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Urbanistas e Fronteiras: Attílio Corrêa Lima
Resumo
A escolha de Attílio Corrêa Lima como protagonista deste artigo justifica-se pelo fato de ter sido um
entre os pioneiros profissionais brasileiros com formação no campo do urbanismo. Arquiteto pela
Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro (1920–1925), Corrêa Lima diplomou-se pelo Institut
L’urbanisme de L’Université de Paris (1932), sob a orientação de Henri Prost. O tema de sua tese
centrava-se em um plano de ordenamento e de extensão de Niterói, denominado Avant-Projet
d’Aménagement et d’Extension de la Ville de Niterói au Brésil. Vítima de um acidente de avião,
Corrêa Lima teve sua carreira promissora interrompida em 1943. Apesar de sua vida breve, sua
atuação profissional foi profícua, tendo uma participação significativa junto aos que configuraram a
geração realizadora da passagem entre a tradição Beaux Arts e o modernismo e a afirmação do
urbanismo no Brasil. Nesse contexto de transição, a tese defendida pelo arquiteto, na primeira
instituição de ensino do urbanismo na França, constitui um documento singular para o estudo desse
campo de atuação, em pleno processo de instituir-se de forma autônoma. Esse trabalho, escrito em
francês, não foi traduzido para o português, razão por que sua leitura ficou restrita a pesquisadores
que dominam o idioma. Este artigo apresenta e discute a tese defendida por Corrêa Lima, porque
corporifica um documento imprescindível para a história do urbanismo no Brasil, ao mesmo tempo em
que testemunha as discussões, os métodos e os processos empreendidos pelo Institut Français d’
Urbanisme de Paris no ensino do urbanismo como ciência.
Institut Français d’Urbanisme de Paris (IFU) e Henri Prost
O Institut Français d’Urbanisme de Paris suscita interesse aos historiadores do urbanismo no Brasil
desde sua criação à atualidade, como atesta o recente seminário ocorrido em Salvador, em 2009, por
iniciativa da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia e da instituição francesa.
Esse evento, intitulado Os Desafios do Urbanismo na França e no Brasil, objetivou estreitar laços de
colaboração, ao mesmo tempo em que comemorou os noventa anos da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Bahia e do Institut Français d’Urbanisme de Paris.
Embora a história do instituto tenha sido tratada por estudiosos como Ramón Gutiérrez (2007),
retomá-la no espaço deste texto cumpre o propósito de contextualizar as circunstâncias em que se
deu a formação de Corrêa Lima como urbanista.
Os anos iniciais do século XX foram privilegiados no que diz respeito à profusão de debates e ideias
sobre a disciplina que se estruturava de forma autônoma. As utopias do século anterior, as reformas
de Paris, as contribuições dos higienistas, a visão hawardiana da cidade-jardim, a ambição da cidade
regional de Gueddes e as posições de Camilo Sittes são demonstrativas do cabedal acumulado
originário das reações provocadas diante do extraordinário fenômeno da cidade do século XIX.
Particularmente na Franca, formou-se, a partir da Section d'Hygiéne Sociale (1907) do Musée Social
(1895), a Societé Française des Urbanistes (1911), cujos objetivos eram reunir documentação
técnica, estabelecer vínculos com instituições semelhantes no exterior, participar de exposições,
estudar realizações, enfim, constituir-se em um fórum de debate e centro de informação e divulgação
do urbanismo.
A Primeira Guerra Mundial significou uma interrupção na Europa de experimentações e da
continuidade de debates, porém, após seu término, a habitação social, a expansão das cidades e dos
meios de transporte, assim como o oferecimento de equipamentos, enfatizaram a criação de
especialidades técnicas e políticas que pudessem responder a demandas tão imperiosas. Nestas
circunstâncias favoráveis, Marcel Poëte e Henri Sellier criaram, em 1919, a École des Hautes Etudes
Urbaines. A principal característica dessa escola era a variedade de disciplinas que a compunham e
sua vinculação aos Institutos de História, Geografia e Economia Urbana.
