueneau (1993, p. 116) recorre a três
termos complementares que assim se definem:
1) Universo discursivo. É o conjunto de todos os tipos de FDs que
existem e que interagem em uma conjuntura. É um conjunto finito,
mas irrepresentável, nunca concebível em sua totalidade pela AD.
2) Campo discursivo. É um conjunto de FDs que se encontram em
concorrência e se delimitam em uma dada região.
3) Espaço discursivo. É um subconjunto do campo discursivo, ligando,
pelo menos, duas FDs que mantêm relações privilegiadas para a
compreensão dos discursos considerados.
Por outro lado, na parte intitulada Enlaçamentos, Maingueneau (1993, p. 67), mostra
como os textos de uma FD reflete sua própria enunciação em quatro níveis:
a) Textos de primeiro grau, que revelam unicamente sua doutrina;
b) Textos de segundo grau, que descrevem um ideal enunciativo
realizado em sua própria enunciação ou uma comunidade cujo
funcionamento é o das comunidades discursivas que lhes estão
associadas.
c) Textos de terceiro grau, em que a transmissão de sua doutrina
coincide com a descrição de seu ideal enunciativo ou da sua
comunidade discursiva;
d) Textos de quarto grau, que fundem estes diversos elementos em um
único: a descrição do mundo é, a um só tempo, definição de um ideal
enunciativo e percurso de uma instituição.
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Mas antes de começarmos uma análise com tais termos, necessário se faz ainda outras
definições cruciais para a compreensão de todo o processo de manifestação das FDs.
Cenografias
A noção de cenografia foi trabalhada por Maingueneau, em 1987, ( cf. bilbio 1993),
no intuito de mostrar que um texto não é um conjunto de signos inertes, mas um lugar onde a
fala é encenada. Existem assim cenas de enunciação onde o diálogo discursivo se torna
dinâmico. Inicialmente, dois tipos definem o quadro cênico de um texto.
1)
A cena englobante corresponde ao tipo de discurso do texto. A cena
de enunciação de um discurso político é a cena englobante política, a cena de
enunciação de um discurso filosófico é uma cena englobante filosófica, e
assim por diante.
2)
A cena genérica define seus próprios papéis, de tal forma que, num
texto de campanha eleitoral, é um candidato que se dirige a seus receptores.
Mas esses dois tipos de cena podem comportar um grande dinamismo interdiscursivo,
escapando das fronteiras que determinam a cena genérica. Maingueneau estipula então o
nascimento do terceiro tipo de cena que é chamado de cenografia. Existem textos que se
limitam ao cumprimento de sua cena genérica, como a lista telefônica, por exemplo. Outros
textos possuem traços de vários discursos, tornando possíveis o imbricamento de várias
cenografias.
A entrada numa cenografia se dá, inicialmente, por uma dêixis discursiva envolvendo
o locutor e o destinatário discursivos, a cronografia e a topografia. A cenografia de uma FD
deve ser entendida como a materialização de situações de enunciação que distinguem os
atores do jogo discursivo, o tempo e o lugar. Esses três elementos podem ser partes de uma
dêixis fundadora ( locução, cronografia e topografia fundadoras) que dá início a um texto
inovador, como podem fazer parte de uma dêixis geradora que dá continuidade a uma série de
discursos já legitimados numa formação social6.
6
Nos discursos políticos, é interessante observar as incorporações intra-políticas de candidatos tradicionais:
Brizola reencarnou Vargas; Collor atualizou a voz de JK, se apresentando ao lado de Dona Sara que emitiu: “ É
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Ethos
Existe um consenso em que trabalhar com a noção de ethos é uma tarefa espinhosa. A
idéia de que um locutor constrói uma representação de si mesmo, quando fala, parece simples,
mas possui suas aporias. A. Auchlin (apud Maingueneau ) afirma que a noção de ethos tem
um interesse prático, mas não é um conceito teórico claro. Como torná-la então operacional?
Todas as vezes que se recorre à noção de ethos, o mais comum é se fazer um longo caminho
até Aristóteles. No entanto, como não temos sempre espaço para discorrer sobre o modo de
ser da Retórica antiga e de suas modificações, resumimos, contemplando o seguinte: Os
textos atuais não são mais entidades homogêneas e são investidos
por várias forças
discursivas que testemunham os vários tipos de dialogismos, muitas vezes imprevisíveis, de
nosso século. Dessa forma, a noção de ethos só pode ser vislumbrada numa confluência de
forças discursivas heterogêneas autorizando formas distintas de incorporação.
O ethos não é uma representação bem delimitada. Enquanto forma dinâmica,
construída pelo destinatário, por todos os vetores que configuram a fala do locutor, o ethos
implica a experiência desses destinatários com o “sujeito ideológico” das FDs. Esses buscam
ver, em um orador, um ethos parecido com os seus, a tal ponto que podemos afirmar que um
ethos emerge das tensões entre elementos extra e intra-discursivos. O ethos se elabora, assim,
através de uma percepção complexa que extrai suas informações da representação,
desenvolvida em um texto, e do ambiente dos protagonistas da comunicação. De todas as
formas, o ethos é uma noção discursiva, só se constrói no discurso, embora tenha elos com o
ambiente extra-discursivo, o que equivale aos objetos dinâmicos de Peirce, podendo ser
individual ou coletivo.
preciso que haja um continuador de Juscelino”. O valor heurístico desse método consiste em se repertoriar as
figuras políticas fundadoras de discursividades capazes de orientar a construção de uma memória políticodiscursiva nacional que serve de inspiração para a construção de personagens na ficção em geral. O Senador
Caxias, na telenovela O rei do Gado ( 1996-7 ) desdobra valores simbólicos do marechal da Guerra do
Paraguai. O método da descorporificação/incorporação simbólicas muito pode oferecer também a pesquisas
históricas, simbólicas e literárias
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O ethos é o resultado de uma dupla identidade: o sujeito aparece, ao olhar do outro,
com uma identidade psicológica e social que lhe é atribuída, como também com sua
identidade discursiva que ele constrói para si ( CHARAUDEAU, 2006). Discorrendo sobre o
discurso político, Charaudeau apresenta uma tipologia de ethé suscetível de fornecer
ferramentas úteis para a operacionalização das incorporações nas FDs. As figuras identitárias
do discurso político se reagrupam em duas grandes categorias de ethos: o ethos de
credibilidade e o ethos de identificação.
1)
Os ethé de credibilidade. A credibilidade não é ligada naturalmente à
identidade social do sujeito, como a legitimidade. Ela é construída pela
identidade discursiva de um sujeito que fala, de tal modo que os destinatários
sejam levados a julgá-lo digno de crédito. No caso do político, ele deve se
perguntar: Como faço para ser aceito? Na credibilidade, ressaem três ethé.
2)
O ethos de sério. Construído com o auxílio de uma iconicidade de
rigidez (postura do corpo, ausência de atitudes frívolas, ausência em lugares
suspeitos e em programas midiáticos populistas), esse ethos se elabora com
declarações a respeito de si mesmo, capazes de delinear uma pessoa séria.
Evita-se igualmente as promessas de difícil realização.
3)
O ethos da virtude. Esse ethos floresce de um conjunto de imagens
ligado à fidelidade a um pensamento virtuoso e à coragem do sujeito político,
associado à imagem de honestidade pessoal.
4)
O ethos da competência. Aqui é exigido saber e habilidade, traduzidos
no conhecimento profundo do domínio particular no qual o orador exerce sua
atividade.
Embora seja uma questão delicada caracterizar os ethé de identificação, Charaudeau
destaca alguns.
1.
O ethos de potência. Remetendo à imagem de uma força da natureza,
força telúrica que não pode se enfrentar facilmente, esse ethos exprime uma
figura de virilidade masculina. Em culturas em que se valoriza a conquista
múltipla, o político pode usar a figura do sedutor de mulheres. Em outras,
onde essa prática, é rejeitada, a potência tende a deixar emergir interpretantes
de ação; o político (aqui pode-se incluir mulheres) é mais do que um homem
de palavras, ele é sobretudo ativo. E encarna a figura do vociferador,
exercendo violência verbal em relação a adversários.
2.
O ethos de caráter. Esse ethos também participa de um imaginário de
força, mas é a força do espírito. Aqui o “berro” configura a vituperação,
caracterizada por declarações de impacto. As variantes dessa figura são a
provocação e a polêmica.Associa-se a elas a figura da coragem que forma o
ethos do caráter forte.
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3.
O ethos da inteligência. Na guerra política, a inteligência está
associada a duas figuras primordiais: a astúcia e a malícia.
4.
O ethos da “humanidade”. Nesse ethos, a figura do sentimento,
principalmente o da compaixão pelos que sofrem, constitui um imaginário
importante para os políticos. A ela se associa a figura da confissão, quando o
político reconhece que não fez o suficiente para com seus eleitores. Numa
configuração da sinceridade, montada com a ajuda de jornalistas, a intimidade
também se constitui uma figura crucial no conjunto desse ethos.
5.
O ethos de chefe. Esse é um ethos que se direciona para o outro, o
cidadão. Ele é uma construção de si para que o outro adira. A figura do guia
tem variantes: o guia-pastor, o guia-profeta, o guia-soberano. O político deve
mostrar sua capacidade de indicar a via que a comunidade deve seguir7.
6.
O ethos de solidariedade. Esse ethos faz do guia um ser que não só
está tento às necessidades dos outros, mas que as partilha e se torna
responsável por elas.
Estamos agora aparelhados para tentarmos algumas análises de textos distintos. Temos
dois anúncios publicitários da PETROBRÁS, um veículo na Manchete 2000, edição histórica,
e o outro na Carta Capital de agosto de 2008. A cena englobante dos dois textos é a da
propaganda institucional e a cena genérica é a do anúncio impresso.
O texto do primeiro anúncio se inscreve no quarto grau, desenvolvendo uma
cenografia instalada no espaço da Petrobrás, através de um tempo histórico em que dois
presidentes visitam campos petrolíferos, Vargas, em 1953, e Collor, em 1990. Os elos
interpretantes entre a Petrobrás e a Manchete se resumem no título do texto : Petróleo dá
Manchete, retomados pelo slogan abaixo da logo da empresa: Aconteceu virou Manchete.
Existe aí a definição de um ideal enunciativo em que a Manchete mostra que surgiu na época
da campanha O petróleo é nosso!, em 1952, tendo noticiado vários acontecimentos da
empresa de petróleo, inclusive a visita dos presidentes. Esse tipo de meta-reportagem conduz
ao percurso das duas instituições, pois, através da história da revista, é perfilada a história da
Petrobras. São fornecidas aos leitores informações relevantes do lugar enunciativo que a
revista ocupa na história institucional do país.
Na Carta Capital, existe outro tipo de texto de quarto grau, mas é a própria Petrobrás
que ocupa sua cenografia. É a própria instituição que vai contar sobre suas descobertas, na sua
7
Para observar as diferenças das características das várias figuras de guia, vide Charaudeau ( 2006, p. 153-163).
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nova era, que é “mais um capítulo de sucesso na história do Brasil”. São relatados os
resultados das pesquisas, um campo lexical científico pertinente ao modo de falar dos
engenheiros que conhecem o campo de saber: sondas de perfuração, plataformas, estrutura
marítima e fluvial, gasoduto, biocombustível e biodiesel.
Vejamos que, no primeiro exemplo, existe um ethos de certeza e confiança apto a
despertar a adesão à revista: o leitor é levado a identificar-se com a fala do enunciador e a
incorporar seu modo de ver o mundo, principalmente a instituição que está focalizando. No
segundo exemplo, são as imagens dos próprios pesquisadores e operários da revista que são
mostradas configurando um ethos de segurança, sucesso e confiança no futuro do país. Assim
sendo, vemos um tipo de propaganda institucional que valoriza o senso de equipe e de
corporação e que constrói seu ethos como uma espécie de nós coletivo, representativo da
nacionalidade, por uma “empresa brasileira feita por brasileiros”.
Passando para outra cena englobante, como a do discurso político, vamos observar a
disputa dos candidatos do PT e do PMDB, na campanha municipal de Salvador, para usar a
imagem de Lula. Três candidatos, Pinheiro (PT), Imbassahy (PSDB, prefeito do nicho
carlista, em dois mandatos, entre 1996 e 2004) e João Henrique ( PMDB, atual prefeito ) se
opõem ao herdeiro ACM Neto (DEM) sobre o qual incidem os elementos do ethos do avô que
caracterizou uma doutrina política, originando textualidade própria, conhecida como o
carlismo. Em razão dessa textualidade, o carlismo ultrapassou o status de doutrina política e
passou a ser uma FD bem ancorada numa formação social.
O candidato do PMDB, João Henrique, cujo ethos se modificou negativamente,
passando a ter um elevado índice de rejeição, começou a usar a imagem de Lula como aliado
em seu material impresso, anterior ao horário eleitoral gratuito. Pinheiro (PT) abriu processo
na justiça para impedir que o adversário usasse a imagem do presidente, alegando que só os
candidatos do PT poderiam fazê-lo. Não diríamos que o ethos político do presidente possui
todas as figuras dos ethé da credibilidade e da identificação. Houve escândalos de corrupção
com membros de seu partido no governo, que anulam o efeito do ethos da virtude. Fala-se de
sua falta de escolaridade superior, o que atenua os traços de um ethos da inteligência. Lula
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tem primordialmente o ethos do chefe, com figuras da humanidade e da solidariedade, pela
sua origem humilde e aparência de homem do povo.
No artigo de A Tarde, o advogado de João Henrique fala de se estatizar a imagem do
presidente. É uma voz de justiça que instaura um argumento de autoridade contra a interdição
de usar a imagem do presidente em propaganda impressa, já que, na TV só podem parecer nas
mensagens candidatos do mesmo partido. A disputa pela imagem do presidente é assim
restrita a um tipo de veículo de comunicação. De qualquer forma, como imagem suprema da
soberania, a figura do chefe entra no cruzamento das FDs eleitorais onde são expostas regras
da comunicação com suas permissões e restrições. Nesse âmbito, os textos produzidos são
quase sempre de quarto grau, pois é necessário mostrar a formação das figuras que compõem
os ethé dos políticos e as formas pelas quais eles se direcionam a seus receptores.
Para mostrar ainda um exemplo da formação de ethos , vejamos a capa da Carta
Capital de agosto de 2008. A questão é aquela de herdar a identidade do chefe do carlismo
que constituía-se verdadeiramente em uma identidade social de locutor. A sombra do chefe
aparece, portanto, ao olhar dos outros com ethos de chefe soberano que, com uma identidade
psicológica que lhe é atribuída, deve ser incorporada por outro ethos-chefe. É toda uma
identidade social construída por uma predicação política que emana de opiniões em relação a
um grupo. Mas, se o chefe carlista foi constituído como ethos político, atravessado de todas as
figuras da legitimidade e da credibilidade, as últimas notícias da imprensa destruíram, aos
olhos do povo brasileiro, e principalmente baiano, sua figura de honestidade. O texto da capa
fala de disputa pela sua posição de chefe, mas refere-se igualmente à disputa familiar pela
herança “estimada em 300 milhões de reais” que é impossível de se construir, em qualquer
lugar do mundo, apenas com trabalho assalariado, sem investimentos de risco.
Contrato
Para podermos aprofundar nossas análises, temos que examinar igualmente a noção de
contrato. Toda proposta comunicativa tem modos específicos de se dirigir ao outro, de
interpelá-lo, e de seduzi-lo para continuar o diálogo. No esquema de Jakobson, a interpelação
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é caracterizada pela função conativa e define um modo de endereçamento a um receptor ideal.
A função conativa tem a ver com o que Verón ( 1985) denominou contrato de leitura , uma
forma pela qual os emissores constituem seus públicos como sujeitos receptores de seus
discursos.
Charaudeau chamou o estabelecimento dos dispositivos de interpelação de contrato de
comunicação, haja vista que Verón estipulou uma concorrência de mensagens para que fosse
possível se analisar o contrato de leitura. Os parceiros desse contrato são categorias abstratas,
desencarnadas e destemporalizadas definidas pela posição que ocupam no dispositivo de
comunicação. (CHARAUDEAU, 2006).
Nesse contexto, o dispositivo também tem uma ordem conceitual, sendo o que
estrutura a situação na qual se desenvolvem as trocas linguageiras e que dispõe lugares para
que os parceiros possam se instalar, em função da natureza de suas identidades. Um
dispositivo é assim um lugar social de interação apto a materializar seus próprios modos de
comunicação.
Analisando os anúncios de revista e textos de jornal, podemos contemplar
sinteticamente os principais componentes do dispositivo de cada um desses veículos de
comunicação. Eles têm suas zonas de cooperação social de produção com objetivos, discursos
ideológicos dominantes, públicos visados, tecnologias utilizadas, etc. Têm seus parâmetros de
linguagem, tipos de texto e gêneros de discursos; e a zona de cooperação social de recepção
na qual os públicos decodificam as mensagens, estruturam respostas e recodificam as
mensagens segundo suas competências culturais.
Sendo o dispositivo uma cena em que as instâncias de produção e recepção estão em
interação constante, ele só existe em uma conjuntura social, e determina as formas do contrato
de comunicação. Por outro lado, a análise do contrato permite determinar a especificidade de
um dispositivo que se articula em uma FD dada. Assim sendo, o dispositivo é o que garante
que espaços discursivos se concretizem, com suas cenografias e ethé relacionados a suas FDs.
O ethos político de ACM se configurou, graças a uma série de dispositivos acionados,
inicialmente, nos meios de comunicação amparados pelos campos discursivos da ditadura
militar com seus governantes biônicos. Toda a textualidade dos militares estabeleceu
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contratos de comunicação em torno do slogan político Brasil, ame-o ou deixe-o, em que
amar era sinônimo de concordar com o regime. Posteriormente, ACM, com seu ethos de
autoridade, enquanto ministro das comunicações, construiu um império midiático, no qual o
jornal Correio da Bahia e a filial da TV Globo, a TV Bahia, praticamente “arrancada” das
mãos da TV Aratu, desdobrou uma série de dispositivos aptos a engendrar contratos de
comunicação, relativos a sua figuração potente e paterna vinculada ao campo sígnico
emocional de amor à Bahia8. Montou-se assim dispositivos políticos configuradores de uma
FD determinada, com suas cenografias fundadoras, via contratos bem delineados. Nesse
momento, ACM Neto se serve dos dispositivos já estabelecidos, tentando renovar os
contratos, através das ligações interpretantes do interdiscurso.
Por outro lado, na disputa pelo uso da imagem de Lula, podemos observar que o que
está em jogo é, primeiramente, a montagem do dispositivo midiático através do qual o
prefeito João Henrique ( PMDB) busca estabelecer contratos com eleitores potenciais,
passando-lhes a idéia de que conta com o apoio do presidente. Nesse sentido, ver-se-á que
toda comunicação possui sua dimensão relacional com suas características enunciativas e
pragmáticas, muito mais do que conteudísticas. Cada contrato, em cada dispositivo, está apto
a mostrar que os indivíduos pertencentes a um mesmo campo discursivo são suscetíveis de
chegar a um acordo sobre as representações discursivas desse campo.
Instâncias
O conceito de comunicação midiatizada levantou muitas questões acerca das
mediações que governam as interações entre os meios de comunicação e seus públicos. A um
determinado momento, chegou-se à conclusão de que falar de mídia supõe falar de um
complexo muito vasto de veículos de comunicação que foram, com o tempo, mesclando suas
linguagens9. O exemplo hipermídia da Internet, com seus hipertextos, ilustra a natureza da
complexidade da comunicação midiatizada. Esta, para Meunier e Peraya (2008, p. 312),
8
9
Sobre o ethos de ACM e o amor à Bahia, vide SOUZA ( 2006)
Sobre a história do folhetim à telenovela, vide SOUZA ( 2003)
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refere-se a toda forma de comunicação que utiliza dispositivos tecnológicos. Seria, então,
legítimo falar de dispositivo de comunicação midiatizada ou dispositivo midiático.
Mas, pensando nas formas de mediação entre um meio e o público, podemos pensar
que o livro também sempre fez parte da comunicação midiatizada. Este é um debate que
merece um espaço maior para se desenvolver.
Os autores citados enumeram quatro formas de mediação ( tecnológica, sensóriomotora, social e semiótica, ou melhor, semiocognitiva). Não vamos descrevê-las, citamo-las
apenas para atestar a riqueza de ferramentas para se trabalhar com a comunicação
midiatizada. Na perspectiva que adotamos, pretendemos falar de instância, e voltar ao
trabalho de Charaudeau (2008) a fim de verificar como seu modelo pode dar conta das
ligações orgânicas entre o campo extra e intradiscursivo, com agentes diferenciados em cada
campo.
Sugerimos que a tradicional questão feita a um texto sob a forma: “Quem
fala?” seja substituída por outra: “Quem o texto faz falar?”, ou quais sujeitos
o texto faz falar”, já que sabemos que um ato de linguagem é composto de
vários sujeitos ( EUc-EUe; TUd-TUi). ( CHARAUDEAU, 2008, p. 63)
O EUc é um sujeito comunicante- ser social que se dirige a um receptor TUi, sujeito
intérprete- ser social. Ambos se encontram no campo extra-discursivo e estão ligados por uma
situação de comunicação, com finalidade contratual mais um projeto de fala. Estas instâncias
são denominadas de parceiros do ato da linguagem e são definidos por um certo número de
traços identitários que o ato de comunicação legitima. (CHARAUDEAU, 2008, p. 76).
Por outro lado, os protagonistas são seres de fala internos ao ato de linguagem e são
definidos por papéis linguageiros, no campo intradiscursivo. Um é o EUe, enunciador, ser de
fala, e o outro é o TUd, Destinatário, ser de fala. Diferenciando o campo externo do campo
interno, de um ato de comunicação, Charaudeau estabelece uma reflexão profícua para o
estudo dos variados dispositivos, com seus variados contratos, em campos discursivos, nos
quais se confrontam vários ethé.
Lembremos da propaganda institucional da Petrobrás, na Manchete 2000. Quem é o
EUc do anúncio? Idealmente são dois eus que poderiam formar um NÓSc: a Petrobrás e a
Manchete (com seus fotógrafos Gil Pinheiro, Sérgio de Souza, etc) que se dirigem aos leitores
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da revista, TUi. No campo interdiscursivo, existem vários EUe, os presidentes, Vargas e
Collor, e os operários, nas plataformas, nas imagens visuais. No texto, existe uma fusão entre
o EUc, a revista Manchete, com seus dispositivos de produção ( seus repórteres e fotógrafos)
e o EUe, a Manchete, como nós inclusivo ( nós temos muita coisa em comum) que se dirige
ao TUd (no nosso dia-a-dia) o povo brasileiro, que é também o TUi ,leitores no meio do povo
brasileiro. O essencial do contrato, na fusão, repousa na informação de que a impressão da
revista depende do petróleo.
Esquema gerativo da comunicação
Após termos exposto o esquema de comunicação de Charaudeau, podemos pensar no
desdobramento das instâncias em um projeto gerativo, que já apresentamos no livro
Introdução às teorias Semióticas (2006), tentando concluir essa apresentação. As conclusões,
serão evidentemente, incompletas, em razão da extensão do assunto.
Esse esquema inspirado de Bakhtin e Pêcheux requer uma tensão interdiscursiva e
intertextual.
Interdiscurso
intertexto
Contexto narrativo (CN)
(1) Locutor
Discurso citado (DC) (4)
Ideologema
Alocutário
(3)
(2)
Discurso citado (DC)
Contexto narrativo(CN)
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As relações entre Emissor (Locutor) e Receptor (Alocutário), EUc e TUi , são
representadas pelas setas 1-2-3-4. EUc realiza um ato discursivo. Esse ato é regido por uma
condição de produção, não de emissão ideal da mensagem que requer a tensão entre o
contexto narrativo, pré-existente à vontade de emitir do locutor, e o discurso citado, em estilo
direto, indireto ou indireto livre. As modificações que o DC do locutor, enquanto EUc,
introduz no CN dão origem a outro CN onde o alocutário, enquanto TUi, deve perceber o DC
de origem.
Podemos observar, por exemplo, no artigo de A Tarde, que o DC do locutor, para
formatar outro CN, monta várias falas de EUe ( afirmou o advogado...; o PT afirmou...;
Pinheiro destacou...e confirmou; Segundo a assessoria de ACM Neto...Já a assessoria do
prefeito entrou com recurso...). Os textos políticos obedecem a um dispositivo próprio para
relatar opiniões com expressões e verbos indicadores de posições e argumentos10. O
importante é que o novo CN, onde o alocutário TUi apreenda o texto, deve transparecer um
ou mais ethos investidos de um saber político imbuído da capacidade de suscitar a crença no
episódio relatado. O CN político se apresenta, assim, sempre como uma cenografia onde
vários EUs , complementares e contraditórios, se expressam, em lugar de ecoar apenas uma só
voz, seja do autor do texto ( EUc) ou de um político determinado (EUe). Para o TUi, o ato de
decodificação não pode se reduzir ao reconhecimento de um sinal estável, e sim repousar na
compreensão da sua significação em um contexto concreto preciso. Entender as razões que
levam o PT e Pinheiro a tentar evitar o uso da imagem de Lula, pelo candidato de outro
partido, exige conhecimento de um CN no qual os dispositivos de comunicação vêm sendo
montados com suas cenografias particulares. Dizemos então que o DC ( seta 1), apreendido
no CN (seta 2) representa o primeiro passo de uma operação interpretativa destinada a marcar
uma correlação codificante contextual. Ela constitui o exemplo mais evidente de contrato de
comunicação emanando de duas zonas de cooperação social interligadas, em torno de um
10
Vide a classificação dos verbos introdutores de opinião feita por Marcushi (1991) que se enquadra
perfeitamente neste tipo de análise.
