diLoLiSTeSe TRaumÁTiCa do ÁXiS Surgical treatment of traumatic
Transcrição
diLoLiSTeSe TRaumÁTiCa do ÁXiS Surgical treatment of traumatic
TRATAMENTO CIRÚRGICO DA ESPONDILOLISTESE TRAUMÁTICA DO ÁXIS Surgical treatment of traumatic spondylolisthesis of the axis ÁLVARO LIMA BRUNO SANTIAGO Departamento de Neurocirurgia RESUMO A espondilolistese traumática do áxis é uma lesão pouco frequente da coluna cervical, que está associada a acidentes de viação e quedas. Habitualmente benigna e muito raramente acompanhada de compromisso neurológico, pode condicionar quadros de dor crónica cervical quando incorrectamente diagnosticada ou tratada. Os autores apresentam o caso clínico de uma espondilolistese traumática do áxis com sinais de instabilidade grave, queixas álgicas intensas e deslizamento de C2 sobre C3, de cerca de 5 mm. Em função das características de instabilidade, esta situação foi tratada com discectomia C2-C3 e artrodese com enxerto de osso ilíaco e placa entre C2 e C3. A preferência pela abordagem anterior na estabilização deste tipo de fracturas, deve-se ao facto de se tratar de uma via simples e segura, reunindo as condições necessárias para uma maior eficácia a longo prazo para a obtenção de uma fusão óssea, quando comparada com a abordagem posterior. Abstract Traumatic spondylolisthesis of the axis is a rare lesion of the cervical spine, that is associated with vehicle accidents and falls. Usually benign and very rarely accompanied by neurological compromise, it may cause chronic cervical pain complaints if incorrectly diagnosed or treated. The authors present the clinical case of an unstable traumatic spondylolisthesis of the axis, causing severe cervical pain and dislocation of C2 over C3, of about 5 mm. As the fracture presented characteristics of instability, it was treated with C2-C3 discectomy and arthrodesis using iliac bone graft and plate between C2 and C3. The authors preference goes to the anterior approach in stabilizing such fractures, as it is simpler and safer, and reveling to be more effective in the long term in obtaining a bone fusion, when compared to the posterior approach. 189 CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ INTRODUÇÃO A espondilolistese traumática é a segunda fractura mais frequente do áxis, a segunda vértebra da coluna cervical (C2). Nesta lesão traumática ocorre uma fractura bilateral do arco de C2, envolvendo habitualmente a pars interarticularis, ou os pedículos, com grau variável de deslizamento de C2 sobre C3, por compromisso do disco intervertebral e dos ligamentos comum vertebral anterior, posterior, ou ambos, dependendo do mecanismo da lesão. Tipo I - a lesão é provocada por um movimento de extensão e carga axial, em que existe apenas um traço de fractura a nível dos pedículos, sem afastamento significativo dos topos ósseos. A espondilolistese traumática do áxis foi inicialmente descrita em 1866 em associação aos enforcamentos judiciais.1 No início do século XX foi também descrito o mecanismo de lesão nos enforcamentos em que o nó era colocado sob o queixo. A tracção cervical brusca, com desvio posterior da cabeça, provocava a fractura do arco de C2.2 Tipo IIA - caracteriza-se por um mecanismo de flexão/distracção e, não existindo significativo deslocamento anterior do corpo do áxis, esta fractura distingue-se pela sua angulação em relação a C3. Na década de 60 surgiram os primeiros trabalhos que descreviam lesões traumáticas semelhantes, relacionadas com quedas e acidentes de viação.3,4 Posteriormente, séries publicadas sobre patologia traumática do áxis confirmaram que a espondilolistese traumática é uma lesão pouco frequente, raramente acompanhada de défice neurológico. Habitualmente estável, é uma lesão com indicação para tratamento conservador.5,6 Ao longo dos anos foram surgindo várias classificações, de acordo com as características patológicas, que se revelaram fundamentais para a orientação do tratamento. As classificações mais usadas são a de Effendi,7 que caracteriza os aspectos radiográficos e a evolução clínica e a de Levine e Edwards,8 que relaciona os aspectos morfológicos com os mecanismos de lesão, distinguindo os seguintes tipos de lesões: Tipo II - caracteriza-se por um mecanismo de hiperextensão seguido de uma flexão grave e observa-se um deslocamento anterior do corpo do áxis e uma lesão do disco intervertebral. Tipo III - caracteriza-se por um mecanismo de flexão/compressão e, além do grave