A formação pretendida para os urbanistas era abrangente. O corpo de disciplinas constituía-se de:
L’Evolution des Villes (Marcel Poëte); Organizasion Sociales
(Edouard Fuster); Organisation
Administrative (Gaston Jèze); Organization Economique (Auguste Brugeman). O curso completava-se
com um ciclo de conferências que vale a pena listar, pela sugestão do conteúdo que deixam entrever:
Hygiène de l’ Habitation (M. Guilhaud); Organisation des Services Publics dans La Banlieue
Parisienne (Henri Sellier); Question Législatives Actelles sur l’Organisation des Capitales (Joseph
Barthèlèmy); L’Autonomie Communale à l’Etranger, Le Maintien de l`Ordre dans La Cité (Louis
Rolland); L’Art de l’Ingénieur Municipal (Françoi Sentenac); Le Municipalisme (William Qualid).
Pelo nome das matérias oferecidas aos estudantes de urbanismo, vê-se como veiculavam as ideias
que estavam no centro dos debates na passagem do século XIX para o XX, tais como: a expansão
descontrolada da cidade liberal; as tentativas de controle em bases legais e administrativas e as
questões relacionadas à salubridade, por exemplo. Um dos meios de difusão da produção
institucional era sua própria revista – La Vie Urbaine – e outro, muito eficaz, o interesse de estudantes
estrangeiros. Em 1924, a École des Hautes Etudes Urbaines integrou-se à Sorbonne, tornando-se o
Institut d’Urbanisme de Paris, ligado à Faculdade de Direito. A primeira fase da Antiga École e do
então Institut reverbera as grandes linhas de orientação do período, definidas por projetos urbanos
que não dissociavam arquitetura e urbanismo, no viés dos grandes projetos urbanos ligados em parte
à monumentalidade da tradição haussmaniana e suas derivações no City Beautifull, à interpretação
francesa da cidade-jardim, à tendência ao zoneamento e à alteração de escalas de intervenção da
cidade para a região (FREY, 2004).
Depois da Segunda Guerra Mundial, sob a direção de Pierre Lavedan, o Institut definiu com mais
clareza a estrutura do curso de urbanismo, embora mantivesse a natureza daquele inaugurado pela
École des Hautes Etudes Urbaines. A grande novidade era a aproximação com a Geografia Urbana.
Esse período corresponde à institucionalização do urbanismo modernista e à aproximação do Institut
com o Ministère de L’Equipement, criado em 1966. Nos anos de 1970, o caráter tecnocrático e
burocrático da instituição valeu as críticas de Henri Lefèvre (COUDROY DE LILLE, 2004). A partir
desse período, outra página da história do urbanismo começou a ser escrita. Não convém, no espaço
deste texto, prosseguir a revisão histórica do Institut Français de Urbanisme de Paris, tendo em vista
que o propósito dessa revisão era situar e esclarecer o ambiente de formação de Attilio Corrêa Lima.
Destarte, dedicam-se algumas linhas ao orientador da tese do protagonista dessa história.
O arquiteto e urbanista Henri Prost, laureado com Prix de Rome em 1902, foi cofundador da Societé
Française des Urbanistes (SFU), juntamente com os arquitetos D. A. Agache, M. Auburtin, A. Bérard,
E. Hébrard, L. Jaussely, A. Parenty e o engenheiro e paisagista C. N. Forestier. A esses profissionais
e a sua atuação na associação mencionada deve-se a elaboração do texto que compôs a primeira lei
sobre o planejamento, extensão e embelezamento das cidades (Lei Cornudet de 1919). Dos vários
objetivos da SFU, destacava-se o de divulgação do trabalho do urbanista. Para tal, organizava
eventos, como o Congrès International de l'Urbanisme et d'Hygiène Municipale, realizado em
Strasbourg em 1923, que contou com a participação do Marechal Lyautey, personagem
representativa do colonialismo francês na Argélia e no Marrocos, e das ações dos urbanistas
franceses na África, com destaque para o papel de H. Prost.
As incursões de Prost pelo Oriente datam de 1902. O Prix de Rome incluía, no conjunto de suas
atividades, uma viagem ao Oriente, em que o arquiteto conheceu Bursa e Istambul. A Académie
Française d’ Architetcture de Paris e seu acervo testemunham o fascínio exercido por essas cidades,
expresso nos desenhos de seus monumentos realizados por Prost. Era época do colonialismo
europeu e a atuação dos urbanistas foi intensa nas colônias, como demonstrado por Peter Hall
(1988).