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referencial que Samuel Celestino ( A Tarde, 1-8-08) denominou como Um homem em
disputa.
Existe, em seguida, a apreensão do DC (seta 4) como verdadeiro produto social. Esta
apreensão deve ir do procedimento de avaliação do DC, enquanto discurso de um locutor, a
uma espécie de competência discursiva consistindo a pô-lo em relação com a rede de
discursos anteriores à comunicação emitidos pelo mesmo locutor ou grupo de locutores.
Nesse exemplo da imagem de Lula, trata-se do confronto de vários discursos emitidos sobre o
assunto, em veículos distintos, com dispositivos variados, que devem ser apreciados e
avaliados não apenas pelos membros do PT e do PMDB, mas por todos os cidadãos, que são
eleitores potenciais para a prefeitura de Salvador. Celestino, para ironizar as cenografias dos
vários textos que circulam sobre o assunto, acrescenta: “Homem brigar por outro homem, por
ciúme, inveja ou pela exclusividade do cidadão em disputa,era algo há muito tempo
inimaginável na Bahia”. Continua seu estilo irônico, imaginando várias cenas de diálogos
entre os candidatos e o presidente: - “Presidente, você é de quem?”
Lula: “- Eu tenho o lirismo da lua, tenho todos os encantos, mas não sou de ninguém.”
A briga por homem, que Celestino diz nunca ter visto antes em sua carreira,
desencadeia uma série de cenografias, com seus contratos através das quais fica patente a
subordinação social dos parceiros da comunicação com a formação discursiva. E justamente
a intervenção do interdiscurso preside à apreciação do ato discursivo já existente
retransformado por um novo ato interlocutório que o situa circunstancialmente. Ele rege a
orientação social das posições de classe que autorizam o que deve ser dito em determinado
momento da evolução da sociedade. De tal forma que as unidades discursivas sobre o uso
exclusivo da imagem de Lula pode entrar em relação dialógica com unidades lingüísticas do
discurso político, tais como aliança, partido, governabilidade, disputa judicial, faixa
presidencial, símbolos da República, privatização do presidente, que vão se constituindo nos
efetivos sujeitos ideológicos dos enunciados. O dialogismo indica igualmente a permuta
intertextual entre os enunciados onde se alarga o horizonte social dos protagonistas e onde o
horizonte axiológico pode conduzir os enunciados emitidos aos campos semânticos da nação,
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da formação de comunidades, do envolvimento partidário e ideológico, da manipulação da
opinião, etc.
Esses horizontes, que determinam efetivamente os estudos sobre condições de
recepção, sendo, ao mesmo tempo, dois vetores de produção sígnica são mediatizados pelo
produto ideológico que unifica a competência comunicativa dos agentes sociais. Bakhtine diz
que todo enunciado funciona como um entimema11, e é por isso que ele convoca relações
intertextuais. O ideologema, um enunciado, um entimema, é um mediador que ocupa o centro
diagramático do esquema e substitui a função topológica das mensagens. Ele é um produto de
troca realizado num determinado momento de produção de signos; ele é produzido em série e
garante o diálogo do produto atual com os outros postos em circulação neste período
historicamente determinado em que a comunicação é processada. De um lado, tem-se o
ideologema O presidente é meu ( diz o PT) que desencadeia todas as reações de relação
polêmica para afirmá-lo ou negá-lo; Por outro lado, nos outros exemplos, tem-se outros
ideologemas: 1. É preciso disputar o espólio do coronel, em relação à dita lacuna política
deixada pelo carlismo, que todos querem ocupar, mesmo “sem repetir o estilo grotesco de
ACM” (Isto É, 2008, p. 22); 2. Nova era de sucesso brasileiro com a empresa brasileira
Petrobrás, que funciona como um verdadeiro ideologema dinamizando uma série de
enunciados eufóricos sobre a atividade produtiva e de pesquisas da instituição.
Nesses exemplos, podemos verificar textos de quarto grau que põem em cena suas
doutrinas, os percursos institucionais e seus ideais enunciativos, dirigindo-se diretamente a
comunidades discursivas que são identificadas explicitamente como os aliados, os eleitores,
os tucanos, os carlistas, os peemedebistas, os seguidores, etc, no caso da política. Quanto aos
textos da Petrobrás, fica claro que as comunidades discursivas concretizadas nos textos são
formadas pelos pesquisadores e operários, e sobretudo pelos brasileiros. Assim, trazendo para
essas reflexões finais a problemática das tensões do interdiscurso e do intertexto, resta-nos
lembrar que a centralidade de muitos tipos de textos e discursos acaba por se desfazer, na
época atual, em favor de uma pluralidade de propósitos socioinstitucionais , ligados a
comunidades discursivas determinadas. Os textos
11
políticos, os textos de propaganda
Um silogismo truncado que não se apresenta com todas as premissas.
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institucional,
artigos jornalísticos, etc., são vários exemplos de textos plurais que
materializam convenções variadas de produção e recepção, proporcionando as imbricações de
regularidades discursivas diversas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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A religião afro-brasileira como tema na literatura infanto-juvenil de Reginaldo Prandi
Lidiane Neves Rodrigues1
RESUMO: Este texto tem por objetivo pensar a literatura infanto-juvenil de Reginaldo Prandi, sociólogo das
religiões, sob a análise dos estudos culturais, uma vez que esta aparece nos dias de hoje como uma possibilidade
de atender a demanda exigida pela Lei 10.639/03 a fim de contemplar nos currículos escolares os estudos da
história e cultura afro-brasileira e africana nos currículos oficiais de ensino especificamente nas áreas de
literatura, artes e história. Assim percorrerei uma trilogia infanto-juvenil composta pelo escritor acima citado
analisando a sua perspectiva de olhar sobre as relações étnico-raciais no Brasil. Que aspectos da mitologia
Yorubá perpassam as suas obras.
Palavras-chave: Literatura-infanto-juvenil – relações étnico-raciais – Reginaldo Prandi
ABSTRACT
This text aims to think about the children and young people's literature Reginaldo Prandi, sociologist of religion,
under the analysis of cultural studies, as it appears in this day and age as an opportunity to meet the demand
required by law in order 10.639/03 in school curricula to include the study of history and culture africanBrazilian and African officers in the curricula of education specifically in the areas of literature, arts and history.
So traveling in a trilogy children and youth comprise the writer above examining its perspective to look on the
ethnic-racial relations in Brazil. What aspects of mythology Yorubá permeates your works.
Keys: Literature-children and youth - ethnic-racial relations - Reginaldo Prandi
“Iemanjá era filha de Olocum, a Senhora do Mar. Um
dia Iemanjá foi viver no continente e sua mãe lhe deu
uma cabaça mágica, que ajudaria numa situação de
perigo” (PRANDI, 2003, p.33).
Reginaldo Prandi é escritor, pesquisador, professor da USP e sociólogo das religiões,
com inúmeros trabalhos publicados e carreira acadêmica construída dentro dessa temática.
Recentemente publicou uma trilogia literária infanto-juvenil a qual se reporta a mitos da
1
Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e mestranda do Programa de PósGraduação em Estudos Étnicos e Africanos pelo Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade
Federal da Bahia (UFBA). Email: [email protected]
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tradição religiosa Yorubá presentes na cosmologia dos terreiros de candomblé. Alvo de
reconhecimento social, suas obras já receberam várias premiações2. Em ordem de publicação,
os livros são: Ifá, o Adivinho (2002); Xangô, o Trovão (2003) e Oxumarê, o Arco-Íris (2004),
ambos compostos de contos adaptados em linguagem e forma, retirados de seu livro para
adultos “Mitologia dos Orixás”.3
Essa versão infanto-juvenil, de forma resumida, traz inúmeros contos que para além de
seus títulos, adentra ao universo das interações entre os orixás, entre estes e seus devotos.
Aborda também a reconstrução histórica dos negros na formação do Brasil. São vários contos,
uma média entre 10 a 13 histórias em cada publicação, que vai da revelação das identidades
dos orixás a conflitos e disputas internas entre eles.
É pertinente chamar a atenção para que pretendo, a partir dessa trilogia e da
representação intelectual do escritor, Reginaldo Prandi, pensar essa literatura infanto-juvenil
sob a ótica das discussões dos Estudos Culturais e para isso, me debruçarei nas reflexões
teóricas de Stuart Hall, Paul Gilroy, Muniz Sodré, Kwame Appiah e Eduard Glissant.
Procurarei dialogicamente articular a percepção sobre a questão étnica construída no texto de
Prandi com o significado sócio-cultural da produção literária infanto-juvenil para a realidade
das relações raciais brasileira. Com isso, percorrerei um caminho ainda em fendas, uma vez
que apesar de vasta a produção dessa literatura nos últimos anos, ela ainda se caracteriza em
sua construção inicial, daí pensá-la na realidade sócio-cultural hoje, mas que revela desde já,
um futuro promissor.
Hoje a discussão da temática étnico-racial na escola é uma exigência legal percorrida
nos últimos vinte e cinco anos pelo Movimento Negro Unificado (MNU) o que se caracteriza
como uma vitória, resultado de lutas político-sociais que, materializados na Lei 10.639/03,
remonta a história sócio-política das organizações negras do nosso país. Ou seja, a Lei
10.639/03 é símbolo da presença das revoltas, dos negros que ascenderam socialmente, das
representações tradicionais que subsistem até hoje nos espaços sócio-educativos em que torna
vivaz a cultura negra (terreiros, quilombos, etc), da Frente Negra Brasileira e do MNU, todos
2
Dentre as premiações destaca-se a que recebeu em 2003 com o livro Ifá, o Adivinho da Fundação Nacional do
Livro Infantil e Juvenil, Prêmio Melhor Livro Reconto.
3
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Editora Companhia das Letras. 2001.
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estes deturpados em sua História Oficial, quando não, negados nos ambientes educacionais
formais, daí a importância desta lei que procura reparar em termos curriculares,
consequentemente, da formação ideológica esse dado ofuscado pelas redes de ensino.
Enfim, a Lei 10.639/03 vela a participação dos africanos e seus descendentes em solo
brasileiro enquanto agentes na constituição do nosso país e que contraditoriamente, teve sua
história negada nos espaços sócio-culturais, sendo estes por sua vez, formadores de opinião e
mentalidades. Muniz Sodré ao tratar das relações raciais no Brasil e na mídia, fala que
“o imaginário é categoria importante para se entender muitas das representações
negativas do cidadão negro, quando se considera que, desde o século passado, o
africano e seus descendentes eram conotados nas elites e nos setores intermediários
da sociedade como seres fora da imagem ideal do trabalhador livre, por motivos
eurocentrados” (SODRÉ, 1999, p. 244-245).
Essa imagem construída enquanto seres fora do sistema e da incapacidade de
adequação ao progresso dos negros sobre a elite branca percorreu diversos meios de
representação. Sodré se refere especificamente à negatividade projetada na mídia, mas ela é
percebida em todos os mecanismos de propagação cultural, ao mesmo tempo em que constrói
percepções e orienta as relações interpessoais e subjetivas. Nesse sentido, literatura infantojuvenil não está distante dessa realidade, como destaca Lima, enquanto espaço formador e
construtor do imaginário social não se constitui enquanto um espaço neutro, longe das
influências externas e da veiculação ideológica, ela é formada “(...) de enredos e lógicas, onde
‘ao me representar eu me crio, e ao me criar eu me repito’ (LIMA, 2001, p.96)”.
A literatura infanto-juvenil vem se reconfigurando muito nas últimas décadas, o que
em sua história inicial era destinado a uma pequena parcela da sociedade, hoje se populariza e
abre um leque de possibilidades de diálogos, tal quais as emergências sociais a atender novos
contextos4. É dessa maneira que as questões étnico-raciais caracterizadas aqui como cunho
4
Desde as décadas de 60-70 que a literatura infanto-juvenil, sob a preocupação de enfatizar os problemas sociais
do Brasil, se comprometeu em trazer a realidade brasileira enquanto problemática a ser incorporada nesse gênero
literário. Do faz-de-conta, à regionalização brasileira e aos problemas sociais, muitos foram os estereótipos
construídos acerca das minorias. É nessa lógica que o negro sempre esteve quase ausente nas tramas literárias e
quando representado sempre seguido de posições de inferioridade em relação ao personagem não-negro.
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político-ideológico se (re)fazem nas tramas literárias infanto-juvenis, as quais ganham maior
atenção frente a implementação da Lei 10.639/03 ao tornar obrigatória a inserção da
abordagem étnico-racial nos currículos escolares. Passam a ser exigência social e legal, a ser
incorporada e traduzida em prática cultural, a exemplo, da abertura do mercado editorial, pósgraduações e cursos de capacitação de professores.
Observo que dentro dessas obras literárias há uma freqüência muito recorrente da
afirmação de identidades das populações negras, tal qual uma busca pela origem comum
decorrente do continente africano, a exaltação da beleza do povo negro, a (re)constituição
familiar e cultural frutos da experiência da diáspora, e uma presença muito forte e especial
atenção às religiões afro-brasileiras.
Daí a importância dessa reconstrução das imagens em que humanizem e dê
visibilidade aos negros, no sentido de reposicionar o imaginário social. As literaturas de
Prandi correspondem a essas expectativas, pois, informa sobre outros olhares à explicação de
fenômenos sob o ponto de vista da cultura afro-brasileira. Ou melhor, especificamente as
literaturas de Prandi trabalhadas aqui dão conta de mitos que revelam partes do universo
simbólico dos orixás e dos terreiros de Candomblé. Traços podem ser identificados nas obras
de Prandi o que se refere à cosmologia envolta do culto aos orixás, tal quais as elencadas a
seguir:
1) Personalidade - os orixás são portadores de personalidades que os aproximam da
figura humana, dotados de características individuais e gostos que permeiam uma
individualidade e diferenças entre cada orixá. Assim, cores, comidas, saudações, cidades de
origem fazem parte do repertório simbólico dos orixás, correspondentemente no culto dos
terreiros. Além disso, é muito recorrente nos contos a associação dos orixás com seus
respectivos cognomes, símbolo a meu ver de sua subjetividade, dessa forma, Yansã é a
Destemida, Omolu o Curador, Xangô o Trovão, Oxalá é o Criador da Humanidade, Oxum a
Bela, etc.
2) Relação dialética entre o humano e as divindades. Alguns contos de Prandi (2004)
denotam a veneração dos humanos para com os orixás em troca dos “favores” que estes
podem lhe retornar, assim podemos dizer que um depende do outro para conferir sentido à
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vida. Oferendas entram como uma referência da crença, assim como, os infortúnios e os
castigos devotados aos humanos e aos próprios orixás quando agem de má fé ou desobedecem
a uma ordem de seus superiores. Tal qual Exu a Oxalá quando este não obedece às
orientações de Olorum a respeito da oferenda a Exu antes da criação do universo, por sua vez,
este lhe causa muita sede e para saciá-la bebe vinho de palma, se embriaga e dorme. Nesse
momento Odudua passa em sua frente e realiza tal obrigação. Cabe a Oxalá depois disso se
desculpar com Olorum, o Ser Supremo, pedir permissão a Exu e assim terminar a criação,
fazendo o homem.
3) Presença muito forte de Ifá, o Oráculo. Como um orientador, Ifá tem todas as
soluções para as dificuldades que se apresentam cotidianamente, seja dos orixás, seja dos
humanos, se aproximando dos conflitos terrenos. Ifá “sabia o que era melhor para resolver
cada infortúnio, quer se tratasse de doença, de dificuldade com a família, de falta de emprego
e dinheiro (...) enfim, tudo o que pode tornar sofrida e infeliz a vida de alguém” (PRANDI,
2001, p. 45).
4) Retorno a África como origem. A África é construída como a figura materna dos
mitos yorubás, daí os contos se referirem a rios, cidades e aldeias que remetem a esse
ambiente. Ao mesmo tempo em que aborda a reconstrução cultural provinda do processo
histórico vivenciada pelos africanos no Brasil e constituindo aqui outras práticas culturais.
Nos três livros há referências a esse respeito acredito que tanto por ser o candomblé fruto
dessa realidade, quanto por se tratar de uma preocupação em reconstituir e trazer a tona esse
passado.
5) Criação do mundo. Oxalá, Odudua, Olorum e Exu são figuras representantes
quando se trata da construção do mundo na mitologia yorubá e como tal referendados nos
contos de Prandi como mencionei anteriormente. Olorum, o Ser Supremo que habita o Orum,
Oxalá, Criador da Humanidade, Odudua criou o mundo, a Exu é conferido o poder de tudo
transformar ou criar, o que confere passagem. É preciso pedir licença a Exu para se realizar
qualquer coisa. Essa temática é importante como mais um dado de deslocamento da versão
construcionista judaico-cristã.
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6) Imagens - As imagens enquanto uma representação simbólica, se apresentam nos
textos de Prandi de modo a reforçar os aspectos tratados ao longo da trama literária, é dessa
forma que símbolos a exemplo do ibiri de Nanã, o adô de Euá, o machado de duas lâminas
(obá) de Xangô, contas, búzios, peneiras, galos, bodes, quiabos, atabaques, pilão, cores etc,
compõe o repertório simbólico dos orixás e do Candomblé representados na obras de Prandi.
No fim de cada livro o autor fala “Quem são os nossos personagens, os orixás” e com
cunho explicativo situa questões gerais sobre origem, processo histórico e escravidão e
reconstrução cultural ao tempo em que situa individualmente cada orixá segundo suas
personalidades. Trata-se de uma síntese teórica sobre a questão racial no Brasil, da
reconstrução cultural para se chegar ao Candomblé e em específico aos orixás e todo o seu
significado e cosmologia.
Assim, vemos a partir dos contos de Prandi o que o escritor Éduard Glissant (2005,
p.72) chamou de cultura compósita, síntese do cruzamento cultural entre diversos povos, de
diversas origens. Podemos pensar no campo de que a construção do Candomblé é uma
religião presente apenas em solo brasileiro, mas que ao mesmo tempo é sinônimo da
diversidade de povos africanos que se organizaram no Brasil com o intuito de manter vivos,
traços culturais vivenciados na terra de origem. Só que outro elemento é incorporado nos
últimos anos como o próprio Prandi (2003, p.55) relata, o candomblé necessariamente deixou
de ser exclusivamente uma religião étnica, tida há décadas atrás como uma instituição apenas
de negros, mas que já se vêem brancos compondo esse cenário, mesmo que minoritariamente.
Isso faz lembrar o que Hall (2006, p.30) define de transculturação, uma vez que está
em órbita valores tanto do colonizador, quanto do colonizado e em relação geo-temporal
inventam outras formas de relacionar-se com o mundo a sua volta. Em outra passagem, ao
tratar do conceito de diáspora e aplicá-lo à realidade caribenha, pensa no conceito
derridadiano de différance em que há sempre a possibilidade de manter abertas as fronteiras
das relações culturais, pois, trata-se de uma construção humana e dinâmica em constante
transformação, assim, “(...) sempre há o deslize inevitável do significado na semiose aberta de
uma cultura, enquanto aquilo que parece fixo continua a ser dialogicamente reapropriado”
(HALL, 2006 p.33).
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Origens e mudanças podem ser observadas nas tramas que regem os princípios do
Candomblé. A própria noção de Orixá remete-nos a uma tradição Yorubá5 que permanece até
hoje na nossa cultura, outros exemplos são as associações dos orixás e suas características,
personalidades, sua ligação com a natureza e a relação íntima entre devoto e o orixá, sendo
que cada pessoa têm o seu numa reciprocidade de personalidades e de cuidados devotados a
ambos. Um alimenta o universo simbólico do outro. Esses são traços culturais que a meu ver
foram ressignificados perante mediação cultural dos povos africanos aqui em comunhão com
o processo da escravidão. Afinal, são traços comuns dos valores Yorubá, mas que não foram
todos os orixás, nem todos os significados e representações que os negros africanos
conseguiram reconstituir aqui.
Glissant (2005) ao falar da realidade cultural dos ciganos nos remete à idéia de que
todos os povos têm a legitimidade de se posicionarem como uma resposta político-social no
contexto em que vivem. Acredito ser a literatura enquanto espaço de representação e
construção ideológica, um espaço de reorganização e de reposicionamento do imaginário
social. Vejo na literatura infanto-juvenil afro-brasileira um instrumento de poder, luta e
ressignificação histórica. Segue o autor falando: não mudaremos nada da situação dos povos
do mundo se não transformarmos esse imaginário, e a idéia de que a identidade deva ser uma
raiz única, fixa e intolerante (GLISSANT, 2005, p. 80). Essa literatura com as características
que se apresenta desloca o lugar dos cânones literários e da negação acometida ao povo negro.
Vem mostrar que negro também constitui esse país, produz cultura e que vem buscar
legitimidade junto às formas formais de representação, proporcionando as gerações futuras
uma dinâmica de auto-estima, reconhecimento social da condição de ser e estar no mundo.
Na trilogia de Prandi, os primeiros contos dos livros vêm falando (brevemente) sobre o
fato histórico da escravidão e conseqüentemente das tradições, deuses, costumes que
trouxeram consigo, sob o pretexto consciente da ligação das religiões afro-brasileiras com sua
5
Maiores informações ver BARBER, Karin. “Como o homem cria Deus na África Ocidental: atitudes dos
Yoruba para com o òrìsà”. In.: Moura, C. E. M. de (org). Meu sinal está no teu corpo. São Paulo: EDICONEDUSP, pp. 142-175; PARÉS, Luis Nicolau. “Do Calundu ao Candomblé”. In.: A formação do Candomblé:
História e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas, Editora Unicamp, 2006.
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origem africana. Não é a toa que nas folhas de rosto dos livros refira-se: mais histórias dos
deuses africanos que vieram para o Brasil com os escravos. Por se tratar de livros de
mitologias dos orixás do candomblé, não há referência explícita a religiões em contexto
africano, mas sim, do ambiente onde nascem os orixás, como um templo, uma base, uma raiz.
É essa a noção de África que nos remete o autor. De um passado que também é presente nas
memórias de indivíduos que crêem e que vivem tais princípios, é o exemplo do povo-de-santo
que tem no candomblé uma instituição vista como resistência e patrimônio cultural viva.
Esse retorno à África é muito presente e vamos encontrá-la em muitos contos, tempos
em que os orixás habitavam a África, sendo o ambiente em que se passam as histórias,
construindo uma identidade entre África-Brasil, entre o passado e o presente. No último
volume, “Oxumarê, o Arco-íris”, relata o autor, “Ifá, o Advinho, aquele que conhece todas as
histórias e as que vão acontecer, conta que na África negra, em tempos imemoriais, vivia a
mais velha das mulheres, e mais antiga de todas (...)” (PRANDI, 2004, p.09).
O passado sempre se cruza com o presente, tal qual Ifá conhecedor de todas as
histórias do passado, presente e das que pertencerão ao futuro, reconstituídas a partir do
processo histórico e da dinâmica cultural acometida ao longo dos anos às nações africanas no
Brasil.
Essas noções entre dois mundos, ou melhor, vários mundos e realidades distintas nos
remetem a idéia de diáspora apresentado por Stuart Hall quanto a um resultado de conexões
culturais que os torna singulares na diferença. Fala que,
“(...) nossos povos têm suas raízes nos – ou mais precisamente, podem traçar seus
suas rotas a partir dos - quatro cantos do globo, desde a Europa, África e Ásia; foram
forçados a se juntar nos quatro quantos, na cena primária do Novo Mundo. Suas
rotas são tudo, menos “puras” (HALL, 2003, p. 30).
É Appiah quem nos diz que até o século XIX se falava apenas na unidade da
identidade africana. Várias identidades, desde o período pré-colonial já existia, assim como,
durante e depois desse processo. Mas, a identidade africana ainda está em construção, pois ela
é histórica. Aponta como uma identidade (apesar de negar o conceito) a uma questão de raça
em que um negro do continente africano se identifica pertencente a esse traço comum.
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Entretanto há várias outras identificações, vejam que identidade é um campo
complexo e de multiplicidade de sentidos. De fato, apesar de Prandi se reportar para a
realidade dos terreiros, há inúmeras outras formas de representação em que o negro é
reportado. Identidade móvel é essa a dinâmica que deve ser assumida, pois, como pressupõe a
própria noção de história, trata-se de um processo e como tal muda, e as transformações
ocorrem. Então há um arsenal de representações em que a literatura vem se debruçar a dar
conta de diversas realidades de acordo com os diferentes papéis sociais da população negra.
No segundo volume (2004), acrescentando o primeiro, Reginaldo Prandi além de
trazer outras histórias sobre Xangô dá a cena também a outros orixás não apresentados no
primeiro livros da trilogia. É o caso de Iroco, um orixá que morava em uma gameleira branca;
yemanjá que castigou os humanos pela falta de cuidado com a sua morada, o mar, daí o
surgimento das ondas como uma forma de rebeldia e de retornar aos homens todas as sujeiras
jogadas ao mar. Apresenta ainda, yansã, Oxaguiã e Oxalá.
