Edição 159 • Novembro 2013

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Edição 159 • Novembro 2013
Edição 159 • Novembro 2013
S umário
Foto: Luiz Antonio/SCO/STJ
10
Capa – STJ comemora 25 anos
do Tribunal da Cidadania
6
Editorial – Bernardo Cabral:
a alma da Constituição Federal
38
O Poder Judiciário e a questão da internação
compulsória dos usuários de “crack”
16
Democracia e os 25 anos da
Constituição Cidadã
42
20
A Torah como fonte de legislação
Breves notas sobre o atual tratamento
jurisprudencial dos delitos de contrabando
e descaminho
23
Livros – “A Segunda Guerra Fria”
46
Em Foco – Cidadão Público x Cidadão
Privado
24
OAB-RJ busca melhorias para os Juizados
Especiais Cíveis
52
O impacto do marketing de venda na região
limítrofe entre Barra da Tijuca e Jacarepaguá
28
Dom Quixote – “Vamos construir
um mundo melhor”
55
Plebiscito para reforma política
58
Mídia ninja: um novo momento do jornalismo
62
A tutela coletiva do consumidor portador
de necessidades especiais
31
O pecado do Diplomata Saboia
37
Inovar é preciso
Foto: Mariana Fróes
Foto: Fecomercio
2
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
8
Decálogo do advogado
34 Centrais de relacionamento: uma solução
2013 Novembro | Justiça & Cidadania
3
para a judicialização?
Edição 159 • Novembro de 2013 • Capa: Luiz Antonio/SCO/STJ
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Ano II - nº 4 - Outubro 2007
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Presidentes de Tribunais de Justiça
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 5
E ditorial
V
alho-me dos prólogos dos eminentes ministros
Marco Aurélio Mello e Gilmar Mendes, do
economista e ex-ministro Ernane Galvêas,
dos acadêmicos Arlindo Porto e Júlio Antonio
Lopes, do empresário amazonense Gaitano Antonaccio
e do cientista das águas, Jerson Kelman, para descrever
a personalidade de Bernardo Cabral, exposto por essas
personalidades em brilhantes panegíricos publicados na
edição comemorativa dedicada em seu louvor, em abril de
2012, da revista Justiça & Cidadania.
Obteve o bacharelado em Direito pela Universidade
Federal do Amazonas aos vinte e um anos – mais jovem
na turma em que se graduou. Imediatamente, tornou-se
advogado e, destacando-se no ofício, veio a ocupar, sucessi­
vamente, as funções de delegado, promotor de Justiça,
chefe de Polícia e secretário de Segurança Pública, sempre
no estado de origem. Aos vinte e sete, foi nomeado chefe
da Casa Civil do Governo e, em seguida, procurador do
Estado do Amazonas. Ainda moço, aos trinta anos, chegou
a ter assento na Assembleia Legislativa do estado natal, na
legislatura de 1962 a 1966.
Se os prólogos já revelam uma existência em que
caberiam muitas vidas, a partir daí, Bernardo Cabral
assumiu papel de protagonista na vida política brasileira,
passando a influenciar o futuro dos concidadãos.
Nas eleições subsequentes, aos trinta e cinco anos,
elegeu-se deputado federal. Infelizmente, permaneceu no
cargo por apenas um ano, porque teve o mandato cassado
6
pelo Ato Institucional no 5, de 13 de dezembro de 1968, em
razão das opiniões emitidas, nos meios de comunicação,
que causaram incômodo à ditadura então insurgente.
A vocação para a liderança levou-o ao cargo de
presidente da Ordem, no biênio 1981-1983. A contribuição
inestimável para a República Federativa do Brasil veio no
final de 1980. Com os direitos políticos restabelecidos,
voltou a ser eleito deputado federal para exercer o mandato
entre 1987 a 1991, compondo a Assembleia Nacional
Constituinte.
Era preciso, então, timoneiro à altura da desafiante
empreitada de construir nova ordem constitucional, capaz
de reunir em um só bornal conhecimento técnico, liderança
e experiência; haveria de trazer consigo os brilhos da lucidez,
e da acuidade intelectual, a marca do descortino, o pendor
nato para a conciliação e o respeito irrestrito à alteridade.
Em votação dramática, venceu a disputa para a
relatoria da comissão de sistematização dos trabalhos
realizados pelas subcomissões da Constituinte, aclamado
pela bancada do Partido da Mobilização Democrática
Brasileira. Conhecido pelo caráter conciliador e vivaz,
capaz de dialogar com interlocutores de diversas vertentes
políticas, logrou, com trabalho e paciência, desvencilhar-se
de armadilhas oriundas de grupos de pressão, lobistas e
políticos insatisfeitos. Entregou, ao fim, o documento
democrático produzido pela política brasileira.
Com o término da Constituinte e a promulgação da
Carta, tornou-se árduo defensor da efetividade dos novos
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
Foto: Sandra Fado
Bernardo Cabral:
a alma da Constituição Federal
marcos político e social brasileiro. Essa tem sido a sua
bandeira. O tempo fez compreender o laconismo das
respostas que dava aos detratores da Constituinte: em
meio a crises institucionais e ao reformismo crônico, a
Lei Maior de 1988 sobreviveu, refletindo as esperanças de
um futuro melhor para a República Federativa do Brasil.
Se, em pouco mais de duas décadas, caminhamos do
regime de exceção à supremacia da Constituição, parte
desse fenômeno se deve ao idealismo e à luta política de
Bernardo Cabral.
À luz da trajetória coerente e corajosa de Cabral,
compreende-se perfeitamente o documento progressista
que, dois séculos depois da independência, injetou nas
veias do país – de uma vez por todas – “o ar saudável das
liberdades públicas e civis”, para usar as sempre apropriadas
palavras do mais ilustre dos amazonenses.
De fato, somente um democrata empedernido –
no caso, por convicção e natureza – poderia conciliar
com tanta lhaneza o que, à primeira vista, transparecia
inegociável, tal o conflito de interesses a envolver, em
um momento de transição da história política, temas
tão díspares quanto anistia, reforma agrária, recursos
minerais e divisão de competências e receitas tributárias.
Ao fim, prevaleceu, felizmente, a moderação criteriosa
que sobrepôs os interesses coletivos aos do Estado gigante
e perdulário, que consagrou, como traço modernizador
da Carta, a notória vertente antidiscriminatória dos
cidadãos.
Vale lembrar palavras pronunciadas por Bernardo
Cabral ao discursar no Superior Tribunal de Justiça na
solenidade comemorativa dos 25 anos da criação do
“Tribunal da Cidadania”, no final de sua palestra, ao
revelar ter “a certeza de que relembrando os trabalhos
desenvolvidos para a criação do STJ, eles me conferem o
prazer de dizer que carrego comigo as cicatrizes orgulhosas
do dever cumprido, como ensinou meu saudoso pai, e com
elas posso afirmar que, se a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 é a Carta da Democracia,
este Superior Tribunal de Justiça é a Egrégia Corte da
Cidadania.”
As homenagens devidas e prestadas a Bernardo Cabral
se perpetuarão gloriosamente como reconhecimento
à sua brilhante participação na feitura e na grandeza
da Constituição Federal, da qual é merecidamente o
relator, fazendo-o portador do merecido cognome:
Bernardo Cabral, a alma da Constituição Federal.
Orpheu Santos Salles
Editor
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 7
Decálogo do advogado
Ives Gandra da Silva
Membro do Conselho Editorial
Professor emérito das universidades Mackenzie,
UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e CIEE
8
Foto: Fecomercio
1. O Direito é a mais universal das aspirações humanas,
pois sem ele não há organização social. O advogado é
seu primeiro intérprete. Se não considerares a tua como
a mais nobre profissão sobre a terra, abandona-a porque
não és advogado;
2.O Direito abstrato apenas ganha vida quando
praticado. E os momentos mais dramáticos de sua
realização ocorrem no aconselhamento às dúvidas que
suscita, ou no litígio dos problemas que provoca. O de
princípios, e batalhador, sem tréguas, nem leviandade.
Qualquer questão encerra-se apenas quando transitada
em julgado e, até que isto ocorra, o constituinte espera
de seu procurador dedicação sem limites e fronteiras;
3. Nenhum país é livre sem advogados livres. Considera tua
liberdade de opinião e a independência de julgamento
os maiores valores do exercício profissional, para que
não te submetas à força dos poderosos e do poder ou
desprezes os fracos e insuficientes. O advogado deve
ter o espírito do legendário El Cid, capaz de humilhar
reis e dar de beber a leprosos;
4.Sem o Poder Judiciário não há Justiça. Respeita
teus julgadores como desejas que teus julgadores te
respeitem. Só assim, em ambiente nobre e altaneiro, as
disputas judiciais revelam, em seu instante conflitual, a
grandeza do Direito;
5.Considera sempre teu colega adversário imbuído
dos mesmos ideais de que te revestes. E trata-o com
a dignidade que a profissão que exerces merece ser
tratada;
6. O advogado não recebe salários, mas honorários, pois
que os primeiros causídicos, que viveram exclusiva­
mente da profissão, eram de tal forma considerados,
que o pagamento de seus serviços representava honra
admirável. Sê justo na determinação do valor de teus
serviços, justiça que poderá levar-te a nada pedires, se
legítima a causa e sem recursos o lesado. É, todavia, teu
direito receberes a justa paga por teu trabalho;
7. Quando os governos violentam o Direito, não tenhas
receio de denunciá-los, mesmo que perseguições decor-
ram de tua postura e os pusilânimes te critiquem pela
acusação. A história da humanidade lembra-se apenas
dos corajosos que não tiveram medo de enfrentar os
mais fortes, se justa a causa, esquecendo ou estigmatizando os covardes e os carreiristas;
8. Não percas a esperança quando o arbítrio prevalece. Sua
vitória é temporária. Enquanto fores advogado e lutares
para recompor o Direito e a Justiça, cumprirás teu papel
e a posteridade será grata à legião de pequenos e grandes
heróis, que não cederam às tentações do desânimo;
9. O ideal de Justiça é a própria razão de ser do Direito. Não
há direito formal sem Justiça, mas apenas corrupção do
Direito. Há direitos fundamentais inatos ao ser humano
que não podem ser desrespeitados sem que sofra toda a
sociedade. Que o ideal de Justiça seja a bússola permanente
de tua ação, advogado. Para isto estuda sempre, todos os
dias, a fim de que possas distinguir o que é justo do que
apenas aparenta ser justo;
10. Tua paixão pela advocacia deve ser tanta que nunca admitas deixar de advogar. E se o fizeres, temporariamente,
continua a aspirar o retorno à profissão. Só assim poderás, dizer, à hora da morte: “Cumpri minha tarefa na
vida. Restei fiel à minha vocação. Fui advogado”.
* Escrito para os alunos da Universidade Mackenzie na década de 80
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 9
C apa, por Carlos Alberto Luppi
10
pelo Instituto Justiça & Cidadania. Eles mostram a história
do STJ e toda a sua trajetória, desde sua criação pela
“Constituição Cidadã”, promulgada em 1988, contando, em
detalhes, sua instalação inicial em Brasília – no prédio em
que funcionava o Tribunal Federal de Recursos – e, ainda,
os estudos arquitetônicos para construção de sua sede
apresentados oficialmente por Oscar Niemeyer em 1989 e
sua edificação, a partir de 1990, em um conjunto moderno
e futurista de cinco prédios em área de 138 mil m2 – hoje
um dos destaques da obra arquitetônica e urbanística de
Niemeyer e Lúcio Costa, que transformou Brasília em
“patrimônio mundial”, declarado pela UNESCO.
A prévia da exposição STJ – 25 Anos do Tribunal da
Cidadania foi montada no Salão de Recepções do STJ,
reunindo 49 telas distribuídas em 14 painéis divididos
em duas partes, detalhando fatos anteriores e posteriores
à Constituição de 88, considerada o marco principal de
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
Foto: Moreno/SCO/STJ
Foto: Stock © marilyn barbone
Foto: Moreno/STJ/SCO
A
importância e a contribuição do Superior
Tribunal de Justiça – STJ na construção da
democracia e na consolidação da justiça social
e da cidadania no Brasil constituíram-se
na essência da solenidade que, no dia 16 de outubro,
marcou, em Brasília, as comemorações dos 25 anos de
criação daquele que é denominado e considerado, hoje,
o Tribunal da Cidadania. Uma verdadeira referência
nos campos da justiça e da inclusão social, “um tribunal
pioneiro perpetuado através das ideias, com milhares de
manifestações, memórias e estórias de pessoas humildes,
um tribunal que deu sentido e corpo ao conceito de
humanização, um maravilhoso amontoado de concreto em
que o principal objetivo é a sociedade”, conforme declarou
seu Presidente, o Ministro Felix Fischer, na ocasião.
A data também foi comemorada com as inaugurações
de uma exposição, de um livro e de um website, elaborados
Tiago Salles, presidente do IJC, entregando o primeiro exemplar do livro ao presidente do STJ, ministro Felix Fischer
criação do STJ. A mostra, aberta ao público até abril
de 2014, se preocupou em apresentar imagens que
consolidam o STJ como Tribunal da Cidadania, além de
telas que reforçam suas atividades educativas, as quais o
aproximam, efetivamente, da sociedade. Foi ressaltado
também o comportamento humanitário do Tribunal
com a inclusão, entre seus funcionários, de pessoas com
deficiência auditiva e portadores de Síndrome de Down.
O livro, escrito pelo jornalista Ricardo Viveiros,
além de registrar a história do Tribunal, resgata fatos de
uma parte importante da trajetória do Poder Judiciário
brasileiro nos últimos 25 anos e “se projeta às remotas
origens da complexa formação de nosso país, em uma saga
que valoriza as conquistas humanas e relembra a história
da Justiça nacional mostrando como foram estruturadas
as instituições atuais e a Constituição de 88 que ganha
um merecido destaque, pois reformou o Poder Judiciário
e criou o STJ”, segundo afirmou o presidente do Instituto,
Tiago Salles, ao entregar o primeiro exemplar da obra,
oficialmente, ao Presidente do STJ.
Uma viagem no tempo
“Muito mais do que o jubileu de prata do Tribunal, o evento marca o início de uma viagem simbólica no tempo, e, para
nossa alegria, ela pode ser, facilmente, materializada através
das dezenas de milhares de decisões cidadãs já proferidas em
um quarto de século. Trabalhamos pelo engrandecimento de
nossa tarefa de bem servir ao jurisdicionado e, consequentemente, ao Brasil” destacou, ainda, o Ministro Felix Fischer em
seu discurso de abertura da solenidade, ao parabenizar “todos
aqueles que somaram na idealização do STJ”.
Fischer reconheceu e elogiou o esforço “prioritaria­
mente das pessoas – ministros, servidores, operadores do
Direito e colaboradores – que trabalham e trabalharam
pelo engrandecimento do Tribunal e pelas inúmeras
realizações ao longo do tempo”, e, emocionado,
enfatizou: “Simbolizamos o fim de uma era e o início
de outra. Jamais devemos esquecer que um sonho,
sonhado em grupo, mais facilmente transforma-se em
realidade, pois o ser humano movimenta histórias: a de
um país, a de uma instituição e sua própria história. Ao
recriar a história do STJ, o conjunto de eventos, que hoje
iniciamos, comprova, justamente, nossa evolução.”
A solenidade foi marcada ainda por muitos outros
destaques, particularmente as palestras do jurista e
ex-Ministro Bernardo Cabral, relator-geral da Assembleia
Nacional Constituinte em 1987/1988, e do presidente da
Comissão Especial de Obras no período de 1992 a 1995,
Ministro Costa Leite – além do discurso de agradecimento
do presidente do Instituto Justiça & Cidadania.
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 11
Foto: Moreno/SCO/STJ
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
Ministro Paulo Costa Leite, presidente da Comissão Especial de Obras do STJ no período de sua construção
Foto: Divulgação
Foto: Moreno/SCO/STJ
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determinada por esta Constituição, um texto que passou a
ser o ‘texto base’ para a estrutura do Poder Judiciário, após
receber o aperfeiçoamento necessário.”
Bernardo Cabral também destacou o papel importante
do ministro Antonio de Pádua Ribeiro: “Incansável
na apresentação e na defesa de um imenso número de
emendas ao longo dos trabalhos da Constituinte, das
quais muitas disposições, que se encontram no texto da
Constituição de 88, decorreram de sua aprovação”. No
final de sua palestra, Cabral revelou “ter a certeza de que
relembrando os trabalhos desenvolvidos para a criação
do STJ, eles me conferem o prazer de dizer que carrego
comigo as cicatrizes orgulhosas do dever cumprido,
como ensinou meu saudoso pai, e com elas posso afirmar
que, se a Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988 é a Carta da Democracia, este Superior Tribunal
de Justiça é a Egrégia Corte da Cidadania.”
Já o Ministro Costa Leite – que presidiu a Comissão
Especial de Obras do STJ no período de sua construção,
entre 1992 e 1995, em Brasília –, contou detalhes do
projeto de Niemeyer e as dificuldades inerentes a uma
construção do porte do STJ.
“Em maio de 1989, com exposição detalhada de Oscar
Niemeyer, os estudos preliminares do projeto de arquitetura,
incluindo a maquete do futuro conjunto arquitetônico,
foram apresentados aos ministros do Tribunal, que, na
ocasião, fizeram várias e importantes sugestões, que acaba­
Foto: Moreno/SCO/STJ
Cabral lembrou os tempos do poder militar no
Brasil e a supressão das liberdades democráticas com
a edição do Ato Institucional no 5, em 13 de dezembro
de 1968, “que impunha a maior aberração contra o
Poder Judiciário”. Citou o artigo 11, segundo o qual
“excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos
praticados de acordo com este Ato Institucional e seus
atos complementares, bem como os respectivos efeitos”.
Além disso, rememorou parte de sua história pessoal
como advogado e sua amizade com o então juiz federal
Evandro Gueiros Leite, mais tarde ministro-presidente
do Tribunal Federal de Recursos. Na mesma época,
Cabral se tornou Relator da Comissão de Sistematização
da Constituinte. Em junho de 1987, Evandro Gueiros
criou a Comissão “encarregada de apresentar estudos,
sugestões e acompanhar os trabalhos da Constituinte
na parte atinente ao Poder Judiciário, em particular no
tocante às alterações que dissessem respeito ao Tribunal
Federal de Recursos e à Justiça Federal”.
Posteriormente, durante os trabalhos da Constituinte,
lembrou Cabral: “O deputado Egídio Ferreira, relator
da Comissão de Organização dos Poderes e Sistema de
Governo, sugeriu a criação do Superior Tribunal de Justiça,
indicando que ele seria formado pelo aproveitamento dos
ministros do Tribunal Federal de Recursos e pela nomeação
de tantos ministros que fossem necessários para completar
o número estabelecido na lei complementar na forma
Foto: Luiz Antonio/SCO/STJ
Foto: Luiz Antonio/SCO/STJ
Ministro Felix Fischer, presidente do STJ, e o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo
Bernardo Cabral, relator da Assembleia Nacional Constituinte, ex-senador da República e ex-ministro da Justiça
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 13
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
Ministros do STJ folheando o livro produzido pelo IJC, STJ – 25 Anos do Tribunal da Cidadania
Foto: Moreno/SCO/STJ
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Foto: Luiz Antonio/SCO/STJ
Uma razão para se orgulhar da justiça
O presidente do Instituto Justiça & Cidadania,
Tiago Salles, discursou em agradecimento, relembrando
Foto: Luiz Antonio/SCO/STJ
ram incorporadas ao projeto definitivo, e este foi um
momento altamente significativo. Verificou-se, a partir daí,
uma integração mais efetiva e um comprometimento maior
do colegiado com a construção da futura sede”, destacou.
O ministro afirmou ainda: “A sede do STJ é sim imp­o­­­
nente, com um grande volume de construção, de 138 mil
metros m2 distribuídos pelos cinco prédios que a compõem, tem uma moderna e futurista arquitetura, mas daí
a dizê-la suntuosa e luxuosa, como um dia se disse, só por
má-fé ou ignorância. As obras de arte em número de quatro, longe de lhe conferirem suntuosidade, têm natureza
complementar, como acentuou Niemeyer, e, com efeito,
elas se integram aos grandes espaços, guardando perfeita
harmonia e enriquecendo todo o conjunto, sendo todas
igualmente importantes nesse cenário.”
“Por algum tempo, uns poucos e, por todo o tempo,
a grande maioria, somamos forças com vontade férrea,
não esmorecemos nem mesmo nos momentos das crí­
ticas mais descabidas. Podemos orgulhosamente dizer
que fizemos o melhor que podíamos ao dar o nosso
contributo para o êxito dessa empreitada que fez surgir de
um pedaço de chão do cerrado este, sob todos os títulos,
magnífico conjunto arquitetônico que a genialidade do
sau­­­doso e maior nome da arquitetura brasileira, Oscar
Niemeyer, concebeu para sediar o Tribunal da Cidadania”,
concluiu Costa Leite.
Orpheu Salles, que, em 1999, “imaginou uma publicação
que pudesse fortalecer o mais importante poder da nação,
ao criar a Revista Justiça & Cidadania. Em seguida,
Orpheu percebeu que dentro de cada um dos membros
desse poder existia um sonhador e perseguidor de ideais.
Com uma inspiração ‘cervantina’, criou o troféu Dom
Quixote para homenagear as ‘figuras’– como ele próprio
as identifica – que lutam pela implementação de uma
justiça ampla e eficaz.”
Tiago Salles salientou que o livro sobre os 25 anos do
STJ “faz parte de um projeto maior chamado Tribunais
do Brasil, onde pretende-se registrar a história de todos
os tribunais do país, pois é pelo Poder Judiciário que se
registra os principais e mais importantes passos da consolidação do Estado Democrático de Direito brasileiro”. E
destacou a obra do jornalista Ricardo Viveiros, publicada
pelo Instituto que preside, como uma “saga que valoriza
as conquistas humanas”, ressaltando a criação do STJ pela
Constituição Cidadã de 1988 que deu origem ao Tribunal
da Cidadania.
“Este espaço onde se localiza o STJ é um marco
arquitetônico brasileiro e, à parte os méritos deste conjunto
de edifícios, ousamos ir além das paredes desta magnífica
estrutura de concreto e tivemos o intuito maior de tornar
transparente, para todos os brasileiros, a importância deste
que é, inegavelmente, um dos mais relevantes organismos
do Poder Judiciário brasileiro” – ressaltou o presidente do
Instituto.
Tiago Salles acrescentou, ainda, que “aqui está, também, para o povo brasileiro, uma razão para se orgulhar
da justiça do Brasil”, ao se referir à excelência e aos valores
do Tribunal da Cidadania, “e dos homens e mulheres, magistrados e servidores, que construíram ao longo do tempo
com sua ética, inteligência, saber jurídico, cultura e obstinada dedicação, o STJ.”
Em seguida, elogiou e agradeceu ao Ministério da
Cultura que “entendeu que esse projeto de 25 anos de
história do STJ – que inclui o livro, a exposição e o website
produzidos pelo Instituto Justiça & Cidadania – vai além de
um projeto institucional, tornando-se um instrumento de
democratização da cultura e, principalmente, aproximando
os cidadãos da história da justiça brasileira”. Tiago Salles
agradeceu aos colaboradores que se envolveram ativamente
no projeto e homenageou o ministro Ari Pargendler – que,
quando ainda presidente do STJ, autorizou a realização do
projeto – e a todos os ministros da Casa, por sua atenção
e paciência. Por fim, dedicou um agradecimento “mais que
especial” ao Ministro Felix Fischer, presidente do STJ, “que
abraçou esse projeto e disponibilizou toda a estrutura desse
Tribunal para sua conclusão; acompanhou todos os nossos
passos, sempre disposto a ajudar, abrindo muitas vezes o
gabinete da presidência para nossas pesquisas.”
Abertura da exposição STJ – 25 Anos do Tribunal da Cidadania, instalada no Salão de Recepções do Plenário
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 15
Democracia e os 25 anos da
Constituição Cidadã
Marcus Abraham
Desembargador Federal do TRF - 2a Região
Professor adjunto de Direito Financeiro da UERJ
Foto: Arquivo pessoal
I
negável reconhecer o amadurecimento da democracia brasileira, com a inquestionável conscientização da população dos seus direitos de cidadania,
decorrentes do texto e do espírito da nossa Carta
Cidadã de 1988 que ora completa 25 anos, representando
a consolidação da redemocratização do Estado brasileiro
após vinte anos de ditadura militar, antecedido de alternâncias de regimes democráticos e autoritários ao longo
do século XX.
A Constituição brasileira de 1988, forjada no ferro
dos direitos sociais e no fogo dos valores liberais, estabelece no seu art. 3o os objetivos da República Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e
solidária, desenvolver o país, acabar com a pobreza e a
marginalização, e minimizar as desigualdades sociais e
regionais, promovendo o bem de todos; tais intentos têm
como fundamentos consignados no art. 1o, a soberania,
a cidadania, a dignidade da pessoa humana e a valorização do trabalho e da livre iniciativa.1
Mas, diante de tantas pretensões, recursos financeiros
se fazem mais do que imprescindíveis. Porém, não basta
arrecadar o necessário, de forma justa, equitativa e equi­
librada. A administração de tais recursos deve ser feita
de forma zelosa e eficiente, e a sua aplicação precisa ser
realizada de maneira criteriosa e sábia para que se possa
atender às necessidades públicas da maneira mais ampla
e satisfatória possível.
As manifestações populares ao longo de 2013 demonstram uma inequívoca consciência do povo brasileiro da incapacidade crônica dos governos, em todos os
16
níveis federativos, em atender a tais objetivos, seja no viés
arrecadatório, seja no da destinação, especialmente pelo
contingenciamento injustificado das dotações orçamentárias e pela inadequação das suas escolhas.
Como bem destacou Ney Carvalho2, esses ciclos
de vinte anos são representativos na história brasileira.
Nas suas palavras: “Tais movimentos são repetitivos,
desenrolam-se em ondas recorrentes”. Os movimentos
populares de hoje se iniciaram a partir do reajuste dos
preços das passagens de ônibus. Por sua vez, em 1992,
assistimos aos “cara-pintadas” pedindo o impeachment do
então Presidente Collor. Em 1984, um milhão e meio de
pessoas foram às ruas bradar pelas “Diretas Já!”. Em 1968,
tivemos a passeata dos cem mil na Cinelândia, organizada
pelo movimento estudantil, contra a recém-implantada
Ditadura Militar. Em 1942, a UNE foi às ruas liderando
as manifestações antifascistas. Em 1925, a Coluna Prestes
pelo descontentamento com a República Velha. Em 1904, a
chamada Revolta da Vacina. Em 1880, foi a vez da Revolta
do Vintém. E tantas outras no período pré-republicano.
Por outro lado, as demandas sociais manifestadas nos
recentes movimentos populares não levam em consideração
uma premissa básica das finanças públicas: a de que tudo
tem um custo, mesmo que não seja visível a olho nu. Aliás,
como dizia o economista Milton Friedman, no título de
uma de suas obras: “Não existe almoço grátis”. Assim, para
atender a todas as demandas, o governo se deparará com o
velho dilema do “cobertor curto”: de um lado, a pressão e
o apelo social para o aumento dos gastos públicos, no que
se convencionou chamar de “conta das ruas”; de outro, as
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
limitações financeiras e a necessidade de se encontrarem
fontes alternativas para custear as novas despesas.
O fato é que, com duas décadas e meia da promulgação
da Constituição Federal de 1988, já tivemos 74 Emendas
Constitucionais, além de outras seis Emendas Revisionais.
Ao todo, portanto, oitenta mudanças no texto constitucional.
Mas, afinal, isso se justifica, pois o Direito está em
constante mutação, evoluindo pari passu com a sociedade,
a fim de atender às suas necessidades e realizar a sua função.
E a base jurídica dessa evolução é a Constituição, que, por
meio de suas emendas e revisões, adapta o seu texto a fim de
oferecer instrumentos jurídicos, econômicos e financeiros aos
anseios da coletividade e às pretensões dos governos, tudo por
meio da legítima atividade do Poder Constituinte Derivado.
Devemos reconhecer a necessidade de constantes ajus­
tes entre as normas constitucionais e a realidade fática e
contemporânea, sob pena de eventual descompasso acarretar
uma ruptura entre a ordem jurídica e a ordem social.
Precisamos, também, aceitar que o texto constitucional
não é provisório, mas sim um texto em contínuo desenvolvimento. Não se trata de um produto pronto e acabado,
mas de um documento vivo e em constante evolução.
A atividade estatal e a aplicação do Direito em cada
nação dependem do modelo constitucional adotado e do
ambiente jusfilosófico em que se inserem.
Assim, nestes 25 anos, identificamos claramente um
hibridismo em seu perfil e uma constante tensão entre
os valores sociais (de natureza coletiva) e os liberais (de
índole individual), que influenciam sobremaneira a figura
de um Estado atuante como o brasileiro.
“Precisamos, também, aceitar
que o texto constitucional não
é provisório, mas sim um texto
em contínuo desenvolvimento.
Não se trata de um produto
pronto e acabado, mas de
um documento vivo e em
constante evolução.”
Ao conceder maior efetividade aos valores e princípios
constitucionalmente previstos, permite-se exercer sua
função de maneira mais equilibrada, balanceando e
ponderando seus conceitos e comandos de ordem social
e liberal, absorvendo as demandas da coletividade com
maior capacidade e podendo responder a elas.
E, naturalmente, a atuação do Estado Contemporâneo
brasileiro acompanha em paralelo essas mudanças paradigmáticas à medida que a consolidação do Estado Democrático de Direito traz consigo a reconstrução do relacionamento
deste – e de suas instituições – com a própria coletividade.
Após vinte anos de ditadura militar, a nossa sociedade
encontrava-se sufocada pelo regime autoritário, acirrando-se
os ânimos para urgentes mudanças, não apenas quanto ao
regime político, mas também quanto ao sistema eleitoral.
O ano de 1984 foi decisivo. Viram-se, em todas as grandes
capitais, movimentos populares pela implantação do sistema
de voto direto e pela eleição de um presidente civil.
Entretanto, não havendo uma coesão política e
idealística, a Emenda Constitucional (“Emenda Dante
de Oliveira”) que deveria restabelecer o sistema eleitoral
direto para a Presidência da República foi reprovada pelo
Congresso em 25 de abril de 1984. O presidente eleito
pelo voto indireto, a partir do colégio eleitoral, Tancredo
Neves, veio a adoecer no dia de sua posse em 15 de março
de 1985 e a falecer no mês seguinte, assumindo o governo
em seu lugar o Vice-Presidente José Sarney.
Naquele momento de comoção social e mobilização
dos partidos políticos, podíamos identificar o início da
transição do regime autoritário para o democrático.
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 17
Naquela circunstância, era imperioso modificar as
ordens política e jurídica do Estado brasileiro, ainda subjugadas pela Carta de 1967, modificada diversas vezes ao
longo do período militar.
As associações de classe e os partidos políticos
progressistas demandavam a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte com representantes
eleitos pelos cidadãos e com função exclusiva de elaborar a nova Constituição, já que, daquela maneira,
haveria maiores legitimidade, representatividade e
soberania nas deliberações.
Todavia, mais uma vez frustrando-se os anseios dos
movimentos democráticos, a maioria dos deputados decidiu pela convocação do Congresso Constituinte em 1986,
formado por deputados federais e senadores eleitos em
novembro daquele mesmo ano, que acumulavam ambas
as funções: de congressistas e de constituintes.