Entre os trabalhos de Prost relacionam-se os planos de Casablanca (1917-1922), de Fez, de
Marrakech, de Rabat (1914-1922), de Argel (1932-1939) e de Istambul (1936-1951). Somam-se a
estes os que foram realizados no território francês: da Costa de Varoise (1922), para a região de
Paris, em parceria com Pierre Remaury e Jean Royer (1928-1935) e de Metz (1928-1930).
Nos estudos de Frey (2004), os planos urbanísticos de Prost realizados nas colônias, em especial no
Marrocos, caracterizavam-se por uma abordagem indissociável da arquitetura, possibilitando a
construção de uma paisagem urbana controlada em seus menores detalhes. Nas palavras do autor:
O poder político forte e esclarecido de Lyautey na definição dos programas devia, assim, encontrar seu
correspondente em um urbanismo projetando cidades novas sobre terrenos desimpedidos segundo o espírito
de desenvolvimento moderno das atividades e das instituições, mais que de um habitat fragmentado entre um
patrimônio levado em consideração, mas posto um pouco a distância de uma modernidade colonial
preferencialmente reservada a uma minoria de privilegiados. O que não impede a essa arquitetura de estilo
deliberadamente franco-marroquino de ser um dos elementos essenciais de uma composição monumental, que
observa tanto os alinhamentos e delineamentos topográficos de um espaço público margeado de fachadas e
pontuado de jardins e do parcelamento e organização dos quarteirões a construir segundo uma estética
controlada por arquitetos, que assumiam o papel de verdadeiros colaboradores. O próprio Prost sublinhará o
entusiasmo e a continuidade da ação dos arquitetos de sua equipe, como aqueles que colaboram para a
planificação que ele orquestrava. O urbanismo era, então, não somente impensável sem a estética
arquitetônica supondo um caderno de encargos urbanísticos que a levasse em consideração, mas lhe
atribuindo o papel de participante de uma modernidade do espaço e dos edifícios públicos, uma espécie de
1
vitrine da modernidade. (FREY, 2004, p. 1).
As experiências na costa francesa, todavia, não se realizaram semelhantemente às coloniais. Na
avaliação do mesmo autor, a ênfase recaía em questões paisagísticas e de circulação. Diante de
jogos de poderes e interesses de uma sociedade complexa, livres de forças coloniais coercitivas, o
imprescindível era proteger, sob a égide do Estado, o domínio público da ação de iniciativa privada.
Porém, não se podia esperar que esse Estado fosse neutro e suficientemente eficaz no exercício do
controle do espaço público. Esta situação repetiu-se no plano para a região de Paris. O ponto de
partida seria superar a condição da capital como uma cidade intramuros, cuja dimensão monumental
se diluía na medida em que se atingiam suas portas, ausentando-se numa periferia informe e
inexpressiva. O plano de Prost alicerçava-se na definição de eixos de circulação estruturadores que
também permitissem uma organização da cidade em grandes zonas funcionais extensíveis. Todavia,
aos eixos competia outra função que não apenas o da fluidez da circulação urbana, posto que
deveriam propiciar uma qualificação da periferia parisiense:
1
Tradução livre.
Para o valor simbólico de certos lugares, nada substitui uma visão de conjunto atenta à monumentalização dos
grandes eixos, a recomposição de uma centralidade a partir de sítios notáveis das comunidades da periferia,
assim como a de preservação de vastas zonas verdes. O plano de Prost para a aglomeração parisiense
comporta esses diversos aspectos do planejamento. (FREY, 2004, p. 3).2
O plano de Istambul merece algumas considerações. Prost foi convidado por Atatürk, fundador da
República turca, a desenvolver um plano para Istambul. A escolha de Henri Prost deveu-se ao fato
de o plano apresentado demonstrar seu deslumbramento diante da posição geográfica da cidade –
articulação entre Ocidente e Oriente –, de seu passado bizantino, cristão e otomano (AYDEMIR,
2008).
Segundo Aydemir (2008), Istambul em 1934 era formada por três partes: a cidade velha e os dois
lados da Corne d’or – Üsküdar e Kadıköy. Em cada uma dessas partes, o tecido habitacional era
obstruído pelo industrial, que crescia sem controle e tendia a atingir as margens dos rios da Corne
d’or e do estreito de Bósforo. Entremeados a esses contextos, encontravam-se os valiosos
monumentos da cidade. Para assumir a difícil tarefa de elaborar um plano para tão complexa
situação, Prost transferiu-se para Istambul e nela viveu por dezesseis anos (1935-1951).