Em “Oxumarê, o Arco-Íris”, permeia os mesmos universos simbólicos dos outros
contos, tal qual a relação entre os próprios orixás, a sua relação com os humanos e com a
natureza. Diferenciando-se ao acrescentar outros orixás Nanã, Omolu, Enrilé, Ajalá e Ossaim,
ampliando o horizonte de informações da representação desses orixás. Nanã briga com Ogum
por este não lhe dar o devido valor e respeito, tudo aconteceu em uma festa no palácio de
Olorum onde todos os orixás estavam reunidos, conversando sobre a importância de cada um,
mas a conversa tomou uma direção em que Ogum chegou a dizer que Nanã é também
conhecida como a Velha, a Ranzinza. Nanã não gostou e “(...) nunca mais se usou faca de
metal por causa do desentendimento sobre o poder e a humildade” (2004, p. 18).
Omolu representa o curador conhecedor das ervas e que proporciona a cura. A
história conta o porquê de Omolu ter o corpo revestido de palha, depois de ter adquirido a
varíola daí seu interesse pela cura de doenças. Só que em estado de tristeza e solidão,
Yemanjá em reconhecimento a Omolu presenteou-o com suas pérolas e essas cobrem as
marcas de sua doença. Mas mesmo “ele orgulhoso de seus mistérios de curador e sua riqueza
(...) é triste e retraído” (2004, p. 21). Sua saudação é Atotô, que significa respeito e silêncio.
Por sua vez Enrilé, Caçador de Elefantes aparece em duas histórias, uma delas, fala de uma
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acusação injusta que ele recebe e se transforma em um rio, a segunda ele se relaciona com
Oxum e daí nasce Logum Edé.
Esse tipo de escrita está preocupado em romper com modelos de representações
depreciativas e inferiorizantes da cultura afro-brasileira. É preciso conviver com a diferença,
mostrando as identidades afro-brasileiras que permutam em formas culturais. Sodré a esse
respeito, diz que,
“(...) tal identidade aparece na história a partir da discriminação cultural operada por
indivíduos e grupos de cor clara. Estes, por sua vez, só se reconhecem como
‘identidade branca’ ou ‘eurocidental’ no contexto relacional com os ditos nãobrancos ou não-ocidentais” ( SODRÉ, 1999, p. 255).
Nesse mesmo contexto, reflete que os conflitos raciais entre brancos e não-brancos se
dão em relações de poder entre o “Mesmo Dominante” e o “Outro Subalterno” numa
construção “sígnico-imagística” do Outro em que pese à marca identitária em traços físicos
enquanto uma apropriação do mercado e da mídia como forma de “minimizar a dimensão
política em favor da promoção de uma auto-estima individual, estético-mercadológica” (1999,
p. 255).
De fato vemos essa apropriação por parte do mercado, principalmente nos últimos
anos, mas acredito que na contramão há lugar - mesmo que ínfimo perante as outras
produções, de “luta” simbólica dos escritores comprometidos com a temática étnica que
aproveitam o momento de abertura e aceitação do mercado a essas publicações afrobrasileiras. Não é a toa que Sodré afirma que há em todo esse processo, identificações de
conflitos contra esse sistema ao se negar as desigualdades sociais.
Penso que mesmo não diretamente, e apesar de falar no contexto do mercado e da
mídia e produtos de consumo a atender a uma nova demanda social, a crítica de Sodré é muito
pertinente na análise contextual de outras esferas também. É preciso reconhecer quem de fato
faz um trabalho engajado e comprometido com a causa étnico-racial e quem simplesmente se
apodera desse momento para usufruto liberal, e claro, há também quem se arrisca a assumir
essas duas posições. Falo isso no campo da produção simbólica e a literatura enquanto tal se
encaixa nessa observação.
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É pautado nessas diferenças relacionais entre o Mesmo e o Outro como trata Sodré
em que as desigualdades vão se formando na sociedade, consequentemente, as identidades a
dar uma conotação de quem é o outro são delineadas. E encarando essa questão identitária
como um fator de mobilidade e reconhecimento social dentro das relações sociais, precisamos
ter uma definição mais adequada ao contexto atual a não incorrer em questões de essencializála e assim, congelar a imagem do Outro.
Assumo aqui, a noção de identidade defendida por Hall e Gilroy como um campo em
aberto, móvel, fluido e dinâmico construído historicamente dado as transformações de cada
concepção e mudanças de sentidos que cada época incita. Vemos que as obras de Prandi
reportam-se a uma idéia de identidade assumida e enfatizada geralmente nos terreiros de
Candomblé. Mas há outras formas de representação dessa identidade que não apenas a
apresentada aqui e que outros autores vêm dando conta, é essa dinamização de papéis sociais
e culturais que orientam a escrita desses escritores e dão uma vasta representação em que o
leitor possa se identificar, construindo-se a se mesmo. Sodré (1999) também nos fala que a
identidade é construída em bases de um território, tomando isso como um pressuposto sem
necessariamente se limitar na noção de nacionalismo, as obras de Prandi pensa em uma
identidade calcada na África e no Brasil.
Gilroy por sua vez em seu livro O Atlântico Negro fala como intelectuais negros no
século XIX assumiram uma postura de autoconsciência de seu estar e ser no mundo e de
como sua escrita projetaram um mundo de autonomia e liberdade. Assumindo para além da
postura intelectual, uma postura política com a condição da realidade acerca da população
negra e dos lugares simbólicos ocupados e não ocupados por eles.
É a utilização de espaços sociais e formais, a exemplo da academia, que fornece a
percepção teórica e do lugar e da produção simbólica na reorganização dos indivíduos frente
as injustiças sociais e, que instrumentaliza nesse mesmo plano a busca pela reparação. Nesse
caso em estudo, vemos a utilização do conhecimento teórico-prático aplicado à realidade do
negro no Brasil e em que Prandi instrumentalizado sob um trabalho de pesquisa e
investigação se debruça a trazer à tona informações concernentes à cultura afro-brasileira.
Mesmo que sob uma via também formal, mas que se configura enquanto um espaço simbólico
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e de sentidos, a escrita tal qual traduzida numa linguagem particular sob o olhar dos terreiros
de Candomblé.
Ao longo desse texto procurei pensar a literatura infanto-juvenil como um
instrumento na reparação da desigualdade pelo menos na representação social dentro dessa
literatura em específico, uma vez que hoje ela é concebida pela temática étnica de modo que
décadas atrás não correspondia a tais expectativas. O autor abordado aqui reverencia um
exemplo de como mudanças significativas vem ocorrendo nesse ramo.
Na trilogia de Prandi encontramos aspectos da cultura Yorubá típicos do nosso
Candomblé, mas também que remete à épocas longínquas quando essa cultura era apenas uma
realidade africana, que depois foi reconstruída aqui no Brasil. Resistindo até hoje enquanto
mediadores das vidas dos adeptos ao Candomblé, é assim que Ifá, Xangô, Yansã, Oxóssi,
Oxalá para além das narrativas presentes nos contos de Prandi revelam em sua prática sóciocultural viva nos barracões, uma certa intimidade entre seus devotos.
Isso evidencia o que Beek e Blakely6 anuncia como mudanças não necessariamente
no cunho religioso, mas que a África sendo palco de transformações nesses últimos dois
milênios decorre de “conquistas políticas, fragmentação e redistribuição de impérios e reinos,
todos resultaram em um continente com uma miríade de culturas em constante interação”
(1994, p. 21) proporcionou mesmo que na experiência do terror racial uma pluralidade de
representações culturais, tal qual o Candomblé.
Vejamos que na literatura analisada aqui o autor se posiciona frente a um
compromisso já fixado anteriormente declarado pela própria carreira acadêmica dele em
trazer à tona informações acerca do candomblé e de sua origem na visão Yorubá, a ponto de
traços comuns dentro da própria religião confinada nesta, se expõe em nível de tornar público
outras formas de vida.
Uma íntima e fiel relação dentre devoto e orixá se faz presente, assim como, a
criação do mundo é vista pela cosmologia tradicional Yorubá; Ifá e seu poder de intermediar
entre os problemas que aflingem os devotos e a interdição perante os orixás, quais
6
BLAKELY, T.D. & VAN BEEK, W. E. & TOMSON, D.L., (EDS.). “Introducion”. Religion in Africa,
London, James Currey, 1994. pp. 1-20.
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procedimentos aqueles precisam tomar para se libertarem, hoje Ifá é personificado em pais e
mães-de-santos; traço este decorrente do processo histórico-cultural vivenciado em solo
brasileiro quando da escravização, evidencia Reginaldo Prandi (2001, p.51).
Assim, informação e comprometimento político se encontram em um desafio que
para Reginaldo Prandi se traduz na consciência e respeito à alteridade, onde lugares se
desloquem ao reverterem estereótipos e invisibilidade do negro na mais tenra idade. Crianças
e jovens podem conhecer a mitologia presente no candomblé, o que de fato não creio que se
trata apenas de mitos, uma vez que ele (re)orienta a vida de muitas pessoas, tem um sentido
prático-ideológico que o faz vivo e presente.
Assim, identidades podem ser construídas no sentido de que Gilroy chama de dupla
consciência, uma vez que o leitor que se identifica com a temática pode ser levado ao passado
e origem na África, mas ao mesmo tempo integrante de uma cultura brasileira e diversa. São
multiplicidades que ao mesmo tempo, recoloca o sujeito a pensar sobre o lugar onde está
inserido, sobre que realidade vive e dessa maneira pressupõe-se que se alargam as percepções
acerca da cultura afro-brasileira, tantas vezes negada na escola, na mídia e na prática sóciocultural. É preciso de fato ocupar os espaços dessa literatura e de todos os outros espaços em
que a imagem seja construída.
Nesse caso, a figura do intelectual, como expõe Gilroy (2001, p. 41) é referência no
sentido de que sua prática pode ser revertida em luta política, a levar o negro a ser percebido
pela sociedade como um agente histórico que apesar de toda a condição submetida a ele ao
longo dos séculos de escravização e a posteriori de subjugação de suas capacidades
intelectuais, ele resistiu, reorganizou e fundou outras formas de vida e de referências culturais.
É nessa órbita que Gilroy (2001) também traz referência ao navio como um
instrumento viabilizador mesmo que forçosamente, do intercâmbio cultural e constituiu outras
referências, daí podemos ressignificar que a literatura infanto-juvenil sendo necessariamente
uma construção eurocêntrica, ela também traz o rompimento dessa fronteira, uma vez que o
negro vem sendo representado de forma mais presente, enaltecido e ocupando também o
espaço de ator e escritor.
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Glissant fala que “o problema que temos de enfrentar é como mudar o imaginário, a
mentalidade e intelecto das humanidades de hoje” (GLISSANT 2005, p.74) e vejo na
literatura infanto-juvenil de temática étnico-racial, uma forma de se mudar esse imaginário,
reconstruindo sentidos e lugares como o Outro é visto e concebido, claro que esse é um
trabalho longo e que de fato pertencem às tramas do futuro, mas os passos principais estão
sendo dados e ganhando espaços.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
APPIAH, Kwame Anthoni. “Identidades africanas”. In.: Na casa de meu pai: a África na
filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
GILROY, Paul. “O atlântico negro como contracultura da modernidade”. O Atlântico Negro:
modernidade dupla consciência. São Paulo, Editora 34. 2001.
HALL, Stuart. “Pensando a Diáspora”. In.: Da diáspora: identidades e mediações culturais.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
LIMA, Heloísa Pires. “Personagens negros: um breve perfil na literatura infanto-juvenil”. In.:
Superando o racismo na escola. Kabenguele Munanga (Org.). Brasília: Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Fundamental. 2001.
SODRÉ, Muniz. A identidade como valor e Rejeição da alteridade. In.: Claros e escuros:
identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999.
PRANDI, Reginaldo. Ifá, o Adivinho. Ilustrações de Pedro Rafael. São Paulo: Editora
Companhia das Letrinhas, 2002;
PRANDI, Reginaldo. Xangô, o Trovão. Ilustrações de Pedro Rafael. São Paulo: Editora
Companhia das Letrinhas, 2003;
PRANDI, Reginaldo Oxumarê, o Arco-Íris. Ilustrações de Pedro Rafael. São Paulo: Editora
Companhia das Letrinhas, 2005;
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PRANDI, Reginaldo. Os Príncipes do Destino. Ilustrações de Paulo Monteiro. São Paulo:
Editora Cosac & Naify Edições, 2001.
PRANDI, Reginaldo. “Deuses africanos no Brasil: uma apresentação do candomblé”. In.
Herdeiras do Axé. São Paulo, Hucitec, 1997, pp. 1-50;
PRANDI, Reginaldo. As religiões afro-brasileiras nas ciências sociais: uma conferência,
uma bibliografia. Revista Brasileira de Informação bibliográfica em Ciências Sociais –
BIB, 2006;
PRANDI, Reginaldo. As religiões e as culturas: dinâmica religiosa na América Latina.
Texto proferido na Conferência Inaugural das XIV Jornadas Sobre Alternativas Religiosas
na América Latina. Bueno Aires, 25 a 28 de setembro de 2007;
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A galeria dos desvalidos em Chico Buarque e Manuel Bandeira
Luciano Marcos Dias Cavalcanti
∗
RESUMO: Este trabalho tem como objetivo principal constatar, através de um estudo comparativo, a valorização
do desqualificado nas letras musicais de Chico Buarque e na obra poética de Manuel Bandeira.
Palavras-chave: Musica Popular Brasileira; poesia; desqualificado; Chico Buarque; Manuel Bandeira.
ABSTRACT: This essay seeks to verify, through comparative analysis, how Chico Buarque’s lyrics and Manuel
Bandeira’s poems privilege “disqualified” objects.
Keywords: Brazilian Popular Music; poetry; “disqualified”; Chico Buarque; Manuel Bandeira.
Uma das coisas mais importantes da ficção literária é a
possibilidade de poder “dar voz”, de mostrar em pé de igualdade os
indivíduos de todas as classes e grupos, permitindo aos excluídos
exprimirem o teor da sua humanidade que de outro modo não
poderia ser verificada. (Antonio Candido)
O problema básico ao fazer um estudo comparativo entre Chico Buarque e Manuel
Bandeira é o fato de o primeiro ser considerado um “poeta-compositor engajado” e o
segundo, um poeta lírico não engajado, como ele próprio diz em seu poema intitulado
“Testamento”: “Sou poeta menor, perdoai! /Não faço versos de guerra/...”. Nesses versos,
Manuel Bandeira fala de sua impossibilidade de fazer “versos de guerra”, ou seja, engajados.
Portanto, é necessário notarmos que na obra poética de Chico Buarque a sua matéria não diz
respeito somente ao tema político, mas também ao lírico. Mas não de uma forma isolada,
como se em uma hora o artista se fizesse político; em outra, lírico. Acreditamos que, em sua
obra, as variantes temáticas não constituem fases separadas e estanques: o lírico e o político

andam juntos.
Doutor em Teoria e História Literária IEL/UNICAMP. e-mail: [email protected]
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A poesia de Chico Buarque não se prende a um contexto circunstancial, mas a um
contexto humano existencial do século XX. Sua poesia, como a de Manuel Bandeira, pretende
significar o homem do nosso século inserido na trajetória da humanidade.
Outro fator que problematiza a comparação entre os dois autores diz respeito á própria
comparação entre um poeta propriamente dito a um compositor da MPB. Soma-se a isso o
fato das letras musicais serem simultaneamente texto poético e musical. Rodrigues ressalta
que isso: "faz com que suas palavras [das letras] não devam ser consideradas a partir do papel
frio e estagnante, mas a partir do movimento lábil da melodia que evapora no momento que se
executa.”. (RODRIGUES, 1989-90: 27)
Mas se, independentemente da música, o texto de uma canção é literariamente rico,
não há nenhuma razão para não se considerarem seus méritos. Hoje, os compositores
modernos já são lidos e não, somente ouvidos. Há exemplos claros disso: um deles é o fato de
Chico Buarque ser o primeiro compositor brasileiro a incluir nas capas de seus discos suas
letras musicais; e outro, é este estar incluído na coleção Literatura Comentada, como também
o fato do compositor travar um diálogo frutífero com a tradição literária brasileira.
O próprio significado primitivo da palavra lírica é derivado do grego que corresponde
ao canto individual do verso acompanhado de uma lira. É a união da palavra com a melodia.
Nas canções de Chico Buarque, é possível notar, em várias letras, a aproximação de sua
poesia com a lírica medieval. “Com açúcar e com afeto”, “Sem fantasia”, “Pedaço de mim”,
“Olhos nos olhos”, entre outras, são algumas canções que podem ser “lidas” como cantigas
trovadorescas modernas.
Estas
reconstruções
da poesia medieval,
feitas
por Chico
Buarque,
são
incansavelmente repetidas em livros didáticos que desejam falar do trovadorismo e da cantiga
de amigo. São reconhecidamente poemas trovadorescos modernos.
Embora Chico Buarque seja essencialmente um compositor popular, podemos notar, a
partir de suas canções trovadorescas, suas refinadas metáforas e as elaboradas construções de
suas composições, que ele transita no universo da cultura erudita. Aliás, é uma característica
de sua poética estabelecer uma relação reversível entre o popular e o erudito.
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O início de sua produção poética de Manuel Bandeira foi influenciado pela estética
parnasiano-simbolista, que usava da linguagem de estilo elevado e das metáforas
penumbristas para se expressar. Logo após A Cinza das Horas, já percebemos no poeta a
libertação de sua herança parnasiano-simbolista. Sua linguagem vai se libertando
progressivamente do estilo elevado e se mistura a um estilo humilde, mas de forma que o
sublime se encontre no humilde. Em Manuel Bandeira, o grande é encontrado sutilmente no
pequeno. E, para isso, o poeta usa as palavras do dia-a-dia, o verso livre e valoriza o
desqualificado.
Apesar de Manuel Bandeira não ter uma atitude engajada, isso não quer dizer que ele
foi um poeta que viveu em uma torre de marfim, isolado do mundo e de tudo, contemplando a
si mesmo. Muito pelo contrário; Manuel Bandeira tem os pés no chão é um poeta
profundamente misturado à vida.
Sobre a valorização que Bandeira dá aos humildes e aos desqualificados, é importante
notarmos que o poeta não vê a pobreza ou a miséria como algo poético e bom, reforçando
assim a condição de miséria e exploração em que vive o povo brasileiro por causa dos
descuidos e dos desmandos dos governantes. Bandeira retira do dia-a-dia de seu povo a
matéria de sua poesia, no qual o “eu” se acha situado.
“Poema do beco”, “O martelo”, “O bicho”, poemas de Manuel Bandeira, são
exemplos que podem ser considerados esparsos na obra do poeta, mas que nos revelam a sua
emoção social. São poemas que têm como matéria a pobreza e a miséria. Vejamos o que nos
diz o poeta, no seu Itinerário de Pasárgada:
Da janela do meu apartamento em Moraes e Vale podia contemplar a
paisagem, não como fazia do morro do Curvelo, sobranceiramente, mas
como que dentro dela: as copas das árvores do passeio público, os pátios do
convento do Carmo, a baía, a capelinha da Glória do Outeiro (...) No entanto,
quando chegava à janela, o que me retinha os olhos, e a meditação, não era
nada disso: era o becozinho sujo em baixo, onde vivia tanta gente pobre lavadeira e costureiras, fotógrafos do Passeio Público, garçons de cafés.
(BANDEIRA, 1977: 81)
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Manuel Bandeira nega a trivialidade da vida burguesa, lança um olhar crítico à rotina
tediosa do dia-a-dia burguês. E busca no popular a matéria de sua poesia.
Bandeira também busca sua inspiração na rua e no bar, entre salões literários,
prostíbulos, livrarias, cabarés e cafés-cantantes, locais que constituíam uma via de
comunicação real e efetiva do poeta com seu povo. Nestes lugares – o Amarelinho, a Lapa e a
José Olympio, no Rio de Janeiro; o Franciscano, a Rua Lopes Chaves (endereço de Mário de
Andrade, outro poeta que manteve uma relação estreita com a música e a cultura popular), em
São Paulo –, como ressalta Arrigucci foram locais onde
travavam-se relações variadas entre mundos heterogêneos. Salões da alta
burguesia, da aristocracia paulista do café e movimentados focos da vida
boêmia carioca, em meio à gente pobre da Lapa. Salões, cafés, restaurantes,
livrarias, cabarés e botequins não foram apenas pontos de encontro da roda
literária dos anos 20 e 30; foram cadinhos de relações importantes, pessoais
e sociais de classe, de raça, relações intersubjetivas, que acabaram por
integrar a nova matéria artística, com sensível aguçamento da consciência do
escritor com respeito à realidade em volta e evidente ampliação do próprio
conceito de literatura. (ARRIGUCCI, 1990: 64)
Outro aspecto importante a se ressaltar em Manuel Bandeira é o seu relacionamento
estreito com a música; sua obra é marcadamente musical. Bandeira leva sua poesia ao sentido
primitivo, que é o canto. O poeta é amante da música, autor de vários poemas musicados.
Notadamente, o poeta mais musicado do país. Letrista, colaborador e amigo de vários músicos
importantes e crítico bissexto. O fato de ser tão marcadamente musical com certeza é o
motivo de sua poesia ter sido preferencialmente musicada pelos compositores brasileiros.
Bandeira é um poeta que se identifica com a música, ele próprio nos diz: "sinto que na
música é que conseguiria exprimir-me completamente." (BANDEIRA, 1977: 50) O poeta
chegou a estudar música, teoria musical e tocar instrumentos como o piano e o violão. Esta
aproximação com a música pode ser vista também como um meio de aproximação da tradição
popular. A música, para Bandeira, é um objeto usado para construção de seus poemas, para
isso o poeta fez uso de técnicas musicais na estrutura dos poemas, buscando efeitos
semelhantes aos da música. Unindo, assim, as duas artes irmãs.
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Uma "personagem" freqüente na poesia de Manuel Bandeira é a do poeta e músico
Jaime Ovalle. Há várias referências a seu nome em poemas, no Itinerário de Pasárgada, nas
crônicas e nas cartas do poeta.
Manuel Bandeira chegou até mesmo a escrever vários poemas em que notamos a
presença de Ovalle. Um deles tem o nome do compositor em seu título. Considerado de
grande importância para o entendimento de sua obra é o “Poema só para Jaime Ovalle”. Um
poema que valoriza o cotidiano e que tem no título o nome de um compositor de música
popular brasileira. Quem sabe poderia ser substituído ou comparado a Chico Buarque? Ovalle
(juntamente com Bandeira, autor da letra) que, como Chico, parodiou a “Canção do Exílio”
com sua canção mais conhecida, “Azulão”.
Jaime Ovalle, considerado representante do ambiente boêmio da Lapa, tinha em seu
círculo de amizades sambistas consagrados, hoje mitológicos, como Sinhô, Donga, João da
Baiana, Pixinguinha, Chiquinha Gonzaga, Catulo da Paixão Cearense, entre outros. Além de
músicos, a Lapa também concentrava outras personalidades que fizeram desta não somente
um centro de zona boêmia e da música, mas também um espaço literário. Eram poetas,
artistas e intelectuais como Raul de Leoni, Ribeiro Couto, Dante Milano, Manuel Bandeira,
Sérgio Buarque (pai de Chico), Caio de Mello Franco, Osvaldo Costa, Di Cavalcanti, Cícero
Dias e Villa-Lobos. A Lapa foi mitificada por todas estas pessoas com suas "histórias", suas
memórias, seus desejos, suas verdades e suas paixões. Lembra-nos a própria Pasárgada
bandeiriana, como o próprio poeta diz sobre a roda boêmia e cultural da Lapa: "o ambiente, de
resto, favorecia as iluminações ..." (Apud ARRIGUCCI, 1990: 67)
Uma presença garantida tanto na obra poética de Manuel Bandeira quanto na obra
poético-musical de Chico Buarque é a dos desvalidos. Em suas obras, se configura uma
galeria de desqualificados, tanto socialmente quanto moralmente, como por exemplo, as
pessoas pobres, trabalhadores assalariados, como o pedreiro e o operário; trabalhadores
autônomos de baixa renda, como os camelôs e vendedores ambulantes; as pessoas que não
seguem a moral e os bons costumes da tradição pequeno-burguesa e cristã, como malandros,
prostitutas, travestis; além das pessoas humildes moradoras dos subúrbios.
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Manuel Bandeira nos declara, em seu Itinerário de Pasárgada, que foi na sua infância,
na casa de Larangeiras, que travou contato com as pessoas simples: “nunca faltava pão, mas a
luta era dura. E eu desde logo tomei parte nela, como intermediário entre minha mãe e os
fornecedores – vendeiro, açougueiro, quitandeiro, padeiro. Nunca brinquei com os moleques
da rua, mas impregnei-me a fundo do realismo da gente do povo.” (BANDEIRA, 1986: 22)
E inclusive este contato com o povo lhe fornece um importante recurso lingüístico
utilizado em sua poética, posteriormente: a linguagem popular. Outra declaração de Bandeira,
em seu Itinerário, nos ajuda a perceber a importância dessa linguagem: “essa influência da
fala popular contrabalançava a minha formação no Ginásio, onde em matéria de linguagem eu
me deixava assessorar por meu colega Sousa da Silveira, naquele tempo todo voltado para a
lição dos clássicos portugueses.” (BANDEIRA, 1986: 22)
Posteriormente, Bandeira nos declara que foi na Rua do Curvelo que o elemento de
humilde cotidiano começou a se manifestar em sua poesia. Para o poeta, este elemento não
resultava de nenhuma intenção modernista, mas simplesmente do ambiente do morro do
Curvelo. Manifestação que não pode ser encarada como exclusiva, pois, como sabemos,
encontramos além dessa manifestação do popular que o poeta diz provir da Rua do Curvelo, a
presença de várias manifestações da estética modernista em sua poética.