Como bem ressaltou, à época, Raymundo Faoro3, “o
Poder Constituinte não pertence aos legisladores, ainda
que dotados de poderes de emenda, sejam os atuais ou
os futuros legisladores, mas ao povo em conjunto, e,
em expressão diferente, embora aceitável, à nação”. E
mais, em uma verdadeira lição de democracia, Faoro
nos ensina que “as constituintes não são convocadas,
ao contrário da tese insistentemente divulgada. As
constituintes nascem no momento em que o poder
constituinte renasce, muitas vezes à revelia do governo
de fato que o sufoca.”4
De toda forma, a assim denominada Nova República
se instaurava pela adoção de medidas relevantes, como
o acesso dos analfabetos ao voto, a autonomia para a
criação de partidos políticos e, sobretudo, a emenda
constitucional que permitiu eleições diretas para a
sucessão presidencial.
Instalada em 1o de fevereiro de 1987 e presidida pelo
Deputado Ulysses Guimarães, do PMDB (popularmente conhecido como “Senhor Diretas”), a Assembleia
Nacional Constituinte foi composta por 559 membros.
Diversos setores da sociedade foram instados a contribuir e influenciar as deliberações. Inúmeros conflitos de ordem ideológica surgiram, porém, avançou-se
muito em questões como a dos direitos sociais e do trabalho, dos direitos humanos, da cidadania e de outros
valores que redesenharam as ordens social, econômica
e política brasileiras.
Foram dezoito meses de trabalhos, e, em 5 de outubro
de 1988, foi promulgada a nova Constituição da República
Federativa do Brasil. Recebeu ela, à época, inúmeras
críticas, tais como a sua extensão (245 artigos e setenta
disposições transitórias); o excesso de disposições que
dependiam de regulamentação; a abordagem de temas
específicos que não comportavam o foro constitucional,
18
em situações em que a Constituição deveria se limitar a
estabelecer princípios gerais; e ambiguidades de ideais em
detrimento de uma harmonia, demonstrando o embate
das forças políticas da época.
De uma maneira sucinta, podemos dizer que a Constituição Federal de 1988 ofereceu uma vasta gama de direitos
fundamentais individuais e coletivos; aboliu a censura e
outros cerceamentos das liberdades; reduziu sobremaneira
o poder individual do Executivo e, inversamente, fortaleceu os Poderes Legislativo e Judiciário, dentro do jogo de
equilíbrio democrático de poderes; manteve o regime presidencialista (submetido a plebiscito em 1993) e a república
federativa; fortaleceu também os estados e municípios; e,
finalmente, reconstituiu o sistema tributário nacional, com
a redistribuição de tributos entre os entes federativos e a
respectiva repartição de receitas financeiras, solidificando
a autonomia dos estados e municípios, atenuando os desequilíbrios regionais e ampliando os direitos e as garantias
dos contribuintes. Igualmente, impôs maiores limitações
ao poder estatal de tributar, estendendo à seara fiscal os
valores de segurança jurídica, de liberdade e de igualdade,
necessários para a efetiva realização da almejada justiça
social dentro de um Estado Democrático de Direito que,
naquele momento, ressurgia.
Com mais de 220 anos, a Constituição dos Estados
Unidos sofreu apenas 27 emendas, enquanto a brasileira, nestes 25 anos que ora se completam, já passou
por seis Emendas Constitucionais de Revisão e outras
74 Emendas Constitucionais. Se esse excesso é ou não
pertinente, aqui não se pretende julgar.
Mas não temos como deixar de reconhecer como
válida a sua inexorável evolução.
A propósito, relevantes são as palavras de Carlos
Maximiliano5, para quem: “Não pode o Direito isolar-se
do ambiente em que vigora, deixar de atender às outras
manifestações da vida social e econômica. As mudanças
econômicas e sociais constituem o fundo e a razão de toda
a evolução jurídica; e o Direito é feito para traduzir em
disposições positivas e imperativas toda a evolução social.”
E, na mesma esteira, afirma Pinto Ferreira6 que “as
constituições não são obras eternas e permanentes; têm,
ao contrário, a necessidade de ajustamento e adaptação às
novas condições sociais e históricas.”
O que se percebe é um fluxo natural de influências e
pressões de interesses originados nas necessidades dos
governados e, principalmente, daqueles que governam,
seja democraticamente ou não.
Com sete Constituições, percebemos que não é ela
própria – a Constituição – que transforma a sociedade, mas
sim a sociedade e os detentores do poder em cada período
é que transformam a Constituição, que somente vem a
refletir os ideais das forças políticas que lhe dão vida.
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
Referências bibliográficas
“Com sete Constituições,
percebemos que não é ela própria
– a Constituição – que transforma
a sociedade, mas sim a sociedade
e os detentores do poder em
cada período é que transformam
a Constituição, que somente
vem a refletir os ideais das forças
políticas que lhe dão vida.”
Daí reconhecermos a importância dos valores e
anseios que nela se inserem, porque será com base nestes
que a sociedade viverá – bem ou mal.
A Constituição Cidadã, como foi assim conhecida na
sua origem, foi fruto de um particular momento histórico
e da mobilização da sociedade brasileira, desejosa de
um novo Brasil. Devemos, contudo, reconhecer as suas
imperfeições, buscar o seu aprimoramento e envidar
máximos esforços para que a Carta Maior possa produzir
os efeitos concretos originariamente pretendidos e oferecer
um mundo melhor aos brasileiros. Se, para encontrar o
ponto ideal de justiça social, o Brasil tiver de passar por
outras dezenas de emendas constitucionais, que assim se
faça, pois não há Constituição perfeita e tampouco existe
um ordenamento jurídico que seja perene.
Afinal, como bem leciona Michel Temer7, “as
Constituições se pretendem eternas, mas não são
imodificáveis”. E completa o eminente constitucionalista: “Fatores ideológicos, econômicos, o pensamento
dominante da comunidade, enfim, é que acabam por
determinar a atuação do constituinte.”
Esses 25 anos da Constituição Federal de 1988 devem
oferecer aos brasileiros e aos operadores do Direito motivos
não apenas para celebrar a data, mas principalmente
para reconhecer os efeitos positivos de ordem política,
jurídica, econômica e, sobretudo, social que estas duas
décadas e meia nos abonaram, com a consolidação da
transição de um regime autoritário para o democrático, o
amadurecimento das instituições, a inserção e a efetividade
dos direitos humanos fundamentais, e a conscientização
popular dos seus direitos e deveres cívicos, possibilitando
a solidificação do Estado Democrático de Direito.
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vinte anos da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
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Notas
1
ABRAHAM, Marcus. As emendas constitucionais tributárias e
os vinte anos da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Quartier
Latin, 2009.
2
Jornal O Globo, dia 1/7/2013, página 17.
3
FAORO, Raymundo. Assembleia Constituinte: a legitimidade
recuperada. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 81.
4
Idem. p. 89.
5
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito.
11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 157 e 159.
6
PINTO FERREIRA, Luis. Curso de direito constitucional. 11. ed.
São Paulo: Saraiva, 2001. p. 30.
7
TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 13. ed. São
Paulo: Malheiros, 1997. p. 34.
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 19
A Torah como fonte de
legislação – sua influência até os
dias de hoje no Direito brasileiro
Mario Robert Mannheimer
Desembargador do TJERJ
20
Foto: Mariana Fróes
A
Bíblia integrada pelo Pentateuco (os cinco
livros de Moisés, Torah, os livros dos Profetas
e os livros dos Escritos, sobretudo o primeiro)
pode ser lida e interpretada sob muitos
aspectos – religioso, mitológico, moral, ético, histórico.
Mas um dos aspectos que mais ressaltam o liame entre a
época e as circunstâncias em que essa obra foi compilada e
a sua interpretação nos dias de hoje é o jurídico.
Desde que o homem passou a viver em grupo, tornou-se
necessária a adoção de regras de convivência que
subordinassem a vontade do indivíduo às da coletividade,
as quais se desenvolveram de acordo com as peculiaridades
da organização social e econômica de cada coletividade.
Muitos povos antigos, além do de Israel, do qual
se originou o Pentateuco, organizaram codificações
escritas. Também todos ou quase todos os povos antigos
consideravam suas leis, codificadas ou não, como
emanadas ou inspiradas por força divina. Mas, como
todos acreditavam em vários deuses diferentes, alguns
competindo entre si, as leis deles emanadas eram por
vezes contraditórias e antagônicas.
O que até hoje constitui um enigma para os estudiosos
é como essa pequena confederação de tribos, parte de um
grupamento maior de nômades da mesma origem étnica,
desenvolveu, ao contrário de todos os outros povos da
época, o conceito de um Deus único, incorpóreo, portanto
insuscetível de ser representado por imagens de qualquer
espécie, não associado a nenhuma força da natureza
como o Sol, a Lua, o Mar, a Terra, ou a atributos humanos
como a força, a beleza, a fertilidade, mas criador de todo
o Universo e, portanto, o único dominador das forças da
natureza, onipotente e onisciente, do qual emanam todas
as normas de conduta impostas ao homem, não só as que
dizem respeito ao culto, mas também as que regulam as
relações dos indivíduos entre si e as organizações familiar
e social do grupo, exigindo de cada indivíduo o fiel
cumprimento de todas essas normas.
As características peculiares do Deus judaico são a causa
do caráter único de sua legislação, com princípios distintos
dos adotados por todos os povos da época, os quais, graças
à propagação das leis da Torah a muitos outros povos, pelo
fato de servirem de base ao cristianismo e ao islã, foram, em
muitos aspectos, adotados pela legislação contemporânea.
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
As leis da Torah se aplicavam, desde o início, a todos,
sem distinção, governantes e governados, aos escravos e
aos estrangeiros que habitavam junto ao povo de Israel,
ao contrário de outros povos nos quais os estrangeiros
não gozavam de qualquer proteção legal e os escravos
eram considerados não pessoas. Tais mandamentos são
precursores do princípio da “igualdade de todos perante
a lei”, inseridos nas declarações de direitos de todas as
Constituições democráticas contemporâneas.
Igualmente, a existência de um Deus único, a quem
todos deviam a mesma obediência, impedia que os reis
fossem divinizados ou considerados semideuses.
A instituição da monarquia, que se fez necessária para
possibilitar a unificação das tribos e a formação de um
exército único capaz de fazer frente aos inimigos externos,
é tratada com grande ambivalência no texto bíblico.
É de grande beleza o trecho do livro de Samuel 1,
capítulo 8, no qual o povo pede ao profeta Samuel que
escolha um rei, e o profeta tenta demovê-lo da ideia
dizendo que um rei tomará os filhos e as filhas do povo
para seu serviço e cobrará impostos.
Os reis estavam subordinados à Lei, como quaisquer
outros, e eram admoestados pelos profetas e até mesmo
depostos quando transgrediam os mandamentos. Destaque-se a passagem em que o profeta Natan repreende o
rei David por ter planejado a morte de Urias, marido de
Bat-Sheva, a quem o rei cobiçava (Samuel 2, capítulo 12).
No livro Deuteronômio 17/14-20 são estabelecidas regras
sobre a eleição e os deveres de um rei. Os versículos 18 e 19
mencionam a obrigação do rei de guardar consigo, durante
toda a sua vida, um rolo da Lei “para que aprenda a temer
o Senhor, seu Deus, e a guardar fielmente todos os seus
ensinamentos e a observar estas leis”. Tal disposição revela
uma clara limitação aos poderes dos reis e sua obrigação
de respeitar as leis. Trata-se de uma autêntica norma de
Direito Constitucional, precursora de outras que vieram
posteriormente, limitando os poderes dos governantes.
Não se encontra nas disposições legais contidas no
Pentateuco a sistemática dos modernos códigos, não há uma
sequência organizada, as normas de conduta se apresentam
entremeadas com preceitos – religiosos, morais, éticos e
ritualísticos – sem qualquer distinção hierárquica entre eles.
Entretanto, examinando o seu texto, podem-se identificar
facilmente princípios dos direitos Constitucional, Penal,
Civil, Comercial, Trabalhista e Processual, muitos dos quais
se incorporaram à legislação laica atual.
Quase todos os Estados atuais possuem uma Constituição contendo, além de normas sobre a organização política
do Estado, uma relação de direitos e garantias fundamentais,
as chamadas “cláusulas pétreas”, que não podem ser modificadas por leis posteriores e, nem mesmo, por Emendas
Constitucionais, mas somente por uma nova Constituição.
Isso ocorre na Torah com o Decálogo, os Dez Mandamentos (Êxodo, 20/2-17), segundo a tradição, inscritos nas duas
Tábuas da Lei, entregues a Moisés no Monte Sinai, representando o pacto celebrado entre Deus e as 12 tribos de Israel.
O Decálogo mescla princípios que hoje são puramente
religiosos – o reconhecimento do Deus de Israel, que
libertou o povo da escravidão egípcia, a proibição de
adorar outros deuses e de fabricar imagens que possam
ser objeto de adoração, e a proibição de utilizar o nome de
Deus em vão –, contidos nos três primeiros mandamentos,
com outros que constituem normas de ordem penal em
todas as legislações – a proibição de matar, furtar e prestar
falso testemunho –, contidos nos 6o, 8o e 9o mandamentos,
e ainda outros que hoje têm força puramente moral – o
de honrar pai e mãe (5o mandamento), o de não cometer
adultério (7o mandamento), que, até pouco tempo, era
considerado crime pela lei brasileira, e a proibição de
cobiçar os bens alheios (10o mandamento).
Destaque especial merece o 4o mandamento, o de
guardar o shabat (sábado). Embora outros povos tivessem
festivais religiosos nos quais não trabalhavam, ou feriados
concedidos pelos governantes, a característica marcante
do shabat judaico era seu caráter perpétuo e o fato de
se estender também aos escravos, aos estrangeiros e até
mesmo aos animais domésticos. A prática de um dia
de descanso, não somente para permitir a recuperação
do desgaste causado pelo trabalho, mas também para
propiciar ao indivíduo uma oportunidade de oração
e reflexão, foi adotada pelo cristianismo e pelo islã, e
posteriormente pelas legislações laicas, incorporando-se
ao Direito Constitucional e ao Trabalhista, sendo consi­
derado, na opinião do rabino W. Gunther Plaut (The
Torah: A Modern Commentary), a contribuição mais
original de Israel à lei do mundo.
Ainda no campo do Direito Constitucional, a Torah
dá um destaque especial à administração da Justiça,
sobretudo no livro do Deuteronômio, cujo capítulo
16, versículo 20, traz a exortação: “A justiça, a justiça
perseguirás, para que vivas e possuas a terra que te dará
o Senhor teu Deus.” O versículo 18 do mesmo capítulo
dispõe: “Juízes e oficiais porás em todas as tuas portas,
que o Senhor teu Deus te der, entre tuas tribos, para que
julguem o povo com a devida Justiça”. Os comentaristas da
Torah entendem que esse dispositivo se dirige ao povo, no
qual residia o atributo final de designar os juízes entre os
anciões e sábios, encontrando-se aí o embrião da separação
dos Poderes, embora ocasionalmente alguns reis também
administrassem justiça, como Salomão. Nos demais povos
da Antiguidade, e até mesmo posteriormente, o poder de
nomear juízes pertencia exclusivamente aos monarcas.
A preocupação com a Justiça é um ponto central da lei
judaica. Várias são as recomendações dirigidas aos juízes:
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 21
“Não serás parcial no julgamento; ouvirás assim o pequeno
como o grande. Não temas homem algum porque o
julgamento é de Deus” (Deuteronômio 1/17). “Não torcerás
o juízo, não mostrarás parcialidade nem tomarás suborno,
porque o suborno cega os olhos dos sábios e perverte as
palavras dos justos” (Idem, 16/19). “Não farás injustiça no
juízo, não favorecerás o pobre ou demonstrarás deferência
ao rico; com justiça julgará o teu próximo” (Levítico, 19/16).
Esse senso de justiça guarda um caráter nitidamente
social, incomum naquela época. Nota-se um cuidado
especial na proteção do estrangeiro do órfão e da viúva
(Êxodo 22/21-22 e Deuteronômio 10/18-19), as sobras da
colheita deveriam ser deixadas para o pobre, o estrangeiro,
o órfão e a viúva (Levítico 19/9-10 e Deuteronômio 24/2021). Além disso, embora fosse mantida a escravidão, na
época uma prática comum a todos os povos, a mesma era
limitada a sete anos com relação ao escravo hebreu.
A já mencionada preocupação com a Justiça leva à
existência na Torah de princípios de Direito Processual.
Em Deuteronômio 13/14, ressalta-se a necessidade de
“investigar, interrogar, inquirir rigorosamente”, antes de
se concluir que uma cidade praticara a idolatria, o que
acarretava a condenação de seus habitantes à morte, e em
19/15, do mesmo livro, consta a previsão de que ninguém
seja condenado por qualquer acusação com base em um
só testemunho, exigindo-se dois ou se possível três.
Verifica-se, assim, que, embora ainda predominasse
o princípio “olho por olho, dente por dente, queimadura
por queimadura, vida por vida” (a chamada Lei de Talião),
e existissem numerosas ofensas punidas com a morte, o
que era a regra em todas as legislações da época, existia
na legislação judaica uma preocupação de se evitar uma
condenação injusta.
Ainda no campo do Direito Processual, verifica-se
em Deuteronômio 24/6 a proibição de tomar em penhor
pedras de moinho, utilizadas para a produção de farinha,
produto necessário à subsistência, regra que ingressou
no Código de Processo Civil brasileiro, no qual se veda
a penhora dos instrumentos necessários ou úteis ao
exercício de qualquer profissão.
No campo do Direito Penal, consta em Deuteronômio
24/16 que “os pais não morrerão pelos filhos nem os filhos pelos pais”, isso em uma época em que era comum punir-se toda
a família pelos atos de um de seus membros. Essa norma deu
origem a uma das regras básicas do Direito Penal moderno, o
de que a pena não passará da pessoa do criminoso.
Ainda no Direito Penal, já encontramos na Torah a
distinção entre o homicídio doloso, praticado voluntariamente, e o culposo, decorrente de negligência, imprudência ou imperícia, praticado sem a intenção deliberada de matar. Naquela época, era oficialmente sancionada
a vingança privada, um parente da vítima, o vingador
22
do sangue, autorizado a matar o ofensor, mas se o homicídio fosse considerado como não intencional pelo
Conselho de Anciões, o homicida tinha o direito de ser
acolhido em uma das seis cidades de refúgio existentes,
onde não poderia ser atingido pelo vingador do sangue
e, após a morte do sumo-sacerdote, ficaria liberado para
voltar à cidade onde antes residia (Números 35/10-34 e
Deuteronômio 19/1-13).
No Direito de Família, encontramos regras sobre
impedimentos matrimoniais, sobretudo decorrentes
de relações de parentesco, hoje adotadas com algumas
modificações por praticamente todas as legislações
modernas (Levítico 18/1-18). Encontramos, ainda, normas
minuciosas de Direito das Sucessões em Números 27/811 e garantia de proteção do direito do primogênito, que
não podia ser deserdado pelo motivo de não ser filho da
esposa favorita do testador (Deuteronômio 21/15-17).
Existem, ainda, normas de Responsabilidade Civil –
previsão de indenização por danos causados à pessoa ou
a bens de terceiros, inclusive responsabilidade do dono de
animais por danos causados pelos mesmos (Êxodo, capítulos
21 e 22); regras sobre construção – obrigação de construir um
parapeito sobre o telhado de uma casa nova para prevenir
quedas (Deuteronômio 22/8); Direito das Coisas – proibição
de remover marcos divisórios de propriedades vizinhas;
Direito Comercial – proibição de fraudar pesos ou medidas
(Levítico 19/35-36, Deuteronômio 25/13-15).
Estão presentes, também, normas de Direito Interna­
cional Público, leis reguladoras da guerra, como a proibição
de abater árvores frutíferas pertencentes a uma cidade
inimiga que está sendo sitiada (Deuteronômio 20/19); e,
ainda, de Direito do Trabalho por meio da instituição do dia
de repouso conforme mencionado acima e da obrigação de
pagar diariamente aos trabalhadores contratados: “A paga
do trabalhador diarista não ficará contigo até a manhã”
(Levítico 19/13 e ainda Deuteronômio 24/14-15).
Com o passar do tempo, a legislação introduzida pela
Torah enfrentou o mesmo dilema de todas as legislações
de fundo religioso: como conciliar a necessidade de
alteração diante da mudança nas condições sociais com
o conceito de lei revelada por Deus, o qual pressupõe
a sua imutabilidade? O estratagema encontrado pelos
rabinos foi o de introduzir o conceito de que, além da
lei escrita na Torah, existia uma lei oral (Torat she be al
pe), igualmente revelada por Deus no Sinai, e, assim, sob
o pretexto de fixar e comentar essa lei oral, os sábios que,
durante várias gerações, compilaram o Talmude, e outros
comentários posteriores, introduziram as modificações,
os acréscimos e as inovações que se fizeram necessários
para adaptar a lei às novas situações que surgiram,
inclusive com a perda da independência política a partir
dos exílios babilônico e romano.
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
L ivros
“A Segunda Guerra Fria”
Em sua nova obra, A Segunda Guerra Fria,
Moniz Bandeira analisa a Primavera Árabe
e os conflitos na África, onde o conflito na
Síria ganha destaque nas reflexões sobre o
Oriente Médio.
C
onsiderado o mais importante especialista bra­
sileiro em relações internacionais, o cientista
político Moniz Bandeira avalia as causas,
as consequências e, sobretudo, os interesses
políticos em jogo nos conflitos no Oriente Médio e
nos países do norte da África. Com base em farta
documentação e informações de fontes seletas, nessa obra
o autor mostra as guerras em curso, como na Síria, ou como
as revoluções já ocorridas contra governos estabelecidos
que atendem aos desejos do Ocidente, principalmente dos
Estados Unidos. “O objetivo dos Estados Unidos sempre
foi a derrubada do regime de Bashar al-Assad, de modo a
eliminar a presença da Rússia no Mediterrâneo, fechando
suas bases navais – Tartus e Latakia – instaladas na Síria,
bem como conter o avanço da China no Oriente Médio
e no Magreb, isolar o Irã e cortar seus vínculos com o
Hizbollah, no Líbano, de acordo com os interesses de
Israel”, diz Moniz Bandeira.
A Segunda Guerra Fria – Geopolítica e dimensão
estratégica dos Estados Unidos (Das rebeliões na Eurásia à
África do Norte e ao Oriente Médio) é um livro de história,
mas de história do presente. Este novo livro de Moniz
Bandeira deslinda as raízes e lança um olhar sobre as
perspectivas dos conflitos no Oriente Próximo e na Ásia
Central, primeiros embates do que poderia ser uma futura
(mas não tão distante e talvez já em curso) disputa pela
hegemonia entre os Estados Unidos e a República Popular
da China, ou, dito de outra forma, entre o Ocidente
capitalista desenvolvido (porém estagnado) e o Oriente
capitalista dinâmico, mas ainda subdesenvolvido.
* Com informações tiradas do material de divulgação e do prefácio do
livro, assinado pelo Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 23
Foto: Mariana Fróes
OAB-RJ busca melhorias
para os Juizados
Especiais Cíveis
Da Redação
Trabalhando em conjunto com o
TJ-RJ, a entidade realizou pesquisa
com cerca de 1.800 advogados que
atuam nos JECs para propor soluções
capazes de otimizar o dia a dia
dessas unidades judiciais
A
presidente da Comissão dos Juizados Especiais
Estaduais da Ordem dos Advogados do Brasil,
Seção do Rio de Janeiro (OAB-RJ), a advogada Kátia Junqueira, mostra-se confiante na
melhoria das condições de trabalho dos advogados nos
Juizados Especiais Cíveis do Rio de Janeiro. Responsável
pela realização de uma pesquisa realizada com cerca de
1.800 advogados, ela dá sua visão sobre o assunto nesta
entrevista à Justiça & Cidadania.
O levantamento, que resultou em um relatório de
avaliação com 22 propostas concretas para otimização
dos JECs, permitiu identificar a origem dos principais
problemas que afetam a todos – partes, advogados, juízes
e serventuários.
24
Além de dar voz ativa ao advogado militante, a consulta
realizada pela OAB-RJ tem a expectativa de, em conjunto
com o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
(TJ-RJ), alcançar melhorias básicas e essenciais para os
JECs de todo o Estado. A perspectiva é que tais propostas
contribuam para entregar à sociedade um juizado mais
ágil e eficiente, bem como ofereçam aos magistrados mais
possibilidades de dedicação ao seu verdadeiro mister:
prestar jurisdição.
Justiça & Cidadania – Como a OAB avalia o resultado
da pesquisa realizada?
Kátia Junqueira – Bem, na realidade, há muito já se ouvia
o clamor dos advogados no que concerne à necessidade de
mudanças no funcionamento dos Juizados Especiais Cíveis.
Nesse sentido, essa pesquisa serviu para comprovar, por meio
de dados concretos e não mais empíricos, que os Juizados
Cíveis não vêm funcionando dentro do conceito de agilidade
com base no qual foram criados. Além disso, a pesquisa
permitiu que identificássemos a origem dos principais
problemas. É certo que todos os envolvidos dentro dessa
atividade, como partes, advogados, juízes e serventuários,
sofrem os efeitos dessa situação. Dessa forma, vemos como
muito positivo o resultado da pesquisa, já que mais de 79%
dos que a responderam afirmam utilizar frequentemente os
serviços do JEC. Isso permitiu ao advogado militante ter voz
ativa, o que é necessário e democrático.
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
JC – Quais foram os principais problemas identificados?
Os pontos que tiveram pior avaliação na pesquisa foram
os serviços cartorários e o trabalho dos juízes leigos. Nesse
sentido, o tempo de juntada das petições e remessa à
conclusão é um ponto crítico. No caso dos juízes leigos,
as questões do tratamento dispensado ao advogado, da
consignação em ata das solicitações das partes e do tempo
das sentenças também foram mal avaliadas na pesquisa.
Outros pontos mal avaliados foram o tempo médio da
distribuição até a primeira audiência e outra questão
importantíssima: a pontualidade das audiências.
JC – E o que a OAB-RJ pretende fazer a partir de agora?
KJ – O presidente Felipe Santa Cruz tem uma preocu­
pação muito grande de lutar por melhores condições
de trabalho para os advogados e é nessa linha que
estamos trabalhando. A Comissão dos Juizados Especiais
Estaduais preparou um relatório de avaliação da pes­
quisa, que foi entregue a ele. Esse relatório aponta vinte
e duas sugestões de melhoria. Estamos aguardando
uma reunião para apresentação formal desse relatório à
presidente do Tribunal de Justiça do Rio, desembargadora
Leila Mariano, e à presidente da Comissão dos Juizados
Especiais (Cojes), desembargadora Ana Maria Pereira
de Oliveira. Temos certeza de que o Tribunal de Justiça
se mostrará sensível às nossas ponderações e sugestões,
afinal, se conseguirmos melhorias será por meio de um
trabalho conjunto, e haverá benefícios para todos os
envolvidos nesse processo.
JC – Quais são as sugestões de melhoria?
KJ – Foram propostas diversas soluções para mitigação
dos problemas constatados que, a nosso ver, apesar de não
esgotarem o tema, podem nortear os próximos passos em
busca de soluções (veja quadro).
JC – Qual a sua expectativa em relação ao resultado
vindouro desse trabalho?
KJ – A expectativa é de que, em conjunto, a OAB-RJ e o Tribunal do Rio possam alcançar melhorias básicas e essenciais
nos Juizados Cíveis de todo o Estado. Para os advogados é
evidente que haverá benefício ao se estabelecer maior agilidade nessa esfera, na medida em que esses profissionais receberão mais rapidamente seus honorários, a imagem desse
profissional será beneficiada perante seus clientes e seu tempo será otimizado. Para as partes, principalmente para os
autores, essas melhorias se traduzem em que seus problemas
sejam resolvidos mais rapidamente, incrementando o nível
de satisfação com seus advogados e a Justiça. Espera-se, e
também para o Poder Judiciário em geral, um Juizado mais
ágil e eficiente, que permita benefícios como a melhoria de
imagem da instituição, ademais de economia de recursos,
bem como permitir aos magistrados maior possibilidade de
dedicação ao seu verdadeiro mister: prestar jurisdição.
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 25
As 22 propostas apontadas pela
pesquisa da OAB-RJ
1. Criação de um grupo de trabalho permanente, com represen­
tantes indicados pelo Tribunal de Justiça do RJ e pela
OAB-RJ, para debate e acompanhamento da implementação das ações sugeridas e outras que, ao longo das discussões de trabalho, se mostrem adequadas e relevantes;
2. Levantamento e padronização procedimental nos JECs
(exemplo: alguns juizados se negam a fornecer certidões,
outros fornecem, porém, apenas mediante o pagamento de
GRERJ), buscando otimizar as práticas adotadas e dar-lhes
agilidade;
3. Designação de magistrados exclusivos para as Varas dos
Juizados Especiais Cíveis;
4. Levantamento de eventuais deficiências de infraestrutura
no que tange a equipamentos, estrutura física e recursos
humanos nos serviços cartorários, para solução dos
mesmos;
5. Intensificação de treinamento dos serventuários e juízes
leigos, buscando a melhoria do tratamento aos usuários
dos serviços dos Juizados (advogados e partes);
6. Intensificação do treinamento de conciliadores, juízes
e servidores, já que, segundo dados do Relatório IPEA
(Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), apenas
50,55% daqueles possuem cursos voltados para a prática
da conciliação;
7. Participação de advogados indicados pela OAB-RJ nos
treinamentos citados nos itens anteriores;
8. Estabelecimento de metas individuais para os serven­
tuários e alteração da política de gratificação desses,
com a finalidade de que seja a mesma 100% calcada no
alcance das metas de produtividade;
9. Mapeamento e classificação dos cartórios mais produtivos, com divulgação pública desse ranking e com identificação das melhores práticas adotadas e disseminação
dessas práticas em outras serventias;
10.Aprofundamento da análise da situação dos cartórios
avaliados com pior desempenho para identificação e
correção dos problemas;
11.Avaliação da necessidade de realização de concursos
para suprir eventual defasagem de juízes/serventuários/
juízes leigos1;
26
12. Exigência de juízes leigos com formação em Direito nos
concursos destinados ao exercício dessa função;
13.Remuneração dos juízes leigos com base nos acordos
realizados e não com base nos projetos de sentença, uma
vez que a pacificação de conflitos por meio de solução
amigável é o objetivo maior dos Juizados;
14.Distribuição nos cartórios de formulários e urnas
lacradas, para avaliação dos serviços cartorários e dos
juízes leigos pelos advogados após a realização das
audiências, bem como para que estes possam apresentar
sugestões de melhoria, garantindo-se o anonimato do
proponente e que essa avaliação seja considerada para
efeito de remuneração/promoção dos avaliados;
15. Maior incentivo à Justiça Itinerante;
16.Publicação e disponibilização de todas as sentenças dos
Juízes leigos no Diário Oficial em prazo máximo, a ser
definido pelo Grupo de Trabalho OAB-RJ/TJ-RJ;
17. Afixação das pautas para que tenham fácil visibilidade e
realização de pregões de forma audível;
18.Incremento do tempo médio previsto para duração das
audiências nas pautas dos Cartórios, para que não haja
tantos atrasos e, consequentemente, tantos prejuízos às
partes e advogados;
19.Prioridade dos serviços cartorários na liberação de
mandados de pagamento;
20.Continuidade e incremento da política de realização
dos Mutirões de Conciliação, em linha com a visão
contemporânea do Direito, no sentido de incentivar os
meios alternativos de resolução de conflitos;
21.Estabelecimento de cronograma que preveja a redução
gradativa de tempos máximos de atraso das audiências, até
se chegar ao máximo de 30 minutos em agosto de 2015;
22.Estudos e preparação de cronograma para que todos os
juizados obtenham a certificação ISO 9000 em prazo
razoável.
Nota
O mesmo relatório do IPEA conclui que, no Estado do Rio de
Janeiro, no que se refere à Justiça Itinerante, a falta de recursos
humanos prevalece sobre a falta de recursos físicos.