Na percepção de Işık Aydemir (2008), as linhas gerais do plano de Istambul decorriam da decisão do
arquiteto de salvaguardar o perfil da cidade. Para tal, seria necessário desobstruir o entorno dos
monumentos e, ao mesmo tempo, garantir que pudessem ser vistos a distância. Pela primeira vez, a
fotografia área foi utilizada pelo urbanista como fonte de informação para a concepção do plano.
Como esclareceu Frey (2004), esse tipo de fotografia havia contribuído nos trabalhos realizados em
Marrakech, porém não como um dado precedente com a função de informar sobre a morfologia da
cidade com seus quarteirões e interiores, mas constituindo-se como fundo para o desenvolvimento do
plano. Um levantamento das condições sanitárias da população foi realizado e, a partir dele, Prost
pretendeu estabelecer uma relação entre a morfologia social e espacial da cidade, trabalho que para
Frey não teria decepcionado Maurice Halbwachs.
Partindo da ideia de conservação das riquezas artísticas da cidade, uma legislação foi elaborada
limitando a três pavimentos qualquer edifício construído acima da cota 40, o local onde se encontrava
a maioria dos monumentos da cidade. Esclarece Aydemir (2008) que outra decisão foi tomada para
garantir o skyline da cidade. Trata-se da conservação da área dos palácios romanos, compreendidos
entre Santa Sofia, o hipódromo, a pequena Santa Sofia, as muralhas de Sérail e Topkap, e do mar de
Mármara – esse sítio recebeu a designação de zona arqueológica.
A questão que se apresentou ao urbanista era a interligação das três partes que compunham a
totalidade de Istambul. A solução proposta constituía-se na abertura do maior número possível de
2
Tradução livre.
vias sem que, ao mesmo tempo, afetassem o rico patrimônio urbano e possibilitassem a expansão
futura da cidade.
O plano, em sua versão final, apresentou-se em duas partes: a velha Istambul e Beyoğlu. As
referências eram a situação do porto, a definição do traçado de circulação em relação à ponte e as
zonas residenciais. Vias à beira-mar, uma atravessando o Bósforo, foram propostas. Outras vias
foram pensadas para ligar os cumes das colinas. As obras de arte compreendiam não somente as
vias, mas a construção de túneis, de viadutos, de grandes parques e de praças. A sofisticação e a
magnitude do plano para Beyoğlu podem ser entrevistas no programa do parque número 2 (Aksim),
que contava com um teatro ao ar livre, um palácio de esportes, espaços para exposições e uma
praça em frente ao mar para recepção de hóspedes ilustres (AYDEMIR, 2008, p. 109). A Velha
Istambul, graças ao plano de Prost, pôde ser preservada, pois tornou a área compreendida no raio de
500 metros do entorno das muralhas como non aedificanti.
Cabem ainda algumas palavras sobre Henri Prost antes que o foco deste artigo se desloque para a
tese de seu aluno Attílio Corrêa Lima. Como professor, as contribuições de Prost ao Institut Français
d’Urbanisme são referidas como mais técnicas que teóricas, pois sua atuação situava-se no conjunto
das matérias com base nas ciências exatas. Seus escritos, pejorativamente classificados de
littérature grise, raramente foram publicados e, atualmente, fazem parte do acervo da Académie
d’Architecture. No esclarecedor trabalho de Jean-Pierre Frey, Prost é apresentado como uma
personalidade discreta, cuja concepção de urbanismo sustentava-se em sua dimensão de trabalho
coletivo de importância social. Sua atuação, como professor no IFUP, foi, várias vezes, interrompida,
pelas longas permanências nos países onde atuava. Os trabalhos de seus alunos e as anotações
feitas para os cursos permitem uma ideia de Henri Prost, o professor, como apontado por Frey:
Entre os alunos, os mais conhecidos em uma quinzena tendo proximidade direta com ele, em função de suas
diplomações, estavam: André Gutton, Jean Lebreton e o brasileiro Attílio Corrêa Lima. Todavia, encontramos as
anotações de cursos de um arquiteto-urbanista de nome Benoît Cornesse [...]. Suas anotações, particularmente
cuidadosas e escrupulosas, feitas para todos os cursos que realizou, mostram claramente que Prost, a partir de
múltiplos exemplos, apresentados por meio de uma iconografia apropriada, distinguia a diferença entre a
organização geral da cidade com base nos traçados e organização das vias, que é do domínio do urbanista, e a
organização dos “blocos a construir”, que julga pertencer ao domínio do arquiteto. Nota-se: “O urbanista dá o
trabalho ao arquiteto sob a forma de loteamento, de regulamentação que um funcionário aplicará”. Portanto,
nenhuma confusão nos papéis, mas preocupação de se dirigir de maneira clara aos construtores. Os problemas
de circulação, de higiene e de beleza, considerados como os propósitos essenciais do urbanismo, encontrarão
as soluções sempre adaptadas à topografia, à natureza geológica, aos ventos dominantes, da mesma forma
que ao patrimônio e à paisagem tanto física como cultural caracterizando um sítio ao mesmo tempo urbano e
natural. Esses principais elementos da composição urbana caracterizarão tanto os estudos preliminares como
os projetos de estudantes, às vezes diretamente associados as suas atipicidades de práticas. (FREY, 2004, p.