Chico Buarque também busca em suas reminiscências infantis sua relação e
valorização pelas pessoas do povo. Ligando-se a um movimento chamado Organização de
Auxílio Fraterno, Chico participou algumas vezes de expedições noturnas a lugares como a
Estação da Luz, no centro de São Paulo. Levava cobertores para os mendigos que dormiam
nas calçadas, como nos conta Chico em uma entrevista:
A gente ia de noite, assim um grupo pequeno, com umas Kombis, à Estação
da Luz, levar cobertor. A gente olha hoje, e pode achar bobagem. Mas pra
um cara como eu que morava ali na Zona Sul de São Paulo, (...) e que
estudou em colégio de menino rico, de repente ter essa missão, duas vezes
por semana, era muito importante. Então a gente, ia, chegava com aqueles
cobertores e o pessoal, os mendigos, fugiam apavorados. (FOLHA DE SÃO
PAULO – 11/09/77)
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Experiência que o marcou fortemente, como podemos perceber na seqüência de seu
depoimento:
mas acho que devo um bocado a essa experiência, entende? Ela, pelo menos,
me abriu os olhos para esse negócio, porque, normalmente, eu não estaria
vendo nada disso (...) e esse contato direto que eu tive naquela época, eu
procuro ter sempre. Inclusive, eu comecei a gostar de mantê-los, entende?
De conhecer, de ver essa gente, de conversar. Quando eles não fogem. Em
geral eles fogem. (FOLHA DE SÃO PAULO – 11/09/77)
De acordo com Davi Arrigucci, a compreensão da “atitude humilde” de Manuel
Bandeira, é um dos problemas mais complexos de sua obra. Configurada no despojamento e
na redução ao essencial, tanto nos temas quanto na linguagem, esse tipo de atitude pode ser
encarada de diversas maneiras. Uma decisiva é a da sua relação com a pobreza.
Trata-se, antes de mais nada, de uma postura depurada do espírito. E também
de uma disposição para agir e significar, que acaba implicando um modo
específico de conceber o poético e fazer concretamente o poema. Uma
atitude estilística, enfim, em que o modo de ser se converte num modo de
ver a vida e a poesia, numa concepção do fazer – fundação de uma poética. É
este o termo que, na sua acepção do original, parece caber à noção que
Bandeira tem do fazer poético: uma atividade do espírito, em momentos de
súbita iluminação, concretizada em obras feitas de palavras. E trata-se de
uma poética centrada num paradoxo: o da busca de uma simplicidade em
que brilha oculto o sublime. (ARRIGUCCI,1983:106-7)
De modo semelhante, Chico Buarque também se aproxima dessa “atitude humilde” de
Bandeira ao buscar construir com extremo cuidado e apuro técnico as suas composições,
conjuntamente com elementos provindos da classe pobre e o seu mundo existencial, unindo
forma e fundo em uma coisa só, a poesia. Característica do compositor que fez com que suas
composições recebessem status de poema.
Estas relações empreendidas tanto por Manuel Bandeira quanto por Chico Buarque
com o elemento humilde se tornam constituintes de uma concepção poética, se materializando
na construção do poema, que, como diz Arrigucci, na verdade,
corresponde a uma inserção do poeta na existência real, no mundo, no
mundo misturado do cotidiano. Ao contrário de que se poderia pensar, o
poeta, ao construir o poema, não estará poetizando o cotidiano.(...) Não se
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trata absolutamente de elevar o que se capta no plano comum do dia-a-dia,
mas de desentranhar aqui o poético, junto às circunstâncias em que o Eu se
acha situado. A pobreza se revela então como condição real de dar forma ao
poema. (ARRIGUCCI,1983:108)
O que demonstra a clara relação entre o artista e seu meio, como exprime SainteBeuve: “o poeta não é um resultante, nem mesmo um simples foco refletor; possui o seu
próprio espelho, a sua mônada individual e única. Tem o seu núcleo e o seu órgão, através do
qual tudo o que passa se transforma, porque ele combina e cria ao devolver à realidade. (Apud
CANDIDO, 1985: 18)
Portanto, será da rua e do povo simples que tanto Manuel Bandeira quanto Chico
Buarque irão retirar os elementos essenciais para construção de suas poéticas, como bem
demonstra seus depoimentos e seus poemas que passamos a analisar.
O poema de Manuel Bandeira “Estrela da Manhã” pode ser relacionado a pelo menos
duas canções de Chico Buarque: “Geni e o Zepelin” e “A Rosa”. Vejamos, primeiramente, o
poema de Bandeira para depois o relacionarmos às canções mencionadas.
Eu quero a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã
Ela desapareceu ia nua
Desapareceu com quem?
Procurem por toda parte
Digam que sou um homem sem orgulho
Um homem que aceita tudo
Que me importa?
Eu quero a estrela da manhã
Três dias e três noites
Fui assassino e suicida
Ladrão, pulha, falsário
Virgem mal-sexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos
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Pecai com os malandros
Pecai com os sargentos
Pecai com os fuzileiros navais
Pecai de todas as maneiras
Com os gregos e os troianos
Com o padre e o sacristão
Com o leproso de Pouso Alto
Depois comigo
Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas
[comerei terra e direi coisas
[de uma ternura tão simples
Que tu desfalecerás
Procurem por toda parte
Pura ou degradada até a última baixeza
Eu quero a estrela da manhã.
O poema “Estrela da Manhã” abre o livro de mesmo nome e, inicialmente, nos mostra
uma busca incessante à “estrela da manhã”: uma prostituta. Vindo de três dias e três noites
(provavelmente as noites do carnaval) de buscas e auto-humilhação, sem se preocupar com a
censura ou vergonha, o eu lírico invoca a “estrela da manhã”.
Como na canção de Chico, “Geni e o Zepelin”, a personagem principal – “Geni” –,
assim como a “Estrela da manhã”, se relaciona com os tipos mais desvalidos possíveis:
De tudo que é nego torto
Do mangue do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
Dá-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato
E também vai amiúde
Co’os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir
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Joga pedra na Geni
Joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um.
A “Estrela da manhã”, como “Geni”, ao se relacionar com estes tipos desvalidos
também é considerada uma depravada sexual, como bem demonstram as quatro últimas
estrofes do poema.
O poema “Estrela da Manhã” se relaciona também com “A Rosa”, canção de Chico
Buarque que trata da mulher que escapa ao domínio masculino e que, apesar da tentativa
incessante de apreendê-la, não consegue: “A santa às vezes troca o meu nome/E some/ E
some nas altas da madrugada”. Outro ponto importante a se ressaltar é a presença constante,
nesta canção de Chico, dos elementos rosa e estrela tão presentes na poética bandeiriana,
como bem observaram Antonio Candido e Gilda de Melo e Souza, em ensaio introdutório à
Estrela da Vida Inteira. A “Rosa”, mulher extremamente ativa no que diz respeito à sua
sexualidade; “Demente, inventa cada carícia” seduz seu amante de forma que ele sempre a
deseje. Mesmo ela sempre escapando às suas mãos, sem vergonha e sem censura como em “A
estrela da manhã”: “Digam que sou homem sem orgulho/Um homem que aceita tudo/Que me
importa?/Eu quero a estrela da Manhã”. O amante não a deixa, a quer perto dele. Mesmo
sabendo que ela é uma mulher enganadora: “A falsa limpou minha carteira” ou “Bandida,
cadê minha estrela guia” e da comprovação irrefutável de que é traído: “A santa às vezes me
chama de Alberto”, seu companheiro “oficial” não deixa a “Rosa”. Da mesma forma, em
“Estrela da Manhã”, o amante apaixonado não se importa com o envolvimento amorososexual de sua amada com outros amantes. Depois do relacionamento da “estrela da manhã”
com os tipos mais desqualificados possíveis, o amante “enfeitiçado” ainda a quer e a recebe
com presentes e carinho:
Depois comigo
Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas
[comerei terra e direi coisas
[de uma ternura tão simples
Que tu desfalecerás
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Procurem por toda parte
Pura ou degradada até a última baixeza
Eu quero a estrela da manhã.
Podemos notar outra relação estreita entre os dois autores, no que diz respeito ao tema
tratado, com a relação entre “Pedro Pedreiro”, composição de Chico e “Poema tirado de uma
notícia de jornal”, poema de Bandeira, nos quais a matéria básica é a vida de duas pessoas
humildes: João Gostoso e Pedro Pedreiro.
Poema tirado de uma notícia de jornal
João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no
[morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
O nome da personagem do poema, como também da personagem da canção, refere-se
a pessoas comuns, do povo, indicam a condição social do sujeito, são generalizações do povo
brasileiro. Todos são Joões e Pedros. Há uma substituição do sobrenome por um apelido
comum porque não pertence à família importante.
Tanto João Gostoso quanto Pedro pedreiro têm um emprego sem nenhum prestígio
social, o primeiro é carregador de feira-livre e o segundo, é pedreiro. Estes empregos
implicam o uso da força física e a baixa remuneração, reforçando assim a condição humilde
destes sujeitos. Talvez Pedro pedreiro seja o mesmo operário que, em “Construção”, outra
composição de Chico, tropeça no céu como um bêbado e agoniza no meio de um passeio
público.
Outro fator que é também importante observarmos, o qual reforça ainda mais as
condições precárias das “personagens”, são as suas origens: João Gostoso mora em uma
favela carioca, no morro da Babilônia em um barracão sem número e Pedro pedreiro é um
migrante do norte e mora em um subúrbio, pois tem que esperar o trem para ir ao trabalho.
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Tanto João Gostoso quanto Pedro pedreiro são pessoas humildes de uma grande
cidade, onde se chocam as contradições do desenvolvimento moderno e do atraso. Os poetas,
ao nos revelar esse retrato da pobreza, se solidarizam com ela e nos mostram a poesia no
“baixo” onde o sublime se oculta, numa vida humilde e simples.
Outra importante semelhança entre estes poemas é o fato deles extraírem a poesia de
onde menos se espera. A poesia aqui é retirada do mais humilde cotidiano, da vida de pessoas
humildes, trabalhadoras. Ao retirarem a poesia deste meio “baixo”, não “elevado”, os poetas
se afastam da matéria da poesia tradicional na qual o poético significa o nobre e o raro. Para
estes poetas, a poesia está no chão, no mais humilde cotidiano.
Mais um elemento importante presente nestes dois textos poéticos é o da modernidade,
acentuado pela poesia prosaica (produção poética moderna), na qual o homem está na grande
cidade, inserido no seu espaço, em seu cotidiano, em suas ruas, em suas multidões de
anônimos. Sofrendo as degradações a que o mundo moderno sujeita os homens com suas
experiências, como também nos mostra outro poema de Manuel Bandeira denominado
“Tragédia Brasileira”. Este poema se assemelha profundamente ao “Poema tirado de uma
notícia de um jornal” e “Pedro pedreiro”. “Tragédia Brasileira” foi retirado de uma notícia de
um crime passional de um jornal. Sua estruturação é muito próxima à da prosa, nos parecendo
modernamente com um “poema em prosa”. Talvez por ter sido tirado de uma notícia de
jornal, Bandeira tenha preferido construí-lo formalmente desse modo, diferenciando-se assim,
(nesse sentido) de seu poema de mesmo nome. O poema trata da história de Misael, um
funcionário da fazenda, de 63 anos, que tirou Maria Elvira, uma prostituta, da Lapa. Pagou
médico, dentista, manicura, mudou de vários lugares por causa dos namorados que a moça
arranjava. Estes locais por onde Misael e Maria Elvira passaram são uma espécie de
peregrinação a vários subúrbios carioca, demonstrando assim mais um elemento humilde
presente na poética bandeiriana: “Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, rua General
Pedra, Olaria, Ramos, Bom Sucesso, Vila Isabel, rua Marquês do Sapucaí, Niterói,
Encantado, rua Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do
Mato, Inválidos...”. Ironicamente, “Misael” acabou matando Maria Euvira vestida com seu
organdi azul, com seis tiros, na Rua da Constituição, privado da razão e dos sentidos.
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Retomando o poema e a canção que vínhamos analisando, podemos notar que os
poetas se inspiram num drama de um João–ninguém e o transformam em uma experiência
humana, densa e complexa. Um destino particular é transformado em um valor geral, abstrato
e universal do indivíduo angustiado. João Gostoso se mata e Pedro pedreiro espera
ansiosamente a sua melhora de vida, exaustivamente, em sessenta versos. Em “Pedro
pedreiro”, Chico faz uma crítica à esperança e deixa o indivíduo no mundo real onde não há
expectativas de melhora. Pedro pedreiro espera tanto até desistir e querer ser “pobre e nada
mais”. Chico também voltará a falar na desesperança em “Bom Conselho”, canção que inverte
o ditado popular “Quem espera sempre alcança” para “Quem espera nunca alcança”.
Tanto em “Pedro pedreiro” quanto em “Poema tirado de uma notícia de jornal” é
exposto de forma emblemática o destino de uma pessoa humilde de uma grande cidade,
mostrando a condição de incerteza da vida moderna. Percebemos que o elemento social
presente tanto no poema quanto na canção não são tomados como um simples engajamento
político, mas que, ao contrário, a referência ao social revela nelas próprias algo de essencial,
algo que fundamenta sua qualidade poética. O que para Adorno
[Essa referência] não deve levar embora da obra de arte, mas levar ao mais
fundo dela. (...) pois o conteúdo de um poema não é a mera expressão de
emoções e experiências individuais. Pelo contrário, estas só se tornam
artísticas quando, exatamente em virtude da especificação do seu tomarforma estético, adquirem participação no universal. (ADORNO, 1980: 193)
Manuel Bandeira e Chico Buarque nos mostram que é possível encontrar a poesia no
“mais humilde cotidiano, de onde o poético pode ser desentranhado, à força da depuração da
linguagem, na forma simples e natural do poema.” (ARRIGUCCI, 1990: 15)
Outra importante relação entre nossos escritores está na valorização da vida simples,
configurada na rotina e na forma de vida dos subúrbios. A paz que é passada pela vida destas
pessoas se contrapõe à vida agitada e conturbada dos grandes centros urbanos considerados
comumente como desconfortáveis, pela falta de harmonia entre seus cidadãos que, agitados,
já nem mesmo se cumprimentam. É a perda de um modo de vida mais lento e tranqüilo, visto
pelos poetas como saudável e prazeroso. Assim o demonstram bem as canções de Chico
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Buarque, “Gente humilde” (parceria de Chico com Garoto e Vinícius de Moraes) e “A
banda”, como também os poemas de Manuel Bandeira, “Evocação do Recife” e “Recife”.
Gente humilde
Tem certos dias
Em que eu penso em minha gente
E sinto assim
Todo o meu peito se apertar
Porque parece
Que acontece de repente
Feito um desejo de eu viver
Sem me notar
Igual a como
Quando eu passo no subúrbio
Eu muito bem
Vindo de trem de algum lugar
E aí me dá
Como uma inveja dessa gente
Que vai em frente
Sem nem ter com quem contar
São casas simples
Com cadeira na calçada
E na fachada
Escrito em cima que é um lar
Pela varanda
Flores tristes e baldias
Como a alegria
Que não tem onde encostar
E aí me dá uma tristeza
No meu peito
Feito um despeito
De eu não ter com como lutar
E eu que não creio
Peço a Deus por minha gente
É gente humilde
Que vontade de chorar
Um fator interessante de se notar nesta canção é que a força de sobrevivência dessas
pessoas parece provir de seus hábitos simples de vida, de forma nostálgica, lembrando-nos
um costume antigo anterior ao invento da televisão, quando as pessoas colocavam cadeiras
em suas calçadas para conversarem com os amigos ou vizinhos de forma harmônica e
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despreocupada, sugerindo um ambiente de extrema felicidade e harmonia entre as pessoas.
Ambiente que se contrapõe ao da vida moderna, da metrópole agitada em pleno caos urbano,
em que as pessoas sem amigos se sentem sós e tristes, invejosos da coragem daquelas pessoas
humildes que vivem no interior, ou mesmo nos subúrbios, como é o caso da canção:
tranqüilos e felizes.
Outra canção de Chico Buarque que também nos remete a este ambiente nostálgico
interiorano é “A banda”:
Estava à toa na vida
O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
O homem sério que contava dinheiro parou
O faroleiro que contava vantagem parou
A namorada que contava as estrelas parou
Para ver, ouvir e dar passagem
A moça triste que vivia calada sorriu
A rosa triste que vivia fechada se abriu
E a meninada toda se assanhou
Pra ver a banda passar
Cantando coisa de amor
O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou
Que ainda era moço pra sair do terraço e dançou
A moça feia debruçou na janela
Pensando que a banda tocava pra ela
A marcha alegre se espalhou na avenida e insistiu
A lua cheia que vivia escondida surgiu
Minha cidade toda se enfeitou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
Mas para meu desencanto
O que era doce acabou
Tudo tomou seu lugar
Depois que a banda passou
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E cada qual no seu canto
Em cada canto uma dor
Depois da banda passar
Cantando coisas de amor
Esta canção de Chico Buarque também busca no ambiente simples e nostálgico das
bandas do interior um momento mágico no qual todas as pessoas, que inicialmente são tristes,
avarentas, feias, sérias, cansadas, etc., são transformadas, por meio da magia da música e do
ambiente formado por ela, em felizes, bonitas e bem dispostas. “A banda” quando foi lançada
obteve grande repercussão no cenário nacional. Em pouco tempo, lançada em um compacto,
alcançou notável venda. A canção também repercutiu nos meios literários com depoimentos
entusiásticos de nomes como o de Carlos Drummond que saúda a canção com as seguintes
palavras: “a felicidade geral com que foi recebida a passagem dessa banda tão simples, tão
brasileira e tão antiga na sua tradição lírica, que um rapaz de pouco mais de vinte anos botou
na rua, alvoroçando novos e velhos, dá bem a idéia de como andávamos precisando de
amor...” (ISTO É, 28/02/99). Nelson Rodrigues também saldou “A banda” com as seguintes
palavras: “Desde sua primeira audição, a Banda se instalou na História. O povo não assobiava
mais. Voltou a assobiar por causa do Chico...” (Apud ZAPPA,1999: 61). O cronista Rubem
Braga escreveu, em 1966: “A coisa mais importante no momento em matéria de música
popular é mesmo Chico Buarque de Holanda (...) A banda é algo que todo mundo entende e
que emociona todo mundo (...) é uma boa crônica, cheia de poesia” (Apud ZAPPA,1999: 61)
Justamente pelo fato desta canção trazer para um mundo completamente conturbado, um
tempo feliz e harmônico.
Em um trecho de “Evocação do Recife” Manuel Bandeira também se remete a esse
ambiente – no caso de Bandeira esse ambiente foi realmente vivido, não apenas idealizado,
como pudemos ver em seus depoimentos em seu Itinerário de Pasárgada – tão bem
caracterizado pelas canções anteriormente citadas. Vejamos o fragmento do poema:
A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e
[partia as vidraças da casa de Dona Aninha Viegas
Totônho Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na
[ponta do nariz
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Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras,
[mexericos, namoros, risadas
.....................................
Recife....
Rua da União....
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avô morto.
Recife morto, recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô.
“Evocação do Recife” é um poema fundamental para o entendimento da poética
bandeiriana, pois nele podemos notar a presença das principais temáticas de sua poesia, como
por exemplo: a linguagem coloquial, a infância, a morte, a humildade, etc. No entanto, o que
no presente momento pretendemos mostrar, com o fragmento deste poema, é a presença
marcante e nostálgica do Recife provinciano e interiorano onde as famílias após o jantar –
como na canção de Chico Buarque –, “(...) tomam a calçada com cadeiras, mexericos,
namoros, risadas”, remetendo-nos a um ambiente bom de extrema simplicidade e felicidade
como o próprio final do poema nos afirma: “Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro
como a casa de meu avô.” Mostra-nos assim, perfeitamente, o ambiente nostálgico que o
poeta diz ser bom, o Recife interiorano de sua infância onde as pessoas podiam com
tranqüilidade e paz viver num ambiente agradável e até mesmo mágico, já que o mundo
infantil é cheio de imaginação. É este Recife, de 1925, ano em que foi escrito o poema, que
está morto, que o poeta busca rememorar em seus versos.
Outro poema que reafirma esta busca da vida agradável e simples levada nos
subúrbios e no interior é o poema denominado “Recife”, no qual o poeta nos fala novamente
do ambiente provinciano, valorizado por ele. Vejamos um fragmento do poema:
Há que tempo que não te vejo!
Não foi por querer, não pude.
Nesse ponto a vida me foi madrasta,
Recife
Mas não houve dia em que te não sentisse dentro de mim:
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Nos ossos, nos olhos, nos ouvidos, no sangue, na carne,
Recife.
Não como és hoje,
Mas como eras na minha infância,
Quando as crianças brincavam no meio da rua
(Não havia ainda automóveis)
E os adultos conversavam de cadeiras nas calçadas
(Continuavas província
Recife)
Eras um Recife sem arranha-céus, sem comunistas,
Sem Arraias, e com arroz,
Muito arroz,
De água e sal,
Recife.
Um recife ainda do tempo em que meu avô materno
Alforriava espontaneamente
A moça preta Tomásia, sua escrava,
Que depois foi nossa cozinheira
Até morrer,
Recife.
Como podemos perceber, o poema “Recife” parece uma reafirmação do poema
“Evocação do Recife”, já que naquele podemos notar a presença dos mesmos elementos
presentes na evocação do poeta. O Recife do passado é novamente rememorado “Não como
és hoje,/mas como eras na minha infância”. No entanto, esse Recife (que não existe mais),
mitificado pelo poeta, esta sempre presente em sua vida, como se estas lembranças tão
marcantes para ele estivessem entranhadas em seu corpo: “Mas não houve dia em que não te
sentisse dentro de mim:/Nos ossos, nos olhos, nos ouvidos, no sangue, na carne,”. Portanto,
este Recife funciona como uma substância revivescente e que dá força e alegria ao poeta para
poder suportar sua “vida madrasta.”
As obras de nossos autores vão apresentar uma espécie de galeria dos desqualificados.
A constância desses personagens é tão grande que, em certos textos, vamos encontrar diversos
representantes dessa categoria de personagens, concentrados em apenas um poema ou uma
canção, como podemos ver no poema “Mangue”, de Manuel Bandeira e na canção
“Mambembe”, de Chico Buarque, respectivamente:
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Mangue mais Veneza americana do que o Recife
Cargueiros atracados nas docas do Canal Grande
O Morro do Pinto morre de espanto
Passam estivadores de torso nu suando facas de ponta
Café baixo
Trapiches alfandegados
Catraias de abacaxis e de bananas
A Light fazendo crusvaldina com resíduos de coque
Há macumbas no piche
Eh cagira mia pai
Eh cagira
E o luar é uma coisa só
Houve tempo em que a Cidade Nova era mais subúrbio do
[que todas as Meritis da Baixada
pátria amada idolatrada de empregadinhos de repartições
[públicas
Gente que vive porque é teimosa
Cartomantes da Rua Carmo Neto
Cirurgiões-dentistas com raízes gregas nas tabuletas avulsivas
O Senador Eusébio e o Visconde de Itaúna já se olhavam
[com rancor
(Por isso
Entre os dois
Dom João VI mandou plantar quatro renques de palmeiras imperiais)
Casinhas tão térreas onde tantas vezes meu Deus fui funcionário
[público casado com mulher feia
[e morri de tuberculose pulmonar
Muitas palmeiras se suicidaram porque não viviam num
[píncaro azulado.
Era aqui que choramingavam os primeiros choros dos carnavais
[cariocas.
Sambas da tia Ciata
Cadê mais tia Ciata
Talvez em Dona Clara meu branco
Ensaiando cheganças para o Natal
O Menino Jesus – Quem sois tu?
O preto – Eu sou aquele preto principá de centro do
[cafange do fundo do rebolo. Quem sois tu?
O Menino Jesus – eu sou o fio da Virge Maria.
O preto – Entonces como é fio dessa senhora, obedeço.
O Menino Jesus – Entonces cuma você obedece, reze
[aqui um terceto pr’esse exerço vê.
O Mangue era simplesinho
Mas as inundações dos solstícios de verão
Trouxeram para Mata-Porcos todas as uiaras da Serra da Carioca
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Uiaras do Trapicheiro
Do Maracanã
Do rio Joana
E vieram também sereias de além-mar jogadas pela ressaca
[ nos aterrados da Gamboa
Hoje há transatlânticos atracados nas docas do Canal Grande
O Senador e o Visconde arranjaram capangas
Hoje se fala numa porção de ruas em que dantes ninguém acreditava
E há partidas para o Mangue
Com choros de cavaquinho, pandeiro e reco-reco
És mulher
És mulher e nada mais
OFERTA
Mangue mais Veneza americana do que o Recife
Meriti meretriz
Mangue enfim verdadeira Cidade Nova
Com transatlânticos atracados nas docas do canal Grande
Linda como Juiz de Fora!