1
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 27
Foto: cenarioestrategico.com
D om Quixote, por Carlos Alberto Luppi
“Vamos construir
um mundo melhor”
Um DVD para crianças e escolas
P
Embaixador Sergio Vieira de Mello
erpetuado na memória do mundo, o diplomata
Sergio Vieira de Mello, agora, também se tornou
inesquecível na memória de milhares de crianças
de escolas públicas do Rio de Janeiro, sua cidade
natal. Uma iniciativa da Prefeitura do Rio, através da
Empresa Municipal de Multimeios RJ – ligada à Secretaria
de Educação e em conjunto com o Centro de Informações
das Nações Unidas no Brasil – UNIC Rio apresenta,
em um DVD, toda a trajetória do diplomata com um
resumo de suas ações humanitárias a serviço da ONU e
de seu exemplo e compromisso com os valores e direitos
humanos. A linguagem do documentário é simples e de
fácil compreensão, contendo ilustrações variadas, trechos
de seus discursos e depoimentos de personalidades
enfatizando diversos artigos da Declaração Universal dos
Direitos Humanos.
O DVD, com tiragem de 15 mil cópias, conta a história
de Sergio a partir do atentado que o vitimou no Iraque,
em agosto de 2003, com imagens originais do episódio,
algumas dramáticas, narrado pela rede de televisão
americana CNN.
Por meio de diversas ilustrações animadas, as crianças
são levadas a conhecer o Planeta Terra, a formação das
nações, os princípios que unem todos os povos do mundo:
valores humanos como honestidade, integridade, lealdade,
responsabilidade, bondade, dignidade, altruísmo, justiça,
ética, solidariedade, sinceridade, sabedoria, respeito, apre­
28
sen­tados como “alicerces fundamentais da sociedade e
todos eles integrados à vida e à atuação de Sergio Vieira de
Mello”, resume o vídeo.
Dentro desse contexto, o DVD mostra a criação da
ONU em 1945, a importância da organização mundial e
dá ênfase à promulgação – em dezembro de 1948, durante
a realização da Assembleia-Geral da ONU, em Paris – da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela primeiradama americana Eleanor Roosevelt, como “Carta Magna
Internacional”. Em imagens da época, Eleanor apresenta
a ONU como “o lugar onde todos os problemas mundiais
podem ser enfrentados através do diálogo para que sejam
evitadas catástrofes mundiais como a última guerra que
matou mais de 60 milhões de pessoas”, se referindo à
Segunda Guerra Mundial.
“Vivemos hoje – diz Eleanor Roosevelt em seu discurso
histórico – um acontecimento grandioso na história das
Nações Unidas e da existência humana. A Declaração
Universal dos Direitos Humanos deverá se tornar a Carta
Magna Internacional para todos os seres humanos em
todos os lugares.”
Com depoimentos de personalidades como o diretor
do UNIC Rio, Giancarlo Summa, e da especialista em
Direito Constitucional e Direitos Humanos, a advogada
Flávia Bahia Martins, o DVD ressalta para o público
infantil a necessidade de todos se empenharem na
preservação dos valores fundamentais da vida, destacando
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
ainda o alto valor das ações humanitárias da ONU, que
“reúnem organizações e projetos que levam assistência e
ajuda sanitária, educação e alimentação a muitos povos
em situações emergenciais”.
Detalhes da história do diplomata Sergio Vieira
de Mello, filho de Gilda dos Santos e Arnaldo Vieira
de Mello, diplomata, posteriormente aposentado,
compulsoriamente pelo regime militar de 64, também
são mostrados. Sua infância no Rio, sua trajetória
como estudante do colégio Franco-Brasileiro e como
frequentador, quando jovem, da praia do Arpoador, assim
como suas viagens pelo mundo, acompanhando sempre a
atuação do pai. Sergio frequentou a Universidade de Paris,
onde obteve doutorado em Filosofia e, depois, em Letras
e Ciências Humanas. Em 1969, tornou-se funcionário da
ONU, passando desde então a maior parte de sua vida
trabalhando no Alto Comissariado das Nações Unidas
para os Refugiados. Tinha um grande sonho: fazer
todo o esforço possível para tornar o mundo um lugar
melhor para todos.
Sua trajetória, apresentada no DVD, o fez viver de
perto fatos e situações que reforçaram seu ideal, “em que
os bons valores se tornam uma virtude”, com atuações
decisivas entre 1970 e 2003 em causas humanitárias de
extremo significado.
“Oi, meu nome é Sergio Vieira de Mello. Sou brasileiro
e Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos.
Entrei na Organização aos 21 anos, tive a sorte de atuar
em Bangladesh, Chipre, América do Sul, Bósnia, Líbano,
Camboja, Kosovo e Timor Leste. Esta Organização é a
melhor oportunidade que se tem na vida para alcançar
seus sonhos” – diz Sergio Vieira em um de seus discursos
de boas-vindas aos novos funcionários da ONU, retirado,
assim como outras cenas, imagens e declarações, do
documentário “Sergio”, feito em 2009, nos Estados Unidos,
pelo diretor Greg Barker, numa produção da HBO.
“Nunca se esqueçam de que os verdadeiros desafios e
recompensas de se servir à ONU e defender seus princípios
humanitários estão no campo de ação, onde as pessoas
estão sofrendo, onde elas precisam de vocês”, acrescenta
ele em outra ocasião.
O DVD apresenta um resumo da atuação do diplomata,
em seus 34 anos de serviço, com a afirmação de que “a
soma de Valores Humanos e Direitos Humanos é igual a
um Mundo Melhor”, ou de que a soma de “Solidariedade
e Estrutura Social” é a grande motivadora das ações
humanitárias.
Em destaque, ainda, o esforço de Sergio Vieira de
Mello em ajudar a solucionar conflitos em diversas partes
do mundo. Em Moçambique, em 1975, e no Camboja,
em 1991, “onde chefiou a maior operação humanitária da
história da ONU, conseguindo um feito notável de manter
diálogo com o Khmer Vermelho, e firmar um acordo com
este grupo radical que permitiu o retorno de milhares
de refugiados às suas comunidades”. Depois, em 1999,
no Timor Leste, onde “sua atuação foi a de um Chefe de
Estado”, tendo conseguido fazer do país um membro da
ONU, além de uma nação independente.
Diversos artigos da Declaração Universal dos Direitos
Humanos são apresentados às crianças, ao longo do
documentário, para explicar o pensamento de Sergio
Vieira de Mello, a essência de sua atuação, o sentido de
sua missão e os valores humanos que ele defendia, como
o artigo 1o: “Todos os seres humanos nascem iguais em
dignidade e direitos”, o artigo 3o: “Todo ser humano tem
direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” e, ainda,
o artigo 21: “Todo ser humano tem direito a fazer parte
do governo de seu país, diretamente ou por intermédio de
representação, livremente escolhida”.
Um dos momentos mais dramáticos do DVD refere-se
ao atentado que matou o diplomata, em agosto de 2003:
“Pedi ao sr. Sergio Vieira de Mello que servisse e atuasse
como meu representante especial no Iraque. Ele liderava
nesse país o esforço da ONU na causa humanitária” diz o
então Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan.
A explosão do caminhão-bomba que matou Sergio
Vieira de Mello tirou-o literalmente do meio do povo.
Sergio, em Bagdá, dispensou carros oficiais, andava no
meio do povo, percorria lugares de táxi e de ônibus e
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 29
não morrem e seu legado fica”. O DVD apresenta ainda a
Escola Municipal que leva seu nome em sua homenagem,
no Rio de Janeiro, ressalta o dia 19 de agosto como o Dia
Mundial da Ação Humanitária, instituído oficialmente
pela ONU, e apresenta um grupo de crianças que, diante
do monumento em sua homenagem, declama a frase:
“O ser humano tem o direito de viver com dignidade,
igualdade e segurança. Não pode haver segurança sem paz
verdadeira e a paz precisa se construir da solidariedade, a
base firme dos direitos humanos”.
Sergio Vieira de Mello, o brasileiro que sonhava em
melhorar o mundo, dedicou toda a sua vida a esse objetivo.
Ganhou, postumamente, o Prêmio de Direitos Humanos da
ONU, tornando-se um símbolo para as crianças e para todos
os cidadãos de todas as idades em todo o mundo.
Na vida e na morte, a defesa dos
direitos humanos
O Embaixador Sergio Vieira de Mello consolidou, após
sua morte no Iraque, a imagem que cultivou em vida: a de
ser um dos maiores humanistas da história do Brasil.
Sergio foi vitimado por um atentado contra o escritório
da ONU que chefiava como Alto Comissário das Nações
Unidas para os Direitos Humanos e como representante
direto do então Secretário Geral da Organização das
Nações Unidas, Kofi Annan.
Carioca, ele dedicou sua vida à causa do ser humano,
dialogando, em nome da ONU e seguindo suas firmes
convicções, com pessoas, povos e líderes de países diversos,
mediando situações de conflito, sempre sonhando em que
seus atos pudessem, de fato, melhorar o mundo em quem
vivemos.
Sua história, suas ações em diferentes países do mundo,
de 1969 a 2000, seu pensamento humanístico e sua atuação
decisiva na mediação de muitos conflitos mundiais integram
um DVD feito pela MultiRio, em conjunto com a UNIC
(Centro de Informação das Nações Unidas), que será
distribuído para todas as escolas públicas do Rio de Janeiro,
a partir do dia 10 de dezembro destinado a milhares de
crianças e jovens. O DVD conta, ainda, a história da ONU,
sua criação e a importância da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, promovendo a cultura da paz entre as
pessoas e os países.
30
Sergio Vieira de Mello foi mais que um exemplo de fé e
coragem. O caráter humanista de sua formação, associado
ao seu talento para a negociação e a defesa dos princípios
democráticos e dos direitos humanos, mesmo em situações
adversas, foram fatores-chave do sucesso de muitas de suas
iniciativas.
E a data para seu lançamento oficial não poderia
ser melhor: 10 de dezembro. Data que em todo o mundo
se comemora no aniversário da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, a chamada “Carta Magna da
Humanidade”. Uma Carta cujos princípios fundamentais
tiveram em Sergio Vieira de Mello um dos seus maiores
defensores. Tanto em sua vida, quanto em sua morte, vítima
da extrema violência que representa o lado mais escuro do
ser humano.
O DVD “Vamos construir um mundo melhor”, é
inédito, contém imagens exclusivas de Sergio Vieira de Mello
em diversos momentos de sua vida e pode ser acessado na
videoteca da MultiRio no link:
http://bit.ly/1irFgdB
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
O pecado do Diplomata Saboia
Ana Flávia Velloso
A
Advogada
Professora de Direito Internacional Público no Centro de Ensino Unificado de Brasília (CEUB)
o dar execução ao asilo concedido pelo
governo brasileiro ao senador boliviano,
retirando-o de seu país, o diplomata Eduardo
Saboia não praticou ato ilícito à luz do Direito
Internacional e, sobretudo, da Constituição brasileira. O
governo concedera a Molina asilo diplomático. Deveria,
portanto, exigir salvo-conduto para que ele pudesse ser
conduzido ao exterior. O salvo-conduto não é autorização
para que o asilado deixe o país, mas garantia de que sairá
com segurança do território onde ocorre risco à sua
integridade ou liberdade.
A história registra episódios isolados de recusa do
salvo-conduto. Foi o que ocorreu nos anos 1940, no caso
Haya de La Torre, que Peru e Colômbia levaram à Corte
Internacional de Justiça. A tese peruana era a de que a
identificação dos pressupostos do asilo deveria ser feita
mediante entendimento entre o Estado que concede o asilo
e o Estado territorial. A decisão da Corte foi inexequível,
não houve acordo entre os dois países e Haya de La Torre
viveu por três anos na residência do embaixador da
Colômbia, em Lima. Não houve, naquele caso, protelação
indefinida, mas negativa explícita e confronto aberto de
diferenças perante o tribunal internacional.
Pouco depois, a Convenção de Caracas, de 1954, consolidou regra de direito costumeiro internacional segundo a qual
cabe ao Estado que concede o asilo dizer se há ou não perseguição política e. se ocorrente a situação de urgência vivida
pelo postulante, pressupostos essenciais do asilo político.
A associação entre os casos de Molina e de Julian
Assange, abrigado na Embaixada do Equador em Londres,
não é adequada. É que as situações são diferentes sob o
ponto de vista jurídico. O Reino Unido não se inclui
entre os Estados que reconhecem o asilo diplomático
como norma costumeira internacional, não se vinculando
juridicamente ao instituto, como é o caso do Brasil e da
Bolívia, signatários da Convenção de Caracas. Foi, aliás,
na América Latina que o instituto se desenvolveu, sendo
regionais as convenções que o disciplinam: Havana, 1928,
Montevidéu, 1933, Caracas, 1954.
Foto: Arquivo pessoal
frequentava locais remotos, onde podia ouvir e entender o
povo, seus problemas, suas angústias e seus anseios.
“Eu passei os últimos meses viajando pelo país,
encontrei uma grande diversidade de iraquianos, políticos,
jornalistas, artistas, líderes sociais, advogados, líderes
espirituais, ativistas de direitos. Eles querem de volta o
controle sobre seu próprio país em primeiro lugar”, relata
o diplomata. Esse foi seu último discurso, em 22 de julho
de 2003, relatando à ONU a situação caótica do país em
guerra e em estado geral de conflito.
O documentário finaliza mostrando que o nome
de Sergio Vieira de Mello simboliza a cultura da paz, a
honestidade e a solidariedade e estimula as crianças a
seguirem seus passos, a ter nele uma referência “para
trilhar uma trajetória de valor. Os valores que ele defende
Não sendo ilícita, segundo o direito das gentes, a
conduta de Saboia, por que o ameaçam seus superiores
hierárquicos? Se foi atípica a retirada do asilado, foi
também anômala a situação em que ele se encontrava,
confinado em uma sala durante um ano e meio.
As críticas a Saboia falam de insubmissão à hierarquia
funcional, importante, é certo, na carreira diplomática.
Circunstâncias, entretanto, justificam o ato do diplomata,
que optou pelo respeito à dignidade humana, aos direitos
humanos e ao direito de asilo, princípios fundamentais
da República (Constituição Federal, arts. 1o, III, e 4o, II e
X). Em uma situação excepcional, ele deu cumprimento
a esses princípios, conferindo efetividade à Constituição.
Esse foi o “pecado” de Saboia.
Esse foi também o “pecado” do embaixador Souza Dantas,
que, na chefia da missão diplomática brasileira na França,
ignorou normas do Itamarati e concedeu vistos a centena de
judeus perseguidos pelo governo colaboracionista de Vichy.
Dantas contrastou o governo brasileiro e salvou 800 pessoas
da deportação. Da mesma forma, Guimarães Rosa, cônsul
em Hamburgo, e a funcionária Araci de Carvalho, que veio
a se tornar sua mulher e foi chamada “Anjo de Hamburgo”,
superaram normas expedidas pelo governo e salvaram
vidas. A história redimiu-os e consagrou-os. Que se faça
justiça ao diplomata Saboia.
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 31
Invista
em Itaboraí
A capital dos bons negócios.
Distante apenas 39km da capital do Rio de Janeiro, Itaboraí
é hoje a grande oportunidade de excelentes negócios para
empresas de diversos setores. Sede do Comperj - Complexo
Petroquímico do Rio de Janeiro, e com uma Base Industrial e
Tecnológica sendo implantada, o município terá em 10 anos, o
seu PIB estimado em R$17 bilhões e sua população chegará
a 1 milhão de habitantes nesse período.
Itaboraí
Esses empreendimentos estão
atraindo empresas de diversos
segmentos, pois hoje com a nova
administração municipal, Itaboraí
mostra um cenário de progresso
e de modernização da cidade.
Seu território faz divisa com Tanguá
e Maricá, municípios que serão beneficiados
pelo Arco Metropolitano do Rio de Janeiro, uma via
de escoamento que integrará uma importante região do
estado que compreende de Itaguaí à Itaboraí, promovendo o
desenvolvimento integrado de toda essa região.
32
Conheça Itaboraí, a cidade que será a
segunda capital do estado e o melhor
lugar para sua empresa.
www.itaborai.rj.gov.br
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 33
Foto: Mariana Fróes
Centrais de relacionamento:
uma solução para a
judicialização?
Da Redação
Victor Farjalla, gerente jurídico da Fetranspor
A
Em entrevista, o gerente jurídico da
Fetranspor, Victor Farjalla, defende a
adoção obrigatória da conciliação
pré-processual e fala sobre os excelentes
resultados alcançados pelos mecanismos
de solução de conflitos de consumo
adotados pela entidade.
Central de Relacionamento com o Cliente
(CRC) da Federação das Empresas de Transpor­
tes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro
(Fetranspor) superou o índice de 90% de so­
luções de reclamações de usuários. A informação foi dada
pelo gerente jurídico, Victor Farjalla, que informa que a entidade vem buscando ampliar seus mecanismos para soluções
conciliatórias pré-processuais dos conflitos de consumo.
Nesta entrevista à Revista Justiça & Cidadania, o
gerente também critica a cultura do litígio que prevalece
em nosso País, fazendo com que o Judiciário seja
acionado para todo e qualquer conflito de interesses.
Farjalla aponta, ainda, a falta de um modelo de
conciliação pré-processual e a necessidade de ampliar o
nível de eficiência dos serviços de atendimento a clientes
e de alguns organismos oficiais que buscam solucionar
os conflitos de consumo. Para ele, toda conciliação
pré-processual regulamentada pelo Estado deveria ser uma
tentativa obrigatória, como já ocorre em outros países.
Justiça & Cidadania – Quantas reclamações rela­
cionadas a conflitos de consumo os sindicatos
filiados à Fetranspor recebem, em média, por mês?
Qual o percentual de êxito, ou seja, retorno efetivo
ao consumidor reclamante, nesses casos? E quantos
processos judiciais estão em trâmite atualmente na
Justiça fluminense?
34
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
Victor Farjalla – Antes de começar a responder a essas
perguntas, gostaria de deixar claro que estamos tratando
da solução conciliatória pré-processual dos conflitos
de consumo, ou seja, da retenção dos conflitos para
tentativa de sua solução antes de chegarem ao Judiciário,
em busca de celeridade e satisfação na prevenção de
litígios, como instrumentos de diminuição do acervo
judicial e de paz social. As opiniões estarão, portanto,
todas, vinculadas à solução extrajudicial do conflito,
não se estendendo à conciliação judicial. Quanto às
reclamações dos usuários do setor de transportes da
base de atuação da Fetranspor que encontram imediata
resposta da Central de Relacionamento com o Cliente
(CRC), são superiores a noventa por cento.
JC – O senhor acredita que o grande número de
processos judiciais que abarrotam atualmente o
Judiciário, principalmente os decorrentes de relações
de consumo, poderia ser reduzido com base na
disseminação e da cultura da conciliação?
VF – A cultura da conciliação ou o espírito conciliatório
são os opostos da cultura do litígio que, lamentavelmente,
fomenta no Brasil a busca do Judiciário para todo e
qualquer conflito de interesses, independentemente de
sua expressão jurídica ou econômica, muito embora
se saiba que a solução conciliatória é a que, realmente,
pacifica as partes litigantes.
JC – Como o senhor enxerga o atual modelo de
conciliação pré-processual?
VF – Não temos, na verdade, um modelo de conciliação
pré-processual. O que existe são os serviços de atendi­
mento a clientes e alguns organismos oficiais que buscam
solucionar os conflitos de consumo, sem, no entanto, um
nível de eficiência desejável, provavelmente, por falta de
treinamento adequado de mediadores e conciliadores, o
que se pode constatar pelo constante aumento do acervo
contencioso judicial.
JC – A Justiça, por meio do Conselho Nacional de
Justiça, a exemplo de sua resolução 125, editada em 2010,
tem buscado cada vez mais implementar programas
efetivos e permanentes de conciliação, os quais poderão
ser implantados por meio de parcerias com entidades
públicas e privadas. O que o senhor acha disso?
VF – A iniciativa, como qualquer outra tendente a
desafogar o Judiciário e propor maior e mais célere acesso
à Justiça, compreendido esse acesso na sua concepção
moderna de acesso a uma solução justa de um conflito
e não, necessariamente, acesso ao Judiciário, é louvável,
dependente, contudo, de sua efetivação pelos Tribunais.
JC – No encontro de Conciliação e Mediação organi­
zado pela Associação dos Magistrados do Estado do
Rio de Janeiro (Amaerj), na última semana de outubro,
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 35
JC – A tentativa de conciliação, no formato proposto,
seria obrigatória?
VF – O ideal seria que toda conciliação pré-processual
regulamentada pelo Estado fosse de tentativa obrigatória,
como o é em outros países. Uma espécie de condição
especial para qualificar o interesse de agir judicialmente,
na frustração da composição amigável do conflito.
As Comissões de Conciliação Prévia para os conflitos
trabalhistas surgiram com esse viés de obrigatoriedade que,
no entanto e lamentavelmente, foi afastado pelo Supremo
Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade
2.160-5 do Distrito Federal, a pretexto de se dar interpre­
tação conforme à Constituição Federal ao artigo 625-D da
Consolidação das Leis do Trabalho, para não se incidir em
ofensa ao princípio da inafastabilidade da jurisdição. Digo,
lamentavelmente, porque posiciono-me a favor do voto
vencido do então ministro Cezar Peluso, ao considerar que
a tentativa preliminar de conciliar e resolver pacificamente o
conflito, com a vantagem de uma solução não ser imposta
autoritariamente, não bloqueia, nem impede, nem exclui
o recurso à universalidade da jurisdição. E o que se viu,
como consequência da decisão suprema, foi o total
esvaziamento das Comissões de Conciliação Prévia, em
paradoxal prejuízo do acesso à Justiça e a inocuidade de
uma ferramenta destinada a desafogar o Judiciário.
JC – E, para sua efetividade, seria necessária a homo­
logação judicial?
VF – Já sem a obrigatoriedade, a tentativa de solução
pré-processual dos conflitos de consumo estaria fadada
ao insucesso sem a homologação judicial do acordo que
36
Inovar é preciso
“Posiciono-me a favor do voto
vencido do então ministro Cezar
Peluso, ao considerar que a
tentativa preliminar de conciliar
e resolver pacificamente o
conflito, com a vantagem de
uma solução não ser imposta
autoritariamente, não bloqueia,
nem impede, nem exclui o recurso
à universalidade da jurisdição.”
viesse a ser celebrado. Isso se não quisermos ficar, apenas,
no cumprimento de obrigações reconhecidas pelo devedor,
mas, para alcançarmos o patamar dos acordos prévios por
via de transação em que os litigantes cedem, cada qual,
em parte seus interesses, ao encontro de uma solução que,
ainda que não os satisfaça integralmente, ponha fim a um
conflito cuja perpetuação não seja da vontade das partes.
Sem a homologação judicial, não haveria a segurança de
uma quitação plena e recíproca, judicialmente reconhecida,
especialmente em se tratando de uma relação jurídica em
que uma das partes recebe da lei tutela especial, como o
consumidor. Assim sendo, sem a obrigatoriedade e sem
a segurança jurídica de uma quitação plena homologada
judicialmente, não haveria como se estimular as partes,
especialmente, o fornecedor a transigir ou mesmo a
comparecer perante o centro de conciliação. A designação
do conciliador pelo Tribunal de Justiça asseguraria a
necessária imparcialidade, possibilitando a homologação
judicial posterior pelo juiz togado competente.
JC – Como o senhor pensa em regulamentar a padro­
nização e a implantação definitiva de tal sistema? Seria
por meio de legislação especial?
VF – A proposta foi lançada, mas a necessidade de
parceria com o Poder Judiciário e de regulamentação
estatal transfere para uma segunda etapa, posterior à
análise de eficácia do meio proposto, a definição de
procedimentos e da fonte normativa.
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
Carlos Araujo
Foto: Bruno Marins
o senhor apresentou proposta para implementação
de programas de conciliação nas questões relativas
ao transporte coletivo de passageiros. Fale-nos, resu­
midamente, sobre essa proposta.
VF – Não foi uma proposta minha, mas da Fetranspor,
que é uma entidade sindical atenta para o desempenho
da pluralidade de papéis que a missão constitucional de
defesa dos interesses individuais e coletivos da categoria
econômica exige, nos termos do inciso III do artigo 8o
da Constituição da República. Mais especificamente,
as entidades sindicais patronais estão expressamente
inseridas entre os agentes de composição de conflitos
de consumo pelo artigo 107 do Código de Defesa do
Consumidor. Daí a proposta de parceria com o Tribunal
de Justiça do Estado do Rio de Janeiro para a extensão
à rede de Sindicatos da base territorial da Fetranspor
de centros de conciliação, inclusive, itinerantes por
meio de ônibus devidamente guarnecidos da estrutura
necessária, cabendo ao Judiciário indicar, tão somente,
os conciliadores e homologar os acordos.
Diretor do Instituto Prêmio Innovare
U
m núcleo de apoio criado por um juiz no inte­
rior de São Paulo, onde adolescentes infratores
residem e recebem, durante o cumprimento
da medida socioeducativa, apoio médico,
odontológico e psicológico e ainda são encaminhados a
escolas profissionalizantes. Uma iniciativa da defensoria
Pública do Ceará que barateou a conta de luz de dezenas
de casas de cidadãos carentes no interior do estado,
permitindo que estruturas de home care fossem instaladas
nessas residências, salvando vidas e desafogando redes
hospitalares. Uma ação que permitiu a digitalização de
todos os processos distribuídos ao STJ, facilitando a vida de
milhares de operadores do direito e agilizando a prestação
jurisdicional de outras centenas de milhares de cidadãos.
A dotação por uma vara de justiça de Porto Alegre de um
local específico e acompanhamento profissional próprio,
para facilitar o depoimento de crianças vitimas de abuso
sexual. A implementação pelo CNJ de um banco de dados
de âmbito nacional que reúne empresas com propostas de
trabalho e cursos de capacitação profissional para pessoas
que saem do sistema correcional. Todas essas iniciativas, ou
práticas, como chamamos, foram premiadas ou destacadas,
por meio de menções honrosas, pelo Prêmio Innovare, uma
iniciativa que em 2013 completa dez anos de uma caminhada
vitoriosa no esforço de identificar, premiar e divulgar ações
desenvolvidas em todo o Brasil por operadores do direito,
sejam eles advogados, defensores, magistrados, promotores
ou, até mesmo, tribunais. Criado na esteira das reformas
trazidas pela Emenda Constitucional 45, o Innovare tem
hoje um banco de dados que reúne milhares de iniciativas
como as aqui mencionadas e que demonstram o vigor de
uma agenda positiva da justiça brasileira.
O Innovare não é uma ação oficial, mas a coordenação
de esforços individuais ou coletivos, todos espontâneos
e pro bono, que buscam tornar o acesso à justiça uma
realidade. No decorrer de uma década, o Innovare,
com o apoio da iniciativa privada, destacou e premiou
importantes iniciativas, firmou convênios com tribunais
e escolas de magistraturas e teve duas de suas práticas
tornadas recomendações pelo CNJ.
Neste ano, temos 355 práticas concorrendo ao prêmio
nas cinco categorias existentes (magistratura, promotoria,
advocacia, defensoria e tribunal), lançamos um concurso
de monografias aberto ao mundo acadêmico com o tema
“A Justiça do Século XXI”, que contou com 109 inscrições,
muitas delas, grata surpresa, da autoria de profissionais
oriundos de outras áreas de atuação que não o direito, e
ainda nos lançamos nas redes sociais com a criação de
uma página no Facebook.
Em novembro de 2013, o Innovare promove em
Brasília um seminário para discutir propostas para a
gestão do judiciário brasileiro.
Com um júri e uma Comissão Difusora de Práticas
composto por algumas das mais respeitadas figuras do
mundo jurídico e acadêmico nacional, com um grupo
de consultores dedicados a visitar e conhecer cada uma
das práticas inscritas em todos os estados da federação,
um banco de dados aberto à consulta pública, com mais
de três mil práticas catalogadas, um Conselho Superior
integrado pelas mais destacadas associações de classe
da justiça brasileira e presidido pelo ex-presidente do
Supremo Tribunal Federal, Min. Carlos Ayres Brito, o
Innovare firma-se hoje, pela seriedade de seu trabalho,
como uma referência no reconhecimento e validação
de boas práticas no judiciário e como uma iniciativa de
premiação que não encontra semelhança com nenhuma
outra na justiça dos países do mundo democrático.
Depois de dez edições nacionais e uma internacional, o
Innovare deixa de ser aquela “revolução silenciosa de justiça”, a que se referia o professor Joaquim Falcão da FGV,
quando de seu lançamento, para se tornar uma manifestação pública e ruidosa da soma de esforços comuns por uma
justiça melhor para todos os brasileiros.
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 37
Cherubin Helcias Schwartz Júnior
Desembargador do TJERJ
Mestre pela FGV Direito/Rio
Ana Carolina Carvalho Gomes Schwartz
F
Acadêmica do 10º Período do Curso de Direito
IBMEC/Rio
1. Introdução
oi minha filha Ana Carolina, coautora do presente
artigo, na elaboração da sua monografia de
conclusão do curso de Direito, quem alertou-me
para a gravidade do problema relacionado à questão
do “crack” e suas consequências, notadamente no que diz
respeito ao aspecto da internação compulsória dos usuários
dessa droga, questão que envolve o Poder Judiciário, em
razão da disciplina estabelecida pela Lei no 10.216/01.
A nosso sentir, o tema tem relevância não apenas pelo
drama humano que envolve, já que o consumo do “crack”
vitimiza de forma sobremodo grave o usuário e outros
grupos que orbitam em torno da droga, mas também
porque envolve o Poder Judiciário, embora não tenham sido
criados mecanismos que o capacitem a agir adequadamente
para fazer frente ao problema e sua larga dimensão.
A judicialização da questão, sem que exista verdadeiramente uma política pública a respeito da mesma, bem
como a inexistência de mecanismos de outorga ao Poder
Judiciário de instrumentos adequados ao tratamento do
tema, conduz a sérias dúvidas e a profunda insegurança
jurídica na disciplina e no enfrentamento de tão grave
problema.
38
2. O “crack” é uma droga singular
Causas e consequências do consumo do “crack”
compõem um círculo vicioso que o singulariza frente a
outras drogas e que agrava os efeitos do seu uso, sendo
possível enumerar algumas delas, como se vê:
a) o “crack” é uma droga relativamente barata quando
comparada a outras drogas, circunstância que “democratiza”
o acesso à mesma, “universalizando” o seu uso. De fato, no
mercado das drogas, existe também uma relação econômica
que, em maior ou menor escala, concorre para a ampliação
do universo de consumidores.
Importante ressaltar que nesse campo, conforme tem sido
indicado por pesquisas e por simples observação empírica,
noticiada com frequência pela imprensa, estabelece-se uma
rede circular, por meio da qual o usuário é também o transportador e distribuidor da droga, usuário e traficante;
b) essa “universalização” do acesso ao “crack” leva à
penetração da droga nas camadas da população menos
favorecidas economicamente e, portanto, mais frequen­
temente alijadas da utilização de serviços presta­cionais
como saúde, educação, previdência, dentre outros, razão
pela qual os danos pessoais e sociais causados pelo uso da
mesma potencializam-se.
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
3. A judicialização do tema e a falta de instrumentos
adequados conferidos ao Poder Judiciário
O problema do “crack” tem sido enfrentado pelo
Poder Público, notadamente a nível local (municipal),
de forma dispersa, sem uma verdadeira política pública
a seu respeito.
No Município do Rio de Janeiro, não existe legislação
específica sobre o tema, enquanto que, em São Paulo, o
Governo do Estado editou o Decreto no 46.860 de 25 de
junho de 2002, visando a fazer frente à questão.
A competência para legislar sobre a matéria é
concorrente da União, Estados e Distrito Federal, ex vi dos
incs. XII e XV, do art. 24 da Constituição da República,
ao passo que a competência para atuação material frente
ao problema é de todas as entidades federadas (art. 23,
inc. II, c/c art. 196, todos da Constituição da República).