80).3
3
Tradução livre.
Niterói, a versão de Attílio Corrêa Lima
A tese de Corrêa Lima – Anteprojeto de Planejamento e Extensão da Cidade de Niterói – divide-se
em duas partes. A primeira compreende os capítulos “A terra”, “O homem” e “A cidade”; a segunda,
“Niterói considerada como extensão do Rio de Janeiro”, “O traçado geral”, “O zoneamento”,
“Sugestões para a regulamentação e loteamento” e “Os transportes”. A lógica de construção do
trabalho apoia-se na apresentação do objeto, na identificação dos problemas e na apresentação das
soluções. A primeira parte compreende: 1) a descrição geográfica do lugar, com informações sobre o
tamanho de superfície da comunidade, temperatura média, altitude, limites, direção dos ventos
dominantes, aspectos topográficos e geológicos do sítio, as conexões com outros municípios; 2) a
descrição populacional, mostrando sua curva de crescimento, e também as condições sanitárias,
relacionando natalidade e mortalidade a partir do Index Vital; 3) a descrição histórica da cidade,
enfatizando seus vínculos com a capital federal.
O trabalho apresenta, logo em seu início, a solução desenhada pelo arquiteto para a então capital do
estado do Rio de Janeiro. Nas páginas seguintes, uma imagem aérea, obtida pela montagem de uma
série de fotografias realizadas pelo Serviço Geográfico Militar brasileiro, supõe os procedimentos
metodológicos aprendidos no IFUP e relacionados às experiências de Prost no Marrocos. Em outras
palavras, essa montagem fotográfica constituía a base para o desenho do novo plano para a cidade.
A principal chave do plano de Corrêa Lima é a consideração da cidade de Niterói como extensão da
capital federal dos anos de 1920. Veja-se como esta visão se explicita:
A cidade de Niterói, além de seu desenvolvimento próprio, deveria ter recebido o excesso de população do Rio
de Janeiro, o que não cumpriu devidamente, em razão de seu sistema de transporte marítimo, bem feito, mas
que não é mais suficientemente eficaz para uma população de dois milhões de habitantes (Rio e Niterói).
De acordo com os estudos do Dr. Alpheu Diniz, ao se traçar círculos concêntricos em torno do centro comercial
do Rio, o círculo que toca o limite da zona urbana dessa cidade atinge e envolve a zona urbana e suburbana de
Niterói, o que comprova a aproximação das duas cidades, apesar delas manterem uma relação como se
fossem muito mais distantes.
Uma ligação mais rápida e direta resolverá esta questão, colocando Niterói em seu justo lugar. A substituição
do sistema de transporte descontínuo por um sistema contínuo irá direcionar para Niterói o excesso de
população do Rio, que encontrará nesta cidade lugares maravilhosos de calma para o repouso ao invés de se
afastar para o interior do Distrito Federal.
Esta ligação é o problema capital a ser resolvido para descongestionar o Rio e para desenvolver Niterói.
4
(LIMA,1932, p. 35, sem grifos no original).