Como podemos observar, o ambiente do espaço deste poema é povoado pelos mais
diversos tipos de pessoas desqualificadas socialmente. Como o próprio lugar já o indica, o
Mangue é onde vemos perambular entre “catraias de abacaxis e bananas” estivadores de
torsos nus e suados, trapiches, meretrizes, empregadinhos de repartições públicas,
cartomantes, macumbeiras, etc., gente que o poeta diz – como ainda é costume dizer até hoje:
“Gente que vive porque é teimosa”. Teimosos porque suas condições de vida são
extremamente precárias, desprovidos de qualquer requisito de vida saudável, condições de
higiene e moradia. Ambiente, portanto, caracterizado como baixo, onde até mesmo as
palmeira imperiais suicidam, pois não poderiam viver ali, já que são nobres.
Mas este ambiente não é desqualificado pelo poeta, muito pelo contrário; é um lugar
que, com a mudança vinda com a construção da “Cidade Nova”, perde sua áurea, pois foi
nesse local que surgiram os primeiros choros de carnaval, onde se podiam escutar os sons do
pandeiro, do cavaquinho e do reco-reco, sons provindos deste ambiente e também da famosa
casa de Tia Ciata, incentivadora do samba no seu nascimento e que também recebia, em sua
casa, os sambistas pobres e as pessoas da classe alta e política do Rio de Janeiro. Portanto, é
de forma saudosa que o poeta nos fala deste “Mangue”, como um lugar poético e bom.
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A composição “Mambembe”, de Chico Buarque, também nos apresenta, no mesmo
espaço, um amontoado de desqualificados. De forma que estes sejam também valorizados
enquanto seres humanos importantes, criativos e merecedores de um reconhecimento social.
No palco, na praça, no circo, num banco de jardim
Correndo no escuro, pixado no muro
Você vai saber de mim
Mambembe, cigano
Debaixo da ponte, cantando
Por baixo da terra, cantando
Na boca do povo, cantando
Mendigo, malandro, moleque, mulambo, bem ou mal
Escavo fugido ou louco varrido
Vou fazer meu festival
Mambembe, cigano
Debaixo da ponte, cantando
Por baixo da terra, cantando
Na boca do povo, cantando
Poeta, palhaço, corisco, errante judeu
Dormindo na estrada, não é nada, não é nada
E esse mundo é todo meu
Mambembe cigano
Debaixo da ponte, cantando
Por baixo da terra, cantando
Na boca do povo cantando
Na obra de Chico podemos notar que o perfil das personagens que mais
freqüentemente povoam suas letras levará à figura do marginal, do desvalido. Formam uma
galeria imensa de desvalidos que são arrolados em “O que será” (À flor da pele), que foram
mutilados física ou socialmente: os infelizes, as meretrizes, os bandidos. Vejamos a segunda
estrofe da canção que nos demonstra bem isso:
O que será que será
Que vive nas idéias desses amantes
Que cantam os poetas mais delirantes
Que juram os profetas embriagados
Que está na romaria dos mutilados
Que está na fantasia dos infelizes
Que está na no dia-a-dia das meretrizes
No plano dos bandidos, dos desvalidos
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Em todos os sentidos, será que será
O que não tem decência nem nunca terá
O que não tem censura nem nunca terá
O que não faz sentido.
(grifos nossos)
O mesmo tipo de personagem o compositor arrolará para o seu festival, em
“Mambembe”: Mendigo, malandro, moleque, escravo fugido ou louco varrido, poeta,
palhaço, pirata, corisco errante judeu.
Como também em “Partido alto”, canção que caracteriza sua personagem principal
como uma espécie de paradigma do desvalido:
Deus é um cara gozador, adora brincadeira
Pois pra me jogar no mundo, tinha um mundo inteiro
Mas achou muito engraçado me botar cabreiro
Na barriga da miséria, eu nasci batuqueiro (brasileiro)*
Eu sou do Rio de Janeiro
(...)
Deus me fez um cara fraco, desdentado e feio
Pele osso e simplesmente, quase sem recheio
(grifos nossos)
* Termo original, vetado pela censura.
Também na Ópera do Malandro essas personagens estarão presentes, configuradas
nos mais variados tipos de desvalidos, misturadas ao poder policial, e que podem ser bem
caracterizadas pelo eu lírico da canção “Até o fim”, paródia do “Poema de sete faces” de
Carlos Drummond de Andrade:
Quando eu nasci veio um anjo safado
O chato dum querubim
E decretou que eu tava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim
Inda garoto deixei de ir a escola
Cassaram meu boletim
Não sou ladrão, eu não sou bom de bola
Nem posso ouvir clarim
Um bom futuro é o que jamais me esperou
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Mas vou até o fim
Eu bem que tenho ensaiado um progresso
Virei cantor de festim
Mamãe contou que eu faço um bruto sucesso
Em Quixeramobim
Não sei como o maracatu começou
Mas vou até o fim
Por conta de umas questões paralelas
Quebraram meu bandolim
Não querem mais ouvir minhas mazelas
E a minha voz chinfrim
Criei barriga, minha mula empacou
Mas vou até o fim
Não tem cigarro, acabou minha renda
Deu praga no meu capim
Minha mulher fugiu com o dono da venda
O que será de mim?
Eu já nem me lembro pronde mesmo que vou
Mas vou até o fim
Como já disse era um anjo safado
O chato dum querubim
Que decretou que eu tava predestinado
A ser todo ruim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim
O tema do gauche drumondiano é revisitado por Chico Buarque nesta canção que com
bom humor faz uma espécie de auto-retrato do desajuste social em que a personagem da
canção está inserida, como também a maioria das personagens da Ópera do malandro.
Como pudemos ver, tanto na poética de Manuel Bandeira quanto na poética de Chico
Buarque a figura do desqualificado esta sempre presente. Poderíamos ainda nos estender nas
análises de muitos outros poemas ou canções em que este tema está presente. Por exemplo, na
obra bandeiriana, podemos constatar ainda a presença do camelô em seu poema de mesmo
nome, do ferreiro que bate seu martelo com “seu cântico de certezas”, em seu poema “O
martelo”, das mulheres prostitutas, negras e pobres da Lapa boêmia, no poema “Última
canção do beco”, entre outros poemas. Também na obra de Chico Buarque podemos destacar
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ainda várias outras canções nas quais o desqualificado está presente, como por exemplo em
“Realejo”, canção nostálgica na qual os sonhos e a felicidade parecem acabar com a venda do
Realejo que encantava as pessoas com suas músicas, do operário em “Primeiro de maio” e,
também, em “Linha de Montagem”, como dos mendigos amando sobre os jornais em
“Amando sobre os jornais”, etc.
O discurso literário em grande parte de sua tradição representou e associou o pobre,
predominantemente, ao pitoresco e ao rústico. Portanto, o pobre normalmente não chega a ser
representado em si, mas sim por um imaginário que normalmente vai caricaturá-lo ou utilizálo como passaporte para uma pseudo realização literária legitimada muitas vezes pelo
engajamento político, ou até mesmo, como fez o Naturalismo, que utilizou a ideologia
positivista para associar os pobres a um inevitável destino ao fracasso.
O que podemos notar na representação dos desqualificados (aqui Arrigucci refere-se
exclusivamente a Bandeira, mas também acreditamos que essa consideração feita pelo crítico
pode ser perfeitamente aplicada a Chico) feita por nossos autores é que a pobreza
aparece como objeto da representação literária, isto é, como assunto a que
não se pode furtar um poeta com os olhos voltados para a realidade
brasileira, onde a miséria é o prato de cada dia. Mas não é como tema que a
pobreza aqui importa. É essencialmente no modo de representação que se
afirma sua importância fundamental: concebida como um valor ético de
base, um modo de ser exemplar, a humildade se converte ainda num
princípio formal de estilo. É, então, no modo de ser mais íntimo da
linguagem poética, no coração da lírica, que o social surge como uma
dimensão decisiva: a relação com a pobreza passa ser um fator interno da
estruturação com a obra. (ARRIGUCCI, 1983: 113)
Manuel Bandeira e Chico Buarque em suas obras reconhecem o outro, resgatam sua
experiência tanto da dor quanto da alegria, que na verdade pertencem a todos os seres
humanos e não somente a uma classe privilegiada. O indivíduo está inserido no mundo sujeito
a todas prováveis situações que possam ocorrer. Com o sentimento de solidariedade
confraternizam-se numa igualdade universal.
Essa nova postura diante do mundo e da poesia se revela nos poemas e nas canções de
Manuel Bandeira e Chico Buarque como uma atitude estética. Seja através da renúncia ao
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academicismo, ao distanciamento do artista com o público leitor ou ouvinte, como também
pela valorização da cultura popular e das expressões encontradas em sua linguagem, na
música e em suas manifestações culturais.
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O homem “suave”? Os italianos re-interpretam o Brasil
Paolo Spedicato
RESUMO: A revista italiana de estética e estudos culturais, Ágalma, passa a limpo a trajetória de todos os
tropicalismos brasileiros, no que diz respeito caráter nacional, cultura popular, antropologia, neo-sincretismo
religioso.
Palavras-chave: Cosmopolitismo; Tropicalismo; Homen cordial; Homen suave.
Sabe, no fundo eu sou um sentimental / Todos nós herdamos no sangue lusitano
uma dose de lirísmo... (além da sífilis, é claro) / Mesmo quando as minhas mãos
estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar / Meu coração fecha os olhos e
sinceramente chora...
Chico Buarque, “Fado tropical”, 1973
O pintor Paul Gauguin amou a luz da Baía de Guanabara / O compositor Cole
Porter adorou as luzes na noite dela / A Baía de Guanabara / O antropólogo
Claude Levy-Strauss detestou a Baía de Guanabara: / Pareceu-lhe uma boca
banguela. / E eu, menos a conhecera mais a amara? / Sou cego de tanto ve-la, de
tanto te-la estrela / O que é uma coisa bela?
Caetano Veloso, “O estrangeiro”, 1989
FIGURAS DO COSMOPOLITISMO
O cosmopolitismo que este ensaio pretende discutir é um conceito que procede até
nós, perdidos no globalismo do mundo contemporâneo, de uma tradição enraizada no século
XVIII das Lumiéres e da grande Revolução Francesa, burguesa e popular, berço de todos os
modernismos: a nossa infância gloriosa. Sem esquecer que cosmopolitas já se chamavam os
filósofos, cínicos e estóicos da antiga Grécia, bem antes de Leibniz, de Kant, e das Lettres
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persanes de Montesquieu1. Mas, num balanço mais claro de figuras e formas que
desenvolveram sensibilidade e discursos dentro de uma suposta Cosmópolis, eu vou apontar,
sem nenhuma hierarquia e como lembrete metódico, três dispositivos de construção de
sentido cosmopolitano:
1. um cosmopolitismo da alma, intrinsecamente poético-filosófico, não ligado
necessariamente a um lugar específico; sentimento ubíquo de sentir-se em casa em qualquer
lugar do mundo, inclusive no grande vazio, nas imensidades desérticas ou nas províncias
extremas, mas todas símbolos de existência mundial, de “ser-no-mundo” (Heidegger). Uma
certa isonomia do tipo local-global ou centro-periferia já está no dito rosiano “O sertão é do
tamanho do mundo”, enquanto Elio Vittorini, ao fim de Conversazione in Sicilia (1941), um
dos romances italianos mais interessantes do século XX, explica que ele escreveu duma
viagem de retorno do protagonista à nativa Sicília, sendo esta “só por acaso Sicília; só porque
Sicília me soa melhor do nome Pérsia ou Venezuela”.
2. o dispositivo Walter Benjamin que desvenda, a partir da análise da parte superior
galerie-passage-arcade sobreposta ao subsolo de ruína-catacumba-cloaca, o destino da
metrópole emblemática Paris: o “shoke” urbano; a guerra urbana entre controle social e
revolução social; um terreno que nunca foi de ninguém mais que das vanguardas artísticas, de
Baudelaire aos surrealistas.
3. o declínio do cosmopolitismo ‘clássico’, historicamente ligado a elites políticas e
intelectuais, mas sempre expressão de culturas hegemônicas da Europa e dos Estados Unidos,
e a sua superação pelo fenômeno das “cidades globais”, Nova Iorque, Londres, Tokyo, pela
realidade da nova economia globalizada e pelo “denationalizing of the urban space” e o
“denationalizing of politics”, segundo a socióloga novaiorquina Saskia Sassen.
No ajuste sísmico entre continentes e blocos culturais, além da linha privilegiada que o
filósofo norte-americano Richard Rorty chamou uma vez de “conversation of the West”, ou
1
Veja-se um recente comentário de Sérgio Paulo Rouanet: “O estoicismo, por exemplo, imaginava a idéia de
uma civitas magna, ou seja, o mundo era considerado como una grande cidade mundial. Esse sonho foi
parodiado por algo que se chama globalização, que também transborda suas fronteiras nacionais, mas cujo
princípio fundamental é a lógica do mercado”.Entrevista a Sérgio Paulo Rouanet. “O intelectual está deixando de
existir”. In: Cult. Sao Paulo, ano 9, n. 108, novembro 2006, p. 13.
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seja, a linha direta Europa-Estados Unidos, diálogo entre filosofia continental e pragmatismo
americano, e dentro do espaço-tempo do novo “império” multicêntrico, não dá para não
perceber o trabalho transversal de olhares amorosos entre tribos de territórios diferentes,
engajadas em recíprocas passagens de fronteira.
Nessa troca de olhares, uma tentativa abrangente de abordar a cultura brasileira
contemporânea está no número 10 (setembro 2005) da revista de estudos culturais e de
estética da Universidade de Roma-Tor Vergata, Ágalma, rica com dez contribuições de vários
estudiosos, e com tema monográfico: “Tropicalismi”. Ágalma é palavra grega que signifíca
ornamento, dom, imagem. Trata-se de uma rica encruzilhada semântica feita de valor
econômico, estético e simbólico. O Brasil tropical e tropicalista não foge a esse tipo de
abordagem crítica. A revista italiana desenha um passeio complexo através dos territórios
mentais e espaços físicos de Gilberto Freire a Guimarães Rosa; a música de um cantautore
intelectual como Caetano Veloso; a pop culture toda, dos poemas-objetos e “esculturas” de
Hélio Oiticica e do seu movimento descontextualizante “tropicália”; a estética “cafona”; a
improvável “happyland” da violência e da emarginação urbana entre cinema e literatura; as
últimas manifestações da New Age pós-sincretista brasileira.
SUAVIDADE VS. SAUDADE
Multiplicidade e unicidade do Brasil. Existe vasto consenso sobre a existência de
muitos Brasiis dentro de uma homogênea identidade brasileira, a partir da penetração
unificadora, causa também de isolamento linguístico-cultural, e de uma aglutinação
sistemática e violenta: o “imenso Portugal” de Chico Buarque. Ciente desta complexidade, o
inglês Peter Burke propõe como ponto de saída uma reavaliação das teorias e das muitas
contribuições do mestre do Recife Gilberto Freyre. A partir dos anos cinquenta, Freyre
resgatou o termo tropicalismo do sentido pejorativo que carregava, chegando a propor uma
ciência nova, mistura de ecologia, antropologia, sociologia, história etc., e chamando-a
“tropicológia”. Típica da cultura tropical do Brasil, e de outros trópicos, seria a capacidade de
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transformar, de adaptar ao clima e aos materiais locais elementos de culturas alheias. A
“brasilianização” seria um processo de aglutinação. Freyre menciona a transformação dos
móveis estilo Chippendale, importado no Brasil da Inglaterra, ao começo do século XIX, que
acaba se transformando, nas mãos dos artesãos brasileiros, em estilo Império-Dom Pedro II:
das linhas angulosas do original inglês às curvilíneas do brasileiro. No criativo glossário
freyriano entram palavras compostas como “paratropical”, (os artistas europeus viajantes nos
trópicos como Gauguin e Rimbaud), “eurotropical” e “luso-tropicalismo”. Este último
conceito causou acusações a Freyre de empatia com o colonialismo e o autoritarismo
português, na altura significativa da luta de emancipação das colônias africanas contra
Portugal2. Aliás, inovadoras perspectivas historiográficas têm recentemente corrigido a
interpretação das relações históricas entre a metrópole portuguesa, a pequena pátria,
(contraposta à “gran pátria” castilhana), e o Brasil colonia3.
As criativas “intuições” freyrianas têm funcionado e circulado por um tempo, mas,
desprovidas de análise comparativa e cultural mais científica, não problematizam mais a
suficiência dentro e para uma perspectiva pós-colonial. Segundo Burke:
A idéia de tropicalismo, ou pelo menos de Luso-Tropicalismo, nao tem
sustentado o juízo do tempo e da crítica. A idéia de tropicológia é atractiva e a
abordagem comparativa aos trópicos é valiosa, mas a “ciência” ou a “disciplina”
prometida ainda não apareceu4.
2
No mesmo número de Ágalma, Roberto Motta registra a “reabilitaçao da figura – por tanto tempo caluniada –
do colonizador português no Brasil”, são palavras de Freyre, desde o livro Uma cultura ameaçada: A LusoTropical de 1942, contra “agentes culturais de um imperialismo etnocêntrico, interessados a nos desacreditar
como raça – qualificando-a “mestiça”, “inepta”, “corrupta” – e como cultura - [...] como vilmente inferior à
deles”. Como nesse caso, todas as traduções do italiano para o português são do autor desse ensaio [N.d.A].
3
ALENCASTRO de, Luiz Felipe. O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlantico Sul. Séculos XVI e
XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Segundo Alencastro, o Brasil se formou fora do Brasil, com a
África e o tráfico negriero no Atlântico como elementos fundantes do país, que, antes do século XVIII não existe
de verdade, enquanto existem um “arquipélago do Capricórnio” e uma constelação de feitorias e domínios lusos
espalhados entre África e Sul América.
4
BURKE, Peter. “Tropicalizzazione, tropicalismo, tropicologia. Il contributo di Gilberto Freyre”. In: Ágalma.
Roma, n. 10, settembre 2005, pp. 17-8.
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Para Burke, talvez só o conceito de tropicalização, como apropriação e aglutinação
brasileira de elementos alheios, teria mais raison d’etre. Seria o que faria mais viável e
vencedor o Sul europeu emotivo e católico sobre o Norte racional e protestante.
Junto ao pensamento freyriano, não poderia ficar esquecido, após setenta anos da sua
publicação, o clássico Raízes do Brasil, o fundamental estudo de Sérgio Buarque de Holanda
sobre a identidade e a mentalidade brasileira. Mas será que a ‘cordialidade’ brasileira,
conceito do poeta Ribeiro Couto e analisado por Buarque, representa um conceito ainda
viável?
E o Brasil, como se apresenta no horizonte da pós-modernidade? País habitualmente
colocado entre primeiro e terceiro mundo, categorias ainda usadas embora um pouco
obsoletas, sempre prometeu ser o destaque do século. Várias apostas foram feitas sobre este
gigante geográfico, a partir da profecia inicial da vanguarda modernista dos anos vinte até o
Brasil um país do futuro de Stefan Zweig, a retórica da ditadura militar e ufanismos
retornantes. Mas, segundo o diretor e autor do prefácio de Ágalma, o filósofo Mario Perniola,
está descartada a possibilidade de um neoufanismo, embora um tropicalismo tão superficial
quanto consolatório, e tentações nesse sentido não faltem no horizonte cultural, cúmplices a
banalização e infantilização veiculadas pela mídia, e a retórica neopopulista da classe política
brasileira e do mesmo chefe da nação.
O neotropicalismo seria uma forma particularmente torva e feroz de
neoufanismo. A possibilidade de uma modernidade brasileira alternativa à
modernidade americana seria completamente descartada a favor de uma
hipermodernidade (a “mais-modernidade” de Alfredo Bosi) de cunho neoliberal. Aliás, é exactamente esta coexistência de degradação e de abjecção
de um lado, e de eficiência do outro, que muitos filmes de ficção científica
nos mostraram. Contudo, não se trata de ser antimodernos, mas de buscar
outras dimensões de modernidade, nas quais a dimensão pública seja
valorizada através da incrementação e o desenvolvimento das tendencias que
pertencem profundamente à história e à cultura do país, às suas raízes, ...5
As contradições da realidade sócio-cultural do Brasil e do mundo globalizado
lembram de perto, trinta anos depois, as teorias do futurólogo italiano Roberto Vacca, o
5
PERNIOLA, Mario. “Suavidade”. In: Ágalma, cit., p.6.
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Medioevo prossimo venturo, e justifícam as provocações do último livro de Umberto Eco6: às
vezes, apesar da profecia duma “sociedade aberta” (Karl Popper), da eficiência e do avanço
tecnológicos e sociais, a era democrática da internet e do digitalismo revela traços
assustadores de atraso, exclusão e barbárie. Guerra sem fim e globalização excludente são,
infelizmente, os alicerces do neoliberalismo contemporâneo. Gap sempre mais profundo entre
elites e massas de salariados e excluídos pobres; medo e segurança no comportamento e no
estílo de vida urbano: os enormes cinturões das favelas vs. as gated communities protegidas
com altas grades e muros, como fossem novos castelos medievais, são mencionados na
análise de Perniola.
O brasilianista Nello Avella, também ensaista de Ágalma, tem observado que, na
encruzilhada semântica ‘cordial/coração’, amor/ódio, para o “antropófago” Oswald de
Andrade o homem cordial “sabe ser cordial come sabe ser feroz”7.
Junto com a comum origem latina e católica, o mundo luso-brasileiro e a Itália
parecem compartilhar mentalidade e comportamentos típicos principalmente do mundo rural,
de uma organização “econômico-corporativa” (economia fechada) pré-capitalista, à origem de
um individualismo exasperado, que Buarque, pensando na Península Ibérica, chamava de
“cultura da personalidade”, ambientada numa comum Arcádia. Vem à toa a discussão sobre o
ideal do “particulare” do historiador e pensador renascentista, o florentino Francesco
Guicciardini, por muito tempo interpretado como puro interesse material do indivíduo e de
comportamento egoísta em geral, embora pareça convincente a recente interpretação de Mario
Perniola, segundo a qual, se trataria, mais apropriadamente, de boa “reputação”, “honra”8.
6
ECO, Umberto. A passo di gambero. Guerre calde e populismo mediatico. Milano: Bompiani, 2006.
AVELLA, Nello. “Il ritorno del “Maestro cordiale”, In: BUARQUE de HOLANDA, Sérgio. Radici del Brasile.
Prefazione di Fernando Henrique Cardoso. Introduzione e cura di Nello Avella. Trad. di Luciano Arcella.
Firenze: Giunti, 2000, p. 25. Para o historiador da USP Francisco Alambert, “O homem cordial pode ser afetuoso
e violento conforme ele queira, e pode variar entre a regra e a exceção segundo sua vontade. Mas as
justificativas para essas idas e vindas, para essas aparentes “contradições”, são sempre pessoais e sentimentais”,
Resenha a Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. In: Revista de História da Biblioteca
Nacional. Rio de Janeiro, ano 2, n. 13, outubro 2006, p. 94.
8
PERNIOLA, Mario. Del sentire cattolico. La forma culturale di una religione universale. Bologna: il Mulino,
2001. Veja-se o n. 218 dos Ricordi politici e civili, elaborados entre 1512 e 1530, de GUICCIARDINI,
Francesco. Reflexões. Trad. de Sérgio Mauro. São Paulo: Hucitec, 1995, p.147. “Os homens que conduzem bem
as suas coisas neste mundo tem sempre diante dos olhos o próprio interesse, e medem todas as suas ações por
este fim. Mas erram os que não conhecem bem seu interesse, isto é, pensam que este consista mais em alguma
7
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É bom lembrar-se da controvérsia causada na Itália pela tese do antropólogo
americano Edward Banfield nos anos cinquenta. Pesquisando a sociedade patriarcal e agrícola
de uma aldeia no sul da Itália, Banfield hipotizara uma realidade social caracterizada pelo
“familismo amoral”, ou seja, uma lógica de comportamento funcionante unicamente pelo bem
imediato da família próxima, e totalmente fechado ao exterior e à qualquer dinâmica social ou
de bem comum9. Esta teoria de uma Itália rural e mediterrânea, amoral e socialmente atrasada,
achou defensores e muitos adversários, que a acusavam de divulgar um estereótipo
acientífico. Menciono aqui esta polêmica que se tornou cause célèbre, por que há uma certa
confluência atemporal de comportamento e de ideais entre o centro-sul rural e mediterrâneo
da Itália e dos países ibéricos de um lado e os do Brasil tradicional da Colônia e do Império
do outro. Seriam assim privilegiadas as relações emocionais e afetivas que favorecem os
familiares, o grupo de amigos, o “espírito de clã”, e não o individualismo e os formalismos
da metrópole e da vida urbana. Corretamente Antônio Cândido interpretava assim a crítica de
Buarque ao anacronismo e ao caráter promíscuo, veja-se a política brasileira, da suposta
“cordialidade”nacional:
O “homem cordial” não pressupõe bondade, mas somente o
predomínio dos comportamentos de aparência afetiva, inclusive suas
manifestações externas, não necessariamente sinceras nem profundas, que se
opõem aos ritualismos da polidez. O “homem cordial” é visceralmente
inadequado as relações impessoais que decorrem da posição e da função do
indivíduo, e não da sua marca pessoal e familiar, das afinidades nascidas na
intimidade dos grupos primários10.