deslocamento anterior do corpo de áxis, existe um encravamento das facetas articulares de C2 em C3. Apesar do significativo avanço na caracterização fisiopatológica da espondilolistese traumática do áxis o seu tratamento continua a ser controverso. Com excepção da fractura tipo I, em que é consensual a indicação para tratamento conservador, nos outros tipos de fractura, alguns autores preferem o tratamento conservador, com colar cervical tipo Filadélfia, SOMI ou Minerva, outros preferem uma imobilização rígida com Halo-Vest e outros ainda optam pelo tratamento cirúrgico. A estabilização cirúrgica desta fractura pode ser feita por via anterior, com uma artrodese intersomática C2-C3, ou por via posterior, com parafusos nos pedículos de C2 e massas laterais de C3. Os autores apresentam o caso clínico de TRATAMENTO CIRÚRGICO DA ESPONDILOLISTESE TRAUMÁTICA DO ÁXIS uma espondilolistese traumática do áxis de tipo II, tratada por via anterior, com discec- tomia e artrodese C2-C3, utilizando enxerto autológo e placa. CASO CLÍNICO Doente do sexo masculino, de 53 anos de idade, saudável, vítima de acidente de viação do qual resultou traumatismo craniano e entorse da coluna cervical. A avaliação clí- Fig. 1 Corte axial de TC a nível da pars interarticularis de C2 Fig. 2 Reconstrução sagital de TC da coluna cervical nica inicial não revelou lesões traumáticas e o doente iniciou repouso e medicação analgésica, sem qualquer imobilização da coluna cervical. Por persistência de cervicalgias intensas, efectuou tomografia computorizada (TC) da coluna cervical que diagnosticou fractura do áxis. Não havia queixas associadas sugestivas de compromisso neurológico, nomeadamente, alterações da sensibilidade ou diminuição da força muscular dos membros. O doente referia dor e limitação funcional da cintura escapular direita relacionadas com traumatismo directo. Não se observaram alterações no exame neurológico. A fractura do áxis revelada pela TC da coluna cervical tinha uma orientação transversal, ligeiramente oblíqua, interessando a pars articularis à direita e o corpo vertebral à esquerda, com deslizamento anterior de C2 sobre C3 numa extensão de cerca de 5 mm (Fig. 1 e 2). A ressonância magnética (RM) da coluna cervical demonstrou a patência do espaço de líquido céfalo-raquidiano (LCR) perimedular e não revelou alterações da morfologia ou do sinal da medula (Fig. 3 e 4). A lesão traumática do áxis revelava características compatíveis com uma espondilolistese traumática do áxis, tipo II, de acordo com a classificação de Levine e Edwards. Esta lesão sugeria uma elevada instabilidade em virtude do deslizamento de C2 sobre C3, indiciando lesão discal e do ligamento comum vertebral posterior, pelo que foi decidido realizar uma artrodese C2-C3, por via anterior. 191 CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ Fig. 4 Corte axial T2 de RM da região da pars interarticularis de C2 Fig. 3 Corte sagital T2 de RM da coluna cervical O doente foi submetido a anestesia geral e posicionado em decúbito dorsal, com a cabeça na linha média, em extensão. Foi planeada uma incisão cervical antero-lateral direita, na transição cérvico-facial, orientada pelo intensificador de imagem para o Fig. 5 Radiografia pós-operatória da coluna cervical (perfil, posição neutra) espaço C2-C3. A intervenção iniciou-se com a incisão da pele e do platisma, de forma a expor o músculo esternocleidomastoideu. Prosseguiu-se com a dissecção no bordo interno daquele músculo, individualizando o feixe vásculo-nervoso, constituído pela artéria carótida, veia jugular e nervo vago, que foi afastado das estruturas da linha média, hipofaringe e esófago, de forma a expor a face anterior dos corpos vertebrais. Fig. 6 Radiografia pós-operatória da coluna cervical (antero-posterior) TRATAMENTO CIRÚRGICO DA ESPONDILOLISTESE TRAUMÁTICA DO ÁXIS Não se registaram intercorrências no pósoperatório. O doente usou colar cervical tipo Filadélfia durante seis semanas e ao terceiro mês de pós-operatório estava assintomático, apenas com ligeira limitação na rotação lateral da cabeça e ligeira disfagia para sólidos. A radiografia da coluna cervical de controlo mostrava redução parcial da espondilolistese, sinais de consolidação do enxerto e correcto posicionamento do material de instrumentação (Fig. 5 e 6). Na radiografia em flexão/extensão da coluna cervical não havia sinais de instabilidade ou falência do material de instrumentação (Fig 7 e 8). Fig. 7 Radiografia