A Lei no 10.216/01, que tem servido de base para o
enfrentamento da questão, em seu art. 6o, paragrafo
único, inciso III, c/c art. 9o, inseriu o Poder Judiciário
como protagonista no âmbito da conturbada relação
entre o Estado e os usuários do “crack”.
De fato, instituiu esta um controle judicial da
internação compulsória, conferindo ao Poder Judiciário a
função de decretá-la, quando envolva pessoas portadoras
de transtornos mentais, inclusive usuários de “crack”, os
quais, com frequência, tornam-se incapazes de gerir a si
próprios.
Foto: Mariana Fróes
O Poder Judiciário e a questão
da internação compulsória dos
usuários de “crack”
O “crack” é uma droga das ruas, demarcando o território
da sua comunidade em verdadeiras “cracolândias”. Na cidade
do Rio de Janeiro, a mais conhecida e maior “cracolândia”
situa-se às margens da Avenida Brasil, uma das mais
importantes vias da cidade, na localidade denominada
Parque União, constituindo-se em verdadeira comunidade
de usuários, com regras (ou falta delas) próprias;
c) causa e ao mesmo tempo consequência do aumento
do consumo do “crack” e da difusão de seus efeitos
negativos é a circunstancia de que ela causa dependência
mais rapidamente que outras drogas, inibindo, por
consequência, o poder de resistência e reação do usuário.
Essa característica farmacológica do “crack” tem-se
mostrado fundamental ao potencial viciante da droga, e,
por fim;
d) o “crack” é uma droga mais “segura” que outras
drogas e que a própria cocaína, pois, como o “crack” é
fumado, não implica na repartição de seringas e outros
equipamentos capazes de acarretar contaminação, por
exemplo, pelo vírus da Aids.
Essas são apenas algumas das circunstancias que
acarretam o aumento do consumo e os efeitos negativos
do uso do “crack”, diferenciando-o de outras drogas
potencialmente menos lesivas.
Desembargador Cherubin Helcias Schwartz Júnior
Ocorre, entretanto, que, além de não existir propriamente
uma política pública para enquadramento do problema,
a qual deveria ser estabelecida em âmbito nacional, com
programas, regras, fontes de custeio e controle claros, não
existem mecanismos adequados para disciplinar a atuação
judicial.
O Judiciário foi convocado ao tema, sem a criação
de instrumentos capazes de dar-lhe suporte no enfrentamento do mesmo.
Efetivamente, algumas questões surgem naturalmente
da letra dos artigos 6o, parágrafo único, III, e 9o, ambos
da Lei no 10.216/01.
Pensando no usuário, criança ou adolescente, é
possível responder a questionamentos com base nas
disposições do ECA.
Uma criança ou adolescente usuário de droga poderá
ser abrigado para sua proteção, sendo possível ainda
decretar até sua internação quando houver a imputação de
fato análogo a crime, nos termos do artigo 101, V e VII, c/c
artigo 112, IV, V e VI, todos da Lei no 8.069/90, porém, e a
rigor, nas duas hipóteses não se aplica a Lei no 10.216/01.
O problema surge, porém, quando inaplicável o ECA,
vez que falta regulamentação adequada aos dispositivos da
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 39
Foto: Arquivo pessoal
Ana Carolina Carvalho Gomes Schwartz, estudante
Lei no 10.215/01 (art. 6o, parágrafo único, III, c/c art. 9o),
na medida em que não é possível delimitar alguns pontos
cruciais à compreensão do tema.
Efetivamente, não se consegue identificar desde
logo qual é o juiz competente mencionado pela Lei
no 10.216/01 (art. 9o), ao qual caberá o controle da medida
de caráter protetivo-restritivo, somando-se a esse problema
a circunstância de que, a rigor, não há no sistema processual
uma ação específica destinada à internação compulsória
do usuário de “crack”. Anote-se que não se trata aqui
de interdição do usuário, nos termos do artigo 1.767 e
seguintes do CCB, o que pode até ocorrer em algumas
circunstâncias, mas de uma demanda específica, vez que
nem sempre será cabível a decretação da medida judicial
que reconhece a incapacidade.
A medida de internação compulsória, portanto, não
pressupõe necessariamente a decretação da interdição,
que implicará inclusive em outras providências, como
a nomeação de curador ao interdito, indisponibilidade
temporária do patrimônio do curatelado e tutela dos
filhos menores do mesmo.
O que se propõe aqui é algo diverso, uma inovação,
a qual implica em verdadeira medida restritiva da
40
liberdade, consistente na internação compulsória do
portador de transtornos mentais que, por força disso,
encontre-se incapacitado de preservar a sua segurança
e a de terceiros, situação que com frequência atinge os
usuários de “crack”, em razão do elevado poder dessa
droga em privar o seu consumidor da capacidade de
controlar a si mesmo.
O problema que se coloca para o Poder Judiciário, na
quadra atual, reside na existência de questões que a Lei
no 10.216/01 é absolutamente incapaz de responder. A lei
não esclarece qual o tipo de ação ou requerimento que
deve ser dirigido ao juiz para determinar a providência
protetiva (?) de internação e, consequentemente, torna
inviável a determinação de qual é o juiz competente.
Igualmente, não esclarece quem ostenta legitimidade
para requerer a medida, nem tampouco se é possível
ao requerido, usuário da droga, impugnar o pedido de
internação compulsória.
Outras tantas dúvidas e questionamentos não são esclarecidos pela lei, como o prazo da internação e os requisitos
para liberação do usuário do “crack”, concorrendo para um
clima de incerteza e insegurança jurídica.
Por outro lado, o Judiciário, colocado como protagonista dessas relações sociais complexas e conturbadas, não
tem se furtado a discipliná-las, porém, para tanto, necessita
de instrumentos e ferramentas que o habilitem a tal fim.
Impõe-se, portanto, que conjuntamente à adoção de
uma verdadeira política pública sobre a questão maior, o
consumo de “crack” e o elevado poder de incapacitação
dessa droga, sejam criadas ferramentas que possibilitem
ao Judiciário agir na defesa e proteção daqueles desvalidos
da sorte, que acabam presas fáceis de tão destrutiva
droga, sob risco de não ser possível aos juízes, nesse caso,
dar conta de tão dramática situação.
Referências bibliográficas
BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 1. ed. Saraiva, 2009.
Filhos do Crack: Famílias Destruídas pela Droga. O Globo, ed.
29/9/2013, p. 25.
LIRIO DO VALLE, Vanice Regina. Políticas Públicas, Direitos
Fundamentais e Controle Judicial. Forum, 2009.
MENDONÇA, Luiz Octávio Martins. Crack, o Refúgio dos
Desesperados, à Luz do Programa Nacional de Combate às Drogas.
Revista SJRJ, Rio de Janeiro, v. 17, no 29, dez. 2010.
SAPORI, Luis Flávio. Crack – Juventude e Violência Urbana.
Revista Jurídica Consulex, no 352, 15 set. 2011.
Site oficial do Governo do Estado de São Paulo. Disponível em:
<www.saopaulosp.gov.br>. Acesso em: 9 out. 2013.
TARIM, Denise. A Aliança Entre o Ministério Público e a Sociedade
Civil na Definição de Políticas Públicas. 1 ed. Ministério Público
e Políticas Públicas. Coordenação Patrícia Villela. Lumen Juris,
2009.
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 41
Antonio Tovo Loureiro
Advogado
O
1. Introdução
delito de contrabando ou descaminho1 passa por marchas e contramarchas na jurisprudência brasileira atual. Trata-se de uma
prática histórica, fomentada, em parte, pelo
complexo arcabouço tributário pátrio e pelos extensos
limites fronteiriços.
Não por acaso, o delito de contrabando ou desca­
minho mereceu estudos de reconhecidos autores, que
delimitaram seus contornos típicos. Dentre os autores
mais vetustos, elencam-se VIVEIROS DE CASTRO e
PINTO DE ARAÚJO CORRÊA, os quais lecionaram
sobre o tema em 1898 e 19072. Mais recentemente, por
todos, vale citar Dometila LIMA de Carvalho,
monografista da matéria, com Crimes de contrabando e
descaminho, publicado no início da década de 803.
Dentre os muitos eixos temáticos que esse delito
possibilita, pretende-se pontuar dois, considerada a
exígua extensão do presente articulado: (i) natureza
fiscal do delito de descaminho/contrabando; e (ii)
pluriofensividade do delito.
2. Natureza fiscal do delito de descaminho/contrabando
No que tange à natureza fiscal da figura típica, a
discussão pode ser sintetizada em dois questionamentos.
O primeiro decorre da indagação: o delito em questão é
42
Foto: Arquivo pessoal
Breves notas sobre o atual
tratamento jurisprudencial
dos delitos de contrabando
e descaminho
um crime tributário? O segundo núcleo, caso se responda
afirmativamente à pergunta, é: em sendo conferido
enquadramento de crime tributário ao contrabando/
descaminho, a ele devem ser atribuídas todas as possibili­
dades despenalizadoras que possui essa espécie de crimes?
A propósito desse mote, a Sexta Turma do Superior
Tribunal de Justiça já posicionou-se pelo caráter tributário
da conduta delitiva em questão. O julgado foi assim
ementado:
PENAL – HABEAS CORPUS – DESCAMINHO –
TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL – AUSÊNCIA DE
PRÉVIA CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO
NA ESFERA ADMINISTRATIVA – NATUREZA
TRIBUTÁRIA DO DELITO – ORDEM CONCEDIDA.
1. Consoante recente orientação jurisprudencial do
egrégio Supremo Tribunal Federal, seguida por esta Corte,
eventual crime contra a ordem tributária depende, para sua
caracterização, do lançamento definitivo do tributo devido
pela autoridade administrativa. 2. O crime de descaminho,
por também possuir natureza tributária, eis que tutela,
dentre outros bens jurídicos, o erário público, deve seguir
a mesma orientação, já que pressupõe a existência de um
tributo que o agente logrou êxito em reduzir ou suprimir
(iludir). Precedente. 3. Ordem concedida para trancar a
ação penal ajuizada contra os pacientes no que tange ao
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
delito de descaminho, suspendendo-se, também, o curso
do prazo prescricional. (Superior Tribunal de Justiça, 6a
Turma, HC 109205, Rel. Min. Jane Silva, j. 2/10/2008)
Depreende-se do julgado a tendência de, ao
entender que o delito de descaminho possui essência
eminentemente tributária (em que pese constar no
capítulo de crimes contra a administração pública do
Código Penal), a ele devem ser aplicadas providências que
já são imanentes aos crimes originalmente tributários.
Tais consequências em muito defluíram do julgamento do
conhecido habeas corpus 81.611 pelo Supremo Tribunal
Federal, de relatoria do Min. Sepúlveda Pertence. O
consectário mais difundido do referido precedente é de
condicionar a persecução criminal ao esgotamento da
esfera administrativa-fiscal.
O leading case do HC 81.611 do STF levou à
pacificação de outros entendimentos: suspensão da
punibilidade pelo parcelamento de tributo, extinção da
punibilidade pelo pagamento de tributo entre outros.
Assim, embora não se referende a modalidade de
solução jurídica dada pela Suprema Corte para os delitos
tributários – leia-se o processo administrativo como
condição de procedibilidade, não como instrumento a
preencher circunstância elementar normativa do tipo –
deve-se reconhecer que o julgado promoveu significativo
avanço na aplicação do Direito Penal no país4.
Todavia, a extensão automática desses efeitos jurídicos
para o delito de descaminho ou contrabando ocasiona
problemas de adaptação. Tais problemas, avultados pelas
peculiaridades do caso concreto, fazem parecer que
órgãos julgadores dos mesmos Tribunais são segmentos
da mesma orquestra tocando conforme diferentes
partituras. É o que se dessume de recente julgado da
Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça:
HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO OR­
DINÁRIO. WRIT NÃO CONHECIDO, POR SER ERRÔNEA A IMPETRAÇÃO ORIGINÁRIA EM SUBSTITUIÇÃO À VIA DE IMPUGNAÇÃO CABÍVEL, QUAL SEJA,
O RECURSO ORDINÁRIO CONSTITUCIONAL. DESCAMINHO. CRIME FORMAL. DESNECESSIDADE DE
CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE FLAGRANTE QUE,
EVENTUALMENTE, ENSEJASSE A CONCESSÃO DA
ORDEM DE OFÍCIO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. 1. Na esteira dos precedentes atuais deste Superior
Tribunal de Justiça, o writ não pode ser conhecido, por se
tratar de errônea impetração originária de habeas corpus em
substituição à via de impugnação cabível, qual seja, o recurso
ordinário constitucional. Contudo, em respeito ao fato de a
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 43
impetração ter sido anterior à mudança do referido entendimento, é feita a análise da insurgência, a fim de verificar
a eventual possibilidade de concessão da ordem de ofício.
2. O crime de descaminho se perfaz com o ato de iludir o
pagamento de imposto devido pela entrada de mercadoria
no país. Não é necessária, assim, a apuração administrativo-fiscal do montante que deixou de ser recolhido para a configuração do delito. Trata-se, portanto, de crime formal, e não
material, razão pela qual o resultado da conduta delituosa
relacionada ao quantum do imposto devido não integra o
tipo legal. Precedente da Quinta Turma do STJ e do STF. 3.
A norma penal do art. 334 do Código Penal – elencada sob
o Título XI: “Dos Crimes Contra a Administração Pública”
– visa proteger, em primeiro plano, a integridade do sistema
de controle de entrada e saída de mercadorias do país, como
importante instrumento de política econômica. O agente que
ilude esse controle aduaneiro para importar mercadorias,
sem o pagamento dos impostos devidos – estes fixados, afinal, para regular e equilibrar o sistema econômico-financeiro
do país – comete o crime de descaminho, independentemente da apuração administrativo-fiscal do valor do imposto
so­negado. 4. O bem jurídico protegido pela norma em tela
é mais do que o mero valor do imposto. Engloba a própria
estabilidade das atividades comerciais dentro do país, refletindo na balança comercial entre o Brasil e outros países. O
produto inserido no mercado brasileiro, fruto de descaminho, além de lesar o fisco, enseja o comércio ilegal, concorrendo, de forma desleal, com os produzidos no país, gerando
uma série de prejuízos para a atividade empresarial brasileira. 5. Em suma: a configuração do crime de descaminho,
por ser formal, independe da apuração administrativo-fiscal
do valor do imposto iludido, embora este possa orientar a
aplicação do princípio da insignificância quando se tratar de
conduta isolada. 6. Habeas corpus não conhecido. (Superior
Tribunal de Justiça, Quinta Turma, HC 218.961, Rel. Min.
Laurita Vaz, j. 15/10/2013, grifo nosso)
Não obstante, discorda-se desse entendimento, endossando o escólio de ESTELLITA5. Embora o crime de
descaminho e contrabando efetivamente seja de caráter
formal, não há como descurar de seu resultado jurídico
(supressão de tributo), embora possa prescindir de resultado naturalístico. Assim, não restaria afastada a Súmula
Vinculante no 24 do STF, forjada a partir do HC 81.611.
A hipótese deste trabalho é que o descompasso entre
os julgados é movido pela dificuldade de tratar com a
conduta objeto de exame; embora por momentos seja
possível concluir que sua natureza é fiscal, e a ela podem
ser aplicados os institutos de suspensão e extinção de
punibilidade, assim como os critérios de insignificância
utilizados pela autoridade fazendária para propositura
de execução fiscal. Cumpre mencionar que não é possível
44
prover a mesma resposta para as duas diferentes rubricas
açambarcadas pelo art. 334 do Código Penal. Este é o objeto
do próximo tópico, da pluriofensividade do contrabando.
3. Pluriofensividade do contrabando
A questão do bem jurídico é um divisor de águas
entre as duas figuras típicas do art. 334 do Código Penal.
Enquanto o descaminho pode ser considerado um crime
meramente tributário, o mesmo raciocínio não pode ser
lançado ao contrabando.
A definição contida na própria norma penal de
destinar-se o contrabando à repressão de introdução de
produtos proibidos no território brasileiro demonstra que
há mais em termo de objetividade jurídica do diploma
incriminador que a singela tutela da ordem tributária.
Em verdade, quando o legislador incrimina o ingresso do
produto proibido no país, não pretende apenas proteger
a arrecadação que seria afetada pelo internalização, mas
também o thelos da vedação em si do produto.
Aos poucos as Cortes pátrias vêm reconhecendo que
o delito de contrabando afeta mais de um bem jurídico.
Eis precedente que ilustra tal movimento:
PENAL E PROCESSO PENAL. APELAÇÃO. CIGARROS.
CONTRABANDO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA.
INAPLICABILIDADE. CONCURSO DE AGENTES.
FRACIONAMENTO DE TRIBUTOS PARA FINS DE
APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA.
IMPOSSIBILIDADE.
1. O Supremo Tribunal Federal pelas suas duas Turmas,
recentemente, manifestou-se no sentido de que se a
mercadoria importada com tributos iludidos for cigarro
estrangeiro ou brasileiro reintroduzido no território
nacional, tem-se a figura do contrabando e não
descaminho, pois a lesão perpetrada não se restringe
ao erário público, mas atinge também outros interesses
públicos como a saúde e as atividades econômicas. E,
desta forma, é inaplicável o princípio da insignificância,
uma vez que não se trata de mera tutela fiscal e a atividade
enquadrada neste contexto, em tese, passa a ser típica
para efeitos penais.
2. Em caso de delito cometido, em tese, em concurso de agentes,
não há falar em fracionamento dos tributos iludidos para a
finalidade de aplicação do princípio da bagatela, devendo
ser utilizada, para fins de insignificância penal, a somatória
dos tributos não recolhidos, nos termos da orientação desta
Corte. (Tribunal Regional Federal da 4a Região, Sétima Turma,
Apelação criminal no 50026011820104047105, Rel. Luiz
Carlos Canalli, j. 29/10/2013, grifo nosso)
Dessume-se do aresto transcrito que, embora haja
reconhecimento de outros interesses juridicamente rele­
vantes afetados pela prática delitiva, não há uma inclinação,
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
ao menos expressa, para o enquadramento da hipótese
fática em modalidades típicas diversas. Talvez, a partir
do reconhecimento da afetação de mais de um bem
jurídico pela prática do contrabando, fosse possível o
reconhecimento do concurso de crimes, em razão da ofensa
à, v.g., saúde pública, relações de consumo, livre concorrência,
além de administração pública e ordem tributária.
4. Considerações finais
Ao longo do tempo, consolidou-se uma jurisprudência
obtusa, que não examina globalmente a problemática
do contrabando ou descaminho para além dos delitos
desenhados no Código Penal de 1940, o que não tem
se mostrado suficiente para reprovação e prevenção da
constante prática ilegal. Merece especial atenção o fato de
que do processo de limitação jurisprudencial advém uma
inequívoca consequência, a ausência de uma análise mais
aprofundada das ameaças e/ou lesões a outros relevantes
bens jurídicos de dignidade constitucional que, por sua
vez, também receberam proteção na órbita penal.
Disso decorrem os reducionismos contingenciais, que
acabam mudando conforme os ventos do caso concreto. Propugna-se uma análise segmentada do delito de contrabando,
com diversas peculiaridades em relação ao descaminho, ten-
do em vista a pluriofensividade da espécie, a qual aos poucos
vem sendo reconhecida pelos Magistrados.
Talvez assim possam ser realizadas investigações mais
detalhadas que levem ao oferecimento de denúncias não
apenas pela capitulação tradicional, mas também pelos
delitos correlatos. Esse movimento pode provocar uma
mudança na construção dos julgados das Cortes Federais,
eventualmente suplantando o casuísmo que inquina as
decisões da matéria atualmente.
Notas
Prescreve o art. 334 do Código Penal:
“Contrabando ou descaminho Art. 334 Importar ou exportar
mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de
direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo
de mercadoria: Pena - reclusão, de um a quatro anos.”
2
CORRÊA, Alfredo Pinto de Araujo. O contrabando e seu processo.
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1907; Viveiros de Castro, A.O. O
contrabando, Rio de Janeiro: Domingos de Magalhães, 1898.
3
Crimes de contrabando e descaminho, 2. ed., SP: RT, 1988.
4
Neste sentido, vide SCHMIDT, Andrei Zenkner. Exclusão da
punibilidade em crimes de sonegação fiscal. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2003, p. 119.
5
ESTELLITA, Heloísa. Contrabando e descaminho. in: REALE JR.
Direito penal: jurisprudência em debate. v. 4. Rio de Janeiro: GZ,
2013, p. 170.
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Novembro
| Justiça
& Cidadania
45
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E m foco, Carlos Alberto Luppi
A
Cidadão Público
x
Cidadão Privado
Biografias, eis a questão
Foto: Stock © Andrzej Tokarski
46
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
os poucos, o tema foi se tornando público.
Principalmente, a partir de 2005, e, em casos
isolados, quando passou a ser discutido de
forma circunstancial, nem sempre envolvendo
com profundidade o que se pode chamar de debate
jurídico-legal. Agora é diferente. Nos últimos dois meses, o
assunto se tornou polêmico, motivando contínuos debates
entre diversos setores da sociedade, com larga exposição
nas mídias de rádio, televisão, jornais, revistas e provocando
interpretações acaloradas, emocionais e críticas a torto e a
direito. No centro do debate, a Justiça, as leis, a Constituição,
o Código Civil. De um lado, o direito à livre expressão das
atividades intelectual, artística, científica e de comunicação;
do outro, o direito à privacidade.
A questão das biografias autorizadas, não autorizadas, submetidas a censura prévia, controladas ou não,
está na ordem do dia. E, no meio de tudo, a interpretação que se pode ter ou dar aos artigos do Código Civil
e da Constituição Federal. Principalmente, depois que
a Associação Nacional dos Editores de Livros (ANEL)
entrou no Supremo Tribunal Federal com uma Ação Direta
de Inconstitucionalidade (ADIN) contestando os artigos
do Código Civil, e sua prevalência, que têm servido de
base jurídica para muitos biografados vetarem biografias
não autorizadas, embora em nenhum momento o Código
cite, expressamente, a palavra “biografia”. Iniciativa que
interessa a diversos setores da sociedade, particularmente
à Associação Brasileira de Imprensa, amicus curiae da
ação, por considerar que o tema está intimamente ligado
à liberdade de imprensa.
Na outra ponta deste debate e contra a iniciativa da
ANEL, estão artistas de grande expressão na história
e na cultura brasileira. Eles se juntaram em um grupo
– denominado Procure Saber – e passaram a defender,
publicamente, que as biografias só poderiam ser publicadas
com autorização do biografado, o que soou como censura
prévia, e, ainda, que o biografado teria o direito de receber
royalties sobre suas biografias comercializadas.
Nos últimos dias, o grupo Procure Saber tentou
dizer – em meio a uma controvérsia geral, críticas,
mal-entendidos, desmentidos, artigos em jornais e
discussões internas que provocaram até mesmo a saída de
artistas renomados como o cantor Roberto Carlos – que,
em sua opinião, não implica em supressão da liberdade
de expressão, embora o direito à privacidade deva ser
totalmente respeitado. O fato é que o Procure Saber tenta
responder às críticas e se defender afirmando que seu
“O cidadão ‘não público’, aquele que
tem uma vida corrente normal e que
não aparece em manchetes de jornais,
tem direito à privacidade assegurada
pelos incisos X, XI e XII do artigo 5o da
Lei Suprema. Não o ‘cidadão público’,
que busca ou tem naturalmente
publicidade, principalmente os políticos.
Estes, à evidência, por se tornarem
públicos, não têm direito à privacidade,
que, aliás, a história não ofertou a
nenhuma das pessoas que conformaram
a evolução da humanidade. ”
principal papel é prestar enorme contribuição para que o
assunto esteja, hoje, nos debates público e jurídico.
O tema continua controverso e vem despertando
manifestações de toda parte, até apaixonadas. Muitos
jornalistas e juristas colocam o direito à liberdade de
expressão como princípio constitucional inegociável;
outros atestam que a privacidade é um direito de todo
cidadão, também inviolável – um confronto de opiniões
que parece não ter fim.
O assunto está em discussão no Supremo Tribunal
Federal, onde uma audiência pública, liderada pela
Ministra Carmen Lúcia, está sendo convocada e pre­
nuncia muita repercussão. Está também no Congresso
Nacional, onde as opiniões são muitas e conflitantes.
Chegou até ao Palácio do Planalto, onde a Presidente
Dilma Rousseff recebeu parte da classe artística, liderada
pelo cantor Roberto Carlos, e ouviu diversas reclamações
com relação ao assunto. Está nos meios artístico, jurídico,
jornalístico, intelectual, empresarial e cultural.
Afinal, na democracia brasileira, jovem e que
se pretende moderna, como conciliar os direitos de
biografados e de biógrafos, de editores, de herdeiros de
personalidades públicas? Como conciliar direitos de
professores e especialistas em produzir teses e monografias
acadêmicas que versem sobre personalidades e figuras
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 47
Foto: Arquivo JC
48
públicas? Como impedir que o direito à privacidade
interfira na liberdade de imprensa? Afinal, as biografias,
como gênero literário importante para a compreensão de
toda e qualquer história, estão submetidas juridicamente a
quais leis? E o direito à verdade? Pode uma personalidade
pública alçada à condição de “mito” pela opinião pública
e pela mídia, estar acima do direito das pessoas em ter
conhecimento da verdade?
Pode-se mesmo acreditar, como alguns advogados e
juristas creem, que o Código Civil, tal como está redigido,
atribui mais peso à privacidade e menos à liberdade de
expressão? Na essência de toda a controvérsia, a questão
maior seria, então, apenas de interpretação, pois os
instrumentos legais para regular a questão já existem? Ou,
na verdade, como defendem alguns, toda esta discussão é
inócua em um mundo globalizado, cada vez mais dominado
por redes sociais e facilidades de comunicação e onde tudo
se publica sobre todo mundo, o que praticamente coloca
em colapso o direito inviolável à privacidade?
A verdade é que nada se ouviu ou se debateu sobre
um aspecto essencial em toda esta controvérsia: a sensível
diferença que existe entre o chamado “cidadão público”
e o “cidadão privado” e a interpretação jurídico-legal
que permeia seus direitos. Uma questão levantada pelo
jurista, professor e acadêmico, Ives Gandra Martins, um
dos juristas mais renomados do país, nesta entrevista
exclusiva à Revista Justiça & Cidadania.
Premiado como “Homem de Visão”, “Cidadão
Consciência”, entre outros títulos, e agraciado com os
prêmios Dom Quixote e Sancho Pança concedidos por
esta revista, Ives Gandra Martins tem mais de 80 livros
publicados, outros 289 em coautoria e mais de 3 mil
estudos sobre Direito, Economia, Filosofia, Sociologia,
Política, História e Literatura. Por suas opiniões, é um
jurista respeitado internacionalmente.
Indagado sobre o assunto “biografias”, ele foi taxativo
em estabelecer diferença entre “cidadão privado” e “cidadão público” e considerou “totalmente desnecessário
qualquer projeto de lei que modifique ou altere os artigos
20 e 21 do Código Civil”. Segundo revela, “os artigos não
são aplicáveis para aqueles que renunciam à própria privacidade ao se tornarem pessoas públicas”. Afirma ainda
que “a convivência entre a livre expressão do pensamento
e liberdade de expressão e o direito à inviolabilidade da
privacidade é perfeitamente possível”.
Ademais, define claramente: “O cidadão não público,
aquele que tem uma vida corrente, normal, tem direito
à privacidade assegurada pelos incisos X, XI e XII do
artigo 5o da Lei Suprema”. Ao contrário do “cidadão
público que busca ou tem naturalmente publicidade.
Este não tem direito à privacidade, exatamente por se
tornar público”.
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
O jurista defende o direito do biografado “de participar dos benefícios pecuniários da edição da biografia,
pois suas ações é que ofertam a biografia e os resultados
financeiros do autor”. E afirma que “não se importaria”
que uma biografia fosse feita a seu respeito.
“Se fosse verdadeira, não haveria o que esconder. Se
falsa, eu ingressaria em juízo com ação de indenização,
por danos morais” – conclui.
Na íntegra, a seguir, a entrevista exclusiva.
Justiça & Cidadania: Não há democracia sem livre
expressão do pensamento e liberdade de expressão.
E também não há democracia sem preservação dos
direitos individuais, entre os quais está “o direito à
inviolabilidade da privacidade”. Como conviver com
isso no atual momento no Brasil, quando também a
sociedade quer ter o direito à verdade?
Ives Gandra Martins – A convivência é possível. O
cidadão “não público”, aquele que tem uma vida corrente
normal e que não aparece em manchetes de jornais, tem
direito à privacidade assegurada pelos incisos X, XI e XII
do artigo 5o da Lei Suprema. Não o “cidadão público”, que
busca ou tem naturalmente publicidade, principalmente os
políticos. Estes, à evidência, por se tornarem públicos, não
têm direito à privacidade, que, aliás, a história não ofertou
a nenhuma das pessoas que conformaram a evolução da
humanidade. Nesses casos, a busca da verdade é necessária,
podendo, se houver abusos, os descendentes ou a própria
pessoa em vida acionar os biógrafos por danos morais, se
os fatos narrados forem falsos.
JC – No modelo atual, em que diversas biografias
têm sido impedidas de serem publicadas ou mesmo
de serem escritas – em razão dos artigos do Código
Civil em vigor –, não haveria o perigo de censura geral
a reportagens, artigos, textos e opiniões? Qualquer
cidadão citado em algum texto jornalístico não poderia
se sentir no direito de proibir o texto, uma vez que seu
nome foi mencionado? E poderia alegar “invasão de
sua privacidade”?
IGM – O que seria do historiador se só pudesse investigar
as biografias autorizadas? No momento que alguém se
torna personalidade pública, já não é mais dona de sua
imagem.
JC – Alguns defensores da validade dos artigos do
Código Civil nestes casos – e entre eles estão artistas
renomados, que se juntaram em um grupo chamado
Procure Saber – tentaram ponderar, em meio a toda
a polêmica que o assunto despertou, que, além do
direito de vetar a publicação, teriam também o direito,
automático, de receber royalties e obter participação
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 49
financeira dos autores e editoras nas vendas de
suas biografias. O sr. concorda com isso? É mesmo,
juridicamente, um direito do biografado?
IGM – O direito à privacidade do Código Civil, que
comentei em edição comemorativa dos primeiros anos
de sua edição, é sempre destinado ao cidadão “privado”,
e não àquele que conforma a história. Entendo que
tenha o biografado o direito de participar dos benefícios
pecuniários da edição, pois suas ações é que ofertam
a biografia e os resultados financeiros do autor. Essa
matéria deveria ser, portanto, regulamentada.
JC – Um projeto em tramitação na Câmara Federal já
aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e em
análise pelo Senado, autoriza a divulgação de imagens,
escritos e informações biográficas de pessoas públicas
mesmo sem autorização do biografado ou de seus
parentes. Ou seja, revoga os artigos 20 e 21 do Código
Civil, mas ressalta, em sua redação, que isso só pode
acontecer em caso “de pessoas cuja trajetória pessoal,
artística ou profissional tenha dimensão pública ou
esteja inserida em acontecimentos de interesse da
coletividade”. O que isso, na realidade, significa? Não
lhe parece subjetivo demais? Como caracterizar a
chamada “dimensão pública”?
IGM – A meu ver, não precisaria haver o projeto de lei.
Pergunto: todos os fatores, os mais variados, publicados
pela imprensa sobre cidadãos públicos precisam de autorização de seu autor? A biografia não é senão uma edição
aumentada das notícias jornalísticas. A interpretação dos
artigos 20 e 21 do Código Civil que tenho é de que não são
aplicáveis para aqueles que renunciaram à própria privacidade ao se tornarem personalidades públicas.