O homem tropical é, portanto, provável carregador de certa ambivalência, de certa
inconsistência espiritual e psicológica. “... uns desterrados em nossa terra”, na imensidade de
um país-continente, embora parte “de um sistema de evolução próprio de outro clima e de
outra paisagem”, ou seja, habitantes de margens e veredas sulamericanas, em correspondência
com outras margens, de “uma zona fronteiriça, de transição”, de uma “região indecisa entre a
vantagem pecuniária que na honra, no saber manter a reputação e o bom nome”.
9
BANFIELD, Edward. Una comunità del Mezzogiorno. Bologna: il Mulino, 1961. Veja-se também de Banfield,
Le basi morali di una società arretrata. A c. di D. De Masi. Bologna: il Mulino, 1976.
10
CANDIDO, Antonio. “O significado de “Raízes do Brasil”. In: Raízes do Brasil, op. cit., p. 17.
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Europa e a África, que se estende dos Pireneus a Gibraltar”11, os brasileiros se posicionam no
lado “fraco”12 da identidade contemporânea. Certa indeterminação brasileira estaria já,
segundo Ettore Finazzi-Agrò, que medita sobre “A construção do espaço brasileiro”, no
caráter hollow, blank, da wilderness brasileira. Finazzi recupera num escritor canônico como
Euclides da Cunha, viajante na Amazônia, uma misteriosa “espacialidade atópica”: “Para vêla deve renunciar-se ao propósito de descortiná-la” 13. É a sensação que fica até amplificada
após uma chuva forte no Brasil, ou dias de chuvas fortes: a sensação que esta terra imensa
feita de barro vermelho esteja por desaparecer, por esfacelar-se. A natureza acquática, líquida
da natureza brasileira é confirmada pelo tamanho de suas reservas: poco menos de um quinto
da água doce do planeta é do Brasil.
Um país pós-colonial e mestiço como o Brasil tem a oportunidade de mostrar o
caminho de um cosmopolitismo forte, de uma dialética global-local à altura dos desafios
desse momento histórico, marcado pela volta a velhas nostalgias metafísicas, seja na vertente
religiosa, o fundamentalismo e o despejo do suposto “relativismo” cultural, seja na política, a
tendencia ao pensamento único, disfarçado como democrático, e a formas de neoimperialismo atualizado. Nesse sentido as palavras-guia da bandeira brasileira, “ordem e
progresso”, expressão da parte mais europeia e superada da identidade nacional, são as menos
indicadas a definir o destino dos brasileiros.
Rejeitada a componente provinciana, colonial e ambivalente da “cordialidade”,
enterrado de uma vez, e com todas as honras, mas sem saudade, o Macunaíma nacional, a
alteridade e a criatividade brasileira podem se manifestar, incorporando a condição da
desorientação e da suspensão no meio da natureza tropical com uma maneira de ser e uma
visão mais mundial, cosmopolitana, cósmica. O grito que sai da terra nao é mais o da tristeza
individuada pelo modernista Paulo Prado: “Numa terra radiosa vive um povo triste” 14. E sim,
talvez, da “suavidade”:
11
BUARQUE de HOLANDA, Sergio. Op. cit., pp.31-32.
Uso o adjectivo “fraco” no sentido antimetafísico e anti-Grund (fundamento) dado pelos pensadores italianos
do “pensiero debole”, no livro organizado por ROVATTI, Pier Aldo. VATTIMO, Gianni. Il pensiero debole.
Milano: Feltrinelli, 1983.
13
DA CUNHA, E. Um paraíso perdido. Ensaios, estudos e pronunciamentos sobre a Amazónia. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1986. p. 201.
12
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Este sentimento cósmico não é uma alienação, mas uma apropriação:
portanto ele não está longe da oikeiosis da que falavam os antigos filósofos
estóicos a respeito da relação entre o ser humano e a natureza. Nessa palavra
grega (traduzida em latim como conciliatio e commendatio, e em italiano
como attrazione) é implícito seja o aspecto affetivo da cordialidade, seja
aquilo social do altruísmo. Tal experiencia tem pouco a ver com a saudade
portuguesa, relacionada à solidão e à recordação nostálgica do passado. É
por isso que a palavra suavidade é a mais pertinente ao tropicalismo
brasileiro. Suavidade tem a mesma raiz da palavra persuasão: porém não se
trata de convencer ou comunicar uma idéia. A suavidade é algo de
aconceitual e de exprimível somente através da poesia e da música, que não
por acaso representam os melhores produtos da cultura brasileira15.
Esta suavidade parece ter sido adiantada e confirmada por un singular documento, que
acaba de ser publicado em edição bilíngue, e que se insere num subgênero literário, pela sua
própria natureza multidisciplinar e extraordinariamente moderno: o diário de viagem do então
jovem estudante de medicina, o futuro filósofo do pragmatismo americano William James,
irmão do grande romancista Henry James. A “empatia” do jovem americano, no Brasil por
oito meses entre 1865 e 1866, segundo a organizadora do livro, com o barqueiro que o leva
numa travessia do rio Solimões, é assim expressa no diário:
Nunca houve uma classe de pessoas mais decentes do que estas. O velho
Urbano, especialmente, por seu refinamento nativo, inteligência e espécie de
limpeza e pureza é talhado para ser amigo de qualquer homem que exista,
não importando quão elevado seja seu nascimento & bens. (...) Urbano &
seus companheiros conversam com tanta beleza e harmonia (...), em um tom
suave [grifo meu], baixo e vagaroso, como se a eternidade estivesse à frente
deles”16.
14
PRADO, P. Retrato do Brasil. Ensaio sobre a tristeza brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p.
53.
15
PERNIOLA, M. Suavidade. In: Ágalma, op. cit. p. 7.
16
MACHADO, Maria Helena P. T (Org.). Brazil through the eyes of William James. Trad. de John M. Monteiro.
Cambridge: Harvard University Press, 2006. A citação do trecho de W. James foi tomada do artigo-resenha de
Marcelo Leite, “Antiliteratura de viagem”. “A Folha de São Paulo”. Caderno “Mais”. 3 de dezembro de 2006, p.
7. Vale a pena, porém, reproduzir inteiramente o trecho jamesiano no original em inglês, e última entry do
“Brazilian Diary”: “16th. EVENING. I am sitting writing this in front of the house of my excellent old friend
Urbano. I fell behind hand so much in this dry kind of composition that I find it now quite impossible to make up
my lost time, and can now only give a kind of general retrospect of the last days. I now fell perfectly
domesticated in this place & with these people. Never were there a more decent worthy set of gentry. Old
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Um barqueiro na Amazônia da segunda metade do século XIX, com o nome digno de
um Papa de Roma, Urbano, é visto como herói cultural, (conversa suave, harmonia,
refinamento de costumes, humanidade...), características quase de uma nova Renascença, que
se ergue das águas amazonenses da mesma forma que uma humanística e renascentista Vênus
de Botticelli nascia das águas, num outro lugar, quatro séculos antes.
TERRA EM TRANSE 2
Uma síntese muito bem informada para entender o universo tropicalista é, para o
japonês e ex-aluno de Umberto Eco em Bolonha, Shuei Hosokawa, a bíblia de Caetano
Veloso: o autobiográfico Verdade tropical (1997), publicado na Itália em 2003. Hosokawa
começa sua história do tropicalismo vertente pop-musical-intelectual, lançando a idéia que
Caetano e Gil (e o Chico romancista) sejam talvez outros tantos intelectuais “orgânicos”, no
sentido gramsciano do termo. Não sei quanto isto agradaria Caetano Veloso e a sua enorme
produção de artista mutante, sempre se superando. Uma coisa é clara. Veloso parece ser
orgânico somente à sua própria natureza proteiforme e a um protagonismo que travessa
inteligentemente os vários territórios da cultura pós-moderna, à qual ele adapta de forma
criativa uma espécie de ‘eterno brasileiro’. As incursões trans-gêneros e trans-estilos, a
assemblage cultura alta-cultura baixa ou popular, a trajetória “do luso-nacionalismo ao anglouniversalismo”, são ricamente explicitadas e investigadas por Hosokawa. O exergo inicial do
ensaio dele parece confirmar uma leitura da “suavidade” toda poético-musical da alma
Urbano especially, by his native refinement, intelligence and a sort of cleanliness and purity is fit to be the friend
of any man who ever lived, how elevated his birth & gifts. There is not a bit of our damned anglo saxon brutality
and vulgarity either in masters or servants. I am always reminded when the neighbors come in to visit Urbano of
our family & the Tweedy family at Newport. Urbano & his gossips talk with just as much beauty & harmony or
perhaps a good deal more than Tweedy & Father did, in an easy low slow [grifo meu] tone as if all eternity was
before them. I have never heard any swearing or an hyperbole or far fetched similes or extravagant jokes or steep
piled epithets or chaffing such as we Yankees delight in”, p. 92.
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brasileira, como proposto por Mario Perniola: “Se você tem uma ideia incrível / É melhor
fazer uma canção” (Caetano Veloso, “Língua”).
Segundo a visão transversal de Hosokava, afinal, há “duas Américas” na produção de
Caetano: a vertente pop e contra-cultural, que se coloca nas trilhas do international style
anglo-americano (mas também de certo radicalismo artístico à la John Cage, Fluxus de Nova
Iorque, com a supervisão de Rogério Duprat, Décio Pignatari e o movimento MARDA), e,
segundo, o remake e detournement tropicalista, segundo o qual o hibridismo, o
antropofagismo e a paródia, típica de Caetano e de outros artistas brasileiros, fazem justíça da
nova versão americana de imperialismo cultural e de pensamento único, sustentado pela
teoria do “conflito de civilizações” do Samuel Huntington.
Não escapa a esse coletivo olhar italiano ao Brasil, que originou primeiro como
congresso na Universidade de Roma-Tor Vergata, a história e as transformações recentes das
práticas religiosas no Brasil. E bem posicionado parece o teórico italiano das comunicações
da USP, Massimo Di Felice, quando coloca a sua pesquisa sob a estrela das veredas rosianas
ou, eu diria, dos Caminhos silvestres (Holzwege) heideggerianos: “Eu cá, não perco de
ocasião da religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... uma só, para mim é pouca,
talvez não me chegue”17. Di Felice descreve a trajetória do espiritualismo e das práticas
religiosas no Brasil a partir de elementos importantes como o messianismo que entrelaça a
história do país e a teologia da libertação dos anos ’60-’70, cujo fim foi o prelúdio do grande
crescimento do pentecostalismo e neo-pentecostalismo, protagonizado sobretudo pelas várias
confissões e seitas evangélicas, que sempre mais tomaram o rumo do televangelism mediático
norte-americano, no que diz respeito a conteúdos teológicos, rituais e agressiva retórica
linguística; sem esquecer o papel da New Age como pano de fundo da sensibilidade geral
dessa virada de século. O sincretismo da religiosidade afro-brasileira, nas formas híbridas que
lhe são próprias, a partir dos fundamentais estudos de Roger Bastide nos anos sessenta,
mostra uma certa precariedade conceitual e deve ser vista de forma mais dinâmica e como
expressão da “visão subjetiva dos fieis”. Continua Di Felice:
17
GUIMARAES ROSA, João. Grande sertão, veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 20.
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Mais que se reconhecer dentro duma única identidade religiosa, o que
caracteriza o éthos espiritual do povo brasileiro parece ser uma abordagem
utilitarística e compulsiva que ultrapassa as barreiras dos dogmas e das
instituições religiosas, deslocando-se sem uma meta, cumulando
experiências diversas e tradicionalmente diferentes entre si18.
“Hierofanías sem religião”, “pós-sincretismos”, ritos sem mitos, devem ser
consideradas algumas das manifestações de fé bem estabelecidas na realidade brasileira: o
Vale do Amanhecer, o Santo Daime ou doutrina da floresta, o movimento Espírita do
fundador Allan Kardec e de seu O Livro dos Espíritos de 1860, chegado ao Brasil com a
mediação do mineiro Chico Xavier. Dinamismo e impermanência, eis as regras da
religiosidade popular contemporânea, na ótica de estudos culturais e de sociologia da
comunicação do estudioso uspiano. A esta informatíssima e convincente cavalgada pelos
territórios da espiritualidade e do irracionalismo tão ostensivo de muitos brasileiros, poderia
talvez faltar um olhar mais tradicionalmente sócio-político. Afinal, o momento fundante do
Brasil moderno sendo, não a Lei Áurea de 1888, não o golpe republicano de 1889, mas a
“guerra civil” de Canudos, ou seja, um fato histórico habitualmente interpretado com a lente
do messianismo cristão do Conselheiro, e descrito pelo texto canônico Os sertões,de Euclides
Cunha, não é sem prazer que vi recentemente uma leitura de Canudos como uma “comuna”, a
semelhança da Comuna de Paris de 1871, primeiro experimento comunista da Europa
moderna e que adiantou Canudos só de poucos anos19.
Entregados definitivamente o “homem cordial” e o “Italiani brava gente” à la poubelle
de l’histoire, essas duas ricas tradições culturais podem retomar o caminho da consciência
planetária, rumo de um autêntico cosmopolitismo.
18
DI FELICE, Massimo. “Dalla Teologia della liberazione alla New Age. I mutamenti del sacro nel Brasile
contemporaneo”. In: Ágalma, op. cit. p. 98.
19
“Na America Latina, como em alguns outros países do Terceiro Mundo, existe uma situação que permite que
uma espécie de antimodernidade se expresse sob forma que a pós-modernidade pode acolher como perspectiva
eficaz – bem, este é o tema da libertação dos escravos e dos servos. A “comuna” de Canudos, ordenada
(exterminada) em nome do progresso durante a “guerra do fim do mundo”, reaparece hoje em toda a sua potente
antecipação como alternativa irredutível à modernidade. Dentro dela encontra-se uma outra tensão, que se pode
definir como cosmopolita: ela atravessa o mundo em que vivemos e nos ensina a urgência de libertar todos
aqueles que o biopoder restringe nas correntes de seu comando”. (NEGRI, Antonio. COCCO, Giuseppe.
Glob(AL). Biopoder e luta em uma America Latina globalizada. Rio de Janeiro- Sao Paulo: Record, 2005. p.
199).
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Dinorá: a inocência despedaçada no silêncio da tragédia
Robério Pereira Barreto*
RESUMO: Este artigo evidencia o erotismo no campo de violação do corpo feminino na literatura
contemporânea de Dalton Trevisan. Aqui representada pelo conto Dinorá, moça do prazer (1997). A partir da
exploração da subjetividade e a procura da identidade mais profunda dos personagens da narrativa, Trevisan faz
de Dinorá a metonímia da sociedade brasileira atual e por meio de uma intertextualidade com Jonh Cleveland,
ele nos aproxima de Fanny ao mostrar sua incursão primaria às tentações dos ambientes luxuoso dos bordéis
brasileiros do século XX. Na medida de seus atrativos, uma mulher está exposta ao desejo do homem. Com
efeito, tem-se nessa narrativa uma presença significativa do silêncio que, faz parte da estética da ficção pósmoderna. Verifica-se isso no tom dramático que Dinorá usa para descrever os acontecimentos e o ambiente que a
iniciaram no mundo do luxo e do prazer, deixando assim, vir à tona o seu espanto diante do glamour do salão, no
qual viria acontecer à orgia de iniciação.
Palavras-chave: Silêncio; Prazer; Prostituição; Estética; Ficção contemporânea.
RESUMEN: Este artículo evidencia el erotismo en el campo de romperse del cuerpo femenino en la literatura
contemporánea de Dalton Trevisan. Aquí representado por el cuento Dinorá, joven del placer (1997). A partí de
la exploración de la subjetividad y de la búsqueda de la identidad más profunda de los personajes de la narrativa,
Trevisan hace de Dinorá la metonímica de la sociedad brasileña actual y por medio de una intertextualidad con
Jonh Cleveland, el nos presenta su incursión primaria a las tentaciones de los ambientes lujosos de los burdeles
brasileños del siglo XX. En la medida sus atractivas, exhiben a una mujer al deseo del hombre. Con efecto, una
presencia significativa del silencio se tiene en esta narrativa tan, es parte de la estética de la ficción despuésmoderna. Esto en el tono dramático que Dinorá utiliza describir los acontecimientos y se verifica el ambiente que
lo había iniciado en el mundo del lujo y del placer, así yéndose, a continuación para venir al tona su asombro del
encanto del pasillo, en el cual vendría suceder al orgía de la iniciación.
Palabra-llave: Silencio; Placer; Prostitución; Estético; Ficción contemporánea.
ABSTRACT: This article evidences the erotism in the field of breaking of the feminine body in literature Dalton
contemporary Trevisan. Here represented for the Dinorá story, young woman of the pleasure (1997). From the
exploration of the subjectivity and the search of the identity deepest of the personages of the narrative, Trevisan
makes of Dinorá the metonymies of the current brazilian society and by means of a intertext with Jonh
Cleveland, it in them it approaches to Fanny when showing its primary incursion to the temptations of
environments luxurious of the brazilian brothels of century XX. In the measure of its attractive ones, a woman is
displayed to the desire of the man. With effect, a significant presence of the silence is had in this narrative that is
part of the aesthetic one of the after-modern fiction. This in the dramatically tone that Dinorá uses to describe the
events and the environment is verified that had initiated it in the world of the luxury and the pleasure, thus
leaving, to ahead come to evidence its astonishment of glamour of the hall, in which it would come to happen to
the orgies of initiation.
*
Professor de Lingüística, Linguagens e Literatura e outras artes – DCHT – UNEB – Campus XVI – Irecê – BA.
e-mail: [email protected].
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Word-keys: Silence: Pleasure; Prostitution; Aesthetic; Fiction contemporary
As formas imortais, claras e ufanas,
Da graça grega, da beleza pura,
Resplandem na Angélica brancura
Desse teu corpo de emoções profanas.1.
A prostituição das personagens femininas de Dalton Trevisan não era uma das
principais atenções de nossa investigação, porque visávamos à significação erótica do
discurso existente na narração de seu romance A Polaquinha2 (1985). No entanto, leituras e
observações mais acuradas das obras do escritor curitibano nos levaram a dedicar um olhar
mais imperativo à presença de tal tema nas suas outras produções [contos que, segundo alguns
especialistas, foi o gênero no qual autor do Vampiro de Curitiba se destacou, levando o leitor
para além da fruição].
Na ficção de Dalton Trevisan, sobretudo em Dinorá, moça do prazer3 há a presença
de jovens que em virtude de uma série de problemas sociais são introduzidas à prostituição e
que passam a servir aos caprichos sexuais de seus senhores. Em tal obra, o enredo discorre
sobre a iniciação sexual de uma adolescente [Dinorá, que depois de ficar órfã é amparada por
Madame Ávila, que vai ensiná-la como fazer uso de sua beleza e pureza para torna-se uma
1
SOUZA, Cruz de. Corpo. In: Poesias completas: Broqueis, faróis, últimos sonetos. Rio de Janeiro,
Ediouro,1997, p. 137.
2
Otto Lara Resende em um texto que acompanha a orelha deste livro – terceira edição, datada de 1985 -, diz que
esta obra é uma narrativa longa, a qual ganha característica de romance. Entretanto, nela o escritor mantêm “sua
nota pessoal é imutável e está no texto cada vez mais cerrado.” Trevisan, ainda segundo o crítico literário, criou
um universo próprio, que lhe pertence por direito de conquista e originalidade. Assim, se tornou autor singular.
O escritor curitibano mostra-se insatisfeito, por isso seus textos são cada vez mais condensados na tentativa de
expor a vida humana por meio de uma visão macroscópica e sem compaixão, as andanças que a vida propõe ao
sujeito, mostrando lhe as culpas e castigos físicos e psicológicos.
3
Décimo segundo conto da obra Cemitério de elefantes de Dalton Trevisan, a qual é composta por vinte e três
contos, sendo que o último texto é que dá o nome ao livro. Publicado pela editora Record 1997, este texto está na
décima segunda edição.
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dama da sociedade], só que para sobreviver nesse mundo ela tem que usar a ambigüidade e a
dissimulação do corpo até o limite4.
Conforme já dissemos, é interessante notar que a exploração do corpo feminino é
tema corrente na escrita trevisaneana, a qual deixa evidente para nós que a submissão da
mulher ao fetiche do homem é um aspecto sócio-cultural, no qual o poder masculino5 instalase devido às promessas de proteção e vida digna feita por homens e mulheres mais velhas as
meninas. É nessa situação que Dinorá se encontra. Isso é percebido na fala da protagonista de
Dinorá, moça do prazer quando se apresenta ao leitor:
NO ESTILO DE FANNY HILL6: Meu nome é Dinorá. Nascida em Curitiba,
de pais pobres, mas honestíssimos, fui na infância ignorante do vício.
Vítimas da gripe espanhola morreram os coitados mal entrara eu nos quinze
anos. Fiquei só, sem parente que me advertisse das traições no caminho da
jovem órfã. Condoída de tão triste sorte, uma venerável matrona assumiu
graciosamente a minha proteção Madame Ávila7 contaria cinqüenta anos,
aparentava mais pelo abuso de banhos quentes. Antes me queria dama de
companhia do que criada de servir e, se me revelasse boa menina, seria para
mim verdadeira mãe. Gorda, casaco de pele em pleno verão, eu lhe invejava
o vestido de púrpura, o chapéu de fita farfalhante, a pulseira dourada que
tilintava no bracinho roliço.89.
4
Se tomarmos Dinorá sob a ótica foucaulteana veremos que, na verdade, há um processo de servidão em que a
personagem é disciplinada para as práticas libidinosas de seus senhores.
5
De acordo com Foucault, em seu clássico Microfísica do poder (1979), entendemos que na sociedade
contemporânea o poder tornou-se institucionalizado, sendo o corpo do Rei a representação física dele.
6
Conforme apresenta Eliane Robert Moraes no seu livro O que é pornografia, Fanny Hill é a heroína de uma das
maiores obras-primas da literatura erótica ocidental. Escrita por Jonh Cleveland em 1749, Fanny Hill, segundo
argumenta Moraes, é também conhecida como Memórias de uma mulher de prazer. A qual, segundo consideram
alguns moralistas de plantão, esta é a narrativa mais escandalosa de que se têm notícias. Entretanto, a
pesquisadora nos assegura que em tal discurso literário não há absolutamente nada que comprove esta assertiva.
“Fanny Hill não contém uma só palavra ou expressão obscena, do começo ao fim do livro. No entanto, a
estudiosa deixa claro que, na verdade”, Há cenas de violência, sedução, homossexualidade, flagelação, das mais
diferentes formas de contato sexual e até mesmo instruções para simular virgindade “. (Moraes, 1985, p. 31).
Para melhor compreensão da questão posta aqui em discussão, fica como recomendação a leitura do texto de
Jonh Cleveland. Fanny Hill.
7
Para Tânia Regina Oliveira Ramos em Literaturas de peso. In: Genealogias do silêncio: Feminismo e gênero.
Florianópolis: Editora Mulheres, 2004. p. 157, essa personagem comporia casting das mocinhas de Gaby
Hauptmann.“As mocinhas de Gaby Hauptmann têm perto de cinqüenta anos e não estão preocupadas com
dietas.”
TREVISAN, Dalton, 1997, pp.48.9).
8
9
Esta atitude, segundo Foucault é resultante de ações políticas direcionadas ao domínio do corpo por meio de
controles extremamente pensados. Assim, nasce a Filantropia no século XIX, a qual assegura o estudioso francês
dar-se a partir de “pessoas que vêm se ocupar da vida dos outros, de sua saúde, da alimentação, da moradia...”
(FOUCAULT, 1979, p. 150).
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É, portanto, a partir disso que os personagens masculinos da narração, na tentativa
de manter seu estado de mando recorrem aos mais variados mecanismos de poder, tendo
principalmente à persuasão econômica como instrumento de sedução10. E, por meio da oferta
de bens materiais às suas vítimas é que eles conseguem a manipulação de suas mentes e
corpos. Ficam ainda expostos nessa narrativa os ambientes onde acontecem essas seduções.
São, portanto, casas acima de qualquer suspeita. Vejamos isso conforme o tom dramático que
Dinorá usa para descrever os acontecimentos e o ambiente que a iniciaram no mundo do luxo
e do prazer, deixando assim, vir à tona o seu espanto diante do glamour do salão, no qual viria
acontecer à orgia11 de iniciação.
Convidou-me uma noite – ah, terrível noite foi aquela! – para a festinha
galante, espicaçando-me a curiosidade com a descrição do ambiente luxuoso
e das finas maneiras dos convidados. No casarão, escondido de ciprestes,
esperava-nos a uma das portas laterais o nosso anfitrião, a quem madame,
entre mesuras, saudou a Excelência. Sem que deparássemos outro conviva,
fomos introduzidas no salão discretamente mobiliado de uma mesa, algumas
cadeiras, um canapé e uma cama de veludo encarnado, que mais parecia
digna de uma rainha12.