pós-operatória da coluna cervical (perfil, em flexão) Fig. 8 Radiografia pós-operatória da coluna cervical (perfil, em extensão) Depois da exposição da região de C2 e C3, fez-se a dissecção dos músculos longus colli e procedeu-se à remoção do disco intervertebral C2-C3. Em seguida, foi feita a colheita de um enxerto tricorticado da crista ilíaca direita, que foi impactado no espaço discal. Por fim colocou-se uma placa de titânio (Zephir, Medtronic) fixada com dois parafusos no corpo do áxis e dois parafusos em C3. DISCUSSÃO E CONCLUSÕES A espondilolistese traumática do áxis, também conhecida como “fractura do enforcado” pelas suas similitudes com as fracturas cervicais descritas nas vítimas de enforcamentos judiciais, representa 7% a 20% das fracturas cervicais e 20% a 23% das fracturas do áxis.9 Esta lesão está associada a acidentes de viação e quedas e, habitualmente, não tem lesão neurológica associada e tem bom prognóstico. Na maioria dos casos, o diagnóstico é reali- zado por radiografia simples de perfil, com excepção das fracturas tipo I, de Levine, por não haver deslizamento de C2 sobre C3, nem afastamento dos topos ósseos. Nestes casos é fundamental a suspeição clínica, de acordo com o tipo de traumatismo e a persistência de cervicalgias intensas. O principal problema no tratamento da espondilolistese traumática do áxis é a definição de instabilidade e a consequente alternativa 193 CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ entre um tratamento conservador e um tratamento cirúrgico. As lesões tipo I, sem desalinhamento significativo dos topos ósseos, são consideradas unanimemente como fracturas estáveis, com elevadas taxas de sucesso do tratamento conservador, utilizando o colar de Filadéfia.10 Nas lesões tipo II, IIa e III, existe um claro desalinhamento entre C2 e C3, que implica uma lesão do disco C2-C3 e de um dos ligamentos comuns vertebrais, anterior ou posterior, ou de ambos. Para a maioria dos autores estas características são sinónimo de instabilidade e, portanto, necessitam de ser tratadas com imobilização rígida, como o Halo-Vest. Outros admitem a utilização de colar de Filadélfia se o desalinhamento entre C2 e C3 for inferior a 6 mm, com agravamento inferior a 2 mm nos movimentos de flexão/extensão.11 Muitos autores consideram a imobilização rígida como o tratamento de primeira linha e deixam o tratamento cirúrgico para as situações de falência do tratamento inicial e de pseudartrose, ou impossibilidade de colocação do Halo-Vest por intolerância ou devido a traumatismo associado.12 Nos últimos anos têm vindo a ser constatadas taxas elevadas de falência do tratamento conservador, que podem chegar aos 60% nos casos das fracturas tipo II, IIa, e III. Este facto dá razão aos autores que defendem a alternativa cirúrgica para garantir o melhor resultado, no mais curto período de tempo.13 Alguns autores defendem que se deve optar pela intervenção cirúrgica sempre que haja um desalinhamento entre C2 e C3 superior a 3 mm, uma cifose regional superior a 15º ou uma lordose superior a 5º.14 As vantagens do tratamento cirúrgico, actualmente de baixo risco, incluem o menor tempo de convalescença, a maior garantia de obter uma fusão sólida da fractura e a possibilidade de dispensar o uso de um Halo-Vest, durante dois a três meses, usando em alternativa um colar de Filadélfia, por quatro a seis semanas.15 Para o tratamento cirúrgico da espondilolistese traumática do áxis existem várias alternativas de abordagem e técnicas de fixação. A estabilização pode ser feita por via anterior, através de uma estabilização C2-C3 com discectomia, colocação de enxerto intersomático e placa, ou por via posterior através de artrodese C1 a C3, colocação de parafusos na pars interarticularis ou estabilização entre C2 e C3. Dois ensaios laboratoriais recentes fizeram uma comparação biomecânica entre vários tipos de estabilização utilizados no tratamento da espondilolistese traumática do áxis.16,17 Em ambos os casos, do ponto de vista biomecânico, a estabilização ideal para este tipo de fracturas parece ser a fixação posterior, com parafusos em C2, através da pars interarticularis incluindo a fractura e outros nas massas laterais de C3, com barras a uni-los. Este tipo de estabilização tem vantagem na limitação da mobilidade nos movimentos de flexão lateral e rotação, comparativamente à fixação anterior entre C2 e C3 com placa. Salienta-se também nos dois ensaios, que embora