A partir dessa premissa, o urbanista propôs a conexão das duas cidades, discutindo o melhor meio
para fazê-la. As possibilidades elencadas compreendiam a construção de um túnel atravessando o
4
Tradução livre.
mar ou de uma ponte. A escolha recaiu sobre essa última, e os argumentos que a corroboram são de
ordem econômica, de satisfação, conforto e salubridade:
Sob o ponto de vista social, é indiscutível que a ponte é superior. Nada mais agradável que atravessar depois
de um trabalho cansativo um lugar onde se recebem as brisas frescas e puras do alto-mar, ao mesmo tempo
em que se usufrui do panorama maravilhoso, olhando o fantástico espetáculo que apresenta o pôr do sol por
detrás das montanhas do Rio. Nenhuma dúvida sobre a superioridade da ponte, mesmo que sua construção
custe um pouco mais caro.
O contrário apresenta-se para o túnel: o homem, depois de seu trabalho, deve ainda sofrer essa punição –
regularmente todos os dias, durante alguns minutos, ele força seus pulmões, já mal arejados durante sua
permanência na cidade empoeirada, para respirar o ar confinado de um túnel que os sistemas mais
aperfeiçoados de aeração não impedirão de ser insalubre...
[...]
Sobre o mar, quase nenhum germe microbiano e em alto-mar, nenhum.
Outras experiências nos mostram que, sobre 600 germes inspirados, somente 1 é rejeitado. Os outros
permanecem colados na laringe. Diante do exposto, é necessário constatar que só tem dois meios para
combater os germes do ar: a luz e a ventilação. No nosso caso, a primeira não existe e a segunda concentra,
em um fluxo, todas as impurezas do ar, que o homem aspira. Pode parecer que essas são considerações
exageradas, atingindo o sentimentalismo, e que elas podem ser desconsideradas diante da importância
econômica do empreendimento. Mas essas considerações, sob o ponto de vista da higiene, vinculam-se à
questão econômica. O clima da região é quente e úmido, seus habitantes estão sujeitos à tuberculose, os
coeficientes dessa doença atingem níveis muito elevados... Não se deve, então, criar situações que favoreçam
5
o desenvolvimento dessa doença. (LIMA, 1927, p. 36-37).
A conexão Rio–Niterói por meio da construção da ponte é reafirmada pela evocação do exemplo
daquela que liga Washington a Fort Lee, comprovando sua viabilidade técnica. Corrêa Lima
demonstra conhecimento sobre os debates acerca da ligação entre as duas cidades e propõe adotar
a solução do engenheiro Alpheu Diniz. A ponte proposta teria dois pavimentos: o superior, para o
deslocamento de pedestres e automóveis, e o inferior, para veículos pesados e bondes. O colosso
de aço é saudado com entusiasmo:
Sob o ponto de vista estético, não há dúvidas de que esta imensa massa de aço será o orgulho de nossa
geração. E não haveria melhor enquadramento para esta obra majestosa criada pelo homem que este lindo
sítio criado pela natureza. Que espetáculo grandioso apresentaria essa obra audaciosa, desafiando os
caprichos da natureza! (LIMA, 1927, p. 39).
A partir da ligação entre as duas cidades, o plano de Niterói é apresentado como intrinsecamente
relacionado e condicionado pela nova situação de continuidade com Rio. O urbanista observa que, se
Niterói fosse planejada isoladamente, hipótese rejeitada com veemência, seu centro, mesmo que
frágil comercialmente, era o ponto de chegada de todos os itinerários da cidade e demandaria
intervenções a fim de melhorá-lo. Porém, a partir do momento em que esse ponto se desloca, em
função da conexão Rio–Niterói, a construção de um novo centro justificava-se. Para tal, Attílio Corrêa
Lima propõe o desmonte de quatro morros com o objetivo de obter o terreno necessário para sua
construção, na Ponta de Gragoatá. O sistema de desmonte dos morros seria realizado à base de
jatos d’água, operação já experimentada no desmonte do Morro do Castelo, em que a terra obtida
serviria aos aterros necessários para conquistar o espaço sobre o mar.
5
Tradução livre.