Sem querer fazer comparações, até porque esta não é a intenção desse trabalho, não
foi possível deixar de lado alguns comentários a respeito das protagonistas Fanny e Dinorá
uma vez que ambas narram suas experiências ao serem iniciadas no universo da prostituição.
Segundo Eliane Moraes, Fanny Hill é uma narrativa contada pela heroína que dá nome a obra,
que, por meio de grandes cartas narra suas experiências com diversos amantes e sua vida num
bordel de luxo. Ainda segundo a pesquisadora, Fanny “termina casada com o homem que
ama, desfrutando de um bom lugar na sociedade e gastando com ele a fortuna que ganhara na
10
Essa palavra está sendo empregada aqui de acordo com sua etimologia, que significa tirar do caminho,
desviar (seducere). Fato este comprovado nas ações de Madame Ávila, quando apresenta Dinorá a sua
Excelência.
11
Entendemos e, conseqüentemente, usamos a terminologia à maneira de Georges Bataille em seu
clássico livro: O erotismo, quando este nos informa que “A orgia supõe, ela exige a equivalência dos
participantes. Não somente a própria individualidade fica submersa no tumulto da orgia, mas cada participante
nega a individualidade dos outros. Aparentemente, é a inteira supressão dos limites, mas não pode acontecer que
nada sobreviva de uma diferença entre os seres à qual, por outro lado, está ligada a atração sexual.” (Bataille,
2004 pp. 201.2).
12
TREVISAN, Dalton, 1997, pp.48.9.
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sua antiga profissão”13. Já Dinorá, à maneira de Fanny nos mostra sua incursão primaria às
tentações dos ambientes luxuoso dos bordéis brasileiros do século XX.
[...] Após apresentação, madame alegou afazeres urgentes. Suplicou-me
fizesse um pouco de sala a sua excelência e, conduzindo-me a um canto,
perguntou se eu apreciaria como protetor tão bonito pedaço de homem.
Acudi que não possuía dote e, além do mais, era muito jovem para casar.
Madame retrucou que pretendia fazer a minha fortuna e, se o soubesse
agradar, seria elevada à categoria de grande dama e poderia escolher jóia,
vestido, carruagem.14
Para Bataille (2004), historicamente a mulher é o objeto de erotização e de desejo
do homem.
Elas mulheres15 se propõem como objetos ao desejo agressivo dos homens.
Não existe uma prostituta em potencial em cada mulher, mas a prostituição é
a conseqüência da atitude feminina. Na medida de seus atrativos, uma
mulher está exposta ao desejo do homem. A menos que ela se resguarde
inteiramente, por uma decisão de castidade, a questão é, em principio, a de
saber a que preço, em que condições ela cederá. Mas, com as condições
satisfeitas, ela sempre se dá como um objeto. A prostituição propriamente
dita só introduz uma prática de venalidade. Pelo cuidado que ela dispensa a
seus enfeites, pela preocupação que ela tem com sua beleza, que sua roupa
realça, uma mulher se considera ela mesma um objeto, incessantemente
oferecido à atenção dos homens. Da mesma maneira, se ela se desnuda, ela
revela um objeto distinto ao desejo de um homem, individualmente proposto
à apreciação.16
As afirmações do estudioso francês, certamente, nos levam à compreensão de que
o erotismo17 é exposto como elemento de poder, deixando nas entrelinhas que o corpo
feminino é instrumentalizado de significação erótica e, por isso, as prostitutas o usam de
maneira a seduzir seus parceiros. “A prostituta é, com seu corpo real, a encarnação da mulher
famélica de sexo, [...] prostituição nos mostra que há uma região do erotismo masculino
13
14
15
16
17
MORAES, Eliane, 1895, p. 33.
Idem, 1997, p. 49
Grifo nosso
BATAILLE, Georges, 2004, pp.203-4.
O étimo da palavra erotismo aponta para “Eros”, palavra de origem grega que significa “amor”. No
entanto, “erotismo” prende-se muito mais ao sentido sexual da ligação amorosa que ao afetivo.” FRANCONI, R.
A. Erotismo e poder na ficção Brasileira contemporânea.
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totalmente estranha à mulher. Que não a interessa. Que ela aceita apenas por dinheiro, isto é,
como atividade explicitamente não-erotica, profissional”.18
As palavras de Alberoni corroboram para a compreensão do drama de Dinorá ao
sentir-se seduzida pelas possibilidades de se tornar alguém com posse e status de dama da
sociedade. “Montar-me-ia casa e permitiria que, sentada em esplendida carruagem, me
exibisse pelas avenidas. Quem sabe até me fizesse duquesa! [...] Submissa aos seus caprichos,
antes que madame regressasse, jurou que da cabeça aos pés cobrir-me-ia de jóias.”19
À moda de Foucault entendemos que as relações sexuais seguem além dos prazeres
as hierarquias sociais, sendo que ao homem devido ao poder que lhe é atribuído na escala
social, lhe facultam o direito de ser ativo e, conseqüentemente, manipular os desejos do corpo
feminino, transformando o em escravo.
As práticas de prazer são refletidas através das mesmas categorias que o
campo das rivalidades e das hierarquias sociais: analogias na estrutura
agonística, nas oposições e diferenciações, nos valores atribuídos aos
respectivos papéis dos parceiros. E pode-se compreender, a partir daí, que há
no comportamento sexual, um papel que é intrinsecamente honroso e que é
valorizado de pleno direito: é o que consiste em ser ativo, em dominar, em
penetrar e em exercer, assim, a sua superioridade.20
Tal exercício de poder se manifesta por meio de galanteios e intencionalidades que
atingem diretamente o psicológico da futura vítima. Assim, foram as primeiras ações de sua
excelência na tentativa de possuir seu objeto de desejo, conforme nos narra Dinorá.
Doces palavras com que acompanhava as carícias não eram suficientes para
me tranqüilizar. Os dedinhos grossos e cobertos de anéis titilavam-me a
nuca, desfazendo os caracóis da loira cabeleira e – coro ao confessar –
proporcionado-me os primeiros arrepios de prazer.
Ó Deus, tua carne é mais branca que a neve! Deixa, deixa, um beijinho só.
Qual foi a minha surpresa ao reconhecer a chama da paixão na desgraciosa
figura pelo revirar de olho, lânguido suspiro, respiração ofegante e calva em
fogo. Tentando afasta-lo, queixei-me de ligeira enxaqueca. Cólera e
desprezo eram impotentes diante daquele gladiador cego de luxaria.
18
19
20
ALBERONI, Francesco, 1986, p. 14.
TREVISAN, Dalton,1997, p. 50.
FOUCAULT, Michel, 1994, p. 191.
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Aproveitando-se da minha agitação, quis o monstro libidinoso desfrutar-me
a concha dos lábios nacarados. Gritei que planejava minha ruína.21
Com efeito, Dinorá dá os primeiros sinais de que está muito próxima de ceder aos
ataques imperativos de sua excelência, mostrando-se frágil diante de tudo o que havia
tramado sua protetora, Madame Ávila. Seguindo o pensamento de Foucault (1994), sobre o
objeto de prazer que se torna a jovem mulher diante dos olhares masculinos, entendemos que
a iniciação de Dinorá ao mundo dos prazeres é a manutenção de uma cultura falocrática, na
qual o homem conta além da força física com a passividade feminina diante de afagos e
elogios. Não obstante, Foucault nos assegura: “No que diz respeito à passividade da mulher,
ela marca muito bem uma inferioridade de natureza e de condição; mas ela não deve ser
reprovada como conduta, posto que é, precisamente, conforme ao que a natureza quis e ao que
o status impõe”.22
Nesse sentido o poder de Dinorá se realiza e, conseqüentemente, se modaliza de
erotismo em virtude dela pertencer a uma sociedade patriarcalista que, por sua vez está
carregada de significado e de elementos simbólicos que controlam e inevitavelmente
neutralizam o desejo feminino, posto que é formada para tanto.
O poder do feminino se encontra expresso nos mitos, dos pagãos aos
cristãos; a Bíblia traz exemplos inesgotáveis da necessidade de regular, de
“proteger” as mulheres e de se proteger contra elas, que silenciosas e
passivas, ameaçam a ordenação e assepsia da humanidade, sobretudo durante
a menstruação e a gravidez, estados considerados impuros e impróprios, que
as remetem naturalmente à “conexão” erótica.23
Como já dissemos, não é possível deixar de falar de violência, da qual será vítima a
protagonista de narrativa em questão - Dinorá, moca do prazer -, pois é objeto de prazer e
volúpia por parte daquele que a iniciará ao universo sexual. Usando de força, inclusive física,
na tentativa de realizar seus impulsos eróticos, sua excelência transforma-se, e deixa vir à tona
seu lado animal. Tal ato é comprovado no drama que a personagem apresenta. Embora
demasiado logo entendemos que é importante citá-lo.
21
22
23
TREVISAN, Dalton, p. 51.
FOUCAULT, Michel. 1994,
BRANCO, Lúcia Castello de. 1984, p. 14.
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Tão comovida, teria desmaiado se duas lágrimas providenciais não
aliviassem a aflição que me consumia. Abusando de minha inexperiência,
rompeu o falso gentil-homem a preciosa mantilha de Granada que me cobria
os ombros resplandecentes de alvura e conspurcava-os com seus olhares
impuros. Encorajado por este prelúdio, avançou para min – ai de mim! –
que, possuída de terror, tombei de decúbito dorsal, tremula e palpitante sobre
o canapé que ele escolhera para o nosso campo de batalha. Mãos postas,
implorei que não me profanasse. (...) Meus grandes olhos verdes e
cismadores, que lançavam lampejos, não intimidaram o velho corcel que
tomara a brida nos dentes. Na confusão rompeu-se um alça do vestido de
tafetá branco. Os cabelos esparsos – na luta eu perdera um sapatinho
bordado em fio de ouro -, toda a encantadora desordem de minha pessoa
excitavam a sua febre criminosa. Submissa aos seus caprichos, antes que
madame regressasse, jurou que da cabeça aos pés cobrir-me-ia de jóias.24
Eis que nesse contexto surge um misto de poder, flagelação e galanteios que,
certamente, leva os envolvidos a uma relação de cumplicidade e satisfação erótica, sendo que
ao homem – sua excelência – é relegado papel de dominador. Por isso, o marquês de Sade
dizia: “Todo homem é um tirano na cama”.25 E assim, tal atitude é “legítima” quando se trata
de uma convivência sexual. Até porque o personagem masculino da trama é um cidadão da
polis, conforme tratamento a ele dispensado por Dinorá e Madame Ávila, ”sua excelência”
embora tratamento seja dispensado em letras minúsculas, o que pode subentender certo grau
de ironia presente no discurso de cada uma.
A partir do momento em que a jovem personagem passa a compreender as
circunstâncias em que foi submetida, conforme mencionamos no corpo desse texto, inicia seu
processo de dissimulação visando atender suas necessidades individuais. Nesse ínterim
percebemos que Dinorá não consegue mais se desvencilhar dos ataques e das carícias que
recebe de sua “excelência”, vindo a sentir sensações e prazeres que até aquele instante eram
24
25
TREVISAN, Dalton, 1994, p. 51.
Essa afirmação é de Donatien-Alphonse-Francois, Marquês de Sade. Nasceu em 1740 em Paris e
morreu em 1814, que segundo especialistas seus biógrafos terminou seus últimos dias num asilo de loucos onde
esteve internado. Conforme asseguram Eliane Robert Moraes e Sandra Maria Lapiez, o maior crime, do qual
Sade foi acusado e codenado “foi o estupro de uma mulher de trinta e oito anos de idade chamada Rose Keller, a
quem açoitou com um ramo de árvore, fez várias incisões no seu corpo com um canivete e por fim colocou cera
nas feridas.” Eis aí, segundo alguns estudiosos do assunto a origem dos termos sádico e sadismo.
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desconhecidos, por isso está a um passo da aceitação, entretanto dissimulação. “- Ai, o senhor
me perde. Antes a morte!”26
Dessa maneira, nossa protagonista passa a compreender as intenções e as reações
de seu corpo diante de tais ataques e, assim mostra-se cada vez mais acuada pelo “monstro”
libidinoso que intenta contra sua honra.
Vencida a desconfiança inicial, passando a mão de leve no meu colo de
brancura imaculada, produziu-me sensações estranhas que e perturbavam, se
logo não escandalizassem. Doces palavras com que acompanhava as carícias
não eram suficientes para me tranqüilizar. Os dedinhos grossos e cobertos de
anéis titilavam-me a nuca, desfazendo os caracóis da loira cabeleira e – coro
ao confessar – proporcionando-me os primeiros arrepios de prazer27.
Nessa passagem há uma descrição metafórica da iniciação sexual da protagonista.
Para Bataille isso se deu porque Dinorá se tornou objeto de desejo de sua “excelência” a partir
de atitudes de passividade por ela cometida. Ou seja, a personagem passa a experimentar de
algo que não tinha – prazer- e por isso vai além. Embora continue achando deselegante sua
“excelência”. Com efeito, ouvimos o que ela afirma sobre tal momento: “Qual foi minha
surpresa ao reconhecer a chama da paixão na desgraciosa figura pelo revirar de olho, lânguido
suspiro, respiração ofegante e calva em fogo.”28 Depois disso, Ela é absorvida totalmente pelo
ambiente. Em seguida lhe oferecem uma substância proibida, que a fará sentir atônita e não
resistirá às investidas de sua excelência.
Empurrei-o violentamente, puxei o cordão da campainha, o criado acorreu
pressuroso a receber as ordens de sua excelência. Quando soube o que era,
ofereceu-me algumas gotas de amoníaco29 para aspirar e retirou-se no
mesmo instante. Depois desta prova, senti-me tão abatida, tão lânguida e
enervada que não tinha ânimo de levantar o braço – estava à mercê do
impiedoso carrasco.
As palavras da personagem segundo os ensinamentos de Foucault são de
“docilidade” que foi alcançada através de dispositivo nada convencional. Em outros termos,
26
TREVISAN, Dalton, 1994, p. 51.
TREVISAN, Dalton. 1994, p. 51.
28
Idem, 1994, p. 51.
29
Segundo Dicionário Globo, 1996, p. 42 trata de S.m. (quim.) Gás incolor, de cheiro irritante e sabor
caustico. Formado pela combinação de um átomo de nitrogênio e três de hidrogênio; adj. O mesmo que
amoniacal. (sin.: álcoli volátil.) (Do gr. Ammoniakon.)
27
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temos aí o famoso “boa noite Cinderela” que envolve a bela adolescente numa relação de
submissão codifica, tendo assim, seu corpo transformado em objeto estático e permissivo.
O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o
desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também
igualmente uma “mecânica de poder”, está nascendo; ela define como se
pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que
façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas,
segundo a rapidez e a eficácia que se determina.”
Para Branco (1984) a presença de erotismo na cultura ocidental está ligada à
exploração do físico. Entretanto, a religiosidade da civilização ocidental criou um modelo a
ser seguido pelas mulheres, tomando a virgem que concebeu “sem pecado” como
representação. O corpo feminino segundo os preceitos das ideologias cristãs é aprimorado nos
moldes de docilidade, negando-se ao prazer. “Imaculado, inativo e impassível, o corpo, na
ideologia cristã, é reduzido ao estado de corpus (cadáver, em latim), em seu eterno repouso e
absoluta inércia30”
É importante notarmos que estes aspectos filosóficos mencionados pela
pesquisadora que citamos a pouco corroboram com o que Trevisan apresenta através no
discurso direto da protagonista de Dinorá, Moça do Prazer. Portanto, temos que considerar
que a ficção do pai do Vampiro de Curitiba pode ser classificada como neonaturalista, pois
traz à baila através de seus personagens as temáticas que são, na verdade, a vida nas
sociedades civilizadas. [homossexualismo, prostituição, a histeria, o alcoolismo, etc]. Nesse
momento, priorizamos a prostituição dos corpos femininos que tem em Dinorá a sua
representante.
Concluindo temporariamente, observamos que em Dinorá, moça do prazer
Trevisan nos apresenta um retrato de uma sociedade que embora esteja vivendo temporal e
espacialmente no contemporâneo, ainda utiliza paradigmas do século XVII. Vimos no
decorrer da narrativa à exploração de uma jovem que foi vítima do destino e que sob a
alegação da protegê-la Madame Ávila a prepara para atender os caprichos sexuais de figuras
ignobéis e decadentes. Com efeito, podemos ver que a ficção do contista curitibano tem uma
30
BRANCO, Lúcia. 1984, p. 48.
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dimensão urbana, ou seja, os enredos de suas obras transitam entre o centro e a periferia de
Curitiba e trazem em sua essência narrativa as pequenas tragédias que o cidadão comum da
polis está sujeito diariamente. Entretanto, a correria pela sobrevivência o impede de percebêla, deixando assim um espaço aberto para àqueles que detêm o poder praticarem as ações mais
vis contra o desejo e corpo feminino.
Trevisan trabalha com as pequenas tragédias da vida moderna, e, por isso, sua obra
vai além de padrões rígidos de criação literária. Portanto, o leitor incauto precisa se prepara
para apreender a essência de sua ficção, pois, o autor apresenta em suas narrativas
ambigüidades que; agradam, deliciam e, principalmente, amedrontam porque busca dialogar
com ele a partir de monólogos interiores, para os quais, na maioria das vezes, esse receptor
pouco afeito a desnudar-se de paradigmas estabelecidos não tem estrutura para um desafio de
tão grande envergadura.
Referências
ALBERONI, Francesco. O erotismo. 5. ed. São Paulo: Rocco, 1997.
BAKHTIN, Mikhail. O Freudismo. São Paulo: Perspectiva, 2001.
BATAILLE, Georges. O erotismo. São Paulo: Arx, 2003.
BRANCO, Lúcia Castello. O que é erotismo. São Paulo: Editora Brasiliense,1984.
BOCCALATO, Marisa Mikahil. A invenção do erotismo. São Paulo: Experimento, 1996.
CABRAL, Juçara Teresinha. A sexualidade no mundo ocidental. Campinas: Papirus, 1995.
CHAUÍ, Marilena. Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida. 12. ed. São Paulo:
Brasiliense, 2001.
CASTELLO, José. Dalton Trevisa O manto do vampiro. In: ________, Inventário das
sombras. Rio de Janeiro: Record, 1999.
DAOLO, Jocimar. Da cultura do corpo. Campinas, SP: Papirus, 1994.
FRANCONI, Rodolfo A. Erotismo e Poder na ficção Brasileira Contemporânea. São Paulo:
Annablume, 1997.
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FOUCAULT. Michel. Vontade de saber (História da sexualidade I), 9. ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1984.
__________, O uso dos prazeres (História da sexualidade II), 9. ed. Rio de Janeiro: Graal,
1984.
__________, O cuidado de si (História da sexualidade III), 9. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
__________, Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 28. ed. Petrópolis, Vozes, 1987.
GIDDENS, Anthony. O Amor Romântico e Outras ligações. In: _______. Sexualidade, amor
e Erotismo nas sociedades. São Paulo: UNESP, 1993.
MILAN, Betty. O que é amor. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.
MONZANI, Roberto Luiz. Desejo e prazer na idade moderna. Campinas. Editora da
UNICAMP, 1995.
MORAES, Eliane Robert. O que é pornografia. São Paulo: Brasiliense, 1985.
UCCI, Matt. Erótico sagrado: o sexo transcendental. São Paulo: PAULICÉIA, 1994.
WALDMAN, Berta. Do vampiro ao Cafageste: Uma leitura da Obra de Dalton Trevisan. 2.
ed. São Paulo: HUCITEC, 1989.
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Unidade e diversidade nas imagens nacionais em Meu querido canibal, de Antônio
Torres1
Juliana de Souza Gomes Nogueira2
Paulo André de Carvalho Correia3
Roberto Henrique Seidel4
RESUMO: O presente trabalho procura da conta a forma como as imagens que fixam a idéia de nação são
deslocadas pelo imaginário contemporâneo. Estas imagens serão analisadas na obra Meu querido canibal, de
Antônio Torres, especificamente a partir da terceira parte da narrativa. O estudo fundamenta-se em dois marcos
teóricos: a) no conceito de imaginário de Gaston Bachelard, segundo o qual o imaginário é a faculdade de
deslocar imagens; e b) no conceito de nação como uma construção discursiva, segundo Stuart Hall. Objetiva-se
analisar de que modo as imagens que representam a idéia de nação são problematizadas na narrativa
contemporânea pela dialética identidade/alteridade que dilacera o discurso da unidade nacional.
PALAVRAS-CHAVE: imagens, imaginário, identidade e alteridade.
ABSTRACT: The present work aims analyze as the images that fasten a nation idea are dislocated by the
imaginary contemporary. These images will be analyzed in Antônio Torres, “My Dear Cannibal”, specifically
from the third part of the narrative. The study it bases in two theoretical landmarks: a) the concept of imaginary
of Gaston Bachelard, according to which the imaginary is the faculty of dislocating images; and b) of the nation
concept as a discursive construction that produce a representation, according to Stuart Hall. It objectifies analyze
that way the images that represent the traditional idea of nation are problematized in the contemporary narrative
by the dialectic of the identity/alterity that lacerates the speech of the national unit.
KEY WORDS: images, imaginary, identity/alterity.
1
2
3
4
Uma primeira versão do presente texto foi apresentada em 28 de agosto de 2007, no Sethil, Seminário de
História Literária, promovido pela Universidade Estadual do Sudoeste Baiano – UESB. Agradecemos ao
Prof. Dr. Cláudio Cledson Novaes, da Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS, pela leitura e
orientações para aquela primeira versão.
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural da Universidade Estadual de
Feira de Santana – PPGLDC/UEFS, integrante do Grupo de Pesquisa UEFS/CNPQ Descaminhos do
Viandante: Espaço Nacional, Fronteiras e Deslocamentos na Obra de Antônio Torres.
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural da Universidade Estadual de
Feira de Santana – PPGLDC/UEFS, integrante do Grupo de Pesquisa UEFS/CNPQ Descaminhos do
Viandante: Espaço Nacional, Fronteiras e Deslocamentos na Obra de Antônio Torres.
Professor Adjunto de Teoria Literária do Curso de Letras, da Especialização em Estudos Literários e do
Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural da Universidade Estadual de Feira de
Santana – PPGLDC/UEFS. Coordenador do Grupo de Pesquisa UEFS/CNPQ Descaminhos do Viandante:
Espaço Nacional, Fronteiras e Deslocamentos na Obra de Antônio Torres.
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INTRODUÇÃO
Desde o modernismo, a literatura brasileira vem, com maior intensidade, relendo e
deslocando o discurso de formação política e sociocultural da nação. No primeiro momento,
como aponta Bernd (2003), este processo deu-se através da dessacralização, que corresponde,
segundo Glissant (apud BERND, 2003, p. 20), “a um pensamento politizado, equivalendo a
uma abertura contínua para o diverso, território no qual uma cultura pode estabelecer relações
com outras”. Ainda segundo a autora, este processo de dessacralização — junto com o
processo de sacralização — compõem uma espécie de binômio que caracteriza a formação da
literatura brasileira: “A formação da literatura caracteriza-se, pois, por uma espécie de
errância por movimentos alternados de predominância ora de forças sacralizantes, ora de
forças dessacralizantes” (BERND, 2003, p. 20).
A relação literatura brasileira e identidade nacional é flagrante na dinâmica de nossa
produção literária (PEREIRA, 1991, p. 3). Esta relação, como afirmou Cândido (1981, p. 23),
consubstancia-se a partir do arcadismo, quando nossa literatura se configura enquanto um
sistema articulado, relacionando, sob a ótica do racionalismo, as instâncias autor-obrapúblico. Esta relação, segundo Cândido, é marcada pela tensão dialética entre o localismo e o
cosmopolitismo, ou seja, entre a função sacralizadora e a função dessacralizadora. Estas
funções, por sua vez, serão intensamente tencionadas pela narrativa contemporânea.
Só bem recentemente começa[-se] a operar a síntese — ainda
inacabada — deste jogo dialético, associando o resgate dos mitos à
sua constante desmistificação, o redescobrimento da memória
coletiva a um movimento contínuo de textos, o que equivale a um
perseverante questionamento de si mesmo [...] (BERND, 2003, p.
20).
Neste processo recente de releitura, o imaginário contemporâneo vem deslocando as
imagens que fixam uma idéia de nação, buscando justamente este questionamento de si
mesmo, revelando os mecanismos ideológicos presentes na narrativa da identidade cultural. O
romance Meu querido canibal, de Antônio Torres, pode ser inserido neste processo de
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revisitação do discurso nacionalista, realizando um deslocamento que cria um espaço de
leitura em que são desveladas as diferenças no discurso de unidade nacional, pautado em
relações de poder entre as classes sociais (PEREIRA, 1991, p. 1).
Sob o foco de um narrador comprometido com a recuperação da memória indígena, o
romance traz à cena a problemática da representação nacional e, por intermédio da trama
histórico-ficcional, relê o discurso historiográfico oficial, tensionando-o e revelando, sob a
suposta idéia de unidade nacional, a tentativa de apagamento das diferenças.