JC – Nas discussões no Congresso, o deputado Marcos
Rogério, de Roraima, já foi contra essa redação,
apresentando recurso sob a argumentação de que
o texto está mal elaborado e de que o conceito de
“dimensão pública” é relativo. Apresentou também
uma emenda, garantindo, segundo ele, que “se
ficar caracterizada a invasão de privacidade será
possível tirar a obra de circulação”. Isso também não
caracterizaria estabelecer no projeto em tramitação no
Congresso – que pretende revogar os artigos 20 e 21 do
Código Civil – o direito de censurar baseado em um
conceito subjetivo, ou seja, uma agressão à liberdade
de expressão?
IGM – A meu ver, a pessoa que renunciou à privacidade
ao querer se tornar conhecida, principalmente artistas e
políticos, não podem exercer a censura prévia, cabendolhes sempre o direito à ação de indenização por danos
morais, se houver abuso, ou seja, se forem falsos os fatos
narrados. Por isto, considero o projeto desnecessário e
que nem haveria necessidade de revogação dos artigos
Será o mito o grande inimigo da verdade?
Em 1995, as filhas do jogador Garrincha processaram
o jornalista e escritor Ruy Castro, autor da biografia do
pai famoso Estrela solitária. O livro foi proibido e depois
liberado à venda. Foi preciso um acordo financeiro entre
as partes. Em 2007, o cantor Roberto Carlos conseguiu,
na Justiça, a sustação da distribuição de sua biografia não
autorizada, Roberto Carlos em detalhes, escrita por Paulo
César de Araújo, que pesquisou a vida do cantor e chegou a
ouvir mais de 200 pessoas. Recentemente, Vilma Guimarães
Rosa, filha do escritor João Guimarães Rosa entrou na Justiça
buscando proibir a biografia Sinfonia Minas Gerais – A
vida e a literatura de Guimarães Rosa, sobre seu pai, escrita
por Alaor Barbosa. O juiz Maurício Magnus, ao analisar a
questão, não concordou com a pretensão de Vilma e liberou a
biografia, argumentando claramente que “é inadmissível que
o patrimônio cultural tenha dono”.
A viúva e as filhas de Paulo Leminski tentam impedir a
republicação de Paulo Leminski, o bandido que sabia latim,
biografia do poeta, de autoria do jornalista Toninho Vaz,
por não concordarem com detalhes da vida do biografado
acrescentados pelo autor a uma nova edição. Lira Neto,
pesquisador e historiador, biógrafo de Getúlio Vargas declarou
à revista Veja, em sua edição de 23 de outubro de 2003, em
matéria assinada por Jerônimo Teixeira, Bruno Méier, Sergio
50
Martins e Rinaldo Gama, que pensa em não mais escrever
biografias “com receio de sofrer ações por parte de herdeiros
de biografados”.
Kitty Kelley, autora americana de sucesso com biografias
decisivas e não autorizadas, sobre personalidade como a
apresentadora Oprah Winfrey, a atriz Elizabeth Taylor, o
cantor Frank Sinatra e a ex-primeira dama Jacqueline Bouvier
Kennedy, é incisiva em dizer que “os familiares do biografado
têm uma tendência natural de apagar o que é real, doloroso ou
pouco lisonjeiro da vida dos biografados. Essas eliminações
infelizmente privam a história de vida de uma personalidade
de sua profundidade”. O autor inglês Jonathan Fenby que
escreveu uma biografia sobre o general francês Charles De
Gaulle, O General, alega que as sociedades “precisam e têm
esse direito, de saber sobre seu passado e o seu presente e as
biografias são parte disso”.
Reunidos na Alemanha, em 2004, mais de quatro
dezenas de autores, historiadores e jornalistas, ao discutir a
importância da História na vida das pessoas e das sociedades,
chegaram a uma clara conclusão: “é preciso trazer as pessoas
de volta para a História, e a biografia é o gênero literário
certo para investigar as questões”. Enfatizaram, na verdade,
o valor essencial das biografias, o que o grego Plutarco já
dizia há quase dois mil anos na biografia Vidas paralelas,
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
em que contava as aventuras e proezas do rei Alexandre da
Macedônia: “Não me pus a escrever histórias, mas vidas
somente. E as mais altas e gloriosas proezas nem sempre são
aquelas que mostram melhor o vício e a virtude do homem.
Ao contrário, muitas vezes uma ligeira coisa, uma palavra
ou uma brincadeira põem com mais clareza em evidência o
natural das pessoas”.
No centro de toda a discussão que envolve a História e o
direito das sociedades e indivíduos de terem total conhecimento
desta, está sempre em evidência a Verdade. É esse valor essencial
ao ser humano que está sujeito a interpretações variadas, de
ordem jurídica ou não. Alguns, querem que ela seja mostrada
de uma maneira mais próxima da mentira; outros, que ela
nunca venha à tona. Há ainda aqueles que querem controlá-la
de alguma forma. E ainda há aqueles que consideram que a vida
pode muito bem ser levada sem que se precise dela. E que nem
tudo precisa ser dito e muito menos revelado. E que os mitos
são intocáveis, mesmo que tenham vida pública e suas histórias
sejam de interesse geral da sociedade.
“O grande inimigo da verdade muitas vezes não é a
mentira, deliberada, artificial e desonesta, mas o mito. Este,
sim, é persistente, persuasivo e irrealista”, disse, certa vez,
um dos personagens mais biografados – sem censura ou
autorização prévia – da história do mundo: John Kennedy.
20 e 21 do Código Civil, para mim não aplicáveis às
personalidades públicas. A história e a liberdade de
expressão seriam duramente atingidas se houvesse
censura prévia.
JC – Há quem diga, que nessa discussão toda estão
“criando pressão como se tudo fosse relativo à liberdade
de imprensa, como se o direito de veto à biografia
fosse uma agressão à liberdade de imprensa”. Alegam
que “essa discussão nada tem a ver com liberdade de
imprensa”. Tomam como princípio básico “que não se
pode publicar inverdade e, por causa disso, biografia
só autorizada”. A imensa maioria da sociedade não tem
o direito de conhecer a vida de pessoas que a ela estão
ligadas em seu dia a dia ou no curso da história? Afinal,
em sua opinião, esse assunto tem ou não a ver com
liberdade de imprensa?
IGM – A questão tem a ver com a liberdade de imprensa e
a verdade histórica. Conhecer a vida de um político ou de
um artista é fundamental, pois o primeiro representará o
povo, e o segundo, por seu estilo de vida, pode não agradar
a muitos, que só o admiraram por não o conhecerem. A
verdade histórica, de um lado, e a liberdade de imprensa,
de outro, não podem ofertar tal “endeusamento chapabranca” dos cidadãos que se tornaram protagonistas do
momento.
JC – Privacidade inviolável x liberdade de expressão
– essa seria a síntese de toda esta discussão? Como
em outros países o direito constitucional conseguiu,
promover um necessário “equilíbrio jurídico-legal” em
torno desse assunto?
IGM – Através de pesadas indenizações todas as
vezes em que o narrado não representa a verdade
histórica.
JC – Afinal, a liberdade de biografar quem quer que
seja e a qualquer tempo, pessoa pública ou privada, deve
ser tolhida pelo biografado e/ou seus parentes?
IGM – A vida de um cidadão “não público” não pode ser
narrada por qualquer um, pois a privacidade lhe garante
tal direito. Nesse caso, há invasão. Não do “cidadão
público”, pois este renunciou à privacidade.
JC – O sr. é um jurista renomado, com uma importante
história de vida e participação real na história do próprio
país, e isso é de grande interesse para a sociedade. Se um
escritor quisesse escrever sua biografia, o sr. aceitaria
sem qualquer autorização prévia?
IGM – Não me importaria. Se fosse verdadeira, não
haveria o que esconder. Se falsa, eu ingressaria em juízo
com ação de indenização por danos morais.
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 51
de Jacarepaguá. Indagamos à Prefeitura a razão dessa
discrepância, haja vista os anúncios publicados pelas
construtoras, vendendo esses mesmos empreendimentos
como se fossem na Barra da Tijuca. Recebemos uma
resposta decisiva do Município, esclarecendo que tais
empreendimentos estão compreendidos em Jacarepaguá,
razão pela qual o IPTU é cobrado considerando essa
região. A par disso, visualizamos um mapa da região da
Barra da Tijuca demonstrando o alcance e as delimitações
do bairro. Tomamos conhecimento de que o critério
estabelecido pelo Município se esmera nas testadas
dos terrenos existentes naquela região, explicando que
aqueles com testada para Avenida Abelardo Bueno
tem endereço na Barra da Tijuca sendo os demais em
Jacarepaguá, como se pode aferir pela ilustração abaixo.
Frisamos que Condomínio RIO 2, por exemplo, possui
prédios (cuja testada dá para Avenida Abelardo Bueno)
localizados, pela Prefeitura, na Barra da Tijuca e outros
prédios (cuja testada não dá para Avenida Abelardo
Bueno) deste mesmo condomínio, localizados em
Jacarepaguá, recebendo, inclusive, IPTU correspondente
ao Bairro.
De posse dessas informações, nos preocupamos em
ouvir algumas das principais construtoras que comercia-
O impacto do marketing de
venda na região limítrofe entre
Barra da Tijuca e Jacarepaguá
Jansen dos Santos Oliveira
Advogado
52
Foto: Dani Prates/Fazendo Pose
E
nquanto membro da Comissão de Direito
Imobiliário da OAB-RJ, Seccional da Barra da
Tijuca, fui convidado para ser relator do presente
trabalho, que tem como escopo analisar se há
ou não prática abusiva no mercado imobiliário da Barra
da Tijuca, notadamente em relação ao marketing de
determinados empreendimentos na região da Avenida
Abelardo Bueno e adjacências.
A controvérsia instala-se na indefinição do bairro
em que são erguidas as construções naquela região, pois,
a princípio, o que se vê é que a maioria das promoções
realizadas pelas construtoras, na forma de “marketing”,
anuncia a venda desses empreendimentos como Barra
da Tijuca em terrenos que são designados pela Prefeitura
do Rio de Janeiro com endereço em outro bairro, por
exemplo Jacarepaguá, Curicica.
Para uma análise mais acurada sobre o tema, foi
necessária a adoção de diligencias que pudessem ampliar
nossa visão em relação a questão, abordando aspectos
administrativos, fiscais e consumeristas.
Para tanto, buscamos junto à Prefeitura do Rio
de Janeiro explicações a fim de entendermos o que se
passa naquela região. Efetivamente, o que colhemos
é que de fato há vários empreendimentos na periferia
da Avenida Abelardo Bueno e adjacências que têm a
incidência do Imposto Territorial Urbano do Bairro
lizam naquela região, notadamente a Carvalho Hosken
S.A, RJZ Cyrela. Pelo relato das referidas representantes
jurídicas, ouvimos a confirmação de que o marketing
de tais empreendimentos está voltado para o bairro da
Barra da Tijuca e que apesar de admitirem que a localização efetiva dos terrenos refere-se a Jacarepaguá, não
veem prejuízo ao consumidor em razão da propaganda
direcionar o imóvel para o Bairro da Tijuca.
Diante dessas explicações, tanto por parte da Prefeitura, quanto pelas construtoras, passamos a abordar
os aspectos jurídicos sobre o tema, ainda que de forma
concisa.
Quando examinamos a Lei 8.078 de 11.9.1990, nos
deparamos logo em seu artigo 4o com a preocupação
do legislador em proteger a dignidade do consumidor,
cuidar da sua segurança nas relações comerciais e
garantir “os seus interesses econômicos, bem como a
transparência e harmonia das relações de consumo”, pois
é direito básico do consumidor “a informação adequada
e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com
especificação correta de quantidade, características,
composição, qualidade e preço, bem como sobre os
riscos que apresentem; a proteção contra a publicidade
enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 53
54
compra um produto por sua qualidade e não por estar
agregado a um bairro nobre, como Barra da Tijuca.
Esvaziam a polêmica demonstrando que o consumidor
alvo tem o esclarecimento inerente ao “homem médio” e
que o marketing usado não seduz de forma abusiva.
Dessa forma, admitimos que o ser humano, em
muitas ocasiões, consome em detrimento das suas
necessidades básicas, para simplesmente exibir suas
qualidades para o seu grupo ou para possíveis parceiros
sexuais. É a teoria central, inclusive, do livro de Geofrrey
Miller1, Darwin Vai às Compras, onde atesta que o ser
humano consome para ostentar. Esse “pendor humano
pelo consumo conspícuo alimenta o marketing”2 . Porém
daí a admitir que, no caso em tela, o consumidor assume
estar comprando um imóvel anunciado como Barra
da Tijuca, enquanto é Jacarepaguá, tão somente para
satisfazer esses prazeres inerentes à sua existência nos
parece um tanto quanto enganoso.
Ao contrário do que sustentam as construtoras,
a violação ao direito do consumidor é patente. O
consumidor merece obter informação clara sobre o
produto e ponto. Não há subterfúgios para violar essa
regra. Se não há prejuízo financeiro (admitamos), não
se pode negar que há um direcionamento lógico, pelo
marketing empregado, que induz a compra daquele
imóvel anunciado como Barra da Tijuca, pois se assim
não fosse ele seria anunciado como Jacarepaguá. Não
concordamos com o argumento das construtoras de que
o “homem médio” tem condições de discernir sobre os
aspectos intrínsecos da propaganda, aferindo tratar-se
de publicidade ilusória, enganosa. Há uma linha tênue
em que o marketing deve ficar atento, para que em vez
de seduzir não se engane.
A violação ao direito do consumidor não é só patente,
é patética. Afirmamos isso porque o Estado tem o dever
de fiscalizar essas práticas que invadem nossas mentes
semanalmente pelas páginas dos jornais, pelas mãos dos
prepostos das construtoras e através da mídia televisiva.
Destarte, de duas uma: ou se coíbe a prática enganosa
que vem sendo largamente utilizada pelas construtoras;
ou se exige que a Prefeitura reconheça a região como
Barra da Tijuca, aplicando a alíquota correspondente ao
Bairro.
Notas
Geoffrey F. Miller (nascido em 1965, Cincinnati, Ohio ), Professor
Associado de Psicologia na Universidade do Novo México , é um
americano psicólogo evolucionista.
2
Hélio Schwartsman, na coluna da Folha de São Paulo de 21.3.2012,
pag. A2.
1
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
Plebiscito para reforma
política: algumas reflexões
A educação como pilar das reformas e o
garantismo constitucional
Cármine Antônio Savino Filho
P
Desembargador aposentado do TJERJ
lebiscito é uma expressão antiga, do tempo dos
romanos (plebiscitum), e, naquela época, referiase ao mecanismo utilizado quando se desejava
conhecer o pensamento da “PLEBE” (povo),
através de seus representantes (hoje: Congresso Nacional),
eleitos pela escolha popular, objetivando estabelecer
normas para a construção ou reconstrução de uma nação,
ficando com a responsabilidade de redigir normas, para
dar atendimento às minorias: era a democracia direta.
A pretendida reforma política refere-se a uma reorganização da polis, in caso: NAÇÃO. Necessário se faz
entender as forças vitais da sociedade, como, por exemplo,
saúde, educação, trabalho, habitação, saneamento básico,
ecologia social, seguranças pública e nacional, economia,
sistemas carcerário, rodoviário, hidroviário, meio ambiente,
entre outras.
Como pretender tantas reformas, ouvindo diretamente
o povo, sem que este conheça o tema a ser votado.
Qual a pauta a ser preenchida na construção ou
reestruturação social do país?
Democracia é dar atendimento a cada um que habita
uma nação. Democracia é o direito das minorias, tendo o
indivíduo como centro: sustentabilidade para todos.
Quem deseja estar à frente de uma administração
pública terá de possuir a visão permanente a respeito da
execução de ações, objetivando ser o indivíduo centro
(visão-temporal) na constituição de missão (atemporal).
Foto: Arquivo pessoal
desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas
ou impostas no fornecimento de produtos e serviços”.
Neste diapasão, forçamo-nos a analisar se a prática do mercado imobiliário em anunciar as vendas de
seus empreendimentos na região da Avenida Abelardo
Bueno e adjacências está em desacordo com o que prescreve
o supracitado diploma legal. Claramente, buscamos esclarecer se ao anunciar um terreno existente em Jacarepaguá
como localizado na Barra da Tijuca o consumidor sofre
lesão ao seu direito de informação; se tal prática fere a sua
dignidade e se a referida publicidade tem o cunho de enganar o consumidor.
Mas, antes disso, antes mesmo de concluir tal enten­
dimento, pretendemos demonstrar que se tal prática não
lesa o direito do consumidor de forma direta, fere de
forma indireta, senão vejamos.
Um dos argumentos apresentados pelas construtoras
a favor da publicidade dos empreendimentos como Barra
da Tijuca é que o consumidor ao adquirir mencionado
imóvel, absorve status de morador da Barra da Tijuca,
pagando IPTU pela alíquota de Jacarepaguá, que é bem
menor que a alíquota da Barra da Tijuca. Acontece que,
em sendo assim, admitindo-se que esse procedimento
confere realmente um “benefício” ao consumidor,
nos deparamos com uma situação preocupante sob o
ponto de vista fiscal. É que percebemos uma fresta de
irregularidade quando imóveis em regiões limítrofes
têm arrecadação díspares enquanto são comercializados
de formas diferentes, ainda que com localização idêntica.
Nesse caso, o Município estaria arrecadando menos, de
forma injustificada, pois se o imóvel é comercializado
como Barra da Tijuca deve ter alíquota referente a esse
bairro. Em última análise, o próprio consumidor estaria
sendo lesado enquanto cidadão.
Como efeito, retornando à questão consumerista,
como dissemos, as construtoras sustentam que apesar
de cientes de que a propaganda aponta para Barra da
Tijuca imóveis que têm endereço em Jacarepaguá, não
veem prejuízo algum ao consumidor. Argumentam,
como já dito, que o fato do cliente-consumidor comprar
um imóvel anunciado como da Barra da Tijuca, ainda
que seja em Jacarepaguá, lhe traz status e benefício por
pagar um IPTU relativo ao bairro residente e não aquele
anunciado que teria uma alíquota bem maior. Aduzem,
ainda, às construtoras que o valor da venda dos referidos
imóveis não sofrem influência por serem anunciados
como existentes na Barra da Tijuca, outro motivo que
revela ausência de prejuízo ao cliente. Indagados se o fato
do produto estar sendo vendido com a marca Barra da
Tijuca, em vez de Jacarepaguá ou Curicica influenciaria
na decisão de compra desse imóvel, as construtoras
rechaçaram essa premissa, atestando que o consumidor
Na essência, o gestor, o administrador público, não
é simplesmente uma pessoa com poder, mas sim uma
personagem, um ator que exerce o poder do Estado na
realização de suas políticas públicas.
Aprendi, como estagiário da Escola Superior de Guerra,
na ocasião sob o comando do General OSWALDO MUNIZ
OLIVA, a distinção entre crescimento e desenvol­vimento.
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 55
“As discussões sobre a educação
no Brasil quase sempre seguem
as veredas de seus problemas
estruturais e perdem-se em
tecnicismos, aliás importantes,
mas não prioritários, tais como:
a qualificação profissional
dos educadores, a sua baixa
remuneração, a ausência de
recursos instrucionais modernos,
o uso de processos didáticos e
pedagógicos já ultrapassados.”
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Justiça & Cidadania | Novembro 2013
Segundo Gustavo Ioschpe, em seu livro O que o Brasil
quer ser quando crescer:
(...) Há uma crise profunda em nosso sistema educacional,
tanto público quanto privado, e sua solução é indispensável
para que o país desenvolva-se.
A criação de políticas públicas para a resolução desses
problemas precisa vir amparada pelo conhecimento
formal; há décadas de pesquisas empíricas sobre o que
funciona e o que é irrelevante, e a discussão que ignora
esse conhecimento em favor de opiniões ou experiências
pessoais já nasce seriamente comprometida.
(...) Fui conhecer o sistema educacional da China,
especialmente da província de Xangai, que acabara de ter
o melhor desempenho educacional do mundo no Pisa
(Programa Internacional de Avaliação de Alunos), o mais
respeitado teste de qualidade de educação.
O que a China faz de mais admirável é engajar toda a
sua população na busca pela excelência educacional.
Os profissionais da educação chineses são muito
comprometidos, mas não só eles: pais e alunos também
sabem que precisam dar muito duro se quiserem ter sucesso
em um país que almeja ser uma potência. A China fascina
porque lá a educação é uma questão nacional – nem estatal
nem das corporações, mas de todos os chineses.
(...) O mais triste não é virmos em um caminho errado. É
querermos aprofundar ainda mais o desacerto.
(...) Nos países em que a educação dá certo, o consenso
social acerca de sua importância substitui a legislação.
No Brasil, temos a ilusão de que a legislação substitui o
consenso. As consequências estão aí.
Enquanto não trocarmos o discurso de cifras e lei pelo de
trabalho e resultados, estaremos apenas jogando mais e
mais recursos em um sistema roto e incompetente, que vem
produzindo ignorância, pobreza e atraso.
“A educação não é preparação para a vida. É a vida. A
educação fenômeno social. Educação é um processo, não
um resultado. A vida social se perpetua por intermédio da
educação.” (John Dewey, Vida e educação).
A atividade educativa não se processa no vácuo. Toda
educação é social: nesta relação entre o indivíduo e a
sociedade.
Como fazer um plebiscito para ouvir o povo sobre
questões tão complexas e fundamentais? Parece-me que
o correto seria ter gestores que pensassem e executassem
essas reformas, na reconstrução da nação.
A razão é essencial na reflexão sobre as necessidades
da “plebe”, quando as forças vitais da sociedade poderão
evidenciar a democracia, onde o indivíduo seja o sujeito
desse novo tempo, a possibilitar a sustentabilidade de
todos que vivem em uma sociedade, evidenciando a
garantia constitucional de todos.
Foto: ideiademarketing.com.br
Há várias forças vitais em uma sociedade, como, por
exemplo, a educação. Se as ações são direcionadas apenas
para a educação, estaremos diante do crescimento de
uma força e do não desenvolvimento de todas as forças.
Para o desenvolvimento, é necessário cuidar, com relativa
harmonia, de todas as forças vitais da sociedade.
Dessa forma, crescimento é a ação de dar atenção à
apenas uma força vital.
DESENVOLVIMENTO é o enfrentamento direcionado
para o crescimento de todas as forças vitais: para o todo,
e não a parte.
Para o desenvolvimento nacional, o fundamental
é direcionar ações na construção das forças vitais
da sociedade: saúde, educação, trabalho, habitação
seguranças pública e nacional, saneamento básico, entre
outras, essenciais para a sustentabilidade do país como um
todo, assim como dos estados e dos municípios.
O Administrador não pode ter uma visão específica,
mas, sim, uma visão dialética, analítica, sistêmica de suas
ações como um todo, e não como se fosse resolver apenas
uma questão. O importante é o conjunto das ações.
Não se pode administrar apenas para alguns grupos
sociais, mas deve-se, ao contrário, direcionar projetos e
ações para as minorias, tendo o indivíduo como centro
destes.
Disse um biólogo marinho que para identificar nosso
planeta seria necessário conhecer todos os nossos mares
e oceanos, ingressando nos mesmos apenas na dimensão
de um palmo. O conhecimento necessita da compreensão
do todo, e não de uma parte.
É evidente que a educação é o pilar do desenvolvimento.
Entretanto, resta saber: qual educação queremos? A
educação de sala de aula para preparar os alunos para
provas e concursos? Aqui, o importante será refletir mais
profundamente sobre a educação.
Não! Educação para o social.
As discussões sobre a educação no Brasil quase sempre
seguem as veredas de seus problemas estruturais e perdemse em tecnicismos, aliás importantes, mas não prioritários,
tais como: a qualificação profissional dos educadores, a sua
baixa remuneração, a ausência de recursos instrucionais
modernos, o uso de processos didáticos e pedagógicos já
ultrapassados.
Para nós, essas são questões menores, como também
menores são as discussões sobre surradas dicotomias:
ensino público X ensino privado, ensino religioso X ensino
laico, prevalência do primeiro grau sobre o segundo.
Mesmo o ensino universitário, para alguns de 3o grau, não
consegue cumprir todas as etapas de seu clássico papel de
ensino, de pesquisa e de extensão. Mas a discussão destas
questões – meramente operacionais e, portanto, simples
consequências de decisões mais amplas – faz lembrar
a preocupação com as doenças e não com o doente. As
doenças da Educação revelam algo mais sério, mostram
um grande, um imenso doente – a nação.
Educação é conduzir, guiar. Mas para onde?
Foi Lewis Carrol, em um diálogo entre Alice e o
Coelho no País das Maravilhas, que lembrou: “Quando
não se sabe para onde ir, qualquer caminho serve”. A
grande e perturbadora questão é que a Educação não sabe
para onde ir, porque a própria nação, de resto, não sabe
para onde se guiar. Falta-lhe um projeto de construção de
si mesma e, por consequência, um projeto educacional
adequado à sua formação. Ou seja, sem um claro projeto
de construção nacional, qualquer caminho que a Educação
venha a trilhar é igualmente bom e mau, aleatoriamente;
levará a qualquer parte e, portanto, a parte nenhuma.
É exatamente aí que a questão se torna complexa.
Um projeto educacional pode ser o condutor do projeto
de construção nacional. E que projeto é este? Que tipo
de sociedade queremos construir? Quais os valores
éticos sobre os quais estabeleceremos as raízes de
nossa cidadania? Qual a simbiose e em que proporção
cultuaremos as imposições do progresso e da tecnologia
em face das aspirações humanísticas, da vocação da
paz, do relacionamento do homem com a terra, da
convivência com os povos, dos valores supranacionais?
Afinal, aonde queremos chegar? A partir daí, saberemos
que caminho tomar: as questões de política educacional
e de sua operacionalidade (até mesmo as verbas
orçamentárias e sua destinação) serão mera decorrência
desta discussão maior.
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 57
“Na era da informação, as comunidades de representantes da sociedade civil têm seus ‘portavozes’ nos instrumentos da mídia que, amparada nos mais potentes recursos tecnológicos,
transmite os sinais de expressão cultural e de opinião pública. A topologia definida por redes
determina que a distância entre dois pontos (ou posições sociais) é menor se ambos os pontos
forem nós de uma mesma rede.” [Manuel Castells, 2002].
Ilutração: Mídia Ninja / ©Andrzej Wilusz - Fotolia.com
Mídia ninja: um novo momento
do jornalismo
Da Redação, por Ada Caperuto
A
Mídia Ninja – sigla para Narrativas Indepen­
dentes, Jornalismo e Ação – pode ser
considerada um fenômeno midiático por
adotar um modelo de cobertura jornalística
alternativo, em tempo real, sem cortes, sem censura
e, principalmente, independente. Sua proposta é ser
combativa, tal como os agentes secretos do Japão feudal,
mas não exatamente igual, já que estes prestavam contas
aos seus contratantes.
A Mídia Ninja ganhou destaque a partir de junho
deste ano, com a cobertura das manifestações populares
que dominaram as cidades de todo o País, levando
milhões de pessoas às ruas em busca de solução para
as muitas mazelas sociais. Portando câmeras simples –
muitas vezes de aparelhos smartphones –, notebooks e
conexão 4G, os Ninjas, em geral uma equipe composta
por fotógrafo, redator e cinegrafista, fazem a cobertura
dos eventos e publicam em sua página na rede social
Facebook, que registrava 213 mil seguidores em 30 de
setembro último.
Destemidos – e apoiados pela imensa maioria dos
manifestantes – os Ninjas correm riscos, como ocorreu
com Filipe Peçanha, o Carioca, que foi detido pela Polícia
Militar em uma manifestação realizada em 22 de julho,
enquanto cobria o protesto nos arredores do Palácio
Guanabara. Embora tenha sido libertado horas mais
tarde, o episódio foi marcante e nos coloca diante da
perspectiva de que, talvez, estejamos vivendo o momento
que citou o estudioso Phillip Meyer, autor do célebre “Os
jornais podem desaparecer?”.
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Disse ele, ainda em 2009: “A Internet criou um sistema
de múltiplas etapas e o problema agora não é mais de
fluxo, mas sim de credibilidade. A presença comunitária
dos jornais, depois de ser menosprezada durante várias
décadas, é hoje considerada uma questão estratégica e
que de alguma forma ressuscita a proposta de jornalismo
cívico”.
Nesta entrevista, o fotógrafo paulista Rafael Vilella, 24
anos, ex-estudante de design gráfico e um dos criadores
da Mídia Ninja, fala um pouco mais sobre as origens e
propostas deste projeto que existe há menos de um ano,
como parte do Coletivo Fora do Eixo (FdE), rede criada
em 2006 para organizar circuitos de música e impulsionar
artistas independentes longe do eixo Rio-São Paulo.
Por trás da fundação do FdE está o produtor cultural
Pablo Capilé, e o jornalista Bruno Torturra – os dois
principais porta-vozes da iniciativa. De acordo com o
perfil em sua página do Facebook, o FdE começou com
uma parceria entre produtores das cidades de Cuiabá
(MT), Rio Branco (AC), Uberlândia (MG) e Londrina
(PR), que queriam estimular a circulação de bandas, o
intercâmbio de tecnologia de produção e o escoamento
de produtos nesta rota desde então batizada de «Circuito
Fora do Eixo». Hoje, o FdE está presente em 25, das 27
unidades federativas do Brasil, em mais de 200 coletivos.
Quanto à Mídia Ninja, sua origem está na cobertura ao
vivo da Marcha da Liberdade, realizada em São Paulo, a 28
de maio de 2011. A experiência resultou no lançamento de
um canal de transmissão de debates na internet chamado
PósTV, mantido por integrantes do coletivo Fora do Eixo.
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
Justiça & Cidadania – Qual é sua atuação dentro da
Mídia Ninja?
Rafael Vilella – Minha função dentro da Mídia Ninja está
ligada à fotografia. Sou fotógrafo e estou no Fora do Eixo
há três anos.
JC – Qual a principal proposta da Mídia Ninja? O
objetivo é ser um canal independente da mídia oficial?
RV – Com certeza, porém mais do que isso é ser um canal
que tenha um sistema de financiamento que independa
de qualquer organização política, que consiga não estar
atrelado a nada, a não ter nenhuma amarra, que seja
diferente dos grandes veículos. Essa independência tem
muito mais um viés político e financeiro, em relação
a grupos que poderiam influenciar ou delimitar um
processo de comunicação. Isso não significa que a
gente não acredite em algo, que não tenha organizações
parceiras e movimentos que entendemos ter uma visão de
mundo muito parecida com a nossa, e que nos ajudam a
estruturar essa narrativa.
JC – Desde quando vocês atuam como mídia independente?
RV – O Fora do Eixo tem sete anos, mas a Mídia Ninja
começou este ano, como fruto de uma experiência de
comunicação social que já tem uns dois anos. O Fora do
Eixo foi como uma incubadora de iniciativas de novas
redes e, a partir desse acúmulo que tem de tecnologias
sociais e de estrutura física, consegue gerar novas ideias
e alternativas. Eles já bebem muito nessa fonte, nessa
nova forma de entender política e sustentabilidade em
rede. Então, a Mídia Ninja é uma rede nova, mas se você
pegar os núcleos mais bem estabelecidos, como o do Rio
de Janeiro, você verá que há 30 pessoas trabalhando no
Ninja e três no Fora do Eixo. É um processo de autonomia
e empoderamento local mesmo.
JC – Quantos coletivos existem hoje no Brasil, onde
estão localizados e quantos colaboradores atuam
diretamente na Mídia Ninja?