mais eficaz do ponto de vista biomecânico, imediatamente após a realização da artrodese, existem várias razões para preferir uma fixação anterior, no tratamento efectivo destas lesões traumáticas. A abordagem anterior é hoje mais rotineira e não tem riscos significativos, mesmo no nível C2-C3, e a zona receptora de enxerto é maior, aumentando a probabilidade de obter uma fusão óssea C2C3. Por outro lado, nem sempre é possível colocar os parafusos em C2, por afastamento ou desalinhamento dos topos ósseos ou porque TRATAMENTO CIRÚRGICO DA ESPONDILOLISTESE TRAUMÁTICA DO ÁXIS a fractura compromete o corpo vertebral, em vez da pars interarticularis. Num estudo recente, foram tratados 30 doentes com espondilolistese traumática do áxis, tipo II, IIa e III, utilizando uma abordagem anterior e uma fixação C2-C3 com enxerto e placa.15 No peri-operatório não houve complicações e no final do período de seguimento de seis meses tinha sido obtida uma fusão em todos os doentes. Neste trabalho é apresentado o caso de uma espondilolistese traumática do áxis, tipo II, com desalinhamento superior a 3 mm. Por ser considerada uma fractura instável, os autores optaram pelo tratamento cirúrgico, como primeira alternativa, em virtude de permitir uma estabilização rígida com excelentes possibilidades de promover uma fusão vertebral. A estabilização cirúrgica obviou o uso de um Halo-Vest, que é muito desconfortável e obrigaria a um tratamento mais prolongado, com elevados custos em termos de qualidade de vida. Os autores preferiram a abordagem anterior e realização de uma fusão C2-C3 com enxerto e placa, em virtude de ser uma via simples e segura, reunindo condições de maior eficácia a longo prazo na obtenção de uma fusão óssea, em comparação com a abordagem posterior. BIBLIOGRAFIA 1. Haughton S. On hanging, considered from a mechanical and physiological point of view. Philo Mag J Sci 1866; 32:23-34. 11. Coric D, Wilson JA, Kelly DL Jr. Treatment of traumatic spondylolisthesis of the axis with nonrigid immobilization: a review of 64 cases. J Neurosurg 1996;85:550-4. 2. Wood-Jones F. The ideal lesion produced by judicial hanging. Lancet 1913;1:53-4. 12. Vaccaro AR, Madigan L, Bauerle WB, et al. Early halo immobilization of displaced traumatic spondylolisthesis of the axis. 3. Garber JN. Abnormalities of the atlas and axis vertebrae – congenital and traumatic. J Bone Joint Surg 1964;46:1782-91. Spine 2002;27:2229-33. 13. Verheggen R, Jansen J. Hangman’s fracture: arguments in favor 4. Schneider RC, Livingston KE, Cave AJE. “Hangman’s fracture” of the cervical spine. J Neurosurg 1965;22:141-54. of surgical therapy for type II and III according to Edwards and Levine. Surg Neurol 1998:49:253-61. 5. Hadley MN, Browner C, Sonntag VK. Axis fractures: 14. Samaha C, Lazennec JY, Laporte C, et al Hangman’s fracture: a comprehensive review of management and treatment in 107 cases. Neurosurgery 1985;17: 281-90. the relationship between asymmetry and instability. J Bone Joint Surg Br 2000;82:1046-52. 6. Hadley MN, Dickman CA, Browner CM. Acute axis fractures a review of 229 cases. J Neurosurg 1989;71:642-7. 15. Ying Z, Wen YZ, Xinwei W, et al. Anterior Cervical Discectomy and Fusion for Unstable Traumatic Spondylolisthesis of the Axis. Spine 2008;33:255-8. 7. Effendi B, Roy D, Cornish B, Daussault RG, Laurin CA. Fractures of the ring of the axis: a classification based on the analysis of 131 cases. J Bone Joint Surg 1981;63:319-27. 8. Levine AM, Edwards CC. The management of traumatic spondylolisthesis of the axis. J Bone Joint Surg 1985;67:217-26. 9. Boullosa JL, Colli BO, Carlotti CG Jr, Tanaka K, dos Santos MB. Surgical management of axis’ traumatic spondylolisthesis. Arq Neuropsiquiatr 2004;62:821-6. 16. Duggal N, Chamberlain RH, Perez-Garva LE, EspinozaLarios A, Sonntag VKH, Crawford NR. Hangman’s fracture: A biomechanical comparision of stabilization techniques. Spine 2007;32:182-7. 17. Chittiboina P, Wylen E, Ogden A, et al. Traumatic spondylolisthesis of the axis: a biomechanical comparison of clinically relevant anterior and posterior fusion techniques. J Neurosurg Spine 2009;11:379-87. 10. Li XF, Dai LY, Lu H, et al. A systematic review of the management of hangman’s fracture. Eur Spine J 2006;15:257-69. 195
Documentos relacionados
Espondilolistese Traumática do Axis
5. Hadley MN, Browner C, Sonntag VK. Axis fractures: a comprehensive review of management and treatment in 107 cases. Neurosurgery
Leia mais