Segundo Olivieri-Godet (2007, p. 1),
Em Meu querido canibal, narrativa que recorre largamente à
intertextualidade para reconstruir, num estilo ao mesmo tempo
dramático e paródico, a história do Rio de Janeiro no século XVI,
centrada no episódio da conquista da cidade pelos franceses (15551560), trata-se claramente de produzir um texto visando “corrigir”
uma imagem do índio Cunhambebe, marginal e marginalizada,
omitida ou deformada pela versão oficial da história, transformando
Cunhambebe em herói nacional. É um narrador apaixonado e
indignado que denuncia o apagamento do lugar do índio na história e
na sociedade brasileiras e que empreende a construção desse herói
marginal num tom polêmico e provocador que rasura as páginas da
história. O romance trilha um caminho percorrido por inúmeras
narrativas latino-americanas, o da resistência às representações
oficiais e muitas vezes eurocêntricas da história, uma espécie de antihistória construída a partir do ponto de vista dos vencidos.
Esta “correção” da imagem do índio, como aponta a autora acima, recorre muitas
vezes ao diálogo com outros textos, com outros signos, deixando explícito o caráter híbrido,
heterogêneo e alogêneo na narrativa torresiana, conforme nos aponta Seidel (2006, p. 137).
Neste sentido, pela heterogeneidade de formas e vozes que absorve e potencializa, Meu
querido canibal se enquadraria no que Roland Walter (2002) chamou de transwriting (em
português: trans-escrita) — termo utilizado por este autor no contexto da análise da produção
literária latino-americana e chicana.
Destarte, a trans-escrita, segundo Seidel (2006, p. 142-143), seria
[...] um tipo de escrita que se move por através de um espaço
intersticial dentro de e entre fronteiras, atravessando territórios
culturais compostos por múltiplas zonas de contato, esforçando-se
para ir mais além desse limbo cultural intermédio e assim tentar
mudá-lo. A “trans-escrita” representaria, dessa forma, um esforço na
direção do ato contínuo de des-escrever, reescrever o já antes escrito,
de descrever e escrever o novo a partir da experiência vivida nos
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distintos locais intermediários em constante processo de
transformação nos limiares ambíguos entre nações, regiões, culturas,
cosmovisões e identidades.
Destarte, como trans-escrita é que Meu querido canibal realiza o deslocamento das
imagens nacionais fixas, des-escrevendo e reescrevendo por entre o discurso que fixa a idéia
de nação, de unidade nacional e de identidade nacional. Devemos agora ver como este
processo se dá mais propriamente a partir da imaginação literária.
1 APORTES DE VIAGEM
Gaston Bachelard, no ensaio O ar e os sonhos — que põe em foco a imaginação
literária —, estabelece uma relação entre a imaginação e a mobilidade, afirmando que “o
vocábulo fundamental que corresponde à imaginação não é imagem, mas imaginário
(BACHELARD, 1990, P. 1). Pois a imaginação é a faculdade de deformar imagens “[...] é
sobretudo a faculdade de libertar-nos das imagens primeiras, de mudar as imagens” (Idem, p.
1). Ainda segundo o autor, “uma imagem que abandona seu princípio imaginário e se fixa
numa forma definitiva assume pouco a pouco as características de uma percepção presente”
(Idem, p. 1). O que nos interessa nessa relação entre a imaginação e a mobilidade é o
dinamismo que não permite que uma imagem se fixe numa forma definitiva. Por intermédio
do imaginário (individual e coletivo ao mesmo tempo), a imagem vai ser sempre algo aberto,
algo que está em processo.
O imaginário, portanto, desloca o conceito de identidade nacional, pois, como afirma
Stuart Hall (2005, p. 48), esta é “formada e transformada no interior da representação, isto é,
constitui-se como unidade discursiva, simbólica”. Hall desvenda o processo narrativo da
identidade nacional e demonstra que esta não está livre do jogo de poder, de divisões e
contradições internas de lealdade e de diferenças sobrepostas.
Imaginário e identidade, portanto, são dois processos que se constituem enquanto
abertura. O imaginário, na literatura brasileira contemporânea, caracterizar-se-ia como o pólo
que mobiliza as diversas imagens e identidades nacionais. Far-nos-ia perceber a identidade
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como processo, como movimento, como lugar de confluência do múltiplo e do diverso
(BERND, 2003, p. 28).
Roland Walter já nos assinalou, nas obras do autor aqui estudado e nas obras de João
Ubaldo Ribeiro,
a entre-condição ou o limiar da cultura e identidade brasileira, [um]
espaço intersticial [...] caracterizado por tensão e ambigüidade
precisamente porque representa o limite do “entre” da hegemonia,
uma zona híbrida “onde a construção de um objeto político que é
novo, nem um e nem outro”, significa a transcendência de polaridades
e a possibilidade de formular novos sistemas e ordens sociais
(WALTER, 2002, p. 11-12).
Neste espaço intersticial, por Bhabha denominado de inbetweenes (entre-lugar),
Antônio Torres instala sua narrativa, “lascando” o discurso oficial da história, desvelando,
sobre a homogeneidade do discurso historiográfico oficial, as heterogeneidades agentes na
cultura brasileira.
2 VIAGEM A MEU QUERIDO CANIBAL
O livro, Meu querido canibal (2000), do baiano Antônio Torres, narra a luta e a
dizimação indígenas da costa paulista e carioca no séc. XVI. É narrada a história de
Cunhambebe, do chefe da Confederação dos Tamoios — união dos povos que viviam ao
longo da costa para lutarem contra a dominação do conquistador português, em uma guerra
que ocorreu ao longo dos anos de 1565-67. Na obra, além disso, o autor faz uma leitura mais
acurada deste choque cultural entre portugueses e tupinambás, bem como ainda referindo
tangencialmente a presença dos franceses, enquanto aliados dos tupinambás e inimigos do
portugueses. Com esta obra, de forma geral, está-se dentro do que as teorias pós-coloniais têm
colocado como uma de suas ênfases de trabalho, notadamente, o descortinamento da
manipulação da história por parte do colonizador. Por intermédio dessa manipulação foi
possível fazer valer apenas um dos pontos de vista acerca desse choque cultural entre o
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colonizador e as culturas autóctones, o que tornou possível a omissão do genocídio de povos
inteiros1.
Dessa relação entre literatura e história como meios de representação social, nasce a
possibilidade de se desconfiar dos discursos hegemônicos, sobretudo o da unidade nacional. A
obra de Torres é dividida em três partes: I — O Canibal e os Cristãos, II — No princípio
Deus se chamava Monan e III — Viagem a Angra dos Reis.
Neste trajeto reflexivo, nosso foco centrou-se na terceira parte do romance: “Viagem a
Angra dos Reis ou: Não enterre meu coração nas curvas destas estradas, florestas e águas,
outrora de sonho e fúria”, que relata a viagem que o narrador faz, já no limiar do sexto século
do descobrimento do Brasil, “em busca das trilhas perdidas, trilhas por onde andara seu
querido canibal Cunhambebe”. Nesta seção, o narrador torna-se personagem de sua própria
narrativa, deslocando-a até si mesmo enquanto entidade discursiva. Ele (o narrador) coloca
em questão sua própria identidade, desvelando os processos discursivos que a constituem. Se,
nas duas primeiras seções do livro, mesmo que se implicasse, ainda o líamos como uma
entidade discursiva à parte, que, distante, seleciona os fatos que vai narrar; nesta última seção,
ele se torna objeto da própria narrativa, solapando o conceito de narrador do discurso
positivista da história oficial.
Isso nos revela o processo dialético que perpassa todo o romance. O processo que põe
em tensão permanente o discurso de unidade nacional e as diferenças costuradas por este
discurso. Este processo nos aponta a identidade como um processo contínuo de identificação,
como “algo que vive na tensão, em uma permanente incompletude” (BERND, 2003, p. 27).
Mostra-nos ainda que uma representação nunca se torna fixa se nasce de uma “ação
imaginante”, pois nesta a forma em que se apresenta um acontecimento artístico nunca
constitui apenas uma espécie de veículo para a transmissão de algum conteúdo que
independente dela pudesse existir. Pelo contrário, a forma incorpora o caráter híbrido sob
tensão da narrativa e expõe sua própria heterogeneidade sob aparente unidade. Comunicandonos suas ordenações, em Meu querido canibal a forma nos comunica sua razão de ser e seu
1
Acerca dos métodos de dominação, assimilação, aculturação e extermínio, especificamente neste contexto
dos tupinambás, veja-se interessante trabalho recente de João Adolfo Hansen (2006).
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sentido, num processo estético-dialético de revisitação da história indígena pelo imaginário
contemporâneo. A viagem narrada no capítulo é uma metáfora e nos sugere a mobilidade,
requisito fundamental para que uma imagem não se cristalize.
Se não há mudança de imagens, união inesperada das imagens, não há imaginação,
não há ação imaginante. Se uma imagem presente não faz lembrar uma imagem ausente, se
uma imagem ocasional não determina uma prodigalidade de imagens aberrantes, uma
explosão de imagens, não há imaginação. Há percepção, lembrança de uma percepção,
memória familiar, hábito das cores e das formas (BACHELARD, 1990, p. 1).
Consensualmente, criar é, basicamente, formar. Nós nos movemos entre formas
(imagens). Infelizmente, a maioria delas “abandona seu princípio imaginário e se fixa numa
forma definitiva, assume pouco a pouco as características da percepção presente”
(BACHELARD, 1990, p. 2).
É assim que a história indígena, recontada pela literatura, revela o esforço do sujeito
contemporâneo em reconhecer o outro, reconhecer a alteridade exterior, ao mesmo tempo em
que revela os paradoxos da sociedade ocidental. Como bem pontuou Todorov (1983, p. 245),
“os representantes da civilização ocidental já não acreditam tão ingenuamente em sua
superioridade”. Simultaneamente, o elemento indígena já não é tão visto como vítima. Para
deslocar a posição de inércia relegada ao índio e fazê-lo ocupar um lugar de anti-herói
moderno, mais humano, Antônio Torres traça no capítulo “Viagem a Angra dos Reis” um
trajeto que engloba desde os lugares outrora habitados pelos índios até os locais com fontes
historiográficas sobre os feitos e acontecimentos envolvendo os indígenas.
A narrativa da identidade passa pela narrativa da nação, pelo discurso historiográfico.
Já sabemos do apagamento que fez este discurso, ao longo de sua narrativa, das diferenças
que nos constituem. Em nossa história oficial, não consta nenhum herói índio ou negro.
Nossas datas históricas comemoram feitos do colonizador ou de seus descendentes. Só
recentemente vemos começar algumas iniciativas que mudem isso um pouco: a instituição do
dia da consciência negra, a introdução da história e da cultura dos afro-brasileiros nos
currículos escolares, etc. O discurso historiográfico oficial sempre teve uma função
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sacralizante, que tende à construção de uma identidade que circunscreve a realidade a um
único quadro de referências, a história dos vencedores, a do homem branco cristão europeu.
Relendo a historiografia brasileira, Antônio Torres opta por problematizar a visão do
índio como um herói humano. Para tanto, o narrador coloca em cena um discurso polifônico
mais simpático aos franceses que aos portugueses e que se valida pela incursão histórica
realizada em documentos de viajantes europeus, na terceira parte da narrativa, sobretudo, na
coleção Les vrais portraits, do francês e religioso André Thevet. Nesta obra, sobre o herói
Cunhambebe está destacado: “[...] foi hóspede de Villegagnon por trinta dias, com
todas as honras e pompas de chefe de Estado, de rei do Brasil [...]” (p. 30)2.
3 A HISTÓRIA E A FICÇÃO NAS TRILHAS DE CUNHAMBEBE
O primeiro capítulo da seção III do romance de Torres — “Em busca das trilhas
perdidas” — traz o relato do trajeto do narrador até a Rodoviária (ícone desta viagem ao
Brasil por se refazer) para iniciar o que ele chama de “programa de índio”: recompor as trilhas
de seu herói Cunhambebe. Este trajeto do narrador não é apenas um trajeto espacial, mas
espaço-temporal, pois ao mesmo tempo em que narra cronologicamente o trajeto do narrador
até a Rodoviária, efetua um recuo temporal. Neste trajeto, o narrador desloca as imagens
nacionais, revelando a “colcha de retalhos” sob a idéia de unidade nacional, deslocando o
discurso historiográfico oficial, porque mobiliza o imaginário através da anacronia
“passado/presente”, fazendo falar, nas suas entrelinhas, a diferença que tentara apagar. O
segundo parágrafo do capítulo já nos evidencia isso:
Muita água rolou debaixo das pontes destes rios e mares, pensa o
homem que saiu de casa nessa manhã ensolarada, deixando para trás
os alfarrábios da sua consumição — pilhas aos montes de páginas
ensebadas —, nessa perquirição insana feita de tralhas, atrás da
história das batalhas perdidas, datas exatas, nomes corretos, mitos,
fábulas. Em busca, principalmente isto, da história dos que aqui
estavam quando os brancos chegaram, e com começo, meio e fim. Até
aqui, só tem encontrado retalhos, fragmentos, e sempre com a
indefectível ressalva: “presumivelmente foi assim”. Foi? Não foi? Às
2
Todas as citações do livro de Antônio Torres serão indicadas tão somente pelo número da página.
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vezes chega a parecer que os índios nem existiram. Vai ver foram só
um delírio dos europeus. Personagens de suas ficções (p. 117).
Copacabana (outro ícone do cosmopolitismo) é o “tropos” de onde o narrador começa
seu deslocamento, brincando com um dos elementos que, segundo Chauí (2000), constitui o
mito fundador da nação: a consagração da natureza. Copacabana, enquanto paraíso terrestre
referendado pelo mito fundador é colocado como palco de embates desde os quinhentos anos.
Se antes o embate era travado entre colonizadores e colonizados, agora o é entre
traficantes e traficantes, traficantes e Estado.
Copacabana, bairro da cidade do Rio de Janeiro, funciona como um “tropos” dialético,
no sentido de por em tensão dois pólos: a cidade como sentido de lugar, definido por Marc
Augé (apud GOMES, 1999, p. 223), como identitário, relacional e histórico; e a cidade, como
espaço de desenraizamento do sujeito que aponta para a desconstrução do sentido de
nacionalismo, como nos afirma Gomes (Idem, p. 130):
[Os] cenários urbanos e rarefeitos [...] apontam para a desconstrução
do sentido de nacionalismo, marcam um número expressivo de
narrativas contemporâneas que sinalizam a reação a qualquer
perspectiva de se estabelecer uma identidade nacional una e
inquestionável para a literatura, a partir das cidades.
A primeira parada do narrador é na esquina entre a rua chamada Sá Ferreira com outra
chamada Bulhões de Carvalho. “Já com uma nova pergunta na cabeça: quem foram, afinal,
estes homens chamados Sá Ferreira e Bulhões de Carvalho? E por que não havia nomes de
índios nas ruas da cidade dos tupinambás?” (p. 119). A esquina é a metáfora do deslocamento,
lugar de cruzamentos, um entre-lugar em que a memória do colonizador que permanece no
nome das ruas é resgatada pelo discurso do narrador, não para deixá-la intacta, mas para delas
fazer aflorar a memória do colonizado. O que esconde a referência à esquina no trajeto do
narrador? Talvez a proposta de pensar a identidade como uma zona aberta ao múltiplo e o
diverso, como base da (re)elaboração identitária.
Outro trecho que nos ilustra o trajeto espaço-temporal do narrador é quando, no táxi,
ele entra na Avenida Princesa Isabel e pára no primeiro sinal. A avenida, atulhada de
vendedores de bugigangas, recebe o nome da Princesa que entrou para a história do país por
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ter sido quem decretou a abolição da escravatura, a que “libertou” os escravos. Aí o narrador
brinca e insere seu relato que relativiza o discurso da história oficial e tensiona o presente:
Livres, os escravos invadiram as ruas do Rio de Janeiro, sem saber o
que fazer de si mesmos. Agora, tanto tempo depois, as ruas não
estariam atulhadas de pretos, mulatos, morenos, amarelos e brancos
em condições semelhantes? (p. 123).
Seguindo seu trajeto, o narrador passa pela enseada de Botafogo. Este relato segue-se
ao relato do assalto dos turistas franceses, por um falso taxista. Estes dois relatos põem em
tensão dois elementos da construção identitária da nacionalidade brasileira: a consagração da
natureza através da identificação do Brasil com o Paraíso Terreal, conforme assinalou Sergio
Buarque de Holanda, em Visão do Paraíso (2004), e a cordialidade do povo brasileiro. Nos
vemos e nos mostramos como um país que é um “paraíso tropical”, lugar de maravilhas
naturais. Mas neste “paraíso tropical” a violência a cada dia se torna mais banal. Na narrativa,
turistas que chegam para aproveitar o éden abaixo da linha do equador são seqüestrados,
assaltados e mortos. Este evento, portanto, coloca em cheque dois clichês caros para o
discurso hegemônico de nacionalidade brasileira: o primeiro, de que vivemos em um paraíso;
e o segundo, de que o brasileiro é um povo cordial. Afinal, que cordialidade há em usar o táxi
como meio para assaltar turistas e matá-los?
O tema paradisíaco e sua associação à imagem do Brasil é longamente explorado por
Sergio Buarque de Holanda. Em Visão do Paraíso, o autor trata, principalmente, da formação
dos motivos edênicos no descobrimento e na colonização do Brasil, justapondo, para tal,
lendas e verdades transfiguradas pelo imaginário dos séculos XV, XVI e XVII, o autor analisa
como a busca pela “idade de ouro”, utopia recessiva, coloca, nas novas terras, a ocidente, o
paraíso terreal: “A idéia de que do outro lado do Mar Oceano se acharia, se não o verdadeiro
Paraíso Terreal, sem dúvida um símile em tudo digno dele, perseguia, com pequenas
diferenças, a todos os espíritos” (HOLANDA, 2004, p. 184).
O narrador segue, então, pelo Flamengo, onde há um monumento erguido em
homenagem a Estácio de Sá, do qual contam a história de que foi flechado no rosto e morreu
um mês depois. Estácio de Sá é lembrado como herói. O monumento em sua homenagem
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funciona como elemento sacralizante da identidade cultural, construída através da ótica dos
vencedores. Mas aí o narrador opera seu deslocamento: “Bem pelo visto, ou melhor, pelo que
não se vê... Aqui também os mais velhos do lugar tiveram sua história empurrada para
debaixo de um tapete asfáltico” (p. 139).
O segundo capítulo da seção, “Programa de índio”, que relata o trajeto do narrador até
Angra dos Reis, em busca de refazer as trilhas do querido canibal, traz uma epígrafe com o
poema de Adriano Espínola, o qual opera também um deslocamento espaço-temporal e nos
põe diante da tensão apagada pelo discurso da história oficial: “Atenção, não se
abale:/assassinato e roubo/há 500 anos”.
Enquanto segue seu trajeto espaço-temporal na viagem de ônibus, o narrador, jogando
com a intertextualidade, desvela o processo de apagamento das diferenças, relatando o
discurso sobre a origem de Angra dos Reis:
[...] Afinal, por aqui a história que se conta começa assim:
Angra dos Reis fica na baía de Ilha Grande, no litoral sul do Estado do
Rio de Janeiro, com mais de duas mil praias, centenas de ilhas, rios,
cachoeiras e o verde do mar. Foi descoberta pelo navegador português
André Gonçalves em 1502. Angra quer dizer “pequena baía”. Reis
porque foi descoberta no dia dos Santos Reis Magos (p. 151).
O terceiro capítulo, “Nenhum índio nas ruas”, relata a chegada do narrador a Angra,
sob um sol nauseante, e o encontro, na Casa de Cultura, com um personagem que busca
reescrever/reimaginar a memória perdida de Cunhambebe. Na primeira parte, ele joga com o
extermínio indígena e sua própria identidade, formada também pelo fracasso dos indígenas.
Sob o sol escaldante, constata: “nenhum índio nas ruas” (p. 157), mas retrata-se: “tem um sim
senhor. Você. A errar por ruas selvagens como um espectro tupinambá, um herdeiro de seus
fracassos” (p. 157). Na segunda parte, o narrador situa a cena na “Casa de Cultura”. É lá que
ele descobre que “nem toda história está perdida”. Em seu contato com Délcio, descobre que
a cidade está preocupada em “resgatar” a memória dos que viviam antes da chegada dos
portugueses. Esta preocupação com o “resgate da memória” do índio abre espaço para o
questionamento da memória preservada pela história oficial. Junto com a cena anterior, revela
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o que estamos discutindo ao longo deste trabalho, a tentativa de apagamento da diferença,
pelo discurso da história oficial, na construção da identidade nacional.
O capítulo “A expedição”, narra as andanças do narrador nas trilhas de seu querido
canibal. O título do capítulo sugere novo movimento, processo. A busca pela trilhas de
Cunhambebe é a reescrita regressiva de uma memória que não foi preservada pela história
oficial. Concomitantemente, é discutir o problema da alteridade, entendendo os mecanismos
que forjaram uma identidade nacional una, etno e eurocêntrica; e perceber a identidade como
lugar de confluência do múltiplo (BERND, 2003, p. 28). Portanto, algo que vive na tensão.
A querela para saber por que o lugar que todos conheciam como Frade também era
chamado de Vila de Cunhambebe é ilustrativa neste sentido. Há nela a memória do branco,
autorizada pelos livros de registro oficiais e a memória do índio que não foi registrada. Os
dois topônimos se entrecruzam em tensão, como em tensão se constituem estes dois sistemas
simbólicos na constituição da identidade: um, a história dos vencedores que se estabelece
tentando apagar as diferenças; o outro que resiste sob um “tapete” para o qual foi jogado, se
inscrevendo nas entrelinhas do discurso da história oficial.
Após releituras da história da colonização do Brasil, apresentando, como que em
flashes, alguns fatos significativos, embora pouco conhecidos, da negação da cultura indígena
e que fazem parte do passado e do presente nacional, o narrador, no último capítulo da seção e
do livro, narra-nos a declaração de uma autoridade portuguesa em sua chegada ao Brasil:
“Não vamos discutir História. Isto será perda de tempo”. Como bem nos lembra o narrador,
tal atitude nos lembra a atitude dos jesuítas com uma espada na mão e uma cruz na outra.
Discutir a história é discutir o processo da formação identitária brasileira, abrir-se à
confluência do múltiplo. E tencionar o discurso que tenta apagar as diferenças em vista de
uma certa unidade nacional, produzida, em nosso caso, sob a ótica dos vencedores. “Ora, pois,
pois. Perda de tempo para quem, cara-pálida?” (p. 183).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Meu Querido Canibal se insere no contexto das narrativas que buscam interrogar as
relações entre a literatura e a história. Segundo Olivieri-Godet (2007, p. 1): “O romance trilha
um caminho percorrido por inúmeras narrativas latino-americanas, o da resistência às
representações oficiais e muitas vezes eurocêntricas da história, uma espécie de anti-história
construída a partir do ponto de vista dos vencidos”. O que nos leva a afinar o romance com o
pensamento de Homi Bhabha, segundo o qual “as culturas nacionais estão sendo produzidas a
partir da perspectiva dos vencidos” (BHABHA, 2005, p. 21).
A denúncia explícita ao apagamento das diferenças e o trabalho da imaginação e
reescrita da memória do vencidos faz da narrativa um tropos de tensão. Enquanto sistema
simbólico, de intercâmbio de sentidos, o romance produz um espaço para pensarmos a
narrativa da identidade cultural brasileira como diversa e múltipla, na qual confluem diversos
matizes culturais numa permanente troca de sentidos.
O entrecruzamento de ficção e história no romance é o que constrói este espaço de
confluência do múltiplo e do diverso. É este entrecruzamento que faz aflorar das teias do
discurso historiográfico oficial a memória dos vencidos. Como afirma o narrador, da história
de Cunhambebe:
até aqui, só tem encontrado retalhos, fragmentos, e sempre com a
indefectível ressalva: “Presumivelmente foi assim”. Foi? Não foi? Às
vezes chega a parecer que os índios nem existiram. Vai ver foram só
um delírio dos europeus. Personagens de suas ficções (p. 117).
Meu querido Canibal convida-nos, com um novo olhar ideológico, a uma reflexão
sobre a narrativa da história oficial, sobre as imagens que fixam uma idéia de nação, que
constituem uma identidade cultural, para nos revelar o que afirma Stuart Hall (2005, p. 65):
“As identidades nacionais não subordinam todas as outras formas de diferença e não estão
livres do jogo de poder, de divisões e contradições internas de lealdade e de diferenças
sobrepostas”.
Meu querido Canibal faz aflorar, das teias do discurso da unidade nacional, as
diferenças que este discurso busca costurar numa única identidade, sobretudo porque o seu
narrador, em vista do apagamento que se operou em torno da identidade indígena, canibaliza
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antigos relatos históricos e narrativas de viagens, ou busca, pelo Rio de Janeiro atual, a
memória coletiva de um povo que integra a problemática da identidade brasileira.
REFERÊNCIAS
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.
BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento. São
Paulo: Perspectiva, 1990.
BERND, Zilá. Literatura e identidade nacional. 2. ed. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2003.
CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981,
v. 1.
CHAUÍ, Marilena. Brasil: o mito fundador e a sociedade autoritária. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2000.
GOMES, Renato Cordeiro. Cidade e identidade nacional na literatura brasileira
contemporânea. In: ANDRADE, Ana Luiza et al. (Org.). Leituras do ciclo. Florianópolis:
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