RV – Temos um escopo de avaliação muito amplo, porque
a cada dia recebemos 200 ou 300 emails de pessoas
querendo ser Mídia Ninja em seus locais. E isso, dentro
de uma lógica de rede, aberta, onde qualquer um pode
ser um Mídia Ninja, independentemente de qualquer tipo
de autorização ou contrato, faz com que a gente estime
algo em torno de duas mil pessoas conectadas, mas é um
número que cresce. Na página, [do Facebook, até então a
Mídia Ninja ainda não tinha concluído seu site na web]
hoje são 200 mil seguindo. Esses números são difíceis
de ser avaliados de uma maneira exata, porque estamos
falando de um processo de rede, de colaboração. Agora,
Críticas existem a este novo modo de fazer jornalismo,
como também aos modelos tradicionais. Cabe à sociedade
analisar as propostas, erros, acertos, ganhos e perdas
de cada um dos modelos para escolher qual deles deve
prevalecer como seu porta-voz – ou mesmo se podem ser
complementares, o que talvez seja o ideal. Sorte nossa! Poder
escolher é exatamente a mágica que chegou com a moderna
tecnologia, que torna tudo imediato, acessível e transparente.
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 59
no núcleo durável da Mídia Ninja, são aproximadamente
50 pessoas nas redações, trabalhando 24 horas por dia
com isso, em todas as regiões.
JC – É correta a informação de que o FdE se mantém
com recursos obtidos do apoio a projetos culturais, em
editais públicos? Como se manter independente se há
este vínculo?
RV – Nenhum produtor cultural que passe em um
edital público aberto e divulgado amplamente nos
meios de comunicação perde sua autonomia de gestão e
dissidência da manutenção desse dinheiro para aplicar
em seus projetos. Então, defendemos publicamente que,
cada vez mais, exista mais verba pública disponível
para comunicação e cultura em termos claros, em
editais abertos, dos quais todos possam participar. Em
momento algum tivemos qualquer tipo de contrato de
financiamentos com governos. Participamos de editais
com projetos nossos, que por terem qualidade e terem
sido mais bem avaliados que outros, permitiram que
recebêssemos o financiamento para executá-los. Em
momento algum estamos recebendo financiamento para
existir ou para fazer algo que alguém nos pediu. É uma
diferença muito clara.
JC – Então como funciona a estrutura toda do FdE e da
Mídia Ninja? O capital para operar a Mídia Ninja tem
origem nessa verba de editais públicos?
RV – Não. Temos outro sistema de financiamento. Em
primeiro lugar, esses editais, em termos percentuais, são
a menor parte dentro do financiamento todo que o FdE
tem. Ou seja, ele não depende desses editais e a Mídia
Ninja muito menos. O que financia de fato a rede FdE é
a sistematização e a troca de serviços que estabelecemos
a partir de um modelo de economia solidária. Temos
moedas complementares, um sistema de economia muito
amplo que está conectado a esses 200 coletivos, que gera
a sustentabilidade a partir de arranjos produtivos locais,
onde cada coletivo se conecta com um parceiro, tem suas
fontes de renda próprias, os seus festivais que geram
renda para a rede, que essa lógica do circuito cultural
financia. Assim, o circuito cultural organizado financia
um movimento como a Mídia Ninja. Não é a verba
do governo que tem uma cota reservada para a Mídia
Ninja, mesmo porque seria impossível. A verba que
recebemos de editais deve ser aplicada em determinadas
coisas. Para realizar os eventos temos um caixa coletivo,
moramos em casas coletivas e somos muito econômicos.
O dinheiro que receberíamos de salários, por exemplo,
de um produtor cultural de um festival do FdE, vira
caixa coletivo que serve para qualquer projeto que está
incubado.
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JC – Qual é, em sua opinião, o potencial das redes
sociais, para abalar a estrutura e mudar paradigmas da
produção e distribuição da informação?
RV – Eu acho que já abalou a estrutura geral da mídia,
não tenho dúvidas. Os acontecimentos de junho e,
principalmente, a vinda do Papa [Papa Francisco chegou
ao Brasil em 22 de julho para uma visita de seis dias],
nos trouxeram episódios muito relevantes em relação à
capacidade de influência das mídias independentes nos
grandes veículos. Eu não acho que, em momento algum, a
gente esteja aqui pregando o “novo jornalismo”, mas uma
nova forma de fazer jornalismo, que, com certeza, vai
pautar as formas tradicionais.
JC – Em relação à cobertura das manifestações, o que
você destacaria como mais relevante – aquilo que a mídia
tradicional costuma chama de “furo de reportagem”?
RV – Tivemos a questão do Bruno Teles, que já estava sendo
incriminado pela grande mídia como responsável por jogar
um coquetel molotov na polícia. Sem qualquer evidência,
a Globo comprou a versão oficial do relatório da polícia
no final do dia e colocou no Jornal Nacional. Até que os
movimentos trouxeram as provas e os vídeos que foram
gravados. Isso repercutiu na internet de uma maneira tão
forte que eles [a Globo] tiveram que dar um passo atrás no dia
seguinte. Usaram um vídeo da Mídia Ninja para conseguir
se reconfigurar diante disso. Têm alguns casos isolados que
ilustram essa necessidade [de mudança de postura da mídia].
A Globonews agora tem um Ninja em campo também, ela
leva um cara com streaming em tempo real nos protestos.
Mas a capacidade de a mídia se reconfigurar não é técnica.
Eu acho que não é uma questão de metodologia de trabalho,
e sim muito mais uma questão política.
JC – Qual é, então, o questionamento que deve ser feito
em relação aos meios de comunicação?
RV – O grande questionamento que fazemos em relação
à mídia [tradicional] é sobre o interesse de comunicação
que ela tem, sobre a democratização dos meios, sobre a
altíssima concentração de poder midiático de alguns
grupos que são familiares. Enfim, estes são os debates que
devem ser levantados em relação à democratização da
imprensa no Brasil e essa suposta liberdade de imprensa.
Quem é livre hoje para fazer imprensa? Acho que temos
que questionar esses modelos mais do que qualquer coisa.
JC – Quais têm sido os resultados do trabalho da Mídia
Ninja? Você acredita que estão influenciando a mídia
tradicional?
RV – Eu não tenho dúvidas de que eles estão sendo
pautados e estão tendo que mudar a sua forma de atuação
em função dos movimentos sociais, porque eles correm
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
sério risco. Existe um processo de queda nessa indústria
do jornalismo comercial, que está ligada principalmente
a duas leituras. A primeira é uma desestabilização
econômica do modelo de negócios deles, que é insustentável
para o que está colocado – porque hoje a gente tem a
internet e a gente tem novas formas de distribuição e
produção colaborativa que desmonetarizam grande parte
desse processo – e eles ainda estão no modelo industrial
de jornalismo. Você tem um produto jornalístico quase
como um carro, você tem uma linha de produção e a venda
desse produto. E a gente tem certeza que o jornalismo não
pode ser uma indústria, ele tem que ser entendido como
um processo cultural acima de tudo, de produção, de
compartilhamento e debate de visões de mundo. Então,
essa é a crise número um, que é a crise de modelo de
negócios, de concepção do quê é o jornalismo. A segunda
já é uma crise de credibilidade. Foram anos e anos falando
o que quer para quem quer, e eles perderam totalmente
a sua credibilidade com o público. Do anarcopunk ao
“coxinha” que estavam nas ruas em julho, todo mundo
tinha certeza que “Abaixo a Rede Globo” era um lema
comum entre as pessoas. Então, temos um momento
também de ganho de conscientização da sociedade
brasileira em relação a incapacidade e ao interesse desses
grande veículos de noticiar as coisas de acordo como elas
são. Não estamos pregando uma visão única de como as
coisas têm que ser, o que discutimos é essa questão do
mosaico de multiparcialidades, na qual existe um maior
número de pessoas fazendo comunicação. [Discutimos]
que a formação da opinião pública se dê a partir dessas
múltiplas fontes e não a partir de um único emissor que
dialoga de modo totalitário e unilateral com milhões de
pessoas sem nenhum tipo de interação.
JC – Os coletivos têm uma determinada estrutura de
funcionamento. Marcante é o fato de que ninguém
pode/deve sobressair na rede – se entendi corretamente.
Como lidar com a natural ambição humana para
manter a rede no que ela tem de mais distante dos
padrões “industriais” de produção de notícias?
RV – Em momento algum o processo coletivo extingue ou
diminui a capacidade individual de cada um se destacar
ou de se posicionar de maneira autêntica – uma coisa não
está contra outra. Há casos e casos de pessoas que estão
na Mídia Ninja que viraram celebridades locais, como
o Carioca, no Rio de Janeiro. Existem várias lideranças
que surgem a partir desse processo, que não são, lógico,
âncoras famosos, nem é esse o objetivo, mas que têm a sua
legitimidade na construção de um processo de confiança
legítimo. Têm muitas pessoas que aparecem em seus
determinados meios, tem uma lógica de liderança. Temos
que questionar essa lógica, esse mito da horizontalidade
“Pensando no futuro, acho
que teremos um ano bem
forte em 2014. (...) Acho que a
eleição pode trazer um debate
superdualístico novamente, mas
teremos uma Copa, as pessoas
vão estar nas ruas, o ano que
vem será uma bomba.”
como ele é colocado às vezes. Precisamos entender a
horizontalidade como um objetivo e não como um ponto
de partida. Temos desigualdades, diferentes formas de
lidar [com o processo de trabalhos], mas é no quanto o
processo está interessado em ser aberto e democrático que
importa. É nisso que trabalhamos para que aconteça, para
que possamos empoderar o maior número de pessoas a
fazer isso [produzir notícia]. Estamos nos preparando
há muito tempo para o que aconteceu em junho. Não foi
à toa que conseguimos estar presentes em pelo menos
cem cidades, cobrindo os protestos em tempo real. A
gente deu conta de fazer tudo isso porque estávamos nos
preparando, então existe um processo de construção que
não começou agora, mas que está interessadíssimo em
formar o maior número de pessoas para fazer essa rede da
maneira mais horizontal possível.
JC – Até aonde vocês querem chegar com a rede? Qual
a abrangência que ela deverá ter? O que ela deverá ser
capaz de fazer?
RV – Pensando no futuro, acho que teremos um ano
bem forte em 2014. O Rio de Janeiro é a prova viva disso.
O Rio não parou, ainda está num processo de ebulição
social muito forte. Acho que esse é o paradigma que está
aberto e acho que é superinteressante discutirmos isso a
fundo, não de uma maneira simplista. Acho que a eleição
pode trazer um debate superdualístico novamente, mas
teremos uma Copa, as pessoas vão estar nas ruas, o ano
que vem será uma bomba.
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 61
Claudia Valéria Bastos Fernandes Domingues de Mello
A
igualdade entre todos os indivíduos, notadamente como um direito de primeira grandeza,
surgiu como princípio jurídico imprescindível
nos textos constitucionais imediatamente criados após as revoluções do final do século XVIII, sobretudo,
a partir das experiências institucionais pioneiras dos EUA
e da França, através das quais construiu-se o conceito de
igualdade perante a lei, de forma que esta, genérica e abstrata, deve ser igual para todos, sem qualquer distinção ou
privilégio, mas desde que em igualdade de condições.
Por conseguinte, através dos tempos, o tema –
POR­TADOR DE DEFICIÊNCIA – passou a ser objeto de
discussão específica e de determinados questionamentos que
o levaram a ser alvo de direitos e garantias constitucionais.
No entanto, diariamente, ainda constata-se a absoluta
ausência de fiscalização e, mais ainda, de punição para
o frequente desrespeito às normas garantidoras dos direitos dos portadores de necessidades especiais, inclusive pelo poder público, sobretudo no que diz respeito à
acessibilidade estrito senso, seja nas ruas, nos meios de
transportes ou nos estacionamentos públicos e privados.
Dessa forma, tomando-se por base um dos fundamentos da República, consubstanciado na dignidade da
pessoa humana, bem como no princípio constitucional
da isonomia, é que devemos assegurar aos portadores de
necessidades especiais o exercício de todo e qualquer direito, porém, dispensando-lhes um tratamento diferenciado, mas jamais discriminatório.
Destarte, nesse sentido, após a análise de alguns casos
concretos, não há dúvidas de que torna-se cada vez mais
necessária a utilização da tutela coletiva do consumidor
para a proteção e o cumprimento das regras jurídicas
62
Juíza federal da 4a Vara Federal de São João de Meriti
destinadas aos portadores de deficiência, sobretudo
diante da omissão do poder público e da negligência dos
fornecedores de bens e serviços ao consumidor.
1. Introdução
O presente artigo se propõe à analise da tutela
coletiva do consumidor como instrumento jurídico
adequado e necessário para a proteção dos direitos e o
efetivo cumprimento das normas jurídicas destinadas
aos portadores de necessidades especiais.
O estudo torna-se relevante na medida em que será
demonstrado que, ao mesmo tempo em que o Brasil pode
ser considerado um dos países com o maior número de
leis voltadas para os portadores de deficiência, continua
a ser um país onde essas leis não são cumpridas, onde
o desrespeito a essa classe de indivíduos ainda impera,
inclusive, por parte do próprio poder público, que é omisso
e negligente, sobretudo, no que diz respeito à observância
das normas de acessibilidade, requisito essencial para a
real e efetiva inclusão dessas pessoas na sociedade.
A metodologia utilizada tem como base principal
a Constituição Federal, a Lei no 7.853/1989 e o Código
de Defesa do Consumidor, que passaram a dar respaldo
à atuação do Ministério Público na defesa do direito
dos portadores de deficiência, além da citação de casos
concretos, notícias e jurisprudências relevantes sobre
o tema, nas quais os julgadores foram de acordo com o
corpo de texto ora apresentado.
Por conseguinte, ter-se-á constatada a imprescindibilidade da tutela jurisdicional coletiva para fazer valer os
direitos das pessoas portadoras de deficiência, sobretudo,
na condição de consumidores de produtos e serviços.
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
Foto: Arquivo Pessoal
A tutela coletiva do consumidor
portador de necessidades
especiais
2. Desenvolvimento
2.1 O conceito de portador de deficiência ou de
necessidades especiais
Diferentemente do que pensa a maioria, o portador
de deficiência ou de necessidades especiais nada mais é
do que uma pessoa que possui limitações, que podem
ser de natureza motora e/ou sensorial e/ou cognitiva,
por vezes até imperceptíveis e por outras bastante
comprometedoras, sem que, no entanto, a desqualifique
como um indivíduo, sujeito de direito, em toda e qualquer
relação jurídica, por si ou através de representantes legais.
Desde os tempos mais remotos, já existiam pessoas
portadoras de deficiência. As Escrituras Sagradas, inclusive, relatam vários casos de portadores de deficiência,
como, por exemplo, Moisés, que possuía deficiência da
fala (Êxodo, 4:10) ou o apóstolo Paulo, que era deficiente
físico e ficou cego (Coríntios, 12:7). Além de Ludwig
van Beethoven, deficiente auditivo, e Antônio Francisco
Lisboa, o Aleijadinho, deficiente físico.
Contudo, por muitos e muitos anos, as pessoas portadoras de deficiência foram marginalizadas, subestimadas
e subvalorizadas, e viveram à margem da sociedade que as
discriminavam, por mero preconceito, devido à ignorância
acerca da questão.
Daí se dizer que o preconceito é o filho da ignorância,
em virtude do próprio sentido semântico da palavra, já que
o pré-conceito é um conceito formado antecipadamente em
virtude do desconhecimento do assunto, isto é, da ignorância.
Porém, diante das evoluções social e científica, e das
ações da Organização das Nações Unidas, das quais o
Brasil é signatário, as pessoas portadoras de necessidades
especiais passaram a ser, cada vez mais, incluídas no
contexto social e jurídico, senão vejamos.
Em 9 de dezembro de 1975, a ONU elaborou a
Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes, que diz
em seu artigo 3o: “As pessoas deficientes têm o direito
inerente de respeito por sua dignidade humana. As
pessoas deficientes, qualquer que seja a origem, natureza
e gravidade de suas deficiências, têm os mesmos direitos
fundamentais que seus concidadãos da mesma idade, o
que implica, antes de tudo, o direito de desfrutar uma
vida decente, tão normal e plena quanto possível”; e em
seu artigo 8o: “As pessoas deficientes têm o direito de ter
suas necessidades especiais levadas em consideração em
todos os estágios de planejamento econômico e social.”
Ainda em 3 de dezembro de 1982, a ONU elaborou
o Programa de Ação Mundial para as Pessoas com
Deficiência, que diz em seu parágrafo 12: “A igualdade
de oportunidades é o processo mediante o qual o
sistema geral da sociedade – o meio físico e cultural, a
habitação, o transporte, os serviços sociais e de saúde, as
oportunidades de educação e de trabalho, a vida cultural
e social, inclusive as instalações esportivas e de lazer –
torna-se acessível a todos.”
Destarte, é certo que sem inclusão é impossível haver
igualdade, na medida em que uma sociedade igualitária é
aquela em que todos os seres humanos possuem as mesmas
possibilidades para desenvolver as suas potencialidades.
2.2 A Constituição Federal – direitos e garantias dos
portadores de deficiência
A Constituição da República Federativa do Brasil, de
19881, ao contrário das anteriores, foi por demais expressa
e inequívoca sobre o tema em questão, não admitindo, em
hipótese alguma, qualquer tipo de discriminação, principalmente em relação às pessoas portadoras de deficiências,
sobretudo, levando-se em conta o princípio fundamental da
isonomia, insculpido no caput do artigo 5o, que, em seu aspecto material, consiste em tratar desigualmente os desiguais,
na medida das suas desigualdades.
Tanto assim que, a fim de que não pairasse qualquer
dúvida a respeito, também, na seara dos direitos sociais,
ao dispor sobre os direitos do trabalhador, o artigo 7o
da Constituição Federal, em seu inciso XXXI, veda,
expressamente, qualquer discriminação ao trabalhador
portador de deficiência, seja em relação à atividade que
esteja apto a desempenhar, seja em relação ao salário
pago pelo exercício de suas funções, bem como estipula a
reserva de vagas para cargos públicos (art. 37, VIII).
Da mesma forma, no que se refere à assistência social,
posto que ressalta o artigo 203 da Carta da República, em
seu inciso IV, que as pessoas portadoras de deficiência
terão direito à habilitação, à reabilitação e à integração
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 63
“No âmbito das relações de fornecimento
de produtos e/ou serviços, somente após
o advento do CDC é que a tutela coletiva
para proteção dos direitos individuais
homogêneos dos consumidores,
dentre os quais, os dos portadores de
deficiência, mereceu expressa atenção e
destaque, como se verá adiante.”
no meio social. E, ainda, em seu inciso V, que tais pessoas
terão direito a um benefício equivalente a um salário-mínimo, nos termos da lei.
Ainda quanto à educação, eis que exige o inciso III
do artigo 208 da Constituição Federal o atendimento
educacional especializado às pessoas portadoras de
deficiências, preferencialmente na rede regular de ensino.
Por fim, o artigo 227, em seu parágrafo 1o, inciso II,
dispõe sobre a prevenção e o atendimento especializado
para as pessoas portadoras de deficiência física, sensorial
e/ou mental, e, em seu parágrafo 2o, garante o acesso
em logradouros e edificações públicas e a fabricação de
transporte coletivo para toda e qualquer pessoa portadora
de deficiência, leia-se adaptado, conforme expressamente
dispõe o artigo 244 da Carta da Republica.
2.3 A Lei no 7.853/1989
Corolário das diversas disposições constitucionais, e
visando assegurar o pleno exercício dos direitos individuais
e sociais destinados às pessoas portadoras de necessidades
especiais, foi editada a Lei no 7.853, de 24/10/19892,
regulamentada pelo Decreto no 3.298, de 20/12/19993,
que, além de instituir a Coordenadoria Nacional para
Integração da Pessoa Portadora de Deficiência – Corde,
também instituiu a tutela jurisdicional de interesses
coletivos e difusos dessas pessoas, inclusive disciplinando
a atuação do Ministério Público na defesa desses interesses.
Como nos esclarece Cretela Jr. em seus Comentários à
Constituição de 19884:
(...) Como toda pessoa, o portador de deficiência (a)
transita por logradouros, ruas, jardins, parques e praças, (b)
penetra em edifícios, bens públicos de uso especial, como
escolas e hospitais públicos e, por fim, (c) utiliza veículos de
transporte coletivo como ônibus e metrô. A fim de facilitar
o acesso aos mencionados logradouros, edifícios e meios
de transportes, serão editadas normas a respeito sobre
construção dos dois primeiros – logradouros e edifícios – e
64
de fabricação dos segundos – veículos de transporte – ou,
então, determinarão as normas editadas sobre a adaptação
do que já existe para o acesso dos deficientes (art. 244).
Portanto, nos termos da Lei no 7.853/89, vale dizer,
anteriormente ao advento da Lei no 8.078/1990 (Código
de Defesa do Consumidor – CDC), já cabia ao Ministério
Público o ajuizamento de ações civis públicas destinadas
à proteção dos interesses coletivos e difusos das pessoas
portadoras de deficiência, seja na área da educação, da
saúde, da formação profissional e do trabalho, de recursos
humanos ou, ainda, das edificações, garantindo-lhes,
dessa forma, as plenas inclusão social e acessibilidade aos
serviços públicos e privados.
Entretanto, no âmbito das relações de fornecimento
de produtos e/ou serviços, somente após o advento do
CDC é que a tutela coletiva para proteção dos direitos
individuais homogêneos dos consumidores, dentre os
quais, os dos portadores de deficiência, mereceu expressa
atenção e destaque, como se verá adiante.
2.4 O CDC e a tutela coletiva para defesa dos direitos do
consumidor portador de necessidades especiais
Devido a diversos fatores, como as evoluções social e
tecnológica, os direitos passaram a ser classificados em
novas categorias para tornar sistematizado o seu estudo e
dar-lhes maior efetividade.
Inicialmente, segundo a classificação clássica, os direitos
foram ordenados em direitos de primeira, segunda, terceira,
quarta e quinta gerações, os quais, entretanto, passaram a ser
classificados como direitos de primeira, segunda, terceira,
quarta e quinta dimensões, tendo em vista que o termo
“geração” poderia sugerir uma ordem de substituição de uns
pelos outros, ao contrário do termo “dimensão”.
Nesse diapasão, são de primeira dimensão os direitos
individuais vinculados à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, tais como o direito à vida e o direito à livre locomoção.
Já os direitos de segunda dimensão decorrem do
princípio da igualdade, sendo eles direitos positivos, com
alcance social, econômico e cultural, como, por exemplo,
o direito ao trabalho.
Os de terceira dimensão, com fundamento na solidariedade, são os direitos difusos e coletivos, tais como o
direito ao meio ambiente e o direito do consumidor.
Por fim, os direitos de quarta dimensão são relativos
à biotecnologia, à bioética e à regulação da engenharia
genética, e os de quinta dimensão, decorrentes da
tecnologia da informação, da internet, do ciberespaço e
da realidade virtual.
Atentos ao escopo do presente trabalho, fixar-nos-emos apenas nos direitos de terceira dimensão, no caso
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
específico, os direitos do consumidor, que, diante das suas
magnitude e importância, foi alvo de legislação especial.
Assim, no que tange aos direitos do consumidor, com
o advento da Lei no 8.078 de 1990 – CDC5, a tutela coletiva
passou a ser especificamente regulamentada, passandose a admitir, inclusive, a tutela coletiva para a proteção
dos direitos individuais homogêneos do consumidor,
expressamente prevista no artigo 81 desse diploma legal.
A partir de então, para solução dos conflitos inerentes aos
consumidores portadores de necessidades especiais, houve
a integração, ou a interpretação unitária, entre a legislação
específica das relações de consumo, o CDC, e aquela destinada,
especialmente, às pessoas portadoras de deficiência, no caso,
a Lei no 7.853/89, ou seja, adotou-se o “diálogo das fontes”
entre os dois diplomas legais, pois, segundo os ensinamentos
da ilustre professora doutora Claudia Lima Marques6: “(...)
a doutrina atualizada, porém, está a procura, hoje, mais da
harmonia e da coordenação entre as normas do ordenamento
jurídico (concebido como sistema) do que da exclusão.”
Isto porque, por um lado, a Lei no 7.853/89 já admitia a
utilização da ação civil pública para proteção dos direitos
coletivos, lato senso, dos portadores de deficiência em
algumas áreas, sem que, no entanto, houvesse previsão
expressa no tocante às relações de consumo; e, de outro,
a Lei no 8.078/90 (CDC) introduziu a tutela coletiva
específica do consumidor em geral, dentre os quais
encontra-se o consumidor portador de deficiência.
Destarte, em havendo uma questão que envolva uma
relação jurídica de consumo entre um estudante portador
de deficiência e uma escola, por exemplo, que se nega a
construir uma rampa para cadeira de rodas, a contenda
poderá ser solucionada através de uma ação coletiva para
a defesa, no caso, de um direito individual homogêneo,
de forma que a tutela coletiva venha a beneficiar todo e
qualquer aluno que esteja estudando ou venha a estudar
naquela escola.
No presente artigo, preferimos enfatizar a necessidade
da tutela coletiva que diz respeito às relações de consumo
havidas entre os fornecedores do serviço de transporte
coletivo adaptado e os indivíduos portadores de deficiência, devido à sua grande importância.
Entendemos que o serviço de transporte coletivo decorre
do direito fundamental constitucional de ir e vir, do qual é
corolário o direito dos portadores de necessidades especiais
aos transportes coletivos adaptados, tanto quanto o acesso
a logradouros e edificações públicas e também privadas
adaptadas, sem os quais não é possível o exercício de outros
direitos básicos, tais como o acesso à saúde, à educação, ao
trabalho e ao lazer.
Nesse sentido, ou seja, de que o direito a transportes
coletivos, logradouros e edificações adaptados decorre
do direito de ir e vir, a jurisprudência tem se manifestado
de forma progressista, como, por exemplo, o lúcido voto
do juiz Renato Lima Charnaux Sertã, relator do recurso
de apelação no 993518-4 da 1a Turma Recursal Cível do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro7, de onde
se exara a seguinte ementa:
VOTO DO RELATOR: CONDOMÍNIO – DIREITO DE
IR E VIR – OBRAS PARA PROVER O ACESSO À PESSOA COM DIFICULDADE DE LOCOMOÇÃO – OBRIGATORIEDADE – INTELIGÊNCIA DOS ARTIGOS 3o E
10, INCISO IV DA LEI No 4.591/64 – INTERPRETAÇÃO
CONSETÂNEA COM O ESPÍRITO DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL, EM SEUS ARTIGOS 5o, incisos I, XV E XXIII,
227, parágrafo 2o, E 244, caput – CRITÉRIO DA RAZOABILIDADE – RESGATE DA CIDADANIA – SENTENÇA
QUE SE REFORMA – HONORÁRIOS DE 10% SOBRE O
VALOR DA CAUSA, PELO RECORRENTE VENCIDO.
No entanto, a vida cotidiana e as máximas da experiência
nos mostram que, principalmente, o fornecimento de
transporte coletivo adaptado é absolutamente precário nos
grandes centros urbanos e, praticamente, inexistente nas
zonas rurais e no interior do país.
Não há um sistema de transporte coletivo plenamente
adaptado, seguro, eficaz e de qualidade para os portadores
de deficiência, com profissionais capacitados e treinados
para atendê-los, sendo certo que, em muitos locais, não
há transporte coletivo adaptado algum.
Através do conhecimento de casos concretos e/ou de
matérias jornalísticas, exemplificamos, a seguir, alguns
acontecimentos nos quais houve violação do direito de
um consumidor portador de necessidade especiais por
um fornecedor de serviços de transporte coletivo.
Por exemplo, o caso de uma menina com tetraparesia
(ausência de movimentos voluntários nos membros
superiores e inferiores) cuja mãe, na Zona Oeste da
cidade do Rio de Janeiro, após tê-la retirado da cadeira
de rodas e a carregado no colo, pondo-a sentada dentro
de um ônibus, ao sair para pegar a cadeira, foi deixada na
rua pelo motorista, que foi embora.
Outro episódio, no distrito de Aparecida Pequena,
próximo ao município de Sapucaia, no estado do Rio de
Janeiro, onde uma menina não pode fazer fisioterapia porque
não há transporte coletivo adaptado para levá-la a Sapucaia.
Sem dúvida, tais episódios consistem em falha no
fornecimento do serviço de transporte coletivo, seja pela
precariedade do serviço, seja pela inexistência do serviço
específico, que é obrigatório, os quais, objetivamente,
causaram danos àqueles consumidores portador de
deficiência aqui citados e continuarão causando, aos mesmos
ou a outros, principalmente porque o Poder Executivo nada
faz, seja para reprimir ou para punir tais infratores, seja na
seara administrativa, seja na seara penal ou civil.
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 65
E, por outro lado, a própria condição do portador de
necessidades especiais que potencializa a vulnerabilidade e
a hipossuficiência desse indivíduo, na qualidade de consumidor, dificilmente o levará a tomar alguma medida judicial
contra tamanho desrespeito à dignidade da pessoa humana.
Por tais razões, ao nosso ver, para solução do problema
com o transporte coletivo adaptado, em todo o país, a
utilização da tutela coletiva será muito mais contundente
e eficaz, sobretudo, se intentada pelo Ministério Público.
Primeiro, porque terá uma abrangência maior, já que, nos
termos do artigo 103, inciso I do CDC, a coisa julgada será
erga omnes. Segundo, porquanto o efeito coercitivo, inibitório
e preventivo será infinitamente superior, pois, de fato, irá
compelir as transportadoras a se adequarem à legislação sob
pena de pagamento de multa de valor expressivo.
Isto porque, diante da omissão do poder público, os
fornecedores do serviço de transporte coletivo insistem
em não observar as disposições constitucionais e legais
destinadas aos portadores de deficiência, sem, no entanto,
sofrerem qualquer tipo de reprimenda.
Em assim sendo, devemos, como cidadãos, movermonos no sentido de denunciar aos legitimados elencados
no artigo 82 do CDC, principalmente, ao Ministério
Público, as condutas abusivas e ilegais praticadas pelos
fornecedores de serviços em detrimento do consumidor
portador de deficiência para que, mediante a utilização
da tutela coletiva do consumidor, eles possam, de fato,
fazer valer o direito dessa classe tão indefesa.
3. Considerações finais
Procurou-se ao longo deste trabalho trazer o conceito
de portador de deficiência e demonstrar a evolução das
regras a eles destinadas, inclusive aquelas elaboradas pela
Organização das Nações Unidas.
Enfatizando o princípio constitucional que norteia
o tema – a igualdade – e tomando-se por base a
superioridade das normas constitucionais, optamos
em sistematizar o trabalho e, inicialmente, enumerar
as regras especificadas na Constituição Federal
destinadas aos portadores de necessidades especiais e,
posteriormente, as normas infraconstitucionais delas
decorrentes, inclusive, citando doutrina e jurisprudência
no sentido de que alguns direitos decorrem de direito
individual fundamental da pessoa humana.
Demonstrou-se, ainda, ao longo deste artigo que
o próprio legislador infraconstitucional, desde então,
preocupou-se, em princípio, em admitir a utilização
da tutela coletiva para proteção dos direitos difusos e
coletivos dos portadores de deficiência, e, posteriormente,
dos direitos individuais homogêneos nas relações de
consumo, inclusive, naquelas das quais são titulares os
portadores de necessidades especiais.
66
Também foram citados casos concretos nos quais, flagrantemente, houve falha no fornecimento do serviço prestado ao consumidor portador de deficiência e que, devido
à omissão do poder público e à maior vulnerabilidade e
hipossuficiência dessa classe de consumidores, merecem
ser amparados através da tutela coletiva, a qual, na verdade,
deve possuir, também, um caráter inibitório e preventivo.
Com o exposto, conclui-se, dessa forma, que, apesar
de possuirmos uma legislação bastante rica sobre a
matéria, ela não é eficaz.
Em assim sendo, acreditamos que a utilização da tutela
coletiva é necessária para que o Poder Judiciário seja mais
rigoroso ao determinar o cumprimento das regras destinadas
aos consumidores portadores de deficiência, fixando
indenizações e multas severas, de fato capazes de servir
como reprimenda de conteúdo inibitório e preventivo, para
coibir os abusos dos prestadores de serviço de transporte
coletivo e fazê-los tratar com dignidade e respeito essa classe
de usuários, levando-se em conta o bem jurídico ofendido,
as circunstâncias em que esses fatos ocorreram, bem como
o perfil socioeconômico do fornecedor.