O novo centro seria constituído por uma grande praça, definida como um nó de fluxos, de onde se
partiria para todos os itinerários da cidade e onde se chegaria. Observa Corrêa Lima que, apesar
dessa
solução
aparentemente
contrariar
os
urbanistas
da
época,
que
almejavam
o
descongestionamento, seu desenho seria capaz de responder convenientemente à fluidez dos
movimentos, sem, contudo, perder a característica de ponto radial:
A praça teria 240 metros de largura e 300 de comprimento. O eixo das principais avenidas determina seu
centro, onde se desenha um calçamento circular que é o nó da circulação: a largura é determinada pela fórmula
de Hennard: a soma das larguras das vias dividida por 4. Os terraplenos de formas irregulares nos cantos da
praça serão ordenados em parterres com locais para cafés com terraços. Os guarda-sóis coloridos dariam um
aspecto muito agradável e vivo à praça. Igualmente, ao centro da praça destinar-se-ia um grande café moderno
circular e sua cobertura seria um pergolado, além do café, pontos de informação, vendas de jornais, agências,
banheiros públicos etc. Na periferia desse centro, haveria grandes entradas para o metrô, que serviriam de
passagens subterrâneas para as diferentes esquinas das avenidas. A praça não seria de forma alguma
6
circundada por bondes, sendo apenas permitidos os carros com pneus [...] (LIMA, 1927, p. 49).
A partir deste ponto nodal – o novo centro da cidade –, Corrêa Lima reordenou os sistemas de vias,
cujas hierarquias distinguem o conjunto das radiais e o conjunto das concêntricas. O primeiro
conectaria as diferentes partes da cidade ao centro e o segundo os bairros entre si. Dessa forma,
sobrepunha-se ao tabuleiro de Niterói um sistema de ordenação em asterisco, familiar aos métodos
de desenho Beaux Arts e da tradição haussmanniana, presentes nas experiências urbanísticas dos
professores do IFUP, particularmente, na obra considerável de Henri Prost.
O Plano de Attílio Corrêa Lima não se restringe à reestruturação da cidade por intermédio da conexão
direta com o Rio de Janeiro, da definição do novo centro e da distribuição dos fluxos. O zoneamento,
a questão habitacional, as leis para a regulamentação do parcelamento do solo, o sistema de
transporte, a infraestrutura (esgoto, água, inundações e limpeza urbana) são questões que
mereceram o mesmo empenho e preocupação.
A menção ao conteúdo do trabalho oferece a referência do que era a formação oferecida pelo IFUP.
Corrêa Lima parece ter aplicado o conjunto dos conhecimentos adquiridos nas aulas de história, de
higiene, das engenharias e infraestruturas, de sociologia, gestão municipal. Mesmo que de forma
pouco aprofundada, seu trabalho realiza a síntese pretendida pelos criadores do IUFP: pensar o
urbanismo de forma interdisciplinar.
Quanto ao desenho, ao se observar os detalhes propostos pelo arquiteto, em especial para a praça
do novo centro e o centro cívico, constata-se a relação indissociável da arquitetura e do urbanismo
manifesta na definição das massas, dos vazios, dos pontos marcados por arranha-céus. As quadras
circundantes ao novo centro de Niterói são ocupadas de tal forma a não fechar por completo seu
perímetro, expandindo o espaço público para nichos protegidos. As perspectivas realçam a feição
monumental dada aos pontos focais, como, por exemplo, a Praça Cívica, onde seriam instalados os
6
Tradução livre.
poderes do Estado e do município, solução que antecipa a capital de Goiás. O centro universitário é
outro exemplo da cuidadosa e dependente relação entre o edifício e o traçado urbano.
As experiências do professor Henri Prost estão presentes no plano de Attílio Corrêa Lima para
Niterói, em que a proposição do sistema viário, conectando a cidade em escalas distintas, o elo
indiscutível entre arquitetura e urbanismo, a hierarquia dos espaços e suas ordens simbólicas, a
presença dos parques e os cuidados com as praças e jardim e a beleza urbana entrevistas nos
planos de Prost, como o de Istambul, orientam as decisões de Corrêa Lima em seu exercício
acadêmico. Esses traços e decisões que mudaram a feição de tantas cidades aproximavam-se do
desuso e seriam combatidos pelos ardorosos tenentes do movimento moderno – se a linguagem
estava com seu fim anunciado, um processo havia se firmado e um campo disciplinar definido. A
bravata modernista talvez seja uma das razões por que Corrêa Lima tenha permanecido numa
espécie de limbo da história do urbanismo brasileiro por um bom tempo, pois sua realização maior –
Goiânia – não mereceu a atenção devida, sendo-lhe reservado um papel secundário nos manuais da
disciplina, distinguida como um episódio menor que antecipava a apoteose de Brasília.
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