Referências bibliográficas
Bíblia Sagrada
Declaração da ONU das Pessoas Deficientes, 1975
Programa de Ação Mundial da ONU para Pessoas com Deficiência,
1982
Constituição Federal da República de 1988
Lei no 7.853/1989
Decreto no 3.298/1999
Lei no 8.078/90 – Código de Defesa e Proteção ao Consumidor
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São
Paulo: Malheiros, 1997.
CRETELA JR., José. Comentários à Constituição de 1988. 2. ed.
Volume VIII, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993.
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do
Consumidor. 5. ed. Revista dos Tribunais.
BENJAMIM, Antonio Herman. Código Brasileiro de Defesa do
Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária.
Notas
BRASIL. Constituição Federal, 5 de outubro de 1988. Site eletrônico:
http://planalto.gov.br.
2
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http://planalto.gov.br.
3
BRASIL. Decreto no 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Site
eletrônico: http://planalto.gov.br.
4
CRETELA JR., José. Comentários à Constituição de 1988. 2. ed.,
Volume VIII, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 4.546.
5
BRASIL. Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990. Site eletrônico:
http://planalto.gov.br.
6
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do
Consumidor. 5. ed. Revista dos Tribunais.
7
BRASIL. TJRJ, Turma Recursal Cível, Apelação 993.518-4. Site
eletrônico: http://tjrj.jus.br.
1
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 67
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Justiça & Cidadania | Novembro 2013
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 69
Não residência fiscal –
Momento da caracterização
Marina Dias Barbosa Vianna
Advogada
O
desenvolvimento das empresas aliado à
globalização da economia estreitou as relações
mundiais e diminuiu as distâncias existentes
entre os países e, consequentemente, entre as
pessoas.A facilidade de mobilidade dentro de um grupo
empresarial aliado à necessidade das multinacionais
em uniformizar sua política empresarial, em promover
rodízios de empregados, em repartir experiências,
disseminar cultura e práticas, fez com que a mobilidade
internacional de empregados dentro de um mesmo
grupo econômico se tornasse algo cada vez mais comum
e corriqueiro. Essa movimentação, também chamada
de expatriação, vem ganhando cada vez mais espaço no
cenário empresarial e passou a ser um ponto de atenção
nas grandes corporações.
O processo de expatriação, além de questões corporativas, também gera diversas consequências na vida
do profissional, consequências essas: culturais, sociais,
trabalhistas, previdenciárias, imigratórias, tributárias,
dentre outras. A presente análise tem como foco as
possíveis consequências tributárias advindas da expatriação de um residente fiscal brasileiro para o exterior,
principalmente, no que tange a entrega da Declaração
de Saída Definitiva.
Necessidade de Planejamento de uma Expatriação
É importante que o processo de expatriação seja
precedido de um planejamento, cuja principal finalidade é
identificar as possíveis consequências tributárias decorrentes
da expatriação, seja no Brasil, seja no país de destino.
Como o expatriado irá, em regra, exercer suas atividades
no país de destino, além de estudar as consequências
70
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
tributárias de sua expatriação no Brasil, a pessoa física
deverá se preocupar também, com as consequências
tributárias no exterior. Por esse motivo, é imprescindível
que a legislação tributária do país de destino seja estudada
previamente, com o objetivo de delimitar as obrigações
tributárias do expatriado no país onde será desenvolvida
sua atividade.
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 71
“OLHO.”
Em regra geral, a pessoa física residente e domiciliada no
Brasil é considerada residente fiscal. A Lei autoriza outras
formas de aquisição da residência fiscal no Brasil, como o
ingresso em território nacional com o visto permanente2.
Porém, a grande questão que se coloca é em relação ao
tratamento dado a uma pessoa física brasileira até então
residente e domiciliada no Brasil que se retire do país por
um, dois, três, quatro, cinco anos. Ela será considerada
residente ou não residente para fins fiscais brasileiros?
Da entrega da Declaração de Saída Definitiva do País
O art. 16 do Decreto no 3.000/99 (Regulamento do Imposto
de Renda – RIR) é a norma que regula a caracterização da
não residência fiscal para fins brasileiros e estabelece duas
regras: (i) os residentes ou domiciliados no Brasil que se
Tendo em vista que a legislação tributária de cada
retirem em caráter definitivo do território nacional no curso
país possui suas peculiaridades, cada expatriação deve ser
de um ano-calendário, além da declaração correspondente
analisada de forma casuística. Ademais, a análise combinada
aos rendimentos do ano-calendário anterior, ficam sujeitos
das legislações tributárias brasileira e do país de destino
à apresentação imediata da Declaração de Saída Definitiva
permite que seja elaborado um planejamento com vistas a
do País; e (ii) os residentes ou domiciliados no Brasil que se
evitar que o expatriado seja surpreendido com incidências
ausentarem do País sem requerer a Certidão Negativa para
tributárias em duplicidade sobre o mesmo rendimento.
Saída Definitiva do País terão seus rendimentos tributados
Um dos principais critérios que influencia na tributação
como residentes no Brasil, durante os primeiros doze meses
da renda da pessoa física é a sua caracterização (ou não)
de ausência, observado o disposto no §1o, e, a partir do
como residente fiscal.
décimo terceiro, na forma dos arts. 682 e 684 (ou seja, como
não residente – tributação definitiva).
Tributação no Brasil – Distinção: Não Residente Fiscal x
A Instrução Normativa SRF no 208/2002, com as
Residente Fiscal
alterações da Instrução Normativa no 1.008/2010, regula­
No Brasil, a distinção entre pessoas residentes e não
menta a matéria e estabelece, no art. 3ocombinado com o
residentes no território nacional é de importância decisiva
art. 2º, o conceito de não residente. Segundo essa Instrução
para definir a extensão das respectivas obrigações tributárias.
Normativa, a perda da residência fiscal pode ocorrer,
Com efeito, enquanto os não residentes, sejam pessoas
teoricamente, em dois momentos: (i) quando a pessoa física
físicas ou jurídicas, estão apenas sujeitos ao imposto quanto
residente no Brasil sair em caráter permanente com a entrega
aos rendimentos provenientes de fontes situadas no Brasil,
da Comunicação de Saída Definitiva e, posteriormente,
estando, assim, sujeitos ao regime da tributação limitada
da Declaração de Saída Definitiva; e (ii) quando a pessoa
(com base na territorialidade), os residentes são tributáveis
física que se ausente do Brasil em caráter temporário, a
em função de seu rendimento mundial, quer se trate de
partir do dia seguinte àquele em que complete doze meses
pessoas físicas ou jurídicas – regime da tributação ilimitada
consecutivos e completos de sua ausência.
(com base na universalidade da renda – world-wideEm relação à saída em caráter permanente com as
income)1.
modificações advindas pela Instrução Normativa RFB
De acordo com a legislação existente sobre o tema, os
no 1.008/2010, a saída permanente restará configurada,
residentes fiscais devem fazer a sua Declaração de Imposto
com a apresentação da Comunicação de Saída Definitiva
de Renda anualmente, sendo tributado de acordo com
até fevereiro do ano-calendário subsequente ao ano da
a tabela progressiva, cuja alíquota nominal máxima de
saída permanente e com a apresentação da Declaração da
tributação é de 27,5%, sendo admitidas deduções da base de
Saída Definitiva até o último dia do mês de abril do anocálculo do Imposto de Renda. Além disso, os residentes são
calendário subsequente ao da saída definitiva.
tributados pelos seus rendimentos universais, ou seja, pela
Já, caso a pessoa se retire do Brasil em caráter temporário
sua renda mundial, quer seja auferida no Brasil, quer seja
e permaneça no exterior por um período superior a 12
auferida no exterior.
meses consecutivos, a mesma deverá, segundo a norma,
Já os não residentes são tributados apenas em relação
apresentar a Comunicação de Saída Definitiva a partir
à renda oriunda de fonte brasileira (fonte de pagamento),
da data da caracterização da condição de nãoresidente
em regra geral2, a uma alíquota definitiva de 25%, sem
e até o último dia do mês Justiça
de fevereiro
do ano-calendário
possibilidade
de
qualquer
dedução
da
base
de
cálculo.
72
& Cidadania | Novembro 2013
subsequente e apresentar a Declaração de Saída Definitiva
e da Declaração de Saída Definitiva, e em contrapartida a
do País relativa ao período em que tenha permanecido
Receita Federal deverá restituir o Imposto de Renda pago
na condição de residente no Brasil no ano-calendário da
por essa pessoa corrigido, a partir do segundo ano de
caracterização da condição de não residente, até o último
ausência no Brasil. Logo, não há interesse das autoridades
dia útil do mês de abril do ano-calendário subsequente ao
fiscais brasileiras em não permitir que uma pessoa física
da caracterização.
domiciliada e com seu centro de interesses vitais no exterior
Com a leitura do disposto acima, pode-se chegar à
seja residente fiscal no Brasil.
conclusão de que a pessoa física que se ausente do Brasil
A primeira leitura da norma pode dar a impressão de
em caráter temporário, após decorrido o prazo de 12 meses
que a entrega da Declaração de Saída Definitiva é facultativa
consecutivos e completos no exterior, será considerada não
e de que, não havendo essa entrega, a pessoa física passa à
residente no Brasil sem que haja necessidade da entrega da
condição de não residente, automaticamente, passados os
Comunicação e da Declaração de Saída Definitiva, sendo
12 meses de permanência ininterrupta no exterior, ficando
assim, estará sujeita à tributação ordinária (alíquota 27,5 %
sujeita nesse caso somente à multa que esse artigo estabelece
sendo autorizadas deduções da base de cálculo, se cabíveis)
em face do não cumprimento de obrigações acessórias
nos primeiros 12 meses de ausência e, a partir do décimo
(não entrega da Comunicação e da Declaração de Saída
terceiro mês, será tributada como não residente (alíquota de
Definitiva).
25% sem direito à deduções da base de cálculo).
Todavia, não desposamos desse entendimento, primeiro
Por outro lado, existe a possibilidade de a pessoa física
porque não há interesse das autoridades fiscais em desconnão entregar a Comunicação e a Declaração de Saída
siderarem a residência fiscal brasileira da pessoa física que
Definitiva. Caso isso ocorra, de acordo com a Instrução
é regida pelo princípio da universalidade e segundo porque
o
Normativa RFB n 208/2002, artigo 13, será aplicada uma
entendemos que a entrega da Comunicação e da Declaramulta no valor de R$ 165,74 (cento e sessenta e cinco reais
ção de Saída Definitiva é o momento em que o contribuinte
e setenta e quatro centavos) em não havendo imposto
manifesta sua intenção (animus) de ser considerado não redevido; caso haja imposto devido, a multa observará os
sidente. Caso essa manifestação não ocorra, as autoridades
limites mínimo de R$ 165,74 (cento e sessenta e cinco reais
fiscais não serão informadas dessa intenção, não podendo
e setenta e quatro centavos) e máximo de vinte por cento do
de ofício modificar o status da residência fiscal da pessoa
valor do imposto devido.
física.
Todavia, como relatamos anteriormente, o Brasil adota o
princípio da universalidade para os residentes fiscais no País
Conclusão
Sendo assim, caso a pessoa física se retire do Brasil
e o da territorialidade para os não residentes. Sendo assim,
sem a entrega da Declaração de Saída Definitiva do País,
caso uma pessoa física seja residente fiscal no Brasil será
irá se sujeitar à tributação ordinária de seus rendimentos
aqui tributada pela sua renda mundial incluindo qualquer
(auferidos no Brasil e exterior), nos primeiros doze meses,
renda recebida no exterior, e caso seja um não residente,
à alíquota nominal máxima de 27,5% (admitidas deduções
o Brasil só tem competência para tributar aquela renda
da base de cálculo), como os demais residentes. A partir
oriunda de uma fonte de pagamento no Brasil.
do 13o mês, somente com a entrega da Declaração e da
Assim, imaginemos que uma pessoa física seja
Comunicação de Saída Definitiva, a pessoa física passa a
expatriada por um período de 05 (cinco) anos, sem a entrega
ser tributada como não residente (tributação definitiva,
da Comunicação e da Declaração de Saída Definitiva após
cuja alíquota nominal e efetiva é, regra geral, de 25%
decorridos doze meses, e que a fonte de pagamento seja
incidente sobre os rendimentos auferidos no Brasil), não
transferida para o exterior. Imaginemos, ainda, que essa
havendo tributação sobre os rendimentos auferidos no
pessoa física, que passou cinco anos no exterior e não
exterior. Todavia, para que seja adquirida a condição de
entregou nem a Comunicação nem a Declaração de Saída
não residente fiscal no Brasil, é necessário que o animus
Definitiva, apresentou anualmente a sua Declaração de
da pessoa física implemente essa condição, que só irá
Imposto de Renda, contemplando todos os valores por ela
ocorrer efetivamente com a entrega da Comunicação e da
percebidos, e pagou o Imposto de Renda corretamente como
Declaração de Saída Definitiva.
residente no Brasil (renda universal). Qual seria o interesse
das autoridades fiscais brasileiras em desconsiderarem a
residência fiscal dessa pessoa física?
Nota
Ao que parece nenhum. Isso porque, considerando a
1
XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. 6. ed.
hipótese acima, a pessoa deverá pagar uma multa de R$
Rio de Janeiro: Forense,2003, p. 291.
2
165,74 (cento e sessenta e cinco reais e setenta e quatro
Há alíquota diferenciada de 15% para ganho de capital e
rendimento de aluguel auferidos por não residente fiscal.
centavos)
em
razão
da
não
apresentação
da
Comunicação
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 73
Considerações sobre a eficácia
probatória do protesto
Sérgio Shimura
A
Desembargador do TJSP
Mestre, Doutor e Livre-Docente pela PUC/SP
Professor nos programas de graduação e pós-graduação
da PUC/SP e da Escola Paulista da Magistratura
1. Introdução
jurisdição consiste na função estatal, exercida
preponderantemente pelo Poder Judiciário,
de declarar e realizar concretamente a
vontade da lei diante de uma situação jurídica
controvertida. De outro foco, a jurisdição é manifestação
do poder estatal, pela qual o juiz ora conhece do litígio
apresentado pela parte lesada, outorgando-lhe a solução
prevista em lei (processo de conhecimento), ora dá
concretude ao direito já acertado (processo de execução),
ora, ainda, assegura preventivamente o direito das partes
por meio do processo cautelar ou da antecipação de tutela.
Em princípio, a jurisdição é exercício de atividade
estatal sobre determinado caso concreto, diante de uma
hipótese fática específica, por meio de um processo. Em
outras palavras, o processo é instrumento de composição
da lide, obtenível pelo exercício da jurisdição.
Porém, essa atividade só se apresenta se e quando
provocada pela parte interessada. Em regra, sem que a parte
apresente expressamente o pedido de uma providência
estatal, não se há cogitar de atividade jurisdicional de
ofício. A expressão do chamado princípio da inércia.
Na normalidade dos casos, o pedido deduzido em
juízo deve ter por fundamento algum fato afirmado por
aquele que postula a providência jurisdicional. E se o réu
se opuser, negando o fato ou alegando outros, impeditivos,
modificativos ou extintivos do direito do autor, igualmente
deve prová-los (art. 326, CPC).
74
Por isso, na peça processual que instaura o processo,
o autor deve indicar quais os fatos que envolvem o litígio,
bem como o respectivo pedido (art. 282, CPC). Mas não
basta alegar. Tem de provar.
Na análise do p
­ edido­, é possível separar idealmente
dois aspectos: o direito e o fato. Por hipótese, em um pedido
de indenização, o fato pode consistir em um acidente de
veículo, no protesto de um título de crédito, no defeito de
um produto de consumo. E o direito provém da norma
legal, abstratamente prevista (art. 927, CC).1
Nessa linha de raciocínio, quando o juiz, na sentença,
decide sobre o pedido formulado pela parte, silogiza da
seguinte forma: analisa a premissa maior (norma jurídica),
constata a premissa menor (fatos) e chega à conclusão
(sentença).2 Infere-se, pois, que a atividade probatória
versa sobre a situação fática da relação jurídica.
Apenas excepcionalmente há necessidade de se provar
o direito (conteúdo e vigência, cf. art. 337, CPC; art. 14,
LICC).3 No processo trabalhista, interessa lembrar as
convenções coletivas de trabalho (arts. 154, 227, § 2o, 444,
462, 611 e ss., Consolidação das Leis do Trabalho) ou
convenção internacional (art. 651, § 2o, Consolidação das
Leis do Trabalho), que, embora não sejam “leis” no sentido
estrito, ostentam verdadeiramente conteúdo de norma
jurídica.
Prova é todo elemento que pode levar o conhecimento de
um fato­a alguém. No processo, significa todo meio destinado
a convencer o juízo a respeito da ocorrência de um fato.
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
A sua finalidade é demonstrar uma situação fática
dentro do processo, reunindo elementos para a convicção
do órgão judiciário. Interessa ressaltar que a prova é feita
para o processo e, assim, propiciar o convencimento do
juízo sobre determinado fato.
De conseguinte, ainda que o juiz (pessoa física) já
esteja convencido sobre o fato, não pode lastrear a sua
decisão em conhecimento próprio e impressão pessoal
acerca dos fatos. Deve ensejar a produção da prova para
que a mesma se perpetue no processo, inclusive para
servir de suporte aos órgãos superiores na verificação
do acerto ou do equívoco da sentença. Se o juiz ainda
não está convicto sobre o direito afirmado pelo autor,
é preciso que oportunize regular instrução probatória,
sendo-lhe defeso julgar improcedente por ausência de
provas.
A exceção a essa regra fica por conta da chamada
“máxima de experiência”, conforme dispõe o art. 335,
CPC: “Em falta de normas jurídicas particulares, o juiz
aplicará as regras de experiência comum subministradas
pela observação do que ordinariamente acontece e ainda
as regras da experiência técnica, ressalvado, quanto a esta,
o exame pericial”.
2. Objeto da prova
A prova envolve fatos, relevantes e controvertidos. Na
investigação dos fatos, caberá ao juiz perquirir a respeito do
que, quando, onde, quem e como foram os acontecimentos
relevantes à causa. Bem por isso é que o art. 331, § 1o, CPC,
determina que o juiz deve fixar os pontos controvertidos
sobre os quais serão produzidas as provas.
De igual modo, art. 852-D, CLT, dispõe que “O juiz
dirigirá o processo com liberdade para determinar as
provas a serem produzidas, considerado o ônus probatório
de cada litigante, podendo limitar ou excluir as que
considerar excessivas, impertinentes ou protelatórias, bem
como para apreciá-las e dar especial valor às regras de
experiência comum ou técnica” (g/n).
Quanto ao fato ocorrido no exterior, o art. 13, Lei de
Introdução às Normas de Direito Brasileiro, estabelece que
“A prova dos fatos ocorridos em país estrangeiro rege-se
pela lei que nele vigorar, quanto ao ônus e aos meios de
produzir-se, não admitindo os tribunais brasileiros provas
que a lei brasileira desconheça”.
A questão sobre “fatos” e a “respectiva prova” ganha
relevo quando se cogita do cabimento dos recursos
extraordinários (especial, extraordinário e o de revista),
situação que demanda a análise de dois aspectos.
O primeiro refere-se à valoração da prova, à
admissibilidade legal da prova. Diz respeito ao valor legal
da prova, abstratamente considerado. Por hipótese, se a lei
federal exige determinado meio de prova, abstratamente
considerado, eventual decisão que considere o fato provado
por outro meio ofende o Direito Federal, permitindo o
recurso especial ao STJ (art. 105, III, CF) ou o de revista ao
TST (art. 896, CLT).
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 75
O segundo aspecto concerne à reapreciação da prova.
Nesse particular, descabem recursos extraordinários para
rediscutir o simples reexame de provas, na esteira das
Súmulas 7-STJ (“A pretensão de simples reexame de prova
não enseja recurso especial”) e 270-STF (“Para simples
reexame de prova não cabe recurso extraordinário”).
Quer dizer, se a lei federal não dispuser sobre o valor
probante, em abstrato, de certos meios de provas, não se
pode asseverar que o julgado local, apreciando bem ou mal
as provas, contraria ou ofende Direito federal.
No reexame de provas, pode ocorrer ofensa ao direito
subjetivo da parte, mas não contrariedade a Direito
federal, abstratamente considerado. De conseguinte, nem
o Superior Tribunal de Justiça nem o Tribunal Superior
do Trabalho se prestam ao reexame de matéria fática ou
reapreciação das provas, sob pena de a instância especial se
convolar em ordinária, imiscuindo-se na livre convicção
motivada do juiz.
3. Fatos que não dependem do prova
Como dito, a prova refere-se a fatos controvertidos e
relevantes para a solução da lide. Por consequência, existem
fatos que não reclamam a respectiva demonstração.
É a dicção do art. 334, CPC: “Não dependem de
prova os fatos: I - notórios; II - afirmados por uma parte
e confessados pela parte contrária; III - admitidos, no
processo, como incontroversos; IV - em cujo favor milita
presunção legal de existência ou de veracidade”.
3.1. Fato notório
É o fato que seja de conhecimento geral ou por
determinado estrato social, em determinado local ou
região, sobre os quais as partes não têm dúvida. Como
ensina João Batista Lopes, mais adequado é afirmar que
a notoriedade é um conceito relativo, que depende de
circunstâncias de tempo e de lugar. Fatos notórios são,
assim, aqueles cuja existência é conhecida geralmente
pelos cidadãos de cultura média, no tempo e lugar em que
a sentença é proferida.4
Por ilustração, é fato notório que na cidade de São
Paulo, o trânsito em determinadas regiões e horários é
caótico. Ainda: “é de se assentar que o prejuízo ao erário, na
espécie (fracionamento de objeto licitado, com ilegalidade
da dispensa de procedimento licitatório), que geraria
a lesividade apta a ensejar a nulidade e o ressarcimento ao
erário, é “in re ipsa”, na medida em que o Poder Público
deixa de, por condutas de administradores, contratar a
melhor proposta(no caso, em razão do fracionamento e
consequente não-realização da licitação, houve verdadeiro
direcionamento da contratação). Além disto, conforme o
art. 334, incs. I e IV, CPC, independem de prova os fatos
notórios. Ora, evidente que, segundo as regras ordinárias
76
de experiência (ainda mais levando em conta tratar-se, na
espécie, de administradores públicos), o direcionamento
de licitações, por meio de fracionamento do objeto e
dispensa indevida de procedimento de seleção (conforme
reconhecido pela origem), levará à contratação de
propostas eventualmente superfaturadas (salvo nos casos
em que não existem outras partes capazes de oferecerem
os mesmos produtos e/ou serviços)”.5
3.2. Fato confessado
É a admissão de um fato que prejudica uma parte
e beneficia a outra (art. 348, CPC). A confissão exige
capacidade da parte e disponibilidade do direito. Não
produz efeitos como prova se provier de pessoa incapaz de
dispor do direito a que se referem os fatos confessados (art.
213, Código Civil). E, sendo a confissão firmada por um
representante, somente é eficaz nos limites em que este pode
vincular o representado (parágrafo único do art. 213, CC).
Em princípio, a confissão é irrevogável, podendo,
todavia, ser anulada se decorrente de erro de fato ou de
coação (art. 214, CC). Será caso de ação anulatória, se ainda
estiver pendente o processo em que foi feita; e, será caso de
ação rescisória, se já transitado em julgado a sentença, da
qual constitui o único fundamento (art. 352, CPC).
Além disso, a confissão não leva necessariamente à
decisão desfavorável ao confitente. Por vezes, é preciso
contextualizar a confissão com outros fatos ou elementos
probatórios, como se infere da Súmula 342-STJ (“No
procedimento para aplicação de medida sócio-educativa,
é nula a desistência de outras provas em face da confissão
do adolescente”); a confissão também não obsta a análise
da situação pretérita, à luz da Súmula 286-STJ (“A
renegociação de contrato bancário ou a confissão da dívida
não impede a possibilidade de discussão sobre eventuais
ilegalidades dos contratos anteriores”).
No que concerne à revelia, existe a presunção (relativa)
da incontrovérsia dos fatos. Aqui importa remarcar que
revelia consiste na falta de defesa do réu, situação em que
se presumem verdadeiros os fatos afirmados pelo autor.
A revelia resulta de uma situação fática (ausência de
defesa), que pode produzir ou não seus efeitos (presunção
de veracidade dos fatos invocados pelo autor). Diz o art.
320, CPC, que a revelia não induz o efeito da presunção
de veracidade: I - se, havendo pluralidade de réus,
algum deles contestar a ação; II - se o litígio versar sobre
direitos indisponíveis; III - se a petição inicial não estiver
acompanhada do instrumento público, que a lei considere
indispensável à prova do ato.
Mas tal presunção é apenas relativa. O juiz pode, ao
sentenciar, entender que há carência da ação, que o pedido
improcede ou, ainda, mandar produzir provas, em face do
princípio do livre convencimento motivado.
A propósito, a Súmula 231-STF: “O revel, em processo
cível, pode produzir provas, desde que compareça em
tempo oportuno”.
Por exemplo: “Trata-se de ação de revisão de contrato
bancário ajuizada pelos agravantes em face do bancoagravado. Devidamente citado, o banco-agravado deixou
transcorrer “in albis” o prazo para oferecer contestação,
restando configurada sua revelia. Ocorre que o Magistrado
afastou a presunção de veracidade dos fatos alegados pelos
agravantes e determinou a produção de perícia contábil a
ser custeada por estes e, ainda, determinou a expedição de
ofício ao banco agravado para apresentar quesitos. De acordo
com a regra do art. 319, do CPC a ausência de contestação
gera a presunção de veracidade dos fatos alegados na inicial.
É certo que se trata de presunção “iuris tantum”, cabendo
ao magistrado a análise criteriosa de todas as evidências
dos autos, podendo inclusive determinar a produção de
provas pelo autor. Assim, aplica-se a regra do art. 319 do
CPC, que dispõe que a ausência de contestação constitui
presunção “iuris tantum”, cabendo ao magistrado a análise
criteriosa de todas as evidências dos autos, podendo inclusive
determinar a produção de provas pelo autor. Por isso, a lide
deve ser analisada levando em consideração que a relação
estabelecida entre as partes caracteriza-se como de consumo,
conforme entendimento sumulado pelo STJ (Súmula 297)
e consolidado pelo STF no julgamento da Ação Direta
de Inconstitucionalidade no 2591. “In casu”, os agravantes
juntaram os contratos e extratos das operações impugnadas
e indicaram minuciosamente todas as supostas abusividades
praticadas pelo banco-agravado. O banco ao deixar de
apresentar resposta e documentos que comprovassem a
3.3. Fato incontroverso
É o fato não contrariado pela parte (não necessariamente confessado) e desde que a prova seja disponível
(arts. 320, III, 366, CPC). Valem como ilustração os seguintes exemplos: o autor diz que o acidente de veículo
se deu no dia 19/04/2012, às 14hs, e o réu simplesmente
não contesta.
Na esfera trabalhista, a incontrovérsia se mostra relevante em alguns aspectos, como a condenação em dobro
(art. 467, CLT. Em caso de rescisão do contrato de trabalho, motivada pelo empregador ou pelo empregado, e
havendo controvérsia sobre parte da importância dos salários, o primeiro é obrigado a pagar a este, à data do seu
comparecimento ao tribunal do trabalho, a parte incontroversa dos mesmos salários, sob pena de ser, quanto a essa
parte, condenado a pagá-la em dobro).
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 77
pactuação de tais encargos ensejou a presunção de veracidade
dos fatos alegados, pois não há nenhum elemento nos autos
que a afaste. De rigor, portanto, seja aplicada a presunção
de veracidade dos fatos alegados pelos agravantes sendo
absolutamente desnecessária a produção de perícia contábil e
a intimação do banco para apresentação de quesitos”.6
Ainda: “Reintegração de posse - Imóveis integrantes de
empreendimento com vícios de incorporação - Sentença que
julgou procedente a ação em relação a 08 das 09 unidades
mencionadas na inicial, com base unicamente nos efeitos
da revelia - Inadmissibilidade ante a falta de citação de
todos os réus, que sequer foram individualizados na inicial
- Intempestividade da contestação afastada - Elementos dos
autos, ademais, que comprovam haver intensa litigiosidade
entre o autor e os compromissários compradores e ocupantes
das unidades autônomas do empreendimento - Inépcia
da inicial por não individualizar e nem indicar a forma
como supostamente se deram as invasões - Extinção com
fundamento no art. 267, VI, do CPC - Recurso provido”.7
Mesmo que a contestação seja apresentada a destempo,
não é caso de desentranhamento nem da peça defensiva,
nem de eventuais documentos juntados, especialmente a
procuração outorgada ao advogado, exatamente pelo fato
de o réu, ainda que revel, ter direito de participar e intervir
em qualquer fase do processo (parágrafo único do art.
322 do CPC). Malgrado a revelia, nada impede que o réu
junte documentos a qualquer momento, exigindo apenas a
oitiva da parte adversa (art. 398, CPC).
3.4. Fato presumido
Fato presumido é o resultado a que se chega sobre uma
situação duvidosa a partir de um fato conhecido. É uma
forma de raciocínio do juiz, pela qual, de um fato provado,
conclui a existência de outro.
A respeito, o art. 212, IV, Código Civil, reza que “O ato
jurídico pode ser provado mediante presunção”. O art. 334,
IV, Código de Processo Civil, edita que “Não dependem
de prova os fatos em cujo favor milita presunção legal de
existência ou de veracidade”.
Tomamos a expressão “indício” e “presunção” como
sinônimas. Ambos encerram um método racional
pelo qual, de um fato conhecido e certo, se conclui a
ocorrência, pela lógica da causa e efeito, de um outro, que
é desconhecido.
Em regra, a presunção é relativa (juris tantum),
admitindo prova em sentido contrário. Excepcionalmente,
a presunção é absoluta (presunção juris et de jure), não
cabendo prova em contrário. Verificadas as premissas
legais, a lei impõe ao juiz a aceitação do fato como
verdadeiro (exemplos: é incapaz o menor de 18 anos,
art. 5o, Código Civil; é nulo o negócio jurídico quando
celebrado por pessoa absolutamente incapaz, art. 166,
78
Código Civil; o registro da penhora de imóvel no cartório
imobiliário gera presunção absoluta de conhecimento por
terceiros, art. 659, § 4o, Código de Processo Civil).
Exemplificativamente, na jurisprudência, há julgados
no sentido de que o uso de imagem sem autorização já leva
à presunção de dano moral.8
No mesmo rumo: “Conquanto a relação da magis­
tra­
da dita suspeita e da parte ré em ação popular
não seja legalmente definida como parentesco por
afinidade (a excepta é cônjuge do tio da parte ré) - em
razão do que dispõe o art. 1.595, § 1o, do novo Código Civil
-, existe uma presunção inegável de que, em razão dessa
condição, haja um relacionamento de amizade entre elas
que é suficiente para atrair a aplicação do art. 135, inc. I,
do CPC. Veja-se, em primeiro lugar, o que dispõe art. 334,
inc. I, da Lei Adjetiva Civil, no sentido de ser dispensada
a prova de fato notório. Não custa lembrar a larga
divulgação dada pela mídia ao caso da cassação de Jackson
Lago, no Maranhão. Nesta ocasião, apreciando exceção
de impedimento/suspeição levantada junto ao Tribunal
Regional Eleitoral daquele Estado-membro, que correu
em paralelo com o processo de cassação do Governador
eleito à época, a excepta declarou-se suspeita para apreciar
a própria exceção levantada contra si por motivos de
foro íntimo. Se era suspeita à época, evidentemente em
razão das consequências da cassação (nomeação para o
Chefe do Executivo estadual da sobrinha de seu marido)
e da divulgação que a imprensa dava ao caso, permanece
suspeita aqui, na medida em que a sobrinha de seu marido
também será diretamente afetada pelo julgamento da
ação popular no âmbito da qual foi oferecida a exceção.
Esta conclusão não poderia ser refutada já antes, mas em
especial atualmente, em contexto no qual ganha relevância
a proteção da confiança legítima criada em face das partes e
dos interessados com os atos realizados durante o processo.
Ora, existe uma conduta clara por parte da magistrada
excepta em determinado sentido e, sem mudança no
contexto fático, uma repentina mudança, com adoção de
sentido diametralmente oposto. A partir da exteriorização
da primeira conduta citada em certo sentido, cria-se
uma expectativa merecedora de efetiva proteção pelo
direito (na espécie, pelo direito dos impedimentos e
das suspeições processuais). Há, no caso, também, e
em segundo lugar, a incidência do art. 334, inc. IV, do
CPC, porque é despicienda a prova da amizade e permitido
a esta Corte Superior valer-se de presunção, animada pelo
conhecimento extraído da vida cotidiana, segundo a qual a
relação familiar faz pressupor um vínculo de amizade - eis
a regra, motivo pelo qual a exceção é que deve ser provada.
Obviamente, trata-se de presunção relativa, pois é sabido
que, em alguns casos, a relação familiar chega a fomentar
a inimizade. Entretanto, esta presunção tem o condão
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
de transferir para o magistrado que é por ela desfavorecido
o ônus de provar que, no caso, o vínculo de amizade não
compromete sua devida imparcialidade - ônus do qual
não se livrou a magistrada no presente caso. Além disso,
na seara pública, não se pode delimitar os institutos
unicamente com base na legislação civil, uma vez que, aqui,
o dever de imparcialidade dos magistrados sofre influxos
dos princípios da impessoalidade, da moralidade e da
eficiência - normas tão caras ao Estado Democrático de
Direito. Certamente, embora (i) não esteja caracterizado
legalmente um caso de parentesco por afinidade e (ii) exista
uma grande controvérsia sobre o espectro de abrangência
da impessoalidade, da moralidade e da eficiência, faz parte
do núcleo central destes princípios, no âmbito processual, o
dever de distanciamento subjetivo do magistrado da causa,
que fica comprometido na presente ação. Nessa nova era
do Processo Civil, marcada essencialmente pelo domínio
das “provas técnicas”, muitas vezes até em detrimento da
coisa julgada, não é possível esquecer o papel relevante
das presunções no sistema probatório. Como ressaltam
Luiz Guilherme Marinoni e Sergio Cruz Arenhart, “criase uma rica doutrina a respeito dessa ‘prova crítica’, capaz
de facilitar - em situações particulares - os mecanismos
de prova de que se serve a parte para trazer sua pretensão
a juízo. É importante notar que as presunções assumem
papel relevante nesse campo, prestando-se, por vezes, como
uma espécie de ‘redução do módulo de prova’, aplicando
técnica de diminuição das exigências legais e judiciais
sobre a solidez das provas que seriam necessárias para
aceitar um fato como verossímil. Em outras palavras:
verificando o legislador ou o juiz que a prova de certo
fato [como me parece a prova de amizade, um dilema até
para os melhores da poesia e da prosa...] é muito difícil
ou especialmente sacrificante, poderá servir-se da ideia de
presunção para montar um raciocínio capaz de conduzi-lo
à conclusão de sua ocorrência, ela verificação do contexto
em que normalmente ele incidiria. Como se vê, esse
poderoso instrumento é importante aliado do processo
para a prova de fatos de difícil verificação” (A prova, 2009,
p. 131/132 - comentários acrescentados). Note-se, por
fim, que, conforme consignado pelo Ministério Público
Federal em parecer, o adiantamento de razões de mérito da
ação popular (pela improcedência do pedido) quando do
julgamento da exceção de incompetência, além de frustrar
a boa técnica processual, é fato que inegavelmente milita
contra, ainda que indiciariamente, o já referido dever de
distanciamento do magistrado da causa”.9
Nesse mesmo rumo, a Súmula 435-STJ: “Presumese dissolvida irregularmente a empresa que deixar de
funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos
órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da
execução fiscal para o sócio-gerente”.
Citem-se outros posicionamentos já consolidados
pelos tribunais superiores acerca do fato presumido: “A
simples devolução indevida de cheque caracteriza dano
moral” (Súmula 388-STJ); “Caracteriza dano moral a
apresentação antecipada de cheque pré-datado” (Súmula
370-STJ). “Independe de prova do prejuízo a indenização
pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com
fins econômicos ou comerciais” (Súmula 403-STJ). “Para a
repetição de indébito, nos contratos de abertura de crédito
em conta-corrente, não se exige a prova do erro” (Súmula
322-STJ).
3.3.1. Registro da penhora (súmula 375-STJ)
Cabe destacar a Súmula 375-STJ, de 30/03/2009,
vazada nos seguintes termos: “O reconhecimento da
fraude à execução depende do registro da penhora do bem
alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.
Por tal enunciado, a regra é de que a ausência de
registro da constrição no registro público ou da prova de
má-fé, incide a presunção de boa-fé do adquirente, não se
podendo cogitar de fraude à execução.
Na esteira dessa súmula, a simples inexistência de
qualquer apontamento da execução no registro público
gera a presunção de boa-fé do terceiro adquirente.
Todavia, é preciso delimitar o seu alcance e o conteúdo.
Importa considerar determinadas situações peculiares que
refogem à incidência de tal enunciado.
Não se pode olvidar de que a prática de mercado e,
pois, pelas máximas de experiência, não é normal nem
crível que alguém que vá adquirir um imóvel se limite a
verificar tão somente no registro público de imóveis se há
penhora sobre o bem negociado, sem procurar investigar
se há ações pendentes no distribuidor judicial do domicílio
do alienante ou da localização do bem, ou ainda se há
protestos por falta de pagamento.
Aquele que deixa de tomar a mínima cautela de não
tirar certidões do domicílio do alienante e da localização
do bem viola o dever de diligência, pois a conduta omissiva
ofende a boa-fé objetiva (art. 422, CC), que deve nortear
todos aqueles que adquirem bens ou obtém garantias.10
Nesse caso, o ônus da prova da inocorrência da
fraude será do terceiro adquirente, que está em melhores
condições de produzi-la, pois tem a facilidade de verificar
a documentação e constar se, eventualmente, há ou não
ação pendente, ou ainda se o nome do alienante está ou não
no rol dos inadimplentes; e tudo isso de maneira bastante
simples, tirando certidão dos distribuidores forenses – cível,
execuções fiscais, fazenda estadual e municipal, certidão
dos distribuidores forenses, Justiça do Trabalho e Justiça
Federal, na comarca ou sessão judiciária do domicílio do
alienante e, caso o bem esteja em outra localidade, também
na comarca onde o bem está registrado.11
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 79
A praxe comercial moderna recomenda que qualquer
adquirente de imóvel obtenha certidão negativa de ônus no
registro imobiliário e certidão negativa ou positiva junto
aos cartórios dos distribuidores cíveis estadual e federal
da comarca em que se situa o bem alienado, onerado ou
penhora, e também do domicílio do alienante. Além disso,
a Lei no 7.433/85, regulamentada pelo Decreto federal
93.240, de 09/09/1986, exige a extração de certidões de
feitos ajuizado para a aquisição de bens imóveis.12
Não se pode esquecer que o art. 593, II, CPC, ainda
vige, destacando que “Considera-se em fraude de execução
a alienação ou oneração de bens: II - quando, ao tempo da
alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda
capaz de reduzi-lo à insolvência”.
O terceiro adquirente tem o ônus de provar que, com
a alienação do imóvel, não ficou o devedor reduzido à
insolvência, ou demonstrar qualquer outra causa passível
de ilidir a presunção de fraude disposta no art. 593, II, do
CPC, inclusive a impossibilidade de ter conhecimento da
existência da demanda. 13
Outrossim, não se deve perder de vista que a fraude
à execução pode ser proclamada, seja em função da má
exclusiva do devedor, seja decorrente do conluio entre o
devedor e terceiro.
É o que sucede, por exemplo, na execução em que o
devedor vende um imóvel a terceiro, após regular citação
no processo de execução e indicação do bem à penhora, e o
comprador não toma as mínimas cautelas na verificação se
existem ações pendentes ou protestos no foro do domicílio do
vendedor, atendo-se apenas à busca no Cartório de Imóveis.
O art. 615-A, Código de Processo Civil, facilita a
prova da fraude à execução, ao autorizar que o exequente
obtenha certidão do ajuizamento da execução e a averbe no
registro público (de imóveis, de veículos ou de outros bens
penhoráveis). E pelo § 3o do art. 615-A, CPC, “Presumese em fraude à execução a alienação ou oneração de bens
efetuada após a averbação”.
Um outro exemplo para demonstrar que o beneficiário
nem sempre tem consciência da fraude e da má-fé do
devedor alienante se apresenta quando este transfere
gratuitamente (doação) seu imóvel aos filhos menores,
com o intuito de prejudicar o credor.
“A falta de inscrição da penhora no Registro Imobiliário,
que se presta para dar publicidade a terceiros, nesse caso,
não constitui óbice à configuração da fraude à execução,
pois não se tratou de transferência onerosa a terceiros,
mas gratuita, aos próprios filhos dos devedores, que eram
todos menores à época da doação, não fazendo diferença
se conheciam ou não a existência da demanda em curso
contra os doadores, seus pais, e da penhora já consumada
quando do registro da doação, sendo certo, por outro
lado, que os devedores agiram em flagrante desrespeito
80
à constrição. No caso em que o imóvel penhorado, ainda
que sem o registro do gravame, foi doado aos filhos
menores dos executados, reduzindo os devedores a estado
de insolvência, não cabe a aplicação do verbete contido
na súmula 375, STJ. É que, nessa hipótese, não há como
perquirir-se sobre a ocorrência de má-fé dos adquirentes ou
se estes tinham ciência da penhora. Nesse passo, reconhecese objetivamente a fraude à execução, porquanto a má-fé
do doador, que se desfez de forma graciosa de imóvel, em
detrimento de credores, é o bastante para configurar o ardil
previsto no art. 593, II, do CPC”.14
Decretada a fraude à execução e o subsequente
retorno do bem ao patrimônio do devedor, este deixa de
ter a proteção da impenhorabilidade disposta na Lei n°
8.009/1990, sob pena de prestigiar-se a má-fé do executado
em total detrimento do credor.
4. Protesto e finalidade
Protesto é o ato formal e solene pelo qual se prova a
inadimplência e o descumprimento de obrigação originada
em títulos e outros documentos de dívida (art. 1o da Lei no
9.492/97).
Os serviços relativos ao protesto são de competência
exclusiva ao Tabelião de Protesto de Títulos e têm por
substrato garantir a autenticidade, publicidade, segurança
e eficácia dos atos jurídicos (arts. 2o e 3o da Lei no 9.492/97).
No âmbito do Estado de São Paulo, o protesto sujeitase ainda às Normas de Serviço da Corregedoria Geral de
Justiça, pareceres e provimentos de suas Corregedorias
(Geral e Permanente), como o Parecer 076/06 (Proc. CG
864/06).
Não se há confundir o protesto extrajudicial, objeto
do presente artigo e regulado pela Lei no 9.492/97, com o
protesto judicial, regrado pelo art. 867, Código de Processo
Civil (“Todo aquele que desejar prevenir responsabilidade,
prover a conservação e ressalva de seus direitos ou
manifestar qualquer intenção de modo formal, poderá
fazer por escrito o seu protesto, em petição dirigida ao juiz,
e requerer que do mesmo se intime a quem de direito”).
Para a validade do protesto basta a entrega da
notificação no estabelecimento do devedor e sua recepção
por pessoa identificada (art. 14, Lei no 9.492/97; Súmula
52-TJSP).
5. Princípio da unitariedade
Um dos princípios que regem a Lei no 9.492/97 é o da
“unitariedade”, significando que há um único protesto –
do título ou documento de dívida -, encerrando um único
ato comprobatório da inadimplência daquele devedor
originário constante no instrumento.
Quer dizer, em sendo protestado o título por falta
de pagamento, não se permite um “segundo” protesto,
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
agora contra os coobrigados (endossantes, sacadores e
avalistas), exceto se o primeiro contiver indicação errônea
ou omissão de dados.
6. Protesto necessário e facultativo
Em princípio, o protesto não é requisito para o ajuizamento de ação judicial, pois a sua finalidade é provar
a impontualidade. Portanto, cabe execução independentemente do protesto do título executivo.
Excepcionalmente, a lei exige o protesto (protesto necessário) como condição da ação ou como prova indispensável da mora. Nesses casos, o protesto é prova documental
insubstituível, não valendo provas orais ou testemunhais.
Por exemplo: para o pedido de falência (art. 94, § 3o,
Lei no 11.101/2005), caso em que a notificação do protesto,
para requerimento de falência da empresa devedora,
exige a identificação da pessoa que a recebeu (Súmula
361-STJ). Porém, se tirado o protesto comum por falta de
pagamento, não se exige um segundo protesto, específico
para fins de falência.
Quanto ao pedido de falência, no Tribunal de Justiça
de São Paulo, editaram-se os seguintes enunciados:
Súmula 41-TJSP: “O protesto comum dispensa o especial
para o requerimento de falência”; Súmula 43-TJSP:
“No pedido de falência fundado no inadimplemento de
obrigação líquida materializada em título, basta a prova
da impontualidade, feita mediante o protesto, não sendo
exigível a demonstração da insolvência do devedor”;
Súmula 50-TJSP: “No pedido de falência com fundamento
na execução frustrada ou nos atos de falência não é
necessário o protesto do título executivo”.
Em relação à duplicata, mercantis ou de prestação
de serviços, não se exige protesto para ser executada.
Excepciona-se, todavia, a hipótese de duplicata “não
aceita”, bem como a relativa ao direito de regresso.
Quanto à duplicata não aceita, somente poderá ser
protestada, mediante a apresentação de documento que
demonstre a efetiva prestação do serviço ou a compra
e venda mercantil, acompanhado do comprovante da
entrega e recebimento da mercadoria que deu origem ao
saque da duplicata.
Neste caso, no que toca à duplicata mercantil, permitese que a apresentação dos documentos previstos neste
item seja substituída por simples declaração escrita, do
portador do título e apresentante, feita sob as penas da
lei, assegurando que aqueles documentos originais, ou
cópias devidamente autenticadas, que comprovem a
causa do saque, a entrega e o recebimento da mercadoria
correspondente, sejam mantidos em seu poder, com
o compromisso de os exibir a qualquer momento, no
lugar em que for determinado, especialmente no caso de
sobrevir a sustação judicial do protesto.
Nessa linha, comprovada a prestação dos serviços,
mesmo que não aceita, mas protestada, a duplicata é título
hábil para instruir pedido de falência (Súmula 248-STJ).
Ainda quanto à duplicata, cabe lembrar a questão do
direito de regresso. Se o portador não tirar o protesto
da duplicata, em forma regular e dentro do prazo da 30
(trinta) dias, contado da data de seu vencimento, perderá
o direito de regresso contra os endossantes e respectivos
avalistas (art. 13, Lei no 5.474/68). E a execução da
duplicata prescreve em um ano quando proposta contra
endossante e seus avalistas, contado da data do protesto
(art. 18, Lei no 5.474/68).
Contrariamente, quanto à cédula de crédito bancário,
dispensa-se o protesto para garantia do direito de regresso.
O art. 44 da Lei no 10.931/2004 expressa que se aplicam
às cédulas de crédito bancário, no que não contrariar
o disposto nesta Lei, a legislação cambial, dispensado
o protesto para garantir o direito de cobrança contra
endossantes, seus avalistas e terceiros garantidores.
Também reclama protesto quando o título executivo
for contrato de câmbio (art. 75 da Lei no 4.728/65). Nas vendas a crédito com reserva de domínio, a mora do
comprador há de ser provada com o protesto do título (art.
1.071, Código de Processo Civil).
De igual forma, no que concerne ao contrato de aliena­
ção fiduciária a comprovação da mora é imprescindível à
busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, nos
termos da Súmula 72-STJ. A prova da mora pode ser feita
mediante notificação pelo Oficial de Registro de Títulos e
Documentos ou pelo protesto do título (art. 2o, § 2o, Decretolei no 911/69); a notificação destinada a comprovar a mora
nas dívidas garantidas por alienação fiduciária dispensa a
indicação do valor do débito (Súmula 245-STJ).
No que tange ao cheque, para a execução, basta a
apresentação, independentemente do protesto. Quer
dizer, o portador pode executar o emitente e seu avalista,
bem como os endossantes e seus avalistas, se o cheque
apresentado em tempo hábil e a recusa de pagamento for
comprovada pelo protesto “ou” por declaração do sacado,
escrita e datada sobre o cheque, com indicação do dia de
apresentação, “ou, ainda”, por declaração escrita e datada
por câmara de compensação (art. 47, Lei no 7.357/85).
Extrai-se, dessa forma, que o seu protesto é facultativo.
7. Documentos protestáveis
Podem ser levados a protesto os títulos e documentos
de dívida. Em outras palavras, os documentos devem
conter obrigação de pagar quantia líquida, certa e exigível.
Dessa forma, são protestáveis os títulos executivos,
judiciais ou extrajudiciais, previstos tanto no Código de
Processo Civil (arts. 475-N, e 585), como em legislação
extravagante.
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 81
Alguns exemplos: termo da ajustamento de conduta
(art. 5o, § 6o, Lei no 7.347/85), contrato de aluguel de
bem imóvel (art. 585, V, CPC), contrato de participação
em grupo de consórcio (art. 10, § 6o, Lei no 11.795/08),
duplicata mercantil e de prestação de serviços (art. 13, Lei
no 5.474/68), contrato de honorários advocatícios (art. 24,
Lei no 8.906/1994), encargos Condominiais (Lei estadual
paulista no 13.260/2008), cédula de crédito bancário (art.
28 da Lei no 10.931/2004 e Súmula 14-TJSP), decisão do
tribunal de contas de que resulte imputação de débito ou
multa (art. 71, § 3o, Constituição Federal), certidão da
dívida ativa (art. 585, VII, CPC).
Em se tratando de sentença ou decisão judicial que
contemple obrigação de pagar quantia líquida, certa
e exigível, exige-se trânsito em julgado da decisão,
comprovável mediante certidão do juízo.
Quando a lei alude a “documentos de dívida”, abre-se a
possibilidade de protesto, seja de título executivo, seja de
outro documento representativo de dívida líquida, certa e
exigível, sem eficácia executiva.
Basta pensar em documento particular, assinado
apenas pelo devedor, sem a presença de duas testemunhas;
ou mesmo o título de crédito atingido prescrição da
pretensão executória, como se depreende da Súmula 17TJSP (“A prescrição ou perda de eficácia executiva do título
não impede sua remessa a protesto, enquanto disponível a
cobrança por outros meios”).
Prescrita a via executiva, sobeja ao credor o direito de
buscar a satisfação de seu crédito pelas vias ordinárias, por
meio de ação de conhecimento, sujeitando-se a partir daí
ao prazo prescricional de 5 anos previsto na lei civil (art.
206, § 5o, I, Código Civil).
O protesto pode se referir ao não pagamento da
integralidade da dívida ou de apenas parte. Quanto ao
título de crédito, é possível o protesto de parte da dívida,
como sucede, por exemplo, quando há quitação ou
remissão parcial da obrigação. Neste caso, cabe ao credor
indicar qual o montante que pretende ver protestado.
O protesto é causa interruptiva da prescrição (art.
202, Código Civil). Mas, ainda que prescrita a pretensão
executiva, é possível o protesto do documento. E o
tabelião não tem atribuição para investigar a ocorrência
da prescrição ou caducidade (art. 9o, Lei no 9.492/97),
podendo, quando muito, analisar eventual irregularidade
formal (por ex.: rasuras, ilegibilidade do documento,
incompletude do título etc.); por consequência, não se
pode cogitar de responsabilização do tabelião se age no
estrito cumprimento de suas atribuições.
O título ou documento de dívida expressa em moeda
estrangeira igualmente são protestáveis, desde que
acompanhados de tradução efetuada por tradutor público
juramentado (art. 10, Lei no 9.492/97).
82
Pela Súmula 387-STF, a cambial emitida ou aceita com
omissões, ou em branco, pode ser completada pelo credor
de boa-fé antes da cobrança ou do protesto.
Se ajuizada execução do título de crédito sem estar
devidamente preenchida, cumpre perquirir se, em sendo
extinta por irregularidade do título executivo, poderia o
credor, após preencher os claros, repropor a mesma execução.
Temos que sim, uma vez que o “mérito” da execução
não restou devidamente apreciado, nem julgado; isto é,
não houve pronunciamento a respeito da extinção da
obrigação pelo pagamento. Porém, já se decidiu que não
pode o credor, após o preenchimento dos claros, ajuizar
nova execução, restando-lhe tão somente a via ordinária.15
No que tange à duplicata virtual, emitida por meio
magnético ou de geração eletrônica, também pode ser
protestada, por indicação (art. 13, Lei no 9.492/97), não se
exigindo, para o ajuizamento da execução judicial, a exibição
do título. Logo, se o boleto bancário que serviu de indicativo
para o protesto retratar fielmente os elementos da duplicata
virtual, estiver acompanhado do comprovante de entrega
das mercadorias ou da prestação dos serviços e não tiver
seu aceite justificadamente recusado pelo sacado, poderá
suprir a ausência física do título cambiário eletrônico e, em
princípio, constituir título executivo extrajudicial. 16
8. Efeitos
Além de se constituir prova do inadimplemento, o
protesto ainda tem o efeito de interromper a prescrição
(art. 202, III, Código Civil), além de fixar o termo inicial
da incidência de juros, taxas e atualizações monetárias
sobre o valor da obrigação, se não houver prazo assinado
(art. 40, Lei no 9.492/97).
Sendo solicitada, o cartório de protesto deve fornecer aos
órgãos de proteção do crédito, representativas da indústria e
do comércio (por ex.: Serasa Experian), certidão diária, em
forma de relação, dos protestos tirados e dos cancelamentos
efetuados, com a nota de se cuidar de informação reservada,
da qual não se poderá dar publicidade pela imprensa, nem
mesmo parcialmente (art. 29, Lei no 9.492/97).
9. Protesto indevido
Sendo indevido o protesto, cabe ação indenizatória
contra o responsável, como sucede, por exemplo, quando
o título já está quitado, duplicata sem qualquer lastro,
rescisão do negócio, falsidade de assinatura etc. Nessas
hipóteses, o dano é presumido (“in re ipsa”), decorrente da
própria coisa ou situação fática.
Se já há protesto legítimo anterior, discute-se se o
segundo – indevido - ensejaria direito à indenização por
dano moral. É certo que a Súmula 385-STJ estabelece
que “Da anotação irregular em cadastro de proteção ao
crédito, não cabe indenização por dano moral, quando
Justiça & Cidadania | Novembro 2013
preexistente legítima inscrição, ressalvado o direito ao
cancelamento”. Todavia, a discussão grassa tanto na
doutrina como na jurisprudência, considerando que um
único protesto legítimo tornaria todos os subsequentes
(ilegítimos) imunes de responsabilização.
Por vezes, é possível que a cambial seja levada a protesto
por instituição financeira quando lhe é transferido um
título de crédito.
Aqui cabe distinguir a posição do banco. Se age como
proprietário do título e do crédito, por força de endosso
translatício, fica responsável pelo protesto indevido, sendo,
pois, parte passiva legítima para figurar em eventual ação
indenizatória.
Por outro lado, quando detém o título de crédito apenas
para cobrar a dívida - endosso mandato -, a mera situação
de o banco ter recebido o título para cobrança não pode
levá-lo à responsabilização por danos morais decorrentes
do protesto indevido.
No entanto, se houve abuso ou desídia por parte do
banco, por exemplo, levando a protesto depois de avisado
de que o título já se encontra quitado ou de que o negócio
foi desfeito, incide na obrigação de indenizar.17
Igualmente, se o banco recebe o título de crédito como
garantia de outra operação (endosso-caução), há de verificar
a higidez da cambial e a sua causa; levando-o indevidamente
a protesto, deve responder pelos danos. Assim, se a instituição
financeira extrapola seus poderes de mandatária ou se
descuida de seu dever de verificar a regularidade do título,
passa a ser responsável pelo protesto ilegítimo.
10. Certidão
Lavrado o protesto, é possível expedição de certidão, que
deve abranger o período mínimo dos cinco anos anteriores,
contados da data do pedido, salvo quando se referir a
protesto específico (art. 27, Lei no 9.492/97). Portanto,
diante da dicção legal, não é possível expedição de certidão
constando período inferior a cinco anos. Na certidão, não
se mencionam os protestos cancelados, exceto a pedido do
próprio devedor ou por determinação judicial.
11. Cancelamento
O cancelamento do protesto pode ser feito de forma
administrativa ou judicial. No plano administrativo, o
cancelamento do registro do protesto deve ser solicitado
diretamente no Tabelionato de Protesto de Títulos,
por qualquer interessado, mediante apresentação do
documento protestado, cuja cópia ficará arquivada.
Em princípio, cabe ao devedor ou qualquer interessado
buscar o cancelamento do protesto, juntando o título ou o
documento de dívida protestado.
Não sendo possível a apresentação do original do título
ou documento de dívida protestado, exige-se a declaração
de anuência, com identificação e firma reconhecida,
daquele que figurou no registro de protesto como credor,
originário ou por endosso translativo. E na hipótese de
protesto em que tenha figurado apresentante por endossomandato, será suficiente a declaração de anuência passada
pelo credor endossante (art. 26 e § 1o da Lei no 9.492/97).
Sendo devido o protesto, decorrente do exercício
regular do direito do credor, e uma vez quitada a dívida,
cabe ao devedor dirigir-se ao respectivo tabelionato para
efetuar o cancelamento definitivo do protesto lavrado em
seu nome.
Com efeito, a Lei no 9.492/97 não impõe nem estabelece
a quem compete pleitear o cancelamento do protesto;
pelo contrário, deixa expresso que tal registro poderá ser
solicitado “por qualquer interessado”. De conseguinte, se
o próprio devedor não toma a iniciativa de procurar o
credor para que entregue o título ou carta de anuência, não
se há falar em indenização.
Em outro dizer, uma vez quitada a dívida, cabe ao
credor fornecer o documento protestado ou a carta de
anuência, para que o devedor proceda ao cancelamento.
Demonstrada a não entrega de tais documentos, ou
evidenciada a demora no seu fornecimento, ensejando a
permanência indevida do protesto, então sim, exsurge o
dever do credor em indenizar.
No plano judicial, o cancelamento do registro do
protesto se dá quando fundado em outro motivo que não no
pagamento da obrigação. Assim, se o protestado demonstrar
em juízo que o protesto foi indevido (por ex.: duplicata
simulada, assinatura falsa, desfazimento do negócio etc.), o
cancelamento é realizado mediante determinação judicial,
pagos os emolumentos devidos ao tabelião.
A lei exige o trânsito em julgado. Quando a extinção da
obrigação decorrer de processo judicial, o cancelamento
do registro do protesto poderá ser solicitado com a
apresentação da certidão expedida pelo Juízo processante,
com menção do trânsito em julgado, que substituirá o título
ou o documento de dívida protestado (art. 26, § 4o, Lei no
9.492/97). Na praxe forense, tem-se formulado pedido
de sustação do protesto ou “cancelamento do protesto”,
especialmente em sede de cautelar ou antecipação de
tutela. Em termos práticos, o “cancelamento” do protesto
se revela como sustação da publicidade do protesto, pois,
como se infere do texto legal, o efetivo cancelamento só é
possível após o trânsito em julgado da decisão.
Sendo reconhecido como indevido o protesto, e
ordenado judicialmente o seu cancelamento, o prejudicado
tem direito à respectiva indenização.
Não se cancela o protesto com fundamento apenas na
prescrição, uma vez que, como dito, a obrigação subsiste
hígida, podendo ser cobrada pela via do processo do
conhecimento.18
2013 Novembro | Justiça & Cidadania 83
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e Outros Documentos de Dívida - Princípios , Fundamentos e
Execução. Editora Freitas Bastos
Notas
1
. Art. 927, Código Civil. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e
187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano,
independentemente de culpa, nos casos especificados em lei,
ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do
dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
84
2
Art. 458, CPC. São requisitos essenciais da sentença:
I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do
pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais
ocorrências havidas no andamento do processo;
II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato
e de direito;
III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as
partes Ihe submeterem.
3
Exemplo de prova da vigência do direito. Na adoção internacional (art. 51, § 2o, Estatuto da Criança e Adolescente), “A autoridade judiciária, de ofício ou a requerimento do Ministério
Público, poderá determinar a apresentação do texto pertinente
à legislação estrangeira, acompanhado de prova da respectiva
vigência”.
4
João Batista Lopes, A prova no direito processual civil, RT, 2000,
p. 29, n. 4.2.
5
REsp. 1.280.321 – MG, Rel. Min. MAURO CAMPBELL
MARQUES, j. 06/03/2012.
6
TJSP, AI 0030623-33.2012.8.26.0000, Rel. Des. J.B. Franco de
Godoi, j. 28/03/2012.
7
TJSP, Ap. no 9231664-34.2008.8.26.0000, Rel. Des. Jovino de
Sylos, j. 13/03/ 2012.
8
Trata-se de pedido de ação de indenização por danos morais
proposta por goleiro que teve sua imagem (foto) vinculada em
folder promocional de empresa (fábrica de bolas), utilizando
sua imagem para fins comerciais sem sua autorização e ainda
em situação depreciativa: “levando um gol”. O pedido foi
julgado improcedente nas instâncias ordinárias, ao fundamento
de ausência de prova do dano moral sofrido. Prosseguindo a
renovação do julgamento em razão do empate, a Turma, por
maioria, deu provimento pelo voto mérito da Min. Relatora, de
acordo com a jurisprudência assente, segundo a qual a reparação
dos danos morais independe da prova desses e considerou que
a sociedade empresária que utiliza, sem autorização e para fins
econômicos, a imagem de terceiro, como no caso, causa lesão ao
direito de imagem da vítima, portanto deve ser compensado. Em
voto-vista, o Min. Castro Filho lembrou que o direito à indenização
pelo uso indevido da imagem é garantido constitucionalmente e
a ofensa se materializa com o simples uso sem autorização, ainda
que tal utilização não seja vexatória. Ressaltou-se que, nos autos,
houve pedido de condenação em danos materiais, por isso só se
apreciaram os danos morais (STJ. REsp. 426.070-CE, rel. Min.
Nancy Andrighi, j. 4/11/2004).
9
REsp. 916.476 – MA, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, j.
11/10/2011.
10
É a lição de William Santos Ferreira, O ônus da prova na fraude
à execução: a boa-fé objetiva e as premissas de uma sociedade
justa e solidária – Panorama atual das tutelas individual e
coletiva: estudos em homenagem ao professor Sérgio Shimura –
Coordenação: Alberto Camiña Moreira, Anselmo Prieto Alvarez
e Gilberto Gomes Bruschi. São Paulo, Saraiva, p. 756.
11
Gilberto Gomes Bruschi, Questões controvertidas sobre a fraude
à execução. Revista Dialética de Direito Processual, n. 73, abril de
2009, p. 71.
12
José Eli Salamacha, Fraude à execução: proteção do credor e do
adquirente de boa-fé – Execução Civil: estudos em homenagem ao
professor Humberto Theodoro Junior, p. 45.
13
REsp. 655.000-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 23/08/2008.
14
REsp. 1.163.114-MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j.
16/06/2011.
15
REsp. 870.704-SC, Rel. Min.Luis Felipe Salomão, j. 14/6/2011.
16
REsp. 1.024.691-PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 22/3/2011.
17
Resp. 602.280-RS, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. 2/2/2010
18
REsp. 671.486, Rel. Min. Menezes Direito, j. 8.3.2005
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